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REVISTA REVISTA SABERES LETRAS ISSN: 2176-89271 SABERES LINGUÍSTICA - LITERATURA - ENSINO ORGANIZAÇÃO Micheline Mattedi Tomazi Aline Moraes Oliveira LETRAS 2 REVISTA SABERES LETRAS Diretora Geral: Alacir de Araújo Silva Coordenador do curso de Letras Português/Inglês: Weverson Dadalto Editor: SABERES Instituto de Ensino Ltda Organizadores: Aline Moraes Oliveira Micheline Mattedi Tomazi Weverson Dadalto Conselho Editorial - Membros Alacir de Araújo Silva - SABERES Arlene Batista da Silva Ferreira - SABERES Carlos Roberto de Souza Rodrigues - SABERES Cleonara Maria Schwartz - UFES Deneval Siqueira de Azevedo Filho - UFES Diego do Nascimento Rodrigues Flores - SABERES Janaína de Assis Rufino - UEMG Lúcia Helena Peyroton da Rocha - UFES Luis Eustáquio Soares - UFES Maria Amélia Dalvi Salgueiro - UFES Maria da Penha Pereira Lins - UFES Micheline Mattedi Tomazi - UFES Paulo Roberto Sodré - UFES Vera Márcia Soares de Toledo - SABERES Weverson Dadalto - SABERES Wilberth Claython Ferreira Salgueiro - UFES Wolmyr Aimberê Alcantara Filho - SABERES Revisão Arlene Batista da Silva Ferreira Vera Márcia Soares de Toledo Weverson Dadalto Luciana Zandonadi Mattedi Raquel Freitas de Oliveira Kátia Helena Maués Guedes Karina de Rezende Tavares Fleury Editoração: José Carlos Vieira Júnior Revista Saberes Letras: Linguística, Literatura, Ensino. Faculdade Saberes. – v. 9,. n.1. – Vitória: Saberes Instituto de Ensino Ltda., 2011 Revista Saberes Letras: Linguística, Literatura, Ensino. Faculdade Saberes. – v. 9, n.1. – Vitória: Saberes Instituto de Ensino Ltda., 2011. Anual ISSN: 2176-8927 1. Linguística – Periódico. 2. Literatura. 3. Ensino. REVISTA SABERES LETRAS 3 Sumário I – Estudos sobre LingUística 1. 2. 3. 4. O ETHOS DISCURSIVO DO CORINGA EM BATMAN A PIADA MORTAL Alex Caldas Simões ESTUDO DO VERBO DE MOVIMENTO NOS GÊNEROS ENTREVISTA E REPORTAGEM Aline Moraes Oliveira Carmelita Minelio da Silva Amorim Lúcia Helena Peyroton da Rocha Sabrina Tassan O TIPO ARGUMENTATIVO “STRICTO SENSU”: DIMENSÕES DISCURSIVA E LINGUÍSTICA Andréa Lopes Borges A RETEXTUALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE ENSINO NA AULA DE PORTUGUÊS COMO SEGUNDA LÍNGUA PARA OS SURDOS Arlene Batista da Silva Ferreira 09 34 53 70 5. MAL DE ALZHEIMER NA PRIMEIRA FASE: CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLINGUÍSTICA Denise Aparecida Moser 6. REFERENCIAÇÃO: ASPECTOS DISCURSIVOS Fabiano de Oliveira Moraes Virgínia Beatriz Baesse Abrahão 7. A REPRESENTAÇÃO DAS ÁREAS DE LETRAS E BIOLOGIA EM DUAS NOTÍCIAS DA MÍDIA ONLINE Fátima Andréia Tamanini-Adames 136 8. O HUMOR NOS JINGLES DA CAMPANHA “QUEM NÃO SABE, DANÇA”, DA TIGRE: INFERÊNCIA E SUGESTÃO Franciely Corrêa de Freitas Ana Cristina Carmelino 154 88 112 4 9. REVISTA SABERES LETRAS VALORES SEMÂNTICOS DAS UNIDADES LEXICAIS SUFIXADAS EM -EZA NA LÍNGUA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA (VARIANTE EUROPEIA) Iovka Bojílova Tchobanova 170 10. O PAPEL HIPERONÍMICO DOS TERMOS DE CLASSE EM AKWẼ-XERENTE (JÊ) Kênia Mara de Freitas Siqueira 186 11. NARRADORES MACHADIANOS EM “BONS DIAS”: ATOS PERFORMÁTICOS EM BUSCA DOS LEITORES OITOCENTISTAS Nelson de Jesus Teixeira Júnior Patrícia Kátia da Costa Pina 200 NAS LINHAS E ENTRELINAHS DAS NARRATIVAS DO TIPO HISTÓRIA: UM ESTUDO DA ORGANIZAÇÃO ENUNCIATIVA E POLIFÔNICA Raquelli Natale Micheline Mattedi Tomazi 215 Gêneros: um conceito entre a Teoria da Enunciação e a Análise de Discurso – AD: uma proposta de categorização Silvana da Silva Ribeiro 239 12. 13. II – Estudos sobre Literatura 14. 15. 16. A NAU E O CAPITÃO: PELOS MARES DA HISTÓRIA, DUAS VERSÕES FICCIONAIS DE LUIZ GUILHERME SANTOS NEVES Cinthia Mara Cecato da Silva MENINO DE ENGENHO: O INÍCIO DO CICLO SOCIOLÓGICO EM JOSÉ LINS DO REGO Dinameire Oliveira Carneiro Rios O FAZER POÉTICO DE GEIR NUFFER CAMPOS Gabriel Diniz Silva Karina de Rezende Tavares Fleury 263 278 290 REVISTA SABERES LETRAS 17. JORGE LUIS BORGES E A LITERATURA POLICIAL Inês Aguiar dos Santos Neves 18. O LEGADO DAS COMPOSITORAS DE MPB NOS TREPIDANTES ANOS DE CHUMBO Kátia Helena Maués Guedes Vera Márcia Soares de Toledo 19. AS TENDÊNCIAS MODERNAS E PÓS-MODERNAS NA LITERATURA BRASILEIRA E A RELAÇÃO COM POESIA MARGINAL DOS ANOS 70 Maitê de Souza Cosmi Vera Márcia S. de Toledo 5 308 333 353 20. Sobre a dimensão mística do rio na obra de Guimarães Rosa Mauro Leite Teixeira Vera Márcia Soares de Toledo 21. A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM CIRANDA DE PEDRA Rubiani Boldrini da Silva Karina de Rezende Tavares Fleury 22. ENCONTRARIA A LITERATURA? AS BUSCAS PELA MAGA EM RAYUELA, DE JULIO CORTÁZAR Weverson Dadalto 403 23. Algumas considerações sobre o leitor e o olhar em Dom Casmurro, de Machado de Assis Wolmyr Aimberê Alcantara Filho 430 370 378 III – Estudos sobre Ensino 24. UMA NOTÍCIA DE PESQUISA: A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ESPÍRITO SANTO: LEITURA, LITERATURA E MATERIAIS DIDÁTICOS Adriana Falqueto Lemos Anna Catharina Izoton Mariano Maria Amélia Dalvi Sérgio Alves de Novais 445 6 25. REVISTA SABERES LETRAS Um estudo da concepção de leitura presente nas atividades de compreensão e interpretação de textos do ensino fundamental Danielle Maximo Plens Pinelli Adriana Recla 466 REVISTA SABERES LETRAS 7 APRESENTAÇÃO A Revista Saberes, em mais uma edição virtual, dá continuidade à sua proposta de gerar maior interação com profissionais de outras instituições de ensino para o desempenho efetivo dos papéis de disseminadores e mediadores de conhecimento. O objetivo central da Revista Saberes está voltado para divulgação de pesquisas científicas desenvolvidas por estudiosos de três grandes áreas: linguística, literatura e ensino de linguagem. A Revista está distribuída em três blocos: Estudos sobre Linguística, Estudos sobre Literatura e Estudos sobre ensino. No primeiro bloco aparecem reflexões acerca da Literatura. Há neste espaço, artigos que versam assuntos diversos, dentre eles: Luiz Guilherme Santos Neves, Machado de Assis, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Molière, José Lins do Rego, Geir Nuffer Campos, Guimarães Rosa. No segundo bloco apresentam-se análises e considerações sobre o mal de Alzheimer e as contribuições da Psicolinguística; retextualização e ensino para surdos, Teoria da Enunciação e Análise do Discurso, polifonia, referenciação, estudos de humor, estudo de verbos. Para finalizar, o terceiro bloco traz textos que tratam temas concernentes ao ensino de língua e literatura de língua materna. Nesta seção, os articulistas demonstram uma preocupação com a formação de professores no Espírito Santo e com a concepção de leitura em atividades do ensino fundamental. Com essa nova configuração e sua publicação, a Revista Saberes enseja nosso desejo de semear ideias, provocar reflexões, promover novos caminhos, inquietar a mente dos pesquisadores e estudantes, criar novas perspectivas e, acima de tudo, promover o “jogo” inquietante e salutar desse saber fascinante da Linguagem. Para nós, a Revista Saberes instala-se na rede virtual como um espaço propício para o diálogo da língua, do ensino e da literatura. Em 07 de dezembro de 2011 Aline Moraes Oliveira Micheline Mattedi Tomazi Weverson Dadalto 8 REVISTA SABERES LETRAS Seção I Estudos sobre Linguística REVISTA SABERES LETRAS 9 O ETHOS DISCURSIVO DO CORINGA EM BATMAN A PIADA MORTAL Alex Caldas Simões1* Resumo A partir de Batman A Piada Mortal (1999) evidenciaremos o ethos do personagem Coringa de modo a caracterizá-lo discursivamente como vilão das HQs. Apoiados em Amossy e Maingueneau discorreremos sobre os conceitos de cena enunciativa e de ethos para descrever as imagens de si produzidas pelo personagem em seu próprio discurso, a saber, antes da vilania (como Jack Napier) e depois da vilania (como o Coringa): afinal, o homem e o vilão apresentam alguma regularidades de ethos? Dessa forma, esperamos apresentar em nossa exposição a verdadeira identidade discursiva do Coringa: torturador, brutal, e irônico/engraçado. Palavras-Chave: Ethos discursivo. Quadrinhos. Cena enunciativa. Abstract: From Batman The Killing Joke (1999) emphasizes the ethos of the Joker in order to characterize it discursively as the villain of the comic. Backed by Amossy Maingueneau and will discuss the concepts of ethos and expository scene to describe the images produced by the character of himself in his own speech, namely, before the villain (as Jack Napier), and then the villain (as the Joker): after all, the man and the villain have some regularities ethes? Thus, we hope to present in our exposure to the Joker’s true identity discourse: torturer, brutal, and ironic / funny. Keywords: Discursive ethos. Comics. Expository scene. Introdução Dentro dos estudos da linguagem, em especial os estudos discursivos, muitos objetos tem sido atualmente alvos de análises linguísticas. Tal possibilidade se torna viável uma vez o discurso, de acordo com Michel Foucault, pode ser entendido como “nada mais do que a reverberação de uma verdade nascendo 1∗ Mestre em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV – bolsista CAPES/REUNI). Viçosa, Minas Gerais, Brasil. Email: [email protected] SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 10 REVISTA SABERES LETRAS diante de nossos olhos” (1996, p. 49). Como diria Dominique Maingueneau (1989), discurso pode ser qualquer produção de linguagem, seja ela falada ou escrita, acadêmica ou popular. A Análise do Discurso (AD) pode ser entendida como a ciência de “explicação dos textos”, o modo como a sociedade trata seus próprios textos. É uma leitura, como afirma o autor (1989), verdadeira que procura desvendar os sentidos ocultos presentes nos textos analisados. Como objeto de estudo dessa ciência temos formações discursivas2 de qualquer instância: podemos analisar músicas, propagandas, desenhos animados, poemas, Histórias em Quadrinho (HQs), obras de ficção, entre outros. Na realidade, seria melhor questionar o que poderia não ser ‘discurso’: não apenas os enunciados, mas também as análises destes enunciados, e assim ad libitum, oferecem a possibilidade de recortar um conjunto ilimitado de campos de investigação (MAINGUENEAU, 1989, p. 16). Dessa forma, entendemos que com a AD é possível realizar inúmeras análises linguísticas, desde, é claro, que articulemos os mecanismos formais do discurso com os dados institucionais – ao se analisar, segundo Foucault (1996), “o jogo de noções que lhes são ligadas; regularidade, causalidade, descontinuidade, dependência, transformação.” Em nosso artigo, portanto, pretendemos analisar discursivamente o ethos do personagem Coringa da graphic novel “Batman: A Piada Mortal” (DC comics) de Allan Moore e Brien Bolland publicado pela primeira vez no Brasil em 1988. Em nossa exposição discorreremos nesta ordem: (a) sobre o conceito de ethos e de cena enunciativa de Ruth Amossy e Dominique Maingueneau; (b) sobre “Batman: A piada Mortal”, primeira parte sobre a publicação, segunda parte �������������������������������������������������� - Formações discursivas podem ser entendidas como “um ������������������������������������� conjunto de regras anônimas, his� tóricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica, ou linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa” (MAINGUENEAU, 1989, p. 14). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 11 sobre o ethos discursivo de Jack Napier e terceira parte, sobre o ethos discursivo do Coringa; e (c) sobre as possíveis relações entre os ethos de homem e de vilão do personagem. Com esta exposição pretendemos esboçar a verdadeira identidade discursiva do Coringa: afinal, quem é ele? Homem? Vilão? Louco? Referencial teórico: Ethos e cena enunciativa A noção teórica de ethos, segundo Maingueneau (1988), retoma a Grécia antiga, época em que Aristóteles (1378a) entendia que tal noção era uma imagem discursiva que colaborava na legitimação argumentativa de um discurso qualquer. O ethos era considerado uma prova retórica que juntamente com o pathos e o logos construíam uma argumentação plausível na língua: o ethos constituía o “caráter do orador ou imagens de si que este apresenta no seu discurso para obter a adesão do outro” (MENEZES, 2006, p. 90-91); o pathos correspondia “a adesão do outro, as paixões e os sentimentos que propiciam a felicidade do ato discursivo” (MENEZES, 2006, p. 90-91); e o logos representava a racionalidade persuasiva de um discurso (Menezes, 2006). A noção de ethos, desde Aristóteles, passou por algumas reformulações, sendo tratada ora pelo campo da argumentação, ora pelo campo da análise do discurso. Cabe destacar aqui, conforme indica Maingueneau (1988), que esta noção foi reformulada por Oswald Ducrot (1984)3 em seu quadro pragmático de linguagem: “[e]m termos mais pragmáticos, dir-se-ia que o ethos se desdobra no registro do ‘mostrado’ e, eventualmente, no do ‘dito’. Sua eficácia decorre do fato de que envolve de alguma forma a enunciação sem ser explicitado no enunciado” (MAINGUENEAU, 2005, p.70). Maingueneau (2005, 2008), ainda explicita, citando Ducrot (1984)4, que o ethos está ligado a figura do “locutor L”5 – ou seja, aquele locutor que é a fonte da 3- DUCROT, Oswald. Le dire et le dit. Paris: Minuit, 1984. 4- DUCROT, Oswald. Le dire et le dit. Paris: Minuit, 1984. �������������������������������������������������������������������������������������������� - Locutor, segundo Ducrot (1984), citado por Eduardo Guimarães, representa o ‘eu’. É respon� sável pela enunciação que vai estar no enunciado. Se divide em “Locutor L” e “Locutor l”. O primeiro, “é o que se representa como fonte do dizer.” (GUIMARÃES, 1995, p. 60); o segundo, é o locutor-enquanto-pessoa-no-mundo.” (GUIMARÃES, 1995, p. 60). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 12 REVISTA SABERES LETRAS enunciação e que possui uma série de características que a tornam aceitável ou recusável. Ao retomar os estudos pragmáticos de ethos, o autor (2005, 2008) afirma: “[...] o ethos se mostra, ele não é dito.” Após esta reformulação o próprio Maingueneau, no início dos anos 1980 – 19846 e 19877 –, propôs a sua análise do ethos inserida em uma teoria de análise do discurso. Para Maingueneau (2005, 2008) todo discurso, oral ou escrito, pressupõe um ethos. Cabe aqui, antes de evidenciarmos as proposições teórico-metodológicas de Maingueneau, apresentaremos as noções de ethos de Ruth Amossy (2005a e 2005b), uma vez que estas são, em parte, recuperadas por Maingueneau em sua teoria. Para autora (2005a), portanto, relembrando Roland Barthes8, o ethos se define pelos traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importando sua sinceridade) para causar boa impressão: é o seu jeito [...] O orador enuncia uma informação e ao mesmo tempo diz: sou isto, não sou aquilo. O autor [Barthes] retoma assim as idéias de Aristóteles, que afirmava em sua Retórica: ‘é [...] ao caráter moral que o discurso deve, eu diria, quase todo seu poder de persuasão (AMOSSY, 2005, p. 10). Com isso Amossy (2005b) enuncia que o ethos é uma construção tanto linguageira (discursiva) quanto institucional (social). Dessa forma, o estudo do ethos deve pautar-se em um estudo da interlocução “que leva em conta os participantes, o cenário e o objetivo da troca verbal” (AMOSSY, 2005b, p. 124) – como irá desenvolver muito bem em sua teoria Maingueneau. 6- MAINGUENEAU, Dominique. Genèses du discours. Liège-Bruxelles: Mardaga, 1984. 7- MAINGUENEAU, Dominique. Nouvelles tendances em analyse du discurs. Paris: Hachette, 1987. 8- BARTHES, Roland. L’ancienne rhétorique. Aide-mémoire. In: Communications, n.16, 1970. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 13 A autora (2005b, p. 125) ainda postula o conceito de ethos-prévio – chamado por Maingueneau de ethos pré-discursivo – que corresponde a um ethos que precede a construção da imagem no discurso: [n]o momento em que toma a palavra, o orador9 faz uma ideia de seu auditório e da maneira pela qual será percebido; avalia o impacto sobre seu discurso atual e trabalha para confirmar sua imagem, para reelaborá-la ou transformá-la e produzir uma impressão conforme às exigências de seu projeto argumentativo (AMOSSY, 2005b, p. 125). Amossy (2005b), em seu projeto teórico, ainda esboça a ideia de estereótipo (ou estereotipagem), que desempenha um papel fundamental na constituição do ethos discursivo. Para a autora, a construção do ethos-prévio e do ethos dependem que estes sejam assumidos por uma doxa10, ou seja, que se “indexem em representações partilhadas.” Afinal, será esta representação cultural préexistente que será buscada pelo orador no momento de sua enunciação para melhor argumentar. Tendo em mente tais preceitos, podemos analisar agora as proposições teóricas de Maingueneau com maior clareza. Para o autor (2005) qualquer discurso, como já dito, possui um ethos discursivo formado por uma vocalidade específica. Essa vocalidade específica do discurso evidência uma fonte enunciativa, “[...] por meio de um tom que indica quem o disse [...]” (2005, p. 72). Portanto, existindo uma vocalidade, também existe um corpo do enunciador – que, cabe ressaltar, não é o corpo do autor efetivo. Com isso queremos dizer que um orador qualquer ao enunciar constrói um corpo de enunciador que por um tom específico evidência uma vocalidade também específica. Assim, conforme indica Maingueneau (2005, p. 72), a noção tradicional de ethos recobre não só a dimensão vocal, mas também “um conjunto de determinações físicas e psíquicas atribuídas pelas representações coletivas à personagem do orador.” 9- Amossy (2005b) considera orador como o enunciador (ou locutor). O mesmo vale para o termo auditório: que representa para a autora o alocutário. ���������������������������������������������������������������������������������������� - Para Amossy (2005b, p. 125) doxa corresponde ao “saber prévio que o auditório possui sobre o orador.” SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 14 REVISTA SABERES LETRAS O corpo do enunciador, o fiador11 é composto: (a) por um “caráter”, que corresponde “a um feixe de traços psicológicos” (MAINGUENEAU, 2005, p. 72); (b) e por uma “corporalidade”, que corresponde a um estado de compleição corporal, ou seja, a uma maneira de vestir-se e de mover-se no espaço social (MAINGUENEAU, 2005) que se constroem com base em estereótipos sociais. Ao considerarmos que todo discurso provém de uma cena de enunciação12, temos, segundo Maingueneau (2005), que a figura do ethos não é somente um meio de persuasão, mas também é parte de uma cena enunciativa. Em resumo, então, podemos dizer que como o enunciador se dá pelo tom de um fiador associado a uma dinâmica corporal, o leitor não decodifica seu sentido, ele participa ‘fisicamente’ do mesmo mundo do fiador. O co-enunciador captado pelo ethos, envolvente e invisível, de um discurso, faz mais do que decifrar conteúdos. Ele é implicado em sua cenografia, participa de uma esfera na qual pode reencontrar um enunciado que, pela vocalidade de sua fala, é construído como fiador do mundo representado (MAINGUENEAU, 2005, p. 90). Com isso, o leitor é incorporado definitivamente na cena enunciativa, e, através de uma percepção complexa advindas do material linguístico e do ambiente, este formula o ethos discursivo efetivo. Esse ethos, portanto, é o resultado de uma interação complexa entre vários elementos: o ethos pré-discursivo, o ethos discursivo mostrado e ethos discursivo dito13 (cf. imagem 1). ��������������������������������������������������������������������������������������������� - O fiador, segundo Maingueneau (2005, p. 72) é uma figura que o leitor “deve construir com base em indícios textuais de diversas ordens.” ���������������������������������������������������������������������������������������������� - A cena de enunciação é composta por 3 cenas: i) a cena englobante, que corresponde ao tipo de discurso (ex: político, religioso) (Maingueneau, 2005); a cena genérica, que corresponde a um contrato associado a um gênero discursivo (Maingueneau, 2005); e iii) a cenografia, que corres� ponde a uma construção própria daquele texto (Maingueneau, 2005). ������������������������ - A diferença entre o “ethos dito” e o “ethos mostrado”, segundo Maingueneau (2008) é muito tênue e muitas vezes é impossível distingui-los; o mesmo vale para o “ethos pré-discursivo” e o “ethos discursivo”. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 15 (Imagem 1 – Diagrama do ethos discursivo efetivo. In: MAINGUENEAU, 2008, p. 19 – adaptado) Corpus de estudos Batman: A Piada Mortal: sobre a grafic novel Ao escrever “Batman: A Piada Mortal”, Alan Moore (roteiro)14 e Brian Bolland (desenhos) – a exemplo de Frank Miller (roteiro e desenhos) em “Batman: O Cavaleiro das Trevas” e Grant Morrison (roteiro) e Dave McKean (desenhos) em “Batman: Asilo de Arkham” – redefiniram Batman e seus inimigos de forma decisiva. Nessa redefinição, os personagens perderam o seu tom caricato e humorístico15 e adquiriram tons sombrios e misteriosos. Pela primeira vez é contada aos leitores da DC comics a história do Coringa. Essa grafic novel, como já dito, é um marco nas histórias do morcego e, consequentemente, uma campeã de prêmios e destaques no mundo dos quadrinhos: afinal em 1989 ela ganhou 3 Will Eisner Awards16 (melhor escritor, �������������������������������������������������������������������������������������������� - Um dos maiores roteiristas inglês de quadrinhos da atualidade – autor de trabalhos como” Monstro do Pântano”, “V de Vingança”, “Watchmen”, “Tom Strong”, “Do Inferno” e “A Liga Extraordinária”. (Cf. site UNIVERSOHQ). ����������������������������������������������������������������������������������������� - Basta ver as primeiras histórias do Morcego por seu criador Bob Kane e Bill Finger em 1939, sem contar na série de TV dos anos 60 onde o Batman era interpretado por Adam West (Cf. SANCHEZ, 2009). �������������������������������������� - Considerado o Oscar dos quadrinhos. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 16 REVISTA SABERES LETRAS melhor desenhista e melhor grafic novel) e 4 Harvey Award (melhor história, melhor grafic novel, melhor desenhista e melhor colorista (Cf. Monteiro, 2009). “Batman: A piada mortal” foi reeditada várias vezes: em 1999, pela editora Abril; em 2002, em uma edição espacial em preto-e-branco, pela Opera Graphica (Cf. Grandes Sagas DC); e agora em 2009 pela Editora Panini – edição em capa dura e recolorizada. Podemos dizer, de forma geral, que nessa HQ 3 histórias são contadas e articuladas simultaneamente. A primeira delas retrata a visita de Batman ao asilo de Arkham, onde ele descobre que o Coringa havia fugido e em seu lugar estava outra pessoa. Nesse momento Batman parte em busca do vilão (Imagem 2). (Imagem 2 – MOORE, 1999, p. 8) A segunda história retrata em flashback a história de Jack Napier, ex-funcionário de uma fábrica química e comediante frustrado. Ele virou o vilão Coringa ao decidir participar de um roubo a uma fábrica de baralhos disfarçado do bandido Capuz Vermelho. Participando desse roubo, Jack Napier queria dar um futuro melhor a sua mulher e ao seu futuro filho. Nesse meio tempo, após saber que sua esposa grávida morreu em um trágico acidente doméstico com um aquecedor de mamadeiras, Jack decidiu abandonar a assalto, mas coagido por seus comparsas continuou. No assalto tudo dá errado, pois a fábrica de produtos químicos que serviria de ponte para se chegar à fábrica de baralhos possuía novos seguranças armados. Perseguido pelos seguranças e pelo Batman, Jack, encurralado, pula em um tonel de produtos químicos para fugir. Os produtos químicos do tonel reagiram com seu corpo SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 17 e embranqueceram a sua pele, tornando os seus cabelos verdes, seus lábios vermelhos e afetando, consideravelmente, a sua sanidade mental (Imagem. 3). (Imagem 3 – MOORE, 1999, p. 34) A terceira história articula as duas anteriores, ao mostrar o Coringa solto em Gotham. O Coringa decide mostrar ao Batman que qualquer pessoa sã pode enlouquecer por ter tido um dia ruim. Sendo assim ele resolve “visitar” o comissário Gordon e sequestrá-lo. Se não bastasse o Coringa ainda atira (dilacerando a coluna da moça), tortura (física e sexualmente) e fotografa a SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 18 REVISTA SABERES LETRAS filha17 do comissário Gordon. Desacordado, Jim é levado para um parque de diversões abandonado, é despido, acorrentado e torturado como um animal. Em seguida Jim vê as imagens do Coringa torturando a sua filha em um passeio de trem fantasma enlouquecedor (Imagem 4). (Imagem 4 – MOORE, 1999, p. 28) Corpus de estudos Batman: A Piada Mortal: sobre ethos discursivo de Jack Napier Jack Napier, como já descrito acima, é um homem casado, ex-funcionário de uma fábrica de produtos químicos e um comediante. Fisicamente, ele é alto e veste roupas extravagantes, com cores berrantes, gravata borboleta e chapéu. Suas ����������������������������������������������������������������������������������������������� - A filha do comissário Gordan, Bábara Gordon, na época era a identidade secreta da Batgirl – atualmente ela possui o codinome de Oráculo (Cf. Monteiro, 2009). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 19 feições e gestos são sempre marcantes e exageradas – caricaturais – (imagem 5). Ele vive com sua esposa em um subúrbio e passa por dificuldades financeiras, pois está desempregado. (Imagem 5 – MOORE, 1999, p. 18, p. 11) Dessa forma, podemos analisar que sendo um comediante o ethos pré-discursivo do personagem, baseado em um estereótipo sócio-histórico-cultural, indica que o personagem é uma pessoa engraçada, extravagante e que possui um bom sendo de humor. Socialmente, ele é um artista que, em princípio de carreira, recebe uma pequena remuneração financeira e realiza muitos testes de emprego. Essa imagem discursiva, portanto, é confirmada pelos quadros a seguir (imagem 6): (Imagem 6 – MOORE, 1999, p. 10) Aqui, surge um ethos mostrado e dito de profissional iniciante do humor (haja vista o vocábulo “número”, próprio do meio artístico) e inseguro (haja vista as SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 20 REVISTA SABERES LETRAS hesitações no segundo quadro nos mostram isso, os vocábulos “fiquei nervoso” e “misturei as piadas” também (Imagem 6)). Ainda observamos que Jack estava tentando arrumar um novo emprego, por isso a aflição de sua mulher em saber o resultado de sua entrevista profissional: “Bem? Como foi?”. Evidenciase também o ethos mostrado de fracasso (“OH!”), afinal a sua mulher achava que desta vez ia ser diferente, mas Jack se dá mal na entrevista e acha que não será contratado: “Eles disseram que talvez me chamem” (o vocábulo “talvez” nos indica, novamente, um ethos de incerteza quanto ao futuro e um ethos de insegurança). O ethos dito de fracassado se evidencia também em alguns quadros à frente (Imagem 11), quando Jack chora no colo de sua mulher por, apesar de seu esforço, não conseguir dar a ela ou ao seu futuro bebê uma vida melhor (haja vista o trecho “Não quis culpar você. Já sofreu bastante [...] com um fracassado”). (Imagem 11 – MOORE, 1999, p. 10-11) Dessa forma, Jack assume que por mais que se esforce não consegue dar uma vida digna para sua família (como podemos ver no trecho “[...] nem consigo sustentar você!”). Ele evidência, com essa passagem, um ethos mostrado de incompetência (haja vista o uso do vocábulo “nem”), ou seja, qualquer outra pessoa conseguiria um emprego, menos ele que é um fracassado incompetente. O vocábulo “e ninguém ri!” também nos mostra uma universalização de sua incompetência. Aqui, ainda surge o ethos de homem preocupado com o bem estar de sua família, haja vista o trecho “Pensa que tudo é uma grande piada para mim?”. Por esse trecho, percebemos ainda uma tentativa de sarcasmo/ piada de Jack o que reforça o caráter de seu ethos de profissional iniciante e SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 21 incompetente, pois sua piada não tem graça para uma situação tão trágica como essa. As mesmas imagens discursivas se apresentam nos quadros abaixo: (Imagem 12 – MOORE, 1999, p. 11) Quando Jack afirma “tenho que tirar você daqui antes que o Bebê venha...”, evidencia um ethos mostrado de preocupação com o bem estar familiar, pois ele coloca como um dever seu (haja vista o trecho “tenho”) a melhora financeira de sua família. Ao realizar uma piada (no trecho “tem garotas aí nas ruas que ganham mais do que eu e não precisam contar uma piada”), Jack evidência um ethos mostrado de homem com bom sendo de humor, pois realiza uma gracinha com um assunto sério e provoca os risos de sua mulher. O ethos dito de pai e de marido (Imagem 12) surge como reforço ao ethos mostrado de homem preocupado com o bem estar familiar. Aqui Jack pretende até roubar para garantir sua mudança de vida (haja vista o trecho “Sabem... tenho que provar a mim mesmo que sou marido e pai! Quero dizer... eu bem... eu não estaria fazendo esse tipo de coisa se... se não fosse importante.”). Por esse trecho ainda percebemos um ethos mostrado de desespero (no trecho “tenho que provar a mim mesmo”), pois percebemos, por suas hesitações na fala, que Jack não gostaria de estar naquela situação, mas é necessário agir. Há ainda na imagem 12 um ethos de homem frustrado e com bom senso de humor (haja vista o trecho “Daí resolvi ser comediante... É. Eu achava que tinha talento. Pois é... olha só pra onde o talento me trouxe! Estou aqui!... prestes a cometer SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 22 REVISTA SABERES LETRAS um grande crime.”) que não conseguiu realizar os seus sonhos. Os vocábulos “achava” e “talento” reforçam o ethos mostrado/dito de homem fracassado e incompetente. Ao final da cena (imagem 12), percebemos, por fim, o ethos de um homem medroso e covarde que procura esconder as suas realizações, como percebemos no trecho “[...] você tem certeza que ninguém vai saber que estou envolvido?”. Nesse trecho, o vocábulo “ninguém” reforça a construção dessa imagem discursiva, afinal, nenhuma pessoa deve saber que Jack vai roubar. Há aqui, portanto, um medo de retaliação. (Imagem 12 – MOORE, 1999, p. 18) Corpus de estudos Batman: A Piada Mortal, sobre o ethos discursivo do Coringa O Coringa como personagem dito vilão das histórias em quadrinhos do Batman, apresenta um ethos pré-discursivo de criminoso/assassino. Ele apresenta uma pele pálida, misteriosa, um sorriso sarcástico e se veste de forma elegante e extravagante, com cores fortes e marcantes, que contrastram com a cor de sua pele. Ele também utiliza uma bengala com pedras preciosas, luvas e um chapéu SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 23 (Imagem 13). (Imagem 13 – MOORE, 1999, p. 12, p. 17) Essas imagens podem ser confirmadas em “Batman: a piada mortal” quando o Coringa foge do asilo de Arkham e decide comprar um antigo parque de diversões (Imagem 13-14). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 24 REVISTA SABERES LETRAS (Imagem 14 – MOORE, 1999, p. 9) SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 25 Na imagem 14 percebemos um ethos mostrado de riqueza (quando o personagem afirma que “dinheiro não é problema. Não nos dias de hoje” ou “Alto? Meu bom homem, é uma verdadeira pechincha”). Percebemos ainda que ele possui dinheiro, mas que em algum momento passado de sua vida não possuía: o vocábulo “verdadeira pechincha” reforça essa imagem. Há ainda nessa cena um ethos mostrado de homem com bom senso de humor, uma vez que este faz uso de uma piada para dizer que o parque que vai comprar está em péssimo estado (haja vista o trecho “Bem, ele é espalhafatoso, feio e os mendigos o usam como privada. Os brinquedos estão imprestáveis e podem machucar ou matar qualquer criança fácil, fácil. [...] Não gostei?! Eu a-do-rei!”). Adorar o parque, então, revela mais um ethos discursivo, o de homem cruel que não gosta de crianças que as prefere mortas. Os vocábulos “brinquedos imprestáveis”, “matar qualquer criança, fácil, fácil” e “a-do-rei!” enfatizam essa imagem. Com a imagem seguinte (15), percebemos a construção de um ethos mostrado de vilão e assassino, afinal o Coringa não vai pagar nem um centavo pela compra do parque macabro e ainda por cima entorpece/envenena o vendedor do espaço (haja vista o trecho “[...] naturalmente que não terei que lhe pagar nada [...]” e o trecho “[...] garanto que nem vai conseguir falar...”). Os vocábulos “naturalmente” e “nada” indicam que o Coringa costuma roubar/matar/entorpecer os outros com frequência. Temos ainda o vocábulo “nem” que sugere que o vendedor do parque está entorpecido/envenenado e que não vai conseguir mais falar, ou quem sabe viver – a conclusão da sequência de quadros explica o fato como se indicasse o ethos dito de morte (Imagem 15 – close adaptado). Percebemos ainda o ethos de um homem sarcástico, onde o Coringa ironiza o sorriso de entorpercimento do vendedor (Haja vista o trecho “Não se sente feliz com isso [morte e roubo]? Há, posso ver que sim.”). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 26 REVISTA SABERES LETRAS (Imagem 15 – MOORE, 1999, p. 12 – close adaptado) Com a imagem seguinte (Imagem 16): (Imagem 16 – MOORE, 1999, p. 16 – close adaptado) percebemos que o Coringa constrói um ethos de homem brutal, uma vez que ao “visitar” a casa de Jim Gordon (o comissário Gordon) ele atira assim que a porta se abre. Pela sequência de imagens, observamos a brutalidade de sua iniciativa. Os olhos arregalados e surpresos de Bárbara evidenciam o susto da personagem ao abrir a porta. Durante essa cena observamos um ethos mostrado de sarcasmo, afinal, durante SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 27 o sequestro e baleamento de Bárbara, ele tece inúmeros comentários irônicos, se veste como se estivesse fazendo turismo e fosse visitar um grande amigo, e, ainda, vai ao bar particular do comissário e serve-se de uma bebida (Imagem 17) – isso nos mostra um ethos de quem está à vontade e tranquilo com os atos de violência que pratica. No trecho “Por favor, não precisa se preocupar o senhor sabe como as bibliotecárias são silenciosas. Elas odeiam barulho” (Imagem 17), há a utilização de vocábulos de duplo sentido (como “bibliotecárias são silenciosas”) que mostram o ethos de sarcasmo do personagem. O mesmo ocorre com um quadro mais a frente (imagem 17), em que ele afirma “sabe, é uma vergonha você perder a estreia do seu pai, senhorita. Infelizmente, não podemos acomodar inválidos”. Aqui, o vocábulo “vergonha” é utilizado de forma irônica, afinal o sequestro/tortura do comissário Gordon não é um espetáculo (como indica o vocábulo “estréia do seu pai”) a ser assistido, e o fato de Bárbara poder estar paraplégica e não assistir à tortura de seu pai também não é um ato feliz – o vocábulo “infelizmente” reforça essa imagem discursiva. [...] (Imagem 17 – MOORE, 1999, p. 17) O trecho “mas algumas fotos suas vão fazer ele se lembrar de você” (Imagem 17) nos indica ainda um ethos de homem torturador e perverso, afinal o Coringa registrará em fotos (de forma permanente) a agonia da filha de Gordon para que este se torture para sempre e sofra a cada vez que as vir. A utilização do operador argumentativo “mas” evidência uma maior força argumentativa SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 28 REVISTA SABERES LETRAS nessa frase do que em sua antecessora, “infelizmente não podemos acomodar inválidos” (Imagem 17). Em cenas mais à frente, percebemos pela fala de outros personagens o que realmente aconteceu com Bárbara e o que o Coringa fez com ela (Imagem 18). (Imagem 18 – MOORE, 1999, p. 21) Com isso, portanto, há aqui (Imagem 18) um reforço ao ethos do Coringa de homem torturador, perverso e doentio, pois depois de atirar na moça, a despe (fica sugestionado aqui as cenas de abuso sexual) e a fotografa. Em uma das últimas cenas de “Batman: a piada mortal”, o Coringa apresenta um ethos dito/mostrado de homem brutal e torturador (haja vista o trecho o “Eu atirei em uma garota indefesa... aterrorizei um velho” (Imagem 19)”. Aqui, o uso de verbos no pretérito perfeito “atirei” e “aterrorizei” reforça as imagens discursivas de homem brutal e torturador. O Coringa, com essas palavras, afirma que cometeu um ato ilegal e com isso pede para ser punido com a morte (haja vista o trecho “por que não me manda pro inferno [...]” (Imagem 19). Com esse trecho percebemos ainda um ethos de um homem desesperado e atormentado que vive por viver, mas que gostaria de estar morto. As feições do personagem indicam cansaço e descontentamento, o que reforça o ethos de sofrimento. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 29 (Imagem 19 – MOORE, 1999, p. 46 – cenas adaptadas para caber) Conclusões e implicações De acordo com Maingueneau (2008), podemos avaliar que as imagens discursivas produzidas por Jack Napier e pelo Coringa evidenciam que, como o mesmo autor postula (2008), qualquer discurso, seja ele oral ou escrito, formal ou informal, inscrito em qualquer cena genérica específica (como as Histórias em Quadrinhos (HQs), por exemplo), possui as formações discursivas conhecidas como ethos. Tais formações são apreendidas/percebidas/compreendidas pelo leitor – visto aqui como co-encunciador da enunciação – na media em que este se incorpora em uma cena de enunciação particular. É através desse complexo processo linguístico, portanto, que a análise do personagem Coringa (Jack e Coringa) foi possível: afinal [a] prova do ethos mobiliza efetivamente ‘tudo o que, na enunciação discursiva, contribui para destinar a imagem do orador a um dado auditório. Tom de voz, fluxo da fala, escolha das palavras e dos argumentos, gestos, mímicas, olhar, postura, aparência etc., todos signos, de elocução e de oratória, indumentárias ou símbolos, pelos quais o orador da de si SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 30 REVISTA SABERES LETRAS mesmo uma imagem psicológica e sociológica (DECLERCQ, 1992, p. 4818, apud MAINGUENEAU, 2008, p. 14). É, então, a partir da totalidade dessa cena enunciativa que surge o ethos efetivo dos personagens, como podemos ver no diagrama abaixo (Imagem 20). Com a exposição desse quadro percebemos que Jack Napier se apresenta na cena de enunciação, em sua totalidade, como um homem humorado e ainda iniciante em sua contação de piadas. Já o Coringa se apresenta na cena enunciativa, em sua totalidade, como um homem humorado (tendendo ao sarcasmo, ironia), brutal e torturador. Tais imagens discursivas, portanto, só foram possíveis de se apreender, pois nós como leitores, co-enunciadores, nos inserimos nessa cena particular e – através do compartilhamento de estereótipos sociais historicamente construídos e de uma análise de “caráter” e de “corporalidade” dos personagens – colaboramos para efetivar essa construção linguística-social. Com isso, observamos, como postula Maingueneau (2008), que o ethos além de uma figura retórica/argumentativa pode ser analisado, de forma bastante produtiva, como um elemento integrante de uma encenação social. Ainda podemos considerar que dentro de uma cena genérica de histórias em quadrinhos, os personagens adquirem traços característicos específicos: há os cidadãos comuns, os heróis e os vilões. Em nossa análise, percebemos que na encenação de “Batman: a piada mortal” um cidadão comum passa a ser um vilão no momento em que constrói uma imagem discursiva – mostrada ou dita – extremamente negativa, como brutalidade, perversidade e loucura. Assim, do cidadão para o vilão, poucos elementos discursivos se mantém, e, em sua maioria, traços contrários às virtudes dos personagens se apresentam de forma predominante. 18- DECLERCQ, Gilles. L’art d’argumenter – Structures rhétoriques et littéraires. Paris: Edi� tions Universitaires, 1992. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 31 (Imagem 20 – Diagrama do ethos efetivo de Jack Napier e do Coringa) Em nossa análise, portanto, evidenciamos que, ao se utilizar um quadro teóricometodológico advindo de uma teoria discursiva (no nosso caso a teoria de cena enunciativa de Maingueneau) para a análise de um material discursivo qualquer, podemos dar ao mesmo, uma significação linguística bastante interessante e curiosa. Isso nos revela que outros aspectos de produção da cena enunciativa colaboram, portanto, para construção de uma completude do material linguístico dado. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 09 a 33 set. / dez. 2011 32 REVISTA SABERES LETRAS Referências AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: AMOSSY, Ruth (org). Imagens de si no discurso – a constituição do ethos. São Paulo: Contexto, 2005a. p. 9-28. _____. O ethos na intersecção das disciplinas: retórica, pragmática, sociologia dos campos. 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Por isso, a nossa escolha pelos gêneros textuais (entrevista e reportagem), uma vez que é nos gêneros que conseguimos visualizar os efetivos usos sociais da língua. A nossa hipótese foi a de que os verbos de movimento apresentam em sua estrutura argumental prototípica, implícitos e explícitos, um locativo– origem e um locativo–meta, como pontos de partida e pontos de chegada, respectivamente, de um objeto. Sendo assim, nossa análise buscou verificar esse pressuposto deslocamento físico de um objeto e seus respectivos pontos de chegada e partida. Dentro dessa perspectiva, verificamos que determinados verbos de movimento apresentam, de fato, essa estrutura argumental prototípica: locativo–origem / locativo–meta. No entanto, como evidenciaram os dados, em algumas estruturas argumentais, o locativo–origem e o locativo–meta não estão explícitos, mas são recuperáveis pelo contexto. Os dados foram coletados de textos da Revista Veja online. Palavras-chave: Reportagem. Verbos de Movimento, Funcionalismo, Entrevista, 1- * Mestre em Estudos Linguísticos – UFES. 2- ** Doutoranda em Estudos Linguísticos/UFF, Professora Substituta da Universidade Federal do Espírito Santo. 3- *** Doutora em Linguística/Unesp-Araraquara, Professora da Universidade Federal do Espíri� to Santo. 4- **** Aluna do Curso de Letras da UFES, bolsista de Iniciação Científica (CNPq). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 35 Abstract: We analyze verbs of motion taking as reference the functionalism of language. According to Martelotta(2006), the functionalist analysis is based on actual use of language by speakers, admitting that the grammar is formed from the use in real communicative situations, i.e., from the discourse. Therefore our choice of text genres (interviews and reporting), since is in the genres we can see the actual social uses of language. Our hypothesis was that the verbs of motion present in its prototypical argument structure, implicit and explicit, a locative–origin and a locative–target, as points of departure and arrival, respectively, of an object. Thus, our analysis aimed to check this assumption of physical displacement of an object and their respective points of arrival and departure. Within this perspective, we find that certain verbs of motion have, in fact, this prototypical argument structure: locative–origin /locative–target. But, as shown in the data, in some argument structures, the locative–origin/ locative–target are not explicit, but are recoverable from the context. The data were collected from texts of Veja magazine – online version. Keywords: Verb of Motion, Functionalism, Interview, Reporting. Palavras Iniciais Este artigo evidencia um recorte que fizemos dos estudos que vem sendo realizados no Núcleo de Pesquisas em Linguagens, coordenado pela Professoras Drª. Lúcia Helena Peyroton da Rocha e pela Mestre Carmelita Minelio da Silva Amorim, que conta com a participação de alunos da graduação, em nível de Iniciação Científica, alunos e ex-alunos do Mestrado do PPGEL-UFES, com vistas a socializar os estudos que vem sendo ali empreendidos. Os nossos objetivos são: (i) analisar fatores semânticos e pragmáticos relacionados ao sujeito (X) tais como animicidade, intencionalidade, entre outros, em função da natureza valencial do predicador (V); (ii) descrever os traços morfossintáticos e semânticos a serem analisados nos argumentos dos verbos nos gêneros textuais. Partimos da hipótese de que, dependendo do verbo de movimento e do gênero textual em que o verbo está inserido, os valores semânticos, bem como as propriedades valenciais de cada verbo indiciarão estruturas argumentais diversas. Para investigar essa hipótese, entendemos que a Teoria Funcionalista e a de Valências são suficientes. O tema é de extrema relevância, visto que a subcategorização dos verbos em SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 36 REVISTA SABERES LETRAS perspectivas funcionalistas da língua quase não foi abordada. Os resultados poderão ser aplicados diretamente ao ensino, o que trará grande benefício para as escolas públicas e privadas de nosso município, que ficam perdidas em meio ao caos instaurado pelas divergentes classificações consignadas em nossas gramáticas e em livros didáticos. A nossa pesquisa segue a orientação funcionalista, que concebe a língua diferentemente das vertentes linguísticas que a veem como um sistema fechado, pronto, imutável. A nossa proposta vai ao encontro daquelas em que a língua é um sistema de práticas sociais, e como tal, precisa ser analisada in loco, por isso, nada mais apropriado do que estudá-la em textos de veiculação social. A heterogeneidade dos textos nos possibilita apreender os usos que fazemos da língua e como isso se articula com as estruturas que a gramática julga a priori serem estáticas. No quadro teórico funcionalista é estabelecida claramente a interação entre gramática e discurso. Ou seja, a preferência por determinadas estruturas está diretamente ligada ao discurso. Nesse sentido, a nossa análise deve-se dar, com vistas a observar como certos verbos se comportam em textos produzidos em situação real de uso, em sua modalidade escrita. Nas gramáticas normativas, a oração é considerada bimembre, em que há duas funções essenciais: sujeito e predicado. Nessa visão, a oração se estrutura pelo e para o sujeito. Ignácio (2002) nos apresenta, entretanto, um novo olhar, sobre qual seria o núcleo da oração. Para tanto, o autor parte da proposição de Tesnière (1969), para quem o verbo deve ser visto como um elemento central que comanda toda a estruturação oracional. Tesnière (1969) atribui ao verbo (= predicado) a posição central na estrutura oracional, considerando-o elemento de que dependem todos os restantes elementos da oração. Considerando essa posição, adotaremos também, para descrição de nossos dados,o conceito de estrutura argumental. Esta observa a relação que um verbo mantém com os seus argumentos, considerando: (i) quantidade de argumentos, que pode variar entre zero e quatro; (ii) caso semântico dos argumentos, que podem assumir vários papéis; no caso de nossa pesquisa, é o locativo, subdividido em origem e meta. Nessa perspectiva, argumento é o participante nominal que é exigido pelo sentido do verbo. Os papéis semânticos indicam o envolvimento SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 37 do participante no evento expresso pelo verbo. Assim, um argumento pode funcionar como agente, paciente, experienciador, entre outros. O verbo é um dos elementos que apresentam predisposição maior para, sendo predicador, ter uma estrutura argumental. Como assegura Abreu (2003, p. 80), em torno do verbo, “constrói-se a oração, que é uma projeção dessa estrutura. Muitas vezes, além dos argumentos necessários à gramaticalidade das orações, aparecem outros que, embora, não interfiram nessa gramaticalidade, acrescentam a ela outros pormenores”. O que nas reportagens, por exemplo, pode dar a ancoragem de que necessita o repórter para tornar a matéria mais confiável. Ao considerar o verbo como predicador, Abreu (2003) subdivide os argumentos em argumentos essenciais, que são aqueles que formam a rede argumental essencial do verbo, e os argumentos não-essenciais, que são aqueles que, somados aos essenciais, formam a rede argumental total do verbo, em uma situação de predicação. O autor alerta-nos para um aspecto muito relevante, no que se refere à essencialidade dos argumentos, pois “às vezes, um argumento pode não ser essencial à rede argumental de um verbo, mas ser essencial à rede argumental de outro” (ABREU, 2003, p. 81). Metodologia Por uma questão de metodologia, a análise de Verbos de Movimento apresenta um corpus composto por reportagens e entrevistas da Revista Veja, disponível em meio digital, no site http://veja.abril.com.br/. O período pesquisado foi 2010 e 2011. A pesquisa baseou-se também nos conceitos de gênero textual, uma vez que tratar de gêneros é tratar do uso da língua no dia a dia, nas mais variadas manifestações, vendo como a sociedade funciona do ponto de vista linguístico. Os gêneros são, assim, uma forma de ação social, constituindo-se como corpus apropriado para verificarmos o uso real da língua. Valemo-nos também do Funcionalismo por duas razões: (1) a concepção de língua, visto que a compreende como um sistema sociointerativo, ou seja, contempla a língua em sua relação com o ato comunicativo e (2) o fato de rever SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 38 REVISTA SABERES LETRAS o conceito de Transitividade. Foram selecionados, para a análise, os seguintes verbos de movimento: ir, entrar, sair, levar, trazer e vir. A coleta de dados foi feita através do banco de dados digitalizados da Revista Veja, localizado no site: http://veja.abril.com.br/, em acervo digital. Após a escolha dos verbos foram coletadas frases nos trechos de reportagens e entrevistas. Nesta seleção, consideramos importante observar não somente verbos de movimento que contemplem a estrutura prototípica, mas também verbos de movimento que tem sua estrutura prototípica e semântica alteradas por fatores semânticos ou pragmáticos. Sobre Gêneros Textuais Marcuschi (2008, p. 59) concebe a língua como uma “atividade sociointerativa situada”. Dessa forma, a língua é contemplada em seu funcionamento e não é vista como uma estrutura que está acima dos seus falantes. Ou seja, a língua não deve ser examinada fora do contexto de interação, mas na situação real de comunicação, na interação social. Marcuschi (2008, p.61) acrescenta que “a língua é um conjunto de práticas sociais e cognitivas situadas”. Partindo disso, a escolha do corpus deve se basear nessa mesma perspectiva que vê a língua como um “fenômeno social e que, tudo o que se acha vinculado a ela tem esse caráter, inevitavelmente.” (MARCUSCHI, 2008, p.57). Está consignado nos PCNs (1998, p. 24) que os gêneros existem em número quase ilimitado, variando conforme a época, a finalidade social, e que, mesmo se a escola impusesse o ensino de todos, isso não seria possível. Sendo assim, é preciso que sejam priorizados gêneros que “caracterizem os usos públicos da linguagem”. Esses textos devem favorecer o desenvolvimento da competência comunicativa, valorizando, desse modo, a reflexão sobre a língua. O trabalho com o texto, segundo Marcuschi, não tem limites quanto à exploração dos mais variados tipos de problemas linguísticos. Furtado da Cunha (2001, p. 61-70) afirma que as discussões sobre estrutura argumental têm sido baseadas em exemplos fabricados, e não em textos reais. E esse é exatamente o motivo de escolhermos um estudo a partir dos gêneros textuais e, por questões metodológicas, elegermos a entrevista e a reportagem, pois, nosso foco é a análise de textos produzidos em situação real de interação. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 39 Essa opção tem respaldo na proposta de Marcuschi (2010), que nos alerta para o fato de que o ensino de língua deve ter os textos de circulação social como ferramenta para auxiliar o ensino. Sendo assim, nossa decisão por analisar recortes desses gêneros já evidencia uma prática que deve orientar o nosso olhar para o ensino da linguagem. Segundo Schneuwly e Dolz (2004, p. 86),“muitos autores consideram a entrevista uma prática de linguagem altamente padronizada, que implica expectativas normativas específicas da parte dos interlocutores, como um jogo de papéis: o entrevistador abre e fecha a entrevista, faz perguntas, suscita a palavra do outro, incita a transmissão de informações (...)”. Medina (1990) acrescenta que existem dois tipos de entrevistas: (1) a que tem por objetivo espetacularizar o ser humano e (2) a que visa compreendê-lo. A autora enfatiza que a entrevista é um processo de interação social e como tal seria conveniente que seu objetivo fosse o de estabelecer um vínculo EU-TU, por meio do qual a relação entre repórter e entrevistado ultrapassasse os entornos da simples técnica jornalística. A reportagem, por sua vez, também é um gênero jornalístico, que tem por objetivo informar, seja por meio da televisão, do rádio ou de uma revista. A reportagem é diferente da notícia, pois sua abordagem é mais profunda, buscando de forma mais cuidadosa a relevância dos fatos. O corpus configura-se em trechos de reportagens e entrevistas, que são analisados à luz da questão que norteia toda a pesquisa: os verbos de movimento possuem em sua estrutura argumental, explícitos ou implícitos, um ponto de chega e outro de partida. Sendo assim, analisaremos o comportamento morfo-sintáticosemântico e pragmático de alguns verbos de movimento. Análise dos dados A partir dos estudos realizados, foram feitas análises de fragmentos de reportagens e entrevistas que continham os seguintes verbos: ir, entrar, levar, trazer, sair e vir. A análise consiste em verificar a presença ou ausência do locativo–origem e do locativo–meta na ambiência com os verbos de movimento em questão. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 40 REVISTA SABERES LETRAS Verbo IR: • (1) Sou super tranqüila. Só vou para a balada de vez em quando. (Edição 2177, 11/08/2010, p. 60) Matriz do exemplo (1): [X IR para Y] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] IR = deslocar-se em direção a um lugar onde ocorre a balada. O verbo IR realizase com dois argumentos cujos papéis semânticos são: Agente e Locativo. O complemento Locativo introduzido pela preposição para. • (2) Surgem mais pacotinhos de dinheiro. Diz Roriz: “Depois das eleições vou no banco”. O laranja interrompe: “Vai e ajeita?” (Edição 2177, 11/08/2010, p.76). Matriz do exemplo (2): [X IR no Y] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] IR = deslocar-se em direção ao banco. O verbo IR realiza-se com dois argumentos cujos papéis semânticos são: Agente e Locativo. O complemento Locativo introduzido pela preposição em + o = no. • (3) Ao mesmo tempo em que cuidava dessa cirurgia, o médico operava outra mulher, na sala ao lado. De tempos em tempos, ele anunciava aos que presenciavam a lipo. – Estou com o braço cansado. Vou até ali e já volto...( Edição 2176, 04/08/2010, p.120). Matriz do exemplo (3): [X IR até Y] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] IR = deslocar-se em direção a um lugar não explicitado, mas representado pelo elemento ali. O verbo IR realiza-se com dois argumentos cujos papéis semânticos são: Agente e Locativo. O complemento Locativo introduzido pela preposição até. Tradicionalmente os complementos dos verbos de movimento, os locativos, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 41 quanto à gramática normativa são conhecidos como: adjunto adverbial de lugar. Ora, se esses elementos são obrigatórios, são “constituintes nucleares”, logo, não deveriam ser classificados como adjuntos. Ou seja, sua presença seria indispensável à compreensão da sentença. Nos enunciados (1), (2) e (3), esse complemento é explícito, sendo um termo integrante, completando assim o sentido do verbo. Neves (1999) pontua que as preposições “até”, “para” e “no”, introduzem complemento locativo de verbo. Nos exemplos (1) e (2), não verificamos a presença do locativo–origem, visto que o foco da reportagem não é de onde eles partiram, mas sim suas metas (destino). Verbo ENTRAR: • (4) Na Malásia, por exemplo, os mulçumanos não podem entrar em restaurantes que servem carne de porco, considerada impura pela religião. (Edição 2177, 11/08/2010, p.118) Matriz do exemplo (4): [X ENTRAR em Y] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] ENTRAR = Ir para dentro de, passar de fora para dentro. Há um lugar explicitado e representado pelo sintagma preposicionado: em restaurante. O verbo ENTRAR realiza-se com dois argumentos cujos papéis semânticos são: Agente e Locativo. O complemento Locativo introduzido pela preposição em. • (5) Como definir o que seria uma pele perfeita? Aquela que torna ainda mais bonita uma mulher bonita quando ela sorri. Essa é a mulher que faz um restaurante inteiro parar e olhar quando ela entra. (Edição 2151, 10/02/2010, p. 19) Matriz do exemplo (5): [X ENTRAR em Y] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] ENTRAR = Ir para dentro de, passar de fora para dentro. O Locativo não está à direita do verbo, mas é antecipado em função da estrutura da qual o verbo entrar faz parte. O verbo ENTRAR realiza-se com dois argumentos cujos papéis semânticos são: Agente e Locativo. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 42 REVISTA • SABERES LETRAS (6) A senhora já mexeu no quarto dele? No último dia 20, quando se completaram dois meses de sua morte, entrei lá. Uma terapeuta especialista em luto foi comigo. (Edição 2185, 06/10/2010, p. 22) Matriz do exemplo (4): [X ENTRAR em Y = quarto > lá] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] ENTRAR = Ir para dentro de, passar de fora para dentro. Há um lugar explicitado e representado pelo elemento locativo lá, substituidor de quarto, numa retomada anafórica. O verbo ENTRAR realiza-se com dois argumentos cujos papéis semânticos são: Agente e Locativo. • (7) Dois homens entram no elevador de um hotel londrino. As portas se fecham e a pancadaria começa. O de terno branco de grife bate, enquanto o de jaqueta de couro apanha. (Edição 2188, 27/10/210, p. 90) Matriz do exemplo (7): [X ENTRAR em Y] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] ENTRAR = Ir para dentro de, passar de fora para dentro. Há um lugar explicitado e representado pelo sintagma preposicionado: no elevador. O verbo ENTRAR realiza-se com dois argumentos cujos papéis semânticos são: Agente e Locativo. O complemento Locativo introduzido pela preposição em+o = no.. No enunciado (4), o locativo–meta vem explícito morfologicamente, mas, o locativo–origem não. Isso ocorre por que a reportagem não tem como foco o lugar (espaço físico) de onde esse mulçumano vem. Apenas enfatiza que são os mulçumanos da Malásia. Nos excertos (5) e (6), mais uma vez o locativo–origem não pode ser identificado, mas o locativo–meta pode ser recuperado, pois é mencionado na oração anterior. No exemplo (6), o locativo–meta é recuperado, sendo, no entanto, substituído por outra expressão, trata-se de um advérbio de lugar fórico, isto é, que remete a outro elemento mencionado anteriormente. Neste enunciado, o advérbio ocupa uma casa argumental preenchendo a valência do verbo entrar. No enunciado (7), o locativo–origem não pode ser recuperado e é irrelevante para os propósitos comunicativos do enunciador, pois a ênfase é sobre o SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 43 evento em si. Ao lermos a entrevista completa, verificamos que o local de onde os participantes se originam não é explicitado. Isso ocorre porque, para a reportagem, a descrição desse detalhe não é o fator relevante. Esse locativo de origem poderia ser chamado de subtópico discursivo, visto que sua ausência não prejudica o sentido da reportagem como um todo. Já o locativo–meta é explícito, tratando-se do elevador. Verbo LEVAR: • (8) O primeiro diz respeito ao papel de Felipe Iasi, o amigo que teria sido coagido a levar Cadu ao Céu de Maria na noite do assassinato. Por meio do rastreador instalado no carro do rapaz pela companhia de seguros a polícia reconstituiu o trajeto que Iasi percorreu depois de deixar a casa de Glauco. (Edição 2157, 24/03/2010, p.72) Matriz do exemplo (8): [X LEVAR Y de Z a W] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] LEVAR = conduzir algo/alguém consigo de um lugar para outro. Há um lugar explicitado e representado pelo sintagma preposicionado: ao Céu de Maria. O verbo LEVAR realiza-se com quatro argumentos cujos papéis semânticos são: Agente, paciente e Locativo-origem e Locativo-meta. O complemento Locativometa introduzido pela preposição a. • (9) Eu tinha ligado umas vinte vezes, e ele não conseguia atender. Levei-o para casa, e ele disse que havia exagerado um pouco no tal do chá. (Edição 2157, 24/03/2010, p.73) Matriz do exemplo (9): [X LEVAR Y para Z] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] LEVAR = conduzir algo/alguém consigo de um lugar para outro. Há um lugar explicitado e representado pelo sintagma preposicionado: para casa. O verbo LEVAR realiza-se com três argumentos cujos papéis semânticos são: Agente, paciente e Locativo. O complemento Locativo introduzido pela preposição para. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 44 REVISTA • SABERES LETRAS (10) Foi ele quem no mês passado, levou Farinas ao hospital quando o dissidente perdeu a consciência durante sua atual greve de fome. (Edição 2160, 14/04/2010, p. 100) Matriz do exemplo (10): [X LEVAR Y a Z] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] LEVAR = conduzir algo / alguém consigo de um lugar para outro. Há um lugar explicitado e representado pelo sintagma preposicionado: ao hospital. O verbo LEVAR realiza-se com três argumentos cujos papéis semânticos são: Agente, paciente e Locativo. O complemento Locativo introduzido pela preposição a. • (11) A cada corpo içado pelas escavadeiras, gente como o motorista Marco Antônio Caternol, 31 anos, expõe sua dor: “o aguaceiro levou minha casa e meu filho Caíque, de 6 anos”. Não sei como será viver sem esse menino. (Edição 2160, 14/04/2010, p.74) Matriz do exemplo (11): [X LEVAR Y e Y a Ø] X é um sujeito [+causativo] LEVAR = arrastar, puxar. O lugar não é explicitado, uma vez que um dos objetos afetado é uma casa, que deixa de existir, nessa perspectiva pode-se afirmar que esse objeto foi levado de um lugar-origem, deixando de existir não foi levado a um lugar-meta Y. O verbo LEVAR realiza-se com dois argumentos cujos papéis semânticos são: Causativo, Paciente e Locativo. No enunciado (8), conseguimos recuperar o locativo–origem no final do enunciado: casa de Glauco. O locativo–meta é Céu de Maria. Nesse enunciado, podemos verificar uma estrutura argumental prototípica dos verbos de movimento que pressupõem, em sua estrutura argumental, implícitos ou explícitos, um locativo– origem e um locativo–meta. Já no exemplo (9), o locativo–meta é casa, mas, no contexto discursivo, o primeiro argumento (locativo–origem) não é explicitado, não trazendo, contudo, implicações para a compreensão do enunciado, pois não compromete o propósito comunicativo do texto. A preposição a do verbo levar, no trecho (10), também é uma preposição que introduz complemento de verbo. Nesse exemplo o locativo–meta é identificável, está expresso no texto, mas o SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 45 primeiro argumento não é possível ser recuperado. Assim como no enunciado anterior, essa informação é irrelevante. No enunciado (11), o locativo–origem pode ser inferido a partir da leitura do restante da reportagem; trata-se de uma favela. No entanto, o locativo–meta não pode ser inferido nem retomado. Talvez possa ser implicado, considerando o contexto da situação. Verbo TRAZER: • (12) A ex-presidente Ruth Dreifuss (1999) admite o fracasso: “Perdemos o controle dos parques: os criminosos os aproveitam para trazer drogas para os viciados”. (Edição 2220, 08/06/2011, p.153) Matriz do exemplo (12): [X TRAZER Y para Z] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] TRAZER = conduzir, levar, transferir, transportar (alguma coisa) de um ponto para outro. O locativo-meta é explicitado: os parques. O verbo TRAZER realizase com quatro argumentos cujos papéis semânticos são: Agente, Objetivo, Locativo e Dativo (= para os viciados), que é o elemento afetado negativamente (prejudicado) pela situação expressa na oração. • (13) Desde o fim de 2009, o Estaleiro Atlântico Sul, no complexo de Suape, em Pernambuco, trouxe 200 dekasseguis (brasileiros descendentes de japoneses que fazem trabalho no país asiático) para ajudar na produção dos navios (Edição 2184, 29/09/2010, p.146) Matriz do exemplo (13): [X TRAZER Y para Z] X é um sujeito [não- humano: o Estaleiro Atlântico Sul] TRAZER = conduzir, levar, transferir, transportar (alguém) de um ponto para outro. O locativo–origem país asiático, o locativo–meta é Pernambuco. O verbo TRAZER realiza-se com quatro argumentos cujos papéis semânticos são: Não-humano, Paciente, Locativo–Origem e Locativo–Meta. • (14) Como SABERES Letras sonhar Vitória v. 9 não custa n.1 p. 34 a 52 nada, o Santos set. / dez. 2011 46 REVISTA SABERES LETRAS está empenhado na montagem de uma engenharia financeira que permita trazer o craque Robinho de volta em 2011. (Edição 2194, 04/12/2010) Matriz do exemplo (14): [X TRAZER Y] X é um sujeito [não-humano: o Santos] TRAZER = conduzir, levar, transferir, transportar (alguém) de um ponto para outro. O locativo–meta é São Paulo. O verbo TRAZER realiza-se com três argumentos cujos papéis semânticos são: Não-humano, Paciente, Locativo– Meta. • (15) Há alguns anos passo minhas férias de inverno, na Praia do Atalaia... Enquanto a maré está alta, o jardim da frente da casa é usado pelos banhistas, que trazem caixas de isopor, cadeiras de sol, som portátil e até barracas de armar. (Edição 2176,04/08/2010, p. 45) Matriz do exemplo (15): [X TRAZER Y para Z] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] TRAZER = conduzir, levar, transferir, transportar (alguma coisa) de um ponto para outro. O locativo-origem é omitido, o locativo–meta é a Praia do Atalaia. O verbo TRAZER realiza-se com três argumentos cujos papéis semânticos são: Agente, Paciente, Instrumental e Locativo–Meta. No enunciado (12), o locativo–meta é parques, mas não está explícito o locativo– origem. Ao lermos o restante da reportagem fica evidente o porquê dessa não informação. O foco da notícia são os parques da cidade de São Paulo, sendo assim, de onde vem os criminosos não constitui informação relevante. No enunciado (13), O locativo–origem é país asiático, o locativo–meta é Pernambuco. O verbo TRAZER realiza-se com quatro argumentos cujos papéis semânticos são: Nãohumano, Paciente, Locativo–Origem e Llocativo–Meta. No excerto (14), o locativo–meta não está explicitado, porém pode-se inferir que é São Paulo. O verbo TRAZER realiza-se com dois argumentos cujos papéis semânticos são: Não-humano, Paciente. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 47 E, por fim, no (15), o locativo–origem não pode ser recuperado, nem inferido. O locativo–meta é jardim da frente da casa. A dificuldade em localizar o locativo– origem se dá pelo fato de que, no enunciado, quem traz as caixas de isopor não é somente uma pessoa, são várias; isso fica claro pela expressão banhistas, que está no plural. O fragmento faz parte da seção Leitor. Nesta seção, os leitores fazem comentários sobre outras reportagens da revista. Verbo SAIR • (16) O Homo sapiens tinha uma população inteiramente formada por indivíduos de pele escura quando saiu da África. (Edição 2168, 05/06/2010, p.134) Matriz do exemplo (16): [XSAIR de Y] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] SAIR = empreender viagem. O locativo–origem é explicitado: África. O verbo SAIR realiza-se com dois argumentos cujos papéis semânticos são: Agente e Locativo–Origem. • (17) Na cadeia, o inteligente e articulado Sérgio promoveu a escolarização de presos e atraiu a atenção de Hebe. Em 1995, saiu diretamente da penitenciária para a sede da fundação. (Edição 2222, 22/06/2011, p.87) Matriz do exemplo (17): [X SAIR de Y para Z] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] SAIR = Ir de um lugar para o outro. O locativo–origem é explicitado e está representado pelo sintagma preposicionado: da penitenciária; o locativo–meta é: para a sede da fundação. O verbo SAIR realiza-se com três argumentos cujos papéis semânticos são: Agente, Locativo–origem e Locativo–Meta. • (18) Um filho viciado em crack desestabiliza toda a família. As tentativas de impedi-lo de sair de casa não funcionam. (Edição 2222, 22/06/2011, p.99) SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 48 REVISTA SABERES LETRAS Matriz do exemplo (18): [X SAIR de Y] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] SAIR = Ir para rua. O locativo–origem é explicitado: casa e está representado pelo sintagma preposicionado: de casa; o locativo–meta não está explicitado. O verbo SAIR realiza-se com dois argumentos cujos papéis semânticos são: Agente e Locativo–Origem. • (19) “Quando a mais velha sai à noite, vou buscá-la entre meia noite e meia e uma hora. A Melanye ainda não sai à noite. É muita nova. Se ela vai com os amigos ao cinema à tarde, peço que volte antes de anoitecer.” (Edição 2160, 14/04/2010, p.116) Matriz do exemplo (19): [X SAIR] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] SAIR = Ir de casa para algum lugar. O locativo–origem e o locativo–meta não estão explicitados. O verbo SAIR realiza-se com dois argumentos cujos papéis semânticos são: Agente e Tempo. No enunciado (16), o locativo–origem não pode ser recuperado no contexto discursivo, pois o foco da reportagem não é para onde o Homo sapiens migrou, mas sim de onde ele saiu. Essa segunda casa argumentativa ocorre devido ao contexto pragmático de um subtópico do texto. A estrutura pressuposta por Ignácio (2002) para os verbos de movimento pode ser visualizada no enunciado (17), que é considerada a estrutura prototípica do verbo SAIR. Há o locativo–origem (da penitenciária) e o locativo–meta (para a sede da fundação), ambos preposicionados. Essa constatação pode ser representada pela seguinte estrutura: Estrutura semântica (argumental): Ag + P ± Loc–Or + Loc–Met. No fragmento (18), o locativo-origem casa é uma informação dada no texto. O locativo–meta não pode ser recuperado, inferido, nem implicado. Mais uma vez, o foco da reportagem não está no locativo–meta e sim na complexidade da relação com pessoas viciadas em crack. No enunciado (19), nem o locativo– origem nem o locativo–meta tem realização explícita, mas pode ser inferido pelo contexto discursivo. A recuperação precisa dos locativos é irrelevante para SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 49 os propósitos comunicativos, embora na reportagem possamos apreender o locativo–meta: cinema. Verbo VIR: • (20) Nem pensar, rebate a apresentadora Xuxa, 47 anos, negando os indícios despertados pela proximidade, incluindo jatinho que vai, jatinho que vem,em relação ao cantor Victor, 35 o mais galã da dupla sertaneja com o irmão Leo. (Edição 2188, 27/10/2010, p.97) Matriz do exemplo (20): [X VIR] X é um sujeito [inanimado que depende de alguém que o controle] VIR = Deslocar-se, mover-se, passar ou transitar de um lado ou de um lugar para outro. O locativo-origem e o locativo-meta não estão explicitados. O verbo VIR realiza-se com um argumento. • (21) Moro em São Paulo, mas venho a Paris porque é onde está a minha assessoria, é onde tenho uma grande rede de relações. (Edição 2186, 09/10/2010, p.116) Matriz do exemplo (21): [X VIR a Y] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] VIR = Deslocar-se, mover-se, passar ou transitar de um lado ou de um lugar para outro. O excerto (21) traz explícitas as casas argumentais: locativo-origem: São Paulo e locativo–meta: Paris. Com isso, há três argumentos: um Sujeito [+humano], e dois Locativos, um Codificar Origem e o outro Meta. • (22) Quando recebeu a proposta para deixar a Dinamarca e vir para o Brasil, no início de 2009, a engenheira química Ragnhild D. Frank, nascida na Noruega não hesitou...a parte difícil, brinca ela, foi explicar aos amigos escandinavos que não iria trabalhar em Copacaba, nem perto da praia. (Edição 2184, 29/09/2010, p. 142) Matriz do exemplo (22): [X VIR para Y] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 50 REVISTA SABERES LETRAS VIR = Deslocar-se, mover-se, passar ou transitar de um lado ou de um lugar para outro. O excerto (22) traz explícitas as casas argumentais: locativo–origem: Dinamarcae locativo–meta: Brasil. Com isso, há três argumentos: um Sujeito [+humano], e dois Locativos, um Codificar Origem e o outro Meta. • (23) Dono de uma locadora de carros e de uma fábrica de cigarros, Roberto Ribeiro é genro do lobista Marco Antônio e mora em Miami, nos Estados Unidos. Para convencer Quícole de que a transação era segura, Marco Antônio fez o genro vir ao Brasil. (Edição 2184,29/09/2010, p.88) Matriz do exemplo (23): [X VIR a Y] X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional] VIR = Deslocar-se, mover-se, passar ou transitar de um lado ou de um lugar para outro. O excerto (23) traz explícitas as casas argumentais: locativo–origem: Miami e locativo–meta: Brasil. Com isso, há três argumentos: um Sujeito [+humano], e dois Locativos, um Codifica Origem e o outro Meta. No enunciado (20), o complemento de vai não é explícito, nem é uma informação contextualmente dada, mas subentende-se que a extensão (tanto origem como meta) percorrida pelo jatinho é o RJ e a fazenda do cantor. Os enunciados (21), (22) e (23) são exemplos da estrutura prototípica dos verbos de movimento. Todos trazem explícitas as casas argumentais: locativo–origem e locativo–meta. No (21),São Paulo e Paris, no (22),Noruega e Brasil, no (23),Miami e Brasil. Considerações (quase) finais Este trabalho nos permite vislumbrar um universo que abrange verbos de movimento tais como: ir, vir, entrar, sair, trazer, levar. Esse recorte fez-se necessário para que pudéssemos ter uma metodologia que, ao final da pesquisa, nos propiciasse subsídios para projetar outras possibilidades de estruturas argumentais, visto que, pela natureza sintático-semântica que envolve esse grupo de verbos, as estruturas tornam-se recorrentes. No recorte, deixamos fora do escopo da pesquisa ocorrências em que o verbo TRAZER se insere numa SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 51 estrutura cujos argumentos indiciam uma metáfora, como a seguir: • Em 27 de maio de 1998, VEJA trouxe em sua capa uma indagação: “Eles precisavam morrer?”. Ao lado da pergunta, fotos de dezenove jovens de classe média que haviam morrido em decorrência do uso de drogas. (Edição 2158,31/03/2010, p.36). Essa estrutura não nos interessou por duas razões: (1) não seleciona um sujeito com os traços [+agente, +humano, +intencional] e (2) não se enquadra na perspectiva dos verbos de movimento que apresentam, em sua estrutura argumental prototípica, implícitos e explícitos, um locativo–origem e um locativo–meta, como pontos de partida e pontos de chegada, respectivamente, de um objeto. Observamos também que o que motiva a utilização das estruturas contempladas neste estudo está diretamente ligado às necessidades comunicativas, sobretudo, quando levamos em consideração: (i) o corpus analisado; (ii) o efeito que se pretende dar ao informar tanto o locativo–origem quanto o locativo–meta; (iii) o apagamento de um desses elementos. Ao estudarmos estruturas em textos de circulação na mídia, encontramos respaldo na teoria que dá sustentação às análises, visto que no Funcionalismo Linguístico encontramos o postulado básico de que a língua é uma estrutura maleável, sujeita às pressões de uso e pode ser analisada a partir funções que ela desempenha na interação. Referências ABREU, Antonio Suárez. Gramática mínima para o domínio da língua padrão. São Paulo: Ateliê, 2003. DIONÍSIO, Angela; MACHADO, Anna; BEZERRA, Maria (Org). Gêneros textuais e ensino. 2. ed.Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. Schneuwly, Bernard; DOLZ, Joaquim.Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org. Roxane Rojo. São Paulo: Mercado da Letras, 2004. FURTADO DA CUNHA, M. A; COSTA, M A. A interdependência dos componentes sintáticos, semântico e pragmático. VEREDAS. Universidade SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 52 REVISTA SABERES LETRAS Federal de Juiz de Fora. 2001, v.5, nº 2, p.61 a 70. IGNÁCIO, Sebastião Expedito. Análise sintática em três dimensões. São Paulo: Ribeirão Gráfica, 2002. MARCUSCHI, Luiz. Produção Textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. MEDINA, Cremilda. Gênero entrevista: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Ática, 1990. MARTELOTTA, Mario Eduardo. Linguística: fundamentos. Rio de Janeiro: CCAA Editora, 2006. NEVES. Maria Helena. Gramática de usos do português. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011. Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) Ministério da Educação. 1998, p. 24. Disponível em: www.portal.mec.gov.br. Acesso em jun. 2011. TESNIÈRE, Lucien. Eléments de syntaxestructurale. Paris: Klincksieck, 1969. Revista Veja Online:Ed. 2151, 10/02/2010; Ed. 2153, 24/02/2010; Ed. 2157, 24/03/2010; Ed. 2158, 31/03/2010; Ed. 2160, 14/04/2010; Ed. 2168, 05/06/2010; Ed. 2176, 04/08/2010; Ed. 2177, 11/08/2010; Ed. 2184, 29/09/2010; Ed. 2185, 06/10/2010; Ed. 2186, 09/10/2010; Ed. 2188, 27/10/2010; Ed. 2220, 08/06/2011; Ed. 2222, 22/06/2011. Disponível em: www.vejaonline.com.br. Acesso em jun. 2011. SIGNORINI, Inês et.al. [RE] discutir texto, gênero e discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 34 a 52 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 53 O TIPO ARGUMENTATIVO “STRICTO SENSU”: DIMENSÕES DISCURSIVA E LINGUÍSTICA. Andréa Lopes Borges1* Resumo O objetivo deste artigo é discutir as características discursivas e linguísticas do tipo argumentativo “stricto sensu”, a fim de clarificá-las e unificá-las. Para isso, dividimos este artigo em três partes definidas de acordo com as dimensões tipológicas propostas por Fávero e Koch (1987), a saber: dimensão pragmática; esquemática global; e linguística de superfície. Para melhor observação e a título de exemplificação da discussão que é feita neste trabalho, adotamos um gênero argumentativo: um exemplar de artigo de opinião, que se encontra em anexo, e com o qual vamos estabelecendo relações com cada uma das três partes deste artigo. Pela discussão feita sobre as características discursivas e linguísticas do tipo argumentativo “stricto sensu”, concluímos que esse tipo se caracteriza e é identificado mais pelo modo de interação (dimensão pragmática), e estruturação (dimensão esquemática global), do que por formas linguísticas específicas (dimensão linguística de superfície), pois utiliza as várias formas e possibilidades de construções linguísticas dos tipos narrativo, dissertativo, descritivo e injuntivo, como formas de argumentar. Palavras-chave: Tipo argumentativo “stricto sensu”. Dimensão pragmática. Dimensão esquemática global. Dimensão linguística de superfície. Abstract: The objective of this article is discuss the features of discursive and linguistic caracteristics of the “stricto sensu” argumentative type, in order to clarify and unify them. For this, we divided this article in three parts defined according to the typological dimensions proposed by Fávero and Koch (1987), namely: pragmatic dimension; global schematic; and linguistic surface. For better observation and by way of exemplification of the discussion that is made, we adopted a argumentative genre: an exemplar of opinion article, of which 1- ∗ Mestranda do Programa de Pós Graduação em Estudos Linguísticos do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia – UFU – Uberlândia, MG, Brasil. andrealo� [email protected]. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 53 a 69 set. / dez. 2011 54 REVISTA SABERES LETRAS is finding in annex, and with which we are establishing relationships whith the discussion that is made in each of the three parts of this article. By the discussion about the discursive and linguistic characteristics of “stricto sensu” argumentative type, we concluded that this type is identified and characterized more by way of interaction (pragmatic dimension) and structuration (global schematic dimension) than by specific linguistic forms (linguistic surface dimension), because, it use the various forms and possibilities of linguistics constructions of the narrative, dissertative, descriptive and injunctive types, like forms of argue. Keywords: “Stricto sensu” argumentative type. Pragmatic dimension. Global schematic dimension. Linguistic surface dimension. Introdução Os tipos textuais “são formas de organização linguística, em número limitado, com os quais são compostos, em diferentes modalidades, todos os gêneros”. (BRONCKART, 2003, p. 250). Segundo Travaglia (1991), os tipos são definidos por características discursivas e linguísticas. No entanto, o tipo argumentativo “stricto sensu” parece ser definido muito mais por características discursivas do que linguísticas, uma vez que, segundo o mesmo autor, esse tipo ocorre sempre fundido com os tipos fundamentais: narrativo, descritivo, dissertativo e injuntivo, de maneira que a sua dimensão linguística parece estar mais relacionada a esses outros tipos. Por esse motivo, este artigo tem por objetivo discutir as características discursivas e linguísticas do tipo argumentativo “stricto sensu”, a fim de clarificálas e unificá-las. Para isso, dividimos este artigo em três partes, utilizando para sua organização as dimensões tipológicas propostas por Fávero e Koch (1987), a saber: dimensão pragmática; dimensão esquemática global; dimensão linguística de superfície. Na primeira parte, trataremos das características discursivas do tipo argumentativo “stricto sensu”, definidas por autores como Fávero e Koch (1987) e Travaglia (1991). Na segunda parte trataremos da superestrutura e das categorias desse tipo, conforme autores como Van Dijk (1983), Fávero e Koch (1987), Travaglia (1991, 2002), e Bronckart (2003). Na terceira e última parte trataremos das características linguísticas desse tipo, de acordo com autores SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 53 a 69 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 55 como Fávero e Koch (1987), Travaglia (1991, 2002, 2007a, 2007b), e estudos como o de Uber (2007, 2008). Tendo em vista que os tipos só podem ser observados, efetivamente, nos gêneros, para maior clareza da discussão, procuraremos exemplificá-los por meio da adoção de um gênero argumentativo: um exemplar de artigo de opinião, que se encontra na parte anexa deste trabalho, intitulado: Esperar faz bem, escrito por Caroline Milman (psicanalista), publicado em 21 de novembro de 2009, no jornal Zero Hora (RS), em meio digital. Procuraremos, ainda, estabelecer relações com o artigo selecionado em cada uma das três partes constitutivas deste estudo, como pode ser observado, por exemplo, na segunda parte deste artigo pelo quadro 1, que exemplificará a forma como as categorias da superestrutura argumentativa aparecem no artigo analisado, e na terceira e última parte pelo quadro 2, que exemplificará quais os tipos presentes nas categorias da superestrutura argumentativa desse mesmo artigo. O Tipo Argumentativo “stricto sensu” O tipo argumentativo “stricto sensu”, segundo Fávero e Koch (1987), é definido por três dimensões que se interrelacionam: pragmática, esquemática global e linguística de superfície. A dimensão pragmática consiste, basicamente, na intenção do locutor textualizada nos diferentes gêneros; a esquemática global diz respeito à superestrutura e às suas categorias que compõem os gêneros no processo de textualização; por fim, a linguística de superfície diz respeito às marcas linguísticas frequentes nesse tipo de texto. Dimensão Pragmática A dimensão pragmática do tipo argumentativo “stricto sensu” consiste, segundo Travaglia (1991), no modo de interação, ou, na forma de se relacionar linguisticamente ativada em situações discursivas em que se vê a necessidade de convencer ou persuadir o outro. O tipo argumentativo “stricto sensu” é proposto, pelo mesmo autor, ao lado do argumentativo não “stricto sensu”. O “stricto sensu” (discurso da transformação) caracteriza-se pela perspectiva do locutor de que seu(s) interlocutor(es) não SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 53 a 69 set. / dez. 2011 56 REVISTA SABERES LETRAS concorda(m) com ele, sendo, portanto, necessária a construção de um discurso que possibilite ao produtor do texto convencer ou persuadir seu(s) receptor(es). O tipo argumentativo não “stricto sensu” (discurso da cumplicidade) consiste no contrário, ou seja, o locutor parte do pressuposto de que seu(s) receptor(es) concorda(m) com ele, não sendo, portanto, necessário o convencimento ou a persuasão. Essa última forma de argumentação, segundo Travaglia (1991), é o fator básico de textualidade, está presente em todas as formas de comunicação, pois o uso da linguagem não é neutro, não é somente informacional, ao se comunicarem os usuários da língua têm sempre algum objetivo. Isso significa que não existe uso linguístico que não seja argumentativo não “stricto sensu”, ou seja, como acredita Ducrot (1981), a linguagem é argumentativa nesse sentido. Os tipos argumentativo “stricto sensu” e não “stricto sensu” são propostos por Travaglia (1991) como tipos à parte dos tipos que considera fundamentais: narrativo, descritivo, dissertativo e injuntivo, pois, conforme o mesmo autor, esses tipos diferenciam-se pela perspectiva em que se situa o produtor do texto. Os tipos fundamentais instauram um modo de enunciação/interlocução a partir da perspectiva do enunciador/locutor em relação ao objeto do dizer quanto ao fazer/acontecer ou saber/conhecer, situado ou não, no tempo e no espaço. Já o modo de interação dos tipos argumentativos consiste na perspectiva do locutor no dizer situado na concordância ou discordância do receptor. Por outro lado, Fávero e Koch (1987) propõem o tipo argumentativo “stricto sensu” ao lado dos tipos narrativo, descritivo, expositivo ou explicativo2, injuntivo ou diretivo e preditivo3, acreditando que todos esses tipos são estabelecidos por macroatos de fala. No caso do tipo argumentativo “stricto sensu”, ele é estabelecido pelo macroato de convencer e/ou persuadir. Deixadas de lado as diferenças de classificação tipológica, podemos concluir que a argumentação “stricto sensu” é o autêntico tipo argumentativo, correspondendo, como acredita Travaglia (1991), ao grau máximo da argumentação. Assim, pela dimensão pragmática, podemos dizer que o tipo argumentativo é instaurado pelo modo de interação (Travaglia, 1991) ou macroato (Fávero e Koch, 1987) de convencer ou persuadir, no momento em que argumentar significa estar diante 2- Travaglia (2007) propõe o expositivo e o explicativo como subtipos do tipo dissertativo. 3- Esse tipo também é proposto por Travaglia (1991) como um tipo à parte dos fundamentais. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 53 a 69 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 57 de uma situação em que o receptor não concorda com o locutor. Essa forma de interação discursiva é atualizada nos diferentes textos, ou seja, nos gêneros discursivos formulados de acordo com situações discursivas em que se deseja convencer e/ou persuadir o outro, como é o caso, por exemplo, do gênero artigo de opinião. O artigo de opinião é um gênero discursivo, da área jornalística por aparecer em jornais. Nesse gênero se costuma tratar de assuntos ou problemas sociais controversos, buscando chegar a um posicionamento diante deles pela sustentação de uma idéia, negociação de tomada de posições, aceitação ou refutação de argumentos apresentados (UBER, 2007; 2008, p. 4). Por esse motivo, como acredita Rodrigues (2005), os redatores desse gênero discursivo são, normalmente, especialistas em determinados assuntos, e os leitores são pessoas que buscam a avaliação desses mesmos assuntos, de forma que compartilham de mesmo conhecimento ou conhecimento aproximado com o produtor do texto. No caso do artigo analisado neste trabalho, o assunto é sobre o imediatismo dos dias atuais, no qual a articulista quer nos convencer de que esperar faz bem. A autora é uma psicanalista, o que colabora para o processo de convencimento dos leitores, uma vez que o assunto tratado está relacionado à sua especialidade, dando maior credibilidade ao seu discurso. Nesse sentido, como acredita Rojo, é possível perceber que o artigo de opinião é um gênero discursivo que “busca convencer o outro de uma determinada ideia”, ou seja, a interação entre produtor e receptor nesse gênero se constitui, principalmente, pela argumentação “stricto sensu”, sendo, portanto, um gênero argumentativo, ou, como acreditam Dolz e Schneuwly (2004), da ordem do argumentar. (ROJO, 2000, p. 226). O tipo argumentativo, uma vez atualizado em gêneros como nos artigos de opinião, estabelece uma forma de organização textual que atende aos objetivos do produtor do texto, ou seja, estabelece um esquema global de estruturação do texto que permite o convencimento ou a persuasão do seu ouvinte/leitor. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 53 a 69 set. / dez. 2011 58 REVISTA SABERES LETRAS Dimensão esquemática global A dimensão esquemática global diz respeito ao esquema geral de organização do texto, conhecido pela Linguística Textual como superestrutura, definida, segundo Van Dijk (1983), por categorias e regras de formação, organizando as partes do texto por relações hierárquicas. As superestruturas, segundo o mesmo autor, fazem parte de nossa capacidade linguística e comunicativa global, isso explica, em grande parte, como reconhecemos tipos textuais como narrativas, por exemplo. Segundo Van Dijk, é inútil para um falante de uma língua reconhecer seus sistemas gramaticais “sin saber reproducir los sucesos cotidianos con una narración correcta o sin poder comprender lo que otros cuentan.” (VAN DIJK, 1983, p. 143). No caso da superestrutura argumentativa, ela se organiza, basicamente, segundo Van Dijk (1983), pelas categorias hipótese (premissa) – conclusão. Segundo esse autor, a categoria hipótese pode estar implícita no processo argumentativo, e, nesse caso, parte-se do pressuposto de que a circunstância de uma determinada situação discursiva é condição suficiente para justificar uma conclusão. Para isso, deve existir uma relação condicional e coerente entre a circunstância e a conclusão, podendo, essa relação, ser legitimada por regras gerais (princípios éticos e morais, conhecimentos comuns a uma determinada cultura) dadas de acordo com os fatos de uma determinada situação de interação. Com base nesse processo argumentativo, Van Dijk (1983) propõe as seguintes categorias para a superestrutura argumentativa: Figura 01: Esquema de categorias da superestrutura argumentativa. SABERES Letras Vitória Adaptado de Van Dijk (1983, p. 160). v. 9 n.1 p. 53 a 69 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 59 A forma como as categorias de uma superestrutura se organiza num texto se dá de forma variada, “podem ser obrigatórias ou facultativas, recursivas ou não”. (TRAVAGLIA, 2002, p. 30). Segundo Van Dijk (1983), as categorias da superestrutura argumentativa não são fixas, mas respeitam, sempre, sua organização básica: argumentação - justificativa - conclusão. Por outro lado, Bronckart (2003) acredita nas sequências discursivas como forma mais geral de organização do texto. Segundo esse mesmo autor, as sequências são unidades estruturais que organizam e integram as macroproposições, que são, por sua vez, conjuntos de proposições, podendo, inclusive, serem constituídas de uma única proposição. Em comparação com as superestruturas, as sequências, segundo Bronckart (2003), são formas de organização linear dos conteúdos armazenados na memória de forma hierárquica. Esses conteúdos constituem as macroestruturas no nível da infraestrutura textual, que, segundo o mesmo autor, é o que se tem denominado superestrutura, significando que as sequências organizam as macroestruturas ou, conforme esse autor, as superestruturas. Por outro lado, Van Dijk (1983) acredita que as macroestruturas são definidas pelo conteúdo global do texto, e as superestruturas pela forma global, de maneira que essa última é independente da anterior. Conforme esse autor, ambas as estruturas fazem parte da estrutura global do texto, diferenciando-se das microestruturas, e possuem um denominador comum, não são definidas em termos de sequências textuais. Contudo, Bronckart (2003) propõe as sequências na forma como Adam (1993) faz, no entanto, trata por fases, as macroproposições propostas por Adam (1993). Dessa forma, propõe a sequência argumentativa por quatro principais fases: • Premissa – ponto de partida; • Argumento – orienta o enunciado/texto para uma provável conclusão, podendo ser sustentado por regras gerais (topoi); • Contra-argumento argumentativa anterior; SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 – restringe p. 53 a 69 a orientação set. / dez. 2011 60 REVISTA SABERES LETRAS • Conclusão – integra os argumentos e contra-argumentos para o estabelecimento da tese final ou nova tese. Entretanto, por mais que se trate de um modelo de estrutura por sequência, percebemos que as fases da sequência argumentativa proposta por Bronckart (2003) são semelhantes ao modelo de superestrutura argumentativa proposto por Fávero e Koch (1987), que tem as seguintes categorias: (tese anterior) premissas – argumentos – (contra argumentos) – (síntese) – conclusão (nova tese). Essa semelhança entre os modelos de sequência e superestrutura nos faz pensar, diferentemente de Van Dijk (1983), na possível relação entre essas estruturas, pois as sequências enquanto estruturas constituídas por conjuntos de proposições, localizadas na infra-estrutura textual, equivalem a estruturas menores internas à estruturas maiores que são as superestruturas, funcionando, como acredita Bonini (1999), como esquemas de base dessas superestruturas. Tal relação entre esses níveis de estrutura textual é bastante válida, pois nos permite, inclusive, perceber que os tipos são compostos por outros tipos, ou seja, as suas categorias internas às superestruturas podem ser compostas por tipos diferentes no nível da sequência textual, dependendo do gênero discursivo. Dessa forma, acreditamos, assim como Travaglia (1991), que as superestruturas são sequências esquemáticas constituídas por partes que representam categorias esquemáticas dadas por regras de formação da superestrutura, que inclusive as hierarquiza. Isso significa que enquanto modelo de superestrutura, o tipo argumentativo “stricto sensu” organiza o texto, segundo Fávero e Koch (1987), por categorias como: premissa, argumentos, contra-argumentos e conclusão, como mostra o quadro 01, por alguns trechos do artigo analisado neste trabalho: SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 53 a 69 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 61 Quadro 01: Categorias da superestrutura argumentativa presentes no artigo de opinião analisado. No nível da sequência linguística, conforme Bronckart (2003), o tipo argumentativo pode aparecer nas categorias de sua própria superestrutura ou nas de superestruturas de tipos diferentes. No entanto, só é possível identificar os tipos presentes no nível das sequências pelo reconhecimento de características linguísticas desses tipos na superfície textual, como, por exemplo, é o caso dos verbos, que, segundo Travaglia (1991, 2002), nos ajudam a reconhecer os tipos fundamentais: narrativo, descritivo, dissertativo e injuntivo, pois as formas verbais são altamente reguladas por esses tipos. Dimensão Linguística de Superfície O tipo argumentativo “stricto sensu”, assim como os outros tipos existentes, além de ser um organizador de discurso que propõe esquemas de categorias a serem preenchidas no processo de produção textual, pode preencher essas mesmas categorias, além de categorias de superestruturas de tipos diferentes, assim como tipos diferentes podem aparecer na composição das categorias SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 53 a 69 set. / dez. 2011 62 REVISTA SABERES LETRAS da superestrutura argumentativa. Assim, por exemplo, “nas categorias (...) dos argumentos/justificativa (texto argumentativo) podemos ter descrição, dissertação ou narração (esta pode aparecer na forma de exemplos)”. (TRAVAGLIA, 1991, p. 290; 291). A composição tipológica de um gênero, conforme Travaglia (2007b), pode ocorrer de três maneiras: por fusão, conjugação ou intercâmbio. Na fusão ou cruzamento uma mesma sequência linguística apresenta características de dois ou mais tipos diferentes no mesmo espaço textual, na conjugação, tipos diferentes aparecem lado a lado em sequências diferentes, e, por fim, no intercâmbio ocorre a troca de tipos, ou seja, de acordo com determinado modo de interação se espera a realização de um texto por um tipo, mas ele ocorre por outro. No caso do tipo argumentativo, Travaglia (1991) aponta que ele sempre ocorre fundido com os tipos fundamentais. Segundo Travaglia (1991) os tipos são definidos por, além de modos de interação, marcas linguísticas. Assim, Fávero e Koch (1987) acreditam que os modalizadores, os operadores argumentativos, as metáforas temporais, são marcas linguísticas do tipo argumentativo “stricto sensu”. Por outro lado, vemos estudos voltados para o trabalho com gêneros no ensino de Língua Portuguesa, como o de Uber (2007, 2008), apontarem para essas marcas linguísticas como características particulares de gêneros argumentativos, afirmando que estão relacionadas ao estilo próprio dos produtores desses gêneros, não deixando claro que estão relacionadas, na verdade, aos tipos textuais presentes na composição desses textos. Assim, por exemplo, segundo Uber (2007, 2008), características como conjunções adversativas; modalizadores expressos por formas verbais como: podemos, desejamos, prometo; por orações subordinadas substantivas, como: tenho certeza de que, é possível que, é provável que, é lamentável que; e por advérbios como: infelizmente, realmente, etc, são características linguísticas presentes no gênero artigo de opinião, não deixando claro que essas mesmas características são transferíveis de um gênero para outro, ou seja, podem aparecer em gêneros diferentes, que não só nos argumentativos, pois, como sabemos, estão relacionadas aos tipos textuais que, em número limitado, compõem todos os gêneros do discurso. Portanto, é por meio dos tipos textuais que é possível identificar “regularidades SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 53 a 69 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 63 de organização e marcação linguística”, ou seja, se determinadas características linguísticas aparecem com frequência num mesmo gênero, significa que existe um tipo frequente nesse gênero, responsável por essas marcas. (BRONCKART, 2003, p. 138). Nesse sentido, como afirma Travaglia (1991), o tipo injuntivo, por exemplo, parece ter afinidade com a conclusão dos textos argumentativos, e, dessa forma, as características como modalizadores expressos por formas verbais que expressam promessa, pedido, desejo, sugestão, estão relacionadas, na verdade, a esse tipo, e não ao gênero artigo de opinião, como acredita Uber (2007, 2008), ou ao tipo argumentativo “stricto sensu”, como acreditam Fávero e Koch (1987). Dessa mesma forma, modalizadores expressos por orações como: é possível que, estão ligadas a modalidade alética dos verbos, na qual o locutor vê como possível, necessária ou viável a realização de uma situação, e essa modalidade é característica do tipo dissertativo. Já os expressos por orações como: tenho certeza de que, e é provável que, se referem, segundo Travaglia (1991), à modalidade epistêmica dos verbos, que é expressa pelo locutor tanto pela certeza, quando esse acredita na verdade do que diz, quanto pela probabilidade, quando duvida da verdade do que diz. Essa modalidade, por sua vez, é característica comum dos tipos narrativo, descritivo e dissertativo. Com relação aos operadores argumentativos apontados como uma das características do tipo argumentativo “stricto sensu” por Fávero e Koch (1987), tendo em vista que, conforme Ducrot (1981), funcionam como marcas enunciativas, ou seja, evidenciam o modo de interação, ou a intenção do locutor, marcando “a própria enunciação do enunciado”, pode ser, como acreditam as autoras, que eles realmente sejam característica linguística frequente nesse tipo. (GUIMARÃES, 1995, p. 50) No entanto, não podemos dizer que são todos, pois, considerando que os tipos fundamentais (narrativo, dissertativo, descritivo e injuntivo) são, também, modos de enunciação/interação, os operadores podem, também, marcá-los. Isso significa que alguns operadores podem estar mais relacionados a um determinado tipo textual em detrimento dos outros, ou seja, os operadores argumentativos podem não ser, em sua maioria, mais frequentes no tipo argumentativo “stricto sensu”. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 53 a 69 set. / dez. 2011 64 REVISTA SABERES LETRAS Essas divergências de opinião quanto às características linguísticas do tipo argumentativo “stricto sensu”, estão relacionadas ao fato de que, como acredita Travaglia (1991), esse tipo ocorre fundido com os tipos narrativo, descritivo, dissertativo e injuntivo, e, portanto, parece ser difícil falar em caracterização linguística do tipo argumentativo “stricto sensu”, e a identificação do mesmo na superfície textual parece ser determinada mais pelo modo de interação. Assim, retomando as sequências relacionadas no quadro 1, e considerando as características linguísticas do tipo argumentativo “stricto sensu” discutidas acima, o quadro 02 descreve os tipos pelos quais ocorreram essas sequências e em que momentos e como o tipo argumentativo apareceu: Quadro 02: Tipos presentes nas categorias da superestrutura argumentativa do artigo de opinião analisado. Como demonstrado acima, o tipo argumentativo “stricto sensu” foi encontrado nas categorias argumento, contra-argumento, síntese e conclusão. A categoria premissa ocorreu pelo tipo dissertativo. Percebemos que o tipo argumentativo “stricto sensu” ocorreu fundido com o dissertativo, por haver, por exemplo, a presença dos modalizadores expressos SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 53 a 69 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 65 por orações como: pode ser, presentes na sequência da categoria síntese, formas verbais que expressam possibilidade, como: custaria, daria, na sequência da categoria contra-argumento, e poderia, na sequência da categoria conclusão, representadas no quadro acima, ligados à modalidade alética dos verbos, que como vimos, é característica do tipo dissertativo, nos mostrando que, nesses momentos, a articulista quer nos convencer a partir da perspectiva do saber. A fusão do tipo argumentativo “stricto sensu” com o injuntivo, foi percebida, por haver, por exemplo, a presença de formas verbais que expressam ordem: deve; sugestão: tenha, aceita, presentes na sequência da categoria argumento, e sugestão/conselho: sigamos, na sequência da categoria síntese, representadas no quadro acima, que, como vimos, estão relacionadas ao tipo injuntivo, nos mostrando que, nesses momentos, a articulista quer nos convencer a partir da perspectiva do fazer/conhecer. Além disso, percebemos que alguns operadores argumentativos criam uma tendência em acreditarmos na sequência como dominantemente argumentativa, em sua maioria os adversativos, que apareceram, principalmente, na categoria contra-argumentação. Ao fazermos o levantamento dos operadores que aparecem no artigo analisado, partindo da classificação de operadores de Koch (2005), encontramos os seguintes operadores: que, e, isto significa que, ou, então, assim, porque, deste modo, para que, ou seja, também, como, porém, mas, ao invés, pelo menos, se, portanto, até, e embora. Dentre esses operadores, apareceram no tipo argumentativo “stricto sensu” (fundido com o dissertativo): porém, mas, ao invés, pelo menos, se, até, embora. Vale ressaltar que o operador que apareceu, também, no tipo argumentativo (mas fundido com o injuntivo), no entanto, assim como os outros operadores: e, isto significa que, ou, então, assim, porque, deste modo, para que, ou seja, também, como, portanto, apareceu, também, em outros tipos não fundidos com o argumentativo, como no dissertativo e no injuntivo. O fato de operadores, em sua maioria, adversativos terem aparecido no tipo argumentativo “stricto sensu” pode ser indício de maior afinidade desses operadores com esse tipo de texto. No entanto, o que por ora podemos dizer SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 53 a 69 set. / dez. 2011 66 REVISTA SABERES LETRAS é que os operadores adversativos ajudaram a reconhecer a sequência como argumentativa “stricto sensu”, principalmente por evidenciarem os momentos de contra-argumentação, o que, de certa forma, nos mostra que existem argumentos e premissas anteriores. Conclusão Diante da discussão feita sobre as características discursivas e linguísticas do tipo argumentativo “stricto sensu”, podemos concluir que esse tipo se caracteriza discursivamente pelo modo de interação de convencer e/ou persuadir o outro. Esse modo de interação é semiotizado nos diversos gêneros argumentativos formulados pela (re)organização das categorias da superestrutura desse tipo. Quanto às características linguísticas do tipo argumentativo no nível da sequência textual, por um lado estão relacionadas aos tipos com os quais aparece fundido, e a sua identificação depende de um critério subjetivo: a percepção da intenção do locutor por meio de uma sequência que pode ser: narrativa, descritiva, dissertativa ou injuntiva, nos diferentes gêneros discursivos, que não só nos argumentativos. Por outro lado, os operadores argumentativos parecem ter alguma relação com esse tipo, pois, tendo em vista que são marcas enunciativas, são instrumentos linguísticos que possibilitam o locutor encaminhar o(s) seu(s) interlocutor(es) para o sentido textual pretendido, eles são elementos que auxiliam na percepção da intenção do produtor do texto, mostrando se esse está argumentando/ contra-argumentando, se deseja ou não nos convencer, e de quê. Em especial, os operadores argumentativos adversativos parecem evidenciar mais claramente esses momentos. Dessa forma, os critérios de identificação e caracterização para o tipo argumentativo “stricto sensu” parecem estar mais relacionados ao modo de interação (dimensão pragmática), e de estruturação (dimensão esquemática global), do que a formas linguísticas específicas (dimensão linguística de superfície), pois utiliza as várias formas e possibilidades de construções linguísticas dos tipos narrativo, dissertativo, descritivo e injuntivo, como formas de argumentar. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 53 a 69 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 67 Referências Bibliográficas ADAM, Jean-Michel. Les textes: types et prototypes – récit, description, argumentation, explication et dialogue. Paris: Nathan, 1993. BONINI, Adair. Reflexões em torno de um conceito psicolingüístico de tipo de texto. D.E.L.T.A., v. 15, n. 2, 1999. p. 301-318. BRONCKART, Jean-Paul. Os tipos de discurso. in: Atividade de linguagem, textos e discurso: por um interacionismo sócio-discursivo. 