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SABERES LETRAS
ISSN: 2176-89271
SABERES
LINGUÍSTICA - LITERATURA - ENSINO
ORGANIZAÇÃO
Micheline Mattedi Tomazi
Aline Moraes Oliveira
LETRAS
2
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SABERES LETRAS
Diretora Geral: Alacir de Araújo Silva
Coordenador do curso de Letras Português/Inglês: Weverson Dadalto
Editor: SABERES Instituto de Ensino Ltda
Organizadores: Aline Moraes Oliveira
Micheline Mattedi Tomazi
Weverson Dadalto
Conselho Editorial - Membros
Alacir de Araújo Silva - SABERES
Arlene Batista da Silva Ferreira - SABERES
Carlos Roberto de Souza Rodrigues - SABERES
Cleonara Maria Schwartz - UFES
Deneval Siqueira de Azevedo Filho - UFES
Diego do Nascimento Rodrigues Flores - SABERES
Janaína de Assis Rufino - UEMG
Lúcia Helena Peyroton da Rocha - UFES
Luis Eustáquio Soares - UFES
Maria Amélia Dalvi Salgueiro - UFES
Maria da Penha Pereira Lins - UFES
Micheline Mattedi Tomazi - UFES
Paulo Roberto Sodré - UFES
Vera Márcia Soares de Toledo - SABERES
Weverson Dadalto - SABERES
Wilberth Claython Ferreira Salgueiro - UFES
Wolmyr Aimberê Alcantara Filho - SABERES
Revisão
Arlene Batista da Silva Ferreira
Vera Márcia Soares de Toledo
Weverson Dadalto
Luciana Zandonadi Mattedi
Raquel Freitas de Oliveira
Kátia Helena Maués Guedes
Karina de Rezende Tavares Fleury
Editoração: José Carlos Vieira Júnior
Revista Saberes Letras: Linguística, Literatura, Ensino. Faculdade Saberes. – v. 9,.
n.1. – Vitória: Saberes Instituto de Ensino Ltda., 2011
Revista Saberes Letras: Linguística, Literatura, Ensino. Faculdade
Saberes. – v. 9, n.1. – Vitória: Saberes Instituto de Ensino Ltda.,
2011.
Anual
ISSN: 2176-8927
1. Linguística – Periódico. 2. Literatura. 3. Ensino.
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Sumário
I – Estudos sobre LingUística
1.
2.
3.
4.
O ETHOS DISCURSIVO DO CORINGA EM BATMAN A PIADA MORTAL
Alex Caldas Simões
ESTUDO DO VERBO DE MOVIMENTO NOS GÊNEROS
ENTREVISTA E REPORTAGEM
Aline Moraes Oliveira
Carmelita Minelio da Silva Amorim
Lúcia Helena Peyroton da Rocha
Sabrina Tassan
O TIPO ARGUMENTATIVO “STRICTO SENSU”: DIMENSÕES
DISCURSIVA E LINGUÍSTICA
Andréa Lopes Borges
A RETEXTUALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE ENSINO
NA AULA DE PORTUGUÊS COMO SEGUNDA LÍNGUA
PARA OS SURDOS
Arlene Batista da Silva Ferreira
09
34
53
70
5.
MAL DE ALZHEIMER NA PRIMEIRA FASE: CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLINGUÍSTICA
Denise Aparecida Moser
6.
REFERENCIAÇÃO: ASPECTOS DISCURSIVOS
Fabiano de Oliveira Moraes
Virgínia Beatriz Baesse Abrahão
7.
A REPRESENTAÇÃO DAS ÁREAS DE LETRAS E BIOLOGIA
EM DUAS NOTÍCIAS DA MÍDIA ONLINE
Fátima Andréia Tamanini-Adames
136
8.
O HUMOR NOS JINGLES DA CAMPANHA “QUEM NÃO
SABE, DANÇA”, DA TIGRE: INFERÊNCIA E SUGESTÃO
Franciely Corrêa de Freitas
Ana Cristina Carmelino
154
88
112
4
9.
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VALORES SEMÂNTICOS DAS UNIDADES LEXICAIS SUFIXADAS EM -EZA NA LÍNGUA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA (VARIANTE EUROPEIA)
Iovka Bojílova Tchobanova
170
10.
O PAPEL HIPERONÍMICO DOS TERMOS DE CLASSE EM
AKWẼ-XERENTE (JÊ)
Kênia Mara de Freitas Siqueira
186
11.
NARRADORES MACHADIANOS EM “BONS DIAS”:
ATOS PERFORMÁTICOS EM BUSCA DOS LEITORES
OITOCENTISTAS
Nelson de Jesus Teixeira Júnior
Patrícia Kátia da Costa Pina
200
NAS LINHAS E ENTRELINAHS DAS NARRATIVAS DO TIPO
HISTÓRIA: UM ESTUDO DA ORGANIZAÇÃO ENUNCIATIVA E POLIFÔNICA
Raquelli Natale
Micheline Mattedi Tomazi
215
Gêneros: um conceito entre a Teoria da Enunciação e a Análise de Discurso – AD: uma proposta de
categorização
Silvana da Silva Ribeiro
239
12.
13.
II – Estudos sobre Literatura
14.
15.
16.
A NAU E O CAPITÃO: PELOS MARES DA HISTÓRIA, DUAS
VERSÕES FICCIONAIS DE LUIZ GUILHERME SANTOS
NEVES
Cinthia Mara Cecato da Silva
MENINO DE ENGENHO: O INÍCIO DO CICLO SOCIOLÓGICO
EM JOSÉ LINS DO REGO
Dinameire Oliveira Carneiro Rios
O FAZER POÉTICO DE GEIR NUFFER CAMPOS
Gabriel Diniz Silva
Karina de Rezende Tavares Fleury
263
278
290
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17.
JORGE LUIS BORGES E A LITERATURA POLICIAL
Inês Aguiar dos Santos Neves
18.
O LEGADO DAS COMPOSITORAS DE MPB NOS TREPIDANTES ANOS DE CHUMBO
Kátia Helena Maués Guedes
Vera Márcia Soares de Toledo
19.
AS TENDÊNCIAS MODERNAS E PÓS-MODERNAS NA LITERATURA BRASILEIRA E A RELAÇÃO COM POESIA MARGINAL DOS ANOS 70
Maitê de Souza Cosmi
Vera Márcia S. de Toledo
5
308
333
353
20.
Sobre a dimensão mística do rio na obra de Guimarães Rosa
Mauro Leite Teixeira
Vera Márcia Soares de Toledo
21.
A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM CIRANDA DE PEDRA
Rubiani Boldrini da Silva
Karina de Rezende Tavares Fleury
22.
ENCONTRARIA A LITERATURA? AS BUSCAS PELA MAGA
EM RAYUELA, DE JULIO CORTÁZAR
Weverson Dadalto
403
23.
Algumas considerações sobre o leitor e o olhar
em Dom Casmurro, de Machado de Assis
Wolmyr Aimberê Alcantara Filho
430
370
378
III – Estudos sobre Ensino
24.
UMA NOTÍCIA DE PESQUISA: A FORMAÇÃO DE
PROFESSORES NO ESPÍRITO SANTO: LEITURA,
LITERATURA E MATERIAIS DIDÁTICOS
Adriana Falqueto Lemos
Anna Catharina Izoton Mariano
Maria Amélia Dalvi
Sérgio Alves de Novais
445
6
25.
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Um estudo da concepção de leitura presente
nas atividades de compreensão e interpretação
de textos do ensino fundamental
Danielle Maximo Plens Pinelli
Adriana Recla
466
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APRESENTAÇÃO
A Revista Saberes, em mais uma edição virtual, dá continuidade à sua proposta
de gerar maior interação com profissionais de outras instituições de ensino para
o desempenho efetivo dos papéis de disseminadores e mediadores de conhecimento.
O objetivo central da Revista Saberes está voltado para divulgação de pesquisas
científicas desenvolvidas por estudiosos de três grandes áreas: linguística, literatura e ensino de linguagem. A Revista está distribuída em três blocos: Estudos
sobre Linguística, Estudos sobre Literatura e Estudos sobre ensino.
No primeiro bloco aparecem reflexões acerca da Literatura. Há neste espaço,
artigos que versam assuntos diversos, dentre eles: Luiz Guilherme Santos Neves, Machado de Assis, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Molière, José Lins do
Rego, Geir Nuffer Campos, Guimarães Rosa.
No segundo bloco apresentam-se análises e considerações sobre o mal de Alzheimer e as contribuições da Psicolinguística; retextualização e ensino para
surdos, Teoria da Enunciação e Análise do Discurso, polifonia, referenciação,
estudos de humor, estudo de verbos.
Para finalizar, o terceiro bloco traz textos que tratam temas concernentes ao
ensino de língua e literatura de língua materna. Nesta seção, os articulistas demonstram uma preocupação com a formação de professores no Espírito Santo e
com a concepção de leitura em atividades do ensino fundamental.
Com essa nova configuração e sua publicação, a Revista Saberes enseja nosso
desejo de semear ideias, provocar reflexões, promover novos caminhos, inquietar a mente dos pesquisadores e estudantes, criar novas perspectivas e, acima
de tudo, promover o “jogo” inquietante e salutar desse saber fascinante da Linguagem. Para nós, a Revista Saberes instala-se na rede virtual como um espaço
propício para o diálogo da língua, do ensino e da literatura.
Em 07 de dezembro de 2011
Aline Moraes Oliveira
Micheline Mattedi Tomazi
Weverson Dadalto
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Seção I
Estudos sobre Linguística
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O ETHOS DISCURSIVO DO CORINGA EM
BATMAN A PIADA MORTAL
Alex Caldas Simões1*
Resumo
A partir de Batman A Piada Mortal (1999) evidenciaremos o ethos do personagem
Coringa de modo a caracterizá-lo discursivamente como vilão das HQs. Apoiados
em Amossy e Maingueneau discorreremos sobre os conceitos de cena enunciativa
e de ethos para descrever as imagens de si produzidas pelo personagem em seu
próprio discurso, a saber, antes da vilania (como Jack Napier) e depois da vilania
(como o Coringa): afinal, o homem e o vilão apresentam alguma regularidades
de ethos? Dessa forma, esperamos apresentar em nossa exposição a verdadeira
identidade discursiva do Coringa: torturador, brutal, e irônico/engraçado.
Palavras-Chave: Ethos discursivo. Quadrinhos. Cena enunciativa.
Abstract: From Batman The Killing Joke (1999) emphasizes the ethos of the Joker
in order to characterize it discursively as the villain of the comic. Backed by
Amossy Maingueneau and will discuss the concepts of ethos and expository
scene to describe the images produced by the character of himself in his own
speech, namely, before the villain (as Jack Napier), and then the villain (as the
Joker): after all, the man and the villain have some regularities ethes? Thus, we
hope to present in our exposure to the Joker’s true identity discourse: torturer,
brutal, and ironic / funny.
Keywords: Discursive ethos. Comics. Expository scene.
Introdução
Dentro dos estudos da linguagem, em especial os estudos discursivos, muitos
objetos tem sido atualmente alvos de análises linguísticas. Tal possibilidade
se torna viável uma vez o discurso, de acordo com Michel Foucault, pode ser
entendido como “nada mais do que a reverberação de uma verdade nascendo
1∗ Mestre em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV – bolsista CAPES/REUNI).
Viçosa, Minas Gerais, Brasil. Email: [email protected]
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diante de nossos olhos” (1996, p. 49). Como diria Dominique Maingueneau
(1989), discurso pode ser qualquer produção de linguagem, seja ela falada ou
escrita, acadêmica ou popular.
A Análise do Discurso (AD) pode ser entendida como a ciência de “explicação
dos textos”, o modo como a sociedade trata seus próprios textos. É uma leitura,
como afirma o autor (1989), verdadeira que procura desvendar os sentidos
ocultos presentes nos textos analisados. Como objeto de estudo dessa ciência
temos formações discursivas2 de qualquer instância: podemos analisar músicas,
propagandas, desenhos animados, poemas, Histórias em Quadrinho (HQs),
obras de ficção, entre outros.
Na realidade, seria melhor questionar o que poderia
não ser ‘discurso’: não apenas os enunciados, mas
também as análises destes enunciados, e assim
ad libitum, oferecem a possibilidade de recortar
um conjunto ilimitado de campos de investigação
(MAINGUENEAU, 1989, p. 16).
Dessa forma, entendemos que com a AD é possível realizar inúmeras análises
linguísticas, desde, é claro, que articulemos os mecanismos formais do discurso
com os dados institucionais – ao se analisar, segundo Foucault (1996), “o jogo
de noções que lhes são ligadas; regularidade, causalidade, descontinuidade,
dependência, transformação.”
Em nosso artigo, portanto, pretendemos analisar discursivamente o ethos do
personagem Coringa da graphic novel “Batman: A Piada Mortal” (DC comics)
de Allan Moore e Brien Bolland publicado pela primeira vez no Brasil em 1988.
Em nossa exposição discorreremos nesta ordem: (a) sobre o conceito de ethos
e de cena enunciativa de Ruth Amossy e Dominique Maingueneau; (b) sobre
“Batman: A piada Mortal”, primeira parte sobre a publicação, segunda parte
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- Formações discursivas podem ser entendidas como “um
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conjunto de regras anônimas, his�
tóricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma época dada, e para
uma área social, econômica, geográfica, ou linguística dada, as condições de exercício da função
enunciativa” (MAINGUENEAU, 1989, p. 14).
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sobre o ethos discursivo de Jack Napier e terceira parte, sobre o ethos discursivo
do Coringa; e (c) sobre as possíveis relações entre os ethos de homem e de vilão do
personagem. Com esta exposição pretendemos esboçar a verdadeira identidade
discursiva do Coringa: afinal, quem é ele? Homem? Vilão? Louco?
Referencial teórico: Ethos e cena enunciativa
A noção teórica de ethos, segundo Maingueneau (1988), retoma a Grécia antiga,
época em que Aristóteles (1378a) entendia que tal noção era uma imagem
discursiva que colaborava na legitimação argumentativa de um discurso
qualquer. O ethos era considerado uma prova retórica que juntamente com o
pathos e o logos construíam uma argumentação plausível na língua: o ethos
constituía o “caráter do orador ou imagens de si que este apresenta no seu
discurso para obter a adesão do outro” (MENEZES, 2006, p. 90-91); o pathos
correspondia “a adesão do outro, as paixões e os sentimentos que propiciam a
felicidade do ato discursivo” (MENEZES, 2006, p. 90-91); e o logos representava
a racionalidade persuasiva de um discurso (Menezes, 2006).
A noção de ethos, desde Aristóteles, passou por algumas reformulações,
sendo tratada ora pelo campo da argumentação, ora pelo campo da análise do
discurso. Cabe destacar aqui, conforme indica Maingueneau (1988), que esta
noção foi reformulada por Oswald Ducrot (1984)3 em seu quadro pragmático
de linguagem: “[e]m termos mais pragmáticos, dir-se-ia que o ethos se desdobra
no registro do ‘mostrado’ e, eventualmente, no do ‘dito’. Sua eficácia decorre
do fato de que envolve de alguma forma a enunciação sem ser explicitado no
enunciado” (MAINGUENEAU, 2005, p.70).
Maingueneau (2005, 2008), ainda explicita, citando Ducrot (1984)4, que o ethos
está ligado a figura do “locutor L”5 – ou seja, aquele locutor que é a fonte da
3- DUCROT, Oswald. Le dire et le dit. Paris: Minuit, 1984.
4- DUCROT, Oswald. Le dire et le dit. Paris: Minuit, 1984.
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- Locutor, segundo Ducrot (1984), citado por Eduardo Guimarães, representa o ‘eu’. É respon�
sável pela enunciação que vai estar no enunciado. Se divide em “Locutor L” e “Locutor l”. O
primeiro, “é o que se representa como fonte do dizer.” (GUIMARÃES, 1995, p. 60); o segundo, é
o locutor-enquanto-pessoa-no-mundo.” (GUIMARÃES, 1995, p. 60).
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enunciação e que possui uma série de características que a tornam aceitável
ou recusável. Ao retomar os estudos pragmáticos de ethos, o autor (2005, 2008)
afirma: “[...] o ethos se mostra, ele não é dito.”
Após esta reformulação o próprio Maingueneau, no início dos anos 1980 –
19846 e 19877 –, propôs a sua análise do ethos inserida em uma teoria de análise
do discurso. Para Maingueneau (2005, 2008) todo discurso, oral ou escrito,
pressupõe um ethos.
Cabe aqui, antes de evidenciarmos as proposições teórico-metodológicas de
Maingueneau, apresentaremos as noções de ethos de Ruth Amossy (2005a e
2005b), uma vez que estas são, em parte, recuperadas por Maingueneau em sua
teoria. Para autora (2005a), portanto, relembrando Roland Barthes8, o ethos se
define pelos
traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório
(pouco importando sua sinceridade) para causar boa
impressão: é o seu jeito [...] O orador enuncia uma informação
e ao mesmo tempo diz: sou isto, não sou aquilo. O autor
[Barthes] retoma assim as idéias de Aristóteles, que afirmava
em sua Retórica: ‘é [...] ao caráter moral que o discurso deve,
eu diria, quase todo seu poder de persuasão (AMOSSY,
2005, p. 10).
Com isso Amossy (2005b) enuncia que o ethos é uma construção tanto linguageira
(discursiva) quanto institucional (social). Dessa forma, o estudo do ethos deve
pautar-se em um estudo da interlocução “que leva em conta os participantes,
o cenário e o objetivo da troca verbal” (AMOSSY, 2005b, p. 124) – como irá
desenvolver muito bem em sua teoria Maingueneau.
6- MAINGUENEAU, Dominique. Genèses du discours. Liège-Bruxelles: Mardaga, 1984.
7- MAINGUENEAU, Dominique. Nouvelles tendances em analyse du discurs. Paris: Hachette,
1987.
8- BARTHES, Roland. L’ancienne rhétorique. Aide-mémoire. In: Communications, n.16, 1970.
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A autora (2005b, p. 125) ainda postula o conceito de ethos-prévio – chamado por
Maingueneau de ethos pré-discursivo – que corresponde a um ethos que precede
a construção da imagem no discurso:
[n]o momento em que toma a palavra, o orador9 faz uma
ideia de seu auditório e da maneira pela qual será percebido;
avalia o impacto sobre seu discurso atual e trabalha para
confirmar sua imagem, para reelaborá-la ou transformá-la
e produzir uma impressão conforme às exigências de seu
projeto argumentativo (AMOSSY, 2005b, p. 125).
Amossy (2005b), em seu projeto teórico, ainda esboça a ideia de estereótipo
(ou estereotipagem), que desempenha um papel fundamental na constituição
do ethos discursivo. Para a autora, a construção do ethos-prévio e do ethos
dependem que estes sejam assumidos por uma doxa10, ou seja, que se “indexem
em representações partilhadas.” Afinal, será esta representação cultural préexistente que será buscada pelo orador no momento de sua enunciação para
melhor argumentar.
Tendo em mente tais preceitos, podemos analisar agora as proposições teóricas
de Maingueneau com maior clareza. Para o autor (2005) qualquer discurso,
como já dito, possui um ethos discursivo formado por uma vocalidade específica.
Essa vocalidade específica do discurso evidência uma fonte enunciativa, “[...]
por meio de um tom que indica quem o disse [...]” (2005, p. 72). Portanto,
existindo uma vocalidade, também existe um corpo do enunciador – que,
cabe ressaltar, não é o corpo do autor efetivo. Com isso queremos dizer que
um orador qualquer ao enunciar constrói um corpo de enunciador que por um
tom específico evidência uma vocalidade também específica. Assim, conforme
indica Maingueneau (2005, p. 72), a noção tradicional de ethos recobre não só a
dimensão vocal, mas também “um conjunto de determinações físicas e psíquicas
atribuídas pelas representações coletivas à personagem do orador.”
9- Amossy (2005b) considera orador como o enunciador (ou locutor). O mesmo vale para o
termo auditório: que representa para a autora o alocutário.
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- Para Amossy (2005b, p. 125) doxa corresponde ao “saber prévio que o auditório possui
sobre o orador.”
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O corpo do enunciador, o fiador11 é composto: (a) por um “caráter”, que
corresponde “a um feixe de traços psicológicos” (MAINGUENEAU, 2005, p.
72); (b) e por uma “corporalidade”, que corresponde a um estado de compleição
corporal, ou seja, a uma maneira de vestir-se e de mover-se no espaço social
(MAINGUENEAU, 2005) que se constroem com base em estereótipos sociais.
Ao considerarmos que todo discurso provém de uma cena de enunciação12,
temos, segundo Maingueneau (2005), que a figura do ethos não é somente um
meio de persuasão, mas também é parte de uma cena enunciativa. Em resumo,
então, podemos dizer que
como o enunciador se dá pelo tom de um fiador associado a
uma dinâmica corporal, o leitor não decodifica seu sentido,
ele participa ‘fisicamente’ do mesmo mundo do fiador. O
co-enunciador captado pelo ethos, envolvente e invisível,
de um discurso, faz mais do que decifrar conteúdos. Ele é
implicado em sua cenografia, participa de uma esfera na qual
pode reencontrar um enunciado que, pela vocalidade de
sua fala, é construído como fiador do mundo representado
(MAINGUENEAU, 2005, p. 90).
Com isso, o leitor é incorporado definitivamente na cena enunciativa, e, através
de uma percepção complexa advindas do material linguístico e do ambiente,
este formula o ethos discursivo efetivo. Esse ethos, portanto, é o resultado de
uma interação complexa entre vários elementos: o ethos pré-discursivo, o ethos
discursivo mostrado e ethos discursivo dito13 (cf. imagem 1).
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- O fiador, segundo Maingueneau (2005, p. 72) é uma figura que o leitor “deve construir com
base em indícios textuais de diversas ordens.”
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- A cena de enunciação é composta por 3 cenas: i) a cena englobante, que corresponde ao tipo
de discurso (ex: político, religioso) (Maingueneau, 2005); a cena genérica, que corresponde a um
contrato associado a um gênero discursivo (Maingueneau, 2005); e iii) a cenografia, que corres�
ponde a uma construção própria daquele texto (Maingueneau, 2005).
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- A diferença entre o “ethos dito” e o “ethos mostrado”, segundo Maingueneau (2008) é muito
tênue e muitas vezes é impossível distingui-los; o mesmo vale para o “ethos pré-discursivo” e o
“ethos discursivo”.
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(Imagem 1 – Diagrama do ethos discursivo efetivo. In: MAINGUENEAU, 2008,
p. 19 – adaptado)
Corpus de estudos Batman: A Piada Mortal: sobre a grafic
novel
Ao escrever “Batman: A Piada Mortal”, Alan Moore (roteiro)14 e Brian Bolland
(desenhos) – a exemplo de Frank Miller (roteiro e desenhos) em “Batman: O
Cavaleiro das Trevas” e Grant Morrison (roteiro) e Dave McKean (desenhos)
em “Batman: Asilo de Arkham” – redefiniram Batman e seus inimigos de
forma decisiva. Nessa redefinição, os personagens perderam o seu tom caricato
e humorístico15 e adquiriram tons sombrios e misteriosos. Pela primeira vez é
contada aos leitores da DC comics a história do Coringa.
Essa grafic novel, como já dito, é um marco nas histórias do morcego e,
consequentemente, uma campeã de prêmios e destaques no mundo dos
quadrinhos: afinal em 1989 ela ganhou 3 Will Eisner Awards16 (melhor escritor,
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- Um dos maiores roteiristas inglês de quadrinhos da atualidade – autor de trabalhos como”
Monstro do Pântano”, “V de Vingança”, “Watchmen”, “Tom Strong”, “Do Inferno” e “A Liga
Extraordinária”. (Cf. site UNIVERSOHQ).
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- Basta ver as primeiras histórias do Morcego por seu criador Bob Kane e Bill Finger em
1939, sem contar na série de TV dos anos 60 onde o Batman era interpretado por Adam West
(Cf. SANCHEZ, 2009).
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- Considerado o Oscar dos quadrinhos.
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melhor desenhista e melhor grafic novel) e 4 Harvey Award (melhor história,
melhor grafic novel, melhor desenhista e melhor colorista (Cf. Monteiro, 2009).
“Batman: A piada mortal” foi reeditada várias vezes: em 1999, pela editora Abril;
em 2002, em uma edição espacial em preto-e-branco, pela Opera Graphica (Cf.
Grandes Sagas DC); e agora em 2009 pela Editora Panini – edição em capa dura
e recolorizada.
Podemos dizer, de forma geral, que nessa HQ 3 histórias são contadas e
articuladas simultaneamente. A primeira delas retrata a visita de Batman ao
asilo de Arkham, onde ele descobre que o Coringa havia fugido e em seu lugar
estava outra pessoa. Nesse momento Batman parte em busca do vilão (Imagem
2).
(Imagem 2 – MOORE, 1999, p. 8)
A segunda história retrata em flashback a história de Jack Napier, ex-funcionário
de uma fábrica química e comediante frustrado. Ele virou o vilão Coringa ao
decidir participar de um roubo a uma fábrica de baralhos disfarçado do bandido
Capuz Vermelho. Participando desse roubo, Jack Napier queria dar um futuro
melhor a sua mulher e ao seu futuro filho.
Nesse meio tempo, após saber que sua esposa grávida morreu em um trágico
acidente doméstico com um aquecedor de mamadeiras, Jack decidiu abandonar
a assalto, mas coagido por seus comparsas continuou. No assalto tudo dá
errado, pois a fábrica de produtos químicos que serviria de ponte para se chegar
à fábrica de baralhos possuía novos seguranças armados.
Perseguido pelos
seguranças e pelo Batman, Jack, encurralado, pula em um tonel de produtos
químicos para fugir. Os produtos químicos do tonel reagiram com seu corpo
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e embranqueceram a sua pele, tornando os seus cabelos verdes, seus lábios
vermelhos e afetando, consideravelmente, a sua sanidade mental (Imagem. 3).
(Imagem 3 – MOORE, 1999, p. 34)
A terceira história articula as duas anteriores, ao mostrar o Coringa solto em
Gotham. O Coringa decide mostrar ao Batman que qualquer pessoa sã pode
enlouquecer por ter tido um dia ruim. Sendo assim ele resolve “visitar” o
comissário Gordon e sequestrá-lo. Se não bastasse o Coringa ainda atira
(dilacerando a coluna da moça), tortura (física e sexualmente) e fotografa a
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filha17 do comissário Gordon. Desacordado, Jim é levado para um parque de
diversões abandonado, é despido, acorrentado e torturado como um animal.
Em seguida Jim vê as imagens do Coringa torturando a sua filha em um passeio
de trem fantasma enlouquecedor (Imagem 4).
(Imagem 4 – MOORE, 1999, p. 28)
Corpus de estudos Batman: A Piada Mortal: sobre ethos
discursivo de Jack Napier
Jack Napier, como já descrito acima, é um homem casado, ex-funcionário de uma
fábrica de produtos químicos e um comediante. Fisicamente, ele é alto e veste
roupas extravagantes, com cores berrantes, gravata borboleta e chapéu. Suas
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- A filha do comissário Gordan, Bábara Gordon, na época era a identidade secreta da Batgirl –
atualmente ela possui o codinome de Oráculo (Cf. Monteiro, 2009).
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feições e gestos são sempre marcantes e exageradas – caricaturais – (imagem 5).
Ele vive com sua esposa em um subúrbio e passa por dificuldades financeiras,
pois está desempregado.
(Imagem 5 – MOORE, 1999, p. 18, p. 11)
Dessa forma, podemos analisar que sendo um comediante o ethos pré-discursivo
do personagem, baseado em um estereótipo sócio-histórico-cultural, indica que o
personagem é uma pessoa engraçada, extravagante e que possui um bom sendo
de humor. Socialmente, ele é um artista que, em princípio de carreira, recebe
uma pequena remuneração financeira e realiza muitos testes de emprego. Essa
imagem discursiva, portanto, é confirmada pelos quadros a seguir (imagem 6):
(Imagem 6 – MOORE, 1999, p. 10)
Aqui, surge um ethos mostrado e dito de profissional iniciante do humor (haja
vista o vocábulo “número”, próprio do meio artístico) e inseguro (haja vista as
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hesitações no segundo quadro nos mostram isso, os vocábulos “fiquei nervoso”
e “misturei as piadas” também (Imagem 6)). Ainda observamos que Jack estava
tentando arrumar um novo emprego, por isso a aflição de sua mulher em
saber o resultado de sua entrevista profissional: “Bem? Como foi?”. Evidenciase também o ethos mostrado de fracasso (“OH!”), afinal a sua mulher achava
que desta vez ia ser diferente, mas Jack se dá mal na entrevista e acha que não
será contratado: “Eles disseram que talvez me chamem” (o vocábulo “talvez”
nos indica, novamente, um ethos de incerteza quanto ao futuro e um ethos de
insegurança).
O ethos dito de fracassado se evidencia também em alguns quadros à frente
(Imagem 11), quando Jack chora no colo de sua mulher por, apesar de seu esforço,
não conseguir dar a ela ou ao seu futuro bebê uma vida melhor (haja vista o
trecho “Não quis culpar você. Já sofreu bastante [...] com um fracassado”).
(Imagem 11 – MOORE, 1999, p. 10-11)
Dessa forma, Jack assume que por mais que se esforce não consegue dar uma
vida digna para sua família (como podemos ver no trecho “[...] nem consigo
sustentar você!”). Ele evidência, com essa passagem, um ethos mostrado de
incompetência (haja vista o uso do vocábulo “nem”), ou seja, qualquer outra
pessoa conseguiria um emprego, menos ele que é um fracassado incompetente.
O vocábulo “e ninguém ri!” também nos mostra uma universalização de sua
incompetência. Aqui, ainda surge o ethos de homem preocupado com o bem
estar de sua família, haja vista o trecho “Pensa que tudo é uma grande piada
para mim?”. Por esse trecho, percebemos ainda uma tentativa de sarcasmo/
piada de Jack o que reforça o caráter de seu ethos de profissional iniciante e
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incompetente, pois sua piada não tem graça para uma situação tão trágica como
essa. As mesmas imagens discursivas se apresentam nos quadros abaixo:
(Imagem 12 – MOORE, 1999, p. 11)
Quando Jack afirma “tenho que tirar você daqui antes que o Bebê venha...”,
evidencia um ethos mostrado de preocupação com o bem estar familiar, pois
ele coloca como um dever seu (haja vista o trecho “tenho”) a melhora financeira
de sua família. Ao realizar uma piada (no trecho “tem garotas aí nas ruas que
ganham mais do que eu e não precisam contar uma piada”), Jack evidência um
ethos mostrado de homem com bom sendo de humor, pois realiza uma gracinha
com um assunto sério e provoca os risos de sua mulher.
O ethos dito de pai e de marido (Imagem 12) surge como reforço ao ethos
mostrado de homem preocupado com o bem estar familiar. Aqui Jack pretende
até roubar para garantir sua mudança de vida (haja vista o trecho “Sabem...
tenho que provar a mim mesmo que sou marido e pai! Quero dizer... eu bem...
eu não estaria fazendo esse tipo de coisa se... se não fosse importante.”). Por esse
trecho ainda percebemos um ethos mostrado de desespero (no trecho “tenho que
provar a mim mesmo”), pois percebemos, por suas hesitações na fala, que Jack
não gostaria de estar naquela situação, mas é necessário agir.
Há ainda na imagem 12 um ethos de homem frustrado e com bom senso de humor
(haja vista o trecho “Daí resolvi ser comediante... É. Eu achava que tinha talento.
Pois é... olha só pra onde o talento me trouxe! Estou aqui!... prestes a cometer
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um grande crime.”) que não conseguiu realizar os seus sonhos. Os vocábulos
“achava” e “talento” reforçam o ethos mostrado/dito de homem fracassado e
incompetente. Ao final da cena (imagem 12), percebemos, por fim, o ethos de
um homem medroso e covarde que procura esconder as suas realizações, como
percebemos no trecho “[...] você tem certeza que ninguém vai saber que estou
envolvido?”. Nesse trecho, o vocábulo “ninguém” reforça a construção dessa
imagem discursiva, afinal, nenhuma pessoa deve saber que Jack vai roubar. Há
aqui, portanto, um medo de retaliação.
(Imagem 12 – MOORE, 1999, p. 18)
Corpus de estudos Batman: A Piada Mortal, sobre o ethos
discursivo do Coringa
O Coringa como personagem dito vilão das histórias em quadrinhos do Batman,
apresenta um ethos pré-discursivo de criminoso/assassino. Ele apresenta uma
pele pálida, misteriosa, um sorriso sarcástico e se veste de forma elegante e
extravagante, com cores fortes e marcantes, que contrastram com a cor de sua
pele. Ele também utiliza uma bengala com pedras preciosas, luvas e um chapéu
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(Imagem 13).
(Imagem 13 – MOORE, 1999, p. 12, p. 17)
Essas imagens podem ser confirmadas em “Batman: a piada mortal” quando
o Coringa foge do asilo de Arkham e decide comprar um antigo parque de
diversões (Imagem 13-14).
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(Imagem 14 – MOORE, 1999, p. 9)
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Na imagem 14 percebemos um ethos mostrado de riqueza (quando o personagem
afirma que “dinheiro não é problema. Não nos dias de hoje” ou “Alto? Meu
bom homem, é uma verdadeira pechincha”). Percebemos ainda que ele possui
dinheiro, mas que em algum momento passado de sua vida não possuía: o
vocábulo “verdadeira pechincha” reforça essa imagem. Há ainda nessa cena um
ethos mostrado de homem com bom senso de humor, uma vez que este faz uso
de uma piada para dizer que o parque que vai comprar está em péssimo estado
(haja vista o trecho “Bem, ele é espalhafatoso, feio e os mendigos o usam como
privada. Os brinquedos estão imprestáveis e podem machucar ou matar qualquer
criança fácil, fácil. [...] Não gostei?! Eu a-do-rei!”). Adorar o parque, então, revela
mais um ethos discursivo, o de homem cruel que não gosta de crianças que
as prefere mortas. Os vocábulos “brinquedos imprestáveis”, “matar qualquer
criança, fácil, fácil” e “a-do-rei!” enfatizam essa imagem.
Com a imagem seguinte (15), percebemos a construção de um ethos mostrado de
vilão e assassino, afinal o Coringa não vai pagar nem um centavo pela compra
do parque macabro e ainda por cima entorpece/envenena o vendedor do espaço
(haja vista o trecho “[...] naturalmente que não terei que lhe pagar nada [...]” e o
trecho “[...] garanto que nem vai conseguir falar...”). Os vocábulos “naturalmente”
e “nada” indicam que o Coringa costuma roubar/matar/entorpecer os outros
com frequência. Temos ainda o vocábulo “nem” que sugere que o vendedor
do parque está entorpecido/envenenado e que não vai conseguir mais falar,
ou quem sabe viver – a conclusão da sequência de quadros explica o fato como
se indicasse o ethos dito de morte (Imagem 15 – close adaptado). Percebemos
ainda o ethos de um homem sarcástico, onde o Coringa ironiza o sorriso de
entorpercimento do vendedor (Haja vista o trecho “Não se sente feliz com isso
[morte e roubo]? Há, posso ver que sim.”).
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(Imagem 15 – MOORE, 1999, p. 12 – close adaptado)
Com a imagem seguinte (Imagem 16):
(Imagem 16 – MOORE, 1999, p. 16 – close adaptado)
percebemos que o Coringa constrói um ethos de homem brutal, uma vez que
ao “visitar” a casa de Jim Gordon (o comissário Gordon) ele atira assim que
a porta se abre. Pela sequência de imagens, observamos a brutalidade de sua
iniciativa. Os olhos arregalados e surpresos de Bárbara evidenciam o susto da
personagem ao abrir a porta.
Durante essa cena observamos um ethos mostrado de sarcasmo, afinal, durante
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o sequestro e baleamento de Bárbara, ele tece inúmeros comentários irônicos,
se veste como se estivesse fazendo turismo e fosse visitar um grande amigo, e,
ainda, vai ao bar particular do comissário e serve-se de uma bebida (Imagem
17) – isso nos mostra um ethos de quem está à vontade e tranquilo com os atos de
violência que pratica. No trecho “Por favor, não precisa se preocupar o senhor
sabe como as bibliotecárias são silenciosas. Elas odeiam barulho” (Imagem
17), há a utilização de vocábulos de duplo sentido (como “bibliotecárias são
silenciosas”) que mostram o ethos de sarcasmo do personagem. O mesmo ocorre
com um quadro mais a frente (imagem 17), em que ele afirma “sabe, é uma
vergonha você perder a estreia do seu pai, senhorita. Infelizmente, não podemos
acomodar inválidos”. Aqui, o vocábulo “vergonha” é utilizado de forma irônica,
afinal o sequestro/tortura do comissário Gordon não é um espetáculo (como
indica o vocábulo “estréia do seu pai”) a ser assistido, e o fato de Bárbara poder
estar paraplégica e não assistir à tortura de seu pai também não é um ato feliz –
o vocábulo “infelizmente” reforça essa imagem discursiva.
[...]
(Imagem 17 – MOORE, 1999, p. 17)
O trecho “mas algumas fotos suas vão fazer ele se lembrar de você” (Imagem
17) nos indica ainda um ethos de homem torturador e perverso, afinal o Coringa
registrará em fotos (de forma permanente) a agonia da filha de Gordon para
que este se torture para sempre e sofra a cada vez que as vir. A utilização do
operador argumentativo “mas” evidência uma maior força argumentativa
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nessa frase do que em sua antecessora, “infelizmente não podemos acomodar
inválidos” (Imagem 17).
Em cenas mais à frente, percebemos pela fala de outros personagens o que
realmente aconteceu com Bárbara e o que o Coringa fez com ela (Imagem 18).
(Imagem 18 – MOORE, 1999, p. 21)
Com isso, portanto, há aqui (Imagem 18) um reforço ao ethos do Coringa de
homem torturador, perverso e doentio, pois depois de atirar na moça, a despe
(fica sugestionado aqui as cenas de abuso sexual) e a fotografa.
Em uma das últimas cenas de “Batman: a piada mortal”, o Coringa apresenta
um ethos dito/mostrado de homem brutal e torturador (haja vista o trecho o
“Eu atirei em uma garota indefesa... aterrorizei um velho” (Imagem 19)”. Aqui,
o uso de verbos no pretérito perfeito “atirei” e “aterrorizei” reforça as imagens
discursivas de homem brutal e torturador. O Coringa, com essas palavras, afirma
que cometeu um ato ilegal e com isso pede para ser punido com a morte (haja
vista o trecho “por que não me manda pro inferno [...]” (Imagem 19). Com esse
trecho percebemos ainda um ethos de um homem desesperado e atormentado
que vive por viver, mas que gostaria de estar morto. As feições do personagem
indicam cansaço e descontentamento, o que reforça o ethos de sofrimento.
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(Imagem 19 – MOORE, 1999, p. 46 – cenas adaptadas para caber)
Conclusões e implicações
De acordo com Maingueneau (2008), podemos avaliar que as imagens
discursivas produzidas por Jack Napier e pelo Coringa evidenciam que, como
o mesmo autor postula (2008), qualquer discurso, seja ele oral ou escrito, formal
ou informal, inscrito em qualquer cena genérica específica (como as Histórias em
Quadrinhos (HQs), por exemplo), possui as formações discursivas conhecidas
como ethos.
Tais formações são apreendidas/percebidas/compreendidas pelo leitor – visto
aqui como co-encunciador da enunciação – na media em que este se incorpora
em uma cena de enunciação particular. É através desse complexo processo
linguístico, portanto, que a análise do personagem Coringa (Jack e Coringa) foi
possível: afinal
[a] prova do ethos mobiliza efetivamente ‘tudo o que, na
enunciação discursiva, contribui para destinar a imagem
do orador a um dado auditório. Tom de voz, fluxo da fala,
escolha das palavras e dos argumentos, gestos, mímicas, olhar,
postura, aparência etc., todos signos, de elocução e de oratória,
indumentárias ou símbolos, pelos quais o orador da de si
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mesmo uma imagem psicológica e sociológica (DECLERCQ,
1992, p. 4818, apud MAINGUENEAU, 2008, p. 14).
É, então, a partir da totalidade dessa cena enunciativa que surge o ethos efetivo
dos personagens, como podemos ver no diagrama abaixo (Imagem 20). Com a
exposição desse quadro percebemos que Jack Napier se apresenta na cena de
enunciação, em sua totalidade, como um homem humorado e ainda iniciante
em sua contação de piadas. Já o Coringa se apresenta na cena enunciativa, em
sua totalidade, como um homem humorado (tendendo ao sarcasmo, ironia),
brutal e torturador. Tais imagens discursivas, portanto, só foram possíveis
de se apreender, pois nós como leitores, co-enunciadores, nos inserimos
nessa cena particular e – através do compartilhamento de estereótipos sociais
historicamente construídos e de uma análise de “caráter” e de “corporalidade”
dos personagens – colaboramos para efetivar essa construção linguística-social.
Com isso, observamos, como postula Maingueneau (2008), que o ethos além
de uma figura retórica/argumentativa pode ser analisado, de forma bastante
produtiva, como um elemento integrante de uma encenação social.
Ainda podemos considerar que dentro de uma cena genérica de histórias em
quadrinhos, os personagens adquirem traços característicos específicos: há os
cidadãos comuns, os heróis e os vilões. Em nossa análise, percebemos que na
encenação de “Batman: a piada mortal” um cidadão comum passa a ser um
vilão no momento em que constrói uma imagem discursiva – mostrada ou dita
– extremamente negativa, como brutalidade, perversidade e loucura. Assim,
do cidadão para o vilão, poucos elementos discursivos se mantém, e, em sua
maioria, traços contrários às virtudes dos personagens se apresentam de forma
predominante.
18- DECLERCQ, Gilles. L’art d’argumenter – Structures rhétoriques et littéraires. Paris: Edi�
tions Universitaires, 1992.
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(Imagem 20 – Diagrama do ethos efetivo de Jack Napier e do Coringa)
Em nossa análise, portanto, evidenciamos que, ao se utilizar um quadro teóricometodológico advindo de uma teoria discursiva (no nosso caso a teoria de
cena enunciativa de Maingueneau) para a análise de um material discursivo
qualquer, podemos dar ao mesmo, uma significação linguística bastante
interessante e curiosa. Isso nos revela que outros aspectos de produção da
cena enunciativa colaboram, portanto, para construção de uma completude do
material linguístico dado.
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Referências
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FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução: Laura Fraga de Almeida
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em: 16 Ago. 2009.
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ESTUDO DO VERBO DE MOVIMENTO NOS
GÊNEROS ENTREVISTA E REPORTAGEM
Aline Moraes Oliveira1*
Carmelita Minelio da Silva Amorim2**
Lúcia Helena Peyroton da Rocha3***
Sabrina Tassan4****
Resumo
Analisamos verbos de movimento tomando como referencial o Funcionalismo
Linguístico. Segundo Martelotta (2006), as análises funcionalistas baseiam-se na
utilização concreta da língua pelos falantes, admitindo que a gramática se forma
a partir do uso em situações comunicativas reais, ou seja, a partir do discurso.
Por isso, a nossa escolha pelos gêneros textuais (entrevista e reportagem), uma
vez que é nos gêneros que conseguimos visualizar os efetivos usos sociais da
língua. A nossa hipótese foi a de que os verbos de movimento apresentam
em sua estrutura argumental prototípica, implícitos e explícitos, um locativo–
origem e um locativo–meta, como pontos de partida e pontos de chegada,
respectivamente, de um objeto. Sendo assim, nossa análise buscou verificar
esse pressuposto deslocamento físico de um objeto e seus respectivos pontos
de chegada e partida. Dentro dessa perspectiva, verificamos que determinados
verbos de movimento apresentam, de fato, essa estrutura argumental prototípica:
locativo–origem / locativo–meta. No entanto, como evidenciaram os dados, em
algumas estruturas argumentais, o locativo–origem e o locativo–meta não estão
explícitos, mas são recuperáveis pelo contexto. Os dados foram coletados de
textos da Revista Veja online.
Palavras-chave:
Reportagem.
Verbos
de
Movimento,
Funcionalismo,
Entrevista,
1- * Mestre em Estudos Linguísticos – UFES.
2- ** Doutoranda em Estudos Linguísticos/UFF, Professora Substituta da Universidade Federal
do Espírito Santo.
3- *** Doutora em Linguística/Unesp-Araraquara, Professora da Universidade Federal do Espíri�
to Santo.
4- **** Aluna do Curso de Letras da UFES, bolsista de Iniciação Científica (CNPq).
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Abstract: We analyze verbs of motion taking as reference the functionalism of
language. According to Martelotta(2006), the functionalist analysis is based on
actual use of language by speakers, admitting that the grammar is formed from
the use in real communicative situations, i.e., from the discourse. Therefore
our choice of text genres (interviews and reporting), since is in the genres we
can see the actual social uses of language. Our hypothesis was that the verbs
of motion present in its prototypical argument structure, implicit and explicit,
a locative–origin and a locative–target, as points of departure and arrival,
respectively, of an object. Thus, our analysis aimed to check this assumption
of physical displacement of an object and their respective points of arrival and
departure. Within this perspective, we find that certain verbs of motion have,
in fact, this prototypical argument structure: locative–origin /locative–target.
But, as shown in the data, in some argument structures, the locative–origin/
locative–target are not explicit, but are recoverable from the context. The data
were collected from texts of Veja magazine – online version.
Keywords: Verb of Motion, Functionalism, Interview, Reporting.
Palavras Iniciais
Este artigo evidencia um recorte que fizemos dos estudos que vem sendo
realizados no Núcleo de Pesquisas em Linguagens, coordenado pela Professoras
Drª. Lúcia Helena Peyroton da Rocha e pela Mestre Carmelita Minelio da Silva
Amorim, que conta com a participação de alunos da graduação, em nível de
Iniciação Científica, alunos e ex-alunos do Mestrado do PPGEL-UFES, com
vistas a socializar os estudos que vem sendo ali empreendidos.
Os nossos objetivos são: (i) analisar fatores semânticos e pragmáticos
relacionados ao sujeito (X) tais como animicidade, intencionalidade, entre
outros, em função da natureza valencial do predicador (V); (ii) descrever os
traços morfossintáticos e semânticos a serem analisados nos argumentos dos
verbos nos gêneros textuais.
Partimos da hipótese de que, dependendo do verbo de movimento e do
gênero textual em que o verbo está inserido, os valores semânticos, bem como
as propriedades valenciais de cada verbo indiciarão estruturas argumentais
diversas. Para investigar essa hipótese, entendemos que a Teoria Funcionalista
e a de Valências são suficientes.
O tema é de extrema relevância, visto que a subcategorização dos verbos em
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perspectivas funcionalistas da língua quase não foi abordada. Os resultados
poderão ser aplicados diretamente ao ensino, o que trará grande benefício para
as escolas públicas e privadas de nosso município, que ficam perdidas em meio
ao caos instaurado pelas divergentes classificações consignadas em nossas
gramáticas e em livros didáticos.
A nossa pesquisa segue a orientação funcionalista, que concebe a língua
diferentemente das vertentes linguísticas que a veem como um sistema fechado,
pronto, imutável. A nossa proposta vai ao encontro daquelas em que a língua
é um sistema de práticas sociais, e como tal, precisa ser analisada in loco, por
isso, nada mais apropriado do que estudá-la em textos de veiculação social. A
heterogeneidade dos textos nos possibilita apreender os usos que fazemos da
língua e como isso se articula com as estruturas que a gramática julga a priori
serem estáticas.
No quadro teórico funcionalista é estabelecida claramente a interação entre
gramática e discurso. Ou seja, a preferência por determinadas estruturas está
diretamente ligada ao discurso. Nesse sentido, a nossa análise deve-se dar, com
vistas a observar como certos verbos se comportam em textos produzidos em
situação real de uso, em sua modalidade escrita.
Nas gramáticas normativas, a oração é considerada bimembre, em que há
duas funções essenciais: sujeito e predicado. Nessa visão, a oração se estrutura
pelo e para o sujeito. Ignácio (2002) nos apresenta, entretanto, um novo olhar,
sobre qual seria o núcleo da oração. Para tanto, o autor parte da proposição de
Tesnière (1969), para quem o verbo deve ser visto como um elemento central
que comanda toda a estruturação oracional. Tesnière (1969) atribui ao verbo (=
predicado) a posição central na estrutura oracional, considerando-o elemento
de que dependem todos os restantes elementos da oração.
Considerando essa posição, adotaremos também, para descrição de nossos
dados,o conceito de estrutura argumental. Esta observa a relação que um verbo
mantém com os seus argumentos, considerando: (i) quantidade de argumentos,
que pode variar entre zero e quatro; (ii) caso semântico dos argumentos, que
podem assumir vários papéis; no caso de nossa pesquisa, é o locativo, subdividido
em origem e meta. Nessa perspectiva, argumento é o participante nominal que
é exigido pelo sentido do verbo. Os papéis semânticos indicam o envolvimento
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do participante no evento expresso pelo verbo. Assim, um argumento pode
funcionar como agente, paciente, experienciador, entre outros.
O verbo é um dos elementos que apresentam predisposição maior para, sendo
predicador, ter uma estrutura argumental. Como assegura Abreu (2003, p. 80),
em torno do verbo, “constrói-se a oração, que é uma projeção dessa estrutura.
Muitas vezes, além dos argumentos necessários à gramaticalidade das
orações, aparecem outros que, embora, não interfiram nessa gramaticalidade,
acrescentam a ela outros pormenores”. O que nas reportagens, por exemplo,
pode dar a ancoragem de que necessita o repórter para tornar a matéria mais
confiável.
Ao considerar o verbo como predicador, Abreu (2003) subdivide os argumentos
em argumentos essenciais, que são aqueles que formam a rede argumental
essencial do verbo, e os argumentos não-essenciais, que são aqueles que,
somados aos essenciais, formam a rede argumental total do verbo, em uma
situação de predicação. O autor alerta-nos para um aspecto muito relevante, no
que se refere à essencialidade dos argumentos, pois “às vezes, um argumento
pode não ser essencial à rede argumental de um verbo, mas ser essencial à rede
argumental de outro” (ABREU, 2003, p. 81).
Metodologia
Por uma questão de metodologia, a análise de Verbos de Movimento apresenta
um corpus composto por reportagens e entrevistas da Revista Veja, disponível
em meio digital, no site http://veja.abril.com.br/. O período pesquisado foi
2010 e 2011.
A pesquisa baseou-se também nos conceitos de gênero textual, uma vez que
tratar de gêneros é tratar do uso da língua no dia a dia, nas mais variadas
manifestações, vendo como a sociedade funciona do ponto de vista linguístico.
Os gêneros são, assim, uma forma de ação social, constituindo-se como corpus
apropriado para verificarmos o uso real da língua.
Valemo-nos também do Funcionalismo por duas razões: (1) a concepção de
língua, visto que a compreende como um sistema sociointerativo, ou seja,
contempla a língua em sua relação com o ato comunicativo e (2) o fato de rever
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o conceito de Transitividade.
Foram selecionados, para a análise, os seguintes verbos de movimento: ir, entrar,
sair, levar, trazer e vir. A coleta de dados foi feita através do banco de dados
digitalizados da Revista Veja, localizado no site: http://veja.abril.com.br/, em
acervo digital. Após a escolha dos verbos foram coletadas frases nos trechos de
reportagens e entrevistas. Nesta seleção, consideramos importante observar não
somente verbos de movimento que contemplem a estrutura prototípica, mas
também verbos de movimento que tem sua estrutura prototípica e semântica
alteradas por fatores semânticos ou pragmáticos.
Sobre Gêneros Textuais
Marcuschi (2008, p. 59) concebe a língua como uma “atividade sociointerativa
situada”. Dessa forma, a língua é contemplada em seu funcionamento e não
é vista como uma estrutura que está acima dos seus falantes. Ou seja, a língua
não deve ser examinada fora do contexto de interação, mas na situação real
de comunicação, na interação social. Marcuschi (2008, p.61) acrescenta que “a
língua é um conjunto de práticas sociais e cognitivas situadas”. Partindo disso,
a escolha do corpus deve se basear nessa mesma perspectiva que vê a língua
como um “fenômeno social e que, tudo o que se acha vinculado a ela tem esse
caráter, inevitavelmente.” (MARCUSCHI, 2008, p.57).
Está consignado nos PCNs (1998, p. 24) que os gêneros existem em número
quase ilimitado, variando conforme a época, a finalidade social, e que, mesmo
se a escola impusesse o ensino de todos, isso não seria possível. Sendo assim,
é preciso que sejam priorizados gêneros que “caracterizem os usos públicos da
linguagem”. Esses textos devem favorecer o desenvolvimento da competência
comunicativa, valorizando, desse modo, a reflexão sobre a língua. O trabalho
com o texto, segundo Marcuschi, não tem limites quanto à exploração dos mais
variados tipos de problemas linguísticos.
Furtado da Cunha (2001, p. 61-70) afirma que as discussões sobre estrutura
argumental têm sido baseadas em exemplos fabricados, e não em textos reais.
E esse é exatamente o motivo de escolhermos um estudo a partir dos gêneros
textuais e, por questões metodológicas, elegermos a entrevista e a reportagem,
pois, nosso foco é a análise de textos produzidos em situação real de interação.
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Essa opção tem respaldo na proposta de Marcuschi (2010), que nos alerta para
o fato de que o ensino de língua deve ter os textos de circulação social como
ferramenta para auxiliar o ensino. Sendo assim, nossa decisão por analisar
recortes desses gêneros já evidencia uma prática que deve orientar o nosso
olhar para o ensino da linguagem.
Segundo Schneuwly e Dolz (2004, p. 86),“muitos autores consideram a entrevista
uma prática de linguagem altamente padronizada, que implica expectativas
normativas específicas da parte dos interlocutores, como um jogo de papéis:
o entrevistador abre e fecha a entrevista, faz perguntas, suscita a palavra do
outro, incita a transmissão de informações (...)”.
Medina (1990) acrescenta que existem dois tipos de entrevistas: (1) a que tem
por objetivo espetacularizar o ser humano e (2) a que visa compreendê-lo. A
autora enfatiza que a entrevista é um processo de interação social e como tal
seria conveniente que seu objetivo fosse o de estabelecer um vínculo EU-TU, por
meio do qual a relação entre repórter e entrevistado ultrapassasse os entornos
da simples técnica jornalística.
A reportagem, por sua vez, também é um gênero jornalístico, que tem por
objetivo informar, seja por meio da televisão, do rádio ou de uma revista. A
reportagem é diferente da notícia, pois sua abordagem é mais profunda,
buscando de forma mais cuidadosa a relevância dos fatos.
O corpus configura-se em trechos de reportagens e entrevistas, que são analisados
à luz da questão que norteia toda a pesquisa: os verbos de movimento possuem
em sua estrutura argumental, explícitos ou implícitos, um ponto de chega e
outro de partida. Sendo assim, analisaremos o comportamento morfo-sintáticosemântico e pragmático de alguns verbos de movimento.
Análise dos dados
A partir dos estudos realizados, foram feitas análises de fragmentos de
reportagens e entrevistas que continham os seguintes verbos: ir, entrar, levar,
trazer, sair e vir. A análise consiste em verificar a presença ou ausência do
locativo–origem e do locativo–meta na ambiência com os verbos de movimento
em questão.
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Verbo IR:
•
(1) Sou super tranqüila. Só vou para a balada de vez em quando. (Edição
2177, 11/08/2010, p. 60)
Matriz do exemplo (1): [X IR para Y]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
IR = deslocar-se em direção a um lugar onde ocorre a balada. O verbo IR realizase com dois argumentos cujos papéis semânticos são: Agente e Locativo. O
complemento Locativo introduzido pela preposição para.
•
(2) Surgem mais pacotinhos de dinheiro. Diz Roriz: “Depois das
eleições vou no banco”. O laranja interrompe: “Vai e ajeita?” (Edição
2177, 11/08/2010, p.76).
Matriz do exemplo (2): [X IR no Y]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
IR = deslocar-se em direção ao banco. O verbo IR realiza-se com dois argumentos
cujos papéis semânticos são: Agente e Locativo. O complemento Locativo
introduzido pela preposição em + o = no.
•
(3) Ao mesmo tempo em que cuidava dessa cirurgia, o médico operava
outra mulher, na sala ao lado. De tempos em tempos, ele anunciava aos
que presenciavam a lipo. – Estou com o braço cansado. Vou até ali e já
volto...( Edição 2176, 04/08/2010, p.120).
Matriz do exemplo (3): [X IR até Y]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
IR = deslocar-se em direção a um lugar não explicitado, mas representado
pelo elemento ali. O verbo IR realiza-se com dois argumentos cujos papéis
semânticos são: Agente e Locativo. O complemento Locativo introduzido pela
preposição até.
Tradicionalmente os complementos dos verbos de movimento, os locativos,
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quanto à gramática normativa são conhecidos como: adjunto adverbial de
lugar. Ora, se esses elementos são obrigatórios, são “constituintes nucleares”,
logo, não deveriam ser classificados como adjuntos. Ou seja, sua presença
seria indispensável à compreensão da sentença. Nos enunciados (1), (2) e (3),
esse complemento é explícito, sendo um termo integrante, completando assim
o sentido do verbo. Neves (1999) pontua que as preposições “até”, “para” e
“no”, introduzem complemento locativo de verbo. Nos exemplos (1) e (2), não
verificamos a presença do locativo–origem, visto que o foco da reportagem não
é de onde eles partiram, mas sim suas metas (destino).
Verbo ENTRAR:
•
(4) Na Malásia, por exemplo, os mulçumanos não podem entrar em
restaurantes que servem carne de porco, considerada impura pela
religião. (Edição 2177, 11/08/2010, p.118)
Matriz do exemplo (4): [X ENTRAR em Y]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
ENTRAR = Ir para dentro de, passar de fora para dentro. Há um lugar
explicitado e representado pelo sintagma preposicionado: em restaurante. O
verbo ENTRAR realiza-se com dois argumentos cujos papéis semânticos são:
Agente e Locativo. O complemento Locativo introduzido pela preposição em.
•
(5) Como definir o que seria uma pele perfeita? Aquela que torna ainda
mais bonita uma mulher bonita quando ela sorri. Essa é a mulher que
faz um restaurante inteiro parar e olhar quando ela entra. (Edição 2151,
10/02/2010, p. 19)
Matriz do exemplo (5): [X ENTRAR em Y]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
ENTRAR = Ir para dentro de, passar de fora para dentro. O Locativo não está
à direita do verbo, mas é antecipado em função da estrutura da qual o verbo
entrar faz parte. O verbo ENTRAR realiza-se com dois argumentos cujos papéis
semânticos são: Agente e Locativo.
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•
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(6) A senhora já mexeu no quarto dele? No último dia 20, quando
se completaram dois meses de sua morte, entrei lá. Uma terapeuta
especialista em luto foi comigo. (Edição 2185, 06/10/2010, p. 22)
Matriz do exemplo (4): [X ENTRAR em Y = quarto > lá]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
ENTRAR = Ir para dentro de, passar de fora para dentro. Há um lugar
explicitado e representado pelo elemento locativo lá, substituidor de quarto,
numa retomada anafórica. O verbo ENTRAR realiza-se com dois argumentos
cujos papéis semânticos são: Agente e Locativo.
•
(7) Dois homens entram no elevador de um hotel londrino. As portas se
fecham e a pancadaria começa. O de terno branco de grife bate, enquanto
o de jaqueta de couro apanha. (Edição 2188, 27/10/210, p. 90)
Matriz do exemplo (7): [X ENTRAR em Y]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
ENTRAR = Ir para dentro de, passar de fora para dentro. Há um lugar explicitado
e representado pelo sintagma preposicionado: no elevador. O verbo ENTRAR
realiza-se com dois argumentos cujos papéis semânticos são: Agente e Locativo.
O complemento Locativo introduzido pela preposição em+o = no..
No enunciado (4), o locativo–meta vem explícito morfologicamente, mas, o
locativo–origem não. Isso ocorre por que a reportagem não tem como foco o
lugar (espaço físico) de onde esse mulçumano vem. Apenas enfatiza que são os
mulçumanos da Malásia. Nos excertos (5) e (6), mais uma vez o locativo–origem
não pode ser identificado, mas o locativo–meta pode ser recuperado, pois é
mencionado na oração anterior. No exemplo (6), o locativo–meta é recuperado,
sendo, no entanto, substituído por outra expressão, trata-se de um advérbio de
lugar fórico, isto é, que remete a outro elemento mencionado anteriormente.
Neste enunciado, o advérbio ocupa uma casa argumental preenchendo a
valência do verbo entrar.
No enunciado (7), o locativo–origem não pode ser recuperado e é irrelevante
para os propósitos comunicativos do enunciador, pois a ênfase é sobre o
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evento em si. Ao lermos a entrevista completa, verificamos que o local de
onde os participantes se originam não é explicitado. Isso ocorre porque, para a
reportagem, a descrição desse detalhe não é o fator relevante. Esse locativo de
origem poderia ser chamado de subtópico discursivo, visto que sua ausência
não prejudica o sentido da reportagem como um todo. Já o locativo–meta é
explícito, tratando-se do elevador.
Verbo LEVAR:
•
(8) O primeiro diz respeito ao papel de Felipe Iasi, o amigo que teria sido
coagido a levar Cadu ao Céu de Maria na noite do assassinato. Por meio do
rastreador instalado no carro do rapaz pela companhia de seguros a polícia
reconstituiu o trajeto que Iasi percorreu depois de deixar a casa de Glauco.
(Edição 2157, 24/03/2010, p.72)
Matriz do exemplo (8): [X LEVAR Y de Z a W]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
LEVAR = conduzir algo/alguém consigo de um lugar para outro. Há um lugar
explicitado e representado pelo sintagma preposicionado: ao Céu de Maria. O
verbo LEVAR realiza-se com quatro argumentos cujos papéis semânticos são:
Agente, paciente e Locativo-origem e Locativo-meta. O complemento Locativometa introduzido pela preposição a.
•
(9) Eu tinha ligado umas vinte vezes, e ele não conseguia atender. Levei-o
para casa, e ele disse que havia exagerado um pouco no tal do chá. (Edição
2157, 24/03/2010, p.73)
Matriz do exemplo (9): [X LEVAR Y para Z]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
LEVAR = conduzir algo/alguém consigo de um lugar para outro. Há um lugar
explicitado e representado pelo sintagma preposicionado: para casa. O verbo
LEVAR realiza-se com três argumentos cujos papéis semânticos são: Agente,
paciente e Locativo. O complemento Locativo introduzido pela preposição
para.
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•
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(10) Foi ele quem no mês passado, levou Farinas ao hospital quando
o dissidente perdeu a consciência durante sua atual greve de fome.
(Edição 2160, 14/04/2010, p. 100)
Matriz do exemplo (10): [X LEVAR Y a Z]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
LEVAR = conduzir algo / alguém consigo de um lugar para outro. Há um lugar
explicitado e representado pelo sintagma preposicionado: ao hospital. O verbo
LEVAR realiza-se com três argumentos cujos papéis semânticos são: Agente,
paciente e Locativo. O complemento Locativo introduzido pela preposição a.
•
(11) A cada corpo içado pelas escavadeiras, gente como o motorista
Marco Antônio Caternol, 31 anos, expõe sua dor: “o aguaceiro levou
minha casa e meu filho Caíque, de 6 anos”. Não sei como será viver sem
esse menino. (Edição 2160, 14/04/2010, p.74)
Matriz do exemplo (11): [X LEVAR Y e Y a Ø]
X é um sujeito [+causativo]
LEVAR = arrastar, puxar. O lugar não é explicitado, uma vez que um dos objetos
afetado é uma casa, que deixa de existir, nessa perspectiva pode-se afirmar que
esse objeto foi levado de um lugar-origem, deixando de existir não foi levado a
um lugar-meta Y. O verbo LEVAR realiza-se com dois argumentos cujos papéis
semânticos são: Causativo, Paciente e Locativo.
No enunciado (8), conseguimos recuperar o locativo–origem no final do enunciado:
casa de Glauco. O locativo–meta é Céu de Maria. Nesse enunciado, podemos
verificar uma estrutura argumental prototípica dos verbos de movimento que
pressupõem, em sua estrutura argumental, implícitos ou explícitos, um locativo–
origem e um locativo–meta. Já no exemplo (9), o locativo–meta é casa, mas, no
contexto discursivo, o primeiro argumento (locativo–origem) não é explicitado,
não trazendo, contudo, implicações para a compreensão do enunciado, pois não
compromete o propósito comunicativo do texto. A preposição a do verbo levar,
no trecho (10), também é uma preposição que introduz complemento de verbo.
Nesse exemplo o locativo–meta é identificável, está expresso no texto, mas o
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primeiro argumento não é possível ser recuperado. Assim como no enunciado
anterior, essa informação é irrelevante.
No enunciado (11), o locativo–origem pode ser inferido a partir da leitura do
restante da reportagem; trata-se de uma favela. No entanto, o locativo–meta não
pode ser inferido nem retomado. Talvez possa ser implicado, considerando o
contexto da situação.
Verbo TRAZER:
•
(12) A ex-presidente Ruth Dreifuss (1999) admite o fracasso: “Perdemos
o controle dos parques: os criminosos os aproveitam para trazer drogas
para os viciados”. (Edição 2220, 08/06/2011, p.153)
Matriz do exemplo (12): [X TRAZER Y para Z]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
TRAZER = conduzir, levar, transferir, transportar (alguma coisa) de um ponto
para outro. O locativo-meta é explicitado: os parques. O verbo TRAZER realizase com quatro argumentos cujos papéis semânticos são: Agente, Objetivo,
Locativo e Dativo (= para os viciados), que é o elemento afetado negativamente
(prejudicado) pela situação expressa na oração.
•
(13) Desde o fim de 2009, o Estaleiro Atlântico Sul, no complexo de Suape,
em Pernambuco, trouxe 200 dekasseguis (brasileiros descendentes de
japoneses que fazem trabalho no país asiático) para ajudar na produção
dos navios (Edição 2184, 29/09/2010, p.146)
Matriz do exemplo (13): [X TRAZER Y para Z]
X é um sujeito [não- humano: o Estaleiro Atlântico Sul]
TRAZER = conduzir, levar, transferir, transportar (alguém) de um ponto para
outro. O locativo–origem país asiático, o locativo–meta é Pernambuco. O
verbo TRAZER realiza-se com quatro argumentos cujos papéis semânticos são:
Não-humano, Paciente, Locativo–Origem e Locativo–Meta.
•
(14)
Como
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sonhar
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não
custa
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nada,
o
Santos
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está
empenhado
na
montagem
de
uma
engenharia financeira que permita trazer o craque Robinho de volta em
2011. (Edição 2194, 04/12/2010)
Matriz do exemplo (14): [X TRAZER Y]
X é um sujeito [não-humano: o Santos]
TRAZER = conduzir, levar, transferir, transportar (alguém) de um ponto para
outro. O locativo–meta é São Paulo. O verbo TRAZER realiza-se com três
argumentos cujos papéis semânticos são: Não-humano, Paciente, Locativo–
Meta.
•
(15) Há alguns anos passo minhas férias de inverno, na Praia do Atalaia...
Enquanto a maré está alta, o jardim da frente da casa é usado pelos
banhistas, que trazem caixas de isopor, cadeiras de sol, som portátil e
até barracas de armar. (Edição 2176,04/08/2010, p. 45)
Matriz do exemplo (15): [X TRAZER Y para Z]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
TRAZER = conduzir, levar, transferir, transportar (alguma coisa) de um ponto
para outro. O locativo-origem é omitido, o locativo–meta é a Praia do Atalaia.
O verbo TRAZER realiza-se com três argumentos cujos papéis semânticos são:
Agente, Paciente, Instrumental e Locativo–Meta.
No enunciado (12), o locativo–meta é parques, mas não está explícito o locativo–
origem. Ao lermos o restante da reportagem fica evidente o porquê dessa não
informação. O foco da notícia são os parques da cidade de São Paulo, sendo assim,
de onde vem os criminosos não constitui informação relevante. No enunciado
(13), O locativo–origem é país asiático, o locativo–meta é Pernambuco. O verbo
TRAZER realiza-se com quatro argumentos cujos papéis semânticos são: Nãohumano, Paciente, Locativo–Origem e Llocativo–Meta.
No excerto (14), o locativo–meta não está explicitado, porém pode-se inferir que
é São Paulo. O verbo TRAZER realiza-se com dois argumentos cujos papéis
semânticos são: Não-humano, Paciente.
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E, por fim, no (15), o locativo–origem não pode ser recuperado, nem inferido. O
locativo–meta é jardim da frente da casa. A dificuldade em localizar o locativo–
origem se dá pelo fato de que, no enunciado, quem traz as caixas de isopor não
é somente uma pessoa, são várias; isso fica claro pela expressão banhistas, que
está no plural. O fragmento faz parte da seção Leitor. Nesta seção, os leitores
fazem comentários sobre outras reportagens da revista.
Verbo SAIR
•
(16) O Homo sapiens tinha uma população inteiramente formada
por indivíduos de pele escura quando saiu da África. (Edição 2168,
05/06/2010, p.134)
Matriz do exemplo (16): [XSAIR de Y]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
SAIR = empreender viagem. O locativo–origem é explicitado: África. O verbo
SAIR realiza-se com dois argumentos cujos papéis semânticos são: Agente e
Locativo–Origem.
•
(17) Na cadeia, o inteligente e articulado Sérgio promoveu a
escolarização de presos e atraiu a atenção de Hebe. Em 1995, saiu
diretamente da penitenciária para a sede da fundação. (Edição 2222,
22/06/2011, p.87)
Matriz do exemplo (17): [X SAIR de Y para Z]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
SAIR = Ir de um lugar para o outro. O locativo–origem é explicitado e está
representado pelo sintagma preposicionado: da penitenciária; o locativo–meta
é: para a sede da fundação. O verbo SAIR realiza-se com três argumentos cujos
papéis semânticos são: Agente, Locativo–origem e Locativo–Meta.
•
(18) Um filho viciado em crack desestabiliza toda a família. As tentativas
de impedi-lo de sair de casa não funcionam. (Edição 2222, 22/06/2011,
p.99)
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Matriz do exemplo (18): [X SAIR de Y]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
SAIR = Ir para rua. O locativo–origem é explicitado: casa e está representado
pelo sintagma preposicionado: de casa; o locativo–meta não está explicitado.
O verbo SAIR realiza-se com dois argumentos cujos papéis semânticos são:
Agente e Locativo–Origem.
•
(19) “Quando a mais velha sai à noite, vou buscá-la entre meia noite
e meia e uma hora. A Melanye ainda não sai à noite. É muita nova.
Se ela vai com os amigos ao cinema à tarde, peço que volte antes de
anoitecer.” (Edição 2160, 14/04/2010, p.116)
Matriz do exemplo (19): [X SAIR]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
SAIR = Ir de casa para algum lugar. O locativo–origem e o locativo–meta não
estão explicitados. O verbo SAIR realiza-se com dois argumentos cujos papéis
semânticos são: Agente e Tempo.
No enunciado (16), o locativo–origem não pode ser recuperado no contexto
discursivo, pois o foco da reportagem não é para onde o Homo sapiens migrou,
mas sim de onde ele saiu. Essa segunda casa argumentativa ocorre devido
ao contexto pragmático de um subtópico do texto. A estrutura pressuposta
por Ignácio (2002) para os verbos de movimento pode ser visualizada no
enunciado (17), que é considerada a estrutura prototípica do verbo SAIR. Há o
locativo–origem (da penitenciária) e o locativo–meta (para a sede da fundação),
ambos preposicionados. Essa constatação pode ser representada pela seguinte
estrutura: Estrutura semântica (argumental): Ag + P ± Loc–Or + Loc–Met.
No fragmento (18), o locativo-origem casa é uma informação dada no texto.
O locativo–meta não pode ser recuperado, inferido, nem implicado. Mais uma
vez, o foco da reportagem não está no locativo–meta e sim na complexidade
da relação com pessoas viciadas em crack. No enunciado (19), nem o locativo–
origem nem o locativo–meta tem realização explícita, mas pode ser inferido
pelo contexto discursivo. A recuperação precisa dos locativos é irrelevante para
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os propósitos comunicativos, embora na reportagem possamos apreender o
locativo–meta: cinema.
Verbo VIR:
•
(20) Nem pensar, rebate a apresentadora Xuxa, 47 anos, negando os
indícios despertados pela proximidade, incluindo jatinho que vai,
jatinho que vem,em relação ao cantor Victor, 35 o mais galã da dupla
sertaneja com o irmão Leo. (Edição 2188, 27/10/2010, p.97)
Matriz do exemplo (20): [X VIR]
X é um sujeito [inanimado que depende de alguém que o controle]
VIR = Deslocar-se, mover-se, passar ou transitar de um lado ou de um lugar
para outro. O locativo-origem e o locativo-meta não estão explicitados. O verbo
VIR realiza-se com um argumento.
•
(21) Moro em São Paulo, mas venho a Paris porque é onde está a minha
assessoria, é onde tenho uma grande rede de relações. (Edição 2186,
09/10/2010, p.116)
Matriz do exemplo (21): [X VIR a Y]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
VIR = Deslocar-se, mover-se, passar ou transitar de um lado ou de um lugar
para outro. O excerto (21) traz explícitas as casas argumentais: locativo-origem:
São Paulo e locativo–meta: Paris. Com isso, há três argumentos: um Sujeito
[+humano], e dois Locativos, um Codificar Origem e o outro Meta.
•
(22) Quando recebeu a proposta para deixar a Dinamarca e vir para
o Brasil, no início de 2009, a engenheira química Ragnhild D. Frank,
nascida na Noruega não hesitou...a parte difícil, brinca ela, foi explicar
aos amigos escandinavos que não iria trabalhar em Copacaba, nem
perto da praia. (Edição 2184, 29/09/2010, p. 142)
Matriz do exemplo (22): [X VIR para Y]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
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VIR = Deslocar-se, mover-se, passar ou transitar de um lado ou de um lugar
para outro. O excerto (22) traz explícitas as casas argumentais: locativo–origem:
Dinamarcae locativo–meta: Brasil. Com isso, há três argumentos: um Sujeito
[+humano], e dois Locativos, um Codificar Origem e o outro Meta.
•
(23) Dono de uma locadora de carros e de uma fábrica de cigarros,
Roberto Ribeiro é genro do lobista Marco Antônio e mora em Miami, nos
Estados Unidos. Para convencer Quícole de que a transação era segura,
Marco Antônio fez o genro vir ao Brasil. (Edição 2184,29/09/2010,
p.88)
Matriz do exemplo (23): [X VIR a Y]
X é um sujeito [+agente, +humano, +intencional]
VIR = Deslocar-se, mover-se, passar ou transitar de um lado ou de um lugar
para outro. O excerto (23) traz explícitas as casas argumentais: locativo–origem:
Miami e locativo–meta: Brasil. Com isso, há três argumentos: um Sujeito
[+humano], e dois Locativos, um Codifica Origem e o outro Meta.
No enunciado (20), o complemento de vai não é explícito, nem é uma informação
contextualmente dada, mas subentende-se que a extensão (tanto origem como
meta) percorrida pelo jatinho é o RJ e a fazenda do cantor.
Os enunciados (21), (22) e (23) são exemplos da estrutura prototípica dos verbos
de movimento. Todos trazem explícitas as casas argumentais: locativo–origem
e locativo–meta. No (21),São Paulo e Paris, no (22),Noruega e Brasil, no
(23),Miami e Brasil.
Considerações (quase) finais
Este trabalho nos permite vislumbrar um universo que abrange verbos de
movimento tais como: ir, vir, entrar, sair, trazer, levar. Esse recorte fez-se
necessário para que pudéssemos ter uma metodologia que, ao final da pesquisa,
nos propiciasse subsídios para projetar outras possibilidades de estruturas
argumentais, visto que, pela natureza sintático-semântica que envolve esse
grupo de verbos, as estruturas tornam-se recorrentes. No recorte, deixamos fora
do escopo da pesquisa ocorrências em que o verbo TRAZER se insere numa
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estrutura cujos argumentos indiciam uma metáfora, como a seguir:
•
Em 27 de maio de 1998, VEJA trouxe em sua capa uma indagação: “Eles
precisavam morrer?”. Ao lado da pergunta, fotos de dezenove jovens
de classe média que haviam morrido em decorrência do uso de drogas.
(Edição 2158,31/03/2010, p.36).
Essa estrutura não nos interessou por duas razões: (1) não seleciona um
sujeito com os traços [+agente, +humano, +intencional] e (2) não se enquadra
na perspectiva dos verbos de movimento que apresentam, em sua estrutura
argumental prototípica, implícitos e explícitos, um locativo–origem e um
locativo–meta, como pontos de partida e pontos de chegada, respectivamente,
de um objeto.
Observamos também que o que motiva a utilização das estruturas contempladas
neste estudo está diretamente ligado às necessidades comunicativas, sobretudo,
quando levamos em consideração: (i) o corpus analisado; (ii) o efeito que se
pretende dar ao informar tanto o locativo–origem quanto o locativo–meta; (iii)
o apagamento de um desses elementos.
Ao estudarmos estruturas em textos de circulação na mídia, encontramos
respaldo na teoria que dá sustentação às análises, visto que no Funcionalismo
Linguístico encontramos o postulado básico de que a língua é uma estrutura
maleável, sujeita às pressões de uso e pode ser analisada a partir funções que
ela desempenha na interação.
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Ed. 2176, 04/08/2010; Ed. 2177, 11/08/2010; Ed. 2184, 29/09/2010; Ed. 2185,
06/10/2010; Ed. 2186, 09/10/2010; Ed. 2188, 27/10/2010; Ed. 2220, 08/06/2011;
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O TIPO ARGUMENTATIVO “STRICTO SENSU”:
DIMENSÕES DISCURSIVA E LINGUÍSTICA.
Andréa Lopes Borges1*
Resumo
O objetivo deste artigo é discutir as características discursivas e linguísticas
do tipo argumentativo “stricto sensu”, a fim de clarificá-las e unificá-las. Para
isso, dividimos este artigo em três partes definidas de acordo com as dimensões
tipológicas propostas por Fávero e Koch (1987), a saber: dimensão pragmática;
esquemática global; e linguística de superfície. Para melhor observação e
a título de exemplificação da discussão que é feita neste trabalho, adotamos
um gênero argumentativo: um exemplar de artigo de opinião, que se encontra
em anexo, e com o qual vamos estabelecendo relações com cada uma das três
partes deste artigo. Pela discussão feita sobre as características discursivas e
linguísticas do tipo argumentativo “stricto sensu”, concluímos que esse tipo se
caracteriza e é identificado mais pelo modo de interação (dimensão pragmática),
e estruturação (dimensão esquemática global), do que por formas linguísticas
específicas (dimensão linguística de superfície), pois utiliza as várias formas
e possibilidades de construções linguísticas dos tipos narrativo, dissertativo,
descritivo e injuntivo, como formas de argumentar.
Palavras-chave: Tipo argumentativo “stricto sensu”. Dimensão pragmática.
Dimensão esquemática global. Dimensão linguística de superfície.
Abstract: The objective of this article is discuss the features of discursive and
linguistic caracteristics of the “stricto sensu” argumentative type, in order to
clarify and unify them. For this, we divided this article in three parts defined
according to the typological dimensions proposed by Fávero and Koch (1987),
namely: pragmatic dimension; global schematic; and linguistic surface. For
better observation and by way of exemplification of the discussion that is made,
we adopted a argumentative genre: an exemplar of opinion article, of which
1- ∗ Mestranda do Programa de Pós Graduação em Estudos Linguísticos do Instituto de Letras e
Linguística da Universidade Federal de Uberlândia – UFU – Uberlândia, MG, Brasil. andrealo�
[email protected].
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is finding in annex, and with which we are establishing relationships whith
the discussion that is made in each of the three parts of this article. By the
discussion about the discursive and linguistic characteristics of “stricto sensu”
argumentative type, we concluded that this type is identified and characterized
more by way of interaction (pragmatic dimension) and structuration (global
schematic dimension) than by specific linguistic forms (linguistic surface
dimension), because, it use the various forms and possibilities of linguistics
constructions of the narrative, dissertative, descriptive and injunctive types,
like forms of argue.
Keywords: “Stricto sensu” argumentative type. Pragmatic dimension. Global
schematic dimension. Linguistic surface dimension.
Introdução
Os tipos textuais “são formas de organização linguística, em número limitado,
com os quais são compostos, em diferentes modalidades, todos os gêneros”.
(BRONCKART, 2003, p. 250).
Segundo Travaglia (1991), os tipos são definidos por características discursivas
e linguísticas. No entanto, o tipo argumentativo “stricto sensu” parece ser
definido muito mais por características discursivas do que linguísticas, uma
vez que, segundo o mesmo autor, esse tipo ocorre sempre fundido com os tipos
fundamentais: narrativo, descritivo, dissertativo e injuntivo, de maneira que a
sua dimensão linguística parece estar mais relacionada a esses outros tipos.
Por esse motivo, este artigo tem por objetivo discutir as características
discursivas e linguísticas do tipo argumentativo “stricto sensu”, a fim de clarificálas e unificá-las. Para isso, dividimos este artigo em três partes, utilizando
para sua organização as dimensões tipológicas propostas por Fávero e Koch
(1987), a saber: dimensão pragmática; dimensão esquemática global; dimensão
linguística de superfície.
Na primeira parte, trataremos das características discursivas do tipo
argumentativo “stricto sensu”, definidas por autores como Fávero e Koch
(1987) e Travaglia (1991). Na segunda parte trataremos da superestrutura e das
categorias desse tipo, conforme autores como Van Dijk (1983), Fávero e Koch
(1987), Travaglia (1991, 2002), e Bronckart (2003). Na terceira e última parte
trataremos das características linguísticas desse tipo, de acordo com autores
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como Fávero e Koch (1987), Travaglia (1991, 2002, 2007a, 2007b), e estudos como
o de Uber (2007, 2008).
Tendo em vista que os tipos só podem ser observados, efetivamente, nos gêneros,
para maior clareza da discussão, procuraremos exemplificá-los por meio da
adoção de um gênero argumentativo: um exemplar de artigo de opinião, que
se encontra na parte anexa deste trabalho, intitulado: Esperar faz bem, escrito
por Caroline Milman (psicanalista), publicado em 21 de novembro de 2009, no
jornal Zero Hora (RS), em meio digital.
Procuraremos, ainda, estabelecer relações com o artigo selecionado em cada
uma das três partes constitutivas deste estudo, como pode ser observado, por
exemplo, na segunda parte deste artigo pelo quadro 1, que exemplificará a
forma como as categorias da superestrutura argumentativa aparecem no artigo
analisado, e na terceira e última parte pelo quadro 2, que exemplificará quais os
tipos presentes nas categorias da superestrutura argumentativa desse mesmo
artigo.
O Tipo Argumentativo “stricto sensu”
O tipo argumentativo “stricto sensu”, segundo Fávero e Koch (1987), é definido
por três dimensões que se interrelacionam: pragmática, esquemática global
e linguística de superfície. A dimensão pragmática consiste, basicamente, na
intenção do locutor textualizada nos diferentes gêneros; a esquemática global
diz respeito à superestrutura e às suas categorias que compõem os gêneros no
processo de textualização; por fim, a linguística de superfície diz respeito às
marcas linguísticas frequentes nesse tipo de texto.
Dimensão Pragmática
A dimensão pragmática do tipo argumentativo “stricto sensu” consiste,
segundo Travaglia (1991), no modo de interação, ou, na forma de se relacionar
linguisticamente ativada em situações discursivas em que se vê a necessidade
de convencer ou persuadir o outro.
O tipo argumentativo “stricto sensu” é proposto, pelo mesmo autor, ao lado do
argumentativo não “stricto sensu”. O “stricto sensu” (discurso da transformação)
caracteriza-se pela perspectiva do locutor de que seu(s) interlocutor(es) não
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concorda(m) com ele, sendo, portanto, necessária a construção de um discurso
que possibilite ao produtor do texto convencer ou persuadir seu(s) receptor(es).
O tipo argumentativo não “stricto sensu” (discurso da cumplicidade) consiste
no contrário, ou seja, o locutor parte do pressuposto de que seu(s) receptor(es)
concorda(m) com ele, não sendo, portanto, necessário o convencimento ou a
persuasão.
Essa última forma de argumentação, segundo Travaglia (1991), é o fator básico
de textualidade, está presente em todas as formas de comunicação, pois o uso
da linguagem não é neutro, não é somente informacional, ao se comunicarem
os usuários da língua têm sempre algum objetivo. Isso significa que não existe
uso linguístico que não seja argumentativo não “stricto sensu”, ou seja, como
acredita Ducrot (1981), a linguagem é argumentativa nesse sentido.
Os tipos argumentativo “stricto sensu” e não “stricto sensu” são propostos por
Travaglia (1991) como tipos à parte dos tipos que considera fundamentais:
narrativo, descritivo, dissertativo e injuntivo, pois, conforme o mesmo autor,
esses tipos diferenciam-se pela perspectiva em que se situa o produtor do texto.
Os tipos fundamentais instauram um modo de enunciação/interlocução a partir
da perspectiva do enunciador/locutor em relação ao objeto do dizer quanto ao
fazer/acontecer ou saber/conhecer, situado ou não, no tempo e no espaço. Já o
modo de interação dos tipos argumentativos consiste na perspectiva do locutor
no dizer situado na concordância ou discordância do receptor.
Por outro lado, Fávero e Koch (1987) propõem o tipo argumentativo “stricto
sensu” ao lado dos tipos narrativo, descritivo, expositivo ou explicativo2,
injuntivo ou diretivo e preditivo3, acreditando que todos esses tipos são
estabelecidos por macroatos de fala. No caso do tipo argumentativo “stricto
sensu”, ele é estabelecido pelo macroato de convencer e/ou persuadir.
Deixadas de lado as diferenças de classificação tipológica, podemos concluir que a
argumentação “stricto sensu” é o autêntico tipo argumentativo, correspondendo,
como acredita Travaglia (1991), ao grau máximo da argumentação. Assim, pela
dimensão pragmática, podemos dizer que o tipo argumentativo é instaurado
pelo modo de interação (Travaglia, 1991) ou macroato (Fávero e Koch, 1987) de
convencer ou persuadir, no momento em que argumentar significa estar diante
2- Travaglia (2007) propõe o expositivo e o explicativo como subtipos do tipo dissertativo.
3- Esse tipo também é proposto por Travaglia (1991) como um tipo à parte dos fundamentais.
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de uma situação em que o receptor não concorda com o locutor.
Essa forma de interação discursiva é atualizada nos diferentes textos, ou seja,
nos gêneros discursivos formulados de acordo com situações discursivas em
que se deseja convencer e/ou persuadir o outro, como é o caso, por exemplo, do
gênero artigo de opinião.
O artigo de opinião é um gênero discursivo, da área jornalística por aparecer em
jornais. Nesse gênero se costuma tratar de
assuntos ou problemas sociais controversos,
buscando chegar a um posicionamento diante deles
pela sustentação de uma idéia, negociação de tomada
de posições, aceitação ou refutação de argumentos
apresentados (UBER, 2007; 2008, p. 4).
Por esse motivo, como acredita Rodrigues (2005), os redatores desse gênero
discursivo são, normalmente, especialistas em determinados assuntos, e os
leitores são pessoas que buscam a avaliação desses mesmos assuntos, de forma
que compartilham de mesmo conhecimento ou conhecimento aproximado com
o produtor do texto.
No caso do artigo analisado neste trabalho, o assunto é sobre o imediatismo dos
dias atuais, no qual a articulista quer nos convencer de que esperar faz bem. A
autora é uma psicanalista, o que colabora para o processo de convencimento
dos leitores, uma vez que o assunto tratado está relacionado à sua especialidade,
dando maior credibilidade ao seu discurso.
Nesse sentido, como acredita Rojo, é possível perceber que o artigo de opinião
é um gênero discursivo que “busca convencer o outro de uma determinada
ideia”, ou seja, a interação entre produtor e receptor nesse gênero se constitui,
principalmente, pela argumentação “stricto sensu”, sendo, portanto, um gênero
argumentativo, ou, como acreditam Dolz e Schneuwly (2004), da ordem do
argumentar. (ROJO, 2000, p. 226).
O tipo argumentativo, uma vez atualizado em gêneros como nos artigos de
opinião, estabelece uma forma de organização textual que atende aos objetivos
do produtor do texto, ou seja, estabelece um esquema global de estruturação do
texto que permite o convencimento ou a persuasão do seu ouvinte/leitor.
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Dimensão esquemática global
A dimensão esquemática global diz respeito ao esquema geral de organização
do texto, conhecido pela Linguística Textual como superestrutura, definida,
segundo Van Dijk (1983), por categorias e regras de formação, organizando as
partes do texto por relações hierárquicas.
As superestruturas, segundo o mesmo autor, fazem parte de nossa capacidade
linguística e comunicativa global, isso explica, em grande parte, como
reconhecemos tipos textuais como narrativas, por exemplo. Segundo Van Dijk,
é inútil para um falante de uma língua reconhecer seus sistemas gramaticais
“sin saber reproducir los sucesos cotidianos con una narración correcta o sin
poder comprender lo que otros cuentan.” (VAN DIJK, 1983, p. 143).
No caso da superestrutura argumentativa, ela se organiza, basicamente, segundo
Van Dijk (1983), pelas categorias hipótese (premissa) – conclusão. Segundo esse
autor, a categoria hipótese pode estar implícita no processo argumentativo, e,
nesse caso, parte-se do pressuposto de que a circunstância de uma determinada
situação discursiva é condição suficiente para justificar uma conclusão. Para
isso, deve existir uma relação condicional e coerente entre a circunstância e a
conclusão, podendo, essa relação, ser legitimada por regras gerais (princípios
éticos e morais, conhecimentos comuns a uma determinada cultura) dadas de
acordo com os fatos de uma determinada situação de interação.
Com base nesse processo argumentativo, Van Dijk (1983) propõe as seguintes
categorias para a superestrutura argumentativa:
Figura 01: Esquema de categorias da superestrutura argumentativa.
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Adaptado de Van Dijk (1983, p. 160).
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A forma como as categorias de uma superestrutura se organiza num texto se
dá de forma variada, “podem ser obrigatórias ou facultativas, recursivas ou
não”. (TRAVAGLIA, 2002, p. 30). Segundo Van Dijk (1983), as categorias da
superestrutura argumentativa não são fixas, mas respeitam, sempre, sua
organização básica: argumentação - justificativa - conclusão.
Por outro lado, Bronckart (2003) acredita nas sequências discursivas como forma
mais geral de organização do texto. Segundo esse mesmo autor, as sequências são
unidades estruturais que organizam e integram as macroproposições, que são,
por sua vez, conjuntos de proposições, podendo, inclusive, serem constituídas
de uma única proposição.
Em comparação com as superestruturas, as sequências, segundo Bronckart
(2003), são formas de organização linear dos conteúdos armazenados na
memória de forma hierárquica. Esses conteúdos constituem as macroestruturas
no nível da infraestrutura textual, que, segundo o mesmo autor, é o que se
tem denominado superestrutura, significando que as sequências organizam as
macroestruturas ou, conforme esse autor, as superestruturas.
Por outro lado, Van Dijk (1983) acredita que as macroestruturas são definidas
pelo conteúdo global do texto, e as superestruturas pela forma global, de
maneira que essa última é independente da anterior. Conforme esse autor,
ambas as estruturas fazem parte da estrutura global do texto, diferenciando-se
das microestruturas, e possuem um denominador comum, não são definidas
em termos de sequências textuais.
Contudo, Bronckart (2003) propõe as sequências na forma como Adam (1993)
faz, no entanto, trata por fases, as macroproposições propostas por Adam (1993).
Dessa forma, propõe a sequência argumentativa por quatro principais fases:
•
Premissa – ponto de partida;
•
Argumento – orienta o enunciado/texto para uma
provável conclusão, podendo ser sustentado por regras gerais
(topoi);
•
Contra-argumento
argumentativa anterior;
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–
restringe
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a
orientação
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•
Conclusão – integra os argumentos e contra-argumentos
para o estabelecimento da tese final ou nova tese.
Entretanto, por mais que se trate de um modelo de estrutura por sequência,
percebemos que as fases da sequência argumentativa proposta por Bronckart
(2003) são semelhantes ao modelo de superestrutura argumentativa proposto
por Fávero e Koch (1987), que tem as seguintes categorias: (tese anterior)
premissas – argumentos – (contra argumentos) – (síntese) – conclusão (nova
tese).
Essa semelhança entre os modelos de sequência e superestrutura nos faz
pensar, diferentemente de Van Dijk (1983), na possível relação entre essas
estruturas, pois as sequências enquanto estruturas constituídas por conjuntos
de proposições, localizadas na infra-estrutura textual, equivalem a estruturas
menores internas à estruturas maiores que são as superestruturas, funcionando,
como acredita Bonini (1999), como esquemas de base dessas superestruturas.
Tal relação entre esses níveis de estrutura textual é bastante válida, pois nos
permite, inclusive, perceber que os tipos são compostos por outros tipos, ou seja,
as suas categorias internas às superestruturas podem ser compostas por tipos
diferentes no nível da sequência textual, dependendo do gênero discursivo.
Dessa forma, acreditamos, assim como Travaglia (1991), que as superestruturas
são sequências esquemáticas constituídas por partes que representam categorias
esquemáticas dadas por regras de formação da superestrutura, que inclusive as
hierarquiza.
Isso significa que enquanto modelo de superestrutura, o tipo argumentativo
“stricto sensu” organiza o texto, segundo Fávero e Koch (1987), por categorias
como: premissa, argumentos, contra-argumentos e conclusão, como mostra o
quadro 01, por alguns trechos do artigo analisado neste trabalho:
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Quadro 01: Categorias da superestrutura argumentativa presentes no artigo de
opinião analisado.
No nível da sequência linguística, conforme Bronckart (2003), o tipo
argumentativo pode aparecer nas categorias de sua própria superestrutura ou
nas de superestruturas de tipos diferentes.
No entanto, só é possível identificar os tipos presentes no nível das sequências
pelo reconhecimento de características linguísticas desses tipos na superfície
textual, como, por exemplo, é o caso dos verbos, que, segundo Travaglia (1991,
2002), nos ajudam a reconhecer os tipos fundamentais: narrativo, descritivo,
dissertativo e injuntivo, pois as formas verbais são altamente reguladas por
esses tipos.
Dimensão Linguística de Superfície
O tipo argumentativo “stricto sensu”, assim como os outros tipos existentes,
além de ser um organizador de discurso que propõe esquemas de categorias
a serem preenchidas no processo de produção textual, pode preencher essas
mesmas categorias, além de categorias de superestruturas de tipos diferentes,
assim como tipos diferentes podem aparecer na composição das categorias
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da superestrutura argumentativa. Assim, por exemplo, “nas categorias (...)
dos argumentos/justificativa (texto argumentativo) podemos ter descrição,
dissertação ou narração (esta pode aparecer na forma de exemplos)”.
(TRAVAGLIA, 1991, p. 290; 291).
A composição tipológica de um gênero, conforme Travaglia (2007b), pode
ocorrer de três maneiras: por fusão, conjugação ou intercâmbio. Na fusão ou
cruzamento uma mesma sequência linguística apresenta características de
dois ou mais tipos diferentes no mesmo espaço textual, na conjugação, tipos
diferentes aparecem lado a lado em sequências diferentes, e, por fim, no
intercâmbio ocorre a troca de tipos, ou seja, de acordo com determinado modo
de interação se espera a realização de um texto por um tipo, mas ele ocorre por
outro. No caso do tipo argumentativo, Travaglia (1991) aponta que ele sempre
ocorre fundido com os tipos fundamentais.
Segundo Travaglia (1991) os tipos são definidos por, além de modos de
interação, marcas linguísticas. Assim, Fávero e Koch (1987) acreditam que os
modalizadores, os operadores argumentativos, as metáforas temporais, são
marcas linguísticas do tipo argumentativo “stricto sensu”. Por outro lado, vemos
estudos voltados para o trabalho com gêneros no ensino de Língua Portuguesa,
como o de Uber (2007, 2008), apontarem para essas marcas linguísticas como
características particulares de gêneros argumentativos, afirmando que estão
relacionadas ao estilo próprio dos produtores desses gêneros, não deixando claro
que estão relacionadas, na verdade, aos tipos textuais presentes na composição
desses textos.
Assim, por exemplo, segundo Uber (2007, 2008), características como conjunções
adversativas; modalizadores expressos por formas verbais como: podemos,
desejamos, prometo; por orações subordinadas substantivas, como: tenho certeza de
que, é possível que, é provável que, é lamentável que; e por advérbios como: infelizmente,
realmente, etc, são características linguísticas presentes no gênero artigo de
opinião, não deixando claro que essas mesmas características são transferíveis
de um gênero para outro, ou seja, podem aparecer em gêneros diferentes, que
não só nos argumentativos, pois, como sabemos, estão relacionadas aos tipos
textuais que, em número limitado, compõem todos os gêneros do discurso.
Portanto, é por meio dos tipos textuais que é possível identificar “regularidades
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de organização e marcação linguística”, ou seja, se determinadas características
linguísticas aparecem com frequência num mesmo gênero, significa que existe
um tipo frequente nesse gênero, responsável por essas marcas. (BRONCKART,
2003, p. 138).
Nesse sentido, como afirma Travaglia (1991), o tipo injuntivo, por exemplo,
parece ter afinidade com a conclusão dos textos argumentativos, e, dessa
forma, as características como modalizadores expressos por formas verbais que
expressam promessa, pedido, desejo, sugestão, estão relacionadas, na verdade, a
esse tipo, e não ao gênero artigo de opinião, como acredita Uber (2007, 2008), ou
ao tipo argumentativo “stricto sensu”, como acreditam Fávero e Koch (1987).
Dessa mesma forma, modalizadores expressos por orações como: é possível
que, estão ligadas a modalidade alética dos verbos, na qual o locutor vê como
possível, necessária ou viável a realização de uma situação, e essa modalidade é
característica do tipo dissertativo. Já os expressos por orações como: tenho certeza
de que, e é provável que, se referem, segundo Travaglia (1991), à modalidade
epistêmica dos verbos, que é expressa pelo locutor tanto pela certeza, quando
esse acredita na verdade do que diz, quanto pela probabilidade, quando duvida
da verdade do que diz. Essa modalidade, por sua vez, é característica comum
dos tipos narrativo, descritivo e dissertativo.
Com relação aos operadores argumentativos apontados como uma das
características do tipo argumentativo “stricto sensu” por Fávero e Koch
(1987), tendo em vista que, conforme Ducrot (1981), funcionam como marcas
enunciativas, ou seja, evidenciam o modo de interação, ou a intenção do locutor,
marcando “a própria enunciação do enunciado”, pode ser, como acreditam as
autoras, que eles realmente sejam característica linguística frequente nesse tipo.
(GUIMARÃES, 1995, p. 50)
No entanto, não podemos dizer que são todos, pois, considerando que os tipos
fundamentais (narrativo, dissertativo, descritivo e injuntivo) são, também,
modos de enunciação/interação, os operadores podem, também, marcá-los.
Isso significa que alguns operadores podem estar mais relacionados a um
determinado tipo textual em detrimento dos outros, ou seja, os operadores
argumentativos podem não ser, em sua maioria, mais frequentes no tipo
argumentativo “stricto sensu”.
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Essas divergências de opinião quanto às características linguísticas do tipo
argumentativo “stricto sensu”, estão relacionadas ao fato de que, como acredita
Travaglia (1991), esse tipo ocorre fundido com os tipos narrativo, descritivo,
dissertativo e injuntivo, e, portanto, parece ser difícil falar em caracterização
linguística do tipo argumentativo “stricto sensu”, e a identificação do mesmo na
superfície textual parece ser determinada mais pelo modo de interação.
Assim, retomando as sequências relacionadas no quadro 1, e considerando
as características linguísticas do tipo argumentativo “stricto sensu” discutidas
acima, o quadro 02 descreve os tipos pelos quais ocorreram essas sequências e
em que momentos e como o tipo argumentativo apareceu:
Quadro 02: Tipos presentes nas categorias da superestrutura argumentativa do
artigo de opinião analisado.
Como demonstrado acima, o tipo argumentativo “stricto sensu” foi encontrado
nas categorias argumento, contra-argumento, síntese e conclusão. A categoria
premissa ocorreu pelo tipo dissertativo.
Percebemos que o tipo argumentativo “stricto sensu” ocorreu fundido com o
dissertativo, por haver, por exemplo, a presença dos modalizadores expressos
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por orações como: pode ser, presentes na sequência da categoria síntese, formas
verbais que expressam possibilidade, como: custaria, daria, na sequência da
categoria contra-argumento, e poderia, na sequência da categoria conclusão,
representadas no quadro acima, ligados à modalidade alética dos verbos, que
como vimos, é característica do tipo dissertativo, nos mostrando que, nesses
momentos, a articulista quer nos convencer a partir da perspectiva do saber.
A fusão do tipo argumentativo “stricto sensu” com o injuntivo, foi percebida,
por haver, por exemplo, a presença de formas verbais que expressam ordem:
deve; sugestão: tenha, aceita, presentes na sequência da categoria argumento, e
sugestão/conselho: sigamos, na sequência da categoria síntese, representadas
no quadro acima, que, como vimos, estão relacionadas ao tipo injuntivo, nos
mostrando que, nesses momentos, a articulista quer nos convencer a partir da
perspectiva do fazer/conhecer.
Além disso, percebemos que alguns operadores argumentativos criam uma
tendência em acreditarmos na sequência como dominantemente argumentativa,
em sua maioria os adversativos, que apareceram, principalmente, na categoria
contra-argumentação.
Ao fazermos o levantamento dos operadores que aparecem no artigo analisado,
partindo da classificação de operadores de Koch (2005), encontramos os
seguintes operadores: que, e, isto significa que, ou, então, assim, porque, deste modo,
para que, ou seja, também, como, porém, mas, ao invés, pelo menos, se, portanto, até, e
embora.
Dentre esses operadores, apareceram no tipo argumentativo “stricto sensu”
(fundido com o dissertativo): porém, mas, ao invés, pelo menos, se, até, embora. Vale
ressaltar que o operador que apareceu, também, no tipo argumentativo (mas
fundido com o injuntivo), no entanto, assim como os outros operadores: e, isto
significa que, ou, então, assim, porque, deste modo, para que, ou seja, também, como,
portanto, apareceu, também, em outros tipos não fundidos com o argumentativo,
como no dissertativo e no injuntivo.
O fato de operadores, em sua maioria, adversativos terem aparecido no tipo
argumentativo “stricto sensu” pode ser indício de maior afinidade desses
operadores com esse tipo de texto. No entanto, o que por ora podemos dizer
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é que os operadores adversativos ajudaram a reconhecer a sequência como
argumentativa “stricto sensu”, principalmente por evidenciarem os momentos
de contra-argumentação, o que, de certa forma, nos mostra que existem
argumentos e premissas anteriores.
Conclusão
Diante da discussão feita sobre as características discursivas e linguísticas do
tipo argumentativo “stricto sensu”, podemos concluir que esse tipo se caracteriza
discursivamente pelo modo de interação de convencer e/ou persuadir o outro.
Esse modo de interação é semiotizado nos diversos gêneros argumentativos
formulados pela (re)organização das categorias da superestrutura desse tipo.
Quanto às características linguísticas do tipo argumentativo no nível da
sequência textual, por um lado estão relacionadas aos tipos com os quais aparece
fundido, e a sua identificação depende de um critério subjetivo: a percepção
da intenção do locutor por meio de uma sequência que pode ser: narrativa,
descritiva, dissertativa ou injuntiva, nos diferentes gêneros discursivos, que não
só nos argumentativos.
Por outro lado, os operadores argumentativos parecem ter alguma relação com
esse tipo, pois, tendo em vista que são marcas enunciativas, são instrumentos
linguísticos que possibilitam o locutor encaminhar o(s) seu(s) interlocutor(es)
para o sentido textual pretendido, eles são elementos que auxiliam na percepção
da intenção do produtor do texto, mostrando se esse está argumentando/
contra-argumentando, se deseja ou não nos convencer, e de quê. Em especial, os
operadores argumentativos adversativos parecem evidenciar mais claramente
esses momentos.
Dessa forma, os critérios de identificação e caracterização para o tipo
argumentativo “stricto sensu” parecem estar mais relacionados ao modo de
interação (dimensão pragmática), e de estruturação (dimensão esquemática
global), do que a formas linguísticas específicas (dimensão linguística de
superfície), pois utiliza as várias formas e possibilidades de construções
linguísticas dos tipos narrativo, dissertativo, descritivo e injuntivo, como formas
de argumentar.
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UBER, Terezinha de Jesus Bauer. Artigos de opinião: estudos sobre um gênero
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da Educação do Paraná, 2007-2008. Universidade Estadual de Maringá.
Anexo
21 de novembro de 2009
Esperar faz bem, por Caroline Milman*
Estamos todos de acordo quanto à realidade imediatista dos dias atuais, onde
a espera é uma noção muito vaga, se não inexistente, na construção mental das
pessoas. Há o modelo fast food, e outros “fasts”, todos que se quiser. Fast news
(notícia rápida), fast date (namoro rápido), e por aí vai. Quem tem filhos em
idade escolar percebe a enorme diferença na conduta do estudante perante a
aprendizagem, de uma geração atrás para a atual. Há, porém, que se considerar
o seguinte: todas as pessoas, no seu processo de desenvolvimento psíquico,
atravessam um primeiro sistema, que Freud chamou “princípio do prazer”.
Isto significa que o bebê ou criança bem pequena funciona buscando o prazer
imediato, descarregando diretamente suas tensões sem condições de dar a estas
um outro destino.
Nos primórdios da vida humana na Terra, também havia este funcionamento.
Com o tempo, o homem foi percebendo que era mais vantajoso para a
sobrevivência da espécie acumular um pouco de sua energia mental e utilizála estrategicamente, ao invés de desperdiçá-la. Isto lhe custaria um adiamento
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do prazer imediato, mas em troca lhe daria mais algum tempo de vida. Uma
negociação interessante. A analogia com o uso de drogas (ou com qualquer
compulsão, compras, jogo, comer etc.) se faz presente. Nestas situações não
há esta negociação. O prazer imediato impera e em troca a vida fica mais
curta. Então, voltando ao bebê humano. Todo o processo de amadurecimento
emocional do indivíduo passa por ele ser “ensinado” constantemente sobre o
benefício da espera, do adiamento, sobre, digamos assim, o melhor destino para
seus impulsos, aquele destino que lhe dará mais opções na vida, que lhe dará
mais possibilidades de manobras, desvios, autoproteção e segurança para trilhar
o caminho da vida até o seu final biológico. É isto o que os pais e educadores
fazem com as crianças. Pelo menos seria o esperado. Mas como pedir que os
pais cumpram esta função, se eles próprios não foram trabalhados para isto.
(Sim, porque é trabalhoso abrir mão da satisfação imediata dos desejos).
Deste modo, observamos o efeito disto na sociedade. Sempre que os impulsos
ficam por eles próprios, uma situação de risco é acionada. O problema é que
esta “domesticação” dos impulsos só pode vir associada, no início da vida, a
outras variáveis, de responsabilidade do ambiente. O ambiente deve acolher
e transmitir boas experiências que deixem registros prazerosos no interior do
psiquismo, para que o bebê tenha onde se apoiar enquanto “aceita” esperar. Ou
seja, a lembrança de boas experiências garante à criança a construção de uma
confiança no mundo. Sem isso, todo o esquema civilizatório se desarticula.
Portanto, o que temos atualmente na sociedade, embora nos deixe perplexos
e até impotentes, também pode ser visto como um desafio para que sigamos
incessantemente lutando pela viabilidade da espécie humana. A campanha da
faixa de segurança é um excelente exemplo do aqui exposto. Os carros deverão
parar. Isto custará um pouco mais de tempo, mas certamente um atropelamento
custará muito mais em termos de tempo e desgaste emocional. Será que a
sociedade não poderia, com tantos sistemas bem-sucedidos de marketing,
vender à população que “esperar faz bem”?
*Psicanalista
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A RETEXTUALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA
DE ENSINO NA AULA DE PORTUGUÊS COMO
SEGUNDA LÍNGUA PARA OS SURDOS
Arlene Batista da Silva Ferreira**
Resumo
Este artigo tem por objetivo apresentar um resumo de nossa pesquisa de
Mestrado, na qual nos propusemos a investigar práticas de produção textual
na aula de português para surdos. Tomando como referência os Estudos da
Tradução, buscamos desenvolver atividades de tradução/retextualização de
textos produzidos da Libras para o português escrito, possibilitando ao aluno
surdo o exercício de reflexão entre duas línguas tão diferentes, mas que são, na
atualidade, fundamentais para a constituição do surdo como sujeito bilíngue.
Palavras-chave: Libras. Português como Segunda Língua. Retextualização.
Abstract: This paper aims to present a summary of my research in the master’s
program, in which I investigate practices of writing in Portuguese class for deaf.
According to Translation Studies, I seek to develop activities of translation /retextualization of texts produced from sign language to Portuguese, allowing the
deaf student to the exercise of reflection between two such different languages,
but which are, at present, fundamental to the constitution as the subject of the
deaf bilingual.
Keywords: Libras (Brazilian Sign Language). Portuguese as a second language.
Re-textualization.
Introdução
De acordo com Barreiro e Gebran (2006, p. 35), é comum ouvirmos declarações
do tipo: “a prática se faz na prática ou na prática, a teoria é outra, indicando a
dissociação entre ambas e até mesmo o descarte da teoria”. Entendemos com
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as autoras que esse discurso recorrente na área da educação, tem provocado
danos à formação do professor, que não enxerga na pesquisa uma opção para
encontrar respostas, a fim de melhorar sua prática.
Ao refletir sobre a prática da docência percebemos que tal atividade pode
dois causar dois efeitos nos professores: um é o discurso do conformismo e
da estabilização das certezas. O outro é o incômodo, que nos leva à reflexão,
a pensar: que outras possibilidades existiriam para ensinar um aluno a ter
proficiência na leitura e escrita da língua portuguesa. Sendo mais específicos:
que estratégias teria um professor para ensinar um aluno surdo a aprender o
português escrito?
A investigação que fizemos durante o curso de mestrado, permitiu-nos um olhar
sobre o incômodo que a prática da docência provoca nos professores, sobre a
pesquisa como recurso para o exercício de reflexão e sobre a pesquisa como
desestabilização dos discursos que a prática nos impõe.
Segundo Bondía (2002), a experiência é uma relação com algo que se experimenta,
que se prova. E, quando provamos, somos tocados pela experiência. Ela nos
transforma. E o toque que gera a transformação muitas vezes é um espinho na
carne. Um espinho que mostra nossa incapacidade para dar conta de demandas
tão recentes quanto às leis que as legitimam. O espinho está dentro da nossa
sala de aula, ávido para aprender e transformar-se em rosa, mas para que esse
fenômeno ocorra, é necessária uma metodologia que o professor não recebeu
nos bancos da universidade, pois as leis que regulamentam a política bilíngue
para surdos datam do ano de 2005. Enquanto isso, a angústia de não se saber
como ensinar um aluno surdo permanece na prática dos professores, e engrossa
o discurso do conformismo na fala de muitos profissionais: ele está aqui só para
socializar ou o intérprete é o professor do mudinho, não eu!
Iniciamos nossa pesquisa tomando como eixo norteador o movimento atual
em favor da educação bilíngue para os surdos. No Brasil, esse movimento se
fortaleceu com os estudos realizados sobre a língua de sinais nas décadas de
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80/90, os quais impulsionaram a criação de leis1 em favor de um ensino bilíngue
para os surdos, reconhecendo a Libras como primeira língua do surdo e a língua
portuguesa, na modalidade escrita, como segunda língua. Tendo em vista essa
nova abordagem, na qual se insere a educação de surdos, um dos primeiros
passos de nosso trabalho teve o objetivo de refletir sobre as concepções de
surdez, sujeito bilíngue e ensino de português como segunda língua subjacentes
a essa abordagem. Em seguida, voltamos nosso olhar para as práticas de ensino
da língua portuguesa que vem sendo adotadas, com um aluno surdo em uma
escola regular do Ensino Médio.
Nesse sentido, podemos afirmar que uma pesquisa sobre as práticas de ensino
do português para surdos nos mostrou não só uma mudança de metodologias e
estratégias de ensino para atender esses indivíduos, mas, principalmente, uma
mudança de discursos. Em outras palavras, para entender os discursos sobre a
surdez e sobre o surdo como sujeito bilíngue é preciso desestabilizar os discursos
sobre o oralismo e sobre o surdo como doente, aquele a quem lhe falta recursos
físicos para desenvolver a linguagem e aproximar-se do discurso da alteridade,
que dá voz às minorias (linguísticas, étnicas, etc.) em todo o mundo.
À luz do discurso da alteridade, a luta das comunidades surdas por um ensino
bilíngue, vai muito além de uma preocupação apenas com o domínio de uma
ou outra habilidade, pois segundo Skliar (1999):
A possibilidade de estabelecer um novo olhar
sobre a educação bilíngue permitiria refletir sobre
algumas questões ignoradas nesse território, entre
as quais menciono: as obrigações dos Estados para
com a educação da comunidade surda, as políticas
de significação dos ouvintes sobre os surdos, o
amordaçamento da cultura surda, os mecanismos
de controle através dos quais se obscurecem as
diferenças, o processo pelo qual se constituem – e ao
mesmo tempo se negam – as múltiplas identidades
surdas, “a ouvintização” do currículo escolar, a
1- Lei nº 10.436/2002 dispõe sobre a língua brasileira de sinais (Libras) e dá outras providên�
cias; Decreto nº 5.626/2005 regulamenta lei nº 10.436/2002 e o artigo 10.098/2000.
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separação entre a escola de surdos e a comunidade
surda, a burocratização da língua de sinais dentro
do espaço escolar, a omnipresença da língua oficial
na sua modalidade oral e/ou escrita, a necessidade
de uma profunda reformulação nos projetos de
formação de professores (surdos e ouvintes) etc..
(Skliar, 1999, p. 8).
Nesse sentido, pensar no ensino de língua portuguesa para os surdos exige
ampliarmos nosso campo de visão para além do linguístico. Isso significa
pensarmos nas duas línguas numa perspectiva dialógica, de modo que o surdo
tenha a oportunidade de significar-se através da língua do outro. Portanto,
ensinar o português escrito implica permitir ao surdo expressar suas ideias
em palavras alheias e reconhecer-se nelas. Dentro da filosofia bilíngue para os
surdos, esse é o movimento de inversão das práticas colonialistas: é um ato de
resistência ao domínio das práticas ouvintistas.
Seguindo uma filosofia bilíngue, Quadros (2006) e Fernandes (2008)
aprofundaram os estudos sobre a aquisição do português, pelo surdo, e
concluíram que qualquer produção escrita nesta língua deve ser precedida por
uma produção em língua de sinais. Em outras palavras: a compreensão ativa e
responsiva do surdo sobre um determinado assunto em sua própria língua é
fundamental para que ele organize seu pensamento e transforme suas ideias em
uma produção escrita, pois de acordo com Geraldi (2002):
As palavras que carregamos multiplicam as
possibilidades de compreensão do texto (e do mundo)
porque são palavras que, sendo nossas, são de outros,
e estão dispostas a receber, hospedar e modificar-se
face às novas palavras que o texto nos traz. E estas
se tornam por sua vez novas contrapalavras, nesse
processo contínuo de constituição da singularidade
de cada sujeito, pela encarnação da palavra alheia
que se torna nossa pelo esquecimento de sua origem
(Geraldi, 2002, p.82).
Em busca de uma teoria que dialogue com o conceito de sujeito bilíngue e de
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língua como lugar de construção e reconstrução dos discursos, isto é, lugar de
produção de nossas contrapalavras, nos aproximamos dos Estudos da Tradução.
Essa área de estudos interdisciplinar entende que o processo de transformação
da Libras para o português escrito é o que conhecemos como retextualização,
ou seja, a tradução de um mesmo/novo texto (TRAVAGLIA, 2003). É nessa
perspectiva que pensamos ser possível o diálogo com as duas línguas em
questão, pois o ato de traduzir requer a consciência de que estamos trabalhando
com dois textos distintos, com a intenção de comunicar algo a alguém, numa
determinada situação, num determinado contexto linguístico e extralinguístico;
e as operações necessárias para transformar essa intenção num produto verbal,
num texto. Portanto, é preciso entender que na aula de português estaremos
traduzindo textos em línguas distintas.
Alinhados a essa vertente teórica, conceber o surdo como sujeito bilíngue
implica também enxergá-lo como um tradutor. Mais uma vez teremos que
ampliar o escopo de nossa pesquisa, já que a tradução nem de longe significa
a repetição total de um texto concebido como o original. Aliás, nas palavras
de Arrojo (1992, p. 22), “a repetição total de um texto, sua tradução nunca
recuperaria a totalidade do original, revelaria, inevitavelmente, uma leitura,
uma interpretação desse texto que, por sua vez, será sempre, apenas lido e
interpretado, e nunca totalmente decifrado ou controlado”.
A afirmação de Arrojo contribuiu para nos fazer ver que o processo de tradução
é muito mais que o transporte ou a manipulação do material linguístico (ou
transposição linguística), pois um texto traduzido sofre influências do sujeito
sócio-histórico que participa desse processo: o tradutor. Nesse sentido, o texto
do aluno surdo será, inevitavelmente, uma interpretação do mundo, a partir das
experiências que ele vivenciou. Ora, se um aluno surdo domina a Libras, sua
primeira língua, é muito comum que ele organize sem pensamento em Libras
e que seu texto escrito em português, sua segunda língua, apresente marcas
linguísticas e culturais de sua primeira língua.
Com os Estudos da Tradução, entendemos que para o surdo a (re)ssignificação
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de suas ideias dentro de uma nova modalidade de linguagem, que difere da
sua, é uma atividade complexa, que o levará a realizar muitas tentativas para
construir um texto em português. Muitas vezes, essas tentativas serão vistas
como erros por parte dos professores de língua portuguesa. Isso porque a
ênfase nas aulas de português (tanto para surdos como para ouvintes) tem
sido o ensino da norma culta, além da excessiva preocupação com aulas de
gramática. Nessa lógica, importa mais ensinar sobre a língua do que ensinar o
uso da língua em suas variações.
O que dizer de aulas de português que se iniciam assim: Hoje vamos falar sobre
as preposições. Preposição é uma palavra invariável que liga um termo dependente a um
termo principal, estabelecendo uma relação entre ambos. As proposições são conectivos
subordinados; Antepõem-se a termos dependentes (objetos indiretos, complementos
nominais, adjuntos) e a orações subordinadas; (CEGALLA, 2005, p.268 ).
Enquanto isso, alguns de nossos alunos surdos escrevem textos assim: (Releitura
de Os três Porquinhos) Porco Yuri falar vamos fazer casa?Lara quer casa sim. Carlos
vamos fazer casa palha. Lara fala não quero palha casa, melhor casa árvore. Carlos fala
fraco é casa palha. Lara fala é muito fraco árvore casa. Lara bravo fala Carlos brigar fala.
Yuri fala parar brigar Lara e Carlos. Lara vou sozinha fazer casa árvore. Carlos vou
procurar palha.
A análise desses dois eventos presentes em sala de aula nos mostram um
distanciamento entre aquilo que é ensinado sobre a língua portuguesa para
o surdo e os textos reais que esses sujeitos bilíngues produzem nas escolas.
A partir dessa constatação, a pesquisa nos despertou para a necessidade de
percorreremos por outras trilhas que nos façam chegar a um ensino pautado no
uso da língua e das mais variadas formas que temos para nos expressar através
dela.
Ensinar português ou ensinar a traduzir?
De acordo com Fernandes (2006, p. 5) os surdos como sujeitos bilíngues podem
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ser considerados estrangeiros dentro de seu próprio país. Isso porque
“[..] não aprendem a língua pátria como língua
materna, tal como acontece com a maioria dos
brasileiros. Em função de sua experiência visual
que mobiliza suas interações cotidianas, desde o
nascimento, potencializam-se as possibilidades de
comunicação visual mediadas simbolicamente pela
língua de sinais, em contato com outros surdos.
[...] Embora imersos no hegemônico universo da
língua portuguesa (na família e sociedade) não se
apropriam dela pela interação com seus falantes,
de maneira natural nas situações cotidianas.
Dessa forma, mesmo em contato efetivo com seus
compatriotas não há comunicação simbólica, já que
a maioria não-surda desconhece a língua de sinais
e a minoria surda não tem acesso ao português”
(FERNANDES, 2006, p.5, grifo nosso).
Baseados nessas informações, é possível inferir que, ao escrever um texto, o
surdo fará inúmeras tentativas para traduzir suas ideias da Libras para o
português. Concluímos, portanto, que o exercício mental de tradução se faz
presente na aula de português de forma muito mais intensa do que imaginamos,
sendo este um dos eixos norteadores para o trabalho com a produção escrita do
aluno surdo.
Considerando a tradução como uma atividade produtora de novos sentidos,
um ato de (re)escritura que sofre influência do sujeito e do contexto extraverbal,
e levando em conta que essa produção ocorre de texto para texto, lançaremos
mão dos estudos de Travaglia (2003), visto que essa autora toma a tradução como
produção de um mesmo/novo texto, ou seja, como “processo de retextualização
de um segmento linguístico (um texto) numa língua diferente daquela em que
foi concebido” (p. 63). Defende ela ainda que esse processo segue as mesmas
operações realizadas na produção de qualquer tipo de texto.
Em outras palavras, a partir da construção do sentido pela leitura do texto de
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partida, que se transforma na intenção comunicativa do tradutor, este realiza
o planejamento global do seu novo texto, realiza as operações de textualização
propriamente dita e, por fim, revisa sua tradução.
Baseados nos estudos de Travaglia (2003), entendemos que a leitura é
fundamental para que o surdo possa reconstruir em sua língua os sentidos do
texto que será traduzido. Além disso, é importante que o texto em português,
tomado como ponto de partida para a atividade de leitura, seja apresentado no
gênero e no suporte que o veiculou, preservando os elementos de uma situação
concreta de interação. Explicando, melhor: haverá uma riqueza de detalhes e
pistas em uma notícia de jornal que contribuirão para a construção do sentido
daquele texto, que se perderá se o professor resolver copiá-lo no quadro.
Imagens, slogans, elementos paratextuais, a própria formatação do texto, enfim,
tudo contribui para dar ao leitor uma melhor compreensão da intenção que o
autor quis expressar.
Isso porque ao adotarmos um ensino baseado na diferença linguística do
surdo, devemos levar em conta a experiência visual desses sujeitos. Ou seja,
utilizar práticas baseadas na relação letra/som, ou então a análise sintática de
frases isoladas, perdidas no grande quadro negro, de nada vale para ensinar
o português para o surdo. Portanto, se a compreensão de mundo do surdo é
visual e se o seu processamento cognitivo se dá pela relação com as imagens,
torna-se necessário pensar as práticas de produção de texto por outro prisma.
Isso posto, Fernandes (2008) aponta alguns princípios que devem nortear o
trabalho com a língua portuguesa: a) num texto composto por linguagem
verbal e não-verbal, a leitura de imagens conduz ao processo de inferências
sobre a leitura da palavra escrita; b) a leitura de pistas linguísticas (palavras
conhecidas, logotipos, negritos, etc.) dão informações sobre o conteúdo do
texto; c) um roteiro escrito no quadro, sob a forma de tópicos ou esquemas
com as hipóteses de leitura dos estudantes, funciona como pista visual para
orientar a leitura individual do texto; d) o trabalho de leitura e compreensão do
texto (desenvolvido em Libras) torna-se a base que norteará a atividade escrita
proposta pelo professor.
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Assim, durante a atividade de leitura serão ativados conhecimentos linguísticos,
os “enunciados relativamente estáveis”2 que nos permitem transmitir uma
intenção comunicativa através das palavras e o efeito de sentido pretendido.
É também nesse momento que o surdo estabelecerá relações com o que está
além do texto: o conhecimento de mundo. Essa etapa propiciará a construção de
hipóteses, inferências e a ativação em sua memória de tudo aquilo que o surdo
sabe sobre determinado assunto. É a oportunidade de diálogo,isto é, do aluno
participar do jogo da linguagem com suas contrapalavras, pois como afirma
Bakhtin (2003, p.272) “toda compreensão plena real é ativamente responsiva e
não é senão a fase inicial preparatória da resposta (seja qual for a forma em que
ela se dê).”
Entendemos que essa estratégia de leitura permitirá ao aluno surdo a construção
de novos sentidos, ou seja, a criação de um texto em Libras. Ao estabelecer
relações entre o seu texto e o texto de partida em português, o aluno terá
subsídios para enfrentar seu novo desafio: a desconstrução do significado em
sua língua e a sua reconstrução no português escrito.
Reconhecemos que essa é uma tarefa complexa, pois exigirá do aluno o cotejo
entre as línguas e, do professor, a mediação para mostrar ao aluno que o sentido
não é estável dentro das línguas, mas é fruto de uma negociação entre os
sujeitos3 inseridos em um tempo e um lugar específico. Nesse sentido, cabe ao
professor oferecer possibilidades para que o seu aluno construa um texto com
sentido em campo alheio, mas que ao mesmo tempo, faça sentido para si, pois
de nada vale escrever um texto dito como “correto” para um leitor de português
quando o próprio surdo não sabe o que ele escreveu.
2- Expressão usada por Bakhtin (2003) que se refere a todo o tipo de produção discursiva (oral ou
escrita) que os indivíduos produzem ao colocar-se em interação com o outro.
3- Por exemplo, as expressões “Peguei o ônibus” e “Peguei uma mulher linda na festa” são com�
preendidas com naturalidade por falantes/ouvintes do português em algumas regiões do Brasil.
No entanto, para o surdo essas expressões carecem de explicação, pois o verbo pegar não expressa
esse sentido no repertório cultural dos usuários da Libras, confirmando a fala de Travaglia (2003)
de que numa tradução os sentidos são reconstruídos na língua de chegada.
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Nessa perspectiva, o ato de tradução (interpretação e reconstrução) de textos
materializados em gêneros textuais escritos, permitirá ao aluno surdo perceber
que a língua portuguesa, igual a Libras, dá-nos condição para interagirmos com
o outro em vários espaços sociais. A esse respeito, valemo-nos das ideias de
Marcuschi (2008) ao defender que gêneros escritos variados estão presentes
nas tarefas diárias: no comércio, na indústria, na produção de conhecimento,
etc..Segundo o autor, o cidadão precisa dominar vários gêneros textuais
para interagir nesses espaços sociais. Assim, a tradução de textos a partir de
situações reais de comunicação, pode tornar o ensino do português muito mais
significativo para o surdo, pois envolve o uso da língua materializado em listas,
agendas, torpedos, e-mails, receitas, comentários, relatos de experiências, etc.
A trilha percorrida neste estudo nos guiou a uma nova concepção sobre o
ensino de português para os surdos e as práticas aplicadas em sala de aula, uma
vez que essa atividade toma como ponto de partida um texto e como ponto
de chegada um outro texto, ou seja, configura-se uma relação dialógica entre
textos, e não simplesmente entre códigos.
Por esse prisma, entendemos que no ensino da segunda língua para os surdos,
a prática da tradução/retextualização se torna aliada, pois permite trabalhar
com o texto como um todo, levando em conta as marcas ali colocadas pelo autor
com intuito de dizer algo a alguém, num certo contexto e circunstância; permite
perceber os elementos linguísticos e não linguísticos que entram em jogo na
composição de um texto e escolher na língua de chegada os elementos mais
condizentes com a leitura que se fez do texto de partida, transformando-o em
um novo texto.
Nesse contexto, a tradução é chamada a participar do processo não como
coadjuvante, mas como elemento principal para integrar as duas línguas,
estabelecendo um paralelo entre a língua materna do surdo e sua segunda
língua, que permitirá ao aluno analisar semelhanças e diferenças entre as
distintas formas de expressar-se, bem como retextualizar suas produções em
sinais para produções escritas.
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Portanto, entendemos que cabe ao professor lançar mão da tradução em sua
prática pedagógica como um meio para transformar, reformular os textos em
Libras dos alunos surdos em textos escritos em português. Nessa ótica, ensinar
os alunos a traduzir/retextualizar suas produções, permitirá ver as línguas
mais de perto e perceber as relações dialógicas e contínuas que elas estabelecem
entre si.
Retextualização:
surdo
reconstruindo
o
texto
do
aluno
Considerando que o objetivo central desta pesquisa foi analisar eventos de
produção escrita mediados pela tradução, adotamos a abordagem metodológica
de caráter qualitativo, com ênfase nos procedimentos técnicos da pesquisaação.
No nosso caso, recorremos à pesquisa-ação, pois nos permitiu o engajamento
em um problema comum que afetava os sujeitos dentro da escola, na qual
trabalhávamos como intérprete. Por meio do diálogo com os envolvidos naquela
realidade, fomos criando com o grupo um novo espaço para o questionamento
das nossas percepções da realidade e, principalmente, das práticas que têm
sido utilizadas, no ensino do português, com o aluno surdo. Segundo Thiollent
(2008), na pesquisa-ação os pesquisadores
querem pesquisas nas quais as pessoas implicadas
tenham algo a “dizer” e a “fazer”. Não se trata de
simples levantamento de dados ou de relatórios
a serem arquivados. Com a pesquisa ação os
pesquisadores pretendem desempenhar um papel
ativo na própria realidade dos fatos observados.
(Thiollent , 2008, p.18, grifos do autor)
O aluno para quem interpretávamos estava no 2º ano da Rede Estadual de
Ensino era fluente em Libras, mas me disse que tinha dificuldades para escrever
em português, pois não conhecia o significado das palavras. Também afirmou
que aquele era o primeiro ano em toda sua vida escolar que teria um intérprete
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para traduzir as aulas para sua língua.
Desde nossa entrada na escola, começamos a observar as práticas usadas pelos
professores em sala e constatamos que não havia um trabalho com o foco na
produção de textos, pois as atividades, sobretudo as de português, resumiamse em responder às perguntas no caderno e mostrá-las ao professor para
alcançar a nota de participação. Geraldi (2006) critica práticas como essa, pois
criam no aluno uma artificialidade quanto ao uso da linguagem, já que temos
infinitas formas de uso da língua que deveriam ser contempladas na escola.
Por outro lado, o aluno se ajusta a esse sistema de ensino, pois sabe que é essa a
metodologia utilizada pelo seu interlocutor para avaliar sua escrita.
Após uma conversa com a pedagoga fomos autorizados a preparar uma
atividade uma atividade para avaliar como era a produção escrita desse aluno.
Sabendo que ele era fanático dos Santos, trouxemos um pequeno texto falando
sobre seu time preferido e especialmente sobre Neymar, um jogador jovem
que tem se destacado no time. Pedimos que ele lesse e tentasse nos explicar o
que havia entendido. André leu palavras soltas e traduziu algumas frases para
Libras, mas não chegou a compreender o sentido global do texto. Durante a
leitura, ele pulava muitas palavras e dizia em Libras: “não entendi!”, ou então:
“não conheço essa palavra”.
A reflexão sobre o momento da leitura nos mostrou que quando André tentou
ler o texto, utilizou as regras que existem na sua língua, acreditando que cada
palavra em português também representaria uma ideia. Em outras palavras,
André tentou fazer uma tradução buscando a equivalência entre as línguas
e ficou nervoso quando não conseguiu compreender os sentidos do texto.
Segundo Travaglia (2003), o tradutor começa a reconstrução dos sentidos por
meio de elementos linguísticos que se constituem como pistas para que o leitor
possa reconhecer a intenção comunicativa presente no texto. Devido à condição
linguística do surdo, algumas palavras (preposições, artigos, conjunções) e a
estrutura sintática do português são fatores que interferem na compreensão
dessas pistas deixadas ao longo do texto.
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Apoiados em Fernandes (2003), defendemos o professor precisa ensinar ao surdo
a construir outras estratégias para ler um texto em português, afastando-se da
tentativa de traduzir palavra por sinal. Assim, explicamo-lhe as ideias centrais
do Texto, em Libras, e ele não só entendeu o texto como também apresentou
suas contrapalavras, introduzindo no diálogo suas lembranças sobre Robinho,
jogador do time dos Santos, explicando os dribles que dava durante o jogo. Ao
final da conversa, pedimos que André escrevesse um texto, em casa, “contando
um pouco de suas experiências com o futebol” e o trouxesse no dia seguinte. Vejamos
o que dizia o texto-diagnóstico do aluno:
Texto Eu gosto muito mais é futebol eu fazer jogo Dia eu acho 26 viajar certo marcar, Eu
sempre jogar sabado, eu gosto time é santos eu lembro Robinho muito jogar bem também
pelé jogar bem é passado muito, eu tava passado time são paulo Depois rui flamengo rui
Depois certo santos muito anos sempre, Eu jogar bem muito Eu lembro saudade é escola
passado legal muito mais, Minha amigo jogar sempre lá rua brincar legal,
Eu Agora jogar tem lá serra sempre sabádo só é surdo, eu fui campeão é surdo, muito
legal sempre conversar boa perfeito, Eu rui ouvir sempre perteu outro campeão.
Segundo Quadros e Karnopp (2004), a ordem básica na língua de sinais brasileira
é a forma SVO, utilizando concordância manual. O texto de André nos mostra
isso, pois ele construiu muitos enunciados com essa estrutura. Porém, as autoras
afirmam que a topicalização é um recurso gramatical muito utilizado na língua
de sinais para dar uma ênfase especial ao tema do discurso, alterando, assim, a
estrutura SVO para SOV ou OSV. A escolha da topicalização tem forte ligação
com a argumentação e com a ideia que o locutor quer destacar no discurso.
Percebemos isso no texto do aluno por meio das expressões “eu fazer jogo dia
eu acho 26”, resguardando o locutor pela imprecisão quanto à data do jogo, e
nos enunciados “Robinho muito jogar bem”, “Pelé jogar bem é passado muito”,
“eu jogar bem muito”, em que os advérbios marcam a avaliação do locutor
sobre o ato de jogar.
Notamos também que o aluno surdo substituiu a preposição pelo uso do verbo
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ser “Eu gosto mais é futebol”, “eu gosto time é santos”, “saudade é escola
passado” “só é surdo” “eu fui campeão é surdo”. Apresentou um vocabulário
limitado, que se repetiu ao longo do texto, mas escreveu muitas palavras sem
erros de ortografia “acho”, “lembro”, “passado”, “campeão”, etc.
O texto de André revelou muito sobre sua habilidade de tradução: a) domínio
do gênero comentário com coerência; b) marcação de sua opinião utilizando
argumentos consistentes; c) Estabelecimento relações entre o texto e experiências
pessoais; d) Uso da estrutura linguística da Libras; e) Dificuldade para usar
algumas palavras (verbos, preposições, advérbios) e produzir a coesão textual
do texto em português; e) Uso da transposição (tradução literal).
Além desses aspectos o que nos chamou a atenção nesse texto foram os elementos
discursivos, uma vez que havia no texto marcas da inscrição do aluno expondo
suas avaliações sobre os jogadores, a escola atual, e sobre si próprio, além do
fato de identificarmos uma forte intertextualidade com o diálogo que tivemos
com ele no dia anterior.
Assim, percebemos que André se posicionou argumentando sobre suas
preferências e apresentando justificativas: “Eu gosto time santos eu lembro
Robinho muito jogar também pelé jogar bem é passado muito”. Também fez
uma comparação entre a escola atual e a anterior e justificou sua escolha: “Eu
lembro saudade é escola passado legal muito mais, Minha amiga jogar sempre
lá rua brincar legal”. André, no último parágrafo, revelou seu entrosamento
com a comunidade surda e a satisfação em conviver com pessoas que interagem
com ele na sua língua: “Eu agora jogar tem lá serra sempre sábado é só surdo
[...] muito legal sempre conversar boa perfeito”.
Frente a essa situação, entendemos com Travaglia (2003) que dentre as etapas
que envolvem o processo de retextualização (Interpretação, recodificação
e produção), as duas últimas foram as mais complexas e demandam uma
mediação intensa entre aluno e professor. Portanto, é preciso explicar ao aluno
as diferenças entre as duas línguas por meio de exercícios de retextualização,
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caso contrário, as mesmas dificuldades permanecerão em textos futuros. Nesse
sentido, haverá pouco proveito explicar a gramática isoladamente, mas é
importante reconstruir o texto, apontando e dando exemplos de outras possíveis
construções.
Uma das atividades sugeridas, nesse caso, seria digitar o texto da forma como
foi produzido pelo aluno e enumerá-lo em linhas. Em seguida, o professor
escreve os enunciados no quadro, destacando os problemas de concordância,
ausência de artigos e conectivos. Primeiro o professor faz a tradução daquele
enunciado para a Libras, a fim de que o aluno entenda o que está escrito. Depois
o professor explica as correções que precisam ser feitas para que o texto tenha
coerência na língua portuguesa.
Em um enunciado como “Eu gosto muito mais é futebol”, o professor pode
perguntar ao aluno se a intenção comunicativa foi expressar que ele adora
futebol, ou ainda, que futebol é o seu esporte preferido. Diante da resposta do
aluno, o professor pode reescrever essas opções no quadro, ou reescrever o
enunciado “Eu gosto muito de futebol”. Se assim o fizer, é importante explicar
ao aluno surdo que em português sempre utilizamos a preposição de após o
verbo gostar, ou após o intensificador muito, dando-lhe vários exemplos: Eu
gosto muito de sorvete, Eu gosto de jogar futebol, Nós gostamos de praticar
esportes, etc..
Vale destacar que se o professor de português dominar a Libras o aluno surdo
será o maior beneficiado, pois o professor consegue perceber melhor as ideias
que o aluno quis expressar por meio da escrita e pode incentivar o aluno a
aprofundar suas reflexões, preenchendo lacunas que ele deixou no texto, mas
que estiveram presentes por meio dos eventos comunicativos. Assim, um dos
pontos mais importantes em nossa pesquisa foi percebermos que,
[...] o surdo tem toda condição de aprender o
português, mas ele não vai conseguir isso sozinho.
Ele precisa do professor para mediar a construção
do texto escrito. E quando o professor sabe Libras o
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aluno surdo se sente mais à vontade pra perguntar,
pra interagir e o professor pode perceber, com mais
clareza, as dificuldades que o aluno está enfrentando.
Logo, o professor pode pensar outras formas para
traduzir aquela informação, na Libras, para que o
aluno compreenda (SILVA, 2010, p.128).
Acreditamos, portanto, que o surdo como sujeito bilíngue é um tradutor.
Aperfeiçoar essa habilidade propondo estratégias de tradução/ retextualização
do texto produzido em Libras, é tarefa do professor que se diz engajado nessa
nova abordagem de ensino: português como segunda língua para os surdos.
Nessa perspectiva, ensinar a traduzir é, também, romper com a homogeneização
das práticas de ensino adotadas com todos os alunos e procurar reformular suas
concepções, mudando primeiramente a si próprio.
Considerações finais
De acordo com Barreiro e Gebran (2006), a reflexão é, atualmente, uma das
habilidades mais requisitadas para fundamentar a prática dos profissionais da
sala de aula. A reflexão sobre as práticas de ensino do português que ainda
são adotadas com os alunos surdos, permitiu que encontrássemos nos Estudo
da Tradução outras estratégias de ensino que se alinhem à nova concepção do
surdo como sujeito bilíngue.
O texto produzido pelo aluno surdo nos mostrou que o professor precisa
analisar o texto do aluno surdo e, a partir dessa avaliação, elaborar atividades de
retextualização que aprimorem a habilidade de tradução existente. Isso porque
o aluno surdo não irá produzir textos sozinho, mas precisa ser orientado pelo
professor. Dessa forma, a apropriação da língua portuguesa na modalidade
escrita não se construirá num ato individual, mas é preciso que haja a interação
entre professor, aluno e texto, para que haja a produção de novos sentidos.
Para elaborar atividades de tradução/ retextualização, o texto do aluno surdo
precisa ser o ponto de partida. Assim, a aula de português se transformaria
numa oficina de tradução, permitindo o ir e vir entre os textos produzidos na
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Libras e no português escrito. Nessa perspectiva, o surdo começa a circular por
dois mundos, duas culturas e poderá usar as línguas Libras e português para
interagir das mais diversas formas, nos diferentes espaços sociais.
Referências
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MAL DE ALZHEIMER NA PRIMEIRA FASE:
CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLINGUÍSTICA
Denise Aparecida Moser1*
Resumo
Esta pesquisa teve por finalidade desenvolver um estudo para verificar se é
possível auxiliar no diagnóstico de prováveis portadores de mal de Alzheimer
na primeira fase a partir dos sintomas linguísticos na área fonológica. A
investigação compreendeu uma pesquisa do tipo bibliográfica e estudo de
caso em que participaram dois sujeitos residentes no Ancionato Bethesda, em
Joinville, Santa Catarina, Brasil. Para a seleção dos sujeitos, recorreu-se ao auxílio
de profissionais da área da saúde em que analisaram os prontuários, os laudos
de tomografia computadorizada de crânio e os Mini-Exames do Estado Mental
deles. Posteriormente, realizou-se a coleta das falas espontâneas que foram
gravadas e transcritas foneticamente. Os processos fonológicos e a Fonologia de
Geometria de Traços foram os modelos teóricos escolhidos para a análise dos
dados, mas os resultados mostraram que os sujeitos não possuem déficits no nível
fonológico. Além disso, foram observadas algumas variáveis extralinguísticas
que revelaram a não interferência delas no processamento fonológico desses
sujeitos. Verificou-se, assim, que não se confirmou a expectativa da pesquisa
uma vez que se estava a favor da teoria de Croot et al. (2000), ou seja, de que
os prováveis portadores de mal de Alzheimer de primeira fase apresentassem
deterioração fonológica.
Palavras-chave: Mal de Alzheimer. Primeira fase. Nível fonológico.
Abstract: This research was aimed to assess if it is possible to create a
methodology to assist in the diagnosis of Alzheimer’s disease in its early stages,
when problems with speech and language appear in the phonological domain.
The investigation involved bibliographical research and a case study of two
subjects admitted to Bethesda, Joinville, Santa Catarina, Brazil. Patient selection
was performed by healthcare professionals who examined the medical records,
cranial computed tomography findings and the Mini Mental State Examinations
of the patients. Afterwards, spontaneous speech material was collected,
1- *Programa de Pós-Graduação em Linguística, UFSC, Florianópolis, Santa Catarina,
Brasil, endereço eletrônico: [email protected]
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recorded and phonetically transcribed. The phonological processes and the
Geometry of Phonological Features were the theoretical models selected for
data analysis. However, the tests showed no phonological deficit. Besides, some
extralinguistic variables were found to have no influence on the phonological
processing of the subjects. Thus, the expectations of the present research were
not met, because it supported the theory of Croot et al. (2000), according to
which Alzheimer’s patients in the earlier stages of the disease would present
phonological impairment.
Key-words: Alzheimer’s disease. Early stage. Phonological level.
Introdução
O processo natural do ser humano é nascer, tornar-se criança, ser adolescente,
ser jovem, ser adulto e, finalmente, ser idoso. É na época do envelhecimento,
embora se saiba que o ser humano envelhece no decorrer das fases da vida,
que se questionam as diferenças existentes de um idoso para outro idoso. Ou
seja: um idoso pode ter uma vida ativa e saudável provavelmente devido à sua
combinação genética, ao seu estilo de vida e ao seu ambiente, e o outro pode
ser acometido por doenças, sendo levado à deterioração mais acelerada tanto
mental quanto fisicamente.
Das várias enfermidades que muitos idosos são acometidos, existem as demências
que se iniciam gradualmente, não apresentam alterações da consciência, com
exceção das fases finais, danificam a memória e outras habilidades cognitivas,
causando prejuízos no convívio social e no trabalho (PESKIND; RASKIND,
1999; McRAE, 2001). Uma delas é a doença degenerativa de mal de Alzheimer.
O mal de Alzheimer foi descoberto em 1906 por Alois Alzheimer. É uma doença
que conduz à morte dos neurônios do cérebro do idoso. Não há critérios precisos
para se realizar o diagnóstico em vida e sua cura ainda não existe. Há apenas
drogas que a retardam. Os médicos já conseguem observar se o idoso, quando
acometido pela doença, está passando pela primeira fase (estágio suave),
segunda fase (estágio moderado) ou terceira fase (estágio avançado). O Mal de
Alzheimer afeta 35 milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil, cerca de 6%
da população com mais de 60 anos têm a doença (JORNAL FLORIPA, 2011).
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No estágio inicial dessa demência, há na literatura duas vertentes relacionadas
ao processamento fonológico. Pesquisadores como Huff (1988), Cohn, Wilcox
e Lerer (1991) e Patel e Satz (1994) realizaram estudos que apresentam que o
processamento fonológico resiste intacto até o início da fase avançada. Já outros,
como Croot et al. (2000) alegam que podem ocorrer distúrbios fonológicos já na
fase inicial.
Dentro dessa perspectiva, o presente trabalho apresentará um estudo sobre a
demência: a doença degenerativa de mal de Alzheimer da primeira fase para
verificar se é possível auxiliar no diagnóstico de prováveis portadores de mal
de Alzheimer na primeira fase a partir dos sintomas linguísticos, tendo como
foco o processamento fonológico. Este é um tema interdisciplinar - Linguística,
Psicolinguística e Neurolinguística - que surgiu diante da situação do grande
número de idosos que sofrem dessa patologia no mundo e da escassez de
pesquisas ligadas à área de Fonologia com idosos diagnosticados como
prováveis portadores de mal de Alzheimer em estágio inicial.
O transtorno fonológico e a teoria dos processos
fonológicos
O transtorno fonológico é um desvio encontrado no sistema fonológico de um
indivíduo. É identificado quando este faz substituições, omissões ou distorções
dos sons da fala. Esses déficits podem advir das regras fonológicas da língua,
resultantes de dificuldade cognitiva-linguística, com a percepção auditiva
ou com a produção dos sons (INGRAM, 1976; AMERICAN PSYCHIATRIC
ASSOCIATION, 1994).
A causa do transtorno fonológico ainda é desconhecida. No entanto, há três linhas
de pesquisa para estudá-la: a descrição linguística, em que os pesquisadores
usam modelos teóricos para observarem os aspectos fonológicos e fonéticos;
os processos neurolinguísticos e a etiologia genética ou ambiental (SHRIBERG,
2004).
Na descrição linguística, um dos modelos mais utilizados para estudar os
transtornos fonológicos é o dos processos fonológicos. Foi a partir de Stampe (1973)
apud Othero (2005) que a definição de processo fonológico surgiu, ou seja:
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[...] um processo fonológico é uma operação mental que
se aplica à fala para substituir, no lugar de uma classe
de sons ou de uma sequência de sons que apresentam
uma dificuldade específica comum para a capacidade
de fala do indivíduo, uma classe alternativa idêntica,
porém desprovida de propriedade difícil (STAMPE,
1973, p. 1).
Muitas pesquisas foram e poderão ser realizadas com a teoria dos processos
fonológicos, pois segundo Yavas, Hernandorena e Lamprecht (1991),
Os processos fonológicos constituem um instrumento
válido e confiável de análise; dão conta da descrição
da fonologia em desenvolvimento e da fonologia com
desvios; permitem uma comparação clara e simples
entre a fonologia com desvios, por um lado, a aquisição
normal e o alvo da fala adulta, por outro; facilitam
o estabelecimento de metas racionais de tratamento
(Yavas, Hernandorena e Lamprecht, 1991,
p. 92).
Na produção dos sons, das línguas naturais, muitos processos fonológicos
podem ocorrer. Conforme Yavas, Hernandorena e Lamprecht (1991), estes
geralmente são classificados em duas categorias: processos de estrutura silábica
e processos de substituição. Os processos de estrutura silábica se subdividem
em: redução de encontro consonantal, apagamentos de sílaba átona, fricativa
final, líquida final, líquida intervocálica e líquida inicial, metátese e epêntese.
Os processos de substituição se classificam em: desonorização da obstruinte,
anteriorização, substituição de líquida, semivocalização de líquida, plosivização,
posteriorização, assimilação e sonorização pré-vocálica.
A fonologia de geometria de traços
Segundo Clements (1985), as pesquisas relacionadas ao aspecto fonológico da
fala humana tiveram outro rumo nas últimas décadas. Os linguistas começaram
a visualizar os fonemas como traços.
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Até então, os fonemas, de acordo com Jakobson (1932, p. 231) apud Câmara Jr.
(2001, p. 34), eram “[...] as propriedades fônicas concorrentes que se usam numa
dada língua para distinguir vocábulos de significação diferente.” Um ano após,
Bloomfield (1933) também definiu fonemas como:
[...] traços distintivos que ocorrem em conjunto ou
feixes, como o adendo: “O falante se exercitou em
fazer os movimentos (entenda-se no aparelho fonador)
“produtores de sons de tal maneira que os traços do
fonema estão sempre presentes nas ondas sonoras
e também se exercitou a só dar importância a esses
traços, não tomando conhecimento da massa acústica
que alcança em grosso o seu ouvido (Bloomfield,
1933, p. 79, apud, Câmara Jr., 2001, p. 34).
A Fonêmica, baseada na intuição das gramáticas antigas, elaborou a teoria
estruturalista, destacando o fonema. Clements (1985), por sua vez, criticou esse
conceito de fonema visto como feixe, pois apresentava desorganização inerente
e falta de estrutura. A Fonologia Gerativa Padrão (tipo SPE: The Sound Pattern
of English de Chomsky e Halle, 1968) elaborou os traços distintivos onde os
segmentos foram descritos na forma de matrizes (HYMAN, 1975; KEATING,
1998 apud CAGLIARI, 1998). Esta concepção transformou os fonemas em
matrizes de traços de coluna simples e deu uma visão de representação mais
clara.
Uma ausência de organização interna das matrizes na Fonologia Gerativa foi
encontrada por Goldsmith (1976), quando se deparou com problemas sem
nenhuma perspectiva de solução ao trabalhar com línguas tonais e suas regras.
Assim o pesquisador elaborou níveis em que os tons ficassem autossegmentados
num nível próprio com seus devidos processos fonológicos. O nível se conecta
a outros níveis por intermédio de linhas de associação e seguem princípios:
princípio de não cruzamento de linhas de associação; princípio de contorno
obrigatório e restrição de ligação.
Assim, a Fonologia de Geometria de Trações foi introduzida por Clements
em 1985. Ela faz parte das fonologias não-lineares e é baseada quase que
exclusivamente na fonética articulatória. Passou por reformulações, e a última
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versão, elaborada por Clements e Hume (1995), apresenta os segmentos
organizados internamente e os nós hierarquicamente ordenados “[...] em que os
nós terminais são traços fonológicos e os nós intermediários, classes de traços”
(HERNANDORENA, 2001, p. 47).
Em outras palavras, o modelo é formado por: a) nó de Raiz que representa o
segmento (consoante ou vogal). É dominado por uma unidade de tempo (X) ou
pelo termo mais conhecido: esqueleto; b) nós de Classe que são o nó laríngeo, o nó
nasal, o nó cavidade oral (estes são ligados por linhas de associação diretamente
vindas do nó de raiz), o nó ponto de Consoante (oriundo do galho do nó
cavidade oral) e o nó vocálico que provém do nó ponto de Consoante. Os nós
de classe têm a função de dominar grupos de elementos em regras fonológicas;
c) nós Terminais que são os traços fonológicos. No português brasileiro, os traços
fonológicos que aparecem são: soantes, aproximantes e vocoides (nó de raiz);
glotais não-constritas, glotais constritas, sonoras (nó laríngeo); os segmentos
nasais (nó nasal); contínuos (nó de cavidade oral); labiais (bilabiais e labiodentais
que são anteriores), coronais (dentais, alveolares classificadas como anteriores
também e palato-alveolares e palatais, como distribuídas), dorsais (velares e
uvulares) (nó ponto de Consoante); labiais (em que há o arredondamento dos
lábios ou labialização na pronúncia do /o/ e /u/), coronais (vogais frontais
/«/, /e/ e /i/ onde a língua se posiciona como [-anterior] ou [distribuída],
como no caso de /lÆ/) e dorsais (vogais posteriores /u/, /o/ e /¿/ e vogal
central /a/ (nó ponto de Vogal); aberto (nó ponto de abertura de Vogal).
Através da Fonologia de Geometria de Traços, é possível (pelo menos é o que
propõe) se dar conta de processos fonológicos que ocorrem nas línguas naturais
de forma simples, pois é comprometida com a realidade fonética em todos os
seus aspectos.
Assim, Cagliari (1998) expõe que,
[...] o modelo opera apenas com um pequeno conjunto
de processos fonológicos básicos com os quais a partir
da representação da forma básica subjacente dos
morfemas, chega-se à forma fonética de superfície.
A primeira auto-segmentação ocorre no léxico e
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está conectada também a outros níveis de análise,
representados fundamentalmente pelas Fonologias
Lexical, Métrica e Prosódica, através do eixo do
esqueleto, ou seja, do eixo que marca os segmentos
como unidades de tempo, concatenados linearmente
(Cagliari, 1998, p. 19-20).
Os processos fonológicos mais importantes abordados pela Fonologia de
Geometria de Traços são: assimilação ou espraiamento, desligamento, fissão e
fusão. Outros processos são: desassimilação, inserção, apagamento, metátese,
redução, fortalecimento, harmonia vocálica, alongamento, formação de
articulação secundária, alçamento vocálico, abaixamento, entre outros. A
Fonologia de Geometria de Traços opera ainda com noções de mapeamento
dos contextos, domínio, gatilho, filtro, forma default, restrições, bloqueio,
transparência e opacidade, marca, condição de boa-formação, opcionalidade,
elemento flutuante, entre outros (CAGLIARI, 1998).
Metodologia
Para verificar se é possível diagnosticar provavelmente o mal de Alzheimer
na primeira fase a partir dos sintomas linguísticos, tendo como foco aspectos
fonológicos, foi realizada uma pesquisa bibliográfica e, posteriormente, feito
um estudo de caso. Na pesquisa bibliográfica, ateve-se em ter conhecimento
sobre a doença de mal de Alzheimer e sobre como estão os estudos relacionados
à área de linguagem com prováveis portadores de mal de Alzheimer. Além
disso, buscou-se apresentar a definição de transtorno fonológico e expor as
teorias dos processos fonológicos e geometria de traços para serem aplicadas, se
possível, aos dados coletados. O estudo de caso foi realizado com dois sujeitos:
A, com 83 anos de idade e B, com 86 anos de idade, residentes no Ancionato
Bethesda, em Pirabeiraba, Joinville, Santa Catarina, Brasil, com a finalidade de
saber se eles apresentavam déficits fonológicos. O estudo de caso foi o método
de procedimento usado para se fazer generalizações quanto aos possíveis
transtornos fonológicos com prováveis portadores de mal de Alzheimer de
primeira fase.
A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres
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Humanos da Pró-Reitoria de Pesquisa e Extensão da Universidade Federal de
Santa Catarina, instituído pela Portaria nº. 0584/GR/99 de 4 de novembro de
1999, sob o processo nº. 732. A direção do Ancionato Bethesda e os responsáveis
pelos sujeitos A e B assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A seleção dos sujeitos passou por várias etapas entre os meses de abril e agosto
de 2010. Primeiramente, pediu-se à direção do Ancionato Bethesda se existiam
idosos com a probabilidade de terem a doença de mal de Alzheimer de primeira
fase. A direção apresentou dois idosos e a partir disso, começou-se o processo
de seleção dos sujeitos.
1ª etapa: Primeiramente, teve-se acesso aos prontuários, pastas que contêm o
histórico clínico desses sujeitos, fornecidos pelo Ancionato Bethesda. No quadro
clínico do sujeito A, o que chamou a atenção foi o fato de ele ter problemas para
andar. O sujeito B, por sua vez, apresentou mais sintomas, tais como: deficiência
psíquica, depressão, problemas para andar e dormir, além de ser esquecido e
multiqueixoso e ter dificuldade em registrar o cotidiano. Esses sinais e sintomas
levaram à hipótese de que esses sujeitos poderiam ser prováveis portadores de
mal de Alzheimer em fase inicial. Mas para se ter mais certeza, realizou-se uma
segunda etapa.
2ª etapa: Em uma sala reservada, observou-se e conversou-se com os dois sujeitos
separadamente. E realmente os sinais e sintomas apontados nos prontuários
foram observados com as conversas e são características, segundo Cummings e
Benson (1983), Corrêa (1996), Salmon e Bondi (1997), Anderson (1988), Caramelli
e Nitrini (2001) e Rodrigues (2006), de mal de Alzheimer de fase inicial. Ou seja,
observou-se que:
· tinham problemas como funcionamento de memória;
· tinham problemas de orientação temporal;
· no processamento da linguagem, utilizavam e acessavam o léxico
·
·
inadequadamente e possuíam pouco comprometimento na fluência
da fala;
possuíam poucos distúrbios emocionais como depressão e
agressividade;
não tinham mais iniciativa e motivação.
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Mas estas características precisavam ser analisadas por um profissional da área da
saúde para saber se os sujeitos eram prováveis portadores de mal de Alzheimer
de estágio inicial. Por isso, partiu-se para a terceira etapa. Simultaneamente,
grosso modo, nas conversas, analisou-se que eles não apresentavam problemas
fonológicos.
3ª etapa: Os sujeitos A e B foram encaminhados a dois médicos de consultórios
diferentes. Na primeira consulta, o médico A fez uma explanação sobre a
doença de mal de Alzheimer e logo após, conversou e consultou os sujeitos
A e B separadamente. A pedido da pesquisadora e sob prescrição médica,
foram solicitadas tomografias computadorizadas de crânio dos sujeitos A e B
para identificar se havia a existência de alguma atrofia ou outras patologias nos
cérebros deles.
4ª etapa: Os sujeitos A e B foram encaminhados ao Hospital Dona Helena, Joinville,
Santa Catarina, Brasil, para realizarem as tomografias computadorizadas de
crânio (TCC), usando como metodologia os cortes axiais de 3,0 mm de espessura
(fossa superior) e 7,0 mm de espessura, obtidos sob orientação de radiografia
digital no plano órbito-meatal (vide Anexos).
5ª etapa: As conclusões dos laudos das tomografias computadorizadas de crânio,
realizadas no Hospital Dona Helena, mostraram em:
· Sujeito A:
· sinais de redução volumétrica dos hemisférios cerebrais e
cerebelares;
· hipoatenuação inespecífica da substância branca peri-
·
·
ventricular e nos centros semi-ovais, provavelmente
correspondendo a aspectos relacionados à senescência (“aging
brain”) e/ou leucoaraiose;
calcificações ateroscleróticas nos segmentos V4 das artérias
vertebrais e nos segmentos cavernosos das carótidas internas;
espessamento mucoperiosteal indicando alterações de natureza
inflamatória no seio etnoidal e no seio esfenoide.
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· Sujeito B:
· sinais de redução volumétrica do encéfalo, caracterizada por
·
alargamento difuso dos sulcos e cisternas encefálicas, bem
como do sistema ventricular;
tênue hipoatenuação inespecífica da sustância branca periventricular e nos centros semiovais, sendo os aspectos descritos,
provavelmente relacionados à senescência (“aging brain”), sem
outras particularidades.
Os dois médicos disseram que os sujeitos A e B não apresentavam atrofias nem
outras patologias no cérebro. Os resultados apenas indicaram que eles tinham
problemas relacionados à senescência, ou seja, ao envelhecimento normal. De
acordo com Rosa (1983), a senescência pode começar em alguns indivíduos a
partir dos 50 anos e em outros, depois dos 60 anos. É caracterizada pelo declínio
físico e mental, que é lento e gradual. Portanto, faz parte da fase da vida
humana normal em que não ocorrem distúrbios de condutas, amnésias e perda
do controle de si mesmo. O médico B, no entanto, frisou que esse tipo de exame
– a TCC – não é para fornecer o diagnóstico provável da doença de Alzheimer.
O teste mais indicado é o Mini-Exame do Estado Mental.
6ª etapa: O médico A, através das conversas com os sujeitos A e B e pelos sinais
e sintomas registrados nos prontuários, diagnosticou-os como prováveis
portadores de mal de Alzheimer em fase inicial. Já o médico B analisou
o teste Mini-Exame do Estado Mental que foi aplicado aos dois sujeitos por
uma terapeuta ocupacional, agente de saúde que trabalha no Ancionato
Bethesda (vide Anexos). O teste Mini-Exame do Estado Mental seguido foi o de
Bertolucci et al. (1994), que é adaptado à realidade brasileira. Tal teste consiste
na seguinte pontuação de corte: Analfabetos: 13 pontos; Escolaridade de 1 a 8
anos incompletos: 18 pontos; 8 anos ou mais: 26 pontos. A pontuação máxima é
de 30. O total de pontos do sujeito A foi de 19, e do sujeito B, 16. Tanto o sujeito
A quanto o sujeito B apresentaram os escores abaixo do esperado: o sujeito A,
por ter o ensino fundamental completo, e o sujeito B por ter a 4ª série do ensino
fundamental. Diante desses resultados, o médico B concluiu que os dois sujeitos
são prováveis portadores de mal de Alzheimer em fase inicial.
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Com o diagnóstico provável de mal de Alzheimer da primeira fase dos dois
sujeitos feito pelos médicos A e B, foi realizada a coleta de dados em novembro
de 2010 nas dependências do Ancionato Bethesda. A coleta consistiu de falas
espontâneas. Participaram da coleta dos dados do sujeito A, a pesquisadora e
o participante 1, que era quem estava auxiliando na gravação da fala. Com o
sujeito B, houve a participação da pesquisadora e dos participantes 1 e 2, que
também fizeram as gravações. As falas espontâneas foram gravadas via MP
Player/5 para a realização da transcrição fonética e posterior análise qualitativa.