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UBER, Terezinha de Jesus Bauer. Artigos de opinião: estudos sobre um gênero discursivo. Programa de Desenvolvimento Educacional da Secretaria de Estado da Educação do Paraná, 2007-2008. Universidade Estadual de Maringá. Anexo 21 de novembro de 2009 Esperar faz bem, por Caroline Milman* Estamos todos de acordo quanto à realidade imediatista dos dias atuais, onde a espera é uma noção muito vaga, se não inexistente, na construção mental das pessoas. Há o modelo fast food, e outros “fasts”, todos que se quiser. Fast news (notícia rápida), fast date (namoro rápido), e por aí vai. Quem tem filhos em idade escolar percebe a enorme diferença na conduta do estudante perante a aprendizagem, de uma geração atrás para a atual. Há, porém, que se considerar o seguinte: todas as pessoas, no seu processo de desenvolvimento psíquico, atravessam um primeiro sistema, que Freud chamou “princípio do prazer”. Isto significa que o bebê ou criança bem pequena funciona buscando o prazer imediato, descarregando diretamente suas tensões sem condições de dar a estas um outro destino. Nos primórdios da vida humana na Terra, também havia este funcionamento. Com o tempo, o homem foi percebendo que era mais vantajoso para a sobrevivência da espécie acumular um pouco de sua energia mental e utilizála estrategicamente, ao invés de desperdiçá-la. Isto lhe custaria um adiamento SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 53 a 69 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 69 do prazer imediato, mas em troca lhe daria mais algum tempo de vida. Uma negociação interessante. A analogia com o uso de drogas (ou com qualquer compulsão, compras, jogo, comer etc.) se faz presente. Nestas situações não há esta negociação. O prazer imediato impera e em troca a vida fica mais curta. Então, voltando ao bebê humano. Todo o processo de amadurecimento emocional do indivíduo passa por ele ser “ensinado” constantemente sobre o benefício da espera, do adiamento, sobre, digamos assim, o melhor destino para seus impulsos, aquele destino que lhe dará mais opções na vida, que lhe dará mais possibilidades de manobras, desvios, autoproteção e segurança para trilhar o caminho da vida até o seu final biológico. É isto o que os pais e educadores fazem com as crianças. Pelo menos seria o esperado. Mas como pedir que os pais cumpram esta função, se eles próprios não foram trabalhados para isto. (Sim, porque é trabalhoso abrir mão da satisfação imediata dos desejos). Deste modo, observamos o efeito disto na sociedade. Sempre que os impulsos ficam por eles próprios, uma situação de risco é acionada. O problema é que esta “domesticação” dos impulsos só pode vir associada, no início da vida, a outras variáveis, de responsabilidade do ambiente. O ambiente deve acolher e transmitir boas experiências que deixem registros prazerosos no interior do psiquismo, para que o bebê tenha onde se apoiar enquanto “aceita” esperar. Ou seja, a lembrança de boas experiências garante à criança a construção de uma confiança no mundo. Sem isso, todo o esquema civilizatório se desarticula. Portanto, o que temos atualmente na sociedade, embora nos deixe perplexos e até impotentes, também pode ser visto como um desafio para que sigamos incessantemente lutando pela viabilidade da espécie humana. A campanha da faixa de segurança é um excelente exemplo do aqui exposto. Os carros deverão parar. Isto custará um pouco mais de tempo, mas certamente um atropelamento custará muito mais em termos de tempo e desgaste emocional. Será que a sociedade não poderia, com tantos sistemas bem-sucedidos de marketing, vender à população que “esperar faz bem”? *Psicanalista SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 53 a 69 set. / dez. 2011 70 REVISTA SABERES LETRAS A RETEXTUALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE ENSINO NA AULA DE PORTUGUÊS COMO SEGUNDA LÍNGUA PARA OS SURDOS Arlene Batista da Silva Ferreira** Resumo Este artigo tem por objetivo apresentar um resumo de nossa pesquisa de Mestrado, na qual nos propusemos a investigar práticas de produção textual na aula de português para surdos. Tomando como referência os Estudos da Tradução, buscamos desenvolver atividades de tradução/retextualização de textos produzidos da Libras para o português escrito, possibilitando ao aluno surdo o exercício de reflexão entre duas línguas tão diferentes, mas que são, na atualidade, fundamentais para a constituição do surdo como sujeito bilíngue. Palavras-chave: Libras. Português como Segunda Língua. Retextualização. Abstract: This paper aims to present a summary of my research in the master’s program, in which I investigate practices of writing in Portuguese class for deaf. According to Translation Studies, I seek to develop activities of translation /retextualization of texts produced from sign language to Portuguese, allowing the deaf student to the exercise of reflection between two such different languages, but which are, at present, fundamental to the constitution as the subject of the deaf bilingual. Keywords: Libras (Brazilian Sign Language). Portuguese as a second language. Re-textualization. Introdução De acordo com Barreiro e Gebran (2006, p. 35), é comum ouvirmos declarações do tipo: “a prática se faz na prática ou na prática, a teoria é outra, indicando a dissociação entre ambas e até mesmo o descarte da teoria”. Entendemos com SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 71 as autoras que esse discurso recorrente na área da educação, tem provocado danos à formação do professor, que não enxerga na pesquisa uma opção para encontrar respostas, a fim de melhorar sua prática. Ao refletir sobre a prática da docência percebemos que tal atividade pode dois causar dois efeitos nos professores: um é o discurso do conformismo e da estabilização das certezas. O outro é o incômodo, que nos leva à reflexão, a pensar: que outras possibilidades existiriam para ensinar um aluno a ter proficiência na leitura e escrita da língua portuguesa. Sendo mais específicos: que estratégias teria um professor para ensinar um aluno surdo a aprender o português escrito? A investigação que fizemos durante o curso de mestrado, permitiu-nos um olhar sobre o incômodo que a prática da docência provoca nos professores, sobre a pesquisa como recurso para o exercício de reflexão e sobre a pesquisa como desestabilização dos discursos que a prática nos impõe. Segundo Bondía (2002), a experiência é uma relação com algo que se experimenta, que se prova. E, quando provamos, somos tocados pela experiência. Ela nos transforma. E o toque que gera a transformação muitas vezes é um espinho na carne. Um espinho que mostra nossa incapacidade para dar conta de demandas tão recentes quanto às leis que as legitimam. O espinho está dentro da nossa sala de aula, ávido para aprender e transformar-se em rosa, mas para que esse fenômeno ocorra, é necessária uma metodologia que o professor não recebeu nos bancos da universidade, pois as leis que regulamentam a política bilíngue para surdos datam do ano de 2005. Enquanto isso, a angústia de não se saber como ensinar um aluno surdo permanece na prática dos professores, e engrossa o discurso do conformismo na fala de muitos profissionais: ele está aqui só para socializar ou o intérprete é o professor do mudinho, não eu! Iniciamos nossa pesquisa tomando como eixo norteador o movimento atual em favor da educação bilíngue para os surdos. No Brasil, esse movimento se fortaleceu com os estudos realizados sobre a língua de sinais nas décadas de SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 72 REVISTA SABERES LETRAS 80/90, os quais impulsionaram a criação de leis1 em favor de um ensino bilíngue para os surdos, reconhecendo a Libras como primeira língua do surdo e a língua portuguesa, na modalidade escrita, como segunda língua. Tendo em vista essa nova abordagem, na qual se insere a educação de surdos, um dos primeiros passos de nosso trabalho teve o objetivo de refletir sobre as concepções de surdez, sujeito bilíngue e ensino de português como segunda língua subjacentes a essa abordagem. Em seguida, voltamos nosso olhar para as práticas de ensino da língua portuguesa que vem sendo adotadas, com um aluno surdo em uma escola regular do Ensino Médio. Nesse sentido, podemos afirmar que uma pesquisa sobre as práticas de ensino do português para surdos nos mostrou não só uma mudança de metodologias e estratégias de ensino para atender esses indivíduos, mas, principalmente, uma mudança de discursos. Em outras palavras, para entender os discursos sobre a surdez e sobre o surdo como sujeito bilíngue é preciso desestabilizar os discursos sobre o oralismo e sobre o surdo como doente, aquele a quem lhe falta recursos físicos para desenvolver a linguagem e aproximar-se do discurso da alteridade, que dá voz às minorias (linguísticas, étnicas, etc.) em todo o mundo. À luz do discurso da alteridade, a luta das comunidades surdas por um ensino bilíngue, vai muito além de uma preocupação apenas com o domínio de uma ou outra habilidade, pois segundo Skliar (1999): A possibilidade de estabelecer um novo olhar sobre a educação bilíngue permitiria refletir sobre algumas questões ignoradas nesse território, entre as quais menciono: as obrigações dos Estados para com a educação da comunidade surda, as políticas de significação dos ouvintes sobre os surdos, o amordaçamento da cultura surda, os mecanismos de controle através dos quais se obscurecem as diferenças, o processo pelo qual se constituem – e ao mesmo tempo se negam – as múltiplas identidades surdas, “a ouvintização” do currículo escolar, a 1- Lei nº 10.436/2002 dispõe sobre a língua brasileira de sinais (Libras) e dá outras providên� cias; Decreto nº 5.626/2005 regulamenta lei nº 10.436/2002 e o artigo 10.098/2000. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 73 separação entre a escola de surdos e a comunidade surda, a burocratização da língua de sinais dentro do espaço escolar, a omnipresença da língua oficial na sua modalidade oral e/ou escrita, a necessidade de uma profunda reformulação nos projetos de formação de professores (surdos e ouvintes) etc.. (Skliar, 1999, p. 8). Nesse sentido, pensar no ensino de língua portuguesa para os surdos exige ampliarmos nosso campo de visão para além do linguístico. Isso significa pensarmos nas duas línguas numa perspectiva dialógica, de modo que o surdo tenha a oportunidade de significar-se através da língua do outro. Portanto, ensinar o português escrito implica permitir ao surdo expressar suas ideias em palavras alheias e reconhecer-se nelas. Dentro da filosofia bilíngue para os surdos, esse é o movimento de inversão das práticas colonialistas: é um ato de resistência ao domínio das práticas ouvintistas. Seguindo uma filosofia bilíngue, Quadros (2006) e Fernandes (2008) aprofundaram os estudos sobre a aquisição do português, pelo surdo, e concluíram que qualquer produção escrita nesta língua deve ser precedida por uma produção em língua de sinais. Em outras palavras: a compreensão ativa e responsiva do surdo sobre um determinado assunto em sua própria língua é fundamental para que ele organize seu pensamento e transforme suas ideias em uma produção escrita, pois de acordo com Geraldi (2002): As palavras que carregamos multiplicam as possibilidades de compreensão do texto (e do mundo) porque são palavras que, sendo nossas, são de outros, e estão dispostas a receber, hospedar e modificar-se face às novas palavras que o texto nos traz. E estas se tornam por sua vez novas contrapalavras, nesse processo contínuo de constituição da singularidade de cada sujeito, pela encarnação da palavra alheia que se torna nossa pelo esquecimento de sua origem (Geraldi, 2002, p.82). Em busca de uma teoria que dialogue com o conceito de sujeito bilíngue e de SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 74 REVISTA SABERES LETRAS língua como lugar de construção e reconstrução dos discursos, isto é, lugar de produção de nossas contrapalavras, nos aproximamos dos Estudos da Tradução. Essa área de estudos interdisciplinar entende que o processo de transformação da Libras para o português escrito é o que conhecemos como retextualização, ou seja, a tradução de um mesmo/novo texto (TRAVAGLIA, 2003). É nessa perspectiva que pensamos ser possível o diálogo com as duas línguas em questão, pois o ato de traduzir requer a consciência de que estamos trabalhando com dois textos distintos, com a intenção de comunicar algo a alguém, numa determinada situação, num determinado contexto linguístico e extralinguístico; e as operações necessárias para transformar essa intenção num produto verbal, num texto. Portanto, é preciso entender que na aula de português estaremos traduzindo textos em línguas distintas. Alinhados a essa vertente teórica, conceber o surdo como sujeito bilíngue implica também enxergá-lo como um tradutor. Mais uma vez teremos que ampliar o escopo de nossa pesquisa, já que a tradução nem de longe significa a repetição total de um texto concebido como o original. Aliás, nas palavras de Arrojo (1992, p. 22), “a repetição total de um texto, sua tradução nunca recuperaria a totalidade do original, revelaria, inevitavelmente, uma leitura, uma interpretação desse texto que, por sua vez, será sempre, apenas lido e interpretado, e nunca totalmente decifrado ou controlado”. A afirmação de Arrojo contribuiu para nos fazer ver que o processo de tradução é muito mais que o transporte ou a manipulação do material linguístico (ou transposição linguística), pois um texto traduzido sofre influências do sujeito sócio-histórico que participa desse processo: o tradutor. Nesse sentido, o texto do aluno surdo será, inevitavelmente, uma interpretação do mundo, a partir das experiências que ele vivenciou. Ora, se um aluno surdo domina a Libras, sua primeira língua, é muito comum que ele organize sem pensamento em Libras e que seu texto escrito em português, sua segunda língua, apresente marcas linguísticas e culturais de sua primeira língua. Com os Estudos da Tradução, entendemos que para o surdo a (re)ssignificação SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 75 de suas ideias dentro de uma nova modalidade de linguagem, que difere da sua, é uma atividade complexa, que o levará a realizar muitas tentativas para construir um texto em português. Muitas vezes, essas tentativas serão vistas como erros por parte dos professores de língua portuguesa. Isso porque a ênfase nas aulas de português (tanto para surdos como para ouvintes) tem sido o ensino da norma culta, além da excessiva preocupação com aulas de gramática. Nessa lógica, importa mais ensinar sobre a língua do que ensinar o uso da língua em suas variações. O que dizer de aulas de português que se iniciam assim: Hoje vamos falar sobre as preposições. Preposição é uma palavra invariável que liga um termo dependente a um termo principal, estabelecendo uma relação entre ambos. As proposições são conectivos subordinados; Antepõem-se a termos dependentes (objetos indiretos, complementos nominais, adjuntos) e a orações subordinadas; (CEGALLA, 2005, p.268 ). Enquanto isso, alguns de nossos alunos surdos escrevem textos assim: (Releitura de Os três Porquinhos) Porco Yuri falar vamos fazer casa?Lara quer casa sim. Carlos vamos fazer casa palha. Lara fala não quero palha casa, melhor casa árvore. Carlos fala fraco é casa palha. Lara fala é muito fraco árvore casa. Lara bravo fala Carlos brigar fala. Yuri fala parar brigar Lara e Carlos. Lara vou sozinha fazer casa árvore. Carlos vou procurar palha. A análise desses dois eventos presentes em sala de aula nos mostram um distanciamento entre aquilo que é ensinado sobre a língua portuguesa para o surdo e os textos reais que esses sujeitos bilíngues produzem nas escolas. A partir dessa constatação, a pesquisa nos despertou para a necessidade de percorreremos por outras trilhas que nos façam chegar a um ensino pautado no uso da língua e das mais variadas formas que temos para nos expressar através dela. Ensinar português ou ensinar a traduzir? De acordo com Fernandes (2006, p. 5) os surdos como sujeitos bilíngues podem SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 76 REVISTA SABERES LETRAS ser considerados estrangeiros dentro de seu próprio país. Isso porque “[..] não aprendem a língua pátria como língua materna, tal como acontece com a maioria dos brasileiros. Em função de sua experiência visual que mobiliza suas interações cotidianas, desde o nascimento, potencializam-se as possibilidades de comunicação visual mediadas simbolicamente pela língua de sinais, em contato com outros surdos. [...] Embora imersos no hegemônico universo da língua portuguesa (na família e sociedade) não se apropriam dela pela interação com seus falantes, de maneira natural nas situações cotidianas. Dessa forma, mesmo em contato efetivo com seus compatriotas não há comunicação simbólica, já que a maioria não-surda desconhece a língua de sinais e a minoria surda não tem acesso ao português” (FERNANDES, 2006, p.5, grifo nosso). Baseados nessas informações, é possível inferir que, ao escrever um texto, o surdo fará inúmeras tentativas para traduzir suas ideias da Libras para o português. Concluímos, portanto, que o exercício mental de tradução se faz presente na aula de português de forma muito mais intensa do que imaginamos, sendo este um dos eixos norteadores para o trabalho com a produção escrita do aluno surdo. Considerando a tradução como uma atividade produtora de novos sentidos, um ato de (re)escritura que sofre influência do sujeito e do contexto extraverbal, e levando em conta que essa produção ocorre de texto para texto, lançaremos mão dos estudos de Travaglia (2003), visto que essa autora toma a tradução como produção de um mesmo/novo texto, ou seja, como “processo de retextualização de um segmento linguístico (um texto) numa língua diferente daquela em que foi concebido” (p. 63). Defende ela ainda que esse processo segue as mesmas operações realizadas na produção de qualquer tipo de texto. Em outras palavras, a partir da construção do sentido pela leitura do texto de SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 77 partida, que se transforma na intenção comunicativa do tradutor, este realiza o planejamento global do seu novo texto, realiza as operações de textualização propriamente dita e, por fim, revisa sua tradução. Baseados nos estudos de Travaglia (2003), entendemos que a leitura é fundamental para que o surdo possa reconstruir em sua língua os sentidos do texto que será traduzido. Além disso, é importante que o texto em português, tomado como ponto de partida para a atividade de leitura, seja apresentado no gênero e no suporte que o veiculou, preservando os elementos de uma situação concreta de interação. Explicando, melhor: haverá uma riqueza de detalhes e pistas em uma notícia de jornal que contribuirão para a construção do sentido daquele texto, que se perderá se o professor resolver copiá-lo no quadro. Imagens, slogans, elementos paratextuais, a própria formatação do texto, enfim, tudo contribui para dar ao leitor uma melhor compreensão da intenção que o autor quis expressar. Isso porque ao adotarmos um ensino baseado na diferença linguística do surdo, devemos levar em conta a experiência visual desses sujeitos. Ou seja, utilizar práticas baseadas na relação letra/som, ou então a análise sintática de frases isoladas, perdidas no grande quadro negro, de nada vale para ensinar o português para o surdo. Portanto, se a compreensão de mundo do surdo é visual e se o seu processamento cognitivo se dá pela relação com as imagens, torna-se necessário pensar as práticas de produção de texto por outro prisma. Isso posto, Fernandes (2008) aponta alguns princípios que devem nortear o trabalho com a língua portuguesa: a) num texto composto por linguagem verbal e não-verbal, a leitura de imagens conduz ao processo de inferências sobre a leitura da palavra escrita; b) a leitura de pistas linguísticas (palavras conhecidas, logotipos, negritos, etc.) dão informações sobre o conteúdo do texto; c) um roteiro escrito no quadro, sob a forma de tópicos ou esquemas com as hipóteses de leitura dos estudantes, funciona como pista visual para orientar a leitura individual do texto; d) o trabalho de leitura e compreensão do texto (desenvolvido em Libras) torna-se a base que norteará a atividade escrita proposta pelo professor. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 78 REVISTA SABERES LETRAS Assim, durante a atividade de leitura serão ativados conhecimentos linguísticos, os “enunciados relativamente estáveis”2 que nos permitem transmitir uma intenção comunicativa através das palavras e o efeito de sentido pretendido. É também nesse momento que o surdo estabelecerá relações com o que está além do texto: o conhecimento de mundo. Essa etapa propiciará a construção de hipóteses, inferências e a ativação em sua memória de tudo aquilo que o surdo sabe sobre determinado assunto. É a oportunidade de diálogo,isto é, do aluno participar do jogo da linguagem com suas contrapalavras, pois como afirma Bakhtin (2003, p.272) “toda compreensão plena real é ativamente responsiva e não é senão a fase inicial preparatória da resposta (seja qual for a forma em que ela se dê).” Entendemos que essa estratégia de leitura permitirá ao aluno surdo a construção de novos sentidos, ou seja, a criação de um texto em Libras. Ao estabelecer relações entre o seu texto e o texto de partida em português, o aluno terá subsídios para enfrentar seu novo desafio: a desconstrução do significado em sua língua e a sua reconstrução no português escrito. Reconhecemos que essa é uma tarefa complexa, pois exigirá do aluno o cotejo entre as línguas e, do professor, a mediação para mostrar ao aluno que o sentido não é estável dentro das línguas, mas é fruto de uma negociação entre os sujeitos3 inseridos em um tempo e um lugar específico. Nesse sentido, cabe ao professor oferecer possibilidades para que o seu aluno construa um texto com sentido em campo alheio, mas que ao mesmo tempo, faça sentido para si, pois de nada vale escrever um texto dito como “correto” para um leitor de português quando o próprio surdo não sabe o que ele escreveu. 2- Expressão usada por Bakhtin (2003) que se refere a todo o tipo de produção discursiva (oral ou escrita) que os indivíduos produzem ao colocar-se em interação com o outro. 3- Por exemplo, as expressões “Peguei o ônibus” e “Peguei uma mulher linda na festa” são com� preendidas com naturalidade por falantes/ouvintes do português em algumas regiões do Brasil. No entanto, para o surdo essas expressões carecem de explicação, pois o verbo pegar não expressa esse sentido no repertório cultural dos usuários da Libras, confirmando a fala de Travaglia (2003) de que numa tradução os sentidos são reconstruídos na língua de chegada. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 79 Nessa perspectiva, o ato de tradução (interpretação e reconstrução) de textos materializados em gêneros textuais escritos, permitirá ao aluno surdo perceber que a língua portuguesa, igual a Libras, dá-nos condição para interagirmos com o outro em vários espaços sociais. A esse respeito, valemo-nos das ideias de Marcuschi (2008) ao defender que gêneros escritos variados estão presentes nas tarefas diárias: no comércio, na indústria, na produção de conhecimento, etc..Segundo o autor, o cidadão precisa dominar vários gêneros textuais para interagir nesses espaços sociais. Assim, a tradução de textos a partir de situações reais de comunicação, pode tornar o ensino do português muito mais significativo para o surdo, pois envolve o uso da língua materializado em listas, agendas, torpedos, e-mails, receitas, comentários, relatos de experiências, etc. A trilha percorrida neste estudo nos guiou a uma nova concepção sobre o ensino de português para os surdos e as práticas aplicadas em sala de aula, uma vez que essa atividade toma como ponto de partida um texto e como ponto de chegada um outro texto, ou seja, configura-se uma relação dialógica entre textos, e não simplesmente entre códigos. Por esse prisma, entendemos que no ensino da segunda língua para os surdos, a prática da tradução/retextualização se torna aliada, pois permite trabalhar com o texto como um todo, levando em conta as marcas ali colocadas pelo autor com intuito de dizer algo a alguém, num certo contexto e circunstância; permite perceber os elementos linguísticos e não linguísticos que entram em jogo na composição de um texto e escolher na língua de chegada os elementos mais condizentes com a leitura que se fez do texto de partida, transformando-o em um novo texto. Nesse contexto, a tradução é chamada a participar do processo não como coadjuvante, mas como elemento principal para integrar as duas línguas, estabelecendo um paralelo entre a língua materna do surdo e sua segunda língua, que permitirá ao aluno analisar semelhanças e diferenças entre as distintas formas de expressar-se, bem como retextualizar suas produções em sinais para produções escritas. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 80 REVISTA SABERES LETRAS Portanto, entendemos que cabe ao professor lançar mão da tradução em sua prática pedagógica como um meio para transformar, reformular os textos em Libras dos alunos surdos em textos escritos em português. Nessa ótica, ensinar os alunos a traduzir/retextualizar suas produções, permitirá ver as línguas mais de perto e perceber as relações dialógicas e contínuas que elas estabelecem entre si. Retextualização: surdo reconstruindo o texto do aluno Considerando que o objetivo central desta pesquisa foi analisar eventos de produção escrita mediados pela tradução, adotamos a abordagem metodológica de caráter qualitativo, com ênfase nos procedimentos técnicos da pesquisaação. No nosso caso, recorremos à pesquisa-ação, pois nos permitiu o engajamento em um problema comum que afetava os sujeitos dentro da escola, na qual trabalhávamos como intérprete. Por meio do diálogo com os envolvidos naquela realidade, fomos criando com o grupo um novo espaço para o questionamento das nossas percepções da realidade e, principalmente, das práticas que têm sido utilizadas, no ensino do português, com o aluno surdo. Segundo Thiollent (2008), na pesquisa-ação os pesquisadores querem pesquisas nas quais as pessoas implicadas tenham algo a “dizer” e a “fazer”. Não se trata de simples levantamento de dados ou de relatórios a serem arquivados. Com a pesquisa ação os pesquisadores pretendem desempenhar um papel ativo na própria realidade dos fatos observados. (Thiollent , 2008, p.18, grifos do autor) O aluno para quem interpretávamos estava no 2º ano da Rede Estadual de Ensino era fluente em Libras, mas me disse que tinha dificuldades para escrever em português, pois não conhecia o significado das palavras. Também afirmou que aquele era o primeiro ano em toda sua vida escolar que teria um intérprete SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 81 para traduzir as aulas para sua língua. Desde nossa entrada na escola, começamos a observar as práticas usadas pelos professores em sala e constatamos que não havia um trabalho com o foco na produção de textos, pois as atividades, sobretudo as de português, resumiamse em responder às perguntas no caderno e mostrá-las ao professor para alcançar a nota de participação. Geraldi (2006) critica práticas como essa, pois criam no aluno uma artificialidade quanto ao uso da linguagem, já que temos infinitas formas de uso da língua que deveriam ser contempladas na escola. Por outro lado, o aluno se ajusta a esse sistema de ensino, pois sabe que é essa a metodologia utilizada pelo seu interlocutor para avaliar sua escrita. Após uma conversa com a pedagoga fomos autorizados a preparar uma atividade uma atividade para avaliar como era a produção escrita desse aluno. Sabendo que ele era fanático dos Santos, trouxemos um pequeno texto falando sobre seu time preferido e especialmente sobre Neymar, um jogador jovem que tem se destacado no time. Pedimos que ele lesse e tentasse nos explicar o que havia entendido. André leu palavras soltas e traduziu algumas frases para Libras, mas não chegou a compreender o sentido global do texto. Durante a leitura, ele pulava muitas palavras e dizia em Libras: “não entendi!”, ou então: “não conheço essa palavra”. A reflexão sobre o momento da leitura nos mostrou que quando André tentou ler o texto, utilizou as regras que existem na sua língua, acreditando que cada palavra em português também representaria uma ideia. Em outras palavras, André tentou fazer uma tradução buscando a equivalência entre as línguas e ficou nervoso quando não conseguiu compreender os sentidos do texto. Segundo Travaglia (2003), o tradutor começa a reconstrução dos sentidos por meio de elementos linguísticos que se constituem como pistas para que o leitor possa reconhecer a intenção comunicativa presente no texto. Devido à condição linguística do surdo, algumas palavras (preposições, artigos, conjunções) e a estrutura sintática do português são fatores que interferem na compreensão dessas pistas deixadas ao longo do texto. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 82 REVISTA SABERES LETRAS Apoiados em Fernandes (2003), defendemos o professor precisa ensinar ao surdo a construir outras estratégias para ler um texto em português, afastando-se da tentativa de traduzir palavra por sinal. Assim, explicamo-lhe as ideias centrais do Texto, em Libras, e ele não só entendeu o texto como também apresentou suas contrapalavras, introduzindo no diálogo suas lembranças sobre Robinho, jogador do time dos Santos, explicando os dribles que dava durante o jogo. Ao final da conversa, pedimos que André escrevesse um texto, em casa, “contando um pouco de suas experiências com o futebol” e o trouxesse no dia seguinte. Vejamos o que dizia o texto-diagnóstico do aluno: Texto Eu gosto muito mais é futebol eu fazer jogo Dia eu acho 26 viajar certo marcar, Eu sempre jogar sabado, eu gosto time é santos eu lembro Robinho muito jogar bem também pelé jogar bem é passado muito, eu tava passado time são paulo Depois rui flamengo rui Depois certo santos muito anos sempre, Eu jogar bem muito Eu lembro saudade é escola passado legal muito mais, Minha amigo jogar sempre lá rua brincar legal, Eu Agora jogar tem lá serra sempre sabádo só é surdo, eu fui campeão é surdo, muito legal sempre conversar boa perfeito, Eu rui ouvir sempre perteu outro campeão. Segundo Quadros e Karnopp (2004), a ordem básica na língua de sinais brasileira é a forma SVO, utilizando concordância manual. O texto de André nos mostra isso, pois ele construiu muitos enunciados com essa estrutura. Porém, as autoras afirmam que a topicalização é um recurso gramatical muito utilizado na língua de sinais para dar uma ênfase especial ao tema do discurso, alterando, assim, a estrutura SVO para SOV ou OSV. A escolha da topicalização tem forte ligação com a argumentação e com a ideia que o locutor quer destacar no discurso. Percebemos isso no texto do aluno por meio das expressões “eu fazer jogo dia eu acho 26”, resguardando o locutor pela imprecisão quanto à data do jogo, e nos enunciados “Robinho muito jogar bem”, “Pelé jogar bem é passado muito”, “eu jogar bem muito”, em que os advérbios marcam a avaliação do locutor sobre o ato de jogar. Notamos também que o aluno surdo substituiu a preposição pelo uso do verbo SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 83 ser “Eu gosto mais é futebol”, “eu gosto time é santos”, “saudade é escola passado” “só é surdo” “eu fui campeão é surdo”. Apresentou um vocabulário limitado, que se repetiu ao longo do texto, mas escreveu muitas palavras sem erros de ortografia “acho”, “lembro”, “passado”, “campeão”, etc. O texto de André revelou muito sobre sua habilidade de tradução: a) domínio do gênero comentário com coerência; b) marcação de sua opinião utilizando argumentos consistentes; c) Estabelecimento relações entre o texto e experiências pessoais; d) Uso da estrutura linguística da Libras; e) Dificuldade para usar algumas palavras (verbos, preposições, advérbios) e produzir a coesão textual do texto em português; e) Uso da transposição (tradução literal). Além desses aspectos o que nos chamou a atenção nesse texto foram os elementos discursivos, uma vez que havia no texto marcas da inscrição do aluno expondo suas avaliações sobre os jogadores, a escola atual, e sobre si próprio, além do fato de identificarmos uma forte intertextualidade com o diálogo que tivemos com ele no dia anterior. Assim, percebemos que André se posicionou argumentando sobre suas preferências e apresentando justificativas: “Eu gosto time santos eu lembro Robinho muito jogar também pelé jogar bem é passado muito”. Também fez uma comparação entre a escola atual e a anterior e justificou sua escolha: “Eu lembro saudade é escola passado legal muito mais, Minha amiga jogar sempre lá rua brincar legal”. André, no último parágrafo, revelou seu entrosamento com a comunidade surda e a satisfação em conviver com pessoas que interagem com ele na sua língua: “Eu agora jogar tem lá serra sempre sábado é só surdo [...] muito legal sempre conversar boa perfeito”. Frente a essa situação, entendemos com Travaglia (2003) que dentre as etapas que envolvem o processo de retextualização (Interpretação, recodificação e produção), as duas últimas foram as mais complexas e demandam uma mediação intensa entre aluno e professor. Portanto, é preciso explicar ao aluno as diferenças entre as duas línguas por meio de exercícios de retextualização, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 84 REVISTA SABERES LETRAS caso contrário, as mesmas dificuldades permanecerão em textos futuros. Nesse sentido, haverá pouco proveito explicar a gramática isoladamente, mas é importante reconstruir o texto, apontando e dando exemplos de outras possíveis construções. Uma das atividades sugeridas, nesse caso, seria digitar o texto da forma como foi produzido pelo aluno e enumerá-lo em linhas. Em seguida, o professor escreve os enunciados no quadro, destacando os problemas de concordância, ausência de artigos e conectivos. Primeiro o professor faz a tradução daquele enunciado para a Libras, a fim de que o aluno entenda o que está escrito. Depois o professor explica as correções que precisam ser feitas para que o texto tenha coerência na língua portuguesa. Em um enunciado como “Eu gosto muito mais é futebol”, o professor pode perguntar ao aluno se a intenção comunicativa foi expressar que ele adora futebol, ou ainda, que futebol é o seu esporte preferido. Diante da resposta do aluno, o professor pode reescrever essas opções no quadro, ou reescrever o enunciado “Eu gosto muito de futebol”. Se assim o fizer, é importante explicar ao aluno surdo que em português sempre utilizamos a preposição de após o verbo gostar, ou após o intensificador muito, dando-lhe vários exemplos: Eu gosto muito de sorvete, Eu gosto de jogar futebol, Nós gostamos de praticar esportes, etc.. Vale destacar que se o professor de português dominar a Libras o aluno surdo será o maior beneficiado, pois o professor consegue perceber melhor as ideias que o aluno quis expressar por meio da escrita e pode incentivar o aluno a aprofundar suas reflexões, preenchendo lacunas que ele deixou no texto, mas que estiveram presentes por meio dos eventos comunicativos. Assim, um dos pontos mais importantes em nossa pesquisa foi percebermos que, [...] o surdo tem toda condição de aprender o português, mas ele não vai conseguir isso sozinho. Ele precisa do professor para mediar a construção do texto escrito. E quando o professor sabe Libras o SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 85 aluno surdo se sente mais à vontade pra perguntar, pra interagir e o professor pode perceber, com mais clareza, as dificuldades que o aluno está enfrentando. Logo, o professor pode pensar outras formas para traduzir aquela informação, na Libras, para que o aluno compreenda (SILVA, 2010, p.128). Acreditamos, portanto, que o surdo como sujeito bilíngue é um tradutor. Aperfeiçoar essa habilidade propondo estratégias de tradução/ retextualização do texto produzido em Libras, é tarefa do professor que se diz engajado nessa nova abordagem de ensino: português como segunda língua para os surdos. Nessa perspectiva, ensinar a traduzir é, também, romper com a homogeneização das práticas de ensino adotadas com todos os alunos e procurar reformular suas concepções, mudando primeiramente a si próprio. Considerações finais De acordo com Barreiro e Gebran (2006), a reflexão é, atualmente, uma das habilidades mais requisitadas para fundamentar a prática dos profissionais da sala de aula. A reflexão sobre as práticas de ensino do português que ainda são adotadas com os alunos surdos, permitiu que encontrássemos nos Estudo da Tradução outras estratégias de ensino que se alinhem à nova concepção do surdo como sujeito bilíngue. O texto produzido pelo aluno surdo nos mostrou que o professor precisa analisar o texto do aluno surdo e, a partir dessa avaliação, elaborar atividades de retextualização que aprimorem a habilidade de tradução existente. Isso porque o aluno surdo não irá produzir textos sozinho, mas precisa ser orientado pelo professor. Dessa forma, a apropriação da língua portuguesa na modalidade escrita não se construirá num ato individual, mas é preciso que haja a interação entre professor, aluno e texto, para que haja a produção de novos sentidos. Para elaborar atividades de tradução/ retextualização, o texto do aluno surdo precisa ser o ponto de partida. Assim, a aula de português se transformaria numa oficina de tradução, permitindo o ir e vir entre os textos produzidos na SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 70 a 87 set. / dez. 2011 86 REVISTA SABERES LETRAS Libras e no português escrito. Nessa perspectiva, o surdo começa a circular por dois mundos, duas culturas e poderá usar as línguas Libras e português para interagir das mais diversas formas, nos diferentes espaços sociais. Referências ARROJO, R. Oficina de Tradução: a teoria na prática. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992. BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BARREIRO, I. M. F.; GEBRAN, R. A. 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Para a seleção dos sujeitos, recorreu-se ao auxílio de profissionais da área da saúde em que analisaram os prontuários, os laudos de tomografia computadorizada de crânio e os Mini-Exames do Estado Mental deles. Posteriormente, realizou-se a coleta das falas espontâneas que foram gravadas e transcritas foneticamente. Os processos fonológicos e a Fonologia de Geometria de Traços foram os modelos teóricos escolhidos para a análise dos dados, mas os resultados mostraram que os sujeitos não possuem déficits no nível fonológico. Além disso, foram observadas algumas variáveis extralinguísticas que revelaram a não interferência delas no processamento fonológico desses sujeitos. Verificou-se, assim, que não se confirmou a expectativa da pesquisa uma vez que se estava a favor da teoria de Croot et al. (2000), ou seja, de que os prováveis portadores de mal de Alzheimer de primeira fase apresentassem deterioração fonológica. Palavras-chave: Mal de Alzheimer. Primeira fase. Nível fonológico. Abstract: This research was aimed to assess if it is possible to create a methodology to assist in the diagnosis of Alzheimer’s disease in its early stages, when problems with speech and language appear in the phonological domain. The investigation involved bibliographical research and a case study of two subjects admitted to Bethesda, Joinville, Santa Catarina, Brazil. Patient selection was performed by healthcare professionals who examined the medical records, cranial computed tomography findings and the Mini Mental State Examinations of the patients. Afterwards, spontaneous speech material was collected, 1- *Programa de Pós-Graduação em Linguística, UFSC, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, endereço eletrônico: [email protected] SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 89 recorded and phonetically transcribed. The phonological processes and the Geometry of Phonological Features were the theoretical models selected for data analysis. However, the tests showed no phonological deficit. Besides, some extralinguistic variables were found to have no influence on the phonological processing of the subjects. Thus, the expectations of the present research were not met, because it supported the theory of Croot et al. (2000), according to which Alzheimer’s patients in the earlier stages of the disease would present phonological impairment. Key-words: Alzheimer’s disease. Early stage. Phonological level. Introdução O processo natural do ser humano é nascer, tornar-se criança, ser adolescente, ser jovem, ser adulto e, finalmente, ser idoso. É na época do envelhecimento, embora se saiba que o ser humano envelhece no decorrer das fases da vida, que se questionam as diferenças existentes de um idoso para outro idoso. Ou seja: um idoso pode ter uma vida ativa e saudável provavelmente devido à sua combinação genética, ao seu estilo de vida e ao seu ambiente, e o outro pode ser acometido por doenças, sendo levado à deterioração mais acelerada tanto mental quanto fisicamente. Das várias enfermidades que muitos idosos são acometidos, existem as demências que se iniciam gradualmente, não apresentam alterações da consciência, com exceção das fases finais, danificam a memória e outras habilidades cognitivas, causando prejuízos no convívio social e no trabalho (PESKIND; RASKIND, 1999; McRAE, 2001). Uma delas é a doença degenerativa de mal de Alzheimer. O mal de Alzheimer foi descoberto em 1906 por Alois Alzheimer. É uma doença que conduz à morte dos neurônios do cérebro do idoso. Não há critérios precisos para se realizar o diagnóstico em vida e sua cura ainda não existe. Há apenas drogas que a retardam. Os médicos já conseguem observar se o idoso, quando acometido pela doença, está passando pela primeira fase (estágio suave), segunda fase (estágio moderado) ou terceira fase (estágio avançado). O Mal de Alzheimer afeta 35 milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil, cerca de 6% da população com mais de 60 anos têm a doença (JORNAL FLORIPA, 2011). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 90 REVISTA SABERES LETRAS No estágio inicial dessa demência, há na literatura duas vertentes relacionadas ao processamento fonológico. Pesquisadores como Huff (1988), Cohn, Wilcox e Lerer (1991) e Patel e Satz (1994) realizaram estudos que apresentam que o processamento fonológico resiste intacto até o início da fase avançada. Já outros, como Croot et al. (2000) alegam que podem ocorrer distúrbios fonológicos já na fase inicial. Dentro dessa perspectiva, o presente trabalho apresentará um estudo sobre a demência: a doença degenerativa de mal de Alzheimer da primeira fase para verificar se é possível auxiliar no diagnóstico de prováveis portadores de mal de Alzheimer na primeira fase a partir dos sintomas linguísticos, tendo como foco o processamento fonológico. Este é um tema interdisciplinar - Linguística, Psicolinguística e Neurolinguística - que surgiu diante da situação do grande número de idosos que sofrem dessa patologia no mundo e da escassez de pesquisas ligadas à área de Fonologia com idosos diagnosticados como prováveis portadores de mal de Alzheimer em estágio inicial. O transtorno fonológico e a teoria dos processos fonológicos O transtorno fonológico é um desvio encontrado no sistema fonológico de um indivíduo. É identificado quando este faz substituições, omissões ou distorções dos sons da fala. Esses déficits podem advir das regras fonológicas da língua, resultantes de dificuldade cognitiva-linguística, com a percepção auditiva ou com a produção dos sons (INGRAM, 1976; AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 1994). A causa do transtorno fonológico ainda é desconhecida. No entanto, há três linhas de pesquisa para estudá-la: a descrição linguística, em que os pesquisadores usam modelos teóricos para observarem os aspectos fonológicos e fonéticos; os processos neurolinguísticos e a etiologia genética ou ambiental (SHRIBERG, 2004). Na descrição linguística, um dos modelos mais utilizados para estudar os transtornos fonológicos é o dos processos fonológicos. Foi a partir de Stampe (1973) apud Othero (2005) que a definição de processo fonológico surgiu, ou seja: SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 91 [...] um processo fonológico é uma operação mental que se aplica à fala para substituir, no lugar de uma classe de sons ou de uma sequência de sons que apresentam uma dificuldade específica comum para a capacidade de fala do indivíduo, uma classe alternativa idêntica, porém desprovida de propriedade difícil (STAMPE, 1973, p. 1). Muitas pesquisas foram e poderão ser realizadas com a teoria dos processos fonológicos, pois segundo Yavas, Hernandorena e Lamprecht (1991), Os processos fonológicos constituem um instrumento válido e confiável de análise; dão conta da descrição da fonologia em desenvolvimento e da fonologia com desvios; permitem uma comparação clara e simples entre a fonologia com desvios, por um lado, a aquisição normal e o alvo da fala adulta, por outro; facilitam o estabelecimento de metas racionais de tratamento (Yavas, Hernandorena e Lamprecht, 1991, p. 92). Na produção dos sons, das línguas naturais, muitos processos fonológicos podem ocorrer. Conforme Yavas, Hernandorena e Lamprecht (1991), estes geralmente são classificados em duas categorias: processos de estrutura silábica e processos de substituição. Os processos de estrutura silábica se subdividem em: redução de encontro consonantal, apagamentos de sílaba átona, fricativa final, líquida final, líquida intervocálica e líquida inicial, metátese e epêntese. Os processos de substituição se classificam em: desonorização da obstruinte, anteriorização, substituição de líquida, semivocalização de líquida, plosivização, posteriorização, assimilação e sonorização pré-vocálica. A fonologia de geometria de traços Segundo Clements (1985), as pesquisas relacionadas ao aspecto fonológico da fala humana tiveram outro rumo nas últimas décadas. Os linguistas começaram a visualizar os fonemas como traços. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 92 REVISTA SABERES LETRAS Até então, os fonemas, de acordo com Jakobson (1932, p. 231) apud Câmara Jr. (2001, p. 34), eram “[...] as propriedades fônicas concorrentes que se usam numa dada língua para distinguir vocábulos de significação diferente.” Um ano após, Bloomfield (1933) também definiu fonemas como: [...] traços distintivos que ocorrem em conjunto ou feixes, como o adendo: “O falante se exercitou em fazer os movimentos (entenda-se no aparelho fonador) “produtores de sons de tal maneira que os traços do fonema estão sempre presentes nas ondas sonoras e também se exercitou a só dar importância a esses traços, não tomando conhecimento da massa acústica que alcança em grosso o seu ouvido (Bloomfield, 1933, p. 79, apud, Câmara Jr., 2001, p. 34). A Fonêmica, baseada na intuição das gramáticas antigas, elaborou a teoria estruturalista, destacando o fonema. Clements (1985), por sua vez, criticou esse conceito de fonema visto como feixe, pois apresentava desorganização inerente e falta de estrutura. A Fonologia Gerativa Padrão (tipo SPE: The Sound Pattern of English de Chomsky e Halle, 1968) elaborou os traços distintivos onde os segmentos foram descritos na forma de matrizes (HYMAN, 1975; KEATING, 1998 apud CAGLIARI, 1998). Esta concepção transformou os fonemas em matrizes de traços de coluna simples e deu uma visão de representação mais clara. Uma ausência de organização interna das matrizes na Fonologia Gerativa foi encontrada por Goldsmith (1976), quando se deparou com problemas sem nenhuma perspectiva de solução ao trabalhar com línguas tonais e suas regras. Assim o pesquisador elaborou níveis em que os tons ficassem autossegmentados num nível próprio com seus devidos processos fonológicos. O nível se conecta a outros níveis por intermédio de linhas de associação e seguem princípios: princípio de não cruzamento de linhas de associação; princípio de contorno obrigatório e restrição de ligação. Assim, a Fonologia de Geometria de Trações foi introduzida por Clements em 1985. Ela faz parte das fonologias não-lineares e é baseada quase que exclusivamente na fonética articulatória. Passou por reformulações, e a última SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 93 versão, elaborada por Clements e Hume (1995), apresenta os segmentos organizados internamente e os nós hierarquicamente ordenados “[...] em que os nós terminais são traços fonológicos e os nós intermediários, classes de traços” (HERNANDORENA, 2001, p. 47). Em outras palavras, o modelo é formado por: a) nó de Raiz que representa o segmento (consoante ou vogal). É dominado por uma unidade de tempo (X) ou pelo termo mais conhecido: esqueleto; b) nós de Classe que são o nó laríngeo, o nó nasal, o nó cavidade oral (estes são ligados por linhas de associação diretamente vindas do nó de raiz), o nó ponto de Consoante (oriundo do galho do nó cavidade oral) e o nó vocálico que provém do nó ponto de Consoante. Os nós de classe têm a função de dominar grupos de elementos em regras fonológicas; c) nós Terminais que são os traços fonológicos. No português brasileiro, os traços fonológicos que aparecem são: soantes, aproximantes e vocoides (nó de raiz); glotais não-constritas, glotais constritas, sonoras (nó laríngeo); os segmentos nasais (nó nasal); contínuos (nó de cavidade oral); labiais (bilabiais e labiodentais que são anteriores), coronais (dentais, alveolares classificadas como anteriores também e palato-alveolares e palatais, como distribuídas), dorsais (velares e uvulares) (nó ponto de Consoante); labiais (em que há o arredondamento dos lábios ou labialização na pronúncia do /o/ e /u/), coronais (vogais frontais /«/, /e/ e /i/ onde a língua se posiciona como [-anterior] ou [distribuída], como no caso de /lÆ/) e dorsais (vogais posteriores /u/, /o/ e /¿/ e vogal central /a/ (nó ponto de Vogal); aberto (nó ponto de abertura de Vogal). Através da Fonologia de Geometria de Traços, é possível (pelo menos é o que propõe) se dar conta de processos fonológicos que ocorrem nas línguas naturais de forma simples, pois é comprometida com a realidade fonética em todos os seus aspectos. Assim, Cagliari (1998) expõe que, [...] o modelo opera apenas com um pequeno conjunto de processos fonológicos básicos com os quais a partir da representação da forma básica subjacente dos morfemas, chega-se à forma fonética de superfície. A primeira auto-segmentação ocorre no léxico e SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 94 REVISTA SABERES LETRAS está conectada também a outros níveis de análise, representados fundamentalmente pelas Fonologias Lexical, Métrica e Prosódica, através do eixo do esqueleto, ou seja, do eixo que marca os segmentos como unidades de tempo, concatenados linearmente (Cagliari, 1998, p. 19-20). Os processos fonológicos mais importantes abordados pela Fonologia de Geometria de Traços são: assimilação ou espraiamento, desligamento, fissão e fusão. Outros processos são: desassimilação, inserção, apagamento, metátese, redução, fortalecimento, harmonia vocálica, alongamento, formação de articulação secundária, alçamento vocálico, abaixamento, entre outros. A Fonologia de Geometria de Traços opera ainda com noções de mapeamento dos contextos, domínio, gatilho, filtro, forma default, restrições, bloqueio, transparência e opacidade, marca, condição de boa-formação, opcionalidade, elemento flutuante, entre outros (CAGLIARI, 1998). Metodologia Para verificar se é possível diagnosticar provavelmente o mal de Alzheimer na primeira fase a partir dos sintomas linguísticos, tendo como foco aspectos fonológicos, foi realizada uma pesquisa bibliográfica e, posteriormente, feito um estudo de caso. Na pesquisa bibliográfica, ateve-se em ter conhecimento sobre a doença de mal de Alzheimer e sobre como estão os estudos relacionados à área de linguagem com prováveis portadores de mal de Alzheimer. Além disso, buscou-se apresentar a definição de transtorno fonológico e expor as teorias dos processos fonológicos e geometria de traços para serem aplicadas, se possível, aos dados coletados. O estudo de caso foi realizado com dois sujeitos: A, com 83 anos de idade e B, com 86 anos de idade, residentes no Ancionato Bethesda, em Pirabeiraba, Joinville, Santa Catarina, Brasil, com a finalidade de saber se eles apresentavam déficits fonológicos. O estudo de caso foi o método de procedimento usado para se fazer generalizações quanto aos possíveis transtornos fonológicos com prováveis portadores de mal de Alzheimer de primeira fase. A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 95 Humanos da Pró-Reitoria de Pesquisa e Extensão da Universidade Federal de Santa Catarina, instituído pela Portaria nº. 0584/GR/99 de 4 de novembro de 1999, sob o processo nº. 732. A direção do Ancionato Bethesda e os responsáveis pelos sujeitos A e B assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A seleção dos sujeitos passou por várias etapas entre os meses de abril e agosto de 2010. Primeiramente, pediu-se à direção do Ancionato Bethesda se existiam idosos com a probabilidade de terem a doença de mal de Alzheimer de primeira fase. A direção apresentou dois idosos e a partir disso, começou-se o processo de seleção dos sujeitos. 1ª etapa: Primeiramente, teve-se acesso aos prontuários, pastas que contêm o histórico clínico desses sujeitos, fornecidos pelo Ancionato Bethesda. No quadro clínico do sujeito A, o que chamou a atenção foi o fato de ele ter problemas para andar. O sujeito B, por sua vez, apresentou mais sintomas, tais como: deficiência psíquica, depressão, problemas para andar e dormir, além de ser esquecido e multiqueixoso e ter dificuldade em registrar o cotidiano. Esses sinais e sintomas levaram à hipótese de que esses sujeitos poderiam ser prováveis portadores de mal de Alzheimer em fase inicial. Mas para se ter mais certeza, realizou-se uma segunda etapa. 2ª etapa: Em uma sala reservada, observou-se e conversou-se com os dois sujeitos separadamente. E realmente os sinais e sintomas apontados nos prontuários foram observados com as conversas e são características, segundo Cummings e Benson (1983), Corrêa (1996), Salmon e Bondi (1997), Anderson (1988), Caramelli e Nitrini (2001) e Rodrigues (2006), de mal de Alzheimer de fase inicial. Ou seja, observou-se que: · tinham problemas como funcionamento de memória; · tinham problemas de orientação temporal; · no processamento da linguagem, utilizavam e acessavam o léxico · · inadequadamente e possuíam pouco comprometimento na fluência da fala; possuíam poucos distúrbios emocionais como depressão e agressividade; não tinham mais iniciativa e motivação. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 96 REVISTA SABERES LETRAS Mas estas características precisavam ser analisadas por um profissional da área da saúde para saber se os sujeitos eram prováveis portadores de mal de Alzheimer de estágio inicial. Por isso, partiu-se para a terceira etapa. Simultaneamente, grosso modo, nas conversas, analisou-se que eles não apresentavam problemas fonológicos. 3ª etapa: Os sujeitos A e B foram encaminhados a dois médicos de consultórios diferentes. Na primeira consulta, o médico A fez uma explanação sobre a doença de mal de Alzheimer e logo após, conversou e consultou os sujeitos A e B separadamente. A pedido da pesquisadora e sob prescrição médica, foram solicitadas tomografias computadorizadas de crânio dos sujeitos A e B para identificar se havia a existência de alguma atrofia ou outras patologias nos cérebros deles. 4ª etapa: Os sujeitos A e B foram encaminhados ao Hospital Dona Helena, Joinville, Santa Catarina, Brasil, para realizarem as tomografias computadorizadas de crânio (TCC), usando como metodologia os cortes axiais de 3,0 mm de espessura (fossa superior) e 7,0 mm de espessura, obtidos sob orientação de radiografia digital no plano órbito-meatal (vide Anexos). 5ª etapa: As conclusões dos laudos das tomografias computadorizadas de crânio, realizadas no Hospital Dona Helena, mostraram em: · Sujeito A: · sinais de redução volumétrica dos hemisférios cerebrais e cerebelares; · hipoatenuação inespecífica da substância branca peri- · · ventricular e nos centros semi-ovais, provavelmente correspondendo a aspectos relacionados à senescência (“aging brain”) e/ou leucoaraiose; calcificações ateroscleróticas nos segmentos V4 das artérias vertebrais e nos segmentos cavernosos das carótidas internas; espessamento mucoperiosteal indicando alterações de natureza inflamatória no seio etnoidal e no seio esfenoide. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 97 · Sujeito B: · sinais de redução volumétrica do encéfalo, caracterizada por · alargamento difuso dos sulcos e cisternas encefálicas, bem como do sistema ventricular; tênue hipoatenuação inespecífica da sustância branca periventricular e nos centros semiovais, sendo os aspectos descritos, provavelmente relacionados à senescência (“aging brain”), sem outras particularidades. Os dois médicos disseram que os sujeitos A e B não apresentavam atrofias nem outras patologias no cérebro. Os resultados apenas indicaram que eles tinham problemas relacionados à senescência, ou seja, ao envelhecimento normal. De acordo com Rosa (1983), a senescência pode começar em alguns indivíduos a partir dos 50 anos e em outros, depois dos 60 anos. É caracterizada pelo declínio físico e mental, que é lento e gradual. Portanto, faz parte da fase da vida humana normal em que não ocorrem distúrbios de condutas, amnésias e perda do controle de si mesmo. O médico B, no entanto, frisou que esse tipo de exame – a TCC – não é para fornecer o diagnóstico provável da doença de Alzheimer. O teste mais indicado é o Mini-Exame do Estado Mental. 6ª etapa: O médico A, através das conversas com os sujeitos A e B e pelos sinais e sintomas registrados nos prontuários, diagnosticou-os como prováveis portadores de mal de Alzheimer em fase inicial. Já o médico B analisou o teste Mini-Exame do Estado Mental que foi aplicado aos dois sujeitos por uma terapeuta ocupacional, agente de saúde que trabalha no Ancionato Bethesda (vide Anexos). O teste Mini-Exame do Estado Mental seguido foi o de Bertolucci et al. (1994), que é adaptado à realidade brasileira. Tal teste consiste na seguinte pontuação de corte: Analfabetos: 13 pontos; Escolaridade de 1 a 8 anos incompletos: 18 pontos; 8 anos ou mais: 26 pontos. A pontuação máxima é de 30. O total de pontos do sujeito A foi de 19, e do sujeito B, 16. Tanto o sujeito A quanto o sujeito B apresentaram os escores abaixo do esperado: o sujeito A, por ter o ensino fundamental completo, e o sujeito B por ter a 4ª série do ensino fundamental. Diante desses resultados, o médico B concluiu que os dois sujeitos são prováveis portadores de mal de Alzheimer em fase inicial. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 98 REVISTA SABERES LETRAS Com o diagnóstico provável de mal de Alzheimer da primeira fase dos dois sujeitos feito pelos médicos A e B, foi realizada a coleta de dados em novembro de 2010 nas dependências do Ancionato Bethesda. A coleta consistiu de falas espontâneas. Participaram da coleta dos dados do sujeito A, a pesquisadora e o participante 1, que era quem estava auxiliando na gravação da fala. Com o sujeito B, houve a participação da pesquisadora e dos participantes 1 e 2, que também fizeram as gravações. As falas espontâneas foram gravadas via MP Player/5 para a realização da transcrição fonética e posterior análise qualitativa. Utilizou-se o Alfabeto Fonético Internacional, fonte SILDoulos IPA para a realização da transcrição fonética, sendo esta baseada conforme SILVA (2002). Duas variáveis foram propostas para serem analisadas: as variáveis linguísticas, ou seja, os dois tipos de processos fonológicos: os de estrutura silábica e os de substituição e as variáveis extralinguísticas: sexo, faixa etária, escolaridade, profissão, descendência e etnia. Análise e discussão dos dados O sujeito A mora no Ancionato Bethesda porque ficou viúvo. Ele tem 83 anos de idade, é natural de Joinville, Santa Catarina, Brasil, descendente de alemães e possui etnia branca. É pai de três filhos, trabalhou como vendedor e possui a 8ª série do Ensino Fundamental. Com a transcrição fonética da fala espontânea gravada do sujeito A, percebeuse que ele não apresenta dificuldades fonológicas nem incoerências discursivas. Ele teve problemas mais relacionados à área cognitiva. Para compreender as perguntas feitas, por exemplo, na maioria das vezes foi preciso repeti-las. Exemplo 1: Pesquisador 1: [A,, ÈnE?] [ÈkWa)tuÈzã~nuz UseÈøoR Ète)I9?] Sujeito A: [Èã~?] Pesquisador 1: [ÈkWã~tuÈza~nuz UseÈøoR Ète~I9?] Sujeito A: [oI9Ète~t«I9 ÈtRes.] No prontuário, não está registrado que ele tem problemas auditivos. Portanto, não se sabe com certeza se o constante [Èã?] é devido à surdez ou à falta de agilidade para processar a informação recebida. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 99 Outro problema registrado na fala dele foi o de não dar uma resposta adequada com relação ao que faria se tivesse determinada idade. Exemplo 2: Participante 1: [ÈnãU9, ÈnãU9.] [maI9s, ÈseU9 A, ÈsI9useÈøoä ÈfosI voU9ÇtaÈRaÈte Èla ÈseU9s ÈtRi~t«, kWaÈRe~t« Èãnuz uÈkI9useÈøoÈRia faÈzeÈRo½i?] [se~I9 Èse ve~deÈdoR, uÈkI9useÈøoä gostaÈRi« dI faÈze?] Sujeito A: [ÈeU9?] Participante 1: [fikaÈRaÈki?] Sujeito A: [fikaÈRaÈki,, ÈnE?] O sujeito A também apresentou déficits ao precisar fornecer respostas que remetiam a fatos do passado. Exemplo 3: Pesquisador 1: [tRabaÈlJo Èla a ÈkWã~tU Ète~pU?] Sujeito A: [tRabaÈlJeI9 naÈikU?] [ÈnãU9 Èp¿sU le~ÈbRa.] [ÈnãU9 Èle~bRU.] O que chamou a atenção na fala do sujeito A é a de que ele tem consciência de que está com comprometimento na memória. Exemplo 4: Sujeito A: [ÈeU9 teÈRia kIÈveR ÈkWaÈla iÈdEI9‡, maI9ÇzeU9Èto ko~a iÇdEI9« u~ÇpokU ÈfRak«,, ÈnE?] [koÈmU9E kIÈfoI9 &a, a eleI9ÈsãU9?] Analisando-se os dados da fala espontânea do sujeito A, percebeu-se que não há transtornos fonológicos indo contra a teoria de Croot et al. (2000). O que revelaram mais foi a dificuldade de lembrar os fatos passados, de processar as informações com agilidade. além de não saber responder adequadamente a certas perguntas. Vale ressaltar que as variáveis extralinguísticas do sujeito A (sexo: masculino; faixa etária: 83 anos; escolaridade: 8ª série do ensino fundamental; profissão: vendedor; descendência: alemães; etnia: branco) mostraram que não há interferência significativa nos aspectos linguísticos e cognitivos dos prováveis portadores de mal de Alzheimer de fase inicial, principalmente, no quesito transtorno fonológico. O sujeito B mora no Ancionato Bethesda. O marido, que a abandonou com três filhos, é hoje falecido. Ela tem 86 anos de idade, é natural de São Paulo, São SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 100 REVISTA SABERES LETRAS Paulo, Brasil, descendente de italianos e possui etnia branca. Sempre trabalhou no lar e cursou até a 4ª série do Ensino Fundamental. A transcrição fonética da fala espontânea gravada do sujeito B, assim como a do sujeito A, também não apresentou déficits fonológicos. Foram identificadas nos dados dele, algumas incoerências discursivas, mas que não trouxeram grandes dificuldades para a compreensão. Uma delas foi a dificuldade do sujeito B em ter acesso ao léxico adequado, dando palavras genéricas para se expressar. Exemplo 5: Participante 1: [ÈtemU9 kI ½uÇga domiÈn !] Sujeito B: [&aÇtE, aÇtEaÈg R« ÈeU9 ÈtivI ½oÈgãdU kum« ÈmosaÈi, u~neÈg siU9aÈi...] O sujeito B, ao pronunciar [u~neÈg siU9aÇi...], estava se referindo ao nome de um determinando jogo que não sabia ou não lembrava. Outro problema identificado foram as dúvidas que o sujeito B apresentou em relação a números. Não sabia mais, por exemplo, se teve sete ou três filhos. Exemplo 6: Participante 1: [IuIsÈpozU, ÈfaI9z Ète~pU ÈkI9elI faleÈseU9 oÈkI9aseÈø¿R« fiÈko s Èziø«?] Sujeito B: [ÈelI sI sepaÈRo dIÈmi~.] Participante 1: [Èa!] [ÈelI sepaÈRoÈsI.] Sujeito B: [ÈIeU9 kRiÈeI9 s Èziø« ÈsEtI ÈfilJU, Èe~...] [ÈsEtI ÈfilJU?] [ÈnãU9.] [ÈtReI9s.] O sujeito B não conseguiu mais se localizar no tempo com precisão. Teve dificuldade em resgatar o mês e o ano em que nasceu. Exemplo 7: Participante 2: [a seÈø R« naÈseU9 e)I9ÈmiU n vIÇse~tuzI vi~tII ÈtReI9s.] [ÈEÈisU?] [ÈEÇisU.] [Èdia Èo~zI dI seÈte~bRU?] [onoÈve~bRU?] Participante 1: [Èo~zI dI noÈve~bRU?] Pesquisador 1: [oU9ÈdEI9z dI noÈve~bRU?] SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 101 Participante 2: [ÈeU9 ÈseI9 ÈkI9« e)I9...] Pesquisador 1: [e)I 9noÈve~bRU.] Participante 2: [e)I9 noÈve~bRU.] Pesquisador 1: [oU9ÈE e)I9 oÈtubRU?] Sujeito B: [Èa, ÈeU9 ÈnãU9 Èle~bRU.] [Èmiø« kaÈbes« ÈnãU9 mI9aȽud« ÈmaI9s.] Além disso, o sujeito B apresentou contradições de ideias. O exemplo mostra que todas as colegas do ancionato eram amigas e, em seguida, diz que não gosta de ter amigas. Exemplo 8: Pesquisador 1: [a seÈø R« ÈnãU9 Ète)I9 neÈøumaÈmigaÈki?] Sujeito B: [Èa, pRaÈmi~ ÈsãU9 ÈtodaÈzaÈmig«s.] Pesquisador 1: [Ètod«s?] Sujeito B: [Èa, ÈeU9 ÈnãU9 Èg stU dIteÈRaÈmig«.] [maI9s ÈvaI9 faÈzeÈRuÈke?] [maI9s Ète)I9 Ƚe~tI9 kI Èg st«,, ÈnE?] Foram encontradas também algumas ocorrências características de línguas em contato (variedade sociolinguística). Como é descendente de italianos, com certeza, esse dialeto influenciou na pronúncia de [ÈtãU9] para [Çto)]. Exemplo 9: Sujeito B: [Èg stU.] [ÈnãU9ÈE &dI, dI kI voÈseI9s Èto) pe~ÈsãdU, ÈnãU9.] Verificou-se que o sujeito B demorou a lembrar os nomes de familiares. O exemplo indica que teve que fazer um esforço para se lembrar dos nomes dos três filhos, o que comprova mais uma vez o comprometimento da memória. Exemplo 10: Sujeito B: [ÈIeU9 käiÈeI9 s Èziø« ÈsEtI ÈfilJU, Èe)...] [ÈsEtI ÈfilJU?] [ÈnãU9.] [ÈtReI9s.] Participante 1: [UW....] Sujeito B: [UW, aK...] Participante 1: [aK...] Sujeito B: [ÈkWaÈlE UÈotRU?] [ÈnãU9 Èto le)ÈbRãdU ÈmaI9s.] SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 102 dIZ.] REVISTA SABERES LETRAS Participante 1: [ÈE ÈtReI9s?] Sujeito B: [ÈtReI9s.] [Z.] [ÈSamU9ÈelI9 dIZ.] Participante 1: [Z.] [W, Z IK.] Sujeito B: [UÈnomI ÈdelI ÈnãU9ÈE Z, maI9ÇzeU9 ÈSãmU Èse)pRIÇelI Algumas vezes o sujeito B demonstra que também tem consciência de que a memória dele não está mais funcionando adequadamente. Exemplo 11: Participante 1: [a seÈø R«ÈE daÈki, Èdon« B?] Sujeito B: [aÈki?] Participante 1: [ÈE!] [e)I9½o)IÈvilI?] Sujeito B: [ÈnãU9.] Participante 1: [ÈnãU9?] Sujeito B: [ÈnãU9.] [aÈki e)I9½o)I9ÇvilI, ÈnãU9.] [Èa, ÈeU9 Èto ÈFu)I9 da kaÈbes«, Èbe)I.] Os dados da fala espontânea gravada do sujeito B mostraram que não há transtornos fonológicos, portanto, também indo contra a teoria de Croot et al. (2000). Foram encontrados problemas relacionados a acesso lexical, a números, à orientação temporal, à contradição de ideias, à interferência de variedade sociolinguística e à nomeação de familiares. O sujeito B também apresentou consciência de que está tendo falhas no processamento das informações. As variáveis extralinguísticas do sujeito B (sexo: feminino; faixa etária: 86 anos; escolaridade: 4ª série do ensino fundamental; profissão: do lar; descendência: italianos; etnia: branca) também mostraram que não há interferência significativa nos aspectos linguísticos e cognitivos dos prováveis portadores de mal de Alzheimer de fase inicial, principalmente, no quesito transtorno fonológico. Conclusão Conciliar linguística, neurolinguística e psicolinguística, destacando os campos da fonética e fonologia, exige muito esforço, pois os avanços tecnológicos na medicina estão muito além dos da área da educação. Mesmo assim, teve-se o objetivo de realizar uma pesquisa para identificar problemas fonológicos com SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 103 prováveis portadores de Mal de Alzheimer em fase inicial uma vez que há poucos estudos sobre o tema. Relacionando a literatura com os dados obtidos, chegou-se a várias conclusões. Primeiramente, psicolinguistas com apoio médico devem saber distinguir bem o que é envelhecer por senescência e por demência. Para isso, os agentes de saúde devem realizar os exames necessários para diferenciar os tipos de envelhecimento. Um dos exames mais indicados, como se viu, é o MiniExame do Estado Mental em que se faz a avaliação cognitiva. Nesse exame, o profissional da área da saúde avalia qual percentual o idoso tem em relação à orientação temporal e espacial, à nomeação de objetos, à atenção, ao cálculo, à memória e à linguagem, que somados fornece um escore geral. O segundo ponto a ser elencado é o de que a tomografia computadorizada de crânio tem por objetivo identificar atrofias ou sinais de outras patologias no cérebro. No caso dos sujeitos A e B, estes não apresentaram nenhum problema cerebral neste sentido. Assim, percebeu-se que estão bem no início da demência. Em terceiro lugar, com as transcrições fonéticas das falas espontâneas gravadas ficou evidente que os sujeitos A e B não têm transtornos fonológicos, porque conseguiram fazer o mapeamento do estímulo a uma representação fonológica existente. Assim, passa-se a defender a teoria de alguns autores, tais como Huff (1988), Cohn, Wilcox e Lerer (1991) e Patel e Satez (1994), os quais alegam que o processamento fonológico na doença de Alzheimer permanece inalterável até o início da fase avançada da doença. Portanto, questionam-se os estudos de Croot et al. (2000), que acreditam que os pacientes podem ter problemas fonológicos já na primeira fase. Por isso, recomenda-se que outras pesquisas mais acuradas sejam realizadas para saber se de fato há déficits fonológicos na doença de Alzheimer na primeira fase. Como não ocorreram problemas fonológicos, não foram analisados os processos fonológicos e patológicos, e, consequentemente, não foram aplicados à Fonologia de Geometria de Traços. Os dados dos sujeitos A e B apenas revelaram que eles possuem dificuldades discursivas e de memória – sintomas da doença de Alzheimer no estágio inicial. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 104 REVISTA SABERES LETRAS Quanto às variáveis extralinguísticas, o que vale ressaltar é que o sujeito A, sendo do sexo masculino, com 83 anos de idade, com ensino fundamental completo, descendente de alemães, de etnia branca, que atuou como vendedor, teve mais dificuldade para responder as perguntas realizadas. Ele se utilizava várias vezes do [Èã?] para processar a pergunta e respondê-la. Também teve dificuldade para se lembrar dos fatos passados. O sujeito B, por sua vez, do sexo feminino, de 86 anos de idade, com ensino fundamental incompleto, descendente de italianos, de etnia branca e que sempre trabalhou como dona de casa, apresentou problemas relacionados ao acesso lexical, ao esquecimento dos fatos e dos nomes de familiares e à interferência sociolinguística. Sendo assim, as variáveis extralinguísticas não afetaram o processamento fonológico dele. A doença de Alzheimer é uma patologia neurológica ainda não bem conhecida que só pode ser diagnosticada com precisão, até os tempos atuais, após a morte do paciente por meio da biópsia ou autópsia do cérebro. Porém, com as características da doença mais os exames de rotina, clínicos, de perspectivas, os que são realizados para excluir outras patologias, avaliação do estado mental e avaliação psiquiátrica, os médicos podem fornecer um diagnóstico provável ou possível do paciente ser portador de Alzheimer ainda em vida. Entretanto, desenvolver um estudo para auxiliar profissionais da área da saúde, familiares, atendentes e pacientes da doença de Alzheimer com intuito de identificar se há transtornos fonológicos no estágio inicial é muito complexo. Através da presente pesquisa, foram encontradas dificuldades em relação à distinção entre os dois modos de envelhecer: a senescência e a demência. Por isso, a procura de dois médicos para realizar o diagnóstico foi necessária. Também houve problemas na locomoção dos dois sujeitos até os consultórios médicos e ao hospital, porque estes não conseguiam andar normalmente. Enfim, chegou-se à conclusão de que a linguística, mais especificamente as áreas de fonologia e fonética, a psicolinguística e a neurolinguística “podem” juntas contribuir para o diagnóstico dos prováveis portadores de Alzheimer em SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 105 fase inicial a partir dos sintomas linguísticos. As transcrições fonéticas das falas espontâneas gravadas que foram coletadas dos sujeitos A e B revelaram que estes não apresentaram comprometimento no processamento fonológico. Referências ANDERSON, Maria Inez Padula. Demência. In: CALDAS, Célia Pereira (org.). A saúde do idoso: a arte de cuidar. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1988. p. 84-88. AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. 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Linguagem 9 (5) – Mostre um lápis e um relógio, peça-lhe que os nomeie (2 pontos). - Peça que repita o seguinte: “nem aqui, nem ali, nem lá” (1 ponto). - Dê as 3 seguintes ordens: “Pegue esta folha de papel com a mão direita, passe a folha para a mão esquerda, coloque a folha no chão” (3 pontos). - “Leia e faça o que está escrito”: “FECHE OS OLHOS” (1 ponto). - “Escreva uma frase” (1 ponto). - “Copie este desenho” (1 ponto). Total de pontos: (19/30) Avaliação do nível de consciência: Alerta ( X ) sonolento ( ) prostrado ( ) coma ( ) Avaliadora: FMP - Terapeuta Ocupacional Observação: As respostas que o sujeito A acertou estão destacadas em itálico. Mini-exame do Estado Mental do sujeito B Máximo Orientação (1 ponto para cada resposta correta) 5 (1) Em que ano, mês, dia da semana, dia do mês, estação do ano estamos? 5 (2) Onde estamos: estado, país, cidade, rua, local? Registros (1 ponto para cada resposta correta) SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 109 3 (3) Nomeie 3 objetos: diga palavra por palavra, devagar; peça ao paciente que repita as três palavras. Então repita todas novamente, para que ele aprenda. Pente, Rua, Azul. Atenção e Cálculo (1 ponto para cada resposta correta) 5 (2) Peça ao paciente que conte de trás para frente, começando do nº 100, de 7 em 7. Pare depois da 5ª resposta. Alternativamente peça para soletrar “mundo” ao contrário. Memória (1 ponto para cada resposta correta) 3 (0 ) Peça que ele repita as três palavras. Dê um ponto para cada resposta correta. Linguagem 9 (8) - Mostre um lápis e um relógio, peça-lhe que os nomeie (2 pontos). - Peça que repita o seguinte: “nem aqui, nem ali, nem lá” (1 ponto). - Dê as 3 seguintes ordens: “Pegue esta folha de papel com a mão direita, passe a folha para a mão esquerda, coloque a folha no chão” (3 pontos). - “Leia e faça o que está escrito”: “FECHE OS OLHOS” (1 ponto). - “Escreva uma frase” (1 ponto). - “Copie este desenho” (1 ponto). Total de pontos: (16/30) Avaliação do nível de consciência: Alerta ( X ) sonolento ( ) prostrado ( ) coma ( ) Avaliadora: FMP - Terapeuta Ocupacional Observação: As respostas que o sujeito B acertou estão destacadas em itálico. Tomografia computadorizada de crânio do sujeito A SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 110 REVISTA SABERES LETRAS Tomografia computadorizada de crânio do sujeito B SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 88 a 111 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES Letras Vitória SABERES LETRAS v. 9 n.1 p. 88 a 111 111 set. / dez. 2011 112 REVISTA SABERES LETRAS REFERENCIAÇÃO: ASPECTOS DISCURSIVOS Fabiano de Oliveira Moraes∗ Virgínia Beatriz Baesse Abrahão∗∗ Resumo O trabalho objetiva, a partir de uma abordagem discursiva da referenciação com base em Foucault (1968, 1987, 2007, 2008), demonstrar o quanto o campo de saber e os mecanismos de poder formam os objetos de discurso e definem a materialização linguística. A pesquisa bibliográfica possibilitou uma conceituação de referenciação com base nas concepções de discurso foucaultianas e do seu método arqueológico e genealógico. O artigo apresenta o processo através do qual o discurso, em seu aspecto histórico e material, estabelece os objetos que podem ou não ser formados. Este trabalho tem por finalidade abrir caminho para uma análise mais profunda dos aspectos discursivos mecanismo de referenciação. Palavras-chave: Referenciação. Discurso. Foucault. Abstract: Using a discursive approach of referentiation based on Foucault (1968, 1987, 2007, 2008), this study aims to demonstrate how much the field of knowledge and the mechanisms of power form objects of discourse and define the linguistic materialization. The bibliographical investigation allowed conceptualizing referentiation based on Foucault’s concept of discourse, as well as his archeological and genealogical methods. At the same time, based on this analysis, the study presents the process through which the discourse, in its historical and material aspect, establishes the objects of discourse that may or may not be formed. This study aims at opening the way to a more in depth analysis of discursive aspects of the referentiation mechanism. Keywords: Referentiation. Discourse. Foucault. Referência e referenciação1 1- Sobre a utilização dos termos ‘referência’ e ‘referenciação’, utilizaremos, para aludirmos ao processo aqui estudado, o termo ‘referência’ no âmbito dos trabalhos de Blikstein (1985) e de Possenti (2003), em consonância com a aplicação deste termo por tais autores. No entanto, ao traçarmos considerações acerca de Koch (2002, 2006), Koch e Elias (2007), assim como de Mon� SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 113 Este artigo tem por tema a referência como mecanismo de constituição discursiva dos objetos de discurso através dos quais se pode acessar a ‘realidade’, em concordância com Possenti (2003) quando este afirma que as ciências, ideologias e culturas ‘criam’ seus próprios mundos e é através dessas ‘criações’ que se tem acesso à realidade, e que as palavras e as coisas se relacionam. No entanto, ao aludirmos ao processo que buscamos caracterizar neste trabalho a partir dos fundamentos acerca do acontecimento discursivo apresentados por Foucault (2007), faremos uso do termo referenciação, proposto por alguns linguistas em substituição à noção de referência, com a intenção de que tal processo não se confunda com a sua tradicional definição enquanto ligação entre as palavras e as coisas, posto a noção de referenciação estabelecer a definição desse processo como a ligação da palavra com os objetos não ‘do mundo’, mas do discurso, e ao mesmo tempo estabelecer-se em uma ação de constituição discursiva intersubjetiva e interdiscursiva dos objetos de discurso procedida no ato da materialização linguística. Tomamos como ponto de partida Blikstein (1985) com o intuito de apontarmos para elementos neste autor que respaldem a base teórica e metodológica que pretendemos estabelecer acerca da referência enquanto mecanismo que, extrapolando os limites do texto, remete a aspectos discursivos, interdiscursivos, históricos e epistemológicos. Buscamos no autor o conceito de referência a partir da abordagem proposta pelo mesmo, que aponta para o nível perceptivocognitivo enquanto aspecto de suma importância na fabricação do referente, atentando para a relevância, nesse processo, da prática social e da ideologia no estabelecimento de estereótipos, a partir dos quais se efetiva linguisticamente a fabricação dos objetos de discurso2. dada e Dubois (2003), faremos uso, em concordância com estas autoras, do termo ‘referenciação’ para definir esta atividade enquanto ação do sujeito levando em conta tanto os aspectos cognitivos quanto a intersubjetividade presente no contexto de seu uso. Mais adiante, no entanto, ao partir� mos para considerações acerca desse fenômeno com base nos aspectos discursivos foucaultianos, utilizaremos o termo referenciação. Com isso não estamos afirmando de nenhuma maneira que esses termos sejam sinônimos ou que ambos aceitem um só conceito. Muito pelo contrário, res� peitamos o uso feito por cada autor do termo que melhor lhe convém. Apenas optamos por utilizar o termo ‘referenciação’ para definirmos o fenômeno que no âmbito deste trabalho é por nós estu� dado e conceitualizado, segundo as razões apontadas acima. 2- Cabe ressaltar o fato de que a presença da concepção dialética entre práxis e linguagem de Blik� SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 114 REVISTA SABERES LETRAS Blikstein (1985), ao aludir ao triângulo de Ogden e Richards que estabelece em seus três vértices as relações entre significado, significante e referente (este enquanto objeto do discurso), nos chama a atenção para o fato de o referente ter sido expulso dos estudos linguísticos, nos quais se estabelece prioritariamente a relação entre significante e significado, relegando-se, pois, o referente a um espaço secundário, expulsando-o, dessa forma, de tais teorias. O descarte do referente, afirma Blikstein (1985) teve como consequência a exclusão da dimensão perceptivo/cognitiva das teorias linguísticas. O autor assegura que nessa dimensão se estabelecem as raízes da significação e que as atenções dos linguistas e semiólogos devem se voltar para o referente “[...]explorando o mecanismo pelo qual a percepção/cognição transforma o ‘real’ em referente.” (BLIKSTEIN, 1985, p. 46). Portanto, a dimensão perceptivo/cognitiva se respalda nos traços semânticos básicos desse processo, apontados por Blikstein (1985): a) a captação ou percepção da realidade e b) o reconhecimento, por ação da prática social; por isso, sintetizamo-la com o nome de percepção-cognição. Por outro lado, a expressão prática social funciona, em nosso esquema, com o sentido já consagrado no marxismo, ou seja, o de práxis: conjunto de atividades humanas que engendram não só as condições de produção, mas, de um modo geral, as condições de existência de uma sociedade (Blikstein, 1985, p. 54, grifos do autor). Se a cognição, para o autor, depende de uma prática social, a percepção se estabelece de maneiras distintas em diferentes culturas, posto que um indivíduo não pode perceber a realidade de outro modo que não o estabelecido na cultura na qual encontra-se inserido. stein (BLIKSTEIN, 1985, p. 86) ao lado do antidialetismo de Foucault fez-se no sentido de tomar por base um dos esquemas representativos elaborados por Blikstein, substituindo os elementos que dialeticamente marcam sua concepção de referência pelos aspectos discursivos destacados por Foucault que nos possibilitarão demonstrar esquematicamente o processo de referenciação com base neste autor francês. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 115 Enfim, a prática social manipula ideologicamente a percepção/cognição na dimensão pré-verbal ou para-verbal, nos ensinando a ver o mundo através dos estereótipos ou ‘óculos sociais’ por meio da constituição de conteúdos num nível sensorial e perceptivo, de uma forma independente da atuação e do contorno efetivados pela linguagem linear. No sentido de destacarmos uma importante abordagem teórico-metodológica que toma por base alguns dos aspectos delineados por Blikstein (1985), dentre outros autores, apresentamos alguns pontos da teoria da referenciação em: Koch (2002, 2006) e em Koch e Elias (2007). Nessas obras, as autoras destacam e relevam a constituição discursiva da atividade da referenciação, assim como apontam para aspectos linguístico-textuais de referenciação que possibilitam a progressão textual. Koch e Elias (2007) conceituam referenciação e progressão referencial, defendendo o uso do termo referenciação para aludir a tal atividade intersubjetiva. Denomina-se referenciação as diversas formas de introdução, no texto, de novas entidades ou referentes. […] A referenciação constitui, portanto, uma atividade discursiva. […] as formas de referenciação são escolhas do sujeito em interação com outros sujeitos, em função de um querer-dizer. Os objetos-de-discurso não se confundem com a realidade extralinguística, eles a (re)constroem no próprio processo de interação. (KOCH e ELIAS, 2007, p. 123-124, grifos das autoras) Koch (2002) afirma ainda que a reelaboração dos dados sensórios com o fim de que se apreenda e compreenda efetiva-se no cérebro e dá-se em nível discursivo obedecendo a restrições definidas não apenas por condições culturais, sociais, históricas, mas também por condições de processamento provenientes do uso da língua. Koch e Elias (2007) e Koch (2002, 2006) apontam, portanto, para o caráter discursivo da referenciação, definindo, delineando ou conceituando tais aspectos discursivos. No entanto, não obstante as autoras afirmem que a referenciação constitui uma atividade discursiva e que a reelaboração cerebral SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 116 REVISTA SABERES LETRAS de dados sensoriais se dá essencialmente no discurso obedecendo a restrições socioculturais, históricas, enfim, aos ‘óculos sociais’, efetivando-se, o referido processo, numa dimensão perceptivo/cognitiva determinada pela prática social (como aponta Blikstein (1985)) é perceptível, nesses trabalhos – devido (assim supomos) ao importante foco e direcionamento textual, interacional e cognitivista tomado pelas autoras – a ausência de elementos que (para além do fenômeno textual e dos mecanismos linguísticos) indiquem o engendramento discursivo a que se submete a dimensão semiológica oculta no âmbito da práxis. Os textos de Koch (2002, 2006) também apontam, em algumas de suas importantes colocações, para Mondada e Dubois (2003). Koch (2002, 2006) afirma, por exemplo, que Mondada e Dubois (2003) defendem a posição de que a referenciação constitui uma atividade discursiva e de que os objetos de discurso são dinâmicos, pois após serem introduzidos é possível modificá-los, desativálos, reativá-los, transformá-los, recategorizá-los, de maneira que os sentidos sejam construídos e reconstruídos por esta via no decorrer da progressão textual. Mais adiante, Koch (2002, 2006), remete-nos ao artigo de Mondada e Dubois (2003) ao referir-se à ideia de substituição da noção de referência pela noção de referenciação: A discursivização ou textualização do mundo por via da linguagem não se dá como um simples processo de elaboração de informação, mas de (re)construção do próprio real. Ao usar e manipular uma forma simbólica, usamos e manipulamos tanto o conteúdo como a estrutura dessa forma. E, desse modo, também manipulamos a estrutura da realidade de maneira significativa. E é precisamente neste ponto que reside a idéia central de substituir a noção de referência pela noção de referenciação, tal como postulam Mondada e Dubois (1995).3 (KOCH, 2006, p. 81) Mondada e Dubois (2003), tal como Koch (2002, 2006), consideram a importância dos aspectos cognitivos e intersubjetivos no contexto da construção de objetos de discurso e na categorização. As autoras afirmam que as categorias de que 3- A obra a que se refere Koch (2002 e 2006) como Mondada e Dubois (1995) corresponde à mesma a qual nos referimos como datada de 2003. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 117 lança mão o sujeito que profere o discurso são predominantemente instáveis e que sua estabilidade se dá, não pela ligação entre as palavras e as coisas, mas pelo estabelecimento social de estereótipos, propondo uma concepção de referenciação a partir da qual “[...] os sujeitos constroem, através de práticas discursivas e cognitivas social e culturalmente situadas, versões públicas do mundo.” (MONDADA E DUBOIS, 2003, p. 17). Tanto as categorias quanto os objetos de discurso, através dos quais os sujeitos percebem o mundo, possuem uma instabilidade constitutiva, não sendo, os primeiros, nem preexistentes, nem dados, mas sim elaborados na atividade discursiva denominada referenciação e transformados com base no contexto e nas negociações interativas. Não obstante seu caráter instável, as categorias, segundo as autoras, são passíveis de estabilização na forma de estereótipos provenientes de protótipos, os quais, quando compartilhados entre muitos indivíduos e com ampla distribuição social, alcançam um nível de estabilidade. “Tal protótipo compartilhado evolui para uma representação coletiva chamada geralmente de estereótipo.” (MONDADA e DUBOIS, 2003, p. 42). Ao discorrerem acerca da instabilidade das categorias, Mondada e Dubois (2003, p. 29) asseguram que “no seio das atividades discursivas, a instabilidade se manifesta em todos os níveis da organização linguística, indo das construções sintáticas às configurações de objetos de discurso”, contudo em seu texto não encontramos definições específicas acerca do que tais pesquisadoras entendem por discurso ou discursividade. As autoras apontam, por exemplo, para variações sincrônicas e diacrônicas das categorias, afirmando mesmo que a estabilidade das mesmas está relacionada muito mais aos discursos sócio-históricos e aos procedimentos culturalmente ancorados do que a alguma ligação entre as palavras e as coisas, tangenciando, neste breve comentário, a ideia de que o estabelecimento dos objetos de discurso e das categorias se dá em conformidade a aspectos mais profundos pré-estabelecidos no nível dos elementos discursivos – sociais, culturais e históricos –, no entanto não traçam considerações mais aprofundadas sobre esse tema. Por outro lado, podemos destacar de tal obra considerações relevantes no que tange ao domínio interacional e cognitivo da atividade de referenciação. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 118 REVISTA SABERES LETRAS A referenciação sob um enfoque discursivo Com base nos dados acima apresentados a partir de Blikstein (1985), Koch (2002, 2006), Koch e Elias (2007) e Mondada e Dubois (2003), destacamos a importância de se definir que aspectos discursivos poderiam estar envolvidos no processo de referenciação dentro da abordagem por nós proposta. Consideramos necessário (a esta exata altura do presente trabalho) para que nosso trabalho não careça de tais conceitos, definir discurso e os elementos a este relacionados, para então aferirmos a constituição discursiva da referenciação a partir de tais elementos. Para procedermos a essa tarefa, iniciaremos por relacionar os conceitos de língua, discurso, intersubjetividade e interdiscursividade tomando por base o conceito de língua enquanto instituição, apresentado por Saussure (2003) e retomado por Pêcheux (1997), lançando mão de Benveniste (1989, 1995), assim como de Foucault (2008) e de outras obras complementares, observando de que maneira a ênfase à língua em Saussure (2003), no início do século XX, deu lugar à teoria do discurso a partir de meados deste mesmo século. O discurso será tomado como eixo central para alinhavarmos o diálogo entre as concepções teóricas dos autores e, a partir destas, relacionarmos os conceitos ora apresentados, para, enfim, apontarmos para a presença de tais aspectos no mecanismo da referenciação. Da língua ao discurso A língua, estabelecida por Saussure (2003) como objeto científico homogêneo da Linguística enquanto ramo da Semiologia, é por ele definida como: uma parte separada e diferenciada da fala, e; uma instituição social. Esta definição excluiu tanto a fala quanto as instituições “não-semiológicas” do processo científico da Linguística. As consequências dessa dupla exclusão deram origem a complementos que reforçam e até mesmo se contrapõem às ideias de Saussure (2003), apontando, aos poucos, para as teorias acerca do discurso. Por exemplo, para que se conceba uma frase como viável ou não, é necessária a observação de sua referência ao mecanismo discursivo que possibilitou sua existência num dado enunciado. Partindo de tal indagação, Pêcheux (1997) dá o nome de processo de produção ao conjunto de mecanismos discursivos que produzem um discurso em um determinado contexto, o qual supõe duas ordens SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 119 de estudo: um pelo viés das variações semânticas, retóricas e pragmáticas sobre o “fundo invariante” da língua estabelecido pela sintaxe; outro das condições e do processo de produção do discurso, reconhecidos no papel que se dá ao contexto e à situação de produção enquanto elementos que possibilitam sua formulação e compreensão. Para que este aspecto seja mais bem elucidado, torna-se necessário averiguar algumas críticas feitas por Pêcheux (1997) à divisão proposta por Saussure (2003) entre a língua – enquanto instituição social – e as outras instituições humanas. Segundo Pêcheux (1997), sociólogos contemporâneos de Saussure já apresentavam o conceito de instituição como conjunto de ideias e atos mais ou menos impostos aos indivíduos, o que possibilitou a distinção entre a função aparente de uma instituição e o seu funcionamento implícito, fazendo cair por terra a ilusão, que aparentemente parece haver afetado Saussure, de que as instituições são funções cuja finalidade encontra-se claramente explícita. Portanto, como resultado do que precede, a língua se constitui como sistema sociológico indissociável de um mecanismo em funcionamento que determina regras de caráter nem estritamente individuais nem abrangentemente universais, mas derivadas de uma estrutura político-ideológica situada em uma dada formação social, já “[...] um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas […]” (PÊCHEUX, 1997, p. 77), situando o sujeito no interior da relação de forças opostas num dado campo político-ideológico. Desta forma, Pêcheux (1997, p. 78) busca “[...] definir os elementos teóricos que permitem pensar os processos discursivos em sua generalidade [...]”, e apresenta os fenômenos linguísticos superiores à frase com um funcionamento, não estritamente linguístico, definido a partir das condições de produção dos discursos. E supõe “[...] impossível analisar um discurso como um texto, isto é, como uma sequência linguística fechada sobre si mesma [...] é necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção.” (PÊCHEUX, 1997, p. 79). Foucault (2008, p. 8), por sua vez, relacionando o discurso à instituição, corrobora esta tese ao afirmar: [...]suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 120 REVISTA SABERES LETRAS organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (Foucault, 2008, p. 8). Foucault (2008) enumera procedimentos institucionais de controle e exclusão dos discursos. Dentre estes, são apresentados três procedimentos de exclusão externos que se cruzam, se reforçam e se compensam: a interdição, a rejeição e a vontade de verdade. A interdição, para Foucault (2008), delimita quem pode falar, o que pode ser dito e de onde se pode proferir determinado discurso. Este, por sua vez, é o que manifesta – ou oculta – o desejo, e, ao mesmo tempo, é o próprio objeto do desejo. “[...] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, e pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.” (FOUCAULT, 2008, p. 10, grifo nosso); a rejeição silencia, através de um processo de exclusão que diferencia os sensatos dos insensatos, aqueles que se encontram fora da razão estabelecida e necessária para que seja proferido o discurso, e; a vontade de verdade encontra-se mascarada pelo desenrolar da verdade que ela quer, de modo que o discurso verdadeiro já não reconhece a vontade de verdade que o perpassa. Esta última passa a ser ignorada enquanto maquinaria que exclui os que a tentam contornar e colocá-la em questão. A partir dos argumentos supracitados que definem o discurso, buscaremos definições e conceituações de intersubjetividade em Benveniste (1995) seguidas de considerações de Pêcheux (1997) e Foucault (2008) acerca desse mesmo tema, para que mais adiante possamos acrescentar tais aspectos discursivos na abordagem de referência proposta neste trabalho. Intersubjetividade: do ‘eu’ e o ‘tu’ à rarefação do sujeito Ao estabelecer a linguagem como aquilo que habilita a palavra a assegurar a comunicação, Benveniste (1995) afirma categoricamente: “É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ‘ego’.” (BENVENISTE, 1995, p. 286, grifos do autor). A subjetividade é estabelecida pelo autor como a capacidade de: o locutor se propor enquanto ‘sujeito’, e; a SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 121 linguagem, nesse processo, emergir no ser. O fundamento dessa subjetividade, estabelecida no exercício da língua, é determinado pela ‘pessoa’ enquanto status linguístico constituído pelo diálogo ao se experimentar, em contraste, a consciência de si: A linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como eu no seu discurso. Por isso, eu propõe outra pessoa, aquela que, sendo embora exterior a mim, torna-se o meu eco – ao qual digo tu e que me diz tu. A polaridade das pessoas é na linguagem a condição fundamental [...] (BENVENISTE, 1995, p. 286, grifos do autor) Esta polaridade, por sua vez, não tem o significado de igualdade, mas de complementaridade. Benveniste (1995) afirma ainda que o discurso, em sua instância, constitui todas as coordenadas que fundamentam o sujeito. E conclui o seu texto apresentando a intersubjetividade como condição única a possibilitar a comunicação linguística. Pêcheux (1997), por sua vez, faz alusão à intersubjetividade enquanto elemento constitutivo de qualquer discurso, ao dizer que o orador - sem abandonar o papel de orador – experimenta, de uma certa forma, o lugar do ouvinte, imaginando e precedendo o ouvinte onde este o espera, antecipando, em alguns casos, até mesmo se o ouvinte é capaz de prever se o orador sabe onde o ouvinte o espera. Foucault (2008), por outro lado, apresenta a intersubjetividade através do seu conceito de rarefação e descentramento do sujeito. Para compreendermos este conceito, necessário se faz que busquemos, mais adiante, algumas considerações em Foucault (1968, 2007). Foucault (1968) anuncia, em sua arqueologia das ciências humanas, o descentramento do homem a partir da constituição deste enquanto objeto das ciências humanas positivistas e, ao mesmo tempo, sujeito do saber. O homem, estabelecido enquanto sujeito vivo, falante e trabalhador fadado à finitude, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 122 REVISTA SABERES LETRAS passa a ser alvo de um poder, estabelecido em práticas como a psiquiatria, a medicina, a economia, a mídia, como afirma Navarro-Barbosa (2004). Para ele, Foucault anuncia não o desaparecimento do sujeito, mas de uma subjetividade fundadora. Para o autor francês, portanto, o sujeito emerge como uma dispersão por ser uma pluralidade de posições e, ao mesmo tempo, uma descontinuidade de funções. A rarefação do sujeito é reforçada por Foucault (2008) quando o mesmo apresenta os procedimentos que determinam essa rarefação: rituais, sociedades do discurso, doutrinas e apropriação social dos discursos. Para o autor, enquanto os rituais definem a qualificação necessária aos indivíduos que falam, determinando, a estes, papéis pré-estabelecidos, as sociedades do discurso conservam e produzem, a partir de regras, espaços fechados de circulação e distribuição dos discursos. As doutrinas, por sua vez, difundem-se através da partilha de um conjunto de discursos ao requererem como condições a produção desses discursos, o reconhecimento de verdades pré-estabelecidas e o acatamento de certas regras, sujeitando os sujeitos que falam aos discursos e os discursos ao grupo de indivíduos que falam. A apropriação social dos discursos, por fim, estabelece politicamente a manutenção ou a modificação da apropriação de discursos, com os saberes e poderes inerentes aos mesmos (o último dos procedimentos é exemplificado pelo autor através da educação). Estes procedimentos, como afirma Foucault (2008), dão ao discurso o atributo de acontecimento discursivo e não de criação, apontando (ao lado dos procedimentos internos de exclusão que serão apresentados adiante) tanto para os processos de intersubjetividade subjacentes às práticas discursivas, quanto para os mecanismos de interdiscursividade. Cardoso (2003) afirma a esse respeito: Os elementos do interdiscurso são reinscritos no discurso do sujeito sob a forma de ‘pré-construído’, que impõe a ‘realidade’ sob a forma da universalidade (‘mundo das coisas’). Numa operação de articulação, o falante seleciona no interior de uma formação discursiva formas e sequências que se encontram em relação de paráfrase. Pelo viés dessa operação de articulação, é ocultada do sujeito a sua subordinação SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 123 à formação discursiva que o determina. Ele ‘esquece’ a relação com a formação discursiva. Essa operação de ‘selecionar’ dá ao sujeito a ilusão de que o sentido do seu discurso se dá pela co-referência dos elementos selecionados, ou seja, no intradiscurso, e não pela referência a uma formação discursiva, por sua vez determinada pelas formações ideológicas. ‘Esquecendo’ a relação com a formação discursiva, o sujeito tem a ilusão da novidade, de que está realmente criando coisas novas. O processo de referência, que se dá com relação a uma formação discursiva, é apagado de tal forma que o que de fato aparece como evidência é o processo de co-referência no interior do discurso. [...] Com o advento da enunciação, a referência foi reintegrada enquanto um valor legítimo da linguística, como parte integrante da enunciação, mas, […] a enunciação foi pensada como ato de um sujeito-locutor, fora das coordenadas históricas do discurso, o que acabou por comprometer o conceito de referência adotado (Cardoso, 2003, p. 132, grifos da autora). Interdiscursividade Os procedimentos de rarefação do sujeito e de exclusão internos, apresentados por Foucault (2008), apontam tanto para a pluralidade de posições e descontinuidade de funções do sujeito, como para a relação entre enunciados dentro de uma prática discursiva e a relação desses enunciados com elementos de ordem extra-linguística. São três os procedimentos internos de exclusão apresentados pelo autor: comentário, autor, e disciplinas. Por ‘comentário’, Foucault (2008) entende uma retomada de outros textos que permite a construção de novos discursos. Este comentário é limitado pelo texto primário que lhe deu origem e desloca-se deste, embora nunca se lhe escape. Consiste em dizer além, falando o mesmo, “dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 124 REVISTA SABERES LETRAS não havia sido jamais dito” (FOUCAULT, 2008, p. 25). No comentário, o acaso dá lugar à repetição. Com relação ao segundo procedimento interno, Foucault (2008), ao afirmar que o discurso cria-se a si mesmo, nega o ‘autor’ como indivíduo falante, mas o apresenta como “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência” (FOUCAULT, 2008, p. 26). A ‘disciplina’, por fim, opõe-se ao ‘comentário’ ao formular novas proposições, e ao ‘autor’ ao construir, independente dele, as normas do jogo. Ela não é a soma das verdades, embora delineie o horizonte teórico em que uma proposição pode se inscrever. “A disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras” (FOUCAULT, 2008, p. 36). Acerca da interdiscursividade, Pêcheux (1997), por seu lado, defende que o discurso [...] deve ser remetido às relações de sentido nas quais é produzido: assim, tal discurso remete a outro, frente ao qual é uma resposta direta ou indireta, ou do qual ele ‘orquestra’ os termos principais ou anula os argumentos. Em outros termos, o processo discursivo não tem, de direito, início: o discurso se conjuga sempre sobre um discurso prévio, ao qual ele atribui o papel de matéria-prima, e o orador sabe que quando evoca tal acontecimento, que já foi objeto de discurso, ressuscita no espírito dos ouvintes o discurso no qual este acontecimento era alegado, com as ‘deformações’ que a situação presente introduz e da qual pode tirar partido (Pêcheux, 1997, p. 77). Pêcheux faz alusão ao que poderíamos apontar como interdiscurso em sua obra Papel da memória, conforme podemos observar em Navarro-Barbosa (2004, p. 120): “[...] a ‘memória discursiva’ deve ser compreendida como um conjunto de traços discursivos que acionam a memória mítica, a memória social inscrita em práticas e a memória que o historiador constrói.” A definição pecheautiana de memória discursiva, apresentada por Navarro-Barbosa (2004), pode se assomar à definição de Cardoso (2003) que aponta para o papel da memória discursiva no SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 125 processo enunciativo. Tal conceito é pela autora tomado como “[...] estruturação de materialidade discursiva complexa e estendida numa dialética de repetição e de regularização.”(CARDOSO, 2003, p. 133). Apontando para Pêcheux, em sua conceitualização de tal termo, a autora afirma que o novo surge, nesse contexto, da relação entre o pré-construído e o acontecimento. O conceito pecheautiano de ‘memória discursiva’, tal como o conceito foucaultiano de ‘arquivo’, sobre o qual discorreremos adiante, apontam para o caráter discursivo da referenciação. O aspecto interdiscursivo da referenciação é salientado na abordagem linguístico-textual da referenciação quando Koch (2002) considera que, se a referência processada no desenrolar do discurso constrói aquilo a que remete, a discursivização se dá como processo de reconstrução do real. E como o uso e a manipulação de uma forma simbólica coincidem com a manipulação da realidade de forma significativa, os interlocutores, nesse processo, realizam escolhas de acordo com os meios de expressão oferecidos pela língua. A autora afirma que a interpretação de determinada expressão de caráter referencial anafórico, pronominal ou nominal, consiste na localização do objeto ou de uma informação introduzida anteriormente na ‘memória discursiva’. A respeito dessa ‘memória discursiva’, ou ‘modelo textual’, Koch (2002, 2006) afirma, remetendo a Apothelóz e Reichler-Béguelin, que tal ‘memória compartilhada’ é uma representação construída e alimentada pelo discurso. A autora afirma ainda que: Tal representação – a memória discursiva (Berrendonner e Reichler-Béguelin, 1989) – tem recebido os mais variados nomes na literatura, como, por exemplo, esquematização (Grize, 1982), modelo de contexto (Bosch, 1983; Van Dijk, 1994, 1997), modelo de discurso (Cornish, 1987), fio ou corrente do discurso (Givón, 1983), modelo mental (Johnson-Laird, 1983; Garnham e Oakhill, 1990), representação do discurso (Brown e Yule, 1983), entre outras [...] (KOCH, 2006, p. 80) Para melhor compreendermos sua definição, observamos que, relacionados à construção da ‘memória discursiva’ ou modelo textual, Koch (2002) apresenta três princípios de referenciação: a ativação, através da qual um novo referente SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 126 REVISTA SABERES LETRAS textual é introduzido em uma locação cognitiva na ‘memória discursiva’ do interlocutor; a reativação, pela qual um nódulo anteriormente introduzido é novamente ativado na memória operacional; de-ativação, introdução de um novo objeto-de-discurso, enquanto o objeto substituído, retirado de foco é deslocado para um endereço cognitivo no ‘modelo textual’, ou seja, na ‘memória de trabalho’. Portanto, a partir dessa evidente distinção entre o termo ‘memória discursiva’ em tais autoras e o conceito pecheautiano de ‘memória discursiva’ ou o conceito foucaultiano de ‘arquivo’, verificamos que a concepção de discurso defendida por Koch (2002, 2006), Koch e Elias (2007) e Mondada e Dubois (2003) aponta para algo que, ao nosso ver, encontra-se em um nível muito mais textual do que propriamente (dentro da nossa abordagem) discursivo. Entretanto, em outra passagem de seu trabalho, dando um enfoque que consideraríamos mais próximo do que defendemos como discursivo no âmbito da nossa abordagem, Koch e Elias (2007, p. 125) salientam pontualmente o caráter interdiscursivo da referenciação, ao mesmo tempo em que apontam para seu aspecto interacional: Nessa construção intervêm não somente o saber construído linguisticamente pelo próprio texto e os conteúdos inferenciais que podem ser calculados a partir dos elementos nele presentes (graças aos conhecimentos lexicais, enciclopédicos e culturais e aos lugares-comuns de uma dada sociedade), como também os saberes, opiniões e juízos mobilizados no momento da interação autor - texto - leitor (Koch e Elias, 2007, p. 125). Nesse mesmo viés, Mondada e Dubois (2003, p. 40) afirmam, a respeito da memória, que “[...] os sujeitos possuem estruturas cognitivas, notadamente memoriais, que permitem dar uma estabilidade a seu mundo, assim como procedimentos sistemáticos para organizar a co-construção dos objetos de discurso.” Apontamos e salientamos essas diferenças de enfoque com a intenção de SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 127 observarmos, a partir da abordagem discursiva por nós assumida, a relevância de se atentar para tais elementos discursivos para uma melhor compreensão acerca do fenômeno da referenciação. Apresentados tais aspectos discursivos, retomamos a referência. Como pudemos observar, a concepção discursiva da referência, apoiada nos aspectos discursivos apresentados com base em Pêcheux (1997) e Foucault (2008), e exemplificada metodologicamente por Cardoso (2003), não considera a referência como uma relação direta das palavras com as coisas, com o mundo, com o ‘real’, mas sim com um ‘real’ trabalhado e transformado pela linguagem, estabelecido discursivamente. Devendo-se tal estabelecimento e construção (assim como postulam Mondada e Dubois (2003), Koch (2002, 2006) e Koch e Elias (2007)) aos aspectos cognitivos, intersubjetivos e contextuais, e constituindo tal mecanismo (que por todas as razões aqui ressaltadas denominaremos ‘referenciação’ e não mais ‘referência’), sem sombra de dúvidas, uma atividade discursiva. Na próxima seção buscamos apontar para os elementos discursivos em Foucault (2007) com a intenção de verificarmos se a sua concepção de formação de objetos de discurso constitui o que poderíamos chamar de processo de referenciação. Consideramos, ao desempenharmos essa tarefa, que o autor francês desenvolveu uma teoria do discurso respeitável e tangenciou, senão esmiuçou, o processo de referenciação, ao discorrer acerca da formação dos objetos de discurso. O acontecimento discursivo em Foucault Foucault (2007) norteia suas considerações acerca do discurso a partir da necessidade premente de restituir a singularidade de acontecimento ao enunciado, posto que o mesmo, enquanto acontecimento, não pode ser esgotado totalmente pela língua, tampouco pelo sentido. Portanto, na tarefa de descrever os fatos discursivos, faz-se necessário delinear outras unidades que se relacionam com determinado enunciado em questão, efetivando uma análise da coexistência, do funcionamento mútuo e da determinação recíproca entre um dado enunciado e o seu jogo de relações. “Relações entre os enunciados […]; relações entre os grupos de enunciados assim estabelecidos […]; relações entre enunciados ou grupos de enunciados e acontecimentos de uma ordem SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 128 REVISTA SABERES LETRAS inteiramente diferente (técnica, econômica, social, política)” (FOUCAULT, 2007, p. 32). Um conjunto de enunciados, afirma Foucault (2007), se estabelece, pois, quando tais enunciados, mesmo que dispersos no tempo ou distintos em forma, se referem a um mesmo objeto. O campo dos acontecimentos discursivos, em compensação, é o conjunto sempre finito e efetivamente limitado das únicas sequências linguísticas que tenham sido formuladas; elas bem podem ser inumeráveis e podem, por sua massa, ultrapassar toda capacidade de registro, de memória, ou de leitura: elas constituem, no entanto, um conjunto finito. (FOUCAULT, 2007, p. 30) Em virtude desses pressupostos, a análise arqueológica de Foucault (2007) coloca uma questão fundamental acerca do acontecimento discursivo: “[...] como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar?” (FOUCAULT, 2007, p. 30). Enfim, com o intuito de definir acontecimento discursivo, Foucault (2008) afirma: Certamente o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem qualidade, nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos. Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade que ele se efetiva, que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais; não é o ato nem a propriedade de um corpo; produz-se como efeito de e em uma dispersão material. (FOUCAULT, 2008, p. 57-58) Foucault (2007), dessa forma, isola o enunciado enquanto unidade do discurso estabelecida entre a língua (enquanto sistema de regras), e o corpus (enquanto SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 129 discurso pronunciado). O enunciado é, portanto, descrito em suas condições de possibilidade e em seu caráter singular. A partir do que consideramos acima, podemos inferir que a materialidade é condição imprescindível para que uma sequência linguística possa ser considerada um enunciado. O regime de materialidade do enunciado obedece, dessa maneira, a ordem da instituição, assegura Navarro-Barbosa (2004, p. 111): “[...] é a relação entre prática discursiva e instituição que responde pela materialidade do enunciado, o que requer que se considere o discurso não como um conjunto de signos, mas como uma prática que abarca regras determinadas historicamente.” Cardoso (2003, p. 132), respalda tal visão: “A formação discursiva é histórica e a materialidade de seus enunciados é de ordem institucional.” Por outro lado, o enunciado, enquanto acontecimento, está ligado tanto à escrita ou à articulação da fala, ou seja, à materialização do mesmo, quanto a enunciados que lhe são co-laterais, que o seguem e que o precedem, remanescentes, estes últimos, no campo da memória, afirma Foucault (2007). Nesse contexto, é o arquivo que define o que pode ser dito e o que permanece ou se esvai dentre os tantos acontecimentos discursivos. O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas […] se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas (FOUCAULT, 2007, p. 147). O arquivo, ao mesmo tempo em que determina o sistema de enunciabilidade do enunciado-acontecimento, é o sistema de funcionamento que atualiza, faz emergir ou torna inertes o enunciado-coisa. Para almejarmos uma maior compreensão do espaço no qual se constitui o enunciado, apontamos em Foucault (2007) para a definição de formação discursiva enquanto um sistema de dispersão no qual se pode detectar uma regularidade SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 130 REVISTA SABERES LETRAS nos tipos de enunciação, conceitos, escolhas temáticas e objetos. O autor utiliza o termo formação discursiva com o intuito de evitar palavras já carregadas de condições inadequadas para designar essa dispersão “[...] tais como ‘ciência’, ou ‘ideologia’, ou ‘teoria’, ou ‘domínio de objetividade’” (FOUCAULT, 2007, p. 43). As regras de uma formação, por sua vez, são as condições a que os elementos de uma formação discursiva – sejam eles: tipos de enunciação, conceitos, temas, objetos – estão submetidos às suas condições de existência, coexistência, manutenção, modificação e desaparecimento. No que tange à formação de objetos de discurso, Foucault (2008) afirma4: As condições para que apareça um objeto de discurso, as condições históricas para que dele se possa “dizer alguma coisa” e para que dele várias pessoas possam dizer coisas diferentes, as condições para que ele se inscreva em um domínio de parentesco com outros objetos, para que possa estabelecer com eles relações de semelhança, de vizinhança, de afastamento, de diferença, de transformação – essas condições, como se vê, são numerosas e importantes. Isto significa que não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção ou tomar consciência, para que novos objetos logo se iluminem e, na superfície do solo, lancem sua primeira claridade. […] o objeto […] existe sob as condições positivas de um feixe complexo de relações. Essas relações são estabelecidas entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamento, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação, modos de caracterização; e essas relações não estão presentes no objeto […] elas não definem a constituição interna do objeto, mas 4- Com a intenção de apresentarmos uma definição da formação de objetos de discurso a partir da prática discursiva, tomaremos, em Foucault (2007), algumas citações mais longas para que, a partir das considerações diretas do autor acerca da formação de objetos de discurso, prática discursiva e discurso, as quais ficarão registradas nesse trabalho, não tenhamos a infelicidade de deturpá-las ou alterá-las sobremaneira, imbuídos que estaríamos da difícil tarefa de sintetizar suas ideias em uma paráfrase. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 131 o que lhe permite aparecer, justapor-se a outros objetos, situar-se em relação a eles, definir sua diferença, sua irredutibilidade e, eventualmente, sua heterogeneidade; enfim, ser colocado em um campo de exterioridade (FOUCAULT, 2008, p. 49-51). A formação de objetos de discurso se faz em meio a essa intrincada rede de relações estabelecidas em um campo que abarca todos os seus elementos: a prática discursiva. Para Navarro-Barbosa (2004, p. 108), “um dos aspectos que marca a novidade da A arqueologia do saber em relação a As palavras e as coisas é a substituição da noção de episteme pelo conceito de prática discursiva.” O discurso é concebido como prática discursiva, encontrando-se, como nos mostra a análise arqueológica de Foucault (1968, 2007) no espaço entre a estrutura: as regras da língua, e o acontecimento: aquilo que é dito. Esse discursoacontecimento é o que funda e constitui a verdade. Ao conceituar prática discursiva, o autor francês afirma: Finalmente, o que se chama “prática discursiva” pode ser agora precisado. Não podemos confundi-la com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula uma idéia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser acionada em um sistema de inferência; nem com a “competência” de um sujeito falante, quando constrói frases gramaticais; é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa. (FOUCAULT, 2007, p. 136) Para compreendermos melhor a relação entre a formação de objetos de discurso e a prática discursiva apontaremos para um trecho da obra na qual o autor apresenta considerações acerca do ‘discurso’ lançando mão de ambos os conceitos acima descritos. […] gostaria de mostrar que os ‘discursos’, tais como podemos ouvi-los, tais como podemos lê-los sob a forma de texto, não são, como se poderia esperar, um SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 132 REVISTA SABERES LETRAS puro e simples entrecruzamento de coisas e palavras: trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida das palavras; gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que analisando os próprios discursos, vemos desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. Essas regras definem não a existência muda de uma realidade, não o uso canônico de um vocabulário, mas o regime dos objetos. ‘As palavras e as coisas’ é o título – sério – de um problema; é o título – irônico – do trabalho que lhe modifica a forma, lhe desloca os dados e revela, afinal de contas, uma tarefa inteiramente diferente, que consiste em não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais do que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse ‘mais’ que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever. (FOUCAULT, 2007, p. 54-55, grifo nosso) O autor aponta para a obra As palavras e as coisas nas considerações supracitadas acerca do ‘discurso’ ao considerar a seriedade e a ironia presentes em tal trabalho que, deslocando os dados nos apresenta uma tarefa distinta a se proceder para compreender o processo de estabelecimento dos objetos de discurso a partir das práticas discursivas. No entanto, ao apontarmos para aspectos apresentados por tal obra, não poderíamos deixar de ressaltar os processos de vigilância e punição predominantes em cada período, pois, como ressalta Foucault (1987), em Vigiar e punir, é esse mecanismo de poder o que produz tanto o sujeito SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 133 quanto os objetos de discurso, enfim, é ele o que produz a realidade, efetivando, portanto, a referenciação5: O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação ‘ideológica’ da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder [...]. Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele ‘exclui’, ‘reprime’, ‘recalca’, ‘censura’, ‘abstrai’, ‘mascara’, ‘esconde’. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção. (FOUCAULT, 1987, p.161) Em suma, a referenciação, tomada neste artigo enquanto formação dos objetos de discurso que estabelecem a relação entre o linguístico e o extralinguístico, apresenta-se, em Foucault (2007, 2008), no nível da determinação da possibilidade de surgimento, transformação, dispersão e acumulação dos objetos de discurso, constituídos nos enunciados dispostos em dada formação discursiva, determinados historicamente a partir das relações estabelecidas entre as instituições sociais, econômicas, políticas, pessoais e discursivas, numa dada episteme, levando-se em conta os mecanismos de poder e vigilância e os procedimentos de controle do discurso e de rarefação do sujeito que fala. Referências BENVENISTE, Émile. O aparelho formal da enunciação.In: ______. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989. ______. Da subjetividade na linguagem. In: ______. Problemas de linguística geral I. Campinas: Pontes, 1995. 5- Foucault (2007) não considera equivalentes os termos ‘objeto de discurso’ e ‘referente’. Em tal obra, o autor francês afirma que se, por um lado, uma proposição estabelece relação com um referente para que lhe possa ser atribuído um valor de verdade, por outro lado o objeto de discurso é função derivada do enunciado. No entanto, consideraremos o ‘objeto de discurso’ de Foucault equivalente ao ‘referente’ constituído discursivamente no processo de referenciação, com base nos conceitos utilizados por Koch, Mondada e Dubois. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 134 REVISTA SABERES LETRAS BLIKSTEIN, Isidoro. KasparHauser ou a fabricação da realidade. São Paulo: Cultrix, 1985. CARDOSO, Silvia Helena Barbi. A questão da referência: das teorias clássicas à dispersão dos discursos. Campinas, SP: Autores Associados, 2003. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Lisboa: Portugália Editora, 1968. ______. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987. ______. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. ______. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970.São Paulo: Ed Loyola, 2008. KOCH, IngedoreGrunfeld Villaça. A construção de objetos-de-discurso. Revista Latinoamericana de Estudios Del Discurso, v. 2, n. 1, Caracas: Editorial Latina, p. 7-20, 2002. ______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2006. KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vania Maria. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2007. MONDADA, Lorenza e DUBOIS, Danièle. Construção dos objetos de discurso e categorização: uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, Mônica Magalhães; RODRIGUES, Bernadete Biasi; CIULLA, Alena(org.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. NAVARRO-BARBOSA, Pedro. O acontecimento discursivo e a construção da identidade na História. In: ______; SARGENTINI, Vanice (orgs.) Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder e subjetividade, São Carlos: Claraluz, 2004. PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, F.; HAK, T. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 135 Por uma análise automática do discurso: Uma introdução à obra de Michel Pêcheux, Campinas: Ed da Unicamp, 1997. POSSENTI, Sírio. Prefácio. In: CARDOSO, Silvia Helena Barbi. A questão da referência: das teorias clássicas à dispersão dos discursos. Campinas, SP: Autores Associados, 2003. SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2003. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 112 a 135 set. / dez. 2011 136 REVISTA SABERES LETRAS A REPRESENTAÇÃO DAS ÁREAS DE LETRAS E BIOLOGIA EM DUAS NOTÍCIAS DA MÍDIA ONLINE Fátima Andréia Tamanini-Adames1* Resumo Nesta pesquisa, inserida na abordagem da Análise Crítica do Discurso, verificamos como a área de Letras está representada em relação à área de Biologia, através da inclusão e exclusão de seus profissionais, em duas notícias oriundas da mídia online. Para tanto, no nível ideacional (HALLIDAY, 2004), o qual está relacionado a significados textuais representacionais (FAIRCLOUGH, 2000, 2001, 2003), investigamos elementos da estrutura semântica de dois textos valendo-se da Teoria da Representação dos Atores Sociais proposta por van Leeuwen (1997). Os resultados mostram que, enquanto a notícia de Biologia traz vozes de cientistas, estes incluídos de diversas maneiras, a notícia de Letras traz vozes não pertencentes à sua área do conhecimento, e seus legítimos representantes sofrem uma exclusão radical. O maior interesse na circulação de discursos voltados para a área biológica, bem como a grande inclusão de seus profissionais na mídia, pode ser explicado pelo que Foucault chama de “biopolítica”. Palavras-chave: Mídia. Teoria da Representação dos Atores Sociais. Análise Crítica do Discurso. Abstract: In this research, inserted in the approach of Critical Discourse Analysis, we verify how the field of Letters is represented in relation to the field of Biology, through the inclusion and exclusion of its professionals, in two news from online media. For this, at ideational level (HALLIDAY, 2004), which is related to textual representational meanings (FAIRCLOUGH, 2000, 2001, 2003), we investigate elements of the semantic structure of the two texts by making use of the theory of the Representation of Social Actors proposed by van Leeuwen (1997). The results show that, while the Biology’s news brings voices of scientists, these included in a variety of ways, the Letters’ news brings 1- * Mestre em Letras - Estudos Linguísticos - UFSM (Universidade Federal de Santa Maria, San� ta Maria, RS, Brasil), pesquisadora UFSM/Labler (Laboratório de Ensino e Pesquisa de Leitura e Redação, coordenado pela professora Dr. Désirée Motta-Roth) – [email protected]. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 136 a 153 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 137 voices outside its field of knowledge, and its legitimate representatives undergo a radical exclusion. The greatest interest in the circulation of speeches directed to the biological field, as well as the large inclusion of its professionals in the media, can be explained by that Foucault calls of “biopolitics”. Keywords: Media. Theory of the Representation of Social Actors. Critical Discourse Analysis. Nota introdutória Com o objetivo de verificar como são representadas áreas do conhecimento diferentes, analisamos e comparamos duas notícias oriundas da mídia online, uma referente à área de Letras e outra à área de Biologia. Segundo Guimarães (2001b, p. 8), tanto a mídia quanto os órgãos do Estado têm uma concepção de ciência que não legitima o campo das Ciências Humanas e Sociais, este exemplificado nesta pesquisa pela área de Letras, refletindo na maciça presença de artigos sobre saúde. Conforme Dosse (2007a, p. 430), o filósofo Michel Foucault apontou que a Biologia permitiu o surgimento da moderna medicina no século XIX, sendo os temas médicos amplamente noticiados. Revel (2005, p. 26) diz que, para Foucault, a noção de “biopolítica” aparece com o nascimento do Liberalismo, entendido como um exercício governamental “que tende a maximizar seus efeitos, reduzindo ao máximo seus custos”. Ao contrário, em se tratando da área de Letras, Motta-Roth (2009a, p. 136) ressalta que, além de haver uma “quase inexistência de notícias que popularizem conhecimento/ciência”, o tema é diversamente tratado. Então, podemos perguntar como a área de Letras sobrevive se não for divulgada e representada como outras áreas, a exemplo da área das ciências biológicas. Nesta análise, que se insere na abordagem da Análise Crítica do Discurso (doravante ACD), investigamos e descrevemos elementos da estrutura semântica de duas notícias oriundas da mídia online em termos de significado textual representacional, baseando-se em Fairclough (2000, 2001, 2003) e na Teoria da Representação dos Atores Sociais proposta por van Leeuwen (1997). Assim, na primeira parte deste trabalho, definimos nosso campo de investigação: SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 136 a 153 set. / dez. 2011 138 REVISTA SABERES LETRAS a representação das áreas de Letras e Biologia, através da inclusão e exclusão de seus profissionais nas notícias. Na sequência, revisamos a teoria aplicada ao corpus de análise, sistematizamos a metodologia e discutimos os dados levantados. Áreas de Letras e Biologia na mídia De acordo com Charaudeau (2009, p. 114), a comunicação midiática realiza-se em um duplo processo de “transformação”, acontecimento em estado bruto para estado construído, e “transação”, construção da notícia em função da instância receptora e reinterpretante, que se inscreve num “contrato que determina as condições de encenação da informação, orientando as operações que devem efetuar-se em cada um desses processos”. Foucault é considerado por Fairclough (2001, p. 23-24) uma influência destacada no desenvolvimento da análise do discurso como forma de análise social, ressaltando a importância das tecnologias em formas modernas do poder e suas manifestações na linguagem. Conforme Guimarães (2009, p. 1), o domínio da ciência e da tecnologia tem hoje um lugar fundamental na vida das pessoas, que esperam delas o bem-estar, a cura, a diversão, o trabalho, etc. e, conforme Waldenfels (2006, p. 249), de acordo com Foucault, “trabalho, vida e linguagem” são os três poderes da modernidade, normativos e determinantes da história “da qual o homem tenta em vão tornar-se senhor”. A “ordem do discurso”2 de um período particular possui uma “função normativa e reguladora e coloca em funcionamento mecanismos de organização do real por meio da produção de saberes, de estratégias e de práticas” (REVEL, 2005, p. 37). Assim, conforme Fairclough (2001, p. 65-66), para Foucault, os objetos de conhecimento são “as entidades que as disciplinas particulares ou as ciências reconhecem dentro de seus campos de interesse e que elas tomam como alvos de investigação”, como o discurso da mídia. Segundo Fairclough (2001, p. 21), o “discurso” é amplamente utilizado no trabalho de Foucault, “como referência aos diferentes modos de estruturação 2- Cf. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronun� ciada em 2 de dezembro de 1970. 20ª ed. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. Campi� nas: Edições Loyola, 2010. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 136 a 153 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 139 das áreas de conhecimento e prática social”. De acordo com Motta-Roth (1995, p. 203), “a cultura constrói discursos em resposta a condições epistêmicas3 específicas da disciplina” e, para a autora (2009b), a sociedade só apoiará pesquisas em áreas construídas discursivamente pela mídia como relevantes. Conforme Guimarães (2009, p. 12-13), uma “concepção empirista” de ciência tem sustentado tanto a posição do Estado quanto da mídia, fazendo com que as Ciências Humanas não sejam pensadas como ciência, diz o autor (2001a, p. 76). Mas, para Motta-Roth (2009a, p. 133), qualquer área do conhecimento pode ser representada cientificamente, “contanto que se garantam a qualidade e a consistência da observação, da reflexão e da explanação do fenômeno”. Foucault, de acordo com Revel (2005, p. 37), acredita que o discurso designa um conjunto de enunciados que obedecem às mesmas regras de funcionamento, mesmo que pertençam a campos de conhecimento diferentes, como o discurso da área de Letras e o discurso da área de Biologia. Lima (2006, p. 104) também cita Foucault (1992) ao escrever que “as categorias discursivas estão intrinsecamente ligadas às categorias e esferas de poder”. Segundo Foucault (1992, apud FAIRCLOUGH, 2001, p. 76), “analisar as instituições em termos de poder significa entender e analisar suas práticas discursivas”. Entretanto, para Foulcault (1992, apud WALDENFELS, 2006, p. 253-254), interessa não o poder em si, mas seus “jogos” que se desenrolam no campo do saber, onde “as práticas discursivas transformam-se em dispositivos do poder, um agregado inseparável de poder e saber”. Conforme Resende (2009, p. 38), a circulação de representações específicas – no caso, através da instituição midiática - acerca de práticas e eventos facilita a manutenção das relações de poder. Entretanto, a autora (2009, p. 29), entende que “toda atividade social pressupõe condições estruturais sincrônicas e possui um potencial para transformar diacronicamente essas mesmas condições”. Resende (2009, p. 15) lembra que “uma característica relevante das práticas sociais é sua articulação em redes relativamente estáveis”, organizadas nos diversos campos da vida social, e Fairclough (2000, apud RESENDE, 2009, p. 15-16) diz que tanto a articulação das práticas em rede quanto a organização dos campos são abertos à mudança social. 3- Aqui, “a epistemologia é definida como o estudo da natureza e dos fundamentos do saber” (RESENDE, 2009, p. 53). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 136 a 153 set. / dez. 2011 140 REVISTA SABERES LETRAS Assim, estudar as conexões entre diferentes discursos, como os discursos das áreas de Biologia e de Letras da mídia, podem levar a “problematizar e por em causa a separação entre ciências, disciplinas, saberes constituídos e fechados em seus respectivos corpora e sistemas de regras específicas” (DOSSE, 2007b, p. 300-301). Análise Crítica do Discurso: metafunção ideacional e significados textuais representacionais Para Resende (2009, p. 12), a ACD, partindo da identificação de problemas sociais com facetas discursivas, objetiva “desvelar discursos que servem de suporte a estruturas de dominação ou que limitam a capacidade de transformação dessas estruturas”, sendo a Linguística “utilizada nos trabalhos de análise discursiva como instrumento para a crítica social” (2009, p. 13). Fairclough (2001, p. 22) entende que qualquer evento discursivo é considerado simultaneamente texto, prática discursiva e prática social. Sendo assim, o autor (2001, p. 27) considera necessário um método de análise multidimensional para sua abordagem tridimensional. Fairclough, na ACD, vale-se da Gramática Sistêmico Funcional (doravante GSF), a qual organiza a linguagem em torno de seu Sistema de Dados do Contexto Sociocultural, formado pelas escolhas dos falantes nas variáveis Campo, Modo e Relações, que, por sua vez, permitem as outras escolhas no Sistema Linguístico, composto pelos Subsistema Semântico, Subsistema Léxico-gramatical e Subsistema Fonológico, interrelacionados e que, segundo Halliday (2004), formam uma “rede sistêmica”, determinando o significado da língua. Conforme Halliday, estas três variáveis do contexto são realizadas no Sistema Linguístico por três metafunções da linguagem: textual, interpessoal e ideacional, esta última possibilitando ao observador tirar partido da capacidade da linguagem de representar a natureza da prática social. A metafunção ideacional relaciona-se “aos modos pelos quais os textos significam o mundo e seus processos, entidades e relações” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 92). Fairclough (2001, p. 104) diz que, em termos do significado ideacional, a oração significa um processo de um individuo particular agindo sobre uma entidade em que se observa “um investimento ideológico diferente de outras formas de significar SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 136 a 153 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 141 os mesmos eventos”. Resende (2009, p. 32) escreve que, ao nível da abstração da estrutura discursiva, correspondem os sistemas linguísticos, subsistemas e metafunções propostos por Halliday (2004) na GSF e, ao nível da concretude do evento, correspondem os textos produzidos nas interações. “A relação entre o potencial dos sistemas linguísticos e os textos produzidos em eventos discursivos é mediada pelas “ordens do discurso” (RESENDE, 2009, p. 33). O termo “ordens do discurso” é entendido por Fairclough (2003, p. 220) como configurações particulares de gêneros (que o autor relaciona à metafunção textual hallidayana e a significados textuais acionais), estilos (que o autor relaciona à metafunção interpessoal hallidayana e a significados textuais identitários) e discursos (que o autor relaciona à metafunção ideacional hallidayana e a significados textuais representacionais) que constituem o aspecto discursivo de uma rede de práticas sociais e têm relativa estabilidade. Fairclough (2003, p. 28) diz que os significados textuais acionais, identitários e representacionais existem em relação dialética. O autor se baseia em Foucault (1994, p. 318), o qual acredita em três tipos de relações: de ação sobre os outros, de relações com os outros e de controle sobre as coisas. Representação dos atores sociais No nível ideacional, referindo-se à estrutura semântica do texto, van Leeuwen (1997, p. 169) tenta responder a três questões básicas que se referem aos modos pelos quais os atores sociais podem ser representados no discurso, às escolhas que nos possibilita a língua para nos referirmos às pessoas e à maneira como os atores sociais de relevo estão representados em um determinado tipo de discurso. Desta forma, antes de analisar como se realizam linguisticamente, o autor procura esboçar um “inventário sociossemântico” dos modos pelos quais os atores sociais podem ser representados, e estabelecer a relevância sociológica e crítica das categorias sociossemânticas, não linguísticas, propostas e divididas em dois grandes grupos, de inclusão e de exclusão, chamadas de “pansemióticas” (VAN LEEUWEN, 1997, p. 171), conforme o exposto no Quadro 1. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 136 a 153 set. / dez. 2011 142 REVISTA SABERES LETRAS Quadro 1: Categorias de representação dos atores sociais – adaptado de van Leeuwen (1997, p. 219). Segundo van Leeuwen (1997, p. 169), há duas razões importantes para proceder deste modo. A primeira razão diz respeito à falta de biunicidade na língua, em que Agente e Paciente são categorias sociológicas, enquanto que Ator e Meta são categorias linguísticas. A Agência, como um conceito sociológico, revelase de grande importância na ACD: quais os atores sociais e em que contextos estão eles representados sociologicamente como Agentes e como Pacientes? A segunda razão se refere ao significado, que é inerente à cultura e não à língua, e que “não pode ser associado a uma semiótica específica” (VAN LEEUWEN, 1997, p. 171). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 136 a 153 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 143 Conforme o autor, há várias formas de inclusão, como, por exemplo, a inclusão por generalização, a inclusão por personalização com categorização, a inclusão por impersonalização com objetivação/espacialização, e a inclusão por ativação ou passivação dos atores sociais através do seu papel gramatical na oração (Ator, Experenciador, Portador, Identificador, Característica, Dizente, Comportante, Existente4). Quanto às exclusões, estas categorias de representação podem ocorrer por supressão, onde “não há qualquer referência aos atores” (Idem: Ibidem, p. 181), através do apagamento do agente da passiva ou dos beneficiários, de orações reduzidas funcionando como participantes, de nominalizações, de adjetivos, ou de voz média (nem ativa, nem passiva), de acordo com van Leeuwen (1997, p. 181-183). Também, as exclusões podem ocorrer por encobrimento, onde os atores sociais “não estão tanto excluídos, mas sim pouco visíveis, empurrados para segundo plano” (VAN LEEUWEN, 1997, p. 181), através de elipses e pelas mesmas formas da exclusão por supressão, com a diferença de que aparecerem em outro lugar do texto e são recuperáveis. Metodologia O corpus escolhido para este trabalho, o qual está inserido na abordagem da ACD, foram duas notícias oriundas da revista Veja Online, cada uma representando uma área do conhecimento diferente, uma a área de Letras e a outra a área de Biologia, ambas datadas de 1 de novembro de 2010 e intituladas Português é a matéria com pior resultado no Enem (< http://veja.abril.com.br/noticia/ educacao/portugues-e-a-materia-com-pior-resultado-no-enem >) e Álcool é mais prejudicial para a sociedade que crack e heroína, diz cientista inglês (< http:// veja.abril.com.br/noticia/saude/alcool-e-mais-prejudicial-para-a-sociedade4- No nível ideacional, Halliday (2004, p. 168-305) escreve que, no Sistema de Transitividade, cada proposição consiste de três elementos: o processo (elemento central), seu(s) participante(s), e a(s) circunstância(s) (de caráter opcional). Os processos são em número de seis: materiais (em que o Ator realiza a ação e o Meta é o participante a quem o processo é dirigido), mentais (os partici� pantes são o Experienciador e o Fenômeno, elemento percebido pelo Experienciador), relacionais (os participantes são Portador e Atributo, Identificador e Identificado, Possuidor e Possuído, ou Característica e Valor), comportamentais (participantes são Comportantes), verbais (participantes o Dizente, o Dito, o Receptor, o Alvo, a Verbiagem) e existenciais (apenas um tipo de participante, o Existente). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 136 a 153 set. / dez. 2011 144 REVISTA SABERES LETRAS que-crack-e-heroina-diz-cientista-ingles >), respectivamente. Nesta análise, investigamos e descrevemos elementos da estrutura semântica de dois textos, com base na Teoria da Representação dos Atores Sociais proposta por van Leeuwen (1997), no nível ideacional, este relacionado por Fairclough (2003) a significados textuais representacionais. Para tanto, verificamos a maneira como os atores sociais de relevo apresentaram-se incluídos por ativação do seu papel gramatical na oração ou excluídos por encobrimento e supressão em ambas as notícias. Análise e interpretação dos resultados Nesta pesquisa, os passos analíticos incluem, primeiramente, a verificação dos atores sociais de destaque nos dois textos a partir do Tema5 de cada oração. Posteriormente, verificamos como estes atores sociais de relevo estão incluídos ou excluídos nas notícias das áreas de conhecimento de Letras e Biologia. No caso das exclusões, analisamos a exclusão por supressão com apagamento do agente da passiva [ES1], a exclusão por supressão com apagamento do beneficiário [ES2], a exclusão por supressão com nominalização [ES3] e a exclusão por encobrimento [EE]. Quanto às inclusões, o foco analítico está na inclusão de atores sociais por ativação através do seu papel gramatical na oração [IA], baseando-se na preponderância deste tipo de inclusão em ambos os textos, conforme o mostrado no Quadro 2. Português [IA] é a matéria com pior resultado no Enem Nenhum colégio [IA] no país atingiu média de 700 pontos nessa parte do exame O desempenho [EE] na área de Linguagens e Códigos [IA], que mede as habilidades dos jovens em língua portuguesa e interpretação de textos, puxou para baixo a média final das escolas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2009. Essa parte [IA] do exame [IA] foi a única em que nenhum colégio no país atingiu média de 700 pontos, numa escala de 0 a 1.000. Entre as escolas da capital, o melhor desempenho [EE] ficou com o Colégio Vértice, com 686,70 ����������������������������������������������������������������������������������������������� - “Tema é tudo o que aparece em posição inicial na oração, até o final do primeiro elemento ex� periencial (participantes, processo verbal ou circunstância)” (VENTURA; LIMA-LOPES, 2002, p. 3). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 136 a 153 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 145 pontos. Nas outras grandes áreas do conhecimento, a maior média dos colégios [IA] ficou entre 700 e 800 pontos. Com a maior média geral do país [EE] o Vértice [IA] encabeça as notas das escolas da capital em Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas. Em redação, a melhor média [EE] foi do Colégio Batista. A pontuação máxima abaixo de 700 em linguagens [EE] é considerada [ES1] “preocupante” e um reflexo da chamada “geração Y”, educada [ES1] com a ajuda da internet. Para gestores de escolas, com os jovens cada vez mais conectados em redes sociais, a linguagem [IA] desenvolvida [ES1] no mundo virtual [IA] se distanciou da língua culta, empobrecendo o vocabulário [ES2] e prejudicando a capacidade de interpretar textos mais longos [ES2]. “Está tudo [IA] muito abreviado, curto, e eles [IA] deixam de produzir textos. É tudo [IA] copiado [EE]: control-C, control-V”, diz Maria Martinez, diretora pedagógica do Batista Brasileiro [IA]. “Não aceitamos trabalhos copiados da internet [ES1]. As próprias escolas [IA], às vezes, entregam material pronto para o aluno, que só tem o trabalho de responder [EE], não de elaborar o texto” [ES1]. Diretor do Vértice, Adílson Garcia [IA] reconhece que há dificuldade [ES3] do jovem em adquirir hábitos de leitura. o 2: Inclusões por ativação do papel gramatical e exclusões por encobrimento e supressão de atores sociais nas notícias das áreas de Letras e de Biologia. Álcool [IA] é mais prejudicial para a sociedade que crack e heroína, diz cientista inglês [IA] Estudo [IA] leva em conta os danos individuais e às outras pessoas O álcool [IA] foi considerado [EE] a droga mais perigosa da Grã-Bretanha, à frente até do crack e da cocaína, segundo um ranking [IA] que leva em conta, além dos prejuízos pessoais, os danos que ela pode provocar na sociedade. O estudo, publicado nesta segunda-feira pelo periódico médico Lancet [IA], foi realizado pelo Comitê Científico Independente sobre Drogas [IA], liderado pelo exconsultor governamental David Nutt. Nutt foi demitido [ES1] ano passado após fazer declarações contra a políSABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 136 a 153 set. / dez. 2011 146 REVISTA SABERES LETRAS tica antidrogas do governo, quando disse [EE] que andar de cavalo [ES3] era mais perigoso que ingerir [ES3] ecstasy, uma droga sintética bastante consumida na GrãBretanha [EE]. Também afirmou que a maconha fora promovida [EE] à droga classe B, a segunda classe mais perigosa segundo o Conselho Britânico sobre Abuso de Drogas, por causa de uma “decisão política” [ES3]. No estudo publicado nesta segunda-feira, Nutt [IA] e seus colegas [IA] classificam as drogas pelos danos individuais, que vão desde a morte até danos mentais e perda dos relacionamentos, e pelos danos que podem provocar às outras pessoas. A pontuação [EE] vai de zero (inofensivo) até 100 (mais perigoso). No ranking geral, o álcool [IA] ficou em primeiro lugar, com 72 pontos — a heroína [IA] ficou com 55 pontos, o crack com 54, a cocaína [IA] ganhou 27 pontos, a maconha [IA] ficou com 20, o ecstasy e os anabolizantes com nove e os cogumelos alucinógenos com cinco. Se levados em conta apenas os danos individuais, as drogas mais perigosas são o crack [IA], a heroína [IA] e metanfetamina [IA]. A [EE] mais danosa aos outros foi o álcool [IA], seguida pela heroína e o crack. Os autores do estudo [IA] escreveram que a classificação [ES3] atual é ultrapassada e é preciso chamar a atenção [ES2] de forma agressiva para os perigos do álcool, em prol da saúde pública. Pelo sistema britânico de classificação atual, o ecstasy [IA] é considerado uma droga classe A, tão perigoso quanto metanfetamina. Nutt [IA] é autor de outro estudo, publicado também no Lancet em 2007, afirmando que álcool e cigarro eram mais prejudiciais [ES2] que a maconha e o LSD. O Tema das notícias está claro desde o título: o da notícia da área de Letras é Português, área do conhecimento que aparece mais em posição temática nas orações (área de Linguagens e Códigos), juntamente com profissionais da área de Educação (gestores de escola, diretora pedagógica de uma escola, diretor de uma escola) e alunos do Ensino Médio; o da notícia da área de Biologia é o álcool, considerado uma droga e assim bastante reiterado, juntamente com profissionais SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 136 a 153 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 147 da própria área de Biologia (cientistas). Assim, observa-se que dividem, principalmente, a posição temática: na notícia da área de Letras, Português, estudantes do Ensino Médio e profissionais da área de Educação; na notícia da área de Biologia, álcool, outras drogas e cientistas da área. Em relação aos atores sociais, identificamos três principais em cada notícia. Na notícia da área de Letras aparecem a própria área (Tema do título: Português), os profissionais das escolas e os estudantes brasileiros do Ensino Médio, categorizados como geração Y; na notícia da área de Biologia, aparecem a própria área (sugerida pelo Tema do título: Álcool), os cientistas e a população em geral, conforme o exposto no Quadro 3. Português; matéria com pior resultado; essa parte; área de Linguagens e Códigos. língua portuguesa; interpretação de textos; grande área do conhecimento; redação; linguagem(s); língua culta; vocabulário; capacidade de interpretar textos mais longos; tudo; control-C, control-V; trabalhos; material; texto(s); hábitos de leitura outras; grandes áreas do conhecimento; Matemática; Outras áreas Ciências da Natureza; Ciências Humanas gestores de escolas1; Maria Martinez - diretora Profissionais das pedagógica do Batista Brasileiro; Diretor do Vértice escolas Adílson Garcia, escolas jovem(s); geração Y2; eles; aluno; colégio(s); escolas; Estudantes brasileiros Colégio Vértice; país; Vértice; Colégio Batista do Ensino Médio Enem – exame - Exame Nacional do Ensino Médio; Outros participantes internet - mundo virtual inanimados Álcool; crack; heroína; cocaína; ela; estudo; ecstasy; Área de Biologia maconha; droga(s); anabolizantes; cogumelos (Tema do título: Álcool) alucinógenos; metanfetamina; LSD cientista inglês; estudo; periódico médico Lancet; Cientistas Comitê Científico Independente sobre Drogas; exconsultor governamental David Nutt; Nutt; Conselho Britânico sobre Abuso de Drogas; colegas; autores do estudo; sistema britânico de classificação atual; autor de outro estudo; ranking Sociedade; relacionamentos; outras pessoas; outros; Pessoas em geral saúde pública; Grã-Bretanha; governo Quadro 3: Principais atores sociais nas duas notícias analisadas. Área de Letras (Tema do título: Português) SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 136 a 153 set. / dez. 2011 148 REVISTA SABERES LETRAS Como observamos no gráfico inserido no Quadro 4, há uma grande número de inclusões com ativação através do papel gramatical na oração dos profissionais de Biologia, os cientistas, e, embora a área de Letras esteja quase tão ativada quanto a de Biologia, os atores sociais chamados a representá-la na notícia, ao contrário do que acontece na de Biologia, não são da sua área, os professores de Português, mas da área de Educação, categorizados como gestores de escolas. Quadro 4: Exclusões por supressão [ES] e por encobrimento [EE] e inclusões por ativação através do papel gramatical na oração [IA] representadas graficamente nas notícias das áreas de Letras e de Biologia e de seus respectivos representantes nas notícias: professores de Português e cientistas. Conforme exemplificado no Quadro 5, enquanto profissionais da área de Biologia, aqui os cientistas, estão bastante incluídos, na notícia da área de Letras, há exclusão por supressão dos professores de Português em diversas orações, com os profissionais da área sofrendo uma exclusão radical no decorrer da notícia. A pontuação máxima abaixo de 700 em linguagens é considerada [ES1] “preocupante”... (Quem considera preocupante? Gestores de escolas? Professores de Português?) SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 136 a 153 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 149 ...a linguagem desenvolvida [ES1] (Quem desenvolve? Geração Y? Professores de Português?) no mundo virtual se distanciou da língua culta, empobrecendo o vocabulário [ES2] (Quem teve o vocabulário empobrecido? Estudantes? Professores de Português?) e prejudicando a capacidade de interpretar textos mais longos [ES2]. (Quem foi prejudicado na capacidade de interpretação de textos mais longos? Estudantes? Professores de Português?) Diretor do Vértice, Adílson Garcia reconhece que há dificuldade [ES3] do jovem em adquirir hábitos de leitura. (Quem dificulta? Gestores de escolas? Professores de Português?) Quadro 5: Exemplos de exclusão de atores sociais na notícia da área de Letras. Como os professores de Português não são referidos em nenhum momento na notícia da área de Letras, como o observado no Quadro 6, não poderiam ser recuperados no texto, portanto não poderiam estar encobertos. Exclusões por supressão Área de Letras Professores de Português 0 Área de Letras 1 Área de Biologia Cientistas 4 0 Exclusões por encobrimento Professores de Português 2 Área de Biologia Cientistas 0 1 Inclusão por ativação através do papel gramatical 5 Área de Professores de Área de Biologia Cientistas Letras Português 5 0 7 9 Quadro 6: Número de exclusões por supressão e por encobrimento e de inclusões SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 136 a 153 set. / dez. 2011 150 REVISTA SABERES LETRAS por ativação das áreas de Letras e de Biologia e de seus respectivos legítimos representantes nas duas notícias analisadas. Considerações finais Fairclough (2003, p. 66) acredita que vivemos em um período de transição, onde se cria uma tensão que ora pressiona no sentido da estabilização de uma nova ordem social, ora pressiona continuamente pela mudança, ilustrando, segundo Wodak (2004, p. 230-231), o papel mediador e construtivo da mídia com inúmeros exemplos em que demonstra a falácia da crença na neutralidade das instituições midiáticas, as quais costumam se dizer objetivas por acreditarem dar espaço ao discurso público e refletir os fatos de forma desinteressada. Mas, conforme Resende (2009, p. 77), em termos epistemológicos, é possível gerar projetos de pesquisa emancipatórios e capazes de revelar uma necessidade, o(s) obstáculo(s) que impede(m) a realização dessa necessidade, e os meios para a remoção do(s) obstáculo(s). Segundo van Leeuwen (1997), quando há uma supressão radical, como a verificada na notícia da área de Letras, através da exclusão dos professores de Português, os leitores supostamente já devem saber quem é o ator social, ou, como acreditamos aqui, este tipo de exclusão é usado como forma de impedir o acesso a detalhes que provocariam reações nos leitores. “A prática fica representada como algo que não vai ser reexaminado nem contestado” (FUZER, 2008, p. 134). Em relação à representação da área das ciências biológicas, concordamos com Guimarães (2009, p. 1) acerca do fato do domínio da ciência ter hoje um lugar fundamental na vida das pessoas, que esperam dela, entre outras coisas, o bem-estar e a cura. Parafraseando Foucault, Revel (2005, p. 27) diz que esta “biopolítica” representa uma “grande medicina social” que se aplica à população a fim de governar sua vida. Isto pode explicar, não só o maior interesse na circulação de discursos voltados para a área de Biologia, como também, conforme verificado nesta análise, a grande inclusão de seus profissionais na mídia. De acordo com Revel (2005, p. 13), valendo-se do método arqueológico focaultiano, podemos reconstruir atrás de um fato toda uma rede de discursos, de poderes, de estratégias e de práticas, onde as alterações na ordem do saber são SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 136 a 153 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 151 percebidas a partir de campos tão diferentes quanto o de Letras e o de Biologia, verificando-se a divisão entre o que é pensável e o que não é: neste caso, a não representação da área de Letras através de seus legítimos representantes na notícia analisada. Entretanto, esta pesquisa representa apenas um estudo inicial acerca da representação do discurso de diferentes áreas do conhecimento na mídia, e estamos cientes de que seria preciso um corpus mais abrangente para conclusões mais esclarecedoras. Referências CHARAUDEAU, P. Discurso das Mídias. Tradução de Ângela M. S. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2009. DOSSE, F. 1966: O ano-luz. 2. Foucault vende como pãezinhos. In: DOSSE, François. História do estruturalismo – Volume I (O campo do signo). Tradução de Álvaro Cabral. Revisão técnica Marcia Mansor D’Alessio. Bauru: EDUSC, 2007a, p. 425-438. ______. Foulcault e a desconstrução da História. 1. L’Archéologie du savoir. In: DOSSE, François. História do estruturalismo – Volume II (O canto do cisne). Tradução de Álvaro Cabral. Revisão técnica Marcia Mansor D’Alessio. Bauru: EDUSC, 2007b, p. 291-304. FAIRCLOUGH, N. Discourse, social theory, and social research. The discourse of welfare reform. 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Para fundamentar nossas análises, tomaremos como base os pressupostos da Linguística Textual de base sociocognitivista, a concepção de gênero proposta por Bakhtin (2003) e as considerações de Carmelino (2009), Travaglia (1992) e Possenti (1998) em relação aos elementos linguísticos responsáveis pela deflagração do cômico. Como a finalidade discursiva do jingle é auxiliar na divulgação de certo produto, verificamos que o efeito humorístico presente nos jingles estudados funciona como mais um recurso persuasivo, contribuindo para a adesão do público. Palavras-chave: Gênero. Jingle. Humor. Mecanismos linguísticos. Abstract: Based on the analysis of the humorous jingles of the advertising campaign “Who does not know, dances” of Tigre company, the present work objectifies to check what are the most recurrent linguistic mechanisms in its humor construction, as well to characterize the gender. To substantiate our analysis, we will be based on assumptions of textual linguistics of sociocognitive base, the conception of gender proposed by Bakhtin (2003) and the considerations of Carmelino (2009), Travaglia (1992) and Possenti (1998) related to linguistic elements responsible by the deflagration of the comical. Since the 1- * Graduanda em Letras – Licenciatura em Língua Portuguesa e Literatura de Língua Portuguesa pela UFES – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil. E-mail: [email protected]. 2- ** Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista (Unesp/ CAr); Docente do Departamento de Línguas e Letras (DLLL) e do Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGEL) da UFES – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil. E-mail: [email protected]. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 154 a 169 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 155 discursive finality of the jingle is to assist on the divulgation of certain product, we found that humorous effect present in the jingles studied works as one more persuasive resource, contributing to the accession of the public. Keywords: Gender. Jingle. Humor. Linguistic mechanisms. Introdução Este artigo analisa os mecanismos linguístico-discursivos responsáveis pela deflagração do cômico nos jingles que compõem a campanha “Quem não sabe, dança”, da empresa Tigre, quais sejam: “Dança do vazamento”, “Dança do bate os dentes”, “Dança do deslize”, “Dança da gambiarra”, “Dança do tapa o nariz”, “Dança do entope e desentope”, “Dança do conduíte” e “Dança da gordura”. Apesar de o gênero jingle ser comumente usado na composição de comerciais televisivos (como é o caso da campanha “Quem não sabe, dança”) ou em propagandas radiofônicas, não há referencial teórico que trate desse gênero. Partindo dessa constatação, buscamos aqui, também, com base na concepção de gênero proposta por Bakhtin (2003), caracterizar o jingle. Para fundamentar nossas análises quanto à construção do humor dos jingles analisados, tomamos como pressupostos teóricos as considerações de Travaglia (1992), Possenti (1998) e Carmelino (2009), especialmente as voltadas para os mecanismos linguístico-discursivos responsáveis pela deflagração da comicidade. Embora o jingle não seja um gênero humorístico, nossos estudos sobre o assunto revelam a recorrência desse componente na composição dos gêneros publicitários. Segundo entendemos, o efeito humorístico é capaz de despertar o interesse do interlocutor sobre a mensagem, funcionando, portanto, como um recurso persuasivo eficiente. Jingle: criatividade e persuasão Segundo a perspectiva bakhtiniana, o enunciado é constituído a partir da esfera em que está inserido, refletindo as condições e finalidades dessa esfera. Cada SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 154 a 169 set. / dez. 2011 156 REVISTA SABERES LETRAS enunciado tem uma natureza histórica e sociointeracional, consistindo em “tipos relativamente estáveis” (BAKHTIN, 2003, p. 262), que são chamados de gêneros do discurso. Os gêneros do discurso surgem a partir das necessidades sócio-culturais estabelecidas em situações de interação e podem ser caracterizados por um conteúdo temático, uma construção composicional e um estilo. O conteúdo temático abrange o domínio de sentido do gênero e não um assunto específico de determinado texto. A construção composicional refere-se à forma como o gênero é organizado, ou seja, à estrutura do texto. Já o estilo é a escolha dos itens que constituem o texto, como o léxico e as formas gramaticais. Nessa perspectiva sociointeracional, Bakhtin (2003) focaliza a importância do papel do locutor no processo de construção do gênero e a esfera de comunicação em que ele está inserido: “a intenção discursiva do falante, com toda sua individualidade e subjetividade, é aplicada e adaptada ao gênero escolhido; constitui-se e desenvolve-se em uma determinada forma de gênero” (p. 282). O gênero jingle faz parte da esfera publicitária. Os textos desse domínio discursivo têm o objetivo de prender a atenção do público ao qual eles se dirigem, buscando meios que façam esse público ser persuadido pelo que está sendo divulgado. Segundo Sandmann (2003, p. 29), “despertar ou chamar a atenção do leitor, fazê-lo memorizar a mensagem é aspecto essencial ou vital da mensagem e atividade publicitária”. Como a finalidade dos gêneros da esfera publicitária é incitar as vendas (de produto, serviço, imagem), é comum seus textos apelarem para os sentimentos, “desejos e paixões”, fazendo uso de ampla criatividade para prender a atenção do interlocutor, despertar seu interesse, estimular o desejo e provocar ação (SANTANA, 1973). Esse é um dos propósitos do jingle. Conforme Rabaça e Barbosa (2001, p. 122), o jingle é uma “mensagem publicitária em forma de música, geralmente simples e cativante, fácil de cantarolar e de recordar. Pequena canção, especialmente composta e criada para a propaganda de determinada marca, produto, serviço etc.”. Costa (2008), em concordância com essa definição, explica que o jingle é “uma mensagem publicitária musicada que SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 154 a 169 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 157 consiste em estribilho simples e de curta duração, próprio para ser lembrado e cantarolado com facilidade”. Segundo esse autor, “quando veiculado no cinema ou na TV, o texto vem acompanhado de imagem” (op. cit.). Assim, verificamos que o jingle consiste não apenas em uma mensagem de grande influência, já que pode cativar diferentes públicos (adultos, jovens, crianças, por exemplo) a cantarolarem de forma sucessiva a propaganda musicada, mas também em um texto que representa a imagem do produto divulgado, destacando em sua melodia aspectos que denotam a importância desse produto. Vemos que o uso do jingle é cada vez mais recorrente em propagandas televisivas ou de rádio, tendo em vista que ele facilita a assimilação da marca, pois, em sua grande maioria, vale-se de uma linguagem simples e cativante. Pelas definições de Rabaça e Barbosa (2001) e de Costa (2008), o jingle traz em sua composição traços característicos das canções (“pequena canção” ou “mensagem musicada”): “texto curto, cantado, formado pela relação letra e música, dividido em partes A e B, constituídos por versos” (CARETTA, 2008, p. 21). Desse modo, para garantir a adesão do público, os jingles incorporam características comuns aos gêneros da esfera publicitária e aos da esfera artística, como é o caso da canção. Retomando a proposta de caracterização de gênero do discurso feita por Bakhtin (2003), notamos que o conteúdo temático do jingle, ou seja, sua finalidade discursiva é persuadir seu público alvo por meio da palavra a determinada atitude, isto é, chamar a atenção do auditório para o produto que divulga, estimulando sua adesão. Como se percebe na campanha publicitária da Tigre, “Quem não sabe, dança”, os jingles despertam o interesse do público a partir de problemas que podem ocorrer caso não sejam usados os produtos dessa marca, sugestão essa que começa pelo nome da campanha (“Quem não sabe, dança”), a partir do uso da palavra “dança” no sentido de “vai se dar mal”. A construção composicional do jingle, ou seja, sua estrutura apresenta “relativa estabilidade”. O jingle possui traços característicos do gênero canção como “texto curto, cantado, formado pela relação letra e música” (CARETTA, 2008, p. 21) e traços comuns aos dos textos publicitários, como verbo no imperativo afirmativo, além de tendência à repetição de termos como o nome do produto ou a mensagem principal a ser divulgada. Essa estabilidade é relativa porque, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 154 a 169 set. / dez. 2011 158 REVISTA SABERES LETRAS apesar de haver traços comuns em sua composição, não há uma forma, um padrão a ser seguido; o que há sempre é uma adequação ao público ao qual se destina e à marca que divulga. É o que podemos observar a partir dos jingles “Danoninho” e “Caninha 51”: Dá danoninho dá, me dá danoninho, danoninho já, danoninho, tá? Danoninho dá toda proteína que eu vou precisar já, já Me dá, me dá, me dá, me dá danoninho, danoninho já Me dá danoninho, danoninho dá Cálcio e vitamina pra gente brincar, me dá Lipídios, glicídios, protídeos, cálcio, ferro, fósforo e vitamina A Me dá mais saúde, mais inteligência, Me dá danoninho, danoninho já, me dá Bota mais uma Eu quero ver o futebol Bota mais uma E o meu time vai entrar Bota mais uma Que boa ideia é 51 Bota mais uma Que hoje eu vou comemorar Bota mais uma Até se o time não ganhar Bota mais uma Que boa ideia é 51 Como é que se pede uma caninha Pede logo uma 51 Futebol é sempre uma boa ideia Pede logo uma 513 Nos exemplos acima, verificamos o uso do verbo no imperativo afirmativo (“dá”, “bota” e “pede”), a repetição do nome do produto (“Danoninho” e “51”) 3- Jingles disponíveis em http://www.clubedojingle.com/jingles_top.htm. Acesso em 20/10/2010. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 154 a 169 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 159 e a repetição da mensagem que os produtos pretendem enfatizar. No caso do jingle “Danoninho”, a repetição do verbo “dá” pretende resgatar a forma como as crianças (seu público alvo) costumam solicitar algo. Já o jingle que divulga a “Caninha 51” repete o termo “bota mais uma”, usado comumente por pessoas que apreciam uma caninha (cachaça), e o termo “Que boa ideia é 51”, além de “Pede logo uma 51” que faz menção à marca do produto divulgado (Caninha 51). O estilo do jingle é, geralmente, marcado por linguagem simples, divertida e criativa. No entanto, é possível perceber algumas variações levando-se em conta o público ao qual ele se destina. O jingle “Dança do deslize” da campanha publicitária da Tigre consiste em um dos exemplos em que se nota a escolha de itens lexicais peculiares, como expressões populares e o uso de gírias: Entrei pelo cano, só resta lamentar... Me dê sua mão, vamos girar e quebrar, Quebra, quebra, quebra, com a marreta na mão Quebra, quebra, quebra, foi um cabeção. Nele, vemos a expressão popular “Entrei pelo cano” no sentido de “me dei mal” e a gíria “cabeção”, usada popularmente para denotar “pessoa de pouca inteligência” ou que “usou pouca inteligência”. Quando o jingle se dirige a um público mais restrito, como, por exemplo, às empresas, a seleção de itens lexicais é diferenciada, a linguagem se aproxima mais do padrão culto da língua, como podemos constatar no trecho do jingle “Hino SOEMA”, da Embratel: Nós somos os empresários masoquistas Nossa vida, nosso lema é o sofrimento Adoramos esperar as telefonistas Muitas horas de espera em cada atendimento4 4- Disponível em: http://www.embratel.com.br/Embratel102/cda/portal/0,2997,PO_P_10995,00. html. Acesso em 20/10/2010. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 154 a 169 set. / dez. 2011 160 REVISTA SABERES LETRAS Segundo a proposta de Bakhtin (2003), o mais importante não é descrever cada um dos gêneros “catalogando-os”, visto que estão em constante mudança. Algumas propriedades comuns a determinado gênero se mantêm, enquanto outras se alteram, acompanhando as inovações da esfera na qual eles estão inseridos. A esfera publicitária sempre busca recursos que façam seu públicoalvo aderir ao que ela divulga, tendo em vista a competitividade do mercado publicitário. Estando o jingle inserido nessa esfera, ele certamente acompanha essa evolução, como é o caso da inserção do componente humorístico nessas pequenas canções. Nos últimos tempos, verifica-se que o recurso humorístico vem adquirindo maior projeção pela ótima aceitabilidade do público: quando a mensagem é apresentada de forma descontraída e bem-humorada, sem que se deprecie ou ridicularize o produto divulgado, o público tende a assimilá-la com maior facilidade. Tigre: algumas considerações Antes de analisarmos os jingles da campanha “Quem não sabe, dança”, da Tigre, achamos conveniente tecermos algumas considerações sobre a empresa, a fim de contextualizar o leitor com relação ao nosso objeto de estudo. A empresa Tigre é conhecida hoje pela produção de tubos e conexões, forros, caixas de água, sistemas de descarga, assentos sanitários, entre outros. Entretanto não são esses os produtos fabricados pela empresa desde a sua fundação. Criada em 19415, em Joinville, a Tigre começou com uma pequena fábrica, na qual eram produzidos pentes de chifre de boi. Em 1942, ela diversificou a produção, inserindo em sua linha de produção os cachimbos Sawa. No período conturbado por transformações decorrente da 2ª guerra mundial, chega ao Brasil o plástico, matéria-prima revolucionária para a época. Nesse momento, a Tigre resolve inovar, adquire uma máquina que torna possível a produção com o plástico, expandindo sua linha de produção: passa a confeccionar pentes, piteiras, copos, pratos, brinquedos e leques. No final dos anos 50, a Tigre 5- Todas as informações que dizem respeito ao contexto histórico da empresa Tigre, foram base� adas nos dados disponíveis no site da própria empresa, a saber: http://www.tigre.com.br/pt/index. php ( acesso em 20/ 10/ 2010). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 154 a 169 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 161 decide ousar com o projeto de confecção de tubos e conexões em PVC. Essa ousadia surpreendeu, pois, na época, os tubos e conexões eram feitos de ferro galvanizado. Foi um sucesso, tendo em vista que os tubos e conexões a partir de então não enferrujavam e, diferentemente do que muitos pensavam, o material era de excelente qualidade. A partir desse momento, a Tigre tem inovado com a inserção de diversos produtos em sua linha de produção, apresentando soluções em portas e janelas de alto desempenho, ferramentas de pintura, sistemas completos de água fria ou quente, drenagem, esgoto, eletricidade, telecomunicações e gás. Além do pioneirismo na produção de tubos e conexões em PVC, a Tigre foi, também, a primeira empresa do setor a investir em campanhas publicitárias televisivas, tendo anúncios veiculados na TV já nos anos 50. Em seus anúncios, a empresa busca associar características de qualidade, confiança e segurança de seus produtos. Atualmente, a campanha publicitária “Quem não sabe, dança”, produzida pela agência publicitária Talent em 2009, teve continuidade em 2010 e 2011, busca enfocar a partir de jingles problemas gerados caso o interlocutor não use em sua obra produtos Tigre. São esses jingles que compõem o corpus de análise deste trabalho. O humor: conceitos-chave O humor está presente em nossas vidas das mais diferentes formas. Entretanto, a pesquisa sobre humor só passou a se desenvolver de forma satisfatória com a “Primeira Conferência Internacional sobre o Humor”, em 1976 (RASKIN, 1987, 1987a apud TRAVAGLIA, 1990), passando a assumir papel de grande importância nas mais diversas áreas de conhecimento (Antropologia, Semiótica, Sociologia, Psicologia, Linguística). Ao falar sobre humor, Bergson (2007, p. 4) afirma que “para produzir um efeito pleno, a comicidade exige enfim algo como uma anestesia momentânea do coração. Ela se dirige à inteligência pura”. O riso para Bergson é uma espécie de “gesto social”, que está intimamente ligado à cumplicidade com as pessoas que compartilham do cômico. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 154 a 169 set. / dez. 2011 162 REVISTA SABERES LETRAS Travaglia (1990), por sua vez, diz que “o humor é uma atividade ou faculdade humana cuja importância se deduz de sua enorme presença e disseminação em todas as áreas da vida humana, com funções que ultrapassam o simples fazer rir” (p. 55). Em análise de programas humorísticos brasileiros, esse mesmo autor estabelece seis categorias de análise. A primeira categoria é “Humor quanto à forma de composição”, subdividida em: o descritivo, em que o humor está relacionado às características de algo ou alguém; o narrativo, um que a causa do humor está no que é contado; e o dissertativo, em que o efeito humorístico é provocado pelas ideias opostas. A segunda categoria diz respeito aos objetivos do humor, sendo eles: o riso pelo riso, que pretende divertir simplesmente; a liberação, que intenciona ir de encontro à censura social, libertando-se das limitações impostas socialmente; a crítica social, que objetiva criticar valores, costumes, corrupções, caráter, comportamento etc.; e a denúncia, que revela situações as quais vão de encontro às convenções e valores sociais. A terceira categoria refere-se ao “Humor quanto ao grau de polidez”. Nela o autor estabelece as subcategorias: “Humor de salão”, em que há predomínio da língua padrão, a qual se vale de sutis sugestões; “Humor sujo ou pesado”, em que há uso recorrente de palavrões e termos de baixo calão; e “Humor médio”, o intermediário, que fica entre o “polido” e o “sujo”. A quarta categoria se refere ao “humor quanto ao assunto” e é subcategorizada em: “Humor negro”, que seriam as formas “violentas” de humor, as que fazem rir de situações trágicas, deformações físicas, doenças ou desgraças; “Humor sexual”, com conotações eróticas ou pornográficas; “Humor social”, que faz críticas à política, a costumes, a instituições, a serviços, a caráter, a governos, a classes e à língua; e o “Humor étnico”, que explora as particularidades de grupos étnicos. A quinta categoria trata do “Humor quanto ao código”. Nessa categoria, o autor classifica o humor em “verbal ou linguístico” (que diz respeito ao que é falado SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 154 a 169 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 163 ou ao que está escrito) e “não-verbal” (aquele voltado à situação, como gestos, movimentos, caracterização, expressões fisionômicas, ruídos, objetos etc.). A sexta categoria, “O que provoca o riso”, sugere elementos provocadores do sentido humorístico, como é o caso dos scripts (estupidez, esperteza/ astúcia, ridículo, absurdo e mesquinhez) e dos mecanismos linguísticos. Neste caso, Travaglia (1992) elenca vários tipos, a saber: cumplicidade, ironia, mistura de lugares sociais ou posições do sujeito, ambiguidade, uso de estereótipo, contradição, sugestão, descontinuidade de tópico ou quebra de tópico, paródia, jogo de palavra, quebra-língua, exagero, desrespeito a regras conversacionais, observações metalinguísticas, violação de normas sociais e lugar social. Os estudos revelam que, por meio do humor, é possível dizer coisas que fora dele seria impossível. Desse modo, ele é um recurso que suaviza a forma de tratar de assuntos delicados vigentes em nosso cotidiano, como, por exemplo, a corrupção na política, o caos no sistema público educacional e de saúde, a ineficiência da justiça; e de assuntos que são tabus para uma parte significativa da população, como o sexo. Carmelino (2009) observa que apesar de Possenti (1998) não falar diretamente em objetivo ou função do humor, suas análises de piadas revelam problemas sociais e culturais presentes na sociedade, os quais, para a autora, consistem em objetivos do humor. Possenti (1998), partindo da análise de piadas, constata como mecanismos linguísticos que contribuem para a construção do sentido humorístico os seguintes recursos: fonologia, morfologia, léxico, dêixis, sintaxe, pressuposição, inferência, conhecimento prévio, variação linguística e tradução. Convém ressaltar que os mecanismos propostos pelos referidos pesquisadores contribuem para a construção do sentido do humor, entretanto, como observa Carmelino (2009, p. 110) “todos esses elementos como provocadores do riso não são humorísticos em si, visto que não apresentam um uso só humorístico”. Neste estudo, pretendemos observar os mecanismos linguístico-discursivos dos quais a empresa publicitária lança mão para promover o humor nos jingles da SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 154 a 169 set. / dez. 2011 164 REVISTA SABERES LETRAS campanha “Quem não sabe, dança”, da Tigre. “Quem não sabe, dança”: a construção do humor A campanha publicitária “Quem não sabe, dança”, da empresa Tigre, é composta por oito peças midiáticas, todas com jingles. São elas: “Dança da vazamento”, “Dança do bate os dentes”, “Dança do deslize”, “Dança da gambiarra”, “Dança do tapa o nariz”, “Dança do entope e desentope”, “Dança da gordura” e “Dança do conduíte”. Como se observa pelos títulos, os jingles abordam situações desagradáveis, mas de uma forma cômica, que ocorrem com pessoas que não fazem uso dos produtos Tigre. Tal fato pode ser observado pelo nome dado à campanha (“Quem não sabe, dança”), em que a palavra “dança” gera ambiguidade, pois tanto pode ser entendida no sentido de “ritmo corporal”, tendo em vista que a campanha é composta por pequenas canções (jingles), como no sentido provocador de “dançar” significando “se dar mal”. Convém ressaltar que os jingles da campanha publicitária em questão não geram riso aberto, isso só é possível quando associamos a letra do jingle ao não-verbal da campanha (as imagens, os movimentos da dança, a sucessão das ações). No entanto, neste texto propomo-nos à análise da construção do humor levando em conta apenas as letras das pequenas canções. Mas, como falar em humor se não há riso? No artigo “Uma introdução ao estudo do humor pela Linguística”, Travaglia (1990) observa que “o humor não implica necessariamente riso”, ele “não tem um compromisso com o riso” (p. 65). Ao mencionar isso, o autor pretende mostrar que o riso que se vincula ao humor não é, necessariamente, o riso “aberto” e sonoro: Podemos concordar com o fato de que o humor não tem compromisso com o riso audível, a risada e a gargalhada que parece ser aquilo a que se referem quando desvinculam riso do humor. Contudo ele tem compromisso com o riso entendido de forma mais ampla, como um movimento de satisfação do espírito, provocado por qualquer mecanismo humorístico, e que pode ficar no íntimo de quem “ri”, constituindo o SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 154 a 169 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 165 que já se chamou “riso recôndido” ou riso interior, ou se manifestar em reações fisiológicas que vão desde o sorriso (riso leve e silencioso) até a gargalhada solta (TRAVAGLIA, 1990, p. 66). O humor presente nos jingles da campanha “Quem não sabe, dança” consiste em algo que torna a mensagem propagandística mais suave e agradável, ou seja, “bem humorada”. Após analisar os jingles da referida campanha, observamos que os mecanismos linguísticos mais recorrentes na construção do sentido humorístico são a inferência, mecanismo proposto por Possenti (1998), e a sugestão, mecanismo indicado por Travaglia (1992). A inferência diz respeito a informações que não estão explícitas no texto. Machado (2005) salienta que apesar de haver algumas divergências entre estudiosos do assunto “é necessário enfatizar que as inferências são processos que os leitores/ouvintes realizam durante a compreensão” (p. 50). Desse modo, há o “processo de geração de informação semântica nova (não presente no texto fonte) a partir da informação semântica dada (presente no texto fonte)” (p. 53). Segundo Marcuschi (2008, p. 249), “as inferências introduzem informações por vezes mais salientes que as do próprio texto”, sendo, portanto, de fundamental importância na construção do sentido de um texto. É o que observamos no jingle “Dança do bate os dentes”: Não usou o aquaterm da Tigre, Xiii... Banho frio tô fora Ui que frio! Eu sou peludo, mas não sou urso polar Ui que frio! Tô gripado sai pra lá que eu vou espirar Sem água quente não dá, treme, treme, bate os dentes Sem água quente não dá, treme, treme, bate os dentes6 No verso “Tô gripado sai pra lá que eu vou espirar”, vemos que o processo 6- Todos os jingles pertencentes à campanha “Quem não sabe dança” estão disponíveis no site: http://www.tigre.com.br/pt/midias.php?rcr_id=22. Acesso em 20/10/2010. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 154 a 169 set. / dez. 2011 166 REVISTA SABERES LETRAS inferencial se faz necessário para o ouvinte concluir que, em caso de não se usar o sistema de água quente da Tigre, ocorrerão problemas devido à variação de temperatura. Para tanto, é necessário conhecimento previamente internalizado de que não se deve ficar exposto à temperatura alta e baixa ao mesmo tempo, pois isso pode ocasionar uma gripe com sintomas típicos e desagradáveis como “espirar”. Esse transtorno é acarretado pelo uso de um sistema de água quente de qualidade duvidável e inferior ao sistema de água quente Aquaterm, da Tigre. Outro exemplo é o jingle “Dança da gambiarra”: Não caprichou no quadro de distribuição. Hum... Esse quadro tá bichado, tá tudo errado “Maledeta” gambiarra, vai sobrar pro meu lado Au! Que choque! Queimando os cabelinhos Au! Que choque! Torrando os dedinhos Au! O processo inferencial, nesse caso, se dá, principalmente, a partir do verso “Esse quadro tá bichado, tá tudo errado” em que é usada a expressão “tá bichado”, a qual popularmente se refere a algo que está se deteriorado, com mau funcionamento. Além disso, há a expressão “tá tudo errado”, que reforça essa ideia. Entretanto, para que o sentido humorístico seja alcançado, é preciso ter o conhecimento prévio do significado dessas expressões, para que, a partir delas, o ouvinte possa inferir que a razão desse quadro de distribuição estar danificado e com o funcionamento comprometido é devido ao fato de a pessoa que fez a instalação não ter optado pelos produtos Tigre. O mecanismo de sugestão, por sua vez, é, conforme explica Travaglia (1992, p. 62), “sugerir o que, pelas normas sociais é indizível em certas situações ou para certas pessoas. É o subdizer, é o dizer incompleto, de forma suavizada ou generalizada, sugerindo sempre”. A sugestão pode ser observada a partir de pequenas pistas textuais que suavizam o que não pode ser dito de forma explicitada. Para tanto, são geralmente usadas SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 154 a 169 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 167 expressões como “hum..., xiii...” ou palavras no diminutivo. Um exemplo desse mecanismo está no jingle “Dança do entope e desentope”: Usou tubo de esgoto errado, dançou! É a dança do entope e desentope Mãozinha no nariz, Oh, oh, oh, oh! É a dança do entope e desintope Carinha de infeliz, ai que fedô! É a dança do entope e desintope Olha o fedô! Ai que fedô esse cheirinho de totô O recurso linguístico de sugestão, nesse jingle, dá-se pelas expressões no diminutivo “Mãozinha”, “Carinha” e “cheirinho”, além da expressão “totô”, geralmente usada por crianças no processo de aquisição da linguagem, para se referir a excrementos, fezes. Essas formas suavizam o que não seria conveniente a uma empresa (como a Tigre) dizer sobre uma concorrente, por questões éticas. Esse mecanismo funciona, nesse caso, como desencadeador do humor, pois ironiza a situação ocorrida através dessas formas sutis, como “cheirinho”, visto que nosso conhecimento de mundo nos permite concluir que nessas situações há um grande mau cheiro, e não um “cheirinho” (tendo em vista que o substantivo cheiro no diminutivo, geralmente, dá ideia de algo agradável). A “Dança do bate os dentes” é outro exemplo em que o mecanismo de sugestão é usado como recurso humorístico. Nesse jingle a sugestão está na expressão “xiii...”, usada na fala introdutória da pequena canção (“Não usou o Aquaterm da Tigre, xiii...”). Essa expressão busca dizer de forma suavizada que “não vai dar certo”, deixando implícito que apenas a Tigre oferece um sistema de água quente de qualidade. Convém lembrar que tais mecanismos não são, exclusivamente, deflagradores do humor, pois podem assumir outras funções de uso (CARMELINO, 2009). É interessante, também, ressaltar que alguns gêneros são essencialmente humorísticos, como, por exemplo, a piada, enquanto outros são eventualmente humorísticos, como é o caso do jingle. A partir da análise de jingles, podemos constatar que o humor é cada vez mais recorrente em gêneros publicitários, tendo em vista que o efeito humorístico é capaz de despertar o interesse do SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 154 a 169 set. / dez. 2011 168 REVISTA SABERES LETRAS interlocutor sobre a mensagem, funcionando, portanto, como mais um recurso persuasivo a contribuir para a adesão do público ao produto divulgado. Considerações finais A partir do exposto, podemos afirmar que o humor presente nos jingles da campanha “Quem não sabe, dança” se constrói, principalmente, por inferências e sugestões. A campanha se vale de situações desastrosas e constrangedoras, ocorridas com pessoas que não usaram os produtos da linha Tigre para mostrar a suposta superioridade dos produtos Tigre, em detrimento aos produtos das empresas concorrentes; no entanto, ao fazer isso, utiliza-se dos recursos linguístico-discursivos adequados (sugestão e inferência) para manter sua imagem positiva no mercado (não denegrindo as outras empresas escancaradamente). Em se tratando do humor presente nos jingles analisados, é importante salientar que ele consiste em uma estratégia persuasiva, já que torna a mensagem publicitária divulgada pelas “pequenas canções” mais descontraída e agradável, sem depreciar ou ridicularizar o produto divulgado, fazendo com que públicoalvo assimile com maior facilidade a mensagem divulgada. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introd. e trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CARETTA, A. A. As formas da canção nas diversas esferas discursivas. 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Para realizar a análise trabalha-se com um Corpus de 126 unidades lexicais, extraídas do Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (Porto, 8ªa ed., 1998). Este estudo faz parte de um trabalho mais vasto sobre a construção dos nomes colectivos em português. Palavras-chave: Morfologia construcional. Modelo associativo e estratificado. Palavra construída. Base. Sufixo. Abstract: The main goal of the present work is to study the semantic values of the lexical units, constructed with the suffix –eza in the Portuguese Language. The model used in this study is the derivational, associatif and stratificated one, conceived by Danielle Corbin (1987, 1991). According to this model, constructed words have a predictable meaning, given to them by their morphological structure. For the analysis we work with 126 lexical units, extracted from Dicionário da Língua Portuguesa (DLP) da Porto Editora (Porto, 8ª edição, 1998). Keywords: Derivational morphology. Associatif and stratificated model. Constructed word. Base. Affixe. Tendo em conta unidades lexicais como nobreza, bicheza, grandeza, riqueza, etc., interessa-nos saber se o sufixo -eza constrói nomes colectivos, ou seja, se 1- *Doutorada em Linguística Portuguesa pela Universidade de Lisboa. Investigadora no CLEPUL, FLUL da Universidade de Lisboa, Portugal. Endereço eletrônico: [email protected] SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 170 a 185 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 171 pertence ao paradigma dos operadores morfológicos da Regra de Construção de Palavras com Significado Colectivo (RCP COL = Regra da Construção de Palavras com Significado Colectivo), parafraseáveis no dicionário por conjunto de Nb (Nb = Nome da base). Na primeira parte do trabalho descreverei o comportamento morfossemântico de -eza, chegando à conclusão que este sufixo faz parte do paradigma de sufixos que, na língua portuguesa, permitem a construção de nomes deadjectivais de qualidade (RCP QUAL = Regra de Construção de Palavras de Qualidade), parafraseáveis no dicionário por qualidade de Ab (Ab = Adjectivo da base). Na segunda parte referirei brevemente os sinónimos desse sufixo que fazem parte do mesmo paradigma, tentando detectar os matizes dos nomes de qualidade, construídos com eles. Descrição dos derivados sufixados Origem e formas do sufixo –eza O sufixo –eza tem origem latina e provém de - ĭtia (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, 1º vol., 2001). Para Ali (1964, p. 233) as formas –ez, -eza, -ícia e –ice são variantes do mesmo sufixo e filiam-se ao latim –itia, -itie, sendo de notar que a alteração em –ez, -eza denuncia serem estas as formas populares mais antigas do idioma. O sufixo –ĭties, -ĭtiem equivale a –ĭtia (...) e se conservou unicamente em espanhol e português na forma –ez: mudez, gaguez, nudez, rudez, surdez, acidez, aridez, estranhez, morbidez ... (PIEL, 1940, p. 222). Dimensão do corpus A produtividade do sufixo –eza é relativamente pequena. No Dicionário da Língua Portuguesa (DLP) da Porto Editora (Porto, 1998, 8ª ed.), que serviu de base para extrair o nosso Corpus, existem registados 126 ítens terminados na sequência –eza. Em muitos casos essa terminação não corresponde ao sufixo –eza, ou seja, as palavras assim terminadas não foram construídas no português. Por essas razões uma série de palavras ficam fora do alcance da nossa análise. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 170 a 185 set. / dez. 2011 172 REVISTA SABERES LETRAS As unidades lexicais eliminadas formam os seguintes grupos: - unidades lexicais que representam latinismos: alteza (Do lat. altitĭa), avareza (Do lat. avaritĭa), beleza (Do lat. bellitĭa), dureza (Do lat. duritĭa), fortaleza (Do lat. fortaritĭa), impureza (Do lat. impuritĭa), justeza (Do lat. justitĭa), lenteza (Do lat. lentitĭa), maleza (Do lat. malitĭa), pureza (Do lat. puritĭa), tristeza (Do lat. tristitĭa); - unidades lexicais que são importações de outras línguas, tais como: - o castelhano: lhaneza, sondareza; - o crioulo do Cabo Verde: morabeza; - o crioulo de Guiné Bissau: bajudeza, mufuneza, guindareza; - o francês: proeza; - o italiano: vagueza; - unidades lexicais que têm a seguinte estrutura morfológica: C + -eza, onde C representa uma consoante. Conforme a estrutura silábica do português uma consoante não forma sílaba. Por essa causa excluímos também as palavras queza e reza que atestam dita estrutura; - unidades lexicais prefixadas ou compostas em que a derivação por sufixação em –eza não representa a última operação de formação de palavras: incerteza, superfortaleza, vice-realeza; - unidades lexicais em que –eza não é sufixo, mas integrador paradigmático: pireza, vagareza. Depois de eliminadas essas 26 unidades lexicais que não correspondem às nossas hipóteses de trabalho, procede-se à análise das restantes 100 que representam palavras construídas com o sufixo –eza. Regras de formação das palavras sufixadas em –eza Relação categorial entre base e derivado Para saber qual é a categoria da base das 100 palavras construídas com o sufixo –eza, consultamos a última parte da definição dessas palavras no Dicionário da SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 170 a 185 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 173 Língua Portuguesa. Aí, entre parêntesis, está indicada a base a que se acrescenta o afixo –eza para construir palavras sufixadas em –eza. Para calcular o peso relativo das bases que têm a categoria de adjectivos, nomes, etc., consideramos que as 100 palavras construídas analisadas correspondem a um total de 100%. Como indica a tabela a seguir o sufixo –eza constrói derivados, geralmente, a partir de adjectivos. Em 46% dos exemplos a base é classificada só como adjectivo, em outros tantos é duplamente classificada (como adjectivo e nome, adjectivo e advérbio; nome e advérbio) e em 5% é triplamente classificada e a categoria adjectivo sempre está presente. Praticamente só em 6% dos casos a base não é adjectival. Tabela Nº 1 - Relação categorial entre base e derivado, conforme o Dicionário da Língua Portuguesa Número de exemplos % Adjectivo =» Nome 46 46% Nome =» Nome (ardileza, bicheza, pireza) 3 3% Base duplamente classificada Adjectivo/Nome =» Nome (absurdeza, estranheza, frieza, grandeza) Adjectivo/Advérbio =» Nome (careza) Nome/Advérbio =» Nome (tardeza) 46 46% Base triplamente classificada Adjectivo /Pron./ Nome =» Nome (certeza, presteza, profundeza), Adjectivo/Adv./Nome =» Nome (clareza, forteza) 5 5% Relação categorial entre base e derivado Operação semântica Valor de qualidade Para determinar os valores semânticos das palavras construídas com o sufixo –eza consultamos as definições dessas palavras no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora. Constatamos que o comportamento das palavras sufixadas em –eza é muito regular – em ¾ dos casos o derivado denomina uma qualidade definida no Dicionário com a paráfrase qualidade de Ab (Ab = Adjectivo da base): SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 170 a 185 set. / dez. 2011 174 REVISTA SABERES LETRAS absurdeza s.f. qualidade do que é absurdo; tolice; disparate (De absurdo + -eza) agudeza s.f. qualidade do que é agudo ou cortante; fio; gume; ponta; (...) (De agudo + -eza) ardileza s.f. qualidade de ardiloso (De ardil + -eza) aspereza s.f. qualidade do que é áspero; rudeza; escabrosidade (De áspero + -eza) barateza s.f. qualidade do que é barato; preço baixo (De barato + -eza) braveza s.f. qualidade do que é bravo (De bravo + -eza) Valor de qualidade e de atitude Em poucos casos (9) o derivado denomina tanto a qualidade como a respectiva atitude, acto, dito ou procedimento: esperteza s.f. qualidade de esperto; acto ou dito de pessoa esperta (...) gentileza s.f. qualidade do que ou de quem é gentil; acção nobre (...) malvadeza s.f. o m.q. malvadez (qualidade ou acto de malvado) (...) tacanheza s.f. o m.q. tacanhez (acto ou qualidade de tacanho; mesquinhez, pequenez) (...) torpeza s.f. qualidade de torpe; (...) acto impúdico ou vergonhoso (...) vileza s.f. qualidade de vil; acção vil (...). Só em um caso a remissão aponta para uma função puramente atitudinal: safadeza s.f. o m.q. safadice (“acção de safado; fajardice”). Como sabemos que quase nunca há sinónimos completos supomos que a acepção de qualidade está presente também nesse caso mesmo não sendo atestada. Também só em um caso a definição aponta para a acepção de estatuto/ condição: SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 170 a 185 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 175 realeza s.f. dignidade de rei ou de rainha; monarquia; (fig.) grandeza; esplendor; magnificência; (ant.) realidade (De real + -eza). Valor de qualidade e de estado Em outros 8 casos o derivado denomina qualidade ou estado: limpeza s.f. qualidade ou estado de limpo; asseio (...) madureza s.f. qualidade ou estado do que é maduro (...) magreza s.f. qualidade ou estado de magro; magreira, magrém (...) moleza s.f. qualidade ou estado de mole (...) morbideza s.f. o m.q. morbidez (qualidade ou estado de mórbido) (...) planeza s.f. estado ou qualidade de plano (...) pobreza s.f. qualidade ou estado de pobre (...) rudeza s.f. qualidade ou estado do que é rude (...). A capacidade de alguns abstractos de designar tanto a qualidade como o estado foi observada por muitos autores (Rainer, 1989, p. 355; Van de Velde 1996, p. 173, apud Anastácio, 1997, p. 44). Van de Velde (1996, p. 176) faz a distinção entre os nomes de qualidade e os nomes de estado com base no factor duração. A autora baseia-se na tradição aristotélica que atribui aux qualités une permanence que les états n’ont pas. Com base no critério duração a autora fala da existência de nomes neutros que oscilam entre a interpretação qualitativa e a de estado em dependência da natureza aspectual do contexto proposicional. Essa conclusão é válida também para o português e Anastácio (1997, p. 44) cita o seguinte exemplo: a beleza é o seu trunfo (qualidade não transitória, durativa) e ela esteve duma beleza incrível (estado pontual). A interpretação que a mesma autora dá é a seguinte: Assim: a beleza é o seu trunfo, equivale ao facto de ela possuir a qualidade/propriedade de ser bela e é, portanto, um N QUAL (Nome de Qualidade); ela esteve duma beleza incrível, supõe um estado de beleza em/ SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 170 a 185 set. / dez. 2011 176 REVISTA SABERES LETRAS com que ela se apresentou, sendo, por isso, tomado, neste contexto, como um N EST. (Nome de Estado) (ANASTÁCIO, 1997, p. 44) Também só num caso a remissão para um sinónimo indica uma função só de estado: nudeza s.f. nudez (estado de nu) (...). Acto ou efeito de V Em 3 casos nas definições dos derivados em –eza aparece a paráfrase acto ou efeito de V: limpeza s.f. acto ou efeito de limpar; qualidade ou estado de limpo; asseio (...) pireza s.f. acto de pirar-se (...) segureza s.f. o m.q. segurança (acto ou efeito de segurar; confiança; certificação; tranquilidade de espírito) (...). Trata-se de um sufixo de certa originalidade, dado que ele forma nomes que podem ser classificados simultaneamente como nomes de qualidade e como nomes de acção. O mesmo fenómeno observa Becherel (apud Anastácio, 1997, p. 32) no caso do sufixo –ance/-ence em francês: “il sert à former des dérivés qui tiennent à la fois des substantifs de qualité et de substantifs d’actions. (...) Ainsi: persévérance est à la fois “le caractère de celui qui est persévérant » et « le fait de persévérer », de même que endurance, négligence »”. Acepção colectiva Em meia dúzia de casos na definição do derivado em –eza aparece tanto a acepção de qualidade como a acepção colectiva: bicheza s. f. o m. q. bicharada ou bicharia (De bicho + -eza) grandeza s. f. - qualidade daquilo ou de quem é grande; tamanho; extensão; quantidade susceptível de aumento ou diminuição; tudo o que se pode SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 170 a 185 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 177 conceber maior ou menor; grau de intensidade; valor; importância; excelência; magnanimidade; bizarria; fortuna; ostentação, abundância; nobreza; hierarquia (De grande + -eza) natureza s. f. aquilo com que nasce um ser; o conjunto das coisas que apresentam uma ordem, que realizam tipos ou se produzem segundo leis; o conjunto de tudo quanto Deus criou; o conjunto dos caracteres que fazem que uma coisa ou um ser pertença a uma espécie ou a uma categoria determinada; essência; espécie; qualidade; organização; constituição ou funções de um corpo; funções fisiológicas; conjunto dos traços característicos de um indivíduo; temperamento; carácter; compleição; humor; o mundo exterior; o sistema das leis que regem e explicam o conjunto do mundo exterior; conjunto de todos os seres, animados ou não, que constituem o Universo (nesta acepção grafa-se com inicial maiúscula) (Do lat. natura-, «natureza» ) nobreza s. f. qualidade do que é nobre; distinção; excelência; mérito; gravidade; majestade; elevação de sentimentos; generosidade; a classe dos nobres; fidalguia herdada ou doada pelo soberano (De nobre + -eza) pobreza s. f. qualidade ou estado de pobre; escassez; necessidade; estreiteza de posses; indigência; miséria; penúria; os pobres; (fig.) curteza de inteligência; pouca abundância; pequeno número (De pobre + -eza) riqueza s. f. qualidade do que é rico; abundância de bens; abastança; opulência; magnificência; prosperidade; cópia; fartura; fertilidade; a classe dos ricos; (fig.) ostentação; luxo; beleza de formas; abundância de ideias, de imagens; de expressões (De rico + -eza). A explicação do significado colectivo é simples: a unidade lexical que serve para denominar a qualidade é usada também para denominar o conjunto dos portadores desta qualidade. Assistimos a um processo de concreção. O mesmo acontece nos exemplos a seguir, nos quais, além da qualidade são denominados os seguintes objectos concretos: chaneza s.f. (...) planura (...) SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 170 a 185 set. / dez. 2011 178 REVISTA SABERES LETRAS delicadeza s.f. (...) manjar fino (...) lindeza s.f. (...) coisa linda (...) planeza s.f. (...) planície (...). Tanto o processo de concreção individual como colectiva, tem um carácter imprevisível, esporádico, acidental. Para resumir todos os valores semânticos dos derivados em –eza, tanto fundamentais como secundários, pode apresentar-se a seguinte tabela: Tabela Nº 2. Valores semânticos dos derivados em -eza No de exemplos % 75 75 QUALIDADE E ESTADO 9 9 QUALIDADE E ATITUDE 10 10 ESTATUTO/CONDIÇÃO 1 1 6 6 ACTO OU EFEITO DE V (V = verbo) 3 3 OBJECTO CONCRETO 4 4 100 100 Valores semânticos dos derivados em –eza VALORES DE BASE: QUALIDADE VALORES SECUNDÁRIOS: VALOR COLECTIVO TOTAL SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 170 a 185 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 179 Valores semânticos dos derivados em -eza I Qualidade �0 1 6 3 4 I Qualidade e �stado I Qualidade e Atitude I �statuto/Condição 9 II Valor Colectivo 7� II Acto ou �feito de V II Ob�ecto Concreto No que diz respeito à semântica das bases observa-se que os adjectivos designam exclusivamente pertença social (os grandes, os nobres, os pequenos, os ricos, etc.). A mesma observação tem para o francês Flaux (1999, p. 494-495) que cita exemplos como jeunesse, viellesse, noblesse, etc. A mesma autora também refere que a passagem da qualidade, geralmente, não é para o portador da qualidade mas para o conjunto dos portadores da qualidade: “Ils faut souligner le caractère complexe de la “figure” d’où procède le sens collectif: il ya passage de la qualité non pas au porteur individuel de la qualité mais à l’ensemble des individus porteurs de la qualité en question (...)”. Não são só os nomes construídos de qualidade que podem ter uma acepção colectiva. Fontanier (apud ANASTÁCIO, 1997), cita muitas palavras simples de qualidade que por diferentes processos figurais adquirem também um valor colectivo (calomnie = les calomniateurs). Operadores morfológicos do paradigma dos nomes de qualidade Os sufixos concorrentes de –eza ficam patentes nas remissões que encontramos em vez de definição no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora: -eza =» -ez SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 170 a 185 set. / dez. 2011 180 REVISTA SABERES LETRAS escasseza =» escassez esplendideza =» esplendidez esquiveza =» esquivez malvadeza =» malvadez morbideza =» morbidez nudeza =» nudez parvuleza =» parvulez pequeneza =» pequenez ridiculeza =» ridiculez rispideza =» rispidez robusteza =» robustez rustiqueza =» rustiquez sisudeza =» sisudez sordideza =» sordidez tacanheza =» tacanhez -eza =» -(i)dade profundeza =» profundidade rareza =» raridade rustiqueza =» rusticidade simpleza =» simplicidade -eza =» -idão escureza =» escuridão forteza =» fortidão frouxeza =» frouxidão lenteza =» lentidão vasteza =» vastidão As remissões para os sinónimos sufixados em –ada, -ança, -aria, -ice e –ura são mais bem esporádicas: bicheza =» bicharada segureza =» segurança SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 170 a 185 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 181 bicheza =» bicharia lerdeza =» lerdice safadeza =» safadice brandeza =» brandura Ali (1964) observa que existiu sempre concorrência entre os sufixos desse paradigma: [...] o sufixo –ez parece ter sido no comêço menos produtivo que o segundo (-eza). Vocábulos há de forma dupla: altiveza e altivez, rudeza e rudez, dobreza e dobrez, pequeneza e pequenez, ardideza e ardidez, intrepideza e intrepidez, escasseza e escassez. Alguns têrmos em –eza, por efeito da concorrência de outras formações que significavam a mesma coisa, tornaram-se menos usados ou desapareceram de todo. Igualeza, favoreza, maleza, crueleza, liberaleza, blandeza foram substituídos por igualdade, favor, maldade, crueldade, liberalidade, brandura (ALI, 1964, p. 133-234). A existência de pares de palavras sufixadas em –ez e –eza é explicada por Correia (1999, p. 471) com o fenómeno da regulação analógica, ou seja, o acréscimo dum integrador paradigmático. As palavras em –ez são do género feminino mas não terminam em –a, que é a típica marca do género feminino. Por essa razão essas formas resultam “estranhas” aos falantes menos escolarizados que tendem a acrescentar o morfema –a, que sem trazer nenhuma informação semântica permite inserir as unidades que o ostentam num paradigma muito mais vasto, isto é, o dos substantivos femininos terminados em –a em português. Por essa causa o morfema –a é chamado integrador paradigmático. Traçando um paralelo entre os derivados em –ez e em –eza, Piel (1940, p. 222) afirma que ambos são antigos mas enquanto –ez se junta exclusivamente a latinismos, -eza se combina unicamente com adjectivos populares, tradicionais. Além disso, -ez parece ser de um modo geral mais abstracto e mais literário do que –eza (cf. madurez e madureza, redondez e redondeza). São numerosos os autores que registam que as variantes alomórficas –ez ou –eza dependem do número de sílabas da base: uma base de duas sílabas selecciona, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 170 a 185 set. / dez. 2011 182 REVISTA SABERES LETRAS com preferência, o sufixo –eza (torpe –torpeza), uma base de três sílabas, geralmente, selecciona o sufixo –ez (pequeno –pequenez). Por efeito da concorrência com os sufixos anteriormente citados muitos dos vocábulos em –eza desapareceram: igualeza, fundeza, crueleza, etc. Estrutura morfológica das bases seleccionadas pelo sufixo –eza Em oposição com os sufixos –ice, –(i)dade e –ismo que com frequência seleccionam bases derivadas, o sufixo –eza escolhe sempre bases simples. Isto foi característico também para o seu antecessor em latim, em relação ao qual Piel (1940, p. 221) afirma o seguinte: “O emprego de -ĬTIA limita-se aos adjectivos simples, não derivados: LAET-ITIA, MOLL-ITIA, MUND-ITIA, PUDIC-ITIA ...”. Temos só duas excepções: macieza (De macio + -eza) e sisudeza (De sisudo + -eza). Os dicionários indicam que as palavras macio e sisudo são palavras construídas, respectivamente por meio do sufixo -io e -udo. Produtividade Hoje em dia o sufixo –eza não é produtivo – os campeões absolutos para formar nomes de qualidade em português são os sufixos –(i)dade e –ismo. À mesma conclusão chega para a variante brasileira Sandmann (1992, p. 74) que cita como neologismo só a palavra moreneza no seguinte contexto “a moreneza do socialismo de Brizola”. Conclusões A conclusão principal a que chegámos, como resultado da nossa análise, é que o sufixo -eza constrói, na língua portuguesa contemporânea, nomes de qualidade deadjectivais, parafraseáveis por qualidade de Ab. O sufixo -eza é pouco produtivo, tendo em conta o tamanho do corpus recolhido. No Dicionário da Língua Portuguesa há 126 unidades lexicais terminadas em –eza (em termos de comparação os derivados em –(i)dade e –ismo são 10 vezes mais). A base dos derivados em –eza é fundamentalmente adjectival ou duplamente SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 170 a 185 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 183 classificada como adjectivo e como nome. No que diz respeito à estrutura morfológica das bases o sufixo –eza selecciona exclusivamente bases simples, geralmente constituídas de duas sílabas. Dentro do grupo dos sufixos que formam nomes predicativos o sufixo –eza constrói exclusivamente nomes de qualidade e a qualidade é vista de forma objectiva. Além do valor predicativo (qualidade ou estado, comportamento, estatuto) alguns derivados manifestam valores como o de acção, o colectivo ou objecto concreto. O valor colectivo de alguns derivados em –eza (cf. bicheza, grandeza, natureza, nobreza, pobreza, riqueza) é um valor secundário, assistémico, derivado do valor qualitativo que é o valor fundamental. No caso dos lexemas citados observa-se um processo de concreção – a unidade lexical em –eza que denomina a qualidade passa a denominar também o conjunto dos seus portadores. No que diz respeito à semântica, os nomes de qualidade designam pertença social. Na construção dos nomes de qualidade o sufixo –eza alterna sobretudo com os sufixos -ez, -idade e –idão. A oposição com o sufixo –ez faz-se com base no traço + ABSTRACTO e com base no número de sílabas da base. No que se refere ao carácter erudito ou popular das bases às quais se junta o sufixo pode afirmar-se que ele se combina unicamente com adjectivos populares, tradicionais. O sufixo –eza não é disponível para formar novas palavras em português. Referências ALI, Manuel de Said. 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SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 170 a 185 set. / dez. 2011 186 REVISTA SABERES LETRAS O PAPEL HIPERONÍMICO DOS TERMOS DE CLASSE EM AKWẼ-XERENTE (JÊ) Kênia Mara de Freitas Siqueira* Resumo O objetivo deste estudo é descrever o uso de algumas raízes nominais na função hiperonímica de termos de classe na língua Akwẽ-Xerente, considerando para tal, a relação entre língua e cultura, visando assim, descrever esse uso em consonância com algumas propostas da Etnossintaxe, de âmbito morfossintático e semântico que, entre outros aspectos, aventam a hipótese de que o corpo humano constitui um dos pilares que orienta, mediante relações metafóricas, a construção de um conjunto de referências para designar inúmeros conceitos linguísticos tais como: forma, função dos objetos, espaço, localização, comprimento. Palavras-chave: Língua. Cultura. Termos de classe. Uso. Abstract: This study aims to describe the use of some nominal roots in the hypernym function of terms of class in the Akwẽ-Xerente language, considering for such, the relation between language and culture, aiming at describing such use in accordance with some proposals of Etnosyntax morphosyntactic and semantic scope which, among other aspects, suggest the hypothesis that the human body is one of the pillars which guides, by metamorphic relations, the construction of an assembly of references to assign an endless number of linguistics concepts such as: form, object function, space, location, length. Keywords: Language. Culture. Terms of class. Use. Introdução As questões discutidas neste estudo têm o objetivo de refletir sobre questões referentes a aspectos linguísticos que fazem parte do sistema de classificação nominal e permeiam a categorização nominal da língua Akwẽ-Xerente1, 1* Universidade Estadual de Goiás (UEG). 1 Segundo Rodrigues (1994), língua indígena da família Jê, falada pelo povo de mesmo nome. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 186 a 199 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 187 especificamente no que concerne à relação que se estabelece entre o uso dos termos de classe e o ponto de vista perceptual e funcional constituído sobre bases culturais para essa língua, pois uma descrição linguística desta natureza pode apontar inúmeros aspectos da situação em que se encontra a língua no que concerne às mudanças que possam estar ocorrendo. Ainda que a situação de contato em si não constitua a finalidade deste trabalho, qualquer estudo teórico da língua pode-se mostrar bastante profícuo na elucidação de questões muito amplas acerca da língua, da cultura e da sociedade Akwe)-Xerente. Segundo Wierzbicka (1997), em certo sentido, a discussão que enseja as evidências da relação entre linguagem e cultura constitui um importante arcabouço teórico necessário para compreender que motivações estão na base do uso dos termos de classe, já que a relação entre língua e cultura vem, conforme Lakoff (1986) e Enfield (2002), não apenas aprimorando muitos argumentos favoráveis a ela, como também proporcionando novas visões do assunto, analisado agora sob aportes teóricos mais elucidativos no que se refere ao âmbito, dimensões e contornos dessa relação, cujo escopo pode ser (possivelmente é) entendido como uma via de mão dupla, ou melhor, há entre língua e cultura uma interrelação com dimensões presumivelmente dialógicas. É nesse sentido que se procura descrever a função hiperonímica dos termos de classe já que, em certo sentido, a cada novo estudo sobre a língua Akwẽ-Xerente, novos fatos emergem suscitando dúvidas prementes de serem esclarecidas. Nessa perspectiva, este estudo tem o objetivo de descrever uma série de raízes nominais que funcionam na língua Akwe-Xerente como termos que organizam outros nomes mediante a observação de características que incluem aspectos de diversas ordens. Os procedimentos metodológicos para seleção dados e constituição do corpus segue a metodologia da Linguística de Campo de Kibrik (1977). Para maior clareza e mais visibilidade, os dados são descritos mediante esquemas gráficos, reunidos nos respectivos conjuntos dos termos de classe. Quando não houver no corpus a transcrição de algum dado, usa-se à parte (do gráfico) a relação de alguns itens, escritos em itálico, e de acordo com a ortografia xerente proposta por Krieger e Krieger (1994). Este estudo significa ainda, no âmbito das pesquisas linguísticas, uma pequena Os Akwe)-Xerente compreendem, atualmente, 4000 pessoas e vivem tanto na região da cidade de Tocantínia, estado do Tocantins, em mais de 58 Aldeias, como na própria cidade, o que aponta para um contingente urbano de 400 pessoas. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 186 a 199 set. / dez. 2011 188 REVISTA SABERES LETRAS contribuição no sentido de oferecer subsídios teóricos acerca da situação em que se encontra a língua, como um meio de se pensar na elaboração de programas, principalmente educacionais, que possam auxiliar na preservação da língua e da cultura Akwẽ-Xerente. Termos de classe em Akwe)-Xerente Os termos de classe, conforme Aikhenvald (2000a, p. 59), estão na base da língua, atuam na classificação de uma série de morfemas que vão, por sua vez, participar da origem lexical da língua, são quase sempre explicados mediante a análise de pequenos grupos de exemplos. Os processos em que são usados nem sempre são totalmente explicitados haja vista caráter de formação de palavras em nível pós-lexical. classificam morfemas que participam da origem lexical de uma língua, embora sua existência e classificação funcional sejam facilmente identificadas. Sua descrição é, frequentemente, limitada a pequenos exemplos ilustrativos. A diferença entre morfemas derivacionais e termos de classe é que estes são usados em processos complexos nem sempre claramente elucidados. Ambos, no entanto, têm o rotulo de classificadores de tempo. Ainda de acordo com Aikhenvald (2000b), termos de classe são morfemas classificatórios de origem claramente lexical, apresentam graus variados de produtividade no léxico de uma língua. A composição de nomes envolvendo nomes genérico-específicos pode ser comparada a componentes derivacionais em classes nominais (como berry em inglês – blackberry, strawberry), dado seu alto grau de lexicalização e o fato de serem restritos a uma classe de raízes nominais. Um dos domínios mais comuns dos termos de classe é o das plantas, com o qual as línguas diferenciam características entre árvores, frutos, semente, raiz. Há evidências de línguas que têm classificadores com base nos termos de classe, como, por exemplo, a língua Rama (Nicarágua, CRAIG, 1990). Essa sobreposição do uso de morfemas derivacionais ou flexionais classificadores é mencionada por Payne (1986) para algumas línguas da América do Sul. Consideradas as propostas de Craig (1986); Mithun (1986); Katamba (1993); Matthews(1993); Aikhenvald (2000b), Sousa Filho (2007) para o conceito e descrição de raízes nominais que funcionam como termos de classe (TC), SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 186 a 199 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 189 propõe-se a análise das raízes: du ‘capim’, nRõ2 (coco) ‘palmáceas’, kö ‘água’, kRu ‘roedores’, kuh«) ‘suídeos’, kuk«) ‘quelônios’, ktö ‘animais comestíveis’, si ‘aves’, tbe ‘peixes”, de ‘árvore’, zö ‘sementes’. Essas raízes, recorrentemente, combinam-se com outras raízes formando nomes compostos (C) na língua xerente e esses nomes, geralmente, são usados em função classificadora. Os TC em Akwe)-Xerente funcionam como uma espécie de hiperônimo constituindo um conjunto mais amplo, no qual muitos outros objetos podem ser inseridos, observadas suas características mais gerais e salientes como espécie, tipo, forma, habitat entre outros. Ressaltando também o caráter semântico “agrupador” e a significação mais abrangente de um termo (hiperonímico) sobre outros termos cuja referência remete ao todo ou a alguma parte ou característica do objeto ordenado nas diferentes classes de termos. Dadas as características eminentemente descritivas do composto na língua Akwe)-Xerente (cf, SIQUEIRA, 2007), o TC é um recurso produtivo de nível lexical, em cujas classes pode-se agrupar uma série de indivíduos designados a partir de uma categoria de nível básico a superordenados por meio de uma extensão de sentido, com funções semelhantes a de classificador, mas que, em vez de apontar para características salientes do objeto, organiza os objetos em grupos mediante observação dessas características salientes e afins. De acordo com Siqueira (2009), de certa forma, os termos de classe Akwe)Xerente, atuam como classificadores em nível lexical. Daí a diferença sutil que apresentam em relação aos classificadores propriamente ditos. Morfologicamente, compõem-se (quase sempre justapostos) de: (N3 + N), (N + N + N), (N + N + N + DIM), (N + DIM + N + Com), como em: 1) noda coco-N + bico-NI ‘tucano’ 2- O termo nRõ ‘coco’ estende-se para classificar os objetos que apresentam características seme� lhantes às árvores da família das palmáceas. Não todas, mas grande parte delas. O nome pizu por exemplo, nomeia ‘buriti’, também característico dessa família. ������������������������������������������������������������������������������������������ - 3 À guisa de legenda: ADV – advérbio, class – classificador, Comp – compartivo, DM – di� minutivo, N – nome, NI nome inalienável. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 186 a 199 set. / dez. 2011 190 REVISTA SABERES LETRAS 2) naeö coco-N + velho-N + ADV + Class- (R m)semente-N ‘polpa’ (de coco da praia) 3) kuh«) b« k«)Re porco-N + rabo-NI + cabeça-NI + DIM ‘barrão’ 4) kuhRe kwa ne porco-N + DIM + dente-N + como-Comp ‘quati-macho’ Descrição dos termos de classe Há inúmeros compostos em cuja estrutura ocorrem termos de classe. Em vista disso, tem-se, a seguir, a relação dos TC verificados nos dados, bem como exemplos em que ocorrem e, quando possível, a origem lexical desses termos. Para o TC du ‘capim’, tem-se: 5) du Origem: wadu ‘capim’ Sentido superordenado: ‘capim’ Glossa: dui4 kuze ‘capim de cheiro’ dui kwa dui nĩrn«) ‘sapé’ ‘flor de capim’ 4- Processo morfofonêmico comum nesse tipo de ambiente fonético, trata-se, provavelmente, do alongamento da vogal alta posterior /u/. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 186 a 199 set. / dez. 2011 REVISTA waduihö kRe5 SABERES LETRAS 191 ‘capim dourado’ Em relação ao TC n, o sentido que prevalece é o que aponta para o fato de essas árvores apresentarem tipos de folhas e de frutos semelhantes aos do coqueiro, como se vê em 6. Assim, é possível verificar que o TC ordena uma classe, a das palmáceas (árvores) e todas as que apresentam semelhanças com árvores desse tipo (coqueiros). No entanto, existem coqueiros que não recebem n no nome: pizu ‘buriti’, w«Re ‘buritirana’, kakdo ‘macaúba’. O que evidencia a hipótese de que o uso dos TC se encontra relacionado, de alguma maneira, com convenções e com tradições socioculturais. 6) nRõ Origem: nRõ Sentido superordenado:‘palmácea’ Glossa: nRõ kRu ‘coco’ ‘coqueiro’ nRõ t nRõ p ‘palmito’ nRõ ude su ‘najá’ ‘palha de piaçaba’ Para o TC kö ‘água’, os compostos selecionados remetem ao significado ‘água’. Embora haja homônimos dessa raiz, a formação dos compostos corroboram o sentido ordenado para ‘água, líquido’. O TC köaparece também em inúmeros topônimos, haja vista a grande quantidade de rios, brejos, ribeirões existentes na área xerente. À guisa de exemplos, temse: Aptom hu kâ ‘Brejo do Meio’, Bru pré kâ ‘Ribeirão Galho Grande’, Kâ karê ‘Brejo do Cirino’, Kâ pre kâ ‘Ribeirão Brejão’, Kâ wawe ‘Rio Tocantins’, Kte ka kâ ‘Rio do Sono’, Kte porê kâ ‘Lajeadinho’. 7) kö Origem: kö ‘água’ Sentido superordenado: ‘água, líquido’ 5- Como na frase: waduihirekbuzi paki ‘o capim dourado é longo e fino’. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 186 a 199 set. / dez. 2011 192 REVISTA SABERES LETRAS Glossa: kö pRE ‘enchente’ kö z«)m pR ‘espuma de água’ kö nĩsdu ‘nascente’ kö kurb ‘limbo’ Outro TC: ku engloba o conjunto de indivíduos semelhantes ao rato e apresentam, de certa forma, alguma semelhança com a classe dos roedores. 8) kRu Origem: kRu Sentido superordenado:‘semelhante ao rato’ Glossa: kRu bö ‘rato’ ‘rato grande do mato’ kRu kR«Re ‘camundongo’ kRuktöbi ‘preá’ kRu npokR poRE ‘coelho’ Nem sempre os conjuntos formados são extensos. Há grupos bem numerosos como é o caso de tpe e ude outros com poucos nomes, como ku em 8. O TC ordenado pela raiz kuh parte desta raiz como núcleo dos compostos para outras formações, usando outras raízes e alguns morfemas presos para indicar tamanho e função dos objetos. 9) kuh«) Origem: kuh«) Sentido superordenado:‘qualquer animal semelhante aos suídeos6’ Glossa: kuh«) ba ‘porco-queixada’ ‘porco doméstico’ 6- Entende-se por suídeos todos os animais de cinco gêneros diferentes: o Sus, como os suínos domésticos (Sus scroffa domesticus) e os javalis europeus (Sus scrofa scrofa). Também os Tayas� suídeos: o Tayassu e o Catagonus, cujos principais representantes no cerrado: catetos (Tayassu tajacu) e o queixadas (tayassu pecari). Todos são muito semelhantes. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 186 a 199 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS kuh«) ba kRe kuh«) ba kRe RE ‘cachaço’ kuh«) Re ‘caititu’ kuh«)Rekwa ne)‘quati macho’ 193 ‘leitão’ A raiz kuk«) ‘jabuti’, funciona como núcleo (base lexical) para todos os termos ordenados por esse TC, sendo ‘jaboti’ o mais comum. Os outros indivíduos são nomeados a partir da forma do kuk«), forma essa que é ressaltada, mais larga que comprida, casco (hö), se vive na terra ou na água entre outras. 10) kuk«) Origem: kuk«) ‘jabuti’ Sentido superordenado: ‘quelônio’ Glossa: kuk«) hö p ‘cágado’ kuk«) hö p awRE ‘tartaruga’ kuk«) hö poRe ‘tracajá’ Para todos esses conjuntos de TC há outros compostos. Entretanto, os que aparecem no corpus são elucidativos, pois oferecem uma mostra de como funciona o termo ordenador da classe. Mesmo que alguns objetos não compartilhem todas as características do termo de origem, de alguma forma apresentam semelhanças, como no conjunto abaixo, em que o TC kt ‘anta’ é usado como base para a formação dos demais termos, uma vez que nomeiam objetos inseridos mais recentemente na cultura xerente: bovinos em geral. 11) ktö Origem: ktö ‘anta’ Sentido superordenado: ‘animais comestíveis’ Glossa: ktö kmõ SABERES Letras Vitória ‘gado’ v. 9 n.1 p. 186 a 199 set. / dez. 2011 194 REVISTA SABERES LETRAS ktö kmõ koRe ktö kmõ koRe z«nĩ ‘boi’ ktö kmõ sĩmpikõ ‘vaca’ ‘bezerro’ O próximo esquema traz alguns compostos formados com o TC si, ressaltando características comuns a todos os indivíduos que estão incluídos neste termo geral. 12) si Origem: si Sentido superordenado:‘ave, pássaro’ Glossa: sibaka ‘ave’ ‘garça’ sibaka waw«) sidur kwa pRE ‘gavião’ sika kR« pRE ‘galinha’ sika kR« p 7 ‘pato’ si parhdu ‘urubu’ ‘jaburu-moleque’ Há outros compostos formados a partir do TC si, a saber: si mnãite wawe ‘japim’, si nõ se ‘quero-quero’, si pahiba ‘urubu-caçador-cabeça-amarela’, si pre ‘cigana’. O TC tpe ordena uma das classes mais numerosas, aparece em inúmeros nomes de peixes e de outros animais que vivem na água. O livro Tbê Akwẽ Nimtkaikrembbahã, Peixes da área Xerente, CEGRAF (1997) oferece muitos exemplos da variedade de peixes ordenados pela raiz tpe. 13) tpe Origem: tpe ‘peixe’ 7- Nome do pato doméstico, para pato silvestre a forma é ‘me)ku’. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 186 a 199 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS Sentido superordenado:‘peixe’ Glossa: tpe b« 195 ‘arraia’ tpe kö ‘piaba’ tpe nõ kwa ‘pescador’ tpe to kõ ‘candiru’ tpe wazato ‘piau’ tpe zaRo ‘dourado’ Entretanto, há alguns nomes de peixes que não se ordenam pelo TC tpe, o que mostra que existem classificações diferentes para a mesma espécie, mas que os Akwe)-Xerente ordenam em grupos distintos por razões provavelmente não linguísticas. Como exemplos: ajkRzu8 ‘acari’ (peixe), közaiku ‘boto’, kupi ‘poraquê’, zu ‘traíra’, suwaRa tom sdakRe ne) ‘tucunaré’, suwaRa t sdakRe ne ka ‘corvina’, kukedi ‘pintado’. E ainda o grupo designativo para peixes semelhantes à piranha: wajkwa ~ wajkwa pe ‘piranha’, wajkwa ka ‘pacu’, wajkwa nõkR pte ‘pacumanteiga’, wajkwapRE ‘pacu-bandeira’, wajkwa waRa waw«) ‘caranha’, wajkwaza kRu ‘pacu-do-rabo-vermelho’. O TC ude forma também um conjunto bastante numeroso que funciona como núcleo (genérico-específico) para uma série de compostos cuja base lexical aponta para os significados: ‘árvore’, ‘madeira’, ‘pau’. 14) ude Origem: ude Sentido superordenado: ‘árvore, madeira, pau’ Glossa: bö tum ude ‘urucum do brejo’ ‘árvore’ k«kõ ude ude hö ‘casca de árvore’ ude hu ‘vara’ ‘jatobá’ 8- Transcrição ortográfica conforme Krieger e Krieger (1994). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 186 a 199 set. / dez. 2011 196 REVISTA SABERES LETRAS ude ude kaze ‘serra’ ude kR«) ‘pilão’ ude pa ‘raiz’ ude Re ‘arbusto’ ude samRõ ‘caminhão’ ude zapRumkwa ‘caruncho’ Em relação à posição preenchida por esse TC ude no composto, há uma pequena Na maioria dos dados, ele ocupa a posição final do composto e, à sua esquerda, vem a descrição da ‘árvore’ (específico-genérico). Entretanto, alguns dados indicam que ude pode ocorrer também mais à esquerda do núcleo nominal quando se tratar do nome que se dá ao agrupamento de determinadas árvores: pizu ude hu ‘buritizal’, nRo ude hu ‘babaçual’; No exemplo: sanm«) waw«) ude ktuRe ‘barbatimão’, também aparece à esquerda do núcleo. Isso pode evidenciar que a característica mais saliente dessas árvores (buriti, babaçu, barbatimão) para os Xerente, esteja no formato do tronco e das folhas, as quais são mais específicas dos coqueiros. Em outros dados, para nomes de árvores, na classificação pode-se dispensar o uso desse TC, como nos exemplos: pizu ‘buriti’, bRudu ‘pau-brasil’, kRkonĩstu ‘cachimbeiro”, kune)Re) ‘araçazeiro’, ha ‘sambaíba’. O TC z tem usos variados na língua, ora funcionando como classificador para indicar objetos que apresenta semelhanças com uma semente, ora como um “superordenador” de classe, organizando objetos que são de fato sementes, cf. 15. 15) zö Origem: R m zö ‘semente’ Sentido superordenado: uma semente’ Glossa: no zö SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 ‘qualquer coisa semelhante a ‘milho’ p. 186 a 199 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 197 nRõwaw«) zö ‘polpa de coco’ waps«) zö ‘pulga’ zum zö ‘feijão’ Embora faltem maiores evidências nos dados, pode-se também apontar as raízes hesp ‘banana’ e kupa ‘mandioca’, como termos que organizam uma classe, já que reúnem nomes formados a partir da observação das diferenças de forma, sabor, cor e consistência de objetos semelhantes, mas não iguais. Considerações finais O esforço empreendido neste estudo pautou-se no propósito de descrever alguns aspectos do sistema de classificação nominal da língua Akwe)-Xerente, com a preocupação precípua de dar um tratamento mais específico às questões que envolvem o uso dos termos de classe no que concerne, mais especificamente, à função hiperonímica de suas formações. Por outro lado, dada a complexidade desse aspecto, é preciso ressalvar que muitas questões ainda estão em aberto. A descrição dos dados priorizou o enfoque morfológico, recorrendo também a critérios de natureza semântico-lexical. Por se tratar de elementos de uso classificatório, alguns aspectos morfossintáticos emergiram dos dados, levando a considerações também de cunho sintático. O estudo procurou aprofundar-se em algumas questões já indicadas por Sousa Filho (2007). A descrição dos TC du ‘capim’, nõ (coco) ‘palmáceas’, kö ‘água’, kRu ‘roedores’, kuh«) ‘suídeos’, kuk«) ‘quelônios’, ktö ‘animais comestíveis’, si ‘aves’, tbe ‘peixes”, de ‘árvore’, zö ‘sementes’, são descritos através de esquemas que indicam: o TC selecionado, a provável origem, o composto, o sentido totalizante e a tradução para o português. Alguns desses TC ordenam classes de itens numerosos (tpe e ude), outros organizam conjuntos com poucos itens (z ‘semente’) ou ainda classes mais específicas com um item apenas, mas que apresenta espécies diferentes deste mesmo item. Os termos de classe em Akwe)-Xerente, fazem parte de um grupo semântico cujos traços comuns podem ser delimitados pelas propriedades do objeto a que fazem referência. Os TC coocorrem em combinação com outras raízes, fornecendo aspectos semânticos definidos, principalmente, pelas características SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 186 a 199 set. / dez. 2011 198 REVISTA SABERES LETRAS físicas presentes em seu conteúdo nocional. Ocorrem como núcleo de alguns compostos organizando no nível lexical uma determinada classe nominal. Em Akwe)-Xerente, o uso dos TC é obrigatório, pois não parece possível omitilos sem prejuízo da função “hiperonímica” com a qual organizam e ordenam os itens em um mesmo grupo. Itens que, segundo a cultura Akwe)-Xerente, pertencem à mesma categoria de objetos do mundo. Devido ao alto grau de lexicalização dos termos de classe, pode-se aventar a possibilidade de não considerá-los exatamente como um mecanismo do sistema classificação da língua. No entanto, quando se considera que a função dos TC na língua refere-se, principalmente, à intensa interrelação do povo Akwe-Xerente com a natureza e com os elementos da natureza, parece coerente afirmar que tanto os TC quanto os classificadores nominais e os nomes em função classificadora Siqueira (2010) fazem parte do sistema de classificação nominal da língua. Cabe, mais uma vez, ressalvar que as descrições desenvolvidas neste artigo estão distantes de serem completas, mas podem contribuir para elucidação de algumas questões importantes acerca da gramática da língua Akwe)-Xerente; para compreensão de fenômenos específicos da categorização linguística, inerentes ao modo de vida e visão de mundo do povo xerente, pois, segundo Aikhenvald (2000), as escolhas dos nomes que funcionam como classificadores é típico da família linguística e, até certo ponto, podem ser explicadas por convenções e tradições culturais. REFERÊNCIAS AIKHENVALD, A. 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SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 186 a 199 set. / dez. 2011 200 REVISTA SABERES LETRAS NARRADORES MACHADIANOS EM “BONS DIAS”: ATOS PERFORMÁTICOS EM BUSCA DOS LEITORES OITOCENTISTAS Nelson de Jesus Teixeira Júnior1* Patrícia Kátia da Costa Pina2** RESUMO O presente trabalho busca estudar o ato de narrar machadiano enquanto recurso discursivo de conquista do leitor oitocentista, entendendo “para quê” e “quando” os “narradores” machadianos presentes nas crônicas de “Bons Dias!”, através do ficcional, construíam de maneira performática relatos reais e imaginados, que fisgavam o seu interlocutor. Esse estudo será efetuado por meio de uma análise comparativa entre as crônicas datadas de 19 de abril de 1888, 19 de maio de 1888 e 1 de junho de 1888. Palavras-Chave: Narrador Machadiano. Leitor. Literatura. Crônica. Abstract: This paper explores the act of narrating machadiano as a resource for discursive achievement of nineteenth-century reader, understanding “why” and “when” the “narrators” machadianos present in the book of “Bons Dias!” through the fictional, constructed in a performative stories real and imagined, that comes up your party. This study will be done through a comparative analysis between chronic dated April 19, 1888, May 19, 1888 and June 1, 1888. Keywords: Machado’s narrator. Reader. Literature. Chronicle. 1- * Mestre em Letras: Linguagens e Representações (2011) pela Universidade Estadual de Santa Cruz e professor da Faculdade Montenegro, Ibicaraí-BA. Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) [email protected] 2- ** Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2000), Pós-Doutorado em Letras Vernáculas (UFRJ, 2010). Atualmente é professora Titular de Literatura Brasileira da UNEB, Campus VI, Caeteté-BA. [email protected] SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 200 a 214 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 201 CONSIDERAÇÕES INICIAIS [...] cada leitor, cada espectador, cada convite produz uma apropriação inventiva da obra ou do texto que recebe. (CHARTIER. A aventura do livro: do leitor ao navegador.) A relação entre texto e leitor é marcada por um dialogismo, uma vez que o texto traz consigo sentidos imanentes que provocam a inserção dele, o leitor, sobre a obra. Essa previsão textual de uma relação diádica entre leitor e texto é perceptível na série “Bons Dias”, composta por crônicas de Machado de Assis, escritas entre 1888 e 1889 no Brasil. Essas narrativas levavam ao leitor muitos dos acontecimentos da sociedade carioca por meio de notícias fragmentadas publicadas no jornal A Gazeta de Notícias, impresso que circulava no Rio de Janeiro. Sabemos que a história da crônica no impresso iniciou-se através das produções dos folhetins nas notas de rodapé do jornal e, tratava-se, na verdade, da publicação de partes de romances que tinham a publicação interrompida pelo pouco espaço do jornal que era destinado a essas publicações. Tratava-se, ainda, da estratégia dos autores em parar a publicação no momento exato em que despertasse a curiosidade nos leitores e que conduzisse – os em continuar lendo as outras partes publicadas até construir os caminhos dos sentidos que eram interrompidos pela forma de publicação. Por isso os folhetins apareciam publicados em pedaços que se completavam nas publicações seguintes, o que terminava despertando o interesse do leitor em comprar a próxima edição do jornal para acompanhar o enredo, de caráter contínuo, desse tipo de literatura. Marlyse Meyer (1996) em sua obra Folhetim: uma história, realiza uma pesquisa criteriosa e aprofundada sobre os folhetins, o que nos possibilita compreender um pouco mais sobre a natureza desses escritos que circulavam pelo dezenove brasileiro. Nessa pesquisa realizada por Meyer podemos identificar a discussão realizada pela autora quanto às especificidades do folhetim enquanto tipo de escrita que fascinava os leitores da literatura local SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 200 a 214 set. / dez. 2011 202 REVISTA SABERES LETRAS e estrangeira. A referida autora discute, ainda, sobre o desenvolvimento desse gênero e do espaço ocupado no impresso oitocentista. E por citar a palavra impresso, é preciso entender que o espaço disponível à publicação de folhetins servia como um estratagema para o escritor, pois a depender da aceitabilidade e discussão em torno da obra publicada, já era um bom indício de aceitabilidade de seu escrito e, além disso, o jornal se beneficiava por ter mais um chamariz para o aumento de seus leitores. Meyer discorre da seguinte maneira sobre essa funcionalidade do impresso: A imprensa se alimenta também do brilho das ruas, dos cafés fervilhantes, das reuniões de literatos, de políticos, do teatro onde se trocam boatos e se divulgam as últimas notícias. A esse papel da indústria e das cidades some-se obviamente o do público, que cresce e aumenta suas exigências. Um público que é ao mesmo tempo causa e resultado (MEYER, 1996, p. 91). Esse combustível necessário à imprensa estava bem presente nas notas de rodapé, através dos folhetins, e mais a diante nas primeiras páginas dos jornais através das crônicas publicadas. O caráter múltiplo desses textos literários publicados no periodísmo traziam, dentro de sua razão de ser, a presença do híbrido e multifacetado discurso literário. De uma pequena nota no rodapé da página do impresso ou periódico oitocentista a um espaço no centro de muitas folhas jornalísticas, envolto de outras tantas informações e imagens nos jornais novecentistas e contemporâneos, a crônica tomou espaço e forma suficiente que a coloca na condição de um gênero narrativo literário que viabiliza outras formas de leitura e de relação do interlocutor com o tipo de composição. Logo, mesmo esse gênero sendo um atrativo a mais do jornal, não era usado apenas como uma nota a preencher o espaço da folha, visto que o cronista machadiano aproveitava para informar, conquistar, dialogar e construir novos perfis de leitores. Estudaremos algumas crônicas do ano de 1888, buscando entender como o narrador machadiano, de maneira performática e versátil, flutuSABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 200 a 214 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 203 ando entre o real e o ficcional, poderia atrair os vários perfis de leitores cariocas do dezenove brasileiro. Além disso, pretendemos discutir a relação entre texto e leitor, lançando mão da Teoria do Efeito de Wolfgang Iser. A CRÔNICA... Antes de realizarmos as reflexões propostas no início desse texto, é preciso compreender acerca do começo desse tipo de texto (seja folhetim ou crônica), o qual antecede à história do impresso, chegando ao ponto de se confundir com a história do deus Cronos. Segundo a Mitologia, Cronos era um deus, filho de Urano (o Céu) e de Caia (a Terra). Entretanto, rompendo com a “ordem lógica” da relação familiar estabelecida, ele destronou o pai e casou com a própria irmã, Réia. Seus pais, detentores do saber que previa o futuro, predisseram-lhe, então, que ele seria destronado, assim como aconteceu com seus pais, por um dos filhos que gerasse. Cronos, para evitar a concretização da profecia, passou a devorar todos os filhos nascidos de sua união com a irmã. Até que esta, possuída pelo grande amor materno, grávida mais uma vez, conseguiu enganar o marido, dando-lhe a comer uma pedra em vez da criança recém-nascida. Assim, a profecia realizou-se: Zeus, o último da prole divina, conseguindo sobreviver, deu a Cronos uma droga que o fez vomitar todos os filhos que havia devorado e liderou uma guerra contra o pai, que acabou sendo derrotado por ele e os irmãos. Essa mitologia possibilita entender Cronos enquanto a personificação do tempo e, de acordo com uma das abordagens teóricas dos mitos clássicos, sua lenda pode ser lida, também, como uma metáfora de que o tempo engole tudo (pessoas, objetos, tempos, vidas...), do que é criado à própria criatura. Logo, a relação entre a crônica – termo que deriva, também, da ideia de cronos – e o tempo será sempre de muita proximidade, conforme veremos nas próximas reflexões. A crônica é um gênero literário ambíguo que pertence, ao mesmo tempo, ao jornalismo e à literatura (até onde vai o jornalista e onde começa o escritor?), e que traz uma linguagem aberta aos mais variados assuntos e abordagens. A ausência de imposições limítrofes entre o que pode e o que não pode, viabiliza SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 200 a 214 set. / dez. 2011 204 REVISTA SABERES LETRAS que a crônica devore o cotidiano nas suas mais elásticas possibilidades de abordagens, fazendo de tudo, um motivo para a manutenção do diálogo e da reflexão com seu leitor. ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A CRÔNICA MACHADIANA Em sua crônica datada de 1 de junho de 1888, o cronista trazia ao seu leitor alguns acontecimentos que ainda estavam recentes naquela sociedade, como a ideia de educação enquanto identificadora de classes, já que a maneira de se comportar, tratar ou mesmo conversar, separava o burguês daqueles que não possuíam o ar de “nobreza”. Mas, antes de iniciar o processo definitivo de atualização e discussão dos acontecimentos fluminenses, para estabelecer um diálogo com seu leitor, o narrador de “Bons Dias” convida aquele que já era seu parceiro de leitura e que trazia consigo todas as informações cotidianas: o burguês, o qual ostentava certo orgulho pela sua educação: Agora fale o senhor, que eu não tenho nada mais que lhe dizer. Já o saudei, graças à boa educação que Deus me deu, porque isto de criação, se a natureza não ajuda, é escusado trabalho humano. Eu, em menino fui sempre um primor de educação. (ASSIS, 1997, p. 74). Esse trecho acima representa bem o ar burguês da época, classe que fazia questão de, como um “pavão”, dançar para exibir sua beleza, no caso da classe burguesa nem sempre natural, e conseguir os olhares de admiração. Mas o narrador, ao construir esse foco narrativo, consegue, sem perder os requintes de burguês, seduzir a atenção desse tipo de leitor, o qual tinha como traço marcante de sua leitura a rapidez, o descompromisso, a superficialidade e a parcialidade leitora, o que faz desse foco narrativo um convite à intervenção dele, o burguês. Quanto a essa relação entre a estratégia da crônica e o leitor, cabe refletir sobre a importância desse tipo de linguagem cotidiana do jornal impresso. Em Jornalismo e ciências da linguagem, Gomes (2000) discute um pouco sobre a relação metalinguística entre o Jornal e a linguagem, afirmando que o Jornalismo SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 200 a 214 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 205 exerce uma funcionalidade linguística: “Antes de registrar, informar, antes de ser colocado pelas condições que o caracterizam, por exemplo, periodicidade, atualidade, difusão [...] o jornalismo é ele próprio um fato de língua.” (GOMES, 2000, p.19). Assim, entendemos que o jornal seria como uma metáfora da língua enquanto órgão, já que traria à tona as situações conversacionais e vivenciais próprias dos falantes que o consomem em seu tempo, o que permite a esses consumidores estabelecerem relações bastante próximas, que os fazem se identificarem com aquilo que é publicado no jornal. Ainda abordando a página jornalística, é preciso lembrar que A Gazeta de Notícias permitia ao seu público um acesso constante à sofisticação crescente da linguagem jornalística, fosse por meio das crônicas machadianas que revisitavam e reliam o cotidiano do leitor, fosse pelo uso de outras linguagens como propagandas, notícias, enfim, os mais variados assuntos e formas de abordagens. Sob esse ângulo, vale pensar sobre o que Lúcia Santaella (1996) em Cultura das mídias, especificamente no capítulo que leva o mesmo nome do livro, aborda sobre o jornal impresso, indicando que conseguiu transformar o caráter verbal da palavra escrita, que passou a adquirir uma plasticidade gráfico-imagética: O jornal compõe-se da interação e simultaneidade da linguagem verbal escrita, da linguagem fotográfica e da linguagem gráfica, evidente esta na variação do tamanho e posição dos tipos gráficos no espaço da página como aspecto substantivo da mensagem. (SANTAELLA, 1996, p. 46). Essa relação de jornal e língua permite-nos refletir sobre o processo de seleção, combinação e autodesnudamento, usado pelos escritores que habitam esse espaço da escrita, principalmente os cronistas, os quais permitem que o texto traga consigo as marcas do fingimento, em que o escrito passa a não ser um mero retrato da realidade, tampouco um reduto apenas da ficção. No livro Teoria da literatura em suas fontes, organizado por Costa Lima, especificamente no texto “Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional” SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 200 a 214 set. / dez. 2011 206 REVISTA SABERES LETRAS Iser (2002), refletindo sobre a relação entre o real e o fictício, discute, também, os atos de fingir, a saber, a Seleção, enquanto transgressão de limites em que os elementos do real escolhidos pelo texto se desvinculam da estruturação semântica ou sistemática dos sistemas de que foram tomados. A Combinação, enquanto geradora de relacionamentos intratextuais que se revelam como a intencionalidade do texto. Por fim, o Desnudamento, como um mundo posto entre parênteses, para que se entenda que o mundo representado não é o dado, mas que deve ser apenas entendido como se o fosse. Nessas narrativas de “Bons Dias”, o narrador, a todo instante, estabelece uma conversa com seu leitor, citando-o, trazendo à discussão assuntos do cotidiano, comentando sobre os fatos, fazendo perguntas ao leitor, enfim, se contorce para que esse diálogo seja um constructo que convida quem lê a penetrar e permanecer na leitura do texto. A essa relação de conversa, não escapava a ironia assimétrica, que na narrativa em análise se presentifica muito mais pelo disfarce em não apresentar de vez o assunto ao burguês, o que conferia um ar de diálogo leve e cotidiano, além de curioso: “A minha alma, que nunca se deu com política, dormia que era um gosto; mas os olhos não, esses iam por ali fora, risonhos, aprobatórios.” (ASSIS, 1997, p. 74). Lembrando, ainda, que a questão em discussão nos permite entender um pouco esse perfil de leitor, o qual não era dado aos assuntos políticos e fazia um tipo de leitura por conveniência, uma prática muito comum para uma burguesia que desfrutava dos resquícios da monarquia ainda existente na república. OUTRAS REFLEXÕES SOBRE A CRÔNICA MACHADIANA Partindo para a leitura de outra crônica dessa série “Bons Dias”, na narrativa datada de 19 de abril de 1888 nos deparamos com a representação de uma prática de leitura realizada pelo narrador e, mesmo sem especificar o conteúdo, talvez como estratégia discursiva para ativar o imaginário do leitor, entendemos que a notícia lida tratava-se de alguma informação médica, pois ele cita o Dr. Costa Ferraz, que era um médico da época. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 200 a 214 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 207 Pois olhem, quando eu entrei aqui, vinha alegre; tinha lido umas revelações do amigo Dr. Costa Ferraz, que me lavaram a alma das melancolias pecuniárias, únicas que me afligem deveras. As outras não passam de canseiras ridículas. Falta de dinheiro, isso dói; ao menos, para quem não é governo. (ASSIS, 1997., p. 45). Nessa passagem da narrativa machadiana podemos perceber, também, um certo jogo realizado pelo narrador, visto que mesmo tendo realizado a leitura, não informa para o leitor o teor da informação lida. E, nesse jogo de escondeesconde, o leitor participa da brincadeira como aquele que busca encontrar algo. O teórico Huizinga (2000), em seu livro Homo Ludens: o jogo como elemento da Cultura, discute alguns atributos que envolvem o jogo: “Antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária. Sujeito a ordens, deixa de ser jogo, podendo no máximo ser uma imitação forçada.” (HUIZINGA, 2000, p. 10). Nessa ausência de ordens externas, o leitor é envolvido de maneira voluntária em uma brincadeira de descoberta, mas, descoberta de quê? Aí entra a essência desse jogo realizado pelo narrador, um jogo em que se busca o que necessariamente não se sabe ou não se espera saber. É necessário lembrar, ainda, que o jogo aparece na leitura enquanto caminhos e descaminhos que convidam a intervenção do leitor e esses percursos propostos no texto, os quais são desenhados à espera de uma ação sem ordens (fórmulas) preestabelecidas, o que lança sobre quem lê a importância de usar seu imaginário na construção de significado sobre o lido. Esse jogo em torno da leitura acaba sendo uma prática terapêutica, visto que o próprio narrador cita sua experiência de aflição sendo atenuada por meio da leitura. Nessa passagem em discussão, o leitor torna-se fisgado, também, pela informação na narrativa acerca da importância da leitura enquanto atividade que permite ter acesso ao conhecimento e, ainda, como citado antes, enquanto SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 200 a 214 set. / dez. 2011 208 REVISTA SABERES LETRAS um processo terapêutico que atenua as aflições. O trecho da narrativa machadiana em discussão evoca, ainda, outro assunto a ser objeto de reflexão do leitor, agora sobre o governo. O leitor é convidado a formar um novo olhar sobre o governo local, já que o narrador, por meio de uma citação relâmpago, constrói a imagem de um governo abastado, opulento e extravagante nas finanças, o que nos permite associá-lo metaforicamente à própria imagem da burguesia local. Em outra passagem da mesma narrativa, o leitor é convidado pelo narrador a discutir outra leitura feita, agora, em torno da existência ou não de escravos na sociedade carioca. Essa discussão nos é apresentada de maneira que, em torno dela, surgem perfis diferentes de leitores, visto que a prática da leitura é, também, conforme veremos no trecho em discussão, uma visão de mundo de determinado grupo ou pessoa: Confesso que estimei ler tão agradável notícia; mas, como não há gosto perfeito nesta vida, recebi daí a pouco uma mensagem assinada por cerca de 600.000 pessoas [...] pedindo-me que retifique o discurso do Sr. Fernandes Vilela. Há escravos, eles próprios o são. Estão prontos a jurá-lo e concluem com esta filosofia, que não parece de preto: “As palavras do Sr. Fernandes Vilela podem ser entendidas de dois modos, conforme o ouvinte ou o leitor trouxer uma enxada às costas, ou um guarda-chuva debaixo do braço. Vendo as coisas, de guarda-chuva, fica-se com fuma impressão; de enxada, a impressão é diferente.” (HUIZINGA, 2000, p. 48). Logo, o leitor oitocentista carioca é colocado frente a não apenas assuntos diferentes, mas a práticas de leituras diferentes, em que a leitura de si e sobre o entorno de si é que vai atribuir significado ao assunto em discussão: existência ou não de escravos na sociedade carioca... E, com toda essa questão em discussão, o narrador machadiano traz para o leitor da narrativa de “Bons Dias” caminhos e posturas diferentes que podem ser trilhados e, também, multiplicados pelos SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 200 a 214 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 209 próprios leitores. Vale ressaltar o caráter educativo dessa crônica por trazer para discussão as questões acerca da existência da escravidão, posto que essas narrativas, por meio da educação distensa3, alcançava os mais variados tipos de leitores nos mais variados tipos de locais e das mais variadas formas. Isso, pela plasticidade enunciativa que o impresso tinha de, por meio da linguagem visual, escrita ou oral (através de quem lia) levar um acervo de conhecimentos amplo à população carioca em geral. Esse tipo de educação possibilitada através do impresso permite-nos entender a importância que teve o jornal na veiculação de saberes e, principalmente, para os mais variados tipos de leitores, os quais mesmo não tendo acesso ao espaço escolar, se atualizavam com as informações. Pina (2002), em Literatura e jornalismo no oitocentos brasileiro aborda essa funcionalidade educadora: [...] a educação distensa, repito, independendo diretamente de espaços escolares institucionais leva um acervo de conhecimentos bem mais variado e amplo a população - qualquer um, mesmo analfabeto, pode saber o que está escrito em um jornal [...]. (PINA, 2000, p. 36). A autora sugere a importância que teve o jornal impresso enquanto veiculador de saberes, o qual tinha alcance garantido para as mais variadas classes de leitores. Com isso, o alcance do jornal era amplo e certo, pois se tratava de um transmissor de informações rápido e eficiente por ser uma mídia que facilitava (e ainda facilita) a leitura em locomoção, o acesso à informação por via de outros leitores e a permissão ao interlocutor de ler em qualquer lugar público. Além disso, o impresso permitia o acesso aos jornais que passavam do dia de venda, pois, 3- PINA (2002), em Literatura e jornalismo no oitocentos brasileiro, especificamente na 1ª parte do livro, a autora trabalha a ideia de educação distensa enquanto um saber que transcende o espaço escolar tomando outros rumos como o esforço pessoal do interlocutor e a divulgação via mídias, como por exemplo o impresso. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 200 a 214 set. / dez. 2011 210 REVISTA SABERES LETRAS ainda que o leitor não consumisse no devido dia de tiragem, poderia ter acesso aos jornais por outros meios, já que tinham (e ainda tem) um prazo de validade, ou seja, são consumidos em um dia e jogados fora em outro. Em algumas situações, ocorre nesses textos machadianos a heterogeneidade enunciativa, posto que há momentos em que as próprias personagens exercem várias posturas discursivas em uma mesma crônica, como é o caso da narrativa de 1 de junho de 1888, em que a personagem conversa sobre si “Eu, em menino fui sempre um primor de educação.” (ASSIS, 1997., p. 74). Entretanto, nessa crônica, o mesmo personagem exerce uma função de narrador, por retomar seu próprio passado e, ainda, de cronista, por sair da função de personagem, afastando-se da história ficcional e convidar o leitor a exercer um juízo de valor sobre o que foi relatado na narrativa “Tiro o chapéu, como fiz agora ao leitor; e dei-lhe os bons dias do costume. Creio que não se pode exigir mais. Agora, o leitor que diga alguma cousa, se está para isso, ou não diga nada, e boas noites.” (IDEM, p. 76). Esses tipos de leitores descritos aqui eram, na verdade, leitores implícitos, conforme reflete Iser (1996), o qual entende que a participação do leitor no processo de leitura relaciona-se à natureza perspectivística do texto, dado que seus elementos condicionam determinadas reações. Dessa maneira, a ideia de leitor implícito é de grande relevância no desenvolvimento da leitura estética, pois, aliada aos estímulos produzidos no imaginário do leitor, o incita a assumir um papel ativo na construção da ficção: As perspectivas do texto visam certamente a um ponto comum de referências e assumem assim o caráter de instruções; o ponto comum de referências, no entanto, não é dado enquanto tal e deve ser por isso imaginado. É nesse ponto que o papel do leitor, delineado na estrutura do texto, ganha seu caráter efetivo. Esse papel ativa atos de imaginação que de certa maneira despertam a diversidade referencial das perspectivas da representação e a reúnem no horizonte de sentido (ASSIS, 1996, p. 75). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 200 a 214 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 211 Essa teoria iseriana nos permite entender que a relação entre texto e leitor completa-se e que o resultado se concretiza com a operacionalidade do leitor sobre o texto, o que nos dará maior amparo em estabelecer relação entre as estratégias discursivas de Machado de Assis e seu leitor, seja ele o burguês ou mesmo outro perfil de leitor implícito. REFLEXÕES FINAIS SOBRE A CRÔNICA MACHADIANA Por fim, a crônica de “Bons Dias” datada de 19 de maio de 1888 que se refere ao escravo Pancrácio, permite uma leitura do engodo que foi a aplicabilidade prática de algumas leis, especificamente as abolicionistas existentes no Rio de Janeiro: Eu pertenço a uma família de profetas... Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa dos seus dezoito anos [...] (ASSIS, 1996., p. 62). A dívida que o liberto levaria consigo se confirma no trecho a seguir, o qual deixa claro, por meio do foco narrativo dado pelo narrador, que a “liberdade concedida” não passava de uma outra forma de escravidão, em que o liberto por não ter condições de se manter, acabava vindo para seu antigo senhor ser novamente usado. No caso de Pancrácio, o texto permite-nos fazer uma leitura bem mais complexa, pois Pancrácio se torna escravo duas vezes, uma por ter que voltar para o seu senhor, pois não tinha condição de se manter e, escravo pela segunda vez, porque devia um preço pela generosidade de seu senhor, pois ele foi liberto antes mesmo de ser aprovada a lei da abolição. Segue o texto em discussão: No dia seguinte chamei o Pancrácio e disse-lhe com SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 200 a 214 set. / dez. 2011 212 REVISTA SABERES LETRAS rara franqueza: — Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que... [...] Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos. (ASSIS, 1996, p. 63). Aqui, nos deparamos com uma alusão ao “leitor politizado”, que não vê nada com um olhar rápido, mas, questiona, refuta e constrói outras leituras... perfil de leitor que era construído pelas narrativas e pelo foco construído pelo narrador de “Bons Dias”. Em se tratando de leitura e/ou tipos de leitores, em A formação da leitura no Brasil Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1998) fazem um passeio sobre a história da leitura no Brasil passando, também, por números e cifras que envolviam as negociações dos produtores literários com as editoras, as esparsas escolas oitocentistas existentes, formas de circulação de livros e impressos e, também, os poucos leitores existentes. O que permite entender que as reflexões em torno desse leitor oitocentista são, antes de tudo, uma história sobre o impresso, a leitura, as políticas públicas em torno da leitura, por que não afirmar, sobre nossa própria história. CONSIDERAÇÕES “FINAIS” Portanto, a série de crônicas “Bons Dias” permitiria ao leitor do oitocentos brasileiro, por meio da plasticidade do narrador machadiano, estabelecer uma relação mais próxima com os fatos cotidianos a partir de uma leitura crítica, irônica, humorística e convidativa, o que possibilitava manter o leitor habitual, o burguês e, ainda, construir novos perfis de leitores, o politizado, os quais eram SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 200 a 214 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 213 fisgados pelo seu cotidiano, pelo seu hábito à adentrar no mundo de leitura das crônicas escritas em forma de mosaicos. Assim era “Bons Dias” - com um título sugestivo de saudação e com formas de narrar multifacetadas e plásticas, convidava seus leitores e construía muitos outros... REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. Bons Dias. Introdução e notas de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1997. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. 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SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 200 a 214 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 215 NAS LINHAS E ENTRELINHAS DAS NARRATIVAS DO TIPO HISTÓRIA: UM ESTUDO DA ORGANIZAÇÃO ENUNCIATIVA E POLIFÔNICA Raquelli Natale1* Micheline Mattedi Tomazi2** Resumo Este artigo pretende contribuir com a pesquisa linguístico-discursiva, mais especificamente para o estudo do fenômeno da polifonia em um texto do tipo narrativo. Nosso objetivo é verificar como a polifonia e a intertextualidade contribuem para a produção de efeitos de sentidos pelo leitor. Nosso objeto de análise é a narrativa O Dragão (releitura de A Bela Adormecida), presente na obra “Que história é essa?”, de Flávio de Souza (2007). Para tanto, partimos dos conceitos e princípios relacionados ao Modelo de Análise Modular (MAM), desenvolvido por Roulet; Filliettaz e Grobet (2001) privilegiando a dimensão situacional e a dimensão interacional, conjugadas às formas de organização enunciativa e polifônica do discurso. Palavras-chave: Modelo de análise modular. Polifonia. Discurso das narrativas infantis. Intertextualidade. Abstract: This project want to contribute with the search discursive-linguistic, more specifically to the phenomenon of polyphony an text of type narrative. Our object is to check as the polyphony and the intertextuality contribute for the production of effects of sense by the narrator. Our object of analysis is the narrative “The Dragon” (reading of “Beauty Sleeping”), present in the book “What’s story this?” Flavio de Souza (2007). For both, the concepts and principles related to the Modules of Analysis Modulate (MAM), developed by Roulet; Filliettaz; Grobet (2001) privileging the dimension situational and the dimension interactional, combined the forms of organization of discourse enunciative and polyphonic. 1- * Graduanda em Letras na Universidade Federal do Espírito Santo – UFES – Aluna PIBIC de Iniciação Científica, Vitória, Espírito Santo, Brasil. [email protected] 2-** Professora doutora do Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal do Espí� rito Santo – UFES – Vitória, Espírito Santo, Brasil. [email protected] SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 216 REVISTA SABERES LETRAS Keywords: Modelo de análise modular. Polyphony. Infantile narrative discours. Intertextualidade. Considerações iniciais A intenção de trabalhar com o gênero contos de fadas não surgiu abruptamente. O mundo maravilhoso do conto infantil está presente no nosso imaginário social e sempre nos instigou. Se, por um lado, a história demonstra que a voz da tradição oral tomou forma no texto literário, por outro, as variantes intertextuais nos fazem ver que esse gênero textual foi e continua sendo retomado, tantas vezes, a serviço de outras enunciações que reforçam, entre outras coisas, o caráter dialógico da linguagem. Esse gênero, então, pode ser tomado pelo direito e pelo avesso, instigando o pesquisador a buscar as relações que o constituem: do enunciado com a enunciação, do eu com o outro, da expressão com o conteúdo. Partindo dessas premissas, propomos a análise do texto “O Dragão”, presente na obra literária “Que história é essa?”, de Flávio de Souza (2007), com a intenção de verificar como seu caráter dialógico, intertextual e polifônico, promove as vozes enunciativas e, como o reconhecimento da polifonia e das relações intertextuais permite a produção de efeitos de sentidos pelo leitor. Para desenvolver a análise do conto, optamos pelo aparato teórico-metodológico oferecido pelo Modelo de Análise Modular (MAM) proposto por Roulet; Filliettaz e Grobet (2001). Entendendo, de imediato, que a noção de intertextualidade difere da noção de polifonia e, ainda, considerando as reflexões que a leitura da obra escolhida para este trabalho provocou em nós, partimos dos seguintes questionamentos: Qual a relevância do fenômeno da intertextualidade na suscitação de vozes, no texto narrativo, e como essa ferramenta é utilizada no texto? De que maneira a polifonia contribui para a produção de sentido na narrativa da obra literária, “Que história é essa?”, de Flavio de Souza (2007)? Qual a relação entre os diferentes níveis de SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 217 interação no discurso do tipo narrativo? Como a acoplagem das informações do módulo interacional com as formas de organização enunciativa e polifônica contribuem para a evidência das construções polifônicas? Para tanto, num primeiro momento, faremos um breve percurso pelo atual Modelo de Análise Modular (MAM), a fim de demarcar nossa posição e escolha dentre os módulos e as formas de organização que serão utilizados em nosso trabalho de análise. A partir dessa delimitação do campo teóricometodológico, propomos a análise do texto para, em seguida, apresentarmos nossas conclusões. Um percurso pelo Modelo de Análise Modular Para trabalhar com uma análise modular, o primeiro passo dado foi no sentido de apresentar, ainda que rapidamente, o atual Modelo de Análise Modular (MAM), que se constrói a partir de uma perspectiva interacionista da linguagem, e reconhece o discurso como o resultado de uma interação linguageira que se organiza em três níveis: o linguístico, o textual e o situacional. Segundo Cunha (2009, p.2), em linhas gerais, o MAM configura-se como um sistema de análise que integra e articula, numa perspectiva cognitivo-interacionista, as dimensões linguística (ligadas à sintaxe e ao léxico da variante linguística utilizada), textual (ligadas à estrutura hierárquica do texto) e situacional (ligadas ao universo de referência e à situação de interação) da organização do discurso. O MAM é um aparato teórico-metodológico que não sustenta análises interpretativas, mas sim, que as propõe, como um instrumento capaz de tornar nossas análises mais sustentáveis, além, é claro, de permitir uma maior disciplina do ponto de vista teórico-metodológico. Segundo Roulet; Filliettaz e Grobet, (2001) a hipótese que sustenta a análise modular é a ideia de que o discurso pode ser decomposto em módulos e em formas de organização e se constrói pela utilização de um repertório linguístico em uma situação de interação. Nessa perspectiva, justifica-se a escolha de um discurso do tipo narrativo, visto que a narrativa, ou melhor, todo texto que apresenta a predominância de sequências narrativas, é um relato focado num SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 218 REVISTA SABERES LETRAS fato ou acontecimento, em que há personagens atuando em uma situação de interação, e um narrador, que relata a ação num espaço e tempo determinados, o que justifica nossa pretensão em estudar como esse tipo textual se constitui em se tratando de sua forma de organização enunciativa e polifônica. De acordo com Roulet; Filliettaz e Grobet (2001), (...) l’approche modulaire de l’organization du discours implique une double exigence: a) décomposer l’organisation complexe du discours en un nombre limité de systèmes (ou modules) réduits à des informations simples et b) décrire de menière aussi précise que possible la manière dont ces informations simples peuvent être combinées pour rendre compte des différentes formes d’organisation des discours analysés. (Roulet; Filliettaz e Grobet, 2001, p.42)3 Pelo método proposto nesse modelo, cada dimensão pode ser descrita de forma independente, num primeiro momento de découpage, e depois completada com a couplage dos dados alcançados com a descrição das dimensões. Assim, o objetivo maior deste estudo é analisar a narrativa, tomando como base a teoria genebrina, desenvolvida por Roulet, Filliettaz & Grobet (2001). O quadro, abaixo, representa o modelo mais atual do MAM proposto pelos pesquisadores: ����������������������������������������������������������������������������������� - O aporte teórico modular da organização do discurso implica uma dupla exigência: (a ������ de� compor a organização complexa do discurso em um número limitado de sistemas, reduzidos a informações simples e; b) descrever, de maneira bastante precisa, a forma através da qual essas informações podem ser combinadas para dar conta das diferentes alternativas de organização dos discursos analisados. (ROULET; FILLIETTAZ E GROBET, 2001, p. 42, tradução nossa). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 219 Fig. 1: Quadro do MAM proposto por Roulet; Filliettaz e Grobet (2001, p.51). Trajeto da análise A partir dos conceitos da teoria modular, Roulet, Filliettaz & Grobet, (2001) concebem a análise do discurso por módulos, uma vez que o discurso pode ser decomposto em sistemas de informações que, por sua vez, podem ser descritos independentemente e, posteriormente, as informações obtidas de cada módulo podem ser relacionadas, dando uma visão apurada de toda a completude do discurso. Roulet e sua equipe defendem a ideia de que o discurso em si não é constituído por módulos, mas que, para analisá-lo, devido à sua complexidade, as bases do que chamou de teoria modular são satisfatórias. Dessa forma, para alcançar SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 220 REVISTA SABERES LETRAS a análise de uma forma de organização complexa como a polifônica há um percurso metodológico que passa por informações modulares e, ainda, pelas informações das formas de organização elementares até que se possa evidenciar a complexidade de uma forma de organização como a polifônica. De acordo com os pressupostos do MAM (ROULET; FILLIETTAZ E GROBET, 2001), a análise das informações polifônicas se dá pela descrição da organização enunciativa, a primeira etapa de análise da organização polifônica. A segunda e mais importante é a etapa que nos permite refletir sobre a função dos discursos representados no discurso produzido. A forma de organização elementar enunciativa constitui-se da acoplagem de informações advindas da relação dos discursos com os níveis do quadro interacional (módulo interacional), da ordem linguística, quando os discursos representados são marcados (módulo lexical) e, caso os discursos não venham marcados, das informações que são de origem situacional (módulo referencial). A descrição da organização enunciativa é apenas a primeira etapa de análise da organização polifônica. A segunda e mais importante é a etapa que nos permite refletir sobre a função dos discursos representados no discurso produzido. Podemos dizer que a noção de polifonia adotada pela abordagem modular dialoga com a concepção de polifonia bakthiniana, mas a grande contribuição trazida pela proposta do MAM, em nosso ponto de vista, é a ideia da polifonia como uma noção complexa na qual podemos perceber a intervenção de outras formas de organização do discurso. Segundo o MAM (ROULET; FILLIETTAZ E GROBET, 2001), a forma de organização complexa polifônica é o resultado da couplage de informações de ordem linguística (lexical e sintática), interacional, hierárquica, tópica e periódica. Dessa forma, reconhecemos que uma análise enunciativa-polifônica, de acordo com a proposta pelos autores, deve considerar, pelo menos, informações de um dos módulos e de uma das formas de organização elementares. A partir dessa visão, para que sejam evidenciadas as vozes constitutivas do texto narrativo O Dragão (releitura de A Bela Adormecida), presente na obra “Que história é essa?”, de Flávio de Souza (2007), percorreremos um caminho SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 221 que possibilita uma análise enunciativa-polifônica da referida obra, a saber: buscamos informações dos módulos referencial e interacional e as conjugamos com as informações da forma de organização elementar e da forma de organização polifônica. A figura, abaixo, representa o percurso que escolhemos para a análise: Fig. 2: Quadro com o percurso de análise que propomos para a narrativa. Contando a história numa dimensão referencial A narrativa escolhida para análise, O Dragão, de Flávio de Souza (2007), é conhecida como um conto de fadas que se constitui como uma variação da fábula ou conto popular carregado de conhecimentos e valores culturais. Assim, a sociedade tem uma influência enorme acerca da construção do discurso que fica pautado, entre outras coisas, na inquietação e no contexto de produção deste público. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 222 REVISTA SABERES LETRAS O módulo referencial é definido por Roulet; Filliettaz e Grobet (2001, p.103) como um componente elementar do discurso e trata das relações que as produções linguageiras mantêm com as situações nas quais foram produzidas, bem como com os ‘mundos’ que representa. Segundo os autores: Parce que ces actions et ces concepts sont partiellement régulés par des attentes typifiantes, et toujours négociés en situation, le module référentiel doit décrire non seulement les représentations schématiques (praxéoloxiques et conceptuelles) sous-jacentes au discours, mais encore les structures ou configurations émergentes (praxéoloxiques ou conceptuelles) qui résultent de réalités discursives particulières (ROULET; FILLIETTAZ E GROBET 2001, p. 103)4. Conforme a citação acima é possível considerar que o módulo referencial trata das ações linguageiras e não linguageiras e que essas construções estão subjacentes ao discurso, resultado da interação entre os indivíduos. Em decorrência disso, é possível propor as categorias que descrevem as ações, conceitos e atividades envolvidas numa interação: 4- Porque essas ações e estes conceitos são parcialmente regulados por expectativas tipificantes, são sempre situações negociadas, o módulo referencial deve descrever não só as representações esquemáticas (praxeológicas e conceituais) subjacentes ao discurso, mais ainda as estruturas ou configurações emergentes (praxeológicas e conceituais) que resultam de realidades discursivas particulares. (ROULET; FILLIETTAZ EGROBET, 2001, p. 103, tradução nossa) SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 223 Assim, para dar conta do mundo representado, desenvolvemos, abaixo, uma breve representação praxeológica da narrativa “O Dragão”, a fim de captar elementos que escapam a questões estruturais, tais como: intenção, objetivo, motivo, agente. Pode-se observar a presença de dois grupos acionais no quadro acima, um que é motivado por elementos de produção de textos e outro na leitura deles. Para que os objetivos de cada grupo sejam alcançados são utilizados artifícios de persuasão, principalmente quando nos referimos ao escritor. Para que sejam elencados mais elementos inerentes ao contexto de produção veremos o quadro acional que, para Rufino (2006, p.53), configura-se como instrumento de análise das ações desencadeadas em contextos efetivos, explicitando-se a forma de organização das mesmas, por meio de cinco parâmetros independentes: o modo, a finalidade, os papéis praxeológicos, a direção e o grau de engajamento, e o complexo motivacional. Vejamos, abaixo, a proposta de configuração de um quadro acional construído a partir da interação entre o autor do conto, Flavio de Souza, e seus leitores ou público-alvo, em que são identificados os papéis praxeológicos dos interactantes envolvidos. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 224 REVISTA SABERES LETRAS As ações descritas no quadro acional, acima, apresentam a motivação do escritor e do leitor para com a obra. Desse modo, temos, por parte do escritor, o intuito de apresentar uma releitura da história “A bela adormecida” e, com isso, estimular no leitor diversas sensações como: a imaginação para inferir o conto do qual é feita a releitura; o encantamento com a possibilidade de novas imagens criadas a partir de um novo roteiro; a venda do livro; a intertextualidade com o lançamento de pistas que corroboram para a averiguação do caráter polifônico do texto e a alegria que traz a literatura. Já, para o leitor, são apontadas as seguintes ações: a diversão como um meio de distração e lazer para quem tem a leitura como essa prática; a aventura como critério de viagem pelas linhas e entrelinhas do texto; o deleite, pois o texto é tido como um prazer para os que gostam de ler e se deliciam com isso; a busca pelo saber e conhecimento de mundo. Temos, ainda, que considerar a estrutura praxeológica que, de acordo com Rufino (2006, p. 56), “ao contrário da representação praxeológica dá conta das propriedades emergentes de uma interação efetiva (...)”. Desse modo, a estrutura praxeológica de um texto do tipo narrativo (história) constitui, dentro da formação histórico-social brasileira, a exposição dos elementos de formação dessa cultura que foi representada para o mundo, através de canções, poemas, danças, fábulas, entre outros. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 225 A partir dessa estrutura praxeológica da narrativa, no texto “O Dragão”, que ora analisamos, percebe-se uma representação intertextual, uma vez que o autor se apropria de uma narrativa famosa, de origem francesa, escrita por Charles Perrault e a re-constrói com novas aventuras. Propomos, então, a seguinte estrutura praxeológica para a narrativa “O Dragão”. Segundo o esquema, o estado inicial aponta o início da narrativa com um protótipo bastante utilizado: “Era uma vez...”. Tal expressão ativa, no leitor, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 226 REVISTA SABERES LETRAS um determinado pacto de leitura que o leva a reconhecer o texto como ficcional, dando a entender, num primeiro momento, que se tratará de mais um conto de fadas como tantos outros. Contudo, a sensação de estranhamento logo aparece para o leitor, que reconhece um conto às avessas, já que o personagem principal dessa história é um dragão, e não um príncipe ou uma princesa como nos outros contos. Desse modo, a história contada solicita que o leitor recupere, em sua memória discursiva, não só os conhecimentos prévios sobre o gênero textual, contos de fadas, e sua ficcionalidade, mas, sobretudo, que o leitor abra espaço para a retextualização da estrutura padrão desse gênero. Como se não bastasse, o leitor ainda é convidado a recuperar o texto-fonte para imprimir-lhe uma nova ressignificação. É, pois, a estrutura praxeológica da narrativa que permite, ao leitor, essa interpretação do texto. Se o estado inicial aciona pelo “era uma vez” um conhecimento prévio sobre o gênero textual conhecido como conto de fadas, a apresentação das personagens já inicia uma quebra de expectativas no leitor. Não só o dragão é o personagem principal da histórica como vive na lua e faz tudo aquilo que caracteriza um campo semântico infantil: brinca de escondeesconde, de pega-pega, de futebol, de basquete, de vôlei, canta, dança, come salsichas e ouve histórias que se passam “naquela bola verde-azulada, conhecida como Terra”. Em seguida, após esse estado inicial, a estrutura praxeológica nos faz ver uma complicação que aponta, novamente, para o estranhamento: o dragão se depara com uma personagem típica dos contos de fadas, a bruxa. O interessante, nesse momento, é que o dragão só reconhece a bruxa porque se recorda “das histórias que contavam lá na Terra”, indicando, para o leitor, que esse personagem é próprio dos contos de fada conhecidos pelo senso comum, pertencentes ao nosso acervo cultural. Esse personagem não é capaz de fazer com que o leitor perceba “Que história é essa?”, já que ela, a bruxa, praticamente caracteriza um conto de fadas e está em todos eles. É neste momento que o personagem principal se aventura por outras terras, ou melhor, para a Terra onde irá viver muitas peripécias. Assim como nos contos de fada tradicionais, a bruxa assume, também nesse conto, o perfil de um personagem do mal. É ela que está tramando contra as histórias da Terra e pretende contar com a ajuda do dragão que, sem saber ainda do que se trata, aceita acompanhá-la até a Terra por conta SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 227 de salsichas. O dragão só fica sabendo a tarefa que irá realizar quando chega “num lugar da Terra” e, lá, entre a curiosidade e a admiração, descobre que precisa impedir a entrada do príncipe no castelo. No terceiro quadro dessa estrutura praxeológica, temos a resolução do conflito, no qual “O Dragão” passa por momentos de decisão que colocam em prova o seu caráter e a sua identidade como herói. Ora, nesse ponto, a história não surpreende tanto, uma vez que o dragão, como personagem principal, assume as características tipológicas de um herói que decide ajudar o príncipe e enganar a bruxa má, independente do que ganharia ou não com sua ação. Só assim, o príncipe pode entrar no castelo e salvar a princesa com um beijo. Nesse momento, o leitor já recuperou parte do texto-fonte e passa a ressignificá-lo. O último quadro da estrutura praxeológica representa o estado final que recupera a estrutura dos contos tradicionais, uma vez que o dragão volta para sua casa e vive feliz para sempre. Todo o percurso dessa estrutura praxeológica é dado na ordem cronológica de como a história foi contada e, cada quadro traz, em si, a passagem que representa o momento narrativo. É interessante pensar que essa representação estrutural não ilustra somente o dado narrativo, mas sim as intenções narrativas do autor, o contexto de produção da obra e, ainda, tudo o que envolve o interlocutor. Nessa perspectiva, cabe-nos reforçar a representação praxeológica da narrativa realizada anteriormente que trata exatamente das construções coletivas subjacentes ao discurso. O módulo Interacional interpretativa e sua contribuição Todo discurso implica um modo de interação e este se dá conjugado a elementos temporais e espaciais em que se situam os interactantes envolvidos. Nesse momento de interação nascem construções linguísticas que são resultado do SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 228 REVISTA SABERES LETRAS caráter dinâmico e dialógico do discurso. Desse modo, toda interação arranja-se dentro de parâmetros de ordem material do qual é feito o discurso e não no qual esta materialidade já signifique. Contudo, o módulo interacional contempla a materialidade de uma situação de interação: le canal de l’interaction: c’est-à-dire le support physique per les interactants: oral, écrit, visuel; le mode d’interaction: c’est-à-dire le degré de coprésence spatiale et temporelle des interactants; le lien d’interaction: c’est-à-dire le retroaction, réciprocité ou non réciprocité, entre les interactants (ROULET; FILLIETTAZ E GROBET, 2001, p.141)5. Percebe-se que a interação deve ter, minimamente, dois interactantes e que, para cada par de interação, temos um nível. Há de se ressaltar também a relação íntima entre este quadro e o acional, construído acima, que apresentou a relação entre escritor e leitor e a motivação de cada um. As informações obtidas pela dimensão interacional podem ser representadas por meio de um enquadre interacional. Vejamos, abaixo, a construção do quadro com o intercâmbio entre leitores e a narrativa em análise: ���������������������������������������������������������������������������������������������������� - O canal de interação: quer dizer o suporte físico utilizado pelos interactantes; o modo de intera� ção: quer dizer o grau de co-presença espacial e temporal dos interactantes; a relação interacional ou tipo de vínculo, quer dizer, a retroação, reciprocidade ou não da comunicação (ROULET; FILLIETTAZ E GROBET, 2001, p.141, tradução nossa). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 229 Observamos que no enquadre geral da narrativa temos as seguintes situações de interação: no nível de encaixe mais externo, temos a relação de interação que marca o início de todo o enquadre interacional da narrativa e que compreende a relação do escritor do texto-matriz, Charles Perrault, texto que serviu de referência para a produção do novo texto, com o seu leitor, Flávio de Souza. Observamos, nesse enquadre interacional, uma relação de interação entre autor/escritor (Charles Perrault) e o leitor/interlocutor (Flávio de Souza) por um canal escrito, numa distância temporal e espacial e numa relação de nãoreciprocidade. Vale notar, aqui, que esse enquadre interacional poderia ser mais SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 230 REVISTA SABERES LETRAS complexo se recuperássemos a relação interacional do autor, Charles Perrault, como leitor/ouvinte dos contos orais de sua época que serviram de mote para a produção do que chamamos de texto matriz. Em seguida, no próximo nível interacional, temos um nível de interação entre autor/escritor (Flavio de Souza) e leitor/público e intenção, com uma relação interacional de não-reciprocidade, uma distância espaço-temporal, e um canal escrito que representa, pois, a obra publicada em uma determinada editora. No nível imediatamente interno a este, temos as posições do autor (Flavio de Souza) e a do leitor/público-alvo e interpretação, numa relação de distância espaçotemporal, não-reciprocidade e por um canal escrito. O que diferencia os dois níveis já citados são posições acionais ou referenciais do leitor. No primeiro nível, encontramos o leitor previsto pelo autor do texto e, no segundo nível, encontramos o público propriamente dito que pode, ou não, ter as características pretendidas pelo autor ao imaginar um público-alvo para sua narrativa. Num nível intermediário desse enquadre, temos a interação entre narrador e narratário, dado por um canal escrito, distância espaço-temporal, e com uma relação de não-reciprocidade. Neste nível de encaixe, temos o autor empírico do texto, Flávio de Souza, como autor e escritor da obra, que dá voz e vez ao narrador do texto, para que ele se relacione com o seu narratário. Essa relação se estabelece com o narrador projetando seu discurso em outro ser, que não o leitor, com quem poderá ter uma relação de índole diferente. O narratário, por sua vez, irá delinear o narrador com características mais precisas de um indivíduo. Na relação mais interna, relacionada aos personagens, marcada pela linha pontilhada, temos as posições de interação entre personagens: aqueles que dialogam durante a narrativa, estão presentes em um mesmo tempo e espaço e dividem uma cena repleta de reciprocidade. As informações interacionais obtidas acima são importantes, pois serão consideradas principalmente na continuação da análise em que tomamos como base as duas formas de organização: a enunciativa e a polifônica SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 231 As formas de organização enunciativa e polifônica A organização enunciativa do discurso “qui repose principalement sur le couplage d’informations d’ordres linguitique, interactionnel et référentiel (...) (ROULET, FILLIETTAZ E GROBET6 2001, p. 281) diz respeito ao registro do locutor em seu discurso, porém apresenta suas opiniões e posicionamento diante dessa alocução. Neste momento, podemos relacionar o quadro interacional apresentado acima que mostra os níveis de encaixe, do mais interno ao externo, possibilitando ver o momento em que o locutor poder opinar em seu discurso. Para que as diferentes formas discursivas sejam evidenciadas é importante separar os tipos de discursos que compõem a enunciação. Trata-se do discurso produzido e o discurso representado. O primeiro é o que o “autor diz” e pode ser observado, também, no quadro interacional, no nível de encaixe mais externo de interação. O segundo trata-se daquilo que o autor “diz que alguém diz” e pode ser visto nos níveis de encaixe mais internos do quadro interacional. Desse modo, podemos destacar como exemplos de discursos representados, os seguintes fragmentos: a) Formulado: forma de representação direta, eventualmente introduzida por um verbo de fala, dois pontos, travessão ou aspas. (ROULET; FILLIETTAZ E GROBET, 2001, p.283). - Qual é a coisa que você mais gosta? b) Designado: O discurso pode ser designado por um verbo ou sintagma nominal, geralmente uma nominalização: verbo (suplicar, chamar, etc.), sintagma nominal (súplica, etc.) (_...) O senhor poderia me dar licença? c) Implicitado: “A implicitação, em geral, é marcada por conectores que têm o papel de estabelecer um encadeamento implícito com o discurso do interlocutor, portanto não ocorrem em intervenções monológicas” (RUFINO, 2006, p.90). Esse tipo de discurso é característico do diálogo e é iniciado por conectivos como: mas, ora, bem, no início da réplica. 6- (...) que repousa principalmente sua couplage de informações de ordem linguística, interacio� nal e referencial (...). (ROULET; FILLIETTAZ E GROBET, 2001, p. 281, tradução nossa) SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 232 REVISTA SABERES LETRAS - (...) Mas eu prometo que não vou fazer nenhuma maldade para você, tá bom? Segundo Roulet; Filliettaz e Grobet (2001, p.286) temos ainda três informações importantes para fazer a distinção do discurso que nos são fornecidas pela acoplagem das informações enunciativas e interacionais, são: o discurso diafônico (aquele que representa o discurso do interlocutor), o polifônico (que representa os discursos de terceiros) e o autofônico (que representa o discurso do próprio locutor no passado ou no futuro). Os discursos representados no MAM possuem as seguintes formas de representação: discurso representado formulado assinalado por [...]; discurso representado designado assinalado depois da expressão que o designa por [ ]; discurso representado implícito representado na frente do conector por [ ]. Para analisar a narrativa “O Dragão” seguiremos o seguinte critério de representação: colchetes à direita, sempre precedidos da ocorrência da voz: E = escritor (Flavio de Souza), N= narrador e as iniciais de cada personagem de acordo com a narrativa. A polifonia no discurso é evidenciada pela presença de outras vozes que apontam para diferentes pontos de vista, trazendo à baila os componentes intertextuais do texto. Como disse Bakhtin (2003), (...) pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em três aspectos: como palavra da língua neutra e não pertencente a ninguém; como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados; e, por último, como a minha palavra, porque, uma vez que eu opero com ela em uma situação determinada, com uma intenção discursiva determinada, ela já está compenetrada em minha expressão (Bakhtin, 2003, p. 294). A narrativa “O Dragão” é um conto de fadas contado às avessas que motiva o leitor a decifrar a história “original”, como já foi mencionado acima. Quanto aos discursos presentes no texto, observa-se um escritor que intercala os canais de diálogo com o referente de acordo com a sua intenção, ora escrevendo para um SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 233 público geral, ora para o interlocutor a que ele toma como referente durante sua criação e vai deixar entrever nas entrelinhas pistas para poder captar o leitoralvo. De início, ao atrelar o título à imagem, observa-se que o personagem principal da história é um dragão e que a aventura será praticada por ele. Para causar um efeito curioso, o autor coloca um duplo título na narrativa, misturando as sílabas e dificultando a leitura do que se quer dizer: “Ora camalba de die ou O Dragão”. Nesse ponto, nos defrontamos com o duplo que aponta para a característica intertextual e polifônica do discurso. Essa estratégia faz o leitor iniciar o texto já tentando decifrar algo, ou seja, aquilo que o autor resolveu não revelar na primeira instância, e que instiga o leitor a ativar em sua memória discursiva. Nesse nível temos um discurso representado formulado indireto polifônico, visto no trecho abaixo: N [Era uma vez] um dragão que morava na Lua. Assim, a história é iniciada com o famoso elemento anafórico “Era uma vez...” que, conforme já citado anteriormente, é uma característica do conto de fadas. Tomamos esse elemento como polifônico, já que sua inserção faz com que o leitor recupere, de imediato, a voz de um discurso ficcional. Um importante elemento que marca o início da jogada intertextual é a entrada do personagem principal da história, O Dragão, que pode ser evidenciado na frase já mencionada acima. De início, o autor insere na narrativa o personagem principal da história que também foi colocado no título do texto. Isto está presente no nível do quadro interacional onde falamos na intenção do escritor. Nos trechos seguintes há a inserção de mais um personagem comum aos contos de fadas: a Bruxa. No primeiro nível de interação temos um discurso produzido: escritor x leitor, já num segundo nível, observa-se a presença de um discurso formulado indireto livre polifônico: Então ele viu uma E [ N[coisa muito estranha, parecida com um dos personagens das histórias que contavam lá da Terra. Parecida com uma bruxa. ] Nesse ponto, observamos a interação entre o escritor/narrador e o leitor e logo temos um discurso repleto de polifonia, uma vez que o narrador retoma SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 234 REVISTA SABERES LETRAS outros discursos ao dizer que o “Dragão” viu um personagem parecido com os das histórias que contavam lá na Terra. Esse trecho estabelece uma relação intertextual com os outros contos de fadas que pudermos recuperar em nossa memória discursiva, visto que já estamos embalados no desejo de decifrar de qual história o autor faz a releitura. Outro fator relevante é a figura alegoria que se apresenta por meio da palavra “Terra”, destacada em letra maiúscula no meio do texto, para se referir ao planeta Terra. No fragmento posterior: B [“Boa tarde, como vai você? Eu sou uma bruxa!”] instaura-se o discurso representado formulado direto autofônico com a fala da bruxa, que começa a dialogar com o dragão. Mais adiante temos: N [“A bruxa saiu voando na vassoura dela. E o dragão saiu voando atrás. Porque os dragões têm asas, tá bom?”]. Aqui temos um exemplo de discurso representado formulado indireto autofônico e polifônico, pois, ao final do parágrafo, o narrador onisciente faz uma intromissão no discurso para explicar uma possível dúvida que o leitor possa vir a ter sobre como um dragão poderia voar. Esta estratégia é outro componente da organização enunciativa que, além de reforçar a intertextualidade, permite pela retórica responder às indagações do leitor, à medida que a história vai tomando forma e aludindo ao conto famoso. Nesse aspecto, podem ser apontadas as multiplicidades de vozes inerentes ao texto que emanam nos sentidos das palavras. Contudo, a locução do narrador, continuada na passagem a seguir, vai oporse ao conhecimento comum, quanto ao fato de o personagem se mostrar uma bruxa boa, mesmo afirmando, anteriormente, que vive fazendo maldades. Retomemos, pois, o fragmento: B [“– Não fique com medo de mim. Eu sou uma bruxa e vivo fazendo maldades. Mas B [ ] eu prometo que não vou fazer nenhuma maldade para você, tá bom?”.] Temos, na primeira frase um discurso representado formulado direto autofônico e na segunda frase um discurso implicitado polifônico marcado pelo conectivo interativo mas ao se iniciar a réplica. O discurso é polifônico, pois a retórica irá conduzir o interlocutor, novamente, a refletir sobre a imagem que tem das bruxas das histórias que conhece, principalmente, quando o narrador usa, para essa colocação, o operador argumentativo “mas”, para posicionar a bondade da personagem. Para Ducrot (1987), o “mas” constitui um operador argumentativo SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 235 por excelência, pois legitima uma opinião contrária. Ainda nesse trecho, observase a presença do “não”, um enunciado negativo, que pressupõe um enunciado afirmativo de outro enunciador. No trecho próximo N [“Na frente de um castelo velho”], observa-se um discurso designado polifônico, marcado pelo sintagma nominal em que percebe-se a alusão ao elemento castelo, também muito presente nos contos de fadas e, ale, disso, a qualificação deste castelo com o advérbio velho. Esse componente intertextual é ainda reforçado pela descrição da imagem vista pelo dragão: N [“Em toda volta deste castelo tinha umas plantas cheias de espinhos”], figura comum das histórias com a mesma definição de discurso representado. No próximo fragmento N [“E quando chegasse um príncipe encantado, o dragão tinha que fazer cara de bravo e dar uma baforada de fogo no príncipe. Ou dar uma patada no príncipe. Ou pular e cair em cima do príncipe”.] há a menção de mais um personagem dos contos de fadas: o príncipe encantando, introduzida pela voz do narrador num discurso representado formulado indireto livre polifônico, que na verdade, representa a voz da bruxa delegando as tarefas ao dragão. É importante marcar o uso do substantivo “príncipe” e do adjetivo “encantado” utilizados pelo narrador a fim de apontar dois elementos presentes nas histórias fantásticas. Mais adiante, na fração N [“O dragão se espantou, porque viu, através de uma das janelas, um monte de gente dormindo. Ele achou estranho, porque já estava na frente do castelo a um montão de tempo e não tinha escutado nenhum barulhinho.”] temos outro discurso representado formulado indireto livre polifônico em que o narrador representa a voz do dragão, inclusive, impressões e sentimentos, que estimula mais uma informação importante na memória discursiva do leitor, principalmente quando somada ao trecho seguinte: N [“E pensou: D [Eu não sabia que as pessoas ficavam dormindo por anos e anos e anos aqui na Terra!”]]. Temos aqui um discurso representado formulado direto polifônico do narrador representando o pensamento do personagem dragão que promove a marca de polifonia e ainda traz mais uma informação para o leitor que se trata de que na história há pessoas dormindo, adormecidas ou encantadas. Dando sequência ao enredo, temos um diálogo entre o príncipe encantado e o dragão num discurso representado formulado direto autofônico: P[“- Boa tarde. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 236 REVISTA SABERES LETRAS Eu sou um príncipe encantado. Preciso entrar neste castelo para salvar uma princesa que está encantada]. E depois um discurso designado autofônico: P [O senhor poderia me dar licença?”]. Aqui se apreende a voz de outro personagem: o príncipe, e nesta fala, a presença de várias informações que corroboram as inferências já realizadas. Se pensarmos no quadro interacional, veremos que estamos lidando com o nível de interação mais interno que se dá entre personagens, pois temos um diálogo entre o Dragão e o Príncipe. D[“- Como vai, senhor príncipe encantado? Boa tarde! Eu vou deixar você entrar no castelo”]. Há também o uso do vocábulo “encantado (a)” no trecho, ora para qualificar o príncipe, ora para a princesa. Contudo, o uso deste adjetivo, na narrativa reforça o campo semântico dos substantivos e evidencia o jogo intertextual, pois o leitor se pega tentando recuperar em sua memória discursiva as histórias com princesas que ficam, de alguma forma, presas a um tipo de encantamento. Note-se bem o uso da expressão: “que está encantada”, e não “é encantada”. Neste momento, o interlocutor irá somar esta informação às outras já fornecidas, como por exemplo, a de que havia pessoas dormindo no castelo há mais de cem anos, e concluirá de qual conto famoso se trata a releitura. Nesse instante, os sinais de intertextualidade com a história de A Bela Adormecida estão visíveis, e todas as pistas para que esta analogia possa ser feita são fornecidas pelas vozes marcadas na narrativa e bastam apenas algumas últimas revelações para que o interlocutor complete seu entendimento. Um delas é o beijo do príncipe na princesa para desfazer o encantamento. N[“O dragão espiou também por uma das janelas do castelo. E viu o príncipe beijar uma moça que estava dormindo. A moça acordou. O príncipe pegou a princesa no colo. Montou em seu cavalo. Saiu do castelo. Agradeceu o dragão. E foi embora.”]. Após esse trecho, um discurso representado formulado indireto polifônico, tecido pelo narrador, o leitor conclui que suas hipóteses realmente se referem à história de A Bela Adormecida, principalmente pelo escritor fechar a história como a original, na realização e satisfação dos personagens que vivem felizes para sempre. Esse último fragmento analisado se dá marcado pela polifonia face aos elementos intertextuais presente na narração como o beijo que acorda a princesa que estava encantada, o cavalo e a felicidade dos dois. Conclusões SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 237 Toda essa mandraca avivada no livro Que História é essa?, de Flávio de Souza (2007), revela que a obra conta mais do que contos de fadas, na verdade, aqueles contos, tão presentes em nossa memória discursiva, são (re)contados de um ponto de vista diferente, (re)alocando os personagens das histórias conhecidas tradicionalmente. Nessas narrativas, estruturadas dialogicamente, porque requerem diálogo constante com histórias conhecidas pelo senso comum, o leitor é convidado, senão, convocado, a recuperar o texto matriz em sua memória discursiva, uma vez que ele foi utilizado, intertextualmente, para dar vida ao novo texto. Trata-se de recuperar o caráter dialógico da linguagem pensando nas narrativas que contadas de pai para filho atravessam gerações. Assim, o conto narrado pelo ‘avesso’ incita o leitor a reconhecer, em sua memória discursiva, as vozes que ecoam nas entrelinhas do texto, buscando um ponto de ‘ancoragem’ para decifrar de que história famosa o autor fez a releitura, momento em que se percebe a estratégia proposta pelo título como elemento catafórico, a questionar, incitar, estimular, desafiar e, por que não, provocar o leitor a recuperar Que história é essa?. Da mesma forma, é preciso considerar que essa “provocação” é apresentada no título por uma marca específica, ou seja, a pergunta retórica. Contudo, foi possível depreender que a intertextualidade tem um papel importantíssimo para a evidenciação da polifonia no texto, uma vez que, através das marcas intertextuais conseguimos encontrar a voz do outro no discurso. Para tanto, foi necessário estabelecer primeiramente os níveis da dimensão referencial, para chegarmos à estrutura praxeológica da narrativa “O Dragão” e, logo após, a dimensão interacional em que foram evidenciados os níveis de interação na narrativa. Por fim, com a acoplagem das informações acima e as formas de organização enunciativa e polifônica findamos a breve análise apresentando as marcas de polifonia em todo o conto e a maneira como o autor nos as apresentou através de seu discurso. Desse modo, para que o efeito de identificação seja causado no interlocutor, o autor constrói sua obra pincelando-a com pistas. Na verdade, ele vai caminhando com o texto, e deixando ‘migalhas de pão’ durante todo o caminho, a fim de que o leitor entenda o caráter intertextual da obra, cuidando, sempre, é claro, para que os ‘passarinhos’, dessa vez, não comam as migalhas. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 238 REVISTA SABERES LETRAS Referências BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CUNHA, G. X. O tratamento tópico em uma perspectiva modular da organização do discurso. Rio de Janeiro: Estudo Linguísticos, 2009. DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987. SOARES, I. C. R. As narrativas orais populares da Amazônia paraense: vozes múltiplas que contam as histórias do povo. Belo Horizonte. Faculdade de Letras da UFMG. 2003. (Tese – Doutorado em Linguística). SOUZA, F. de. Que história é essa?: novas histórias e adivinhações com personagens de contos antigos. São Paulo: Ed. Schwarcz Ltda, 2007. ROULET, E.; FILLIETAZ, L.; GROBET, A. Um modele et um instrument d’analyse de l’organisation dudiscours. Berne: Peter Lang, 2001. RUFINO, J. de A. As Mulheres de Chico Buarque: Análise da complexidade discursiva de canções produzidas no período da ditadura militar. (Mestrado em Estudos Linguísticos) – Faculdade de Letras da Universidade de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 215 a 238 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 239 Gêneros: um conceito entre a Teoria da Enunciação e a Análise de Discurso – AD: algumas reflexões. Silvana da Silva Ribeiro1* Resumo O conceito de gêneros textuais hoje se faz presente e necessário em todo estudo que envolva o texto. O texto está presente na vida das pessoas, de suas histórias, de suas práticas sociais. E o gênero é entendido como resultado das práticas sociais que os seres humanos realizam. O presente artigo visa mostrar algumas reflexões sobre a forma como o estudo dos gêneros é procedido na perspectiva da Teoria da Enunciação e na perspectiva da Análise do Discurso francesa, especificamente, com Maingueneau. Palavras-chave: Gêneros. Teoria da Enunciação. Francesa. Análise do Discurso Abstract: The concept of genre today is present and necessary in any study that involves the text. The text is present in people’s lives, their histories, their social practices. And genre is understood as the result of social practices that humans do. This article aims to show the trajectory of the concept of genre from the perspective of the Theory of Utterance and the prospect of French discourse analysis, specifically with Maingueneau. Key-words: Genre. Theory of Utterance. French Discourse Analysis Considerações Iniciais O trabalho como os gêneros textuais no Brasil começou a se popularizar a partir de 1990. Tivemos acesso a um estudo mais sistemático acerca desse tema em Marcuschi (2002), obra por meio da qual o autor apresenta os gêneros textuais 1- * Silvana da Silva Ribeiro – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará- UFC. Bolsista da Fundação de Amparo à pesquisa do estado do Piauí- FAPEPI. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 240 REVISTA SABERES LETRAS como práticas sócio-históricas que têm como uma das características principais, o fato de contribuir para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia, bem como de serem considerados como entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa. O autor defende de forma muito conveniente que estes não são instrumentos estanques e enrijecedores de ação criativa e que anunciam eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Na obra supracitada, percebe-se que, historicamente o surgimento dos gêneros ocorre, numa primeira fase, entre povos de cultura oral, entre os quais é desenvolvido um conjunto limitado de gêneros, que se multiplicaram depois da invenção da escrita, tendo se expandido com o florescimento da cultura impressa para, na fase intermediária de industrialização, dar início a uma grande ampliação. Atualmente, na fase denominada cultura eletrônica, encontram-se novos gêneros e novas formas de comunicação, tanto na linguagem oral quanto na escrita. A noção de gênero está bem mais próxima do discurso, e talvez por isso mesmo os gêneros sejam considerados como resultado de práticas sociais. E estas, no fim das contas são, frequentemente, materializadas por meio dos gêneros. Em virtude disso não se pode deixar de dar uma atenção especial para o tema gêneros do discurso. O objetivo deste artigo é fazer algumas reflexões sobre a forma como o estudo dos gêneros é procedido na perspectiva da Teoria da Enunciação e na perspectiva da Análise do Discurso francesa, especificamente, com Maingueneau. O gênero discursivo Em se tratando do estudo do gênero discursivo, outra definição relevante trazida por Marcuschi (2002) é a de “domínio discursivo”, que designa uma esfera ou instância de produção discursiva ou de atividade humana. Nessa perspectiva, o autor define o texto, como uma entidade concreta realizada materialmente e corporificada em algum gênero textual do discurso. Os gêneros denominados novos têm bases que não são consideradas por Marcuschi (2002) como tais. Essa proposição ainda é atual e válida até hoje, visto que é concretamente perceptível, se analisarmos os textos que surgem no ambiente on-line. O contrário também ocorre, visto que nem sempre teremos gêneros novos em bases novas, por vezes, têm-se os velhos gêneros com novas roupagens adequadas ao domínio SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 241 discursivo no qual são veiculados. Além disso, as tecnologias ligadas à área de comunicação propiciaram o surgimento de novos gêneros textuais e a intensidade do uso dessas novas tecnologias e sua interferência nas atividades comunicativas diárias influenciaram o aparecimento de novos gêneros textuais, dando visibilidade a um fenômeno que Marcuschi (2002) já anunciara, abrindo a discussão sobre um fenômeno que também perpassa a constituição dos gêneros discursivos e ainda é discutido, agora de forma mais veemente do que na época da publicação da obra deste autor, que é a transmutação de um gênero e a assimilação de um gênero por outro gerando novos gêneros. Esse fenômeno mais recentemente foi discutido também por Araújo (2004), em cuja obra o linguista propõe que a conversação em tempo real, ocorrida nos chats, é resultado da transmutação do diálogo cotidiano de sua esfera de origem para uma esfera eletrônica, a Web. O autor levanta a hipótese de que é possível flagrar as marcas dessa transmutação, a partir da bricolagem das semioses som-imagemescrita, que se materializa no chat. A base teórica que embasa este relevante estudo é representada por Bakhtin (1997) no que concerne aos conceitos de gênero, esfera e transmutação. De acordo com Araújo (2004), a análise das marcas da transmutação permitiu que o texto do chat, sendo um evento sóciointeracional, alcançasse o status de gênero discursivo. Um primeiro ponto que merece destaque porque subjaz às questões supramencionadas no parágrafo anterior é a noção de língua, que pode ser associada ao conceito de esfera de comunicação trabalhado por Bakhtin (1997), conforme defende Araújo (2004). O autor afirma que como a língua é um lugar de interação humana entre sujeitos, é inevitável que esses encontros se tornem complexos e acabem, por sua vez, reclamando gêneros do discurso, que confiram suporte verbal aos sujeitos dessa interação. Para demonstrar a intrínseca relação entre o papel do domínio, tomado como espaço no qual os sujeitos se encontram, e entre os gêneros do discurso que, por sua vez, conferem um suporte verbal para que esses sujeitos desempenhem seus papeis comunicativos, Araújo (2004, p. 92) conclui que o desprezo da esfera na qual o gênero se insere pode nos trazer o risco de cairmos numa ideia mecanicista de gênero discursivo, camuflando um fato relevante da teoria bakhtiniana - a atenção dada às especificidades das atividades humanas e dos gêneros discursivos que as constituem. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 242 REVISTA SABERES LETRAS O autor também contribui com a questão da flutuação terminológica presente em Bakhtin (1997) acerca do fenômeno denominado esferas de atividade humana, esferas de comunicação e esfera de utilização da língua. Ele defende o posicionamento de Marcuschi (2002), como pertinente, no que concerne a empregar o termo “domínio discursivo” para designar uma esfera ou instância de produção discursiva ou de atividade humana. E fecha a discussão descrevendo, de forma bastante esclarecedora, o posicionamento de Marcuschi e mostrando a definição que Bakhtin (1997) oferece para os gêneros do discurso ao defender que os discursos que surgem de uma esfera, trazem inevitavelmente, as marcas e as finalidades do domínio do qual procederam. Conclui-se desse modo, que a esfera de comunicação é um espaço próprio para as práticas de comunicação humanas. E em função da necessidade comunicativa essas práticas fazem surgir os gêneros do discurso, os quais, além de organizar a comunicação entre indivíduos, trazem as marcas da esfera, conferindo-lhes uma relativa estabilidade. Entendemos que os textos que surgem no ambiente digital podem ser um bom exemplo ilustrativo desse fenômeno de relatividade em função à esfera de seu surgimento. O estudo dos gêneros já se concentrou, a depender da área que tomava esse fenômeno textual, na oralidade ou na escrituralidade, embora atualmente tal questão esteja bem mais bem delimitada. Como não temos a intenção de nos alongar em todos os domínios de estudo de gêneros, mas apenas na forma como o procederam a teoria da enunciação e a AD francesa, nos concentraremos agora na forma como Bakhtin tratou sobre os gêneros do discurso. Os gêneros do discurso na perspectiva bakhtiniana As concepções de língua, enunciado e gêneros do discurso são entidades, que para Bakhtin (1997), estão intimamente relacionadas, para o bom funcionamento da comunicação. A variedade das esferas da atividade humana dá origem a vários gêneros do discurso, que segundo o autor resultam em formas-padrão “relativamente estáveis” de um enunciado, determinadas sócio-historicamente. O filósofo da linguagem vai mais além, ao definir, de forma muito feliz, que só nos comunicamos, falamos e escrevemos por meio de gêneros do discurso. Sabe-se que os gêneros do discurso sofrem constantes atualizações ou transformações. A esse respeito, Bakhtin (1997, p. 106) afirma que “o gênero SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 243 sempre é e não é ao mesmo tempo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo.” O trecho destacado, de certa forma, explica o sentido da expressão “relativamente estável”, pois, os gêneros se modificam para atender às necessidades da sociedade. A carta, por exemplo, recurso de comunicação bastante usado em épocas anteriores, de certo modo, atualmente, perdeu espaço para o e-mail, em função do fato de a sociedade atual necessitar de agilidade e rapidez no processo de transmissão das informações. No entanto, a carta não deixou de existir, na realidade, o que pode ser perceptível é a restrição de seu uso. A esse respeito, Bakhtin (1997, p. 284) defende que cada esfera abriga os gêneros apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos. Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico. E, assim, os gêneros vão sofrendo modificações em consequência do momento histórico no qual estão inseridos os autores de suas produções e de outros aspectos aos quais não nos reportaremos pelo fato de não ser este o objetivo deste artigo. Cada situação social dá origem a um gênero com suas características peculiares. Seja em função da infinidade de situações comunicativas ou por outras razões ligadas à utilização da língua, infere-se que os gêneros são, consequentemente, infinitos. Bakhtin relaciona a formação de novos gêneros ao aparecimento de novas esferas da atividade humana, com finalidades discursivas específicas. Esse alto nível de heterogeneidade fez com que Bakhtin (1997) propusesse uma primeira grande “classificação”, dividindo os gêneros do discurso em dois grupos: primários e secundários. O filósofo da linguagem relacionou os primeiros às situações comunicativas cotidianas, espontâneas, informais e imediatas, como a carta, o bilhete, o diálogo cotidiano. E os segundos, que são geralmente mediados pela escrita, aparecem em situações comunicativas mais complexas e elaboradas, como o teatro, o romance, as teses científicas, etc. Pode-se afirmar com base nisso, que tanto os gêneros primários quanto os secundários possuem a mesma essência, visto que ambos são compostos por fenômenos da mesma natureza - os enunciados verbais. O que os diferencia é o nível de complexidade em que se apresentam. Tal posicionamento é bastante pertinente, mas pensamos que a ele devemos acrescentar a informação de que SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 244 REVISTA SABERES LETRAS gêneros secundários têm uma característica que é bastante marcante e não pode ser desconsiderada em se tratando do advento das TIC’S – Tecnologias da Comunicação e Informação, que conferem aos gêneros que surgem dentro do ambiente digital, nas palavras de Marcuschi, uma certa plasticidade. E em nosso entendimento o ambiente digital, também denominado ambiente virtual – AVA, também, já pelo suporte no qual se constitui propicia uma dinamicidade muito maior aos gêneros digitais do que aqueles que não têm o AVA como seu nascedouro. Além disso, é relevante frisar que mesmo os textos que não nascem no ambiente digital, mas que são disponibilizados nesse tipo de ambiente ainda recebem influência de sua natureza dinâmica e tecnológica. Um exemplo que pode ilustrar nosso pensamento é o caso do recado, que não nasceu no AVA, mas que no orkut aparece enriquecido com emoticons e outros aspectos típicos do ambiente digital. Ou seja, não é só o fato de um gênero ser mediado pela escrita que faz com que ele apresente um nível de complexidade maior, porque características como o espaço e as inovações tecnológicas serão influenciadores tanto de sua complexidade quanto de seu alcance social. Uma associação à natureza do gênero bem oportuna é a que Bakhtin (1997) faz ao associar os gêneros do discurso com as circunstâncias de comunicação. Para esse autor não se justifica minimizar a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso e a consequente dificuldade quando se trata de definir o caráter genérico do enunciado, pois, nessa perspectiva, é relevante levar em consideração a diferença essencial existente entre o gênero de discurso primário (simples) e os gêneros de discursos secundários (complexos). Os gêneros secundários do discurso - o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico etc. – aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica. Assim, os gêneros secundários, durante o processo de sua formação absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea. Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios. Embora esse posicionamento também não leve em conta o fator supramencionado, isto é, as possibilidades advindas do emprego SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 245 das TIC’s na comunicação, tem uma relevância significativa por considerar as circunstâncias de comunicação cultural. Nesse caso, a associação feita objetivou justificar a distinção entre os gêneros primários e secundários considerandose a circunstância cultural mais complexa e relativamente mais evoluída para evidenciar o fenômeno de transmutação como fora supramencionado, que consiste no fato de os gêneros secundários, durante o processo de sua formação absorverem e transmutarem os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que por sua vez, se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea. A noção de enunciado também se faz relevante para o tratamento dos gêneros de acordo com a teoria da enunciação. E nessa perspectiva, Bakhtin (1997, p. 293) defende o enunciado como a unidade real da comunicação verbal e nessa ótica, a fala só existe, na realidade, na forma concreta, produzida, dos enunciados de um indivíduo: do sujeito de um discurso-fala. O discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma. O que se pode entender com essa afirmação do autor é que o enunciado é mais do que uma unidade convencional e sim uma unidade real, a qual é estritamente delimitada pela alternância de sujeitos falantes. E essa alternância dos sujeitos falantes é mais facilmente percebida no diálogo real. Desse modo, entende-se que é no diálogo, devido à sua clareza e simplicidade, que se tem a forma clássica da comunicação verbal, como pode-se corroborar nas palavras do próprio Bakhtin. O gênero do discurso não é uma forma da língua, mas uma forma do enunciado que, como tal, recebe do gênero uma expressividade determinada, típica, própria do gênero dado. No gênero, a palavra comporta certa expressão típica. Os gêneros correspondem a circunstâncias e a temas típicos da comunicação verbal e, por conseguinte, a certos pontos de contato típicos entre as significações da palavra e a realidade concreta. (BAKHTIN, 2000, p. 312). Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua, que, por sua vez, efetuam-se em forma SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 246 REVISTA SABERES LETRAS de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra dessas esferas. As condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas são refletidas pelo enunciado, por meio de seu conteúdo (temático), por seu estilo verbal e por sua construção composicional. Estes três elementos fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, denominados por Bakhtin (2000) de gêneros do discurso. A heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos) poderia nos levar a pensar que a diversidade dos gêneros do discurso é tamanha que não há e não poderia haver um terreno comum para seu estudo. Acreditamos que se os gêneros representassem um fenômeno estático, ou muito bem amarrado, no que diz respeito à sua constituição, como ao ponto de vista de seu estudo, não representariam um estudo tão frequente e interessante como tem sido ultimamente. Charaudeau e Maingueneau (2008) destacam que o problema geral dos gêneros do discurso nunca foi colocado até então em função da diversidade funcional, porque se estudou, preferencialmente, os gêneros literários, tanto na Antiguidade quanto na época contemporânea apenas pelo ângulo artístico-literário de sua especificidade, das distinções diferenciais intergenéricas (nos limites da literatura) e não do ponto de vista de uma tipologia particular de enunciados que se diferenciam de outros tipos de enunciados, com os quais têm em comum a natureza verbal (linguística). Como nos propusemos a trazermos reflexões acerca das formas como os gêneros são estudados pelas duas abordagens (a Teoria da Enunciação e a Análise de Discurso – AD) faremos, daqui em diante uma breve incursão pela forma como a AD tem tratado o estudo dos gêneros. O conceito de gêneros: de uma ótica geral para a AD Conforme Charaudeau e Maingueneau (2008) a noção de gênero remonta à Antiguidade, coexistindo nesse período dois tipos de atividade discursiva: uma na Grécia Pré-Arcaica - gêneros como o épico, o lírico, o dramático e o epidítico – e outra na Grécia Clássica, na Roma de Cícero, com a finalidade de fazer da fala pública um instrumento de deliberação e de persuasão jurídica SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 247 e política. Os autores defendem que em se tratando da tradição literária, os gêneros do discurso podem permitir sua seleção e classificação dentre os diferentes textos literários que pertencem à prosa ou à poesia. Enquanto que em semiótica, análise do discurso e análise textual, encontra-se a noção de gênero aplicada igualmente aos textos não literários, mas com diferentes definições que coexistem e testemunham cada posicionamento teórico ao qual elas se filiam. Segundo Charaudeau e Maingueneau (2008) os pontos de vista, que servem de embasamento para uma possível afiliação dos gêneros são os seguintes: a) Funcional – procura-se estabelecer funções com base na atividade linguageira, a partir das quais as produções textuais podem ser classificadas segundo o polo do ato de comunicação em direção ao qual elas são orientadas (JAKOBSON, 1963 e HALLIDAY, 1973). b) Enunciativa – iniciada por Benveniste, apoiando-se no “aparelho formal da enunciação”, que propôs uma oposição entre discurso e história – frequentemente reformulada em discurso e narrativa. c) Textual – voltada para a organização dos textos, que procura definir a regularidade composicional desses textos. (ADAM, 1999). d) Comunicacional – esse termo apresenta um sentido amplo com orientações diferentes (BAKHTIN, 1929 e CHARAUDEAU, 2000). Essa diversidade de pontos de vista de filiação dos gêneros que possibilita sua tipologização mostra que há uma complexidade na questão dos gêneros, incluindo suas denominações, já que alguns autores se referem a ‘gêneros do discurso’, outros a ‘gêneros de textos’, outros ainda, a ‘tipos de textos’. Nessa perspectiva, Adam, por sua vez, opõe ‘gêneros’ e ‘tipos de textos’ (1999); enquanto que Bronckart opõe ‘gêneros de texto e tipos de discurso’ (1996); e Maingueneau distingue, em relações de encaixamento, ‘tipo de texto’, ‘hipertexto’ e ‘gênero de discurso’ (1998); Charaudeau distingue ‘gêneros e subgêneros situacionais’ e, no interior desses, variantes de gêneros de discurso (2001)”, conforme Charaudeau e Maingueneau (2008, p. 251). O que se percebe aqui é uma diversidade no campo terminológico, que também pode ter consequência no estudo dos fenômenos que perpassam o gênero. Mas, temos SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 248 REVISTA SABERES LETRAS apenas uma divisão metodológica no supracitado dicionário dos autores, porque na realidade, na essência da constituição dos gêneros, o processo não é nem tão harmonioso, nem tão bem organizado como se propõe na referida obra. O gênero do discurso também é abordado por Maingueneau, observando-se um aspecto em particular. Gênero do Discurso na concepção de Maingueneau de acordo com o ponto de vista comunicacional Charaudeau e Maingueneau (2008) propuseram diversos modelos que mobilizaram certo número de parâmetros, que os gêneros deveriam seguir, tais como os seguintes: a) Uma finalidade – todo gênero do discurso visa provocar certo tipo de modificação da situação de que é parte; essa finalidade é indispensável para a adequação do comportamento do destinatário. b) Estatutos para os parceiros – a fala num gênero do discurso não parte de qualquer um e nem é dirigida a qualquer um, mas de um indivíduo detentor de um dado estatuto para outro. c) Circunstâncias adequadas – todo gênero do discurso implica certo tipo de lugar e de momento apropriados ao seu êxito. Não se trata de coerções “externas”, mas de algo constitutivo. d) Um modo de inscrição na temporalidade – algo que pode ocorrer em diversos eixos como: a periodicidade (curso, missa etc.), a duração (a competência genérica dos locutores de uma comunidade indica de modo aproximado a duração de um dado gênero do discurso). e) A continuidade – determinados gêneros têm um tempo para cumprir sua tarefa comunicativa. No caso de uma piada, ela deve ser contada de uma vez só, pois sendo contada aos poucos perderia seu propósito lúdico. Ao mesmo tempo, há o caso de um romance, por exemplo, que dependendo de sua extensão somente poderá ser lido por partes, mesmo que seu leitor aprecie a leitura o consumo da obra requer um tempo determinado pelo tempo e SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 REVISTA f) g) h) i) SABERES LETRAS 249 por outras condições daquele que o está consumindo. O tempo de validade – uma revista semanal. Um suporte – rádio, telefone, jornal etc. Uma modificação do suporte material modifica radicalmente um gênero do discurso. Um plano textual – um gênero do discurso se associa a certa organização, domínio privilegiado da linguística textual. Dominar um gênero do discurso significa ter consciência mais ou menos clara dos modos de encadeamento de seus constituintes nos diferentes níveis. Certo uso da língua – todo locutor se acha diante de um repertório bem amplo de variedades linguísticas. Em nosso entendimento os parâmetros estão bem colocados em relação à questão da constituição do gênero. Contudo, o parâmetro denominado suporte deixa de explicitar os textos digitais, aqueles que surgem no ambiente digital, que acreditamos ser um dos mais relevantes pontos na constituição do gênero, especialmente se observarmos a data de publicação da obra que traz os parâmetros aos quais estamos nos referindo. Além disso, não há na obra supramencionada referência à forma como os gêneros deveriam se enquadrar em tais parâmetros, se em todos obrigatoriamente ou em apenas alguns. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 250 REVISTA SABERES LETRAS A cada gênero do discurso, são associadas, a priori, opções de variedades que funcionam como norma. Maingueneau (2006) se contrapõe à posição dos analistas de discurso que tendem a privilegiar, explícita ou implicitamente, esse ou aquele tipo de dado (a conversa, a literatura, a mídia etc.) em lugar de reconhecer a radical diversidade das produções verbais. Outras abordagens da Análise de Discurso demonstram preocupação com a referida diversidade das produções verbais. Dentre essas se pode citar a Análise de discurso crítica, especificamente com Van Dijk (2000) ao qual não nos reportaremos aqui, em função da delimitação que já fora feita nos próprios objetivos deste trabalho. A extensão recente da noção de gênero ao conjunto das atividades verbais traz consequências significativas e a esse respeito cabe-nos observar, que por um lado, a Análise do Discurso usa a noção de gêneros como uma categoria saturada de sentidos num longo percurso histórico. E de outro lado, a Literatura utiliza a categoria elaborada pela Análise do Discurso, categoria cujo nome lhe é familiar, mas que não é verdadeiramente a sua. Entendemos que a literatura não se interessa, pelo menos não teoricamente, pelo processo de constituição, de construção de um gênero, nem pelas suas características, pelos critérios e aspectos que são relevantes para a sua constituição, o que para nós se justifica SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 251 pelos seus focos de estudo. E quanto a AD francesa, pelo menos no que foi possível observar neste exíguo estudo, o que se tem, também devido a natureza das pesquisas que se pretende desenvolver é uma preocupação maior com relação ao discurso, não importando em que gênero este venha apresentado. Desse modo, na AD, o estudo um pouco mais voltado para os gêneros se reporta ao aspecto denominado genericidade, conforme poderemos observar mais adiante. Gêneros Instituídos e Gêneros Conversacionais Esta delimitação se refere muito mais aos propósitos comunicativos e as condições da atividade verbal em que tais gêneros são produzidos. E nesse sentido, não se percebe uma preocupação com aspectos constitutivo do gênero, tais como a estrutura textual típica do gênero, mesmo quando se estabelece a divisão entre gêneros instituídos e conversacionais os seus aspectos referidos não são levados em conta. A avaliação do estatuto dos gêneros no discurso literário requer uma distinção entre dois regimes de genericidade, que obedecem a lógicas distintas, ainda que existam práticas verbais situadas na fronteira entre eles. Em primeiro, se tem os gêneros conversacionais, que não têm ligação estreita com lugares institucionais, papéis, nem roteiros relativamente estáveis. Sua composição e temática também são instáveis e seu quadro se transforma incessantemente por coerções locais e “horizontais” (estratégias de ajustes e negociação entre os locutores e que a eles se impõem). E em segundo, os gêneros instituídos – reúnem os gêneros “rotineiros” e “autorais”. Estes são geridos pelo próprio autor e eventualmente por um editor. Sua manifestação autoral pode dar-se por meio de indicação paratextual, no título ou subtítulo etc. (presentes nos tipos de discurso filosófico, religioso, político etc.). Maingueneau (2006) considera os gêneros rotineiros como os prediletos nos estudos dos analistas do discurso (a revista, a lábia do camelô). Nestes, os papéis desempenhados pelos protagonistas são estabelecidos a priori e de modo geral permanecem estabelecidos ao longo do ato de comunicação. São eles que melhor correspondem à definição de gênero do discurso como dispositivo de comunicação entendido sócio-historicamente. Nessa perspectiva, a questão da fonte não tem pertinência para seus usuários, e os seus parâmetros constitutivos resultam da estabilização de coerções ligadas a SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 252 REVISTA SABERES LETRAS uma atividade verbal desenvolvida numa situação social determinada. É possível definir no universo desses gêneros uma escala em que se configuram de um lado os gêneros completamente ritualizados, com margem mínima de variação (atos jurídicos) e do outro, gêneros que nos termos de um roteiro pouco restritivo ficam ao sabor das variações pessoais. Os analistas do discurso se interessam mais pelos gêneros “rotineiros”. E os “autorais” ficam para especialistas em literatura, filosofia e religião. A essa postura Maingueneau (2006, p. 240) também se contrapõe: “Não há, contudo, nenhuma razão teórica de peso para que a Análise do Discurso não apreenda uma parcela da produção verbal e para que os especialistas em literatura não remetam a genericidade dos textos que estudam à genericidade do conjunto das produções verbais”. Com base nisso Maingueneau (2006) defende que é mais produtivo considerar os gêneros instituídos em toda a sua diversidade e com esse espírito propõe a distinção de quatro tipos de genericidade instituída a partir da relação que se estabelece entre o que se chama de “cena genérica” e “cenografia”, cuja observação é pertinente em nossa opinião: Gêneros instituídos tipo 1 – não admitem variações ou admitem poucas. Os participantes obedecem estritamente às coerções desses gêneros: carta comercial, guia telefônico, formulários burocráticos. É impossível falar de autor para esses gêneros. Gêneros instituídos tipo 2 – gêneros no âmbito dos quais os locutores produzem textos individualizados, porém sujeitos a normas formais que definem o conjunto de parâmetros do ato comunicacional (telejornal, guias de viagem) e seguem em geral uma cenografia preferencial, esperada, tolerando, entretanto, desvios. Gêneros instituídos tipo 3 – não há para esses gêneros uma cenografia preferencial (propaganda, canções, programas de televisão). Saber que um dado texto é publicitário não permite prever através de qual cenografia ele vai ser enunciado. É da natureza desses gêneros incitarem a inovação, que ocorre com a finalidade de capturar um público não cativo e não a função de contestar a cena genérica. Gêneros instituídos tipo 4 – trata-se dos gêneros autorais propriamente ditos, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 253 aqueles com relação aos quais a própria noção de “gênero” é problemática. Os gêneros tipos 3 e 4 estão próximos em bom número de aspectos, visto que eles não se limitam a seguir um modelo esperado, mas desejam capturar o seu público mediante a instauração de uma cena de enunciação original que confira sentido à sua própria atividade verbal, harmonizada com o próprio conteúdo do discurso. Mas os gêneros tipo 4 são por natureza “não-saturados” e sua cena genérica caracteriza-se por uma incompletude constitutiva. Cabe ao autor plenamente individualizado (associado a uma biografia, a uma experiência singulares), ou seja, autocategorizar a sua produção verbal. E desse modo, sua designação não pode ser substituída por outra. O rótulo conferido pelo autor caracteriza apenas uma parte da realidade comunicativa do texto enquanto a categoria depende pouco do processo de comunicação realmente envolvido. No caso dos gêneros tipo 4, estreitamente ligados aos discursos constituintes, os textos não correspondem a atividades discursivas bem balizadas no espaço social: os gêneros publicitários, televisuais e políticos estão ligados a certas atividades sociais com finalidades preestabelecidas. O autor constrói nele sua identidade por meio de sua enunciação. Maingueneau (2006) propõe alguns conceitos necessários para os estudos dos gêneros, a saber: hipergêneros, enquadramentos interpretativos e classes genealógicas. O autor faz uma inter-relação entre esses conceitos e os tipos de gêneros instituídos. Nos gêneros instituídos tipos 1 e 2, os rótulos genéricos nada têm de necessários. Os textos se mostram neles, por seu modo de ser, como membros desse ou daquele gênero, reconhecidos pelos agentes em função de sua competência comunicacional, mas nada impede que se acumulem o mostrado e o dito. Nos gêneros tipo 4, em contrapartida, o rótulo influi de modo decisivo na interpretação do texto, ainda que à primeira vista pareça redundante. Maingueneau (2006, p. 243-244) afirma que “o sentido do gesto de categorização é mais forte quando estabelece uma disparidade com aquilo que o texto parece mostrar”. O autor ressalta que a categorização ou rótulo que o próprio autor confere ao seu texto não modifica a sua natureza, e chama a atenção para a relevância da interpretação, nesse sentido. O autor alerta-nos para o fato de que devemos ter o cuidado de remeter essas SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 254 REVISTA SABERES LETRAS “disparidades” às configurações estéticas de que participam. A priori, um rótulo pode remeter mais às propriedades formais de um texto, a sua interpretação, ou a combinação de ambas. Os rótulos formais se referem a um tipo de organização textual. Não se trata de um dispositivo de comunicação historicamente definido, mas um modo de organização com fracas coerções que se encontram nos mais diversos lugares e épocas e no âmbito do qual podem desenvolver-se as mais variadas encenações da fala. (MAINGUENEAU, 2006). A partir dessa afirmação, o autor ressalta a noção de hipergêneros aos quais defende tratar-se de categorizações como “diálogo”, “carta”, “ensaio”, “diário”, que permitem formatar o texto. No século XVI, o diálogo constituiu a forma dominante do debate de ideias, mas no século XVII foi o gênero epistolar, denominado hipergênero que assumiu esse lugar. Mas os verdadeiros autores “semantizam” necessariamente os modos de formatação de seus conteúdos, o que significa dizer que o hipergênero não constitui um mero molde para conteúdos independentes dele: o modo como Platão explora o diálogo forma unidade como universo de sentido, que sua obra institui. Maingueneau (2006) defende que, quando o rótulo se refere à interpretação do texto, conforme visto em parágrafo anterior a este, pode-se falar em enquadramento interpretativo. E ilustra tal defesa declarando que: “...Gide atribui o rótulo “sotia” a seu Os subterrâneos do Vaticano para conferir uma tonalidade bufa a uma narrativa que no entanto se apresenta como romance: ele procede a uma alteração de um gênero teatral medieval”. Em literatura ou em filosofia, a prática do “enquadramento interpretativo” é, sobretudo, elemento de obras posteriores ao século XVIII: o escritor, recusando a submissão às coerções preestabelecidas, pretende definir, ele mesmo, o estatuto de sua obra, e daí advém a tendência à subversão entre categorização genérica e título. A ilustração dessa afirmação é clara em Maingueneau (2006): [...]as meditações do poeta Lamartine e as contemplações de Vitor Hugo podem ser lidas como títulos e também como rótulos genéricos do tipo 4. No caso da coletânea de Hugo – tal como no de Gide, mas de maneira totalmente distinta –, a soberania do autor se manifesta com toda a sua força: uma contemplação não é uma atividade verbal (Maingueneau, 2006, p. 245). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 255 Os rótulos são, na maior parte das vezes, formais e semânticos, o que ocorre com as classes genealógicas. Com essa expressão, Schaeffer (apud Maingueneau, 2006) designa séries que se constroem graças a uma maior ou menor semelhança com uma ou várias obras prototípicas. Quanto à classe genealógica, o autor esclarece que a condição de membro de uma classe genealógica impõe coerções variáveis tanto à organização textual quanto ao sentido. Os rótulos dessas classes podem atravessar as épocas e os regimes da literatura. Em função de essas classes terem por base uma memória partilhada, a indicação de sua fonte se faz desnecessária. Entretanto, esse tipo de atividade nem sempre se funda apenas na memória coletiva das obras, baseando-se também nas atividades de linguagem que lhe são contemporâneas, categorizando no todo ou em parte a cena da enunciação construída pelo texto ao “captar” uma categoria genérica rotineira de seu tempo. Embora o autor não faça referência, pensamos que esta categorização é muito mais da tradição discursiva de um texto do que do gênero em si, pelo menos em seu aspecto formal. Maingueneau (2006) defende que não se podem conferir os três tipos de rótulos (hipergêneros, enquadramentos interpretativos, classes genealógicas) como estanques, porque o que os marcará será a dominância. O enquadramento interpretativo “puro” só se faz de fato presente se houver uma disparidade manifesta entre o rótulo reivindicado e a realidade comunicacional do texto. O autor afirma que “A categoria gênero do discurso é definida a partir de critérios situacionais; ela designa, na verdade, dispositivos de comunicação sócio-historicamente definidos e que são concebidos habitualmente com a ajuda das metáforas do ‘contrato’, do ‘ritual’ ou do ‘jogo’” (MAINGUENEAU, 2006, p. 234). Contrato, papel e jogo Segundo Maingueneau (2001, p. 69), “para caracterizar os gêneros de discurso, costuma-se recorrer a metáforas tomadas de empréstimo de três domínios: jurídico (contrato), lúdico (jogo) e teatral (papel). O contrato - ele é fundamentalmente cooperativo e regido por normas. Ex.: Um jornalista assume o contrato implicado pelo gênero de discurso do qual participa. Em relação SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 256 REVISTA SABERES LETRAS ao papel – Falar de papel é insistir no fato de que cada gênero de discurso implica os parceiros sob a ótica de uma condição determinada e não de todas as suas determinações possíveis. Ex.: Quando um policial verifica a identidade de uma pessoa, ele intervém como agente de ordem pública, não como pai de uma família de três crianças, moreno, de bigode, com um sotaque toulouse ou da Alsácia etc. No que se refere ao jogo – falar de jogo é de alguma forma, cruzar as metáforas do contrato, enfatizando simultaneamente as regras implicadas na participação em um gênero de discurso e sua dimensão teatral. O gênero implica assim como o jogo certo número de regras preestabelecidas, cuja transgressão exclui os participantes do jogo. Contrariamente as regras do jogo, as do discurso nada têm de rígidas, pois possuem zonas de variação e os gêneros podem se transformar. Os aspectos mencionados nesta seção estão mais voltados, em nossa opinião, para os aspectos da comunicação presencial, o que se pode inclusive verificar por meio dos exemplos que são utilizados para exemplificar as asserções do autor. Em se tratando dos gêneros do discurso Charaudeau e Maingueneau (2008) propuseram diversos modelos que mobilizaram certo número de parâmetros, que, em nossa opinião, mais do que como parâmetros podem ser tratados como categorias de análise de identificação de um gênero, conforme descrito a seguir. Para a identificação do gênero, em nossa opinião, deve-se pôr um gênero à prova identificando todos os elementos, conforme descrito a seguir: SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 257 Ressalte-se que estes parâmetros foram utilizados pelo próprio Maingueneau e nós apenas os pusemos nesta forma de tabela. Em nosso entendimento, para viabilizar estudo dos gêneros, deveria ser feita uma observação a partir da qual se procuraria a contemplação dos referidos parâmetros pelos gêneros e se o gênero deixasse de apresentar alguma das características significaria que não se tratava de um gênero, como, por exemplo, se colocarmos à prova o Orkut, vamos comprovar que este deixa de apresentar uma das categorias que devem compor o gênero em si. E esta é decisiva, porque porá em dúvida se o orkut é um gênero de fato. Sabemos que há uma considerável discordância entre a categorização dos gêneros digitais, mas não nos concentraremos nessa discussão, em função de nosso objetivo de apenas mostrar como a Teoria da Enunciação e a AD têm tratado o estudo dos gêneros. Exemplo (tabela 1): SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 258 REVISTA Gênero orkut SABERES LETRAS Categorias Presença ( + ) finalidade (+) estatuto para os parceiros (+) circunstâncias adequadas (+) inscrição na temporalidade (+) continuidade (+) tempo de validade (+) suporte Ausência (-) (-) plano textual (+) Norma (uso) (+) O que se consegue perceber aqui é que o orkut não apresenta a categoria suporte que é necessária a um gênero, exatamente porque o orkut é o próprio suporte, o que faz com que este não possa ser considerado um gênero. Como apresentamos, anteriormente, um exemplo de não atendimento dos parâmetros propostos por Maingueneau, apresentamos a seguir um exemplo de um gênero legítimo que atende a todas as categorias. Exemplo (tabela 2): SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 REVISTA Gênero carta SABERES LETRAS 259 Categorias Presença ( + ) finalidade (+) estatuto para os parceiros (+) circunstâncias adequadas (+) inscrição na temporalidade (+) continuidade (+) tempo de validade (+) suporte (+) plano textual (+) Norma (uso) (+) Ausência (-) Entendemos, que a contemplação dos supracitados parâmetros por um gênero A ou B não pode nos levar a uma categorização dos gêneros. Os tais parâmetros por si não dão conta de todos os gêneros, e não poderiam ser empregados que não todos ou pelo menos para a maior parte dos gêneros. Considerações Finais O que se percebe, a partir do estudo ao qual nos propusemos, é que nem a da Teoria da Enunciação, de Bakhtin, e nem a perspectiva da Análise do Discurso francesa, especificamente com Maingueneau, dão conta dos estudos dos gêneros, muito menos para a instrumentalização de análises científicas deste profícuo objeto de estudo da área da linguagem, que tanto perpassa o âmbito linguístico quanto o extralingüístico, simplesmente porque não constrói categorias de análise e cremos que é por isso mesmo que ainda há correntes de estudiosos afirmando ideias completamente opostas a outras quanto ao que é e ao que não é um gênero. Entendemos que em virtude de o gênero ser um fenômeno constituído por sujeitos por meio de práticas sociais seu estudo deve levar em conta pelo menos, os aspectos pragmáticos, textuais, sociais, culturais e temporais para um estudo menos restrito. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 260 REVISTA SABERES LETRAS REFERÊNCIAS ANDRADE, Maria Margarida de. 2007. Introdução à metodologia do trabalho científico: elaboração de trabalhos na graduação. 8. ed. – São Paulo: Atlas. ARAÚJO, J. C. Chat educacional: o discurso pedagógico na Internet. In: COSTA, N. B. (Org.). Práticas Discursivas: exercícios analíticos. São Paulo: Pontes, 2005. p. 95-109. ____________ Os gêneros digitais e os desafios de alfabetizar letrando. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, n. 46, p. 79-92, jan./jun. 2007. ARAÚJO, J. C.; DIEB, M. Apresentação. In: ARAÚJO, J. C.; DIEB, M. (Org.). Letramentos na Web: gêneros, interação e ensino. Fortaleza: Edições UFC, 2009. p. 21-22. BHATIA Vijay K. Análise de gêneros hoje*. Tradução de Benedito Gomes Bezerra Rev. de Letras – Nº. 23 - Vol. 1/2 - jan/dez. 2001. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. “Os gêneros do discurso”. In: ____. Estética da criação verbal. 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São Paulo: Parábola, 2008. p. 151-180. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 239 a 261 set. / dez. 2011 262 REVISTA SABERES LETRAS Seção II Estudos sobre Literatura REVISTA SABERES LETRAS 263 A NAU E O CAPITÃO: PELOS MARES DA HISTÓRIA, DUAS VERSÕES FICCIONAIS DE LUIZ GUILHERME SANTOS NEVES Cinthia Mara Cecato da Silva*1 RESUMO A abordagem acerca dos romances A Nau Decapitada e O Capitão do Fim, de Luiz Guilherme Santos Neves, propõe revelar a tênue fronteira entre o que é verdade e o que é ficção quando se fundem História e Literatura. Aliadas às infinitas possibilidades de invenção e recriação propostas pelos textos, é intento mostrar como as narrativas põem em jogo – por meio da paródia e da ironia – o estatuto da memória e o da palavra; recriando experiências e inquirindo transformações. Dentro dessa poética de ruptura geometrizada pelo historiadorliterato capixaba, buscar-se-á, ainda, evidenciar como a proposta do romance histórico contemporâneo propõe preencher os espaços brancos deixados pela historiografia oficial elevando à categoria de protagonistas personagens que foram relegados ao segundo plano nos registros da História factual. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Brasileira do Espírito Santo. A Nau Decapitada. O Capitão do Fim. ABSTRACT: The approach of novels about A Nau Decapitada and O Capitão do Fim of Luiz Guilherme Santos Neves, proposes to reveal the fine line between what is truth and what is fiction when merging history and literature. Allied to the infinite possibilities of invention and re-proposed by the legislation, is intent to show how narratives bring into play, through parody and irony, the status of the word memory and recreating experiences and asking transformations. Within this poetic burst geometrized by historian-writer capixaba check will also show how the proposal of the contemporary historical novel seeks to fill the white spaces left by the official historiography rising to the rank of the protagonists, characters who were relegated to the background records History factual. 1- *A autora é Mestre em Letras, área de concentração em Estudos Literários, pela UFES – Universidade Federal do Espírito Santo. Contato: [email protected]. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 263 a 277 set. / dez. 2011 264 REVISTA SABERES LETRAS KEYWORDS: Brazilian Literature of the Holy Spirit. A Nau Decapitada. O Capitão do Fim. Mas o artista faz mais alguma coisa: “renova” o passado. O que significa que não o reproduz, mas antes, tirando dele como de um depósito formas e conteúdos esparsos, o torna novamente ambíguo, denso, opaco, relacionando os seus aspectos e significados com a modernidade. Omar Calabrese Ao nos aproximarmos dos contornos que delineiam a Literatura Brasileira Contemporânea do Espírito Santo deparamo-nos com Luiz Guilherme Santos Neves e seu legado de romances que se utilizam da História capixaba como suporte ficcional. Não encontramos em sua produção espaço para a indiferença, uma vez que a exaltação das personagens em sua obra é protagonizada por aqueles que estiveram à margem na historiografia oficial. A irreverência, a ironia, o desafio e o imaginário perturbador põem em xeque o real a cada página e imprimem à sua produção o lugar da não comodidade, fazendo emergir sentenças que desafiam o passado e dão suporte a uma nova interpretação do presente, com possíveis reflexões para o futuro. Nessa vertente, a Literatura conforme aventa Octávio Paz “[...] expressa a sociedade; ao expressá-la, ela a muda, contradiz ou nega. Ao retratá-la, inventa-a, ao inventá-la, revela-a’’ (1986, p. 209). Ao incorrermos pelas produções literárias do autor capixaba, percebemos sua singular maestria em produzir textos capazes de reforçar o lugar da Literatura como arte. O apuro formal das narrativas conduz o resgate da História pondo-a em movimento como uma nau que percorre os mares e busca revelar um itinerário capaz de fazê-la aportar em outras terras ainda não desbravadas. Luiz Guilherme Santos Neves, por meio de sua criação literária, dá vida ao texto oficial permitindo ao seu interlocutor o acesso tanto à história ficcional quanto a fatos da história chamada factual e suas possíveis interpretações. Essa busca de temas históricos para transformá-los em matéria de Literatura SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 263 a 277 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 265 é, na atualidade, uma tendência internacional. A renovação epistemológica do discurso histórico coincide com um novo interesse pelo questionamento da História, marcada pelo movimento pós-moderno. Na obra do autor capixaba esse revisionismo tem um duplo objetivo: (re)questionar as versões tradicionais da identidade coletiva e tornar legítimos os espaços brancos do passado ignorados até aí pelo discurso histórico oficial. Terry Eagleton(1998) reconhece que o erro na modernidade era a convicção de que a História estava já moldada numa matriz pré-determinada. Em sua visão, a pós-modernidade – obcecada com a mudança, a mobilidade, a instabilidade, os finais abertos – não recusa a história, mas a História, a ideia de que existe História de sentido e finalidade imanentes. A esta luz, tomamos como fontes inquestionáveis do registro desse paradigma textual duas versões ficcionais de Luiz Guilherme Santos Neves: A Nau Decapitada e O Capitão do Fim. Estabelecendo ideologias e oposições, os enredos seguem um paralelo com a história registrada como real, oferecendo alternativas para cada ponto nodal do tecido dos acontecimentos. Apresentam um caráter marcadamente paródico porque incorporam e reciclam – com uma diferença irônica – materiais textuais pré-fabricados, de que o leitor deve ter um conhecimento prévio se quiser compreender o texto na sua dupla dimensão: textual e intertextual. A abordagem acerca dos dois romances de Luiz Guilherme Santos Neves quer expor a forma competente com que sua produção – servida por uma notável capacidade de dar consistência ao tecido narrativo – vem representar o romance histórico dentro da configuração pós-moderna no panorama nacional. Nas produções, a retomada do passado faz-se buscando o que a historiografia oficial relegou ao segundo plano ou ao esquecimento e possui um forte sentido crítico. Focalizar os vultos ilustres e os grandes acontecimentos não é uma preocupação. O povo humilde, a classe média, a mulher na sua luta pela emancipação e os remanescentes das culturas descaracterizadas protagonizam a narrativa e evidenciam um outro lado da História. Conforme afirma Maria Thereza Coelho Ceoto (2000, p. 23): “[...] trata-se de rever o passado, respeitando as diferenças abolidas pelo discurso dos vencedores”. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 263 a 277 set. / dez. 2011 266 REVISTA SABERES LETRAS Antes, contudo, de analisarmos de que forma e com que linguagem os enredos das narrativas dão nova vida à historiografia oficial capixaba por meio do ficcional, é mister engendrarmos brevemente pelos caminhos do gênero literário do qual se utiliza Luiz Guilherme Santos Neves para compô-los. O romance histórico é um texto literário que faz uso do discurso histórico para tecer suas narrativas, conforme afirma Maria de Fátima Marinho (1999, p. 12): “Trata-se de um gênero híbrido, na medida em que é próprio da sua essência a conjugação da ficcionalidade, inerente ao romance e de uma certa verdade, apanágio do discurso da História”. Em geral, enquanto a historiografia se preocupa com uma visão objetiva da realidade, o romance se atém à subjetividade e à imaginação, ou seja, a diferença entre o romance histórico e a História oficial está na maneira com que ambos olham o mesmo objeto. O estudo científico da História baseia-se em dados, documentos e entrevistas que lhe conferem maior veracidade, enquanto a ficção não precisa disso para adquirir significado. Esse tipo peculiar de narrativa teria surgido, segundo o filósofo húngaro Lukács (1971), na Europa, no século XIX, onde transformações políticas como a Revolução Francesa e a ascensão e queda de Napoleão permitiram o surgimento desse subgênero do romance, numa tentativa de resgatar a História perdida ou esquecida. Entretanto, desde a Antiguidade Clássica a ficção e a realidade aparecem como partes constituintes da História, pois os historiadores acabavam por misturar em seus textos acontecimentos reais com fatos mitológicos: “Na Antiguidade clássica, [...] escritores gregos e seus públicos não colocavam a linha divisória entre a história e ficção no mesmo lugar em que os historiadores a colocam hoje (ou foi ontem?)” (BURKE, 1997, p. 108). No Brasil, o romance histórico aparece durante o Romantismo, ainda no século XIX, quando o escritor “[...] vibra com a pátria e se irmana com a humanidade [...]” (CANDIDO, 1976, p. 204). O apoio do imperador D. Pedro II para consolidar a cultura nacional garante pesquisas sobre o nosso passado e esse interesse pela nossa História leva os escritores a substituir as epopéias pelos poemas políticos e o romance histórico. Contudo, nas décadas posteriores, a busca em romper com o passado e com as tendências colonizadoras leva os romances, principalmente os de Mário de Andrade e as publicações de Oswald de Andrade, a uma postura SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 263 a 277 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 267 negativa quanto ao passado do país, abalando, portanto, a base dos romances históricos tradicionais. No entanto, essa modalidade de romance volta a ganhar força nas terras brasileiras quando, ao fim da ditadura militar, algumas vezes durante a mesma, os escritores buscam retomar a cultura nacional “[...] por meio de uma volta, às vezes críticas e às vezes nostálgicas, ao passado” (PELLEGRINI, 199, p. 115). É o caso dos livros: Viva o povo brasileiro de João Ubaldo Ribeiro, Agosto de Rubem Fonseca, O Chalaça de José Roberto Torero, Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiros, entre outros. Esses novos romances históricos buscam incluir “[...] alusões textuais para que o leitor mais esperto possa se satisfazer com a visão semiotizada da história” (FIGUEIREDO, 1997, p. 06). Nessa abordagem contemporânea, os autores, ao retratarem o passado, deixam de fazer somente uma re(leitura), de se preocupar com o detalhe, com a fiel representação das personagens e suas ações. Suas produções literárias tratam a História com uma liberdade nunca antes conhecida no âmbito da ficção. A ciência histórica, nesse ínterim, já não pode ser concebida como discurso contínuo, do idêntico, mas é o próprio espaço da dispersão. A descontinuidade tornou-se uma hipótese sistemática e a história constrói-se por séries que privilegiam os objetos marginais, outrora desconsiderados pela História oficial. Como nos revela Pellegrini, o romance histórico hoje, veste-se de uma nova roupagem, pois [...] ele interpreta o fato histórico, lançando mão de uma série de artimanhas ficcionais, que vão desde a ambigüidade até a presença do fantástico, inventando situações, deformando fatos, fazendo conviver personagens reais e fictícios, subvertendo as categorias de tempo e espaço, usando meias-tintas, subtextos e intertextos – recursos da ficção e da não história – , trabalhando, enfim, não no nível do que foi, mas no daquilo que poderia ter sido (PELLEGRINI, 1999, p. 116). Essa renovação epistemológica do discurso histórico coincide com um SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 263 a 277 set. / dez. 2011 268 REVISTA SABERES LETRAS interesse pela História que se manifesta há algumas décadas na literatura atual, marcada pelo movimento pós-moderno, conforme mencionado anteriormente. Animado por um projeto coletivo de recuperação crítica de velhos temas, o pós-modernismo, entendido como uma conjuntura memorial e estética, caracteriza-se também pelo uso programático da narração e por uma verdadeira ressurreição de questões estabelecidas pela História factual. As características da Nova História Cultural, inaugurada pela Escola dos Anais, aproximam-na do pensamento pós-moderno principalmente em suas defesas de descontinuidade, descentramento e fragmentação do objeto construído, animando um ressurgimento da problemática histórica. Seguindo estes passos, o romance histórico contemporâneo torna-se não uma forma de conhecimento histórico, mas a possibilidade de utilizar esse mesmo conhecimento sob uma perspectiva política, crítica e transformadora. Francisco Aurélio Ribeiro percebe essa abordagem em Luiz Guilherme Santos Neves quando afirma que é [...] pela análise do texto literário de Luiz Guilherme Santos Neves, que podemos encontrar, em alguns dos elementos constituintes da narrativa, recursos do texto parodístico, que o tornam imagem invertida do outro, e nos possibilitam uma leitura crítica da ficção e da história (RIBEIRO, 1993, p.70). Linda Hutcheon (1991) batiza de metaficção historiográfica essa nova proposta que põe o discurso histórico no lugar do secundário e prioriza os efeitos do real. O conceito central, segundo a teórica, é a tentativa de instituir uma relação dialógica entre o presente e o passado com a pretensão de substituir a memória-mensagem por uma memória-diálogo. A ideia básica sobre a qual assenta esse tipo de ficção é a de que qualquer situação histórica implica uma multidão de possibilidades divergentes que excedem/transbordam o curso efetivo dos acontecimentos. Como assinala Hutcheon (1991, p.160), “[...] subjetividade, intertextualidade, referência, ideologia, estão por trás das relações problematizadas entre a história e a ficção no pós-modernismo.” A teórica reescreve o paradigma do romance histórico do século XIX às circunstâncias peculiares da nossa existência: revivemos o passado por meio da nossa experiência, tornando-o assim matéria de criação da nossa identidade, já não tanto coletiva como individual. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 263 a 277 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 269 Dessa forma, pensamos que os romances em tela de Luiz Guilherme Santos Neves aproximam-se do conceito de metaficção historiográfica pós-moderno concebido por Linda Hutcheon (1991), uma vez que ambos têm o intuito de propor um olhar reflexivo e problematizador na História. Percebe-se neles uma permanente tentação paródica que denota a recusa de aceitar as respostas tradicionais às grandes perguntas humanas e à escolha deliberada de uma interrogação permanente que rejeita a certeza tranquilizadora da doxa. Essa poética de ruptura geometrizada pelo historiador-literato capixaba é também percebida por Azevedo Filho quando este sentencia que: O julgamento do valor das questões levantadas por Luiz G. S. Neves, em seus romances, se valerá, também, de questões que estão diretamente relacionadas com a própria modernidade da representação da tradição enquanto elemento reistorizável, pois ele que dizernos que ela está ‘esburacada’ pela história oficial, sendo, preciso, portanto, estabelecer onde se dá a ruptura, a queda, o salto (AZEVEDO FILHO, acesso em 15 jul. 2009). A Nau Decapitada, cujo subtítulo é “Manuscrito de Itapemirim”, tem como referência o fato da História oficial que prestigia a posse do Presidente da Província do Espírito Santo, Machado de Oliveira, em 1840. Interessante notar que desde o primeiro contato com a estrutura podemos prever quão paródico é Luiz Guilherme: a História de registro oficial vem afixada como apêndice no final do romance. Fato este que, na visão pós-moderna do autor, vem justificar e classificar seu posicionamento diante dos fatos que até a pouco serviram como farol decifrador dos episódios que registram a História oficial capixaba – ocupam o depois em uma escala de importância. Além de outros elementos constituintes da narrativa que nos possibilitam uma leitura crítica da História, torna-se possível fazer uma abordagem sobre o reducionismo a que as pessoas estão condicionadas no relato histórico quando enfocamos que as mesmas não são sequer nomeadas. O contramestre que leva-lhe o “[...] trem de viagem e fato necessário para entrar na capital [...]” (NEVES, 1985, p.124) não é batizado com nome algum. O Major Marcelino José SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 263 a 277 set. / dez. 2011 270 REVISTA SABERES LETRAS Castro Silva – com todo o seu nome e importância de seu papel – não recebe do Presidente uma menção sequer. Em contraponto, o texto produzido por Luiz Guilherme exalta os nomes e personagens de forma mais completa que a oficial. O major-narrador nos afirma que o novo Presidente da Província do ES é o Bacharel José Joaquim Machado de Oliveira, vindo para substituir o Dr. João Lopes da Silva Couto. Aparece também no enredo uma galeria de personagens ignorados pelo ilustre Presidente no relato oficial: o alferes, o velho que dá pernoite aos visitantes da vila, o contramestre, o subdelegado, o professor, o grumete do brigue, o frade, o chinês, a prostituta... todos renegados pela História monumental, factual. Dessa maneira, a produção literária de Luiz Guilherme Santos Neves recupera o papel social da História e do próprio literato de fazer da Literatura matéria-prima para reflexões. O escritor narra os acontecimentos sem distinguir entre os grandes e pequenos; levando em conta o fato de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história, como afirma Walter Benjamim (1985). Por incompetência do contramestre a nau foi decapitada e decapitada também foi a chegada de Machado de Oliveira à Província do Espírito Santo como era previsto. O adiamento de sua posse tornou-se inevitável, pois, após o desmantelamento da embarcação, dirigiu-se o brigue Vinte e Nove de Maio para o Sul. Assim, recebeu o major Marcelino como ordem do quase nomeado Presidente deslocar-se até Piúma, para que o fosse acolher com tropas de animais, a fim de conduzi-lo, agora de fato, a Vitória, onde assumiria o governo. Chegando então à enseada da pequena vila, a autoridade foi acolhida pelo antigo morador do lugar, Miguel Martinez – que tinha como costume hospedar os que ali pernoitavam. Partiriam então, no dia seguinte, para o verdadeiro destino, assim que retirassem os pertences do Presidente de dentro da embarcação aportada em Piúma após o contratempo. Antes, porém, antecipou-se o contramestre Simão Boncarneiro – pessoa incompetente, desonesta e perversa – que se apoderara do navio e levara com ele o baú tão estimado de Machado de Oliveira. Ora, o baú! Objeto que serve como mola propulsora do enredo ficcional, é apenas citado na “versão” oficial relatada pelo então Presidente no documento que serve de aporte para Luiz Guilherme Santos Neves. E é a procurá-lo que o designado SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 263 a 277 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 271 Major Marcelino passa todo o tempo da narrativa. A saga para recuperar o baú que trazia Voltaire e Rousseau, além do fato para a posse, serve de base para tantas outras narrativas, relatos, biografias que se sobrepõem à atividade quase policial do major e acabam por constituir toda a trama textual. Assim, criam-se narrativas paralelas e, consequentemente, um rol de personagens, gente das massas, que compõem o universo de ficção criado por Luiz Guilherme. Ao recuperar a historiografia oficial preocupada com o poder dos dominantes e dar voz aos marginalizados que se tornam os verdadeiros sujeitos da história, A Nau Decapitada vem certificar o papel da Literatura de realizar o processo da transfiguração essencial para a busca da realidade. O narrador, por meio de sua linguagem, ironiza o repositório de fatos estabelecidos e as interpretações desses, tornando o leitor cúmplice de todo o estigma a que estão condicionados aqueles que se encontram fora da esfera do poder. É nas entrelinhas que o interlocutor de Luiz Guilherme Santos Neves consegue produzir sentido e avaliar sob qual ângulo deve classificar os fatos explorados. Sem muito esforço, esse papel ativo levará a construção da própria imagem do Brasil que, como uma nau de excluídos, navega sobre os mares da improbidade e do abuso de poder. Neste paralelo até aqui traçado entre a linguagem da História e a linguagem da Literatura também surge no rol de produções de Luiz Guilherme Santos Neves O Capitão do Fim. Com o intuito de incitar essa relação entre a ficção e a realidade, a produção perfaz um jogo em que os componentes que interagem vêm representados, assim como em A Nau Decapitada, pela História do Espírito Santo e a narrativa literária sobre ela produzida. A busca por dar sentido ao passado nessa obra é, ainda, o caminho percorrido pelo autor para que os fatos narrados ganhem certa coerência dentro da realidade ficcional. O enredo de O Capitão do Fim adota estratégias narrativas que percorrem o passado, conferindo à obra um acentuado grau de verossimilhança, buscando similaridade com aquela verdade histórica que ele está retomando. Essa atitude reforça o intuito do autor em repensar a cultura sob o olhar da crítica e promover ao leitor a oportunidade de reconstituir a História, refletindo, via literatura, os enfoques que perpassam o tempo. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 263 a 277 set. / dez. 2011 272 REVISTA SABERES LETRAS O contexto resgatado por Luiz Guilherme, nesse romance, remete-nos à chegada de Vasco Fernandes Coutinho ao litoral espírito-santense. Como primeiro donatário, o fidalgo português representava a sexta capitania no período de estabelecimento do sistema de capitanias hereditárias por D. João III, em 1534. O rei de Portugal objetivava, por meio do sistema, a ocupação político-territorial e a gestão econômica das terras brasileiras pela coroa portuguesa. Estamos, portanto, diante de um texto de ficção que se organiza no presente e que volta ao tempo histórico resgatando os acontecimentos que marcaram o início da colonização do solo brasileiro. Historicamente, Vasco Fernandes é visto como um donatário frustrado, pois sua capitania não prosperou. Para recontar esse passado à luz do romance histórico pós-moderno, Luiz Guilherme Santos Neves utiliza-se de um narrador em terceira pessoa que conduz o leitor às mazelas vivenciadas pelo desbravador da Capitania do Espírito Santo, além do cotidiano das pessoas que viviam nesse limite de terras. Assim como o protagonista, as outras personagens que compõem o enredo do romance, também têm existência real na História monumental. Sob o signo da soberba o capitão chegou às terras capixabas. Optou por entregar-se aos vícios que o consumiram durante a vida e o atormentaram após a morte ao empenhar-se em vencer os desafios que o fariam um donatário com a marca da prosperidade. O aventureiro com passagem pela África e Ásia “fincou [...] a espada na terra quando devia ter espetado o ancinho” (NEVES, 2006, p. 20) e acabou morrendo na miséria, envolto em intrigas e desgostoso de seus investimentos. À maneira da personagem machadiana Brás Cubas, Neves adota a estratégia ficcional de iniciar o romance com as reflexões póstumas do capitão. Sua alma está desperta de seu corpo e é chamada a cruzar um caminho transcendental até o seu julgamento final conduzida por uma espécie de guia com cara de cão. Durante toda a narrativa, Vasco Fernandes faz reflexões de suas mais íntimas frustrações humanas criando um redemoinho de lembranças e tormentos. De dentro de uma embarcação com destino desconhecido, o donatário contempla os seus antigos domínios e todos maus augúrios que o conduziram até esse fim. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 263 a 277 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 273 A escassez de triunfos e o excesso de mesquinharias descritas por pelo autor capixaba conduzem o leitor a participar da releitura do contexto histórico e a construir, sob o crivo de interlocutor, uma imagem que justifique todos os infortúnios que fizeram do homem Vasco Fernandes um anti-herói e um pecador assumido. Na narrativa, assim como na História, a permanência de Vasco Fernandes na capitania durou vinte e seis anos e teve seu vértice apoiado em seu grande desejo de conquistar o Brasil. O sonho do ouro, o engenho, a lavoura, a dominação do gentio povoavam a mente do donatário: “O Brasil era uma esmeralda a ser lavrada” (NEVES, 2006, p.21). Porém, percebeu que todo empenho que desprendeu com o intento de tornar próspera sua capitania o frustrara, uma vez que as conquistas eram lentas e faziam-se necessários muitos investimentos para colonizá-la. Para suprir o desânimo e a lassidão com que a colonização se arrastara entregouse ao vício do fumo com o pretexto de curar as doenças que cercavam sua idade sexagenária. Bebeu o fumo, comeu o fumo. E a esse pecado somaram-se também o da preguiça, da soberba, o da gula e o da inveja, hábitos malvistos pela sociedade moralista cristã da época, sobressaltando a figura pecadora do donatário que cobiçou desbravar o Espírito Santo. Esse olhar crítico incitado pelo narrador que delineia os episódios exaltando a fraqueza humana de Vasco Fernandes revela a visão contemporânea com que Luiz Guilherme compôs a releitura do passado histórico do início do século XVI vivenciado nas terras brasileiras. Os limites entre o ficcional e o histórico nos episódios que compõem o romance parecem impossíveis de serem delineados. Apiedado por seu pouco progresso, o donatário sente inveja das capitanias que singram prósperas, como a de Pero Góis. Mesmo sendo prestativo o donatário de São Tomé, o capitão sente tamanha inveja de sua prosperidade que crê ser responsável pelos trágicos acontecimentos posteriores que levaram Pero Góis à falência e a perda de um olho. Movido por orgulho mais do que por necessidade, Vasco Fernandes incita batalhas contra os índios que resultam em mortes como a de Bernardo Sanches de la Pimenta e do capitão Fernão de Sá. Essas culpas o atormentam e o diminuem tornando o desbravador um resignado. Luiz Guilherme Santos Neves constrói a realidade de modo a corresponder com a experiência humana e pauta a frustração SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 263 a 277 set. / dez. 2011 274 REVISTA SABERES LETRAS absorvida a cada culpa, a cada derrota: “Mas o cão de outros tempos [...] já não era mais [...] o mesmo capitão cristão e asiático da primeira chegada ao Brasil, nem era o cão de patas rijas e pêlos vermelhos daqueles alvores de conquistas” (NEVES, 2006, p. 39). Ao revisitar o passado, O Capitão do Fim permite-nos construir o ponto de vista sob a ótica contemporânea àqueles a quem a história habitualmente negou a voz. Vasco Fernandes, ainda em vida, poderia ter lamentado os infortúnios que o acompanharam durante a tentativa de colonização das selvagens terras brasileiras. Como qualquer outra criatura que estivesse em seu lugar, sofreu as consequências das desmedidas praticadas, contudo não se fez arrependido. Deixou o cavaleiro real que o leão o abocanhasse e sem lutar chegou ao fim como um pecador assumido: “O choro que chorou sua alma, a caminho do Juízo, foi o choro de quem viu seu sonho de grandeza desmanchar-se em ilusão “[...]. Não chorou o capitão pelo que na vida fez; chorou pelo que deixou de fazer” (CF, 2006, p.88). Segundo Linda Hutcheon (1991, p. 152), a matéria metaficcional “[...] se aproveita das verdades e mentiras do registro histórico”. Ou seja, ao reescrever o passado dentro de um novo contexto, Luiz Guilherme Santos Neves induz que sejam feitas avaliações dos fatos ocorridos, sempre a partir de novas perspectivas. A lição ensinada é que o passado não está apagado, mas incorporado e modificado, recebendo vida nova e sentidos diferentes por aqueles que se propõem a retomá-lo. O leitor, nesse sentido, é convidado a deixar o lugar da passividade, do comportamento ignóbil e emergir em um mar de possibilidades. Esse papel interativo designado ao leitor também é percebido por Rita de Cássia Maia e Silva Costa quando esta afirma que “O paciente trabalho do escritor [...] convoca a potência interpretativa do leitor, instigando-o a reconstruir o fluxo inconsútil entre o que já foi e o que já não é [...]” (2006, p.231). Nos romances abordados, os conteúdos e as formas do passado são reelaborados a fim de revelar os limites e os poderes do conhecimento histórico ficando explícito que o texto foge aos padrões tradicionais de estruturação narrativa, inserindo-se em um novo fazer literário. O olhar que o romance histórico inserido em um contexto pós-moderno lança ao passado é desafiador, não no SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 263 a 277 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 275 sentido de querer afirmar que ele nunca existiu, mas de revelar que os critérios estabelecidos pelo homem para relatar suas experiências concretas dependem de uma ótica pessoal, que, por sua vez, torna o conceito de verdade e o estatuto do fato histórico discutíveis ante a pluralidade do olhar humano. Temos um texto, uma formação discursiva final embasada na História, porém sem deixar de ser arte literária ficcional. Assim, a incursão pelos mares da História em A Nau Decapitada e em O Capitão do Fim simboliza a tênue fronteira entre o que é verdade e o que é ficção quando se fundem História e Literatura. Aliados às infinitas possibilidades de invenção e recriação, os romances põem em jogo – por meio da paródia e da ironia – o estatuto da memória e da palavra, recriando experiências e inquirindo transformações. Em Luiz Guilherme Santos Neves, todas as digressões ao passado nos fazem aportar no prazer do texto; na sensualidade de uma escrita que tem o poder de hipnotizar e de nos conduzir a outros séculos; a outros mares; a terras desconhecidas e confrontá-los todos com o presente. Nesses contextos a que somos transportados, o autor capixaba assume o papel de capitão a conduzir uma nau repleta de interlocutores sedentos por terra firme, por um discurso que possa os aproximar da fronteira existente entre o significativo e o dito real. Barthes (s.d, p.19), em Aula, nos auxilia nesse percurso literário proposto quando lembra-nos de que “A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa”. Essa máxima torna-se mais verossímil dentro da criação capixaba quando deixamo-nos penetrar pelos textos de Luiz Guilherme Santo Neves. Referências AZEVEDO FILHO, Deneval Siqueira de. O legado de Saramago em Luiz Guilherme Santos Neves: duas notas sobre o romance histórico contemporâneo. Disponível em: www.realgabineteportuguêsdeleitura.com. Acesso em: 15 jul. 2009. BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, [s.d.]. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 263 a 277 set. / dez. 2011 276 REVISTA SABERES LETRAS BENJAMIM, Walter. Sobre o conceito da história. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Tradução Sérgio P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. BURKE, Peter. As fronteiras instáveis entre história e ficção. 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Por tratar-se de uma narrativa reminiscente e aparentemente autobiográfica, examina-se de qual forma o narrador do romance, o menino Carlos de Melo, elabora um discurso que parece permear o ingênuo ou despretensioso, mas que imprime à narrativa fortes sinais de subjetividade e juízos de valor. Palavras-chave: Menino de Engenho. Narrativa reminiscente. Aspectos Sociológicos. Abstract: This article present a literature and sociology analysis about the inaugural romance of the writer José Lins do Rego, menino de engenho (1932), putting him on the problematic and discussions of Brazilian literature in beginning of twentieth century through not only yours narrative aspects, like the central elements configuration that orientate your history. For be a reminiscent narrative and apparent auto bibliography, examine the form that the romance narrator, the boy Carlos de Melo, prepare a discourse that looks like permeable an ingenious or unpretentious, but put on the narrative strong signs of subjectivity and judgment. Keywords: Menino de Engenho. Reminiscent narrative. Sociology aspects. A semana de Arte Moderna que ocorreu em São Paulo em 1922, inegavelmente, abriu novos caminhos no desenvolvimento da literatura brasileira, embora essa 1- * Departamento de Letras e Artes/ Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural/UEFS- Feira de Santana- Bahia- Brasil. E-mail: dina_ [email protected] SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 278 a 289 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 279 não seja uma opinião totalmente unânime. Dentro dos limites cronológicos da nossa literatura nos deparamos com outro espaço/tempo importante na construção desta: o Nordeste na década de 30. Pela força dos dois momentos é quase inevitável associá-los, vendo a Semana de São Paulo como um ponto de partida significativo para a literatura de escritores como Rachel de Queiros, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e José Américo de Almeida. É uma associação inevitável e simultaneamente ousada e perigosa se for levado em consideração opiniões de escritores como Otto Maria Carpeaux e José Lins do Rego. Enquanto Otto Maria vê o Regionalismo de 30 como o verdadeiro divisor de águas de nossa literatura, José Lins do Rego responde com veemência temperamental o artigo em que Sérgio Milliet, associa o surgimento do romance Nordestino à Semana de 22: Para nós, do Recife, essa Semana de Arte Moderna não existiu, simplesmente porque, chegando da Europa, Gilberto Freyre nos advertira da fraqueza e do postiço do movimento. Eu mesmo, num jornal político que dirigia com Osório Borba, me pus no lado oposto, não para ficar com Coelho Neto e Laudelino Freire, mas para verificar na agitação modernista uma velharia, um desfrute, que o gênio Oswald de Andrade inventou para divertir os seus ócios de milionário. Graça Aranha viera da Europa atrás de discípulos entusiastas, de uma platéia mais vibrante, de uma claque mais decidida. A Semana de Arte Moderna de São Paulo foi olhada e comentada por nós mais ou menos assim. (REGO, 1935 apud MONTELLO, 1976, p.26). Deixando, assim, entrever em suas palavras que os ventos da Semana de Arte Moderna praticamente não sopraram nos ares da literatura nordestina da época, mais essa é uma discussão que gera opiniões conflitantes ainda na atualidade. As visões divergentes e os rumos diferenciados assumidos pelos dois movimentos ocorridos neste período, o de São Paulo e o de Recife, podem ser justificados, até certo ponto, pelo desenvolvimento desnivelado das duas regiões em questão: enquanto o Sudeste passava pelo processo de urbanização e industrialização SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 278 a 289 set. / dez. 2011 280 REVISTA SABERES LETRAS a partir dos lucros do café, o Nordeste ainda se encontrava preso a raízes do latifúndio decadente. Certamente pelo nível de desenvolvimento diferenciado entre as duas regiões, percebemos num primeiro olhar, posicionamentos também diversificados dentro dos movimentos, pois ao passo que os líderes paulistas voltavam seus olhares para o novo, o moderno, o produto da vida civilizada e industrial, os recifenses se direcionavam para o tradicionalismo saudosista e a revalorização da cultura passada. Assumindo um caráter mais sociológico que estético, o movimento acontecido entre os escritores de Recife, sob o comando do então sociólogo Gilberto Freyre, traz preocupação de natureza cultural, buscando revalorizar os elementos da cultura nordestina e reabilitar valores já esquecidos ou vistos como ultrapassados. E essa era a linha de pensamento presente na maioria dos textos (ficcionais ou não) produzidos nesse período, impulsionado pela fundação do Centro Regionalista do Nordeste e pela realização do 1º Congresso Regionalista do Nordeste. Acerca dessa produção, José Mauricio Gomes de Almeida diz que [...] Nos documentos nordestinos, bem como nas próprias obras literárias, pode se perceber que a proposta cultural regionalista assume o papel explícito, de norma orientadora e de elemento catalisador. A renovação literária vem a ser aqui fruto de um contato direto da arte com a realidade local (linguagem coloquial, vida social, folclore, etc.) não produto de uma experimentação consciente com os meios de expressão. A arte se renova por um mergulho no rico manancial de valores e tradições locais, até então desprezadas em prol da cultura acadêmica alienante. (ALMEIDA, 1999, p.200). Foi dentro do que ficou conhecido como “regionalismo de 30” que José Lins do Rego surgiu como escritor. Com o lançamento do seu primeiro livro, Menino de Engenho, em 1932, José Lins do Rego passou a integrar o quadro dos romancistas regionalistas da década de 30. A influência que o escritor recebera do amigo e mestre Gilberto Freyre desde 1923 pode ter repercutido também no caráter memorialista da obra, pois como Gilberto relata em Tempo morto SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 278 a 289 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 281 e outros tempos, havia lhe surgido a ideia de escrever um livro de memórias e somente ao amigo “Zé Lins” havia confiado o segredo, curiosamente o impulso para escrever Menino de Engenho pode ter partido daí. Inicialmente o objetivo do romancista era traçar a biografia do avô José Lins, que, segundo ele, representaria notavelmente a figura do patriarca da sociedade açucareira do inicio do século XX, porém a fluidez de suas reminiscências de infância foi além e deu um enfoque diferenciado à narrativa. Num entrelaçamento de autobiografia e ficção, José Lins do Rego constrói em Menino de Engenho um personagem menino que narra, em primeira pessoa, sua trajetória, experiências e impressões do período vivido dos quatro aos doze anos de idade no engenho do avô materno. Morando inicialmente em Recife, aos quatro anos de idade o menino Carlos de Melo perde a mãe após esta ser morta pelo marido em consequência de uma crise de ciúmes. Após o acontecido o menino é levado para morar ao lado de família materna no Engenho Santa Rosa, na Paraíba, que até então só conhecido por ele através das palavras da mãe. Com a chegada de Carlos ao engenho, temos situado o espaço onde se desenvolverá a maior parte da narrativa do livro. Em Menino de Engenho, o autor nos traz uma fotografia do ambiente e das relações de um dos símbolos maiores da sociedade açucareira do Nordeste. Levado pelas lembranças de sua infância passada no Engenho Corredor, propriedade do avô, o escritor, através da narrativa de Carlos já adulto, construirá uma espécie de autobiografia dos meninos que testemunharam a vida nas casas-grande e nas senzalas no período inicial da decadência do ciclo da cana. A construção do romance na forma autobiográfica é possibilitada, como já foi dito, pelo uso da memória do escritor que vivenciou o cotidiano de um engenho durante a infância. Assim a narrativa memorialista funde-se com o caráter autobiográfico e a memória se apresenta como matéria da narrativa. José Aderaldo Castello (1965) acerca da literatura de Jose Lins do Rego diz ser ela autobiográfica, pois se apresenta como um produto da experiência vivida pelo escritor no ambiente do engenho, e de maneira consciente ou inconsciente acumulada pela memória. Mas a memória entra na narrativa também exercendo um papel fundamental na criação literária, oscilando entre o que foi vivido e o que poderia ter sido. Então, constata-se que na narrativa pautada na memória, temos também a utilização da imaginação e da representação. Uma difícil SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 278 a 289 set. / dez. 2011 282 REVISTA SABERES LETRAS questão a ser resolvida dentro de uma obra com este caráter é saber até que ponto ela é autobiográfica, pois há uma defasagem entre o eu narrador e o eu que vivenciou as experiências e situações narradas. Para resolver os conflitos gerados por esse afastamento, o autobiográfico utiliza-se então de recursos próprios da literatura, como o discurso imaginativo para preencher as lacunas deixadas pelas reminiscências incompletas. Podemos enxergar, então, o livro Menino de Engenho como a materialização das memórias em objeto estético: a biografia e a sua representação literária. A literatura de José Lins do Rego se constrói a partir de uma narrativa pautada principalmente na memória e Menino de Engenho, como foi sua primeira obra, se configura como mola propulsora, matriz ou mesmo o arquétipo para a construção dos romances seguintes em especial, os que fazem parte do chamado “Ciclo da cana de açúcar”: Doidinho (1934), Banguê (1935), O moleque Ricardo (1936), Usina (1937) e o livro síntese do ciclo, Fogo Morto (1943), considerado por muitos críticos a obra-prima do autor. Ainda na primeira frase de Menino de Engenho, o narrador revela-nos que trará ali as memórias de um determinado período de sua vida “Eu tinha uns quatro anos no dia em que minha mãe morreu” e a partir do quarto capitulo do livro começa a ser exposto à frente do leitor um painel social de um engenho no inicio do século XX, por meio das observações do menino Carlos. Com uma vida marcada por perdas, o narrador construirá sua narrativa por meio de dois focos distintos: as impressões da vida melancólica e angustiada que viveu no engenho e tudo mais que o compunha como tal (o Coronel e avô José Paulino, os escravos que ali trabalhavam, os agregados, a natureza, etc.), sintetizando este foco no próprio titulo de livro “Menino de Engenho”. É considerado um romance regionalista, pois apresenta um enredo voltado para uma região específica, tem em sua essência uma substância retirada de um determinado local além de um elaborado trabalho desenvolvido com a linguagem, onde esta se volta para a oralidade dos contadores de historia da região nordestina. Ao considerar Menino de Engenho regionalista é necessário não identificar suas abordagens apenas de caráter local, pois o universal também está presente na obra através dos conflitos e das angustias narradas pelo tom mais subjetivo do menino. O rico painel que José Lins traz nas páginas de seu romance através das SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 278 a 289 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 283 observações e da linguagem direta e testemunhal de Carlos, possibilita analisar aspectos inerentes ao quadro social que nos é mostrado: a estrutura patriarcal da sociedade da época, as condições dos negros pós-abolição, a papel da mulher naquela sociedade, além de abordagens mais especificas do próprio livro. A estrutura patriarcal que sustentava o Brasil desde o inicio da colonização é representada no livro na figura do Coronel José Paulino, homem idealizado e admirado nas colocações do neto Carlos, visto como um ser generoso e que simbolizava o expoente maior nas relações entre os dominadores e os dominados no Engenho Santa Rosa. A construção idealizada referente a José Paulino pode estar relacionada à ideia primeira proposta por José Lins, a biografia do avô. Homem sem muitos propósitos religiosos e apresentado com traços nitidamente positivos, José Paulino simboliza dentro do romance a transfiguração do verdadeiro senhor feudal, possuidor de servos e grandes extensões de terra: “Tinha mais de quatro mil almas debaixo de sua proteção. Senhor feudal ele foi, mas os seus párias não traziam a servidão como ultraje”.(REGO,1986, p.105). Após a abolição da escravatura em 1888, o negro viu-se diante de uma realidade muitas vezes mais cruel. Sem políticas públicas de inserção na sociedade, uma das saídas foi continuar no regime de escravidão ao lado do senhor, visando garantir ao menos a precária alimentação. Essa era a estrutura do Engenho Santa Rosa pós-regime escravocrata: negros trabalhando de forma semelhante ao período anterior ao ano de 1888. Restava ainda na senzala os tempos do cativeiro. Uns vinte quartos com o mesmo alpendre na frente. As negras do meu avô, mesmo depois da abolição, ficaram todas no engenho, não deixaram a rua, como elas chamavam a senzala. [...] Para esta gente pobre a abolição não serviu de nada. (REGO, 1986, p.90/116) A sociedade canavieira continuava sendo sustentada pelo trabalho braçal dos mesmos homens e mulheres e com a economia pautada no mesmo sistema escravocrata anterior, amenizado talvez somente pela extinção da nomenclatura “escravidão”, reafirmando o teor não-pragmático da abolição. No aparecimento efêmero de inúmeras personagens no decorrer do romance, um núcleo SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 278 a 289 set. / dez. 2011 284 REVISTA SABERES LETRAS específico, mas com papéis sociais distintos tem destaque tanto na vida do menino, quanto nas relações do engenho: eis o núcleo feminino representado pelo olhar de Carlos. Composto tanto por mulheres brancas como por mulheres negras, o conjunto feminino em Menino de Engenho representa fielmente o papel da mulher naquela sociedade. Como traz Antonio Candido em seu livro Literatura e Sociedade (2000) é necessário entender um fenômeno literário a partir do conjunto de seu conteúdo e de seu contexto, então analisaremos a figura feminina em Menino de Engenho a partir de sua relação com a sociedade autoritária e patriarcalista em que ela está inserida. Inicialmente é preciso considerar que estas mulheres são apresentadas por meio de ótica exclusivamente masculina, através da narrativa de Carlos de Melo. Sem qualquer representação mais significativa, as mulheres são aproximadas do branco pobre e do negro, sendo que as discrições de suas ações ficam restritas a ambientes mais privados comprovando a distância da mulher da vida publica. As mulheres negras ora são apresentadas no ambiente da cozinha ou como amas-de-leite quando aquelas de idade mais avançada, ora são vistas como objeto de desejos sexuais tanto dos próprios negros do engenho, como também dos homens brancos, quando estas têm menos idade. Como um irônico sinal de perpetuação de costumes familiares, o velho José Paulino havia se envolvido com as negras do engenho, o filho Juca deflorou uma negra e se envolvia com outras mais e a iniciação sexual de Carlos é feita por uma mulher negra. Certo caráter determinista permeia alguns pensamentos de Carlos no decorrer da narrativa, onde este vê, em algumas passagens a mulher negra apenas pela sua função sexual e reprodutora: “E todo ano pariam o seu filho. Avelina tinha filho do Zé Ludovina, do João Miguel destilador, do Manuel Pedro purgador. Herdavam das mães escravas esta fecundidade de boas parideiras”. (REGO, 1986, p.92). Entre as mulheres brancas tem-se o casamento como uma forma de aceitação na sociedade, mas na verdade simbolizava apenas a transferência da subordinação e obediência, do pai para o marido. Esse foi o desfecho da personagem Tia Maria, a “segunda mãe” do menino Carlos. A notícia do casamento entre ela e o noivo, que só aparece no livro nesta data específica (um suposto sinal da falta de amor por arte da Tia Maria, pois em nenhum momento há referencia SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 278 a 289 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 285 anterior à figura do noivo), causa em Carlos mais uma sensação de perda, já que havia perdido a mãe devido às vivências de um casamento conflituoso. Outro impacto de uma casamento conturbado refletia na figura da Tia Sinhazinha, que após ter sido “devolvida” pelo marido por causa de sua personalidade, conduzia a casa-grande do Engenho Santa Rosa, com uma dose de sadismo e ar de infelicidade: As pobres negras e os moleques sofriam dessa criatura uma servidão dura e cruel. Ela criava sempre uma negrinha , que dormia aos pés de sua cama , para judiar , para satisfazer os seus prazeres brutais.Vivia a resmungar, a encontrar malfeitos , poeira nos móveis, furtos em coisas da dispensa, para pretexto de suas pancadas nas crias da casa. (REGO, 1986, p.62). A riqueza cultural do livro deve-se também à presença de uma curiosa personagem feminina, a velha Totonha. Pequeninha e de corpo frágil, como foi descrita pelo narrador, a velha Totonha tinha uma talento único para contar e dramatizar histórias, o que prendia a atenção de todos que a escutava. Interessante era que no desenrolar de suas histórias, conseguia relacionar os mais famosos contos infantis às vivências e crendices da região, o que encantava mais ainda os meninos dos engenhos por onde passava. E o que fazia a velha Totonha mais curiosa era a cor local que ela punha aos seus descritos. Quando ela queria pintar um reino era como se estivesse falando de um engenho fabuloso. Os rios e as florestas por onde andavam, os seus personagens se pareciam muito com o Paraíba e a Mata do Rolo. O seu BarbaAzul era um senhor de engenho de Pernambuco. (REGO,1986, p.88). Apesar do talento que possuía para contar histórias, é necessário frisar que a velha Totonha representa apenas mais alguém à margem da sociedade da época, que sobrevivia da ajuda que recebia nos engenhos por onde passava. A liberdade que tinha e que possibilitava trilhar os próprios caminhos e não se SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 278 a 289 set. / dez. 2011 286 REVISTA SABERES LETRAS envolver nas teias da sociedade vigente entra em choque com a ideia de ter uma família, um marido, um nome, por isso era simplesmente “tia Totonha”. O desenvolvimento da linguagem no romance se dá de forma espontânea, culminando em uma linguagem semelhante a dos contadores de história oral, o que fez Otto Maria Carpeaux definir José Lins como o último contador profissional de histórias, mas é relevante notar que apesar de estar intrínseco ao talento do autor, esse tipo de linguagem foi também uma escolha no caminho literário que decidira trilhar. Construídos como uma espécie de crônica de existência diária, os capítulos parecem apresentar certa independência entre si, mas é uma independência apenas aparente, pois pensar e ler o livro sem considerar a linearidade existente atrapalharia o entendimento. Nele, embora muitos vejam o oposto, o tempo flui cronologicamente, basta pensarmos que Carlos chega ao engenho com quatro anos de idade e sai aos doze, após passar por fortes transformações interiores. Na composição de seus trinta e seis capítulos, há a ausência de uma intriga central, talvez por ser estruturado em forma de painel, mas dois capítulos chamam a atenção pela riqueza da narrativa e do conteúdo, eis os capítulos XIII e XX. No capitulo XII há a descrição da expectativa de todos os moradores da redondeza para a cheia do Rio Paraíba e o momento em que essa cheia acontece. A riqueza e a minúcia na descrição dos detalhes nos mostram o quanto esse momento fora marcante também para o narrador: “Eu fiquei a pensar donde viria tanta água barrenta, tanta espuma, tantos pedaços de pau. E custava a crer que uma chuvada no sertão dessa pra tanta coisa”.(REGO,1986, p.70). E é um fenômeno natural como a cheia do rio que possibilita um momento em que ricos e pobres se vêem diante de uma mesma situação. Temos a transfiguração de mais uma passagem irônica dentro do romance: diante da natureza e seu poder, todos são iguais. “Nós, os da casa-grande, estávamos ali reunidos no mesmo medo, com aquela gente pobre do eito. E com eles bebemos o mesmo café com açúcar bruto e comemos a mesma batata-doce do velho Amâncio”. (REGO, 1986, p.72). É no capitulo XX que temos a presença de mais uma substância de raiz nordestina, as crendices populares de forte representação no folclore da região. Nele surge a figura do lobisomem e toda a descrição detalhada e em etapas das crenças que estão por trás desta lenda. A força da crença permeia tanto a SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 278 a 289 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 287 alma das crianças como também a de adultos, marcando uma fase da infância de Carlos. Era a partir da crença no lobisomem que surgiam os interessantes “causos” de alguns moradores sobre o suposto confronto com o bicho. Neste mesmo capítulo aparecem outras significativas figuras do folclore nordestino, como o bicho-carrapato, a cabra-cabriola, a caipora, a mula-de-padre e a falta de religiosidade do menino, devido às influências que recebera da família, contribuía para uma crença mais forte em todos esses seres encantados. Mais ainda, pela ausência que tinha dentro da casa-grande de algumas práticas e ensinamentos religiosos, tais criaturas imaginárias se faziam mais presentes na vida de Carlos que o próprio Deus: “O lobisomem existia, era de carne e osso, bebia sangue de gente. Eu acreditava nele com mais convicção do que acreditava em Deus.” (REGO, 1986, p.86). Voltando-se para as passagens da narrativa em que o menino e seu subjetivismo se fazem mais presente, vemos que os fatos narrados nestes momentos estão envoltos de uma melancolia, de uma angústia e de conflitos interiores entre ele e o mundo. É após a iniciação sexual precoce com a negra Zefa Cajá que o menino encontra-se ainda mais introspectivo e triste, culpando-se pelas experiências sexuais e sem a possibilidade de refugiar-se em uma religião não-praticada. É por meio dos contatos sexuais com essa negra que o menino contrai gonorréia e esta doença, por estar num ambiente extremamente machista, passa a ser o símbolo da virilidade e do amadurecimento do garoto. A falta de comunicação que encerra a maior parte de suas relações e as sucessivas perdas que sofre (a mãe é morta, o pai vai para o hospício, uma prima chamada Lili morre, a tia Maria casa-se e vai embora, Jasmim, o carneiro de estimação, é morto) contribuem para que o menino se torne cada vez mais introspectivo e tristonho. A ida de Carlos para um colégio interno, relatada por ele no último capítulo, aparece como um refúgio ou esperança para a salvação da alma daquele que, de acordo com suas constatações, já se via perdido no mundo. Na narrativa das reminiscências infantis e aparentemente sem juízos de valor do menino Carlos, José Lins do Rego começa a construir sua carreira literária e também um ciclo que traria, com grande riqueza sociológica, o desmoronamento de uma sociedade que se mostrava em agonia já em Menino de Engenho. Apesar de estar voltado para um determinado espaço típico da área rural nordestina e SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 278 a 289 set. / dez. 2011 288 REVISTA SABERES LETRAS se passar num período em que a cultura e os meios ainda se renovavam de forma não tão rápida na região, dois traços que remetem à modernidade se fazem presentes dentro da obra: a figura do trem e as referências ao cinema. O trem exercendo em alguns ainda um forte encanto e admiração e as duas referências que aparecem dentro do romance em relação à sétima arte, contrastando com o ambiente em que se passa a maior parte da história. E foi o cinema que revalorizou, também, mais de três décadas depois do lançamento, o trabalho do romancista paraibano em Menino de Engenho. Durante o cinema novo, o cineasta Walter Lima Jr. produziu a adaptação cinematográfica do romance de José Lins. As observações e impressões narradas por Carlos agora são contadas através da lente da câmera, por meio se sequências que se “encadeiam em verossimilhança com o raciocínio da criança, construindo ações aparentemente sem clímax e num jogo de distanciamento/aproximação quase documental do Engenho Santa Rosa”. (NOVAES, 2004, p.63). No filme as transformações que o tempo provocaria no engenho e na vida dos que ali permaneciam são sugeridas através de um poema de Carlos Pena Filho já na tela de abertura. Uma síntese poética do que José Lins construiu em seus cinco romances do ciclo da cana, encerrando com a publicação de Fogo Morto em 1943. Referências ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileiro (1847-1945). 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SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 278 a 289 set. / dez. 2011 290 REVISTA SABERES LETRAS O FAZER POÉTICO DE GEIR NUFFER CAMPOS Gabriel Diniz Silva1* Karina de Rezende Tavares Fleury2** Resumo Este trabalho desenvolve uma análise política-histórica-cultural-ideológica do poema “Da profissão do poeta”, de Geir Campos, publicado em 1959 no livro Operário do Canto. Pretende-se, com isso, expor a complexidade de significações que a poética do autor comporta. Desenvolvido com base na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, o poema simboliza um manifesto de igualdade social para os trabalhadores. Geir aproveita a lei e sua linguagem técnica para inspirar sua obra e falar aos brasileiros. O poema é construído com uma forte contemplação humana na defesa dos direitos dos trabalhadores. Palavras-chave: Sociedade. Igualdade. Poesia. Geir Campos. Abstract: This paper develops a political-historical-cultural-ideological analysis of the poem “Da Profissão do Poeta”, by Geir Campos, published in 1959 in the book Operário do Canto. It is intended, therefore, to expose the complexity of meanings that the author’s poetics entails. Built on the Consolidation of Labor laws (CLT), the poem symbolizes a manifesto of social equality for workers. Geir takes the law and its technical language to inspire his work and speak to Brazilian people. The poem is constructed with a strong human contemplation in defending of the rights of workers. Key-words: Society. Equality. Poetry. Geir Campos. Geir Nuffer Campos foi um poeta que representou a evolução vivida por sua geração. Sua obra abrange aspectos contemplativos, onde o lirismo é acentuado, inclusive em aspectos históricos referindo-se à guerra, à morte, à liberdade e a solidariedade do homem. Maria Coelho Thereza Ceotto identifica a trajetória poética de Geir em três 1- *Licenciado em Letras Português/Inglês e respectivas Literaturas (Faculdade Saberes). 2- **Professora da Prefeitura Municipal de Vitória, Mestre em Letras (com ênfase em Estudos Literários) e Doutoranda na mesma área (UFES). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 290 a 307 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 291 momentos significantes: lirismo de contemplação; lirismo de participação social e o signo da madureza ou de reflexão filosófica. O lirismo de contemplação engloba os livros Rosa dos rumos (1950), Arquipélago (1952), Coroa dos sonetos (1953) e Tema com variação (1957). Ceotto descreve essa primeira fase como um momento triste do poeta: o desespero, a passagem do tempo, a solidão, a falta de resposta e a morte o assombram; contudo, o poeta mostra um grande conhecimento da arte. Nesta primeira fase de sua poesia, Geir Campos revela um grande conhecimento do seu ofício. Os poemas são habilmente metrificados e rimados. O poeta se esmera em experimentações, especialmente no campo rímico. O tratamento da língua é clássico, com períodos longos e vocabulário erudito (CEOTTO, 1992, p. 32). A esse respeito, Ceotto afirma, no livro Faces Poéticas, com seleção de textos de José Irmo Gonring, que “são versos de um poeta preocupado com problemas existenciais. Nesse momento inaugural, Geir Campos se revela grande conhecedor de seu ofício, com poemas habilmente metrificados e rimados” (2009, p. 24). O lirismo de participação social, com os livros Canto claro (1957), Operário do canto (1959), Canto provisório (1960) e Cantigas de acordar mulher (1964), mostra outro lado de Geir, um pouco atingido pelas questões da época. O poeta sente um desejo de participação no cenário sócio-político-cultural brasileiro. O movimento operário, a reforma agrária e a nacionalização são influências fortes aos autores de 45. São versos interessados nos graves problemas que atravessa a nação brasileira. Trata-se de poemas ora idealistas ora irônicos, que questionam a situação político-social dominante no país e pregam a renovação, sonhando com um mundo novo onde reine a paz e a igualdade entre os homens (CEOTTO, 1992, p. 32). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 290 a 307 set. / dez. 2011 292 REVISTA SABERES LETRAS Por fim, está o lirismo da madureza ou de reflexão filosófica, com os livros Cantar de amigo ao outro homem da mulher amada (1964), Metanáutica (1970) e Canto de peixe e outros cantos (1977). Nessa terceira parte de Geir, o poeta se volta, principalmente, para seu eu, mostrando uma poesia de reflexões do homem sobre si e sobre o mundo. Sem abandonar a utopia de um mundo novo, o poeta retorna em parte à poesia de introspecção e autoanálise [...]. É o momento de reflexão madura sobre o homem e o mundo, momento também de síntese linguística em que dominam poemas curtos, escritos em linguagem direta (CEOTTO, 1992, p. 33). O trabalho que ora propomos abordará a segunda parte da vida poética de Geir: o Lirismo de participação social, tendo como foco exclusivo o estudo do poema “Da profissão do poeta”, da obra Operário do Canto, datada de 1959, onde o poeta, movido pelos problemas político-sociais, constrói poemas carregados de idealismo e, às vezes, irônicos. Sua linguagem simplificada denota o objetivo do autor: a aproximação do poema com a variante popular. SOBRE O AUTOR Filho de um dentista e de uma professora, Geir Nuffer Campos nasceu em 28 de fevereiro de 1924, em São José do Calçado, no Espírito Santo. Ainda criança, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ficou órfão de pai aos onze anos. Estudou no Colégio Pedro II e, após o ginásio, tentou engenharia por causa do sonho de seu pai em tê-lo engenheiro. Entretanto, não conseguiu pontuação suficiente para entrar no curso, o destino o queria poeta. Foi o primeiro colocado no processo seletivo para o ingresso na Marinha Mercante e, quando diplomado, pilotou navios do Lloyd Brasileiro3, durante a Segunda Guerra Mundial, o que lhe trouxe a condecoração de ex-combatente civil. Geir Campos estudou em cursos como o de Línguas Anglo-germânicas e o 3- Companhia estatal brasileira de navegação fundada em 1890 e extinta em 1997. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 290 a 307 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 293 de Direito, porém, não chegou a se graduar em nenhum deles. Foi autor de quinze livros de poesias, quinze de teatro, dois de literatura infanto-juvenil, dois de contos e escreveu quatro obras de referência em literatura. Geir foi ainda jornalista, ensaísta e tradutor de obras consagradas, e como escreve Pablo Cardellino e Walter Carlos Costa em um verbete publicado em 3 de junho de 2005, no Ditra (Dicionário de Tradutores Literários do Brasil): “...alguns de seus poemas foram traduzidos e publicados em uma antologia na Hungria”4. Ninguém melhor do que o próprio poeta para falar dele mesmo. Escreve sobre si na introdução de seu livro Metanáutica, apresentando-se, não com o seu eu lírico, mas com sua própria intimidade e personalidade: Meu nome todo é Geir Nuffer Campos, com uma ascendência alemã, talvez não tanto ariana, que explico na “Elegia quase Ode” de “Canto Claro”, premiado pela Prefeitura do então Distrito Federal, em 1956. Gabo-me de ser filho do Espírito Santo, por obra e graça de São José do Calçado. Cidade onde nasci num domingo de carnaval, 28 de fevereiro de 1924. Na porta da igreja onde fui batizado, vê-se até hoje o baixo-relevo de uma âncora, em ângulo com uma cruz, talvez me predestinando a ser homem de mar. Estudei em vários colégios, inclusive o Pedro II, Internato e Externato. Acabei na Escola da Marinha Mercante no Rio de Janeiro, de onde saí para pilotar navios do Lloyd Brasileiro. Durante a Segunda Guerra Mundial, tomei parte em comboios e em outras operações ditas bélicas. Terminada a guerra no Atlântico, deixei a vida de vaporzeiro e passei a bordejar em terra, fundeando numa série de empregos, desde correspondente-faturista de uma fábrica de formicida, São Gonçalo, até diretor da Biblioteca Pública do Estado do Rio, em Niterói, onde resido. Comecei três cursos universitários – línguas anglo-germânicas, uma vez, e direito, duas – mas não tive paciência para aguardar o diploma. Sou jornalista profissional desde 1952, e redator de 4- Dicionário de tradutores literários no Brasil - DITRA. Disponível em <http://www.dicionari� odetradutores.ufsc.br/PT/GeirCampos.htm>. Acesso em: 03 mai.2011. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 290 a 307 set. / dez. 2011 294 REVISTA SABERES LETRAS programas de Rádio Ministério da Educação e Cultura desde 1955. Atualmente leciono Introdução às Técnicas de Comunicação, na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Comecei a publicar poemas e contos no Diário Carioca, ao tempo de Pompeu de Souza. Meu primeiro livro, Rosa dos Rumos, saiu por minha conta, em 1950. O segundo, Arquipélago, eu mesmo compus e imprimi, encapei e vendi, com Thiago de Mello, nas edições Hipocampo em que éramos parceiros. Já tenho traduzido muitas obras, clássicas umas, importantes outras: Sófocles, Shakespeare, Whitman, Brecht, Rilke... Em 1969 ganhei o prêmio do II Torneio Nacional de Poesia Falada, organizada por Gastão Neves como diretor do departamento de Difusão Cultural do Estado do Rio, e o poema premiado, então interpretado pelo ator Rubens de Falco, está incluído neste volume, a que dá título (a um dos capítulos), Metanáutica (CAMPOS, 1970). “DA PROFISSÃO DE POETA”: O LIRISMO DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL [...] nenhum homem possui uma autoridade natural sobre seu semelhante e uma vez que a força não produz nenhum direito, restam, pois, as convenções como base de toda a autoridade legítima entre os homens. Jean-Jacques Rousseau Em 1959, Geir Campos publica o livro Operário do Canto, e inicia a obra usando a lírica do poeta de língua alemã Rainer Maria Rilke: “Operários somos – oficiais, aprendizes, mestres – e te construimos [sic], ó fabulosa nave!”. A epígrafe parece ter a intenção de preparar a mente dos leitores para o que virá. Esse início coloca todos no mesmo plano, dá responsabilidades às pessoas na construção e manutenção da “nave” enquanto mundo socializado. Para entender o que inspirou o poeta Geir, faz-se necessário relacionar o poema “Da Profissão do Poeta” ao Decreto-lei n.º 5.452, também chamado Consolidação SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 290 a 307 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 295 das Leis do Trabalho (CLT), de 1º de maio de 1943, que entrou em vigor em 10 de novembro do mesmo ano, com suas leis e textos originais, ou seja, aqueles que não foram revogados ou modificados por leis posteriores. O poema “Da Profissão do Poeta” faz uma referência ao compêndio das leis trabalhistas, com uma linguagem simples; faz a poesia trabalhar para o bem social. Geir Campos enxerga, na linguagem técnica da lei, uma possibilidade lírica, da qual se utiliza para iniciar seu poema: “Não haverá distinção relativa à espécie de emprêgo [sic] ou à condição do trabalho, seja intelectual ou manual ou técnico” (1959, p. 01). Desse modo, o poeta não pode ser considerado um trabalhador diferente dos outros. Com os subtítulos tirados da CLT, o poema é construído para o poeta, trabalhador que se coloca representando todas as classes de trabalhadores. O título “Da Carteira Profissional”, que foi modificado para “Da Carteira de Trabalho e Previdência Social” (CTPS), redação dada pelo Decreto-lei nº 926, de 10.10.1969, fala da obrigação da identificação, sem distinção de sexo, do trabalhador maior de 18 anos, para exercício de qualquer atividade remunerada. Na CTPS, são registradas informações sobre a vida profissional do trabalhador. Geir usa a obrigatoriedade da identificação para apresentar o trabalhador poeta. “Da Identificação Profissional” nada mais é que a apresentação do trabalhador. Aqui o eu lírico manifesta suas características como operário de “expresso documento” (1959, p. 03). Da Identificação Profissional Operário do canto, me apresento sem marca ou cicatriz, limpas as mãos, minha alma limpa, a face descoberta, aberto o peito, e — expresso documento — a palavra conforme o pensamento. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 290 a 307 set. / dez. 2011 296 REVISTA SABERES LETRAS O artigo 442 da CLT ensina que o “contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego” (1943), podendo ser, de acordo com o art. 443, acordo verbal ou escrito e por prazo determinado ou indeterminado. Geir Campos usa a voz do poeta para dizer do contrato ou de uma proposta de trabalho, em que ele, mesmo escrevendo “Fui chamado a cantar...”, deixa explícita uma vontade própria de falar, assumindo seu dever social. Assim completa: “e para tanto há um mar de som no búzio do meu canto”. Por essa razão, pode-se pensar que o poeta usa de sua individualidade para representar o coletivo. O poeta preocupa-se com o trabalho, como também com as entidades de classes, na qual a dor pode ser “ilhada ou coletiva”. O sentimento social aparece quando o eu lírico tem vontade de “cantar” e se declara porta-voz dos trabalhadores. Seu canto individual está disfarçado, e sua necessidade faz o búzio de seu canto embebido de significados. O mar figura como anseios coletivos incutidos na palavra solitária do poeta. Do Contrato de Trabalho Fui chamado a cantar e para tanto há um mar de som no búzio do meu canto. Embora a dor ilhada ou coletiva me doa, antes celebro as coisas belas que movem o sol e as demais estrelas — antigos temas que parecem novos de tão gratos ao meu e aos outros povos. (p. 3) A dor isolada ou a dor coletiva é amenizada por forças superiores que regem “o sol e as demais estrêlas [sic]”, sentimentos místicos e religiosos que usamos para explicar o que, pela ciência, não tem explicação. Esses conhecimentos, além de darem respostas às questões ainda não solucionadas, sempre foram usados para o conforto da alma. O poeta relaciona seu ofício às diversas funções descritas na CLT, revelando que em todas as funções sociais existe um pouco de lirismo. O canto aqui colocado SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 290 a 307 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 297 chega a toda classe de trabalhadores. Os ofícios citados eram as principais ocupações da época, e o poeta possui relação com todos eles. Com os bancários, seu verso tem peso e é valioso “como prata boa”. Claro aos empregados do comércio é o que ele encomenda e recomenda. Sua mensagem é forte de tal maneira que alcança lugares longes, no momento certo, com sonoridade e harmonia como uma melodia. Da Relação com Vários Ofícios Meu verso tine como prata boa pesando na confiança dos bancários; os empregados no comércio bem sabem como atender aos que encomendo e recomendo mais do que ninguém; aos que funcionam em telefonia com ou sem fio, rádio, a esses também sei dizer à distância ou de mais perto a cifra e o texto no minuto certo; para os músicos profissionais, sem castigar o timbre das palavras modulo frases quase musicais (p. 4). Para os trabalhadores do cinema, relaciona seu verso a um filme que “a luz não queima” (p. 04). Geir usa a polissemia da palavra “trilho” – substantivo ou verbo na intenção de aproximação com o coração e sentimento dos ferroviários. Diz que seu verso fala doce e grave como “a taboca5 dos navios”. para os operadores de cinema meu verso é filme bom que a luz não queima; 5- Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa: Taboca1, s. f. (Bras.) Bambu (sinôn.: taquara); (Nordeste) gomo de bambu que se enche de pólvora, na fabricação de foguetes, pistolões, etc.; espécie de formiga (Camponotus abdominalis Forel); (Bahia) casa ou venda de pequeno negócio; doce seco. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 290 a 307 set. / dez. 2011 298 REVISTA SABERES LETRAS trilho também as estradas de ferro e chego ao coração dos ferroviários como um trem sempre exato nos horários; às equipagens das embarcações de mares ou de lagos ou de rio meu verso fala doce e grave como doce e grave é a taboca dos navios (p. 4- 5). Fala que, nos frigoríficos, seu verso circula e envolve, transformando-se em serpentina para derreter a indiferença e a ausência de sentimentos. Seu verso guinda, suspende, eleva, traz à tona a atenção dos homens da estiva. nos frigoríficos derrete o gêlo da apatia, se é para derretê-lo, meu canto a circular nas serpentinas; à boca da escotilha ou nas esquinas do cais, o meu recado é força viva guindando a atenção dos homens da estiva; (p. 5) Contempla, em sua escrita, desde os mineiros que extraem o minério do sangue de suas artérias, até aqueles que dão a têmpera ao metal através de seu “sôpro [sic] a mais”. desço cantando aos subsolos e às minas onde outros operários desenterram o minério de suas artérias finas; a outros, que dão sua têmpera aos metais, meu canto ajuda feito um sôpro a mais aflando o fogo em flâmulas vermelhas (p. 5). E “aos colegas que lidam nos jornais” são dadas boas notícias, além de responsabilidades na função de porta-vozes daqueles que, por ventura, sofrerem algum tipo de arbitrariedade. A voz lírica, sentindo-se no dever de ser “magistério puro”, tenta tornar sua mensagem pública, e a faz escrevendo “em giz no muro”. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 290 a 307 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 299 aos colegas que lidam nos jornais boas noticias dou e, mais do que isso, jeito de as repetir e divulgar quando o patrão quisera ser omisso; à gente miúda, pronta a ser maior, passo lições de um magistério puro e o que é dever escrevo a giz no muro; (p. 5- 6) Fala aos químicos na linguagem de fórmulas novas que vieram ou se iniciaram por meio de mártires em suas covas. Entendido que o início do ofício ou trabalho é o começo da vida do trabalhador, o poeta, então, canta sua mensagem, gratuita e opcional, “sugerindo meio e fim”. para os químicos sei fórmulas novas que os mártires elaboram nas covas... e a todos que trabalham vai assim meu canto sugerindo meio e fim. (p. 6) O Artigo 58 do Decreto-Lei nº 5.452, de 1943 diz que: “A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite.” Com o objetivo de proteger a saúde do trabalhador, como também salvaguardar o direito ao lazer e a convivência familiar, o texto estabelece uma jornada de trabalho não superior a 8 (oito) horas diárias, salvo outros acordos expressos. Estipuladas as horas de prestação de serviço do trabalhador comum, agora é a vez do trabalhador-poeta ter suas horas de ofício marcadas, sejam elas de dia, expressas em sombras pelo chão, ou de noite, pelo brilho das estrelas. Do Horário do Trabalho Marcadas as minhas horas de ofício, de dia em sombras pelo chão e à noite no rútilo diagrama das estrelas, só quem ama o trabalho sabe vê-las. (p. 6) SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 290 a 307 set. / dez. 2011 300 REVISTA SABERES LETRAS A todo trabalhador é garantido o direito de descanso semanal por um período de 24 (vinte e quatro) horas, preferencialmente aos domingos. Por isso, “seja domingo ou dia da semana”: Art. 67 - Será assegurado a todo empregado um descanso semanal de 24 (vinte e quatro) horas consecutivas, o qual, salvo motivo de conveniência pública ou necessidade imperiosa do serviço, deverá coincidir com o domingo, no todo ou em parte. Parágrafo único - Nos serviços que exijam trabalho aos domingos, com exceção quanto aos elencos teatrais, será estabelecida escala de revezamento, mensalmente organizada e constando de quadro sujeito à fiscalização (CLT, 1943). Geir Campos fala do período de descanso merecido do trabalhador. Reconhece o direito às horas ociosas, principalmente, quando o ofício é rotineiro, como aqueles que exigem trabalhos aos domingos. E para assegurar o descanso de alguns, o poeta escreve que “descanso é confiar nos companheiros”. Dos Períodos de Descanso Seja domingo ou dia de semana, mais do que as horas neutras do repouso confortam-me os encargos rotineiros; meu descanso é confiar nos companheiros. (p. 6) A redação original do Artigo 129 da CLT menciona que: “Todo empregado terá, anualmente, direito ao gozo de um período de férias, sem prejuizo [sic] da respectiva remuneração”, e, sabendo de seu direito, dado pelo Art. 137 da CLT que fala: “A concessão das férias será participada, por escrito, com a antecedência, no mínimo, de oito dias. Dessa participação o interessado dará recibo”, o poeta reclama que a ele nunca participaram por “escrito ou verbalmente” o descanso SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 290 a 307 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 301 merecido, mas descansa o tempo ocioso que lhe aparece como quando prepara o verso. No dicionário Houaiss, o termo ócio significa interrupção do trabalho, folga, falta de ocupação. Mas Geir não faz oposição entre trabalho e descanso; para o poeta, o descanso é parte do conjunto do trabalho, formado pelo período de efetivo labor e pelo período de descanso. Do Direito a Férias Nunca me participam por escrito ou verbalmente os ócios que mereço, mas sempre gozo bem o merecido: pois o ócio não é ofício pelo avesso? É quando fio o verso; depois teço. (p. 7) O Art. 140 rege que “O empregado, em gozo de férias, terá direito à remuneração que perceber quando em serviço”. E ele tem direito a receber. Entretanto, seu pagamento não é feito em valor monetário, mas em saber que seu verso é lembrado por aquelas pessoas que deram inspiração a sua confecção. Dessa maneira, enquanto o poeta goza suas férias, outras pessoas ficam com o dever social de continuar com a luta. Da Remuneração das Férias Em férias tenho a paga de saber lembrado o verso meu por quem o inspira; é como se outra mão tangesse a lira. (p. 7) A CLT, de acordo com o artigo 76, idealiza o Salário Mínimo como: [...] a contraprestação mínima devida e paga diretamente pelo empregador a todo trabalhador [...] capaz SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 290 a 307 set. / dez. 2011 302 REVISTA SABERES LETRAS de satisfazer, em determinada época e região do País, as suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte (1943). Geir usa o sentido da expressão “região do País” para esclarecer que o trabalho do poeta é entre os pontos cardinais, ou que está demarcada sua competência e responsabilidade dentro do território nacional. Deixa explícito que, com esse trabalho, ele é merecedor de paga sendo cobrado “aqui e ali quanto me basta”, e o que basta ao poeta, nesse momento, é continuar com sua voz “cantando”. Do Salário Mínimo Laborando entre os pontos cardinais, de norte a sul, de leste a oeste, vou cobrando aqui e ali quanto me basta: o privilégio de seguir cantando. (Imposto é cuidar onde e como e quando.) (p. 7) É mencionado que o trabalho realizado acontece “sem revezamentos”, unindo a voz daqueles que cantam pelo mesmo ideal. É assim que acontece a força da coletividade. Com a mistura, a voz não fica menos pura e, no subir de “uma oitava na mistura”, ela ganha força, torna-se mais aguda, alta e com maior intensidade. Do Expediente Noturno Trabalho à noite e sem revezamentos. Se há mais quem cante, cantaremos juntos; sem se tornar com isso menos pura a voz sobe uma oitava na mistura. (p. 8) O Art. 157 da CLT determina que “todos os locais de trabalho deverão ter iluminação suficiente para que o trabalho possa ser executado sem perigo de acidente para o trabalhador e sem que haja prejuizo [sic] para o seu organismo”, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 290 a 307 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 303 e o poeta canta, mesmo no escuro e ao vento e à chuva, canta com perigo à vista transformando seu canto em clara luz e em ar puro, sendo também sol no inverno e fresca no verão. Fala às pessoas coisas certas; fala de flores para flores e de frutos para os frutos; sabe fazer a voz falar o que e a quem de direito. Com a mesma intenção de manter a segurança do trabalhador, o texto do Art. 166 obriga o uso da ventilação artificial quando a ventilação natural se fizer insuficiente. Para tanto, o Art. 165 diz: “um grau do conforto térmico compativel [sic] com o gênero de trabalho realizado”. A produção depende da segurança e do grau de conforto na qual o poeta trabalhador se encontra. Do contrário, a lira – instrumento do lirismo engasga, e o verso – lirismo manifestado, perde o jeito. Da Segurança do Trabalho Mesmo no escuro, canto. Ao vento e à chuva, canto. Perigo à vista, canto sempre; e é clara luz e um ar nunca viciado e sol no inverno e fresca no verão, meu canto, e sabe a flores se é de flores e a frutos se é de frutos a estação. Só não me esforço à luz artificial com que a má fé de alguns aos mais deslumbra servindo-lhes por luz o que é penumbra; também quando o ar parece rarefeito a lira engasga, o verso perde o jeito. (p. 8) O Art. 155 da CLT esclarece que as indústrias só poderão funcionar mediante inspeção e aprovação da higiene, feita por autoridade competente. Desse modo, podemos entender que a Consolidação das Leis do Trabalho mostra-se preocupada com a saúde dos trabalhadores, e, portanto, todo ato de trabalho deve ser exercido em local limpo e preparado. O poeta não canta em qualquer lugar. Ele trabalha seu canto e escolhe em que espaço cantar e para quem cantar. Ele não leva sua mensagem a lugares onde SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 290 a 307 set. / dez. 2011 304 REVISTA SABERES LETRAS os anseios se mantenham escondidos ou “onde não seja o sonho livre”. Espera que as almas das pessoas para quem canta estejam preparadas e desprovidas de pré-julgamentos, “limpas”. O autor Geir Campos explica sua postura ao dizer que sua poesia não é para distração ou deleite do leitor, ou feita para “enganar o tempo, ou distrair criaturas já de si tão mal atentas, não canto”. No entanto, há momentos em que ele canta, mas “apenas quando dança, nos olhos dos que me ouvem, a esperança”. Da Higiene do Trabalho Não canto onde não seja o sonho livre, onde não haja ouvidos limpos e almas afeitas a escutar sem preconceito. Para enganar o tempo ou distrair criaturas já de si tão mal atentas, não canto... Canto apenas quando dança, nos olhos dos que me ouvem, a esperança. (p. 9) Este, talvez, seja o momento do poema e do canto em que o poeta se dispõe, e assim o eu lírico se coloca, a encarar todas as consequências de sua militância, não somente como intelectual e porta-voz dos brasileiros, mas como corpo presente em outras formas de lutar. Da Alteração de Contrato Etc. Meu ofício é cantando revelar a palavra que serve aos companheiros; mas se preciso for calar o canto SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 290 a 307 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 305 e em fainas diferentes me aplicar unindo a outros meu braço prevenido, mais serviço que houver será servido. (p.9) Como trabalhador-poeta, ele reconhece que seu ofício é revelar aquilo que sabe servir aos trabalhadores. Mesmo assim, declara que, se preciso for, calará seu canto para em “fainas”6 se lançar, revelando sua forte ideologia humanista e social, ultrapassando as fronteiras do pensamento e se lançando no plano de um provável confronto. REFERÊNCIAS BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1976. BRAGANÇA, Aníbal; SANTOS, Maria Lizete dos (Orgs.). A profissão do poeta & Carta aos livreiros do Brasil. Niterói: Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 2002. CAMPOS, Geir. Metanáutica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970. ______. Operário do Canto. Rio de Janeiro: Antunes & Cia. Ltda, 1959. ______. Pequeno Dicionário de Arte Poética. Rio de Janeiro: Editora Conquista, 1960. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Editora Ouro sobre Azul, 2006. ______. O estudo analítico do poema. 4ª ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004. 164 p. CEOTTO, Maria Thereza Coelho. Geir Campos e a Geração de 45. 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Abstract: The purpose of the present essay is to examine Jorge Luis Borges’ interest for and affinity with detective stories, not only in his capacity as a reader, a reviewer, and a theorist, but also as an author of a few mystery short-stories himself. It goes on to analyze a certain degree of complexity and literariness ascribed by some great authors, particularly Borges, to a sub-genre usually regarded as minor by academic criticism. Keywords: Jorge Luis Borges. Detective Story. Intertextuality Na viagem conceitual e intertextual que pretendemos fazer pela literatura policial contaremos com a cumplicidade, o testemunho e a assessoria de um dos mais representativos escritores do século XX, Jorge Luis Borges. Ele será nosso álibi para muito do que dissermos aqui. O leitor menos familiarizado com a variedade e a abrangência da obra de Borges poderá estranhar o fato de o associarmos a um gênero considerado menor, a literatura policial, que é tida, sobretudo, como literatura de escapismo, diversão ou passatempo. Dorothy Sayers, escritora de romances policiais, escreveu que a história de detetive “não tem como, e por hipótese jamais terá como, alcançar o nível 1- *FACULDADE SABERES. Vitória, ES, Brasil - [email protected] SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 309 mais elevado de realização literária”, definindo-a como “literatura de fuga da realidade” e não como “literatura de caráter artístico” (CHANDLER, 2001, p. 175). Raymond Chandler rejeita essas opiniões: Eu não sei o que seja o nível mais elevado de realização literária. Tampouco Ésquilo ou Shakespeare o sabiam. E muito menos o sabe a Srta. Sayers. [...] Sempre é uma questão de quem escreve o material e o que este autor tem dentro de si que o leva a escrever. Quanto à “literatura de caráter artístico” e à “literatura de fuga da realidade”, isto não passa de jargão dos críticos literários, um fazer uso de palavras abstratas como se elas tivessem significados absolutos. Tudo que é escrito com vitalidade expressa essa vitalidade; não há sujeitos [assuntos] desinteressantes. O que há são mentes desinteressantes (CHANDLER, 2001, p. 176). E mais adiante, falando de Dashiell Hammett, precursor do romance “noir”, uma linha que divergia da linha policial clássica, Chandler declara: Hammett demonstrou que a história de detetive pode resultar num texto importante. O Falcão Maltês [principal obra de Hammett] pode ou não ser a obra de um gênio, mas uma arte que é capaz de chegar a esse ponto não é “por hipótese” incapaz de tudo o mais. Uma vez que uma história de detetive pode ser tão boa quanto O Falcão Maltês, só os pedantes negarão que ela poderia ser ainda melhor (CHANDLER, 2001, p. 182). O crítico Jean-François Gérault divulgou no site “Mauvais Genres”, na Internet, um texto intitulado “Jorge Luis Borges, défenseur des mauvais genres”, em que faz um relato minucioso da ligação de Borges com “gêneros inferiores” – ou de paraliteratura, como também os define – entre os quais estão a literatura policial e a ficção científica. Assim explica ele a atração de Borges por esse tipo de obra literária: SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 310 REVISTA SABERES LETRAS Em primeiro lugar, Borges tem fascínio pelos bandidos e pelo crime. Isso o levará a escrever toda uma série de biografias deformadas de bandidos para o suplemento semanal da Revista Multicolor de los Sábados [...] A segunda razão da paixão de Borges pelo romance policial é a sua predileção pelo enigma, pela solução lógica e engenhosa dos problemas aparentemente mais delirantes! Muito jovem, desde a idade de quinze anos, descobre fascinado o universo de um dos maiores escritores da literatura policial, Gilbert Keith Chesterton. Seu primeiro escrito teórico sobre o assunto, “Leis da narração policial”, em Hoy Argentina (no. 1, abril 1933) será dedicado a esse escritor. [...] O que o fascina nesse autor é a sua capacidade de transformar uma história aparentemente banal em uma intriga totalmente lógica e racional (GÉRAULT, 1999). De fato, Borges pode ser associado à literatura policial de três maneiras diferentes: como leitor, como autor e como crítico. Vejamos separadamente cada uma das três. Borges, leitor de literatura policial Sabemos, segundo suas próprias palavras, que a experiência da leitura marcou Borges mais do que a experiência da vida: mas, enfim, lembro mais do que li do que me aconteceu. Mas claro que uma das coisas mais importantes que podem acontecer a um homem é ter lido esta ou aquela página que o comoveu, uma experiência muito intensa, não menos intensa que outras. Embora Montaigne tenha dito que a leitura é um prazer lânguido. Mas acho que errou, no meu caso a leitura não é lânguida, é intensa (BORGES, 1986, p. 21). Além disso, tanta importância atribuía à atividade da leitura que pôde formular SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 311 sentenças como esta, que se lê no poema “Um leitor”: “Que outros se jactem das páginas que escreveram; / a mim me orgulham as que li” (BORGES, II, p. 418). Sabemos, também, que a leitura de Borges era de vasta abrangência. Ele leu muito e de tudo, inclusive literatura policial, como ele mesmo o confessa: “Coube-me por sorte o exame, nem sempre árduo, de centenas de romances policiais” (BORGES, IV, p. 577, itálico nosso). Nos termos “por sorte” e “nem sempre árduo” estão revelados claramente o prazer e o interesse com que Borges se entregava a essas leituras. O termo “centenas” mostra a grande quantidade de textos desse gênero a que deu atenção. Borges, autor de literatura policial Sua experiência como autor do gênero Borges reconhece, modestamente, em sua conferência sobre “O conto policial”: Tentei o gênero policial, certa vez. Não me sinto muito orgulhoso do que fiz. Eu o levei para o terreno simbólico, que não sei se agrada. Escrevi “A morte e a bússola”, além de um ou outro texto policial com Bioy Casares [...] [Estes são] os contos de Isidro Parodi, um preso que do cárcere soluciona os crimes (BORGES, IV, p. 229). Na verdade, embora longe de produzir textos policiais convencionais, Borges escreveu vários textos em que a influência ou a inspiração do gênero está muito presente. Seu primeiro texto nessa linha é “A aproximação a Almotásim”, de 1933, mais tarde incluído no livro História da Eternidade (1936). Convém lembrar que este é também o primeiro trabalho de ficção de Borges na linha da “falsa resenha bibliográfica” (a expressão é de Emir Rodríguez Monegal) (MONEGAL, 1987, p. 29). O “romance” de que se trata no conto é The Approach to Al-Mu’tasim, atribuído ao advogado Mir Bahadur Ali, de Bombaim. Já no primeiro parágrafo se informa que, segundo Phillip Guedalla, o romance em análise é uma combinação de poemas alegóricos do Islã “e daqueles romances policiais que inevitavelmente superam John H. Watson [o companheiro de Sherlock Holmes e narrador de suas aventuras] e aperfeiçoam o horror da vida humana nas mais irrepreensíveis pensões de Brighton”. No mesmo parágrafo, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 312 REVISTA SABERES LETRAS menciona-se a opinião de Mr. Cecil Roberts, que “denunciara no livro de Bahadur ‘a dúplice, inverossímil tutela de Wilkie Collins e do ilustre persa do século XII, Farid Eddin Attar’”. O autor da “resenha” conclui: “Essencialmente, ambos os escritores [Guedalla e Roberts] concordam: os dois indicam o mecanismo policial da obra e seu undercurrent místico. Essa hibridação pode levar-nos a imaginar certa semelhança com Chesterton; logo comprovaremos que não há tal coisa” (BORGES, I, p. 458). Veja-se como Borges mistura gradativamente realidade e ficção: o advogado Bahadur Ali, o seu romance, The Approach to Al-Mu’tasim, os resenhistas Guedalla e Roberts, são todos imaginários, o que não é o caso de alguns dos autores citados por Roberts, como Wilkie Collins e o poeta persa Farid Eddin Attar. Já no segundo parágrafo do conto, personalidades “reais”, “históricas”, são atraídas para essa dimensão imaginária. Aí, ao acompanhar o percurso editorial do romance, o narrador e resenhista anônimo faz menção a uma segunda edição, ilustrada, publicada por Bahadur, “que Victor Gollancz acaba de reproduzir em Londres, com prólogo de Dorothy L. Sayers” (BORGES, I, p. 458-9). Temos então um romance imaginário, que nunca existiu, sendo editado por Victor Gollancz, conhecido editor londrino na época, e prefaciado por Dorothy Sayers, uma autora de livros policiais (cujos romances Borges costuma depreciar em suas resenhas2) e de antologias de contos policiais. Mas, além do jogo das falsas atribuições, o parágrafo enfatiza o ângulo detetivesco do romance de Bahadur, atribuindo o prólogo da edição inglesa a uma escritora de textos do gênero. Monegal assinala que esse conto, “dissimulado sob a forma de uma resenha sobre um imaginário romance policial publicado em Bombaim”, foi o modelo de “Pierre Menard, autor do Quixote”: Os vínculos entre o conto anterior e o novo são óbvios: ambos são apresentados como ensaios literários, em que se discute a obra de um autor inexistente e se dá todo tipo de informação apócrifa (data e local de publicação, nome do editor ou da revista, citações de 2- “Os estudos [de Dorothy Sayers sobre o conto policial] são por vezes admiráveis, as antologias são competentes, os romances são de uma mediocridade que nada tem de áurea” [BORGES, IV: 298]. E também: “Dorothy Sayers costuma compensar com excelentes antologias a publicação de romances imperdoáveis” [BORGES, IV: 484]. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 313 outros críticos), para que a impostura se faça mais crível. Ambos os contos manejam certo conceito original sobre o que é ficção. Ambos utilizam o truque de apresentar uma realidade literária que é falsa (MONEGAL, 1993, p. 295). Em texto publicado em abril de 1938, Borges já confessava (com um jeito de ironia) o seu fascínio pela possibilidade de escrever um romance policial. O texto é a resenha de um livro policial, Excellent Intentions, de Richard Hull: Um dos projetos que me acompanham, que de algum modo me justificarão perante Deus, e que não penso executar (porque o prazer está em entrevê-los, não em levá-los a termo), é o de um romance policial um pouco heterodoxo. (Isto é importante, pois entendo que o gênero policial, como todos os gêneros, vive da contínua e delicada infração de suas leis.) (BORGES, IV, p. 416). E prossegue apresentando ao leitor um resumo do argumento de seu projetado romance: Eis aqui meu plano: urdir um romance policial do tipo corrente, com um indecifrável assassinato nas primeiras páginas, uma lenta discussão nas intermediárias e uma solução nas últimas. Depois, quase na última linha, acrescentar uma frase ambígua – por exemplo: “e todos pensaram que o encontro desse homem com essa mulher tinha sido casual” – que insinuasse ou deixasse supor que a solução é falsa. O leitor, inquieto, revisaria os capítulos pertinentes e daria com outra solução, com a verdadeira. O leitor desse livro imaginário seria mais perspicaz que o “detetive”... (BORGES, IV, p. 416). Borges viu no livro de Richard Hull uma estrutura que lembra a do romance que ele mesmo planejou escrever, sem, porém, a solução oculta que faria toda a diferença: SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 314 REVISTA SABERES LETRAS A solução final [do livro de Richard Hull], no entanto, é tão pouco assombrosa que não posso livrar-me da suspeita de que esse livro real, publicado em Londres, é aquele que eu previ em Balvanera, há três ou quatro anos. Nesse caso, Excellent Intentions ocultaria o argumento secreto. Ai de mim ou ai de Richard Hull! Não vejo esse argumento em parte alguma (BORGES, IV, p. 416). Como veremos a seguir, essa resenha anuncia o conto “Exame da obra de Herbert Quain”, incluído em O jardim de veredas que se bifurcam, publicado três anos depois, em 1941. Em “Exame da obra de Herbert Quain”, Borges segue o mesmo procedimento de “A aproximação a Almotásim”, a falsa resenha bibliográfica, e a obra aqui “resenhada” tem também aspectos que a remetem à literatura policial: “O Spectator [...] equipara o primeiro livro de Quain – The God of the Labyrinth – a um de Mrs. Agatha Christie e outros aos de Gertrude Stein” (BORGES, I, p. 511). Agatha Christie, como se sabe, é uma das mais bem sucedidas autoras de histórias policiais. Mais adiante, dá-se uma informação que procura justificar o insucesso comercial do romance de Quain, colocado à venda “nos últimos dias de novembro de 1933”: Em princípios de dezembro, as agradáveis e árduas involuções do Siamese Twin Mystery atarefaram Londres e Nova York; prefiro atribuir a essa coincidência arruinada o fracasso do romance de nosso amigo. Do mesmo modo (quero ser totalmente sincero) à sua elaboração deficiente e à vã e frígida pompa de certas descrições do mar. [...] Há um indecifrável assassinato nas páginas iniciais, uma lenta discussão nas intermediárias, uma solução nas últimas. Já esclarecido o enigma, há um parágrafo longo e retrospectivo que contém esta frase: “Todos acreditaram que o encontro dos jogadores de xadrez fora casual.” Essa frase deixa entender que a solução é errônea. O leitor, inquieto, revê os capítulos pertinentes e descobre outra solução, que é a verdadeira. O leitor desse livro singular é mais perspicaz que o detetive (BORGES, I, p. 512, itálico nosso). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 315 Esse parágrafo remete à resenha de abril de 1938, citada mais acima, conforme o comprovam os trechos grifados, que conferem quase literalmente com as informações que na resenha Borges dá sobre o seu projeto de romance policial. Outras reflexões também se fazem necessárias. No contexto do romance policial, o nome Herbert Quain lembra o de Ellery Queen, que é justamente o autor do romance The Siamese Twin Mystery (O caso dos irmãos siameses), citado no conto de Borges, editado de fato em 1933, cuja publicação quase simultânea com The God of the Labyrinth teria sido responsável pelo fracasso deste. Borges omite o nome de Ellery Queen, autor do livro “real” citado no parágrafo, e não esclarece o motivo por que teria The Siamese Twin Mystery provocado o fracasso de The God of the Labyrinth, motivo que reside certamente no fato de que o método empregado por Quain em seu romance é semelhante ao que Queen empregara no dele. Esse método de Queen já havia chamado a atenção de Borges em ocasião anterior. Pois em outubro de 1936, na resenha de um romance do próprio Queen, Half-Way House, dizia Borges: Na história do gênero policial [...] os romances de Ellery Queen importam um desvio, ou um pequeno avanço. Refiro-me a sua técnica. O romancista [convencional] costuma propor uma elucidação vulgar do mistério e deslumbrar seus leitores com uma solução engenhosa. Ellery Queen propõe, como os outros, uma explicação nada interessante, deixa entrever (no final) uma belíssima solução, com a qual o leitor se encanta, para refutá-la e revelar uma terceira, que é a correta: sempre menos estranha que a segunda, mas totalmente imprevisível e satisfatória (BORGES, IV, p. 252).3 Em “Exame da obra de Herbert Quain”, Borges se vale de uma variação do método das três soluções, que é insinuar ao leitor que a segunda solução, dada como final, não é a verdadeira, e levá-lo a uma releitura de determinadas passagens onde se encontra a solução definitiva. Essa variação peculiar é típica 3- Em resenha de dezembro de 1937 de um livro de Michael Innes, Borges volta a referir-se a esse método de Ellery Queen. O livro de Innes tem três soluções: “A primeira [...] é digna de Chesterton. A segunda [...] é menos engenhosa que a primeira, sem ser mais verossímil. A terceira e definitiva [...] não é engenhosa e é absolutamente inacreditável. É tão insípida e tão desajeitada [...] que resistimos a dar-lhe fé” (BORGES, IV, p. 384-5). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 316 REVISTA SABERES LETRAS de Borges, autor que valorizava a leitura acima da escritura e, por conseguinte, o leitor acima do escritor.4 Assim, enquanto Queen revela a solução definitiva do problema, Quain (ou seja, Borges) a oculta, dando, porém, uma pista sutil para o leitor chegar até ela. Aí podemos ver também uma resposta de Borges a Ellery Queen. Em seus romances, este autor costumava lançar um “Desafio ao Leitor” justamente no ponto em que o detetive estaria de posse de todas as informações necessárias para a elucidação do mistério.5 O primeiro desses desafios está no romance de estréia de Ellery Queen, O caso do chapéu romano, e vem assinado não por Ellery Queen (como aconteceria nos romances seguintes), mas por J. J. McC., prefaciador do livro: A moda atual da literatura policial defende a prática de colocar o leitor na posição de investigador principal. Convenci Mr. Ellery Queen a permitir neste ponto do romance a introdução de um desafio ao leitor... “Quem matou Monte Field?” “Como foi executado o crime?” (QUEEN, 1967, p. 202). No texto de Borges, irônico e subversivo, o leitor é quem vence o desafio, desbancando o detetive. O que significa que, se Austin Freeman, como vimos, elevou o leitor a uma posição de igualdade com o detetive, Borges elevou-o a uma posição mais alta ainda, pois é o leitor e não o detetive que alcança a solução. Passemos a um terceiro exemplo, o conto-título de O jardim de veredas que se bifurcam, que é de natureza policial. Borges assim o define no prólogo: As sete obras deste livro não requerem maior elucidação. A sétima [o conto-título] é policial; seus leitores assistirão à execução e a todos os preliminares 4- Basta citar a última frase do prólogo da História Universal da Infâmia: “Ler, entretanto, é uma atividade posterior à de escrever: mais resignada, mais sutil, mais intelectual” (BORGES, I, p. 313). Mas é da leitura que nasce a escritura, como já sabia Berceo. E no caso de “Exame da obra de Herbert Quain”, o Borges autor de histórias policiais foi influenciado pelo Borges leitor de histórias policiais. 5- Ver O mistério do pó francês (1930), p. 244; O mistério do sapato holandês (1931), p. 241; O mistério da cruz egípcia (1932), p. 262, e outros. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 317 de um crime cujo propósito não ignoram, mas que não compreenderão, parece-me, até o último parágrafo (BORGES, I, p. 473). Italo Calvino afirmou que, “em cada texto, por todos os meios, Borges fala do infinito, do inumerável, do tempo, da eternidade ou da presença simultânea ou da dimensão cíclica dos tempos” (CALVINO, 1993, p. 251). Nesse conto em particular, O enredo evidente é o de um conto de espionagem convencional, um enredo aventuroso condensado numa dúzia de páginas e um pouco forçado para chegar a um final surpresa. (O epos que Borges utiliza compreende também as formas da narrativa popular.) Esse conto de espionagem inclui um outro conto, em que o suspense é de tipo lógico-metafísico e o ambiente é chinês: trata-se da pesquisa de um labirinto. Neste conto está incluída, por sua vez, a descrição de um interminável romance chinês. Porém, aquilo que mais conta nesse novelo narrativo compósito é a meditação filosófica sobre o tempo em que se desenrola, ou melhor, as definições das concepções do tempo que aí são sucessivamente enunciadas. Percebemos no final que, sob a aparência de um thriller, é um conto filosófico, ou melhor, um ensaio sobre a idéia do tempo aquilo que acabamos de ler (CALVINO, 1993, p. 251). Essa é a grande diferença entre Borges e seus “colegas”, autores de histórias policiais: nas histórias de Borges a narrativa de crime ou de mistério serve como pretexto e de base para o desenvolvimento de temas bem mais complexos, que, além disso, fogem à preocupação habitual da literatura policial. Mais essencialmente policiais são os textos de Seis problemas para Don Isidro Parodi (1942), um conjunto de contos de mistério escritos por Borges em parceria com seu amigo Adolfo Bioy Casares, usando o pseudônimo de H. Bustos Domecq. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 318 REVISTA SABERES LETRAS Gervasio Montenegro,6 ao apresentar esses contos, não deixou de chamar a atenção dos leitores para o fato de que a Isidro Parodi cabe, “na agitada crônica da investigação policial, [...] a honra de ser o primeiro detetive encarcerado”, levando às últimas conseqüências uma situação antes experimentada por outros detetives de ficção: Sin evadirse de su gabinete nocturno del Faubourg St. Germain, el Caballero Augusto Dupin captura el inquietante simio que motivara las tragedias de la rue Morgue; el príncipe Zaleski, desde el retiro del remoto palacio […], resuelve los enigmas de Londres; Max Carrados, not least, lleva consigo por doquier la portátil cárcel de la ceguera… (BORGES, 1981, vol. I, p. 17). Umberto Eco, num ensaio em que trata desses contos, destaca a inversão que Borges e Bioy Casares fazem do padrão tradicional do gênero: “Ao invés da solução externa de um delito cometido num quarto fechado, eis, saída de um quarto fechado, a solução de uma série de delitos cometidos fora” (ECO, 1989, p. 155). A esses contos se refere Gérard Genette como “um pastiche de gênero” (GENETTE, 2003, p. 176). Realmente, o próprio sobrenome do detetive, Parodi, sugere que a intenção dessas histórias é ser uma paródia do gênero policial. Citemos Eco: que don Isidro possa chamar-se Parodi não deve causar espanto, porque Parodi é um sobrenome italiano (da Ligúria) muito comum, e na Argentina nada é mais comum do que um sobrenome italiano [...] Porém, a distância entre “parodi” e “paródia” é muito pequena. É um acaso? (ECO, 1989, p. 157). E acrescenta, mais adiante: Ora, os contos de Borges são uma paródia do conto policial porque don Isidro não tem nem mesmo necessidade de alguém que lhe diga [como Watson 6- Mais adiante veremos que se trata de um personagem fictício e que, na verdade, a introdução do livro foi escrita pelos próprios autores. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 319 e outros personagens correspondentes ao amigo do detetive] que as coisas eram como ele havia imaginado. Está absolutamente certo disso, e Borges-Casares com ele (e o leitor com eles) (ECO, 1989, p.163). Artifícios, publicado em 1944, inclui “A morte e a bússola”, que é também um conto tipicamente policial. “A seita da Fênix”, embora sem crimes nem detetives, pode ser considerado um conto de mistério, digno da tradição de Poe. Eis o que Borges diz dele no prólogo do livro: “Na alegoria da Fênix impus a mim mesmo o problema de sugerir um fato comum – o Segredo –, de modo vacilante e gradual, que resultasse, ao final, inequívoco; não sei até onde a sorte me acompanhou” (BORGES, I, p. 537). O segredo, que não é revelado no conto, é a relação sexual: “A verdade é que muitos leitores desse conto [“A seita da Fênix”] não chegam a compreender que o segredo da seita é o ato sexual, que perpetua e imortaliza os homens” (MONEGAL, 1993, p. 393). Borges está presente no A Guide to Classic Mystery and Detection, uma extensa página informativa sobre a literatura policial, disponível na Internet. Borges acha-se classificado num grupo especial, “Visitantes Vindos da Ficção Científica”, e em sua companhia estão Karel Capek, Ray Bradbury, Isaac Asimov e outros escritores de literatura fantástica que experimentaram o gênero detetivesco. Para mostrar de que modo Borges é visto como escritor policial por um especialista no assunto, citemos alguns trechos dos comentários que mereceu do organizador da página, Michael E. Grost: Borges é uma combinação incomum de escritor ortodoxo e subversivo. Muito culto e de vasta leitura, sua obra está repleta de alusões literárias e filosóficas. No entanto em sua maior parte essa obra tem laços estreitos com a literatura de mistério ou com a ficção científica e fantástica. As ficções de Borges são complexas e de enredo sofisticado. Os enredos são compostos na tradição dos escritores populares de mistério e de ficção científica. Muitas das histórias são de brilhante engenhosidade. […] Exerceram uma forte influência sobre toda a obra de Borges os contos engenhosos de G. K. Chesterton, com seus SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 320 REVISTA SABERES LETRAS enredos complexos e bem urdidos, sua rica atmosfera e suas alusões filosóficas. Borges também sofreu forte influência do mestre de Chesterton, Robert Louis Stevenson, e de alguns pioneiros oitocentistas de mistério e de ficção científica como Poe e Hawthorne (GROST). Da obra de Borges, Grost focaliza os seguintes textos como tendo estreita relação com a literatura policial: O primeiro livro de ficção de Borges foi História Universal da Infâmia. Trata-se de um conjunto de curtas biografias ficcionais de criminosos e aventureiros da vida real. Nada tem a ver com o escroque tradicional que se encontra nos livros de Hornung e Leblanc. Em vez disso, seus contos revelam as complexas imaginações filosóficas de Borges. Muitos dos contos estão cheios do humor de Borges. […] A obra de ficção de Borges inclui mais ficção científica do que histórias de detetive. Mesmo “O jardim de Veredas que se Bifurcam” tem mais interesse pelas idéias de ficção científica sobre que discutem seus personagens do que pelos elementos detetivescos que compõem a história em si. “A Morte e a Bússola” é uma anti-história de detetive, em que a idéia é examinar todas as maneiras engenhosas como o autor subverte as convenções da narrativa de detetive tradicional. O mistério é complexo, mas cada um de seus aspectos contribui para compor a sátira lógica que Borges faz da ficção policial. Um ponto: um elemento do mistério que não chega a ser explicado é o da nudez do cadáver sob a capa; suspeito que esta seja apenas uma homenagem de Borges ao livro The Spanish Cape Mystery, de Ellery Queen, onde essa nudez tem um papel na solução do crime. Como as obras de seu mestre Chesterton e de Ellery Queen, a obra de mistério de Borges se baseia na tradição intucionista. Em contraste, “O Tema do Traidor e do Herói” é um triunfo, uma verdadeira história policial de primeira água. […] Os contos de Seis Problemas para Don Isidro Parodi, escritos por SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 321 Borges em colaboração com Bioy Casares, ficam mais ou menos no meio. Em sua maior parte os problemas são elaborados demais para compor histórias de detetive realmente boas na linha clássica. A maioria delas também contém muita engenhosidade, e todo o conjunto vale muito a pena ler (GROST). Por fim, nem mesmo em sua poesia Borges deixou de prestigiar a literatura policial, pois escreveu um poema sobre Sherlock Holmes, criação do escritor inglês Arthur Conan Doyle que se tornou o próprio símbolo de detetive e de romance policial. Eis uma das estrofes do poema: Não cultiva amizades, no entanto abençoa a devoção ao outro, que foi seu evangelista e que de seus milagres consignou a lista. Vive de modo cômodo: em terceira pessoa (BORGES, III, p. 533). Borges, crítico de literatura policial Como crítico, Borges escreveu um ensaio, “O conto policial”, já citado, que apresentou como uma das conferências que realizou na Universidade de Belgrano, em 1978. Bem antes desse ensaio, publicou, no n. 10 da revista Sur, de julho de 1935, o texto “Os labirintos policiais e Chesterton”.7 Além disso, entre as resenhas críticas que divulgou na revista El Hogar, entre 1936 e 1940, de que se publicou uma antologia em 1986 com o título Textos cativos, foram muitos os livros de autores de mistério a que Borges deu atenção.8 Da mesma forma, entre os prólogos que escreveu para os volumes da Biblioteca pessoal, encontram-se textos apresentando quatro autores ligados à literatura policial: Edgar Allan Poe, Wilkie Collins, R. L. Stevenson e G. K. Chesterton. Com Bioy Casares, além dos contos de Isidro Parodi, Borges organizou uma antologia de contos policiais 7- Incluído em Borges por Borges, de Emir Rodríguez Monegal, p. 120-3. 8- Dos 218 textos da antologia, cerca de 10% têm como tema a literatura policial. Não sabemos quantos, dentre os que não foram incluídos no livro, também tratavam desse assunto. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 322 REVISTA SABERES LETRAS e editou a primeira coleção de romances do gênero publicada na Argentina, “El Séptimo Círculo”, de grande sucesso. Mas o que pensava Borges, basicamente, sobre o romance policial? Em sua conferência “O conto policial”, ele endossou a opinião geral de que o criador do gênero foi o escritor norte-americano Edgar Allan Poe.9 Porém, dessa opinião generalizada ele tira conclusões bem peculiares, como era seu costume: O romance policial criou um tipo especial de leitor. Isto costuma ser esquecido quando se avalia a obra de Poe. Porque, se Poe criou a narrativa policial, criou, depois, o tipo de leitor de ficções policiais (BORGES, IV, p. 221). E volta a essa ideia mais adiante: Por isso [porque já sabemos a solução do conto “Os assassinatos da Rua Morgue”] podemos pensar mal de Poe, podemos pensar que seus argumentos são tão tênues que parecem transparentes. Podem sê-lo para nós, que já os conhecemos, mas não para os primeiros leitores de ficções policiais, que não estavam instruídos como nós, não eram uma invenção de Poe, como nós o somos. Nós, ao lermos um romance policial, somos uma invenção de Edgar Allan Poe (BORGES, IV, p. 226-7). A seguir Borges atribui a Edgar Poe a concepção e execução de uma ideia tão revolucionária que, sem ela, “a literatura atual não seria o que é”: Derivam [de Edgar Allan Poe] dois fatos que parecem muito distanciados e que, no entanto, não são; são fatos afins. Derivam a idéia da literatura como fato intelectual e a narrativa policial. O primeiro – considerar a literatura uma operação da mente, não 9- Como sempre há um precursor do precursor, Borges, em seu ensaio “Nathaniel Hawthorne”, afirma que um dos contos desse autor, “Mr. Higginbotham’s Catastrophe”, “prefigura o gênero policial que Poe inventaria” (BORGES, II, p. 67). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 323 do espírito – é muito importante. O outro é mínimo, não obstante tenha inspirado grandes escritores (pensamos em Stevenson, Dickens e Chesterton, o melhor herdeiro de Poe). Essa literatura pode parecer subalterna e de fato está declinando; atualmente foi superada ou substituída pela ficção científica, que também tem em Poe um de seus possíveis pais (BORGES, IV, p. 222). Assim, vemos que Borges julgava a criação da narrativa policial um fato de mínima importância: trata-se, enfim, de uma “literatura subalterna”. Ao considerar, porém, como afins “a ideia da literatura como fato intelectual e a narrativa policial”, está reconhecendo que também desta, por sua própria natureza e finalidade, se pode dizer que se trata de uma tendência literária que envolve “uma operação da mente, não do espírito”,10 porque o conto policial é “um mistério desvendado por obra da inteligência, por uma operação intelectual” (BORGES, IV, p. 225). Em sua conferência, Borges chama a atenção também para outro fator importante da narrativa policial, conforme concebida por Poe: a ideia de que não cabia à literatura policial ser realista: Poe não queria que o gênero policial fosse um gênero realista; queria que fosse um gênero intelectual, um gênero fantástico – se vocês assim preferirem –, mas um gênero fantástico da inteligência, não apenas da imaginação; de ambas as coisas, naturalmente, mas, sobretudo, da inteligência (BORGES, IV, p. 225). E explica que, para ficar a salvo desse realismo, Poe prefere ambientar os seus contos policiais não em Nova York, mas do outro lado do Atlântico, em Paris: Ele poderia ter situado seus crimes e seus detetives em Nova York, mas então o leitor ficaria pensando se as coisas de fato se desenrolam assim, se a polícia de Nova York é desse ou daquele modo. Era mais ������������������������������������������������������������������������������������������ - Aí a opinião de Borges concorda, por exemplo, com a de Boileau-Narcejac e de S. S. Van Dine, como vimos mais acima. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 324 REVISTA SABERES LETRAS cômodo e estava mais solta a imaginação de Poe fazendo com que tudo aquilo ocorresse em Paris, em um bairro deserto da região de Saint-Germain. Por isso, o primeiro detetive da ficção é um estrangeiro, o primeiro detetive registrado pela literatura é um francês. Por que um francês? Porque quem escreve a obra é um americano que necessita de um personagem distante (BORGES, IV, p. 225).11 S. S. Van Dine, em seu texto teórico sobre o gênero policial, já citado antes, defende a criação de uma “pseudo-realidade” nas narrativas policiais, porque nelas “é essencial uma sensação de realidade”: o objetivo de uma narrativa policial – a recompensa intelectual conferida pela solução – se perderia se não fosse mantida uma sensação de verossimilhança de modo consistente, pois um sentimento de trivialidade contagiaria o problema e daria ao leitor a impressão de desperdício de esforço (VAN DINE, 1927). O realismo necessário à narrativa policial, porém, segundo Van Dine, não tem nada a ver com a criação de climas através de descrições elaboradas ou de perfis psicológicos detalhados: Uma vez aceita, pelo leitor, a pseudo-realidade do enredo, suas energias se concentram (como as do próprio detetive) na elucidação do problema; e sua disposição, sendo de ordem intelectual, se distrai com a invasão de detalhes de clima. […] O cenário de uma história policial, porém, é de extrema importância. A história deve parecer um registro real de eventos que surgem no local da ação; e as plantas e diagramas que freqüentemente se encontram nessas histórias contribuem de modo considerável para garantir esse efeito. A familiaridade com o local e a crença em sua existência é que dão ao leitor o sentimento de ����������������������������������������������������������������������������������������� - Essa falta de compromisso com o realismo é também uma premissa do próprio Borges como autor de ficção. Ver o que ele diz num dos diálogos que manteve no rádio com Osvaldo Ferrari, no qual se tratou especificamente de sua técnica literária (BORGES, 1986, p. 47). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 325 naturalidade e liberdade para lidar com os fatores do enredo e chegar aos objetivos que são seus e do autor (VAN DINE, 1927). Há uma vertente na literatura policial, originada na década de 1930, que tenta ser realista: é o chamado romance “noir”, cujos expoentes são os autores americanos Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Este teorizou sobre a questão: O realista em assassinatos escreve sobre um mundo em que gângsteres podem governar nações e quase governam cidades, em que hotéis e edifícios de apartamentos e restaurantes famosos são de propriedade de homens que fizeram suas fortunas com bordéis, em que um astro de cinema pode ser o informante de uma família de mafiosos, e o vizinho simpático é o chefe de uma rede de extorsões; um mundo onde um juiz com uma adega cheia de bebida contrabandeada pode mandar um homem para a cadeia por ter meio litro de uísque no bolso, onde o prefeito de sua cidade pode ter feito vistas grossas a um assassinato como um instrumento para levantar verbas, onde nenhum homem pode andar por uma rua escura em segurança porque a lei e a ordem pública são coisas das quais falamos mas que nos abstemos de praticar (CHANDLER, 2001, p.184). Borges vê nessa vertente o declínio do gênero policial: Atualmente, o gênero policial decaiu muito nos Estados Unidos. O gênero policial é realista, violento, e também um gênero de violências sexuais. Em todo caso, praticamente desapareceu. A origem intelectual da narrativa policial tem sido esquecida (BORGES, IV, p. 229). Boileau-Narcejac concordam que o gênero policial exige mais inteligência do que violência para sobreviver: O gênero exige do autor uma atenção e uma lucidez SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 326 REVISTA SABERES LETRAS extremas. Quando um romancista escreve: “Nunca sei o que vai se passar antes de ter começado. Confio na inspiração” (Alberto Moravia), tem perfeitamente razão. Pelo contrário, um escritor policial deve saber, a cada instante, o que faz, porque o romance-problema é um objeto, uma espécie de concreção que a inteligência controla, à medida que a segrega. Ora, é esse controle que, com freqüência, é insuficiente. Então aparecem o excesso, o descomedimento, e para dizer tudo: a facilidade. É à força de rigor que o romance policial se salvará. É preciso escolher entre Jorge Luis Borges e Carter Brown. (BOILEAU-NARCEJAC, 1991, p. 89). Voltando a Borges, a conferência “O conto policial” é o texto em que ele de modo mais extenso teoriza sobre a narrativa policial. Há outras passagens em que também se refere ao gênero, dispersas em sua vasta obra crítica e ensaística. Em “Os labirintos policiais e Chesterton”, de 1935, já citado, apresenta um código com seis cláusulas para se escrever um conto policial. Em Prólogos com um prólogo de prólogos, ao tratar do livro A pedra lunar, de um dos precursores ingleses do gênero, Wilkie Collins, Borges já havia esboçado alguns dos tópicos que mais tarde aprofundaria na conferência: Em 1841, um pobre homem de gênio, cuja obra escrita talvez seja inferior à vasta influência por ela exercida nas diversas literaturas do mundo, Edgar Allan Poe, publicou na Filadélfia “Os crimes da rua Morgue”, o primeiro conto policial que a história registra. Essa narrativa fixa as leis essenciais do gênero: o crime enigmático e, à primeira vista, insolúvel, o investigador sedentário que o decifra por meio da imaginação e da lógica, o caso narrado por um amigo impessoal, e um tanto apagado, do investigador. O investigador chamava-se Auguste Dupin; com o tempo passaria a ser chamado de Sherlock Holmes... (BORGES, IV, p. 53). Dentre os seus Textos cativos, cerca de vinte tratam de obras de autores ditos policiais. Na resenha que escreveu sobre o livro Death at the President’s Lodging, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 327 de Michael Innes, Borges estabelece uma distinção básica entre esses autores: No melhor dos três contos exemplares de Edgar Allan Poe [“A carta roubada”], a polícia de Paris, empenhada em descobrir uma carta roubada, fatiga em vão os recursos da investigação metódica: da broca, do compasso e do microscópio. O sedentário Auguste Dupin, enquanto isso, dá umas tantas cachimbadas, considera os termos do problema e visita a casa que burlou o escrutínio policial. Entra e imediatamente dá com a carta... A despeito de seu êxito, o especulativo Auguste Dupin teve menos imitadores que a ineficaz e metódica polícia. Para cada “detetive” raciocinador – para cada Ellery Queen ou Padre Brown – há dez colecionadores de fósforos e decifradores de pistas. A toxicologia, a balística, a diplomacia secreta, a antropometria, a confecção de chaves, a topografia e até a criminologia ultrajaram a pureza do gênero policial (BORGES, IV, p. 285). E acrescenta mais adiante: “o estudo de caracteres humanos que este livro [de Michael Innes] propõe é mais encantador que o estudo da planta de uma casa de vários pavimentos, que costumam propor os romances de S. S. Van Dine” (BORGES, IV, p. 285). Essa resenha é de janeiro de 1937. Em maio do mesmo ano, em resenha sobre o livro The Paradoxes of Mr. Pond, de G. K. Chesterton, Borges produz uma variante da passagem citada, tão similar que podemos dizer que a primeira é o hipotexto desta e que, assim, Borges produziu (como tantas outras vezes12) o que poderíamos chamar de hipertexto intratextual, já que ele está retrabalhando seu próprio texto: Em algum memorável conto de Poe [“A carta roubada”], o obstinado chefe da polícia de Paris, empenhado em recuperar uma carta, fatiga em vão os recursos da investigação minuciosa: da broca, da ������������������������������������������������������������������������������������������ - “Parece que estou sempre escrevendo a mesma história, estou sempre descobrindo a mesma metáfora, estou sempre escrevendo os mesmos versos... mas, com ligeiras variações, que podem ser benéficas” (BORGES, 1986, p. 98). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 328 REVISTA SABERES LETRAS lupa, do microscópio. O sedentário Auguste Dupin, enquanto isso, fuma e reflete em seu gabinete da rua Dunot. No dia seguinte, já resolvido o problema, visita a casa que burlou o escrutínio policial. Entra, e imediatamente dá com a carta... Isso ocorreu por volta de 1855. Dessa data até hoje, o incansável chefe de polícia de Paris teve inúmeros imitadores; o especulativo Auguste Dupin, bem poucos. Para cada “detetive” raciocinador – para um Ellery Queen, ou Padre Brown, ou Príncipe Zaleski – há dez decifradores de cinzas e examinadores de rastros. O próprio Sherlock Holmes – terei a coragem e a ingratidão de dizê-lo? – era um homem de broca e microscópio, não de raciocínios (BORGES, IV, p. 330). E continua, enfatizando a sua preferência pelos detetives “raciocinadores” em detrimento dos “decifradores de cinzas e examinadores de rastros”: A solução, nas más ficções policiais, é de ordem material: uma porta secreta, uma barba suplementar. Nas boas, é de ordem psicológica: uma falácia, um hábito mental, uma superstição. Exemplo das boas – e até das melhores – é qualquer narrativa de Chesterton. Sei de leitores pervertidos por Miss Dorothy Sayers ou por S. S. Van Dine que costumam negar-lhe [a Chesterton] essa primazia. Não lhe perdoam seu excelente hábito de não explicar senão as coisas inexplicáveis. Não lhe perdoam a deliberada omissão de horários e de mapas. Eles querem também o número e a rua da loja de armas em que o criminoso adquiriu o culpado revólver... (BORGES, IV, p. 330). A ideia contida nesta frase – “Não lhe perdoam seu excelente hábito de não explicar senão as coisas inexplicáveis” – repete-se em outras passagens em que Borges reflete sobre o gênero policial. Em nota de rodapé a um texto sobre o mesmo Chesterton, Borges critica: “Não a explicação do inexplicável, e sim do confuso é a tarefa que, em geral, os autores de romances policiais se impõem” (BORGES, II, p. 80, nota). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 329 Ainda sobre o que chama de tecnicismos na literatura policial, Borges investe contra eles na resenha do livro de Nigel Morland, How to Write Detective Novels. Insuperável exemplo de erro [no livro] é o catálogo erudito de obras de toxicologia, de balística, de datiloscopia, de medicina legal e de psiquiatria que Mr. Nigel Morland recomenda aos escritores iniciantes. Já conhecemos as graves conseqüências ilegíveis de tais estudos. A solução “científica” de um mistério pode não ser trapaceira, mas corre o risco de parecê-lo, já que o leitor não pode descobri-la, por carecer desses conhecimentos toxicológicos, balísticos, etc. que Mr. Nigel Morland recomenda aos escritores. A solução que conseguir abster-se desses tecnicismos sempre será mais elegante (BORGES, IV, p. 353). Outra restrição que Borges faz sistematicamente ao gênero de mistério se dirige contra o romance policial, em favor do conto policial, o que não é de surpreender, tratando-se de um autor que em toda a sua obra deu sempre preferência à concisão exigida pelo texto literário curto.13 Eis as suas palavras em resenha feita ao livro Sic Transit Gloria, de Milward Kennedy, de setembro de 1937: Na dedicatória deste volume, Milward Kennedy observa que o romance policial é um gênero que está prestes a se esgotar e afirma a imedita necessidade de uma renovação psicológica. Eu iria mais longe: espero algum dia demonstrar que o puro romance policial, sem complexidade psicológica, é um gênero espúrio e que seus melhores exemplos – O Mistério do Quarto Amarelo, de Gaston Leroux, O Mistério da Cruz Egípcia, de Ellery Queen, O Crime do Escaravelho, de S. S. Van �������������������������������������������������������������������������������������������� - Citemos Calvino: “Borges é um mestre do escrever breve. Ele consegue condensar em textos sempre de pouquíssimas páginas uma riqueza extraordinária de sugestões poéticas e de pensa� mento: fatos narrados ou sugeridos, aberturas vertiginosas para o infinito, e idéias, idéias, idéias. Como tal densidade se realiza sem a mínima congestão, no período mais cristalino, sóbrio e areja� do; como o narrar sinteticamente e enviesado conduz a uma linguagem toda precisão e concretu� de, cuja inventiva se manifesta na variedade dos ritmos, dos movimentos sintáticos, dos adjetivos sempre inesperados e surpreendentes, isso é um milagre estilístico, sem igual na língua espanhola, de que só Borges tem o segredo” (CALVINO, 1993, p. 248). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 330 REVISTA SABERES LETRAS Dine – ganhariam muitíssimo se reduzidos a contos breves. É irrisório que uma charada dure trezentas páginas... Não em vão o primeiro romance policial que a história registra – o primeiro no tempo e talvez no mérito: The Moonstone (1868) de Wilkie Collins – é, também, um excelente romance psicológico (BORGES, IV, p. 360). Borges repetirá essa mesma crítica na resenha dos livros The Beast Must Die, de Nicholas Blake (junho de 1938) e Not To Be Taken, de Anthony Berkeley (agosto de 1938), e ainda na de “Dois romances policiais” (abril de 1939). Nesta última ele afirma: Todo romance policial consta de um problema simplíssimo, cuja perfeita exposição oral cabe em cinco minutos e que o romancista – perversamente – demora até transcorrerem trezentas páginas. As razões dessa demora são comerciais: não respondem a outra necessidade que a de encher um volume. Nesses casos, o romance policial não passa de um conto alongado. Nos demais, resulta uma variedade do romance de caracteres ou de costumes (BORGES, IV, p. 494). José Paulo Paes cita Ellery Queen em sua já mencionada introdução à coletânea Maravilhas do conto policial, para explicar a preferência dos autores pelo romance e não pelo conto policial: Na introdução à sua famosa antologia do conto policial, 101 Years’ Entertainment, Ellery Queen refere-se ao número relativamente reduzido de contos policiais firmados por grandes autores. E eis como explica o fenômeno: os escritores policiais mais famosos evitam a short-story porque esta não lhes traz vantagens econômicas. Tem de ser publicada em revista e a remuneração, neste caso, é sempre muito inferior à que poderiam auferir com os direitos autorais de uma novela publicada em livro (PAES, 1959, p. 12). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 331 É basicamente o que diz Borges na citação anterior: “As razões dessa demora são comerciais: não respondem a outra necessidade que a de encher um volume.” Mas se isso é uma justificativa para Ellery Queen, que tira seu sustento da literatura policial, para Borges não é mais que uma ressalva. Pois a preocupação de Borges como escritor sempre se centrou sobre fatores estéticos e artísticos e não econômicos e comerciais. A ligação de Jorge Luis Borges com a literatura policial se deu também no papel de organizador de antologias e de coleções do gênero. Em 1943 publica, em colaboração com Bioy Casares, a antologia Los mejores cuentos policiales. Segundo Emir Rodríguez Monegal, “o sucesso deste livro convencerá a Emecé Editores a confiar a Borges e a Bioy uma coleção de romances policiais, “El Séptimo Círculo”, que se transformará em uma das mais populares de seu tempo” (MONEGAL, apud BORGES, IV, p. 637). Assim, nesse momento, Borges de certa forma se reconcilia com o romance policial, mas mantém na escolha dos títulos da coleção uma preferência pela história intuitiva e psicológica mais do que pela dedutiva e investigativa.14 Cremos que essas afirmações sejam suficientes para comprovar o interesse de Jorge Luis Borges pela literatura policial e, como consequência, o seu envolvimento com ela como autor de histórias policiais (certamente atípicas) e como crítico da técnica e da produção da literatura policial. Por trás de um e de outro, naturalmente, está Borges o leitor, que, em sua curiosidade insaciável, não desdenhou nem mesmo esse gênero por muitos considerado inferior. REFERÊNCIAS BOILEAU-NARCEJAC. O romance policial. Trad. de Valter Kehdi. São Paulo: Ática, 1991. BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. 4 volumes: 1. 1923-1949; 2. 1952-1972; 3. 1975-1985; 4. 1975-1988. Tradução de vários autores. São Paulo: Globo, 19982001. ______. Borges em diálogo. Conversas de Jorge Luis Borges com Osvaldo ����������������������������������� - O volume inaugural da coleção é The Beast Must Die, de Nicholas Blake, de que Borges fizera uma resenha em El Hogar. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 308 a 332 set. / dez. 2011 332 REVISTA SABERES LETRAS Ferrari. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. ______. Obras completas en colaboración. 2 volumes: 1. Con Adolfo Bioy Casares. 2. Con Bertha Edelberg, Margarita Guerrero, Alicia Jurado, Maria Kodama e Maria Esther Vázquez. Madri: Alianza Editorial, 1981 e 1983 CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. CHANDLER, Raymond. A simples arte de matar. In: Armas no Cyrano’s e outras histórias. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2001. ECO, Umberto. A abdução em Uqbar. In: Sobre os espelhos e outros ensaios. Tradução de Beatriz Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. GÉRAULT, Jean-François. “Mauvais Genres”: Jorge Luis Borges, défenseur des mauvais genres. 1999. Disponível em:< www.mauvaisgenres.com >. Acesso em: GROST, Michael E. A Guide to Classic Mystery and Detection. Disponível em:< members.aol.com>. Acesso em: . MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges por Borges. Tradução de Ernani Ssó. Porto Alegre: L&PM, 1987. ______. Borges: una biografía literaria. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. PAES, José Paulo. (Org.). Maravilhas do Conto Policial. São Paulo: Cultrix, 1959. QUEEN, Ellery. The Roman Hat Mystery. Nova York: Signet Books, 1967. VAN DINE, S. S. The Great Detective Stories (1927). Disponível em:< gaslight. mtroyal.ab.ca>. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 333 O LEGADO DAS COMPOSITORAS DE MPB NOS TREPIDANTES ANOS DE CHUMBO Kátia Helena Maués Guedes1* Vera Márcia Soares de Toledo2** RESUMO Este artigo tem por objetivo estudar as letras de algumas compositoras de Música Popular Brasileira na década de 70, identificar o que elas dizem sobre si no âmbito da canção popular, analisar a relação dessas composições com o contexto histórico da época, refletir sobre o que a autoria feminina tinha a dizer enquanto eu lírico feminino e relacionar essas criações com as estéticas literárias brasileiras. Palavras-chave: Literatura. Poesia. Compositoras brasileiras. Presença feminina na MPB. Abstract: This article aims to study some composers lyrics of Brazilian popular music in the 70s, identify what they say about themselves in the popular song, analyze the relationship between these compositions and the historical context of the time, reflect about what the female author had to say as a female lyrical I and relate these creations with the Brazilian literary aesthetics. Keywords: Poetry Brazilian composers. Female presence in MPB. Literature. “Tento aprender suas almas e falar como elas.” Paulo César Pinheiro Introdução A década de 70 foi uma época profundamente marcada pela presença da ditadura política no país e frequentes episódios de forte repressão, porém, de 1- * Pós-graduanda em Estudos da Linguagem da Faculdade Saberes. Autora deste trabalho. Endereço eletrônico: [email protected]. 2- ** Professora Mestre em Estudos Literários da Faculdade Saberes. Orientou e revisou este trabalho. Endereço eletrônico: [email protected]. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 334 REVISTA SABERES LETRAS intensa produção cultural onde surgem novas compositoras em um cenário musical em que, anteriormente, somente Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran e Maysa haviam conseguido romper as barreiras da centralização da indústria fonográfica que privilegiavam os compositores. Sabemos que a história foi feita pelos homens e que a maioria do que se fala sobre a mulher foi dito pelos homens, tanto na literatura quanto na música, pelo menos até algumas décadas atrás. Além disso, a Música Popular Brasileira (MPB) não é apenas um fenômeno sonoro, mas também um produto escrito capaz de atingir todas as regiões do país e do mundo, através dos meios de comunicação. E a música e a literatura são duas artes que dialogam desde os primórdios, remonte-se à Antiguidade greco-latina ou à Idade Média e se encontrará a interdependência entre música e literatura. Portanto, para identificar o que as compositoras de MPB dizem sobre si no âmbito da canção popular, analisar a relação dessas composições com o contexto histórico da época, refletir sobre o que a autoria feminina tinha a dizer enquanto eu lírico feminino e relacionar essas criações com as estéticas literárias brasileiras, foi necessário abordar a linguagem literária, as concepções da teoria e os mistérios da criação, além de discutir sobre a literariedade da palavra cantada. Dessa forma, foi possível estudar as produções da MPB na década de 70, o contexto histórico dessa época, e finalmente, revelar as vozes femininas da MPB, ou seja, dimensionar quantas compositoras conseguiram transpor as barreiras de um mercado fonográfico ainda dominado pelos homens. A partir daí, inicia-se um trabalho árduo de pesquisa e seleção, por meio das respectivas biografias, para eleger quatro compositoras, fazer um recorte de suas obras e escolher as letras que falam sobre a mulher. Assim, selecionamos as seguintes músicas: “Essa Mulher”, de Joyce e Ana Terra; “Feminina”, de Joyce; “Minha Mãezinha”, de Ângela Rô Rô; e, finalmente, “Meninas da Cidade”, de Fátima Guedes. Desse modo, analisamos o que a autoria feminina tinha a dizer enquanto eu lírico feminino numa época em que as mulheres começavam a escrever a sua SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 335 própria história, em circunstâncias mais abrangentes, por meio do mercado fonográfico. O Caráter Literário das Composições da MPB Inicialmente, antes de falarmos sobre o caráter literário das composições de MPB, torna-se necessário esclarecermos o que é literatura. Esse conceito ainda é muito polêmico entre os estudiosos que se dedicam a essa área e tem passado por variações significativas em seu percurso histórico. Porém, apresentamos duas concepções que tem sido reconhecidas e exploradas no circuito da cultura ocidental: a concepção clássica e a concepção moderna. A concepção clássica acredita que a obra literária abrange uma representação e uma visão de mundo, e consequentemente, um posicionamento diante disso. Segundo nos relata Proença Filho: Há os que entendem que a obra literária envolve uma representação e uma visão do mundo, além de uma tomada de posição diante dele. Tal posicionamento centraliza, assim, suas atenções no criador de literatura e na imitação da natureza, compreendida como cópia ou reprodução. A linguagem é vista como mero veículo dessa comunicação, e, como assinala Marucie-Jean Lefebve, “a beleza da obra resulta, então, de um lado, da originalidade da visão, e, de outro, da adequação de sua linguagem às coisas expressas”. É a chamada concepção clássica da literatura. (PROENÇA FILHO, 2001, p. 9). Por outro lado, a concepção moderna atribui ao artista uma capacidade que vai além da representação, o que podemos identificar como pressentimento, ou seja, uma visão além do alcance da realidade que podemos ver e observar, “algo mais” que somente pode se realizar por meio da arte. Assim, nos aponta Proença Filho (2001): “No século XIX, os românticos acrescentam algo a esse conceito: à luz da ideologia que os norteia, entendem que ao artista cabe a visão das coisas como ainda não foram vistas e como são profunda e autenticamente em si mesmas”. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 336 REVISTA SABERES LETRAS Nesse sentido, concordamos com as ideias da concepção literária moderna, mas também, entendemos o valor da concepção clássica para os pesquisadores que analisam as obras literárias. Afinal, precisamos estabelecer parâmetros para empreendermos estudos tão enigmáticos e desafiadores. Apesar de sabermos que essa tarefa árdua implica em se enredar nos mistérios da criação artística. Retomando o conceito de literatura, um dos pontos pacíficos entre os teóricos é que ela é uma arte verbal, ou seja, tem como matéria prima a palavra escrita. Como se trata de uma arte, a literatura usa o código verbal e a comunicação, de forma especial. Dessa forma, o discurso literário mantém uma relação íntima com o discurso comum, mas, apresenta diferenças únicas em relação a ele. Apesar do mistério do fenômeno literário, é possível identificarmos certos traços particulares em seu discurso. Desse modo, apresentamos algumas características distintivas do discurso literário em relação ao discurso comum: complexidade, multissignificação, predomínio da conotação, liberdade na criação, ênfase no significante e variabilidade O discurso comum visa à objetividade e procura ser o mais transparente possível para evitar interpretações dúbias. Já no discurso literário, a complexidade torna o texto muito mais rico em interpretações que vão além do nível meramente semântico. Trata-se de uma linguagem que produz sentidos além daqueles que usualmente entendemos na linguagem habitual e que encobre várias coisas ou ideias. Ao empregarmos no texto literário usos específicos e complexos da língua, automaticamente, os signos linguísticos, as frases, as sequências e toda sua textura, tomam sobre si, significados múltiplos e variados. O discurso literário afasta-se completamente do chamado grau zero da escritura, isto é, do discurso preocupado principalmente com a completa clareza da comunicação nele veiculada e atrelada às normas gramaticais. Dessa forma, inventa significantes e institui significados, dando margem para múltiplas leituras de uma determinada obra. Igualmente, o sentido mais geral que se pode atribuir a um termo abstrato, além da significação própria, conhecido como conotação, também contribui para valorar a literariedade de um texto. As características anteriormente citadas, não teriam sentido se não fosse concedido ao artista aquilo que é mais importante para que sua criatividade SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 337 sobreviva e se materialize: a liberdade na criação. Portanto, não existem regras e nem limites para uma obra literária. Ela é o que pode ser e deve existir por si mesma. O texto literário tem o seu sentido apoiado tanto no significado quanto no significante, mas, concede a este último uma atenção especial porque é nessa esfera que concentra os segredos de sua criação. Assim como as outras artes, a literária também varia de acordo com o contexto sócio-cultural e ideológico. As marcas dessa variabilidade não obedecem a uma ordem cronológica crescente porque, muitas vezes, o texto literário retoma características de outras épocas ou se antecipa à contemporaneidade. Contudo, os estudiosos da literatura ainda não conseguiram definir um índice de literariedade, mesmo considerando as características distintivas do discurso literário. Atualmente, essa é a busca mobilizadora da crítica literária. A música e a poesia originariamente nasceram gêmeas siamesas. Ao longo da evolução histórica de cada uma dessas artes, elas foram separadas e seguiram seus próprios caminhos. Posteriormente, voltaram a se unir, mais precisamente na Idade Média, na época do Trovadorismo. Porém, novamente se separaram e continuaram suas trajetórias. Entretanto, nunca deixaram de estar intimamente ligadas, seja por meio dos recursos de rima, métrica, ritmo, e de figuras de linguagem que conferem musicalidade ao poema ou pelas letras destinadas a canção. Apesar dessa relação íntima que existe entre a poesia escrita e a poesia cantada, suas origens históricas comuns e suas afinidades, Perrone (2008) afirma que é imprescindível reconhecermos as diferenças fundamentais que existem entre uma e outra, conforme relata: O reconhecimento das diferenças fundamentais entre o verso escrito e o verso destinado à execução musical é pré-requisito indispensável para uma discussão sobre as duas formas. Tendo-se sempre em conta as distinções necessárias, existem diversos modos de se tratar um texto musical como unidade literária. As letras de canção são muitas vezes associadas à poética não-musical, especialmente no contexto brasileiro SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 338 REVISTA SABERES LETRAS contemporâneo, e muitos modelos de avaliação podem ser apropriados tanto a poemas como a palavras cantadas. Entretanto, em vista da dimensão musical dos textos da canção, a aplicação não-qualificada ou irrestrita de paradigmas de análise literária não seria criticamente efetiva. (PERRONE, 2008, p. 23). Outro aspecto importante apontado pelo autor, é que o refrão que deve ser visto como um elemento potencialmente significativo. Assim, a repetição estrófica numa canção não acontece por acaso, ela está intimamente ligada à construção desse texto. Além disso, a posição que ela ocupa entre os versos é uma estratégia que precisa ser cuidadosamente analisada. Certamente, a leitura de uma letra de música pode causar impressões diferentes de sua audição, às vezes, dependendo do ritmo e da forma como a música é cantada, a leitura da letra revela aspectos que não são observados em sua execução. Igualmente, existem letras de músicas que em sua forma escrita já são naturalmente poemas bem construídos, assim como, muitos poemas foram escritos somente com a intenção de serem lidos, mas que posteriormente foram musicados sem mudar uma letra de sua forma original. Sobre a literariedade da palavra cantada Perrone relata que: [...] Uma letra pode ser um belo poema mesmo tendo sido destinada a ser cantada. Mas é, em primeiro lugar, um texto integrado a uma composição musical, e os julgamentos básicos devem ser calcados na audição para incluir a dimensão sonora no âmbito da análise. Contudo, se, independente da música, o texto de uma canção for literariamente rico, não há nenhuma razão para não se considerarem seus méritos literários. A leitura da letra de uma canção pode provocar impressões diferentes das que provoca sua audição, mas tal leitura é válida se claramente definida como uma leitura. O que deve ser evitado é reduzir uma canção a um texto impresso e, a partir dele, emitir julgamentos literários negativos [...] (PERRONE, 2008, p. 28). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 339 Para a teoria literária, só podemos considerar literatura aquilo que está escrito. E nesse sentido as letras de músicas impressas nos encartes dos discos de vinil, fitas cassetes, e mais recentemente, em cds, dvds, e em diversos sites sobre gêneros musicais, e, particularmente, nos blogs e sites dos compositores e cantores tem contribuído para que suas pesquisas tenham sustentáculo nos estudos literários. Portanto, na análise das letras das compositoras de MPB selecionadas nesta pesquisa, tomaremos como base as características distintivas do discurso literário, aliadas às concepções da teoria literária apresentadas. Além disso, consideraremos as distinções existentes entre a poesia escrita e a poesia cantada dentro dos preceitos teóricos defendidos por Perrone. As Produções da MPB na Década de 70 A escolha temporal desta pesquisa tem como ponto de partida dois fatores primordiais. O primeiro diz respeito ao aparecimento de novas compositoras no cenário musical brasileiro, uma vez que, antes da década de 70, tínhamos como sinônimo de compositoras brasileiras apenas Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran e Maysa. Já o segundo se refere ao fato de que, nessa década, vivenciou-se momentos de experimentação e revolução cultural que marcariam profundamente as gerações seguintes, como tão bem relata Bahiana (2006): Na nitidez da distância, os anos 70 aparecem com uma importância que não se suspeitava: as raízes das delícias e dos horrores do novo século estão inteirinhas ali. O triunfo do corpo, o terror político. Interatividade e crise do petróleo. Fartura, escassez. Aiatolás no Irã, um mentiroso na Casa Branca. A possibilidade de uma sociedade mais justa, com lugar para as vozes de mulheres, homossexuais, crianças, jovens, místicos, alternativos, e a realidade de sociedades em que nada disso era sequer o esboço de uma vontade (BAHIANA, 2006, P. 6, grifo nosso). A consciência e a reflexão histórica, social e cultural dos anos de 1970 é algo que hoje mobiliza muitos pesquisadores. E na medida em que mergulhamos em SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 340 REVISTA SABERES LETRAS algum aspecto específico da época, como as produções da MPB, por exemplo, é que constatamos o quanto ela foi importante. Nem mesmo aqueles que testemunharam esse período tinham consciência de que estavam ajudando a escrever uma importante página da nossa história. Assim, reflete Bahiana: Não sei o que vai ser de mim ou de meus companheiros de geração daqui pra frente, mas tenho certeza de que vamos levar um pouco, conosco, esta época. Foi terrível, foi ótima. Foi a nossa década. Enquanto vivíamos seu dia-a-dia, dava a impressão de um espaço imóvel de dez anos. Uma era morta em que nada acontecia. E, no entanto, tudo aconteceu. (BAHIANA, 2006, p. 13, grifo nosso). Além disso, houve um momento nessa década em que a MPB ocupou o quarto lugar no mercado fonográfico mundial e começou também a ser objeto de estudos acadêmicos. A riqueza dos anos de 1970 é comprovada pelo surgimento de grandes artistas e amadurecimento de outros surgidos em décadas anteriores, dotados de talentos especiais e com estilos e atributos próprios, e em alguns casos, raros. Figuram nessa constelação nomes como: Elis Regina, Juca Chaves, Maria Bethânia, Jorge Ben (Benjor), Tim Maia, Belchior, Fagner, Djavan, Elba Ramalho, Zé Ramalho, Moraes Moreira, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Beto Guedes, Lô Borges, Joana, Fafá de Belém, Simone, Gal Gosta, Clara Nunes, Zizi Possi, Zezé Mota, Emílio Santiago, Dalto, Fátima Guedes, o conjunto vocal Boca Livre, Ney Matogrosso, Marina Lima etc. Listamos alguns desses nomes por entendermos que representam uma amostra significativa da multiplicidade cultural do nosso país. Nos trepidantes anos de chumbo, o Brasil tem pelo menos um representante de cada região na MPB. As mulheres como intérpretes invadem o mercado fonográfico e passam a fazer um enorme sucesso. Contudo, apesar do crescente número de cantoras na MPB na década de 70, há pouco registro de músicas de compositoras porque não eram as cantoras quem decidiam o que iriam cantar, e sim, suas gravadoras. Era SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 341 o mercado fonográfico que ditava as regras. Aliás, uma pesquisa mais cuidadosa se faria necessária para dimensionarmos quantas compositoras conseguiram transpor as barreiras de um mercado fonográfico que ainda não valorizava essas artistas que surgiam com força no cenário musical brasileiro. Estamos nos referindo àquelas que eram cantoras e músicos, e que também por isso, gravaram suas próprias obras: Ângela Rô Rô, Fátima Guedes, Joyce, Leci Brandão, Rita Lee, Rosinha de Valença e Sueli Costa. Rita Lee, considerada a representação feminina do rock brasileiro na MPB, é um fenômeno, que apesar de sua obra já ter um número considerável de estudos acadêmicos, merece um estudo à parte. Igualmente, Leci Brandão, cantora e compositora, um dos destaques femininos do samba. Já Rosinha de Valença, é uma artista ímpar e sua obra é digna de uma pesquisa mais cuidadosa e apurada, tanto no que diz respeito ao seu talento como compositora, quanto como instrumentista. Além disso, Sueli Costa, cantora e compositora de forte expressão musical, lançou seu primeiro LP “Sueli Costa”, em 1975. Dois anos depois, em 1977, o segundo que também levava o nome da cantora. Logo após, em 1978, o LP intitulado “Vida de Artista”. Também não será objeto desta pesquisa porque, na maioria de suas composições, é autora da melodia e não da letra. Ana Maria Terra Borba Caymmi, letrista, escritora e produtora. Em 1977, por meio do seu Selo Ana Terra Produções, lançou o LP “Cheiro verde”, de Danilo Caymmi (na época, seu marido). O disco teve várias canções suas em parceria com o cantor, inclusive a que deu título a obra. No ano de 1979, em seu LP “Essa mulher”, Elis Regina gravou, de sua autoria em parceria com Joyce, a música que deu título ao disco, e ainda, “Pé sem cabeça”, composição de Danilo Caymmi e Ana Terra. Ainda nesse ano, Angela Ro Rô gravou uma de suas composições mais conhecidas, “Amor meu grande amor”. Essa parceria tem a melodia feita por Rô Rô e a letra por Ana Terra, que tempos depois seria regravada também com sucesso pelo grupo Barão Vermelho. Portanto, a autora de “Essa Mulher” não poderia se esquecida numa pesquisa como esta. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 342 REVISTA SABERES LETRAS Ângela Maria Diniz Gonçalves, conhecida pelo nome artístico de Ângela Rô Rô, graças a sua risada grave, rouca e irreverente, nasceu no Rio de Janeiro, em 5 de dezembro de 1949. Ela também é músico e tem o piano como seu principal instrumento. Segundo a artista, a sua melhor biografia será, um dia, definida por ela mesma. Mas, Elis Regina, em 1981, conseguiu chegar perto: “- Essas mulheres todas, com exceção da Ângela Rô Rô, estão servindo a este sistema feudal das gravadoras, fazendo o que um amigo meu chama de neo-pseudoerotismo”. Contudo, Rô Rô revela que o mais coerente, até que ela escreva a sua biografia, é usar sua própria frase: “- A vida de Rimbaud foi o Pato Donald comparada com a minha”. Certamente, ela faz jus a isso. Seu primeiro disco foi gravado exclusivamente com suas composições e recebeu o título de Ângela Rô Rô. Trata-se de um clássico da música brasileira. Por essas razões, é um verdadeiro manancial para esta pesquisa. Maria de Fátima Guedes nasceu dia 6 de maio de 1958. Começou a compor aos 15 anos e aos 18 já tinha uma linguagem amadurecida em letras e melodias. Iniciou a carreira como compositora em 1973 tendo o violão como seu instrumento e parceiro em suas composições. Em 1976, sua musica Passional venceu o Festival de Musica da Faculdade Hélio Alonso. Autora de trilhas sonoras para teatro, compôs Onze Fitas, para a peça O Dia da Caça, de José Louzeiro. Sua música Bicho Medo foi gravada por Wanderléia, e Meninas da Cidade interpretada no show Transversal do Tempo, por Elis Regina. Assim como Ângela Rô Rô, em 1979 também lançou um LP com suas composições intitulado Fátima Guedes. Dessa forma, temos mais um precioso documento musical para nossos estudos. Joyce Silveira Moreno (nascida Joyce Silveira Palhano de Jesus) nasceu no Rio de Janeiro, em 31 de Janeiro de 1948. Toca violão desde os catorze anos de idade. Em 1967, classificou sua canção “Me disseram” no II Festival Internacional da Canção (RJ), que iniciava com a frase “Já me disseram / que meu homem não me ama”. Na época, essa música provocou uma grande polêmica por ter a letra escrita na primeira pessoa do feminino, o que ainda não tinha sido feito por nenhuma das pouquíssimas compositoras brasileiras até então. Joyce, uma estreante de 19 anos foi criticada como “vulgar e imoral” por alguns jornalistas, como Sérgio Porto. Mas, também teve defensores como Nelson Motta e SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 343 Fernando Lobo, que a apoiaram pela “postura feminista”. Contudo, nem ela sabia o que isso significava porque apenas queria se expressar no seu gênero, como vira antes em artistas como Billie Holiday e Edith Piaf. Em 1970, graduouse em Jornalismo pela PUC-Rio. Nessa década, gravou um Compacto Duplo intitulado “Joyce” em 1971, e ainda nesse ano, “Tribo”, um Compacto Simples, em 1972 o LP “Nelson Angelo e Joyce”, e finalmente, em 1976 o LP “Passarinho Urbano”. Porém, nenhuma dessas obras tinham composições suas, exceto no último LP, na melodia da música “Passarinho” cuja letra é o poema de Mário Quintana. Por isso, nossa fonte de pesquisa serão as músicas de Joyce gravadas por outros intérpretes nos anos de 1970. Finalmente, essa artista completa o quarteto de compositoras que transpuseram as barreiras do mercado fonográfico nos trepidantes anos de chumbo, gravaram seus vinis com músicas de sua autoria, ou, como Ana Terra, produziram suas obras interpretadas por outros cantores e foram reconhecidas por grandes intérpretes como Elis Regina. Essas Mulheres Feitas de Sombra e Tanta Luz Inicialmente, para analisarmos o que as compositoras de MPB dizem sobre si no âmbito da canção popular, torna-se necessário fazermos um recorte na obra das compositoras pesquisadas e escolhermos as letras que falam sobre a mulher. Assim, selecionamos as seguintes músicas: “Essa Mulher”, de Joyce e Ana Terra; “Feminina”, de Joyce; “Minha Mãezinha”, de Ângela Rô Rô; e finalmente, “Meninas da Cidade”, de Fátima Guedes. Desse modo, poderemos examinar o que a autoria feminina tinha a dizer enquanto eu lírico feminino numa época em que as mulheres começavam a escrever a sua própria história, em circunstâncias mais abrangentes, por meio do mercado fonográfico. Em 1979, Elis Regina, um dos maiores ícones da MPB, grava o LP “Elis, Essa Mulher”, a música “Essa Mulher”, que nomeia a obra, é de autoria da Joyce e Ana Terra: De manhã cedo essa senhora se conforma / Bota a mesa, tira o pó, lava a roupa, seca os olhos / Ah, como SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 344 REVISTA SABERES LETRAS essa santa não se esquece / De pedir pelas mulheres, pelos filhos, pelo pão / Depois sorri meio sem graça / E abraça aquele homem, aquele mundo que a faz assim feliz / De tardezinha essa menina se namora / Se enfeita, se decora, sabe tudo, não faz mal / Ah, como essa coisa é tão bonita / Ser cantora, ser artista, isso tudo é muito bom / E chora tanto de prazer e de agonia / De algum dia, qualquer dia entender de ser feliz / De madrugada essa mulher faz tanto estrago / Tira a roupa, faz a cama, vira a mesa, seca o bar / Ah, como essa louca se esquece / Quanto os homens enlouquece nessa boca, nesse chão / Depois parece que acha graça / E agradece ao destino aquilo tudo que a faz tão infeliz / Essa menina, essa mulher, essa senhora / Em quem esbarro a toda hora no espelho casual / É feita de sombra e tanta luz / De tanta lama e tanta cruz que acha tudo natural (“Essa mulher”. Joyce e Ana Terra, 1979). Trata-se de um dos mais consagrados clássicos da nossa música. A letra fala de uma mulher múltipla, capaz de ser dona de casa, esposa, mãe, amante, e ainda por cima, artista: “De manhã cedo essa senhora se conforma / Bota a mesa, tira o pó, lava a roupa, seca os olhos [...] Ser cantora, ser artista, isso tudo é muito bom [...] De madrugada essa mulher faz tanto estrago / Tira a roupa, faz a cama, vira a mesa, seca o bar [...]”. Qualquer semelhança com as mulheres do século XXI não terá sido mera coincidência, pois, como vimos anteriormente, uma das marcas da variabilidade, característica da literariedade de um texto, é a capacidade de uma arte variar de acordo com o contexto sócio-cultural e ideológico. Aqui, Ana Terra, autora da letra, se antecipa a sua época e prevê a vida da mulher moderna que para conquistar igualdade de direitos precisa ser várias mulheres ao mesmo tempo e até enganar o dia que tem somente vinte e quatro horas, tempo insuficiente para tantas atribuições. Para abordar um tema tão contraditório, de ser uma dona de casa, esposa e uma SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 345 mãe dedicada, mas também, uma mulher, uma amante entregue as delícias do prazer e dos pecados da carne, a autora retoma traços do Barroco com paradoxos como: “[...] E chora tanto de prazer e de agonia [...] Depois parece que acha graça / E agradece ao destino aquilo tudo que a faz tão infeliz [...]”. Além de criar uma antítese que traduz essa “moderna mulher barroca”: “[...] É feita de sombra e tanta luz [...]”. Ainda nesse ano, a música “Feminina”, de Joyce, entra na trilha sonora do seriado “Malu Mulher”, criado e dirigido por Daniel Filho, e apresentado pela Rede Globo no período de 24 de maio de 1979 a 22 de dezembro de 1980. A canção “Feminina” é construída em forma de diálogo entre mãe e filha. O fio condutor são questionamentos daqueles que, às vezes, nos deixam sem resposta, ou, com várias respostas: - Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina? / - Não é no cabelo, ou no dengo, ou no olhar, é ser menina por todo lugar. / - Ô mãe, então me ilumina, me diz como é que termina? / - Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar. / Costura o fio da vida só pra poder cortar. / Depois se larga no mundo pra nunca mais voltar. / - Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina? / - Não é no cabelo, ou no dengo, ou no olhar, é ser menina por todo lugar. / - Ô mãe, então me ilumina, me diz como é que termina? / - Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar. / Prepara e bota na mesa com todo o paladar. / Depois, acende outro fogo, deixa tudo queimar. / - Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina? / - Não é no cabelo, ou no dengo, ou no olhar, é ser menina por todo lugar. / - Ô mãe, então me ilumina, me diz como é que termina? / - Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar. (“Feminina”, Joyce, 1979). As duas perguntas, “Ô mãe, me explica, me ensINA, me diz o que é feminINA?” e “Ô mãe, então me ilumINA, me diz como é que termINA?”. Apesar de apresentarem, pelo critério gramatical, uma rima rica, na primeira, entre o verbo ensina e o SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 346 REVISTA SABERES LETRAS adjetivo feminina, que são de categorias gramaticais diferentes. Assim como, uma rima pobre, na segunda, entre o verbo ilumina e termina, classes de palavras iguais. E ainda, pelo critério fônico, rimas pobres porque a extensão dos sons que se assemelham “INA” começam a partir da sílaba tônica dessas palavras. Constituem uma base melódica expressiva que provoca a construção de belas metáforas como resposta. Isso podemos ver nos trechos a seguir: “Costura o fio da vida só pra poder cortar / Depois se larga no mundo pra nunca mais voltar” e “Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar”. Essas duas metáforas demonstram o quanto a mulher dessa década é uma espécie de fênix capaz de terminar na hora de recomeçar, de renascer e de se refazer a cada instante, e de dobrar esquinas mesmo quando o caminho parece apenas uma linha reta. E isso, significa criar e reinventar seu próprio caminho. Outra construção metafórica relevante que, inclusive, formam um elo com a letra de “Essa Mulher”, de Ana Terra, é “Prepara e bota na mesa com todo o paladar / Depois, acende outro fogo, deixa tudo queimar”. Nessas duas estrofes, a autora fala da mulher que cuida da casa, do marido e dos filhos, mas que, à noite, se transforma também em amante. Novamente temos aqui referências à multiplicidade feminina, a capacidade de serem muitas em uma só. Já, ao contrário de Joyce, Ângela Rô Rô, na música “Minha Mãezinha”, aborda a relação entre mãe e filha de uma forma diferente: Sua voz tão difícil de calar / Não me diz mais nada / Já não carrega mais o doce mel / Da abelha rainha / Me deixe em paz / Minha mãezinha / Seus olhos / Tão abertos quanto a sua boca / Já não vêem mais / Que eu não tenho emenda / Nem vim de encomenda / A vida que eu levo é só minha / Me deixe ser / Minha mãezinha / Suas mãos / Que deviam ser carinho como o coração / Hoje são cerradas e lacradas / Como um cofre de um banco qualquer / Você antes de mãe é uma mulher / Caminho / Só eu sei do meu caminho e o quanto eu caminhei / O que aprendi / O que errei / Só eu canto a dor que é minha / Me deixe só minha mãezinha / Não me mime / Não me SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 347 mime / Não me mime mamãe / Não me mime mais (“Minha mãezinha”, Ângela Rô Rô, 1979). A autora, mesmo não usando grandes construções metafóricas nem recursos mais elaborados de literariedade, é perspicaz em mostrar o choque de gerações entre uma mãe conservadora ainda apegada às tradições sociais e uma filha que não se submete a isso: “Sua voz tão difícil de calar / Não me diz mais nada / Já não carrega mais o doce mel / Da abelha rainha / Me deixe em paz / Minha mãezinha”. Essa filha é uma mulher que não está disposta a repetir a trajetória de vida das suas antecessoras familiares: “Que eu não tenho emenda / Nem vim de encomenda / A vida que eu levo é só minha / Me deixe ser / Minha mãezinha”. Na sequência, lamenta a falta de carinho devido aos conflitos constantes: “Suas mãos / Que deviam ser carinho como o coração / Hoje são cerradas e lacradas / Como um cofre de um banco qualquer”. E ainda, evoca o lado feminino de sua mãe a se manifestar: “Você antes de mãe é uma mulher”. Além disso, tem consciência que sua trajetória será árdua feita de desacertos, mas também, de aprendizado: “O que aprendi / O que errei / Só eu canto a dor que é minha / Me deixe só minha mãezinha”. Finalmente, lembrando das recomendações de Perrone (2008), quando fala da importância do refrão como um elemento potencialmente significativo, Rô Rô, dá o tom principal a sua letra quando diz: “Não me mime / Não me mime / Não me mime mamãe / Não me mime mais”. Essa mulher da década de 70 não quer ser mais uma “dondoca” idealizada pela sociedade dominada pelos homens, mas sim, ser autora da sua própria vida. Por outro lado, Fátima Guedes, na palavra cantada “Meninas da Cidade”, cria uma estrutura poética densa e rica. A opacidade da letra nos remete a várias interpretações possíveis. O que faremos nesta análise é adotar uma delas. Essa música, além de ter sido gravada por sua autora, integrou também o repertório de Elis Regina, em 1978, no show “Transversal do Tempo”: São doze pancadas (doze badaladas) / Sol a pino. A telha vã / esquenta o pó da minha casa / esquenta a bilha d’água / De tanto que ferve na minha mão / agulha e pano, armas de todo dia / Na minha mão SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 348 REVISTA SABERES LETRAS tesouro e fé / e pé na mesma tábua em falso / (destino e pé descalço) / Desde manhã sentada e presa aqui / rasgando as sedas das rainhas / os brancos das donzelas / que no escuro da cidade alguém há de despir / Ninguém verá tão belas / filhas da falsidade / A vila é tão pequena e infeliz sem elas que... / (são doze pancadas), são doze ruelas / que desgraçadamente sempre vão dar / numa mesma praça seca / de noite suspirada, / De noite tão imensamente farta das paixões do dia. / De noite suficientemente larga pras bandalharias. / Meninas que se vem chegando aqui: / cinturas ainda finas, medir felicidade. / No rosto a marca dos batons / das senhoras de bem, as damas da cidade. / No peito arfante o roxo das mordidas mais ferozes / Filhos da mesma terra, andantes e viajores, / rapazes e senhores de mais realidade. / São doze pancadas (já são doze dadas) / A lua a pino e eu já sei / que vou entrar na madrugada / rematando bainhas, / pregando rendas que amanhã vai ser / o baile das rainhas. / Amanhã, já se sabe que elas vão fazer / a história da cidade. / São muito cinderelas. (“Meninas da cidade”. Fátima Guedes, 1979) Para falar da vida das meninas de uma pequena cidade interiorana, a narração é feita na primeira pessoa do singular. Uma costureira, em seu humilde casebre, cose a roupa das garotas da cidade que desde cedo se prostituem. Esse enredo traz nas suas estrofes fortes metáforas que alinhavam a tessitura do texto. Assim, podemos ver a condição de vida simples da costureira por meio do seguinte trecho: “Sol a pino. A telha vã / esquenta o pó da minha casa / esquenta a bilha d’água“. A telha que não alivia o calor do sol do meio dia e aquece a água no recipiente típico de lugarejos pobres. E ainda, a imagem dos instrumentos de trabalho em ebulição nas mãos castigadas de tanto trabalhar, os pés na tábua da casa simples lembrando os movimentos repetitivos típicos da profissão: “De tanto que ferve na minha mão / agulha e pano, armas de todo dia / Na minha mão tesouro e fé / e pé na mesma tábua em falso / (destino e pé descalço) / Desde manhã sentada e presa aqui”. Porém, o foco principal, a prostituição tão precoce e a exploração sexual denunciadas nos versos, atingem o ápice em várias de suas construções SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 349 metafóricas como podemos ver nos seguintes excertos: “[...] que no escuro da cidade alguém há de despir [...] De noite tão imensamente farta das paixões do dia. / De noite suficientemente larga pras bandalharias [...] No peito arfante o roxo das mordidas mais ferozes [...] Amanhã, já se sabe que elas vão fazer / a história da cidade. / São muito cinderelas [...]”. Outra denúncia evidenciada é que essas jovens são levadas da cidade para serem exploradas sexualmente em outros lugares: “A vila é tão pequena e infeliz sem elas que... / (são doze pancadas), são doze ruelas / que desgraçadamente sempre vão dar / numa mesma praça seca / de noite suspirada,”. Uma característica marcante, que nos remonta ao Simbolismo, são as partes em que a autora se refere às doze pancadas ou doze badalas: “[...] São doze pancadas (doze badaladas) [...] (são doze pancadas), são doze ruelas [...] São doze pancadas (já são doze dadas) [...]”. Essas expressões lembram os sinos das igrejas que simbolizam a ligação entre o céu e a terra. A representação da voz de Deus no som de bronze fazendo o chamamento para seus filhos. Guedes, também clama a Deus, convoca o povo para ver o destino desgraçado das nossas meninas. Considerações Finais Analisar o que o eu lírico feminino tinha a dizer nos anos de 1970 enquanto autoria feminina implicou em pesquisar o caráter literário das letras de música e as produções da MPB na década em questão. Essa viagem no tempo e no espaço por meio de vários autores e o encontro com as composições femininas da época, nos fez confirmar que nesta pesquisa trilhávamos um caminho muito rico, e ainda, pouco explorado no meio acadêmico. Devido à necessidade de criar critérios para selecionar as compositoras, além de fazer um recorte na obra delas, temos consciência de que este estudo abrangeu apenas um dos vários aspectos que podem e devem ser estudados com relação à contribuição feminina na nossa música. Por se tratar de um estudo literário, no que tange à relação das composições com as estéticas literárias brasileiras constatamos que em geral elas configuram o Modernismo, salvo, algumas marcas do Barroco, em “Essas Mulheres”, e do Simbolismo, em “Meninas da Cidade”. Já, no que se refere ao contexto histórico SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 350 REVISTA SABERES LETRAS da época, observamos que nossas mulheres lutavam não só contra a ditadura daqueles anos, mas contra toda a discriminação e repressão que sofreram ao longo da história. Certamente, o que elas tinham a dizer no âmbito da canção popular nos trepidantes anos de chumbo, além da intuição feminina tão peculiar, alçava vôo mais altos, fora do alcance da realidade que podia se ver na época, o que nos remete à concepção moderna da teoria literária. Elas possuíam uma visão das coisas como ainda não tinham sido vistas e que eram profundamente autênticas em si mesmas. Dessa forma, terminamos a análise das letras que falam sobre “essas mulheres”, retomando o quanto elas se anteciparam ao seu próprio tempo, e que, assim como Ana Terra, na composição de “Essas Mulheres”, preconiza a multiciplicidade feminina. Fátima Guedes, por sua vez, também prevê a exploração sexual e infantil das meninas e mulheres nascidas em lugares pobres, o que, infelizmente e desgraçadamente, ainda ocorre em pleno século XXI. Além disso, Joyce em sua canção “Feminina” retrata uma relação mais harmoniosa e poética entre mãe e filha, discutindo sobre o que é ser feminina. Enquanto, Ângela Rô Rô, aborda a falta de diálogo de uma matriarca conservadora querendo submeter sua filha a convenções sociais. Porém, essa jovem mulher rebelde não se deixa dominar e escolhe seguir a sua vida reescrevendo uma nova história, e consequentemente, revelando-se uma nova mulher, feita de sombra e tanta luz, o seu maior legado. Referências ALBIN, Ricardo Cravo. O livro de ouro da MPB: história da nossa música popular de sua origem até hoje. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. Ana Terra – site oficial. Disponível em: <http://www.anaterra.mus.br/>. Acesso em 7 nov. 2009. Ângela Ro Ro – site oficial. 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SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 333 a 352 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 353 AS TENDÊNCIAS MODERNAS E PÓS-MODERNAS NA LITERATURA BRASILEIRA E A RELAÇÃO COM POESIA MARGINAL DOS ANOS 70 Maitê de Souza Cosmi1* Vera Márcia S. de Toledo2** Resumo O objetivo principal deste trabalho é expor, de maneira contextualizada, as transformações poéticas ao longo do século XX, que corroboraram para o surgimento da Poesia Marginal brasileira produzida nos anos 70. Discute-se a relação entre o Movimento Modernista dos anos 20 e a heterogeneidade do Pós-Modernismo, fazendo referência às repressões político-culturais a fim de problematizar as questões de liberdade de criação, inovação e originalidade poética. Palavras-chave: Poesia Marginal, Concretismo, Movimento Modernista. Abstract: The main objective of this work is to expose, in context, the poetic transformations throughout the twentieth century, which confirmed the emergence of marginal poetry in 70’s . We intend to discuss the relationship between Modernist Movement of 20’s and heterogeneity of post-modernism, linking the political and cultural repression in order to problematize the issues of freedom of creation, innovation and poetic originality. Keywords : Marginal poetry, Concretism, Modernist movement. Introdução Pretendemos fazer um percurso de volta à história e tomar como ponto de partida o fim do século XIX e início do século XX, a fim de discutir, modestamente, o nascimento da Poesia Marginal (já na década de 70, do século XX), juntamente 1- *Graduanda em Letras Português/Inglês da Faculdade Saberes . Autora deste trabalho. En� dereço eletrônico: [email protected] 2- **Professora Mestre em Estudos Literários da Faculdade Saberes.Orientou e revisou este tra� balho. Endereço eletrônico: [email protected]. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 354 REVISTA SABERES LETRAS com seus conceitos e definições, a qual jamais poderia ser compreendida fora de sua contextualização histórica, levando em consideração os fatos e razões relevantes à sua criação e disseminação. As obras poéticas criadas no Brasil dos anos 70 (do século XX), dotadas de características predominantemente espontâneas, despretensiosas, coloquialistas, imediatistas e divulgadas sob a mira da política e da polícia, são definidas como parte da herança deixada pelo Movimento Modernista associada à herança deixada pela repressão do governo militar, instaurada no país. A poesia assumiu uma forma de protesto, desenvolvendo-se sob a perspectiva de uma obra de domínio público. Foi denominada, segundo CAMPEDELLI (1995), “marginal” por opção, visto que circulava fora dos padrões e dos circuitos comerciais dos livros, por ser pichada nos muros, circular de mão em mão, ser impressa por mimeógrafos, em offset, em folhetos distribuídos em bares e em portas de eventos culturais, na maioria das vezes pelos próprios autores. Mais do que isso, a Poesia Marginal subverteu os padrões literários clássicos, no plano específico da linguagem, e se opôs radicalmente à política cultural, que sempre dificultou o acesso do público à literatura e a veiculação de materiais considerados não-legítimos pela crítica. Podemos afirmar que a luta dos cidadãos brasileiros pela liberdade, na totalidade da expressão, é histórica e interminável, adquirindo cada vez mais força através dos séculos. A Proclamação da República, no ano de 1889, remeteu toda a sociedade, do fim do século XIX, a uma ideia de autonomia e liberdade, como foi publicado no Jornal A República, em 1870, através do Manifesto Popular. O documento deteve-se em criticar severamente o regime monárquico e propunha o estabelecimento de uma federação embasada na liberdade de ação e independência das províncias, além de defender os ideais de “liberdade individual”, “liberdade econômica”, “direitos da nação”, “opinião nacional”, entre outras questões. Mas, como afirmado por CARVALHO (1980), “o povo estava sendo admitido numa história em que, na realidade, não entrou e com uma identidade que também não era sua.” As ideias de renovação e o Movimento Modernista A primeira metade do século XX foi marcada mundialmente por diversas crises SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 355 e por duas grandes guerras, acarretando em intensas transformações no âmbito político e econômico das sociedades. Na Europa e no Brasil, este período foi caracterizado pela tentativa de reformulação e renovação dos valores culturais e artísticos. De acordo com HELENA (2003), “todos estavam de acordo com o fato de que se revelavam falidos os moldes acadêmicos e conservadores de uma arte envelhecida e cristalizada”. Durante este período surgem, na Europa, os movimentos artísticos denominados vanguarda, de fundamental importância para a atitude modernista e pósmodernista. As vanguardas são uma forma de posicionamento frente a um passado considerado estagnado, buscando a transformação e a progressão de uma determinada arte. As vanguardas, hoje históricas, foram movimentos altamente radicais que alteraram os rumos da literatura e das demais artes. O Futurismo (1909), o Expressionismo (1910), o Cubismo (1913), o Dadaísmo (1916) e o Surrealismo (1924) foram os principais resultados desta atitude artística e cultural de contestação de um mundo em crise. Apesar de suas grandes diferenças, todos estes movimentos tiveram em comum o questionamento da herança cultural recebida. (HELENA, 2003, p.05) Estes conceitos de renovação foram trazidos e disseminados no Brasil através das viagens de grandes intelectuais e artistas à Europa, que se posicionaram como questionadores dos padrões literários vigentes no cenário cultural da época. O acordo que fomentou a famosa Semana de Arte Moderna de 1922, consolidando o moderno e enriquecendo a linguagem literária de novas formas de expressão, era de que a arte encontrava-se cristalizada e ultrapassada. É o momento “heroico” do Modernismo. O impacto entre os movimentos das vanguardas europeias e as condições culturais e políticas que nos eram peculiares, como o nacionalismo, foi de extrema relevância para a concepção das principais características do moderno e sua forma multifacetada, como a liberdade formal SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 356 REVISTA SABERES LETRAS de uma nova linguagem; as individualidades independentes; as motivações subconscientes; a descontração e a irreverência; a paródia; o verso livre e a fala popular. A Semana ecoou na imprensa e abriu caminho para a difusão dos três princípios fundamentais do modernismo brasileiro, segundo Mário de Andrade: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; a estabilização de uma consciência criadora nacional. (HELENA, 2003, p.47) Dentre os que fizeram parte do nascimento do Movimento Modernista destacamse alguns nomes como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Graça Aranha e Oswald de Andrade. Em meio a estes intelectuais, artistas, defensores e criadores dos ideais de renovação estética, pode-se destacar Oswald de Andrade como o maior proliferador de estilos modernos e o principal influenciador dos Movimentos Concretista e Marginal. Escritor, polemista e autor de obras de efeito crítico, irônico e humorístico à luz de uma linguagem clara, sintética e moderna, suas obras retratam um olhar próprio e questionador, tecendo quase sempre uma crítica sobre o cotidiano ao seu redor, como é perceptível em suas obras. Representou, no Brasil, o papel de “anfitrião”, semelhante ao papel que outros autores desempenharam em capitais de grandes turbilhões artísticos, devido as suas longas viagens ao exterior e seu permanente contato com personalidades e artistas renomados. Destacou-se também na autoria de vários manifestos, dentre eles o Manifesto Antropófago, publicado na Revista da Antropofagia, em 1928, que define-se ao centro do nacionalismo como problemática central na arte moderna, questionando basicamente a estrutura política e econômica implantada no país pelos colonizadores, além do indianismo ufanista e os padrões repressivos de conduta pertencentes a sociedade patriarcal. Sua publicação foi considerada ultrajante e de mau gosto pelas elites e pela classe média. A metáfora da “devoração” significa a assimilação crítica dos valores transmitidos pela colonização com a finalidade de formar outros valores então reprimidos. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 357 [...] Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antonio de Mariz. [...] Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D.João VI. [...] A luta entre o que se chamaria Incriado e Criatura – ilustrada pela manifestação permanente do homem e seu Tabu. [...] Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. [...] Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama. (ANDRADE, 1928) No panorama político dos anos 30, a ascensão de Getúlio Vargas e a proclamação do Estado Novo despertaram em Oswald um desejo ainda maior de “desmascarar os mecanismos da opressão nacionais e internacionais” (SCHWARTZ, 1980). O Modernismo mostra-se inserido em uma totalidade histórica em continuidade. Ao término da Segunda Guerra mundial, surgem novas experimentações poéticas colocando em questão os padrões de criação conquistados pelos modernistas. A tendência é a de os novos poetas revigorarem o rigor formal do verso abandonando o poema-piada, voltando-se à investigação do comportamento e atitudes do ser humano (Drummond, Murilo Mendes, Cecília Meirelles, Vinicius de Moraes). A preocupação com o contexto sócio-político é deixada de lado. Oswald de Andrade, como o grande idealizador do acréscimo do humor e crítica na atitude poética, cai no ostracismo, mesmo antes de sua morte, sendo acusado de “só fazer piada.” No entanto, o humor presente em suas criações poéticas é um humor emanado de seu próprio caráter transpostos em suas obras, não se configurando em uma categoria poética. Poesia Concreta “O signo é contra a vida, a arte pretende ser um signo de recuperação da vida, memória da carne.” (PIGNATARI, 1971) Singular por sua proximidade as artes visuais, e dotado de características SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 358 REVISTA SABERES LETRAS contraditórias, o Movimento Concretista surge no segundo pós-guerra, onde o desejo de transformação e reconstrução está ainda mais aguçado. O abismo formado entre a poesia e os fatos reais pela Geração de 45, levou o núcleo inicial concretista, formado pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e por Décio Pignatari, a pesquisar novas formas de expressão poética. Interligados a Oswald de Andrade e unindo-se a músicos, artistas e seguindo tendências de poetas estrangeiros como Ezra Pound e Mallarmé, que já apresentavam inovações tipológicas em suas obras, os concretistas colocaram em questão os ideais modernistas clássicos, visando o enraizamento da Poesia Concreta. A nova poética repercutiu nacionalmente obtendo reações de apoio ou espanto e foi noticiada por jornais e revistas de grande circulação da época. Com a publicação do Plano Piloto da Poesia Concreta na edição nº 04 da Revista Noigrandes, assinado pelo trio criador do movimento, assim como a própria revista, os contatos internacionais são ampliados bem como as discussões oficiais acerca do tema. Desenham os poemas concretos, características como a substituição do eu lírico por uma superfície visual e gráfica que vem a desintegrar estruturalmente o verso, incorporando dimensões sonoras, gráficas, sintáticas e semânticas às palavras, trazendo para a poesia a presentificação da realidade. Como afirmado por SIMON e DANTAS (1982, p. 07), [...] A forma concreta buscada e defendida, opera uma atualização radical nos recursos materiais (métrica, rima, aliteração, paranomásia, cortes e repetições de frase, neologismos, inversões sintáticas, plasticidade da letra impressa, etc.) que se encontram dispersos e rarefeitos na poesia tradicional. Todas as características e particularidades presentes nas obras concretas têm a tarefa política de romper padrões estéticos tradicionais quebrando hábitos de leitura e formas pré-estabelecidas de comunicação, remetendo a cada poema uma espécie de mistério, enigma a ser desvendado e decifrado através da sensibilidade do leitor. Há uma ligação entre o mais antigo e o mais moderno resultando em uma intensa atividade teórica e crítica. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 359 (Haroldo de Campos - 1958) O grande foco da Poesia Concreta foi a problematização da consciência política de subdesenvolvimento e a produção de poesia que estivesse equiparada a uma sociedade mais moderna e a utopia de transformar a arte de uma sociedade livre. A Poesia Concreta teve diversas ramificações dentro do próprio cenário poético e artístico como, por exemplo, o surgimento da Poesia Praxis e do Poema Processo. A estóica Ditadura Militar implantada no Brasil primeiramente no governo Vargas, culminando em 1964 no Golpe Militar, ultrapassou o primitivo conceito difundido entre a sociedade de um governo que derrubou um estado reformista através de forças políticas internas e externas. Apesar da censura, as manifestações culturais e a crítica ainda mantiveram-se acesas e intensas. A representação que levou ao ápice todos os conceitos concretistas, por estar diretamente ligado aos meios de comunicação das grandes massas, foi o Movimento Tropicalista que entra em cena rompendo com os padrões das letras das músicas da época então estabelecidos pelo governo ditatorial, transformando suas próprias canções em um veículo de ataque político. Segundo a definição de PAIANO (1996), o Tropicalismo seria uma “mistura de influências positivas (antropofagia, concretismo) e negativas [...] a realidade tropical nacional seria uma “geléia geral”, não algo contínuo e homogêneo, mas uma coisa interrompida, fragmentária e mesmo contraditória.” As canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil, apresentadas pela primeira vez no III Festival da Canção exibido pela TV Record, chocaram os jurados e o público, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 360 REVISTA SABERES LETRAS por apresentarem uma mistura de instrumentos elétricos, palavras, gritos, instrumentos regionais e uma boa dose de agressividade na interpretação. A amplitude do Tropicalismo estendeu-se para o teatro, com o Grupo Oficina, para as artes plásticas, com as obras de Helio Oiticica e para o cinema, com as adaptações de Glauber Rocha, atraindo um público em sua maioria formado por estudantes ávidos pelas mensagens políticas contidas nas canções. Sobre a cabeça os aviões sob os meu pés os caminhões aponta contra os chapadões meu nariz eu organizo o movimento eu oriento o carnaval eu inauguro o monumento no planalto central do país [...] (Caetano Veloso – Tropicália - 1968) O “sufocamento” de todas essas manifestações artísticas se deu no ano de 1968, precisamente no dia 13 de dezembro, dia em que o governo militar decretou o Ato Institucional nº 5 em decorrência, principalmente, da crise geral da economia instalada no país e da desestabilização da base militar do governo, gerando falhas na condução da crise econômica e da política instalada. De acordo com CHIAVENATTO (1999), “[...] o ato dava tantos poderes ao presidente, aumentando a repressão e a censura à imprensa, que qualquer oposição real tornou-se impossível [...] o único caminho era a luta clandestina.” É o ano do apogeu histórico da cultura vanguardista e revolucionária. Durante os “Anos de Chumbo”, posteriores ao famigerado AI-5, o país sucumbiu à total miséria moral e política. O fortalecimento da censura, a severa repressão à liberdade de expressão e a adoção da tortura como prática política, contribuíram para o abalo profundo do panorama cultural da época. Em 1969, vários artistas e literatos foram presos e exilados do país, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque de Hollanda, Haroldo de Campos e Augusto de Campos. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 361 A minha gente hoje anda Falando de lado e olhando pro chão, viu? [...] Você vai ter que ver A manhã renascer E esbanjar poesia (Chico Buarque de Hollanda – Apesar de você – 1970) A Poesia Marginal dos anos 70 Em pleno ápice da repressão militar, no início da década de 70, após toda a construção (ou desconstrução) dos novos padrões estético-literários e culturais através do século XX, o cerne da nossa discussão é uma poesia não unificada e acusada de subverter os padrões literários clássicos dominantes, possuidora de uma realidade precária no que diz respeito ao alcance do público, porém detida em explorar e utilizar a palavra em toda a sua forma verbal, visual e oral. Trata-se da Poesia Marginal, símbolo da contestação social e política, da busca da liberdade de expressão e de um padrão de vida diferente daquele que estava instaurado no país. Questionadora de si mesma, rebelde e revolucionária, a nova poesia rompe com todo o hermetismo literário tradicional, abandona a expressão intelectualizada e se lança, de acordo com a crítica, de maneira “não-literária”. É o início da PósModernidade, um encontro de diversas tendências, onde não há preocupação com as coerências estilísticas classicizantes de outrora. Cada obra se transforma em única e exclusiva, sem limites cronológicos e espaço, importando somente sua característica enigmática e a interpretação pessoal do leitor. Este novo momento poético se deu a partir de uma contra-revolução, que tem como elemento principal a herança do radicalismo tropicalista estabelecendo um elo com os traços modernos Oswaldianos e vanguardistas, além do conceito concretista reformado e os elementos musicais revolucionários pós-tropicalistas. A Antropofagia se mostra mais do que presente, com a adoção do ideal de assimilação total para uma posterior devolução renovada. O Marginalismo tem como produto principal poemas de domínio público, segundo CAMPEDELLI (1994), os poetas jovens foram “contra as portas SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 362 REVISTA SABERES LETRAS fechadas da ditadura, contra o discurso organizado, contra o discurso culto e contra a poesia tradicional e universal”. Sendo assim, podemos reafirmar que a Poesia Marginal é a herança dos traços modernistas, questionados e modificados pelo concretismo, gerando o desabafo e protesto de uma geração reprimida e hermética, sobrevivente de um tempo nebuloso, a “geração AI-5.” [...] foi uma manifestação de denúncia e de protesto, uma explosão de literatura geradora de poemas espontâneos, mal-acabados, irônicos, coloquiais, que falam de um mundo imediato do próprio poeta, zombam da cultura e escarnecem a própria literatura [...] a poesia que os jovens poetas apresentaram distribuída de mão em mão, impressa em mimeógrafo, declamada em bate papos de botecos [...] redimensionou um conceito démodé de poeta, visto como alguém recolhido, sofrido e abatido. (CAMPEDELLI, 1995, p.10-11) Os muros ficaram tomados pelas pichações, as ruas de folhetos mimeografados. Colagens, paródias, jornais e revistas revelaram o nascimento e o florescimento de poesias espontâneas, dotadas de uma linguagem informal, irônica e bem humorada que conquistaram e estreitaram os laços entre o poeta e o leitor. Essa conquista do público jovem pela poesia marginal se dá a partir dos versos, utilizados como contestadores político-sociais de uma realidade cotidiana imediata. Há também uma identificação emotiva do leitor jovem com a poesia, visto que ela também é feita por jovens poetas. A precariedade da produção e veiculação das novas obras poéticas também atraiu os novos leitores, visto que as edições eram produzidas pelos próprios poetas e circulavam exteriormente às rodas comerciais dos livros. O valor poético transferira-se para o fascínio da atitude do lançamento independente, contribuindo, assim, para uma leitura mais aberta e menos mitificada. Como produção, adota-se a prática artesanal e o financiamento das próprias obras por parte dos autores já não era nova, pois já fora adotada por poetas como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 363 e João Cabral de Melo Neto. Porém, fazia parte da ideologia de oposição marginalista ao mercado editorial que sempre dificultou o acesso do público a literatura. (MATTOSO, 1981) defende que a produção clandestina era eficaz para o controle ideológico exercido sobre a literatura impressa na época, ou seja, os editores não queriam ver seus livros barrados pela censura ou apreendidos. Diversas fontes de pesquisa sobre a Poesia Marginal apontam como o “portavoz” do movimento, o poeta Torquato Neto seguido de Wally Salomão, por serem considerados “os que melhor representam as últimas tendências do tempo: verdadeiros pais fundadores do que seria essa vanguarda.” (CAMPEDELLI, 1995, p.33). Juntamente com os trabalhos de Chacal e Charles e Gilberto Gil, toda a “miscelânia” desse movimento mutante resultou, em 1972, na criação de uma das primeiras obras que caracterizam a poesia marginalista, Me segura qu’e eu vou dar um troço, publicada por Wally Salomão após a morte de Torquato Neto. Segundo HOLLANDA (2007), esta obra unida a estes dois autores são indispensáveis, pois marcam a virada do formalismo experimental para a nova produção poética de caráter informal. Um poeta desfolha a bandeira E a manhã tropical se inicia Resplandente, candente, fagueira Num calor girassol com alegria Na geleia geral brasileira Que o Jornal do Brasil anuncia É bumba- iê iê boi... Ano que vem, mês que foi, É bumba iê iê iê É a mesma dança meu boi [...] Um poeta desfolha a bandeira E eu me sinto melhor colorido, Pego um jato viajo, arrebento Com o roteiro do sexto sentido[...] (Torquato Neto e Gilberto Gil – Geleia Geral – 1968) Publicações alternativas disseminaram-se rapidamente nessa época, com destaque para o novo formato jornalístico, com publicações como Bondinho, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 364 REVISTA SABERES LETRAS Flor do Mal e O Pasquim (CAMPEDELLI, 1995). Na literatura, destaca-se o surgimento das revistas-símbolo da Poesia Marginal, como Navilouca, Pólem e Poesia em greve. Ao final dos anos 70, vários eventos afirmaram a poesia marginal como uma opção. Um acontecimento de grande destaque foi o Poetasia – chuva de poesia, que consistiu no lançamento de 40 mil folhetos do alto do Edifício Itália, no centro de São Paulo. Segundo o poeta LEMINSKI (1997), autor de várias obras lançadas, já nos anos 80 como Caprichos e Relaxos (1983), Agora é que são elas (1984) e La vie em close (1991), havia uma facilidade em se criar e ler poesias ficando as obras voltadas para o que jamais deixara de ser: uma arte aplicada ao fluxo verbal. Paulo Leminski foi um verdadeiro “fabricador” de sensações. Seus versos são concisos, muito rápidos e magnéticos, visto que ele “conjugava a densidade fulminante de haicais com a loucura da contracultura, o coloquialismo e o humor de nosso primeiro modernismo com sua profunda erudição” (VAZ, 2001). O assassino era o escriba Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente. Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida, regular com um paradigma da 1ª conjugação. Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial, ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito assindético de nos torturar com um aposto. Casou com uma regência. Foi infeliz. Era possessivo como um pronome. E ela era bitransitiva. Tentou ir para os EUA. Não deu. Acharam um artigo indefinido em sua bagagem. A interjeição do bigode declinava partículas expletivas, conetivos e agentes da passiva, o tempo todo. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 365 Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça. (LEMINSKI, 1985, p. 137) (LEMINSKI, 1985, p.125) Ainda na década de 70, foram publicadas algumas antologias com o objetivo de organizar a produção da poesia Marginal. Dentre elas, uma das que mais se destacou foi 26 poetas hoje, em 1975, que reúne os trabalhos de vinte e seis poetas cariocas e foi organizada por uma das primeiras estudiosas desta manifestação poética, Heloísa Buarque de Hollanda¹. A obra contém, além da reunião de obras de alguns poetas cariocas, comentários críticos sobre o marginalismo e os argumentos da autora acerca da escolha de seu objeto de pesquisa. Não quis que esta antologia fosse o panorama da produção poética atual, mas a reunião de alguns dos resultados reais significativos de uma poesia que se anuncia já com grande força e que, assim registrada, melhor se oferece a uma reflexão crítica [...]. Entretanto como o fato é novo e polêmico e a discussão apenas se inicia, achei mais justo não me restringir apenas à chamada poesia marginal, que integra parte substancial da seleção, mas estendê-la a outros poetas que, de forma diferenciada e independente, percorrem o mesmo caminho. (HOLANDA, 2007, p.14) SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 366 REVISTA SABERES LETRAS Nesta obra, a principal análise da autora quanto ao fenômeno marginalista se refere a seus traços paradoxais. O olhar é voltado para a ideia de uma poesia aparentemente leve e bem humorada, mas que, em suas entrelinhas, revela a realidade de uma geração marcada pela imposição de limites, através da censura, cerceando sua liberdade. Para uma definição concisa do que é a poesia marginal, a autora argumenta que, devido ao ecletismo das produções, elas não podem ser consideradas fruto simplesmente de uma “tendência” ou “movimento”, mas sim que [...] essa poesia seria uma alternativa à hegemonia das vanguardas, da tradição cabralina bastante influente naquele momento, e que parecia representar uma retomada do modernismo de 1922 [...] tomando por base o uso do humor, a invasão dos fatos insólitos e cotidianos no território literário, a presença de uma dicção trabalhadamente informal no olimpo poético, o desejo renitente de aproximar, com um só golpe de linguagem, arte e vida. (HOLLANDA, 2007, p. 260) Os trabalhos poéticos que compõem a obra 26 poetas hoje obedeceram a um critério de escolha pautado na variedade de estilo dos poetas e suas poesias, apesar do momento demasiadamente rigoroso da censura no país. A publicação do livro não foi muito bem recebida pela crítica e pela academia. Um dos argumentos apresentados por eles foi quanto à inadequação do uso de palavras de baixo calão, que faziam dos poemas marginais obras “não-poéticas”, mas sim um material de cunho especificamente sociológico. Fazem parte dessa antologia trabalhos de poetas como José Carlos Capinan, Ana Cristina César, Torquato Neto, Chacal, Charles, Roberto Schwarz, Waly Salomão, entre outros, e neles são relatadas experiências cotidianas em um formato de diário, e onde podemos encontrar todas as características marginalistas aqui citadas que compõem o cenário poético setentista. [...] Aqui estão os arcanjos: o nome dele, sacrifício; o meu, clemência. Na multidão a demência se anuncia E eu grito entre meu gesto e o precipício. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 367 Por que não digo E não exalto a vertigem? Por que não digo que a minha juventude se fecha atrás do refúgio de um poema? [...] (Capinan – Anima – in: HOLLANDA, 2007 p.69) Também eu saio à revelia e procuro uma síntese nas demoras cato obsessões com fria têmpera e digo do coração: não soube e digo da palavra: não digo (não posso ainda acreditar na vida) e demito o verso como quem acena e vivo como quem despede a raiva de ter visto (Ana Cristina César – Psicografia - in: HOLLANDA, 2007, p.142) [...] uma palavra escrita é uma palavra não dita é uma palavra maldita é uma palavra gravada como gravata que é uma palavra gaiata como goiaba que é uma palavra gostosa (Chacal – Papo de Índio – in: HOLLANDA, 2007, p.223) olho tapado no joelho outro tapeando entre as pernas conversas caretas de artistas fardados quadro rasgado no meio da parede confiança em mim (Charles – Circo abafado - in: HOLLANDA, 2007, p.232) [...] O cidadão que vejo no espelho é mais moço que eu mais eriçado que eu mais infeliz que eu SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 368 REVISTA SABERES LETRAS Roberto Schwarz – Ulisses - in: HOLLANDA, 2007, p.85) Considerações finais Podemos concluir através do presente trabalho, sem a impossível pretensão de finalizar a discussão acerca do tema, que a explosão da Poesia Marginal dos anos 70, no Brasil, e seu espantoso número de poetas não surgiram de um vazio sem fundamento e descontextualizado, mas foram, sim, fruto do amplo processo de modificações em nosso cenário literário associado aos ideais de livre criação, do humor como atitude poética relativizada no marginalismo e de uma época e um momento político em que os sentimentos revolucionários e de liberdade de expressão estavam mais do que aflorados. O único vazio existente estava no reprimido cenário político-cultural dos anos 70. A novidade de um novo panorama poético com um produto original, de fácil acesso, ideológico e dramático, biograficamente falando, despertou e recuperou o interesse do jovem público pela leitura, por levar a uma proximidade e uma certa identificação entre o poeta e o leitor. Este, por sua vez, se sente entendido pelo poema e pelo poeta. O marginalismo faz um resgate das propostas do Modernismo dos anos 20, porém vai além com sua marca coloquialista e despreocupação com os traços estilísticos tradicionais, inserindo e exibindo a poesia marginal das mais diversas formas e nos mais diversos ambientes, transformando-a em um fenômeno difícil de ser ignorado e complexo de ser explicado na totalidade. Referências ALENCAR, C; CARPI, L; RIBEIRO, M.V. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. In Revista de Antropofagia, Ano 1, n° 1, maio de 1928 CARVALHO, J. M. A Construção da ordem. A elite política imperial. Rio de Janeiro: Campos, 1980. CHIAVENATO, J.J. O golpe de 64 e a ditadura militar. São Paulo: Moderna, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 369 1994. CAMPEDELLI, S. Y. Literatura, história e texto. São Paulo: Saraiva, 1994. _________________. Poesia Marginal dos anos 70. São Paulo: Scipione, 1995. HELENA, Lúcia. Modernismo brasileiro e vanguarda. 3.ed. São Paulo: Ática, 2000. HOLLANDA, Heloísa Buarque (Org). 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007. LEMINSKI, P. Caprichos e Relaxos. 3ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. ____________. Ensaios e anseios crípticos. Curitiba: Pólo Editorial do Paraná, 1997. MATTOSO, Glauco. O que é poesia marginal. São Paulo: Brasiliense, 1981. PAIANO, Enor. Tropicalismo : bananas ao vento no coração do Brasil. São Paulo: Scipione, 1996. TELES, G. M. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro. 17 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. VAZ, T. Paulo Leminski: o bandido que sabia latim. Rio de Janeiro: Record, 2001. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 353 a 369 set. / dez. 2011 370 REVISTA SABERES LETRAS SOBRE A DIMENSÃO MÍSTICA DO RIO NA OBRA DE GUIMARÃES ROSA Mauro Leite Teixeira1* Vera Márcia Soares de Toledo2** Resumo Uma reflexão sobre o rio no imaginário e na obra literária curta de João Guimarães Rosa, a partir do conto “A terceira margem do rio”. Palavras-chave: Narrativa, imaginação literária, rio, fluxo contínuo. Abstract: A reflection about the river and the imagination in the literary narrative of João Guimarães Rosa, principally in “A terceira margem do rio”. Keywords: Narrative, literary imagination, river, flux. “Quem desconfia fica sábio.” J. Guimarães Rosa Muitas são as possibilidades de leitura da obra de Guimarães Rosa. Ando “ruminando” o conto: “A Terceira Margem do Rio”, há algum tempo. Nesse conto, um homem do sertão de Minas, cumpridor, ordeiro, positivo e quieto, enigmaticamente, entra numa canoa, de pau de vinhático, e vai viver no meio do rio, sem nunca mais tocar em terra, resistindo ao apelo de sua família para que volte. Seu filho permanece à beira do rio e não corresponde, quando desafiado a substituir o pai na canoa. Em consequência, vai ficar para o resto da vida paralisado pelo remorso. 1- * Engenheiro e graduando em História pela Faculdade Saberes. Autor deste trabalho. Endereço eletrônico: [email protected]. 2- ** Professora Mestre em Estudos Literários da Faculdade Saberes. Orientou e revisou este trabalho. Endereço eletrônico: [email protected]) SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 370 a 377 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 371 A paisagem dos gerais em toda a sua beleza selvagem, o rio, a gente rude do sertão, vaqueiros, jagunços, cantadores, prostitutas, sitiantes, pertencem ao universo e à peculiar capacidade de transmissão de seu mundo, pelo escritor. Desde sua meninice, disse Guimarães Rosa em entrevista, o rio habita o seu imaginário: [...] Aproveitar um fiozinho d’água, que vinha do posto das lavadeiras, e mudar-lhes duas vezes por dia o curso, fazendo-o de Danúbio ou de São Francisco, ou de Sapakral-la (velho nome inventado), com todas as curvas dos ditos, com as cidades marginais marcadas por grupos de pedrinhas; tudo isso sob o vôo matinal das maitacas de Nhô Augusto Matraga, no quintal [...]. (Rosa, 1974, p. 11) No cenário presente no conto e em toda a obra literária do escritor, o rio aparece com uma dimensão relevante e mística. É como se fosse, também, um personagem vivo com mensagem a ser decifrada. A obra “O Burrinho Pedrês”, do livro Sagarana, é o relato sugerido por um acontecimento real passado no sertão de Minas com um grupo de vaqueiros na travessia de um córrego cheio. “Noite feia! Até hoje ainda é falada, a grande enchente do Córrego da Fome, com oito vaqueiros mortos, indo córrego abaixo, de costas [...]” (ROSA, 1984, p. 78). Somente sobreviveu à fúria da enchente a montaria do velho burrinho que sentiu o “[...] tempo de escolher o rumo e fazer parentesco com a torrente [...]” (ROSA 1984, p. 75). O burrinho, denominado “Sete de Ouros”, parece captar e entender a linguagem do rio: “(...) sem susto a mais, sem hora marcada, soube que ali era o ponto de se entregar, confiado, ao querer da correnteza[...]” (ROSA, 1984, P. 79) e revelar sua sabedoria, salvando o vaqueiro de também morrer afogado. No livro A Hora e a Vez de Augusto Matraga, o personagem Nhô Augusto, no retorno, em busca de sua hora e sua vez, se extasiava com as coisas bonitas, e o rio simbolizava a beleza de se espiar: [...] As estradas cantavam. E, uma vez, teve de escapar depressa, para a meia encosta, e ficou a contemSABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 370 a 377 set. / dez. 2011 372 REVISTA SABERES LETRAS plar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel de uma boiada de duas mil cabeças, que rolava para o Itacambira, com a vaqueirama encourada, cantando cantigas do alto sertão [...] (ROSA, 1984, p 376). No conto “Duelo”, do livro Sagarana, Turíbio Todo, nascido à beira do Borrachudo, seleiro de profissão, a partir de uma morte de vingança por engano, envolve-se numa contenda. O seleiro que “iludido por grande parecença” eliminara não Cassiano Gomes, o amante de sua mulher, de grandes olhos bonitos de cabra tonta, mas seu pacato irmão. Turíbio Todo soube do erro, ao subir no estribo. “Enterrou as esporas e partiu desmanchando poeira no chão” (ROSA, 1984 p. 160). Cassiano Gomes acompanhou o corpo do irmão ao cemitério e depois comprou a besta douradinha e partiu no encalço de Turíbio Todo para acertar as contas. Busca de pistas e rastros “sempre beirando o Guaicuí, que só vadeou no lugar bonito”. No cenário desse duelo, o rio é descrito como se tivesse vida, como um bicho: [...] ”altos são os montes da Transmantiqueira, belos os seus rios, calmos os seus vales; e boa é sua gente. [...] “E deu com um rio, verde e guardado, um rio que a gente encontra sempre assim de repente, rio vivo, correndo por entre os matos, como um bicho” (ROSA, 1984, p.174). Do mesmo livro Sagarana, o conto “Sarapalha” narra o drama de dois barranqueiros. Primo Argemiro e Primo Ribeiro, ambos sofrendo com a maleita e com a saudade da Prima Luísa, mulher do Primo Ribeiro, que fugira com o boiadeiro da Iporanga. Primo Ribeiro pedia insistente que Primo Argemiro recontasse a estória da moça enfeitiçada que fugiu com o capeta. Servia como alento. A prima Luísa não foi rio abaixo com outro... Foi trem-de-ferro que levou. Mas para o homem do sertão a fuga pelo rio seduzida pelo capeta acalentava. O rio pertence a seu mundo e povoa suas crenças. Gostava de acreditar que a prima Luísa fora seduzida pelo capeta e não o abandonara por simples querer. - Mas, a estória, Primo!...Como é?... Conta outra vez... ”Foi o moço-bonito que apareceu, vestido com roupa de dia-de-domingo e com viola enfeitada de fitas... e chamou a moça p’ra ir se fugir com ele”... “Então a moça, que não sabia que o moço-bonito era o capeta, ajuntou suas roupinhas melhores numa trouxa, e foi com ele na canoa descendo o rio...” SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 370 a 377 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 373 - ...”Então quando os dois estavam fugindo na canoa, o moço-bonito, que era o capeta, pegou na viola, tirou uma toada, e começou a cantar: - “Eu vou rodando rio-abaixo, Sinhá... Eu vou rodando rio-abaixo, Sinhá...” ...”Ai a canoinha sumiu na volta do rio... E ninguém não pôde saber p’ra onde foi que eles foram, nem se a moça, quando viu que o moço-bonito era o diabo, se ela pegou a chorar... ou se morreu de medo... ou se fez o sinal da cruz... ou se abraçou com ale assim mesmo, porque já lhe tinha amor... (Rosa, 1984, p. 147 e 148) A preocupação com a questão ambiental, tão presente nos dias de hoje, aparece no conto “Uma estória de amor (festa de Manuelzão)”. O desaparecimento de um riachinho, que desaguava no Córrego das Pedras, é uma tragédia semelhante à morte de um menino inocente. É como se o riacho fugisse do mundo, dito civilizado. “Um riachinho xexe, puro, ensombrado, determinado no fino, com rogojeio e suazinha algazarra. [...] Então deduziram de fazer a casa ali, traçando de se ajustar com a beira dele, num encosto fácil, com piso de lajes, a porta-da-cozinha, a bom de tudo que se carecia. Porem, estrito cabo de um ano de lá se estar, e quando menos esperassem, o riachinho cessou”. (...) “Foi no meio duma noite, indo para a madrugada, todos estavam dormindo. Mas cada um sentiu, de repente, no coração, o estalo do silenciozinho que ele fez a pontuda falta de toada, do barulhinho. Acordaram, se falaram. Até as crianças. Até os cachorros latiram. Ai, todos se levantaram, caçaram o quintal, saíram com luz, para espiar o que não havia. (...) E o que a tocha na mão de Manuelzão mais alumiou: que todos tremiam magoa nos olhos. Ainda esperaram ali, sem SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 370 a 377 set. / dez. 2011 374 REVISTA SABERES LETRAS sensatez; por fim se avistou no céu a estrela-d’alva. O riacho soluço se estancara, sem resto, e talvez para sempre. Secara-se a lagrimal, sua boquinha serrana. Era como se um menino sozinho tivesse morrido” (ROSA, 2001, p,163). Mas é na sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas, que o rio compõe o cenário com maior destaque: A palavra “vereda” do título não tem o sentido corrente de “caminho”, mas sim o sentido regional dos campos dos gerais de “regato” ou “riozinho”. O rio faz parte até do nome do personagem narrador. A professora Kathrin H. Rosenfield, na publicação: Grande Sertão: Veredas – Roteiro de Leitura menciona: “o nome Riobaldo permite ser decomposto em dois elementos: O que designa o fluxo e a movimentação mutante da água (ri ) e o elemento baldo que evoca a palavra dantesca baldanza, traduzível como saborear preguiçoso”. (ROSENFIELD, 1992, p. 88). No relato de Riobaldo Tatarana de suas “erranças”, o rio está sempre presente nos acontecimentos por ele relembrados. No encontro com Diadorim: Riobaldo, ainda menino, acabava de sarar de uma doença e sua mãe tinha feito promessa; tirar esmola, metade para pagar uma missa, metade para se pôr dentro de uma cabaça bem tapada e breada, que se jogava no São Francisco, a fim de ir, Bahia abaixo, até esbarrar no Santuário do Santo Senhor Bom-Jesus da Lapa. Lugar de tirar esmola era no porto. Riobaldo portando uma sacola ia todos os dias ao porto das canoas, na beira do barranco do Rio-de-Janeiro, afluente, que dali abaixo meia-légua, entra no São Francisco. Ele esperava por lá, naquele parado, raro que alguém vinha. Queria novidade quieta para seus olhos. “Ai, pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos do que eu, ou devia regular minha idade. Ali estava com um chapéu-de-couro, de sujigola baixa, e se ria para mim. [...] E era um menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos – grandes verdes [...]”. (ROSA, 1979, p. 80) No romance Grande Sertão: Veredas, o Urucuia, afluente do São Francisco, é o rio do coração de Riobaldo, sempre presente nas suas andanças. O jagunço fala do rio como se fosse com um amigo a lhe acompanhar por toda a vida. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 370 a 377 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 375 “Ah, o meu Urucuia, as águas dele são claras certas. Rios bonitos são os que correm para o Norte, e os que vêm do poente – em caminhos para se encontrar com o sol. [...] O meu Urucuia vem claro, entre escuros. Vem cair no São Francisco, rio capital. O São Francisco partiu minha vida em duas partes. Diadorim, os rios verdes. Como os rios não dormem ( ROSA, 1979, p. 235). “O rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo. O Urucúia é um rio, o rio das montanhas. [...] Recolhe e semeia areias. [...] Mesmo na hora que eu for morrer, eu sei que o Urucúia esta sempre, ele corre (ROSA, 1979, p. 329). Nas suas divagações, Riobaldo recorda os dias felizes em terras da Fazenda São Joãozinho, e o rio continua agarrado às suas lembranças: [...] os dias que passamos ali foram diferentes do resto de minha vida. Em horas andávamos pelos matos, vendo o fim do sol nas palmas de tantos coqueiros macaúbas, e caçando, cortando palmito e tirando mel da abelha-de-poucas-flores, que arma sua cera cor-derosa. Tinha a quantidade de pássaros felizes, pousando nas crôas e nas ilhas. E até peixe do rio se pescou. [...] Então eu vi as cores do mundo. De manhã, o rio alto branco, de neblim: e o ouricurí retorce as palmas [...] ( ROSA, 1979, p. 115). No ambiente sombrio onde houve ou não houve o pacto entre Riobaldo e o diabo o rio também está presente: [...] Meia-légua dali, outro córgo-vereda, parado, sua água sem-cor por sobre de barro preto. Essas veredas eram duas, uma perto da outra; e logo depois, alargadas, formavam um tristonho brejão, tão fechado de moitas de plantas, tão apodrecido que em escuro: marimbús que não davam salvação. Elas tinham um nome conjunto – que eram as Veredas-Mortas [...] ( ROSA, GSV, 1979, p. 303). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 370 a 377 set. / dez. 2011 376 REVISTA SABERES LETRAS No julgamento de Zé Bebelo na Fazenda Sempre-Verde, o personagem utiliza a imagem do rio para descrever o ambiente: “[...] Aquele povo – rio que se enche com intervalo dos estremecimentos, regular, como o piscar de olho dum papagaio [...]” (ROSA, GSV, 1979, p.197). Para relatar sua dor, quando descobre, após a morte, que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita, Riobaldo clama, relembrando as águas do rio. “Diadorim era uma mulher. [...] Uivei. Diadorim! Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero [...]” ( ROSA, 1979, p.454). Refletindo sobre “A terceira margem” verificamos que o rio no conto é descrito como: “[...] largo, de não se poder ver a forma de outra beira”. “Grande, fundo, calado que sempre [...]” (ROSA, 1974, p.51). Calado?! Decifrar este enigma e sua mensagem é um desafio, pois, a terceira margem nunca é mencionada a não ser no título. O escritor dizia: “[...] amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem [...] amo mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade” (DRUMOND, 2008, p.284). Essa eternidade parece estar presente no texto: “Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais [...]”. “Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos [...]” (ROSA, 1974, p.p. 54,55). Esta descrição, contida no conto, ilumina a dimensão da terceira margem insinuada no texto. O poeta romano Ovídio dizia: “[...] não há coisa alguma que persista no universo. O próprio tempo passa com um movimento contínuo, como um rio [...]” (CHAUÍ, 2002, p. 24). Heráclito de Éfeso considerava a Natureza como um fluxo perpétuo. “[...] Não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque as águas nunca são as mesmas e nós nunca somos os mesmos [...]” (CHAUÍ, 2002, P.110). Para Guimarães Rosa “[...] o nosso tempo é um tempo de nascimento e passagem para um novo período. A gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda e num ponto muito mais em baixo, bem diverso do que em primeiro se pensou [...]” ( ROSA, 1979, p. 90). O pai dentro da canoa naqueles espaços do rio para dela não mais saltar. Vivia; esperando o abrigo da morte. O rio, essas águas que não param, saindo do ventre da terra é como a vida e o SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 370 a 377 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 377 tempo. Tenho então, minhas desconfianças, de que a terceira margem do rio é o seu movimento contínuo, seu fluxo perpétuo na busca do infinito. Rumo à vastidão do mar. REFERÊNCIAS CHAUÍ, Marilena. Convite a Filosofia. 12ª Ed. São Paulo: Ática, 2002. DRUMOND, Josina Nunes. As Dobras do Sertão. São Paulo: Annablume, 2008. ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984 ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguelim. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. J. Olympio, 1979. ROSENFIELD, Kathrin H. Grande Sertão: Veredas - Roteiro de Leitura. São Paulo: Ed. Ática. 2002. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 370 a 377 set. / dez. 2011 378 REVISTA SABERES LETRAS A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM CIRANDA DE PEDRA Rubiani Boldrini da Silva1* Karina de Rezende Tavares Fleury2** RESUMO Este artigo tem como objetivo discutir um dos aspectos da ficção da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, que é a representação do feminino no romance Ciranda de Pedra. Para tanto, necessário se faz analisar a trajetória da mulher brasileira no contexto social e literário, nos séculos XIX e XX, e abordar alguns dados da vida desta escritora nas possíveis ligações entre ficção e autobiografia. Serão feitas algumas considerações a respeito da estrutura familiar e do declínio do patriarcado presentes na narrativa. Dentro da visão do feminino serão abordados os seguintes aspectos: submissão, transgressão e liberdade feminina. Lygia vai dialogar com esses temas já retratados na ficção, principalmente pela ótica masculina, e de certa forma subvertê-los e ironizá-los através de suas marcantes personagens femininas. A leitura detalhada de seu romance Ciranda de Pedra mostra como a escritora retoma a sociedade burguesa tradicional para questionar a tradição e os mitos em torno da mulher. Conceitos teóricos de Elódia Xavier, Simone de Beauvoir e outras pensadoras feministas servirão de contraponto para esta leitura. Palavras-Chave: Lygia Fagundes Telles. Ciranda de Pedra. Literatura Feminina. Feminismo. Patriarcado. 1- ∗ Pós-Graduanda em Alfabetização e Letramento nas Séries Iniciais e na EJA pelo Centro de Estudos Avançados em Pós-Graduação e Pesquisa (CESAP), Vitória, ES. Graduada em Letras com habilitação em Português/Inglês pela Faculdade Saberes (2011), Vitória, ES. Docente da rede privada em Vitória. E-mail: [email protected] 2- ** Doutoranda em Letras (área de concentração: Estudos Literários - UFES). Mestre em Letras (área de concentração: Estudos Literários – 2008 - UFES). Pós Graduada em Teoria Psicanalítica e Práticas Educacionais (2007). Graduada em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (1991). Graduada em Direito pela UVV (1991). E-mail: [email protected] SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 379 Abstract: This article aims to discuss an aspect of fiction by Brazilian writer Lygia Fagundes Telles, which is the representation of women in the novel Ciranda de Pedra. To this end, it is necessary to analyze the trajectory of Brazilian women in social and literary context in the nineteenth and twentieth centuries, and address some of the data life of this writer on possible links between fiction and autobiography. Are some considerations about the family structure and the decline of patriarchy present in the narrative. Inside view of the feminine will therefore consider the following: submission, transgression and freedom of women. Lygia will engage with these issues already portrayed in fiction, especially the male perspective, and a way to subvert them and mock them through their remarkable female characters. A close reading of his novel Ciranda de Pedra shows how the writer takes the traditional bourgeois society to question tradition and myths around the woman. Theoretical concepts of Elodea Xavier, Simone de Beauvoir and other feminist thinkers serve as a counterpoint to this reading. Keywords: Lygia Fagundes Telles. Ciranda de Pedra. Women’s Literature. Feminism. Patriarchate. Considerações preliminares Assim como o tempo, fosco ou luminoso, os homens serão maus ou serão bons e a vida fará o seu giro imperturbável, desfazendo e criando entre declínios e triunfos. Júlia Lopes de Almeida Lygia Fagundes de Azevedo nasce na capital paulista, em 19 de Abril de 1923. Foi a terceira mulher a tomar posse na Academia Brasileira de Letras, eleita em 1985 a fim de suceder Pedro Calmon. A escritora foi empossada em 12 de maio de 1987, na cadeira de número 16. Em 1952, Lygia começa a escrever seu primeiro romance, Ciranda de Pedra. Em 1954, as Edições O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, publicam-no. A presença de Lygia Fagundes Telles na vida literária brasileira é constante também pela sua participação em congressos, debates e seminários. Sua obra tem merecido a melhor crítica no Brasil e no exterior, com publicações que alcançaram demasiado sucesso. Sobre a escritora, Nelly Novaes Coelho assevera que SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 380 REVISTA SABERES LETRAS [...] Lygia Fagundes Telles vem sendo, dentro da literatura contemporânea, uma das mais lúcidas, apaixonadas e apaixonantes testemunhas desse nosso mundo-em-crise, o belo horrível mundo burguês, alicerçado em razões, certezas e verdades absolutas que já cumpriram sua tarefa no contínuo processo de evolução da vida e do mundo (COELHO, 1993, p. 236). O universo ficcional da autora é representado com refinada sensibilidade para refletir as circunstâncias de uma relação familiar complexa, além de pontos delicados da condição humana representados através de personagens cínicos, amargos e cruéis. A partir de Bosi, depreendemos que Telles evidencia a relação dramática de suas personagens com o passado, o reino de posse e de perda. Para Monteiro (1980, p. 47), assim é Lygia: “Da vida para a literatura e daí para a vida de novo.” A autora procura, através da escrita, representar a fragilidade social mesclada na sedução do imaginário e da fantasia, utilizando recursos metafóricos a fim de adestrar essa complexidade. Em Lygia, a temática da ausência do pai e da desestruturação da família é algo excessivamente recorrente, e está permeada de elementos de fatalidade e de culpa. Entretanto, percebemos o tema mesclado à solidão, à morte, à loucura, à doença, à fantasia e à infidelidade, por exemplo. É Xavier, quem justifica a influência da desestruturação da instituição familiar ao sustentar que “A família tem uma função importante, nesses romances, na medida em que ela atua como ausência; é a desestruturação familiar a responsável pelos conflitos, sobretudo, das personagens jovens” (XAVIER, 1998, p. 44- 45). Destarte, o caráter exploratório dos romances de Lygia ficcionalizam as relações familiares da burguesia paulistana, na década de 50, cuja ausência do pai aponta para a decadência de um sistema patriarcal e para a consequente perda dos referenciais. Essencialmente, as estruturas familiares de Telles são as responsáveis pelos dramas de suas personagens femininas que, por falta de adequação ao modelo dominante, sentenciam-se como culpadas e inferiores para o convívio em sociedade. Para tanto, a mulher passou a ser, então, a responsável pela geração SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 381 e criação de novos homens e mulheres com novos valores instituídos: ao homem atribuiu-se o papel de provedor e, à mulher, o papel de prestadora de serviços dentro da casa. Nesse conjunto, percebemos que Telles, de maneira extraordinária, salienta que as mudanças sociais vêm sugerindo novas formas de relacionamento, que escapam à rigidez e à pobreza das instituições, contribuindo, a priori, para a difusão de novos valores na sociedade. Segundo Gotlib3 (1998), a mulher, no seu espaço familiar, de que se vê na maioria das vezes prisioneira, e a dimensão coletiva em que descortina a consciência de seu não-espaço, marginal e massacrado, serão assuntos de vários romances femininos, especialmente os de Lygia Fagundes Telles. Em suas obras, a escritora se apropria do desfalecimento da família, e segundo Elódia Xavier, tem marcado em seu universo ficcional, a ausência do pai originário do declínio do patriarcado, que por sua vez, corrobora para a desestruturação da família burguesa. A ausência do pai é uma ausência estrutural, sintomática da decadência do patriarcado e da conseqüente perda dos referencias. Ora, o universo ficcional de Lygia Fagundes Telles é marcado por essa ausência do pai, isto é, pela desestruturação familiar; e, daí, decorrem, como teremos oportunidade de ver, os conflitos das personagens (XAVIER, 1998, p. 44). Ao longo de seus estudos, Xavier discorre como o processo histórico patriarcal influenciou na formação da família brasileira, e porque o homem, historicamente, sempre representou o centro das decisões familiares. Assim, a literatura de autoria feminina expõe como temas mais recorrentes a transfiguração, a transgressão, a desconstrução e a representação da família. O verbete família tem origem no latim famulus, que significa: conjunto de servos e dependentes de um chefe ou senhor. Entre os subordinados da família grecoromana incluem-se a esposa e os filhos, seus fâmulos, servos livres e escravos 3- Cf. GOTLIB. Nádia Battella. A literatura feita por mulheres no Brasil. Disponível em < http:// www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm >. Acesso em 07 Out. 2011. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 382 REVISTA SABERES LETRAS (PRADO, 1985). Um conceito por demais cristalizado na sociedade ocidental que, graças ao esforço de pesquisadores de diferentes áreas, desde o final do século XX, vêm perdendo espaço, porém resistindo no senso comum. Para Bock, a mais completa definição de família foi descrita pelo psicanalista francês Jacques Lacan: Entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura. Se as tradições espirituais, a manutenção dos ritos e dos costumes, a conservação das técnicas e do patrimônio são com ela disputados por outros grupos sociais, a família prevalece na primeira educação, na repressão dos instintos, na aquisição da língua acertadamente chamada de materna. Com isso ela preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico (Lacan, 1999, p. 250). A autora acrescenta que a família, como primeiro grupo de pertencimento do indivíduo é, por excelência, em nossa sociedade, o espaço em que esse aprendizado ocorre. Ela ressalta que esse processo de aprender pode transcorrer também em qualquer grupo humano do qual o indivíduo participe em seus primeiros anos de vida. A história da instituição familiar no Brasil tem como ponto de partida o modelo patriarcal, importado pela colonização e adaptado às condições sociais de um país latifundiário e escravagista. O patriarca era o detentor das posses, não apenas de seu latifúndio, mas de sua família, de seus agregados e escravos. Portanto, chega-se à conclusão de que os objetivos da família antiga se parecem com os objetivos da família moderna. Ambos os tipos de família têm por função contribuir para a reprodução biológica e social da sociedade, procurando de uma geração a outra manter e, se possível, melhorar a posição da família no espaço social. No entanto, não mais vista exclusivamente como algo sagrado e natural, a família burguesa se viu frágil e consciente de sua desordem, mas preocupada em recriar novas concepções entre os homens e as mulheres. Segundo Therborn (2000, apud FILGUEIRAS, ano 2009, p. 14), a família patriarcal, ligada intrinsecamente à figura do pai como personagem de autoridade, com o advento da modernidade, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 383 não desapareceu por completo, da mesma forma, que os arranjos familiares reconstituíram-se e ainda persistem na prática e na mentalidade comum. Em uma reflexão sistemática sobre o declínio do patriarcado, vários elementos variáveis se fazem presentes. Precedentemente de falarmos no fim, ou no que o sueco Goran Therborn, sustenta ser o início da derrocada do patriarcado, fazse necessário uma abordagem teórica acerca da origem do patriarcado, na qual, encontram-se lendas e cultos religiosos abrangendo o imaginário local. A palavra patriarcado deriva do grego pater, e se refere ao determinado território ou jurisdição no qual o patriarca governa. O uso do termo, no sentido de orientação masculina da organização social, aparece, pela primeira vez, entre os hebreus, no século IV, para qualificar o líder de uma sociedade judaica; o termo seria originário do grego helenístico para denominar um líder de comunidade. Ideologicamente, utiliza-se esse conceito a fim de denominar uma organização social, cujo homem é a maior autoridade. O patriarca tinha sob seu poder a mulher, os filhos, os escravos e os vassalos, além do direito de vida e de morte sobre todos estes. O conceito de patriarcado é apontado, em alguns casos, de maneira genérica, ocasionando polêmica, pois sua definição ainda está presa às interpretações patriarcais de seu significado, permanecendo esporadicamente compreendido no seu sentindo literal de direito paterno, e associado diretamente às relações familiares. Portanto, faz-se necessária a distinção entre patriarcado e paternidade. O poder do pai de família teve seu reinado entre a Idade Média até o século XVII. No final desse século, começa o declínio. O livro Casa-grande & senzala, publicado em 1933, reflete a formação colonial e o patriarcado no Brasil a partir da ocupação portuguesa no nordeste litorâneo. Para Freyre, a formação da sociedade brasileira, via nordeste, articulou-se em torno de três elementos: o patriarcado, as etnias e culturas e o trópico. Entende-se que outros pontos foram importantes nessa formação como clima, raça e biologia. Para tanto, afirma o autor: A formação patriarcal do Brasil explica-se, tanto nas suas virtudes como nos seus defeitos, menos SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 384 REVISTA SABERES LETRAS em termos de “raça” e de “religião” do que em termos econômicos, de experiência de cultura e de organização da família, que foi aqui a unidade colonizadora. Economia e organização social que às vezes contrariaram não só a moral sexual católica como as tendências semitas do português aventureiro para a mercancia do tráfico (FREYRE, 2006, p. 47). Na sociedade marcada pelos ideais herdados do patriarcado, o cenário era masculino, a vida pública era atributo do homem, e à mulher, restava o âmbito do lar, da vida privada. Presumidamente, nota-se que a situação da mulher é semelhante à do escravo, uma vez que esta se encontra também em uma espécie de aprisionamento. Essa similaridade na condição de mulheres e negros vai ser mantida até o final da escravidão e, mesmo após a abolição, usa-se a mesma argumentação como parte de uma estratégia para mantê-los submetidos ao patriarcado. Escritoras contemporâneas costumam destacar em suas produções literárias o processo ideológico da construção da mulher em relação ao seu sexo, biologicamente, e ao seu gênero social e cultural, pois esse processo ideológico de construção dos corpos e das identidades das mulheres, em nossa sociedade, foram os principais objetos através dos quais todo um mecanismo de dominação masculina e patriarcal foi criado e mantido. A fim de comprovar essa ideologia Lygia Fagundes Telles em: A mulher escritora e o feminismo no Brasil assegura que A literatura feminina tem [...] Uma fisionomia própria [...] decorrente da situação da mulher, das suas raízes históricas [...] a mulher vem tradicionalmente de uma servidão absoluta através do tempo e a mulher brasileira mais do que as outras mulheres do mundo [...] Quando as mulheres do mundo já se comunicavam, através, por exemplo, de cartas, as correspondências das mulheres dos salões, a mulher brasileira estava fechada em casa, vivendo a vida das senhoras da fazenda, da senhora da casa-grande [...] viviam aprisionadas [...] (TELLES, 1197, p. 57). As mulheres são consideradas historicamente inferiores aos homens. JulgavaSABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 385 se que seriam inferiores biológicas, intelectual e moralmente. Essa concepção sobre a mulher está tão enraizada em nossa cultura, que desencadeia a própria estruturação do patriarcado. É preciso revisar a ideia da hegemonia, da família em si, e dos papéis familiares, dado as configurações e papéis alternativos. As normas são opressivas, fonte de sofrimento psíquico e mal-estar na sociedade, gerando um terreno fértil para desigualdades de gênero. As mulheres começaram a receber tratamento diferente no seio familiar a partir do século XIX, visto que o Brasil, ainda ruralista, debruça-se à procura da modernidade, o que exigiu adequações por parte do sexo feminino. Para tanto, em sua dissertação de mestrado, O papel da mulher e a mulher de papel: vida e obra de Maria Antonieta Tatagiba, Fleury assevera: Ao traçarmos um panorama da situação da mulher na virada do século XIX para o XX, verificamos que, incitando as mudanças comportamentais, as mulheres oitocentistas instruídas, aos poucos, acabaram por imprimir modificações na visão que se tinha da família e da própria mulher na sociedade e na História, mas que somente seriam de fato percebidas em meados do novo século (FLEURY, 2008, p. 41). 4 De acordo com Simone de Beauvoir (1980), a palavra mulher era normalmente associada a palavras como “útero”, “ovário” e “fêmea” por homens que buscavam respostas simples. O termo fêmea, na perspectiva de Beauvoir, deveria ser revogado, não por enfatizar a natureza animal da mulher, mas porque à aprisiona em seu sexo. Beauvoir chama ainda nossa atenção para o fato de que os homens tentam achar na biologia uma justificativa para considerar as mulheres como possuidoras de uma natureza animal e, sendo assim, inferiores. A sociedade criou uma grande variedade de crenças sobre as funções dos dois 4- Cf. FLEURY, Karina de R. Tavares. O papel da mulher e a mulher de papel: vida e obra de Maria Antonieta Tatagiba. Vitória, 2008.145f. Dissertação (Mestrado em Letras)-Universidade Federal do Espírito Santo, ES, 2008. Disponível em<http://www.bdtd.ufes.br/tde_busca/processaPesquisa.php?listaDetalhes%5B%5D=349&processar=Processar >. Acesso em 17 Ago. 2010. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 386 REVISTA SABERES LETRAS sexos. A princípio, essas crenças não possuíam nenhuma base científica e se criaram com base em crenças sociais. Tais mitos foram o pedestal, sobre o qual, o patriarcalismo e sua sociedade construíram-se assegurando seu poder sobre as mulheres. Na obra Lygiana, de maneira especial em Ciranda de Pedra, a questão da identidade feminina tem sido focalizada sobre um eixo central constitutivo dessa identidade, que é o da ligação entre mulheres, não pormenorizando o aspecto mais claro que é o da relação entre homens e mulheres. O que Telles realiza em Ciranda de Pedra, entretanto, é a representação de uma família moderna, constituída de mulheres, comunidades femininas. O que se observa no final do romance, é a substituição da família patriarcal, focada na figura determinante do pai, por uma família composta de mulheres. Ciranda de Pedra, publicado então em 1954, é um romance que se caracteriza pela problemática de personagens femininas, considerando a predominância de tais personagens femininas sobre os personagens masculinos e transmitindo, dessa maneira, através de fortes personagens, possibilidade ampla de avaliação e de entendimento do declínio do patriarcado e da constituição da formação de novos núcleos familiares. As relações de gêneros são evidenciadas através das relações homem e mulher, nas quais o papel da mulher é revelado, distinguindo assim o declínio do sistema patriarcal na busca de igualdade entre os sexos, constituindo, dessa forma, novos paradigmas na sociedade. Portanto, ao que se pode observar, ao investigarmos o olhar masculino sobre a mulher e a esfera familiar dentro e fora do ambiente doméstico, retrata-se e revela-se a crise da família como instituição. O enfraquecimento da figura do pai: a constituição de uma nova família O processo de enfraquecimento da família patriarcal, segundo Filgueiras (2009) foi reforçado pelas releituras teóricas contemporâneas acerca do espaço da mulher e a emancipação do aspecto econômico sobre a autoridade parental. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 387 De fato, a autonomia das mulheres, sua capacidade comprovada de trabalhar e sustentar sua família, junto com o crescente apoio do Estado e das instituições, promoveu e contribuiu para a emancipação do sexo feminino. No início era o verbo, mas o verbo era Deus, e Homem. O silêncio é o comum das mulheres. Ele convém à sua posição secundária e subordinada. Ele cai bem em seus rostos, levemente sorridentes, não deformados pela impertinência do riso barulhento e viril. Bocas fechadas, lábios cerrados, pálpebras baixas, as mulheres só podem chorar, deixar as lágrimas correrem como a água de uma inesgotável dor, da qual, segundo Michelet, elas “detém o sacerdócio” (PERROT, 2007, apud FERREIRA, 2005, p. 9). Menina que sabe muito É menina atrapalhada Para ser mãe de família Saiba pouco ou saiba nada (HAHNER, 2003, apud FLEURY, 2008, p. 57). [...] Um gênio como o de Shakespeare não nasce entre pessoas trabalhadoras, sem instrução e humildes. Não nasceu na Inglaterra entre os saxões e os bretões. Não nasce hoje nas classes operárias. Como então poderia ter nascido entre mulheres, cujo trabalho começava, [...] quase antes de largarem as bonecas, que eram forçadas a ele por seus pais e presas a ele por todo o poder da lei e dos costumes? Não obstante, alguma espécie de talento deve ter existido entre as mulheres [...] (WOOLF, 1985, apud DUARTE, 2011, p. 64, grifos nossos). Comumente torna-se impossível dissociar o patriarcado da condição da mulher na sociedade e a estrutura familiar, pois se encontram concomitantemente e invariavelmente ligados um ao outro. Definir patriarcado é, de fato, uma tarefa difícil. As três citações acima são retratos de uma sociedade patriarcal que SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 388 REVISTA SABERES LETRAS durante muito tempo negou a existência intelectual da mulher, ou que apenas a via como um complemento útil ao homem. Simone de Beauvoir (2008), também se impõe sobre a origem do patriarcado: [...] na idade da Pedra, [...] nessa divisão primitiva do trabalho, os dois sexos já constituem, até certo ponto, duas classes; entre elas há igualdade. Enquanto o homem caça e pesca, a mulher permanece no lar. [...] a propriedade privada aparece: senhor dos escravos e da terra, o homem torna-se também proprietário da mulher. Nisso consiste “a grande derrota histórica do sexo feminino”. [...] o direito paterno substituiu-se então ao direito materno; a transmissão da propriedade faz-se de pai a filho e não mais da mulher a seu clã. É o aparecimento da família patriarcal baseada na propriedade privada. Nessa família a mulher é oprimida [...] (BEAUVOIR, p. 74). Percebe-se que nessa ideologia, o poder patriarcal é capaz de anular completamente a mulher, tornando-a um ser invisível, citando Xavier, “um corpo invisível”. Ainda, segundo Elódia Xavier, esse tipo de corpo tem a característica de ser completamente apagado tanto na corporalidade como no que diz respeito a opiniões e atitudes. Trata-se da “inexistência da mulher como sujeito do próprio destino” (2007, p. 34). O patriarcado corresponde aos modos de organização social ou de dominação social. “Pelos conceitos clássicos, chama-se patriarcalismo, a situação na qual, dentro de uma associação, na maioria das vezes, fundamentalmente econômica e familiar, a dominação é exercida por uma só pessoa, de acordo com determinadas regras hereditárias fixas” (Weber, 1964, t.1.p.184), e percebida como uma “situação natural” e “normal” (grifos nossos). Partindo de tal legitimação, lembremos que Rousseau também defendia à diferença de natureza entre sexos. Sobre a mulher, ele nos legou uma visão de inferioridade, fraqueza e submissão ao marido: Na união dos sexos cada qual concorre igualmente para o objetivo comum, mas não da mesma maneira. Dessa diversidade, nasce a primeira diferença SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 389 assinalável entre as relações morais de um e de outro. Um deve ser ativo e forte, o outro passivo e fraco; é necessário que um queira e possa, basta que o outro resista pouco. Estabelecido este princípio, segue-se que a mulher é feita especialmente para agradar ao homem [...]: “Se a mulher é feita para agradar e ser subjugada, ela deve tornar-se agradável ao homem ao invés de provocá-lo” (ROUSSEAU, 1973, apud SOUZA, 2003, p. 415). O patriarcalismo não se desenvolveu apenas em uma localidade, mas em várias partes do mundo, e durante séculos foi dominante. No Brasil, Nísia Floresta escreveu sobre a opressão feminina em seu primeiro livro, uma tradução livre de Vindication of the Rright of Woman, de Mary Wollstonecraft, que teve seu título em português como Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens. Nessa obra a autora denunciava o estado de inferioridade em que viviam as mulheres de seu tempo. Se cada homem, em particular, fosse obrigado a declarar o que sente a respeito de nosso sexo, encontraríamos todos de acordo em dizer que nós somos próprias se não para procriar e nutrir nossos filhos na infância, reger uma casa, servir, obedecer e aprazer aos nossos amos, isto é, eles homens... Entretanto, eu não posso considerar esse raciocínio senão como grandes palavras, expressões ridículas e empoladas, que é mais fácil dizer do que provar (FLORESTA, 1983, apud DUARTE, 2003, p. 35).5 É Simone de Beauvoir (2008), quem afirma no segundo volume de seu livro O Segundo Sexo, que “o regime patriarcal é cruel com as mulheres e as determina um papel resignador” (p. 87). Nesse sentido, entende-se que o patriarcado é indissociável da história da mulher e da relação que mantém com família. Portanto, acredita-se que a organização familiar brasileira é importante para a compreensão do patriarcado no Brasil. Para Gilberto Freyre a família brasileira conservou estruturas que 5- Cf. DUARTE, Eduardo Assis de. Virginia Woolf: a androginia como desconstrução. Disponível em< http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_eduardo.htm >. Acesso em 22 Jun. 2011. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 390 REVISTA SABERES LETRAS se mantiveram sólidas desde os tempos do Brasil colônia e que acabaram por atribuir traços bastante particulares à nossa sociedade. Freyre, assim destaca o papel da família colonial na constituição da sociedade brasileira: Vivo e absorvente órgão da formação social brasileira, a família colonial reuniu, sobre a base econômica da riqueza agrícola e do trabalho escravo, uma variedade de funções sociais e econômicas. Inclusive, (...) a do mando político: o oligarquismo ou nepotismo, que aqui madrugou [...], a família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América (FREYRE, 2004, p. 92). Certamente, por causa desses excessos da figura masculina do pai, no Brasil surgiu o maternalismo, do qual o patriarcado brasileiro se caracteriza. Durante esse período, o pai deixa de ser uma figura reverenciada, e após esta descaracterização da figura do pai, o sistema patriarcal inicia o seu declínio. Freyre reconhece a presença de mulheres como chefes de domicílio, de famílias matriarcais, entretanto considera esses casos exceções; cita duas vezes a escritora Nísia Floresta, e reafirma que Nísia foi um caso de exceção no regime patriarcal do Brasil. Em ensaio recente, a mulher na literatura brasileira, (nordeste, agosto, 1947), [...] durante o segundo reinado, mesmo vigiado de perto por patriarcas, o talento feminino começou a brilhar entre nós. “A verdade é que esse eco de brilho da inteligência feminina nos salões patriarcais do Brasil data do primeiro reinado até da época colonial: [...] Mas não nos iludamos com a participação da mulher na vida intelectual do primeiro reinado e mesmo no segundo: o que houve foi uma ou outra flor de estufa. Tanto que Nísia floresta seria um escândalo para a sociedade brasileira do seu tempo, merecendo seu caso estudo SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 391 a parte que bem poderia ser empreendido pelo Sr jurema. [...] (FREYRE, 2006, p. 194). Contudo, a queda do patriarca traz também outros fatores para a sociedade brasileira, como a possibilidade da emancipação feminina, a libertação da medicina dos costumes rurais e caseiros, e o fortalecimento dos colégios católicos: Era o declínio do patriarcalismo. O desprestígio dos avós terríveis, suavizados agora nas vovós. O desprestígio dos “senhores pais”, que começavam a ser simplesmente “pais” ou “papais”. Era o menino começando a se libertar da tirania do homem [...] O filho revoltando-se contra o pai [...]. (FREYRE, 2006, p. 200). Se antes do declínio, a mulher era considerada pelo patriarca como sexo fraco e belo, enquanto o homem como sexo forte e nobre, no sistema patriarcal enfraquecido, inicia-se, segundo Freyre, o processo de sua libertação da condição de “uma doente, deformada no corpo para ser a serva do homem e a boneca de carne do marido” (FREYRE, 2006, p.238). Refém que era da exploração sexual, com o desenvolvimento urbano e os espaços dos cuidados medicinais aplicados sobre o corpo feminino, a mulher do patriarca “se liberta” do governo absoluto do esposo. Com raras exceções, as mulheres eram consideradas incapazes de qualquer reflexão mais profunda. Sua figura era sempre associada às atividades mais fúteis, enquanto os homens deveriam ser os provedores da família e cuidar de todos os assuntos de maior relevância, dos quais as mulheres eram consideradas incapazes de tratar. Freyre destaca ainda, que mulheres das mais altas classes sociais viviam na mais absoluta ignorância, e novamente se põe a citar a poetisa Nísia Floresta como honrosa exceção: Nas letras, já nos fins do século XIX apareceu uma Narcisa Amália. Depois, uma Carmen Dolores. Ainda mais tarde uma Júlia Lopes de Almeida. Antes delas, quase que só houve bacharelas medíocres, solteironas pedantes ou simplórias [...] Nísia Floresta surgiu – SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 392 REVISTA SABERES LETRAS repita-se – como uma exceção escandalosa. Verdadeira machona entre as sinhazinhas dengosas do meado do século XIX. No meio dos homens a dominarem sozinhos todas as atividades extradomésticas, as próprias baronesas e viscondessas mal sabendo escrever, as senhoras mais finas soletrando apenas livros devotos e novelas que eram quase histórias do Trancoso, causa pasmo ver uma figura como a de Nísia, ou mesmo uma mulher como a marqueza de santos ou Da. Francisca do rio formoso ou Da. Joaquina do Pompeu. (FREYRE, 2004, p. 225) Todas essas mudanças repercutiram sobre a figura masculina, promovendo um novo arranjo familiar e corroborando para a diminuição do espaço paterno. Essa explosão de reações femininas caracterizou a “destruição” do poder masculino, instituído há milhares de anos. Enfim, diz-se que as mulheres obtiveram êxito, pois através do declínio do patriarcado conseguiram sair do seu confinamento milenar, em termos de situação de classe e intelectualidade. A partir dessas conquistas, a posição e o papel da mulher na sociedade tornaram-se originalmente diversos, daquilo que a história feita pelos homens normalizou durante muito tempo. A representação da mulher através das personagens lygianas Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. Clarice Lispector O romance Ciranda de Pedra tem como foco principal a tensão familiar entre as principais personagens femininas: Virgínia, Laura, Otávia, Bruna e Letícia. A principal característica na construção dessas personagens é a condição da mulher na sociedade patriarcal, revelando sua vivência neste espaço. A importância das personagens principais evidencia-se em sua constituição mais delineada. A caracterização, seja emocional, física ou social, é elaborada SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 393 para dar maior riqueza à narrativa. Cada uma é complexamente construída, segundo Souza (2009)6 “como um emaranhado de fios que compõe um tecido” (p.11). Portanto, a coordenação deste elemento com os demais origina o enredo. Segundo Cândido, Os três elementos centrais dum desenvolvimento novelístico (o enredo e a personagem, que representam o seu significado, - e que são o conjunto elaborados pela técnica), estes três elementos só existem intimamente ligados, inseparáveis, nos romances bem realizados. No meio deles, avulta a personagem, que representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificação, projeção, transferência etc. A personagem vive o enredo e as idéias, e os torna vivos. (CANDIDO, 2007, p.54). A diversidade de características da personagem, construída na narrativa por meio da linguagem, está proporcionalmente relacionada à sua importância no enredo, pois através dela os fatos e as ideias se concretizam. Quanto maior for sua relevância, maior será sua complexidade e, consequentemente, ocorrerá a centralização dos eventos em suas ações. A personagem feminina confina-se, em parte dos textos da literatura, ao espaço da casa, à tarefa de mãe e à ocupação da família, seu espaço está restrito ao particular, ao fechado e ao limitado. Para ela, foi construído o que Simone de Beauvoir chamou de “destino de mulher”: a rainha do lar, a mãe, a geradora, a acolhedora, ou ainda, o que segundo Fleury (2008), pode-se chamar de “tríade sacrossanta.” O casamento também se impõe como uma situação recorrente e problemática. As narrativas se desenvolvem sobre o desgaste deste relacionamento, que se baseia no clichê “até que a morte nos separe”. A felicidade eterna ilusionada pelas personagens é descoberta como uma fraude ao perceberem os problemas gerados pelo tempo. As diferenças de comportamento refletem a riqueza das construções das 6- Cf. SOUZA, Wanessa Zanon de. Representações da mulher em obras de Helena Parente Cunha, Lygia Fagundes Telles e Marina Colasanti. Disponível em< http://www.letras.ufrj.br/pos� verna/mestrado/SouzaWZ.pdf >. Acesso em: 18 Jun. 2011. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 394 REVISTA SABERES LETRAS personagens, as quais, por vezes, representam mulheres que seguem seus destinos e, por outras, que se aproximam do ideal da mulher tradicional, ainda seguido em parte da narrativa. Estuda-se aqui, portanto, representações que, ora refletem, ora subvertem padrões de comportamento da sociedade. Ao se analisar Laura, mãe de Virgínia, percebe-se que devido à infidelidade e à quebra de padrões impostos pela sociedade burguesa, na qual estava inserida, ela se torna motivo de reprovação para suas filhas Bruna e Otávia e, nessa condição, a loucura vai consumindo-a pouco a pouco. As filhas consideram que sua mãe “manchou” a honra da família, como se pode notar no diálogo de Bruna: Nossa mãe está pagando um erro terrível, será que você não percebe? Abandonou o marido, as filhas, abandonou tudo e foi viver com outro homem. Esqueceu-se dos seus deveres, enxovalhou a honra da família, caiu em pecado mortal (TELLES, 1998, p. 37). E acrescenta: [...] Nosso pai adorava a mamãe, [...] ela vivia como uma rainha, [...] como uma rainha! Depois que Otávia nasceu, [...] entrou em casa com um novo médico, um moço bonito [...] Era o Doutor Daniel. Nosso pai [...] expulso-o de casa como se expulsa um demônio. Durante algum tempo havia sumido [...] Quando voltou, você tinha acabado de nascer e a mamãe já estava meio esquisita, com umas manias, papai teve que interná-la num sanatório. Quando ela melhorou, está claro que nosso pai não podia aceitá-la, imagine um escândalo desses (TELLES, 1998, p. 45). A partir desse trecho evidencia-se a presença de uma sociedade patriarcal demarcada pelas aparências, cujo papel da mulher era o de esposa e mãe, a “rainha” do lar. Aqui está explícita a ideia defendida por Hahner em A emancipação do sexo feminino, que “a educação das mulheres concentrava-se na preparação para o seu destino último: esposas e mães” (2003, p. 123). Portanto, Laura representa a mulher adúltera, aquela que, ao tentar fugir dos padrões impostos pela sociedade, acaba enlouquecendo. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 395 Em contrapartida, temos Otávia, artista plástica, distraída e irônica, que se dedica Pa pintura de alguns amantes ocasionais, e se envolve até com o motorista da família. Essa personagem não sonha com a união matrimonial, deixando claramente exposta a sua opinião sobre o casamento: “E se falasse nisso, ah, que prosaico, que burguês! Ora, casar” [...] (TELLES, 1998, p. 142). Segundo Showalter, apud Cibele Beirith, “a figura de Otávia representa “a nova mulher”, sexualmente independente”, aquela que criticava a insistência da sociedade que enxergava a união matrimonial como única opção para a realização da vida da mulher. Otávia é a mulher emancipada, descomprometida de sentimentos, que busca o sexo oposto apenas para a satisfação de seus prazeres. Regressando as personagens de Lygia, encontramos Bruna, uma personagem contraditória. Em princípio, ela reprova a atitude de traição da mãe e sente compaixão do pai por ter sido “abandonado”. Seus julgamentos baseiam-se na Bíblia Sagrada, o que põe em discussão no romance a grande influência da igreja sobre a formação da sociedade. Bruna crê que sua mãe está sendo castigada através da loucura, pelo fato de ter traído seu pai: – O castigo já caiu sobre ela – disse num tom vacilante. Franziu a boca a boca em forma de pirâmide: - Mas ele não escapa. Ah, Virginia, só eu sei o que o nosso pai tem sofrido! Você é a caçula, ficou lá com os dois, não compreende certas coisas (TELLES, 1998, p. 47). Inicialmente, Bruna representa a mulher conservadora, que tem a Bíblia como respaldo e que defende o modelo de família burguesa tradicional, na qual a mulher se vê como a dona do lar. Ela então casa-se com Afonso, com quem tem um filho. Sua principal preocupação era de constituir um “lar”, não havendo outras intenções. No entanto, no decorrer da narrativa, percebe-se uma mudança de comportamento na personagem. Bruna se envolve numa relação extraconjugal com Rogério, amigo da família. Essa personagem se contradiz, tendo em vista que anteriormente repreendia a mãe pelo adultério, mas, tempos depois, envereda-se na mesma problemática. Nesse sentido, Bruna representa a imagem da mulher que mantêm as “relações de aparências”, uma falsa imagem da família tradicional para a sociedade, visto SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 396 REVISTA SABERES LETRAS que a ela não assume o seu caso extraconjugal publicamente: A descoberta a transfigurou. Bruna tinha um amante. Um amante, Bruna, Bruna! A Bruna dos anjos, das Bíblias, a Bruna que açulara contra a mãe, a Bruna que lançara no seu coração a semente de ódio por Daniel... [...] Tão pronta sempre para julgar [...] (TELLES, 1998, p. 160). O ato do adultério sempre foi encarado de maneiras distintas por diversas sociedades, sendo tratado com o mais extremo rigor por algumas e considerado como um ato totalmente aceitável por outras. Geralmente, o adultério é objeto de forte reprovação moral e religiosa, sendo ao longo da história, constantemente punido pela sociedade. Segundo Nader As mulheres honradas possuíam comportamentos de acordo com as regras instituídas pelo código moral e, consequentemente pela sociedade. A honra feminina era muito importante e dependia das impressões que a mulher causava aos outros [...] As mulheres desonradas eram aquelas que ou se entregavam a um homem antes do casamento, ou traíam seus maridos e traziam para a casa a vergonha de sua virtude (Nader , 1997, p. 66). Entretanto seja qual for a motivação que leva o indivíduo a cometer o adultério, o fato é que este comportamento já faz parte da cultura universal, indo contra qualquer imposição religiosa ou social. De outro modo, ao se analisar Letícia, visualiza-se em destaque na obra outra vertente que também estava atrelada a liberdade feminina. A personagem vê-se apaixonada pelo marido de Bruna, mas, em virtude de ser rejeitada por Afonso, Letícia busca outros caminhos: inicia-se nos esportes e torna-se uma tenista famosa. - Quando os dois se casaram, devo ter ficado com a mesma cara que você ficou, vendo Otávia e Conrado tocando juntos... [...] Pois foi a última vez que chorei, mas então chorei mesmo, chorei definitivamente todas a lágrimas. Todas. Quando já não restava mais SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 397 nenhuma, parti para uma competição de tênias, havia uma competição importante. Fui e ganhei minha primeira taça (TELLES, 1998, 125). As relações entre o feminismo e o lesbianismo foram marcadas por tensões e aproximações no desenrolar das teorias feministas e dos movimentos sociais de mulheres. Segundo Swain7 [...] o lesbianismo aparece no movimento feminista como a radicalização extrema na recusa de um mundo patriarcal, propondo o separatismo na vida social, a criação de espaços de onde os valores masculinos seriam extirpados, uma utopia moderna onde a violência e o poder não teriam lugar de existência ou expansão (Swain, 1999, p. 110). A personagem de Telles, muito bem representa essa concepção, pois depois de inúmeras tentativas e de um amor não correspondido, Letícia vira lésbica e vai morar sozinha. A homossexualidade ainda é um tabu nessa sociedade, mas ao seu percurso de formação a autora não deixa de acrescentar essa experiência. Através do homossexualismo, da mulher que se sentia frustrada por não ser correspondida por alguém do sexto oposto, Lygia expõe o que Swain (1999) defende ser [...] “a radicalização extrema na recusa de um mundo patriarcal” (p. 110) e a busca por uma identidade feminina (grifos nossos). A atitude negativa pela temática do homossexualismo é apresentada através do comportamento dos demais personagens, que acham Letícia estranha e misteriosa. Portanto, acredita-se que a homossexualidade estava instaurada dentro de uma cultural patriarcal e machista, na qual o preconceito em aceitar a relação de pessoas do mesmo sexo era evidente. - Aquela Letícia... – murmurou Bruna num tom meio divertido, meio maliciosa. [...] Não sei por que faz tanta questão de parecer mais feia ainda do que é. Vá lá que queira se vestir como um rapaz, mas ao menos podia ter um pouco mais de gosto. [...] 7- Cf. SWAIN, Tania Navarro. Feminismo e lesbianismo: a identidade em questão. Disponível em< http://www.maismulheresnopoderbrasil.com.br/pdf/Sociedade/Feminismo_e_Lesbianismo_A_ Identidade_em_Questao.pdf >. Acesso em 20 Jun. 2011. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 398 REVISTA SABERES LETRAS - Ela me arrumou um trabalho na editora, traduções. - Cuidado... (TELLES, 1998, p. 130) A figura feminina vai perdendo aquela imagem estereotipada de delicadeza e de necessidade de protecionismo estabelecida pelos romances românticos e, cria uma imagem de força e ação. Em Ciranda de Pedra compreende-se claramente tal proposta na figura da protagonista Virgínia. A imagem de Virgínia remete à mulher moderna, aquela que transgrediu de uma posição de ingenuidade para uma situação de independência. Ela sai de casa para estudar, amadurece através de suas frustrações que são percebidas na própria fala da personagem: “[...] eu queria tanto mudar, quero dizer, voltar diferente, sem marcas antigas, apagar aquela Virgínia que fui...” (TELLES, 1998, p. 136). A personagem lygiana representa a mulher moderna, capaz de lidar e ultrapassar situações difíceis sozinha, pois é independente. Virgínia não escapa do amor inacessível que nunca se concretizará. Desde menina é apaixonada por Conrado. Em algumas passagens da narrativa, chega a dizer que ele parecia um santo ou que era “belo como um deus” (TELLES 1998, p. 38). Em sua iniciação amorosa, Virgínia chega a tocar o corpo de uma mulher mesmo não chegando a consumar uma relação sexual. Decepcionada e tomada pela vontade de superar os seus limites, ela resolve partir para longe de sua família. Uma viagem sem destino certo, num navio que a levará para onde possa estudar, trabalhar e se manter. Aqui fica explícita a clara ideia de renascimento que viria na simbologia de uma viagem pela água (símbolo da fonte de vida, purificação e regeneração). Essa é a forma que encontra para romper com os últimos laços que ainda restavam: a dependência financeira do pai e o amor que nunca lhe trouxera felicidade. Todo o sofrimento, as perdas pelas quais passou seriam aliviadas com a distância. Portanto, Virgínia é a mulher moderna, forte, não mais o “sexo frágil” e indefeso, mas livre, sendo assim, motivo de desejo por todos os componentes da ciranda. A protagonista é uma personagem segura, decidida, partiu sozinha, não cedeu a sua decisão, nem ao lhe ser revelado o amor de Conrado, o homem que sempre amara. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 399 - Mas agora está tudo bem. Você tinha razão, Conrado, atravessei as provas sem me queimar realmente, foi duro, mas passou. Nós nos amamos. Não quero mais nada, juro que não peço mais nada a não ser esta certeza, acredite em mim, não quero mais nada (TELLES, 1998, p. 188). A mulher, durante anos, foi vista como sinônimo de delicadeza e suas maiores conquistas estavam relacionadas às atividades domésticas. Contudo, os rumos tomados pela sociedade em conjunto com a força feminina, fez com que alguns desses estigmas fossem rompidos, proporcionando à mulher oportunidades de mostrar seu potencial aos mais diversos grupos. Nesse contexto, as personagens apresentadas em Ciranda de Pedra são encontradas fora do centro da norma de conduta da sociedade. Através de suas ações, como o amadurecimento de Virgínia, o adultério de Laura, a mudança de comportamento de Bruna (vivenciado o adultério), a liberdade sexual de Otávia e o homossexualismo de Letícia, evidenciam-se as mudanças no perfil feminino, tendo em vista que todas as personagens quebram padrões e transgridem regras da sociedade burguesa e patriarcal. Conclui-se, portanto, que Lygia Fagundes Telles cria um mundo ficcional em que várias facetas do mundo real são nele representadas. É através da sutil apreensão do quase indizível, que a autora detém o fascínio de seus leitores. Sua obra não se esgota, porque é capaz de atravessar o tempo num fazer literário que permanece atual por lidar com o que é essencialmente humano. REFERÊNCIAS BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sergio Milliet. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1980. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Editora Cultrix, 2008. CÂNDIDO, Antônio. A nova narrativa. In: A Educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. COELHO, Nelly Novaes. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 378 a 402 set. / dez. 2011 400 REVISTA SABERES LETRAS DUARTE, Eduardo Assis de. Virginia Woolf: a androginia como desconstrução. Disponível em: http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_eduardo.htm. Acesso em: 22 jun. 2011. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio básico da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira, 1995. FERREIRA, Letícia Schneider. 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As buscas pela maga em rayuela, de julio cortázar Weverson Dadalto1* Resumo Rayuela, de Julio Cortázar, empreende uma busca por uma literatura que seja capaz de promover o encontro com uma outra realidade possível, questionando assim os valores estéticos, cognitivos e sociais do Ocidente. A Maga é a melhor representação dessa busca, já que essa personagem constitui-se enquanto poesia. Horacio Oliveira, por sua vez, protagonista buscador, pensa questões existenciais e estéticas e projeta suas expectativas de respostas na mulher amada. Por meio de uma análise interpretativa, tentamos uma aproximação pessoal desse romance cortazariano, aventurando-nos no jogo proposto pelo texto, cujos resultados são aqui apresentados. Palavras-chave: Julio Cortázar. Rayuela. Busca. Literatura. A Maga. Resumen: Rayuela, de Julio Cortázar, emprende una búsqueda por una literatura que sea capaz de promover el encuentro con otra realidad posible, cuestionando así los valores estéticos, cognitivos y sociales del Occidente. La Maga es la mejor representación de esa búsqueda, ya que esa personaje se constituye como poesía. Horacio Oliveira, por su vez, protagonista buscador, piensa cuestiones existenciales y estéticas y proyeta sus expectativas en la mujer amada. Por medio de un análisis interpretativo, hemos intentado un acercamiento personal a esa novela cortazariana, aventurándonos en el juego propuesto por el texto, cuyos resultados son aquí presentados. Palabras clave: Julio Cortázar. Rayuela. Búsqueda. Literatura. La Maga. ¿Encontraría a la Maga? O primeiro capítulo de Rayuela, num dos múltiplos inícios possíveis que oferece 1- * Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e profes� sor do Curso de Letras da Faculdade Saberes (SABERES) – Vitória, ES. weversonletras@yahoo. com.br. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 404 REVISTA SABERES LETRAS o livro, coloca de imediato o leitor diante de uma pergunta: “¿Encontraría a la Maga?” (1:11)2. A questão sugere, já desde o começo do romance, que a Maga é a principal representação da busca constante que perpassa toda a obra. Horacio Oliveira deseja encontrar-se com sua amante ao mesmo tempo em que anseia por encontrar respostas para as grandes questões existenciais que o atormentam, alcançando assim o sentido de uma vida que lhe escapa. A presença da Maga, contudo, é incerta, e o caminho que leva até ela é insólito: sem encontros marcados, é preciso vagar por Paris, esperar por um encontro casual, distingui-la dentre as diversas outras mulheres que andam pela cidade, assim como dentre os vários elementos do mundo urbano, num país ao qual ambos não pertencem. O caráter de estrangeiros em uma já arcaica capital mundial (Paris) é significativo: Oliveira sente-se estranho no mundo, incomodase com suas circunstâncias, não é capaz de adequar-se à ordem vigente, que se lhe impõe; carrega consigo, dessa forma, o peso de não poder ingressar no que habitualmente se considera normalidade, à qual acredita ser bastante obsoleta e insuficiente, e de não aceitar a herança cognitivo-cultural do mundo ocidental, sem, ao mesmo tempo, poder subtrair-se desse mundo. A Maga, por sua vez, não se coloca diante dessas questões; embora esteja sempre a perguntar, o que deseja é fruir o momento, viver simplesmente, e justamente por isso parece alheia à opressão do mundo à sua volta. O encontro com a Maga serve para Oliveira como uma espécie de refúgio, de possibilidade de colocar-se diante do ser, e do seu ser, de maneira menos intelectual e mais positivamente real. Os encontros com a Maga são, infelizmente, imprecisos e precários. Talvez, por isso, na série de capítulos (1-8) que inicia a primeira parte da obra (“Del lado de allá”), a organização espaço-temporal é vaga: apresentam-se os encontros do casal pelas ruas de Paris, as conversas e situações absurdas que ambos vivem juntos, sua intimidade erótica: um longo elogio à Maga. O primeiro bloco de capítulos parece referir-se a um tempo ora posterior, ora anterior às sequências seguintes, apresentadas de forma um pouco mais definida cronologicamente. A partir do capítulo 9, a Maga é inserida no Clube da Serpente (cujos membros parecem representar, cada um a seu modo, aspectos do próprio Oliveira), ora 2- Nas citações de Rayuela indicaremos respectivamente, daqui em diante, o capítulo e a página da edição que adotamos (CORTÁZAR, 1996). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 405 como uma espécie de deusa3, inspiradora e provocadora de inveja, ora como a própria representação da ignorância e da estupidez, rechaçada e humilhada. Após o encontro do clube (capítulo 19 em diante), Oliveira e Maga aparecem em sua vida de casados: contraditoriamente, enquanto compartilham um quarto começam a sentir o afastamento que aos poucos se revela entre ambos. Os ciúmes de Oliveira por Gregorovius, os ciúmes da Maga por Pola e a presença de Rocamadour, filho da Maga, são os principais problemas percebidos por eles, encobrindo-se os entraves mais profundos do desencanto proporcionado pela vida cotidiana. A doença e a morte do menino são os fatores determinantes para o rompimento do casal: a Maga sai com um destino incerto (talvez continue em Paris, talvez tenha ido à Itália ou voltado ao Uruguai, seu país natal, talvez se tenha atirado no rio Sena), enquanto Oliveira, após viver alguns episódios em Paris (como o encontro com o velho escritor Morelli e com a pianista Berthe Trépat), acaba por ser flagrado pela polícia em um envolvimento erótico com uma clocharde, e é deportado a Buenos Aires. Na segunda parte da obra (“Del lado de acá”, a partir do capítulo 37), desde a viagem de volta Oliveira insiste em pensar na Maga, vendo-a em outras mulheres do navio, procurando-a por Montevidéu; chegando à capital argentina, encontra a Maga em Talita, esposa de seu amigo, Traveler, de quem é vizinho e companheiro de trabalho, primeiro em um circo e depois em um manicômio. Oliveira é o único personagem, portanto, que perpassa todo o enredo; a Maga, contudo, mesmo saltando-se pelos capítulos prescindíveis da terceira parte (“De otros lados”), intercalados pelo tabuleiro de direção (apresentado no início do livro) entre os capítulos da primeira e da segunda parte, e saltando-se de Paris a Buenos Aires, está sempre junta a ele: compõe-se não só de presença, mas, e sobretudo, de expectativa, ilusão e desejo. Os capítulos iniciais, pancrônicos, funcionam como uma espécie de prólogo ao romance, apresentando a angústia fundamental de Oliveira, sua busca e seus desejos, dos quais a Maga se ergue como maior símbolo, e a preocupação da própria obra: fazer literatura prescindindo dos princípios lógicos e espaçotemporais. Os tempos verbais neles empregados (mescla de presente, passado, com uso constante do pretérito imperfeito, e futuro, com frequência do futuro ������������������������������������������������������������������������������������������ - Sobre a simbologia mítica ou arquetípica da Maga para o Clube e para Oliveira, ver AMES� TOY, 1972, p. 69-71. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 406 REVISTA SABERES LETRAS do pretérito, desde a questão inicial) indicam a desorganização cronológica, e, aliados à variação espacial (ruas por que perambulam, quartos de hotéis), são elementos indicativos da tentativa de extrapolação dos limites temporais e espaciais, condicionadores da percepção. Esses capítulos descrevem, dessa forma, uma espécie de passado mítico vivido pelo casal, onde a Maga é a grande musa que encanta Oliveira, atendendo não só ao seu desejo erótico, mas, e sobretudo, aos seus anseios metafísicos, uma vez que ela sabe viver o que ele apenas, e mal, sabe teorizar. Mesmo nos capítulos iniciais, não há uniformidade no tratamento que Oliveira dá à Maga: ela é idolatrada, mas também estranhada, já que é provocadora de confrontos e, com sua forma de agir, desafia a cultura letrada e lógica à qual Oliveira está fatalmente ligado. Por isso ela incomoda. Uma das versões do primeiro encontro com a Maga (há pelo menos duas) é bastante explícita: Sé que un día llegué a París, sé que estuve un tiempo viviendo de prestado, haciendo lo que los otros hacen y viendo lo que otros ven. Sé que salías de un café de la rue du Cherche-Midi y que nos hablamos. Esa tarde todo anduvo mal, porque mis costumbres argentinas me prohibían cruzar continuamente de una vereda a otra para mirar las cosas más insignificantes en las vitrinas apenas iluminadas de unas calles que ya no recuerdo. Entonces te seguía de mala gana, encontrándote petulante y malcriada, hasta que te cansaste de no estar cansada y nos metimos en un café del Boul’Mich’ y de golpe, entre dos medialunas, me contaste un gran pedazo de tu vida. (1:13) O andar aleatório da Maga para olhar coisas insignificantes acompanha o movimento proposto por Rayuela: também o leitor é convidado a sair da ordem narrativa tradicional e saltar pelos capítulos do livro, deparando-se frequentemente com fragmentos narrativos, citações e reflexões teóricas que não dizem diretamente respeito à história que está sendo narrada. O olhar da Maga é, dessa forma, identificado desde o início com a tentativa da obra: olhar de outro modo a literatura e o mundo, desconstruir a linearidade e superficialidade falsificadoras, adquiridas pelo hábito, tentativa da qual o leitor SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 407 pode participar. Sem saber, a Maga questiona a maneira de ver o mundo que Oliveira (aproximado assim do leitor pretendido por Rayuela) construiu ao longo da vida, enquanto se adequava à cultura ocidental. Oliveira, na verdade, já desconfiava dos meios de conhecimento de que dispunha, e da realidade alcançada por esses meios: a Maga aparece bruscamente como um signo de sua insatisfação, por um lado, e de seus anseios, por outro. Causa, por isso, ao mesmo tempo fascinação e desafio. “Oh Maga, y no estábamos contentos” (1:12), diz Oliveira já nos parágrafos iniciais. “Me había llevado muy poco comprender que a la Maga no había que plantearle la realidad en términos metódicos, el elogio del desorden la hubiera escandalizado tanto como su denuncia. Para ella no había desorden […]” (2:18), diz Oliveira, que estabelece como meta, então, o acesso a essa outra ordem em que ela vive, lutando por conseguir desistir de vez de suas tentativas de ordenar intelectualmente o mundo e, por conseguinte, lutando por alcançar outras vias, não metódicas e racionais, pelas quais seja possível responder às questões que se propõe. “Llegué a aceptar el desorden de la Maga como la condición natural de cada instante” (2:17), diz, e, mais do que aceitação, passa a desejar o ingresso naquilo que depois vem a chamar de “mundo-Maga”. Oliveira, contudo, pensa nisso, e a Maga não pode conduzi-lo pelas vias do raciocínio como o conduzia pelas ruas de Paris: tratando-se de pensamento, ele apresenta uma resistência muito maior, uma vez que é pelo próprio pensamento que se constitui. Horacio raciocina todo o tempo, reflete, busca imagens; além disso, não encontra outro elemento que realmente o identifica, a não ser a cultura e as faculdades analíticas que domina, já que não tem profissão ou talentos particulares, por exemplo. A Maga lhe é inacessível, então. Pode ser contemplada, admirada, desejada, mas ele não pode (embora queira) ser como ela. Ao recordar sua contemplação, reflete: […] se me ocurría como una especie de eructo mental que todo ese abecé de mi vida era una penosa estupidez porque se quedaba en mero movimiento dialéctico, en la elección de una inconducta en vez de una conducta, de una módica indecencia en vez de una decencia gregaria. La Maga se peinaba, se despeinaba, se volvía a peinar. Pensaba en Rocamadour, cantaba algo de SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 408 REVISTA SABERES LETRAS Hugo Wolf (mal), me besaba, me preguntaba por el peinado, se ponía a dibujar en un papelito amarillo, y todo eso era ella indisolublemente mientras yo ahí, en una cama deliberadamente sucia, bebiendo una cerveza deliberadamente tibia, era siempre yo y mi vida, yo con mi vida frente a la vida de los otros. (2:18) Para Oliveira, os encontros com a Maga são momentos epifânicos, em que se põe em crise enquanto se extasia com a possibilidade de ser outro, de ser de outra forma, de separar-se do restante das pessoas, que seguem o fluxo da normalidade: Y era tan natural cruzar la calle, subir los peldaños del puente, entrar en su delgada cintura y acercarme a la Maga que sonreía sin sorpresa, convencida como yo de que un encuentro casual era lo menos casual en nuestras vidas, y que la gente que se da citas precisas es la misma que necesita papel rayado para escribirse o que aprieta desde abajo el tubo de dentrífico” (1:11) Esse devotamento, contudo, não pode sustentar-se indefinidamente: a convivência diária, quando passam a morar juntos, revela a Oliveira a impossibilidade de encontrar-se absolutamente com a Maga. Procurada, esperada, desejada, a Maga é sobretudo ausência. E pela ausência, é imaginação, construção: ilusão desencantada quando se convive com um menino doente, uma amante e um rival. Separam-se a mulher idealizada e a mulher real. A segunda, revela-se ao leitor, tem nome e vida próprias, tem também suas angústias, suas preocupações e problemas: chama-se Lucía. A qual delas Oliveira realmente deseja? E o que representa esse desejo? A Maga e Lucía Rayuela é narrada a partir de vários pontos de vista, ora em primeira, ora em terceira pessoa4. Há também inúmeras variações temporais, espaciais, estilísticas 4- Sobre a questão da estrutura narrativa de Rayuela, ver especialmente GENOVER, 1973, p. 4964 e ARRIGUCCI Jr., 2003, p. 261-278. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 409 e temáticas no interior das unidades narrativas (os capítulos funcionam mais ou menos como unidades autônomas, a serem dispostas em ordenações distintas, não se limitando às duas propostas do tabuleiro de direção apresentado no início da obra, mas possibilitando outras combinações, a cargo do leitor). Os pontos de vista narrativos, a despeito de sua variedade, podem ser organizados sobretudo em três grupos: El narrador es, a veces, Horacio discursivo, dialéctico, metafísico, con mucha sed, amargo, auto-inquisidor e inquisidor real pero con lágrimas en los ojos, viril de una manera desgarrada, desolada y noble, gauloise, lleno el pecho de humo y de ternura. Otras veces, el narrador es omnisciente, sujeto de ojo cruel, satírico, erudito, vomitoso, tercera persona entrometida, empeñada en empujar Horacio al hoyo. Novelista. Añádase a estos dos individuos un tercero, Morelli, a cargo de exponer la teoría de la novela y del lenguaje que da base a Rayuela. (ALEGRÍA, 1996, p. 721). Mesmo quando se apresenta em terceira pessoa, contudo, o narrador está muito próximo a Oliveira, reflete seus pensamentos e suas angústias. Nas cenas em que Oliveira não participa, é comum encontrá-lo presente como assunto da conversa entre personagens: o longo diálogo entre Lucía e Gregorovius, na primeira parte (cap. 24 a 27), gira em torno de Horacio; algo parecido se pode dizer das conversas entre Traveler e Talita, na segunda parte (capítulos 37, 44 e 45, por exemplo), em que, se Oliveira não é o centro da discussão, seus temas e questões fundamentais, pelo menos, identificam-se com as angústias do casal portenho. Os capítulos dedicados a Morelli, por sua vez, ora apresentando citações do próprio escritor fictício, ora tecendo comentários sobre sua suposta obra teórica (Morelli é lido e comentado por Oliveira e seus companheiros do Clube da Serpente), elevam a um plano teórico questões que Oliveira discute no plano dos personagens. Oliveira, portanto, ocupa o centro da narração: em primeira pessoa, apresenta solilóquios e rememora fatos vividos; em terceira, parece procurar um distanciamento crítico e vê a si mesmo a partir dos olhos de outros. Coloca-se em outros pontos de vista para tentar alcançar, por meio da narração, a saída SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 410 REVISTA SABERES LETRAS de si mesmo, a ubiquidade que lhe é negada num nível existencial. O tempo da narração não é uniforme: em alguns momentos parece estar bem próximo aos fatos vividos, em outros se percebe um longo afastamento, como se Oliveira buscasse os fatos narrados em uma memória longínqua, recriando-os, ou, sobretudo em alguns capítulos iniciais, como se os projetasse em um futuro hipotético, imaginando-os. Davi Arrigucci Jr. aborda a questão: A identificação entre o protagonista e o narrador leva a uma constante confusão entre o tempo dos acontecimentos narrados e o tempo da narração. Dessa forma, o leitor não só se vê diante da intersecção de diversos planos temporais (fatos passados, ora mais, ora menos remotos; fatos concomitantes e, até mesmo, posteriores com relação ao tempo da narração), como também não pode determinar, a cada instante, o grau de contemporaneidade que aproxima ou distancia o narrador de sua própria história. Na verdade, o narrador parece estar mergulhado no próprio fluxo do devir, em que se dissolvem as distinções temporais, conforme sugere, no plano da expressão, o baralhamento dos tempos verbais empregados ao longo desses dois primeiros capítulos [1-2]. (2003, p. 274) A distinção entre Oliveira-narrador e Oliveira-personagem separa os fatos vividos pelo protagonista dos fatos recordados (às vezes idealizados, às vezes lamentados) pelo narrador. Essa separação provoca uma outra, fundamental: a Maga existe na narração, é uma criação do narrador, e sua existência dificilmente pode ser verificada no plano dos personagens. Oliveira-personagem havia se relacionado com Lucía, compartilhando sua presença com os amigos do Clube; Oliveira-narrador se encarrega de recriar a personagem chamando-a de Maga. A dissolução do tempo apontada por Arrigucci Jr. convém ao encontro com a Maga pela narração: ela mesma é uma recusa da temporalidade, um símbolo do anseio pelo ingresso em um mundo mítico, a-histórico, anterior (ou posterior) à categorização do tempo inerente à civilização ocidental. Lucía, por outro lado, é nomeada quando a narrativa tende a assumir uma ordem cronológica mais perceptível. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 411 “Lucía, usted estaba por contar de su niñez” (12:47), diz Ossip Gregorovius; “¿Cómo sigue el niño, Lucía?” (28:134), pergunta Etienne; “Lucía – dijo Babs, acercando las dos manos a sus hombros, pero sin tocarla”, ao que segue o narrador: “El líquido cayó sobre el cobertor, y la cuchara encima. La Maga gritó y se volcó sobre la cama [...]” (28:144). É a Lucía que os personagens do Clube se dirigem; o narrador não hesita em continuar chamando-a de Maga. Apenas uma vez nos diálogos um personagem refere-se diretamente à Maga: “Si fuera cierto que la Maga se ha ahogado [...]” (29:149), diz Ossip Gregorovius a Oliveira, num momento em que este se “afogava” em suas especulações morais e metafísicas; Gregorovius parece referir-se, então, mais ao sentimento de Oliveira do que propriamente ao destino de Lucía. Por outro lado, Oliveira raramente se dirige à sua amante nos diálogos chamando-a pelo verdadeiro nome; quando o faz, ouve o protesto: − Vamos a ver, Lucía: ¿Vos sabés bien lo que es la unidad? − Yo me llamo Lucía pero vos no tenés que llamarme así – dijo la Maga −. La unidad, claro que sé lo que es. Vos querés decir que todo se junte en tu vida para que puedas verlo al mismo tiempo. ¿Es así, no? (19:73, grifos nossos) Protesto que não se repete em relação aos outros personagens. A Maga, existe, portanto, para Horacio, e, embora possa ter desempenhado para o Clube um papel semelhante ao que desempenha para o narrador, está intimamente associada aos olhos deste, pelos quais o leitor tem acesso à trama. A proximidade de Lucía na narração é inversamente proporcional à proximidade da Maga. No capítulo 93, posposto pelo tabuleiro de direção ao capítulo 8, lê-se: “Hablo de entonces, de Sèvres-Babylone, no de este balance elegíaco en que ya sabemos que el juego está jugado” (93:352). O “agora” do narrador está, neste momento, muito distante da ação, e a busca só é possível por meio da escritura. “Pero ella no estaría ahora en el puente”, lamenta no primeiro capítulo. Lucía está irremediavelmente perdida, enquanto a Maga é invocada no texto, ou melhor, por meio do texto: SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 412 REVISTA SABERES LETRAS Cómo podía yo sospechar que aquello que parecía tan mentira era verdadero, un Figari con violetas de anochecer, con caras lívidas, con hambre y golpes en los rincones. Más tarde te creí, más tarde hubo razones, hubo madame Léonie que mirándome la mano que había dormido con tus senos me repitió casi tus mismas palabras. “Ella sufre en alguna parte. Siempre ha sufrido. Es muy alegre, adora el amarillo, su pájaro es el mirlo, su hora la noche, su puente el Pont des Arts” (Una pinaza color borravino, Maga, y por qué no nos habremos ido en ella cuando todavía era tiempo) (1:13, grifos nossos). Essa imagem vaga e longínqua da Maga fica comprometida quando a narração mostra mais de perto a convivência diária entre Horacio e Lucía. Entre os capítulos 9 e 20, o distanciamento entre os dois torna-se claro: Lucía é cortejada por Gregorovius e aí ela conta como foi estuprada na adolescência; adiante, Oliveira percebe que Lucía é capaz de tomar decisões práticas, como o fato de ela propor economizarem dinheiro dividindo um mesmo apartamento (19:74), o que não corresponde à imagem da Maga; por fim, a possibilidade de ambos manterem relacionamentos extraconjugais e o incômodo provocado pelo filho doente de Lucía aumentam o afastamento: “Rocamadour había sido un sosegate bastante desagradable, no sabía por qué” (4:27), já havia dito Oliveira. “Nunca me quisiste, era otra cosa, una manera de soñar” (20:78), queixa-se Lucía. O comprometimento da imagem já havia sido anunciado metaforicamente no final do primeiro bloco de capítulos: quando o casal observava peixes “colgados del aire” em um aquário, anuncia-se que, subitamente, cessará a admiração e se instalará a percepção da corrupção. A beleza da imagem mostra sua fragilidade: Descubríamos como la vida se instala en las formas privadas de tercera dimensión, que desaparecen si se ponen de filo o dejan apenas una rayita rosada inmóvil vertical en el agua. Un golpe de aleta y monstruosamente está de nuevo ahí con los ojos bigotes aletas y del vientre a veces saliéndole y flotando una transparente cinta de excremento que no acaba de soltarse, un lastre que de golpe los SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 413 pone entre nosotros, los arranca a su perfección de imágenes puras, los compromete, por decirlo con una de las grandes palabras que tanto empleábamos por ahí y en esos días. (8:38) A Maga volta a ocupar novamente o primeiro plano narrativo depois do rompimento entre Horacio e Lucía. “Y por qué no, por qué no había que buscar a la Maga” (21:86), reflete Oliveira num capítulo em que, colocado logo em seguida à discussão da separação, se assemelha muito aos capítulos iniciais. “Por supuesto que nos encontraremos mágicamente en los sitios más extraños, como aquella noche en la bastille, te acordás”. (20:81 grifo nosso), evoca. Com a saída de cena de Lucía, a Maga se torna um ideal, um símbolo, a ser procurado em outras mulheres, até alcançar Talita, por meio da qual Oliveira insiste em ver a Maga, na série de capítulos de Buenos Aires. É certo que Oliveira-personagem se refere à Maga, e não a Lucía, nos diálogos com Talita e Traveler; nesse período, contudo, Lucía já estava completamente ausente, e para Oliveira a Maga se convertera em uma forma, aplicável a outras mulheres. Daí as palavras de Talita a Oliveira, quando percebe que ela própria está servindo de rosto à Maga: “La Maga era solamente un nombre, y ahora ya tiene una cara” (54:261). Além disso, há um (mais um) jogo metanarrativo nessa parte, uma vez que o pouco que sabem Talita e Traveler sobre a vida de Oliveira em Paris é aquilo que o próprio Oliveira contou (quase nada, além das vagas referências à Maga, sem referências concretas à vida de Lucía): Oliveira é aqui um narrador no interior do plano das personagens em que está inserido, e a Maga não é, para o casal argentino, nada mais do que narrativa. Uma narrativa omissa, que se recusa a explicitar a história, resgatada depois pelo narrador onisciente (mesmo assim muito próximo a Oliveira) que domina essa parte da obra. A Maga acompanha, portanto, toda a narração, embora Lucía não o faça. A compreensão de que a distinção entre Lucía e a Maga não é apenas uma questão de duplicidade de nomes, mas remete a dimensões diferentes da personagem (embora não a uma oposição, já que a primeira é provocadora da segunda) foi percebida pela crítica. Lida Aronne Amestoy é bastante clara: Mi propósito no es discutir Lucía – y creo que el SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 414 REVISTA SABERES LETRAS desdoblamiento aclara el problema – sino limitarme a “la Maga”, ese atributo o estado de Lucía condicionado esencialmente por la presencia de Horacio (quizá, en menor grado, de Etienne) y por su carácter de mujer. […] “La Maga” existe para y por Horacio, encarna sus falencias – la dimensión codicionada; pero el hecho de que sea mujer y dueña (por añadidura) de tan descomunal ignorancia no es fortuito. (1972, p. 66) Também Arrigucci Jr. aponta a distinção: Lucía, definida por uma imagem poética que encarna a própria contradição (concreción de nebulosa), indefinida, na verdade, por essa analogia concreta que estilhaça os princípios lógicos da razão que define as categorias abstratas, atua, para Horacio, como um catalisador da perdida dimensão mágica. Desde o princípio de Rayuela, ela é a Maga; só depois, ficamos sabendo que seu nome é Lucía. A alcunha, que a designa, aponta para a dimensão mais profunda que ela evoca, e não se deve apenas à manobra mágica que ela urde para livrar-se de sua rival, Pola. O sortilégio da boneca alfinetada é somente uma manifestação da sua coerência com o mundo em que vive: o mundo-Maga, como Oliveira o chama. Desaparecida Lucía, o fascínio nebuloso desse mundo persiste atraindo a lucidez inquisitória de Oliveira, como um convite à passagem, um caminho para o centro (2003, p. 286). Grande parte da crítica, contudo, utiliza indiscriminadamente ora um ora outro nome, e mesmo nos textos citados acima, embora seja nítida a percepção de que a Maga existe como um atributo (ou um conjunto de atributos) de Lucía para Oliveira, que corresponde mais ao seu desejo do que a características próprias da mulher com quem se relaciona, a distinção entre o plano da ação vivida pelos personagens e o plano da narração, onde a Maga se separa de Lucía, por transcendência, não é muito clara. A Maga não apenas existe para Oliveira; existe para a narração de Oliveira, é por ela criada e é um símbolo da própria criação poética. Não é gratuito, como dissemos acima, o fato de que a própria ordenação dos capítulos e organização espaço-temporal no interior deles e entre eles corresponda ao andar aleatório da Maga, a sua maneira de ver o mundo. A Maga é alvo da procura de Oliveira SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 415 que, frustrado em sua busca pessoal, busca recuperá-la pela escritura. “¿Encontraría a la Maga?” Las primeras palabras de Rayuela entregan la clave de esa búsqueda inconclusa “increíble” que, cerrada antes de escribir el libro, Oliveira representa en la ceremonia de la escritura del libro. Porque sólo el libro le permitirá el nuevo encuentro con la Maga, esa “concreción de nebulosa”, ligeramente cándida, ligeramente perversa, continuamente recordada y prevista en un tiempo presente de la literatura […] (FUENTES, 1996, p. 704). Ao analisar contos de Julio Cortázar, Passos conclui que “a escritura trabalha a busca, o sonho; dá-lhes forma e abre a possibilidade de contato com o ‘outro’, ou seja, com a ficção, enquanto ‘outro modo de mirar’” (1986, p. 60). Para a autora, em Cortázar o desejo está “indissoluvelmente ligado à escritura” (1986, p. 73): “A escritura significa o espaço ambíguo da revelação e do simulacro; lugar onde o desejo se cumpre, é também onde ele se apresenta ‘imaginariamente’ como realizado” (1986, p. 167); a escritura se constitui, dessa forma, como “mescla de prazer e engano” (1986, p. 167). Pode-se aplicar as afirmações de Passos à narração de Rayuela: o narrador busca alcançar, por meio do texto, algo que foi (ou é) irrecuperável pela ação. A Maga é, por isso, não apenas objeto de descrição, mas de evocação, sobretudo no primeiro capítulo. Observe-se, por exemplo, o uso dos vocativos e da segunda pessoa verbal: “Oh Maga, en cada mujer parecida a vos se agolpaba como un silencio ensordecedor” (1:11) e “Justamente un paraguas, Maga, te acordarias quizá de aquel paraguas viejo [...]” (1:11). Seria então a Maga um duplo de Lucía, reflexo do respectivo desdobramento de Oliveira em narrador e personagem? A abordagem da questão do duplo é constante nas análises de Rayuela; o tema, com efeito, estava presente já no planejamento da obra, acessível no Cuaderno de Bitácora, em que Cortázar registra: El doppelgänger Todo lo que podría ser: Quizá lo que ocurre es otra cosa, que no vemos. Quizá hay como un segundo acontecer por encima o a través de lo que pasa. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 416 REVISTA SABERES LETRAS Quizá hay una duplicación de signo inverso (por eso el sentimiento de doppelgänger) Quizá la Maga está ahí, entonces. Quizá nunca hubo Maga e solamente Talita. Quizá hubo solamente Pola, Lilith. (1996b, p. 507) Lucía não aparece na lista, e há outra personagem feminina, Lilith, que não entra na obra. Já havia, para Cortázar, durante a composição de Rayuela, a possibilidade da inexistência da Maga, pelo menos no mesmo plano das outras personagens femininas. Não nos interessa aqui verificar na obra cada uma das possibilidades acima; o que motiva a citação é a constatação de que, desde o início de sua produção, Rayuela foi pensada como um complexo jogo de espelhos, onde os personagens se duplicam, se dividem e se fundem uns com os outros. Os caracteres individuais se apagam em função de sua participação numa rede de personagens intimamente relacionados. É possível, então, entender a Maga como um duplo de Oliveira: para Leônidas Câmara, por exemplo, a “Maga seria o outro lado do ser de Oliveira, a parte que lhe falta na vida. E Talita seria para Horacio o duplo da Maga” (1983, p. 50). Estendendo a hipótese, pode-se dizer que as várias personagens femininas de Rayuela mantêm relação com a Maga: Pola, Emmanuèle, Talita, Gekrepten e Babs, sobretudo, seriam seus diversos duplos: por inversão, por oposição, por contiguidade ou por complementação. Barrenechea, nesse sentido, reconhece uma diversidade de duplos em Rayuela, e tenta classificá-los em três grupos: 1. Complementarios, desdoblamiento en opuestos que recompondrían la unidad perdida (Maga/Horario, Traveler/Horacio). 2. Gemelos, identificación en figuras semejantes con leves variaciones (Maga, Talita, Pola; Horacio, Morelli; Talita, Traveler). 3. Versiones deformantes, lectura humorística, ridícula, grotesca y degradada de los héroes (Ossip, de Horacio; Berthe Trépat y la clocharde Emmanuèle, de la Maga). (1996, p. 565) Oliveira está, nessa classificação, numa posição central; dele deriva a hierarquia. O próprio Oliveira, contudo, desdobra-se continuamente, por ser SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 417 ao mesmo tempo narrador e personagem, por zombar constantemente de si próprio e por tentar agir sempre contra sua própria tendência, por exemplo. Barrenechea aponta essa complexidade, e eleva a questão do duplo em Rayuela a possibilidades infinitas: Si se amplía el estudio de los personajes y la función de los dobles a otros niveles que no sean los de la estructura, incluyendo además al narrador, cabría desarrollar algunos aspectos. Entrarían en ellos las propias duplicaciones de Horacio Oliveira que en sus soliloquios tiende a desdoblarse en narrador y personaje para tomar distancia con respecto a sí mismo. Esta disyunción puede aparecer en el personaje independientemente de la voz enunciadora. Al acumularse ambos procedimientos se produce un desdoblamiento en segundo grado que multiplica las perspectivas. Otras duplicaciones en la narratividad o en el uso de los símbolos iluminarían el trabajo constante de fragmentación y unificación transformados hasta lo infinito en la escritura de Rayuela y en el Cuaderno. (1996, p. 565) Por mais apropriadas que sejam as observações de Câmara e Barrenechea, incorrem em uma negligência importante: não consideram Lucía. A atribuição de dois nomes à personagem a aproximaria, neste caso, de outros personagens que apresentam nomes duplos – Horacio Oliveira, Ossip Gregorovius, Manuel Traveler, por exemplo. A Maga, contudo, não se chama Lucía Maga. É chamada ora por um, ora por outro nome5, e cada um aponta para uma realidade a que ela pode remeter. Enquanto Lucía (derivado de “luz”, o nome pode fazer uma referência ao “Século das Luzes”, ícone do que Oliveira quer afastar de si) está sempre querendo aprender algo, é estúpida e rotineira, a Maga (de “magia”, o que aponta para os aspectos obscuros, míticos ou inconscientes, geralmente ignorados pelos sistemas cognitivos ocidentais) se ergue como oposição à especulação de Oliveira e de todo o Clube. Lucía não se adéqua ao grupo por incompetência intelectual; a Maga não se adéqua por transcender, pela intuição, a necessidade de conhecimento. A separação está mais próxima, contudo, à forma como a personagem é acolhida e interpretada pelos outros, sobretudo por Oliveira, do que à sua constituição interna. ������������������������������������������������������������������������������������������ - Algo semelhante, em menor grau, acontece com Talita, que é algumas vezes nomeada de Ata� lía, e com Manuel Traveler, que é chamado, em algumas circunstâncias, de Manolo ou Manú. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 418 REVISTA SABERES LETRAS “La Maga es un personaje real, desrealizado hasta alcanzar el nivel de una figura-símbolo. Su inocencia poética se contrapone al mundo intelectual y suficiente del Club; es el vivir mágico, la entrega sin desdoblamiento crítico, pero también sin responsabilidad”, afirma Sola (1968, p. 93). Sola não nomeia Lucía, a personagem real, desrealizada até se tornar a Maga. Entendemos, então, que Lucía entra no grupo dos duplos, junto às outras mulheres; a Maga, nascida em Lucía, se prolonga ou se nega em todas as personagens femininas com quem Oliveira manteve algum tipo de relacionamento, inclusive Lucía, às quais ele concede ou nega os atributos “mágicos”, por meio da narração. Mais do que duplo das outras personagens femininas e de Oliveira-narrador, a Maga é uma zona de convergência para onde apontam os diversos aspectos da obra, é o aspecto fundamental para a constituição da “figura”, conceito caro a Cortázar, que abordaremos adiante. “Lucía” e “Maga” referem-se à duplicidade da própria realidade: por um lado, a realidade dada, pré-fabricada, a ser assimilada passivamente por aqueles que aceitam a imposição de “la Gran Costumbre” (73:315); por outro, a realidade a ser alcançada, ativamente formulada e construída por quem quer viver autenticamente, superando as limitações impostas pelo hábito, onde o ser não estaria falseado pelo sistema de convicções e conhecimentos herdados da tradição ocidental − “el otro lado de la costumbre” (73:314). Nesse sentido, Leônidas Câmara observa que “na ficção de Cortázar o recurso habitual da mutação da personagem no seu duplo está intimamente ligado a um ‘duplo registro’ da realidade” (1983, p. 25): Em Cortázar, que se debate na recusa do dualismo característico da cultura ocidental, com seu sistema binário de pensamento lógico, há extrema necessidade de insinuar na ficção uma ambiguidade de ordem metafísica e uma indagação ontológica permanente. As duas linhas teriam um ponto de convergência, toda vez que a realidade imposta pela vida pode ser violentamente transportada pela rivalidade desejada. Algo que se aproxima do romantismo, do primeiro romantismo alemão, quando se defronta com o dualismo finito e infinito, o eu e o não eu, posições delineadas por Kant e resolvidas pela atitude neoplatônica do Absoluto de Schelling, como se a filosofia – e assim pensa Schelling – nascesse da poesia. Uma nova ordem mitológica. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 419 (CÂMARA, 1983, p. 26) Câmara distingue, então, a abordagem psicológica da questão do duplo – desdobramento da pessoa em múltiplas personalidades – de uma abordagem mais própria à filosofia e à arte: “o duplo como instrumento de apreensão a-racional da realidade”. Para o autor, a distinção de personagens em duplos serve, assim, de base ora para a representação múltipla da realidade, ora para afirmação do irracionalismo (1983, p. 27)6. A Maga é figura-símbolo do irracionalismo proposto por Rayuela, irracionalismo não entendido como indiferença ou recusa total à razão, mas como rejeição a essa forma de razão proposta segundo os moldes ocidentais, motivada pela constatação de sua insuficiência; uma recusa aliada à busca de outras possibilidades de acesso ao conhecimento, por meio das quais se poderia ascender a outros níveis de compreensão do mundo, outras formas de encontro com o ser. O homem ocidental, do qual Oliveira é um grande exemplar, contudo, não pode prescindir tão facilmente de suas estruturas mentais, não pode mais escolher; é preciso, então, reinventar a partir de dentro, utilizando os mecanismos que tem às mãos e, por meio deles, recriar a realidade. Nossa verdade possível tem que ser invenção, afirma-se no capítulo 73, outro possível início da obra proposto pelo tabuleiro de direção. Para superar as dicotomias que viciam as escolhas e a compreensão do homem representado por Oliveira, para chegar ao outro lado do hábito, é preciso recriar a realidade. A via privilegiada por Oliveira-Cortázar, para isso, é a escritura, entendida como arte. Todo es escritura, es decir fábula. ¿Pero de qué nos sirve la verdad que tranquiliza al propietario honesto? Nuestra verdad posible tiene que ser invención, es decir escritura, literatura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas las turas de este mundo. Los valores, turas, la santidad, una tura, la sociedad, una tura, el amor, pura tura, la belleza, tura de turas (73:314). 6- Ver todo o estudo de Leônidas Câmara (1983) para uma visão mais ampla da questão do duplo em Cortázar, especialmente em Rayuela. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 420 REVISTA SABERES LETRAS A invenção, contudo, não é completa oposição ao mundo: não é possível ao homem dispor de outros elementos senão os que já tem. É preciso recriar a partir de dentro: Puede ser que haya otro mundo dentro de éste, pero no lo encontramos recortando su silueta en el tumulto fabuloso de los días y las vidas, no lo encontraremos ni en la atrofia ni en la hipertrofia. Ese mundo no existe, hay que crearlo como el fénix. Ese mundo existe en éste, pero como el agua en el oxígeno y el hidrógeno, o como en las páginas 78, 457, 3, 271, 688, 75 y 456 del diccionario de la Academia Española está lo necesario para escribir un cierto endecasílabo de Garcilaso. Digamos que este mundo es una figura, hay que leerla. Por leerla entendamos generarla. ¿A quién le importa un diccionario por el diccionario mismo? Si de delicadas alquimias, ósmosis y mezclas de simples surge por fin Beatriz a orillas del río, ¿cómo no sospechar maravilladamente lo que a su vez podría nacer de ella? (71:311) A Maga é invenção, criada por meio da combinação dos elementos da experiência de Oliveira com Lucía, de suas questões existenciais, de seus anseios e desejos; é produto e meta de sua escritura. O duplo registro da personagem, assim como a fragmentação do protagonista, é metáfora da multiplicidade da realidade, das várias possibilidades de acesso a essa realidade, seja pela via do conformismo falsificador, rejeitado por Oliveira, seja pela invenção criativa e possibilitadora do acesso autêntico, na qual ele se empenha. A Maga é sobretudo literatura, é símbolo da literatura, e é nesse sentido que é narrada. É claro, todo o livro é literatura, o leitor tem em mãos um romance. Mas há aqui um recuo metanarrativo: Oliveira, narrador, escreve uma personagem sobre outra, e reescreve-se a si próprio, reformula-se enquanto personagem. Oliveira desenha a Maga, projeta-se nela, idealiza-a, delata-a, deixa que o leitor perceba sua invenção. Ao escrever a Maga, explicita seu projeto, indica que por trás dela há Lucía, e desmascara assim seu jogo aos olhos do leitor. Não abdica, contudo, de continuar buscando a Maga, porque essa desistência seria a SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 421 confissão última e fatal de sua derrota. Toco tu boca, con un dedo toco el borde de tu boca, voy dibujándola como si saliera de mi mano, como si por primera vez tu boca se entreabriera, y me basta cerrar los ojos para deshacerlo todo y recomenzar, hago nacer cada vez la boca que deseo, la boca que mi mano elige y te dibuja en la cara, una boca elegida entre todas, con soberana libertad elegida por mí para dibujarla con mi mano en tu cara, y que por un azar que no busco comprender coincide exactamente con tu boca que sonríe por debajo de la que mi mano te dibuja. (7:36) Ao redesenhar Lucía, impondo-se sobre ela, Oliveira não pode deixar de perceber, contudo, que por baixo de seu desenho há uma outra boca que lhe sorri. Sob a idealização há o espelho. E é justamente para sentir-se soberano sobre o que vê no espelho que projeta e idealiza. A Maga é o reflexo de sua condenação e sua possibilidade de salvação. Espelho Ideal Não é fácil distinguir, na imagem, o que é reflexo daquele que se vê por meio de um espelho e o que é idealização, desejo. Lucía e Maga se complementam, se sobrepõem, se confundem constantemente. Os aspectos não se opõem nela, mas naquele que se vê refletido: Horacio, sim, é cindido, tem consciência de si, do que se tornou, e sabe vagamente o que gostaria de ser. A Maga é uma tomada de consciência, justamente no momento em que Oliveira gostaria de deixar de ser consciente. Ela é força poética, é ser, enquanto ele é no máximo poeta. Oliveira imagina, mas não pode se converter na imagem. Y así es cómo los que nos iluminan son los ciegos. Asi es cómo alguien, sin saberlo, llega a mostrarte irrefutablemente un camino que por su parte sería incapaz de seguir. La Maga no sabrá nunca cómo su dedo apuntaba hacia la fina raya que triza el espejo, hasta qué punto ciertos silencios, ciertas atenciones absurdas, ciertas carreras de ciempiés deslumbrado SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 422 REVISTA SABERES LETRAS eran el santo y seña para mi bien plantado estar en mí mismo, que no era estar en ninguna parte. En fin, eso de la fina raya… Si quieres ser feliz como me dices / No poetices, Horacio, no poetices7. (98:360) Pensar em Maga e Lucía como polos opostos de um movimento dialético é operar nela uma separação equivocada. A proposta final da obra é de superação da dialética: “el ser será otra cosa que cuerpos y, que cuerpos y almas y, que yo y lo otro, que ayer y mañana (61:295), e “Entre el Yin y el Yang, ¿cuántos eones? Del sí al no, ¿cuántos quizá?” (73:314). Na Maga, os opostos se integram numa unidade final. Em Oliveira, não, e é ele quem estabelece a oposição. O equívoco, então, é de Oliveira. Davi Arrigucci Jr. vê em Oliveira e na Maga a oposição antitética correspondente aos modos de encarar a realidade, de forma que cada um dos personagens encarna um dos polos das antinomias básicas características do pensamento ocidental: “Oliveira é a ‘razão’, e a Maga, a ‘intuição’; Oliveira é a ‘contemplação’, e a Maga, a ‘ação’, e assim por diante.” (2003, p. 287). Apoia-se na metáfora utilizada pelo próprio Oliveira8 para indicar a oposição entre o requinte cultural e modernidade histórica de Oliveira (Sèvres), por um lado, e “a dimensão primitiva e mágica de Lucía” (2003, p. 292 – diríamos “da Maga”), por outro. “Ao identificar, pela metáfora, a Maga com Babylone, Oliveira vê nela uma possibilidade de comunicação com a plenitude do real, com o ‘outro lado’, com a outridade, que é também uma outra idade, o não-tempo primordial da integralidade do ser” (2003, p. 292)9. É importante notar que na Maga não há oposição: embora ela represente para Oliveira o seu contrário, ou melhor, o 7- Referência aos versos do poeta espanhol Joaquín Bartrina (1850-1880): “Si quieres ser feliz, como me dices, / no analices, muchacho, no analices.” 