Utilizou-se o Alfabeto Fonético Internacional, fonte SILDoulos IPA para a
realização da transcrição fonética, sendo esta baseada conforme SILVA (2002).
Duas variáveis foram propostas para serem analisadas: as variáveis linguísticas,
ou seja, os dois tipos de processos fonológicos: os de estrutura silábica e os
de substituição e as variáveis extralinguísticas: sexo, faixa etária, escolaridade,
profissão, descendência e etnia.
Análise e discussão dos dados
O sujeito A mora no Ancionato Bethesda porque ficou viúvo. Ele tem 83 anos
de idade, é natural de Joinville, Santa Catarina, Brasil, descendente de alemães
e possui etnia branca. É pai de três filhos, trabalhou como vendedor e possui a
8ª série do Ensino Fundamental.
Com a transcrição fonética da fala espontânea gravada do sujeito A, percebeuse que ele não apresenta dificuldades fonológicas nem incoerências discursivas.
Ele teve problemas mais relacionados à área cognitiva. Para compreender as
perguntas feitas, por exemplo, na maioria das vezes foi preciso repeti-las.
Exemplo 1:
Pesquisador 1: [A,, ÈnE?] [ÈkWa)tuÈzã~nuz UseÈøoR Ète)I9?]
Sujeito A: [Èã~?]
Pesquisador 1: [ÈkWã~tuÈza~nuz UseÈøoR Ète~I9?]
Sujeito A: [oI9Ète~t«I9 ÈtRes.]
No prontuário, não está registrado que ele tem problemas auditivos. Portanto,
não se sabe com certeza se o constante [Èã?] é devido à surdez ou à falta de
agilidade para processar a informação recebida.
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Outro problema registrado na fala dele foi o de não dar uma resposta adequada
com relação ao que faria se tivesse determinada idade.
Exemplo 2:
Participante 1: [ÈnãU9, ÈnãU9.] [maI9s, ÈseU9 A, ÈsI9useÈøoä ÈfosI voU9ÇtaÈRaÈte Èla ÈseU9s
ÈtRi~t«, kWaÈRe~t« Èãnuz uÈkI9useÈøoÈRia faÈzeÈRo½i?] [se~I9 Èse ve~deÈdoR, uÈkI9useÈøoä gostaÈRi« dI
faÈze?]
Sujeito A: [ÈeU9?]
Participante 1: [fikaÈRaÈki?]
Sujeito A: [fikaÈRaÈki,, ÈnE?]
O sujeito A também apresentou déficits ao precisar fornecer respostas que
remetiam a fatos do passado.
Exemplo 3:
Pesquisador 1: [tRabaÈlJo Èla a ÈkWã~tU Ète~pU?]
Sujeito A: [tRabaÈlJeI9 naÈikU?] [ÈnãU9 Èp¿sU le~ÈbRa.] [ÈnãU9 Èle~bRU.]
O que chamou a atenção na fala do sujeito A é a de que ele tem consciência de
que está com comprometimento na memória.
Exemplo 4:
Sujeito A: [ÈeU9 teÈRia kIÈveR ÈkWaÈla iÈdEI9‡, maI9ÇzeU9Èto ko~a iÇdEI9« u~ÇpokU ÈfRak«,,
ÈnE?] [koÈmU9E kIÈfoI9 &a, a eleI9ÈsãU9?]
Analisando-se os dados da fala espontânea do sujeito A, percebeu-se que não
há transtornos fonológicos indo contra a teoria de Croot et al. (2000). O que
revelaram mais foi a dificuldade de lembrar os fatos passados, de processar as
informações com agilidade. além de não saber responder adequadamente a certas
perguntas. Vale ressaltar que as variáveis extralinguísticas do sujeito A (sexo:
masculino; faixa etária: 83 anos; escolaridade: 8ª série do ensino fundamental;
profissão: vendedor; descendência: alemães; etnia: branco) mostraram que
não há interferência significativa nos aspectos linguísticos e cognitivos dos
prováveis portadores de mal de Alzheimer de fase inicial, principalmente, no
quesito transtorno fonológico.
O sujeito B mora no Ancionato Bethesda. O marido, que a abandonou com três
filhos, é hoje falecido. Ela tem 86 anos de idade, é natural de São Paulo, São
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Paulo, Brasil, descendente de italianos e possui etnia branca. Sempre trabalhou
no lar e cursou até a 4ª série do Ensino Fundamental.
A transcrição fonética da fala espontânea gravada do sujeito B, assim como a do
sujeito A, também não apresentou déficits fonológicos. Foram identificadas nos
dados dele, algumas incoerências discursivas, mas que não trouxeram grandes
dificuldades para a compreensão.
Uma delas foi a dificuldade do sujeito B em ter acesso ao léxico adequado,
dando palavras genéricas para se expressar.
Exemplo 5:
Participante 1: [ÈtemU9 kI ½uÇga domiÈn !]
Sujeito B: [&aÇtE, aÇtEaÈg R« ÈeU9 ÈtivI ½oÈgãdU kum« ÈmosaÈi, u~neÈg siU9aÈi...]
O sujeito B, ao pronunciar [u~neÈg siU9aÇi...], estava se referindo ao nome de um
determinando jogo que não sabia ou não lembrava.
Outro problema identificado foram as dúvidas que o sujeito B apresentou em
relação a números. Não sabia mais, por exemplo, se teve sete ou três filhos.
Exemplo 6:
Participante 1: [IuIsÈpozU, ÈfaI9z Ète~pU ÈkI9elI faleÈseU9 oÈkI9aseÈø¿R«
fiÈko s Èziø«?]
Sujeito B: [ÈelI sI sepaÈRo dIÈmi~.]
Participante 1: [Èa!] [ÈelI sepaÈRoÈsI.]
Sujeito B: [ÈIeU9 kRiÈeI9 s Èziø« ÈsEtI ÈfilJU, Èe~...] [ÈsEtI ÈfilJU?] [ÈnãU9.]
[ÈtReI9s.]
O sujeito B não conseguiu mais se localizar no tempo com precisão. Teve
dificuldade em resgatar o mês e o ano em que nasceu.
Exemplo 7:
Participante 2: [a seÈø R« naÈseU9 e)I9ÈmiU n vIÇse~tuzI vi~tII ÈtReI9s.] [ÈEÈisU?] [ÈEÇisU.]
[Èdia Èo~zI dI seÈte~bRU?] [onoÈve~bRU?]
Participante 1: [Èo~zI dI noÈve~bRU?]
Pesquisador 1: [oU9ÈdEI9z dI noÈve~bRU?]
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Participante 2: [ÈeU9 ÈseI9 ÈkI9« e)I9...]
Pesquisador 1: [e)I 9noÈve~bRU.]
Participante 2: [e)I9 noÈve~bRU.]
Pesquisador 1: [oU9ÈE e)I9 oÈtubRU?]
Sujeito B: [Èa, ÈeU9 ÈnãU9 Èle~bRU.] [Èmiø« kaÈbes« ÈnãU9 mI9aȽud« ÈmaI9s.]
Além disso, o sujeito B apresentou contradições de ideias. O exemplo mostra
que todas as colegas do ancionato eram amigas e, em seguida, diz que não gosta
de ter amigas.
Exemplo 8:
Pesquisador 1: [a seÈø R« ÈnãU9 Ète)I9 neÈøumaÈmigaÈki?]
Sujeito B: [Èa, pRaÈmi~ ÈsãU9 ÈtodaÈzaÈmig«s.]
Pesquisador 1: [Ètod«s?]
Sujeito B: [Èa, ÈeU9 ÈnãU9 Èg stU dIteÈRaÈmig«.] [maI9s ÈvaI9 faÈzeÈRuÈke?] [maI9s Ète)I9 Ƚe~tI9
kI Èg st«,, ÈnE?]
Foram encontradas também algumas ocorrências características de línguas em
contato (variedade sociolinguística). Como é descendente de italianos, com
certeza, esse dialeto influenciou na pronúncia de [ÈtãU9] para [Çto)].
Exemplo 9:
Sujeito B: [Èg stU.] [ÈnãU9ÈE &dI, dI kI voÈseI9s Èto) pe~ÈsãdU, ÈnãU9.]
Verificou-se que o sujeito B demorou a lembrar os nomes de familiares. O
exemplo indica que teve que fazer um esforço para se lembrar dos nomes dos
três filhos, o que comprova mais uma vez o comprometimento da memória.
Exemplo 10:
Sujeito B: [ÈIeU9 käiÈeI9 s Èziø« ÈsEtI ÈfilJU, Èe)...] [ÈsEtI ÈfilJU?] [ÈnãU9.] [ÈtReI9s.]
Participante 1: [UW....]
Sujeito B: [UW, aK...]
Participante 1: [aK...]
Sujeito B: [ÈkWaÈlE UÈotRU?] [ÈnãU9 Èto le)ÈbRãdU ÈmaI9s.]
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dIZ.]
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Participante 1: [ÈE ÈtReI9s?]
Sujeito B: [ÈtReI9s.] [Z.] [ÈSamU9ÈelI9 dIZ.]
Participante 1: [Z.] [W, Z IK.]
Sujeito B: [UÈnomI ÈdelI ÈnãU9ÈE
Z,
maI9ÇzeU9
ÈSãmU
Èse)pRIÇelI
Algumas vezes o sujeito B demonstra que também tem consciência de que a
memória dele não está mais funcionando adequadamente.
Exemplo 11:
Participante 1: [a seÈø R«ÈE daÈki, Èdon« B?]
Sujeito B: [aÈki?]
Participante 1: [ÈE!] [e)I9½o)IÈvilI?]
Sujeito B: [ÈnãU9.]
Participante 1: [ÈnãU9?]
Sujeito B: [ÈnãU9.] [aÈki e)I9½o)I9ÇvilI, ÈnãU9.] [Èa, ÈeU9 Èto ÈFu)I9 da kaÈbes«, Èbe)I.]
Os dados da fala espontânea gravada do sujeito B mostraram que não há
transtornos fonológicos, portanto, também indo contra a teoria de Croot et al.
(2000). Foram encontrados problemas relacionados a acesso lexical, a números,
à orientação temporal, à contradição de ideias, à interferência de variedade
sociolinguística e à nomeação de familiares. O sujeito B também apresentou
consciência de que está tendo falhas no processamento das informações. As
variáveis extralinguísticas do sujeito B (sexo: feminino; faixa etária: 86 anos;
escolaridade: 4ª série do ensino fundamental; profissão: do lar; descendência:
italianos; etnia: branca) também mostraram que não há interferência significativa
nos aspectos linguísticos e cognitivos dos prováveis portadores de mal de
Alzheimer de fase inicial, principalmente, no quesito transtorno fonológico.
Conclusão
Conciliar linguística, neurolinguística e psicolinguística, destacando os campos
da fonética e fonologia, exige muito esforço, pois os avanços tecnológicos na
medicina estão muito além dos da área da educação. Mesmo assim, teve-se o
objetivo de realizar uma pesquisa para identificar problemas fonológicos com
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prováveis portadores de Mal de Alzheimer em fase inicial uma vez que há
poucos estudos sobre o tema.
Relacionando a literatura com os dados obtidos, chegou-se a várias conclusões.
Primeiramente, psicolinguistas com apoio médico devem saber distinguir
bem o que é envelhecer por senescência e por demência. Para isso, os agentes
de saúde devem realizar os exames necessários para diferenciar os tipos
de envelhecimento. Um dos exames mais indicados, como se viu, é o MiniExame do Estado Mental em que se faz a avaliação cognitiva. Nesse exame, o
profissional da área da saúde avalia qual percentual o idoso tem em relação à
orientação temporal e espacial, à nomeação de objetos, à atenção, ao cálculo, à
memória e à linguagem, que somados fornece um escore geral.
O segundo ponto a ser elencado é o de que a tomografia computadorizada
de crânio tem por objetivo identificar atrofias ou sinais de outras patologias
no cérebro. No caso dos sujeitos A e B, estes não apresentaram nenhum
problema cerebral neste sentido. Assim, percebeu-se que estão bem no início
da demência.
Em terceiro lugar, com as transcrições fonéticas das falas espontâneas gravadas
ficou evidente que os sujeitos A e B não têm transtornos fonológicos, porque
conseguiram fazer o mapeamento do estímulo a uma representação fonológica
existente. Assim, passa-se a defender a teoria de alguns autores, tais como Huff
(1988), Cohn, Wilcox e Lerer (1991) e Patel e Satez (1994), os quais alegam que o
processamento fonológico na doença de Alzheimer permanece inalterável até o
início da fase avançada da doença. Portanto, questionam-se os estudos de Croot
et al. (2000), que acreditam que os pacientes podem ter problemas fonológicos
já na primeira fase. Por isso, recomenda-se que outras pesquisas mais acuradas
sejam realizadas para saber se de fato há déficits fonológicos na doença de
Alzheimer na primeira fase.
Como não ocorreram problemas fonológicos, não foram analisados os processos
fonológicos e patológicos, e, consequentemente, não foram aplicados à Fonologia
de Geometria de Traços. Os dados dos sujeitos A e B apenas revelaram que
eles possuem dificuldades discursivas e de memória – sintomas da doença de
Alzheimer no estágio inicial.
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Quanto às variáveis extralinguísticas, o que vale ressaltar é que o sujeito A,
sendo do sexo masculino, com 83 anos de idade, com ensino fundamental
completo, descendente de alemães, de etnia branca, que atuou como vendedor,
teve mais dificuldade para responder as perguntas realizadas. Ele se utilizava
várias vezes do [Èã?] para processar a pergunta e respondê-la. Também teve
dificuldade para se lembrar dos fatos passados.
O sujeito B, por sua vez, do sexo feminino, de 86 anos de idade, com ensino
fundamental incompleto, descendente de italianos, de etnia branca e que sempre
trabalhou como dona de casa, apresentou problemas relacionados ao acesso
lexical, ao esquecimento dos fatos e dos nomes de familiares e à interferência
sociolinguística. Sendo assim, as variáveis extralinguísticas não afetaram o
processamento fonológico dele.
A doença de Alzheimer é uma patologia neurológica
ainda não bem conhecida que só pode ser diagnosticada
com precisão, até os tempos atuais, após a morte do
paciente por meio da biópsia ou autópsia do cérebro.
Porém, com as características da doença mais os
exames de rotina, clínicos, de perspectivas, os que são
realizados para excluir outras patologias, avaliação
do estado mental e avaliação psiquiátrica, os médicos
podem fornecer um diagnóstico provável ou possível
do paciente ser portador de Alzheimer ainda em
vida.
Entretanto, desenvolver um estudo para auxiliar profissionais da área da saúde,
familiares, atendentes e pacientes da doença de Alzheimer com intuito de
identificar se há transtornos fonológicos no estágio inicial é muito complexo.
Através da presente pesquisa, foram encontradas dificuldades em relação
à distinção entre os dois modos de envelhecer: a senescência e a demência.
Por isso, a procura de dois médicos para realizar o diagnóstico foi necessária.
Também houve problemas na locomoção dos dois sujeitos até os consultórios
médicos e ao hospital, porque estes não conseguiam andar normalmente.
Enfim, chegou-se à conclusão de que a linguística, mais especificamente as
áreas de fonologia e fonética, a psicolinguística e a neurolinguística “podem”
juntas contribuir para o diagnóstico dos prováveis portadores de Alzheimer em
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fase inicial a partir dos sintomas linguísticos. As transcrições fonéticas das falas
espontâneas gravadas que foram coletadas dos sujeitos A e B revelaram que
estes não apresentaram comprometimento no processamento fonológico.
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Anexos
Mini-exame do Estado Mental do sujeito A
Máximo Orientação (1 ponto para cada resposta correta)
5 (4) Em que ano, mês, dia da semana, dia do mês, estação do ano estamos? 5 (5) Onde estamos: estado, país, cidade, rua, local?
Registros (1 ponto para cada resposta correta)
3 (3) Nomeie 3 objetos: diga palavra por palavra, devagar; peça ao paciente
que repita as três palavras. Então repita todas novamente, para que ele aprenda.
Pente, Rua, Azul.
Atenção e Cálculo (1 ponto para cada resposta correta)
5 (2) Peça ao paciente que conte de trás para frente, começando do nº 100, de 7
em 7. Pare depois da 5ª resposta. Alternativamente peça para soletrar “mundo”
ao contrário.
Memória (1 ponto para cada resposta correta)
3 (0) Peça que ele repita as três palavras. Dê um ponto para cada resposta
correta.
Linguagem
9 (5) – Mostre um lápis e um relógio, peça-lhe que os nomeie (2 pontos).
- Peça que repita o seguinte: “nem aqui, nem ali, nem lá” (1 ponto).
- Dê as 3 seguintes ordens: “Pegue esta folha de papel com a mão direita, passe
a folha para a mão esquerda, coloque a folha no chão” (3 pontos).
- “Leia e faça o que está escrito”: “FECHE OS OLHOS” (1 ponto).
- “Escreva uma frase” (1 ponto).
- “Copie este desenho” (1 ponto).
Total de pontos: (19/30) Avaliação do nível de consciência:
Alerta ( X ) sonolento ( ) prostrado ( ) coma ( )
Avaliadora: FMP - Terapeuta Ocupacional
Observação: As respostas que o sujeito A acertou estão destacadas em itálico.
Mini-exame do Estado Mental do sujeito B
Máximo Orientação (1 ponto para cada resposta correta)
5 (1) Em que ano, mês, dia da semana, dia do mês, estação do ano estamos? 5 (2) Onde estamos: estado, país, cidade, rua, local?
Registros (1 ponto para cada resposta correta)
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3 (3) Nomeie 3 objetos: diga palavra por palavra, devagar; peça ao paciente
que repita as três palavras. Então repita todas novamente, para que ele aprenda.
Pente, Rua, Azul.
Atenção e Cálculo (1 ponto para cada resposta correta)
5 (2) Peça ao paciente que conte de trás para frente, começando do nº 100, de 7
em 7. Pare depois da 5ª resposta. Alternativamente peça para soletrar “mundo”
ao contrário.
Memória (1 ponto para cada resposta correta)
3 (0 ) Peça que ele repita as três palavras. Dê um ponto para cada resposta
correta.
Linguagem
9 (8) - Mostre um lápis e um relógio, peça-lhe que os nomeie (2 pontos).
- Peça que repita o seguinte: “nem aqui, nem ali, nem lá” (1 ponto).
- Dê as 3 seguintes ordens: “Pegue esta folha de papel com a mão direita, passe a folha
para a mão esquerda, coloque a folha no chão” (3 pontos).
- “Leia e faça o que está escrito”: “FECHE OS OLHOS” (1 ponto).
- “Escreva uma frase” (1 ponto).
- “Copie este desenho” (1 ponto).
Total de pontos: (16/30) Avaliação do nível de consciência:
Alerta ( X ) sonolento ( ) prostrado ( ) coma ( )
Avaliadora: FMP - Terapeuta Ocupacional
Observação: As respostas que o sujeito B acertou estão destacadas em itálico.
Tomografia computadorizada de crânio do sujeito A
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Tomografia computadorizada de crânio do sujeito B
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REFERENCIAÇÃO: ASPECTOS DISCURSIVOS
Fabiano de Oliveira Moraes∗
Virgínia Beatriz Baesse Abrahão∗∗
Resumo
O trabalho objetiva, a partir de uma abordagem discursiva da referenciação
com base em Foucault (1968, 1987, 2007, 2008), demonstrar o quanto o campo
de saber e os mecanismos de poder formam os objetos de discurso e definem
a materialização linguística. A pesquisa bibliográfica possibilitou uma
conceituação de referenciação com base nas concepções de discurso foucaultianas
e do seu método arqueológico e genealógico. O artigo apresenta o processo
através do qual o discurso, em seu aspecto histórico e material, estabelece os
objetos que podem ou não ser formados. Este trabalho tem por finalidade abrir
caminho para uma análise mais profunda dos aspectos discursivos mecanismo
de referenciação.
Palavras-chave: Referenciação. Discurso. Foucault.
Abstract: Using a discursive approach of referentiation based on Foucault
(1968, 1987, 2007, 2008), this study aims to demonstrate how much the field of
knowledge and the mechanisms of power form objects of discourse and define
the linguistic materialization. The bibliographical investigation allowed conceptualizing referentiation based on Foucault’s concept of discourse, as well as
his archeological and genealogical methods. At the same time, based on this
analysis, the study presents the process through which the discourse, in its historical and material aspect, establishes the objects of discourse that may or may
not be formed. This study aims at opening the way to a more in depth analysis
of discursive aspects of the referentiation mechanism.
Keywords: Referentiation. Discourse. Foucault.
Referência e referenciação1
1- Sobre a utilização dos termos ‘referência’ e ‘referenciação’, utilizaremos, para aludirmos ao
processo aqui estudado, o termo ‘referência’ no âmbito dos trabalhos de Blikstein (1985) e de
Possenti (2003), em consonância com a aplicação deste termo por tais autores. No entanto, ao
traçarmos considerações acerca de Koch (2002, 2006), Koch e Elias (2007), assim como de Mon�
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Este artigo tem por tema a referência como mecanismo de constituição discursiva
dos objetos de discurso através dos quais se pode acessar a ‘realidade’, em
concordância com Possenti (2003) quando este afirma que as ciências, ideologias
e culturas ‘criam’ seus próprios mundos e é através dessas ‘criações’ que se tem
acesso à realidade, e que as palavras e as coisas se relacionam.
No entanto, ao aludirmos ao processo que buscamos caracterizar neste trabalho
a partir dos fundamentos acerca do acontecimento discursivo apresentados
por Foucault (2007), faremos uso do termo referenciação, proposto por alguns
linguistas em substituição à noção de referência, com a intenção de que tal
processo não se confunda com a sua tradicional definição enquanto ligação entre
as palavras e as coisas, posto a noção de referenciação estabelecer a definição
desse processo como a ligação da palavra com os objetos não ‘do mundo’, mas
do discurso, e ao mesmo tempo estabelecer-se em uma ação de constituição
discursiva intersubjetiva e interdiscursiva dos objetos de discurso procedida no
ato da materialização linguística.
Tomamos como ponto de partida Blikstein (1985) com o intuito de apontarmos
para elementos neste autor que respaldem a base teórica e metodológica que
pretendemos estabelecer acerca da referência enquanto mecanismo que,
extrapolando os limites do texto, remete a aspectos discursivos, interdiscursivos,
históricos e epistemológicos. Buscamos no autor o conceito de referência a
partir da abordagem proposta pelo mesmo, que aponta para o nível perceptivocognitivo enquanto aspecto de suma importância na fabricação do referente,
atentando para a relevância, nesse processo, da prática social e da ideologia no
estabelecimento de estereótipos, a partir dos quais se efetiva linguisticamente a
fabricação dos objetos de discurso2.
dada e Dubois (2003), faremos uso, em concordância com estas autoras, do termo ‘referenciação’
para definir esta atividade enquanto ação do sujeito levando em conta tanto os aspectos cognitivos
quanto a intersubjetividade presente no contexto de seu uso. Mais adiante, no entanto, ao partir�
mos para considerações acerca desse fenômeno com base nos aspectos discursivos foucaultianos,
utilizaremos o termo referenciação. Com isso não estamos afirmando de nenhuma maneira que
esses termos sejam sinônimos ou que ambos aceitem um só conceito. Muito pelo contrário, res�
peitamos o uso feito por cada autor do termo que melhor lhe convém. Apenas optamos por utilizar
o termo ‘referenciação’ para definirmos o fenômeno que no âmbito deste trabalho é por nós estu�
dado e conceitualizado, segundo as razões apontadas acima.
2- Cabe ressaltar o fato de que a presença da concepção dialética entre práxis e linguagem de Blik�
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Blikstein (1985), ao aludir ao triângulo de Ogden e Richards que estabelece
em seus três vértices as relações entre significado, significante e referente (este
enquanto objeto do discurso), nos chama a atenção para o fato de o referente ter
sido expulso dos estudos linguísticos, nos quais se estabelece prioritariamente
a relação entre significante e significado, relegando-se, pois, o referente a um
espaço secundário, expulsando-o, dessa forma, de tais teorias. O descarte
do referente, afirma Blikstein (1985) teve como consequência a exclusão da
dimensão perceptivo/cognitiva das teorias linguísticas. O autor assegura que
nessa dimensão se estabelecem as raízes da significação e que as atenções dos
linguistas e semiólogos devem se voltar para o referente “[...]explorando o
mecanismo pelo qual a percepção/cognição transforma o ‘real’ em referente.”
(BLIKSTEIN, 1985, p. 46).
Portanto, a dimensão perceptivo/cognitiva se respalda nos traços semânticos
básicos desse processo, apontados por Blikstein (1985):
a) a captação ou percepção da realidade e b) o
reconhecimento, por ação da prática social; por isso,
sintetizamo-la com o nome de percepção-cognição.
Por outro lado, a expressão prática social funciona,
em nosso esquema, com o sentido já consagrado no
marxismo, ou seja, o de práxis: conjunto de atividades
humanas que engendram não só as condições de
produção, mas, de um modo geral, as condições de
existência de uma sociedade (Blikstein, 1985, p. 54,
grifos do autor).
Se a cognição, para o autor, depende de uma prática social, a percepção se
estabelece de maneiras distintas em diferentes culturas, posto que um indivíduo
não pode perceber a realidade de outro modo que não o estabelecido na cultura
na qual encontra-se inserido.
stein (BLIKSTEIN, 1985, p. 86) ao lado do antidialetismo de Foucault fez-se no sentido de tomar
por base um dos esquemas representativos elaborados por Blikstein, substituindo os elementos
que dialeticamente marcam sua concepção de referência pelos aspectos discursivos destacados
por Foucault que nos possibilitarão demonstrar esquematicamente o processo de referenciação
com base neste autor francês.
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Enfim, a prática social manipula ideologicamente a percepção/cognição na
dimensão pré-verbal ou para-verbal, nos ensinando a ver o mundo através dos
estereótipos ou ‘óculos sociais’ por meio da constituição de conteúdos num nível
sensorial e perceptivo, de uma forma independente da atuação e do contorno
efetivados pela linguagem linear.
No sentido de destacarmos uma importante abordagem teórico-metodológica
que toma por base alguns dos aspectos delineados por Blikstein (1985), dentre
outros autores, apresentamos alguns pontos da teoria da referenciação em:
Koch (2002, 2006) e em Koch e Elias (2007). Nessas obras, as autoras destacam
e relevam a constituição discursiva da atividade da referenciação, assim como
apontam para aspectos linguístico-textuais de referenciação que possibilitam a
progressão textual.
Koch e Elias (2007) conceituam referenciação e progressão referencial, defendendo
o uso do termo referenciação para aludir a tal atividade intersubjetiva.
Denomina-se referenciação as diversas formas de
introdução, no texto, de novas entidades ou referentes.
[…] A referenciação constitui, portanto, uma atividade
discursiva. […] as formas de referenciação são escolhas
do sujeito em interação com outros sujeitos, em
função de um querer-dizer. Os objetos-de-discurso
não se confundem com a realidade extralinguística,
eles a (re)constroem no próprio processo de interação.
(KOCH e ELIAS, 2007, p. 123-124, grifos das autoras)
Koch (2002) afirma ainda que a reelaboração dos dados sensórios com o fim de
que se apreenda e compreenda efetiva-se no cérebro e dá-se em nível discursivo
obedecendo a restrições definidas não apenas por condições culturais, sociais,
históricas, mas também por condições de processamento provenientes do uso
da língua.
Koch e Elias (2007) e Koch (2002, 2006) apontam, portanto, para o caráter
discursivo da referenciação, definindo, delineando ou conceituando tais
aspectos discursivos. No entanto, não obstante as autoras afirmem que a
referenciação constitui uma atividade discursiva e que a reelaboração cerebral
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de dados sensoriais se dá essencialmente no discurso obedecendo a restrições
socioculturais, históricas, enfim, aos ‘óculos sociais’, efetivando-se, o referido
processo, numa dimensão perceptivo/cognitiva determinada pela prática
social (como aponta Blikstein (1985)) é perceptível, nesses trabalhos – devido
(assim supomos) ao importante foco e direcionamento textual, interacional e
cognitivista tomado pelas autoras – a ausência de elementos que (para além do
fenômeno textual e dos mecanismos linguísticos) indiquem o engendramento
discursivo a que se submete a dimensão semiológica oculta no âmbito da
práxis.
Os textos de Koch (2002, 2006) também apontam, em algumas de suas
importantes colocações, para Mondada e Dubois (2003). Koch (2002, 2006)
afirma, por exemplo, que Mondada e Dubois (2003) defendem a posição de que a
referenciação constitui uma atividade discursiva e de que os objetos de discurso
são dinâmicos, pois após serem introduzidos é possível modificá-los, desativálos, reativá-los, transformá-los, recategorizá-los, de maneira que os sentidos
sejam construídos e reconstruídos por esta via no decorrer da progressão
textual. Mais adiante, Koch (2002, 2006), remete-nos ao artigo de Mondada e
Dubois (2003) ao referir-se à ideia de substituição da noção de referência pela
noção de referenciação:
A discursivização ou textualização do mundo por via
da linguagem não se dá como um simples processo
de elaboração de informação, mas de (re)construção
do próprio real. Ao usar e manipular uma forma
simbólica, usamos e manipulamos tanto o conteúdo
como a estrutura dessa forma. E, desse modo, também
manipulamos a estrutura da realidade de maneira
significativa. E é precisamente neste ponto que reside
a idéia central de substituir a noção de referência pela
noção de referenciação, tal como postulam Mondada
e Dubois (1995).3 (KOCH, 2006, p. 81)
Mondada e Dubois (2003), tal como Koch (2002, 2006), consideram a importância
dos aspectos cognitivos e intersubjetivos no contexto da construção de objetos
de discurso e na categorização. As autoras afirmam que as categorias de que
3- A obra a que se refere Koch (2002 e 2006) como Mondada e Dubois (1995) corresponde à
mesma a qual nos referimos como datada de 2003.
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lança mão o sujeito que profere o discurso são predominantemente instáveis
e que sua estabilidade se dá, não pela ligação entre as palavras e as coisas,
mas pelo estabelecimento social de estereótipos, propondo uma concepção de
referenciação a partir da qual “[...] os sujeitos constroem, através de práticas
discursivas e cognitivas social e culturalmente situadas, versões públicas do
mundo.” (MONDADA E DUBOIS, 2003, p. 17).
Tanto as categorias quanto os objetos de discurso, através dos quais os sujeitos
percebem o mundo, possuem uma instabilidade constitutiva, não sendo, os
primeiros, nem preexistentes, nem dados, mas sim elaborados na atividade
discursiva denominada referenciação e transformados com base no contexto
e nas negociações interativas. Não obstante seu caráter instável, as categorias,
segundo as autoras, são passíveis de estabilização na forma de estereótipos
provenientes de protótipos, os quais, quando compartilhados entre muitos
indivíduos e com ampla distribuição social, alcançam um nível de estabilidade.
“Tal protótipo compartilhado evolui para uma representação coletiva chamada
geralmente de estereótipo.” (MONDADA e DUBOIS, 2003, p. 42).
Ao discorrerem acerca da instabilidade das categorias, Mondada e Dubois
(2003, p. 29) asseguram que “no seio das atividades discursivas, a instabilidade
se manifesta em todos os níveis da organização linguística, indo das construções
sintáticas às configurações de objetos de discurso”, contudo em seu texto não
encontramos definições específicas acerca do que tais pesquisadoras entendem
por discurso ou discursividade. As autoras apontam, por exemplo, para variações
sincrônicas e diacrônicas das categorias, afirmando mesmo que a estabilidade
das mesmas está relacionada muito mais aos discursos sócio-históricos e aos
procedimentos culturalmente ancorados do que a alguma ligação entre as
palavras e as coisas, tangenciando, neste breve comentário, a ideia de que o
estabelecimento dos objetos de discurso e das categorias se dá em conformidade
a aspectos mais profundos pré-estabelecidos no nível dos elementos discursivos
– sociais, culturais e históricos –, no entanto não traçam considerações mais
aprofundadas sobre esse tema. Por outro lado, podemos destacar de tal obra
considerações relevantes no que tange ao domínio interacional e cognitivo da
atividade de referenciação.
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A referenciação sob um enfoque discursivo
Com base nos dados acima apresentados a partir de Blikstein (1985), Koch (2002,
2006), Koch e Elias (2007) e Mondada e Dubois (2003), destacamos a importância
de se definir que aspectos discursivos poderiam estar envolvidos no processo de
referenciação dentro da abordagem por nós proposta. Consideramos necessário
(a esta exata altura do presente trabalho) para que nosso trabalho não careça de
tais conceitos, definir discurso e os elementos a este relacionados, para então
aferirmos a constituição discursiva da referenciação a partir de tais elementos.
Para procedermos a essa tarefa, iniciaremos por relacionar os conceitos de língua,
discurso, intersubjetividade e interdiscursividade tomando por base o conceito
de língua enquanto instituição, apresentado por Saussure (2003) e retomado
por Pêcheux (1997), lançando mão de Benveniste (1989, 1995), assim como de
Foucault (2008) e de outras obras complementares, observando de que maneira
a ênfase à língua em Saussure (2003), no início do século XX, deu lugar à teoria
do discurso a partir de meados deste mesmo século. O discurso será tomado
como eixo central para alinhavarmos o diálogo entre as concepções teóricas
dos autores e, a partir destas, relacionarmos os conceitos ora apresentados,
para, enfim, apontarmos para a presença de tais aspectos no mecanismo da
referenciação.
Da língua ao discurso
A língua, estabelecida por Saussure (2003) como objeto científico homogêneo
da Linguística enquanto ramo da Semiologia, é por ele definida como: uma
parte separada e diferenciada da fala, e; uma instituição social. Esta definição
excluiu tanto a fala quanto as instituições “não-semiológicas” do processo
científico da Linguística. As consequências dessa dupla exclusão deram origem
a complementos que reforçam e até mesmo se contrapõem às ideias de Saussure
(2003), apontando, aos poucos, para as teorias acerca do discurso.
Por exemplo, para que se conceba uma frase como viável ou não, é necessária
a observação de sua referência ao mecanismo discursivo que possibilitou sua
existência num dado enunciado. Partindo de tal indagação, Pêcheux (1997)
dá o nome de processo de produção ao conjunto de mecanismos discursivos que
produzem um discurso em um determinado contexto, o qual supõe duas ordens
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de estudo: um pelo viés das variações semânticas, retóricas e pragmáticas sobre
o “fundo invariante” da língua estabelecido pela sintaxe; outro das condições
e do processo de produção do discurso, reconhecidos no papel que se dá ao
contexto e à situação de produção enquanto elementos que possibilitam sua
formulação e compreensão. Para que este aspecto seja mais bem elucidado,
torna-se necessário averiguar algumas críticas feitas por Pêcheux (1997) à divisão
proposta por Saussure (2003) entre a língua – enquanto instituição social – e as
outras instituições humanas.
Segundo Pêcheux (1997), sociólogos contemporâneos de Saussure já
apresentavam o conceito de instituição como conjunto de ideias e atos mais ou
menos impostos aos indivíduos, o que possibilitou a distinção entre a função
aparente de uma instituição e o seu funcionamento implícito, fazendo cair por
terra a ilusão, que aparentemente parece haver afetado Saussure, de que as
instituições são funções cuja finalidade encontra-se claramente explícita.
Portanto, como resultado do que precede, a língua se constitui como sistema
sociológico indissociável de um mecanismo em funcionamento que determina
regras de caráter nem estritamente individuais nem abrangentemente
universais, mas derivadas de uma estrutura político-ideológica situada em uma
dada formação social, já “[...] um discurso é sempre pronunciado a partir de
condições de produção dadas […]” (PÊCHEUX, 1997, p. 77), situando o sujeito
no interior da relação de forças opostas num dado campo político-ideológico.
Desta forma, Pêcheux (1997, p. 78) busca “[...] definir os elementos teóricos
que permitem pensar os processos discursivos em sua generalidade [...]”, e
apresenta os fenômenos linguísticos superiores à frase com um funcionamento,
não estritamente linguístico, definido a partir das condições de produção dos
discursos. E supõe “[...] impossível analisar um discurso como um texto, isto
é, como uma sequência linguística fechada sobre si mesma [...] é necessário
referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das
condições de produção.” (PÊCHEUX, 1997, p. 79).
Foucault (2008, p. 8), por sua vez, relacionando o discurso à instituição, corrobora
esta tese ao afirmar:
[...]suponho que em toda sociedade a produção do
discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,
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organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que têm por função conjurar seus
poderes e perigos, dominar seu acontecimento
aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade
(Foucault, 2008, p. 8).
Foucault (2008) enumera procedimentos institucionais de controle e exclusão
dos discursos. Dentre estes, são apresentados três procedimentos de exclusão
externos que se cruzam, se reforçam e se compensam: a interdição, a rejeição e
a vontade de verdade.
A interdição, para Foucault (2008), delimita quem pode falar, o que pode ser
dito e de onde se pode proferir determinado discurso. Este, por sua vez, é o que
manifesta – ou oculta – o desejo, e, ao mesmo tempo, é o próprio objeto do desejo.
“[...] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que, e pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar.” (FOUCAULT, 2008, p. 10, grifo nosso); a rejeição silencia, através de
um processo de exclusão que diferencia os sensatos dos insensatos, aqueles que
se encontram fora da razão estabelecida e necessária para que seja proferido o
discurso, e; a vontade de verdade encontra-se mascarada pelo desenrolar da
verdade que ela quer, de modo que o discurso verdadeiro já não reconhece a
vontade de verdade que o perpassa. Esta última passa a ser ignorada enquanto
maquinaria que exclui os que a tentam contornar e colocá-la em questão.
A partir dos argumentos supracitados que definem o discurso, buscaremos
definições e conceituações de intersubjetividade em Benveniste (1995) seguidas
de considerações de Pêcheux (1997) e Foucault (2008) acerca desse mesmo
tema, para que mais adiante possamos acrescentar tais aspectos discursivos na
abordagem de referência proposta neste trabalho.
Intersubjetividade: do ‘eu’ e o ‘tu’ à rarefação do sujeito
Ao estabelecer a linguagem como aquilo que habilita a palavra a assegurar a
comunicação, Benveniste (1995) afirma categoricamente: “É na linguagem e
pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem
fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ‘ego’.”
(BENVENISTE, 1995, p. 286, grifos do autor). A subjetividade é estabelecida
pelo autor como a capacidade de: o locutor se propor enquanto ‘sujeito’, e; a
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linguagem, nesse processo, emergir no ser. O fundamento dessa subjetividade,
estabelecida no exercício da língua, é determinado pela ‘pessoa’ enquanto
status linguístico constituído pelo diálogo ao se experimentar, em contraste, a
consciência de si:
A linguagem só é possível porque cada locutor se
apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como
eu no seu discurso. Por isso, eu propõe outra pessoa,
aquela que, sendo embora exterior a mim, torna-se o
meu eco – ao qual digo tu e que me diz tu. A polaridade
das pessoas é na linguagem a condição fundamental
[...] (BENVENISTE, 1995, p. 286, grifos do autor)
Esta polaridade, por sua vez, não tem o significado de igualdade, mas de
complementaridade.
Benveniste (1995) afirma ainda que o discurso, em sua instância, constitui todas
as coordenadas que fundamentam o sujeito. E conclui o seu texto apresentando
a intersubjetividade como condição única a possibilitar a comunicação
linguística.
Pêcheux (1997), por sua vez, faz alusão à intersubjetividade enquanto elemento
constitutivo de qualquer discurso, ao dizer que o orador - sem abandonar o
papel de orador – experimenta, de uma certa forma, o lugar do ouvinte,
imaginando e precedendo o ouvinte onde este o espera, antecipando, em alguns
casos, até mesmo se o ouvinte é capaz de prever se o orador sabe onde o ouvinte
o espera.
Foucault (2008), por outro lado, apresenta a intersubjetividade através do seu
conceito de rarefação e descentramento do sujeito. Para compreendermos este
conceito, necessário se faz que busquemos, mais adiante, algumas considerações
em Foucault (1968, 2007).
Foucault (1968) anuncia, em sua arqueologia das ciências humanas, o
descentramento do homem a partir da constituição deste enquanto objeto das
ciências humanas positivistas e, ao mesmo tempo, sujeito do saber. O homem,
estabelecido enquanto sujeito vivo, falante e trabalhador fadado à finitude,
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passa a ser alvo de um poder, estabelecido em práticas como a psiquiatria, a
medicina, a economia, a mídia, como afirma Navarro-Barbosa (2004). Para ele,
Foucault anuncia não o desaparecimento do sujeito, mas de uma subjetividade
fundadora. Para o autor francês, portanto, o sujeito emerge como uma dispersão
por ser uma pluralidade de posições e, ao mesmo tempo, uma descontinuidade
de funções.
A rarefação do sujeito é reforçada por Foucault (2008) quando o mesmo apresenta
os procedimentos que determinam essa rarefação: rituais, sociedades do discurso,
doutrinas e apropriação social dos discursos. Para o autor, enquanto os rituais
definem a qualificação necessária aos indivíduos que falam, determinando, a
estes, papéis pré-estabelecidos, as sociedades do discurso conservam e produzem,
a partir de regras, espaços fechados de circulação e distribuição dos discursos.
As doutrinas, por sua vez, difundem-se através da partilha de um conjunto
de discursos ao requererem como condições a produção desses discursos,
o reconhecimento de verdades pré-estabelecidas e o acatamento de certas
regras, sujeitando os sujeitos que falam aos discursos e os discursos ao grupo
de indivíduos que falam. A apropriação social dos discursos, por fim, estabelece
politicamente a manutenção ou a modificação da apropriação de discursos,
com os saberes e poderes inerentes aos mesmos (o último dos procedimentos é
exemplificado pelo autor através da educação).
Estes procedimentos, como afirma Foucault (2008), dão ao discurso o atributo
de acontecimento discursivo e não de criação, apontando (ao lado dos
procedimentos internos de exclusão que serão apresentados adiante) tanto para
os processos de intersubjetividade subjacentes às práticas discursivas, quanto
para os mecanismos de interdiscursividade.
Cardoso (2003) afirma a esse respeito:
Os elementos do interdiscurso são reinscritos no
discurso do sujeito sob a forma de ‘pré-construído’,
que impõe a ‘realidade’ sob a forma da universalidade
(‘mundo das coisas’). Numa operação de articulação,
o falante seleciona no interior de uma formação
discursiva formas e sequências que se encontram
em relação de paráfrase. Pelo viés dessa operação de
articulação, é ocultada do sujeito a sua subordinação
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à formação discursiva que o determina. Ele ‘esquece’
a relação com a formação discursiva. Essa operação
de ‘selecionar’ dá ao sujeito a ilusão de que o
sentido do seu discurso se dá pela co-referência dos
elementos selecionados, ou seja, no intradiscurso,
e não pela referência a uma formação discursiva, por
sua vez determinada pelas formações ideológicas.
‘Esquecendo’ a relação com a formação discursiva, o
sujeito tem a ilusão da novidade, de que está realmente
criando coisas novas. O processo de referência, que se
dá com relação a uma formação discursiva, é apagado
de tal forma que o que de fato aparece como evidência
é o processo de co-referência no interior do discurso.
[...]
Com o advento da enunciação, a referência foi
reintegrada enquanto um valor legítimo da
linguística, como parte integrante da enunciação,
mas, […] a enunciação foi pensada como ato de um
sujeito-locutor, fora das coordenadas históricas do
discurso, o que acabou por comprometer o conceito
de referência adotado (Cardoso, 2003, p. 132, grifos
da autora).
Interdiscursividade
Os procedimentos de rarefação do sujeito e de exclusão internos, apresentados
por Foucault (2008), apontam tanto para a pluralidade de posições e
descontinuidade de funções do sujeito, como para a relação entre enunciados
dentro de uma prática discursiva e a relação desses enunciados com elementos
de ordem extra-linguística. São três os procedimentos internos de exclusão
apresentados pelo autor: comentário, autor, e disciplinas.
Por ‘comentário’, Foucault (2008) entende uma retomada de outros textos que
permite a construção de novos discursos. Este comentário é limitado pelo texto
primário que lhe deu origem e desloca-se deste, embora nunca se lhe escape.
Consiste em dizer além, falando o mesmo, “dizer pela primeira vez aquilo que,
entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto,
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não havia sido jamais dito” (FOUCAULT, 2008, p. 25). No comentário, o acaso
dá lugar à repetição. Com relação ao segundo procedimento interno, Foucault
(2008), ao afirmar que o discurso cria-se a si mesmo, nega o ‘autor’ como
indivíduo falante, mas o apresenta como “princípio de agrupamento do discurso,
como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”
(FOUCAULT, 2008, p. 26). A ‘disciplina’, por fim, opõe-se ao ‘comentário’ ao
formular novas proposições, e ao ‘autor’ ao construir, independente dele, as
normas do jogo. Ela não é a soma das verdades, embora delineie o horizonte
teórico em que uma proposição pode se inscrever. “A disciplina é um princípio
de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma
identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras”
(FOUCAULT, 2008, p. 36).
Acerca da interdiscursividade, Pêcheux (1997), por seu lado, defende que o
discurso
[...] deve ser remetido às relações de sentido nas quais é
produzido: assim, tal discurso remete a outro, frente
ao qual é uma resposta direta ou indireta, ou do
qual ele ‘orquestra’ os termos principais ou anula os
argumentos. Em outros termos, o processo discursivo
não tem, de direito, início: o discurso se conjuga
sempre sobre um discurso prévio, ao qual ele atribui
o papel de matéria-prima, e o orador sabe que quando
evoca tal acontecimento, que já foi objeto de discurso,
ressuscita no espírito dos ouvintes o discurso no qual
este acontecimento era alegado, com as ‘deformações’
que a situação presente introduz e da qual pode tirar
partido (Pêcheux, 1997, p. 77).
Pêcheux faz alusão ao que poderíamos apontar como interdiscurso em sua obra
Papel da memória, conforme podemos observar em Navarro-Barbosa (2004, p.
120): “[...] a ‘memória discursiva’ deve ser compreendida como um conjunto de
traços discursivos que acionam a memória mítica, a memória social inscrita em
práticas e a memória que o historiador constrói.” A definição pecheautiana de
memória discursiva, apresentada por Navarro-Barbosa (2004), pode se assomar
à definição de Cardoso (2003) que aponta para o papel da memória discursiva no
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processo enunciativo. Tal conceito é pela autora tomado como “[...] estruturação
de materialidade discursiva complexa e estendida numa dialética de repetição e
de regularização.”(CARDOSO, 2003, p. 133). Apontando para Pêcheux, em sua
conceitualização de tal termo, a autora afirma que o novo surge, nesse contexto,
da relação entre o pré-construído e o acontecimento. O conceito pecheautiano de
‘memória discursiva’, tal como o conceito foucaultiano de ‘arquivo’, sobre o qual
discorreremos adiante, apontam para o caráter discursivo da referenciação.
O aspecto interdiscursivo da referenciação é salientado na abordagem
linguístico-textual da referenciação quando Koch (2002) considera que, se a
referência processada no desenrolar do discurso constrói aquilo a que remete,
a discursivização se dá como processo de reconstrução do real. E como o uso
e a manipulação de uma forma simbólica coincidem com a manipulação da
realidade de forma significativa, os interlocutores, nesse processo, realizam
escolhas de acordo com os meios de expressão oferecidos pela língua. A autora
afirma que a interpretação de determinada expressão de caráter referencial
anafórico, pronominal ou nominal, consiste na localização do objeto ou de uma
informação introduzida anteriormente na ‘memória discursiva’. A respeito
dessa ‘memória discursiva’, ou ‘modelo textual’, Koch (2002, 2006) afirma,
remetendo a Apothelóz e Reichler-Béguelin, que tal ‘memória compartilhada’
é uma representação construída e alimentada pelo discurso. A autora afirma
ainda que:
Tal representação – a memória discursiva (Berrendonner
e Reichler-Béguelin, 1989) – tem recebido os mais
variados nomes na literatura, como, por exemplo,
esquematização (Grize, 1982), modelo de contexto (Bosch,
1983; Van Dijk, 1994, 1997), modelo de discurso (Cornish,
1987), fio ou corrente do discurso (Givón, 1983), modelo
mental (Johnson-Laird, 1983; Garnham e Oakhill,
1990), representação do discurso (Brown e Yule, 1983),
entre outras [...] (KOCH, 2006, p. 80)
Para melhor compreendermos sua definição, observamos que, relacionados à
construção da ‘memória discursiva’ ou modelo textual, Koch (2002) apresenta
três princípios de referenciação: a ativação, através da qual um novo referente
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textual é introduzido em uma locação cognitiva na ‘memória discursiva’ do
interlocutor; a reativação, pela qual um nódulo anteriormente introduzido é
novamente ativado na memória operacional; de-ativação, introdução de um novo
objeto-de-discurso, enquanto o objeto substituído, retirado de foco é deslocado
para um endereço cognitivo no ‘modelo textual’, ou seja, na ‘memória de
trabalho’.
Portanto, a partir dessa evidente distinção entre o termo ‘memória discursiva’
em tais autoras e o conceito pecheautiano de ‘memória discursiva’ ou o conceito
foucaultiano de ‘arquivo’, verificamos que a concepção de discurso defendida
por Koch (2002, 2006), Koch e Elias (2007) e Mondada e Dubois (2003) aponta
para algo que, ao nosso ver, encontra-se em um nível muito mais textual do que
propriamente (dentro da nossa abordagem) discursivo.
Entretanto, em outra passagem de seu trabalho, dando um enfoque que
consideraríamos mais próximo do que defendemos como discursivo no âmbito
da nossa abordagem, Koch e Elias (2007, p. 125) salientam pontualmente o
caráter interdiscursivo da referenciação, ao mesmo tempo em que apontam
para seu aspecto interacional:
Nessa construção intervêm não somente o saber
construído linguisticamente pelo próprio texto e os
conteúdos inferenciais que podem ser calculados
a partir dos elementos nele presentes (graças aos
conhecimentos lexicais, enciclopédicos e culturais e
aos lugares-comuns de uma dada sociedade), como
também os saberes, opiniões e juízos mobilizados no
momento da interação autor - texto - leitor (Koch e
Elias, 2007, p. 125).
Nesse mesmo viés, Mondada e Dubois (2003, p. 40) afirmam, a respeito da
memória, que “[...] os sujeitos possuem estruturas cognitivas, notadamente
memoriais, que permitem dar uma estabilidade a seu mundo, assim como
procedimentos sistemáticos para organizar a co-construção dos objetos de
discurso.”
Apontamos e salientamos essas diferenças de enfoque com a intenção de
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observarmos, a partir da abordagem discursiva por nós assumida, a relevância
de se atentar para tais elementos discursivos para uma melhor compreensão
acerca do fenômeno da referenciação.
Apresentados tais aspectos discursivos, retomamos a referência. Como pudemos
observar, a concepção discursiva da referência, apoiada nos aspectos discursivos
apresentados com base em Pêcheux (1997) e Foucault (2008), e exemplificada
metodologicamente por Cardoso (2003), não considera a referência como uma
relação direta das palavras com as coisas, com o mundo, com o ‘real’, mas
sim com um ‘real’ trabalhado e transformado pela linguagem, estabelecido
discursivamente. Devendo-se tal estabelecimento e construção (assim como
postulam Mondada e Dubois (2003), Koch (2002, 2006) e Koch e Elias (2007)) aos
aspectos cognitivos, intersubjetivos e contextuais, e constituindo tal mecanismo
(que por todas as razões aqui ressaltadas denominaremos ‘referenciação’ e não
mais ‘referência’), sem sombra de dúvidas, uma atividade discursiva.
Na próxima seção buscamos apontar para os elementos discursivos em Foucault
(2007) com a intenção de verificarmos se a sua concepção de formação de objetos
de discurso constitui o que poderíamos chamar de processo de referenciação.
Consideramos, ao desempenharmos essa tarefa, que o autor francês desenvolveu
uma teoria do discurso respeitável e tangenciou, senão esmiuçou, o processo de
referenciação, ao discorrer acerca da formação dos objetos de discurso.
O acontecimento discursivo em Foucault
Foucault (2007) norteia suas considerações acerca do discurso a partir da
necessidade premente de restituir a singularidade de acontecimento ao
enunciado, posto que o mesmo, enquanto acontecimento, não pode ser
esgotado totalmente pela língua, tampouco pelo sentido. Portanto, na tarefa de
descrever os fatos discursivos, faz-se necessário delinear outras unidades que
se relacionam com determinado enunciado em questão, efetivando uma análise
da coexistência, do funcionamento mútuo e da determinação recíproca entre
um dado enunciado e o seu jogo de relações. “Relações entre os enunciados
[…]; relações entre os grupos de enunciados assim estabelecidos […]; relações
entre enunciados ou grupos de enunciados e acontecimentos de uma ordem
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inteiramente diferente (técnica, econômica, social, política)” (FOUCAULT,
2007, p. 32).
Um conjunto de enunciados, afirma Foucault (2007), se estabelece, pois, quando
tais enunciados, mesmo que dispersos no tempo ou distintos em forma, se
referem a um mesmo objeto.
O campo dos acontecimentos discursivos, em
compensação, é o conjunto sempre finito e efetivamente
limitado das únicas sequências linguísticas que tenham
sido formuladas; elas bem podem ser inumeráveis e
podem, por sua massa, ultrapassar toda capacidade de
registro, de memória, ou de leitura: elas constituem,
no entanto, um conjunto finito. (FOUCAULT, 2007, p.
30)
Em virtude desses pressupostos, a análise arqueológica de Foucault (2007)
coloca uma questão fundamental acerca do acontecimento discursivo: “[...] como
apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar?” (FOUCAULT,
2007, p. 30).
Enfim, com o intuito de definir acontecimento discursivo, Foucault (2008)
afirma:
Certamente o acontecimento não é nem substância
nem acidente, nem qualidade, nem processo;
o acontecimento não é da ordem dos corpos.
Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito
da materialidade que ele se efetiva, que é efeito; ele
possui seu lugar e consiste na relação, coexistência,
dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos
materiais; não é o ato nem a propriedade de um
corpo; produz-se como efeito de e em uma dispersão
material. (FOUCAULT, 2008, p. 57-58)
Foucault (2007), dessa forma, isola o enunciado enquanto unidade do discurso
estabelecida entre a língua (enquanto sistema de regras), e o corpus (enquanto
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discurso pronunciado). O enunciado é, portanto, descrito em suas condições de
possibilidade e em seu caráter singular.
A partir do que consideramos acima, podemos inferir que a materialidade
é condição imprescindível para que uma sequência linguística possa ser
considerada um enunciado. O regime de materialidade do enunciado obedece,
dessa maneira, a ordem da instituição, assegura Navarro-Barbosa (2004,
p. 111): “[...] é a relação entre prática discursiva e instituição que responde
pela materialidade do enunciado, o que requer que se considere o discurso
não como um conjunto de signos, mas como uma prática que abarca regras
determinadas historicamente.” Cardoso (2003, p. 132), respalda tal visão: “A
formação discursiva é histórica e a materialidade de seus enunciados é de
ordem institucional.”
Por outro lado, o enunciado, enquanto acontecimento, está ligado tanto à escrita
ou à articulação da fala, ou seja, à materialização do mesmo, quanto a enunciados
que lhe são co-laterais, que o seguem e que o precedem, remanescentes, estes
últimos, no campo da memória, afirma Foucault (2007). Nesse contexto, é o
arquivo que define o que pode ser dito e o que permanece ou se esvai dentre os
tantos acontecimentos discursivos.
O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o
sistema que rege o aparecimento dos enunciados
como acontecimentos singulares. Mas o arquivo
é, também, o que faz com que todas as coisas ditas
[…] se agrupem em figuras distintas, se componham
umas com as outras segundo relações múltiplas, se
mantenham ou se esfumem segundo regularidades
específicas (FOUCAULT, 2007, p. 147).
O arquivo, ao mesmo tempo em que determina o sistema de enunciabilidade
do enunciado-acontecimento, é o sistema de funcionamento que atualiza, faz
emergir ou torna inertes o enunciado-coisa.
Para almejarmos uma maior compreensão do espaço no qual se constitui o
enunciado, apontamos em Foucault (2007) para a definição de formação discursiva
enquanto um sistema de dispersão no qual se pode detectar uma regularidade
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nos tipos de enunciação, conceitos, escolhas temáticas e objetos. O autor utiliza
o termo formação discursiva com o intuito de evitar palavras já carregadas de
condições inadequadas para designar essa dispersão “[...] tais como ‘ciência’, ou
‘ideologia’, ou ‘teoria’, ou ‘domínio de objetividade’” (FOUCAULT, 2007, p. 43).
As regras de uma formação, por sua vez, são as condições a que os elementos
de uma formação discursiva – sejam eles: tipos de enunciação, conceitos,
temas, objetos – estão submetidos às suas condições de existência, coexistência,
manutenção, modificação e desaparecimento.
No que tange à formação de objetos de discurso, Foucault (2008) afirma4:
As condições para que apareça um objeto de discurso,
as condições históricas para que dele se possa “dizer
alguma coisa” e para que dele várias pessoas possam
dizer coisas diferentes, as condições para que ele se
inscreva em um domínio de parentesco com outros
objetos, para que possa estabelecer com eles relações
de semelhança, de vizinhança, de afastamento, de
diferença, de transformação – essas condições, como
se vê, são numerosas e importantes. Isto significa que
não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época;
não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir
os olhos, prestar atenção ou tomar consciência, para
que novos objetos logo se iluminem e, na superfície
do solo, lancem sua primeira claridade. […] o objeto
[…] existe sob as condições positivas de um feixe
complexo de relações.
Essas relações são estabelecidas entre instituições,
processos econômicos e sociais, formas de
comportamento, sistemas de normas, técnicas, tipos
de classificação, modos de caracterização; e essas
relações não estão presentes no objeto […] elas
não definem a constituição interna do objeto, mas
4- Com a intenção de apresentarmos uma definição da formação de objetos de discurso a partir
da prática discursiva, tomaremos, em Foucault (2007), algumas citações mais longas para que,
a partir das considerações diretas do autor acerca da formação de objetos de discurso, prática
discursiva e discurso, as quais ficarão registradas nesse trabalho, não tenhamos a infelicidade de
deturpá-las ou alterá-las sobremaneira, imbuídos que estaríamos da difícil tarefa de sintetizar suas
ideias em uma paráfrase.
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o que lhe permite aparecer, justapor-se a outros
objetos, situar-se em relação a eles, definir sua
diferença, sua irredutibilidade e, eventualmente, sua
heterogeneidade; enfim, ser colocado em um campo
de exterioridade (FOUCAULT, 2008, p. 49-51).
A formação de objetos de discurso se faz em meio a essa intrincada rede de
relações estabelecidas em um campo que abarca todos os seus elementos: a
prática discursiva. Para Navarro-Barbosa (2004, p. 108), “um dos aspectos que
marca a novidade da A arqueologia do saber em relação a As palavras e as coisas
é a substituição da noção de episteme pelo conceito de prática discursiva.” O
discurso é concebido como prática discursiva, encontrando-se, como nos mostra
a análise arqueológica de Foucault (1968, 2007) no espaço entre a estrutura:
as regras da língua, e o acontecimento: aquilo que é dito. Esse discursoacontecimento é o que funda e constitui a verdade. Ao conceituar prática
discursiva, o autor francês afirma:
Finalmente, o que se chama “prática discursiva” pode
ser agora precisado. Não podemos confundi-la com a
operação expressiva pela qual um indivíduo formula
uma idéia, um desejo, uma imagem; nem com a
atividade racional que pode ser acionada em um
sistema de inferência; nem com a “competência” de
um sujeito falante, quando constrói frases gramaticais;
é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre
determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em
uma dada época e para uma determinada área social,
econômica, geográfica ou linguística, as condições de
exercício da função enunciativa. (FOUCAULT, 2007,
p. 136)
Para compreendermos melhor a relação entre a formação de objetos de discurso
e a prática discursiva apontaremos para um trecho da obra na qual o autor
apresenta considerações acerca do ‘discurso’ lançando mão de ambos os
conceitos acima descritos.
[…] gostaria de mostrar que os ‘discursos’, tais como
podemos ouvi-los, tais como podemos lê-los sob a
forma de texto, não são, como se poderia esperar, um
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puro e simples entrecruzamento de coisas e palavras:
trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível
e colorida das palavras; gostaria de mostrar que o
discurso não é uma estreita superfície de contato,
ou de confronto, entre uma realidade e uma língua,
o intrincamento entre um léxico e uma experiência;
gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos,
que analisando os próprios discursos, vemos
desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre
as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de
regras, próprias da prática discursiva. Essas regras
definem não a existência muda de uma realidade,
não o uso canônico de um vocabulário, mas o regime
dos objetos. ‘As palavras e as coisas’ é o título – sério
– de um problema; é o título – irônico – do trabalho
que lhe modifica a forma, lhe desloca os dados e
revela, afinal de contas, uma tarefa inteiramente
diferente, que consiste em não mais tratar os discursos
como conjuntos de signos (elementos significantes que
remetem a conteúdos ou a representações), mas como
práticas que formam sistematicamente os objetos de que
falam. Certamente os discursos são feitos de signos;
mas o que fazem é mais do que utilizar esses signos para
designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à
língua e ao ato da fala. É esse ‘mais’ que é preciso fazer
aparecer e que é preciso descrever. (FOUCAULT, 2007, p.
54-55, grifo nosso)
O autor aponta para a obra As palavras e as coisas nas considerações supracitadas
acerca do ‘discurso’ ao considerar a seriedade e a ironia presentes em tal trabalho
que, deslocando os dados nos apresenta uma tarefa distinta a se proceder para
compreender o processo de estabelecimento dos objetos de discurso a partir das
práticas discursivas. No entanto, ao apontarmos para aspectos apresentados
por tal obra, não poderíamos deixar de ressaltar os processos de vigilância e
punição predominantes em cada período, pois, como ressalta Foucault (1987),
em Vigiar e punir, é esse mecanismo de poder o que produz tanto o sujeito
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quanto os objetos de discurso, enfim, é ele o que produz a realidade, efetivando,
portanto, a referenciação5:
O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma
representação ‘ideológica’ da sociedade; mas é
também uma realidade fabricada por essa tecnologia
específica de poder [...]. Temos que deixar de descrever
sempre os efeitos de poder em termos negativos:
ele ‘exclui’, ‘reprime’, ‘recalca’, ‘censura’, ‘abstrai’,
‘mascara’, ‘esconde’. Na verdade o poder produz; ele
produz realidade; produz campos de objetos e rituais
da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se
pode ter se originam nessa produção. (FOUCAULT,
1987, p.161)
Em suma, a referenciação, tomada neste artigo enquanto formação dos
objetos de discurso que estabelecem a relação entre o linguístico e o extralinguístico, apresenta-se, em Foucault (2007, 2008), no nível da determinação
da possibilidade de surgimento, transformação, dispersão e acumulação dos
objetos de discurso, constituídos nos enunciados dispostos em dada formação
discursiva, determinados historicamente a partir das relações estabelecidas
entre as instituições sociais, econômicas, políticas, pessoais e discursivas, numa
dada episteme, levando-se em conta os mecanismos de poder e vigilância e os
procedimentos de controle do discurso e de rarefação do sujeito que fala.
Referências
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de linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989.
______. Da subjetividade na linguagem. In: ______. Problemas de linguística
geral I. Campinas: Pontes, 1995.
5- Foucault (2007) não considera equivalentes os termos ‘objeto de discurso’ e ‘referente’. Em
tal obra, o autor francês afirma que se, por um lado, uma proposição estabelece relação com um
referente para que lhe possa ser atribuído um valor de verdade, por outro lado o objeto de discurso
é função derivada do enunciado. No entanto, consideraremos o ‘objeto de discurso’ de Foucault
equivalente ao ‘referente’ constituído discursivamente no processo de referenciação, com base
nos conceitos utilizados por Koch, Mondada e Dubois.
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A REPRESENTAÇÃO DAS ÁREAS DE LETRAS
E BIOLOGIA EM DUAS NOTÍCIAS DA MÍDIA
ONLINE
Fátima Andréia Tamanini-Adames1*
Resumo
Nesta pesquisa, inserida na abordagem da Análise Crítica do Discurso,
verificamos como a área de Letras está representada em relação à área de
Biologia, através da inclusão e exclusão de seus profissionais, em duas notícias
oriundas da mídia online. Para tanto, no nível ideacional (HALLIDAY, 2004), o
qual está relacionado a significados textuais representacionais (FAIRCLOUGH,
2000, 2001, 2003), investigamos elementos da estrutura semântica de dois textos
valendo-se da Teoria da Representação dos Atores Sociais proposta por van
Leeuwen (1997). Os resultados mostram que, enquanto a notícia de Biologia
traz vozes de cientistas, estes incluídos de diversas maneiras, a notícia de
Letras traz vozes não pertencentes à sua área do conhecimento, e seus legítimos
representantes sofrem uma exclusão radical. O maior interesse na circulação
de discursos voltados para a área biológica, bem como a grande inclusão de
seus profissionais na mídia, pode ser explicado pelo que Foucault chama de
“biopolítica”.
Palavras-chave: Mídia. Teoria da Representação dos Atores Sociais. Análise
Crítica do Discurso.
Abstract: In this research, inserted in the approach of Critical Discourse
Analysis, we verify how the field of Letters is represented in relation to the
field of Biology, through the inclusion and exclusion of its professionals, in
two news from online media. For this, at ideational level (HALLIDAY, 2004),
which is related to textual representational meanings (FAIRCLOUGH, 2000,
2001, 2003), we investigate elements of the semantic structure of the two texts
by making use of the theory of the Representation of Social Actors proposed
by van Leeuwen (1997). The results show that, while the Biology’s news brings
voices of scientists, these included in a variety of ways, the Letters’ news brings
1- * Mestre em Letras - Estudos Linguísticos - UFSM (Universidade Federal de Santa Maria, San�
ta Maria, RS, Brasil), pesquisadora UFSM/Labler (Laboratório de Ensino e Pesquisa de Leitura e
Redação, coordenado pela professora Dr. Désirée Motta-Roth) – [email protected].
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voices outside its field of knowledge, and its legitimate representatives undergo
a radical exclusion. The greatest interest in the circulation of speeches directed
to the biological field, as well as the large inclusion of its professionals in the
media, can be explained by that Foucault calls of “biopolitics”.
Keywords: Media. Theory of the Representation of Social Actors. Critical
Discourse Analysis.
Nota introdutória
Com o objetivo de verificar como são representadas áreas do conhecimento
diferentes, analisamos e comparamos duas notícias oriundas da mídia online,
uma referente à área de Letras e outra à área de Biologia. Segundo Guimarães
(2001b, p. 8), tanto a mídia quanto os órgãos do Estado têm uma concepção
de ciência que não legitima o campo das Ciências Humanas e Sociais, este
exemplificado nesta pesquisa pela área de Letras, refletindo na maciça presença
de artigos sobre saúde.
Conforme Dosse (2007a, p. 430), o filósofo Michel Foucault apontou que a
Biologia permitiu o surgimento da moderna medicina no século XIX, sendo
os temas médicos amplamente noticiados. Revel (2005, p. 26) diz que, para
Foucault, a noção de “biopolítica” aparece com o nascimento do Liberalismo,
entendido como um exercício governamental “que tende a maximizar seus
efeitos, reduzindo ao máximo seus custos”. Ao contrário, em se tratando da
área de Letras, Motta-Roth (2009a, p. 136) ressalta que, além de haver uma
“quase inexistência de notícias que popularizem conhecimento/ciência”, o
tema é diversamente tratado. Então, podemos perguntar como a área de Letras
sobrevive se não for divulgada e representada como outras áreas, a exemplo da
área das ciências biológicas.
Nesta análise, que se insere na abordagem da Análise Crítica do Discurso
(doravante ACD), investigamos e descrevemos elementos da estrutura
semântica de duas notícias oriundas da mídia online em termos de significado
textual representacional, baseando-se em Fairclough (2000, 2001, 2003) e na
Teoria da Representação dos Atores Sociais proposta por van Leeuwen (1997).
Assim, na primeira parte deste trabalho, definimos nosso campo de investigação:
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a representação das áreas de Letras e Biologia, através da inclusão e exclusão
de seus profissionais nas notícias. Na sequência, revisamos a teoria aplicada
ao corpus de análise, sistematizamos a metodologia e discutimos os dados
levantados.
Áreas de Letras e Biologia na mídia
De acordo com Charaudeau (2009, p. 114), a comunicação midiática realiza-se
em um duplo processo de “transformação”, acontecimento em estado bruto para
estado construído, e “transação”, construção da notícia em função da instância
receptora e reinterpretante, que se inscreve num “contrato que determina as
condições de encenação da informação, orientando as operações que devem
efetuar-se em cada um desses processos”.
Foucault é considerado por Fairclough (2001, p. 23-24) uma influência destacada
no desenvolvimento da análise do discurso como forma de análise social,
ressaltando a importância das tecnologias em formas modernas do poder e suas
manifestações na linguagem. Conforme Guimarães (2009, p. 1), o domínio da
ciência e da tecnologia tem hoje um lugar fundamental na vida das pessoas,
que esperam delas o bem-estar, a cura, a diversão, o trabalho, etc. e, conforme
Waldenfels (2006, p. 249), de acordo com Foucault, “trabalho, vida e linguagem”
são os três poderes da modernidade, normativos e determinantes da história
“da qual o homem tenta em vão tornar-se senhor”.
A “ordem do discurso”2 de um período particular possui uma “função normativa
e reguladora e coloca em funcionamento mecanismos de organização do real
por meio da produção de saberes, de estratégias e de práticas” (REVEL, 2005,
p. 37). Assim, conforme Fairclough (2001, p. 65-66), para Foucault, os objetos de
conhecimento são “as entidades que as disciplinas particulares ou as ciências
reconhecem dentro de seus campos de interesse e que elas tomam como alvos
de investigação”, como o discurso da mídia.
Segundo Fairclough (2001, p. 21), o “discurso” é amplamente utilizado no
trabalho de Foucault, “como referência aos diferentes modos de estruturação
2- Cf. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronun�
ciada em 2 de dezembro de 1970. 20ª ed. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. Campi�
nas: Edições Loyola, 2010.
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das áreas de conhecimento e prática social”. De acordo com Motta-Roth (1995,
p. 203), “a cultura constrói discursos em resposta a condições epistêmicas3
específicas da disciplina” e, para a autora (2009b), a sociedade só apoiará
pesquisas em áreas construídas discursivamente pela mídia como relevantes.
Conforme Guimarães (2009, p. 12-13), uma “concepção empirista” de ciência
tem sustentado tanto a posição do Estado quanto da mídia, fazendo com que
as Ciências Humanas não sejam pensadas como ciência, diz o autor (2001a, p.
76). Mas, para Motta-Roth (2009a, p. 133), qualquer área do conhecimento pode
ser representada cientificamente, “contanto que se garantam a qualidade e a
consistência da observação, da reflexão e da explanação do fenômeno”.
Foucault, de acordo com Revel (2005, p. 37), acredita que o discurso designa um
conjunto de enunciados que obedecem às mesmas regras de funcionamento,
mesmo que pertençam a campos de conhecimento diferentes, como o discurso
da área de Letras e o discurso da área de Biologia. Lima (2006, p. 104)
também cita Foucault (1992) ao escrever que “as categorias discursivas estão
intrinsecamente ligadas às categorias e esferas de poder”. Segundo Foucault
(1992, apud FAIRCLOUGH, 2001, p. 76), “analisar as instituições em termos
de poder significa entender e analisar suas práticas discursivas”. Entretanto,
para Foulcault (1992, apud WALDENFELS, 2006, p. 253-254), interessa não o
poder em si, mas seus “jogos” que se desenrolam no campo do saber, onde “as
práticas discursivas transformam-se em dispositivos do poder, um agregado
inseparável de poder e saber”.
Conforme Resende (2009, p. 38), a circulação de representações específicas – no
caso, através da instituição midiática - acerca de práticas e eventos facilita a
manutenção das relações de poder. Entretanto, a autora (2009, p. 29), entende que
“toda atividade social pressupõe condições estruturais sincrônicas e possui um
potencial para transformar diacronicamente essas mesmas condições”. Resende
(2009, p. 15) lembra que “uma característica relevante das práticas sociais é sua
articulação em redes relativamente estáveis”, organizadas nos diversos campos
da vida social, e Fairclough (2000, apud RESENDE, 2009, p. 15-16) diz que tanto
a articulação das práticas em rede quanto a organização dos campos são abertos
à mudança social.
3- Aqui, “a epistemologia é definida como o estudo da natureza e dos fundamentos do saber”
(RESENDE, 2009, p. 53).
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Assim, estudar as conexões entre diferentes discursos, como os discursos das
áreas de Biologia e de Letras da mídia, podem levar a “problematizar e por em
causa a separação entre ciências, disciplinas, saberes constituídos e fechados
em seus respectivos corpora e sistemas de regras específicas” (DOSSE, 2007b, p.
300-301).
Análise Crítica do Discurso: metafunção ideacional e
significados textuais representacionais
Para Resende (2009, p. 12), a ACD, partindo da identificação de problemas sociais
com facetas discursivas, objetiva “desvelar discursos que servem de suporte a
estruturas de dominação ou que limitam a capacidade de transformação dessas
estruturas”, sendo a Linguística “utilizada nos trabalhos de análise discursiva
como instrumento para a crítica social” (2009, p. 13).
Fairclough (2001, p. 22) entende que qualquer evento discursivo é considerado
simultaneamente texto, prática discursiva e prática social. Sendo assim, o autor
(2001, p. 27) considera necessário um método de análise multidimensional
para sua abordagem tridimensional. Fairclough, na ACD, vale-se da Gramática
Sistêmico Funcional (doravante GSF), a qual organiza a linguagem em torno de
seu Sistema de Dados do Contexto Sociocultural, formado pelas escolhas dos
falantes nas variáveis Campo, Modo e Relações, que, por sua vez, permitem as
outras escolhas no Sistema Linguístico, composto pelos Subsistema Semântico,
Subsistema Léxico-gramatical e Subsistema Fonológico, interrelacionados e
que, segundo Halliday (2004), formam uma “rede sistêmica”, determinando o
significado da língua.
Conforme Halliday, estas três variáveis do contexto são realizadas no Sistema
Linguístico por três metafunções da linguagem: textual, interpessoal e
ideacional, esta última possibilitando ao observador tirar partido da capacidade
da linguagem de representar a natureza da prática social. A metafunção
ideacional relaciona-se “aos modos pelos quais os textos significam o mundo e
seus processos, entidades e relações” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 92). Fairclough
(2001, p. 104) diz que, em termos do significado ideacional, a oração significa
um processo de um individuo particular agindo sobre uma entidade em que se
observa “um investimento ideológico diferente de outras formas de significar
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os mesmos eventos”.
Resende (2009, p. 32) escreve que, ao nível da abstração da estrutura discursiva,
correspondem os sistemas linguísticos, subsistemas e metafunções propostos
por Halliday (2004) na GSF e, ao nível da concretude do evento, correspondem
os textos produzidos nas interações. “A relação entre o potencial dos sistemas
linguísticos e os textos produzidos em eventos discursivos é mediada pelas
“ordens do discurso” (RESENDE, 2009, p. 33).
O termo “ordens do discurso” é entendido por Fairclough (2003, p. 220) como
configurações particulares de gêneros (que o autor relaciona à metafunção textual
hallidayana e a significados textuais acionais), estilos (que o autor relaciona à
metafunção interpessoal hallidayana e a significados textuais identitários)
e discursos (que o autor relaciona à metafunção ideacional hallidayana e a
significados textuais representacionais) que constituem o aspecto discursivo de
uma rede de práticas sociais e têm relativa estabilidade.
Fairclough (2003, p. 28) diz que os significados textuais acionais, identitários e
representacionais existem em relação dialética. O autor se baseia em Foucault
(1994, p. 318), o qual acredita em três tipos de relações: de ação sobre os outros,
de relações com os outros e de controle sobre as coisas.
Representação dos atores sociais
No nível ideacional, referindo-se à estrutura semântica do texto, van Leeuwen
(1997, p. 169) tenta responder a três questões básicas que se referem aos modos
pelos quais os atores sociais podem ser representados no discurso, às escolhas
que nos possibilita a língua para nos referirmos às pessoas e à maneira como
os atores sociais de relevo estão representados em um determinado tipo de
discurso. Desta forma, antes de analisar como se realizam linguisticamente, o
autor procura esboçar um “inventário sociossemântico” dos modos pelos quais
os atores sociais podem ser representados, e estabelecer a relevância sociológica
e crítica das categorias sociossemânticas, não linguísticas, propostas e divididas
em dois grandes grupos, de inclusão e de exclusão, chamadas de “pansemióticas”
(VAN LEEUWEN, 1997, p. 171), conforme o exposto no Quadro 1.
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Quadro 1: Categorias de representação dos atores sociais – adaptado de van
Leeuwen (1997, p. 219).
Segundo van Leeuwen (1997, p. 169), há duas razões importantes para proceder
deste modo. A primeira razão diz respeito à falta de biunicidade na língua, em
que Agente e Paciente são categorias sociológicas, enquanto que Ator e Meta
são categorias linguísticas. A Agência, como um conceito sociológico, revelase de grande importância na ACD: quais os atores sociais e em que contextos
estão eles representados sociologicamente como Agentes e como Pacientes? A
segunda razão se refere ao significado, que é inerente à cultura e não à língua,
e que “não pode ser associado a uma semiótica específica” (VAN LEEUWEN,
1997, p. 171).
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Conforme o autor, há várias formas de inclusão, como, por exemplo, a inclusão
por generalização, a inclusão por personalização com categorização, a inclusão
por impersonalização com objetivação/espacialização, e a inclusão por ativação
ou passivação dos atores sociais através do seu papel gramatical na oração (Ator,
Experenciador, Portador, Identificador, Característica, Dizente, Comportante,
Existente4).
Quanto às exclusões, estas categorias de representação podem ocorrer por
supressão, onde “não há qualquer referência aos atores” (Idem: Ibidem, p. 181),
através do apagamento do agente da passiva ou dos beneficiários, de orações
reduzidas funcionando como participantes, de nominalizações, de adjetivos, ou
de voz média (nem ativa, nem passiva), de acordo com van Leeuwen (1997,
p. 181-183). Também, as exclusões podem ocorrer por encobrimento, onde os
atores sociais “não estão tanto excluídos, mas sim pouco visíveis, empurrados
para segundo plano” (VAN LEEUWEN, 1997, p. 181), através de elipses e pelas
mesmas formas da exclusão por supressão, com a diferença de que aparecerem
em outro lugar do texto e são recuperáveis.
Metodologia
O corpus escolhido para este trabalho, o qual está inserido na abordagem da ACD,
foram duas notícias oriundas da revista Veja Online, cada uma representando
uma área do conhecimento diferente, uma a área de Letras e a outra a área
de Biologia, ambas datadas de 1 de novembro de 2010 e intituladas Português
é a matéria com pior resultado no Enem (< http://veja.abril.com.br/noticia/
educacao/portugues-e-a-materia-com-pior-resultado-no-enem >) e Álcool é
mais prejudicial para a sociedade que crack e heroína, diz cientista inglês (< http://
veja.abril.com.br/noticia/saude/alcool-e-mais-prejudicial-para-a-sociedade4- No nível ideacional, Halliday (2004, p. 168-305) escreve que, no Sistema de Transitividade,
cada proposição consiste de três elementos: o processo (elemento central), seu(s) participante(s), e
a(s) circunstância(s) (de caráter opcional). Os processos são em número de seis: materiais (em que
o Ator realiza a ação e o Meta é o participante a quem o processo é dirigido), mentais (os partici�
pantes são o Experienciador e o Fenômeno, elemento percebido pelo Experienciador), relacionais
(os participantes são Portador e Atributo, Identificador e Identificado, Possuidor e Possuído, ou
Característica e Valor), comportamentais (participantes são Comportantes), verbais (participantes
o Dizente, o Dito, o Receptor, o Alvo, a Verbiagem) e existenciais (apenas um tipo de participante,
o Existente).
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que-crack-e-heroina-diz-cientista-ingles >), respectivamente.
Nesta análise, investigamos e descrevemos elementos da estrutura semântica de
dois textos, com base na Teoria da Representação dos Atores Sociais proposta
por van Leeuwen (1997), no nível ideacional, este relacionado por Fairclough
(2003) a significados textuais representacionais. Para tanto, verificamos a
maneira como os atores sociais de relevo apresentaram-se incluídos por ativação
do seu papel gramatical na oração ou excluídos por encobrimento e supressão
em ambas as notícias.
Análise e interpretação dos resultados
Nesta pesquisa, os passos analíticos incluem, primeiramente, a verificação dos
atores sociais de destaque nos dois textos a partir do Tema5 de cada oração.
Posteriormente, verificamos como estes atores sociais de relevo estão incluídos
ou excluídos nas notícias das áreas de conhecimento de Letras e Biologia.