8- “[…] y cambiamos dos palabras y nos fuimos a tomar una copa de pelure d’oignon en un café de Sévre-Babylone (hablando de metáforas, yo delicada porcelana recién desembarcada, HANDLE WITH CARE, y ella Babilonia, raíz de tiempo, cosa anterior, primeval being, terror y delicia de los comienzos, romanticismos de Atala pero con un tigre auténtico esperando detrás del árbol)” (93:352). 9- Todo o estudo de Arrigucci Jr., “A destruição arriscada”, é muito interessante, nesse sentido. (2003, p. 261-305) SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 423 contrário do que ele efetivamente é, indica também o que ele quer ser, o que vislumbra como possibilidade para si, e, portanto, é uma exposição do seu suposto ser potencial. A cisão está, assim, em Oliveira: a Maga é unidade, e a distinção nela entre as faces “Lucía” e “Maga” não é mais do que o reflexo da cisão de quem a vê. Por isso a Maga “não saberá nunca” que é a responsável pela percepção do estilhaçamento de Oliveira. Gregorovius, quando fala a Lucía, percebe que esta não se dá conta do que é capaz de provocar: “Es curioso cómo ha ido cambiando Horacio en estos meses que lo conozco. Usted no se ha dado cuenta, me imagino, demasiado cerca y responsable de ese cambio” (26:116). Horacio, de fato, havia evitado torná-la consciente do que se passava: Nunca te llevé a que madame Léonie te mirara la palma de la mano, a lo mejor tuve miedo de que leyera en tu mano alguna verdad sobre mí, porque fuiste siempre un espejo terrible, una espantosa máquina de repeticiones, y lo que llamamos amarnos fue quizá que yo estaba de pie delante de vos, con una flor amarilla10 en la mano, y vos sostenías dos velas verdes y el tiempo soplaba contra nuestras caras una lenta lluvia de renuncias y despedidas y tickets de metro (1:12). A preocupação de Horacio, no entanto, não se reduz a não revelar a Lucía o processo que ocorre por meio dela. Ele tem medo porque ainda não pode lidar tranquilamente com o que ela lhe revela. Inquieta-se, impacienta-se diante de uma imagem dupla de si mesmo, que não consegue ainda unificar. “Y así me había encontrado con la Maga, que era mi testigo y mi espía sin saberlo, y la irritación de estar pensando en todo eso y sabiendo que como siempre me costaba mucho menos pensar que ser […]” (2:18), narra. Diante disso, prefere fechar os olhos para si mesmo, para contemplar a Maga, e continuar buscando-a para, quem sabe, pela proximidade (alcançada pela escritura, essa forma de autocomposição), chegar a ser como ela. ��������������������������������������������������������� - Possível referência de Cortázar a seu próprio conto, “Una flor amarilla” (2007, p. 455-462), em que se aparece o tema do duplo e da imortalidade. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 424 REVISTA SABERES LETRAS Y mirá que apenas nos conocíamos y ya la vida urdía lo necesario para desencontrarnos minuciosamente. Como no sabías disimular me di cuenta en seguida de que para verte como yo quería era necesario empezar por cerrar los ojos, y entonces primero cosas como estrellas amarillas (moviéndose en una jalea de terciopelo), luego saltos rojos del humor y de las horas, ingreso paulatino en un mundo-Maga que era la torpeza y la confusión pero también helechos con la firma de la araña Klee, el circo Miró, los espejos de ceniza Vieira da Silva, un mundo donde te movías como un caballo de ajedrez que se moviera como una torre que se moviera como un alfil (1:13, grifos nossos). Tenta superar pela escrita o desencontro ocorrido na vida. Os olhos não podem, contudo, fechar-se de todo, já que para escrever a Maga é necessário usar palavras, as palavras de Oliveira, que a afastaram dela. Toda a composição do texto é, então, uma tentativa, nunca completamente lograda, de afastar-se de si próprio, de sua própria linguagem, para alcançar o mundo-Maga ansiado. “¿Por qué tan lejos de los dioses? Quizá por preguntarlo” (147:450), diz. O sucesso definitivo não é possível porque para ser como a Maga é necessário recusar de vez as palavras, estar somente. “Feliz de ella que podía creer sin ver, que formaba cuerpo con la duración, el continuo de la vida. Feliz de ella que estaba dentro de la pieza, que tenía derecho de ciudad en todo lo que tocaba y convivía, pez río abajo, hoja en el árbol, nube en el cielo, imagen en el poema” (3:25). Se não é possível prescindir da linguagem, se não há outro modo de encontrar-se com a Maga senão dizendo-a, é necessário mudar a linguagem, torná-la outra, transferi-la do lado Oliveira para o interior da Maga. Pela palavra renovada, estar dentro do ser. Entre la Maga y yo crece un cañaveral de palabras, apenas nos separan unas horas y unas cuadras y ya mi pena se llama pena, mi amor se llama mi amor… Cada vez iré sintiendo menos y recordando más, pero qué es el recuerdo sino el idioma de los sentimientos […]. Y no le hablo con las palabras que sólo han servido para no entendernos, ahora que ya es tarde empiezo a elegir otras, las de ella, las envueltas en eso que ella SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 425 comprende y que no tiene nombre, auras y tensiones que crispan el aire entre dos cuerpos o llenan de polvo de oro una habitación o un verso. […] No necesita saber como yo, puede vivir en el desorden sin que ninguna consciencia de orden la retenga. Ese desorden que es su orden misterioso, esa bohemia del cuerpo y el alma que le abre de par en par las verdaderas puertas. Su vida no es desorden más que para mí, enterrado en prejuicios que desprecio y respeto al mismo tiempo. Yo, condenado a ser absuelto pela Maga que me juzga sin saberlo. Ah, dejame entrar, dejame ver algún día como ven tus ojos (21:87-88, grifos nossos). As palavras que enchem de pó de ouro um quarto ou um verso só podem ser literatura, arte. A Maga é encontrada, como mencionado acima, sobre “el Pont des Arts”, e a voz madame Léonie, uma autorização mística, oposta aos preconceitos ocidentais, confirma que esse é seu lugar. Ponte das Artes: “el nombre alude simbólicamente al arte como puente para llegar a la Maga” (AMESTOY, 1972, p. 68). Em outro momento da narrativa, a Maga é encontrada saindo de uma livraria, sinal de sua composição literária, como o próprio Oliveira explicita: “Y ella salió de la librería (recién ahora me doy cuenta de que era como una metáfora, ella saliendo nada menos de que de una librería” (93:352). Os últimos episódios narrados da vida de Lucía estão ligados à literatura: uma carta que ela deixa a Rocamadour e um romance que ela havia lido (cap. 32 a 34). Varela Jácome, referindo-se à Maga, afirma que “configuram su presencia varias resonancias literarias” (1992, p. 166). A escritura idealizada da Maga ocorre por meio da transformação de Lucía em literatura, por parte de Oliveira-narrador. A busca pela Maga não é, assim, expressão e reflexo da busca de Oliveira e, com ele, do próprio Cortázar, pelo encontro com a palavra plena, que não mascare, mas que dê acesso ao ser. A Maga é a maior e mais completa representação, em Rayuela, da própria literatura. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 403 a 429 set. / dez. 2011 426 REVISTA SABERES LETRAS Referências ALEGRÍA, Fernando. Rayuela: o el orden del caos. In: CORTÁZAR, Julio. Rayuela. Ed. crítica, coordenação de Julio Ortega e Saúl Yurkievich. 2. ed. Madri; Paris; México; Buenos Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: Allca XX, 1996. AMESTOY, Lida Aronne. Cortázar: la novela mandala. Buenos Aires: Fernando García Cambeiro, 1972. ARRIGUCCI Jr., Davi. O escorpião encalacrado: a poética da destruição em Julio Cortázar. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. BARRENECHEA, Ana María. Génesis y circunstancias. In: CORTÁZAR, Julio. Rayuela. Ed. crítica, coordenação de Julio Ortega e Saúl Yurkievich. 2. ed. 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A questão do olhar em Machado, no entanto, parece apontar também para outra vertente: a impossibilidade real de conhecermos a verdade sobre alguém ou uma situação. A busca incansável por mudanças de expressão, giros de cabeça, olhares baixos ou de soslaio, que parecem esconder algo, surgem em Machado como a nos dizer, por imagens, o que Jacó Tavares, personagem das Memórias póstumas de Brás Cubas, tão bem expressou, verbalmente: que a sinceridade absoluta é incompatível com as sociedades modernas. Palavras-chave: Dom Casmurro, Machado de Assis, olhar, sociedade. Abstract: The metaphor of the look as a mirror of the soul has become increasingly frequent in Machado’s work, especially from the so-called second phase of the writer. Capitu is just one example among many, in the writings of the Wiizard of the Cosme Velho of how the eyes can keep unfathomable mysteries and dangers that can down, symbolically or literally, the least cautious observers. The question of the look in Machado, however, also seems to point to another aspect: the impossibility of knowing the real truth about someone or a situation. The relentless search for changes in expression, head turnings, looks down or sideways, which seems to hide something, rise in Machado to tell us, for images, what Jacó Tavares, from Memórias póstumas de Brás Cubas, so well expressed verbally: that absolute honesty is incompatible with modern societies. Keywords: Dom Casmurro, Machado de Assis, look, society. 1- * Mestre em Estudos Literários pela UFES, professor da Faculdade Saberes. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 430 a 443 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 431 Algumas considerações sobre o leitor e o olhar em Dom Casmurro, de Machado de Assis O resto aparecerá um dia, se aparecer algum dia. Conselheiro Aires Dom Casmurro, como em geral o restante da obra madura de Machado de Assis, é um livro lacunar. Bentinho a ele assim parece se referir, no Capítulo LIX: “Convivas de boa memória”. Logo após confessar não ser exímio em recordar fatos passados, incapaz de dizer quais calças usou no dia anterior (em contradição às minúcias narradas por ele sobre fatos ocorridos há quarenta anos), escreve: [...] E antes seja olvido que confusão, explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as cousas que não achei nele. Quantas idéias finas me acodem então! Que de reflexões profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas águas, as suas árvores, os seus altares, e os generais sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista. É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas. (Assis, 1997, p. 98) À exceção da falsa modéstia do trecho final, Bento parece resumir essa importante característica do romance, isto é, de ser recheado de lacunas que nos vedam – em última instância – uma leitura calcada em solo firme, isenta de dúvidas e SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 430 a 443 set. / dez. 2011 432 REVISTA SABERES LETRAS desconfianças. Logo no início, após apresentar o livro, o narrador se detém no capítulo “A denúncia” (cujo título se torna absolutamente sugestivo, logo que compreendemos a direção que o enredo tomará, mais à frente). No trecho, Bentinho narra o que secretamente ouviu da conversa entre José Dias, o agregado da família, e a mãe, D. Glória: – D. Glória, a senhora persiste na idéia de meter o nosso Bentinho no seminário? É mais que tempo, e já agora pode haver uma dificuldade. – Que dificuldade? – Uma grande dificuldade. Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua. – A gente do Pádua? – Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los. – Não acho. Metidos nos cantos? – É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase que não sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as cousas corressem de maneira, que... Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos, parecelhe que todos têm a alma cândida... (Assis, 1997, p. 15) O diálogo prossegue com D. Glória, apoiada por tio Cosme, optando por não aceitar a versão de José Dias, pois, para ela, Capitu e Bentinho são ainda “duas SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 430 a 443 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 433 criançolas”. A insistência faz a mãe do futuro seminarista verter algumas lágrimas, à lembrança do afastamento do filho. Vários capítulos à frente, comentando o que Bento ouvira, Capitu indaga ao amigo: – E que interesse tem José Dias em lembrar isto? perguntou-me no fim. – Acho que nenhum; foi só para fazer mal. É um sujeito muito ruim; mas, deixe estar que me há de pagar. Quando eu for dono da casa, quem vai para a rua é ele; você verá; não me fica um instante Mamãe é boa demais; dá-lhe atenção demais. Parece até que chorou. (Assis, 1997, p. 30) A pergunta de Capitu, que Bento tão prontamente responde, talvez merecesse maior atenção. Escapa à percepção do jovem a razão última do gesto estudado de José Dias, ao recordar à D. Glória a ideia do seminário que supunha talvez esquecido e, de quebra, lançar a ponta de uma dúvida (seria a primeira “ponta de Iago?”) a respeito das relações do “filho amantíssimo” com a filha do funcionário do Ministério da Guerra. Certamente, seu interesse pode ser, tão somente, “fazer mal”. Mas há outras possibilidades, em um livro tão ambíguo. O agregado pode também supor que, sem Bentinho em casa, e com tio Cosme e tia Justina já idosos, ele é quem passará a dar as cartas por lá. A razão ainda pode ser outra. Uma vez que José Dias não morre de amores por Pádua, nada mais natural que transferir seus sentimentos à filha deste, e, assim, impedir um possível casamento que seria vantajoso, tanto para Capitu, como para toda a sua família. De fato, há em Dom Casmurro, parece, certo teatro entre os agregados, cada um nutrindo para si um pouco daquele “amor da nomeada”, do qual nos fala Brás Cubas, mas que, entre aqueles que vivem do favor, pode ser traduzido como necessidade e sobrevivência2. 2- O trecho é o do episódio em que, nas Memórias Póstumas, o pai de Brás vem visitá-lo na Tijuca, onde se encontra recluso, para chamar-lhe de volta à vida em sociedade: “E foi por diante o mágico, a agitar diante de mim um chocalho, como me faziam, em pequeno, para eu andar depressa, e a flor da hipocondria recolheu-se ao botão para deixar a outra flor menos amarela, e nada mórbida - o amor da nomeada, o emplasto Brás Cubas” (Assis, 2000, p. 60). O caso dos agregados de Dom Casmurro, no entanto, parece se ajustar mais à situação de Dona Plácida, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 430 a 443 set. / dez. 2011 434 REVISTA SABERES LETRAS Assim é que Prima Justina sente ciúmes de Capitu, quando esta se encarrega de cuidar de D. Glória na ocasião de uma febre, permanecendo dia e noite na alcova daquela senhora (“Não precisa correr tanto; o que tiver de ser seu às mãos lhe há de ir” diz-lhe a velha viúva3.). A fala do Pádua à Bento, quando vem se despedir do adolescente, às vésperas deste ir para o seminário, é também um bom exemplo desse teatro (“Se algum dia perder sua mãe e seu tio, – cousa que eu, por esta luz que me alumia, não desejo, porque são boas pessoas, excelentes pessoas, e eu sou grato às finezas recebidas... Não, eu não sou como outros, certos parasitas, vindos de fora para desunião das famílias, aduladores baixos, não; Eu sou de outra espécie; não vivo papando os jantares nem morando em casa alheia... Enfim, são os mais felizes!4”), bem como o engraçado – mas não menos significativo – episódio em que o pai de Capitu e o agregado da família Santiago brigam para ver quem levará o pálio na procissão (com vitória para o segundo).5 Finalmente, poderíamos extrapolar e imaginar que o cinqüentenário José Dias guardasse para si algum sentimento a mais do que gratidão pela viúva mãe de Bentinho. Também nesse caso, a ausência do adolescente na casa seria bem vinda... Mas isso já seria superinterpretar a obra... O fato é que a razão última do gesto de José Dias não pode ser alcançada, com certeza de sucesso, nem pelos personagens, nem pelo leitor. que, para escapar à miséria, torna-se cúmplice dos amores de Brás e Virgília, sendo por isso muito grata ao casal de amantes. “Estive lá muitos meses, um ano, mais de um ano, agregada, costurando. Saí quando Iaiá casou. Depois vivi como Deus foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas mãos... E mostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas da agulha. – Não se cria isto à toa, meu senhor; Deus sabe como é que isto se cria... Felizmente, Iaiá me protegeu, e o senhor doutor também... Eu tinha um medo de acabar na rua, pedindo esmola . . .” (Assis, 2000, p. 106) 3- Assis, 1997, p. 110. 4- Assis, 1997, p. 85. 5- Ainda sobre as relações entre Pádua e José Dias, deve-se lembrar que o agregado é o único na casa de D. Glória que o chama, pejorativamente, de “Tartaruga”, por conta da aparência física do funcionário do Ministério da Guerra. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 430 a 443 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 435 O olhar Não à toa, os personagens estão sempre em busca de significação para qualquer gesto, mover de cabeça, tom de voz dado a uma frase e, principalmente, a maneira de olhar do outro. A metáfora do olhar como espelho da alma está presente em Dom Casmurro, como a ratificar um tema tão caro ao romance: a dissimulação. Palavra presente em mais de uma ocasião, dá mesmo título ao capítulo LXV. Nele, Bento a utiliza de maneira quase inocente: Mas comi mal, estava tão contente com aquela grande dissimulação de Capitu que não vi mais nada, e, logo que almocei, corri a referir-lhe a conversa e a louvarlhe a astúcia. Capitu sorriu de agradecida. – Você tem razão, Capitu, concluí eu; vamos enganar toda esta gente. (Assis, 1997, p. 109) Nós a vemos transformada em verbo, no Capítulo LXXVI, quando Capitu oferece ao marido explicações sobre ter ou não olhado um rapaz que passava a cavalo: Confessou-me que não conhecia o rapaz, senão como os outros que ali passavam às tardes, a cavalo ou a pé. Se olhara para ele, era prova exatamente de não haver nada entre ambos; se houvesse, era natural dissimular. (Assis, 1997, p. 123) Também surge no Capítulo CXXVI, quase ao fim do romance, quando o narrador procura vestígios da culpa da esposa: Não seria o mesmo caso de Capitu. Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajuntamento de pessoas que devia naturalmente impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. (Assis, 1997, p. 191) SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 430 a 443 set. / dez. 2011 436 REVISTA SABERES LETRAS Tendo-se por base que nenhum dos personagens diz de fato o que mora em seu interior, dissimulando a todo instante, necessário é buscar suas verdadeiras razões e interesses nos gestos e olhares em que aqueles se deixam entrever, mesmo que à revelia dos “atores”, se assim podemos chamar a Bento e aos seus, tendo por base a comparação de que a vida é uma ópera, ouvida pelo narrador de um tenor italiano6. Lembremo-nos do que diz José Dias ao “filho amantíssimo” de D. Glória sobre Capitu: A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o Diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. (Assis, 1997, p. 40) Bento, a partir desse momento, é que começará a observar mais detidamente os olhos da amiga: – Juro. Deixe ver os olhos, Capitu. Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada.” Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixouse fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, 6- Em um longo capítulo, Marcolini, um tenor italiano, já decadente, expõe a Bentinho o sig� nificado da definição: “A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimários. Há coros a numer� osos, muitos bailados, e a orquestração é excelente...” (Assis, 1997, p. 13). Às negações de Bento, ele completa, observando que, na ópera do mundo, Deus é o poeta e a música é de Satanás. Este último, após tentativa de rebelião, quando sua partitura não foi aceita, levou o libreto de Deus para o inferno, compôs sobre ele e o trouxe de volta para que o Criador lhe re-admitisse no céu com a obra. Deus aceitou a ópera, mas sua execução deveria ser feita em um teatro especial, isto é, nosso planeta. (Assis, 1997, p. 14-15) SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 430 a 443 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 437 enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que... (Assis, 1997, p. 53-54) Se José Dias dá a primeira definição célebre dos olhos de Capitu, Bentinho é quem dá a segunda. Note-se, no entanto, que se a do agregado faz duvidar moralmente da personagem, a do futuro marido confere-lhes (aos olhos) um estranho poder, a ponto de irmaná-los à própria natureza: Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. (Assis, 1997, p. 54) Em um romance no qual as personagens sabidamente mentem sobre suas naturezas e o real sentido de seus atos, a busca incessante por enxergar atrás das aparências surge como a única saída possível. Assim, nos momentos de dúvida ou desconfiança, perscrutar o olhar do outro é chave para se descobrir “o que for menos claro ou totalmente escuro”7. 7- Trata-se do obscuro trecho de Esaú e Jacó, romance de Machado imediatamente posterior a Dom Casmurro. Aires (se é que podemos dizer com segurança que é Aires o narrador desse romance, aparentemente escrito em terceira pessoa pela personagem do Conselheiro) assim se expressa: “Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro. Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade espécie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trebelhos”. (Assis, 2001, p. 54) SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 430 a 443 set. / dez. 2011 438 REVISTA SABERES LETRAS Durante algum tempo não pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de cor. José Dias tornou a perguntar o que era, sacudia-me com brandura, levantava-me o queixo e espetava os olhos em mim, ansioso também, como a prima Justina na véspera. (Assis, 1997, p. 41) Também Escobar “espeta” em Bentinho os olhos para tirar deles o motivo do amigo parecer distraído: Ouvia, espetando-me os olhos. Três dias depois disse que me estavam achando muito distraído; era bom disfarçar o mais que pudesse. Ele, à sua parte, tinha razões para andar distraído também, mas buscava ficar atento. (Assis, 1997, p. 124) Ainda são para os olhos, desta vez de Ezequiel, que Capitu (curiosamente, Capitu) chama a atenção do marido: – Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita? perguntou-me Capitu. Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado de papai, não precisa revirar os olhos, assim, assim... Era depois de jantar, estávamos ainda à mesa, Capitu brincava com o filho, ou ele com ela, ou um com outro, porque, em verdade, queriam-se muito, mas é também certo que ele me queria ainda mais a mim. Aproximei-me de Ezequiel, achei que Capitu tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não me pareceram esquisitos por isso. Afinal não haveria mais que meia dúzia de expressões no mundo, e muitas semelhanças se dariam naturalmente. Ezequiel não entendeu nada, olhou espantado para ela e para mim, e afinal saltou-me ao colo [...] (Assis, 1997, p. 196-197) Ser Capitu aquela que faz ver a Bentinho a semelhança é uma das graças do capítulo (e certamente outra urdidura de Machado de Assis, no que tange a SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 430 a 443 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 439 plantar a dúvida sobre o adultério no tribunal particular do leitor – Afinal, por que uma esposa adúltera ajudaria a erguer o muro de sua culpa à vista do marido?). Independente disso, e também do futuro casmurro não aparentar ligar para o detalhe, ao término do capítulo, ele mesmo escreverá: “fiquemos nos olhos de Ezequiel”, pois os olhos, aqui, mais uma vez, é que deverão (ou deveriam) revelar a verdade. O leitor no circuito Se as personagens estão sempre em busca de decifração, de uma verdade que lhes foi velada, escondida ao olhar mais prosaico e desatento, também o leitor, antes que perceba, será envolvido por esse torvelinho, e como os seres de papel e tinta que saem da pena do autor, passará a também observar, medir e qualificar este ou outro comportamento daqueles primeiros. Não foi esta a única vez que Machado fez do leitor voyeur da comédia humana que se desenrola aos olhos das suas personagens: contos como “Uns braços” e “Galeria póstuma” são alguns dos que apontam para situações semelhantes. No primeiro, assistimos o que vê o jovem Inácio: os braços do título, de propriedade de D. Severina, esposa do solicitador Borges: [...] Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo. [...] Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar. (Gledson, 1998, p. 299) Da mesma forma, Bento mirava os de Capitu e nós por ele. O segundo conto citado, bastante curioso, trata de um diário íntimo encontrado após a morte da amável figura de Joaquim Fidélis. A ironia do nome do finado não é à toa, uma vez que a galeria dos tipos que o bom homem elenca no texto póstumo, e que, para surpresa nossa, ali desanca sem pudor, é a mesma gente para quem sorria em vida, ironia bem machadiana. Junto com seu sobrinho Benjamim, acompanhamos, estarrecidos, a leitura do documento, que depois será vedado a olhares de terceiros. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 430 a 443 set. / dez. 2011 440 REVISTA SABERES LETRAS Benjamim ia lendo; de repente deu com o Diogo Vilares. E leu estas poucas linhas: Diogo Vilares. – Tenho-me referido muitas vezes a este amigo, e fá-lo-ei algumas outras mais, se ele me não matar de tédio, coisa em que o reputo profissional. Pediu-me há anos que lhe arranjasse um emprego, e arranjei-lho. Não me avisou da moeda em que me pagaria. Que singular gratidão. Chegou ao excesso de compor um soneto e publicá-lo. Falava-me do obséquio a cada passo, dava-me grandes nomes, enfim, acabou. [...] Bom pai de família [...] Estúpido e crédulo. [...] A primeira sensação de Benjamim foi a do perigo evitado. Se o Diogo Vilares estivesse ali? Releu o retrato e mal podia crer; mas não havia negá-lo, era o próprio nome do Diogo Vilares, era a mesma letra do tio. E não era o único dos familiares [...] (Gledson, 1998, p. 87) Em “A causa secreta”, talvez mais do que nos demais, o olhar de espreita sobre uma personagem (e, conseqüentemente, sobre as crueldades por ela praticadas) é transferido ao leitor, cúmplice-voyeur. Garcia, que assiste às maldades de Fortunato, o médico pretensamente altruísta, cuja razão última de suas ações parece ser o prazer que sente com “a dor alheia, física ou moral”, espanta-se com sua descoberta, ao mesmo tempo em que não consegue desviar dela sua atenção. Do mesmo modo o leitor. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até à chama, rápido, para não matá-lo e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 430 a 443 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 441 – Mate-o logo! Disse-lhe. – Já vai. (Gledson, 1998, p. 294) Em Dom Casmurro, então, o leitor, ao espreitar (e, por conseguinte, desconfiar), parece lançado em um mundo de inverdades, verdades aparentes e dissimulação, todos temas caros aos contos já citados e, em última instância, à obra de Machado de Assis como um todo. Considerações finais: Uma leitura para ruminar8 O leitor de uma obra assim, cujas lacunas dos personagens e do enredo precisam ser preenchidas por meio da interpretação, será o “leitor ruminante”, de que o narrador de Esaú e Jacó (Aires?) faz menção, a certa altura do livro: Tal foi a conclusão de Aires, segundo se lê no Memorial. Tal será a do leitor, se gosta de concluir. Note que aqui lhe poupei o trabalho de Aires; não o obriguei a achar por si o que, de outras vezes, é obrigado a fazer. O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida. (Assis, 2001, p. 159) Da mesma maneira que as personagens “ruminam” aquilo que ouvem e vêem, o leitor de Dom Casmurro se sente no interesse de fazê-lo também, com o objetivo de descobrir a verdade, “que estava, ou parecia estar escondida”. Quando os olhos do leitor se movem como os das personagens, cheios de desconfiança e suspeita, Machado parece chamar a atenção para as relações e “enredos” que caminham por debaixo das “franjas do mar” que compõem o escuro oceano da trama social (apenas para usar uma metáfora marítima, o que 8- A crítica de Dom Casmurro parece também ter ruminado o romance durante a história de sua recepção: situado à época da publicação como uma história sobre o adultério, apenas no início dos anos 1960, com o livro de Helen Caldwell, O Otelo brasileiro de Machado de Assis, o romance passou a ser lido sob o signo da dúvida, uma dúvida a pairar sobre o narrador-ciumento. Mais recentemente, estudos como de John Gledson (Impostura e realismo: uma reinterpretação de Dom Casmurro, 1991) e Roberto Schwarz (Duas meninas, 1997) passam a entender o enredo como emblema das relações (frustradas) entre classes diferentes. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 430 a 443 set. / dez. 2011 442 REVISTA SABERES LETRAS talvez fosse do agrado de Bentinho). Vista da superfície, também a verdade nem sempre é tão clara e nítida como escritores anteriores ou contemporâneos ao autor de Dom Casmurro (e até mesmo posteriores a ele) poderiam talvez supor. “Instinto de nacionalidade”, seu famoso ensaio de 1873, entre outras coisas, postulava que “o que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país” (Bosi, 1982, p. 383). Quando nos deparamos com a possível natureza desse país, cheio de contradições, uma nação que se queria moderna, mas que, a despeito disso, foi a última das Américas a abolir o trabalho escravo, mais necessário parece ser o olhar de desconfiança para com tudo. Mais que uma postura literária, uma postura crítica. Assim, fazendo de seu texto um construto enigmático, de rara sofisticação, Machado de Assis indica como pode ser verdadeira – e ao mesmo tempo perigosa – a afirmação que Bento, tão singelamente, professa sobre a “verossimilhança, que é muita vez toda a verdade”. (Assis, 1997, p.16) Bento, o único que, em última instância, talvez nenhuma desconfiança real possuísse, apesar das aparências, mas uma certeza fria que se deixa entrever na denúncia final, após a reunião de todas as “provas” e “indícios” elencados durante a narrativa: E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganandome... A terra lhes seja leve! Vamos à “História dos Subúrbios”. (Assis, 1997, p. 217) “Se tais certezas a ele confortam, deixemos que fique com elas. Mas não as queirais para vós, amados leitores”, talvez nos sussurre, de algum canto remoto de nossa própria consciência, Machado de Assis. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 430 a 443 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 443 Referências ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Globo, 1997. ____ Esaú e Jacó. São Paulo: Ediouro, 2001. ____ Memorial de Aires. São Paulo: Ática, 2000. ____ Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 2000. BOSI, Alfredo (Org.). Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982. CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ateliê Editorial, 2002. GLEDSON, John (Org.). Machado de Assis, Contos: uma antologia. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 2. ____ Machado de Assis: impostura e realismo: uma reinterpretação de Dom Casmurro. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 430 a 443 set. / dez. 2011 444 REVISTA SABERES LETRAS Seção III Estudos sobre o Ensino REVISTA SABERES LETRAS 445 UMA NOTÍCIA DE PESQUISA: A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ESPÍRITO SANTO: LEITURA, LITERATURA E MATERIAIS DIDÁTICOS Adriana Falqueto Lemos1* Anna Catharina Izoton Mariano2** Maria Amélia Dalvi3*** Sérgio Alves de Novais4**** Resumo Trata-se de notícia de pesquisa que toma parte no projeto interinstitucional (UEL, UERN, UFES, UFLA, UFMA, UFPA, UFU, UNIFAL, UNEMAT e USP) intitulado “Disciplinas da licenciatura voltadas para o ensino de Língua Portuguesa”. Na pesquisa aqui apresentada o foco está nas abordagens da leitura, da literatura e dos materiais didáticos nas disciplinas da formação docente inicial nos cursos de Letras5 e Pedagogia da UFES. Caracteriza-se como bibliográfico-documental, sendo sua abordagem teórico-metodológica histórico-cultural (Chartier, 1988, 2002a, 2002b, 2003). A produção e a análise de dados supõem a consideração de fontes documentais escritas atinentes aos cursos de licenciatura em Letras e Pedagogia levados a turno pela instituição-sede. Visa a: a) investigar 1-* Graduanda em Letras-Inglês e voluntária de Iniciação Científica da UFES. 2- ** Graduanda em Letras-Português e bolsista de Iniciação Científica pela UFES/Facitec. 3- *** Professora do Departamento de Linguagens, Cultura e Educação do Centro de Educação da UFES. 4- **** Graduando em Letras-Português/Francês e bolsista de Iniciação Científica da UFES. 5- Atualmente, a Universidade Federal do Espírito Santo conta com cinco cursos de Licenciatura em Letras, sendo quatro deles voltados à formação de professores de Língua Portuguesa (LetrasPortuguês/Literatura; Letras-Português/Espanhol; Letras-Português/Francês; e Letras-Português/ Italiano). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 446 REVISTA SABERES LETRAS representações sobre o que seja a “adequada” formação inicial do professor de Língua Portuguesa, em relação à leitura, à literatura e aos materiais didáticos; e b) propor discussões sobre a existência de um objeto que caracterize o campo do qual se encarregaria a Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, no âmbito dos cursos de formação de professores de língua materna. Palavras-chave: Formação de Professores. Leitura. Literatura. Materiais Didáticos. Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa. Abstract: This is research news that takes part in the institutions (UEL UERN, UFES, UFLA, UFMA, UFPA, UFU, UNIFAL, UNEMAT and USP) project entitled “Subjects of the teaching degree course focused on the teaching of Portuguese language.” In the research here presented the focus is on the approaching in reading, literature and textbooks in the disciplines of initial teacher training courses in Literature [5] and Pedagogy of UFES. The research is characterized as bibliographic and documentary, with a theoretical-methodological historicalcultural approach (Chartier, 1988, 2002a, 2002b, 2003). Production and analysis of data imply the consideration of written documentary sources relating to undergraduate courses in Teaching Degree and Education led by the institution. It aims to: a) investigate depictions of what is an “appropriate” teacher of Portuguese training in relation to reading, literature and materials; and b) call forth for discussions on the existence of an object that characterizes the field which would undertake the Methodology of Portuguese Language Teaching, as part of training courses for mother-tongue language teachers. Keywords: Teacher Formation. Reading. Literature. Instructional Materials. Portuguese Teaching Methodology. Introdução O principal problema a ser abordado na pesquisa “A formação do professor de Língua Portuguesa no Espírito Santo: abordagens da leitura, da literatura e dos materiais didáticos”, que aqui noticiamos, são as práticas, representações e saberes mobilizados no interior das disciplinas voltadas especificamente à formação de professores de Língua Portuguesa nos cursos de Letras e de Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo, em cotejo com as realidades de cursos de outras instituições sediadas no Brasil, tais como UEL, SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 447 UERN, UFLA, UFMA, UFPA, UFU, UNIFAL, UNEMAT e USP6; no caso deste projeto, enfocaremos particularmente as abordagens da leitura, da literatura e dos materiais didáticos no âmbito das disciplinas que compõem a área de estudos tradicionalmente conhecida como “Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa”. Dito de outro modo: queremos saber como se afigura a formação do professor de Língua Portuguesa levada a turno na formação docente inicial em Letras e em Pedagogia, no que tange à leitura, à literatura e aos materiais didáticos, na instituição-sede da pesquisa (a saber, a Universidade Federal do Espírito Santo), para cotejá-la com a realidade de outras instituições públicas de formação de professores de Língua Portuguesa, em outros estados do país. Perguntamo-nos, de saída: a) que representações da formação de professores e da metodologia do ensino de língua portuguesa os documentos escritos (projetos políticopedagógicos, matrizes curriculares, ementários, planos de curso, relatórios de estágio e outros materiais escritos que circulam nos cursos de licenciatura em Letras e em Pedagogia) dão a ver?; b) que conhecimentos, saberes, objetivos, práticas, materiais, referências e métodos têm sido recorrentes nos cursos de Letras e Pedagogia no que concerne à formação do professor de língua portuguesa, especialmente no que tange à leitura, à literatura e aos materiais didáticos? Entendemos que a delimitação da pesquisa em torno da leitura, da literatura e dos materiais didáticos atende ao propósito de contribuir com novas reflexões no entorno das temáticas estruturadoras de nosso recorte: formação de professores de Língua Portuguesa, leitura, literatura e materiais didáticos – pois, parece-nos, conforme a revisão de literatura empreendida em Dalvi (2010), que os temas leitura, literatura e materiais didáticos são, individualmente, bem pesquisados, mas há relativamente poucos estudos que os conjugam. Assim sendo, para melhor qualificarmos nosso problema de pesquisa, subdividimos sua apresentação em duas partes: uma dedicada à formação de professores no Brasil e à formação de professores para o ensino de Língua Portuguesa na educação básica; e outra dedicada à apresentação da pesquisa propriamente ����������������������������������������������������������������������������������������������� - Essas instituições são as que, no momento, participam da pesquisa interinstitucional, com en� contros virtuais (por meio das novas tecnologias de informação e comunicação, como video� conferências, e-mails e chats de conversação) e por meio de encontros periódicos presenciais, realizados nos campi das distintas instituições. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 448 REVISTA SABERES LETRAS dita. A formação de professores no Brasil e a formação de professores para o ensino de Língua Portuguesa na educação básica O tema “formação docente” ou “formação de professores” nunca esteve fora da ordem do dia, no Brasil. Mas, nos últimos anos, especialmente após a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96), que elevou a formação dos professores das séries iniciais ao nível superior, o tema tem angariado muitos estudos e motivado intensos debates. Porém, os estudos e debates surgidos na esteira da nova LDB ou como consequência das atividades dos centros de pesquisa brasileiros não são consoantes entre si – embora indiquem, em sua maioria, a necessidade de se repensarem os rumos da formação docente inicial em nível superior7, não apenas daqueles que atuarão nas séries iniciais, mas também dos que atuarão nos anos subsequentes do ensino fundamental e do médio. No cerne das discussões está, quase sempre, o questionamento acerca dos projetos e saberes implicados na formação inicial dos profissionais do magistério. Como afirma Helena Freitas, (...) o debate sobre políticas de formação de professores evoca dois movimentos (...): o movimento dos educadores e sua trajetória em prol da reformulação dos cursos de formação dos profissionais da educação; e o processo de definição das políticas públicas no campo da educação, em particular da formação de professores8 (FREITAS, 2002, p. 136). Como parte deste debate, trazemos à baila a questão da formação do professor de português como língua materna – especificamente daquele profissional licenciado em Letras-Português, ou duplamente habilitado, em língua portuguesa e em uma língua estrangeira, e do profissional licenciado em Pedagogia, que 7- Consulte-se a respeito GATTI, B. A. Formação de professores e carreira: problemas e movi� mentos de renovação. 2. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2000. 8- A expressão mais visível de tais políticas está nos Referenciais Curriculares para Formação de Professores (1999), no Parecer 115/99, que criou os institutos superiores de educação, e nas Diretrizes Curriculares para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica em Nível Superior (2001). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 449 atuará nas séries iniciais; obviamente, não porque a preocupação com a leitura e, assim, também com a literatura e os materiais didáticos utilizados para tais fins seja exclusivamente tarefa do professor de português como língua materna9, mas porque tais professores são parte inequívoca do processo10: (...) os licenciandos de hoje, às voltas com suas próprias dificuldades, terão em breve a responsabilidade de fazer com que crianças e jovens usem a leitura e a escrita dentro e fora da escola para fins sociais de comunicação, expressão pessoal, busca e registro de informações e ainda para a fruição da literatura como experiência estética (CARVALHO, 2001, p. 8). A criação e o estabelecimento de cursos destinados precipuamente à preparação de professores – como é o caso, hoje, das licenciaturas, dentre as quais se incluem as em Letras e em Pedagogia – para o exercício do magistério estão vinculados à institucionalização da instrução pública e, também, à secularização da educação11. 9- Marlene Carvalho defende que são necessárias mudanças na formação de todos os professores que atuarão na educação básica, visando a um domínio mais amplo da língua escrita, tanto em termos de produção, quanto em termos de recepção de textos complexos, uma vez que “a questão dos usos da língua não compete apenas aos que vão ensinar português” (CARVALHO, 2001, p. 8). Consulte-se a respeito CARVALHO, M. A leitura dos futuros professores: por uma pedagogia da leitura no ensino superior. Teias: Revista da Faculdade de Educação da Uerj. n. 5 (junho de 2002). Rio de Janeiro: Uerj, Faculdade de Educação, 2001, p. 7-20. ����������������������������������������������������������������������������������������� - É o que afirma, por exemplo, Sabine Vanhulle. A autora propõe mudanças na formação de professores de língua materna a partir da participação conjunta das faculdades de Letras e de Educação, uma vez que tais professores têm um papel preponderante na aquisição de compe� tências para o exercício pleno da leitura e da produção linguística oral e/ou escrita por parte dos estudantes alvo do que, no Brasil, denominamos como “educação básica”. Consulte-se a respeito VANHULLE, S. La littérature dans la formation des futurs enseignants. In Les cahiers du Service de Pédagogie Experimentale. Service de Pédagogie Experimentale. Université de Liège, n. 1 et 2, jan. 2000. ��������������������������������������������������������������������������������������������� - Para um retrospecto mais amplo acerca da história da formação docente em Portugal e, espe� cialmente, no Brasil, consulte-se CATANI, A. M.; OLIVEIRA, R. P. de (orgs.). Reformas educacionais em Portugal e no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000; FIGUEIREDO, M. C. M.; COWEN, R. Modelos de cursos de formação de professores e mudanças em políticas: um estudo sobre o Brasil. In BROCK, C.; SCHWARTZMAN, S. (orgs.). Os desafios da educação no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 181-196; SAVIANI, D. et al. O legado educacional do século XX no Brasil. 2. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2006; e TANURI, L. M. História da formação de professores. In Revista Brasileira de Educação. N. 14 (maio a agosto de 2000). São Paulo: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, 2000, p. 61-88. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 450 REVISTA SABERES LETRAS No Brasil, a criação das chamadas “escolas normais” – um dos primeiros tipos de instituição voltada à preparação de profissionais docentes – resultou de uma importação de modelos europeus (o que explica, ao menos em parte, seu caráter “transplantado” e se justifica pelas contradições internas inerentes à nossa sociedade); tal modelo coincidiu com o projeto do grupo social mais conservador de consolidar sua postura política e ideológica e, assim, assegurar sua hegemonia12. Como isso se fez? Basicamente, pela redução do currículo de formação do professor a um currículo mínimo, que compreendia, normalmente: a) apenas noções básicas de língua portuguesa, matemática, história, geografia e de “doutrina cristã”; e b) uma rudimentar formação pedagógica, de caráter essencialmente prescritivo. De lá para cá, os cursos de formação de professores têm sobrevivido a diversas mudanças de rumos, até desembocar no estágio atual, em que, por exemplo, a Associação Nacional para a Formação de Profissionais da Educação (Anfope) se vê na obrigação de sugerir ou solicitar ao poder público que as políticas de formação inicial privilegiem o caráter científico e acadêmico, ao invés do caráter técnico-profissional13. Ora, este breve retrospecto nos faz deduzir que, se ainda é necessário explicar ou justificar, como o faz a Anfope, a importância de as políticas de formação inicial privilegiarem o caráter científico e acadêmico, ao invés do caráter técnico-profissional, está provado continuar em vigor, ainda hoje, uma política de formação docente que propõe a redução do currículo de formação do professor a um currículo mínimo, reduzido aos saberes indispensáveis à reprodução do conhecimento, e não à sua produção, em sentido mais amplo14: �������������������������������������������������������������������������������������������� - Heloisa Villela desenvolve a idéia de que a criação da Escola Normal da Província do Rio de Janeiro, a saber, a primeira “escola normal” brasileira, ainda no século XIX, não representou apenas a transplantação de um modelo europeu, mas, também, a consolidação e a expansão da supremacia do grupo que se encontrava no poder. Consulte-se VILLELA, H. de O. S. “A primeira escola normal do Brasil”. In: Nunes, C. (org.). O passado sempre presente. São Paulo: Cortez, 1992. ���������������������������������������� - A respeito do assunto, consulte-se o Boletim da Anfope. Ano XIII, n. 01. Outubro de 2007. Disponível em http://lite.fae.unicamp.br/anfope/novo/html/boletim_outubro_007.html. ��������������������������������������������������������������������������������������������� - “A educação aqui [no Brasil] – monopólio dos jesuítas por, pelo menos, os primeiros duzen� tos anos de colonização – fez de mestres e alunos (...) repetidores da lição, impossibilitando a produção de conhecimento. (...) Nunca conhecemos o mestre que produzia conhecimento, nunca experimentamos verdadeiramente uma relação de discipulação” (GUEDES, 2006, p. 15-16). SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 451 (...) O professor se constituirá socialmente [a partir do Mercantilismo, e até hoje] como um sujeito que domina um certo saber, isto é, o produto do trabalho científico, a que tem acesso em sua formação, sem se tornar ele próprio produtor de conhecimentos. (...) Não convivendo com a pesquisa e com os pesquisadores e tampouco sendo responsável pela produção do que vai ensinar, o professor (e sua escola) está sempre um passo aquém da atualidade. No entanto, sua competência se medirá pelo seu acompanhamento e atualização. Neste sentido, o professor emerge como categoria sob o signo da desatualização (GERALDI, 1991, p. 86). Todavia, como nos lembra Freitas (2002), em decorrência do esforço dos educadores e de sua trajetória em prol da reformulação dos cursos de formação dos profissionais da educação, os professores licenciados nas últimas décadas têm ao menos parcialmente clareza de que a formação que recebem não é adequada ao que a profissão lhes exige. É o que atesta, por exemplo, Celso Ferrarezi Jr, a respeito dos cursos de Letras.: “(...) é opinião corrente entre a maioria dos professores de língua materna no país [que] a formação na área (...) é muito simplória” (2008, p. 9). Se tal ocorre é porque, embora de maneira fragmentada, os licenciandos em Letras e em Pedagogia ouvem falar, ao longo de sua formação, que linguagem e ideologia são intrinsecamente vinculadas; que a concepção que se tem de língua determina relações de poder mais ou menos democráticas; que é necessário aprofundamento teórico para que o professor possa compreender com mais clareza as dificuldades por que seus alunos passam e para que possa propor estratégias de superação eficazes para essas mesmas dificuldades; que o livro didático não é ou não deve ser o principal instrumento de trabalho do professor de português; que compete (também) ao professor a ampliação do universo cultural de seus alunos; que é necessário formar alunos efetivamente leitores, alunos efetivamente críticos, alunos efetivamente aptos ao trabalho com textos das mais diversas procedências; que o ensino de língua e literatura não se excluem; que o ensino de gramática não pode se pautar por uma concepção elitista e autoritária; que não se deve desprezar a variante linguística que o aluno traz consigo, oriunda de suas redes sociais; que não se deve SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 452 REVISTA SABERES LETRAS trabalhar a produção de texto descontextualizadamente; que o professor deve partir de situações concretas para a formulação de problemas que exijam dos alunos a proposição de possibilidades de respostas às demandas da realidade; que o professor deve ser um pesquisador, consciente dos métodos que aplica e pautado em teorias consistentemente embasadas; etc. – o que talvez nos permita entender, ao menos parcialmente, o porquê de muitos dos licenciados ou licenciandos em Letras e em Pedagogia terem uma enorme insegurança relativa à sua formação e, assim, à sua competência para o exercício profissional: sabem que o que fazem ou o que farão não é “o adequado”, mas, por outro lado, não sabem ou acham que não sabem fazer de outra forma. Destarte, num contexto em que: a) o tema formação docente está em voga; b) os estudos e debates mais fecundos na área da educação apontam a necessidade de se repensarem os rumos da formação docente no país; c) a participação do professor de português como língua materna na apropriação da leitura (e, assim, também da literatura) e dos materiais didáticos destinados a tal fim é inegável; e d) muitos dos licenciados ou licenciandos em Letras e em Pedagogia têm uma enorme insegurança relativa à própria formação e à própria competência para o exercício profissional; faz-se necessário saber quais são as práticas, representações e saberes mobilizados no âmbito das disciplinas entrelaçados à Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, justamente para que se possa conhecer melhor a realidade da formação docente inicial nesta área e planejar e propor mudanças de rumo, que, certamente, refletir-se-ão na qualidade da educação básica – não em uma perspectiva de “diagnosticar” o que está “inadequado”, mas de conhecer o que se tem feito, e pensar juntos a respeito. Como consequência das pesquisas em Linguística e Linguística Aplicada (nos anos de 1970), da divulgação dessas pesquisas ao grande público (nos anos de 1980), da instituição de uma nova Lei de Diretrizes e Bases e de Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental e médio (nos anos de 1990) e, ainda, como consequência das discussões / pesquisas relativas à formação docente inicial do professor de língua materna (Kleiman, Matêncio, 2005; Bunzen, Mendonça, 2006; Guedes, 2006; Andrade, 2007; Signori, 2007; Mendes, Castro, 2008; Daher, Giorgi, Rodrigues, 2009; Bortoni-Ricardo, Machado, Castanheira, 2010; Oliveira, 2010; Harmuch, Saleh, 2011), as mudanças implementadas nos projetos de curso das Instituições de Ensino Superior que formam professores de Língua SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 453 Portuguesa vêm exigir que se repense a existência ou não de um perfil claramente delimitado para o professor de Língua Portuguesa que atuará na educação básica e, portanto, a existência ou não de uma disciplina (como um campo de saber) que se afiguraria como Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa (MELP). Além disso, entre aqueles que se ocupam da formação inicial do professor, tendo em vista uma escola básica democrática e de qualidade, as discussões no que concerne à leitura, à literatura e aos materiais didáticos ainda estão aquém do desejado, como demonstra a revisão de literatura empreendida, por exemplo, em Dalvi (2010). Nesse sentido, com foco específico na formação de professores de Língua Portuguesa no estado do Espírito Santo, tendo por recorte as abordagens da leitura, da literatura e dos materiais didáticos nas disciplinas das licenciaturas em Letras e em Pedagogia na única universidade pública capixaba, o projeto aqui apresentado pretende dar continuidade a importantes mapeamentos já realizados15. Tomamos como um dos exemplos o relatório técnico da pesquisa desenvolvida pela Fundação Carlos Chagas, sob encomenda da Secretaria de Educação do Espírito Santo, intitulada “Formação de professores para o ensino fundamental: instituições formadoras e seus currículos no Espírito Santo”, que foi publicado em novembro de 2009 (FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, 2009). A formação de professores de Língua Portuguesa no Espírito Santo: abordagens da leitura, da literatura e dos materiais didáticos A pesquisa que aqui noticiamos toma parte no projeto interinstitucional (UEL, UERN, UFES, UFLA, UFMA, UFPA, UFU, UNIFAL, UNEMAT e USP) intitulado “Disciplinas da licenciatura voltadas para o ensino de Língua Portuguesa: saberes e práticas na formação docente”, que tem como objeto práticas, representações e saberes mobilizados no âmbito da Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa. A pesquisa interinstitucional é coordenada nacionalmente pelos professores Maria Núbia Barbosa Bonfim (UFMA) e Valdir Heitor Barzotto (USP), sendo implementada por vários pesquisadores em diferentes instituições ���������������������������������������������������������������������������������������������� - Referimo-nos, aqui, a dissertações e teses que têm sido dadas a lume por pesquisadores vin� culados ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização, Leitura e Escrita do Espírito Santo (Nepales), ao qual esta pesquisa também está vinculada. Ao longo da última década pelo menos 20 (vinte) dissertações e teses tratam da formação de professores de Língua Portuguesa no Espíri� to Santo, seja na educação infantil, no ensino fundamental ou no ensino médio. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 454 REVISTA SABERES LETRAS de ensino superior sediadas no país. O projeto interinstitucional obteve apoio em 2009 do PROCAD-CAPES (cooperação acadêmica entre USP, UERN e UFMA) e, com a vinculação das outras universidades, encontra-se em pleno desenvolvimento no que se refere aos intercâmbios de pós-graduandos, às pesquisas documentais e às observações em salas de aula nos diferentes estados. Foram obtidos financiamentos de agências de pesquisa em Minas Gerais (Fapemig) e no Maranhão (Fapema). No momento, a pesquisa interinstitucional passa por uma ampliação de sua atuação, estabelecendo diálogos com pesquisadores de outras instituições brasileiras (sediadas em Goiás, Rondônia e Tocantis), e com a possibilidade de incorporação de pesquisadores de Costa Rica, Honduras e Portugal. No estado do Espírito Santo, o projeto está registrado na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo e foi contemplado pelo edital do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica 2011-2012 com duas bolsas estudantis, por 12 (doze) meses, no período de agosto/2011 a julho/2012. O projeto também foi submetido à Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (Fapes), com previsão de resultado em novembro/2011 – à Fapes foi pedida uma outra bolsa estudantil, pelo período de 24 (vinte e quatro) meses, além de subsídio para aquisição de equipamentos e mobiliário para o espaço físico destinado à pesquisa. A coordenadora, com dedicação exclusiva à Universidade Federal do Espírito Santo, conta com a atribuição de 10 (dez) horas semanais para dedicação aos trabalhos deste projeto. Caracterizando-se como uma pesquisa bibliográfico-documental, cuja abordagem teórico-metodológica é histórico-cultural (Chartier, 1988, 2002a, 2002b, 2003), a produção e a análise de dados (“A formação do professor de Língua Portuguesa no Espírito Santo: abordagens da leitura, da literatura e dos materiais didáticos”) supõe a consideração de fontes documentais escritas que circulam nos cursos de licenciatura em Letras-Português e em Pedagogia levados a turno pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). A leitura a ser empreendida das fontes documentais estabelecerá diálogo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, com as Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica em cursos de nível superior, com as Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil, para o Ensino Fundamental e SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 455 para o Ensino Médio e com os Parâmetros e Referenciais Curriculares para a Educação Básica. Visa a: a) investigar representações sobre o que seja a “adequada” formação inicial do professor de Língua Portuguesa, especialmente em relação à leitura, à literatura e aos materiais didáticos, identificando as práticas e os saberes mobilizados no que concerne ao tema, em conformidade com os documentos escritos atinentes aos cursos de Letras-Português e de Pedagogia levados a turno na UFES; e b) propor, em diálogo com os demais participantes da pesquisa interinstitucional, discussões sobre a existência ou não de um objeto específico que caracterize o campo do qual se encarregariam as disciplinas diretamente relacionadas à Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, no âmbito dos cursos de formação de professores de língua materna. As disciplinas dos cursos de formação docente inicial de Letras e Pedagogia que estarão em foco serão: “Alfabetização I”, “Alfabetização II” e “Português: conteúdo e metodologia”, no curso de Pedagogia, e “Estágio Supervisionado I” e “Estágio Supervisionado II”, no curso de Letras-Português, além de outras optativas em ambos os cursos, como os “Tópicos Especiais” e os “Laboratórios de Práticas Culturais”. Investigaremos as disciplinas e, portanto, as ementas, os objetivos, os conteúdos, os materiais, os métodos e a bibliografia dos planos de curso atinentes, no que concerne à leitura, à literatura e aos materiais didáticos, levando em consideração, simultaneamente, outros documentos escritos, como, por exemplo, os projetos político-pedagógicos, as matrizes curriculares, os relatórios de estágio e demais materiais pertinentes. Entende-se que essa pesquisa, que historiografa o presente, possibilitará, a despeito das já previsíveis lacunas, caracterizar o período atual em relação às práticas e representações em curso e também em relação às bases da constituição de uma nova comunidade de interpretação e, portanto, de uma apropriação específica (Chartier, 2002), no que concerne à formação dos professores de Língua Portuguesa no Espírito Santo. Esta é uma primeira etapa; um desdobramento posterior previsto para o projeto é que as práticas escolares de ensino de Língua Portuguesa no estado do Espírito Santo (especialmente no que concerne à leitura, à literatura e aos materiais didáticos) se tornem o objeto privilegiado de investigação, estabelecendo um circuito entre Universidade – escola – Universidade – escola etc. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 456 REVISTA SABERES LETRAS Os objetivos do projeto aqui noticiado são os seguintes: a) Compreender representações do que seja a intentada formação inicial do professor de Língua Portuguesa nos cursos de licenciatura em Letras-Português e Pedagogia oferecidos pela UFES, a partir do exame de fontes documentais escritas, especialmente no que tange à leitura, à literatura e aos materiais didáticos; e b) Propor, em diálogo com o projeto interinstitucional, discussões sobre a existência ou não de um objeto específico que caracterize o campo do qual se encarregam as disciplinas voltadas à formação do professor de Língua Portuguesa nos cursos de licenciatura em Letras-Português e em Pedagogia oferecidos pela UFES, em cotejo com as experiências em outras instituições públicas de ensino superior que atuam na formação de professores. Quanto às metas traçadas, a pesquisa “A formação de professores de Língua Portuguesa no Espírito Santo: abordagens da leitura, da literatura e dos materiais didáticos” propõe: a) Inventariar um corpo bibliográfico-documental que esteja à disposição de outros pesquisadores, in loco e/ou por um sítio virtual na Internet; b) Contribuir para a formação de jovens pesquisadores através da Iniciação Científica, com vistas a futuras pesquisas em nível de pós-graduação (lato e stricto sensu); c) Participar de eventos nacionais e internacionais pertinentes às áreas de estudos envolvidas, para apresentação de resultados parciais e finais, bem como para intercâmbio de saberes e experiências; d) Publicar artigos em anais de eventos, em periódicos qualificados (pelo Qualis Educação e pelo Qualis Letras e Linguística) e em livros, em suporte impresso ou eletrônico, para debate das questões contempladas pela pesquisa, sempre tendo em vista dialogar com a comunidade interna e externa à UFES; e e) Refletir coletivamente sobre possíveis/necessários ajustes na formação de professores de Língua Portuguesa âmbito dos cursos de Letras-Português e de Pedagogia oferecidos pela UFES especialmente no que concerne à leitura, à literatura e aos materiais didáticos. Caracterizando-se como uma pesquisa bibliográfico-documental, cuja abordagem teórico-metodológica é histórico-cultural (a partir dos trabalhos de Roger Chartier, 1988, 2002a, 2002b e 2003), a produção, a análise e a discussão de dados supõe a consideração de fontes documentais escritas (projetos políticopedagógicos, matrizes curriculares, ementários, planos de curso, relatórios de estágio etc.) que circulam nos cursos de licenciatura em Letras e em Pedagogia SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 457 da UFES. Pretende-se, em um primeiro momento, levantar tais documentos junto aos órgãos responsáveis (professores das disciplinas, Departamentos, Colegiados de Curso e Pró-Reitoria de Graduação), reproduzi-los digitalmente e organizá-los arquivisticamente. Em um segundo momento, lê-los em separado e em seu conjunto, tendo em vista a produção de dados que considerem, para além das informações textualmente explicitadas, os gêneros, os suportes, as instâncias enunciativas e os protocolos de leitura atinentes a cada caso16. A leitura a ser empreendida das fontes documentais estabelecerá diálogo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, com as Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica em cursos de nível superior, com as Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil, para o Ensino Fundamental e para o Ensino Médio e com os Parâmetros e Referenciais Curriculares para a Educação Básica. Considerar-se-á, em todo o processo, que os documentos em questão são produzidos por instâncias responsáveis pela formação de professores e se fundamentam, simultaneamente, em propostas, parâmetros e diretrizes oficiais e em documentos de divulgação de conhecimentos produzidos academicamente (artigos, ensaios, guias, livros etc.); são documentos, portanto, que apresentam duplo caráter: de normatização e de formação. Desse modo, a análise terá como objetivo conhecer: a) as relações interdiscursivas (ou representações) que são atinentes à Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa e à formação de professores de Língua Portuguesa, no que concerne à leitura, à literatura e aos materiais didáticos, no âmbito dos cursos de licenciatura em Letras e em Pedagogia, da UFES, considerando simultaneamente as práticas e saberes mobilizados; e b) as posições discursivas ou representações atribuídas, nos documentos em análise, ao professor em formação, ao professor formador, aos documentos oficiais e às instâncias acadêmicas de produção e divulgação do saber pertinente à área, especialmente no que concerne à leitura, à literatura e aos materiais didáticos. ������������������������������������������������������������������������������������������� - O mesmo procedimento será adotado com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, com as Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica em cursos de nível superior, com as Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil, para o Ensino Fundamental e para o Ensino Médio e com os Parâmetros e Referenciais Curriculares para a Educação Básica, que se encontram disponíveis na Internet, para consulta pública, no sítio virtual do Ministério da Educação. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 458 REVISTA SABERES LETRAS No pensamento de Dominique Maingueneau (1997, 2002 e 2005), nos interessa, para a implementação da pesquisa apresentada, a ideia de que a produção discursiva se faz de acordo com uma semântica global, com base num sistema de restrições; considera-se, pois, que a determinados discursos correspondem estruturações textuais específicas, isto é, que os gêneros textuais estão em concordância com a semântica de uma dada formação discursiva. Nesse sentido, a observação de elementos constituintes de determinada estruturação textual, do intradiscurso, do modo como um discurso se desenvolve na materialidade, sua formulação, se constitui um meio de observação das características do(s) discurso(s) em que o(s) texto(s) se inscreve(m). As noções teóricas privilegiadas no âmbito de nossa pesquisa, no pensamento de Roger Chartier (1988, 2002a, 2002b e 2003), serão as de objeto cultural, representações culturais, práticas culturais, comunidades de interpretação e apropriação – noções desenvolvidas e exemplificadas em Dalvi (2010) e em outros artigos. O pensamento chartieriano nos auxilia a darmos um passo além da preocupação discursiva presente no pensamento maingueneauniano, superando-a pela vinculação entre práticas e representações, no âmbito de experiências históricas e culturais praticadas/representadas e apropriadas por comunidades específicas. Outro passo além, ao adotarmos o pensamento chartieriano para as análises, é a possibilidade de tomarmos os documentos escritos não apenas como fonte, mas principalmente como legítimos objetos de pesquisa. Dizemos isso porque, para Roger Chartier, a Nova História Cultural “tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler” (CHARTIER, 1990, p. 16-17). As leituras e discussões realizadas serão registradas por meio de diários de pesquisa, fichamentos, tabelas especialmente produzidas para o levantamento/ produção de dados, e, enfim, darão origem a textos nos quais se explicitem o passo a passo percorrido, bem como as análises efetuadas, sempre em diálogo com os trabalhos do grupo interinstitucional. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 459 A equipe executora, as principais contribuições da proposta e as razões de socializá-la, em estágio embrionário, com a comunidade científica Acreditamos que, do ponto de vista do conhecimento científico, a proposta aqui delineada é de grande interesse, dado seu ineditismo (em contemplar, no Espírito Santo, a formação de professores de Língua Portuguesa, tanto para as séries iniciais – no curso de Pedagogia –, quanto para as séries finais do ensino fundamental e para o ensino médio – nos cursos de Letras) e sua possibilidade em contribuir para um panorama nacional acerca da implementação das disciplinas vinculadas à área do conhecimento conhecida como “Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa”. Outro ponto importante é que a pesquisa aqui afigurada dá sequência a uma série de estudos que se vêm realizando, vinculadas, sobretudo, ao Nepales, sobre a história do ensino e da formação de professores de Língua Portuguesa no Espírito Santo, contribuindo substancialmente ao oferecer um panorama do tempo presente. Como indicadores de resultado, ao final do projeto (em julho de 2013), apontamos os seguintes: a) Criação e publicização de um inventário de documentos referentes à formação de professores de Língua Portuguesa nos cursos de Letras e Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo; b) Participação dos membros do grupo em pelo menos três eventos locais ou nacionais ou internacionais para divulgação dos resultados de pesquisa; c) Publicação de pelo menos três trabalhos do grupo relativos à pesquisa, em anais de eventos, periódicos ou livros; d) Organização de um evento local e de um evento interinstitucional para mútua formação e divulgação/debate dos resultados de pesquisa, com publicação dos trabalhos; e) Criação e manutenção de um sítio na internet do grupo de pesquisa, com informações pertinentes à pesquisa; f) Oferta de dois cursos de extensão nas áreas de formação de professores, leitura, literatura e materiais didáticos, com no mínimo 50 vagas/ano, totalizando pelo menos 100 vagas. Como repercussão e/ou parte dos resultados esperados temos: a) Formação de estudantes de graduação como pesquisadores, no âmbito teórico-prático, preparando-os a dar continuidade aos estudos em nível de pós-graduação; b) Formação continuada de professores já em exercício na educação básica, através SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 460 REVISTA SABERES LETRAS de atualizações nas áreas de formação docente, leitura, literatura e materiais didáticos; e c) Interlocução com os departamentos da UFES envolvidos na formação de professores de Língua Portuguesa nos cursos de Letras e Pedagogia e com as Secretarias Municipais e Estadual de Educação, com apresentação dos resultados da pesquisa, tendo em vista possíveis revisões curriculares e projetos de parceria na formação de professores. Para a consecução dos objetivos propostos, nossa equipe é composta de uma coordenadora, uma assessora, três pesquisadores e três estudantes de iniciação científica: Prof.ª Dr.ª Cleonara Maria Schwartz (UFES) – pesquisadora; Prof.ª Dr.ª Maria Amélia Dalvi (UFES) – coordenadora e pesquisadora; Prof.ª Dr.ª Neide Luzia de Rezende (USP) – pesquisadora e assessora; Adriana Falqueto Lemos, Anna Catharina Izoton Alves Mariano e Sérgio Alves de Novais (estudante de graduação e de iniciação científica, UFES). As parcerias interinstitucionais da pesquisa que damos a conhecimento da comunidade científica são estabelecidas com docentes da graduação e da pós-graduação, na área de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa nas seguintes instituições: Universidade Estadual de Londrina, Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, Universidade Federal de Lavras, Universidade Federal do Maranhão, Universidade Federal do Pará, Universidade Federal de Uberlândia, Universidade Federal de Alfenas, Universidade do Estado de Mato Grosso e Universidade de São Paulo. Nesse sentido, realizam-se intercâmbios presenciais ou virtuais, nos quais se fazem relatos de experiência das pesquisas em casa instituição, rediscutindo-se os pressupostos teórico-metodológicos e os resultados parciais. A importância de um grupo tão diversificado é evidente: há instituições tradicionais e com programas de pós-graduação consolidados; outras instituições menos tradicionais, mas que constituem pólos regionais de grande importância; e instituições novas, algumas recém-criadas, com seus cursos de licenciatura ainda em fase de estruturação – tudo isso certamente contribui para que os resultados de cada grupo local e o intercâmbio interinstitucional sejam ainda mais ricos, já que abrangendo instituições de perfis muito díspares entre si, com práticas, representações e saberes extremamente diversificados. A equipe interdisciplinar do projeto maior ao qual este nosso projeto se vincula é SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 461 composta pelos seguintes membros: a) Coordenadores: Prof.ª Dr.ª Maria Núbia Barbosa Bonfim e Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto; b) Assessores / consultores técnicos: Prof. Dr. Antonio Paulino de Sousa, Prof. Dr. Claudemir Belintane, Prof.ª Dr.ª Claudia Rosa Riolfi, Prof. Dr. Émerson de Pietri, Prof.ª, Dr.ª Idméa Semeghini-Siqueira, Prof.ª Dr.ª Neide Luzia de Rezende, Prof. Dr. Sandoval Nonato Gomes Santos e Prof.ª Dr.ª Veraluce Lima dos Santos; e c) Pesquisadores: professores da área de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa das seguintes instituições: UEL, UERN, UFES, UFLA, UFMA, UFPA, UFU, UNIFAL, UNEMAT e USP. A equipe realiza encontros regulares, presenciais e virtuais (por vídeo-conferência, e-mail ou chat de conversação), para discussões de natureza teórico-metodológica e de resultados parciais de pesquisa. O último encontro foi realizado no estado do Rio Grande do Norte e o próximo encontro, em 2011, está previsto para ocorrer no estado de Minas Gerais. O estado do Espírito Santo deve ser incluído como sede na agenda das próximas reuniões, no ano de 2012 ou 2013. Além disso, cabe reforçar que os resultados parciais são publicados no sítio virtual do Grupo de Estudos e Pesquisas em Produção Escrita e Psicanálise (http://paje.fe.usp.br/~geppep/ index.htm) e na revista MELP (Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa) da Faculdade de Educação da USP. Algumas das possíveis dificuldades e riscos potenciais que poderão interferir na execução das ações propostas nesta notícia são os seguintes: a) a dificuldade em se obterem os documentos escritos necessários à pesquisa – para contornála, o pedido de cópia desses documentos será oficialmente protocolado junto aos departamentos e centros envolvidos, de modo que qualquer negativa tenha que ser feita por caminhos oficiais, os quais permitem apelação junto a instâncias superiores; b) a dificuldade em manter diálogo com a equipe interinstitucional, dada a distância entre as instituições – para contorná-la se pretende usar dos meios virtuais; c) a dificuldade em se obter um espaço físico junto ao Centro de Educação para alocação dos equipamentos que seja 100% seguro – para contorná-la, já obtivemos a concordância da coordenação do Nepales para compartilhamos o espaço físico da sala e já conseguimos que a sala 22 do Edifício IC-4, na qual desenvolveremos a pesquisa, tivesse suas grades, fechaduras e trancas substituídas; d) o reduzido número de bolsistas de pesquisa e a possibilidade de que desistam da pesquisa para se dedicarem SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 462 REVISTA SABERES LETRAS a empregos ou estágios – para contorná-lo concorremos a todos os editais de bolsas no âmbito da Ufes e contamos com voluntários de pesquisa, procurando esclarecer a importância desse tipo de formação para quem pretende seguir uma carreira acadêmica; e) o alto custo de participação nos eventos fora do estado, especialmente para os bolsistas e voluntários de iniciação científica – para contorná-lo pediremos auxílio à PRPPG da UFES e demais agências de fomento, sempre que for pertinente; f) a possibilidade de que eventuais relatos de pesquisa / artigos não sejam aceitos para apresentação em eventos ou para a publicação em periódicos – para contorná-la submeteremos propostas a diversos eventos e periódicos; e g) o diminuto montante de recursos destinado a financiamento de projetos não experimentais, nas agências de fomento municipal e estadual – para contorná-lo subsidiaremos parte da pesquisa com recursos próprios (especialmente no que concerne à aquisição de materiais bibliográficos). Parece-nos, reafirmando o que dissemos na introdução, que o mais importante, ao socializarmos esta pesquisa em estágio embrionário, é a possibilidade de que outros pesquisadores (professores ou estudantes) possam se identificar (por adesão ou oposição) com a temática, o recorte, a filiação teórico-metodológica e, quem sabe, possam vir compor nossa equipe (local e interinstitucional), enriquecendo os diálogos e ofertando a possibilidade de consideração de outros dados, diferentes dos que já dispomos. Acreditamos nisso porque a pesquisa acadêmico-científica deve ter como ponto de partida e como ponto de chegada o diálogo com as questões candentes de nossas práticas e representações sociais: e, não é preciso dizer, a formação de professores de língua portuguesa é uma delas, tendo em vista o anseio coletivo de incremento de qualidade de nossa educação básica. Nesse sentido, esta notícia de pesquisa é, mais do que uma prestação de contas à sociedade do tempo porque somos remunerados no serviço público, um convite à(s) parceria(s). Referências ANDRADE, L. T. Professores leitores e sua formação: transformações discursivas de conhecimentos e de saberes. Belo Horizonte: Autêntica; Ceale, 2007. ANFOPE. As diretrizes curriculares para a graduação e os cursos de formação dos profissionais da educação. Disponível em http://lite.fae.unicamp.br/ SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 463 anfope/. Acesso em 19 de julho de 2008. ANFOPE. Boletim da Anfope. Ano XIII. n.º 01. Outubro de 2007. Disponível em http://lite.fae.unicamp.br/anfope/novo/html/boletim_outubro_007.html. Acesso em 20 de julho de 2008. BORTONI-RICARDO, S. M.; MACHADO, V. R.; CASTANHEIRA, S. F. Formação do professor como agente letrador. São Paulo: Contexto, 2010. BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. (Org.). 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SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 445 a 465 set. / dez. 2011 466 REVISTA SABERES LETRAS Um estudo da concepção de leitura presente nas atividades de compreensão e interpretação de textos do ensino fundamental Danielle Maximo Plens Pinelli Adriana Recla Resumo O presente artigo tem por finalidade evidenciar uma análise de algumas atividades de compreensão e interpretação de texto, presentes nas apostilas destinadas a 8ª série do Ensino Fundamental, de uma escola particular, visando uma abordagem da(s) concepção(s) de leitura que orienta essas atividades. Verificamos, por meio desse artigo, o quanto à concepção de leitura de quem elabora as atividades de compreensão e interpretação de texto reflete na aprendizagem do aluno. Palavras-chave: Leitura. Atividades. Ensino. Abstract: This article aims to highlight a review of some activities to understand and interpret text, present in the handouts for the 8th grade of elementary school,a private school, seeking an approach (s) design (s) reading that guides these activities. We found through this article, read about the design of those planning activities to understand and interpret text reflects on student learning. Keywords: Reading. Activities. Teaching. Introdução A leitura deixou, há tempos, de ser concebida como mera decodificação da escrita, ou representação do pensamento. Por muitas décadas a leitura foi postulada na escola como uma atividade intramuros, utilizada com fim pedagógico e utilitário. Seguindo esses pressupostos, cabia ao leitor o papel de um sujeito SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 467 passivo, que decodificava o código linguístico, a fim de compreender o sentido do texto estabelecido apenas pelo autor. Hoje, é inconcebível essa concepção, pois a leitura é compreendida como uma atividade complexa, como um trabalho ativo realizado pelo leitor, em que se busca estabelecer um sentido ao que está sendo lido, por meio da interação “autor-texto-leitor”, (Koch e Elias, 2006). Trata-se, portanto, de um processo em que os indivíduos interagem dialogicamente com o texto, trocando experiências e estabelecendo sentidos socialmente construídos. A leitura deve ser percebida pelo educador e pelo educando como um processo que vai além das simples decodificações das palavras de um texto, ou seja, como uma forma de se apropriar e de se interagir no e com o mundo. Solé (1996, p.33) considera que o problema do ensino da leitura na escola não se situa no nível do método, mas na própria conceitualização do que é leitura. Assim, a proposição de colocá-la como atividade interacional vem cada vez mais galgando patamares sustentáveis na disciplina de língua Portuguesa. Chartier (2001, p. 247) afirma que é muito importante à prática da leitura, sendo absolutamente interessante discernir o que o leitor diz sobre suas leituras, afinal, ela é um “espaço próprio de apropriação” de novos conhecimentos e de enriquecimentos dos já adquiridos. Por sua vez, Bourdieu (IN CHARTIER, 2001) postula a importância da leitura como prática social, ressaltando que o livro é algo que permite agir à distância, afinal, tem poder de agir sobre as estruturas mentais e a partir dessas chegar às estruturas sociais devido ao seu poder simbólico. Por meio da reflexão de Bourdier (op.cit) se evidencia também que o livro pode transformar a visão do mundo social e através da visão do mundo transformar também o próprio mundo social. Garcez (2004) acrescenta uma outra reflexão a respeito da leitura ao considerála como um processo muito complexo que envolve a decodificação de signos; interpretação de itens lexicais e gramaticais; agrupamento de palavras em blocos conceituais; identificação de palavras-chave; seleção e hierarquização de ideias; SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 468 REVISTA SABERES LETRAS associação de informações anteriores; antecipação de informações; elaboração de hipóteses; construção de inferências; compreensão de pressupostos; reorientação dos próprios procedimentos mentais e outros. Além desses procedimentos apontados por Garcez, podemos recorrer a alguns conceitos que são extremamente relevantes para compreendermos o que vem a ser a leitura, como, por exemplo, as noções de sentido, estratégia, objetivos da leitura, representações mentais e leitura e ensino. Enfim, conceberemos neste trabalho a leitura como uma atividade de interação entre autor-texto-leitor, que envolve uma série de procedimentos complexos, realizados em uma dimensão linguística, social, discursiva e cognitiva. A linguística textual preconiza a concepção de leitura sócio-cognitivointeracional, considerando-se os sujeitos como autores e/ou construtores sociais, sujeitos ativos que constroem-se e são construídos no texto, considerando o próprio texto como um lugar da interação e da constituição dos sujeitos. A noção de língua/gem vista em uma perspectiva dialógica e interacional (Bakthin, 2000), deve ser, atualmente, o pressuposto básico de todos os professores de língua materna para a realização dos diferentes trabalhos elaborados na escola, entre eles, os que envolvem a leitura. O ensino da leitura, em muitas instituições escolares, ainda se encontra deficiente, por conta de atividades inadequadas, sem objetivos, e também devido à má compreensão que o professor tem sobre esse conceito. Infelizmente, na maioria das atividades de compreensão e interpretação de textos, permanece o hábito de se considerar a leitura como mera decodificação da escrita ou representação do pensamento; o leitor é visto como uma pessoa passiva que recebe a informação presente no texto, sendo o seu concebido como algo pronto e pré-estabelecido pelo autor. Diante dos questionamentos acima apontados e da ausência de atividades que proponham um ensino proficiente de leitura, resolvemos analisar alguns exercícios presentes nas apostilas destinadas a 8ª série do Ensino Fundamental de uma escola particular, observando qual a concepção de leitura que orienta essas atividades. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 469 Queremos propor uma reflexão sobre o ensino da leitura, afim de que ela seja considerada uma atividade complexa realizada por um leitor ativo que utiliza uma série de estratégias ao interagir com o texto e, a partir dele, constrói sentidos. A seguir, discutiremos sobre os principais conceitos que envolvem a leitura, pensando em um ensino real, pautando-nos principalmente em uma perspectiva sócio-cognitiva e interacional da linguagem. Leitura e Produção de Sentido Sabemos da dificuldade que muitos leitores têm para compreenderem um texto, pois não entendem que eles próprios atuam no processo de construção de seu sentido, ocorrido, por exemplo, por meio de seus objetivos, conhecimentos prévios e estratégias. Isso significa, que nem todos os leitores possuem os mesmos conhecimentos prévios, as mesmas experiências, sendo assim, tornase evidente que, muitas vezes, a compreensão pode até ser parecida, mas nem sempre a mesma. Dessa forma, o sentido de um texto não é apenas resultado de uma intenção estabelecida apenas pelo seu autor. Ambos (autor e leitor) estão envolvidos na construção desse sentido. Koch e Elias (2006) propõem dois fatores relevantes para que o leitor estabeleça um sentido ao texto. O primeiro deles se refere à relação do autor com o leitor, pois envolve os conhecimentos que ambos partilham sobre a língua, o gênero textual e o tipo textual. O segundo, diz respeito ao texto, mais especificamente aos aspectos nãolinguistiscos como, por exemplo, “tamanho e clareza das letras, cor do papel, a fonte empregada, a constituição de parágrafos muito longos, e outros” além dos aspectos lingüísticos como “léxico pouco conhecido, ausência ou inadequação do uso de sinais de pontuação”, etc (p. 24-31). Além dos fatores acima, acrescentamos que todo processo de leitura é decorrente de conhecimento prévio do leitor, como já mencionamos, que interpreta, constrói e reconstrói sentidos aos textos e, a todo o momento, incorpora tais conhecimentos sob a forma de esquemas mentais. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 470 REVISTA SABERES LETRAS Assim, compreensão de um texto também se dá pela nossa memória, pois temos um conhecimento já estruturado sobre alguns eventos determinados por meio de nossa cultura, assuntos, situações, que chamamos de esquemas. Esses esquemas estão diretamente relacionados com a organização do conhecimento e com a forma de processamento da informação. Van Dijk (1996) postula como se dá à organização do processamento da informação e aplicação do conhecimento, e, partindo desses dois pressupostos, cria às noções de representação textual e modelo de situação. Para esse autor, (1996) um discurso torna-se compreensível de acordo com a relação que o usuário da língua tem desse modelo na memória; se ele constrói ou recupera um determinado modelo do discurso, diria-se que compreendeu o texto e que ele é concebido como coerente. Dessa maneira, segundo Van Dijk, (op.cit.) quando o leitor tenta imaginar do que o texto trata, ele está criando um modelo de situação. Esses modelos são fabricados a partir de nossos conhecimentos, experiências pessoais, etc. Os modelos podem estar armazenados na memória semântica ou social, por meio de frames (forma de conhecimento de ordem mais geral) e scripts (seqüência linear de ações) ou ainda por meio da memória episódica ou individual, que está atrelada às experiências pessoais das pessoas com o mundo. Para Koch e Elias (2006) o processamento textual envolve alguns tipos de conhecimento como o lingüístico, o de mundo, e o interacional. O conhecimento lingüístico refere-se aos conhecimentos lexical e gramatical que o usuário possui. O conhecimento de mundo está relacionado às experiências pessoais vivenciadas pelas pessoas que podem ser de ordem social ou individual e o conhecimento interacional refere-se às interações por meio da linguagem e envolvem os conhecimentos ilocucional, comunicacional, metacomunicativo e superestrutural (ver Koch e Elias, 2006, p. 45-56). É necessário comentar que o leitor, além de ativar as formas de conhecimento, acima discutidas, também realiza uma série de estratégias que contribuem, e muito, para a construção do sentido de sua leitura. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 471 Estratégias e objetivos de leitura Quando o leitor realiza uma leitura de maneira estratégica dizemos que é um leitor ativo, que sabe quando não está compreendendo um texto e, assim, orienta seus próprios procedimentos, supervisionando sua compreensão de leitura, a fim de que ela torne-se mais proficiente. Van Dijk e Kintsch (IN VAN DIJK, 1996, p. 169) postulam “que os usuários da língua realizam passos interpretativos finalisticamente orientados, efetivos, eficientes, flexíveis, tentativos, em vários níveis ao mesmo tempo”. Para Solé (1998), as estratégias de leitura são consideradas “suspeitas inteligentes”, elas envolvem a ideia principal, que se refere a seleção que o leitor opera cognitivamente a fim de saber o que é essencial em um texto, a previsão, a qual consiste na eliminação de alternativas que são improváveis para a continuidade do texto, e a inferência que está relacionada ao esforço do leitor para elaborar um sentido ao texto, partindo, muitas vezes de ideias que encontram-se implícitas nele. Podemos dizer que essas estratégias são realizadas quando um leitor tem consciência de seus objetivos de leitura de acordo com a finalidade que possui. Assim, achamos necessário evidenciar as reflexões de Colomer e Camps (2002) a esse respeito. Colomer e Camps (2002) comentam a respeito da importância de se realizar uma leitura com objetivos bem definidos. Essa reflexão proposta pelas autoras está direcionada ao profissional que deve elaborar e orientar atividades que envolvam um ensino proficiente da leitura, proporcionando que seus alunos tenham consciência de seus objetivos de acordo com seus próprios interesses. Nessa perspectiva, os objetivos são um dos requisitos que contribuem para compreensão, pois servem para orientar a leitura e determinam as estratégias do leitor, além do conhecimento prévio por ele ativado. Durante o ato de ler, um leitor que pré-estabelece seus objetivos de leitura exerce um papel ativo prestando atenção somente ao que lhe é mais relevante naquele momento para construir um sentido ao que está sendo lido. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 472 REVISTA SABERES LETRAS Solé (1998, p. 93-98) destaca alguns objetivos gerais de leitura tais como “ler para obter uma informação precisa, ler para seguir instruções, ler para obter informação de caráter geral, ler para aprender, ler para revisar um escrito próprio, ler por prazer e ler para comunicar um texto a um auditório”. Sabemos que, além dos objetivos acima, mencionados por Solé, (op.cit.) existem outros objetivos que o leitor pode estabelecer. Passaremos a seguir a discutir a respeito da importância leitura na dimensão do ensino e das atividades de interpretação e compreensão de textos elaborados aos alunos. Leitura e Ensino Embora muitas escolas venham buscando melhorar seu desempenho e estejam interessadas em propiciar aos seus alunos um ensino de leitura com qualidade, infelizmente, ainda nos deparamos em sala de aula com atividades que, na verdade, propõe uma “simulação” do ensino leitura, cujo trabalho não prepara um leitor proficiente que compreenda significativamente. Essa deficiência no ensino da leitura se deve, muitas vezes, a falta de compreensão que o professor tem sobre esse conceito, ou devido à carência de um ensino coerente que instigue no aluno a utilização de uma série de estratégias de leitura, de objetivos a serem cumpridos, do estabelecimento de inferências, ativação do conhecimento prévio, conhecimento de mundo e outros. Para Correa e Cunha (IN PAULIUKONIS; SANTOS, 2006), muitos alunos ainda possuem o hábito de considerarem a leitura como um processo de decodificação da escrita. Nessa perspectiva, o ensino da leitura deixa de ser concebido em sua dimensão discursiva, a qual considera, por exemplo, as condições de produção do texto, o suporte em que ele está inserido, o gênero a que pertence e sua finalidade, além do trabalho que o próprio leitor realiza cognitivamente. Colomer e Camps (2002) afirmam que a condição fundamental para um bom ensino de leitura requer uma mudança em sua prática social e cultural. Elas afirmam sobre a importância de se promover um ensino real da leitura que requer, por exemplo, que os alunos saibam ler e, mais que isso, que tenham a capacidade de saber como devem ler para uma finalidade concreta. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 473 Essas mesmas autoras (2002, p. 90) destacam uma programação do ensino da leitura baseada em alguns eixos como: o trabalho em situações reais de leitura com diferentes funções e intenções, o auxilio ao aluno para ele interpretar textos de dificuldade progressiva, contribuindo com sua autonomia leitora e o exercício das habilidades específicas em textos reais, sendo eles escolares ou não. Por meio dessa programação propostas pelas autoras elas acrescentam uma série de atividades relevantes para que o professor possa elaborar com seus alunos. Entre elas, destacam-se algumas atividades realizadas por meio de representações gráficas (desenhos, quadros etc.), que contribuem para que o aluno consiga representar mais facilmente a ordenação das informações mais relevantes, a compreensão global do texto, a construção de textos em cadeia, a continuação de textos narrativos, a elaboração de resumos, exercícios de pressuposição e inferência e outros Colomer e Camps (2002 p. 120-169). Não podemos deixar de mencionar, nessa discussão sobre leitura e ensino, os problemas que decorrem dos próprios materiais didáticos, entre eles, livros e apostilas que a escola recebe. Cunha e Corrêa (IN PAULIUKONIS; SANTOS, 2006) afirmam que muitos estudos contem criticas a algumas atividades de leitura propostas em materiais didáticos, uma vez que não consideram o texto em sua dimensão discursiva. Por sua vez. Marcuschi (IN DIONISIO; BEZERRA, 2002, p. 51) afirma que, em geral, os autores dos livros didáticos evidenciam ser importante o trabalho com a compreensão do texto, porém, segundo sua opinião, o problema não está na presença ou ausência desse tipo de atividade, e sim, na sua natureza. Assim, Marcuschi (op.cit.) aponta que na maior parte dos exercícios a compreensão é vista como uma simples decodificação do conteúdo, vêm misturadas com uma série de questões que nada tem a ver com o assunto do texto e raramente levam os alunos a reflexões críticas sobre o texto, o que não permitiria sua expansão e construção do sentido. Castro e Dionísio (2003) acrescentam que alguns textos perdem sua originalidade ao serem “deslocados de seu material originário” e inseridos nos materiais didáticos, e isso pode acarretar numa possível recontextualização pedagógica SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 474 REVISTA SABERES LETRAS que atribui ao texto sentidos específicos. Segundo esses autores muitas atividades presentes em materiais didáticos estabelecem as coordenadas de sentido que o aluno – leitor deve atribuir ao texto. Para finalizar, ressaltamos que o material utilizado em sala pode servir apenas para orientar o professor a fim de que ele escolha os procedimentos que achar mais adequado à realidade de seus alunos, e de acordo com os objetivos de leitura que persegue Constituição do corpus e procedimentos de análise Para a realização da análise selecionamos quatro exercícios que envolvem, basicamente, a leitura de um texto seguida de algumas atividades de compreensão e interpretação. Conforme já mencionado, observaremos qual/ou quais a(s) concepção(s) de leitura que orienta essas atividades. Antes, porém, se faz necessário fazermos algumas observações sobre o “corpus” em questão, a saber, as apostilas selecionadas, as atividades de leitura que serão analisadas e os textos que as norteiam. Os exercícios que analisamos foram retirados de duas apostilas de uma escola particular, considerada de “excelente” nível, destinados a 8ª série do ensino fundamental. Escolhemos dois exercícios de cada apostila sendo que cada uma delas pertence a um trimestre, considerando que o aluno recebe quatro dessas no ano, ou seja, uma apostila a cada trimestre. Primeiramente, notamos que se trata de dois materiais que trabalham com uma diversidade de disciplinas, que envolvem, na parte de Língua Portuguesa, uma seção denominada “LEITURA”. Nessas seções, há, essencialmente, uma variedade de temas, gêneros textuais, contextos sociais de uso, enfim, considerando que o texto é a base do trabalho em Língua Portuguesa, pode-se dizer que são materiais ricos no “quesito” textual, se considerarmos que permite ao aluno o contato com uma diversidade de textos, contribuindo assim para a formação como leitor. As atividades analisadas pertencem a apostila do 1º trimestre (nomeada na SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 475 análise de apostila 1) e a apostila do 3º trimestre (nomeada de apostila 3). Essa escolha se deu por acharmos interessante observar se houve um “avanço” nessas atividades que envolvem a leitura, pois elas poderiam partir de questões menos complexas para questões mais complexas, considerando que proporcionassem ao aluno, nesse espaçamento de tempo entre o primeiro e o terceiro trimestre, uma capacidade interpretativa maior. Porém, outra questão relevante que observamos é que nas duas apostilas (1º e 3º trimestre) as atividades de Língua Portuguesa foram elaboradas por autores diferentes. Quanto aos textos a serem lidos pelos alunos o primeiro deles, ou seja, o texto pertencente a apostila um (1º trimestre) é um conto, intitulado “NUNCA É TARDE, SEMPRE É TARDE” elaborado por Sílvio Fiorani, publicado no livro “Os estandartes de Átila, em 1980. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 476 REVISTA SABERES LETRAS O segundo é na realidade composto de uma coletânea, onde há primeiramente um pequeno texto informativo seguido posteriormente de dois textos distintos, a saber, um artigo e uma notícia, ambos publicados na Folha de São Paulo, em 7 de janeiro de 1996. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES Letras Vitória SABERES LETRAS v. 9 n.1 p. 466 a 484 477 set. / dez. 2011 478 REVISTA SABERES LETRAS Faremos, a seguir, a análise propriamente dita das atividades em questão. A análise propriamente dita Apostila do 1º trimestre (Apostila 1) Na apostila 1, pertencente ao primeiro trimestre, podemos observar primeiramente a solicitação da seguinte atividade: 1. Explique o título do conto? a)- Porque nunca é tarde? ______________________________________________________________ ______________________________________________________________ ______________________________________________________________ SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 479 _______________ b)- Porque sempre é tarde? ______________________________________________________________ ______________________________________________________________ ______________________________________________________________ _______________ Por meio dessa atividade notamos que refletir sobre o título é sempre “a primeira entrada cognitiva” no texto, o aluno pode, a partir dele, fazer uma série de suposições que podem ser confirmadas ou modificadas no decorrer da leitura. Esse tipo de atividade também sugere que os alunos façam inferências e assimilem o conteúdo global do texto. Assim, notamos que essa atividade pressupõe um leitor ativo que trabalha cognitivamente e utiliza seu conhecimento prévio, fazendo estratégias, a fim de tentar compreender o sentido do texto. 2. Qual dos diagramas seguintes esquematiza corretamente o conto de Sílvio Fiorani? Justifique sua resposta. a) + + + b) Notamos que essa segunda atividade, da apostila 1, é um tanto diferenciada da primeira, pois foi elaborada apenas por meio de uma representação gráfica, em forma de diagramas, quadros. No diagrama “a” está implícito que a personagem Su, diante da preocupação de chegar atrasada ao trabalho, sonha várias vezes seguidas, ou seja, tem um sonho atrás do outro. Por sua vez, o diagrama “b”, nos permite observar que Su, a todo o momento, sonha que está sonhando, ou seja, os sonhos se realizam SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 480 REVISTA SABERES LETRAS simultaneamente. Como podemos observar o aluno tem que optar pelo “esquema” que melhor evidencia o acontecimento do conto em questão. Assim, quanto à concepção de leitura que orienta essa segunda atividade, notamos também que é a de um leitor ativo, proficiente, que interage com o texto a fim de construir seu sentido global. Trata-se de uma atividade que não é simples, mas, se bem conduzida, permite ao aluno que construa uma representação mental do texto escrito, o que facilita que ele tenha consciência da maneira de operar seus conhecimentos adquiridos, representados por meio dos diagramas. Observando essas duas atividades da apostila 1, que se deram de maneiras diferentes de proceder frente à leitura do texto “NUNCA É TARDE, SEMPRE É TARDE”, notamos que são bem elaboradas e refletem com clareza uma concepção interacional da leitura onde o leitor ativo, realiza estratégias, interage com o texto e constrói um sentido a partir dele. Cabe acrescentar que as demais atividades que se referem a esse mesmo texto, “Nunca é tarde, sempre é tarde”, são bastante diferenciadas umas das outras, mas todas são orientadas por essa mesma concepção de leitura. Apostila do 3º trimestre (Apostila 3) A primeira atividade da apostila 3 evidencia a seguinte questão para o aluno: 1)- Qual o principal argumento utilizado pelo autor do artigo para justificar sua posição diante do problema? _____________________________________________________________________ _____________________________________________________________________ _____________________________________________________________________ ____________ Podemos observar, nessa primeira atividade, que o aluno tem que apresentar o argumento utilzado pelo autor do artigo que melhor justifica o SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 481 problema da chegada da informática e da possível eliminação da linguagem escrita. Trata-se, dessa forma, de uma busca de resposta encontrada na própria superfície do texto. Como o gênero artigo e notícia requerem uma reflexão do aluno sobre os argumentos utilizados pelos autores, não descartamos a importância de atividades como essas, porém, fora essas atividades que selecionamos para analisar, notamos que as demais também se restringem ao trabalho com os argumentos dos textos. Isso nos permite dizer que a concepção de leitura que orienta essas atividades da apostila 3, é mais de um leitor decodificador, passivo, que recebe uma informação na qual o sentido é pré-estabelecido pelo autor, do que de um sujeito ativo que, por meio da interação com o texto, constrói sentidos. Assim, embora os textos que respaldam essas atividades são considerados bons, até porque os alunos trabalham com dois gêneros ao mesmo tempo, e a temática é considerada relevante, em virtude da transformação social que estamos passando, diante do avanço da tecnologia, notamos que nesse exercício a leitura é considerada como uma simples atividade de decodificação, que se resume apenas à extração dos conteúdos. 2) Copie na primeira coluna do quadro abaixo, os três argumentos negativos. Na segunda coluna, transforme-os em argumentos positivos em relação ao livro. SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 482 REVISTA SABERES LETRAS É visível que essa atividade também não proporciona ao aluno o uso da leitura em uma dimensão real, e sim, uma “simulação da leitura”, tampouco, leva-o refletir sobre ela, uma vez que permite apenas que ele observe os argumentos negativos e positivos tanto a respeito dos meios eletrônicos como dos livros. O quadro que o aluno tem que preencher até contribui para que ele ordene as informações do texto, porém, neste caso, ele estará refletindo apenas sobre os argumentos utilizados pelos dois autores e não sobre o sentido que pode ser retirado dos dois textos em questão. Na apostila do terceiro trimestre (apostila 3), notamos uma outra concepção de linguagem que subjaz essas atividades. Não podemos esquecer-nos que elas forma feitas por autores diferentes, o que compromete certamente nessas diferenças entre as apostilas, e, conseqüentemente, entre uma atividade e outra. Assim, nas duas atividades a seguir, notamos que o professor terá que avaliar o “grau de compreensão” do aluno apenas por meio de questões onde eles serão limitados à busca e a cópia de informações, trabalhando mais especificamente com a questão da argumentação. Como se tratam de atividades baseadas em praticamente três textos seria válido que os autores dessas atividades elaborassem algum tipo de exercício que fizesse com que o aluno refletisse mais sobre o sentido dos textos, sem é claro desconsiderar as demais atividades presentes. Considerações Finais Mesmo considerando a boa escolha dos textos a serem lidos pelos alunos, percebemos por meio de algumas atividades que ainda há uma divergência de pensamentos quanto à concepção de leitura que as orienta. Ao contrário do que poderíamos prever, a passagem de uma apostila para outra não proporcionou um avanço na complexidade dessas atividades. As atividades da apostila 1, pressupõe um leitor ativo, que interage com o texto SABERES Letras Vitória v. 9 n.1 p. 466 a 484 set. / dez. 2011 REVISTA SABERES LETRAS 483 e constrói um sentido a partir do mesmo. Por sua vez, na apostila 3, notamos uma tendência a considerar a leitura como decodificação da escrita, como algo pronto, acabado, devido ao uso da leitura apenas para explorar “os argumentos positivos e negativos do livro e do meio eletrônico”. Além disso, é possível afirmar que as considerações acima ainda revelam posturas diferenciadas nas atividades, uma vez que foram elaboradas por autores distintos, ou seja, cada autor pressupõe uma concepção de leitura. Enfim, sabemos que se faz necessário uma mudança de postura, a fim de que o ensino da leitura seja feito em uma dimensão discursiva, assim, de uma maneira mais adequada à realidade do aprendiz para que ele alcance sua competência leitora, com objetivos e finalidades que se adequem as suas necessidades, além dos outros fatores por nós já mencionados. Referências AZEREDO, José Carlos de. O texto: suas formas e seus usos. In: PAULIUKONIS, Maria A. L.; SANTOS, Leonor Werneck dos. (orgs.). Estratégias de leitura: texto e ensino. 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