No caso das exclusões, analisamos a exclusão por supressão com apagamento
do agente da passiva [ES1], a exclusão por supressão com apagamento do
beneficiário [ES2], a exclusão por supressão com nominalização [ES3] e a
exclusão por encobrimento [EE]. Quanto às inclusões, o foco analítico está na
inclusão de atores sociais por ativação através do seu papel gramatical na oração
[IA], baseando-se na preponderância deste tipo de inclusão em ambos os textos,
conforme o mostrado no Quadro 2.
Português [IA] é a matéria com pior resultado no Enem
Nenhum colégio [IA] no país atingiu média de 700 pontos nessa parte do
exame
O desempenho [EE] na área de Linguagens e Códigos [IA], que mede as
habilidades dos jovens em língua portuguesa e interpretação de textos, puxou
para baixo a média final das escolas no Exame Nacional do Ensino Médio
(Enem) de 2009. Essa parte [IA] do exame [IA] foi a única em que nenhum colégio
no país atingiu média de 700 pontos, numa escala de 0 a 1.000. Entre as escolas
da capital, o melhor desempenho [EE] ficou com o Colégio Vértice, com 686,70
�����������������������������������������������������������������������������������������������
- “Tema é tudo o que aparece em posição inicial na oração, até o final do primeiro elemento ex�
periencial (participantes, processo verbal ou circunstância)” (VENTURA; LIMA-LOPES, 2002,
p. 3).
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pontos.
Nas outras grandes áreas do conhecimento, a maior média dos colégios [IA]
ficou entre 700 e 800 pontos. Com a maior média geral do país [EE] o Vértice [IA]
encabeça as notas das escolas da capital em Matemática, Ciências da Natureza e
Ciências Humanas. Em redação, a melhor média [EE] foi do Colégio Batista. A pontuação máxima abaixo de 700 em linguagens [EE] é considerada [ES1]
“preocupante” e um reflexo da chamada “geração Y”, educada [ES1] com a ajuda
da internet. Para gestores de escolas, com os jovens cada vez mais conectados
em redes sociais, a linguagem [IA] desenvolvida [ES1] no mundo virtual [IA] se
distanciou da língua culta, empobrecendo o vocabulário [ES2] e prejudicando a
capacidade de interpretar textos mais longos [ES2].
“Está tudo [IA] muito abreviado, curto, e eles [IA] deixam de produzir
textos. É tudo [IA] copiado [EE]: control-C, control-V”, diz Maria Martinez, diretora
pedagógica do Batista Brasileiro [IA]. “Não aceitamos trabalhos copiados da internet
[ES1]. As próprias escolas [IA], às vezes, entregam material pronto para o aluno,
que só tem o trabalho de responder [EE], não de elaborar o texto” [ES1]. Diretor
do Vértice, Adílson Garcia [IA] reconhece que há dificuldade [ES3] do jovem em
adquirir hábitos de leitura.
o 2: Inclusões por ativação do papel gramatical e exclusões por encobrimento e
supressão de atores sociais nas notícias das áreas de Letras e de Biologia.
Álcool [IA] é mais prejudicial para a sociedade que crack e heroína, diz cientista
inglês [IA]
Estudo [IA] leva em conta os danos individuais e às outras pessoas
O álcool [IA] foi considerado [EE] a droga mais perigosa da Grã-Bretanha,
à frente até do crack e da cocaína, segundo um ranking [IA] que leva em conta, além dos prejuízos pessoais, os danos que ela pode provocar na sociedade.
O estudo, publicado nesta segunda-feira pelo periódico médico Lancet [IA], foi
realizado pelo Comitê Científico Independente sobre Drogas [IA], liderado pelo exconsultor governamental David Nutt.
Nutt foi demitido [ES1] ano passado após fazer declarações contra a políSABERES Letras
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tica antidrogas do governo, quando disse [EE] que andar de cavalo [ES3] era mais
perigoso que ingerir [ES3] ecstasy, uma droga sintética bastante consumida na GrãBretanha [EE]. Também afirmou que a maconha fora promovida [EE] à droga
classe B, a segunda classe mais perigosa segundo o Conselho Britânico sobre
Abuso de Drogas, por causa de uma “decisão política” [ES3]. No estudo publicado nesta segunda-feira, Nutt [IA] e seus colegas [IA]
classificam as drogas pelos danos individuais, que vão desde a morte até danos
mentais e perda dos relacionamentos, e pelos danos que podem provocar às outras pessoas. A pontuação [EE] vai de zero (inofensivo) até 100 (mais perigoso).
No ranking geral, o álcool [IA] ficou em primeiro lugar, com 72 pontos
— a heroína [IA] ficou com 55 pontos, o crack com 54, a cocaína [IA] ganhou 27
pontos, a maconha [IA] ficou com 20, o ecstasy e os anabolizantes com nove e os
cogumelos alucinógenos com cinco. Se levados em conta apenas os danos individuais, as drogas mais perigosas são o crack [IA], a heroína [IA] e metanfetamina
[IA]. A [EE] mais danosa aos outros foi o álcool [IA], seguida pela heroína e o
crack.
Os autores do estudo [IA] escreveram que a classificação [ES3] atual é ultrapassada e é preciso chamar a atenção [ES2] de forma agressiva para os perigos do
álcool, em prol da saúde pública. Pelo sistema britânico de classificação atual,
o ecstasy [IA] é considerado uma droga classe A, tão perigoso quanto metanfetamina.
Nutt [IA] é autor de outro estudo, publicado também no Lancet em 2007,
afirmando que álcool e cigarro eram mais prejudiciais [ES2] que a maconha e o
LSD.
O Tema das notícias está claro desde o título: o da notícia da área de Letras
é Português, área do conhecimento que aparece mais em posição temática nas
orações (área de Linguagens e Códigos), juntamente com profissionais da área de
Educação (gestores de escola, diretora pedagógica de uma escola, diretor de uma
escola) e alunos do Ensino Médio; o da notícia da área de Biologia é o álcool,
considerado uma droga e assim bastante reiterado, juntamente com profissionais
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da própria área de Biologia (cientistas). Assim, observa-se que dividem,
principalmente, a posição temática: na notícia da área de Letras, Português,
estudantes do Ensino Médio e profissionais da área de Educação; na notícia da
área de Biologia, álcool, outras drogas e cientistas da área.
Em relação aos atores sociais, identificamos três principais em cada notícia. Na
notícia da área de Letras aparecem a própria área (Tema do título: Português),
os profissionais das escolas e os estudantes brasileiros do Ensino Médio,
categorizados como geração Y; na notícia da área de Biologia, aparecem a
própria área (sugerida pelo Tema do título: Álcool), os cientistas e a população
em geral, conforme o exposto no Quadro 3.
Português; matéria com pior resultado; essa parte;
área de Linguagens e Códigos. língua portuguesa;
interpretação de textos; grande área do conhecimento;
redação; linguagem(s); língua culta; vocabulário;
capacidade de interpretar textos mais longos; tudo;
control-C, control-V; trabalhos; material; texto(s);
hábitos de leitura
outras; grandes áreas do conhecimento; Matemática;
Outras áreas
Ciências da Natureza; Ciências Humanas
gestores de escolas1; Maria Martinez - diretora
Profissionais das
pedagógica do Batista Brasileiro; Diretor do Vértice escolas
Adílson Garcia, escolas
jovem(s); geração Y2; eles; aluno; colégio(s); escolas;
Estudantes brasileiros
Colégio Vértice; país; Vértice; Colégio Batista
do Ensino Médio
Enem – exame - Exame Nacional do Ensino Médio;
Outros participantes
internet - mundo virtual
inanimados
Álcool; crack; heroína; cocaína; ela; estudo; ecstasy;
Área de Biologia
maconha; droga(s); anabolizantes; cogumelos
(Tema do título: Álcool)
alucinógenos; metanfetamina; LSD
cientista inglês; estudo; periódico médico Lancet;
Cientistas
Comitê Científico Independente sobre Drogas; exconsultor governamental David Nutt; Nutt; Conselho
Britânico sobre Abuso de Drogas; colegas; autores do
estudo; sistema britânico de classificação atual; autor
de outro estudo; ranking
Sociedade; relacionamentos; outras pessoas; outros;
Pessoas em geral
saúde pública; Grã-Bretanha; governo
Quadro 3: Principais atores sociais nas duas notícias analisadas.
Área de Letras
(Tema do título:
Português)
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Como observamos no gráfico inserido no Quadro 4, há uma grande número de
inclusões com ativação através do papel gramatical na oração dos profissionais
de Biologia, os cientistas, e, embora a área de Letras esteja quase tão ativada
quanto a de Biologia, os atores sociais chamados a representá-la na notícia, ao
contrário do que acontece na de Biologia, não são da sua área, os professores de
Português, mas da área de Educação, categorizados como gestores de escolas.
Quadro 4: Exclusões por supressão [ES] e por encobrimento [EE] e inclusões por
ativação através do papel gramatical na oração [IA] representadas graficamente
nas notícias das áreas de Letras e de Biologia e de seus respectivos representantes
nas notícias: professores de Português e cientistas.
Conforme exemplificado no Quadro 5, enquanto profissionais da área de
Biologia, aqui os cientistas, estão bastante incluídos, na notícia da área de
Letras, há exclusão por supressão dos professores de Português em diversas
orações, com os profissionais da área sofrendo uma exclusão radical no decorrer
da notícia.
A pontuação máxima abaixo de 700 em linguagens é considerada [ES1]
“preocupante”...
(Quem considera preocupante? Gestores de escolas? Professores de
Português?)
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...a linguagem desenvolvida [ES1]
(Quem desenvolve? Geração Y? Professores de Português?)
no mundo virtual se distanciou da língua culta, empobrecendo o vocabulário [ES2]
(Quem teve o vocabulário empobrecido? Estudantes? Professores de
Português?)
e prejudicando a capacidade de interpretar textos mais longos [ES2].
(Quem foi prejudicado na capacidade de interpretação de textos mais
longos? Estudantes? Professores de Português?)
Diretor do Vértice, Adílson Garcia reconhece que há dificuldade [ES3] do jovem em
adquirir hábitos de leitura.
(Quem dificulta? Gestores de escolas? Professores de Português?)
Quadro 5: Exemplos de exclusão de atores sociais na notícia da área de Letras.
Como os professores de Português não são referidos em nenhum momento na
notícia da área de Letras, como o observado no Quadro 6, não poderiam ser
recuperados no texto, portanto não poderiam estar encobertos.
Exclusões por supressão
Área de
Letras
Professores de
Português
0
Área de
Letras
1
Área de Biologia
Cientistas
4
0
Exclusões por encobrimento
Professores de
Português
2
Área de Biologia
Cientistas
0
1
Inclusão por ativação através do papel gramatical
5
Área de
Professores de
Área de Biologia
Cientistas
Letras
Português
5
0
7
9
Quadro 6: Número de exclusões por supressão e por encobrimento e de inclusões
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por ativação das áreas de Letras e de Biologia e de seus respectivos legítimos
representantes nas duas notícias analisadas.
Considerações finais
Fairclough (2003, p. 66) acredita que vivemos em um período de transição, onde
se cria uma tensão que ora pressiona no sentido da estabilização de uma nova
ordem social, ora pressiona continuamente pela mudança, ilustrando, segundo
Wodak (2004, p. 230-231), o papel mediador e construtivo da mídia com
inúmeros exemplos em que demonstra a falácia da crença na neutralidade das
instituições midiáticas, as quais costumam se dizer objetivas por acreditarem
dar espaço ao discurso público e refletir os fatos de forma desinteressada. Mas,
conforme Resende (2009, p. 77), em termos epistemológicos, é possível gerar
projetos de pesquisa emancipatórios e capazes de revelar uma necessidade, o(s)
obstáculo(s) que impede(m) a realização dessa necessidade, e os meios para a
remoção do(s) obstáculo(s).
Segundo van Leeuwen (1997), quando há uma supressão radical, como a
verificada na notícia da área de Letras, através da exclusão dos professores de
Português, os leitores supostamente já devem saber quem é o ator social, ou,
como acreditamos aqui, este tipo de exclusão é usado como forma de impedir
o acesso a detalhes que provocariam reações nos leitores. “A prática fica
representada como algo que não vai ser reexaminado nem contestado” (FUZER,
2008, p. 134).
Em relação à representação da área das ciências biológicas, concordamos com
Guimarães (2009, p. 1) acerca do fato do domínio da ciência ter hoje um lugar
fundamental na vida das pessoas, que esperam dela, entre outras coisas, o
bem-estar e a cura. Parafraseando Foucault, Revel (2005, p. 27) diz que esta
“biopolítica” representa uma “grande medicina social” que se aplica à população
a fim de governar sua vida. Isto pode explicar, não só o maior interesse na
circulação de discursos voltados para a área de Biologia, como também,
conforme verificado nesta análise, a grande inclusão de seus profissionais na
mídia. De acordo com Revel (2005, p. 13), valendo-se do método arqueológico
focaultiano, podemos reconstruir atrás de um fato toda uma rede de discursos,
de poderes, de estratégias e de práticas, onde as alterações na ordem do saber são
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percebidas a partir de campos tão diferentes quanto o de Letras e o de Biologia,
verificando-se a divisão entre o que é pensável e o que não é: neste caso, a não
representação da área de Letras através de seus legítimos representantes na
notícia analisada. Entretanto, esta pesquisa representa apenas um estudo inicial
acerca da representação do discurso de diferentes áreas do conhecimento na
mídia, e estamos cientes de que seria preciso um corpus mais abrangente para
conclusões mais esclarecedoras.
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O HUMOR NOS JINGLES DA CAMPANHA “QUEM
NÃO SABE, DANÇA”, DA TIGRE: INFERÊNCIA E
SUGESTÃO
Franciely Corrêa de Freitas1*
Ana Cristina Carmelino2**
Resumo
Partindo da análise dos jingles humorísticos da campanha publicitária “Quem
não sabe, dança”, da empresa Tigre, o presente trabalho objetiva verificar
quais são os mecanismos linguísticos mais recorrentes em sua construção do
humor, bem como caracterizar o gênero textual jingle. Para fundamentar nossas
análises, tomaremos como base os pressupostos da Linguística Textual de
base sociocognitivista, a concepção de gênero proposta por Bakhtin (2003) e
as considerações de Carmelino (2009), Travaglia (1992) e Possenti (1998) em
relação aos elementos linguísticos responsáveis pela deflagração do cômico.
Como a finalidade discursiva do jingle é auxiliar na divulgação de certo produto,
verificamos que o efeito humorístico presente nos jingles estudados funciona
como mais um recurso persuasivo, contribuindo para a adesão do público.
Palavras-chave: Gênero. Jingle. Humor. Mecanismos linguísticos.
Abstract: Based on the analysis of the humorous jingles of the advertising
campaign “Who does not know, dances” of Tigre company, the present
work objectifies to check what are the most recurrent linguistic mechanisms
in its humor construction, as well to characterize the gender. To substantiate
our analysis, we will be based on assumptions of textual linguistics of sociocognitive base, the conception of gender proposed by Bakhtin (2003) and the
considerations of Carmelino (2009), Travaglia (1992) and Possenti (1998) related
to linguistic elements responsible by the deflagration of the comical. Since the
1- * Graduanda em Letras – Licenciatura em Língua Portuguesa e Literatura de Língua Portuguesa pela
UFES – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil. E-mail: [email protected].
2- ** Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista (Unesp/
CAr); Docente do Departamento de Línguas e Letras (DLLL) e do Programa de Pós-Graduação
em Linguística (PPGEL) da UFES – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil.
E-mail: [email protected].
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discursive finality of the jingle is to assist on the divulgation of certain product,
we found that humorous effect present in the jingles studied works as one more
persuasive resource, contributing to the accession of the public.
Keywords: Gender. Jingle. Humor. Linguistic mechanisms.
Introdução
Este artigo analisa os mecanismos linguístico-discursivos responsáveis pela
deflagração do cômico nos jingles que compõem a campanha “Quem não sabe,
dança”, da empresa Tigre, quais sejam: “Dança do vazamento”, “Dança do bate
os dentes”, “Dança do deslize”, “Dança da gambiarra”, “Dança do tapa o nariz”,
“Dança do entope e desentope”, “Dança do conduíte” e “Dança da gordura”.
Apesar de o gênero jingle ser comumente usado na composição de comerciais
televisivos (como é o caso da campanha “Quem não sabe, dança”) ou em
propagandas radiofônicas, não há referencial teórico que trate desse gênero.
Partindo dessa constatação, buscamos aqui, também, com base na concepção de
gênero proposta por Bakhtin (2003), caracterizar o jingle.
Para fundamentar nossas análises quanto à construção do humor dos jingles
analisados, tomamos como pressupostos teóricos as considerações de Travaglia
(1992), Possenti (1998) e Carmelino (2009), especialmente as voltadas para
os mecanismos linguístico-discursivos responsáveis pela deflagração da
comicidade.
Embora o jingle não seja um gênero humorístico, nossos estudos sobre o
assunto revelam a recorrência desse componente na composição dos gêneros
publicitários. Segundo entendemos, o efeito humorístico é capaz de despertar o
interesse do interlocutor sobre a mensagem, funcionando, portanto, como um
recurso persuasivo eficiente.
Jingle: criatividade e persuasão
Segundo a perspectiva bakhtiniana, o enunciado é constituído a partir da esfera
em que está inserido, refletindo as condições e finalidades dessa esfera. Cada
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enunciado tem uma natureza histórica e sociointeracional, consistindo em
“tipos relativamente estáveis” (BAKHTIN, 2003, p. 262), que são chamados de
gêneros do discurso.
Os gêneros do discurso surgem a partir das necessidades sócio-culturais
estabelecidas em situações de interação e podem ser caracterizados por um
conteúdo temático, uma construção composicional e um estilo. O conteúdo
temático abrange o domínio de sentido do gênero e não um assunto específico
de determinado texto. A construção composicional refere-se à forma como o
gênero é organizado, ou seja, à estrutura do texto. Já o estilo é a escolha dos itens
que constituem o texto, como o léxico e as formas gramaticais. Nessa perspectiva
sociointeracional, Bakhtin (2003) focaliza a importância do papel do locutor
no processo de construção do gênero e a esfera de comunicação em que ele
está inserido: “a intenção discursiva do falante, com toda sua individualidade
e subjetividade, é aplicada e adaptada ao gênero escolhido; constitui-se e
desenvolve-se em uma determinada forma de gênero” (p. 282).
O gênero jingle faz parte da esfera publicitária. Os textos desse domínio
discursivo têm o objetivo de prender a atenção do público ao qual eles se
dirigem, buscando meios que façam esse público ser persuadido pelo que está
sendo divulgado. Segundo Sandmann (2003, p. 29), “despertar ou chamar a
atenção do leitor, fazê-lo memorizar a mensagem é aspecto essencial ou vital da
mensagem e atividade publicitária”.
Como a finalidade dos gêneros da esfera publicitária é incitar as vendas (de
produto, serviço, imagem), é comum seus textos apelarem para os sentimentos,
“desejos e paixões”, fazendo uso de ampla criatividade para prender a atenção
do interlocutor, despertar seu interesse, estimular o desejo e provocar ação
(SANTANA, 1973). Esse é um dos propósitos do jingle.
Conforme Rabaça e Barbosa (2001, p. 122), o jingle é uma “mensagem publicitária
em forma de música, geralmente simples e cativante, fácil de cantarolar e de
recordar. Pequena canção, especialmente composta e criada para a propaganda
de determinada marca, produto, serviço etc.”. Costa (2008), em concordância com
essa definição, explica que o jingle é “uma mensagem publicitária musicada que
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consiste em estribilho simples e de curta duração, próprio para ser lembrado e
cantarolado com facilidade”. Segundo esse autor, “quando veiculado no cinema
ou na TV, o texto vem acompanhado de imagem” (op. cit.). Assim, verificamos
que o jingle consiste não apenas em uma mensagem de grande influência, já
que pode cativar diferentes públicos (adultos, jovens, crianças, por exemplo)
a cantarolarem de forma sucessiva a propaganda musicada, mas também em
um texto que representa a imagem do produto divulgado, destacando em sua
melodia aspectos que denotam a importância desse produto.
Vemos que o uso do jingle é cada vez mais recorrente em propagandas televisivas
ou de rádio, tendo em vista que ele facilita a assimilação da marca, pois, em sua
grande maioria, vale-se de uma linguagem simples e cativante. Pelas definições
de Rabaça e Barbosa (2001) e de Costa (2008), o jingle traz em sua composição
traços característicos das canções (“pequena canção” ou “mensagem musicada”):
“texto curto, cantado, formado pela relação letra e música, dividido em partes A
e B, constituídos por versos” (CARETTA, 2008, p. 21). Desse modo, para garantir
a adesão do público, os jingles incorporam características comuns aos gêneros
da esfera publicitária e aos da esfera artística, como é o caso da canção.
Retomando a proposta de caracterização de gênero do discurso feita por Bakhtin
(2003), notamos que o conteúdo temático do jingle, ou seja, sua finalidade
discursiva é persuadir seu público alvo por meio da palavra a determinada
atitude, isto é, chamar a atenção do auditório para o produto que divulga,
estimulando sua adesão. Como se percebe na campanha publicitária da Tigre,
“Quem não sabe, dança”, os jingles despertam o interesse do público a partir de
problemas que podem ocorrer caso não sejam usados os produtos dessa marca,
sugestão essa que começa pelo nome da campanha (“Quem não sabe, dança”),
a partir do uso da palavra “dança” no sentido de “vai se dar mal”.
A construção composicional do jingle, ou seja, sua estrutura apresenta “relativa
estabilidade”. O jingle possui traços característicos do gênero canção como
“texto curto, cantado, formado pela relação letra e música” (CARETTA, 2008,
p. 21) e traços comuns aos dos textos publicitários, como verbo no imperativo
afirmativo, além de tendência à repetição de termos como o nome do produto
ou a mensagem principal a ser divulgada. Essa estabilidade é relativa porque,
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apesar de haver traços comuns em sua composição, não há uma forma, um
padrão a ser seguido; o que há sempre é uma adequação ao público ao qual se
destina e à marca que divulga. É o que podemos observar a partir dos jingles
“Danoninho” e “Caninha 51”:
Dá danoninho dá, me dá danoninho, danoninho já,
danoninho, tá?
Danoninho dá toda proteína que eu vou precisar já,
já
Me dá, me dá, me dá, me dá danoninho, danoninho
já
Me dá danoninho, danoninho dá
Cálcio e vitamina pra gente brincar, me dá
Lipídios, glicídios, protídeos, cálcio, ferro, fósforo e
vitamina A
Me dá mais saúde, mais inteligência,
Me dá danoninho, danoninho já, me dá
Bota mais uma
Eu quero ver o futebol
Bota mais uma
E o meu time vai entrar
Bota mais uma
Que boa ideia é 51
Bota mais uma
Que hoje eu vou comemorar
Bota mais uma
Até se o time não ganhar
Bota mais uma
Que boa ideia é 51
Como é que se pede uma caninha
Pede logo uma 51
Futebol é sempre uma boa ideia
Pede logo uma 513
Nos exemplos acima, verificamos o uso do verbo no imperativo afirmativo
(“dá”, “bota” e “pede”), a repetição do nome do produto (“Danoninho” e “51”)
3- Jingles disponíveis em http://www.clubedojingle.com/jingles_top.htm. Acesso em 20/10/2010.
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e a repetição da mensagem que os produtos pretendem enfatizar. No caso do
jingle “Danoninho”, a repetição do verbo “dá” pretende resgatar a forma como
as crianças (seu público alvo) costumam solicitar algo. Já o jingle que divulga a
“Caninha 51” repete o termo “bota mais uma”, usado comumente por pessoas
que apreciam uma caninha (cachaça), e o termo “Que boa ideia é 51”, além de
“Pede logo uma 51” que faz menção à marca do produto divulgado (Caninha
51).
O estilo do jingle é, geralmente, marcado por linguagem simples, divertida
e criativa. No entanto, é possível perceber algumas variações levando-se em
conta o público ao qual ele se destina. O jingle “Dança do deslize” da campanha
publicitária da Tigre consiste em um dos exemplos em que se nota a escolha de
itens lexicais peculiares, como expressões populares e o uso de gírias:
Entrei pelo cano, só resta lamentar...
Me dê sua mão, vamos girar e quebrar,
Quebra, quebra, quebra, com a marreta na mão
Quebra, quebra, quebra, foi um cabeção.
Nele, vemos a expressão popular “Entrei pelo cano” no sentido de “me dei
mal” e a gíria “cabeção”, usada popularmente para denotar “pessoa de pouca
inteligência” ou que “usou pouca inteligência”.
Quando o jingle se dirige a um público mais restrito, como, por exemplo, às
empresas, a seleção de itens lexicais é diferenciada, a linguagem se aproxima
mais do padrão culto da língua, como podemos constatar no trecho do jingle
“Hino SOEMA”, da Embratel:
Nós somos os empresários masoquistas
Nossa vida, nosso lema é o sofrimento
Adoramos esperar as telefonistas
Muitas horas de espera em cada atendimento4
4- Disponível em: http://www.embratel.com.br/Embratel102/cda/portal/0,2997,PO_P_10995,00.
html. Acesso em 20/10/2010.
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Segundo a proposta de Bakhtin (2003), o mais importante não é descrever cada
um dos gêneros “catalogando-os”, visto que estão em constante mudança.
Algumas propriedades comuns a determinado gênero se mantêm, enquanto
outras se alteram, acompanhando as inovações da esfera na qual eles estão
inseridos. A esfera publicitária sempre busca recursos que façam seu públicoalvo aderir ao que ela divulga, tendo em vista a competitividade do mercado
publicitário. Estando o jingle inserido nessa esfera, ele certamente acompanha
essa evolução, como é o caso da inserção do componente humorístico nessas
pequenas canções. Nos últimos tempos, verifica-se que o recurso humorístico
vem adquirindo maior projeção pela ótima aceitabilidade do público: quando a
mensagem é apresentada de forma descontraída e bem-humorada, sem que se
deprecie ou ridicularize o produto divulgado, o público tende a assimilá-la com
maior facilidade.
Tigre: algumas considerações
Antes de analisarmos os jingles da campanha “Quem não sabe, dança”, da Tigre,
achamos conveniente tecermos algumas considerações sobre a empresa, a fim
de contextualizar o leitor com relação ao nosso objeto de estudo.
A empresa Tigre é conhecida hoje pela produção de tubos e conexões, forros,
caixas de água, sistemas de descarga, assentos sanitários, entre outros. Entretanto
não são esses os produtos fabricados pela empresa desde a sua fundação. Criada
em 19415, em Joinville, a Tigre começou com uma pequena fábrica, na qual
eram produzidos pentes de chifre de boi. Em 1942, ela diversificou a produção,
inserindo em sua linha de produção os cachimbos Sawa.
No período conturbado por transformações decorrente da 2ª guerra mundial,
chega ao Brasil o plástico, matéria-prima revolucionária para a época. Nesse
momento, a Tigre resolve inovar, adquire uma máquina que torna possível a
produção com o plástico, expandindo sua linha de produção: passa a confeccionar
pentes, piteiras, copos, pratos, brinquedos e leques. No final dos anos 50, a Tigre
5- Todas as informações que dizem respeito ao contexto histórico da empresa Tigre, foram base�
adas nos dados disponíveis no site da própria empresa, a saber: http://www.tigre.com.br/pt/index.
php ( acesso em 20/ 10/ 2010).
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decide ousar com o projeto de confecção de tubos e conexões em PVC. Essa
ousadia surpreendeu, pois, na época, os tubos e conexões eram feitos de ferro
galvanizado. Foi um sucesso, tendo em vista que os tubos e conexões a partir de
então não enferrujavam e, diferentemente do que muitos pensavam, o material
era de excelente qualidade.
A partir desse momento, a Tigre tem inovado com a inserção de diversos
produtos em sua linha de produção, apresentando soluções em portas e janelas
de alto desempenho, ferramentas de pintura, sistemas completos de água fria
ou quente, drenagem, esgoto, eletricidade, telecomunicações e gás.
Além do pioneirismo na produção de tubos e conexões em PVC, a Tigre foi,
também, a primeira empresa do setor a investir em campanhas publicitárias
televisivas, tendo anúncios veiculados na TV já nos anos 50. Em seus anúncios,
a empresa busca associar características de qualidade, confiança e segurança de
seus produtos. Atualmente, a campanha publicitária “Quem não sabe, dança”,
produzida pela agência publicitária Talent em 2009, teve continuidade em 2010
e 2011, busca enfocar a partir de jingles problemas gerados caso o interlocutor
não use em sua obra produtos Tigre. São esses jingles que compõem o corpus de
análise deste trabalho.
O humor: conceitos-chave
O humor está presente em nossas vidas das mais diferentes formas. Entretanto,
a pesquisa sobre humor só passou a se desenvolver de forma satisfatória com
a “Primeira Conferência Internacional sobre o Humor”, em 1976 (RASKIN,
1987, 1987a apud TRAVAGLIA, 1990), passando a assumir papel de grande
importância nas mais diversas áreas de conhecimento (Antropologia, Semiótica,
Sociologia, Psicologia, Linguística).
Ao falar sobre humor, Bergson (2007, p. 4) afirma que “para produzir um efeito
pleno, a comicidade exige enfim algo como uma anestesia momentânea do
coração. Ela se dirige à inteligência pura”. O riso para Bergson é uma espécie de
“gesto social”, que está intimamente ligado à cumplicidade com as pessoas que
compartilham do cômico.
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Travaglia (1990), por sua vez, diz que “o humor é uma atividade ou faculdade
humana cuja importância se deduz de sua enorme presença e disseminação em
todas as áreas da vida humana, com funções que ultrapassam o simples fazer
rir” (p. 55).
Em análise de programas humorísticos brasileiros, esse mesmo autor estabelece
seis categorias de análise. A primeira categoria é “Humor quanto à forma de
composição”, subdividida em: o descritivo, em que o humor está relacionado às
características de algo ou alguém; o narrativo, um que a causa do humor está no
que é contado; e o dissertativo, em que o efeito humorístico é provocado pelas
ideias opostas.
A segunda categoria diz respeito aos objetivos do humor, sendo eles: o riso
pelo riso, que pretende divertir simplesmente; a liberação, que intenciona ir de
encontro à censura social, libertando-se das limitações impostas socialmente;
a crítica social, que objetiva criticar valores, costumes, corrupções, caráter,
comportamento etc.; e a denúncia, que revela situações as quais vão de encontro
às convenções e valores sociais.
A terceira categoria refere-se ao “Humor quanto ao grau de polidez”. Nela o
autor estabelece as subcategorias: “Humor de salão”, em que há predomínio da
língua padrão, a qual se vale de sutis sugestões; “Humor sujo ou pesado”, em
que há uso recorrente de palavrões e termos de baixo calão; e “Humor médio”,
o intermediário, que fica entre o “polido” e o “sujo”.
A quarta categoria se refere ao “humor quanto ao assunto” e é subcategorizada
em: “Humor negro”, que seriam as formas “violentas” de humor, as que fazem
rir de situações trágicas, deformações físicas, doenças ou desgraças; “Humor
sexual”, com conotações eróticas ou pornográficas; “Humor social”, que faz
críticas à política, a costumes, a instituições, a serviços, a caráter, a governos,
a classes e à língua; e o “Humor étnico”, que explora as particularidades de
grupos étnicos.
A quinta categoria trata do “Humor quanto ao código”. Nessa categoria, o autor
classifica o humor em “verbal ou linguístico” (que diz respeito ao que é falado
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ou ao que está escrito) e “não-verbal” (aquele voltado à situação, como gestos,
movimentos, caracterização, expressões fisionômicas, ruídos, objetos etc.).
A sexta categoria, “O que provoca o riso”, sugere elementos provocadores do
sentido humorístico, como é o caso dos scripts (estupidez, esperteza/ astúcia,
ridículo, absurdo e mesquinhez) e dos mecanismos linguísticos. Neste caso,
Travaglia (1992) elenca vários tipos, a saber: cumplicidade, ironia, mistura
de lugares sociais ou posições do sujeito, ambiguidade, uso de estereótipo,
contradição, sugestão, descontinuidade de tópico ou quebra de tópico, paródia,
jogo de palavra, quebra-língua, exagero, desrespeito a regras conversacionais,
observações metalinguísticas, violação de normas sociais e lugar social.
Os estudos revelam que, por meio do humor, é possível dizer coisas que fora
dele seria impossível. Desse modo, ele é um recurso que suaviza a forma de
tratar de assuntos delicados vigentes em nosso cotidiano, como, por exemplo,
a corrupção na política, o caos no sistema público educacional e de saúde, a
ineficiência da justiça; e de assuntos que são tabus para uma parte significativa
da população, como o sexo.
Carmelino (2009) observa que apesar de Possenti (1998) não falar diretamente
em objetivo ou função do humor, suas análises de piadas revelam problemas
sociais e culturais presentes na sociedade, os quais, para a autora, consistem em
objetivos do humor.
Possenti (1998), partindo da análise de piadas, constata como mecanismos
linguísticos que contribuem para a construção do sentido humorístico os
seguintes recursos: fonologia, morfologia, léxico, dêixis, sintaxe, pressuposição,
inferência, conhecimento prévio, variação linguística e tradução.
Convém ressaltar que os mecanismos propostos pelos referidos pesquisadores
contribuem para a construção do sentido do humor, entretanto, como observa
Carmelino (2009, p. 110) “todos esses elementos como provocadores do riso
não são humorísticos em si, visto que não apresentam um uso só humorístico”.
Neste estudo, pretendemos observar os mecanismos linguístico-discursivos dos
quais a empresa publicitária lança mão para promover o humor nos jingles da
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campanha “Quem não sabe, dança”, da Tigre.
“Quem não sabe, dança”: a construção do humor
A campanha publicitária “Quem não sabe, dança”, da empresa Tigre, é composta
por oito peças midiáticas, todas com jingles. São elas: “Dança da vazamento”,
“Dança do bate os dentes”, “Dança do deslize”, “Dança da gambiarra”,
“Dança do tapa o nariz”, “Dança do entope e desentope”, “Dança da gordura”
e “Dança do conduíte”. Como se observa pelos títulos, os jingles abordam
situações desagradáveis, mas de uma forma cômica, que ocorrem com pessoas
que não fazem uso dos produtos Tigre. Tal fato pode ser observado pelo nome
dado à campanha (“Quem não sabe, dança”), em que a palavra “dança” gera
ambiguidade, pois tanto pode ser entendida no sentido de “ritmo corporal”,
tendo em vista que a campanha é composta por pequenas canções (jingles),
como no sentido provocador de “dançar” significando “se dar mal”.
Convém ressaltar que os jingles da campanha publicitária em questão não geram
riso aberto, isso só é possível quando associamos a letra do jingle ao não-verbal
da campanha (as imagens, os movimentos da dança, a sucessão das ações). No
entanto, neste texto propomo-nos à análise da construção do humor levando em
conta apenas as letras das pequenas canções.
Mas, como falar em humor se não há riso? No artigo “Uma introdução ao estudo
do humor pela Linguística”, Travaglia (1990) observa que “o humor não implica
necessariamente riso”, ele “não tem um compromisso com o riso” (p. 65). Ao
mencionar isso, o autor pretende mostrar que o riso que se vincula ao humor
não é, necessariamente, o riso “aberto” e sonoro:
Podemos concordar com o fato de que o humor não
tem compromisso com o riso audível, a risada e a
gargalhada que parece ser aquilo a que se referem
quando desvinculam riso do humor. Contudo ele tem
compromisso com o riso entendido de forma mais
ampla, como um movimento de satisfação do espírito,
provocado por qualquer mecanismo humorístico, e
que pode ficar no íntimo de quem “ri”, constituindo o
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que já se chamou “riso recôndido” ou riso interior, ou
se manifestar em reações fisiológicas que vão desde o
sorriso (riso leve e silencioso) até a gargalhada solta
(TRAVAGLIA, 1990, p. 66).
O humor presente nos jingles da campanha “Quem não sabe, dança” consiste
em algo que torna a mensagem propagandística mais suave e agradável, ou
seja, “bem humorada”.
Após analisar os jingles da referida campanha, observamos que os mecanismos
linguísticos mais recorrentes na construção do sentido humorístico são a
inferência, mecanismo proposto por Possenti (1998), e a sugestão, mecanismo
indicado por Travaglia (1992).
A inferência diz respeito a informações que não estão explícitas no texto.
Machado (2005) salienta que apesar de haver algumas divergências entre
estudiosos do assunto “é necessário enfatizar que as inferências são processos
que os leitores/ouvintes realizam durante a compreensão” (p. 50). Desse modo,
há o “processo de geração de informação semântica nova (não presente no texto
fonte) a partir da informação semântica dada (presente no texto fonte)” (p. 53).
Segundo Marcuschi (2008, p. 249), “as inferências introduzem informações por
vezes mais salientes que as do próprio texto”, sendo, portanto, de fundamental
importância na construção do sentido de um texto. É o que observamos no jingle
“Dança do bate os dentes”:
Não usou o aquaterm da Tigre, Xiii...
Banho frio tô fora
Ui que frio!
Eu sou peludo, mas não sou urso polar
Ui que frio!
Tô gripado sai pra lá que eu vou espirar
Sem água quente não dá, treme, treme, bate os dentes
Sem água quente não dá, treme, treme, bate os dentes6
No verso “Tô gripado sai pra lá que eu vou espirar”, vemos que o processo
6- Todos os jingles pertencentes à campanha “Quem não sabe dança” estão disponíveis no site:
http://www.tigre.com.br/pt/midias.php?rcr_id=22. Acesso em 20/10/2010.
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inferencial se faz necessário para o ouvinte concluir que, em caso de não se usar
o sistema de água quente da Tigre, ocorrerão problemas devido à variação de
temperatura. Para tanto, é necessário conhecimento previamente internalizado
de que não se deve ficar exposto à temperatura alta e baixa ao mesmo tempo,
pois isso pode ocasionar uma gripe com sintomas típicos e desagradáveis como
“espirar”. Esse transtorno é acarretado pelo uso de um sistema de água quente
de qualidade duvidável e inferior ao sistema de água quente Aquaterm, da
Tigre. Outro exemplo é o jingle “Dança da gambiarra”:
Não caprichou no quadro de distribuição. Hum...
Esse quadro tá bichado, tá tudo errado
“Maledeta” gambiarra, vai sobrar pro meu lado
Au! Que choque! Queimando os cabelinhos
Au! Que choque! Torrando os dedinhos
Au!
O processo inferencial, nesse caso, se dá, principalmente, a partir do verso
“Esse quadro tá bichado, tá tudo errado” em que é usada a expressão “tá
bichado”, a qual popularmente se refere a algo que está se deteriorado, com
mau funcionamento. Além disso, há a expressão “tá tudo errado”, que reforça
essa ideia.
Entretanto, para que o sentido humorístico seja alcançado, é preciso ter o
conhecimento prévio do significado dessas expressões, para que, a partir delas,
o ouvinte possa inferir que a razão desse quadro de distribuição estar danificado
e com o funcionamento comprometido é devido ao fato de a pessoa que fez a
instalação não ter optado pelos produtos Tigre.
O mecanismo de sugestão, por sua vez, é, conforme explica Travaglia (1992,
p. 62), “sugerir o que, pelas normas sociais é indizível em certas situações ou
para certas pessoas. É o subdizer, é o dizer incompleto, de forma suavizada ou
generalizada, sugerindo sempre”.
A sugestão pode ser observada a partir de pequenas pistas textuais que suavizam
o que não pode ser dito de forma explicitada. Para tanto, são geralmente usadas
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expressões como “hum..., xiii...” ou palavras no diminutivo. Um exemplo desse
mecanismo está no jingle “Dança do entope e desentope”:
Usou tubo de esgoto errado, dançou!
É a dança do entope e desentope
Mãozinha no nariz, Oh, oh, oh, oh!
É a dança do entope e desintope
Carinha de infeliz, ai que fedô!
É a dança do entope e desintope
Olha o fedô!
Ai que fedô esse cheirinho de totô
O recurso linguístico de sugestão, nesse jingle, dá-se pelas expressões no
diminutivo “Mãozinha”, “Carinha” e “cheirinho”, além da expressão “totô”,
geralmente usada por crianças no processo de aquisição da linguagem, para se
referir a excrementos, fezes. Essas formas suavizam o que não seria conveniente
a uma empresa (como a Tigre) dizer sobre uma concorrente, por questões éticas.
Esse mecanismo funciona, nesse caso, como desencadeador do humor, pois
ironiza a situação ocorrida através dessas formas sutis, como “cheirinho”, visto
que nosso conhecimento de mundo nos permite concluir que nessas situações há
um grande mau cheiro, e não um “cheirinho” (tendo em vista que o substantivo
cheiro no diminutivo, geralmente, dá ideia de algo agradável).
A “Dança do bate os dentes” é outro exemplo em que o mecanismo de sugestão
é usado como recurso humorístico. Nesse jingle a sugestão está na expressão
“xiii...”, usada na fala introdutória da pequena canção (“Não usou o Aquaterm
da Tigre, xiii...”). Essa expressão busca dizer de forma suavizada que “não vai
dar certo”, deixando implícito que apenas a Tigre oferece um sistema de água
quente de qualidade.
Convém lembrar que tais mecanismos não são, exclusivamente, deflagradores
do humor, pois podem assumir outras funções de uso (CARMELINO, 2009).
É interessante, também, ressaltar que alguns gêneros são essencialmente
humorísticos, como, por exemplo, a piada, enquanto outros são eventualmente
humorísticos, como é o caso do jingle. A partir da análise de jingles, podemos
constatar que o humor é cada vez mais recorrente em gêneros publicitários,
tendo em vista que o efeito humorístico é capaz de despertar o interesse do
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interlocutor sobre a mensagem, funcionando, portanto, como mais um recurso
persuasivo a contribuir para a adesão do público ao produto divulgado.
Considerações finais
A partir do exposto, podemos afirmar que o humor presente nos jingles da
campanha “Quem não sabe, dança” se constrói, principalmente, por inferências
e sugestões. A campanha se vale de situações desastrosas e constrangedoras,
ocorridas com pessoas que não usaram os produtos da linha Tigre para
mostrar a suposta superioridade dos produtos Tigre, em detrimento aos
produtos das empresas concorrentes; no entanto, ao fazer isso, utiliza-se
dos recursos linguístico-discursivos adequados (sugestão e inferência) para
manter sua imagem positiva no mercado (não denegrindo as outras empresas
escancaradamente).
Em se tratando do humor presente nos jingles analisados, é importante salientar
que ele consiste em uma estratégia persuasiva, já que torna a mensagem
publicitária divulgada pelas “pequenas canções” mais descontraída e agradável,
sem depreciar ou ridicularizar o produto divulgado, fazendo com que públicoalvo assimile com maior facilidade a mensagem divulgada.
Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introd. e trad. Paulo Bezerra. 4. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CARETTA, A. A. As formas da canção nas diversas esferas discursivas. Estudos
linguísticos. São Paulo: Universidade de São Paulo (USP), 2008, p. 17-24.
CARMELINO, A.C. O texto humorístico: construção de sentido. In: VIDON, L.
N.; LINS, M. P. Da análise descritiva aos estudos discursivos da linguagem: a
linguística no Espírito Santo. Vitória: PPGL, 2009, p. 105-122.
COSTA, S. R. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
MACHADO, M. A. R. O papel do processo inferencial na compreensão de
textos escritos. Campinas, S.P: Universidade Estadual de Campinas, 2005.
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MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São
Paulo: Parábola, 2008.
POSSENTI, S. Os humores da língua: análises linguísticas de piadas. Campinas
SP: Mercado de Letras, 1998.
RABAÇA, C. A.; BARBOSA, G. G. Dicionário de comunicação. 2. ed. Rio de
Janeiro: Campus, 2001.
SANDMANN, A. J. A linguagem da propaganda. 7. ed. São Paulo: Contexto,
2003.
SANTANA, A. Teoria, técnica e prática da propaganda. São Paulo: Pioneira,
1973.
TRAVAGLIA, L. C. Uma introdução ao estudo do humor pela linguística.
D.E.L.T.A, v. 6, n. 1, 1990, p. 55-82.
_________. O que é engraçado? Categorias do risível e o humor brasileiro na
televisão. Leitura: Estudos linguísticos e literários. Maceió, Universidade
Federal de alagoas, n. 5, 6, 1992, p. 42-79.
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VALORES SEMÂNTICOS DAS UNIDADES
LEXICAIS SUFIXADAS EM -EZA NA LÍNGUA
PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA (VARIANTE
EUROPEIA)
Iovka Bojílova Tchobanova1*
Resumo
O objectivo do presente trabalho é estudar os valores semânticos das palavras
sufixadas em -eza na língua portuguesa contemporânea, utilizando o modelo
de morfologia construcional associativo e estratificado de Danielle Corbin
(1987, 1991). De acordo com esse modelo as palavras construídas apresentam
um significado previsível, que lhes é conferido pela sua estrutura morfológica.
Para realizar a análise trabalha-se com um Corpus de 126 unidades lexicais,
extraídas do Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (Porto, 8ªa ed.,
1998). Este estudo faz parte de um trabalho mais vasto sobre a construção dos
nomes colectivos em português.
Palavras-chave: Morfologia construcional. Modelo associativo e estratificado.
Palavra construída. Base. Sufixo.
Abstract: The main goal of the present work is to study the semantic values of
the lexical units, constructed with the suffix –eza in the Portuguese Language.
The model used in this study is the derivational, associatif and stratificated one,
conceived by Danielle Corbin (1987, 1991). According to this model, constructed
words have a predictable meaning, given to them by their morphological
structure. For the analysis we work with 126 lexical units, extracted from
Dicionário da Língua Portuguesa (DLP) da Porto Editora (Porto, 8ª edição, 1998).
Keywords: Derivational morphology. Associatif and stratificated model.
Constructed word. Base. Affixe.
Tendo em conta unidades lexicais como nobreza, bicheza, grandeza, riqueza,
etc., interessa-nos saber se o sufixo -eza constrói nomes colectivos, ou seja, se
1- *Doutorada em Linguística Portuguesa pela Universidade de Lisboa. Investigadora no CLEPUL,
FLUL da Universidade de Lisboa, Portugal. Endereço eletrônico: [email protected]
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pertence ao paradigma dos operadores morfológicos da Regra de Construção
de Palavras com Significado Colectivo (RCP COL = Regra da Construção de
Palavras com Significado Colectivo), parafraseáveis no dicionário por conjunto
de Nb (Nb = Nome da base).
Na primeira parte do trabalho descreverei o comportamento morfossemântico
de -eza, chegando à conclusão que este sufixo faz parte do paradigma de sufixos
que, na língua portuguesa, permitem a construção de nomes deadjectivais de
qualidade (RCP QUAL = Regra de Construção de Palavras de Qualidade),
parafraseáveis no dicionário por qualidade de Ab (Ab = Adjectivo da base).
Na segunda parte referirei brevemente os sinónimos desse sufixo que fazem
parte do mesmo paradigma, tentando detectar os matizes dos nomes de
qualidade, construídos com eles.
Descrição dos derivados sufixados
Origem e formas do sufixo –eza
O sufixo –eza tem origem latina e provém de - ĭtia (Dicionário da Língua Portuguesa
Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, 1º vol., 2001). Para Ali
(1964, p. 233) as formas –ez, -eza, -ícia e –ice são variantes do mesmo sufixo e
filiam-se ao latim –itia, -itie, sendo de notar que a alteração em –ez, -eza denuncia
serem estas as formas populares mais antigas do idioma. O sufixo –ĭties, -ĭtiem
equivale a –ĭtia (...) e se conservou unicamente em espanhol e português na
forma –ez: mudez, gaguez, nudez, rudez, surdez, acidez, aridez, estranhez, morbidez ...
(PIEL, 1940, p. 222).
Dimensão do corpus
A produtividade do sufixo –eza é relativamente pequena. No Dicionário da
Língua Portuguesa (DLP) da Porto Editora (Porto, 1998, 8ª ed.), que serviu de
base para extrair o nosso Corpus, existem registados 126 ítens terminados na
sequência –eza. Em muitos casos essa terminação não corresponde ao sufixo
–eza, ou seja, as palavras assim terminadas não foram construídas no português.
Por essas razões uma série de palavras ficam fora do alcance da nossa análise.
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As unidades lexicais eliminadas formam os seguintes grupos:
- unidades lexicais que representam latinismos: alteza (Do lat. altitĭa), avareza
(Do lat. avaritĭa), beleza (Do lat. bellitĭa), dureza (Do lat. duritĭa), fortaleza (Do lat.
fortaritĭa), impureza (Do lat. impuritĭa), justeza (Do lat. justitĭa), lenteza (Do lat.
lentitĭa), maleza (Do lat. malitĭa), pureza (Do lat. puritĭa), tristeza (Do lat. tristitĭa);
- unidades lexicais que são importações de outras línguas, tais como:
- o castelhano: lhaneza, sondareza;
- o crioulo do Cabo Verde: morabeza;
- o crioulo de Guiné Bissau: bajudeza, mufuneza, guindareza;
- o francês: proeza;
- o italiano: vagueza;
- unidades lexicais que têm a seguinte estrutura morfológica: C + -eza, onde C
representa uma consoante. Conforme a estrutura silábica do português uma
consoante não forma sílaba. Por essa causa excluímos também as palavras queza
e reza que atestam dita estrutura;
- unidades lexicais prefixadas ou compostas em que a derivação por sufixação
em –eza não representa a última operação de formação de palavras: incerteza,
superfortaleza, vice-realeza;
- unidades lexicais em que –eza não é sufixo, mas integrador paradigmático:
pireza, vagareza.
Depois de eliminadas essas 26 unidades lexicais que não correspondem
às nossas hipóteses de trabalho, procede-se à análise das restantes 100 que
representam palavras construídas com o sufixo –eza.
Regras de formação das palavras sufixadas em –eza
Relação categorial entre base e derivado
Para saber qual é a categoria da base das 100 palavras construídas com o sufixo
–eza, consultamos a última parte da definição dessas palavras no Dicionário da
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Língua Portuguesa. Aí, entre parêntesis, está indicada a base a que se acrescenta o
afixo –eza para construir palavras sufixadas em –eza. Para calcular o peso relativo
das bases que têm a categoria de adjectivos, nomes, etc., consideramos que as
100 palavras construídas analisadas correspondem a um total de 100%. Como
indica a tabela a seguir o sufixo –eza constrói derivados, geralmente, a partir
de adjectivos. Em 46% dos exemplos a base é classificada só como adjectivo,
em outros tantos é duplamente classificada (como adjectivo e nome, adjectivo
e advérbio; nome e advérbio) e em 5% é triplamente classificada e a categoria
adjectivo sempre está presente. Praticamente só em 6% dos casos a base não é
adjectival.
Tabela Nº 1 - Relação categorial entre base e derivado, conforme o Dicionário
da Língua Portuguesa
Número de
exemplos
%
Adjectivo =» Nome
46
46%
Nome =» Nome (ardileza, bicheza, pireza)
3
3%
Base duplamente classificada Adjectivo/Nome =»
Nome (absurdeza, estranheza, frieza, grandeza)
Adjectivo/Advérbio =» Nome (careza)
Nome/Advérbio =» Nome (tardeza)
46
46%
Base triplamente classificada Adjectivo /Pron./
Nome =» Nome (certeza, presteza, profundeza),
Adjectivo/Adv./Nome =» Nome (clareza, forteza)
5
5%
Relação categorial entre base e derivado
Operação semântica
Valor de qualidade
Para determinar os valores semânticos das palavras construídas com o sufixo
–eza consultamos as definições dessas palavras no Dicionário da Língua Portuguesa
da Porto Editora. Constatamos que o comportamento das palavras sufixadas
em –eza é muito regular – em ¾ dos casos o derivado denomina uma qualidade
definida no Dicionário com a paráfrase qualidade de Ab (Ab = Adjectivo da
base):
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absurdeza s.f. qualidade do que é absurdo; tolice; disparate (De absurdo + -eza)
agudeza s.f. qualidade do que é agudo ou cortante; fio; gume; ponta; (...) (De
agudo + -eza)
ardileza s.f. qualidade de ardiloso (De ardil + -eza)
aspereza s.f. qualidade do que é áspero; rudeza; escabrosidade (De áspero +
-eza)
barateza s.f. qualidade do que é barato; preço baixo (De barato + -eza)
braveza s.f. qualidade do que é bravo (De bravo + -eza)
Valor de qualidade e de atitude
Em poucos casos (9) o derivado denomina tanto a qualidade como a respectiva
atitude, acto, dito ou procedimento:
esperteza s.f. qualidade de esperto; acto ou dito de pessoa esperta (...)
gentileza s.f. qualidade do que ou de quem é gentil; acção nobre (...)
malvadeza s.f. o m.q. malvadez (qualidade ou acto de malvado) (...)
tacanheza s.f. o m.q. tacanhez (acto ou qualidade de tacanho; mesquinhez,
pequenez) (...)
torpeza s.f. qualidade de torpe; (...) acto impúdico ou vergonhoso (...)
vileza s.f. qualidade de vil; acção vil (...).
Só em um caso a remissão aponta para uma função puramente atitudinal:
safadeza s.f. o m.q. safadice (“acção de safado; fajardice”).
Como sabemos que quase nunca há sinónimos completos supomos que a acepção
de qualidade está presente também nesse caso mesmo não sendo atestada.
Também só em um caso a definição aponta para a acepção de estatuto/
condição:
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realeza s.f. dignidade de rei ou de rainha; monarquia; (fig.) grandeza; esplendor;
magnificência; (ant.) realidade (De real + -eza).
Valor de qualidade e de estado
Em outros 8 casos o derivado denomina qualidade ou estado:
limpeza s.f. qualidade ou estado de limpo; asseio (...)
madureza s.f. qualidade ou estado do que é maduro (...)
magreza s.f. qualidade ou estado de magro; magreira, magrém (...)
moleza s.f. qualidade ou estado de mole (...)
morbideza s.f. o m.q. morbidez (qualidade ou estado de mórbido) (...)
planeza s.f. estado ou qualidade de plano (...)
pobreza s.f. qualidade ou estado de pobre (...)
rudeza s.f. qualidade ou estado do que é rude (...).
A capacidade de alguns abstractos de designar tanto a qualidade como o estado
foi observada por muitos autores (Rainer, 1989, p. 355; Van de Velde 1996, p.
173, apud Anastácio, 1997, p. 44). Van de Velde (1996, p. 176) faz a distinção
entre os nomes de qualidade e os nomes de estado com base no factor duração.
A autora baseia-se na tradição aristotélica que atribui aux qualités une permanence
que les états n’ont pas. Com base no critério duração a autora fala da existência
de nomes neutros que oscilam entre a interpretação qualitativa e a de estado em
dependência da natureza aspectual do contexto proposicional. Essa conclusão
é válida também para o português e Anastácio (1997, p. 44) cita o seguinte
exemplo: a beleza é o seu trunfo (qualidade não transitória, durativa) e ela esteve
duma beleza incrível (estado pontual). A interpretação que a mesma autora dá é
a seguinte:
Assim: a beleza é o seu trunfo, equivale ao facto de ela
possuir a qualidade/propriedade de ser bela e é,
portanto, um N QUAL (Nome de Qualidade); ela esteve
duma beleza incrível, supõe um estado de beleza em/
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com que ela se apresentou, sendo, por isso, tomado,
neste contexto, como um N EST. (Nome de Estado)
(ANASTÁCIO, 1997, p. 44)
Também só num caso a remissão para um sinónimo indica uma função só de
estado:
nudeza s.f. nudez (estado de nu) (...).
Acto ou efeito de V
Em 3 casos nas definições dos derivados em –eza aparece a paráfrase acto ou
efeito de V:
limpeza s.f. acto ou efeito de limpar; qualidade ou estado de limpo; asseio (...)
pireza s.f. acto de pirar-se (...)
segureza s.f. o m.q. segurança (acto ou efeito de segurar; confiança; certificação;
tranquilidade de espírito) (...).
Trata-se de um sufixo de certa originalidade, dado que ele forma nomes que
podem ser classificados simultaneamente como nomes de qualidade e como
nomes de acção. O mesmo fenómeno observa Becherel (apud Anastácio, 1997,
p. 32) no caso do sufixo –ance/-ence em francês: “il sert à former des dérivés qui
tiennent à la fois des substantifs de qualité et de substantifs d’actions. (...) Ainsi:
persévérance est à la fois “le caractère de celui qui est persévérant » et « le fait de
persévérer », de même que endurance, négligence »”.
Acepção colectiva
Em meia dúzia de casos na definição do derivado em –eza aparece tanto a
acepção de qualidade como a acepção colectiva:
bicheza s. f. o m. q. bicharada ou bicharia (De bicho + -eza)
grandeza s. f. - qualidade daquilo ou de quem é grande; tamanho; extensão;
quantidade susceptível de aumento ou diminuição; tudo o que se pode
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conceber maior ou menor; grau de intensidade; valor; importância; excelência;
magnanimidade; bizarria; fortuna; ostentação, abundância; nobreza; hierarquia
(De grande + -eza)
natureza s. f. aquilo com que nasce um ser; o conjunto das coisas que apresentam
uma ordem, que realizam tipos ou se produzem segundo leis; o conjunto de
tudo quanto Deus criou; o conjunto dos caracteres que fazem que uma coisa
ou um ser pertença a uma espécie ou a uma categoria determinada; essência;
espécie; qualidade; organização; constituição ou funções de um corpo; funções
fisiológicas; conjunto dos traços característicos de um indivíduo; temperamento;
carácter; compleição; humor; o mundo exterior; o sistema das leis que regem e
explicam o conjunto do mundo exterior; conjunto de todos os seres, animados ou
não, que constituem o Universo (nesta acepção grafa-se com inicial maiúscula)
(Do lat. natura-, «natureza» )
nobreza s. f. qualidade do que é nobre; distinção; excelência; mérito; gravidade;
majestade; elevação de sentimentos; generosidade; a classe dos nobres; fidalguia
herdada ou doada pelo soberano (De nobre + -eza)
pobreza s. f. qualidade ou estado de pobre; escassez; necessidade; estreiteza
de posses; indigência; miséria; penúria; os pobres; (fig.) curteza de inteligência;
pouca abundância; pequeno número (De pobre + -eza)
riqueza s. f. qualidade do que é rico; abundância de bens; abastança; opulência;
magnificência; prosperidade; cópia; fartura; fertilidade; a classe dos ricos;
(fig.) ostentação; luxo; beleza de formas; abundância de ideias, de imagens; de
expressões (De rico + -eza).
A explicação do significado colectivo é simples: a unidade lexical que serve
para denominar a qualidade é usada também para denominar o conjunto dos
portadores desta qualidade. Assistimos a um processo de concreção. O mesmo
acontece nos exemplos a seguir, nos quais, além da qualidade são denominados
os seguintes objectos concretos:
chaneza s.f. (...) planura (...)
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delicadeza s.f. (...) manjar fino (...)
lindeza s.f. (...) coisa linda (...)
planeza s.f. (...) planície (...).
Tanto o processo de concreção individual como colectiva, tem um carácter
imprevisível, esporádico, acidental.
Para resumir todos os valores semânticos dos derivados em –eza, tanto
fundamentais como secundários, pode apresentar-se a seguinte tabela:
Tabela Nº 2. Valores semânticos dos derivados em -eza
No de
exemplos
%
75
75
QUALIDADE E ESTADO
9
9
QUALIDADE E ATITUDE
10
10
ESTATUTO/CONDIÇÃO
1
1
6
6
ACTO OU EFEITO DE V (V = verbo)
3
3
OBJECTO CONCRETO
4
4
100
100
Valores semânticos dos derivados em –eza
VALORES DE BASE: QUALIDADE
VALORES SECUNDÁRIOS: VALOR COLECTIVO
TOTAL
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Valores semânticos dos derivados em -eza
I Qualidade
�0
1
6
3
4
I Qualidade e �stado
I Qualidade e Atitude
I �statuto/Condição
9
II Valor Colectivo
7�
II Acto ou �feito de V
II Ob�ecto Concreto
No que diz respeito à semântica das bases observa-se que os adjectivos designam
exclusivamente pertença social (os grandes, os nobres, os pequenos, os ricos,
etc.). A mesma observação tem para o francês Flaux (1999, p. 494-495) que cita
exemplos como jeunesse, viellesse, noblesse, etc. A mesma autora também refere
que a passagem da qualidade, geralmente, não é para o portador da qualidade
mas para o conjunto dos portadores da qualidade: “Ils faut souligner le caractère
complexe de la “figure” d’où procède le sens collectif: il ya passage de la qualité
non pas au porteur individuel de la qualité mais à l’ensemble des individus
porteurs de la qualité en question (...)”.
Não são só os nomes construídos de qualidade que podem ter uma acepção
colectiva. Fontanier (apud ANASTÁCIO, 1997), cita muitas palavras simples
de qualidade que por diferentes processos figurais adquirem também um valor
colectivo (calomnie = les calomniateurs).
Operadores morfológicos do paradigma dos nomes de
qualidade
Os sufixos concorrentes de –eza ficam patentes nas remissões que encontramos
em vez de definição no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora:
-eza =» -ez
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escasseza =» escassez
esplendideza =» esplendidez
esquiveza =» esquivez
malvadeza =» malvadez
morbideza =» morbidez
nudeza =» nudez
parvuleza =» parvulez
pequeneza =» pequenez
ridiculeza =» ridiculez
rispideza =» rispidez
robusteza =» robustez
rustiqueza =» rustiquez
sisudeza =» sisudez
sordideza =» sordidez
tacanheza =» tacanhez
-eza =» -(i)dade
profundeza =» profundidade
rareza =» raridade
rustiqueza =» rusticidade
simpleza =» simplicidade
-eza =» -idão
escureza =» escuridão
forteza =» fortidão
frouxeza =» frouxidão
lenteza =» lentidão
vasteza =» vastidão
As remissões para os sinónimos sufixados em –ada, -ança, -aria, -ice e –ura são
mais bem esporádicas:
bicheza =» bicharada
segureza =» segurança
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bicheza =» bicharia
lerdeza =» lerdice
safadeza =» safadice
brandeza =» brandura
Ali (1964) observa que existiu sempre concorrência entre os sufixos desse
paradigma:
[...] o sufixo –ez parece ter sido no comêço menos
produtivo que o segundo (-eza). Vocábulos há de forma
dupla: altiveza e altivez, rudeza e rudez, dobreza e dobrez,
pequeneza e pequenez, ardideza e ardidez, intrepideza
e intrepidez, escasseza e escassez. Alguns têrmos em
–eza, por efeito da concorrência de outras formações
que significavam a mesma coisa, tornaram-se menos
usados ou desapareceram de todo. Igualeza, favoreza,
maleza, crueleza, liberaleza, blandeza foram substituídos
por igualdade, favor, maldade, crueldade, liberalidade,
brandura (ALI, 1964, p. 133-234).
A existência de pares de palavras sufixadas em –ez e –eza é explicada por Correia
(1999, p. 471) com o fenómeno da regulação analógica, ou seja, o acréscimo dum
integrador paradigmático. As palavras em –ez são do género feminino mas não
terminam em –a, que é a típica marca do género feminino. Por essa razão essas
formas resultam “estranhas” aos falantes menos escolarizados que tendem
a acrescentar o morfema –a, que sem trazer nenhuma informação semântica
permite inserir as unidades que o ostentam num paradigma muito mais vasto,
isto é, o dos substantivos femininos terminados em –a em português. Por essa
causa o morfema –a é chamado integrador paradigmático.
Traçando um paralelo entre os derivados em –ez e em –eza, Piel (1940, p. 222)
afirma que ambos são antigos mas enquanto –ez se junta exclusivamente a
latinismos, -eza se combina unicamente com adjectivos populares, tradicionais.
Além disso, -ez parece ser de um modo geral mais abstracto e mais literário do
que –eza (cf. madurez e madureza, redondez e redondeza).
São numerosos os autores que registam que as variantes alomórficas –ez ou –eza
dependem do número de sílabas da base: uma base de duas sílabas selecciona,
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com preferência, o sufixo –eza (torpe –torpeza), uma base de três sílabas,
geralmente, selecciona o sufixo –ez (pequeno –pequenez).
Por efeito da concorrência com os sufixos anteriormente citados muitos dos
vocábulos em –eza desapareceram: igualeza, fundeza, crueleza, etc.
Estrutura morfológica das bases seleccionadas pelo
sufixo –eza
Em oposição com os sufixos –ice, –(i)dade e –ismo que com frequência seleccionam
bases derivadas, o sufixo –eza escolhe sempre bases simples. Isto foi característico
também para o seu antecessor em latim, em relação ao qual Piel (1940, p. 221)
afirma o seguinte: “O emprego de -ĬTIA limita-se aos adjectivos simples, não
derivados: LAET-ITIA, MOLL-ITIA, MUND-ITIA, PUDIC-ITIA ...”.
Temos só duas excepções: macieza (De macio + -eza) e sisudeza (De sisudo + -eza).
Os dicionários indicam que as palavras macio e sisudo são palavras construídas,
respectivamente por meio do sufixo -io e -udo.
Produtividade
Hoje em dia o sufixo –eza não é produtivo – os campeões absolutos para formar
nomes de qualidade em português são os sufixos –(i)dade e –ismo. À mesma
conclusão chega para a variante brasileira Sandmann (1992, p. 74) que cita
como neologismo só a palavra moreneza no seguinte contexto “a moreneza do
socialismo de Brizola”.
Conclusões
A conclusão principal a que chegámos, como resultado da nossa análise, é que o
sufixo -eza constrói, na língua portuguesa contemporânea, nomes de qualidade
deadjectivais, parafraseáveis por qualidade de Ab.
O sufixo -eza é pouco produtivo, tendo em conta o tamanho do corpus recolhido.
No Dicionário da Língua Portuguesa há 126 unidades lexicais terminadas em
–eza (em termos de comparação os derivados em –(i)dade e –ismo são 10 vezes
mais).
A base dos derivados em –eza é fundamentalmente adjectival ou duplamente
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classificada como adjectivo e como nome. No que diz respeito à estrutura
morfológica das bases o sufixo –eza selecciona exclusivamente bases simples,
geralmente constituídas de duas sílabas.
Dentro do grupo dos sufixos que formam nomes predicativos o sufixo –eza
constrói exclusivamente nomes de qualidade e a qualidade é vista de forma
objectiva. Além do valor predicativo (qualidade ou estado, comportamento,
estatuto) alguns derivados manifestam valores como o de acção, o colectivo
ou objecto concreto. O valor colectivo de alguns derivados em –eza (cf. bicheza,
grandeza, natureza, nobreza, pobreza, riqueza) é um valor secundário, assistémico,
derivado do valor qualitativo que é o valor fundamental. No caso dos lexemas
citados observa-se um processo de concreção – a unidade lexical em –eza
que denomina a qualidade passa a denominar também o conjunto dos seus
portadores. No que diz respeito à semântica, os nomes de qualidade designam
pertença social.
Na construção dos nomes de qualidade o sufixo –eza alterna sobretudo com os
sufixos -ez, -idade e –idão. A oposição com o sufixo –ez faz-se com base no traço
+ ABSTRACTO e com base no número de sílabas da base.
No que se refere ao carácter erudito ou popular das bases às quais se junta o
sufixo pode afirmar-se que ele se combina unicamente com adjectivos populares,
tradicionais.
O sufixo –eza não é disponível para formar novas palavras em português.
Referências
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Dissertação de Doutoramento em Linguística Portuguesa, apresentada à
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Almedina, 1994.
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O PAPEL HIPERONÍMICO DOS TERMOS DE CLASSE EM
AKWẼ-XERENTE (JÊ)
Kênia Mara de Freitas Siqueira*
Resumo
O objetivo deste estudo é descrever o uso de algumas raízes nominais na função
hiperonímica de termos de classe na língua Akwẽ-Xerente, considerando para tal,
a relação entre língua e cultura, visando assim, descrever esse uso em consonância
com algumas propostas da Etnossintaxe, de âmbito morfossintático e semântico
que, entre outros aspectos, aventam a hipótese de que o corpo humano constitui
um dos pilares que orienta, mediante relações metafóricas, a construção de um
conjunto de referências para designar inúmeros conceitos linguísticos tais como:
forma, função dos objetos, espaço, localização, comprimento.
Palavras-chave: Língua. Cultura. Termos de classe. Uso.
Abstract: This study aims to describe the use of some nominal roots in the
hypernym function of terms of class in the Akwẽ-Xerente language, considering
for such, the relation between language and culture, aiming at describing such
use in accordance with some proposals of Etnosyntax morphosyntactic and
semantic scope which, among other aspects, suggest the hypothesis that the
human body is one of the pillars which guides, by metamorphic relations,
the construction of an assembly of references to assign an endless number of
linguistics concepts such as: form, object function, space, location, length.
Keywords: Language. Culture. Terms of class. Use.
Introdução
As questões discutidas neste estudo têm o objetivo de refletir sobre questões
referentes a aspectos linguísticos que fazem parte do sistema de classificação
nominal e permeiam a categorização nominal da língua Akwẽ-Xerente1,
1* Universidade Estadual de Goiás (UEG).
1 Segundo Rodrigues (1994), língua indígena da família Jê, falada pelo povo de mesmo nome.
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especificamente no que concerne à relação que se estabelece entre o uso dos
termos de classe e o ponto de vista perceptual e funcional constituído sobre
bases culturais para essa língua, pois uma descrição linguística desta natureza
pode apontar inúmeros aspectos da situação em que se encontra a língua no que
concerne às mudanças que possam estar ocorrendo. Ainda que a situação de
contato em si não constitua a finalidade deste trabalho, qualquer estudo teórico
da língua pode-se mostrar bastante profícuo na elucidação de questões muito
amplas acerca da língua, da cultura e da sociedade Akwe)-Xerente.
Segundo Wierzbicka (1997), em certo sentido, a discussão que enseja as evidências
da relação entre linguagem e cultura constitui um importante arcabouço teórico
necessário para compreender que motivações estão na base do uso dos termos
de classe, já que a relação entre língua e cultura vem, conforme Lakoff (1986)
e Enfield (2002), não apenas aprimorando muitos argumentos favoráveis a
ela, como também proporcionando novas visões do assunto, analisado agora
sob aportes teóricos mais elucidativos no que se refere ao âmbito, dimensões e
contornos dessa relação, cujo escopo pode ser (possivelmente é) entendido como
uma via de mão dupla, ou melhor, há entre língua e cultura uma interrelação
com dimensões presumivelmente dialógicas. É nesse sentido que se procura
descrever a função hiperonímica dos termos de classe já que, em certo sentido, a
cada novo estudo sobre a língua Akwẽ-Xerente, novos fatos emergem suscitando
dúvidas prementes de serem esclarecidas.
Nessa perspectiva, este estudo tem o objetivo de descrever uma série de raízes
nominais que funcionam na língua Akwe-Xerente como termos que organizam
outros nomes mediante a observação de características que incluem aspectos
de diversas ordens. Os procedimentos metodológicos para seleção dados e
constituição do corpus segue a metodologia da Linguística de Campo de Kibrik
(1977). Para maior clareza e mais visibilidade, os dados são descritos mediante
esquemas gráficos, reunidos nos respectivos conjuntos dos termos de classe.
Quando não houver no corpus a transcrição de algum dado, usa-se à parte (do
gráfico) a relação de alguns itens, escritos em itálico, e de acordo com a ortografia
xerente proposta por Krieger e Krieger (1994).
Este estudo significa ainda, no âmbito das pesquisas linguísticas, uma pequena
Os Akwe)-Xerente compreendem, atualmente, 4000 pessoas e vivem tanto na região da cidade
de Tocantínia, estado do Tocantins, em mais de 58 Aldeias, como na própria cidade, o que aponta
para um contingente urbano de 400 pessoas.
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contribuição no sentido de oferecer subsídios teóricos acerca da situação em que
se encontra a língua, como um meio de se pensar na elaboração de programas,
principalmente educacionais, que possam auxiliar na preservação da língua e
da cultura Akwẽ-Xerente.
Termos de classe em Akwe)-Xerente
Os termos de classe, conforme Aikhenvald (2000a, p. 59), estão na base da
língua, atuam na classificação de uma série de morfemas que vão, por sua vez,
participar da origem lexical da língua, são quase sempre explicados mediante a
análise de pequenos grupos de exemplos. Os processos em que são usados nem
sempre são totalmente explicitados haja vista caráter de formação de palavras
em nível pós-lexical.
classificam morfemas que participam da origem lexical de uma língua, embora
sua existência e classificação funcional sejam facilmente identificadas. Sua
descrição é, frequentemente, limitada a pequenos exemplos ilustrativos. A
diferença entre morfemas derivacionais e termos de classe é que estes são
usados em processos complexos nem sempre claramente elucidados. Ambos,
no entanto, têm o rotulo de classificadores de tempo.
Ainda de acordo com Aikhenvald (2000b), termos de classe são morfemas
classificatórios de origem claramente lexical, apresentam graus variados de
produtividade no léxico de uma língua. A composição de nomes envolvendo
nomes genérico-específicos pode ser comparada a componentes derivacionais
em classes nominais (como berry em inglês – blackberry, strawberry), dado seu
alto grau de lexicalização e o fato de serem restritos a uma classe de raízes
nominais.
Um dos domínios mais comuns dos termos de classe é o das plantas, com o qual
as línguas diferenciam características entre árvores, frutos, semente, raiz. Há
evidências de línguas que têm classificadores com base nos termos de classe,
como, por exemplo, a língua Rama (Nicarágua, CRAIG, 1990). Essa sobreposição
do uso de morfemas derivacionais ou flexionais classificadores é mencionada
por Payne (1986) para algumas línguas da América do Sul.
Consideradas as propostas de Craig (1986); Mithun (1986); Katamba (1993);
Matthews(1993); Aikhenvald (2000b), Sousa Filho (2007) para o conceito e
descrição de raízes nominais que funcionam como termos de classe (TC),
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propõe-se a análise das raízes: du ‘capim’, nRõ2 (coco) ‘palmáceas’, kö ‘água’,
kRu ‘roedores’, kuh«) ‘suídeos’, kuk«) ‘quelônios’, ktö ‘animais comestíveis’, si
‘aves’, tbe ‘peixes”, de ‘árvore’, zö ‘sementes’. Essas raízes, recorrentemente,
combinam-se com outras raízes formando nomes compostos (C) na língua
xerente e esses nomes, geralmente, são usados em função classificadora.
Os TC em Akwe)-Xerente funcionam como uma espécie de hiperônimo
constituindo um conjunto mais amplo, no qual muitos outros objetos podem ser
inseridos, observadas suas características mais gerais e salientes como espécie,
tipo, forma, habitat entre outros. Ressaltando também o caráter semântico
“agrupador” e a significação mais abrangente de um termo (hiperonímico) sobre
outros termos cuja referência remete ao todo ou a alguma parte ou característica
do objeto ordenado nas diferentes classes de termos.
Dadas as características eminentemente descritivas do composto na língua
Akwe)-Xerente (cf, SIQUEIRA, 2007), o TC é um recurso produtivo de nível
lexical, em cujas classes pode-se agrupar uma série de indivíduos designados
a partir de uma categoria de nível básico a superordenados por meio de uma
extensão de sentido, com funções semelhantes a de classificador, mas que, em
vez de apontar para características salientes do objeto, organiza os objetos em
grupos mediante observação dessas características salientes e afins.
De acordo com Siqueira (2009), de certa forma, os termos de classe Akwe)Xerente, atuam como classificadores em nível lexical. Daí a diferença sutil que
apresentam em relação aos classificadores propriamente ditos. Morfologicamente,
compõem-se (quase sempre justapostos) de: (N3 + N), (N + N + N), (N + N + N
+ DIM), (N + DIM + N + Com), como em:
1) noda
coco-N + bico-NI
‘tucano’
2- O termo nRõ ‘coco’ estende-se para classificar os objetos que apresentam características seme�
lhantes às árvores da família das palmáceas. Não todas, mas grande parte delas. O nome pizu por
exemplo, nomeia ‘buriti’, também característico dessa família.
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- 3 À guisa de legenda: ADV – advérbio, class – classificador, Comp – compartivo, DM – di�
minutivo, N – nome, NI nome inalienável.
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2) naeö
coco-N + velho-N + ADV + Class- (R m)semente-N
‘polpa’ (de coco da praia)
3) kuh«)
b«
k«)Re
porco-N + rabo-NI + cabeça-NI + DIM
‘barrão’
4) kuhRe
kwa
ne
porco-N + DIM + dente-N + como-Comp
‘quati-macho’
Descrição dos termos de classe
Há inúmeros compostos em cuja estrutura ocorrem termos de classe. Em vista
disso, tem-se, a seguir, a relação dos TC verificados nos dados, bem como
exemplos em que ocorrem e, quando possível, a origem lexical desses termos.
Para o TC du ‘capim’, tem-se:
5) du Origem: wadu ‘capim’
Sentido superordenado:
‘capim’
Glossa: dui4 kuze
‘capim de cheiro’
dui kwa
dui nĩrn«)
‘sapé’
‘flor de capim’
4- Processo morfofonêmico comum nesse tipo de ambiente fonético, trata-se, provavelmente, do
alongamento da vogal alta posterior /u/.
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waduihö kRe5
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‘capim dourado’
Em relação ao TC n, o sentido que prevalece é o que aponta para o fato de essas
árvores apresentarem tipos de folhas e de frutos semelhantes aos do coqueiro,
como se vê em 6. Assim, é possível verificar que o TC ordena uma classe, a das
palmáceas (árvores) e todas as que apresentam semelhanças com árvores desse
tipo (coqueiros). No entanto, existem coqueiros que não recebem n no nome:
pizu ‘buriti’, w«Re ‘buritirana’, kakdo ‘macaúba’. O que evidencia a hipótese de
que o uso dos TC se encontra relacionado, de alguma maneira, com convenções
e com tradições socioculturais.
6) nRõ Origem: nRõ
Sentido superordenado:‘palmácea’
Glossa: nRõ kRu
‘coco’
‘coqueiro’
nRõ t nRõ p ‘palmito’
nRõ ude su
‘najá’
‘palha de piaçaba’
Para o TC kö ‘água’, os compostos selecionados remetem ao significado ‘água’.
Embora haja homônimos dessa raiz, a formação dos compostos corroboram o
sentido ordenado para ‘água, líquido’.
O TC köaparece também em inúmeros topônimos, haja vista a grande quantidade
de rios, brejos, ribeirões existentes na área xerente. À guisa de exemplos, temse: Aptom hu kâ ‘Brejo do Meio’, Bru pré kâ ‘Ribeirão Galho Grande’, Kâ karê
‘Brejo do Cirino’, Kâ pre kâ ‘Ribeirão Brejão’, Kâ wawe ‘Rio Tocantins’, Kte ka
kâ ‘Rio do Sono’, Kte porê kâ ‘Lajeadinho’.
7) kö
Origem: kö
‘água’
Sentido superordenado: ‘água, líquido’
5- Como na frase: waduihirekbuzi paki ‘o capim dourado é longo e fino’.
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Glossa: kö pRE
‘enchente’
kö z«)m pR ‘espuma de água’
kö nĩsdu
‘nascente’
kö kurb ‘limbo’
Outro TC: ku engloba o conjunto de indivíduos semelhantes ao rato e
apresentam, de certa forma, alguma semelhança com a classe dos roedores.
8) kRu Origem: kRu
Sentido superordenado:‘semelhante ao rato’
Glossa: kRu bö ‘rato’
‘rato grande do mato’
kRu kR«Re
‘camundongo’
kRuktöbi
‘preá’
kRu npokR poRE
‘coelho’
Nem sempre os conjuntos formados são extensos. Há grupos bem numerosos
como é o caso de tpe e ude outros com poucos nomes, como ku em 8.
O TC ordenado pela raiz kuh parte desta raiz como núcleo dos compostos para
outras formações, usando outras raízes e alguns morfemas presos para indicar
tamanho e função dos objetos.
9) kuh«)
Origem: kuh«) Sentido superordenado:‘qualquer animal semelhante aos suídeos6’
Glossa: kuh«) ba
‘porco-queixada’
‘porco doméstico’
6- Entende-se por suídeos todos os animais de cinco gêneros diferentes: o Sus, como os suínos
domésticos (Sus scroffa domesticus) e os javalis europeus (Sus scrofa scrofa). Também os Tayas�
suídeos: o Tayassu e o Catagonus, cujos principais representantes no cerrado: catetos (Tayassu
tajacu) e o queixadas (tayassu pecari). Todos são muito semelhantes.
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kuh«) ba kRe
kuh«) ba kRe RE
‘cachaço’
kuh«) Re
‘caititu’
kuh«)Rekwa ne)‘quati macho’
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‘leitão’
A raiz kuk«) ‘jabuti’, funciona como núcleo (base lexical) para todos os termos
ordenados por esse TC, sendo ‘jaboti’ o mais comum. Os outros indivíduos são
nomeados a partir da forma do kuk«), forma essa que é ressaltada, mais larga
que comprida, casco (hö), se vive na terra ou na água entre outras.
10) kuk«)
Origem: kuk«) ‘jabuti’
Sentido superordenado: ‘quelônio’
Glossa: kuk«) hö p ‘cágado’
kuk«) hö p awRE
‘tartaruga’
kuk«) hö poRe
‘tracajá’
Para todos esses conjuntos de TC há outros compostos. Entretanto, os que
aparecem no corpus são elucidativos, pois oferecem uma mostra de como
funciona o termo ordenador da classe. Mesmo que alguns objetos não
compartilhem todas as características do termo de origem, de alguma forma
apresentam semelhanças, como no conjunto abaixo, em que o TC kt ‘anta’ é
usado como base para a formação dos demais termos, uma vez que nomeiam
objetos inseridos mais recentemente na cultura xerente: bovinos em geral. 11) ktö Origem: ktö ‘anta’
Sentido superordenado: ‘animais comestíveis’
Glossa: ktö kmõ
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‘gado’
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ktö kmõ koRe
ktö kmõ koRe z«nĩ
‘boi’
ktö kmõ sĩmpikõ ‘vaca’
‘bezerro’
O próximo esquema traz alguns compostos formados com o TC si, ressaltando
características comuns a todos os indivíduos que estão incluídos neste termo
geral.
12) si
Origem: si
Sentido superordenado:‘ave, pássaro’
Glossa: sibaka ‘ave’
‘garça’
sibaka waw«)
sidur kwa pRE
‘gavião’
sika kR« pRE
‘galinha’
sika kR« p 7
‘pato’
si parhdu
‘urubu’
‘jaburu-moleque’
Há outros compostos formados a partir do TC si, a saber: si mnãite wawe ‘japim’,
si nõ se ‘quero-quero’, si pahiba ‘urubu-caçador-cabeça-amarela’, si pre ‘cigana’.
O TC tpe ordena uma das classes mais numerosas, aparece em inúmeros
nomes de peixes e de outros animais que vivem na água. O livro Tbê Akwẽ
Nimtkaikrembbahã, Peixes da área Xerente, CEGRAF (1997) oferece muitos
exemplos da variedade de peixes ordenados pela raiz tpe.
13) tpe Origem: tpe
‘peixe’
7- Nome do pato doméstico, para pato silvestre a forma é ‘me)ku’.
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Sentido superordenado:‘peixe’
Glossa: tpe b«
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‘arraia’
tpe kö ‘piaba’
tpe nõ kwa
‘pescador’
tpe to kõ ‘candiru’
tpe wazato
‘piau’
tpe zaRo
‘dourado’
Entretanto, há alguns nomes de peixes que não se ordenam pelo TC tpe, o que
mostra que existem classificações diferentes para a mesma espécie, mas que
os Akwe)-Xerente ordenam em grupos distintos por razões provavelmente
não linguísticas. Como exemplos: ajkRzu8 ‘acari’ (peixe), közaiku ‘boto’, kupi
‘poraquê’, zu ‘traíra’, suwaRa tom sdakRe ne) ‘tucunaré’, suwaRa t sdakRe ne ka
‘corvina’, kukedi ‘pintado’. E ainda o grupo designativo para peixes semelhantes
à piranha: wajkwa ~ wajkwa pe ‘piranha’, wajkwa ka ‘pacu’, wajkwa nõkR pte ‘pacumanteiga’, wajkwapRE ‘pacu-bandeira’, wajkwa waRa waw«) ‘caranha’, wajkwaza
kRu ‘pacu-do-rabo-vermelho’.
O TC ude forma também um conjunto bastante numeroso que funciona como
núcleo (genérico-específico) para uma série de compostos cuja base lexical
aponta para os significados: ‘árvore’, ‘madeira’, ‘pau’.
14) ude Origem: ude
Sentido superordenado: ‘árvore, madeira, pau’
Glossa: bö tum ude
‘urucum do brejo’
‘árvore’
k«kõ ude
ude hö
‘casca de árvore’
ude hu
‘vara’
‘jatobá’
8- Transcrição ortográfica conforme Krieger e Krieger (1994).
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ude ude kaze
‘serra’
ude kR«)
‘pilão’
ude pa ‘raiz’
ude Re
‘arbusto’
ude samRõ
‘caminhão’
ude zapRumkwa
‘caruncho’
Em relação à posição preenchida por esse TC ude no composto, há uma pequena
Na maioria dos dados, ele ocupa a posição final do composto e, à sua esquerda,
vem a descrição da ‘árvore’ (específico-genérico). Entretanto, alguns dados
indicam que ude pode ocorrer também mais à esquerda do núcleo nominal
quando se tratar do nome que se dá ao agrupamento de determinadas árvores:
pizu ude hu ‘buritizal’, nRo ude hu ‘babaçual’; No exemplo: sanm«) waw«) ude
ktuRe ‘barbatimão’, também aparece à esquerda do núcleo. Isso pode evidenciar
que a característica mais saliente dessas árvores (buriti, babaçu, barbatimão)
para os Xerente, esteja no formato do tronco e das folhas, as quais são mais
específicas dos coqueiros.
Em outros dados, para nomes de árvores, na classificação pode-se dispensar o
uso desse TC, como nos exemplos: pizu ‘buriti’, bRudu ‘pau-brasil’, kRkonĩstu
‘cachimbeiro”, kune)Re) ‘araçazeiro’, ha ‘sambaíba’.
O TC z tem usos variados na língua, ora funcionando como classificador para
indicar objetos que apresenta semelhanças com uma semente, ora como um
“superordenador” de classe, organizando objetos que são de fato sementes, cf.
15.
15) zö Origem: R m zö
‘semente’
Sentido superordenado: uma semente’
Glossa: no zö
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‘qualquer coisa semelhante a
‘milho’
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nRõwaw«) zö ‘polpa de coco’
waps«) zö
‘pulga’
zum zö
‘feijão’
Embora faltem maiores evidências nos dados, pode-se também apontar as raízes
hesp ‘banana’ e kupa ‘mandioca’, como termos que organizam uma classe, já que
reúnem nomes formados a partir da observação das diferenças de forma, sabor,
cor e consistência de objetos semelhantes, mas não iguais.
Considerações finais
O esforço empreendido neste estudo pautou-se no propósito de descrever alguns
aspectos do sistema de classificação nominal da língua Akwe)-Xerente, com a
preocupação precípua de dar um tratamento mais específico às questões que
envolvem o uso dos termos de classe no que concerne, mais especificamente, à
função hiperonímica de suas formações. Por outro lado, dada a complexidade
desse aspecto, é preciso ressalvar que muitas questões ainda estão em aberto.
A descrição dos dados priorizou o enfoque morfológico, recorrendo também
a critérios de natureza semântico-lexical. Por se tratar de elementos de uso
classificatório, alguns aspectos morfossintáticos emergiram dos dados, levando
a considerações também de cunho sintático. O estudo procurou aprofundar-se
em algumas questões já indicadas por Sousa Filho (2007).
A descrição dos TC du ‘capim’, nõ (coco) ‘palmáceas’, kö ‘água’, kRu ‘roedores’,
kuh«) ‘suídeos’, kuk«) ‘quelônios’, ktö ‘animais comestíveis’, si ‘aves’, tbe ‘peixes”,
de ‘árvore’, zö ‘sementes’, são descritos através de esquemas que indicam: o TC
selecionado, a provável origem, o composto, o sentido totalizante e a tradução
para o português. Alguns desses TC ordenam classes de itens numerosos (tpe
e ude), outros organizam conjuntos com poucos itens (z ‘semente’) ou ainda
classes mais específicas com um item apenas, mas que apresenta espécies
diferentes deste mesmo item.
Os termos de classe em Akwe)-Xerente, fazem parte de um grupo semântico
cujos traços comuns podem ser delimitados pelas propriedades do objeto
a que fazem referência. Os TC coocorrem em combinação com outras raízes,
fornecendo aspectos semânticos definidos, principalmente, pelas características
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físicas presentes em seu conteúdo nocional. Ocorrem como núcleo de alguns
compostos organizando no nível lexical uma determinada classe nominal. Em
Akwe)-Xerente, o uso dos TC é obrigatório, pois não parece possível omitilos sem prejuízo da função “hiperonímica” com a qual organizam e ordenam
os itens em um mesmo grupo. Itens que, segundo a cultura Akwe)-Xerente,
pertencem à mesma categoria de objetos do mundo.
Devido ao alto grau de lexicalização dos termos de classe, pode-se aventar a
possibilidade de não considerá-los exatamente como um mecanismo do sistema
classificação da língua. No entanto, quando se considera que a função dos TC na
língua refere-se, principalmente, à intensa interrelação do povo Akwe-Xerente
com a natureza e com os elementos da natureza, parece coerente afirmar que tanto
os TC quanto os classificadores nominais e os nomes em função classificadora
Siqueira (2010) fazem parte do sistema de classificação nominal da língua.
Cabe, mais uma vez, ressalvar que as descrições desenvolvidas neste artigo
estão distantes de serem completas, mas podem contribuir para elucidação de
algumas questões importantes acerca da gramática da língua Akwe)-Xerente;
para compreensão de fenômenos específicos da categorização linguística,
inerentes ao modo de vida e visão de mundo do povo xerente, pois, segundo
Aikhenvald (2000), as escolhas dos nomes que funcionam como classificadores
é típico da família linguística e, até certo ponto, podem ser explicadas por
convenções e tradições culturais.
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NARRADORES MACHADIANOS EM “BONS
DIAS”: ATOS PERFORMÁTICOS EM BUSCA DOS
LEITORES OITOCENTISTAS
Nelson de Jesus Teixeira Júnior1*
Patrícia Kátia da Costa Pina2**
RESUMO
O presente trabalho busca estudar o ato de narrar machadiano enquanto
recurso discursivo de conquista do leitor oitocentista, entendendo “para quê”
e “quando” os “narradores” machadianos presentes nas crônicas de “Bons
Dias!”, através do ficcional, construíam de maneira performática relatos reais
e imaginados, que fisgavam o seu interlocutor. Esse estudo será efetuado por
meio de uma análise comparativa entre as crônicas datadas de 19 de abril de
1888, 19 de maio de 1888 e 1 de junho de 1888. Palavras-Chave: Narrador Machadiano. Leitor. Literatura. Crônica. Abstract: This paper explores the act of narrating machadiano as a resource
for discursive achievement of nineteenth-century reader, understanding “why”
and “when” the “narrators” machadianos present in the book of “Bons Dias!”
through the fictional, constructed in a performative stories real and imagined,
that comes up your party. This study will be done through a comparative
analysis between chronic dated April 19, 1888, May 19, 1888 and June 1, 1888. Keywords: Machado’s narrator. Reader. Literature. Chronicle. 1- * Mestre em Letras: Linguagens e Representações (2011) pela Universidade Estadual de Santa
Cruz e professor da Faculdade Montenegro, Ibicaraí-BA. Universidade Estadual de Santa Cruz
(UESC) [email protected]
2- ** Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2000),
Pós-Doutorado em Letras Vernáculas (UFRJ, 2010). Atualmente é professora Titular de Literatura
Brasileira da UNEB, Campus VI, Caeteté-BA. [email protected]
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
[...] cada leitor, cada espectador, cada convite produz
uma apropriação inventiva da obra ou do texto que
recebe. (CHARTIER. A aventura do livro: do leitor ao
navegador.)
A relação entre texto e leitor é marcada por um dialogismo, uma vez que o texto
traz consigo sentidos imanentes que provocam a inserção dele, o leitor, sobre
a obra. Essa previsão textual de uma relação diádica entre leitor e texto é perceptível na série “Bons Dias”, composta por crônicas de Machado de Assis, escritas entre 1888 e 1889 no Brasil. Essas narrativas levavam ao leitor muitos dos
acontecimentos da sociedade carioca por meio de notícias fragmentadas publicadas no jornal A Gazeta de Notícias, impresso que circulava no Rio de Janeiro.
Sabemos que a história da crônica no impresso iniciou-se através das produções
dos folhetins nas notas de rodapé do jornal e, tratava-se, na verdade, da
publicação de partes de romances que tinham a publicação interrompida pelo
pouco espaço do jornal que era destinado a essas publicações. Tratava-se,
ainda, da estratégia dos autores em parar a publicação no momento exato em
que despertasse a curiosidade nos leitores e que conduzisse – os em continuar
lendo as outras partes publicadas até construir os caminhos dos sentidos que
eram interrompidos pela forma de publicação.
Por isso os folhetins apareciam publicados em pedaços que se completavam
nas publicações seguintes, o que terminava despertando o interesse do leitor
em comprar a próxima edição do jornal para acompanhar o enredo, de caráter
contínuo, desse tipo de literatura. Marlyse Meyer (1996) em sua obra Folhetim:
uma história, realiza uma pesquisa criteriosa e aprofundada sobre os folhetins, o
que nos possibilita compreender um pouco mais sobre a natureza desses escritos
que circulavam pelo dezenove brasileiro. Nessa pesquisa realizada por Meyer
podemos identificar a discussão realizada pela autora quanto às especificidades
do folhetim enquanto tipo de escrita que fascinava os leitores da literatura local
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e estrangeira. A referida autora discute, ainda, sobre o desenvolvimento desse
gênero e do espaço ocupado no impresso oitocentista.
E por citar a palavra impresso, é preciso entender que o espaço disponível à
publicação de folhetins servia como um estratagema para o escritor, pois a
depender da aceitabilidade e discussão em torno da obra publicada, já era um
bom indício de aceitabilidade de seu escrito e, além disso, o jornal se beneficiava
por ter mais um chamariz para o aumento de seus leitores. Meyer discorre da
seguinte maneira sobre essa funcionalidade do impresso:
A imprensa se alimenta também do brilho das ruas,
dos cafés fervilhantes, das reuniões de literatos,
de políticos, do teatro onde se trocam boatos e se
divulgam as últimas notícias.
A esse papel da
indústria e das cidades some-se obviamente o do
público, que cresce e aumenta suas exigências. Um
público que é ao mesmo tempo causa e resultado
(MEYER, 1996, p. 91).
Esse combustível necessário à imprensa estava bem presente nas notas de
rodapé, através dos folhetins, e mais a diante nas primeiras páginas dos jornais
através das crônicas publicadas. O caráter múltiplo desses textos literários
publicados no periodísmo traziam, dentro de sua razão de ser, a presença do
híbrido e multifacetado discurso literário. De uma pequena nota no rodapé da
página do impresso ou periódico oitocentista a um espaço no centro de muitas
folhas jornalísticas, envolto de outras tantas informações e imagens nos jornais
novecentistas e contemporâneos, a crônica tomou espaço e forma suficiente
que a coloca na condição de um gênero narrativo literário que viabiliza outras
formas de leitura e de relação do interlocutor com o tipo de composição.
Logo, mesmo esse gênero sendo um atrativo a mais do jornal, não era usado apenas como uma nota a preencher o espaço da folha, visto que o cronista
machadiano aproveitava para informar, conquistar, dialogar e construir novos
perfis de leitores. Estudaremos algumas crônicas do ano de 1888, buscando entender como o narrador machadiano, de maneira performática e versátil, flutuSABERES Letras
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ando entre o real e o ficcional, poderia atrair os vários perfis de leitores cariocas
do dezenove brasileiro. Além disso, pretendemos discutir a relação entre texto
e leitor, lançando mão da Teoria do Efeito de Wolfgang Iser.
A CRÔNICA...
Antes de realizarmos as reflexões propostas no início desse texto, é preciso
compreender acerca do começo desse tipo de texto (seja folhetim ou crônica), o
qual antecede à história do impresso, chegando ao ponto de se confundir com a
história do deus Cronos. Segundo a Mitologia, Cronos era um deus, filho de
Urano (o Céu) e de Caia (a Terra). Entretanto, rompendo com a “ordem lógica”
da relação familiar estabelecida, ele destronou o pai e casou com a própria irmã,
Réia. Seus pais, detentores do saber que previa o futuro, predisseram-lhe, então,
que ele seria destronado, assim como aconteceu com seus pais, por um dos filhos
que gerasse. Cronos, para evitar a concretização da profecia, passou a devorar
todos os filhos nascidos de sua união com a irmã. Até que esta, possuída pelo
grande amor materno, grávida mais uma vez, conseguiu enganar o marido,
dando-lhe a comer uma pedra em vez da criança recém-nascida.
Assim, a profecia realizou-se: Zeus, o último da prole divina, conseguindo
sobreviver, deu a Cronos uma droga que o fez vomitar todos os filhos que
havia devorado e liderou uma guerra contra o pai, que acabou sendo derrotado
por ele e os irmãos. Essa mitologia possibilita entender Cronos enquanto a
personificação do tempo e, de acordo com uma das abordagens teóricas dos
mitos clássicos, sua lenda pode ser lida, também, como uma metáfora de que o
tempo engole tudo (pessoas, objetos, tempos, vidas...), do que é criado à própria
criatura. Logo, a relação entre a crônica – termo que deriva, também, da ideia
de cronos – e o tempo será sempre de muita proximidade, conforme veremos
nas próximas reflexões.
A crônica é um gênero literário ambíguo que pertence, ao mesmo tempo, ao
jornalismo e à literatura (até onde vai o jornalista e onde começa o escritor?),
e que traz uma linguagem aberta aos mais variados assuntos e abordagens. A
ausência de imposições limítrofes entre o que pode e o que não pode, viabiliza
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que a crônica devore o cotidiano nas suas mais elásticas possibilidades de
abordagens, fazendo de tudo, um motivo para a manutenção do diálogo e da
reflexão com seu leitor.
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A CRÔNICA MACHADIANA
Em sua crônica datada de 1 de junho de 1888, o cronista trazia ao seu leitor
alguns acontecimentos que ainda estavam recentes naquela sociedade, como
a ideia de educação enquanto identificadora de classes, já que a maneira de se
comportar, tratar ou mesmo conversar, separava o burguês daqueles que não
possuíam o ar de “nobreza”. Mas, antes de iniciar o processo definitivo de
atualização e discussão dos acontecimentos fluminenses, para estabelecer um
diálogo com seu leitor, o narrador de “Bons Dias” convida aquele que já era
seu parceiro de leitura e que trazia consigo todas as informações cotidianas: o
burguês, o qual ostentava certo orgulho pela sua educação:
Agora fale o senhor, que eu não tenho nada mais que
lhe dizer. Já o saudei, graças à boa educação que Deus
me deu, porque isto de criação, se a natureza não
ajuda, é escusado trabalho humano. Eu, em menino
fui sempre um primor de educação. (ASSIS, 1997, p.
74).
Esse trecho acima representa bem o ar burguês da época, classe que fazia questão
de, como um “pavão”, dançar para exibir sua beleza, no caso da classe burguesa
nem sempre natural, e conseguir os olhares de admiração. Mas o narrador, ao
construir esse foco narrativo, consegue, sem perder os requintes de burguês,
seduzir a atenção desse tipo de leitor, o qual tinha como traço marcante de sua
leitura a rapidez, o descompromisso, a superficialidade e a parcialidade leitora,
o que faz desse foco narrativo um convite à intervenção dele, o burguês.
Quanto a essa relação entre a estratégia da crônica e o leitor, cabe refletir
sobre a importância desse tipo de linguagem cotidiana do jornal impresso.
Em Jornalismo e ciências da linguagem, Gomes (2000) discute um pouco sobre a
relação metalinguística entre o Jornal e a linguagem, afirmando que o Jornalismo
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exerce uma funcionalidade linguística: “Antes de registrar, informar, antes de
ser colocado pelas condições que o caracterizam, por exemplo, periodicidade,
atualidade, difusão [...] o jornalismo é ele próprio um fato de língua.” (GOMES,
2000, p.19).
Assim, entendemos que o jornal seria como uma metáfora da
língua enquanto órgão, já que traria à tona as situações conversacionais e
vivenciais próprias dos falantes que o consomem em seu tempo, o que permite
a esses consumidores estabelecerem relações bastante próximas, que os fazem
se identificarem com aquilo que é publicado no jornal.
Ainda abordando a página jornalística, é preciso lembrar que A Gazeta de Notícias
permitia ao seu público um acesso constante à sofisticação crescente da linguagem
jornalística, fosse por meio das crônicas machadianas que revisitavam e reliam
o cotidiano do leitor, fosse pelo uso de outras linguagens como propagandas,
notícias, enfim, os mais variados assuntos e formas de abordagens. Sob esse
ângulo, vale pensar sobre o que Lúcia Santaella (1996) em Cultura das mídias,
especificamente no capítulo que leva o mesmo nome do livro, aborda sobre
o jornal impresso, indicando que conseguiu transformar o caráter verbal da
palavra escrita, que passou a adquirir uma plasticidade gráfico-imagética:
O jornal compõe-se da interação e simultaneidade da
linguagem verbal escrita, da linguagem fotográfica
e da linguagem gráfica, evidente esta na variação
do tamanho e posição dos tipos gráficos no espaço
da página como aspecto substantivo da mensagem.
(SANTAELLA, 1996, p. 46).
Essa relação de jornal e língua permite-nos refletir sobre o processo de seleção,
combinação e autodesnudamento, usado pelos escritores que habitam esse espaço
da escrita, principalmente os cronistas, os quais permitem que o texto traga
consigo as marcas do fingimento, em que o escrito passa a não ser um mero
retrato da realidade, tampouco um reduto apenas da ficção.
No livro Teoria da literatura em suas fontes, organizado por Costa Lima,
especificamente no texto “Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional”
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Iser (2002), refletindo sobre a relação entre o real e o fictício, discute, também,
os atos de fingir, a saber, a Seleção, enquanto transgressão de limites em que
os elementos do real escolhidos pelo texto se desvinculam da estruturação
semântica ou sistemática dos sistemas de que foram tomados. A Combinação,
enquanto geradora de relacionamentos intratextuais que se revelam como a
intencionalidade do texto. Por fim, o Desnudamento, como um mundo posto
entre parênteses, para que se entenda que o mundo representado não é o dado,
mas que deve ser apenas entendido como se o fosse.
Nessas narrativas de “Bons Dias”, o narrador, a todo instante, estabelece uma
conversa com seu leitor, citando-o, trazendo à discussão assuntos do cotidiano,
comentando sobre os fatos, fazendo perguntas ao leitor, enfim, se contorce
para que esse diálogo seja um constructo que convida quem lê a penetrar e
permanecer na leitura do texto. A essa relação de conversa, não escapava a
ironia assimétrica, que na narrativa em análise se presentifica muito mais pelo
disfarce em não apresentar de vez o assunto ao burguês, o que conferia um ar
de diálogo leve e cotidiano, além de curioso: “A minha alma, que nunca se deu
com política, dormia que era um gosto; mas os olhos não, esses iam por ali fora,
risonhos, aprobatórios.” (ASSIS, 1997, p. 74).
Lembrando, ainda, que a questão em discussão nos permite entender um pouco
esse perfil de leitor, o qual não era dado aos assuntos políticos e fazia um tipo
de leitura por conveniência, uma prática muito comum para uma burguesia que
desfrutava dos resquícios da monarquia ainda existente na república.
OUTRAS REFLEXÕES SOBRE A CRÔNICA MACHADIANA
Partindo para a leitura de outra crônica dessa série “Bons Dias”, na narrativa
datada de 19 de abril de 1888 nos deparamos com a representação de uma
prática de leitura realizada pelo narrador e, mesmo sem especificar o conteúdo,
talvez como estratégia discursiva para ativar o imaginário do leitor, entendemos
que a notícia lida tratava-se de alguma informação médica, pois ele cita o Dr.
Costa Ferraz, que era um médico da época.
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Pois olhem, quando eu entrei aqui, vinha alegre; tinha
lido umas revelações do amigo Dr. Costa Ferraz, que
me lavaram a alma das melancolias pecuniárias,
únicas que me afligem deveras. As outras não passam
de canseiras ridículas. Falta de dinheiro, isso dói; ao
menos, para quem não é governo. (ASSIS, 1997., p.
45).
Nessa passagem da narrativa machadiana podemos perceber, também, um
certo jogo realizado pelo narrador, visto que mesmo tendo realizado a leitura,
não informa para o leitor o teor da informação lida. E, nesse jogo de escondeesconde, o leitor participa da brincadeira como aquele que busca encontrar
algo.
O teórico Huizinga (2000), em seu livro Homo Ludens: o jogo como elemento da
Cultura, discute alguns atributos que envolvem o jogo: “Antes de mais nada, o
jogo é uma atividade voluntária. Sujeito a ordens, deixa de ser jogo, podendo
no máximo ser uma imitação forçada.” (HUIZINGA, 2000, p. 10). Nessa
ausência de ordens externas, o leitor é envolvido de maneira voluntária em uma
brincadeira de descoberta, mas, descoberta de quê?
Aí entra a essência desse jogo realizado pelo narrador, um jogo em que se busca
o que necessariamente não se sabe ou não se espera saber. É necessário lembrar,
ainda, que o jogo aparece na leitura enquanto caminhos e descaminhos que
convidam a intervenção do leitor e esses percursos propostos no texto, os quais
são desenhados à espera de uma ação sem ordens (fórmulas) preestabelecidas,
o que lança sobre quem lê a importância de usar seu imaginário na construção
de significado sobre o lido.
Esse jogo em torno da leitura acaba sendo uma prática terapêutica, visto que o
próprio narrador cita sua experiência de aflição sendo atenuada por meio da
leitura. Nessa passagem em discussão, o leitor torna-se fisgado, também, pela
informação na narrativa acerca da importância da leitura enquanto atividade
que permite ter acesso ao conhecimento e, ainda, como citado antes, enquanto
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um processo terapêutico que atenua as aflições.
O trecho da narrativa machadiana em discussão evoca, ainda, outro assunto
a ser objeto de reflexão do leitor, agora sobre o governo. O leitor é convidado
a formar um novo olhar sobre o governo local, já que o narrador, por meio de
uma citação relâmpago, constrói a imagem de um governo abastado, opulento
e extravagante nas finanças, o que nos permite associá-lo metaforicamente à
própria imagem da burguesia local.
Em outra passagem da mesma narrativa, o leitor é convidado pelo narrador
a discutir outra leitura feita, agora, em torno da existência ou não de escravos
na sociedade carioca. Essa discussão nos é apresentada de maneira que, em
torno dela, surgem perfis diferentes de leitores, visto que a prática da leitura é,
também, conforme veremos no trecho em discussão, uma visão de mundo de
determinado grupo ou pessoa:
Confesso que estimei ler tão agradável notícia; mas,
como não há gosto perfeito nesta vida, recebi daí a
pouco uma mensagem assinada por cerca de 600.000
pessoas [...] pedindo-me que retifique o discurso
do Sr. Fernandes Vilela. Há escravos, eles próprios
o são. Estão prontos a jurá-lo e concluem com esta
filosofia, que não parece de preto: “As palavras do
Sr. Fernandes Vilela podem ser entendidas de dois
modos, conforme o ouvinte ou o leitor trouxer uma
enxada às costas, ou um guarda-chuva debaixo do
braço. Vendo as coisas, de guarda-chuva, fica-se com
fuma impressão; de enxada, a impressão é diferente.”
(HUIZINGA, 2000, p. 48).
Logo, o leitor oitocentista carioca é colocado frente a não apenas assuntos
diferentes, mas a práticas de leituras diferentes, em que a leitura de si e sobre o
entorno de si é que vai atribuir significado ao assunto em discussão: existência ou
não de escravos na sociedade carioca... E, com toda essa questão em discussão,
o narrador machadiano traz para o leitor da narrativa de “Bons Dias” caminhos
e posturas diferentes que podem ser trilhados e, também, multiplicados pelos
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próprios leitores.
Vale ressaltar o caráter educativo dessa crônica por trazer para discussão as
questões acerca da existência da escravidão, posto que essas narrativas, por
meio da educação distensa3, alcançava os mais variados tipos de leitores nos mais
variados tipos de locais e das mais variadas formas. Isso, pela plasticidade
enunciativa que o impresso tinha de, por meio da linguagem visual, escrita ou
oral (através de quem lia) levar um acervo de conhecimentos amplo à população
carioca em geral. Esse tipo de educação possibilitada através do impresso
permite-nos entender a importância que teve o jornal na veiculação de saberes
e, principalmente, para os mais variados tipos de leitores, os quais mesmo não
tendo acesso ao espaço escolar, se atualizavam com as informações. Pina (2002),
em Literatura e jornalismo no oitocentos brasileiro aborda essa funcionalidade
educadora:
[...] a educação distensa, repito, independendo
diretamente de espaços escolares institucionais leva
um acervo de conhecimentos bem mais variado e
amplo a população - qualquer um, mesmo analfabeto,
pode saber o que está escrito em um jornal [...]. (PINA,
2000, p. 36).
A autora sugere a importância que teve o jornal impresso enquanto veiculador
de saberes, o qual tinha alcance garantido para as mais variadas classes de
leitores.
Com isso, o alcance do jornal era amplo e certo, pois se tratava de um transmissor
de informações rápido e eficiente por ser uma mídia que facilitava (e ainda
facilita) a leitura em locomoção, o acesso à informação por via de outros leitores
e a permissão ao interlocutor de ler em qualquer lugar público. Além disso,
o impresso permitia o acesso aos jornais que passavam do dia de venda, pois,
3- PINA (2002), em Literatura e jornalismo no oitocentos brasileiro, especificamente na 1ª parte
do livro, a autora trabalha a ideia de educação distensa enquanto um saber que transcende o
espaço escolar tomando outros rumos como o esforço pessoal do interlocutor e a divulgação via
mídias, como por exemplo o impresso.
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ainda que o leitor não consumisse no devido dia de tiragem, poderia ter acesso
aos jornais por outros meios, já que tinham (e ainda tem) um prazo de validade,
ou seja, são consumidos em um dia e jogados fora em outro.
Em algumas situações, ocorre nesses textos machadianos a heterogeneidade
enunciativa, posto que há momentos em que as próprias personagens exercem
várias posturas discursivas em uma mesma crônica, como é o caso da narrativa
de 1 de junho de 1888, em que a personagem conversa sobre si “Eu, em menino
fui sempre um primor de educação.” (ASSIS, 1997., p. 74). Entretanto, nessa
crônica, o mesmo personagem exerce uma função de narrador, por retomar
seu próprio passado e, ainda, de cronista, por sair da função de personagem,
afastando-se da história ficcional e convidar o leitor a exercer um juízo de valor
sobre o que foi relatado na narrativa “Tiro o chapéu, como fiz agora ao leitor;
e dei-lhe os bons dias do costume. Creio que não se pode exigir mais. Agora, o
leitor que diga alguma cousa, se está para isso, ou não diga nada, e boas noites.”
(IDEM, p. 76).
Esses tipos de leitores descritos aqui eram, na verdade, leitores implícitos,
conforme reflete Iser (1996), o qual entende que a participação do leitor no
processo de leitura relaciona-se à natureza perspectivística do texto, dado que
seus elementos condicionam determinadas reações. Dessa maneira, a ideia de
leitor implícito é de grande relevância no desenvolvimento da leitura estética,
pois, aliada aos estímulos produzidos no imaginário do leitor, o incita a assumir
um papel ativo na construção da ficção:
As perspectivas do texto visam certamente a um
ponto comum de referências e assumem assim o
caráter de instruções; o ponto comum de referências,
no entanto, não é dado enquanto tal e deve ser por
isso imaginado. É nesse ponto que o papel do leitor,
delineado na estrutura do texto, ganha seu caráter
efetivo. Esse papel ativa atos de imaginação que de
certa maneira despertam a diversidade referencial
das perspectivas da representação e a reúnem no
horizonte de sentido (ASSIS, 1996, p. 75).
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Essa teoria iseriana nos permite entender que a relação entre texto e leitor
completa-se e que o resultado se concretiza com a operacionalidade do leitor
sobre o texto, o que nos dará maior amparo em estabelecer relação entre as
estratégias discursivas de Machado de Assis e seu leitor, seja ele o burguês ou
mesmo outro perfil de leitor implícito.
REFLEXÕES FINAIS SOBRE A CRÔNICA MACHADIANA
Por fim, a crônica de “Bons Dias” datada de 19 de maio de 1888 que se refere
ao escravo Pancrácio, permite uma leitura do engodo que foi a aplicabilidade
prática de algumas leis, especificamente as abolicionistas existentes no Rio de
Janeiro:
Eu pertenço a uma família de profetas... Por isso digo,
e juro se necessário for, que toda a história desta lei
de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que
na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei
de alforriar um molecote que tinha, pessoa dos seus
dezoito anos [...] (ASSIS, 1996., p. 62).
A dívida que o liberto levaria consigo se confirma no trecho a seguir, o qual
deixa claro, por meio do foco narrativo dado pelo narrador, que a “liberdade
concedida” não passava de uma outra forma de escravidão, em que o liberto
por não ter condições de se manter, acabava vindo para seu antigo senhor ser
novamente usado.
No caso de Pancrácio, o texto permite-nos fazer uma leitura bem mais complexa,
pois Pancrácio se torna escravo duas vezes, uma por ter que voltar para o seu
senhor, pois não tinha condição de se manter e, escravo pela segunda vez,
porque devia um preço pela generosidade de seu senhor, pois ele foi liberto
antes mesmo de ser aprovada a lei da abolição. Segue o texto em discussão:
No dia seguinte chamei o Pancrácio e disse-lhe com
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rara franqueza:
— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens
casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado,
um ordenado que...
[...]
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que
lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as
botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que
o peteleco, sendo um impulso natural, não podia
anular o direito civil adquirido por um título que lhe
dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois
estados naturais, quase divinos. (ASSIS, 1996, p. 63).
Aqui, nos deparamos com uma alusão ao “leitor politizado”, que não vê nada
com um olhar rápido, mas, questiona, refuta e constrói outras leituras... perfil de
leitor que era construído pelas narrativas e pelo foco construído pelo narrador
de “Bons Dias”.
Em se tratando de leitura e/ou tipos de leitores, em A formação da leitura no Brasil
Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1998) fazem um passeio sobre a história
da leitura no Brasil passando, também, por números e cifras que envolviam
as negociações dos produtores literários com as editoras, as esparsas escolas
oitocentistas existentes, formas de circulação de livros e impressos e, também,
os poucos leitores existentes. O que permite entender que as reflexões em torno
desse leitor oitocentista são, antes de tudo, uma história sobre o impresso, a
leitura, as políticas públicas em torno da leitura, por que não afirmar, sobre
nossa própria história.
CONSIDERAÇÕES “FINAIS”
Portanto, a série de crônicas “Bons Dias” permitiria ao leitor do oitocentos
brasileiro, por meio da plasticidade do narrador machadiano, estabelecer uma
relação mais próxima com os fatos cotidianos a partir de uma leitura crítica,
irônica, humorística e convidativa, o que possibilitava manter o leitor habitual,
o burguês e, ainda, construir novos perfis de leitores, o politizado, os quais eram
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fisgados pelo seu cotidiano, pelo seu hábito à adentrar no mundo de leitura
das crônicas escritas em forma de mosaicos. Assim era “Bons Dias” - com um
título sugestivo de saudação e com formas de narrar multifacetadas e plásticas,
convidava seus leitores e construía muitos outros...
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Bons Dias. Introdução e notas de John Gledson. São Paulo:
HUCITEC, 1997.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1998.
GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. Rio de Janeiro: Paz &
Terra, 1986.
GOMES, Mayra R. Jornalismo e ciências da linguagem. São Paulo: Edusp e
Hacker Editores, 2000.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo:
Perspectiva, 2001.
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Ed.
34, 1996.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. 2.ed.
São Paulo: Atica, 1998.
MEYER, Marlyse. “Segunda fase do romance-folhetim (1851-1871) – Rocambole,
‘a Ilíada de realejo’”. In.: MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
PINA, Patrícia Kátia da Costa. Literatura e jornalismo no oitocentos brasileiro.
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Ilhéus, BA: Editus, 2002.
SANTAELLA, Lúcia. Cultura das mídias. In.: Cultura das Mídias. São Paulo:
Experimento, 1996.
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NAS LINHAS E ENTRELINHAS DAS NARRATIVAS
DO TIPO HISTÓRIA: UM ESTUDO DA
ORGANIZAÇÃO ENUNCIATIVA E POLIFÔNICA
Raquelli Natale1*
Micheline Mattedi Tomazi2**
Resumo
Este artigo pretende contribuir com a pesquisa linguístico-discursiva, mais
especificamente para o estudo do fenômeno da polifonia em um texto do tipo
narrativo. Nosso objetivo é verificar como a polifonia e a intertextualidade
contribuem para a produção de efeitos de sentidos pelo leitor. Nosso objeto
de análise é a narrativa O Dragão (releitura de A Bela Adormecida), presente
na obra “Que história é essa?”, de Flávio de Souza (2007). Para tanto, partimos
dos conceitos e princípios relacionados ao Modelo de Análise Modular (MAM),
desenvolvido por Roulet; Filliettaz e Grobet (2001) privilegiando a dimensão
situacional e a dimensão interacional, conjugadas às formas de organização
enunciativa e polifônica do discurso.
Palavras-chave: Modelo de análise modular. Polifonia. Discurso das narrativas
infantis. Intertextualidade.
Abstract: This project want to contribute with the search discursive-linguistic,
more specifically to the phenomenon of polyphony an text of type narrative.
Our object is to check as the polyphony and the intertextuality contribute
for the production of effects of sense by the narrator. Our object of analysis
is the narrative “The Dragon” (reading of “Beauty Sleeping”), present in the
book “What’s story this?” Flavio de Souza (2007). For both, the concepts and
principles related to the Modules of Analysis Modulate (MAM), developed
by Roulet; Filliettaz; Grobet (2001) privileging the dimension situational and
the dimension interactional, combined the forms of organization of discourse
enunciative and polyphonic.
1- * Graduanda em Letras na Universidade Federal do Espírito Santo – UFES – Aluna PIBIC de
Iniciação Científica, Vitória, Espírito Santo, Brasil. [email protected]
2-** Professora doutora do Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal do Espí�
rito Santo – UFES – Vitória, Espírito Santo, Brasil. [email protected]
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Keywords: Modelo de análise modular. Polyphony. Infantile narrative discours.
Intertextualidade.
Considerações iniciais
A intenção de trabalhar com o gênero contos de fadas não surgiu abruptamente.
O mundo maravilhoso do conto infantil está presente no nosso imaginário social
e sempre nos instigou. Se, por um lado, a história demonstra que a voz da
tradição oral tomou forma no texto literário, por outro, as variantes intertextuais
nos fazem ver que esse gênero textual foi e continua sendo retomado, tantas
vezes, a serviço de outras enunciações que reforçam, entre outras coisas,
o caráter dialógico da linguagem. Esse gênero, então, pode ser tomado pelo
direito e pelo avesso, instigando o pesquisador a buscar as relações que o
constituem: do enunciado com a enunciação, do eu com o outro, da expressão
com o conteúdo.
Partindo dessas premissas, propomos a análise do texto “O Dragão”, presente na
obra literária “Que história é essa?”, de Flávio de Souza (2007), com a intenção de
verificar como seu caráter dialógico, intertextual e polifônico, promove as vozes
enunciativas e, como o reconhecimento da polifonia e das relações intertextuais
permite a produção de efeitos de sentidos pelo leitor.
Para desenvolver a análise do conto, optamos pelo aparato teórico-metodológico
oferecido pelo Modelo de Análise Modular (MAM) proposto por Roulet;
Filliettaz e Grobet (2001).
Entendendo, de imediato, que a noção de intertextualidade difere da noção de
polifonia e, ainda, considerando as reflexões que a leitura da obra escolhida para
este trabalho provocou em nós, partimos dos seguintes questionamentos: Qual
a relevância do fenômeno da intertextualidade na suscitação de vozes, no texto
narrativo, e como essa ferramenta é utilizada no texto? De que maneira a polifonia
contribui para a produção de sentido na narrativa da obra literária, “Que história
é essa?”, de Flavio de Souza (2007)? Qual a relação entre os diferentes níveis de
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interação no discurso do tipo narrativo? Como a acoplagem das informações
do módulo interacional com as formas de organização enunciativa e polifônica
contribuem para a evidência das construções polifônicas?
Para tanto, num primeiro momento, faremos um breve percurso pelo atual
Modelo de Análise Modular (MAM), a fim de demarcar nossa posição e
escolha dentre os módulos e as formas de organização que serão utilizados
em nosso trabalho de análise. A partir dessa delimitação do campo teóricometodológico, propomos a análise do texto para, em seguida, apresentarmos
nossas conclusões.
Um percurso pelo Modelo de Análise Modular
Para trabalhar com uma análise modular, o primeiro passo dado foi no sentido
de apresentar, ainda que rapidamente, o atual Modelo de Análise Modular
(MAM), que se constrói a partir de uma perspectiva interacionista da linguagem,
e reconhece o discurso como o resultado de uma interação linguageira que se
organiza em três níveis: o linguístico, o textual e o situacional. Segundo Cunha
(2009, p.2), em linhas gerais, o MAM configura-se como um sistema de análise
que integra e articula, numa perspectiva cognitivo-interacionista, as dimensões
linguística (ligadas à sintaxe e ao léxico da variante linguística utilizada), textual
(ligadas à estrutura hierárquica do texto) e situacional (ligadas ao universo de
referência e à situação de interação) da organização do discurso. O MAM é um
aparato teórico-metodológico que não sustenta análises interpretativas, mas
sim, que as propõe, como um instrumento capaz de tornar nossas análises mais
sustentáveis, além, é claro, de permitir uma maior disciplina do ponto de vista
teórico-metodológico.
Segundo Roulet; Filliettaz e Grobet, (2001) a hipótese que sustenta a análise
modular é a ideia de que o discurso pode ser decomposto em módulos e em
formas de organização e se constrói pela utilização de um repertório linguístico
em uma situação de interação. Nessa perspectiva, justifica-se a escolha de um
discurso do tipo narrativo, visto que a narrativa, ou melhor, todo texto que
apresenta a predominância de sequências narrativas, é um relato focado num
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fato ou acontecimento, em que há personagens atuando em uma situação de
interação, e um narrador, que relata a ação num espaço e tempo determinados,
o que justifica nossa pretensão em estudar como esse tipo textual se constitui em
se tratando de sua forma de organização enunciativa e polifônica.
De acordo com Roulet; Filliettaz e Grobet (2001),
(...) l’approche modulaire de l’organization
du discours implique une double exigence: a)
décomposer l’organisation complexe du discours
en un nombre limité de systèmes (ou modules)
réduits à des informations simples et b) décrire de
menière aussi précise que possible la manière dont
ces informations simples peuvent être combinées
pour rendre compte des différentes formes
d’organisation des discours analysés. (Roulet;
Filliettaz e Grobet, 2001, p.42)3
Pelo método proposto nesse modelo, cada dimensão pode ser descrita de forma
independente, num primeiro momento de découpage, e depois completada com
a couplage dos dados alcançados com a descrição das dimensões.
Assim, o objetivo maior deste estudo é analisar a narrativa, tomando como
base a teoria genebrina, desenvolvida por Roulet, Filliettaz & Grobet (2001).
O quadro, abaixo, representa o modelo mais atual do MAM proposto pelos
pesquisadores:
�����������������������������������������������������������������������������������
- O aporte teórico modular da organização do discurso implica uma dupla exigência: (a
������
de�
compor a organização complexa do discurso em um número limitado de sistemas, reduzidos a
informações simples e; b) descrever, de maneira bastante precisa, a forma através da qual essas
informações podem ser combinadas para dar conta das diferentes alternativas de organização dos
discursos analisados. (ROULET; FILLIETTAZ E GROBET, 2001, p. 42, tradução nossa).
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Fig. 1: Quadro do MAM proposto por Roulet; Filliettaz e Grobet (2001, p.51).
Trajeto da análise
A partir dos conceitos da teoria modular, Roulet, Filliettaz & Grobet, (2001)
concebem a análise do discurso por módulos, uma vez que o discurso pode ser
decomposto em sistemas de informações que, por sua vez, podem ser descritos
independentemente e, posteriormente, as informações obtidas de cada módulo
podem ser relacionadas, dando uma visão apurada de toda a completude do
discurso.
Roulet e sua equipe defendem a ideia de que o discurso em si não é constituído
por módulos, mas que, para analisá-lo, devido à sua complexidade, as bases
do que chamou de teoria modular são satisfatórias. Dessa forma, para alcançar
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a análise de uma forma de organização complexa como a polifônica há um
percurso metodológico que passa por informações modulares e, ainda, pelas
informações das formas de organização elementares até que se possa evidenciar
a complexidade de uma forma de organização como a polifônica. De acordo
com os pressupostos do MAM (ROULET; FILLIETTAZ E GROBET, 2001),
a análise das informações polifônicas se dá pela descrição da organização
enunciativa, a primeira etapa de análise da organização polifônica. A segunda e
mais importante é a etapa que nos permite refletir sobre a função dos discursos
representados no discurso produzido. A forma de organização elementar
enunciativa constitui-se da acoplagem de informações advindas da relação
dos discursos com os níveis do quadro interacional (módulo interacional), da
ordem linguística, quando os discursos representados são marcados (módulo
lexical) e, caso os discursos não venham marcados, das informações que são de
origem situacional (módulo referencial).
A descrição da organização enunciativa é apenas a primeira etapa de análise da
organização polifônica. A segunda e mais importante é a etapa que nos permite
refletir sobre a função dos discursos representados no discurso produzido.
Podemos dizer que a noção de polifonia adotada pela abordagem modular
dialoga com a concepção de polifonia bakthiniana, mas a grande contribuição
trazida pela proposta do MAM, em nosso ponto de vista, é a ideia da polifonia
como uma noção complexa na qual podemos perceber a intervenção de outras
formas de organização do discurso. Segundo o MAM (ROULET; FILLIETTAZ
E GROBET, 2001), a forma de organização complexa polifônica é o resultado da
couplage de informações de ordem linguística (lexical e sintática), interacional,
hierárquica, tópica e periódica.
Dessa forma, reconhecemos que uma análise enunciativa-polifônica, de acordo
com a proposta pelos autores, deve considerar, pelo menos, informações de um
dos módulos e de uma das formas de organização elementares.
A partir dessa visão, para que sejam evidenciadas as vozes constitutivas do
texto narrativo O Dragão (releitura de A Bela Adormecida), presente na obra
“Que história é essa?”, de Flávio de Souza (2007), percorreremos um caminho
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que possibilita uma análise enunciativa-polifônica da referida obra, a saber:
buscamos informações dos módulos referencial e interacional e as conjugamos
com as informações da forma de organização elementar e da forma de
organização polifônica. A figura, abaixo, representa o percurso que escolhemos
para a análise:
Fig. 2: Quadro com o percurso de análise que propomos para a narrativa.
Contando a história numa dimensão referencial
A narrativa escolhida para análise, O Dragão, de Flávio de Souza (2007), é
conhecida como um conto de fadas que se constitui como uma variação da
fábula ou conto popular carregado de conhecimentos e valores culturais. Assim,
a sociedade tem uma influência enorme acerca da construção do discurso que
fica pautado, entre outras coisas, na inquietação e no contexto de produção
deste público.
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O módulo referencial é definido por Roulet; Filliettaz e Grobet (2001, p.103) como
um componente elementar do discurso e trata das relações que as produções
linguageiras mantêm com as situações nas quais foram produzidas, bem como
com os ‘mundos’ que representa.
Segundo os autores:
Parce que ces actions et ces concepts sont partiellement
régulés par des attentes typifiantes, et toujours
négociés en situation, le module référentiel doit décrire
non seulement les représentations schématiques
(praxéoloxiques et conceptuelles) sous-jacentes au
discours, mais encore les structures ou configurations
émergentes (praxéoloxiques ou conceptuelles)
qui résultent de réalités discursives particulières
(ROULET; FILLIETTAZ E GROBET 2001, p. 103)4.
Conforme a citação acima é possível considerar que o módulo referencial trata das
ações linguageiras e não linguageiras e que essas construções estão subjacentes
ao discurso, resultado da interação entre os indivíduos. Em decorrência disso,
é possível propor as categorias que descrevem as ações, conceitos e atividades
envolvidas numa interação:
4- Porque essas ações e estes conceitos são parcialmente regulados por expectativas tipificantes,
são sempre situações negociadas, o módulo referencial deve descrever não só as representações
esquemáticas (praxeológicas e conceituais) subjacentes ao discurso, mais ainda as estruturas ou
configurações emergentes (praxeológicas e conceituais) que resultam de realidades discursivas
particulares. (ROULET; FILLIETTAZ EGROBET, 2001, p. 103, tradução nossa)
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Assim, para dar conta do mundo representado, desenvolvemos, abaixo, uma
breve representação praxeológica da narrativa “O Dragão”, a fim de captar
elementos que escapam a questões estruturais, tais como: intenção, objetivo,
motivo, agente.
Pode-se observar a presença de dois grupos acionais no quadro acima, um que
é motivado por elementos de produção de textos e outro na leitura deles. Para
que os objetivos de cada grupo sejam alcançados são utilizados artifícios de
persuasão, principalmente quando nos referimos ao escritor.
Para que sejam elencados mais elementos inerentes ao contexto de produção
veremos o quadro acional que, para Rufino (2006, p.53), configura-se como
instrumento de análise das ações desencadeadas em contextos efetivos,
explicitando-se a forma de organização das mesmas, por meio de cinco
parâmetros independentes: o modo, a finalidade, os papéis praxeológicos, a
direção e o grau de engajamento, e o complexo motivacional.
Vejamos, abaixo, a proposta de configuração de um quadro acional construído
a partir da interação entre o autor do conto, Flavio de Souza, e seus leitores ou
público-alvo, em que são identificados os papéis praxeológicos dos interactantes
envolvidos.
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As ações descritas no quadro acional, acima, apresentam a motivação do
escritor e do leitor para com a obra. Desse modo, temos, por parte do escritor, o
intuito de apresentar uma releitura da história “A bela adormecida” e, com isso,
estimular no leitor diversas sensações como: a imaginação para inferir o conto
do qual é feita a releitura; o encantamento com a possibilidade de novas imagens
criadas a partir de um novo roteiro; a venda do livro; a intertextualidade com o
lançamento de pistas que corroboram para a averiguação do caráter polifônico
do texto e a alegria que traz a literatura. Já, para o leitor, são apontadas as
seguintes ações: a diversão como um meio de distração e lazer para quem tem
a leitura como essa prática; a aventura como critério de viagem pelas linhas e
entrelinhas do texto; o deleite, pois o texto é tido como um prazer para os que
gostam de ler e se deliciam com isso; a busca pelo saber e conhecimento de
mundo.
Temos, ainda, que considerar a estrutura praxeológica que, de acordo com
Rufino (2006, p. 56), “ao contrário da representação praxeológica dá conta das
propriedades emergentes de uma interação efetiva (...)”.
Desse modo, a estrutura praxeológica de um texto do tipo narrativo (história)
constitui, dentro da formação histórico-social brasileira, a exposição dos
elementos de formação dessa cultura que foi representada para o mundo,
através de canções, poemas, danças, fábulas, entre outros.
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A partir dessa estrutura praxeológica da narrativa, no texto “O Dragão”, que
ora analisamos, percebe-se uma representação intertextual, uma vez que o autor
se apropria de uma narrativa famosa, de origem francesa, escrita por Charles
Perrault e a re-constrói com novas aventuras. Propomos, então, a seguinte
estrutura praxeológica para a narrativa “O Dragão”.
Segundo o esquema, o estado inicial aponta o início da narrativa com um
protótipo bastante utilizado: “Era uma vez...”. Tal expressão ativa, no leitor,
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um determinado pacto de leitura que o leva a reconhecer o texto como ficcional,
dando a entender, num primeiro momento, que se tratará de mais um conto de
fadas como tantos outros. Contudo, a sensação de estranhamento logo aparece
para o leitor, que reconhece um conto às avessas, já que o personagem principal
dessa história é um dragão, e não um príncipe ou uma princesa como nos outros
contos. Desse modo, a história contada solicita que o leitor recupere, em sua
memória discursiva, não só os conhecimentos prévios sobre o gênero textual,
contos de fadas, e sua ficcionalidade, mas, sobretudo, que o leitor abra espaço
para a retextualização da estrutura padrão desse gênero. Como se não bastasse,
o leitor ainda é convidado a recuperar o texto-fonte para imprimir-lhe uma
nova ressignificação.
É, pois, a estrutura praxeológica da narrativa que permite, ao leitor, essa
interpretação do texto. Se o estado inicial aciona pelo “era uma vez” um
conhecimento prévio sobre o gênero textual conhecido como conto de fadas,
a apresentação das personagens já inicia uma quebra de expectativas no leitor.
Não só o dragão é o personagem principal da histórica como vive na lua e faz
tudo aquilo que caracteriza um campo semântico infantil: brinca de escondeesconde, de pega-pega, de futebol, de basquete, de vôlei, canta, dança, come
salsichas e ouve histórias que se passam “naquela bola verde-azulada, conhecida
como Terra”.
Em seguida, após esse estado inicial, a estrutura praxeológica nos faz ver uma
complicação que aponta, novamente, para o estranhamento: o dragão se depara
com uma personagem típica dos contos de fadas, a bruxa. O interessante, nesse
momento, é que o dragão só reconhece a bruxa porque se recorda “das histórias
que contavam lá na Terra”, indicando, para o leitor, que esse personagem é
próprio dos contos de fada conhecidos pelo senso comum, pertencentes ao
nosso acervo cultural. Esse personagem não é capaz de fazer com que o leitor
perceba “Que história é essa?”, já que ela, a bruxa, praticamente caracteriza
um conto de fadas e está em todos eles. É neste momento que o personagem
principal se aventura por outras terras, ou melhor, para a Terra onde irá
viver muitas peripécias. Assim como nos contos de fada tradicionais, a bruxa
assume, também nesse conto, o perfil de um personagem do mal. É ela que está
tramando contra as histórias da Terra e pretende contar com a ajuda do dragão
que, sem saber ainda do que se trata, aceita acompanhá-la até a Terra por conta
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de salsichas.
O dragão só fica sabendo a tarefa que irá realizar quando chega “num lugar da
Terra” e, lá, entre a curiosidade e a admiração, descobre que precisa impedir a
entrada do príncipe no castelo.
No terceiro quadro dessa estrutura praxeológica, temos a resolução do conflito,
no qual “O Dragão” passa por momentos de decisão que colocam em prova
o seu caráter e a sua identidade como herói. Ora, nesse ponto, a história não
surpreende tanto, uma vez que o dragão, como personagem principal, assume
as características tipológicas de um herói que decide ajudar o príncipe e
enganar a bruxa má, independente do que ganharia ou não com sua ação. Só
assim, o príncipe pode entrar no castelo e salvar a princesa com um beijo. Nesse
momento, o leitor já recuperou parte do texto-fonte e passa a ressignificá-lo.
O último quadro da estrutura praxeológica representa o estado final que
recupera a estrutura dos contos tradicionais, uma vez que o dragão volta para
sua casa e vive feliz para sempre.
Todo o percurso dessa estrutura praxeológica é dado na ordem cronológica de
como a história foi contada e, cada quadro traz, em si, a passagem que representa
o momento narrativo. É interessante pensar que essa representação estrutural
não ilustra somente o dado narrativo, mas sim as intenções narrativas do autor,
o contexto de produção da obra e, ainda, tudo o que envolve o interlocutor.
Nessa perspectiva, cabe-nos reforçar a representação praxeológica da narrativa
realizada anteriormente que trata exatamente das construções coletivas
subjacentes ao discurso.
O
módulo
Interacional
interpretativa
e
sua
contribuição
Todo discurso implica um modo de interação e este se dá conjugado a elementos
temporais e espaciais em que se situam os interactantes envolvidos. Nesse
momento de interação nascem construções linguísticas que são resultado do
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caráter dinâmico e dialógico do discurso. Desse modo, toda interação arranja-se
dentro de parâmetros de ordem material do qual é feito o discurso e não no qual
esta materialidade já signifique.
Contudo, o módulo interacional contempla a materialidade de uma situação de
interação:
le canal de l’interaction: c’est-à-dire le support
physique per les interactants: oral, écrit, visuel;
le mode d’interaction: c’est-à-dire le degré de coprésence spatiale et temporelle des interactants; le lien
d’interaction: c’est-à-dire le retroaction, réciprocité
ou non réciprocité, entre les interactants (ROULET;
FILLIETTAZ E GROBET, 2001, p.141)5.
Percebe-se que a interação deve ter, minimamente, dois interactantes e que,
para cada par de interação, temos um nível. Há de se ressaltar também a relação
íntima entre este quadro e o acional, construído acima, que apresentou a relação
entre escritor e leitor e a motivação de cada um.
As informações obtidas pela dimensão interacional podem ser representadas
por meio de um enquadre interacional. Vejamos, abaixo, a construção do quadro
com o intercâmbio entre leitores e a narrativa em análise:
����������������������������������������������������������������������������������������������������
- O canal de interação: quer dizer o suporte físico utilizado pelos interactantes; o modo de intera�
ção: quer dizer o grau de co-presença espacial e temporal dos interactantes; a relação interacional
ou tipo de vínculo, quer dizer, a retroação, reciprocidade ou não da comunicação (ROULET;
FILLIETTAZ E GROBET, 2001, p.141, tradução nossa).
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Observamos que no enquadre geral da narrativa temos as seguintes situações
de interação: no nível de encaixe mais externo, temos a relação de interação que
marca o início de todo o enquadre interacional da narrativa e que compreende
a relação do escritor do texto-matriz, Charles Perrault, texto que serviu de
referência para a produção do novo texto, com o seu leitor, Flávio de Souza.
Observamos, nesse enquadre interacional, uma relação de interação entre
autor/escritor (Charles Perrault) e o leitor/interlocutor (Flávio de Souza) por
um canal escrito, numa distância temporal e espacial e numa relação de nãoreciprocidade. Vale notar, aqui, que esse enquadre interacional poderia ser mais
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complexo se recuperássemos a relação interacional do autor, Charles Perrault,
como leitor/ouvinte dos contos orais de sua época que serviram de mote para a
produção do que chamamos de texto matriz.
Em seguida, no próximo nível interacional, temos um nível de interação entre
autor/escritor (Flavio de Souza) e leitor/público e intenção, com uma relação
interacional de não-reciprocidade, uma distância espaço-temporal, e um canal
escrito que representa, pois, a obra publicada em uma determinada editora.
No nível imediatamente interno a este, temos as posições do autor (Flavio de
Souza) e a do leitor/público-alvo e interpretação, numa relação de distância espaçotemporal, não-reciprocidade e por um canal escrito. O que diferencia os dois
níveis já citados são posições acionais ou referenciais do leitor. No primeiro
nível, encontramos o leitor previsto pelo autor do texto e, no segundo nível,
encontramos o público propriamente dito que pode, ou não, ter as características
pretendidas pelo autor ao imaginar um público-alvo para sua narrativa.
Num nível intermediário desse enquadre, temos a interação entre narrador e
narratário, dado por um canal escrito, distância espaço-temporal, e com uma
relação de não-reciprocidade. Neste nível de encaixe, temos o autor empírico
do texto, Flávio de Souza, como autor e escritor da obra, que dá voz e vez ao
narrador do texto, para que ele se relacione com o seu narratário. Essa relação
se estabelece com o narrador projetando seu discurso em outro ser, que não
o leitor, com quem poderá ter uma relação de índole diferente. O narratário,
por sua vez, irá delinear o narrador com características mais precisas de um
indivíduo.
Na relação mais interna, relacionada aos personagens, marcada pela linha
pontilhada, temos as posições de interação entre personagens: aqueles que
dialogam durante a narrativa, estão presentes em um mesmo tempo e espaço e
dividem uma cena repleta de reciprocidade.
As informações interacionais obtidas acima são importantes, pois serão
consideradas principalmente na continuação da análise em que tomamos como
base as duas formas de organização: a enunciativa e a polifônica
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As formas de organização enunciativa e polifônica
A organização enunciativa do discurso “qui repose principalement sur le
couplage d’informations d’ordres linguitique, interactionnel et référentiel (...)
(ROULET, FILLIETTAZ E GROBET6 2001, p. 281) diz respeito ao registro do
locutor em seu discurso, porém apresenta suas opiniões e posicionamento diante
dessa alocução. Neste momento, podemos relacionar o quadro interacional
apresentado acima que mostra os níveis de encaixe, do mais interno ao externo,
possibilitando ver o momento em que o locutor poder opinar em seu discurso.
Para que as diferentes formas discursivas sejam evidenciadas é importante
separar os tipos de discursos que compõem a enunciação. Trata-se do discurso
produzido e o discurso representado. O primeiro é o que o “autor diz” e pode ser
observado, também, no quadro interacional, no nível de encaixe mais externo
de interação. O segundo trata-se daquilo que o autor “diz que alguém diz” e
pode ser visto nos níveis de encaixe mais internos do quadro interacional.
Desse modo, podemos destacar como exemplos de discursos representados, os
seguintes fragmentos:
a) Formulado: forma de representação direta, eventualmente introduzida
por um verbo de fala, dois pontos, travessão ou aspas. (ROULET; FILLIETTAZ
E GROBET, 2001, p.283).
- Qual é a coisa que você mais gosta?
b) Designado: O discurso pode ser designado por um verbo ou
sintagma nominal, geralmente uma nominalização: verbo (suplicar, chamar,
etc.), sintagma nominal (súplica, etc.)
(_...) O senhor poderia me dar licença?
c) Implicitado: “A implicitação, em geral, é marcada por conectores
que têm o papel de estabelecer um encadeamento implícito com o discurso do
interlocutor, portanto não ocorrem em intervenções monológicas” (RUFINO,
2006, p.90). Esse tipo de discurso é característico do diálogo e é iniciado por
conectivos como: mas, ora, bem, no início da réplica.
6- (...) que repousa principalmente sua couplage de informações de ordem linguística, interacio�
nal e referencial (...). (ROULET; FILLIETTAZ E GROBET, 2001, p. 281, tradução nossa)
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- (...) Mas eu prometo que não vou fazer nenhuma maldade para você, tá
bom?
Segundo Roulet; Filliettaz e Grobet (2001, p.286) temos ainda três informações
importantes para fazer a distinção do discurso que nos são fornecidas pela
acoplagem das informações enunciativas e interacionais, são: o discurso
diafônico (aquele que representa o discurso do interlocutor), o polifônico (que
representa os discursos de terceiros) e o autofônico (que representa o discurso
do próprio locutor no passado ou no futuro).
Os discursos representados no MAM possuem as seguintes formas de
representação: discurso representado formulado assinalado por [...]; discurso
representado designado assinalado depois da expressão que o designa por [ ];
discurso representado implícito representado na frente do conector por [ ].
Para analisar a narrativa “O Dragão” seguiremos o seguinte critério de
representação: colchetes à direita, sempre precedidos da ocorrência da voz: E
= escritor (Flavio de Souza), N= narrador e as iniciais de cada personagem de
acordo com a narrativa.
A polifonia no discurso é evidenciada pela presença de outras vozes que apontam
para diferentes pontos de vista, trazendo à baila os componentes intertextuais
do texto. Como disse Bakhtin (2003),
(...) pode-se dizer que qualquer palavra existe
para o falante em três aspectos: como palavra
da língua neutra e não pertencente a ninguém;
como palavra alheia dos outros cheia de ecos de
outros enunciados; e, por último, como a minha
palavra, porque, uma vez que eu opero com ela
em uma situação determinada, com uma intenção
discursiva determinada, ela já está compenetrada
em minha expressão (Bakhtin, 2003, p. 294).
A narrativa “O Dragão” é um conto de fadas contado às avessas que motiva o
leitor a decifrar a história “original”, como já foi mencionado acima. Quanto aos
discursos presentes no texto, observa-se um escritor que intercala os canais de
diálogo com o referente de acordo com a sua intenção, ora escrevendo para um
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público geral, ora para o interlocutor a que ele toma como referente durante sua
criação e vai deixar entrever nas entrelinhas pistas para poder captar o leitoralvo.
De início, ao atrelar o título à imagem, observa-se que o personagem principal
da história é um dragão e que a aventura será praticada por ele. Para causar um
efeito curioso, o autor coloca um duplo título na narrativa, misturando as sílabas
e dificultando a leitura do que se quer dizer: “Ora camalba de die ou O Dragão”.
Nesse ponto, nos defrontamos com o duplo que aponta para a característica
intertextual e polifônica do discurso. Essa estratégia faz o leitor iniciar o texto
já tentando decifrar algo, ou seja, aquilo que o autor resolveu não revelar na
primeira instância, e que instiga o leitor a ativar em sua memória discursiva.
Nesse nível temos um discurso representado formulado indireto polifônico,
visto no trecho abaixo:
N [Era uma vez] um dragão que morava na Lua.
Assim, a história é iniciada com o famoso elemento anafórico “Era uma vez...”
que, conforme já citado anteriormente, é uma característica do conto de fadas.
Tomamos esse elemento como polifônico, já que sua inserção faz com que o
leitor recupere, de imediato, a voz de um discurso ficcional.
Um importante elemento que marca o início da jogada intertextual é a entrada
do personagem principal da história, O Dragão, que pode ser evidenciado na
frase já mencionada acima. De início, o autor insere na narrativa o personagem
principal da história que também foi colocado no título do texto. Isto está
presente no nível do quadro interacional onde falamos na intenção do escritor.
Nos trechos seguintes há a inserção de mais um personagem comum aos contos
de fadas: a Bruxa. No primeiro nível de interação temos um discurso produzido:
escritor x leitor, já num segundo nível, observa-se a presença de um discurso
formulado indireto livre polifônico: Então ele viu uma E [ N[coisa muito estranha,
parecida com um dos personagens das histórias que contavam lá da Terra. Parecida com
uma bruxa. ]
Nesse ponto, observamos a interação entre o escritor/narrador e o leitor e
logo temos um discurso repleto de polifonia, uma vez que o narrador retoma
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outros discursos ao dizer que o “Dragão” viu um personagem parecido com
os das histórias que contavam lá na Terra. Esse trecho estabelece uma relação
intertextual com os outros contos de fadas que pudermos recuperar em nossa
memória discursiva, visto que já estamos embalados no desejo de decifrar de
qual história o autor faz a releitura. Outro fator relevante é a figura alegoria
que se apresenta por meio da palavra “Terra”, destacada em letra maiúscula no
meio do texto, para se referir ao planeta Terra.
No fragmento posterior: B [“Boa tarde, como vai você? Eu sou uma bruxa!”]
instaura-se o discurso representado formulado direto autofônico com a fala da
bruxa, que começa a dialogar com o dragão. Mais adiante temos: N [“A bruxa
saiu voando na vassoura dela. E o dragão saiu voando atrás. Porque os dragões têm
asas, tá bom?”]. Aqui temos um exemplo de discurso representado formulado
indireto autofônico e polifônico, pois, ao final do parágrafo, o narrador
onisciente faz uma intromissão no discurso para explicar uma possível dúvida
que o leitor possa vir a ter sobre como um dragão poderia voar. Esta estratégia
é outro componente da organização enunciativa que, além de reforçar a
intertextualidade, permite pela retórica responder às indagações do leitor, à
medida que a história vai tomando forma e aludindo ao conto famoso. Nesse
aspecto, podem ser apontadas as multiplicidades de vozes inerentes ao texto
que emanam nos sentidos das palavras.
Contudo, a locução do narrador, continuada na passagem a seguir, vai oporse ao conhecimento comum, quanto ao fato de o personagem se mostrar uma
bruxa boa, mesmo afirmando, anteriormente, que vive fazendo maldades.
Retomemos, pois, o fragmento: B [“– Não fique com medo de mim. Eu sou uma
bruxa e vivo fazendo maldades. Mas B [ ] eu prometo que não vou fazer nenhuma
maldade para você, tá bom?”.]
Temos, na primeira frase um discurso representado formulado direto autofônico
e na segunda frase um discurso implicitado polifônico marcado pelo conectivo
interativo mas ao se iniciar a réplica. O discurso é polifônico, pois a retórica
irá conduzir o interlocutor, novamente, a refletir sobre a imagem que tem das
bruxas das histórias que conhece, principalmente, quando o narrador usa, para
essa colocação, o operador argumentativo “mas”, para posicionar a bondade da
personagem. Para Ducrot (1987), o “mas” constitui um operador argumentativo
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por excelência, pois legitima uma opinião contrária. Ainda nesse trecho, observase a presença do “não”, um enunciado negativo, que pressupõe um enunciado
afirmativo de outro enunciador.
No trecho próximo N [“Na frente de um castelo velho”], observa-se um discurso
designado polifônico, marcado pelo sintagma nominal em que percebe-se
a alusão ao elemento castelo, também muito presente nos contos de fadas e,
ale, disso, a qualificação deste castelo com o advérbio velho. Esse componente
intertextual é ainda reforçado pela descrição da imagem vista pelo dragão: N
[“Em toda volta deste castelo tinha umas plantas cheias de espinhos”], figura comum
das histórias com a mesma definição de discurso representado.
No próximo fragmento N [“E quando chegasse um príncipe encantado, o dragão
tinha que fazer cara de bravo e dar uma baforada de fogo no príncipe. Ou dar uma
patada no príncipe. Ou pular e cair em cima do príncipe”.] há a menção de mais um
personagem dos contos de fadas: o príncipe encantando, introduzida pela voz
do narrador num discurso representado formulado indireto livre polifônico,
que na verdade, representa a voz da bruxa delegando as tarefas ao dragão. É
importante marcar o uso do substantivo “príncipe” e do adjetivo “encantado”
utilizados pelo narrador a fim de apontar dois elementos presentes nas histórias
fantásticas.
Mais adiante, na fração N [“O dragão se espantou, porque viu, através de uma
das janelas, um monte de gente dormindo. Ele achou estranho, porque já estava na
frente do castelo a um montão de tempo e não tinha escutado nenhum barulhinho.”]
temos outro discurso representado formulado indireto livre polifônico em que
o narrador representa a voz do dragão, inclusive, impressões e sentimentos,
que estimula mais uma informação importante na memória discursiva do
leitor, principalmente quando somada ao trecho seguinte: N [“E pensou: D [Eu
não sabia que as pessoas ficavam dormindo por anos e anos e anos aqui na Terra!”]].
Temos aqui um discurso representado formulado direto polifônico do narrador
representando o pensamento do personagem dragão que promove a marca de
polifonia e ainda traz mais uma informação para o leitor que se trata de que na
história há pessoas dormindo, adormecidas ou encantadas.
Dando sequência ao enredo, temos um diálogo entre o príncipe encantado e o
dragão num discurso representado formulado direto autofônico: P[“- Boa tarde.
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Eu sou um príncipe encantado. Preciso entrar neste castelo para salvar uma princesa que
está encantada]. E depois um discurso designado autofônico: P [O senhor poderia
me dar licença?”]. Aqui se apreende a voz de outro personagem: o príncipe, e
nesta fala, a presença de várias informações que corroboram as inferências já
realizadas. Se pensarmos no quadro interacional, veremos que estamos lidando
com o nível de interação mais interno que se dá entre personagens, pois temos
um diálogo entre o Dragão e o Príncipe. D[“- Como vai, senhor príncipe encantado?
Boa tarde! Eu vou deixar você entrar no castelo”]. Há também o uso do vocábulo
“encantado (a)” no trecho, ora para qualificar o príncipe, ora para a princesa.
Contudo, o uso deste adjetivo, na narrativa reforça o campo semântico dos
substantivos e evidencia o jogo intertextual, pois o leitor se pega tentando
recuperar em sua memória discursiva as histórias com princesas que ficam,
de alguma forma, presas a um tipo de encantamento. Note-se bem o uso da
expressão: “que está encantada”, e não “é encantada”.
Neste momento, o interlocutor irá somar esta informação às outras já fornecidas,
como por exemplo, a de que havia pessoas dormindo no castelo há mais de cem
anos, e concluirá de qual conto famoso se trata a releitura.
Nesse instante, os sinais de intertextualidade com a história de A Bela Adormecida
estão visíveis, e todas as pistas para que esta analogia possa ser feita são
fornecidas pelas vozes marcadas na narrativa e bastam apenas algumas últimas
revelações para que o interlocutor complete seu entendimento. Um delas é
o beijo do príncipe na princesa para desfazer o encantamento. N[“O dragão
espiou também por uma das janelas do castelo. E viu o príncipe beijar uma moça que
estava dormindo. A moça acordou. O príncipe pegou a princesa no colo. Montou em
seu cavalo. Saiu do castelo. Agradeceu o dragão. E foi embora.”]. Após esse trecho,
um discurso representado formulado indireto polifônico, tecido pelo narrador,
o leitor conclui que suas hipóteses realmente se referem à história de A Bela
Adormecida, principalmente pelo escritor fechar a história como a original, na
realização e satisfação dos personagens que vivem felizes para sempre. Esse
último fragmento analisado se dá marcado pela polifonia face aos elementos
intertextuais presente na narração como o beijo que acorda a princesa que estava
encantada, o cavalo e a felicidade dos dois.
Conclusões
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Toda essa mandraca avivada no livro Que História é essa?, de Flávio de Souza
(2007), revela que a obra conta mais do que contos de fadas, na verdade, aqueles
contos, tão presentes em nossa memória discursiva, são (re)contados de um
ponto de vista diferente, (re)alocando os personagens das histórias conhecidas
tradicionalmente. Nessas narrativas, estruturadas dialogicamente, porque
requerem diálogo constante com histórias conhecidas pelo senso comum, o leitor
é convidado, senão, convocado, a recuperar o texto matriz em sua memória
discursiva, uma vez que ele foi utilizado, intertextualmente, para dar vida ao
novo texto. Trata-se de recuperar o caráter dialógico da linguagem pensando
nas narrativas que contadas de pai para filho atravessam gerações.
Assim, o conto narrado pelo ‘avesso’ incita o leitor a reconhecer, em sua memória
discursiva, as vozes que ecoam nas entrelinhas do texto, buscando um ponto
de ‘ancoragem’ para decifrar de que história famosa o autor fez a releitura,
momento em que se percebe a estratégia proposta pelo título como elemento
catafórico, a questionar, incitar, estimular, desafiar e, por que não, provocar o
leitor a recuperar Que história é essa?. Da mesma forma, é preciso considerar que
essa “provocação” é apresentada no título por uma marca específica, ou seja, a
pergunta retórica.
Contudo, foi possível depreender que a intertextualidade tem um papel
importantíssimo para a evidenciação da polifonia no texto, uma vez que, através
das marcas intertextuais conseguimos encontrar a voz do outro no discurso.
Para tanto, foi necessário estabelecer primeiramente os níveis da dimensão
referencial, para chegarmos à estrutura praxeológica da narrativa “O Dragão”
e, logo após, a dimensão interacional em que foram evidenciados os níveis
de interação na narrativa. Por fim, com a acoplagem das informações acima
e as formas de organização enunciativa e polifônica findamos a breve análise
apresentando as marcas de polifonia em todo o conto e a maneira como o autor
nos as apresentou através de seu discurso.
Desse modo, para que o efeito de identificação seja causado no interlocutor, o
autor constrói sua obra pincelando-a com pistas. Na verdade, ele vai caminhando
com o texto, e deixando ‘migalhas de pão’ durante todo o caminho, a fim de que
o leitor entenda o caráter intertextual da obra, cuidando, sempre, é claro, para
que os ‘passarinhos’, dessa vez, não comam as migalhas.
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Referências
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ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CUNHA, G. X. O tratamento tópico em uma perspectiva modular da
organização do discurso. Rio de Janeiro: Estudo Linguísticos, 2009.
DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.
SOARES, I. C. R. As narrativas orais populares da Amazônia paraense: vozes
múltiplas que contam as histórias do povo. Belo Horizonte. Faculdade de
Letras da UFMG. 2003. (Tese – Doutorado em Linguística).
SOUZA, F. de. Que história é essa?: novas histórias e adivinhações com
personagens de contos antigos. São Paulo: Ed. Schwarcz Ltda, 2007.
ROULET, E.; FILLIETAZ, L.; GROBET, A. Um modele et um instrument
d’analyse de l’organisation dudiscours. Berne: Peter Lang, 2001.
RUFINO, J. de A. As Mulheres de Chico Buarque: Análise da complexidade
discursiva de canções produzidas no período da ditadura militar. (Mestrado
em Estudos Linguísticos) – Faculdade de Letras da Universidade de Minas
Gerais. Belo Horizonte, 2006.
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Gêneros: um conceito entre a Teoria da
Enunciação e a Análise de Discurso – AD:
algumas reflexões.
Silvana da Silva Ribeiro1*
Resumo
O conceito de gêneros textuais hoje se faz presente e necessário em todo estudo
que envolva o texto. O texto está presente na vida das pessoas, de suas histórias,
de suas práticas sociais. E o gênero é entendido como resultado das práticas
sociais que os seres humanos realizam. O presente artigo visa mostrar algumas
reflexões sobre a forma como o estudo dos gêneros é procedido na perspectiva
da Teoria da Enunciação e na perspectiva da Análise do Discurso francesa,
especificamente, com Maingueneau.
Palavras-chave: Gêneros. Teoria da Enunciação.
Francesa.
Análise do Discurso
Abstract: The concept of genre today is present and necessary in any study
that involves the text. The text is present in people’s lives, their histories, their
social practices. And genre is understood as the result of social practices that
humans do. This article aims to show the trajectory of the concept of genre from
the perspective of the Theory of Utterance and the prospect of French discourse
analysis, specifically with Maingueneau.
Key-words: Genre. Theory of Utterance. French Discourse Analysis
Considerações Iniciais
O trabalho como os gêneros textuais no Brasil começou a se popularizar a partir
de 1990. Tivemos acesso a um estudo mais sistemático acerca desse tema em
Marcuschi (2002), obra por meio da qual o autor apresenta os gêneros textuais
1- * Silvana da Silva Ribeiro – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade
Federal do Ceará- UFC. Bolsista da Fundação de Amparo à pesquisa do estado do Piauí- FAPEPI.
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como práticas sócio-históricas que têm como uma das características principais,
o fato de contribuir para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas
do dia, bem como de serem considerados como entidades sócio-discursivas
e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa.
O autor defende de forma muito conveniente que estes não são instrumentos
estanques e enrijecedores de ação criativa e que anunciam eventos textuais
altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos.
Na obra supracitada, percebe-se que, historicamente o surgimento dos gêneros
ocorre, numa primeira fase, entre povos de cultura oral, entre os quais é
desenvolvido um conjunto limitado de gêneros, que se multiplicaram depois
da invenção da escrita, tendo se expandido com o florescimento da cultura
impressa para, na fase intermediária de industrialização, dar início a uma grande
ampliação. Atualmente, na fase denominada cultura eletrônica, encontram-se
novos gêneros e novas formas de comunicação, tanto na linguagem oral quanto
na escrita. A noção de gênero está bem mais próxima do discurso, e talvez por
isso mesmo os gêneros sejam considerados como resultado de práticas sociais.
E estas, no fim das contas são, frequentemente, materializadas por meio dos
gêneros. Em virtude disso não se pode deixar de dar uma atenção especial para
o tema gêneros do discurso. O objetivo deste artigo é fazer algumas reflexões
sobre a forma como o estudo dos gêneros é procedido na perspectiva da Teoria da
Enunciação e na perspectiva da Análise do Discurso francesa, especificamente,
com Maingueneau.
O gênero discursivo
Em se tratando do estudo do gênero discursivo, outra definição relevante trazida
por Marcuschi (2002) é a de “domínio discursivo”, que designa uma esfera ou
instância de produção discursiva ou de atividade humana. Nessa perspectiva,
o autor define o texto, como uma entidade concreta realizada materialmente e
corporificada em algum gênero textual do discurso. Os gêneros denominados
novos têm bases que não são consideradas por Marcuschi (2002) como tais. Essa
proposição ainda é atual e válida até hoje, visto que é concretamente perceptível,
se analisarmos os textos que surgem no ambiente on-line. O contrário também
ocorre, visto que nem sempre teremos gêneros novos em bases novas, por
vezes, têm-se os velhos gêneros com novas roupagens adequadas ao domínio
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discursivo no qual são veiculados. Além disso, as tecnologias ligadas à área
de comunicação propiciaram o surgimento de novos gêneros textuais e a
intensidade do uso dessas novas tecnologias e sua interferência nas atividades
comunicativas diárias influenciaram o aparecimento de novos gêneros textuais,
dando visibilidade a um fenômeno que Marcuschi (2002) já anunciara, abrindo
a discussão sobre um fenômeno que também perpassa a constituição dos
gêneros discursivos e ainda é discutido, agora de forma mais veemente do
que na época da publicação da obra deste autor, que é a transmutação de um
gênero e a assimilação de um gênero por outro gerando novos gêneros. Esse
fenômeno mais recentemente foi discutido também por Araújo (2004), em cuja
obra o linguista propõe que a conversação em tempo real, ocorrida nos chats,
é resultado da transmutação do diálogo cotidiano de sua esfera de origem para
uma esfera eletrônica, a Web. O autor levanta a hipótese de que é possível flagrar
as marcas dessa transmutação, a partir da bricolagem das semioses som-imagemescrita, que se materializa no chat. A base teórica que embasa este relevante
estudo é representada por Bakhtin (1997) no que concerne aos conceitos de
gênero, esfera e transmutação. De acordo com Araújo (2004), a análise das
marcas da transmutação permitiu que o texto do chat, sendo um evento sóciointeracional, alcançasse o status de gênero discursivo. Um primeiro ponto que
merece destaque porque subjaz às questões supramencionadas no parágrafo
anterior é a noção de língua, que pode ser associada ao conceito de esfera de
comunicação trabalhado por Bakhtin (1997), conforme defende Araújo (2004). O
autor afirma que como a língua é um lugar de interação humana entre sujeitos,
é inevitável que esses encontros se tornem complexos e acabem, por sua vez,
reclamando gêneros do discurso, que confiram suporte verbal aos sujeitos dessa
interação.
Para demonstrar a intrínseca relação entre o papel do domínio, tomado como
espaço no qual os sujeitos se encontram, e entre os gêneros do discurso que,
por sua vez, conferem um suporte verbal para que esses sujeitos desempenhem
seus papeis comunicativos, Araújo (2004, p. 92) conclui que o desprezo da
esfera na qual o gênero se insere pode nos trazer o risco de cairmos numa ideia
mecanicista de gênero discursivo, camuflando um fato relevante da teoria
bakhtiniana - a atenção dada às especificidades das atividades humanas e dos
gêneros discursivos que as constituem.
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O autor também contribui com a questão da flutuação terminológica presente
em Bakhtin (1997) acerca do fenômeno denominado esferas de atividade
humana, esferas de comunicação e esfera de utilização da língua. Ele defende
o posicionamento de Marcuschi (2002), como pertinente, no que concerne a
empregar o termo “domínio discursivo” para designar uma esfera ou instância de
produção discursiva ou de atividade humana. E fecha a discussão descrevendo,
de forma bastante esclarecedora, o posicionamento de Marcuschi e mostrando
a definição que Bakhtin (1997) oferece para os gêneros do discurso ao defender
que os discursos que surgem de uma esfera, trazem inevitavelmente, as marcas
e as finalidades do domínio do qual procederam. Conclui-se desse modo, que
a esfera de comunicação é um espaço próprio para as práticas de comunicação
humanas. E em função da necessidade comunicativa essas práticas fazem
surgir os gêneros do discurso, os quais, além de organizar a comunicação
entre indivíduos, trazem as marcas da esfera, conferindo-lhes uma relativa
estabilidade. Entendemos que os textos que surgem no ambiente digital podem
ser um bom exemplo ilustrativo desse fenômeno de relatividade em função à
esfera de seu surgimento. O estudo dos gêneros já se concentrou, a depender
da área que tomava esse fenômeno textual, na oralidade ou na escrituralidade,
embora atualmente tal questão esteja bem mais bem delimitada. Como não
temos a intenção de nos alongar em todos os domínios de estudo de gêneros,
mas apenas na forma como o procederam a teoria da enunciação e a AD francesa,
nos concentraremos agora na forma como Bakhtin tratou sobre os gêneros do
discurso.
Os gêneros do discurso na perspectiva bakhtiniana
As concepções de língua, enunciado e gêneros do discurso são entidades, que
para Bakhtin (1997), estão intimamente relacionadas, para o bom funcionamento
da comunicação. A variedade das esferas da atividade humana dá origem a
vários gêneros do discurso, que segundo o autor resultam em formas-padrão
“relativamente estáveis” de um enunciado, determinadas sócio-historicamente.
O filósofo da linguagem vai mais além, ao definir, de forma muito feliz, que só
nos comunicamos, falamos e escrevemos por meio de gêneros do discurso.
Sabe-se que os gêneros do discurso sofrem constantes atualizações ou
transformações. A esse respeito, Bakhtin (1997, p. 106) afirma que “o gênero
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sempre é e não é ao mesmo tempo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo.” O
trecho destacado, de certa forma, explica o sentido da expressão “relativamente
estável”, pois, os gêneros se modificam para atender às necessidades da
sociedade. A carta, por exemplo, recurso de comunicação bastante usado em
épocas anteriores, de certo modo, atualmente, perdeu espaço para o e-mail, em
função do fato de a sociedade atual necessitar de agilidade e rapidez no processo
de transmissão das informações. No entanto, a carta não deixou de existir, na
realidade, o que pode ser perceptível é a restrição de seu uso.
A esse respeito, Bakhtin (1997, p. 284) defende que cada esfera abriga os gêneros
apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos.
Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas
condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram
um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do
ponto de vista temático, composicional e estilístico.
E, assim, os gêneros vão sofrendo modificações em consequência do momento
histórico no qual estão inseridos os autores de suas produções e de outros aspectos
aos quais não nos reportaremos pelo fato de não ser este o objetivo deste artigo.
Cada situação social dá origem a um gênero com suas características peculiares.
Seja em função da infinidade de situações comunicativas ou por outras razões
ligadas à utilização da língua, infere-se que os gêneros são, consequentemente,
infinitos. Bakhtin relaciona a formação de novos gêneros ao aparecimento de
novas esferas da atividade humana, com finalidades discursivas específicas.
Esse alto nível de heterogeneidade fez com que Bakhtin (1997) propusesse
uma primeira grande “classificação”, dividindo os gêneros do discurso em
dois grupos: primários e secundários. O filósofo da linguagem relacionou
os primeiros às situações comunicativas cotidianas, espontâneas, informais
e imediatas, como a carta, o bilhete, o diálogo cotidiano. E os segundos, que
são geralmente mediados pela escrita, aparecem em situações comunicativas
mais complexas e elaboradas, como o teatro, o romance, as teses científicas,
etc. Pode-se afirmar com base nisso, que tanto os gêneros primários quanto os
secundários possuem a mesma essência, visto que ambos são compostos por
fenômenos da mesma natureza - os enunciados verbais. O que os diferencia é
o nível de complexidade em que se apresentam. Tal posicionamento é bastante
pertinente, mas pensamos que a ele devemos acrescentar a informação de que
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gêneros secundários têm uma característica que é bastante marcante e não
pode ser desconsiderada em se tratando do advento das TIC’S – Tecnologias
da Comunicação e Informação, que conferem aos gêneros que surgem dentro
do ambiente digital, nas palavras de Marcuschi, uma certa plasticidade. E em
nosso entendimento o ambiente digital, também denominado ambiente virtual
– AVA, também, já pelo suporte no qual se constitui propicia uma dinamicidade
muito maior aos gêneros digitais do que aqueles que não têm o AVA como seu
nascedouro. Além disso, é relevante frisar que mesmo os textos que não nascem
no ambiente digital, mas que são disponibilizados nesse tipo de ambiente ainda
recebem influência de sua natureza dinâmica e tecnológica. Um exemplo que
pode ilustrar nosso pensamento é o caso do recado, que não nasceu no AVA,
mas que no orkut aparece enriquecido com emoticons e outros aspectos típicos
do ambiente digital. Ou seja, não é só o fato de um gênero ser mediado pela
escrita que faz com que ele apresente um nível de complexidade maior, porque
características como o espaço e as inovações tecnológicas serão influenciadores
tanto de sua complexidade quanto de seu alcance social.
Uma associação à natureza do gênero bem oportuna é a que Bakhtin (1997)
faz ao associar os gêneros do discurso com as circunstâncias de comunicação.
Para esse autor não se justifica minimizar a extrema heterogeneidade dos
gêneros do discurso e a consequente dificuldade quando se trata de definir o
caráter genérico do enunciado, pois, nessa perspectiva, é relevante levar em
consideração a diferença essencial existente entre o gênero de discurso primário
(simples) e os gêneros de discursos secundários (complexos). Os gêneros
secundários do discurso - o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso
ideológico etc. – aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural
mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística,
científica, sociopolítica. Assim, os gêneros secundários, durante o processo de
sua formação absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas
as espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal
espontânea. Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros
secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica
particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a
realidade dos enunciados alheios. Embora esse posicionamento também não leve
em conta o fator supramencionado, isto é, as possibilidades advindas do emprego
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das TIC’s na comunicação, tem uma relevância significativa por considerar as
circunstâncias de comunicação cultural. Nesse caso, a associação feita objetivou
justificar a distinção entre os gêneros primários e secundários considerandose a circunstância cultural mais complexa e relativamente mais evoluída para
evidenciar o fenômeno de transmutação como fora supramencionado, que
consiste no fato de os gêneros secundários, durante o processo de sua formação
absorverem e transmutarem os gêneros primários (simples) de todas as espécies,
que por sua vez, se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal
espontânea.
A noção de enunciado também se faz relevante para o tratamento dos gêneros
de acordo com a teoria da enunciação. E nessa perspectiva, Bakhtin (1997, p. 293)
defende o enunciado como a unidade real da comunicação verbal e nessa ótica,
a fala só existe, na realidade, na forma concreta, produzida, dos enunciados de
um indivíduo: do sujeito de um discurso-fala. O discurso se molda sempre à
forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora
dessa forma. O que se pode entender com essa afirmação do autor é que o
enunciado é mais do que uma unidade convencional e sim uma unidade real,
a qual é estritamente delimitada pela alternância de sujeitos falantes. E essa
alternância dos sujeitos falantes é mais facilmente percebida no diálogo real.
Desse modo, entende-se que é no diálogo, devido à sua clareza e simplicidade,
que se tem a forma clássica da comunicação verbal, como pode-se corroborar
nas palavras do próprio Bakhtin.
O gênero do discurso não é uma forma da língua,
mas uma forma do enunciado que, como tal, recebe
do gênero uma expressividade determinada, típica,
própria do gênero dado. No gênero, a palavra comporta
certa expressão típica. Os gêneros correspondem
a circunstâncias e a temas típicos da comunicação
verbal e, por conseguinte, a certos pontos de contato
típicos entre as significações da palavra e a realidade
concreta. (BAKHTIN, 2000, p. 312).
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre
relacionadas com a utilização da língua, que, por sua vez, efetuam-se em forma
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de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes
duma ou doutra dessas esferas. As condições específicas e as finalidades
de cada uma dessas esferas são refletidas pelo enunciado, por meio de seu
conteúdo (temático), por seu estilo verbal e por sua construção composicional.
Estes três elementos fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado e
todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação.
Qualquer enunciado considerado isoladamente é individual, mas cada esfera
de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados,
denominados por Bakhtin (2000) de gêneros do discurso.
A heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos) poderia nos levar
a pensar que a diversidade dos gêneros do discurso é tamanha que não há e
não poderia haver um terreno comum para seu estudo. Acreditamos que se
os gêneros representassem um fenômeno estático, ou muito bem amarrado,
no que diz respeito à sua constituição, como ao ponto de vista de seu estudo,
não representariam um estudo tão frequente e interessante como tem sido
ultimamente.
Charaudeau e Maingueneau (2008) destacam que o problema geral dos gêneros
do discurso nunca foi colocado até então em função da diversidade funcional,
porque se estudou, preferencialmente, os gêneros literários, tanto na Antiguidade
quanto na época contemporânea apenas pelo ângulo artístico-literário de
sua especificidade, das distinções diferenciais intergenéricas (nos limites da
literatura) e não do ponto de vista de uma tipologia particular de enunciados
que se diferenciam de outros tipos de enunciados, com os quais têm em comum
a natureza verbal (linguística). Como nos propusemos a trazermos reflexões
acerca das formas como os gêneros são estudados pelas duas abordagens (a
Teoria da Enunciação e a Análise de Discurso – AD) faremos, daqui em diante
uma breve incursão pela forma como a AD tem tratado o estudo dos gêneros.
O conceito de gêneros: de uma ótica geral para a AD
Conforme Charaudeau e Maingueneau (2008) a noção de gênero remonta
à Antiguidade, coexistindo nesse período dois tipos de atividade discursiva:
uma na Grécia Pré-Arcaica - gêneros como o épico, o lírico, o dramático e o
epidítico – e outra na Grécia Clássica, na Roma de Cícero, com a finalidade de
fazer da fala pública um instrumento de deliberação e de persuasão jurídica
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e política. Os autores defendem que em se tratando da tradição literária,
os gêneros do discurso podem permitir sua seleção e classificação dentre os
diferentes textos literários que pertencem à prosa ou à poesia. Enquanto que em
semiótica, análise do discurso e análise textual, encontra-se a noção de gênero
aplicada igualmente aos textos não literários, mas com diferentes definições que
coexistem e testemunham cada posicionamento teórico ao qual elas se filiam.
Segundo Charaudeau e Maingueneau (2008) os pontos de vista, que servem de
embasamento para uma possível afiliação dos gêneros são os seguintes:
a) Funcional – procura-se estabelecer funções com base na atividade
linguageira, a partir das quais as produções textuais podem ser
classificadas segundo o polo do ato de comunicação em direção ao
qual elas são orientadas (JAKOBSON, 1963 e HALLIDAY, 1973).
b) Enunciativa – iniciada por Benveniste, apoiando-se no “aparelho
formal da enunciação”, que propôs uma oposição entre discurso e
história – frequentemente reformulada em discurso e narrativa.
c) Textual – voltada para a organização dos textos, que procura
definir a regularidade composicional desses textos. (ADAM,
1999).
d) Comunicacional – esse termo apresenta um sentido amplo com
orientações diferentes (BAKHTIN, 1929 e CHARAUDEAU,
2000).
Essa diversidade de pontos de vista de filiação dos gêneros que possibilita
sua tipologização mostra que há uma complexidade na questão dos gêneros,
incluindo suas denominações, já que alguns autores se referem a ‘gêneros do
discurso’, outros a ‘gêneros de textos’, outros ainda, a ‘tipos de textos’. Nessa
perspectiva, Adam, por sua vez, opõe ‘gêneros’ e ‘tipos de textos’ (1999);
enquanto que Bronckart opõe ‘gêneros de texto e tipos de discurso’ (1996);
e Maingueneau distingue, em relações de encaixamento, ‘tipo de texto’,
‘hipertexto’ e ‘gênero de discurso’ (1998); Charaudeau distingue ‘gêneros e
subgêneros situacionais’ e, no interior desses, variantes de gêneros de discurso
(2001)”, conforme Charaudeau e Maingueneau (2008, p. 251). O que se percebe
aqui é uma diversidade no campo terminológico, que também pode ter
consequência no estudo dos fenômenos que perpassam o gênero. Mas, temos
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apenas uma divisão metodológica no supracitado dicionário dos autores,
porque na realidade, na essência da constituição dos gêneros, o processo não é
nem tão harmonioso, nem tão bem organizado como se propõe na referida obra.
O gênero do discurso também é abordado por Maingueneau, observando-se
um aspecto em particular.
Gênero do Discurso na concepção de Maingueneau de
acordo com o ponto de vista comunicacional
Charaudeau e Maingueneau (2008) propuseram diversos modelos que
mobilizaram certo número de parâmetros, que os gêneros deveriam seguir, tais
como os seguintes:
a) Uma finalidade – todo gênero do discurso visa provocar certo
tipo de modificação da situação de que é parte; essa finalidade
é indispensável para a adequação do comportamento do
destinatário.
b) Estatutos para os parceiros – a fala num gênero do discurso não
parte de qualquer um e nem é dirigida a qualquer um, mas de um
indivíduo detentor de um dado estatuto para outro.
c) Circunstâncias adequadas – todo gênero do discurso implica certo
tipo de lugar e de momento apropriados ao seu êxito. Não se trata
de coerções “externas”, mas de algo constitutivo.
d) Um modo de inscrição na temporalidade – algo que pode
ocorrer em diversos eixos como: a periodicidade (curso, missa
etc.), a duração (a competência genérica dos locutores de uma
comunidade indica de modo aproximado a duração de um dado
gênero do discurso).
e) A continuidade – determinados gêneros têm um tempo para
cumprir sua tarefa comunicativa. No caso de uma piada, ela
deve ser contada de uma vez só, pois sendo contada aos poucos
perderia seu propósito lúdico. Ao mesmo tempo, há o caso de um
romance, por exemplo, que dependendo de sua extensão somente
poderá ser lido por partes, mesmo que seu leitor aprecie a leitura
o consumo da obra requer um tempo determinado pelo tempo e
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f)
g)
h)
i)
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por outras condições daquele que o está consumindo.
O tempo de validade – uma revista semanal.
Um suporte – rádio, telefone, jornal etc. Uma modificação do
suporte material modifica radicalmente um gênero do discurso.
Um plano textual – um gênero do discurso se associa a certa
organização, domínio privilegiado da linguística textual. Dominar
um gênero do discurso significa ter consciência mais ou menos
clara dos modos de encadeamento de seus constituintes nos
diferentes níveis.
Certo uso da língua – todo locutor se acha diante de um repertório
bem amplo de variedades linguísticas.
Em nosso entendimento os parâmetros estão bem colocados em relação
à questão da constituição do gênero. Contudo, o parâmetro denominado
suporte deixa de explicitar os textos digitais, aqueles que surgem no ambiente
digital, que acreditamos ser um dos mais relevantes pontos na constituição do
gênero, especialmente se observarmos a data de publicação da obra que traz
os parâmetros aos quais estamos nos referindo. Além disso, não há na obra
supramencionada referência à forma como os gêneros deveriam se enquadrar
em tais parâmetros, se em todos obrigatoriamente ou em apenas alguns.
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A cada gênero do discurso, são associadas, a priori, opções de variedades
que funcionam como norma. Maingueneau (2006) se contrapõe à posição dos
analistas de discurso que tendem a privilegiar, explícita ou implicitamente,
esse ou aquele tipo de dado (a conversa, a literatura, a mídia etc.) em lugar
de reconhecer a radical diversidade das produções verbais. Outras abordagens
da Análise de Discurso demonstram preocupação com a referida diversidade
das produções verbais. Dentre essas se pode citar a Análise de discurso crítica,
especificamente com Van Dijk (2000) ao qual não nos reportaremos aqui, em
função da delimitação que já fora feita nos próprios objetivos deste trabalho.
A extensão recente da noção de gênero ao conjunto das atividades verbais
traz consequências significativas e a esse respeito cabe-nos observar, que por
um lado, a Análise do Discurso usa a noção de gêneros como uma categoria
saturada de sentidos num longo percurso histórico. E de outro lado, a Literatura
utiliza a categoria elaborada pela Análise do Discurso, categoria cujo nome lhe
é familiar, mas que não é verdadeiramente a sua. Entendemos que a literatura
não se interessa, pelo menos não teoricamente, pelo processo de constituição,
de construção de um gênero, nem pelas suas características, pelos critérios e
aspectos que são relevantes para a sua constituição, o que para nós se justifica
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pelos seus focos de estudo. E quanto a AD francesa, pelo menos no que foi
possível observar neste exíguo estudo, o que se tem, também devido a natureza
das pesquisas que se pretende desenvolver é uma preocupação maior com
relação ao discurso, não importando em que gênero este venha apresentado.
Desse modo, na AD, o estudo um pouco mais voltado para os gêneros se
reporta ao aspecto denominado genericidade, conforme poderemos observar
mais adiante.
Gêneros Instituídos e Gêneros Conversacionais
Esta delimitação se refere muito mais aos propósitos comunicativos e as
condições da atividade verbal em que tais gêneros são produzidos. E nesse
sentido, não se percebe uma preocupação com aspectos constitutivo do gênero,
tais como a estrutura textual típica do gênero, mesmo quando se estabelece a
divisão entre gêneros instituídos e conversacionais os seus aspectos referidos
não são levados em conta.
A avaliação do estatuto dos gêneros no discurso literário requer uma distinção
entre dois regimes de genericidade, que obedecem a lógicas distintas, ainda que
existam práticas verbais situadas na fronteira entre eles. Em primeiro, se tem os
gêneros conversacionais, que não têm ligação estreita com lugares institucionais,
papéis, nem roteiros relativamente estáveis. Sua composição e temática também
são instáveis e seu quadro se transforma incessantemente por coerções locais
e “horizontais” (estratégias de ajustes e negociação entre os locutores e que a
eles se impõem). E em segundo, os gêneros instituídos – reúnem os gêneros
“rotineiros” e “autorais”. Estes são geridos pelo próprio autor e eventualmente
por um editor. Sua manifestação autoral pode dar-se por meio de indicação
paratextual, no título ou subtítulo etc. (presentes nos tipos de discurso
filosófico, religioso, político etc.). Maingueneau (2006) considera os gêneros
rotineiros como os prediletos nos estudos dos analistas do discurso (a revista,
a lábia do camelô). Nestes, os papéis desempenhados pelos protagonistas são
estabelecidos a priori e de modo geral permanecem estabelecidos ao longo do
ato de comunicação. São eles que melhor correspondem à definição de gênero
do discurso como dispositivo de comunicação entendido sócio-historicamente.
Nessa perspectiva, a questão da fonte não tem pertinência para seus usuários, e
os seus parâmetros constitutivos resultam da estabilização de coerções ligadas a
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uma atividade verbal desenvolvida numa situação social determinada.
É possível definir no universo desses gêneros uma escala em que se configuram
de um lado os gêneros completamente ritualizados, com margem mínima de
variação (atos jurídicos) e do outro, gêneros que nos termos de um roteiro
pouco restritivo ficam ao sabor das variações pessoais. Os analistas do discurso
se interessam mais pelos gêneros “rotineiros”. E os “autorais” ficam para
especialistas em literatura, filosofia e religião. A essa postura Maingueneau
(2006, p. 240) também se contrapõe: “Não há, contudo, nenhuma razão teórica
de peso para que a Análise do Discurso não apreenda uma parcela da produção
verbal e para que os especialistas em literatura não remetam a genericidade dos
textos que estudam à genericidade do conjunto das produções verbais”.
Com base nisso Maingueneau (2006) defende que é mais produtivo considerar
os gêneros instituídos em toda a sua diversidade e com esse espírito propõe
a distinção de quatro tipos de genericidade instituída a partir da relação que
se estabelece entre o que se chama de “cena genérica” e “cenografia”, cuja
observação é pertinente em nossa opinião:
Gêneros instituídos tipo 1 – não admitem variações ou admitem poucas. Os
participantes obedecem estritamente às coerções desses gêneros: carta comercial,
guia telefônico, formulários burocráticos. É impossível falar de autor para esses
gêneros.
Gêneros instituídos tipo 2 – gêneros no âmbito dos quais os locutores produzem
textos individualizados, porém sujeitos a normas formais que definem o
conjunto de parâmetros do ato comunicacional (telejornal, guias de viagem) e
seguem em geral uma cenografia preferencial, esperada, tolerando, entretanto,
desvios.
Gêneros instituídos tipo 3 – não há para esses gêneros uma cenografia preferencial
(propaganda, canções, programas de televisão). Saber que um dado texto é
publicitário não permite prever através de qual cenografia ele vai ser enunciado.
É da natureza desses gêneros incitarem a inovação, que ocorre com a finalidade
de capturar um público não cativo e não a função de contestar a cena genérica.
Gêneros instituídos tipo 4 – trata-se dos gêneros autorais propriamente ditos,
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aqueles com relação aos quais a própria noção de “gênero” é problemática.
Os gêneros tipos 3 e 4 estão próximos em bom número de aspectos, visto que
eles não se limitam a seguir um modelo esperado, mas desejam capturar o seu
público mediante a instauração de uma cena de enunciação original que confira
sentido à sua própria atividade verbal, harmonizada com o próprio conteúdo
do discurso. Mas os gêneros tipo 4 são por natureza “não-saturados” e sua
cena genérica caracteriza-se por uma incompletude constitutiva. Cabe ao autor
plenamente individualizado (associado a uma biografia, a uma experiência
singulares), ou seja, autocategorizar a sua produção verbal. E desse modo, sua
designação não pode ser substituída por outra. O rótulo conferido pelo autor
caracteriza apenas uma parte da realidade comunicativa do texto enquanto a
categoria depende pouco do processo de comunicação realmente envolvido.
No caso dos gêneros tipo 4, estreitamente ligados aos discursos constituintes,
os textos não correspondem a atividades discursivas bem balizadas no espaço
social: os gêneros publicitários, televisuais e políticos estão ligados a certas
atividades sociais com finalidades preestabelecidas. O autor constrói nele sua
identidade por meio de sua enunciação.
Maingueneau (2006) propõe alguns conceitos necessários para os estudos
dos gêneros, a saber: hipergêneros, enquadramentos interpretativos e classes
genealógicas. O autor faz uma inter-relação entre esses conceitos e os tipos de
gêneros instituídos.
Nos gêneros instituídos tipos 1 e 2, os rótulos genéricos nada têm de necessários.
Os textos se mostram neles, por seu modo de ser, como membros desse ou
daquele gênero, reconhecidos pelos agentes em função de sua competência
comunicacional, mas nada impede que se acumulem o mostrado e o dito.
Nos gêneros tipo 4, em contrapartida, o rótulo influi de modo decisivo na
interpretação do texto, ainda que à primeira vista pareça redundante.
Maingueneau (2006, p. 243-244) afirma que “o sentido do gesto de categorização
é mais forte quando estabelece uma disparidade com aquilo que o texto parece
mostrar”. O autor ressalta que a categorização ou rótulo que o próprio autor
confere ao seu texto não modifica a sua natureza, e chama a atenção para a
relevância da interpretação, nesse sentido.
O autor alerta-nos para o fato de que devemos ter o cuidado de remeter essas
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“disparidades” às configurações estéticas de que participam. A priori, um rótulo
pode remeter mais às propriedades formais de um texto, a sua interpretação, ou
a combinação de ambas. Os rótulos formais se referem a um tipo de organização
textual. Não se trata de um dispositivo de comunicação historicamente definido,
mas um modo de organização com fracas coerções que se encontram nos mais
diversos lugares e épocas e no âmbito do qual podem desenvolver-se as mais
variadas encenações da fala. (MAINGUENEAU, 2006).
A partir dessa afirmação, o autor ressalta a noção de hipergêneros aos quais
defende tratar-se de categorizações como “diálogo”, “carta”, “ensaio”, “diário”,
que permitem formatar o texto. No século XVI, o diálogo constituiu a forma
dominante do debate de ideias, mas no século XVII foi o gênero epistolar,
denominado hipergênero que assumiu esse lugar. Mas os verdadeiros autores
“semantizam” necessariamente os modos de formatação de seus conteúdos,
o que significa dizer que o hipergênero não constitui um mero molde para
conteúdos independentes dele: o modo como Platão explora o diálogo forma
unidade como universo de sentido, que sua obra institui.
Maingueneau (2006) defende que, quando o rótulo se refere à interpretação
do texto, conforme visto em parágrafo anterior a este, pode-se falar em
enquadramento interpretativo. E ilustra tal defesa declarando que: “...Gide
atribui o rótulo “sotia” a seu Os subterrâneos do Vaticano para conferir uma
tonalidade bufa a uma narrativa que no entanto se apresenta como romance: ele
procede a uma alteração de um gênero teatral medieval”. Em literatura ou em
filosofia, a prática do “enquadramento interpretativo” é, sobretudo, elemento
de obras posteriores ao século XVIII: o escritor, recusando a submissão às
coerções preestabelecidas, pretende definir, ele mesmo, o estatuto de sua obra,
e daí advém a tendência à subversão entre categorização genérica e título. A
ilustração dessa afirmação é clara em Maingueneau (2006):
[...]as meditações do poeta Lamartine e as contemplações
de Vitor Hugo podem ser lidas como títulos e também
como rótulos genéricos do tipo 4. No caso da coletânea
de Hugo – tal como no de Gide, mas de maneira
totalmente distinta –, a soberania do autor se manifesta
com toda a sua força: uma contemplação não é uma
atividade verbal (Maingueneau, 2006, p. 245).
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Os rótulos são, na maior parte das vezes, formais e semânticos, o que ocorre com
as classes genealógicas. Com essa expressão, Schaeffer (apud Maingueneau,
2006) designa séries que se constroem graças a uma maior ou menor semelhança
com uma ou várias obras prototípicas.
Quanto à classe genealógica, o autor esclarece que a condição de membro de
uma classe genealógica impõe coerções variáveis tanto à organização textual
quanto ao sentido. Os rótulos dessas classes podem atravessar as épocas e os
regimes da literatura. Em função de essas classes terem por base uma memória
partilhada, a indicação de sua fonte se faz desnecessária. Entretanto, esse tipo
de atividade nem sempre se funda apenas na memória coletiva das obras,
baseando-se também nas atividades de linguagem que lhe são contemporâneas,
categorizando no todo ou em parte a cena da enunciação construída pelo texto
ao “captar” uma categoria genérica rotineira de seu tempo. Embora o autor
não faça referência, pensamos que esta categorização é muito mais da tradição
discursiva de um texto do que do gênero em si, pelo menos em seu aspecto
formal.
Maingueneau (2006) defende que não se podem conferir os três tipos de rótulos
(hipergêneros, enquadramentos interpretativos, classes genealógicas) como
estanques, porque o que os marcará será a dominância. O enquadramento
interpretativo “puro” só se faz de fato presente se houver uma disparidade
manifesta entre o rótulo reivindicado e a realidade comunicacional do texto.
O autor afirma que “A categoria gênero do discurso é definida a partir de
critérios situacionais; ela designa, na verdade, dispositivos de comunicação
sócio-historicamente definidos e que são concebidos habitualmente com a ajuda
das metáforas do ‘contrato’, do ‘ritual’ ou do ‘jogo’” (MAINGUENEAU, 2006,
p. 234).
Contrato, papel e jogo
Segundo Maingueneau (2001, p. 69), “para caracterizar os gêneros de
discurso, costuma-se recorrer a metáforas tomadas de empréstimo de três
domínios: jurídico (contrato), lúdico (jogo) e teatral (papel). O contrato - ele é
fundamentalmente cooperativo e regido por normas. Ex.: Um jornalista assume
o contrato implicado pelo gênero de discurso do qual participa. Em relação
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ao papel – Falar de papel é insistir no fato de que cada gênero de discurso
implica os parceiros sob a ótica de uma condição determinada e não de todas
as suas determinações possíveis. Ex.: Quando um policial verifica a identidade
de uma pessoa, ele intervém como agente de ordem pública, não como pai de
uma família de três crianças, moreno, de bigode, com um sotaque toulouse ou
da Alsácia etc.
No que se refere ao jogo – falar de jogo é de alguma forma, cruzar as metáforas
do contrato, enfatizando simultaneamente as regras implicadas na participação
em um gênero de discurso e sua dimensão teatral. O gênero implica assim
como o jogo certo número de regras preestabelecidas, cuja transgressão exclui os
participantes do jogo. Contrariamente as regras do jogo, as do discurso nada têm
de rígidas, pois possuem zonas de variação e os gêneros podem se transformar.
Os aspectos mencionados nesta seção estão mais voltados, em nossa opinião,
para os aspectos da comunicação presencial, o que se pode inclusive verificar
por meio dos exemplos que são utilizados para exemplificar as asserções do
autor.
Em se tratando dos gêneros do discurso Charaudeau e Maingueneau (2008)
propuseram diversos modelos que mobilizaram certo número de parâmetros,
que, em nossa opinião, mais do que como parâmetros podem ser tratados
como categorias de análise de identificação de um gênero, conforme descrito
a seguir.
Para a identificação do gênero, em nossa opinião, deve-se pôr um gênero à
prova identificando todos os elementos, conforme descrito a seguir:
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Ressalte-se que estes parâmetros foram utilizados pelo próprio Maingueneau e
nós apenas os pusemos nesta forma de tabela.
Em nosso entendimento, para viabilizar estudo dos gêneros, deveria ser feita
uma observação a partir da qual se procuraria a contemplação dos referidos
parâmetros pelos gêneros e se o gênero deixasse de apresentar alguma
das características significaria que não se tratava de um gênero, como, por
exemplo, se colocarmos à prova o Orkut, vamos comprovar que este deixa
de apresentar uma das categorias que devem compor o gênero em si. E esta é
decisiva, porque porá em dúvida se o orkut é um gênero de fato. Sabemos que
há uma considerável discordância entre a categorização dos gêneros digitais,
mas não nos concentraremos nessa discussão, em função de nosso objetivo de
apenas mostrar como a Teoria da Enunciação e a AD têm tratado o estudo dos
gêneros.
Exemplo (tabela 1):
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Gênero
orkut
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Categorias
Presença ( + )
finalidade
(+)
estatuto para os parceiros
(+)
circunstâncias adequadas
(+)
inscrição na temporalidade
(+)
continuidade
(+)
tempo de validade
(+)
suporte
Ausência
(-)
(-)
plano textual
(+)
Norma (uso)
(+)
O que se consegue perceber aqui é que o orkut não apresenta a categoria suporte
que é necessária a um gênero, exatamente porque o orkut é o próprio suporte, o
que faz com que este não possa ser considerado um gênero.
Como apresentamos, anteriormente, um exemplo de não atendimento dos
parâmetros propostos por Maingueneau, apresentamos a seguir um exemplo
de um gênero legítimo que atende a todas as categorias.
Exemplo (tabela 2):
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Gênero
carta
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Categorias
Presença ( + )
finalidade
(+)
estatuto para os parceiros
(+)
circunstâncias adequadas
(+)
inscrição na temporalidade
(+)
continuidade
(+)
tempo de validade
(+)
suporte
(+)
plano textual
(+)
Norma (uso)
(+)
Ausência
(-)
Entendemos, que a contemplação dos supracitados parâmetros por um gênero
A ou B não pode nos levar a uma categorização dos gêneros. Os tais parâmetros
por si não dão conta de todos os gêneros, e não poderiam ser empregados que
não todos ou pelo menos para a maior parte dos gêneros.
Considerações Finais
O que se percebe, a partir do estudo ao qual nos propusemos, é que nem a
da Teoria da Enunciação, de Bakhtin, e nem a perspectiva da Análise do
Discurso francesa, especificamente com Maingueneau, dão conta dos estudos
dos gêneros, muito menos para a instrumentalização de análises científicas
deste profícuo objeto de estudo da área da linguagem, que tanto perpassa o
âmbito linguístico quanto o extralingüístico, simplesmente porque não constrói
categorias de análise e cremos que é por isso mesmo que ainda há correntes
de estudiosos afirmando ideias completamente opostas a outras quanto ao que
é e ao que não é um gênero. Entendemos que em virtude de o gênero ser um
fenômeno constituído por sujeitos por meio de práticas sociais seu estudo deve
levar em conta pelo menos, os aspectos pragmáticos, textuais, sociais, culturais
e temporais para um estudo menos restrito.
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em Linguística Aplicada, Campinas, n. 46, p. 79-92, jan./jun. 2007.
ARAÚJO, J. C.; DIEB, M. Apresentação. In: ARAÚJO, J. C.; DIEB, M. (Org.).
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Bezerra Rev. de Letras – Nº. 23 - Vol. 1/2 - jan/dez. 2001.
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da criação verbal. Tradução: Maria Ermantina Galvão. 3 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 277-326.
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Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2008.
DIONISIO, Angela Paiva et al. (Org.). Gêneros textuais & Ensino. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2002.
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Tradução:
Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva; Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001.
_________. O quadro genérico. In: ____. Discurso Literário. Tradução: Adail
Sobral. São Paulo: Contexto, 2006. p. 229- 246.
_________. “Gênero: historicidade de um gênero de discurso: o sermão”. In:
____. Doze conceitos em Análise do Discurso. Tradução: Sírio Possenti. São
Paulo: Parábola, 2010. p. 99-127.
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261
__________. “Análise de um gênero acadêmico”. Tradução: Marcela Franco
Fossey. In: Possenti, Sírio; Souza-e-Silva, Maria Cecília Pérez de. (Org.). Cenas
da Enunciação. São Paulo: Parábola, 2008. p. 151-180.
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Seção II
Estudos sobre Literatura
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A NAU E O CAPITÃO: PELOS MARES DA
HISTÓRIA, DUAS VERSÕES FICCIONAIS DE LUIZ
GUILHERME SANTOS NEVES
Cinthia Mara Cecato da Silva*1
RESUMO
A abordagem acerca dos romances A Nau Decapitada e O Capitão do Fim, de
Luiz Guilherme Santos Neves, propõe revelar a tênue fronteira entre o que é
verdade e o que é ficção quando se fundem História e Literatura. Aliadas às
infinitas possibilidades de invenção e recriação propostas pelos textos, é intento
mostrar como as narrativas põem em jogo – por meio da paródia e da ironia
– o estatuto da memória e o da palavra; recriando experiências e inquirindo
transformações. Dentro dessa poética de ruptura geometrizada pelo historiadorliterato capixaba, buscar-se-á, ainda, evidenciar como a proposta do romance
histórico contemporâneo propõe preencher os espaços brancos deixados pela
historiografia oficial elevando à categoria de protagonistas personagens que
foram relegados ao segundo plano nos registros da História factual.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura Brasileira do Espírito Santo. A Nau Decapitada.
O Capitão do Fim.
ABSTRACT: The approach of novels about A Nau Decapitada and O Capitão do
Fim of Luiz Guilherme Santos Neves, proposes to reveal the fine line between
what is truth and what is fiction when merging history and literature. Allied to
the infinite possibilities of invention and re-proposed by the legislation, is intent
to show how narratives bring into play, through parody and irony, the status
of the word memory and recreating experiences and asking transformations.
Within this poetic burst geometrized by historian-writer capixaba check will
also show how the proposal of the contemporary historical novel seeks to fill
the white spaces left by the official historiography rising to the rank of the
protagonists, characters who were relegated to the background records History
factual.
1- *A autora é Mestre em Letras, área de concentração em Estudos Literários, pela
UFES – Universidade Federal do Espírito Santo. Contato: [email protected].
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KEYWORDS: Brazilian Literature of the Holy Spirit. A Nau Decapitada. O
Capitão do Fim.
Mas o artista faz mais alguma coisa: “renova” o
passado. O que significa que não o reproduz, mas
antes, tirando dele como de um depósito formas e
conteúdos esparsos, o torna novamente ambíguo,
denso, opaco, relacionando os seus aspectos e
significados com a modernidade.
Omar Calabrese
Ao nos aproximarmos dos contornos que delineiam a Literatura Brasileira
Contemporânea do Espírito Santo deparamo-nos com Luiz Guilherme Santos
Neves e seu legado de romances que se utilizam da História capixaba como
suporte ficcional. Não encontramos em sua produção espaço para a indiferença,
uma vez que a exaltação das personagens em sua obra é protagonizada por
aqueles que estiveram à margem na historiografia oficial. A irreverência, a
ironia, o desafio e o imaginário perturbador põem em xeque o real a cada página
e imprimem à sua produção o lugar da não comodidade, fazendo emergir
sentenças que desafiam o passado e dão suporte a uma nova interpretação do
presente, com possíveis reflexões para o futuro. Nessa vertente, a Literatura
conforme aventa Octávio Paz “[...] expressa a sociedade; ao expressá-la, ela
a muda, contradiz ou nega. Ao retratá-la, inventa-a, ao inventá-la, revela-a’’
(1986, p. 209).
Ao incorrermos pelas produções literárias do autor capixaba, percebemos sua
singular maestria em produzir textos capazes de reforçar o lugar da Literatura
como arte. O apuro formal das narrativas conduz o resgate da História pondo-a
em movimento como uma nau que percorre os mares e busca revelar um
itinerário capaz de fazê-la aportar em outras terras ainda não desbravadas. Luiz
Guilherme Santos Neves, por meio de sua criação literária, dá vida ao texto
oficial permitindo ao seu interlocutor o acesso tanto à história ficcional quanto a
fatos da história chamada factual e suas possíveis interpretações.
Essa busca de temas históricos para transformá-los em matéria de Literatura
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é, na atualidade, uma tendência internacional. A renovação epistemológica do
discurso histórico coincide com um novo interesse pelo questionamento da
História, marcada pelo movimento pós-moderno. Na obra do autor capixaba
esse revisionismo tem um duplo objetivo: (re)questionar as versões tradicionais
da identidade coletiva e tornar legítimos os espaços brancos do passado
ignorados até aí pelo discurso histórico oficial. Terry Eagleton(1998) reconhece
que o erro na modernidade era a convicção de que a História estava já moldada
numa matriz pré-determinada. Em sua visão, a pós-modernidade – obcecada
com a mudança, a mobilidade, a instabilidade, os finais abertos – não recusa a
história, mas a História, a ideia de que existe História de sentido e finalidade
imanentes.
A esta luz, tomamos como fontes inquestionáveis do registro desse
paradigma textual duas versões ficcionais de Luiz Guilherme Santos Neves:
A Nau Decapitada e O Capitão do Fim. Estabelecendo ideologias e oposições, os
enredos seguem um paralelo com a história registrada como real, oferecendo
alternativas para cada ponto nodal do tecido dos acontecimentos. Apresentam
um caráter marcadamente paródico porque incorporam e reciclam – com uma
diferença irônica – materiais textuais pré-fabricados, de que o leitor deve ter um
conhecimento prévio se quiser compreender o texto na sua dupla dimensão:
textual e intertextual.
A abordagem acerca dos dois romances de Luiz Guilherme Santos Neves quer
expor a forma competente com que sua produção – servida por uma notável
capacidade de dar consistência ao tecido narrativo – vem representar o romance
histórico dentro da configuração pós-moderna no panorama nacional. Nas
produções, a retomada do passado faz-se buscando o que a historiografia oficial
relegou ao segundo plano ou ao esquecimento e possui um forte sentido crítico.
Focalizar os vultos ilustres e os grandes acontecimentos não é uma preocupação.
O povo humilde, a classe média, a mulher na sua luta pela emancipação e os
remanescentes das culturas descaracterizadas protagonizam a narrativa e
evidenciam um outro lado da História. Conforme afirma Maria Thereza Coelho
Ceoto (2000, p. 23): “[...] trata-se de rever o passado, respeitando as diferenças
abolidas pelo discurso dos vencedores”.
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Antes, contudo, de analisarmos de que forma e com que linguagem os enredos
das narrativas dão nova vida à historiografia oficial capixaba por meio do
ficcional, é mister engendrarmos brevemente pelos caminhos do gênero literário
do qual se utiliza Luiz Guilherme Santos Neves para compô-los.
O romance histórico é um texto literário que faz uso do discurso histórico para
tecer suas narrativas, conforme afirma Maria de Fátima Marinho (1999, p. 12):
“Trata-se de um gênero híbrido, na medida em que é próprio da sua essência
a conjugação da ficcionalidade, inerente ao romance e de uma certa verdade,
apanágio do discurso da História”. Em geral, enquanto a historiografia se
preocupa com uma visão objetiva da realidade, o romance se atém à subjetividade
e à imaginação, ou seja, a diferença entre o romance histórico e a História oficial
está na maneira com que ambos olham o mesmo objeto. O estudo científico da
História baseia-se em dados, documentos e entrevistas que lhe conferem maior
veracidade, enquanto a ficção não precisa disso para adquirir significado.
Esse tipo peculiar de narrativa teria surgido, segundo o filósofo húngaro
Lukács (1971), na Europa, no século XIX, onde transformações políticas como a
Revolução Francesa e a ascensão e queda de Napoleão permitiram o surgimento
desse subgênero do romance, numa tentativa de resgatar a História perdida
ou esquecida. Entretanto, desde a Antiguidade Clássica a ficção e a realidade
aparecem como partes constituintes da História, pois os historiadores acabavam
por misturar em seus textos acontecimentos reais com fatos mitológicos: “Na
Antiguidade clássica, [...] escritores gregos e seus públicos não colocavam a
linha divisória entre a história e ficção no mesmo lugar em que os historiadores
a colocam hoje (ou foi ontem?)” (BURKE, 1997, p. 108).
No Brasil, o romance histórico aparece durante o Romantismo, ainda no século
XIX, quando o escritor “[...] vibra com a pátria e se irmana com a humanidade
[...]” (CANDIDO, 1976, p. 204). O apoio do imperador D. Pedro II para consolidar
a cultura nacional garante pesquisas sobre o nosso passado e esse interesse pela
nossa História leva os escritores a substituir as epopéias pelos poemas políticos e
o romance histórico. Contudo, nas décadas posteriores, a busca em romper com
o passado e com as tendências colonizadoras leva os romances, principalmente
os de Mário de Andrade e as publicações de Oswald de Andrade, a uma postura
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negativa quanto ao passado do país, abalando, portanto, a base dos romances
históricos tradicionais.
No entanto, essa modalidade de romance volta a ganhar força nas terras
brasileiras quando, ao fim da ditadura militar, algumas vezes durante a mesma,
os escritores buscam retomar a cultura nacional “[...] por meio de uma volta, às
vezes críticas e às vezes nostálgicas, ao passado” (PELLEGRINI, 199, p. 115). É
o caso dos livros: Viva o povo brasileiro de João Ubaldo Ribeiro, Agosto de Rubem
Fonseca, O Chalaça de José Roberto Torero, Memorial de Maria Moura, de Rachel
de Queiros, entre outros. Esses novos romances históricos buscam incluir “[...]
alusões textuais para que o leitor mais esperto possa se satisfazer com a visão
semiotizada da história” (FIGUEIREDO, 1997, p. 06).
Nessa abordagem contemporânea, os autores, ao retratarem o passado, deixam
de fazer somente uma re(leitura), de se preocupar com o detalhe, com a fiel
representação das personagens e suas ações. Suas produções literárias tratam a
História com uma liberdade nunca antes conhecida no âmbito da ficção. A ciência
histórica, nesse ínterim, já não pode ser concebida como discurso contínuo, do
idêntico, mas é o próprio espaço da dispersão. A descontinuidade tornou-se
uma hipótese sistemática e a história constrói-se por séries que privilegiam os
objetos marginais, outrora desconsiderados pela História oficial. Como nos
revela Pellegrini, o romance histórico hoje, veste-se de uma nova roupagem,
pois
[...] ele interpreta o fato histórico, lançando mão de
uma série de artimanhas ficcionais, que vão desde a
ambigüidade até a presença do fantástico, inventando
situações, deformando fatos, fazendo conviver
personagens reais e fictícios, subvertendo as categorias
de tempo e espaço, usando meias-tintas, subtextos e
intertextos – recursos da ficção e da não história – ,
trabalhando, enfim, não no nível do que foi, mas no
daquilo que poderia ter sido (PELLEGRINI, 1999, p.
116).
Essa renovação epistemológica do discurso histórico coincide com um
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interesse pela História que se manifesta há algumas décadas na literatura
atual, marcada pelo movimento pós-moderno, conforme mencionado
anteriormente. Animado por um projeto coletivo de recuperação crítica de
velhos temas, o pós-modernismo, entendido como uma conjuntura memorial
e estética, caracteriza-se também pelo uso programático da narração e por uma
verdadeira ressurreição de questões estabelecidas pela História factual. As
características da Nova História Cultural, inaugurada pela Escola dos Anais,
aproximam-na do pensamento pós-moderno principalmente em suas defesas
de descontinuidade, descentramento e fragmentação do objeto construído,
animando um ressurgimento da problemática histórica. Seguindo estes passos,
o romance histórico contemporâneo torna-se não uma forma de conhecimento
histórico, mas a possibilidade de utilizar esse mesmo conhecimento sob uma
perspectiva política, crítica e transformadora. Francisco Aurélio Ribeiro percebe
essa abordagem em Luiz Guilherme Santos Neves quando afirma que é
[...] pela análise do texto literário de Luiz Guilherme
Santos Neves, que podemos encontrar, em alguns
dos elementos constituintes da narrativa, recursos do
texto parodístico, que o tornam imagem invertida do
outro, e nos possibilitam uma leitura crítica da ficção
e da história (RIBEIRO, 1993, p.70).
Linda Hutcheon (1991) batiza de metaficção historiográfica essa nova proposta
que põe o discurso histórico no lugar do secundário e prioriza os efeitos do real. O
conceito central, segundo a teórica, é a tentativa de instituir uma relação dialógica
entre o presente e o passado com a pretensão de substituir a memória-mensagem
por uma memória-diálogo. A ideia básica sobre a qual assenta esse tipo de ficção
é a de que qualquer situação histórica implica uma multidão de possibilidades
divergentes que excedem/transbordam o curso efetivo dos acontecimentos.
Como assinala Hutcheon (1991, p.160), “[...] subjetividade, intertextualidade,
referência, ideologia, estão por trás das relações problematizadas entre a
história e a ficção no pós-modernismo.” A teórica reescreve o paradigma do
romance histórico do século XIX às circunstâncias peculiares da nossa existência:
revivemos o passado por meio da nossa experiência, tornando-o assim matéria
de criação da nossa identidade, já não tanto coletiva como individual.
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Dessa forma, pensamos que os romances em tela de Luiz Guilherme Santos
Neves aproximam-se do conceito de metaficção historiográfica pós-moderno
concebido por Linda Hutcheon (1991), uma vez que ambos têm o intuito de
propor um olhar reflexivo e problematizador na História. Percebe-se neles
uma permanente tentação paródica que denota a recusa de aceitar as respostas
tradicionais às grandes perguntas humanas e à escolha deliberada de uma
interrogação permanente que rejeita a certeza tranquilizadora da doxa. Essa
poética de ruptura geometrizada pelo historiador-literato capixaba é também
percebida por Azevedo Filho quando este sentencia que:
O julgamento do valor das questões levantadas por
Luiz G. S. Neves, em seus romances, se valerá, também,
de questões que estão diretamente relacionadas com
a própria modernidade da representação da tradição
enquanto elemento reistorizável, pois ele que dizernos que ela está ‘esburacada’ pela história oficial,
sendo, preciso, portanto, estabelecer onde se dá a
ruptura, a queda, o salto (AZEVEDO FILHO, acesso
em 15 jul. 2009).
A Nau Decapitada, cujo subtítulo é “Manuscrito de Itapemirim”, tem como
referência o fato da História oficial que prestigia a posse do Presidente da
Província do Espírito Santo, Machado de Oliveira, em 1840. Interessante notar
que desde o primeiro contato com a estrutura podemos prever quão paródico
é Luiz Guilherme: a História de registro oficial vem afixada como apêndice no
final do romance. Fato este que, na visão pós-moderna do autor, vem justificar
e classificar seu posicionamento diante dos fatos que até a pouco serviram
como farol decifrador dos episódios que registram a História oficial capixaba –
ocupam o depois em uma escala de importância.
Além de outros elementos constituintes da narrativa que nos possibilitam
uma leitura crítica da História, torna-se possível fazer uma abordagem sobre o
reducionismo a que as pessoas estão condicionadas no relato histórico quando
enfocamos que as mesmas não são sequer nomeadas. O contramestre que
leva-lhe o “[...] trem de viagem e fato necessário para entrar na capital [...]”
(NEVES, 1985, p.124) não é batizado com nome algum. O Major Marcelino José
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Castro Silva – com todo o seu nome e importância de seu papel – não recebe do
Presidente uma menção sequer. Em contraponto, o texto produzido por Luiz
Guilherme exalta os nomes e personagens de forma mais completa que a oficial.
O major-narrador nos afirma que o novo Presidente da Província do ES é o
Bacharel José Joaquim Machado de Oliveira, vindo para substituir o Dr. João
Lopes da Silva Couto.
Aparece também no enredo uma galeria de personagens ignorados pelo ilustre
Presidente no relato oficial: o alferes, o velho que dá pernoite aos visitantes da
vila, o contramestre, o subdelegado, o professor, o grumete do brigue, o frade, o
chinês, a prostituta... todos renegados pela História monumental, factual. Dessa
maneira, a produção literária de Luiz Guilherme Santos Neves recupera o papel
social da História e do próprio literato de fazer da Literatura matéria-prima para
reflexões. O escritor narra os acontecimentos sem distinguir entre os grandes e
pequenos; levando em conta o fato de que nada do que um dia aconteceu pode
ser considerado perdido para a história, como afirma Walter Benjamim (1985).
Por incompetência do contramestre a nau foi decapitada e decapitada também
foi a chegada de Machado de Oliveira à Província do Espírito Santo como
era previsto. O adiamento de sua posse tornou-se inevitável, pois, após o
desmantelamento da embarcação, dirigiu-se o brigue Vinte e Nove de Maio
para o Sul. Assim, recebeu o major Marcelino como ordem do quase nomeado
Presidente deslocar-se até Piúma, para que o fosse acolher com tropas de animais,
a fim de conduzi-lo, agora de fato, a Vitória, onde assumiria o governo. Chegando
então à enseada da pequena vila, a autoridade foi acolhida pelo antigo morador
do lugar, Miguel Martinez – que tinha como costume hospedar os que ali
pernoitavam. Partiriam então, no dia seguinte, para o verdadeiro destino, assim
que retirassem os pertences do Presidente de dentro da embarcação aportada em
Piúma após o contratempo. Antes, porém, antecipou-se o contramestre Simão
Boncarneiro – pessoa incompetente, desonesta e perversa – que se apoderara do
navio e levara com ele o baú tão estimado de Machado de Oliveira.
Ora, o baú! Objeto que serve como mola propulsora do enredo ficcional, é apenas
citado na “versão” oficial relatada pelo então Presidente no documento que serve
de aporte para Luiz Guilherme Santos Neves. E é a procurá-lo que o designado
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Major Marcelino passa todo o tempo da narrativa. A saga para recuperar o baú
que trazia Voltaire e Rousseau, além do fato para a posse, serve de base para
tantas outras narrativas, relatos, biografias que se sobrepõem à atividade quase
policial do major e acabam por constituir toda a trama textual. Assim, criam-se
narrativas paralelas e, consequentemente, um rol de personagens, gente das
massas, que compõem o universo de ficção criado por Luiz Guilherme.
Ao recuperar a historiografia oficial preocupada com o poder dos dominantes
e dar voz aos marginalizados que se tornam os verdadeiros sujeitos da história,
A Nau Decapitada vem certificar o papel da Literatura de realizar o processo da
transfiguração essencial para a busca da realidade. O narrador, por meio de
sua linguagem, ironiza o repositório de fatos estabelecidos e as interpretações
desses, tornando o leitor cúmplice de todo o estigma a que estão condicionados
aqueles que se encontram fora da esfera do poder. É nas entrelinhas que o
interlocutor de Luiz Guilherme Santos Neves consegue produzir sentido e
avaliar sob qual ângulo deve classificar os fatos explorados. Sem muito esforço,
esse papel ativo levará a construção da própria imagem do Brasil que, como
uma nau de excluídos, navega sobre os mares da improbidade e do abuso de
poder.
Neste paralelo até aqui traçado entre a linguagem da História e a linguagem
da Literatura também surge no rol de produções de Luiz Guilherme Santos
Neves O Capitão do Fim. Com o intuito de incitar essa relação entre a ficção e a
realidade, a produção perfaz um jogo em que os componentes que interagem
vêm representados, assim como em A Nau Decapitada, pela História do Espírito
Santo e a narrativa literária sobre ela produzida. A busca por dar sentido ao
passado nessa obra é, ainda, o caminho percorrido pelo autor para que os fatos
narrados ganhem certa coerência dentro da realidade ficcional.
O enredo de O Capitão do Fim adota estratégias narrativas que percorrem o
passado, conferindo à obra um acentuado grau de verossimilhança, buscando
similaridade com aquela verdade histórica que ele está retomando. Essa atitude
reforça o intuito do autor em repensar a cultura sob o olhar da crítica e promover
ao leitor a oportunidade de reconstituir a História, refletindo, via literatura, os
enfoques que perpassam o tempo.
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O contexto resgatado por Luiz Guilherme, nesse romance, remete-nos à chegada
de Vasco Fernandes Coutinho ao litoral espírito-santense. Como primeiro
donatário, o fidalgo português representava a sexta capitania no período de
estabelecimento do sistema de capitanias hereditárias por D. João III, em 1534.
O rei de Portugal objetivava, por meio do sistema, a ocupação político-territorial
e a gestão econômica das terras brasileiras pela coroa portuguesa. Estamos,
portanto, diante de um texto de ficção que se organiza no presente e que volta
ao tempo histórico resgatando os acontecimentos que marcaram o início da
colonização do solo brasileiro.
Historicamente, Vasco Fernandes é visto como um donatário frustrado, pois sua
capitania não prosperou. Para recontar esse passado à luz do romance histórico
pós-moderno, Luiz Guilherme Santos Neves utiliza-se de um narrador em
terceira pessoa que conduz o leitor às mazelas vivenciadas pelo desbravador
da Capitania do Espírito Santo, além do cotidiano das pessoas que viviam nesse
limite de terras. Assim como o protagonista, as outras personagens que compõem
o enredo do romance, também têm existência real na História monumental.
Sob o signo da soberba o capitão chegou às terras capixabas. Optou por
entregar-se aos vícios que o consumiram durante a vida e o atormentaram após
a morte ao empenhar-se em vencer os desafios que o fariam um donatário com a
marca da prosperidade. O aventureiro com passagem pela África e Ásia “fincou
[...] a espada na terra quando devia ter espetado o ancinho” (NEVES, 2006, p.
20) e acabou morrendo na miséria, envolto em intrigas e desgostoso de seus
investimentos.
À maneira da personagem machadiana Brás Cubas, Neves adota a estratégia
ficcional de iniciar o romance com as reflexões póstumas do capitão. Sua alma
está desperta de seu corpo e é chamada a cruzar um caminho transcendental
até o seu julgamento final conduzida por uma espécie de guia com cara de cão.
Durante toda a narrativa, Vasco Fernandes faz reflexões de suas mais íntimas
frustrações humanas criando um redemoinho de lembranças e tormentos. De
dentro de uma embarcação com destino desconhecido, o donatário contempla
os seus antigos domínios e todos maus augúrios que o conduziram até esse
fim.
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A escassez de triunfos e o excesso de mesquinharias descritas por pelo autor
capixaba conduzem o leitor a participar da releitura do contexto histórico e
a construir, sob o crivo de interlocutor, uma imagem que justifique todos os
infortúnios que fizeram do homem Vasco Fernandes um anti-herói e um
pecador assumido. Na narrativa, assim como na História, a permanência de
Vasco Fernandes na capitania durou vinte e seis anos e teve seu vértice apoiado
em seu grande desejo de conquistar o Brasil. O sonho do ouro, o engenho, a
lavoura, a dominação do gentio povoavam a mente do donatário: “O Brasil era
uma esmeralda a ser lavrada” (NEVES, 2006, p.21). Porém, percebeu que todo
empenho que desprendeu com o intento de tornar próspera sua capitania o
frustrara, uma vez que as conquistas eram lentas e faziam-se necessários muitos
investimentos para colonizá-la.
Para suprir o desânimo e a lassidão com que a colonização se arrastara entregouse ao vício do fumo com o pretexto de curar as doenças que cercavam sua
idade sexagenária. Bebeu o fumo, comeu o fumo. E a esse pecado somaram-se
também o da preguiça, da soberba, o da gula e o da inveja, hábitos malvistos
pela sociedade moralista cristã da época, sobressaltando a figura pecadora do
donatário que cobiçou desbravar o Espírito Santo. Esse olhar crítico incitado
pelo narrador que delineia os episódios exaltando a fraqueza humana de Vasco
Fernandes revela a visão contemporânea com que Luiz Guilherme compôs a
releitura do passado histórico do início do século XVI vivenciado nas terras
brasileiras.
Os limites entre o ficcional e o histórico nos episódios que compõem o romance
parecem impossíveis de serem delineados. Apiedado por seu pouco progresso,
o donatário sente inveja das capitanias que singram prósperas, como a de Pero
Góis. Mesmo sendo prestativo o donatário de São Tomé, o capitão sente tamanha
inveja de sua prosperidade que crê ser responsável pelos trágicos acontecimentos
posteriores que levaram Pero Góis à falência e a perda de um olho. Movido por
orgulho mais do que por necessidade, Vasco Fernandes incita batalhas contra
os índios que resultam em mortes como a de Bernardo Sanches de la Pimenta e
do capitão Fernão de Sá. Essas culpas o atormentam e o diminuem tornando o
desbravador um resignado. Luiz Guilherme Santos Neves constrói a realidade
de modo a corresponder com a experiência humana e pauta a frustração
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absorvida a cada culpa, a cada derrota: “Mas o cão de outros tempos [...] já não
era mais [...] o mesmo capitão cristão e asiático da primeira chegada ao Brasil,
nem era o cão de patas rijas e pêlos vermelhos daqueles alvores de conquistas”
(NEVES, 2006, p. 39).
Ao revisitar o passado, O Capitão do Fim permite-nos construir o ponto de vista
sob a ótica contemporânea àqueles a quem a história habitualmente negou a
voz. Vasco Fernandes, ainda em vida, poderia ter lamentado os infortúnios
que o acompanharam durante a tentativa de colonização das selvagens terras
brasileiras. Como qualquer outra criatura que estivesse em seu lugar, sofreu
as consequências das desmedidas praticadas, contudo não se fez arrependido.
Deixou o cavaleiro real que o leão o abocanhasse e sem lutar chegou ao fim
como um pecador assumido: “O choro que chorou sua alma, a caminho do
Juízo, foi o choro de quem viu seu sonho de grandeza desmanchar-se em ilusão
“[...]. Não chorou o capitão pelo que na vida fez; chorou pelo que deixou de
fazer” (CF, 2006, p.88).
Segundo Linda Hutcheon (1991, p. 152), a matéria metaficcional “[...] se aproveita
das verdades e mentiras do registro histórico”. Ou seja, ao reescrever o passado
dentro de um novo contexto, Luiz Guilherme Santos Neves induz que sejam
feitas avaliações dos fatos ocorridos, sempre a partir de novas perspectivas. A
lição ensinada é que o passado não está apagado, mas incorporado e modificado,
recebendo vida nova e sentidos diferentes por aqueles que se propõem a
retomá-lo. O leitor, nesse sentido, é convidado a deixar o lugar da passividade,
do comportamento ignóbil e emergir em um mar de possibilidades. Esse papel
interativo designado ao leitor também é percebido por Rita de Cássia Maia e
Silva Costa quando esta afirma que “O paciente trabalho do escritor [...] convoca
a potência interpretativa do leitor, instigando-o a reconstruir o fluxo inconsútil
entre o que já foi e o que já não é [...]” (2006, p.231).
Nos romances abordados, os conteúdos e as formas do passado são reelaborados
a fim de revelar os limites e os poderes do conhecimento histórico ficando
explícito que o texto foge aos padrões tradicionais de estruturação narrativa,
inserindo-se em um novo fazer literário. O olhar que o romance histórico
inserido em um contexto pós-moderno lança ao passado é desafiador, não no
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sentido de querer afirmar que ele nunca existiu, mas de revelar que os critérios
estabelecidos pelo homem para relatar suas experiências concretas dependem
de uma ótica pessoal, que, por sua vez, torna o conceito de verdade e o estatuto
do fato histórico discutíveis ante a pluralidade do olhar humano. Temos um
texto, uma formação discursiva final embasada na História, porém sem deixar
de ser arte literária ficcional.
Assim, a incursão pelos mares da História em A Nau Decapitada e em O Capitão do
Fim simboliza a tênue fronteira entre o que é verdade e o que é ficção quando se
fundem História e Literatura. Aliados às infinitas possibilidades de invenção e
recriação, os romances põem em jogo – por meio da paródia e da ironia – o estatuto
da memória e da palavra, recriando experiências e inquirindo transformações.
Em Luiz Guilherme Santos Neves, todas as digressões ao passado nos fazem
aportar no prazer do texto; na sensualidade de uma escrita que tem o poder
de hipnotizar e de nos conduzir a outros séculos; a outros mares; a terras
desconhecidas e confrontá-los todos com o presente. Nesses contextos a que
somos transportados, o autor capixaba assume o papel de capitão a conduzir
uma nau repleta de interlocutores sedentos por terra firme, por um discurso
que possa os aproximar da fronteira existente entre o significativo e o dito real.
Barthes (s.d, p.19), em Aula, nos auxilia nesse percurso literário proposto quando
lembra-nos de que “A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa
distância que a literatura nos importa”. Essa máxima torna-se mais verossímil
dentro da criação capixaba quando deixamo-nos penetrar pelos textos de Luiz
Guilherme Santo Neves.
Referências
AZEVEDO FILHO, Deneval Siqueira de. O legado de Saramago em Luiz
Guilherme Santos Neves: duas notas sobre o romance histórico contemporâneo.
Disponível em: www.realgabineteportuguêsdeleitura.com. Acesso em: 15 jul.
2009.
BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
Cultrix, [s.d.].
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MENINO DE ENGENHO: O INÍCIO DO CICLO
SOCIOLÓGICO EM JOSÉ LINS DO REGO
Dinameire Oliveira Carneiro Rios*1
Resumo
Este artigo apresenta uma análise literária e sociológica do romance inaugural
do escritor José Lins do Rego, Menino de Engenho (1932), inserindo-o na
problemática e nas discussões da literatura brasileira do início do século
XX através não somente de seus aspectos narrativos, como também pela
configuração dos elementos centrais que norteiam o seu enredo. Por tratar-se
de uma narrativa reminiscente e aparentemente autobiográfica, examina-se
de qual forma o narrador do romance, o menino Carlos de Melo, elabora um
discurso que parece permear o ingênuo ou despretensioso, mas que imprime à
narrativa fortes sinais de subjetividade e juízos de valor.
Palavras-chave: Menino de Engenho. Narrativa reminiscente. Aspectos
Sociológicos.
Abstract: This article present a literature and sociology analysis about the
inaugural romance of the writer José Lins do Rego, menino de engenho
(1932), putting him on the problematic and discussions of Brazilian literature
in beginning of twentieth century through not only yours narrative aspects,
like the central elements configuration that orientate your history. For be a
reminiscent narrative and apparent auto bibliography, examine the form that
the romance narrator, the boy Carlos de Melo, prepare a discourse that looks
like permeable an ingenious or unpretentious, but put on the narrative strong
signs of subjectivity and judgment.
Keywords: Menino de Engenho. Reminiscent narrative. Sociology aspects.
A semana de Arte Moderna que ocorreu em São Paulo em 1922, inegavelmente,
abriu novos caminhos no desenvolvimento da literatura brasileira, embora essa
1- * Departamento de Letras e Artes/ Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Literatura e Diversidade Cultural/UEFS- Feira de Santana- Bahia- Brasil. E-mail: dina_
[email protected]
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não seja uma opinião totalmente unânime. Dentro dos limites cronológicos
da nossa literatura nos deparamos com outro espaço/tempo importante na
construção desta: o Nordeste na década de 30. Pela força dos dois momentos é
quase inevitável associá-los, vendo a Semana de São Paulo como um ponto de
partida significativo para a literatura de escritores como Rachel de
Queiros, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e José Américo de
Almeida. É uma associação inevitável e simultaneamente ousada e perigosa se
for levado em consideração opiniões de escritores como Otto Maria Carpeaux
e José Lins do Rego. Enquanto Otto Maria vê o Regionalismo de 30 como o
verdadeiro divisor de águas de nossa literatura, José Lins do Rego responde com
veemência temperamental o artigo em que Sérgio Milliet, associa o surgimento
do romance Nordestino à Semana de 22:
Para nós, do Recife, essa Semana de Arte Moderna não
existiu, simplesmente porque, chegando da Europa,
Gilberto Freyre nos advertira da fraqueza e do postiço
do movimento. Eu mesmo, num jornal político que
dirigia com Osório Borba, me pus no lado oposto, não
para ficar com Coelho Neto e Laudelino Freire, mas
para verificar na agitação modernista uma velharia,
um desfrute, que o gênio Oswald de Andrade
inventou para divertir os seus ócios de milionário.
Graça Aranha viera da Europa atrás de discípulos
entusiastas, de uma platéia mais vibrante, de uma
claque mais decidida. A Semana de Arte Moderna de
São Paulo foi olhada e comentada por nós mais ou
menos assim. (REGO, 1935 apud MONTELLO, 1976,
p.26).
Deixando, assim, entrever em suas palavras que os ventos da Semana de Arte
Moderna praticamente não sopraram nos ares da literatura nordestina da época,
mais essa é uma discussão que gera opiniões conflitantes ainda na atualidade. As
visões divergentes e os rumos diferenciados assumidos pelos dois movimentos
ocorridos neste período, o de São Paulo e o de Recife, podem ser justificados, até
certo ponto, pelo desenvolvimento desnivelado das duas regiões em questão:
enquanto o Sudeste passava pelo processo de urbanização e industrialização
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a partir dos lucros do café, o Nordeste ainda se encontrava preso a raízes do
latifúndio decadente. Certamente pelo nível de desenvolvimento diferenciado
entre as duas regiões, percebemos num primeiro olhar, posicionamentos
também diversificados dentro dos movimentos, pois ao passo que os líderes
paulistas voltavam seus olhares para o novo, o moderno, o produto da vida
civilizada e industrial, os recifenses se direcionavam para o tradicionalismo
saudosista e a revalorização da cultura passada.
Assumindo um caráter mais sociológico que estético, o movimento acontecido
entre os escritores de Recife, sob o comando do então sociólogo Gilberto Freyre,
traz preocupação de natureza cultural, buscando revalorizar os elementos
da cultura nordestina e reabilitar valores já esquecidos ou vistos como
ultrapassados. E essa era a linha de pensamento presente na maioria dos textos
(ficcionais ou não) produzidos nesse período, impulsionado pela fundação do
Centro Regionalista do Nordeste e pela realização do 1º Congresso Regionalista
do Nordeste. Acerca dessa produção, José Mauricio Gomes de Almeida diz
que
[...] Nos documentos nordestinos, bem como nas
próprias obras literárias, pode se perceber que
a proposta cultural regionalista assume o papel
explícito, de norma orientadora e de elemento
catalisador. A renovação literária vem a ser aqui
fruto de um contato direto da arte com a realidade
local (linguagem coloquial, vida social, folclore, etc.)
não produto de uma experimentação consciente
com os meios de expressão. A arte se renova por um
mergulho no rico manancial de valores e tradições
locais, até então desprezadas em prol da cultura
acadêmica alienante. (ALMEIDA, 1999, p.200).
Foi dentro do que ficou conhecido como “regionalismo de 30” que José Lins
do Rego surgiu como escritor. Com o lançamento do seu primeiro livro,
Menino de Engenho, em 1932, José Lins do Rego passou a integrar o quadro dos
romancistas regionalistas da década de 30. A influência que o escritor recebera
do amigo e mestre Gilberto Freyre desde 1923 pode ter repercutido também
no caráter memorialista da obra, pois como Gilberto relata em Tempo morto
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e outros tempos, havia lhe surgido a ideia de escrever um livro de memórias
e somente ao amigo “Zé Lins” havia confiado o segredo, curiosamente o
impulso para escrever Menino de Engenho pode ter partido daí. Inicialmente o
objetivo do romancista era traçar a biografia do avô José Lins, que, segundo
ele, representaria notavelmente a figura do patriarca da sociedade açucareira
do inicio do século XX, porém a fluidez de suas reminiscências de infância
foi além e deu um enfoque diferenciado à narrativa. Num entrelaçamento de
autobiografia e ficção, José Lins do Rego constrói em Menino de Engenho um
personagem menino que narra, em primeira pessoa, sua trajetória, experiências
e impressões do período vivido dos quatro aos doze anos de idade no engenho
do avô materno.
Morando inicialmente em Recife, aos quatro anos de idade o menino Carlos de
Melo perde a mãe após esta ser morta pelo marido em consequência de uma crise
de ciúmes. Após o acontecido o menino é levado para morar ao lado de família
materna no Engenho Santa Rosa, na Paraíba, que até então só conhecido por
ele através das palavras da mãe. Com a chegada de Carlos ao engenho, temos
situado o espaço onde se desenvolverá a maior parte da narrativa do livro. Em
Menino de Engenho, o autor nos traz uma fotografia do ambiente e das relações
de um dos símbolos maiores da sociedade açucareira do Nordeste. Levado pelas
lembranças de sua infância passada no Engenho Corredor, propriedade do avô,
o escritor, através da narrativa de Carlos já adulto, construirá uma espécie de
autobiografia dos meninos que testemunharam a vida nas casas-grande e nas
senzalas no período inicial da decadência do ciclo da cana.
A construção do romance na forma autobiográfica é possibilitada, como já
foi dito, pelo uso da memória do escritor que vivenciou o cotidiano de um
engenho durante a infância. Assim a narrativa memorialista funde-se com o
caráter autobiográfico e a memória se apresenta como matéria da narrativa.
José Aderaldo Castello (1965) acerca da literatura de Jose Lins do Rego diz ser
ela autobiográfica, pois se apresenta como um produto da experiência vivida
pelo escritor no ambiente do engenho, e de maneira consciente ou inconsciente
acumulada pela memória. Mas a memória entra na narrativa também exercendo
um papel fundamental na criação literária, oscilando entre o que foi vivido e o
que poderia ter sido. Então, constata-se que na narrativa pautada na memória,
temos também a utilização da imaginação e da representação. Uma difícil
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questão a ser resolvida dentro de uma obra com este caráter é saber até que
ponto ela é autobiográfica, pois há uma defasagem entre o eu narrador e o eu
que vivenciou as experiências e situações narradas. Para resolver os conflitos
gerados por esse afastamento, o autobiográfico utiliza-se então de recursos
próprios da literatura, como o discurso imaginativo para preencher as lacunas
deixadas pelas reminiscências incompletas.
Podemos enxergar, então, o livro Menino de Engenho como a materialização
das memórias em objeto estético: a biografia e a sua representação literária. A
literatura de José Lins do Rego se constrói a partir de uma narrativa pautada
principalmente na memória e Menino de Engenho, como foi sua primeira obra,
se configura como mola propulsora, matriz ou mesmo o arquétipo para a
construção dos romances seguintes em especial, os que fazem parte do chamado
“Ciclo da cana de açúcar”: Doidinho (1934), Banguê (1935), O moleque Ricardo
(1936), Usina (1937) e o livro síntese do ciclo, Fogo Morto (1943), considerado por
muitos críticos a obra-prima do autor.
Ainda na primeira frase de Menino de Engenho, o narrador revela-nos que trará
ali as memórias de um determinado período de sua vida “Eu tinha uns quatro
anos no dia em que minha mãe morreu” e a partir do quarto capitulo do livro
começa a ser exposto à frente do leitor um painel social de um engenho no
inicio do século XX, por meio das observações do menino Carlos. Com uma
vida marcada por perdas, o narrador construirá sua narrativa por meio de dois
focos distintos: as impressões da vida melancólica e angustiada que viveu no
engenho e tudo mais que o compunha como tal (o Coronel e avô José Paulino, os
escravos que ali trabalhavam, os agregados, a natureza, etc.), sintetizando este
foco no próprio titulo de livro “Menino de Engenho”. É considerado um romance
regionalista, pois apresenta um enredo voltado para uma região específica, tem
em sua essência uma substância retirada de um determinado local além de um
elaborado trabalho desenvolvido com a linguagem, onde esta se volta para a
oralidade dos contadores de historia da região nordestina.
Ao considerar Menino de Engenho regionalista é necessário não identificar suas
abordagens apenas de caráter local, pois o universal também está presente na
obra através dos conflitos e das angustias narradas pelo tom mais subjetivo do
menino. O rico painel que José Lins traz nas páginas de seu romance através das
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observações e da linguagem direta e testemunhal de Carlos, possibilita analisar
aspectos inerentes ao quadro social que nos é mostrado: a estrutura patriarcal
da sociedade da época, as condições dos negros pós-abolição, a papel da mulher
naquela sociedade, além de abordagens mais especificas do próprio livro.
A estrutura patriarcal que sustentava o Brasil desde o inicio da colonização é
representada no livro na figura do Coronel José Paulino, homem idealizado
e admirado nas colocações do neto Carlos, visto como um ser generoso e que
simbolizava o expoente maior nas relações entre os dominadores e os dominados
no Engenho Santa Rosa. A construção idealizada referente a José Paulino pode
estar relacionada à ideia primeira proposta por José Lins, a biografia do avô.
Homem sem muitos propósitos religiosos e apresentado com traços nitidamente
positivos, José Paulino simboliza dentro do romance a transfiguração do
verdadeiro senhor feudal, possuidor de servos e grandes extensões de terra:
“Tinha mais de quatro mil almas debaixo de sua proteção. Senhor feudal ele foi,
mas os seus párias não traziam a servidão como ultraje”.(REGO,1986, p.105).
Após a abolição da escravatura em 1888, o negro viu-se diante de uma realidade
muitas vezes mais cruel. Sem políticas públicas de inserção na sociedade, uma
das saídas foi continuar no regime de escravidão ao lado do senhor, visando
garantir ao menos a precária alimentação. Essa era a estrutura do Engenho
Santa Rosa pós-regime escravocrata: negros trabalhando de forma semelhante
ao período anterior ao ano de 1888.
Restava ainda na senzala os tempos do cativeiro.
Uns vinte quartos com o mesmo alpendre na frente.
As negras do meu avô, mesmo depois da abolição,
ficaram todas no engenho, não deixaram a rua, como
elas chamavam a senzala. [...] Para esta gente pobre a
abolição não serviu de nada. (REGO, 1986, p.90/116)
A sociedade canavieira continuava sendo sustentada pelo trabalho braçal dos
mesmos homens e mulheres e com a economia pautada no mesmo sistema
escravocrata anterior, amenizado talvez somente pela extinção da nomenclatura
“escravidão”, reafirmando o teor não-pragmático da abolição. No aparecimento
efêmero de inúmeras personagens no decorrer do romance, um núcleo
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específico, mas com papéis sociais distintos tem destaque tanto na vida do
menino, quanto nas relações do engenho: eis o núcleo feminino representado
pelo olhar de Carlos. Composto tanto por mulheres brancas como por mulheres
negras, o conjunto feminino em Menino de Engenho representa fielmente o papel
da mulher naquela sociedade.
Como traz Antonio Candido em seu livro Literatura e Sociedade (2000) é necessário
entender um fenômeno literário a partir do conjunto de seu conteúdo e de seu
contexto, então analisaremos a figura feminina em Menino de Engenho a partir de
sua relação com a sociedade autoritária e patriarcalista em que ela está inserida.
Inicialmente é preciso considerar que estas mulheres são apresentadas por meio
de ótica exclusivamente masculina, através da narrativa de Carlos de Melo. Sem
qualquer representação mais significativa, as mulheres são aproximadas do
branco pobre e do negro, sendo que as discrições de suas ações ficam restritas a
ambientes mais privados comprovando a distância da mulher da vida publica.
As mulheres negras ora são apresentadas no ambiente da cozinha ou como
amas-de-leite quando aquelas de idade mais avançada, ora são vistas como
objeto de desejos sexuais tanto dos próprios negros do engenho, como também
dos homens brancos, quando estas têm menos idade. Como um irônico sinal de
perpetuação de costumes familiares, o velho José Paulino havia se envolvido
com as negras do engenho, o filho Juca deflorou uma negra e se envolvia com
outras mais e a iniciação sexual de Carlos é feita por uma mulher negra.
Certo caráter determinista permeia alguns pensamentos de Carlos no decorrer
da narrativa, onde este vê, em algumas passagens a mulher negra apenas pela
sua função sexual e reprodutora: “E todo ano pariam o seu filho. Avelina tinha
filho do Zé Ludovina, do João Miguel destilador, do Manuel Pedro purgador.
Herdavam das mães escravas esta fecundidade de boas parideiras”. (REGO,
1986, p.92).
Entre as mulheres brancas tem-se o casamento como uma forma de aceitação na
sociedade, mas na verdade simbolizava apenas a transferência da subordinação
e obediência, do pai para o marido. Esse foi o desfecho da personagem Tia
Maria, a “segunda mãe” do menino Carlos. A notícia do casamento entre ela
e o noivo, que só aparece no livro nesta data específica (um suposto sinal da
falta de amor por arte da Tia Maria, pois em nenhum momento há referencia
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anterior à figura do noivo), causa em Carlos mais uma sensação de perda, já que
havia perdido a mãe devido às vivências de um casamento conflituoso. Outro
impacto de uma casamento conturbado refletia na figura da Tia Sinhazinha,
que após ter sido “devolvida” pelo marido por causa de sua personalidade,
conduzia a casa-grande do Engenho Santa Rosa, com uma dose de sadismo e ar
de infelicidade:
As pobres negras e os moleques sofriam dessa
criatura uma servidão dura e cruel. Ela criava sempre
uma negrinha , que dormia aos pés de sua cama , para
judiar , para satisfazer os seus prazeres brutais.Vivia a
resmungar, a encontrar malfeitos , poeira nos móveis,
furtos em coisas da dispensa, para pretexto de suas
pancadas nas crias da casa. (REGO, 1986, p.62).
A riqueza cultural do livro deve-se também à presença de uma curiosa
personagem feminina, a velha Totonha. Pequeninha e de corpo frágil, como
foi descrita pelo narrador, a velha Totonha tinha uma talento único para
contar e dramatizar histórias, o que prendia a atenção de todos que a escutava.
Interessante era que no desenrolar de suas histórias, conseguia relacionar os
mais famosos contos infantis às vivências e crendices da região, o que encantava
mais ainda os meninos dos engenhos por onde passava.
E o que fazia a velha Totonha mais curiosa era a cor
local que ela punha aos seus descritos. Quando ela
queria pintar um reino era como se estivesse falando
de um engenho fabuloso. Os rios e as florestas por
onde andavam, os seus personagens se pareciam
muito com o Paraíba e a Mata do Rolo. O seu BarbaAzul era um senhor de engenho de Pernambuco.
(REGO,1986, p.88).
Apesar do talento que possuía para contar histórias, é necessário frisar que
a velha Totonha representa apenas mais alguém à margem da sociedade da
época, que sobrevivia da ajuda que recebia nos engenhos por onde passava. A
liberdade que tinha e que possibilitava trilhar os próprios caminhos e não se
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envolver nas teias da sociedade vigente entra em choque com a ideia de ter uma
família, um marido, um nome, por isso era simplesmente “tia Totonha”.
O desenvolvimento da linguagem no romance se dá de forma espontânea,
culminando em uma linguagem semelhante a dos contadores de história
oral, o que fez Otto Maria Carpeaux definir José Lins como o último contador
profissional de histórias, mas é relevante notar que apesar de estar intrínseco ao
talento do autor, esse tipo de linguagem foi também uma escolha no caminho
literário que decidira trilhar.
Construídos como uma espécie de crônica de existência diária, os capítulos
parecem apresentar certa independência entre si, mas é uma independência
apenas aparente, pois pensar e ler o livro sem considerar a linearidade existente
atrapalharia o entendimento. Nele, embora muitos vejam o oposto, o tempo flui
cronologicamente, basta pensarmos que Carlos chega ao engenho com quatro
anos de idade e sai aos doze, após passar por fortes transformações interiores. Na
composição de seus trinta e seis capítulos, há a ausência de uma intriga central,
talvez por ser estruturado em forma de painel, mas dois capítulos chamam a
atenção pela riqueza da narrativa e do conteúdo, eis os capítulos XIII e XX. No
capitulo XII há a descrição da expectativa de todos os moradores da redondeza
para a cheia do Rio Paraíba e o momento em que essa cheia acontece. A riqueza
e a minúcia na descrição dos detalhes nos mostram o quanto esse momento
fora marcante também para o narrador: “Eu fiquei a pensar donde viria tanta
água barrenta, tanta espuma, tantos pedaços de pau. E custava a crer que uma
chuvada no sertão dessa pra tanta coisa”.(REGO,1986, p.70). E é um fenômeno
natural como a cheia do rio que possibilita um momento em que ricos e pobres
se vêem diante de uma mesma situação. Temos a transfiguração de mais uma
passagem irônica dentro do romance: diante da natureza e seu poder, todos são
iguais. “Nós, os da casa-grande, estávamos ali reunidos no mesmo medo, com
aquela gente pobre do eito. E com eles bebemos o mesmo café com açúcar bruto
e comemos a mesma batata-doce do velho Amâncio”. (REGO, 1986, p.72).
É no capitulo XX que temos a presença de mais uma substância de raiz
nordestina, as crendices populares de forte representação no folclore da região.
Nele surge a figura do lobisomem e toda a descrição detalhada e em etapas
das crenças que estão por trás desta lenda. A força da crença permeia tanto a
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alma das crianças como também a de adultos, marcando uma fase da infância
de Carlos. Era a partir da crença no lobisomem que surgiam os interessantes
“causos” de alguns moradores sobre o suposto confronto com o bicho. Neste
mesmo capítulo aparecem outras significativas figuras do folclore nordestino,
como o bicho-carrapato, a cabra-cabriola, a caipora, a mula-de-padre e a falta
de religiosidade do menino, devido às influências que recebera da família,
contribuía para uma crença mais forte em todos esses seres encantados. Mais
ainda, pela ausência que tinha dentro da casa-grande de algumas práticas e
ensinamentos religiosos, tais criaturas imaginárias se faziam mais presentes
na vida de Carlos que o próprio Deus: “O lobisomem existia, era de carne e
osso, bebia sangue de gente. Eu acreditava nele com mais convicção do que
acreditava em Deus.” (REGO, 1986, p.86).
Voltando-se para as passagens da narrativa em que o menino e seu subjetivismo
se fazem mais presente, vemos que os fatos narrados nestes momentos estão
envoltos de uma melancolia, de uma angústia e de conflitos interiores entre ele e
o mundo. É após a iniciação sexual precoce com a negra Zefa Cajá que o menino
encontra-se ainda mais introspectivo e triste, culpando-se pelas experiências
sexuais e sem a possibilidade de refugiar-se em uma religião não-praticada. É
por meio dos contatos sexuais com essa negra que o menino contrai gonorréia
e esta doença, por estar num ambiente extremamente machista, passa a ser o
símbolo da virilidade e do amadurecimento do garoto.
A falta de comunicação que encerra a maior parte de suas relações e as sucessivas
perdas que sofre (a mãe é morta, o pai vai para o hospício, uma prima chamada
Lili morre, a tia Maria casa-se e vai embora, Jasmim, o carneiro de estimação,
é morto) contribuem para que o menino se torne cada vez mais introspectivo e
tristonho. A ida de Carlos para um colégio interno, relatada por ele no último
capítulo, aparece como um refúgio ou esperança para a salvação da alma
daquele que, de acordo com suas constatações, já se via perdido no mundo.
Na narrativa das reminiscências infantis e aparentemente sem juízos de valor
do menino Carlos, José Lins do Rego começa a construir sua carreira literária e
também um ciclo que traria, com grande riqueza sociológica, o desmoronamento
de uma sociedade que se mostrava em agonia já em Menino de Engenho. Apesar
de estar voltado para um determinado espaço típico da área rural nordestina e
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se passar num período em que a cultura e os meios ainda se renovavam de forma
não tão rápida na região, dois traços que remetem à modernidade se fazem
presentes dentro da obra: a figura do trem e as referências ao cinema. O trem
exercendo em alguns ainda um forte encanto e admiração e as duas referências
que aparecem dentro do romance em relação à sétima arte, contrastando com o
ambiente em que se passa a maior parte da história.
E foi o cinema que revalorizou, também, mais de três décadas depois do
lançamento, o trabalho do romancista paraibano em Menino de Engenho. Durante
o cinema novo, o cineasta Walter Lima Jr. produziu a adaptação cinematográfica
do romance de José Lins. As observações e impressões narradas por Carlos
agora são contadas através da lente da câmera, por meio se sequências que
se “encadeiam em verossimilhança com o raciocínio da criança, construindo
ações aparentemente sem clímax e num jogo de distanciamento/aproximação
quase documental do Engenho Santa Rosa”. (NOVAES, 2004, p.63). No filme
as transformações que o tempo provocaria no engenho e na vida dos que ali
permaneciam são sugeridas através de um poema de Carlos Pena Filho já na
tela de abertura. Uma síntese poética do que José Lins construiu em seus cinco
romances do ciclo da cana, encerrando com a publicação de Fogo Morto em
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O FAZER POÉTICO DE GEIR NUFFER CAMPOS
Gabriel Diniz Silva1*
Karina de Rezende Tavares Fleury2**
Resumo
Este trabalho desenvolve uma análise política-histórica-cultural-ideológica do
poema “Da profissão do poeta”, de Geir Campos, publicado em 1959 no livro
Operário do Canto. Pretende-se, com isso, expor a complexidade de significações
que a poética do autor comporta. Desenvolvido com base na Consolidação
das Leis do Trabalho – CLT, o poema simboliza um manifesto de igualdade
social para os trabalhadores. Geir aproveita a lei e sua linguagem técnica para
inspirar sua obra e falar aos brasileiros. O poema é construído com uma forte
contemplação humana na defesa dos direitos dos trabalhadores.
Palavras-chave: Sociedade. Igualdade. Poesia. Geir Campos.
Abstract: This paper develops a political-historical-cultural-ideological analysis
of the poem “Da Profissão do Poeta”, by Geir Campos, published in 1959 in the
book Operário do Canto. It is intended, therefore, to expose the complexity of
meanings that the author’s poetics entails. Built on the Consolidation of Labor
laws (CLT), the poem symbolizes a manifesto of social equality for workers.
Geir takes the law and its technical language to inspire his work and speak to
Brazilian people. The poem is constructed with a strong human contemplation
in defending of the rights of workers.
Key-words: Society. Equality. Poetry. Geir Campos.
Geir Nuffer Campos foi um poeta que representou a evolução vivida por sua
geração. Sua obra abrange aspectos contemplativos, onde o lirismo é acentuado,
inclusive em aspectos históricos referindo-se à guerra, à morte, à liberdade e a
solidariedade do homem.
Maria Coelho Thereza Ceotto identifica a trajetória poética de Geir em três
1- *Licenciado em Letras Português/Inglês e respectivas Literaturas (Faculdade Saberes).
2- **Professora da Prefeitura Municipal de Vitória, Mestre em Letras (com ênfase em Estudos
Literários) e Doutoranda na mesma área (UFES).
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momentos significantes: lirismo de contemplação; lirismo de participação social e o
signo da madureza ou de reflexão filosófica. O lirismo de contemplação engloba os
livros Rosa dos rumos (1950), Arquipélago (1952), Coroa dos sonetos (1953) e Tema
com variação (1957). Ceotto descreve essa primeira fase como um momento triste
do poeta: o desespero, a passagem do tempo, a solidão, a falta de resposta e
a morte o assombram; contudo, o poeta mostra um grande conhecimento da
arte.
Nesta primeira fase de sua poesia, Geir Campos revela um grande conhecimento do seu ofício. Os poemas
são habilmente metrificados e rimados. O poeta se esmera em experimentações, especialmente no campo
rímico. O tratamento da língua é clássico, com períodos longos e vocabulário erudito (CEOTTO, 1992, p.
32).
A esse respeito, Ceotto afirma, no livro Faces Poéticas, com seleção de textos de
José Irmo Gonring, que “são versos de um poeta preocupado com problemas
existenciais. Nesse momento inaugural, Geir Campos se revela grande
conhecedor de seu ofício, com poemas habilmente metrificados e rimados”
(2009, p. 24).
O lirismo de participação social, com os livros Canto claro (1957), Operário do
canto (1959), Canto provisório (1960) e Cantigas de acordar mulher (1964), mostra
outro lado de Geir, um pouco atingido pelas questões da época. O poeta sente
um desejo de participação no cenário sócio-político-cultural brasileiro. O
movimento operário, a reforma agrária e a nacionalização são influências fortes
aos autores de 45.
São versos interessados nos graves problemas que
atravessa a nação brasileira. Trata-se de poemas ora
idealistas ora irônicos, que questionam a situação
político-social dominante no país e pregam a renovação, sonhando com um mundo novo onde reine
a paz e a igualdade entre os homens (CEOTTO, 1992,
p. 32).
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Por fim, está o lirismo da madureza ou de reflexão filosófica, com os livros
Cantar de amigo ao outro homem da mulher amada (1964), Metanáutica (1970) e Canto
de peixe e outros cantos (1977). Nessa terceira parte de Geir, o poeta se volta,
principalmente, para seu eu, mostrando uma poesia de reflexões do homem
sobre si e sobre o mundo.
Sem abandonar a utopia de um mundo novo, o poeta retorna em parte à poesia de introspecção e autoanálise [...]. É o momento de reflexão madura sobre
o homem e o mundo, momento também de síntese
linguística em que dominam poemas curtos, escritos
em linguagem direta (CEOTTO, 1992, p. 33).
O trabalho que ora propomos abordará a segunda parte da vida poética de Geir:
o Lirismo de participação social, tendo como foco exclusivo o estudo do poema
“Da profissão do poeta”, da obra Operário do Canto, datada de 1959, onde o
poeta, movido pelos problemas político-sociais, constrói poemas carregados de
idealismo e, às vezes, irônicos. Sua linguagem simplificada denota o objetivo do
autor: a aproximação do poema com a variante popular.
SOBRE O AUTOR
Filho de um dentista e de uma professora, Geir Nuffer Campos nasceu em 28 de
fevereiro de 1924, em São José do Calçado, no Espírito Santo.
Ainda criança, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ficou órfão de pai aos
onze anos. Estudou no Colégio Pedro II e, após o ginásio, tentou engenharia
por causa do sonho de seu pai em tê-lo engenheiro. Entretanto, não conseguiu
pontuação suficiente para entrar no curso, o destino o queria poeta.
Foi o primeiro colocado no processo seletivo para o ingresso na Marinha
Mercante e, quando diplomado, pilotou navios do Lloyd Brasileiro3, durante a
Segunda Guerra Mundial, o que lhe trouxe a condecoração de ex-combatente
civil.
Geir Campos estudou em cursos como o de Línguas Anglo-germânicas e o
3- Companhia estatal brasileira de navegação fundada em 1890 e extinta em 1997.
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de Direito, porém, não chegou a se graduar em nenhum deles. Foi autor de
quinze livros de poesias, quinze de teatro, dois de literatura infanto-juvenil,
dois de contos e escreveu quatro obras de referência em literatura. Geir foi
ainda jornalista, ensaísta e tradutor de obras consagradas, e como escreve Pablo
Cardellino e Walter Carlos Costa em um verbete publicado em 3 de junho de
2005, no Ditra (Dicionário de Tradutores Literários do Brasil): “...alguns de seus
poemas foram traduzidos e publicados em uma antologia na Hungria”4.
Ninguém melhor do que o próprio poeta para falar dele mesmo. Escreve sobre
si na introdução de seu livro Metanáutica, apresentando-se, não com o seu eu
lírico, mas com sua própria intimidade e personalidade:
Meu nome todo é Geir Nuffer Campos, com uma
ascendência alemã, talvez não tanto ariana, que explico na “Elegia quase Ode” de “Canto Claro”, premiado pela Prefeitura do então Distrito Federal, em
1956. Gabo-me de ser filho do Espírito Santo, por obra
e graça de São José do Calçado. Cidade onde nasci
num domingo de carnaval, 28 de fevereiro de 1924.
Na porta da igreja onde fui batizado, vê-se até hoje o
baixo-relevo de uma âncora, em ângulo com uma cruz,
talvez me predestinando a ser homem de mar. Estudei em vários colégios, inclusive o Pedro II, Internato
e Externato. Acabei na Escola da Marinha Mercante
no Rio de Janeiro, de onde saí para pilotar navios do
Lloyd Brasileiro. Durante a Segunda Guerra Mundial,
tomei parte em comboios e em outras operações ditas
bélicas. Terminada a guerra no Atlântico, deixei a vida
de vaporzeiro e passei a bordejar em terra, fundeando
numa série de empregos, desde correspondente-faturista de uma fábrica de formicida, São Gonçalo, até
diretor da Biblioteca Pública do Estado do Rio, em Niterói, onde resido. Comecei três cursos universitários
– línguas anglo-germânicas, uma vez, e direito, duas
– mas não tive paciência para aguardar o diploma.
Sou jornalista profissional desde 1952, e redator de
4- Dicionário de tradutores literários no Brasil - DITRA. Disponível em <http://www.dicionari�
odetradutores.ufsc.br/PT/GeirCampos.htm>. Acesso em: 03 mai.2011.
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programas de Rádio Ministério da Educação e Cultura desde 1955. Atualmente leciono Introdução às
Técnicas de Comunicação, na Escola de Comunicação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Comecei a
publicar poemas e contos no Diário Carioca, ao tempo
de Pompeu de Souza. Meu primeiro livro, Rosa dos
Rumos, saiu por minha conta, em 1950. O segundo,
Arquipélago, eu mesmo compus e imprimi, encapei e
vendi, com Thiago de Mello, nas edições Hipocampo
em que éramos parceiros. Já tenho traduzido muitas
obras, clássicas umas, importantes outras: Sófocles,
Shakespeare, Whitman, Brecht, Rilke... Em 1969 ganhei o prêmio do II Torneio Nacional de Poesia Falada,
organizada por Gastão Neves como diretor do departamento de Difusão Cultural do Estado do Rio, e o poema premiado, então interpretado pelo ator Rubens
de Falco, está incluído neste volume, a que dá título (a
um dos capítulos), Metanáutica (CAMPOS, 1970).
“DA PROFISSÃO DE POETA”: O LIRISMO DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL
[...] nenhum homem possui uma autoridade natural sobre
seu semelhante e uma vez que a força não produz nenhum
direito, restam, pois, as convenções como base de toda a autoridade legítima entre os homens.
Jean-Jacques Rousseau
Em 1959, Geir Campos publica o livro Operário do Canto, e inicia a obra usando a
lírica do poeta de língua alemã Rainer Maria Rilke: “Operários somos – oficiais,
aprendizes, mestres – e te construimos [sic], ó fabulosa nave!”. A epígrafe
parece ter a intenção de preparar a mente dos leitores para o que virá. Esse início
coloca todos no mesmo plano, dá responsabilidades às pessoas na construção e
manutenção da “nave” enquanto mundo socializado.
Para entender o que inspirou o poeta Geir, faz-se necessário relacionar o poema
“Da Profissão do Poeta” ao Decreto-lei n.º 5.452, também chamado Consolidação
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das Leis do Trabalho (CLT), de 1º de maio de 1943, que entrou em vigor em 10
de novembro do mesmo ano, com suas leis e textos originais, ou seja, aqueles
que não foram revogados ou modificados por leis posteriores.
O poema “Da Profissão do Poeta” faz uma referência ao compêndio das leis
trabalhistas, com uma linguagem simples; faz a poesia trabalhar para o bem
social. Geir Campos enxerga, na linguagem técnica da lei, uma possibilidade
lírica, da qual se utiliza para iniciar seu poema: “Não haverá distinção relativa
à espécie de emprêgo [sic] ou à condição do trabalho, seja intelectual ou manual
ou técnico” (1959, p. 01). Desse modo, o poeta não pode ser considerado um
trabalhador diferente dos outros.
Com os subtítulos tirados da CLT, o poema é construído para o poeta, trabalhador
que se coloca representando todas as classes de trabalhadores.
O título “Da Carteira Profissional”, que foi modificado para “Da Carteira de
Trabalho e Previdência Social” (CTPS), redação dada pelo Decreto-lei nº 926,
de 10.10.1969, fala da obrigação da identificação, sem distinção de sexo, do
trabalhador maior de 18 anos, para exercício de qualquer atividade remunerada.
Na CTPS, são registradas informações sobre a vida profissional do trabalhador.
Geir usa a obrigatoriedade da identificação para apresentar o trabalhador
poeta.
“Da Identificação Profissional” nada mais é que a apresentação do trabalhador.
Aqui o eu lírico manifesta suas características como operário de “expresso
documento” (1959, p. 03).
Da
Identificação
Profissional
Operário do canto, me apresento
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
minha alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e — expresso documento —
a palavra conforme o pensamento.
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O artigo 442 da CLT ensina que o “contrato individual de trabalho é o acordo
tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego” (1943), podendo ser,
de acordo com o art. 443, acordo verbal ou escrito e por prazo determinado ou
indeterminado.
Geir Campos usa a voz do poeta para dizer do contrato ou de uma proposta
de trabalho, em que ele, mesmo escrevendo “Fui chamado a cantar...”, deixa
explícita uma vontade própria de falar, assumindo seu dever social. Assim
completa: “e para tanto há um mar de som no búzio do meu canto”. Por essa
razão, pode-se pensar que o poeta usa de sua individualidade para representar
o coletivo. O poeta preocupa-se com o trabalho, como também com as entidades
de classes, na qual a dor pode ser “ilhada ou coletiva”.
O sentimento social aparece quando o eu lírico tem vontade de “cantar” e se
declara porta-voz dos trabalhadores. Seu canto individual está disfarçado, e sua
necessidade faz o búzio de seu canto embebido de significados. O mar figura
como anseios coletivos incutidos na palavra solitária do poeta.
Do Contrato
de Trabalho
Fui chamado a cantar e para tanto
há um mar de som no búzio do meu canto.
Embora a dor ilhada ou coletiva
me doa, antes celebro as coisas belas
que movem o sol e as demais estrelas
— antigos temas que parecem novos
de tão gratos ao meu e aos outros povos. (p. 3)
A dor isolada ou a dor coletiva é amenizada por forças superiores que regem
“o sol e as demais estrêlas [sic]”, sentimentos místicos e religiosos que usamos
para explicar o que, pela ciência, não tem explicação. Esses conhecimentos, além
de darem respostas às questões ainda não solucionadas, sempre foram usados
para o conforto da alma.
O poeta relaciona seu ofício às diversas funções descritas na CLT, revelando que
em todas as funções sociais existe um pouco de lirismo. O canto aqui colocado
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chega a toda classe de trabalhadores. Os ofícios citados eram as principais
ocupações da época, e o poeta possui relação com todos eles.
Com os bancários, seu verso tem peso e é valioso “como prata boa”. Claro aos
empregados do comércio é o que ele encomenda e recomenda. Sua mensagem
é forte de tal maneira que alcança lugares longes, no momento certo, com
sonoridade e harmonia como uma melodia.
Da Relação
com Vários
Ofícios
Meu verso tine como prata boa
pesando na confiança dos bancários;
os empregados no comércio bem
sabem como atender aos que encomendo
e recomendo mais do que ninguém;
aos que funcionam em telefonia
com ou sem fio, rádio, a esses também
sei dizer à distância ou de mais perto
a cifra e o texto no minuto certo;
para os músicos profissionais,
sem castigar o timbre das palavras
modulo frases quase musicais (p. 4).
Para os trabalhadores do cinema, relaciona seu verso a um filme que “a luz
não queima” (p. 04). Geir usa a polissemia da palavra “trilho” – substantivo ou
verbo na intenção de aproximação com o coração e sentimento dos ferroviários.
Diz que seu verso fala doce e grave como “a taboca5 dos navios”.
para os operadores de cinema
meu verso é filme bom que a luz não queima;
5- Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa: Taboca1, s. f. (Bras.) Bambu (sinôn.:
taquara); (Nordeste) gomo de bambu que se enche de pólvora, na fabricação de foguetes, pistolões, etc.; espécie de formiga (Camponotus abdominalis Forel); (Bahia) casa ou venda de
pequeno negócio; doce seco.
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trilho também as estradas de ferro
e chego ao coração dos ferroviários
como um trem sempre exato nos horários;
às equipagens das embarcações
de mares ou de lagos ou de rio
meu verso fala doce e grave como
doce e grave é a taboca dos navios (p. 4- 5).
Fala que, nos frigoríficos, seu verso circula e envolve, transformando-se em
serpentina para derreter a indiferença e a ausência de sentimentos. Seu verso
guinda, suspende, eleva, traz à tona a atenção dos homens da estiva.
nos frigoríficos derrete o gêlo
da apatia, se é para derretê-lo,
meu canto a circular nas serpentinas;
à boca da escotilha ou nas esquinas
do cais, o meu recado é força viva
guindando a atenção dos homens da estiva; (p. 5)
Contempla, em sua escrita, desde os mineiros que extraem o minério do sangue
de suas artérias, até aqueles que dão a têmpera ao metal através de seu “sôpro
[sic] a mais”.
desço cantando aos subsolos e às minas
onde outros operários desenterram
o minério de suas artérias finas;
a outros, que dão sua têmpera aos metais,
meu canto ajuda feito um sôpro a mais
aflando o fogo em flâmulas vermelhas (p. 5).
E “aos colegas que lidam nos jornais” são dadas boas notícias, além de
responsabilidades na função de porta-vozes daqueles que, por ventura,
sofrerem algum tipo de arbitrariedade. A voz lírica, sentindo-se no dever de ser
“magistério puro”, tenta tornar sua mensagem pública, e a faz escrevendo “em
giz no muro”.
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aos colegas que lidam nos jornais
boas noticias dou e, mais do que isso,
jeito de as repetir e divulgar
quando o patrão quisera ser omisso;
à gente miúda, pronta a ser maior,
passo lições de um magistério puro
e o que é dever escrevo a giz no muro; (p. 5- 6)
Fala aos químicos na linguagem de fórmulas novas que vieram ou se iniciaram
por meio de mártires em suas covas. Entendido que o início do ofício ou trabalho
é o começo da vida do trabalhador, o poeta, então, canta sua mensagem, gratuita
e opcional, “sugerindo meio e fim”.
para os químicos sei fórmulas novas
que os mártires elaboram nas covas...
e a todos que trabalham vai assim
meu canto sugerindo meio e fim. (p. 6)
O Artigo 58 do Decreto-Lei nº 5.452, de 1943 diz que: “A duração normal do
trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de
8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite.”
Com o objetivo de proteger a saúde do trabalhador, como também salvaguardar
o direito ao lazer e a convivência familiar, o texto estabelece uma jornada de
trabalho não superior a 8 (oito) horas diárias, salvo outros acordos expressos.
Estipuladas as horas de prestação de serviço do trabalhador comum, agora é a
vez do trabalhador-poeta ter suas horas de ofício marcadas, sejam elas de dia,
expressas em sombras pelo chão, ou de noite, pelo brilho das estrelas.
Do Horário
do Trabalho
Marcadas as minhas horas de ofício,
de dia em sombras pelo chão e à noite
no rútilo diagrama das estrelas,
só quem ama o trabalho sabe vê-las. (p. 6)
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A todo trabalhador é garantido o direito de descanso semanal por um período
de 24 (vinte e quatro) horas, preferencialmente aos domingos. Por isso, “seja
domingo ou dia da semana”:
Art. 67 - Será assegurado a todo empregado um descanso semanal de 24 (vinte e quatro) horas consecutivas, o qual, salvo motivo de conveniência pública ou
necessidade imperiosa do serviço, deverá coincidir
com o domingo, no todo ou em parte.
Parágrafo único - Nos serviços que exijam trabalho
aos domingos, com exceção quanto aos elencos teatrais, será estabelecida escala de revezamento, mensalmente organizada e constando de quadro sujeito à
fiscalização (CLT, 1943).
Geir Campos fala do período de descanso merecido do trabalhador. Reconhece
o direito às horas ociosas, principalmente, quando o ofício é rotineiro, como
aqueles que exigem trabalhos aos domingos. E para assegurar o descanso de
alguns, o poeta escreve que “descanso é confiar nos companheiros”.
Dos Períodos
de Descanso
Seja domingo ou dia de semana,
mais do que as horas neutras do repouso
confortam-me os encargos rotineiros;
meu descanso é confiar nos companheiros. (p. 6)
A redação original do Artigo 129 da CLT menciona que: “Todo empregado
terá, anualmente, direito ao gozo de um período de férias, sem prejuizo [sic] da
respectiva remuneração”, e, sabendo de seu direito, dado pelo Art. 137 da CLT
que fala: “A concessão das férias será participada, por escrito, com a antecedência,
no mínimo, de oito dias. Dessa participação o interessado dará recibo”, o poeta
reclama que a ele nunca participaram por “escrito ou verbalmente” o descanso
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merecido, mas descansa o tempo ocioso que lhe aparece como quando prepara
o verso.
No dicionário Houaiss, o termo ócio significa interrupção do trabalho, folga, falta
de ocupação. Mas Geir não faz oposição entre trabalho e descanso; para o poeta,
o descanso é parte do conjunto do trabalho, formado pelo período de efetivo
labor e pelo período de descanso.
Do Direito
a Férias
Nunca me participam por escrito
ou verbalmente os ócios que mereço,
mas sempre gozo bem o merecido:
pois o ócio não é ofício pelo avesso?
É quando fio o verso; depois teço. (p. 7)
O Art. 140 rege que “O empregado, em gozo de férias, terá direito à remuneração
que perceber quando em serviço”. E ele tem direito a receber. Entretanto,
seu pagamento não é feito em valor monetário, mas em saber que seu verso
é lembrado por aquelas pessoas que deram inspiração a sua confecção. Dessa
maneira, enquanto o poeta goza suas férias, outras pessoas ficam com o dever
social de continuar com a luta.
Da Remuneração
das Férias
Em férias tenho a paga de saber
lembrado o verso meu por quem o inspira;
é como se outra mão tangesse a lira. (p. 7)
A CLT, de acordo com o artigo 76, idealiza o Salário Mínimo como:
[...] a contraprestação mínima devida e paga diretamente pelo empregador a todo trabalhador [...] capaz
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de satisfazer, em determinada época e região do País,
as suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte (1943).
Geir usa o sentido da expressão “região do País” para esclarecer que o trabalho
do poeta é entre os pontos cardinais, ou que está demarcada sua competência
e responsabilidade dentro do território nacional. Deixa explícito que, com esse
trabalho, ele é merecedor de paga sendo cobrado “aqui e ali quanto me basta”, e
o que basta ao poeta, nesse momento, é continuar com sua voz “cantando”.
Do Salário
Mínimo
Laborando entre os pontos cardinais,
de norte a sul, de leste a oeste, vou
cobrando aqui e ali quanto me basta:
o privilégio de seguir cantando.
(Imposto é cuidar onde e como e quando.) (p. 7)
É mencionado que o trabalho realizado acontece “sem revezamentos”, unindo
a voz daqueles que cantam pelo mesmo ideal. É assim que acontece a força da
coletividade. Com a mistura, a voz não fica menos pura e, no subir de “uma
oitava na mistura”, ela ganha força, torna-se mais aguda, alta e com maior
intensidade.
Do Expediente
Noturno
Trabalho à noite e sem revezamentos.
Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
sem se tornar com isso menos pura
a voz sobe uma oitava na mistura. (p. 8)
O Art. 157 da CLT determina que “todos os locais de trabalho deverão ter
iluminação suficiente para que o trabalho possa ser executado sem perigo de
acidente para o trabalhador e sem que haja prejuizo [sic] para o seu organismo”,
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e o poeta canta, mesmo no escuro e ao vento e à chuva, canta com perigo à
vista transformando seu canto em clara luz e em ar puro, sendo também sol no
inverno e fresca no verão. Fala às pessoas coisas certas; fala de flores para flores
e de frutos para os frutos; sabe fazer a voz falar o que e a quem de direito.
Com a mesma intenção de manter a segurança do trabalhador, o texto do Art.
166 obriga o uso da ventilação artificial quando a ventilação natural se fizer
insuficiente. Para tanto, o Art. 165 diz: “um grau do conforto térmico compativel
[sic] com o gênero de trabalho realizado”.
A produção depende da segurança e do grau de conforto na qual o poeta
trabalhador se encontra. Do contrário, a lira – instrumento do lirismo engasga,
e o verso – lirismo manifestado, perde o jeito.
Da Segurança
do Trabalho
Mesmo no escuro, canto. Ao vento e à chuva,
canto. Perigo à vista, canto sempre;
e é clara luz e um ar nunca viciado
e sol no inverno e fresca no verão,
meu canto, e sabe a flores se é de flores
e a frutos se é de frutos a estação.
Só não me esforço à luz artificial
com que a má fé de alguns aos mais deslumbra
servindo-lhes por luz o que é penumbra;
também quando o ar parece rarefeito
a lira engasga, o verso perde o jeito. (p. 8)
O Art. 155 da CLT esclarece que as indústrias só poderão funcionar mediante
inspeção e aprovação da higiene, feita por autoridade competente. Desse modo,
podemos entender que a Consolidação das Leis do Trabalho mostra-se preocupada
com a saúde dos trabalhadores, e, portanto, todo ato de trabalho deve ser
exercido em local limpo e preparado.
O poeta não canta em qualquer lugar. Ele trabalha seu canto e escolhe em que
espaço cantar e para quem cantar. Ele não leva sua mensagem a lugares onde
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os anseios se mantenham escondidos ou “onde não seja o sonho livre”. Espera
que as almas das pessoas para quem canta estejam preparadas e desprovidas de
pré-julgamentos, “limpas”. O autor Geir Campos explica sua postura ao dizer
que sua poesia não é para distração ou deleite do leitor, ou feita para “enganar
o tempo, ou distrair criaturas já de si tão mal atentas, não canto”.
No entanto, há momentos em que ele canta, mas “apenas quando dança, nos
olhos dos que me ouvem, a esperança”.
Da Higiene
do Trabalho
Não canto onde não seja o sonho livre,
onde não haja ouvidos limpos e almas
afeitas a escutar sem preconceito.
Para enganar o tempo ou distrair
criaturas já de si tão mal atentas,
não canto...
Canto apenas quando dança,
nos olhos dos que me ouvem, a esperança. (p. 9)
Este, talvez, seja o momento do poema e do canto em que o poeta se dispõe, e
assim o eu lírico se coloca, a encarar todas as consequências de sua militância,
não somente como intelectual e porta-voz dos brasileiros, mas como corpo
presente em outras formas de lutar.
Da Alteração
de Contrato
Etc.
Meu ofício é cantando revelar
a palavra que serve aos companheiros;
mas se preciso for calar o canto
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e em fainas diferentes me aplicar
unindo a outros meu braço prevenido,
mais serviço que houver será servido. (p.9)
Como trabalhador-poeta, ele reconhece que seu ofício é revelar aquilo que sabe
servir aos trabalhadores. Mesmo assim, declara que, se preciso for, calará seu
canto para em “fainas”6 se lançar, revelando sua forte ideologia humanista e
social, ultrapassando as fronteiras do pensamento e se lançando no plano de
um provável confronto.
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JORGE LUIS BORGES E A LITERATURA POLICIAL
Inês Aguiar dos Santos Neves*1
Resumo
O propósito do presente artigo é examinar o interesse e a afinidade de Jorge
Luis Borges em relação às histórias de detetive, não só na condição de leitor,
resenhista e teórico, mas também de autor, ele próprio, de alguns contos de
mistério. Daí se passa a analisar um certo grau de complexidade e literariedade
atribuída por alguns grandes autores, Borges em particular, a um subgênero
comumente considerado menor pela crítica acadêmica.
Palavras-chave: Jorge Luis Borges. Literatura Policial. Intertextualidade.
Abstract: The purpose of the present essay is to examine Jorge Luis Borges’
interest for and affinity with detective stories, not only in his capacity as
a reader, a reviewer, and a theorist, but also as an author of a few mystery
short-stories himself. It goes on to analyze a certain degree of complexity and
literariness ascribed by some great authors, particularly Borges, to a sub-genre
usually regarded as minor by academic criticism.
Keywords: Jorge Luis Borges. Detective Story. Intertextuality
Na viagem conceitual e intertextual que pretendemos fazer pela literatura
policial contaremos com a cumplicidade, o testemunho e a assessoria de um dos
mais representativos escritores do século XX, Jorge Luis Borges. Ele será nosso
álibi para muito do que dissermos aqui.
O leitor menos familiarizado com a variedade e a abrangência da obra de Borges
poderá estranhar o fato de o associarmos a um gênero considerado menor, a
literatura policial, que é tida, sobretudo, como literatura de escapismo, diversão
ou passatempo.
Dorothy Sayers, escritora de romances policiais, escreveu que a história de
detetive “não tem como, e por hipótese jamais terá como, alcançar o nível
1- *FACULDADE SABERES. Vitória, ES, Brasil - [email protected]
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mais elevado de realização literária”, definindo-a como “literatura de fuga da
realidade” e não como “literatura de caráter artístico” (CHANDLER, 2001, p.
175). Raymond Chandler rejeita essas opiniões:
Eu não sei o que seja o nível mais elevado de realização
literária. Tampouco Ésquilo ou Shakespeare o sabiam.
E muito menos o sabe a Srta. Sayers. [...] Sempre é
uma questão de quem escreve o material e o que este
autor tem dentro de si que o leva a escrever. Quanto à
“literatura de caráter artístico” e à “literatura de fuga
da realidade”, isto não passa de jargão dos críticos
literários, um fazer uso de palavras abstratas como
se elas tivessem significados absolutos. Tudo que é
escrito com vitalidade expressa essa vitalidade; não
há sujeitos [assuntos] desinteressantes. O que há são
mentes desinteressantes (CHANDLER, 2001, p. 176).
E mais adiante, falando de Dashiell Hammett, precursor do romance “noir”,
uma linha que divergia da linha policial clássica, Chandler declara:
Hammett demonstrou que a história de detetive
pode resultar num texto importante. O Falcão Maltês
[principal obra de Hammett] pode ou não ser a obra
de um gênio, mas uma arte que é capaz de chegar a
esse ponto não é “por hipótese” incapaz de tudo o
mais. Uma vez que uma história de detetive pode ser
tão boa quanto O Falcão Maltês, só os pedantes negarão
que ela poderia ser ainda melhor (CHANDLER, 2001,
p. 182).
O crítico Jean-François Gérault divulgou no site “Mauvais Genres”, na Internet,
um texto intitulado “Jorge Luis Borges, défenseur des mauvais genres”, em que
faz um relato minucioso da ligação de Borges com “gêneros inferiores” – ou de
paraliteratura, como também os define – entre os quais estão a literatura policial
e a ficção científica. Assim explica ele a atração de Borges por esse tipo de obra
literária:
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Em primeiro lugar, Borges tem fascínio pelos
bandidos e pelo crime. Isso o levará a escrever toda
uma série de biografias deformadas de bandidos
para o suplemento semanal da Revista Multicolor de
los Sábados [...] A segunda razão da paixão de Borges
pelo romance policial é a sua predileção pelo enigma,
pela solução lógica e engenhosa dos problemas
aparentemente mais delirantes! Muito jovem, desde a
idade de quinze anos, descobre fascinado o universo
de um dos maiores escritores da literatura policial,
Gilbert Keith Chesterton. Seu primeiro escrito teórico
sobre o assunto, “Leis da narração policial”, em Hoy
Argentina (no. 1, abril 1933) será dedicado a esse escritor.
[...] O que o fascina nesse autor é a sua capacidade de
transformar uma história aparentemente banal em
uma intriga totalmente lógica e racional (GÉRAULT,
1999).
De fato, Borges pode ser associado à literatura policial de três maneiras
diferentes: como leitor, como autor e como crítico. Vejamos separadamente
cada uma das três.
Borges, leitor de literatura policial
Sabemos, segundo suas próprias palavras, que a experiência da leitura marcou
Borges mais do que a experiência da vida:
mas, enfim, lembro mais do que li do que me
aconteceu. Mas claro que uma das coisas mais
importantes que podem acontecer a um homem é
ter lido esta ou aquela página que o comoveu, uma
experiência muito intensa, não menos intensa que
outras. Embora Montaigne tenha dito que a leitura
é um prazer lânguido. Mas acho que errou, no meu
caso a leitura não é lânguida, é intensa (BORGES,
1986, p. 21).
Além disso, tanta importância atribuía à atividade da leitura que pôde formular
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sentenças como esta, que se lê no poema “Um leitor”: “Que outros se jactem das
páginas que escreveram; / a mim me orgulham as que li” (BORGES, II, p. 418).
Sabemos, também, que a leitura de Borges era de vasta abrangência. Ele leu muito
e de tudo, inclusive literatura policial, como ele mesmo o confessa: “Coube-me
por sorte o exame, nem sempre árduo, de centenas de romances policiais” (BORGES,
IV, p. 577, itálico nosso). Nos termos “por sorte” e “nem sempre árduo” estão
revelados claramente o prazer e o interesse com que Borges se entregava a essas
leituras. O termo “centenas” mostra a grande quantidade de textos desse gênero
a que deu atenção.
Borges, autor de literatura policial
Sua experiência como autor do gênero Borges reconhece, modestamente, em
sua conferência sobre “O conto policial”:
Tentei o gênero policial, certa vez. Não me sinto
muito orgulhoso do que fiz. Eu o levei para o terreno
simbólico, que não sei se agrada. Escrevi “A morte e a
bússola”, além de um ou outro texto policial com Bioy
Casares [...] [Estes são] os contos de Isidro Parodi, um
preso que do cárcere soluciona os crimes (BORGES,
IV, p. 229).
Na verdade, embora longe de produzir textos policiais convencionais, Borges
escreveu vários textos em que a influência ou a inspiração do gênero está muito
presente. Seu primeiro texto nessa linha é “A aproximação a Almotásim”,
de 1933, mais tarde incluído no livro História da Eternidade (1936). Convém
lembrar que este é também o primeiro trabalho de ficção de Borges na linha
da “falsa resenha bibliográfica” (a expressão é de Emir Rodríguez Monegal)
(MONEGAL, 1987, p. 29). O “romance” de que se trata no conto é The Approach
to Al-Mu’tasim, atribuído ao advogado Mir Bahadur Ali, de Bombaim. Já no
primeiro parágrafo se informa que, segundo Phillip Guedalla, o romance em
análise é uma combinação de poemas alegóricos do Islã “e daqueles romances
policiais que inevitavelmente superam John H. Watson [o companheiro de
Sherlock Holmes e narrador de suas aventuras] e aperfeiçoam o horror da vida
humana nas mais irrepreensíveis pensões de Brighton”. No mesmo parágrafo,
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menciona-se a opinião de Mr. Cecil Roberts, que “denunciara no livro de Bahadur
‘a dúplice, inverossímil tutela de Wilkie Collins e do ilustre persa do século
XII, Farid Eddin Attar’”. O autor da “resenha” conclui: “Essencialmente, ambos
os escritores [Guedalla e Roberts] concordam: os dois indicam o mecanismo
policial da obra e seu undercurrent místico. Essa hibridação pode levar-nos a
imaginar certa semelhança com Chesterton; logo comprovaremos que não há
tal coisa” (BORGES, I, p. 458).
Veja-se como Borges mistura gradativamente realidade e ficção: o advogado
Bahadur Ali, o seu romance, The Approach to Al-Mu’tasim, os resenhistas Guedalla
e Roberts, são todos imaginários, o que não é o caso de alguns dos autores
citados por Roberts, como Wilkie Collins e o poeta persa Farid Eddin Attar. Já no
segundo parágrafo do conto, personalidades “reais”, “históricas”, são atraídas
para essa dimensão imaginária. Aí, ao acompanhar o percurso editorial do
romance, o narrador e resenhista anônimo faz menção a uma segunda edição,
ilustrada, publicada por Bahadur, “que Victor Gollancz acaba de reproduzir
em Londres, com prólogo de Dorothy L. Sayers” (BORGES, I, p. 458-9). Temos
então um romance imaginário, que nunca existiu, sendo editado por Victor
Gollancz, conhecido editor londrino na época, e prefaciado por Dorothy Sayers,
uma autora de livros policiais (cujos romances Borges costuma depreciar em
suas resenhas2) e de antologias de contos policiais. Mas, além do jogo das falsas
atribuições, o parágrafo enfatiza o ângulo detetivesco do romance de Bahadur,
atribuindo o prólogo da edição inglesa a uma escritora de textos do gênero.
Monegal assinala que esse conto, “dissimulado sob a forma de uma resenha
sobre um imaginário romance policial publicado em Bombaim”, foi o modelo
de “Pierre Menard, autor do Quixote”:
Os vínculos entre o conto anterior e o novo são óbvios:
ambos são apresentados como ensaios literários, em
que se discute a obra de um autor inexistente e se
dá todo tipo de informação apócrifa (data e local de
publicação, nome do editor ou da revista, citações de
2- “Os estudos [de Dorothy Sayers sobre o conto policial] são por vezes admiráveis, as antologias
são competentes, os romances são de uma mediocridade que nada tem de áurea” [BORGES, IV:
298]. E também: “Dorothy Sayers costuma compensar com excelentes antologias a publicação de
romances imperdoáveis” [BORGES, IV: 484].
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outros críticos), para que a impostura se faça mais
crível. Ambos os contos manejam certo conceito
original sobre o que é ficção. Ambos utilizam o truque
de apresentar uma realidade literária que é falsa
(MONEGAL, 1993, p. 295).
Em texto publicado em abril de 1938, Borges já confessava (com um jeito de
ironia) o seu fascínio pela possibilidade de escrever um romance policial. O
texto é a resenha de um livro policial, Excellent Intentions, de Richard Hull:
Um dos projetos que me acompanham, que de algum
modo me justificarão perante Deus, e que não penso
executar (porque o prazer está em entrevê-los, não
em levá-los a termo), é o de um romance policial um
pouco heterodoxo. (Isto é importante, pois entendo
que o gênero policial, como todos os gêneros, vive da
contínua e delicada infração de suas leis.) (BORGES,
IV, p. 416).
E prossegue apresentando ao leitor um resumo do argumento de seu projetado
romance:
Eis aqui meu plano: urdir um romance policial
do tipo corrente, com um indecifrável assassinato
nas primeiras páginas, uma lenta discussão nas
intermediárias e uma solução nas últimas. Depois,
quase na última linha, acrescentar uma frase ambígua
– por exemplo: “e todos pensaram que o encontro
desse homem com essa mulher tinha sido casual” –
que insinuasse ou deixasse supor que a solução é falsa.
O leitor, inquieto, revisaria os capítulos pertinentes e
daria com outra solução, com a verdadeira. O leitor
desse livro imaginário seria mais perspicaz que o
“detetive”... (BORGES, IV, p. 416).
Borges viu no livro de Richard Hull uma estrutura que lembra a do romance
que ele mesmo planejou escrever, sem, porém, a solução oculta que faria toda
a diferença:
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A solução final [do livro de Richard Hull], no entanto,
é tão pouco assombrosa que não posso livrar-me da
suspeita de que esse livro real, publicado em Londres,
é aquele que eu previ em Balvanera, há três ou quatro
anos. Nesse caso, Excellent Intentions ocultaria o
argumento secreto. Ai de mim ou ai de Richard Hull!
Não vejo esse argumento em parte alguma (BORGES,
IV, p. 416).
Como veremos a seguir, essa resenha anuncia o conto “Exame da obra de
Herbert Quain”, incluído em O jardim de veredas que se bifurcam, publicado três
anos depois, em 1941.
Em “Exame da obra de Herbert Quain”, Borges segue o mesmo procedimento
de “A aproximação a Almotásim”, a falsa resenha bibliográfica, e a obra aqui
“resenhada” tem também aspectos que a remetem à literatura policial: “O
Spectator [...] equipara o primeiro livro de Quain – The God of the Labyrinth – a
um de Mrs. Agatha Christie e outros aos de Gertrude Stein” (BORGES, I, p.
511). Agatha Christie, como se sabe, é uma das mais bem sucedidas autoras de
histórias policiais. Mais adiante, dá-se uma informação que procura justificar o
insucesso comercial do romance de Quain, colocado à venda “nos últimos dias
de novembro de 1933”:
Em princípios de dezembro, as agradáveis e árduas
involuções do Siamese Twin Mystery atarefaram
Londres e Nova York; prefiro atribuir a essa
coincidência arruinada o fracasso do romance de
nosso amigo. Do mesmo modo (quero ser totalmente
sincero) à sua elaboração deficiente e à vã e frígida
pompa de certas descrições do mar. [...] Há um
indecifrável assassinato nas páginas iniciais, uma lenta
discussão nas intermediárias, uma solução nas últimas. Já
esclarecido o enigma, há um parágrafo longo e retrospectivo
que contém esta frase: “Todos acreditaram que o encontro
dos jogadores de xadrez fora casual.” Essa frase deixa
entender que a solução é errônea. O leitor, inquieto, revê
os capítulos pertinentes e descobre outra solução, que é a
verdadeira. O leitor desse livro singular é mais perspicaz
que o detetive (BORGES, I, p. 512, itálico nosso).
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Esse parágrafo remete à resenha de abril de 1938, citada mais acima, conforme
o comprovam os trechos grifados, que conferem quase literalmente com as
informações que na resenha Borges dá sobre o seu projeto de romance policial.
Outras reflexões também se fazem necessárias. No contexto do romance policial,
o nome Herbert Quain lembra o de Ellery Queen, que é justamente o autor do
romance The Siamese Twin Mystery (O caso dos irmãos siameses), citado no conto
de Borges, editado de fato em 1933, cuja publicação quase simultânea com The
God of the Labyrinth teria sido responsável pelo fracasso deste. Borges omite o
nome de Ellery Queen, autor do livro “real” citado no parágrafo, e não esclarece
o motivo por que teria The Siamese Twin Mystery provocado o fracasso de The
God of the Labyrinth, motivo que reside certamente no fato de que o método
empregado por Quain em seu romance é semelhante ao que Queen empregara
no dele. Esse método de Queen já havia chamado a atenção de Borges em ocasião
anterior. Pois em outubro de 1936, na resenha de um romance do próprio Queen,
Half-Way House, dizia Borges:
Na história do gênero policial [...] os romances de
Ellery Queen importam um desvio, ou um pequeno
avanço. Refiro-me a sua técnica. O romancista
[convencional] costuma propor uma elucidação
vulgar do mistério e deslumbrar seus leitores com
uma solução engenhosa. Ellery Queen propõe, como
os outros, uma explicação nada interessante, deixa
entrever (no final) uma belíssima solução, com a
qual o leitor se encanta, para refutá-la e revelar uma
terceira, que é a correta: sempre menos estranha que
a segunda, mas totalmente imprevisível e satisfatória
(BORGES, IV, p. 252).3
Em “Exame da obra de Herbert Quain”, Borges se vale de uma variação do
método das três soluções, que é insinuar ao leitor que a segunda solução, dada
como final, não é a verdadeira, e levá-lo a uma releitura de determinadas
passagens onde se encontra a solução definitiva. Essa variação peculiar é típica
3- Em resenha de dezembro de 1937 de um livro de Michael Innes, Borges volta a referir-se a
esse método de Ellery Queen. O livro de Innes tem três soluções: “A primeira [...] é digna de
Chesterton. A segunda [...] é menos engenhosa que a primeira, sem ser mais verossímil. A terceira
e definitiva [...] não é engenhosa e é absolutamente inacreditável. É tão insípida e tão desajeitada
[...] que resistimos a dar-lhe fé” (BORGES, IV, p. 384-5).
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de Borges, autor que valorizava a leitura acima da escritura e, por conseguinte,
o leitor acima do escritor.4 Assim, enquanto Queen revela a solução definitiva
do problema, Quain (ou seja, Borges) a oculta, dando, porém, uma pista sutil
para o leitor chegar até ela. Aí podemos ver também uma resposta de Borges
a Ellery Queen. Em seus romances, este autor costumava lançar um “Desafio
ao Leitor” justamente no ponto em que o detetive estaria de posse de todas
as informações necessárias para a elucidação do mistério.5 O primeiro desses
desafios está no romance de estréia de Ellery Queen, O caso do chapéu romano, e
vem assinado não por Ellery Queen (como aconteceria nos romances seguintes),
mas por J. J. McC., prefaciador do livro:
A moda atual da literatura policial defende a prática de
colocar o leitor na posição de investigador principal.
Convenci Mr. Ellery Queen a permitir neste ponto
do romance a introdução de um desafio ao leitor...
“Quem matou Monte Field?” “Como foi executado o
crime?” (QUEEN, 1967, p. 202).
No texto de Borges, irônico e subversivo, o leitor é quem vence o desafio,
desbancando o detetive. O que significa que, se Austin Freeman, como vimos,
elevou o leitor a uma posição de igualdade com o detetive, Borges elevou-o
a uma posição mais alta ainda, pois é o leitor e não o detetive que alcança a
solução.
Passemos a um terceiro exemplo, o conto-título de O jardim de veredas que se
bifurcam, que é de natureza policial. Borges assim o define no prólogo:
As sete obras deste livro não requerem maior
elucidação. A sétima [o conto-título] é policial; seus
leitores assistirão à execução e a todos os preliminares
4- Basta citar a última frase do prólogo da História Universal da Infâmia: “Ler, entretanto, é uma
atividade posterior à de escrever: mais resignada, mais sutil, mais intelectual” (BORGES, I, p.
313). Mas é da leitura que nasce a escritura, como já sabia Berceo. E no caso de “Exame da obra
de Herbert Quain”, o Borges autor de histórias policiais foi influenciado pelo Borges leitor de
histórias policiais.
5- Ver O mistério do pó francês (1930), p. 244; O mistério do sapato holandês (1931), p. 241; O
mistério da cruz egípcia (1932), p. 262, e outros.
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de um crime cujo propósito não ignoram, mas que não
compreenderão, parece-me, até o último parágrafo
(BORGES, I, p. 473).
Italo Calvino afirmou que, “em cada texto, por todos os meios, Borges fala do
infinito, do inumerável, do tempo, da eternidade ou da presença simultânea
ou da dimensão cíclica dos tempos” (CALVINO, 1993, p. 251). Nesse conto em
particular,
O enredo evidente é o de um conto de espionagem
convencional, um enredo aventuroso condensado
numa dúzia de páginas e um pouco forçado para
chegar a um final surpresa. (O epos que Borges utiliza
compreende também as formas da narrativa popular.)
Esse conto de espionagem inclui um outro conto, em
que o suspense é de tipo lógico-metafísico e o ambiente
é chinês: trata-se da pesquisa de um labirinto. Neste
conto está incluída, por sua vez, a descrição de um
interminável romance chinês. Porém, aquilo que mais
conta nesse novelo narrativo compósito é a meditação
filosófica sobre o tempo em que se desenrola, ou
melhor, as definições das concepções do tempo que
aí são sucessivamente enunciadas. Percebemos no
final que, sob a aparência de um thriller, é um conto
filosófico, ou melhor, um ensaio sobre a idéia do
tempo aquilo que acabamos de ler (CALVINO, 1993,
p. 251).
Essa é a grande diferença entre Borges e seus “colegas”, autores de histórias
policiais: nas histórias de Borges a narrativa de crime ou de mistério serve como
pretexto e de base para o desenvolvimento de temas bem mais complexos, que,
além disso, fogem à preocupação habitual da literatura policial.
Mais essencialmente policiais são os textos de Seis problemas para Don Isidro Parodi
(1942), um conjunto de contos de mistério escritos por Borges em parceria com
seu amigo Adolfo Bioy Casares, usando o pseudônimo de H. Bustos Domecq.
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Gervasio Montenegro,6 ao apresentar esses contos, não deixou de chamar a
atenção dos leitores para o fato de que a Isidro Parodi cabe, “na agitada crônica
da investigação policial, [...] a honra de ser o primeiro detetive encarcerado”,
levando às últimas conseqüências uma situação antes experimentada por outros
detetives de ficção:
Sin evadirse de su gabinete nocturno del Faubourg
St. Germain, el Caballero Augusto Dupin captura el
inquietante simio que motivara las tragedias de la
rue Morgue; el príncipe Zaleski, desde el retiro del
remoto palacio […], resuelve los enigmas de Londres;
Max Carrados, not least, lleva consigo por doquier la
portátil cárcel de la ceguera… (BORGES, 1981, vol. I,
p. 17).
Umberto Eco, num ensaio em que trata desses contos, destaca a inversão que
Borges e Bioy Casares fazem do padrão tradicional do gênero: “Ao invés da
solução externa de um delito cometido num quarto fechado, eis, saída de um
quarto fechado, a solução de uma série de delitos cometidos fora” (ECO, 1989,
p. 155). A esses contos se refere Gérard Genette como “um pastiche de gênero”
(GENETTE, 2003, p. 176). Realmente, o próprio sobrenome do detetive, Parodi,
sugere que a intenção dessas histórias é ser uma paródia do gênero policial.
Citemos Eco:
que don Isidro possa chamar-se Parodi não deve
causar espanto, porque Parodi é um sobrenome
italiano (da Ligúria) muito comum, e na Argentina
nada é mais comum do que um sobrenome italiano
[...] Porém, a distância entre “parodi” e “paródia” é
muito pequena. É um acaso? (ECO, 1989, p. 157).
E acrescenta, mais adiante:
Ora, os contos de Borges são uma paródia do conto
policial porque don Isidro não tem nem mesmo
necessidade de alguém que lhe diga [como Watson
6- Mais adiante veremos que se trata de um personagem fictício e que, na verdade, a introdução
do livro foi escrita pelos próprios autores.
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e outros personagens correspondentes ao amigo do
detetive] que as coisas eram como ele havia imaginado.
Está absolutamente certo disso, e Borges-Casares com
ele (e o leitor com eles) (ECO, 1989, p.163).
Artifícios, publicado em 1944, inclui “A morte e a bússola”, que é também
um conto tipicamente policial. “A seita da Fênix”, embora sem crimes nem
detetives, pode ser considerado um conto de mistério, digno da tradição de
Poe. Eis o que Borges diz dele no prólogo do livro: “Na alegoria da Fênix impus
a mim mesmo o problema de sugerir um fato comum – o Segredo –, de modo
vacilante e gradual, que resultasse, ao final, inequívoco; não sei até onde a sorte
me acompanhou” (BORGES, I, p. 537). O segredo, que não é revelado no conto,
é a relação sexual: “A verdade é que muitos leitores desse conto [“A seita da
Fênix”] não chegam a compreender que o segredo da seita é o ato sexual, que
perpetua e imortaliza os homens” (MONEGAL, 1993, p. 393).
Borges está presente no A Guide to Classic Mystery and Detection, uma extensa
página informativa sobre a literatura policial, disponível na Internet. Borges
acha-se classificado num grupo especial, “Visitantes Vindos da Ficção Científica”,
e em sua companhia estão Karel Capek, Ray Bradbury, Isaac Asimov e outros
escritores de literatura fantástica que experimentaram o gênero detetivesco. Para
mostrar de que modo Borges é visto como escritor policial por um especialista no
assunto, citemos alguns trechos dos comentários que mereceu do organizador
da página, Michael E. Grost:
Borges é uma combinação incomum de escritor
ortodoxo e subversivo. Muito culto e de vasta leitura,
sua obra está repleta de alusões literárias e filosóficas.
No entanto em sua maior parte essa obra tem laços
estreitos com a literatura de mistério ou com a
ficção científica e fantástica. As ficções de Borges são
complexas e de enredo sofisticado. Os enredos são
compostos na tradição dos escritores populares de
mistério e de ficção científica. Muitas das histórias
são de brilhante engenhosidade. […] Exerceram
uma forte influência sobre toda a obra de Borges os
contos engenhosos de G. K. Chesterton, com seus
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enredos complexos e bem urdidos, sua rica atmosfera
e suas alusões filosóficas. Borges também sofreu forte
influência do mestre de Chesterton, Robert Louis
Stevenson, e de alguns pioneiros oitocentistas de
mistério e de ficção científica como Poe e Hawthorne
(GROST).
Da obra de Borges, Grost focaliza os seguintes textos como tendo estreita relação
com a literatura policial:
O primeiro livro de ficção de Borges foi História
Universal da Infâmia. Trata-se de um conjunto de curtas
biografias ficcionais de criminosos e aventureiros da
vida real. Nada tem a ver com o escroque tradicional
que se encontra nos livros de Hornung e Leblanc.
Em vez disso, seus contos revelam as complexas
imaginações filosóficas de Borges. Muitos dos contos
estão cheios do humor de Borges. […] A obra de ficção
de Borges inclui mais ficção científica do que histórias
de detetive. Mesmo “O jardim de Veredas que se
Bifurcam” tem mais interesse pelas idéias de ficção
científica sobre que discutem seus personagens do que
pelos elementos detetivescos que compõem a história
em si. “A Morte e a Bússola” é uma anti-história de
detetive, em que a idéia é examinar todas as maneiras
engenhosas como o autor subverte as convenções
da narrativa de detetive tradicional. O mistério é
complexo, mas cada um de seus aspectos contribui
para compor a sátira lógica que Borges faz da ficção
policial. Um ponto: um elemento do mistério que não
chega a ser explicado é o da nudez do cadáver sob a
capa; suspeito que esta seja apenas uma homenagem
de Borges ao livro The Spanish Cape Mystery, de Ellery
Queen, onde essa nudez tem um papel na solução do
crime. Como as obras de seu mestre Chesterton e de
Ellery Queen, a obra de mistério de Borges se baseia
na tradição intucionista. Em contraste, “O Tema do
Traidor e do Herói” é um triunfo, uma verdadeira
história policial de primeira água. […] Os contos
de Seis Problemas para Don Isidro Parodi, escritos por
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Borges em colaboração com Bioy Casares, ficam mais
ou menos no meio. Em sua maior parte os problemas
são elaborados demais para compor histórias de
detetive realmente boas na linha clássica. A maioria
delas também contém muita engenhosidade, e todo o
conjunto vale muito a pena ler (GROST).
Por fim, nem mesmo em sua poesia Borges deixou de prestigiar a literatura
policial, pois escreveu um poema sobre Sherlock Holmes, criação do escritor
inglês Arthur Conan Doyle que se tornou o próprio símbolo de detetive e de
romance policial. Eis uma das estrofes do poema:
Não cultiva amizades, no entanto abençoa
a devoção ao outro, que foi seu evangelista
e que de seus milagres consignou a lista.
Vive de modo cômodo: em terceira pessoa (BORGES,
III, p. 533).
Borges, crítico de literatura policial
Como crítico, Borges escreveu um ensaio, “O conto policial”, já citado, que
apresentou como uma das conferências que realizou na Universidade de
Belgrano, em 1978. Bem antes desse ensaio, publicou, no n. 10 da revista Sur, de
julho de 1935, o texto “Os labirintos policiais e Chesterton”.7 Além disso, entre
as resenhas críticas que divulgou na revista El Hogar, entre 1936 e 1940, de que
se publicou uma antologia em 1986 com o título Textos cativos, foram muitos os
livros de autores de mistério a que Borges deu atenção.8 Da mesma forma, entre
os prólogos que escreveu para os volumes da Biblioteca pessoal, encontram-se
textos apresentando quatro autores ligados à literatura policial: Edgar Allan
Poe, Wilkie Collins, R. L. Stevenson e G. K. Chesterton. Com Bioy Casares, além
dos contos de Isidro Parodi, Borges organizou uma antologia de contos policiais
7- Incluído em Borges por Borges, de Emir Rodríguez Monegal, p. 120-3.
8- Dos 218 textos da antologia, cerca de 10% têm como tema a literatura policial. Não sabemos
quantos, dentre os que não foram incluídos no livro, também tratavam desse assunto.
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e editou a primeira coleção de romances do gênero publicada na Argentina, “El
Séptimo Círculo”, de grande sucesso.
Mas o que pensava Borges, basicamente, sobre o romance policial? Em sua
conferência “O conto policial”, ele endossou a opinião geral de que o criador do
gênero foi o escritor norte-americano Edgar Allan Poe.9 Porém, dessa opinião
generalizada ele tira conclusões bem peculiares, como era seu costume:
O romance policial criou um tipo especial de leitor.
Isto costuma ser esquecido quando se avalia a obra de
Poe. Porque, se Poe criou a narrativa policial, criou,
depois, o tipo de leitor de ficções policiais (BORGES,
IV, p. 221).
E volta a essa ideia mais adiante:
Por isso [porque já sabemos a solução do conto “Os
assassinatos da Rua Morgue”] podemos pensar mal
de Poe, podemos pensar que seus argumentos são tão
tênues que parecem transparentes. Podem sê-lo para
nós, que já os conhecemos, mas não para os primeiros
leitores de ficções policiais, que não estavam instruídos
como nós, não eram uma invenção de Poe, como nós
o somos. Nós, ao lermos um romance policial, somos
uma invenção de Edgar Allan Poe (BORGES, IV, p.
226-7).
A seguir Borges atribui a Edgar Poe a concepção e execução de uma ideia tão
revolucionária que, sem ela, “a literatura atual não seria o que é”:
Derivam [de Edgar Allan Poe] dois fatos que parecem
muito distanciados e que, no entanto, não são; são
fatos afins. Derivam a idéia da literatura como
fato intelectual e a narrativa policial. O primeiro –
considerar a literatura uma operação da mente, não
9- Como sempre há um precursor do precursor, Borges, em seu ensaio “Nathaniel Hawthorne”,
afirma que um dos contos desse autor, “Mr. Higginbotham’s Catastrophe”, “prefigura o gênero
policial que Poe inventaria” (BORGES, II, p. 67).
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do espírito – é muito importante. O outro é mínimo,
não obstante tenha inspirado grandes escritores
(pensamos em Stevenson, Dickens e Chesterton, o
melhor herdeiro de Poe). Essa literatura pode parecer
subalterna e de fato está declinando; atualmente
foi superada ou substituída pela ficção científica,
que também tem em Poe um de seus possíveis pais
(BORGES, IV, p. 222).
Assim, vemos que Borges julgava a criação da narrativa policial um fato de
mínima importância: trata-se, enfim, de uma “literatura subalterna”. Ao
considerar, porém, como afins “a ideia da literatura como fato intelectual e
a narrativa policial”, está reconhecendo que também desta, por sua própria
natureza e finalidade, se pode dizer que se trata de uma tendência literária
que envolve “uma operação da mente, não do espírito”,10 porque o conto
policial é “um mistério desvendado por obra da inteligência, por uma operação
intelectual” (BORGES, IV, p. 225).
Em sua conferência, Borges chama a atenção também para outro fator importante
da narrativa policial, conforme concebida por Poe: a ideia de que não cabia à
literatura policial ser realista:
Poe não queria que o gênero policial fosse um gênero
realista; queria que fosse um gênero intelectual, um
gênero fantástico – se vocês assim preferirem –, mas
um gênero fantástico da inteligência, não apenas da
imaginação; de ambas as coisas, naturalmente, mas,
sobretudo, da inteligência (BORGES, IV, p. 225).
E explica que, para ficar a salvo desse realismo, Poe prefere ambientar os seus
contos policiais não em Nova York, mas do outro lado do Atlântico, em Paris:
Ele poderia ter situado seus crimes e seus detetives
em Nova York, mas então o leitor ficaria pensando
se as coisas de fato se desenrolam assim, se a polícia
de Nova York é desse ou daquele modo. Era mais
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- Aí a opinião de Borges concorda, por exemplo, com a de Boileau-Narcejac e de S. S. Van
Dine, como vimos mais acima.
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cômodo e estava mais solta a imaginação de Poe
fazendo com que tudo aquilo ocorresse em Paris, em
um bairro deserto da região de Saint-Germain. Por
isso, o primeiro detetive da ficção é um estrangeiro,
o primeiro detetive registrado pela literatura é um
francês. Por que um francês? Porque quem escreve a
obra é um americano que necessita de um personagem
distante (BORGES, IV, p. 225).11
S. S. Van Dine, em seu texto teórico sobre o gênero policial, já citado antes,
defende a criação de uma “pseudo-realidade” nas narrativas policiais, porque
nelas “é essencial uma sensação de realidade”:
o objetivo de uma narrativa policial – a recompensa
intelectual conferida pela solução – se perderia se não
fosse mantida uma sensação de verossimilhança de
modo consistente, pois um sentimento de trivialidade
contagiaria o problema e daria ao leitor a impressão
de desperdício de esforço (VAN DINE, 1927).
O realismo necessário à narrativa policial, porém, segundo Van Dine, não tem
nada a ver com a criação de climas através de descrições elaboradas ou de perfis
psicológicos detalhados:
Uma vez aceita, pelo leitor, a pseudo-realidade do
enredo, suas energias se concentram (como as do
próprio detetive) na elucidação do problema; e sua
disposição, sendo de ordem intelectual, se distrai com
a invasão de detalhes de clima. […] O cenário de uma
história policial, porém, é de extrema importância.
A história deve parecer um registro real de eventos
que surgem no local da ação; e as plantas e diagramas
que freqüentemente se encontram nessas histórias
contribuem de modo considerável para garantir esse
efeito. A familiaridade com o local e a crença em
sua existência é que dão ao leitor o sentimento de
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- Essa falta de compromisso com o realismo é também uma premissa do próprio Borges como
autor de ficção. Ver o que ele diz num dos diálogos que manteve no rádio com Osvaldo Ferrari, no
qual se tratou especificamente de sua técnica literária (BORGES, 1986, p. 47).
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naturalidade e liberdade para lidar com os fatores do
enredo e chegar aos objetivos que são seus e do autor
(VAN DINE, 1927).
Há uma vertente na literatura policial, originada na década de 1930, que tenta ser
realista: é o chamado romance “noir”, cujos expoentes são os autores americanos
Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Este teorizou sobre a questão:
O realista em assassinatos escreve sobre um mundo
em que gângsteres podem governar nações e
quase governam cidades, em que hotéis e edifícios
de apartamentos e restaurantes famosos são de
propriedade de homens que fizeram suas fortunas
com bordéis, em que um astro de cinema pode ser o
informante de uma família de mafiosos, e o vizinho
simpático é o chefe de uma rede de extorsões; um
mundo onde um juiz com uma adega cheia de bebida
contrabandeada pode mandar um homem para a
cadeia por ter meio litro de uísque no bolso, onde o
prefeito de sua cidade pode ter feito vistas grossas a
um assassinato como um instrumento para levantar
verbas, onde nenhum homem pode andar por uma rua
escura em segurança porque a lei e a ordem pública
são coisas das quais falamos mas que nos abstemos de
praticar (CHANDLER, 2001, p.184).
Borges vê nessa vertente o declínio do gênero policial:
Atualmente, o gênero policial decaiu muito nos
Estados Unidos. O gênero policial é realista, violento,
e também um gênero de violências sexuais. Em todo
caso, praticamente desapareceu. A origem intelectual
da narrativa policial tem sido esquecida (BORGES,
IV, p. 229).
Boileau-Narcejac concordam que o gênero policial exige mais inteligência do
que violência para sobreviver:
O gênero exige do autor uma atenção e uma lucidez
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extremas. Quando um romancista escreve: “Nunca
sei o que vai se passar antes de ter começado. Confio na
inspiração” (Alberto Moravia), tem perfeitamente
razão. Pelo contrário, um escritor policial deve saber, a
cada instante, o que faz, porque o romance-problema é
um objeto, uma espécie de concreção que a inteligência
controla, à medida que a segrega. Ora, é esse controle
que, com freqüência, é insuficiente. Então aparecem
o excesso, o descomedimento, e para dizer tudo: a
facilidade. É à força de rigor que o romance policial
se salvará. É preciso escolher entre Jorge Luis Borges
e Carter Brown. (BOILEAU-NARCEJAC, 1991, p. 89).
Voltando a Borges, a conferência “O conto policial” é o texto em que ele de
modo mais extenso teoriza sobre a narrativa policial. Há outras passagens em
que também se refere ao gênero, dispersas em sua vasta obra crítica e ensaística.
Em “Os labirintos policiais e Chesterton”, de 1935, já citado, apresenta um
código com seis cláusulas para se escrever um conto policial. Em Prólogos com
um prólogo de prólogos, ao tratar do livro A pedra lunar, de um dos precursores
ingleses do gênero, Wilkie Collins, Borges já havia esboçado alguns dos tópicos
que mais tarde aprofundaria na conferência:
Em 1841, um pobre homem de gênio, cuja obra escrita
talvez seja inferior à vasta influência por ela exercida
nas diversas literaturas do mundo, Edgar Allan Poe,
publicou na Filadélfia “Os crimes da rua Morgue”,
o primeiro conto policial que a história registra.
Essa narrativa fixa as leis essenciais do gênero: o
crime enigmático e, à primeira vista, insolúvel, o
investigador sedentário que o decifra por meio da
imaginação e da lógica, o caso narrado por um amigo
impessoal, e um tanto apagado, do investigador. O
investigador chamava-se Auguste Dupin; com o
tempo passaria a ser chamado de Sherlock Holmes...
(BORGES, IV, p. 53).
Dentre os seus Textos cativos, cerca de vinte tratam de obras de autores ditos
policiais. Na resenha que escreveu sobre o livro Death at the President’s Lodging,
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de Michael Innes, Borges estabelece uma distinção básica entre esses autores:
No melhor dos três contos exemplares de Edgar
Allan Poe [“A carta roubada”], a polícia de Paris,
empenhada em descobrir uma carta roubada, fatiga
em vão os recursos da investigação metódica: da broca,
do compasso e do microscópio. O sedentário Auguste
Dupin, enquanto isso, dá umas tantas cachimbadas,
considera os termos do problema e visita a casa que
burlou o escrutínio policial. Entra e imediatamente dá
com a carta... A despeito de seu êxito, o especulativo
Auguste Dupin teve menos imitadores que a ineficaz
e metódica polícia. Para cada “detetive” raciocinador
– para cada Ellery Queen ou Padre Brown – há dez
colecionadores de fósforos e decifradores de pistas.
A toxicologia, a balística, a diplomacia secreta, a
antropometria, a confecção de chaves, a topografia
e até a criminologia ultrajaram a pureza do gênero
policial (BORGES, IV, p. 285).
E acrescenta mais adiante: “o estudo de caracteres humanos que este livro [de
Michael Innes] propõe é mais encantador que o estudo da planta de uma casa
de vários pavimentos, que costumam propor os romances de S. S. Van Dine”
(BORGES, IV, p. 285).
Essa resenha é de janeiro de 1937. Em maio do mesmo ano, em resenha sobre
o livro The Paradoxes of Mr. Pond, de G. K. Chesterton, Borges produz uma
variante da passagem citada, tão similar que podemos dizer que a primeira é
o hipotexto desta e que, assim, Borges produziu (como tantas outras vezes12) o
que poderíamos chamar de hipertexto intratextual, já que ele está retrabalhando
seu próprio texto:
Em algum memorável conto de Poe [“A carta
roubada”], o obstinado chefe da polícia de Paris,
empenhado em recuperar uma carta, fatiga em vão
os recursos da investigação minuciosa: da broca, da
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- “Parece que estou sempre escrevendo a mesma história, estou sempre descobrindo a mesma
metáfora, estou sempre escrevendo os mesmos versos... mas, com ligeiras variações, que podem
ser benéficas” (BORGES, 1986, p. 98).
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lupa, do microscópio. O sedentário Auguste Dupin,
enquanto isso, fuma e reflete em seu gabinete da rua
Dunot. No dia seguinte, já resolvido o problema,
visita a casa que burlou o escrutínio policial. Entra,
e imediatamente dá com a carta... Isso ocorreu por
volta de 1855. Dessa data até hoje, o incansável
chefe de polícia de Paris teve inúmeros imitadores; o
especulativo Auguste Dupin, bem poucos. Para cada
“detetive” raciocinador – para um Ellery Queen, ou
Padre Brown, ou Príncipe Zaleski – há dez decifradores
de cinzas e examinadores de rastros. O próprio
Sherlock Holmes – terei a coragem e a ingratidão de
dizê-lo? – era um homem de broca e microscópio, não
de raciocínios (BORGES, IV, p. 330).
E continua, enfatizando a sua preferência pelos detetives “raciocinadores” em
detrimento dos “decifradores de cinzas e examinadores de rastros”:
A solução, nas más ficções policiais, é de ordem
material: uma porta secreta, uma barba suplementar.
Nas boas, é de ordem psicológica: uma falácia,
um hábito mental, uma superstição. Exemplo das
boas – e até das melhores – é qualquer narrativa
de Chesterton. Sei de leitores pervertidos por Miss
Dorothy Sayers ou por S. S. Van Dine que costumam
negar-lhe [a Chesterton] essa primazia. Não lhe
perdoam seu excelente hábito de não explicar senão
as coisas inexplicáveis. Não lhe perdoam a deliberada
omissão de horários e de mapas. Eles querem também
o número e a rua da loja de armas em que o criminoso
adquiriu o culpado revólver... (BORGES, IV, p. 330).
A ideia contida nesta frase – “Não lhe perdoam seu excelente hábito de não
explicar senão as coisas inexplicáveis” – repete-se em outras passagens em que
Borges reflete sobre o gênero policial. Em nota de rodapé a um texto sobre o
mesmo Chesterton, Borges critica: “Não a explicação do inexplicável, e sim do
confuso é a tarefa que, em geral, os autores de romances policiais se impõem”
(BORGES, II, p. 80, nota).
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Ainda sobre o que chama de tecnicismos na literatura policial, Borges investe
contra eles na resenha do livro de Nigel Morland, How to Write Detective
Novels.
Insuperável exemplo de erro [no livro] é o catálogo
erudito de obras de toxicologia, de balística, de
datiloscopia, de medicina legal e de psiquiatria que Mr.
Nigel Morland recomenda aos escritores iniciantes. Já
conhecemos as graves conseqüências ilegíveis de tais
estudos. A solução “científica” de um mistério pode
não ser trapaceira, mas corre o risco de parecê-lo, já
que o leitor não pode descobri-la, por carecer desses
conhecimentos toxicológicos, balísticos, etc. que Mr.
Nigel Morland recomenda aos escritores. A solução
que conseguir abster-se desses tecnicismos sempre
será mais elegante (BORGES, IV, p. 353).
Outra restrição que Borges faz sistematicamente ao gênero de mistério se dirige
contra o romance policial, em favor do conto policial, o que não é de surpreender,
tratando-se de um autor que em toda a sua obra deu sempre preferência à
concisão exigida pelo texto literário curto.13 Eis as suas palavras em resenha
feita ao livro Sic Transit Gloria, de Milward Kennedy, de setembro de 1937:
Na dedicatória deste volume, Milward Kennedy
observa que o romance policial é um gênero que está
prestes a se esgotar e afirma a imedita necessidade de
uma renovação psicológica. Eu iria mais longe: espero
algum dia demonstrar que o puro romance policial,
sem complexidade psicológica, é um gênero espúrio
e que seus melhores exemplos – O Mistério do Quarto
Amarelo, de Gaston Leroux, O Mistério da Cruz Egípcia,
de Ellery Queen, O Crime do Escaravelho, de S. S. Van
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- Citemos Calvino: “Borges é um mestre do escrever breve. Ele consegue condensar em textos
sempre de pouquíssimas páginas uma riqueza extraordinária de sugestões poéticas e de pensa�
mento: fatos narrados ou sugeridos, aberturas vertiginosas para o infinito, e idéias, idéias, idéias.
Como tal densidade se realiza sem a mínima congestão, no período mais cristalino, sóbrio e areja�
do; como o narrar sinteticamente e enviesado conduz a uma linguagem toda precisão e concretu�
de, cuja inventiva se manifesta na variedade dos ritmos, dos movimentos sintáticos, dos adjetivos
sempre inesperados e surpreendentes, isso é um milagre estilístico, sem igual na língua espanhola,
de que só Borges tem o segredo” (CALVINO, 1993, p. 248).
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Dine – ganhariam muitíssimo se reduzidos a contos
breves. É irrisório que uma charada dure trezentas
páginas... Não em vão o primeiro romance policial
que a história registra – o primeiro no tempo e talvez
no mérito: The Moonstone (1868) de Wilkie Collins – é,
também, um excelente romance psicológico (BORGES,
IV, p. 360).
Borges repetirá essa mesma crítica na resenha dos livros The Beast Must Die, de
Nicholas Blake (junho de 1938) e Not To Be Taken, de Anthony Berkeley (agosto
de 1938), e ainda na de “Dois romances policiais” (abril de 1939). Nesta última
ele afirma:
Todo romance policial consta de um problema
simplíssimo, cuja perfeita exposição oral cabe em
cinco minutos e que o romancista – perversamente
– demora até transcorrerem trezentas páginas. As
razões dessa demora são comerciais: não respondem
a outra necessidade que a de encher um volume.
Nesses casos, o romance policial não passa de um
conto alongado. Nos demais, resulta uma variedade
do romance de caracteres ou de costumes (BORGES,
IV, p. 494).
José Paulo Paes cita Ellery Queen em sua já mencionada introdução à coletânea
Maravilhas do conto policial, para explicar a preferência dos autores pelo romance
e não pelo conto policial:
Na introdução à sua famosa antologia do conto policial,
101 Years’ Entertainment, Ellery Queen refere-se ao
número relativamente reduzido de contos policiais
firmados por grandes autores. E eis como explica o
fenômeno: os escritores policiais mais famosos evitam
a short-story porque esta não lhes traz vantagens
econômicas. Tem de ser publicada em revista e a
remuneração, neste caso, é sempre muito inferior à
que poderiam auferir com os direitos autorais de uma
novela publicada em livro (PAES, 1959, p. 12).
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É basicamente o que diz Borges na citação anterior: “As razões dessa demora são
comerciais: não respondem a outra necessidade que a de encher um volume.”
Mas se isso é uma justificativa para Ellery Queen, que tira seu sustento da
literatura policial, para Borges não é mais que uma ressalva. Pois a preocupação
de Borges como escritor sempre se centrou sobre fatores estéticos e artísticos e
não econômicos e comerciais.
A ligação de Jorge Luis Borges com a literatura policial se deu também no papel
de organizador de antologias e de coleções do gênero. Em 1943 publica, em
colaboração com Bioy Casares, a antologia Los mejores cuentos policiales. Segundo
Emir Rodríguez Monegal, “o sucesso deste livro convencerá a Emecé Editores
a confiar a Borges e a Bioy uma coleção de romances policiais, “El Séptimo
Círculo”, que se transformará em uma das mais populares de seu tempo”
(MONEGAL, apud BORGES, IV, p. 637). Assim, nesse momento, Borges de
certa forma se reconcilia com o romance policial, mas mantém na escolha dos
títulos da coleção uma preferência pela história intuitiva e psicológica mais do
que pela dedutiva e investigativa.14
Cremos que essas afirmações sejam suficientes para comprovar o interesse
de Jorge Luis Borges pela literatura policial e, como consequência, o seu
envolvimento com ela como autor de histórias policiais (certamente atípicas)
e como crítico da técnica e da produção da literatura policial. Por trás de um e
de outro, naturalmente, está Borges o leitor, que, em sua curiosidade insaciável,
não desdenhou nem mesmo esse gênero por muitos considerado inferior.
REFERÊNCIAS
BOILEAU-NARCEJAC. O romance policial. Trad. de Valter Kehdi. São Paulo:
Ática, 1991.
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. 4 volumes: 1. 1923-1949; 2. 1952-1972;
3. 1975-1985; 4. 1975-1988. Tradução de vários autores. São Paulo: Globo, 19982001.
______. Borges em diálogo. Conversas de Jorge Luis Borges com Osvaldo
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- O volume inaugural da coleção é The Beast Must Die, de Nicholas Blake, de que Borges fizera
uma resenha em El Hogar.
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Ferrari. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
______. Obras completas en colaboración. 2 volumes: 1. Con Adolfo Bioy
Casares. 2. Con Bertha Edelberg, Margarita Guerrero, Alicia Jurado, Maria
Kodama e Maria Esther Vázquez. Madri: Alianza Editorial, 1981 e 1983
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
CHANDLER, Raymond. A simples arte de matar. In: Armas no Cyrano’s e
outras histórias. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2001.
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O LEGADO DAS COMPOSITORAS DE MPB NOS
TREPIDANTES ANOS DE CHUMBO
Kátia Helena Maués Guedes1*
Vera Márcia Soares de Toledo2**
RESUMO
Este artigo tem por objetivo estudar as letras de algumas compositoras de
Música Popular Brasileira na década de 70, identificar o que elas dizem sobre
si no âmbito da canção popular, analisar a relação dessas composições com o
contexto histórico da época, refletir sobre o que a autoria feminina tinha a dizer
enquanto eu lírico feminino e relacionar essas criações com as estéticas literárias
brasileiras.
Palavras-chave: Literatura. Poesia. Compositoras brasileiras. Presença feminina
na MPB.
Abstract: This article aims to study some composers lyrics of Brazilian popular
music in the 70s, identify what they say about themselves in the popular song,
analyze the relationship between these compositions and the historical context
of the time, reflect about what the female author had to say as a female lyrical I
and relate these creations with the Brazilian literary aesthetics.
Keywords: Poetry Brazilian composers. Female presence in MPB. Literature.
“Tento aprender suas almas e falar como elas.”
Paulo César Pinheiro
Introdução
A década de 70 foi uma época profundamente marcada pela presença da
ditadura política no país e frequentes episódios de forte repressão, porém, de
1- * Pós-graduanda em Estudos da Linguagem da Faculdade Saberes. Autora deste trabalho.
Endereço eletrônico: [email protected].
2- ** Professora Mestre em Estudos Literários da Faculdade Saberes. Orientou e revisou este
trabalho. Endereço eletrônico: [email protected].
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intensa produção cultural onde surgem novas compositoras em um cenário
musical em que, anteriormente, somente Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran
e Maysa haviam conseguido romper as barreiras da centralização da indústria
fonográfica que privilegiavam os compositores.
Sabemos que a história foi feita pelos homens e que a maioria do que se fala
sobre a mulher foi dito pelos homens, tanto na literatura quanto na música,
pelo menos até algumas décadas atrás. Além disso, a Música Popular Brasileira
(MPB) não é apenas um fenômeno sonoro, mas também um produto escrito
capaz de atingir todas as regiões do país e do mundo, através dos meios de
comunicação. E a música e a literatura são duas artes que dialogam desde
os primórdios, remonte-se à Antiguidade greco-latina ou à Idade Média e se
encontrará a interdependência entre música e literatura.
Portanto, para identificar o que as compositoras de MPB dizem sobre si no
âmbito da canção popular, analisar a relação dessas composições com o
contexto histórico da época, refletir sobre o que a autoria feminina tinha a dizer
enquanto eu lírico feminino e relacionar essas criações com as estéticas literárias
brasileiras, foi necessário abordar a linguagem literária, as concepções da teoria
e os mistérios da criação, além de discutir sobre a literariedade da palavra
cantada.
Dessa forma, foi possível estudar as produções da MPB na década de 70, o
contexto histórico dessa época, e finalmente, revelar as vozes femininas da MPB,
ou seja, dimensionar quantas compositoras conseguiram transpor as barreiras
de um mercado fonográfico ainda dominado pelos homens.
A partir daí, inicia-se um trabalho árduo de pesquisa e seleção, por meio das
respectivas biografias, para eleger quatro compositoras, fazer um recorte de
suas obras e escolher as letras que falam sobre a mulher. Assim, selecionamos as
seguintes músicas: “Essa Mulher”, de Joyce e Ana Terra; “Feminina”, de Joyce;
“Minha Mãezinha”, de Ângela Rô Rô; e, finalmente, “Meninas da Cidade”, de
Fátima Guedes.
Desse modo, analisamos o que a autoria feminina tinha a dizer enquanto eu
lírico feminino numa época em que as mulheres começavam a escrever a sua
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própria história, em circunstâncias mais abrangentes, por meio do mercado
fonográfico.
O Caráter Literário das Composições da MPB
Inicialmente, antes de falarmos sobre o caráter literário das composições de
MPB, torna-se necessário esclarecermos o que é literatura. Esse conceito ainda
é muito polêmico entre os estudiosos que se dedicam a essa área e tem passado
por variações significativas em seu percurso histórico. Porém, apresentamos
duas concepções que tem sido reconhecidas e exploradas no circuito da cultura
ocidental: a concepção clássica e a concepção moderna.
A concepção clássica acredita que a obra literária abrange uma representação
e uma visão de mundo, e consequentemente, um posicionamento diante disso.
Segundo nos relata Proença Filho:
Há os que entendem que a obra literária envolve uma
representação e uma visão do mundo, além de uma
tomada de posição diante dele. Tal posicionamento
centraliza, assim, suas atenções no criador de literatura
e na imitação da natureza, compreendida como cópia
ou reprodução. A linguagem é vista como mero veículo
dessa comunicação, e, como assinala Marucie-Jean
Lefebve, “a beleza da obra resulta, então, de um lado,
da originalidade da visão, e, de outro, da adequação
de sua linguagem às coisas expressas”. É a chamada
concepção clássica da literatura. (PROENÇA FILHO,
2001, p. 9).
Por outro lado, a concepção moderna atribui ao artista uma capacidade que
vai além da representação, o que podemos identificar como pressentimento,
ou seja, uma visão além do alcance da realidade que podemos ver e observar,
“algo mais” que somente pode se realizar por meio da arte. Assim, nos aponta
Proença Filho (2001): “No século XIX, os românticos acrescentam algo a esse
conceito: à luz da ideologia que os norteia, entendem que ao artista cabe a visão
das coisas como ainda não foram vistas e como são profunda e autenticamente
em si mesmas”.
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Nesse sentido, concordamos com as ideias da concepção literária moderna, mas
também, entendemos o valor da concepção clássica para os pesquisadores que
analisam as obras literárias. Afinal, precisamos estabelecer parâmetros para
empreendermos estudos tão enigmáticos e desafiadores. Apesar de sabermos
que essa tarefa árdua implica em se enredar nos mistérios da criação artística.
Retomando o conceito de literatura, um dos pontos pacíficos entre os teóricos
é que ela é uma arte verbal, ou seja, tem como matéria prima a palavra escrita.
Como se trata de uma arte, a literatura usa o código verbal e a comunicação, de
forma especial. Dessa forma, o discurso literário mantém uma relação íntima
com o discurso comum, mas, apresenta diferenças únicas em relação a ele.
Apesar do mistério do fenômeno literário, é possível identificarmos certos traços
particulares em seu discurso. Desse modo, apresentamos algumas características
distintivas do discurso literário em relação ao discurso comum: complexidade,
multissignificação, predomínio da conotação, liberdade na criação, ênfase no
significante e variabilidade
O discurso comum visa à objetividade e procura ser o mais transparente possível
para evitar interpretações dúbias. Já no discurso literário, a complexidade torna
o texto muito mais rico em interpretações que vão além do nível meramente
semântico. Trata-se de uma linguagem que produz sentidos além daqueles que
usualmente entendemos na linguagem habitual e que encobre várias coisas ou
ideias.
Ao empregarmos no texto literário usos específicos e complexos da língua,
automaticamente, os signos linguísticos, as frases, as sequências e toda sua
textura, tomam sobre si, significados múltiplos e variados. O discurso literário
afasta-se completamente do chamado grau zero da escritura, isto é, do discurso
preocupado principalmente com a completa clareza da comunicação nele
veiculada e atrelada às normas gramaticais. Dessa forma, inventa significantes e
institui significados, dando margem para múltiplas leituras de uma determinada
obra. Igualmente, o sentido mais geral que se pode atribuir a um termo abstrato,
além da significação própria, conhecido como conotação, também contribui
para valorar a literariedade de um texto.
As características anteriormente citadas, não teriam sentido se não fosse
concedido ao artista aquilo que é mais importante para que sua criatividade
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sobreviva e se materialize: a liberdade na criação. Portanto, não existem regras
e nem limites para uma obra literária. Ela é o que pode ser e deve existir por si
mesma.
O texto literário tem o seu sentido apoiado tanto no significado quanto no
significante, mas, concede a este último uma atenção especial porque é nessa
esfera que concentra os segredos de sua criação.
Assim como as outras artes, a literária também varia de acordo com o contexto
sócio-cultural e ideológico. As marcas dessa variabilidade não obedecem a uma
ordem cronológica crescente porque, muitas vezes, o texto literário retoma
características de outras épocas ou se antecipa à contemporaneidade.
Contudo, os estudiosos da literatura ainda não conseguiram definir um índice
de literariedade, mesmo considerando as características distintivas do discurso
literário. Atualmente, essa é a busca mobilizadora da crítica literária.
A música e a poesia originariamente nasceram gêmeas siamesas. Ao longo da
evolução histórica de cada uma dessas artes, elas foram separadas e seguiram
seus próprios caminhos. Posteriormente, voltaram a se unir, mais precisamente
na Idade Média, na época do Trovadorismo. Porém, novamente se separaram e
continuaram suas trajetórias. Entretanto, nunca deixaram de estar intimamente
ligadas, seja por meio dos recursos de rima, métrica, ritmo, e de figuras de
linguagem que conferem musicalidade ao poema ou pelas letras destinadas a
canção.
Apesar dessa relação íntima que existe entre a poesia escrita e a poesia cantada,
suas origens históricas comuns e suas afinidades, Perrone (2008) afirma que é
imprescindível reconhecermos as diferenças fundamentais que existem entre
uma e outra, conforme relata:
O reconhecimento das diferenças fundamentais entre
o verso escrito e o verso destinado à execução musical
é pré-requisito indispensável para uma discussão
sobre as duas formas. Tendo-se sempre em conta as
distinções necessárias, existem diversos modos de se
tratar um texto musical como unidade literária. As
letras de canção são muitas vezes associadas à poética
não-musical, especialmente no contexto brasileiro
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contemporâneo, e muitos modelos de avaliação podem
ser apropriados tanto a poemas como a palavras
cantadas. Entretanto, em vista da dimensão musical
dos textos da canção, a aplicação não-qualificada ou
irrestrita de paradigmas de análise literária não seria
criticamente efetiva. (PERRONE, 2008, p. 23).
Outro aspecto importante apontado pelo autor, é que o refrão que deve ser visto
como um elemento potencialmente significativo. Assim, a repetição estrófica
numa canção não acontece por acaso, ela está intimamente ligada à construção
desse texto. Além disso, a posição que ela ocupa entre os versos é uma estratégia
que precisa ser cuidadosamente analisada.
Certamente, a leitura de uma letra de música pode causar impressões diferentes
de sua audição, às vezes, dependendo do ritmo e da forma como a música
é cantada, a leitura da letra revela aspectos que não são observados em sua
execução. Igualmente, existem letras de músicas que em sua forma escrita já
são naturalmente poemas bem construídos, assim como, muitos poemas foram
escritos somente com a intenção de serem lidos, mas que posteriormente foram
musicados sem mudar uma letra de sua forma original.
Sobre a literariedade da palavra cantada Perrone relata que:
[...] Uma letra pode ser um belo poema mesmo tendo
sido destinada a ser cantada. Mas é, em primeiro lugar,
um texto integrado a uma composição musical, e os
julgamentos básicos devem ser calcados na audição
para incluir a dimensão sonora no âmbito da análise.
Contudo, se, independente da música, o texto de uma
canção for literariamente rico, não há nenhuma razão
para não se considerarem seus méritos literários.
A leitura da letra de uma canção pode provocar
impressões diferentes das que provoca sua audição,
mas tal leitura é válida se claramente definida como
uma leitura. O que deve ser evitado é reduzir uma
canção a um texto impresso e, a partir dele, emitir
julgamentos literários negativos [...] (PERRONE,
2008, p. 28).
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Para a teoria literária, só podemos considerar literatura aquilo que está escrito.
E nesse sentido as letras de músicas impressas nos encartes dos discos de
vinil, fitas cassetes, e mais recentemente, em cds, dvds, e em diversos sites
sobre gêneros musicais, e, particularmente, nos blogs e sites dos compositores
e cantores tem contribuído para que suas pesquisas tenham sustentáculo nos
estudos literários.
Portanto, na análise das letras das compositoras de MPB selecionadas nesta
pesquisa, tomaremos como base as características distintivas do discurso
literário, aliadas às concepções da teoria literária apresentadas. Além disso,
consideraremos as distinções existentes entre a poesia escrita e a poesia cantada
dentro dos preceitos teóricos defendidos por Perrone.
As Produções da MPB na Década de 70
A escolha temporal desta pesquisa tem como ponto de partida dois fatores
primordiais. O primeiro diz respeito ao aparecimento de novas compositoras
no cenário musical brasileiro, uma vez que, antes da década de 70, tínhamos
como sinônimo de compositoras brasileiras apenas Chiquinha Gonzaga,
Dolores Duran e Maysa. Já o segundo se refere ao fato de que, nessa década,
vivenciou-se momentos de experimentação e revolução cultural que marcariam
profundamente as gerações seguintes, como tão bem relata Bahiana (2006):
Na nitidez da distância, os anos 70 aparecem com
uma importância que não se suspeitava: as raízes
das delícias e dos horrores do novo século estão
inteirinhas ali. O triunfo do corpo, o terror político.
Interatividade e crise do petróleo. Fartura, escassez.
Aiatolás no Irã, um mentiroso na Casa Branca. A
possibilidade de uma sociedade mais justa, com
lugar para as vozes de mulheres, homossexuais,
crianças, jovens, místicos, alternativos, e a realidade
de sociedades em que nada disso era sequer o esboço
de uma vontade (BAHIANA, 2006, P. 6, grifo nosso).
A consciência e a reflexão histórica, social e cultural dos anos de 1970 é algo que
hoje mobiliza muitos pesquisadores. E na medida em que mergulhamos em
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algum aspecto específico da época, como as produções da MPB, por exemplo,
é que constatamos o quanto ela foi importante. Nem mesmo aqueles que
testemunharam esse período tinham consciência de que estavam ajudando a
escrever uma importante página da nossa história. Assim, reflete Bahiana:
Não sei o que vai ser de mim ou de meus companheiros
de geração daqui pra frente, mas tenho certeza de
que vamos levar um pouco, conosco, esta época.
Foi terrível, foi ótima. Foi a nossa década. Enquanto
vivíamos seu dia-a-dia, dava a impressão de um
espaço imóvel de dez anos. Uma era morta em que
nada acontecia.
E, no entanto, tudo aconteceu. (BAHIANA, 2006, p.
13, grifo nosso).
Além disso, houve um momento nessa década em que a MPB ocupou o quarto
lugar no mercado fonográfico mundial e começou também a ser objeto de
estudos acadêmicos.
A riqueza dos anos de 1970 é comprovada pelo surgimento de grandes artistas e
amadurecimento de outros surgidos em décadas anteriores, dotados de talentos
especiais e com estilos e atributos próprios, e em alguns casos, raros. Figuram
nessa constelação nomes como: Elis Regina, Juca Chaves, Maria Bethânia, Jorge
Ben (Benjor), Tim Maia, Belchior, Fagner, Djavan, Elba Ramalho, Zé Ramalho,
Moraes Moreira, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Beto Guedes, Lô Borges,
Joana, Fafá de Belém, Simone, Gal Gosta, Clara Nunes, Zizi Possi, Zezé Mota,
Emílio Santiago, Dalto, Fátima Guedes, o conjunto vocal Boca Livre, Ney
Matogrosso, Marina Lima etc.
Listamos alguns desses nomes por entendermos que representam uma amostra
significativa da multiplicidade cultural do nosso país. Nos trepidantes anos de
chumbo, o Brasil tem pelo menos um representante de cada região na MPB.
As mulheres como intérpretes invadem o mercado fonográfico e passam a fazer
um enorme sucesso. Contudo, apesar do crescente número de cantoras na MPB
na década de 70, há pouco registro de músicas de compositoras porque não
eram as cantoras quem decidiam o que iriam cantar, e sim, suas gravadoras. Era
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o mercado fonográfico que ditava as regras.
Aliás, uma pesquisa mais cuidadosa se faria necessária para dimensionarmos
quantas compositoras conseguiram transpor as barreiras de um mercado
fonográfico que ainda não valorizava essas artistas que surgiam com força no
cenário musical brasileiro. Estamos nos referindo àquelas que eram cantoras
e músicos, e que também por isso, gravaram suas próprias obras: Ângela Rô
Rô, Fátima Guedes, Joyce, Leci Brandão, Rita Lee, Rosinha de Valença e Sueli
Costa.
Rita Lee, considerada a representação feminina do rock brasileiro na MPB, é um
fenômeno, que apesar de sua obra já ter um número considerável de estudos
acadêmicos, merece um estudo à parte. Igualmente, Leci Brandão, cantora e
compositora, um dos destaques femininos do samba. Já Rosinha de Valença,
é uma artista ímpar e sua obra é digna de uma pesquisa mais cuidadosa e
apurada, tanto no que diz respeito ao seu talento como compositora, quanto
como instrumentista. Além disso, Sueli Costa, cantora e compositora de forte
expressão musical, lançou seu primeiro LP “Sueli Costa”, em 1975. Dois anos
depois, em 1977, o segundo que também levava o nome da cantora. Logo após,
em 1978, o LP intitulado “Vida de Artista”. Também não será objeto desta
pesquisa porque, na maioria de suas composições, é autora da melodia e não
da letra.
Ana Maria Terra Borba Caymmi, letrista, escritora e produtora. Em 1977, por
meio do seu Selo Ana Terra Produções, lançou o LP “Cheiro verde”, de Danilo
Caymmi (na época, seu marido). O disco teve várias canções suas em parceria
com o cantor, inclusive a que deu título a obra. No ano de 1979, em seu LP “Essa
mulher”, Elis Regina gravou, de sua autoria em parceria com Joyce, a música que
deu título ao disco, e ainda, “Pé sem cabeça”, composição de Danilo Caymmi
e Ana Terra. Ainda nesse ano, Angela Ro Rô gravou uma de suas composições
mais conhecidas, “Amor meu grande amor”. Essa parceria tem a melodia feita
por Rô Rô e a letra por Ana Terra, que tempos depois seria regravada também
com sucesso pelo grupo Barão Vermelho. Portanto, a autora de “Essa Mulher”
não poderia se esquecida numa pesquisa como esta.
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Ângela Maria Diniz Gonçalves, conhecida pelo nome artístico de Ângela Rô Rô,
graças a sua risada grave, rouca e irreverente, nasceu no Rio de Janeiro, em 5
de dezembro de 1949. Ela também é músico e tem o piano como seu principal
instrumento. Segundo a artista, a sua melhor biografia será, um dia, definida
por ela mesma. Mas, Elis Regina, em 1981, conseguiu chegar perto: “- Essas
mulheres todas, com exceção da Ângela Rô Rô, estão servindo a este sistema
feudal das gravadoras, fazendo o que um amigo meu chama de neo-pseudoerotismo”. Contudo, Rô Rô revela que o mais coerente, até que ela escreva a
sua biografia, é usar sua própria frase: “- A vida de Rimbaud foi o Pato Donald
comparada com a minha”. Certamente, ela faz jus a isso. Seu primeiro disco
foi gravado exclusivamente com suas composições e recebeu o título de Ângela
Rô Rô. Trata-se de um clássico da música brasileira. Por essas razões, é um
verdadeiro manancial para esta pesquisa.
Maria de Fátima Guedes nasceu dia 6 de maio de 1958. Começou a compor aos 15
anos e aos 18 já tinha uma linguagem amadurecida em letras e melodias. Iniciou
a carreira como compositora em 1973 tendo o violão como seu instrumento e
parceiro em suas composições. Em 1976, sua musica Passional venceu o Festival
de Musica da Faculdade Hélio Alonso. Autora de trilhas sonoras para teatro,
compôs Onze Fitas, para a peça O Dia da Caça, de José Louzeiro. Sua música
Bicho Medo foi gravada por Wanderléia, e Meninas da Cidade interpretada no
show Transversal do Tempo, por Elis Regina. Assim como Ângela Rô Rô, em 1979
também lançou um LP com suas composições intitulado Fátima Guedes. Dessa
forma, temos mais um precioso documento musical para nossos estudos.
Joyce Silveira Moreno (nascida Joyce Silveira Palhano de Jesus) nasceu no Rio
de Janeiro, em 31 de Janeiro de 1948. Toca violão desde os catorze anos de
idade. Em 1967, classificou sua canção “Me disseram” no II Festival Internacional
da Canção (RJ), que iniciava com a frase “Já me disseram / que meu homem
não me ama”. Na época, essa música provocou uma grande polêmica por ter
a letra escrita na primeira pessoa do feminino, o que ainda não tinha sido feito
por nenhuma das pouquíssimas compositoras brasileiras até então. Joyce, uma
estreante de 19 anos foi criticada como “vulgar e imoral” por alguns jornalistas,
como Sérgio Porto. Mas, também teve defensores como Nelson Motta e
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Fernando Lobo, que a apoiaram pela “postura feminista”. Contudo, nem ela
sabia o que isso significava porque apenas queria se expressar no seu gênero,
como vira antes em artistas como Billie Holiday e Edith Piaf. Em 1970, graduouse em Jornalismo pela PUC-Rio. Nessa década, gravou um Compacto Duplo
intitulado “Joyce” em 1971, e ainda nesse ano, “Tribo”, um Compacto Simples,
em 1972 o LP “Nelson Angelo e Joyce”, e finalmente, em 1976 o LP “Passarinho
Urbano”. Porém, nenhuma dessas obras tinham composições suas, exceto no
último LP, na melodia da música “Passarinho” cuja letra é o poema de Mário
Quintana. Por isso, nossa fonte de pesquisa serão as músicas de Joyce gravadas
por outros intérpretes nos anos de 1970.
Finalmente, essa artista completa o quarteto de compositoras que transpuseram
as barreiras do mercado fonográfico nos trepidantes anos de chumbo, gravaram
seus vinis com músicas de sua autoria, ou, como Ana Terra, produziram suas
obras interpretadas por outros cantores e foram reconhecidas por grandes
intérpretes como Elis Regina.
Essas Mulheres Feitas de Sombra e Tanta Luz
Inicialmente, para analisarmos o que as compositoras de MPB dizem sobre
si no âmbito da canção popular, torna-se necessário fazermos um recorte na
obra das compositoras pesquisadas e escolhermos as letras que falam sobre a
mulher. Assim, selecionamos as seguintes músicas: “Essa Mulher”, de Joyce
e Ana Terra; “Feminina”, de Joyce; “Minha Mãezinha”, de Ângela Rô Rô; e
finalmente, “Meninas da Cidade”, de Fátima Guedes. Desse modo, poderemos
examinar o que a autoria feminina tinha a dizer enquanto eu lírico feminino
numa época em que as mulheres começavam a escrever a sua própria história,
em circunstâncias mais abrangentes, por meio do mercado fonográfico.
Em 1979, Elis Regina, um dos maiores ícones da MPB, grava o LP “Elis, Essa
Mulher”, a música “Essa Mulher”, que nomeia a obra, é de autoria da Joyce e
Ana Terra:
De manhã cedo essa senhora se conforma / Bota a
mesa, tira o pó, lava a roupa, seca os olhos / Ah, como
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essa santa não se esquece / De pedir pelas mulheres,
pelos filhos, pelo pão / Depois sorri meio sem graça
/ E abraça aquele homem, aquele mundo que a faz
assim feliz / De tardezinha essa menina se namora
/ Se enfeita, se decora, sabe tudo, não faz mal / Ah,
como essa coisa é tão bonita / Ser cantora, ser artista,
isso tudo é muito bom / E chora tanto de prazer e de
agonia / De algum dia, qualquer dia entender de ser
feliz / De madrugada essa mulher faz tanto estrago
/ Tira a roupa, faz a cama, vira a mesa, seca o bar /
Ah, como essa louca se esquece / Quanto os homens
enlouquece nessa boca, nesse chão / Depois parece
que acha graça / E agradece ao destino aquilo tudo
que a faz tão infeliz / Essa menina, essa mulher, essa
senhora / Em quem esbarro a toda hora no espelho
casual / É feita de sombra e tanta luz / De tanta lama
e tanta cruz que acha tudo natural (“Essa mulher”.
Joyce e Ana Terra, 1979).
Trata-se de um dos mais consagrados clássicos da nossa música. A letra fala de
uma mulher múltipla, capaz de ser dona de casa, esposa, mãe, amante, e ainda
por cima, artista: “De manhã cedo essa senhora se conforma / Bota a mesa, tira o pó,
lava a roupa, seca os olhos [...] Ser cantora, ser artista, isso tudo é muito bom [...] De
madrugada essa mulher faz tanto estrago / Tira a roupa, faz a cama, vira a mesa, seca
o bar [...]”.
Qualquer semelhança com as mulheres do século XXI não terá sido mera
coincidência, pois, como vimos anteriormente, uma das marcas da variabilidade,
característica da literariedade de um texto, é a capacidade de uma arte variar
de acordo com o contexto sócio-cultural e ideológico. Aqui, Ana Terra, autora
da letra, se antecipa a sua época e prevê a vida da mulher moderna que para
conquistar igualdade de direitos precisa ser várias mulheres ao mesmo tempo
e até enganar o dia que tem somente vinte e quatro horas, tempo insuficiente
para tantas atribuições.
Para abordar um tema tão contraditório, de ser uma dona de casa, esposa e uma
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mãe dedicada, mas também, uma mulher, uma amante entregue as delícias do
prazer e dos pecados da carne, a autora retoma traços do Barroco com paradoxos
como: “[...] E chora tanto de prazer e de agonia [...] Depois parece que acha graça / E
agradece ao destino aquilo tudo que a faz tão infeliz [...]”. Além de criar uma antítese
que traduz essa “moderna mulher barroca”: “[...] É feita de sombra e tanta luz
[...]”.
Ainda nesse ano, a música “Feminina”, de Joyce, entra na trilha sonora do seriado
“Malu Mulher”, criado e dirigido por Daniel Filho, e apresentado pela Rede
Globo no período de 24 de maio de 1979 a 22 de dezembro de 1980. A canção
“Feminina” é construída em forma de diálogo entre mãe e filha. O fio condutor
são questionamentos daqueles que, às vezes, nos deixam sem resposta, ou, com
várias respostas:
- Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é
feminina? / - Não é no cabelo, ou no dengo, ou no
olhar, é ser menina por todo lugar. / - Ô mãe, então
me ilumina, me diz como é que termina? / - Termina
na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo
lugar. / Costura o fio da vida só pra poder cortar. /
Depois se larga no mundo pra nunca mais voltar. / - Ô
mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina?
/ - Não é no cabelo, ou no dengo, ou no olhar, é ser
menina por todo lugar. / - Ô mãe, então me ilumina,
me diz como é que termina? / - Termina na hora de
recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar. /
Prepara e bota na mesa com todo o paladar. / Depois,
acende outro fogo, deixa tudo queimar. / - Ô mãe, me
explica, me ensina, me diz o que é feminina? / - Não é
no cabelo, ou no dengo, ou no olhar, é ser menina por
todo lugar. / - Ô mãe, então me ilumina, me diz como
é que termina? / - Termina na hora de recomeçar,
dobra uma esquina no mesmo lugar. (“Feminina”,
Joyce, 1979).
As duas perguntas, “Ô mãe, me explica, me ensINA, me diz o que é feminINA?” e “Ô
mãe, então me ilumINA, me diz como é que termINA?”. Apesar de apresentarem,
pelo critério gramatical, uma rima rica, na primeira, entre o verbo ensina e o
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adjetivo feminina, que são de categorias gramaticais diferentes. Assim como,
uma rima pobre, na segunda, entre o verbo ilumina e termina, classes de
palavras iguais. E ainda, pelo critério fônico, rimas pobres porque a extensão
dos sons que se assemelham “INA” começam a partir da sílaba tônica dessas
palavras. Constituem uma base melódica expressiva que provoca a construção
de belas metáforas como resposta. Isso podemos ver nos trechos a seguir:
“Costura o fio da vida só pra poder cortar / Depois se larga no mundo pra nunca mais
voltar” e “Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar”.
Essas duas metáforas demonstram o quanto a mulher dessa década é uma
espécie de fênix capaz de terminar na hora de recomeçar, de renascer e de se
refazer a cada instante, e de dobrar esquinas mesmo quando o caminho parece
apenas uma linha reta. E isso, significa criar e reinventar seu próprio caminho.
Outra construção metafórica relevante que, inclusive, formam um elo com
a letra de “Essa Mulher”, de Ana Terra, é “Prepara e bota na mesa com todo o
paladar / Depois, acende outro fogo, deixa tudo queimar”. Nessas duas estrofes, a
autora fala da mulher que cuida da casa, do marido e dos filhos, mas que, à
noite, se transforma também em amante. Novamente temos aqui referências à
multiplicidade feminina, a capacidade de serem muitas em uma só.
Já, ao contrário de Joyce, Ângela Rô Rô, na música “Minha Mãezinha”, aborda
a relação entre mãe e filha de uma forma diferente:
Sua voz tão difícil de calar / Não me diz mais nada /
Já não carrega mais o doce mel / Da abelha rainha /
Me deixe em paz / Minha mãezinha / Seus olhos /
Tão abertos quanto a sua boca / Já não vêem mais /
Que eu não tenho emenda / Nem vim de encomenda
/ A vida que eu levo é só minha / Me deixe ser /
Minha mãezinha / Suas mãos / Que deviam ser
carinho como o coração / Hoje são cerradas e lacradas
/ Como um cofre de um banco qualquer / Você antes
de mãe é uma mulher / Caminho / Só eu sei do meu
caminho e o quanto eu caminhei / O que aprendi /
O que errei / Só eu canto a dor que é minha / Me
deixe só minha mãezinha / Não me mime / Não me
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mime / Não me mime mamãe / Não me mime mais
(“Minha mãezinha”, Ângela Rô Rô, 1979).
A autora, mesmo não usando grandes construções metafóricas nem recursos
mais elaborados de literariedade, é perspicaz em mostrar o choque de gerações
entre uma mãe conservadora ainda apegada às tradições sociais e uma filha que
não se submete a isso: “Sua voz tão difícil de calar / Não me diz mais nada / Já não
carrega mais o doce mel / Da abelha rainha / Me deixe em paz / Minha mãezinha”. Essa
filha é uma mulher que não está disposta a repetir a trajetória de vida das suas
antecessoras familiares: “Que eu não tenho emenda / Nem vim de encomenda / A
vida que eu levo é só minha / Me deixe ser / Minha mãezinha”. Na sequência, lamenta
a falta de carinho devido aos conflitos constantes: “Suas mãos / Que deviam ser
carinho como o coração / Hoje são cerradas e lacradas / Como um cofre de um banco
qualquer”. E ainda, evoca o lado feminino de sua mãe a se manifestar: “Você antes
de mãe é uma mulher”. Além disso, tem consciência que sua trajetória será árdua
feita de desacertos, mas também, de aprendizado: “O que aprendi / O que errei / Só
eu canto a dor que é minha / Me deixe só minha mãezinha”. Finalmente, lembrando
das recomendações de Perrone (2008), quando fala da importância do refrão
como um elemento potencialmente significativo, Rô Rô, dá o tom principal a
sua letra quando diz: “Não me mime / Não me mime / Não me mime mamãe / Não
me mime mais”. Essa mulher da década de 70 não quer ser mais uma “dondoca”
idealizada pela sociedade dominada pelos homens, mas sim, ser autora da sua
própria vida.
Por outro lado, Fátima Guedes, na palavra cantada “Meninas da Cidade”, cria
uma estrutura poética densa e rica. A opacidade da letra nos remete a várias
interpretações possíveis. O que faremos nesta análise é adotar uma delas. Essa
música, além de ter sido gravada por sua autora, integrou também o repertório
de Elis Regina, em 1978, no show “Transversal do Tempo”:
São doze pancadas (doze badaladas) / Sol a pino. A
telha vã / esquenta o pó da minha casa / esquenta
a bilha d’água / De tanto que ferve na minha mão /
agulha e pano, armas de todo dia / Na minha mão
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tesouro e fé / e pé na mesma tábua em falso / (destino
e pé descalço) / Desde manhã sentada e presa aqui
/ rasgando as sedas das rainhas / os brancos das
donzelas / que no escuro da cidade alguém há de
despir / Ninguém verá tão belas / filhas da falsidade /
A vila é tão pequena e infeliz sem elas que... / (são doze
pancadas), são doze ruelas / que desgraçadamente
sempre vão dar / numa mesma praça seca / de noite
suspirada, / De noite tão imensamente farta das
paixões do dia. / De noite suficientemente larga pras
bandalharias. / Meninas que se vem chegando aqui:
/ cinturas ainda finas, medir felicidade. / No rosto a
marca dos batons / das senhoras de bem, as damas da
cidade. / No peito arfante o roxo das mordidas mais
ferozes / Filhos da mesma terra, andantes e viajores,
/ rapazes e senhores de mais realidade. / São doze
pancadas (já são doze dadas) / A lua a pino e eu já sei
/ que vou entrar na madrugada / rematando bainhas,
/ pregando rendas que amanhã vai ser / o baile das
rainhas. / Amanhã, já se sabe que elas vão fazer / a
história da cidade. / São muito cinderelas. (“Meninas
da cidade”. Fátima Guedes, 1979)
Para falar da vida das meninas de uma pequena cidade interiorana, a narração
é feita na primeira pessoa do singular. Uma costureira, em seu humilde casebre,
cose a roupa das garotas da cidade que desde cedo se prostituem. Esse enredo
traz nas suas estrofes fortes metáforas que alinhavam a tessitura do texto. Assim,
podemos ver a condição de vida simples da costureira por meio do seguinte
trecho: “Sol a pino. A telha vã / esquenta o pó da minha casa / esquenta a bilha d’água“.
A telha que não alivia o calor do sol do meio dia e aquece a água no recipiente
típico de lugarejos pobres. E ainda, a imagem dos instrumentos de trabalho em
ebulição nas mãos castigadas de tanto trabalhar, os pés na tábua da casa simples
lembrando os movimentos repetitivos típicos da profissão: “De tanto que ferve
na minha mão / agulha e pano, armas de todo dia / Na minha mão tesouro e fé / e pé na
mesma tábua em falso / (destino e pé descalço) / Desde manhã sentada e presa aqui”.
Porém, o foco principal, a prostituição tão precoce e a exploração sexual
denunciadas nos versos, atingem o ápice em várias de suas construções
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metafóricas como podemos ver nos seguintes excertos: “[...] que no escuro da
cidade alguém há de despir [...] De noite tão imensamente farta das paixões do dia.
/ De noite suficientemente larga pras bandalharias [...] No peito arfante o roxo das
mordidas mais ferozes [...] Amanhã, já se sabe que elas vão fazer / a história da cidade.
/ São muito cinderelas [...]”. Outra denúncia evidenciada é que essas jovens são
levadas da cidade para serem exploradas sexualmente em outros lugares: “A
vila é tão pequena e infeliz sem elas que... / (são doze pancadas), são doze ruelas / que
desgraçadamente sempre vão dar / numa mesma praça seca / de noite suspirada,”.
Uma característica marcante, que nos remonta ao Simbolismo, são as partes em
que a autora se refere às doze pancadas ou doze badalas: “[...] São doze pancadas
(doze badaladas) [...] (são doze pancadas), são doze ruelas [...] São doze pancadas (já são
doze dadas) [...]”. Essas expressões lembram os sinos das igrejas que simbolizam
a ligação entre o céu e a terra. A representação da voz de Deus no som de bronze
fazendo o chamamento para seus filhos. Guedes, também clama a Deus, convoca
o povo para ver o destino desgraçado das nossas meninas.
Considerações Finais
Analisar o que o eu lírico feminino tinha a dizer nos anos de 1970 enquanto
autoria feminina implicou em pesquisar o caráter literário das letras de música
e as produções da MPB na década em questão. Essa viagem no tempo e no
espaço por meio de vários autores e o encontro com as composições femininas
da época, nos fez confirmar que nesta pesquisa trilhávamos um caminho muito
rico, e ainda, pouco explorado no meio acadêmico.
Devido à necessidade de criar critérios para selecionar as compositoras, além de
fazer um recorte na obra delas, temos consciência de que este estudo abrangeu
apenas um dos vários aspectos que podem e devem ser estudados com relação
à contribuição feminina na nossa música.
Por se tratar de um estudo literário, no que tange à relação das composições
com as estéticas literárias brasileiras constatamos que em geral elas configuram
o Modernismo, salvo, algumas marcas do Barroco, em “Essas Mulheres”, e do
Simbolismo, em “Meninas da Cidade”. Já, no que se refere ao contexto histórico
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da época, observamos que nossas mulheres lutavam não só contra a ditadura
daqueles anos, mas contra toda a discriminação e repressão que sofreram ao
longo da história. Certamente, o que elas tinham a dizer no âmbito da canção
popular nos trepidantes anos de chumbo, além da intuição feminina tão peculiar,
alçava vôo mais altos, fora do alcance da realidade que podia se ver na época,
o que nos remete à concepção moderna da teoria literária. Elas possuíam uma
visão das coisas como ainda não tinham sido vistas e que eram profundamente
autênticas em si mesmas.
Dessa forma, terminamos a análise das letras que falam sobre “essas mulheres”,
retomando o quanto elas se anteciparam ao seu próprio tempo, e que, assim como
Ana Terra, na composição de “Essas Mulheres”, preconiza a multiciplicidade
feminina. Fátima Guedes, por sua vez, também prevê a exploração sexual e
infantil das meninas e mulheres nascidas em lugares pobres, o que, infelizmente
e desgraçadamente, ainda ocorre em pleno século XXI. Além disso, Joyce em
sua canção “Feminina” retrata uma relação mais harmoniosa e poética entre
mãe e filha, discutindo sobre o que é ser feminina. Enquanto, Ângela Rô Rô,
aborda a falta de diálogo de uma matriarca conservadora querendo submeter
sua filha a convenções sociais. Porém, essa jovem mulher rebelde não se
deixa dominar e escolhe seguir a sua vida reescrevendo uma nova história, e
consequentemente, revelando-se uma nova mulher, feita de sombra e tanta luz,
o seu maior legado.
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AS TENDÊNCIAS MODERNAS E PÓS-MODERNAS
NA LITERATURA BRASILEIRA E A RELAÇÃO
COM POESIA MARGINAL DOS ANOS 70
Maitê de Souza Cosmi1*
Vera Márcia S. de Toledo2**
Resumo
O objetivo principal deste trabalho é expor, de maneira contextualizada,
as transformações poéticas ao longo do século XX, que corroboraram para o
surgimento da Poesia Marginal brasileira produzida nos anos 70. Discute-se
a relação entre o Movimento Modernista dos anos 20 e a heterogeneidade do
Pós-Modernismo, fazendo referência às repressões político-culturais a fim de
problematizar as questões de liberdade de criação, inovação e originalidade
poética.
Palavras-chave: Poesia Marginal, Concretismo, Movimento Modernista.
Abstract: The main objective of this work is to expose, in context, the poetic
transformations throughout the twentieth century, which confirmed the
emergence of marginal poetry in 70’s . We intend to discuss the relationship
between Modernist Movement of 20’s and heterogeneity of post-modernism,
linking the political and cultural repression in order to problematize the issues
of freedom of creation, innovation and poetic originality.
Keywords : Marginal poetry, Concretism, Modernist movement.
Introdução
Pretendemos fazer um percurso de volta à história e tomar como ponto de partida
o fim do século XIX e início do século XX, a fim de discutir, modestamente, o
nascimento da Poesia Marginal (já na década de 70, do século XX), juntamente
1- *Graduanda em Letras Português/Inglês da Faculdade Saberes . Autora deste trabalho. En�
dereço eletrônico: [email protected]
2- **Professora Mestre em Estudos Literários da Faculdade Saberes.Orientou e revisou este tra�
balho. Endereço eletrônico: [email protected].
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com seus conceitos e definições, a qual jamais poderia ser compreendida fora
de sua contextualização histórica, levando em consideração os fatos e razões
relevantes à sua criação e disseminação.
As obras poéticas criadas no Brasil dos anos 70 (do século XX), dotadas de
características predominantemente espontâneas, despretensiosas, coloquialistas,
imediatistas e divulgadas sob a mira da política e da polícia, são definidas como
parte da herança deixada pelo Movimento Modernista associada à herança
deixada pela repressão do governo militar, instaurada no país.
A poesia assumiu uma forma de protesto, desenvolvendo-se sob a perspectiva
de uma obra de domínio público. Foi denominada, segundo CAMPEDELLI
(1995), “marginal” por opção, visto que circulava fora dos padrões e dos
circuitos comerciais dos livros, por ser pichada nos muros, circular de mão em
mão, ser impressa por mimeógrafos, em offset, em folhetos distribuídos em bares
e em portas de eventos culturais, na maioria das vezes pelos próprios autores.
Mais do que isso, a Poesia Marginal subverteu os padrões literários clássicos, no
plano específico da linguagem, e se opôs radicalmente à política cultural, que
sempre dificultou o acesso do público à literatura e a veiculação de materiais
considerados não-legítimos pela crítica.
Podemos afirmar que a luta dos cidadãos brasileiros pela liberdade, na
totalidade da expressão, é histórica e interminável, adquirindo cada vez mais
força através dos séculos. A Proclamação da República, no ano de 1889, remeteu
toda a sociedade, do fim do século XIX, a uma ideia de autonomia e liberdade,
como foi publicado no Jornal A República, em 1870, através do Manifesto
Popular. O documento deteve-se em criticar severamente o regime monárquico
e propunha o estabelecimento de uma federação embasada na liberdade de
ação e independência das províncias, além de defender os ideais de “liberdade
individual”, “liberdade econômica”, “direitos da nação”, “opinião nacional”,
entre outras questões. Mas, como afirmado por CARVALHO (1980), “o povo
estava sendo admitido numa história em que, na realidade, não entrou e com
uma identidade que também não era sua.”
As ideias de renovação e o Movimento Modernista
A primeira metade do século XX foi marcada mundialmente por diversas crises
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e por duas grandes guerras, acarretando em intensas transformações no âmbito
político e econômico das sociedades. Na Europa e no Brasil, este período foi
caracterizado pela tentativa de reformulação e renovação dos valores culturais
e artísticos. De acordo com HELENA (2003), “todos estavam de acordo com o
fato de que se revelavam falidos os moldes acadêmicos e conservadores de uma
arte envelhecida e cristalizada”.
Durante este período surgem, na Europa, os movimentos artísticos denominados
vanguarda, de fundamental importância para a atitude modernista e pósmodernista. As vanguardas são uma forma de posicionamento frente a um
passado considerado estagnado, buscando a transformação e a progressão de
uma determinada arte.
As vanguardas, hoje históricas, foram movimentos
altamente radicais que alteraram os rumos da
literatura e das demais artes. O Futurismo (1909), o
Expressionismo (1910), o Cubismo (1913), o Dadaísmo
(1916) e o Surrealismo (1924) foram os principais
resultados desta atitude artística e cultural de
contestação de um mundo em crise. Apesar de suas
grandes diferenças, todos estes movimentos tiveram
em comum o questionamento da herança cultural
recebida. (HELENA, 2003, p.05)
Estes conceitos de renovação foram trazidos e disseminados no Brasil através
das viagens de grandes intelectuais e artistas à Europa, que se posicionaram
como questionadores dos padrões literários vigentes no cenário cultural da
época.
O acordo que fomentou a famosa Semana de Arte Moderna de 1922, consolidando
o moderno e enriquecendo a linguagem literária de novas formas de expressão,
era de que a arte encontrava-se cristalizada e ultrapassada. É o momento
“heroico” do Modernismo. O impacto entre os movimentos das vanguardas
europeias e as condições culturais e políticas que nos eram peculiares, como
o nacionalismo, foi de extrema relevância para a concepção das principais
características do moderno e sua forma multifacetada, como a liberdade formal
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de uma nova linguagem; as individualidades independentes; as motivações
subconscientes; a descontração e a irreverência; a paródia; o verso livre e a fala
popular.
A Semana ecoou na imprensa e abriu caminho
para a difusão dos três princípios fundamentais do
modernismo brasileiro, segundo Mário de Andrade: o
direito permanente à pesquisa estética; a atualização
da inteligência artística brasileira; a estabilização de
uma consciência criadora nacional. (HELENA, 2003,
p.47)
Dentre os que fizeram parte do nascimento do Movimento Modernista destacamse alguns nomes como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti,
Graça Aranha e Oswald de Andrade.
Em meio a estes intelectuais, artistas, defensores e criadores dos ideais de
renovação estética, pode-se destacar Oswald de Andrade como o maior
proliferador de estilos modernos e o principal influenciador dos Movimentos
Concretista e Marginal. Escritor, polemista e autor de obras de efeito crítico,
irônico e humorístico à luz de uma linguagem clara, sintética e moderna,
suas obras retratam um olhar próprio e questionador, tecendo quase sempre
uma crítica sobre o cotidiano ao seu redor, como é perceptível em suas obras.
Representou, no Brasil, o papel de “anfitrião”, semelhante ao papel que outros
autores desempenharam em capitais de grandes turbilhões artísticos, devido as
suas longas viagens ao exterior e seu permanente contato com personalidades e
artistas renomados. Destacou-se também na autoria de vários manifestos, dentre
eles o Manifesto Antropófago, publicado na Revista da Antropofagia, em 1928, que
define-se ao centro do nacionalismo como problemática central na arte moderna,
questionando basicamente a estrutura política e econômica implantada no país
pelos colonizadores, além do indianismo ufanista e os padrões repressivos de
conduta pertencentes a sociedade patriarcal. Sua publicação foi considerada
ultrajante e de mau gosto pelas elites e pela classe média.
A metáfora da “devoração” significa a assimilação crítica dos valores transmitidos
pela colonização com a finalidade de formar outros valores então reprimidos.
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[...] Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o
Brasil tinha descoberto a felicidade. Contra o índio
de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de
Catarina de Médicis e genro de D. Antonio de Mariz.
[...] Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de
D.João VI. [...] A luta entre o que se chamaria Incriado
e Criatura – ilustrada pela manifestação permanente
do homem e seu Tabu. [...] Antropofagia. Absorção
do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A
humana aventura. A terrena finalidade. [...] Contra a
realidade social, vestida e opressora, cadastrada por
Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem
prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de
Pindorama. (ANDRADE, 1928)
No panorama político dos anos 30, a ascensão de Getúlio Vargas e a proclamação
do Estado Novo despertaram em Oswald um desejo ainda maior de “desmascarar
os mecanismos da opressão nacionais e internacionais” (SCHWARTZ, 1980). O
Modernismo mostra-se inserido em uma totalidade histórica em continuidade.
Ao término da Segunda Guerra mundial, surgem novas experimentações
poéticas colocando em questão os padrões de criação conquistados pelos
modernistas. A tendência é a de os novos poetas revigorarem o rigor formal
do verso abandonando o poema-piada, voltando-se à investigação do
comportamento e atitudes do ser humano (Drummond, Murilo Mendes, Cecília
Meirelles, Vinicius de Moraes). A preocupação com o contexto sócio-político é
deixada de lado. Oswald de Andrade, como o grande idealizador do acréscimo
do humor e crítica na atitude poética, cai no ostracismo, mesmo antes de sua
morte, sendo acusado de “só fazer piada.” No entanto, o humor presente em
suas criações poéticas é um humor emanado de seu próprio caráter transpostos
em suas obras, não se configurando em uma categoria poética.
Poesia Concreta
“O signo é contra a vida, a arte pretende ser um signo de recuperação da vida,
memória da carne.” (PIGNATARI, 1971)
Singular por sua proximidade as artes visuais, e dotado de características
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contraditórias, o Movimento Concretista surge no segundo pós-guerra, onde
o desejo de transformação e reconstrução está ainda mais aguçado. O abismo
formado entre a poesia e os fatos reais pela Geração de 45, levou o núcleo inicial
concretista, formado pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e por Décio
Pignatari, a pesquisar novas formas de expressão poética.
Interligados a Oswald de Andrade e unindo-se a músicos, artistas e seguindo
tendências de poetas estrangeiros como Ezra Pound e Mallarmé, que já
apresentavam inovações tipológicas em suas obras, os concretistas colocaram
em questão os ideais modernistas clássicos, visando o enraizamento da Poesia
Concreta. A nova poética repercutiu nacionalmente obtendo reações de apoio
ou espanto e foi noticiada por jornais e revistas de grande circulação da época.
Com a publicação do Plano Piloto da Poesia Concreta na edição nº 04 da Revista
Noigrandes, assinado pelo trio criador do movimento, assim como a própria
revista, os contatos internacionais são ampliados bem como as discussões
oficiais acerca do tema.
Desenham os poemas concretos, características como a substituição do eu lírico
por uma superfície visual e gráfica que vem a desintegrar estruturalmente o
verso, incorporando dimensões sonoras, gráficas, sintáticas e semânticas às
palavras, trazendo para a poesia a presentificação da realidade. Como afirmado
por SIMON e DANTAS (1982, p. 07),
[...] A forma concreta buscada e defendida, opera uma
atualização radical nos recursos materiais (métrica,
rima, aliteração, paranomásia, cortes e repetições de
frase, neologismos, inversões sintáticas, plasticidade
da letra impressa, etc.) que se encontram dispersos e
rarefeitos na poesia tradicional.
Todas as características e particularidades presentes nas obras concretas têm a
tarefa política de romper padrões estéticos tradicionais quebrando hábitos de
leitura e formas pré-estabelecidas de comunicação, remetendo a cada poema
uma espécie de mistério, enigma a ser desvendado e decifrado através da
sensibilidade do leitor. Há uma ligação entre o mais antigo e o mais moderno
resultando em uma intensa atividade teórica e crítica.
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(Haroldo de Campos - 1958)
O grande foco da Poesia Concreta foi a problematização da consciência política
de subdesenvolvimento e a produção de poesia que estivesse equiparada a uma
sociedade mais moderna e a utopia de transformar a arte de uma sociedade
livre.
A Poesia Concreta teve diversas ramificações dentro do próprio cenário poético
e artístico como, por exemplo, o surgimento da Poesia Praxis e do Poema
Processo. A estóica Ditadura Militar implantada no Brasil primeiramente no
governo Vargas, culminando em 1964 no Golpe Militar, ultrapassou o primitivo
conceito difundido entre a sociedade de um governo que derrubou um estado
reformista através de forças políticas internas e externas. Apesar da censura, as
manifestações culturais e a crítica ainda mantiveram-se acesas e intensas.
A representação que levou ao ápice todos os conceitos concretistas, por
estar diretamente ligado aos meios de comunicação das grandes massas, foi
o Movimento Tropicalista que entra em cena rompendo com os padrões
das letras das músicas da época então estabelecidos pelo governo ditatorial,
transformando suas próprias canções em um veículo de ataque político.
Segundo a definição de PAIANO (1996), o Tropicalismo seria uma “mistura
de influências positivas (antropofagia, concretismo) e negativas [...] a realidade
tropical nacional seria uma “geléia geral”, não algo contínuo e homogêneo, mas
uma coisa interrompida, fragmentária e mesmo contraditória.”
As canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil, apresentadas pela primeira vez no
III Festival da Canção exibido pela TV Record, chocaram os jurados e o público,
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por apresentarem uma mistura de instrumentos elétricos, palavras, gritos,
instrumentos regionais e uma boa dose de agressividade na interpretação. A
amplitude do Tropicalismo estendeu-se para o teatro, com o Grupo Oficina,
para as artes plásticas, com as obras de Helio Oiticica e para o cinema, com as
adaptações de Glauber Rocha, atraindo um público em sua maioria formado
por estudantes ávidos pelas mensagens políticas contidas nas canções.
Sobre a cabeça os aviões
sob os meu pés os caminhões
aponta contra os chapadões
meu nariz
eu organizo o movimento
eu oriento o carnaval
eu inauguro o monumento
no planalto central do país [...]
(Caetano Veloso – Tropicália - 1968)
O “sufocamento” de todas essas manifestações artísticas se deu no ano de 1968,
precisamente no dia 13 de dezembro, dia em que o governo militar decretou
o Ato Institucional nº 5 em decorrência, principalmente, da crise geral da
economia instalada no país e da desestabilização da base militar do governo,
gerando falhas na condução da crise econômica e da política instalada. De acordo
com CHIAVENATTO (1999), “[...] o ato dava tantos poderes ao presidente,
aumentando a repressão e a censura à imprensa, que qualquer oposição real
tornou-se impossível [...] o único caminho era a luta clandestina.” É o ano do
apogeu histórico da cultura vanguardista e revolucionária.
Durante os “Anos de Chumbo”, posteriores ao famigerado AI-5, o país
sucumbiu à total miséria moral e política. O fortalecimento da censura, a severa
repressão à liberdade de expressão e a adoção da tortura como prática política,
contribuíram para o abalo profundo do panorama cultural da época. Em 1969,
vários artistas e literatos foram presos e exilados do país, como Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Chico Buarque de Hollanda, Haroldo de Campos e Augusto de
Campos.
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A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão, viu? [...]
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
(Chico Buarque de Hollanda – Apesar de você – 1970)
A Poesia Marginal dos anos 70
Em pleno ápice da repressão militar, no início da década de 70, após toda a
construção (ou desconstrução) dos novos padrões estético-literários e culturais
através do século XX, o cerne da nossa discussão é uma poesia não unificada
e acusada de subverter os padrões literários clássicos dominantes, possuidora
de uma realidade precária no que diz respeito ao alcance do público, porém
detida em explorar e utilizar a palavra em toda a sua forma verbal, visual e oral.
Trata-se da Poesia Marginal, símbolo da contestação social e política, da busca
da liberdade de expressão e de um padrão de vida diferente daquele que estava
instaurado no país.
Questionadora de si mesma, rebelde e revolucionária, a nova poesia rompe com
todo o hermetismo literário tradicional, abandona a expressão intelectualizada
e se lança, de acordo com a crítica, de maneira “não-literária”. É o início da PósModernidade, um encontro de diversas tendências, onde não há preocupação
com as coerências estilísticas classicizantes de outrora. Cada obra se transforma
em única e exclusiva, sem limites cronológicos e espaço, importando somente
sua característica enigmática e a interpretação pessoal do leitor.
Este novo momento poético se deu a partir de uma contra-revolução, que tem
como elemento principal a herança do radicalismo tropicalista estabelecendo
um elo com os traços modernos Oswaldianos e vanguardistas, além do conceito
concretista reformado e os elementos musicais revolucionários pós-tropicalistas.
A Antropofagia se mostra mais do que presente, com a adoção do ideal de
assimilação total para uma posterior devolução renovada.
O Marginalismo tem como produto principal poemas de domínio público,
segundo CAMPEDELLI (1994), os poetas jovens foram “contra as portas
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fechadas da ditadura, contra o discurso organizado, contra o discurso culto e
contra a poesia tradicional e universal”. Sendo assim, podemos reafirmar que a
Poesia Marginal é a herança dos traços modernistas, questionados e modificados
pelo concretismo, gerando o desabafo e protesto de uma geração reprimida e
hermética, sobrevivente de um tempo nebuloso, a “geração AI-5.”
[...] foi uma manifestação de denúncia e de protesto,
uma explosão de literatura geradora de poemas
espontâneos, mal-acabados, irônicos, coloquiais,
que falam de um mundo imediato do próprio poeta,
zombam da cultura e escarnecem a própria literatura
[...] a poesia que os jovens poetas apresentaram
distribuída de mão em mão, impressa em
mimeógrafo, declamada em bate papos de botecos
[...] redimensionou um conceito démodé de poeta,
visto como alguém recolhido, sofrido e abatido.
(CAMPEDELLI, 1995, p.10-11)
Os muros ficaram tomados pelas pichações, as ruas de folhetos mimeografados.
Colagens, paródias, jornais e revistas revelaram o nascimento e o florescimento
de poesias espontâneas, dotadas de uma linguagem informal, irônica e bem
humorada que conquistaram e estreitaram os laços entre o poeta e o leitor. Essa
conquista do público jovem pela poesia marginal se dá a partir dos versos,
utilizados como contestadores político-sociais de uma realidade cotidiana
imediata. Há também uma identificação emotiva do leitor jovem com a poesia,
visto que ela também é feita por jovens poetas.
A precariedade da produção e veiculação das novas obras poéticas também
atraiu os novos leitores, visto que as edições eram produzidas pelos próprios
poetas e circulavam exteriormente às rodas comerciais dos livros. O valor
poético transferira-se para o fascínio da atitude do lançamento independente,
contribuindo, assim, para uma leitura mais aberta e menos mitificada.
Como produção, adota-se a prática artesanal e o financiamento das próprias
obras por parte dos autores já não era nova, pois já fora adotada por poetas
como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade
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e João Cabral de Melo Neto. Porém, fazia parte da ideologia de oposição
marginalista ao mercado editorial que sempre dificultou o acesso do público
a literatura. (MATTOSO, 1981) defende que a produção clandestina era eficaz
para o controle ideológico exercido sobre a literatura impressa na época, ou seja,
os editores não queriam ver seus livros barrados pela censura ou apreendidos.
Diversas fontes de pesquisa sobre a Poesia Marginal apontam como o “portavoz” do movimento, o poeta Torquato Neto seguido de Wally Salomão, por
serem considerados “os que melhor representam as últimas tendências do tempo:
verdadeiros pais fundadores do que seria essa vanguarda.” (CAMPEDELLI,
1995, p.33). Juntamente com os trabalhos de Chacal e Charles e Gilberto Gil,
toda a “miscelânia” desse movimento mutante resultou, em 1972, na criação
de uma das primeiras obras que caracterizam a poesia marginalista, Me segura
qu’e eu vou dar um troço, publicada por Wally Salomão após a morte de Torquato
Neto. Segundo HOLLANDA (2007), esta obra unida a estes dois autores são
indispensáveis, pois marcam a virada do formalismo experimental para a nova
produção poética de caráter informal.
Um poeta desfolha a bandeira
E a manhã tropical se inicia
Resplandente, candente, fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geleia geral brasileira
Que o Jornal do Brasil anuncia
É bumba- iê iê boi...
Ano que vem, mês que foi,
É bumba iê iê iê
É a mesma dança meu boi [...]
Um poeta desfolha a bandeira
E eu me sinto melhor colorido,
Pego um jato viajo, arrebento
Com o roteiro do sexto sentido[...]
(Torquato Neto e Gilberto Gil – Geleia Geral – 1968)
Publicações alternativas disseminaram-se rapidamente nessa época, com
destaque para o novo formato jornalístico, com publicações como Bondinho,
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Flor do Mal e O Pasquim (CAMPEDELLI, 1995). Na literatura, destaca-se o
surgimento das revistas-símbolo da Poesia Marginal, como Navilouca, Pólem e
Poesia em greve. Ao final dos anos 70, vários eventos afirmaram a poesia marginal
como uma opção. Um acontecimento de grande destaque foi o Poetasia – chuva
de poesia, que consistiu no lançamento de 40 mil folhetos do alto do Edifício
Itália, no centro de São Paulo.
Segundo o poeta LEMINSKI (1997), autor de várias obras lançadas, já nos anos
80 como Caprichos e Relaxos (1983), Agora é que são elas (1984) e La vie em close
(1991), havia uma facilidade em se criar e ler poesias ficando as obras voltadas
para o que jamais deixara de ser: uma arte aplicada ao fluxo verbal. Paulo
Leminski foi um verdadeiro “fabricador” de sensações. Seus versos são concisos,
muito rápidos e magnéticos, visto que ele “conjugava a densidade fulminante
de haicais com a loucura da contracultura, o coloquialismo e o humor de nosso
primeiro modernismo com sua profunda erudição” (VAZ, 2001).
O assassino era o escriba
Meu professor de análise sintática era o tipo do
sujeito
inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida,
regular com um paradigma da 1ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto
adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas
expletivas, conetivos e agentes da passiva, o tempo
todo.
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Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
(LEMINSKI, 1985, p. 137)
(LEMINSKI, 1985, p.125)
Ainda na década de 70, foram publicadas algumas antologias com o objetivo
de organizar a produção da poesia Marginal. Dentre elas, uma das que mais se
destacou foi 26 poetas hoje, em 1975, que reúne os trabalhos de vinte e seis poetas
cariocas e foi organizada por uma das primeiras estudiosas desta manifestação
poética, Heloísa Buarque de Hollanda¹. A obra contém, além da reunião de
obras de alguns poetas cariocas, comentários críticos sobre o marginalismo e os
argumentos da autora acerca da escolha de seu objeto de pesquisa.
Não quis que esta antologia fosse o panorama da
produção poética atual, mas a reunião de alguns dos
resultados reais significativos de uma poesia que se
anuncia já com grande força e que, assim registrada,
melhor se oferece a uma reflexão crítica [...]. Entretanto
como o fato é novo e polêmico e a discussão apenas
se inicia, achei mais justo não me restringir apenas
à chamada poesia marginal, que integra parte
substancial da seleção, mas estendê-la a outros poetas
que, de forma diferenciada e independente, percorrem
o mesmo caminho. (HOLANDA, 2007, p.14)
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Nesta obra, a principal análise da autora quanto ao fenômeno marginalista
se refere a seus traços paradoxais. O olhar é voltado para a ideia de uma
poesia aparentemente leve e bem humorada, mas que, em suas entrelinhas,
revela a realidade de uma geração marcada pela imposição de limites, através
da censura, cerceando sua liberdade. Para uma definição concisa do que é a
poesia marginal, a autora argumenta que, devido ao ecletismo das produções,
elas não podem ser consideradas fruto simplesmente de uma “tendência” ou
“movimento”, mas sim que
[...] essa poesia seria uma alternativa à hegemonia das
vanguardas, da tradição cabralina bastante influente
naquele momento, e que parecia representar uma
retomada do modernismo de 1922 [...] tomando por
base o uso do humor, a invasão dos fatos insólitos e
cotidianos no território literário, a presença de uma
dicção trabalhadamente informal no olimpo poético,
o desejo renitente de aproximar, com um só golpe de
linguagem, arte e vida. (HOLLANDA, 2007, p. 260)
Os trabalhos poéticos que compõem a obra 26 poetas hoje obedeceram a um
critério de escolha pautado na variedade de estilo dos poetas e suas poesias,
apesar do momento demasiadamente rigoroso da censura no país. A publicação
do livro não foi muito bem recebida pela crítica e pela academia. Um dos
argumentos apresentados por eles foi quanto à inadequação do uso de palavras
de baixo calão, que faziam dos poemas marginais obras “não-poéticas”, mas
sim um material de cunho especificamente sociológico.
Fazem parte dessa antologia trabalhos de poetas como José Carlos Capinan, Ana
Cristina César, Torquato Neto, Chacal, Charles, Roberto Schwarz, Waly Salomão,
entre outros, e neles são relatadas experiências cotidianas em um formato de
diário, e onde podemos encontrar todas as características marginalistas aqui
citadas que compõem o cenário poético setentista.
[...]
Aqui estão os arcanjos:
o nome dele, sacrifício; o meu, clemência.
Na multidão a demência se anuncia
E eu grito entre meu gesto e o precipício.
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Por que não digo
E não exalto a vertigem?
Por que não digo
que a minha juventude se fecha atrás do refúgio
de um poema? [...]
(Capinan – Anima – in: HOLLANDA, 2007 p.69)
Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não soube e digo
da palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto
(Ana Cristina César – Psicografia - in: HOLLANDA,
2007, p.142)
[...]
uma
palavra
escrita é uma
palavra não dita é uma
palavra maldita é uma palavra
gravada como gravata que é uma palavra
gaiata como goiaba que é uma palavra gostosa
(Chacal – Papo de Índio – in: HOLLANDA, 2007,
p.223)
olho tapado no joelho
outro tapeando entre as pernas
conversas caretas de artistas fardados
quadro rasgado no meio da parede
confiança em mim
(Charles – Circo abafado - in: HOLLANDA, 2007,
p.232)
[...]
O cidadão que vejo no espelho
é mais moço que eu
mais eriçado que eu
mais infeliz que eu
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Roberto Schwarz – Ulisses - in: HOLLANDA, 2007,
p.85)
Considerações finais
Podemos concluir através do presente trabalho, sem a impossível pretensão
de finalizar a discussão acerca do tema, que a explosão da Poesia Marginal
dos anos 70, no Brasil, e seu espantoso número de poetas não surgiram de um
vazio sem fundamento e descontextualizado, mas foram, sim, fruto do amplo
processo de modificações em nosso cenário literário associado aos ideais de
livre criação, do humor como atitude poética relativizada no marginalismo e de
uma época e um momento político em que os sentimentos revolucionários e de
liberdade de expressão estavam mais do que aflorados. O único vazio existente
estava no reprimido cenário político-cultural dos anos 70. A novidade de um
novo panorama poético com um produto original, de fácil acesso, ideológico e
dramático, biograficamente falando, despertou e recuperou o interesse do jovem
público pela leitura, por levar a uma proximidade e uma certa identificação
entre o poeta e o leitor. Este, por sua vez, se sente entendido pelo poema e
pelo poeta. O marginalismo faz um resgate das propostas do Modernismo dos
anos 20, porém vai além com sua marca coloquialista e despreocupação com
os traços estilísticos tradicionais, inserindo e exibindo a poesia marginal das
mais diversas formas e nos mais diversos ambientes, transformando-a em um
fenômeno difícil de ser ignorado e complexo de ser explicado na totalidade.
Referências
ALENCAR, C; CARPI, L; RIBEIRO, M.V. História da sociedade brasileira. Rio
de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996.
ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. In Revista de Antropofagia, Ano
1, n° 1, maio de 1928
CARVALHO, J. M. A Construção da ordem. A elite política imperial. Rio de
Janeiro: Campos, 1980.
CHIAVENATO, J.J. O golpe de 64 e a ditadura militar. São Paulo: Moderna,
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1994.
CAMPEDELLI, S. Y. Literatura, história e texto. São Paulo: Saraiva, 1994.
_________________. Poesia Marginal dos anos 70. São Paulo: Scipione, 1995.
HELENA, Lúcia. Modernismo brasileiro e vanguarda. 3.ed. São Paulo: Ática,
2000.
HOLLANDA, Heloísa Buarque (Org). 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano,
2007.
LEMINSKI, P. Caprichos e Relaxos. 3ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
____________. Ensaios e anseios crípticos. Curitiba: Pólo Editorial do Paraná,
1997.
MATTOSO, Glauco. O que é poesia marginal. São Paulo: Brasiliense, 1981.
PAIANO, Enor. Tropicalismo : bananas ao vento no coração do Brasil. São
Paulo: Scipione, 1996.
TELES, G. M. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro. 17 ed. Rio de
Janeiro: Vozes, 2002.
VAZ, T. Paulo Leminski: o bandido que sabia latim. Rio de Janeiro: Record,
2001.
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SOBRE A DIMENSÃO MÍSTICA DO RIO NA OBRA
DE GUIMARÃES ROSA
Mauro Leite Teixeira1*
Vera Márcia Soares de Toledo2**
Resumo
Uma reflexão sobre o rio no imaginário e na obra literária curta de João
Guimarães Rosa, a partir do conto “A terceira margem do rio”.
Palavras-chave: Narrativa, imaginação literária, rio, fluxo contínuo.
Abstract: A reflection about the river and the imagination in the literary
narrative of João Guimarães Rosa, principally in “A terceira margem do rio”.
Keywords: Narrative, literary imagination, river, flux.
“Quem desconfia fica sábio.”
J. Guimarães Rosa
Muitas são as possibilidades de leitura da obra de Guimarães Rosa. Ando “ruminando” o conto: “A Terceira Margem do Rio”, há algum tempo. Nesse conto,
um homem do sertão de Minas, cumpridor, ordeiro, positivo e quieto, enigmaticamente, entra numa canoa, de pau de vinhático, e vai viver no meio do rio, sem
nunca mais tocar em terra, resistindo ao apelo de sua família para que volte. Seu
filho permanece à beira do rio e não corresponde, quando desafiado a substituir
o pai na canoa. Em consequência, vai ficar para o resto da vida paralisado pelo
remorso.
1- * Engenheiro e graduando em História pela Faculdade Saberes. Autor deste trabalho. Endereço
eletrônico: [email protected].
2- ** Professora Mestre em Estudos Literários da Faculdade Saberes. Orientou e revisou este
trabalho. Endereço eletrônico: [email protected])
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A paisagem dos gerais em toda a sua beleza selvagem, o rio, a gente rude
do sertão, vaqueiros, jagunços, cantadores, prostitutas, sitiantes, pertencem ao
universo e à peculiar capacidade de transmissão de seu mundo, pelo escritor.
Desde sua meninice, disse Guimarães Rosa em entrevista, o rio habita o seu
imaginário:
[...] Aproveitar um fiozinho d’água, que vinha do
posto das lavadeiras, e mudar-lhes duas vezes por dia
o curso, fazendo-o de Danúbio ou de São Francisco, ou
de Sapakral-la (velho nome inventado), com todas as
curvas dos ditos, com as cidades marginais marcadas
por grupos de pedrinhas; tudo isso sob o vôo matinal
das maitacas de Nhô Augusto Matraga, no quintal
[...]. (Rosa, 1974, p. 11)
No cenário presente no conto e em toda a obra literária do escritor, o rio
aparece com uma dimensão relevante e mística. É como se fosse, também, um
personagem vivo com mensagem a ser decifrada.
A obra “O Burrinho Pedrês”, do livro Sagarana, é o relato sugerido por um
acontecimento real passado no sertão de Minas com um grupo de vaqueiros
na travessia de um córrego cheio. “Noite feia! Até hoje ainda é falada, a grande
enchente do Córrego da Fome, com oito vaqueiros mortos, indo córrego abaixo,
de costas [...]” (ROSA, 1984, p. 78). Somente sobreviveu à fúria da enchente a
montaria do velho burrinho que sentiu o “[...] tempo de escolher o rumo e fazer
parentesco com a torrente [...]” (ROSA 1984, p. 75). O burrinho, denominado
“Sete de Ouros”, parece captar e entender a linguagem do rio: “(...) sem susto a
mais, sem hora marcada, soube que ali era o ponto de se entregar, confiado, ao
querer da correnteza[...]” (ROSA, 1984, P. 79) e revelar sua sabedoria, salvando
o vaqueiro de também morrer afogado.
No livro A Hora e a Vez de Augusto Matraga, o personagem Nhô Augusto, no
retorno, em busca de sua hora e sua vez, se extasiava com as coisas bonitas, e o
rio simbolizava a beleza de se espiar:
[...] As estradas cantavam. E, uma vez, teve de escapar depressa, para a meia encosta, e ficou a contemSABERES Letras
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plar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante
ao tropel de uma boiada de duas mil cabeças, que rolava para o Itacambira, com a vaqueirama encourada,
cantando cantigas do alto sertão [...] (ROSA, 1984, p
376).
No conto “Duelo”, do livro Sagarana, Turíbio Todo, nascido à beira do Borrachudo, seleiro de profissão, a partir de uma morte de vingança por engano,
envolve-se numa contenda. O seleiro que “iludido por grande parecença” eliminara não Cassiano Gomes, o amante de sua mulher, de grandes olhos bonitos
de cabra tonta, mas seu pacato irmão. Turíbio Todo soube do erro, ao subir no
estribo. “Enterrou as esporas e partiu desmanchando poeira no chão” (ROSA,
1984 p. 160). Cassiano Gomes acompanhou o corpo do irmão ao cemitério e
depois comprou a besta douradinha e partiu no encalço de Turíbio Todo para
acertar as contas. Busca de pistas e rastros “sempre beirando o Guaicuí, que só
vadeou no lugar bonito”. No cenário desse duelo, o rio é descrito como se tivesse vida, como um bicho: [...] ”altos são os montes da Transmantiqueira, belos os
seus rios, calmos os seus vales; e boa é sua gente. [...] “E deu com um rio, verde
e guardado, um rio que a gente encontra sempre assim de repente, rio vivo,
correndo por entre os matos, como um bicho” (ROSA, 1984, p.174).
Do mesmo livro Sagarana, o conto “Sarapalha” narra o drama de dois barranqueiros. Primo Argemiro e Primo Ribeiro, ambos sofrendo com a maleita e com
a saudade da Prima Luísa, mulher do Primo Ribeiro, que fugira com o boiadeiro
da Iporanga. Primo Ribeiro pedia insistente que Primo Argemiro recontasse
a estória da moça enfeitiçada que fugiu com o capeta. Servia como alento. A
prima Luísa não foi rio abaixo com outro... Foi trem-de-ferro que levou. Mas
para o homem do sertão a fuga pelo rio seduzida pelo capeta acalentava. O rio
pertence a seu mundo e povoa suas crenças. Gostava de acreditar que a prima
Luísa fora seduzida pelo capeta e não o abandonara por simples querer.
-
Mas, a estória, Primo!...Como é?... Conta outra vez... ”Foi o moço-bonito que apareceu, vestido
com roupa de dia-de-domingo e com viola enfeitada
de fitas... e chamou a moça p’ra ir se fugir com ele”...
“Então a moça, que não sabia que o moço-bonito era o
capeta, ajuntou suas roupinhas melhores numa trouxa, e foi com ele na canoa descendo o rio...”
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-
...”Então quando os dois estavam fugindo na
canoa, o moço-bonito, que era o capeta, pegou na viola, tirou uma toada, e começou a cantar:
- “Eu vou rodando
rio-abaixo, Sinhá...
Eu vou rodando
rio-abaixo, Sinhá...”
...”Ai a canoinha sumiu na volta do rio... E ninguém
não pôde saber p’ra onde foi que eles foram, nem se a
moça, quando viu que o moço-bonito era o diabo, se
ela pegou a chorar... ou se morreu de medo... ou se fez
o sinal da cruz... ou se abraçou com ale assim mesmo,
porque já lhe tinha amor... (Rosa, 1984, p. 147 e 148)
A preocupação com a questão ambiental, tão presente nos dias de hoje, aparece
no conto “Uma estória de amor (festa de Manuelzão)”. O desaparecimento de
um riachinho, que desaguava no Córrego das Pedras, é uma tragédia semelhante à morte de um menino inocente. É como se o riacho fugisse do mundo, dito
civilizado.
“Um riachinho xexe, puro, ensombrado, determinado
no fino, com rogojeio e suazinha algazarra. [...] Então
deduziram de fazer a casa ali, traçando de se ajustar
com a beira dele, num encosto fácil, com piso de lajes,
a porta-da-cozinha, a bom de tudo que se carecia. Porem, estrito cabo de um ano de lá se estar, e quando
menos esperassem, o riachinho cessou”.
(...) “Foi no meio duma noite, indo para a madrugada,
todos estavam dormindo. Mas cada um sentiu, de repente, no coração, o estalo do silenciozinho que ele fez
a pontuda falta de toada, do barulhinho. Acordaram,
se falaram. Até as crianças. Até os cachorros latiram.
Ai, todos se levantaram, caçaram o quintal, saíram
com luz, para espiar o que não havia. (...) E o que a
tocha na mão de Manuelzão mais alumiou: que todos
tremiam magoa nos olhos. Ainda esperaram ali, sem
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sensatez; por fim se avistou no céu a estrela-d’alva.
O riacho soluço se estancara, sem resto, e talvez para
sempre. Secara-se a lagrimal, sua boquinha serrana.
Era como se um menino sozinho tivesse morrido”
(ROSA, 2001, p,163).
Mas é na sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas, que o rio compõe o cenário
com maior destaque: A palavra “vereda” do título não tem o sentido corrente
de “caminho”, mas sim o sentido regional dos campos dos gerais de “regato” ou
“riozinho”. O rio faz parte até do nome do personagem narrador. A professora
Kathrin H. Rosenfield, na publicação: Grande Sertão: Veredas – Roteiro de Leitura
menciona: “o nome Riobaldo permite ser decomposto em dois elementos: O
que designa o fluxo e a movimentação mutante da água (ri ) e o elemento baldo
que evoca a palavra dantesca baldanza, traduzível como saborear preguiçoso”.
(ROSENFIELD, 1992, p. 88).
No relato de Riobaldo Tatarana de suas “erranças”, o rio está sempre presente
nos acontecimentos por ele relembrados. No encontro com Diadorim: Riobaldo,
ainda menino, acabava de sarar de uma doença e sua mãe tinha feito promessa;
tirar esmola, metade para pagar uma missa, metade para se pôr dentro de uma
cabaça bem tapada e breada, que se jogava no São Francisco, a fim de ir, Bahia
abaixo, até esbarrar no Santuário do Santo Senhor Bom-Jesus da Lapa. Lugar
de tirar esmola era no porto. Riobaldo portando uma sacola ia todos os dias
ao porto das canoas, na beira do barranco do Rio-de-Janeiro, afluente, que dali
abaixo meia-légua, entra no São Francisco. Ele esperava por lá, naquele parado,
raro que alguém vinha. Queria novidade quieta para seus olhos.
“Ai, pois, de repente, vi um menino, encostado numa
árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco
menos do que eu, ou devia regular minha idade. Ali
estava com um chapéu-de-couro, de sujigola baixa, e
se ria para mim. [...] E era um menino bonito, claro,
com a testa alta e os olhos aos – grandes verdes [...]”.
(ROSA, 1979, p. 80)
No romance Grande Sertão: Veredas, o Urucuia, afluente do São Francisco, é o rio
do coração de Riobaldo, sempre presente nas suas andanças. O jagunço fala do
rio como se fosse com um amigo a lhe acompanhar por toda a vida.
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“Ah, o meu Urucuia, as águas dele são claras certas.
Rios bonitos são os que correm para o Norte, e os que
vêm do poente – em caminhos para se encontrar com
o sol. [...] O meu Urucuia vem claro, entre escuros.
Vem cair no São Francisco, rio capital. O São Francisco partiu minha vida em duas partes. Diadorim, os
rios verdes. Como os rios não dormem ( ROSA, 1979,
p. 235).
“O rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar
a ser mais grosso, mais fundo. O Urucúia é um rio, o
rio das montanhas. [...] Recolhe e semeia areias. [...]
Mesmo na hora que eu for morrer, eu sei que o Urucúia esta sempre, ele corre (ROSA, 1979, p. 329).
Nas suas divagações, Riobaldo recorda os dias felizes em terras da Fazenda São
Joãozinho, e o rio continua agarrado às suas lembranças:
[...] os dias que passamos ali foram diferentes do resto de minha vida. Em horas andávamos pelos matos,
vendo o fim do sol nas palmas de tantos coqueiros
macaúbas, e caçando, cortando palmito e tirando mel
da abelha-de-poucas-flores, que arma sua cera cor-derosa. Tinha a quantidade de pássaros felizes, pousando nas crôas e nas ilhas. E até peixe do rio se pescou.
[...] Então eu vi as cores do mundo. De manhã, o rio
alto branco, de neblim: e o ouricurí retorce as palmas
[...] ( ROSA, 1979, p. 115).
No ambiente sombrio onde houve ou não houve o pacto entre Riobaldo e o diabo o rio também está presente:
[...] Meia-légua dali, outro córgo-vereda, parado, sua
água sem-cor por sobre de barro preto. Essas veredas
eram duas, uma perto da outra; e logo depois, alargadas, formavam um tristonho brejão, tão fechado
de moitas de plantas, tão apodrecido que em escuro:
marimbús que não davam salvação. Elas tinham um
nome conjunto – que eram as Veredas-Mortas [...] (
ROSA, GSV, 1979, p. 303).
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No julgamento de Zé Bebelo na Fazenda Sempre-Verde, o personagem utiliza a
imagem do rio para descrever o ambiente: “[...] Aquele povo – rio que se enche
com intervalo dos estremecimentos, regular, como o piscar de olho dum papagaio [...]” (ROSA, GSV, 1979, p.197).
Para relatar sua dor, quando descobre, após a morte, que Diadorim era o corpo
de uma mulher, moça perfeita, Riobaldo clama, relembrando as águas do rio.
“Diadorim era uma mulher. [...] Uivei. Diadorim! Diadorim era mulher como
o sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero [...]” (
ROSA, 1979, p.454).
Refletindo sobre “A terceira margem” verificamos que o rio no conto é descrito
como: “[...] largo, de não se poder ver a forma de outra beira”. “Grande, fundo,
calado que sempre [...]” (ROSA, 1974, p.51). Calado?! Decifrar este enigma e sua
mensagem é um desafio, pois, a terceira margem nunca é mencionada a não ser
no título. O escritor dizia: “[...] amo os grandes rios, pois são profundos como
a alma do homem [...] amo mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade” (DRUMOND, 2008, p.284). Essa eternidade parece estar presente no
texto: “Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava
a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre
dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais [...]”. “Os tempos mudavam,
no devagar depressa dos tempos [...]” (ROSA, 1974, p.p. 54,55). Esta descrição,
contida no conto, ilumina a dimensão da terceira margem insinuada no texto.
O poeta romano Ovídio dizia: “[...] não há coisa alguma que persista no universo. O próprio tempo passa com um movimento contínuo, como um rio [...]”
(CHAUÍ, 2002, p. 24). Heráclito de Éfeso considerava a Natureza como um fluxo
perpétuo. “[...] Não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque as
águas nunca são as mesmas e nós nunca somos os mesmos [...]” (CHAUÍ, 2002,
P.110).
Para Guimarães Rosa “[...] o nosso tempo é um tempo de nascimento e passagem
para um novo período. A gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar
na outra banda e num ponto muito mais em baixo, bem diverso do que em
primeiro se pensou [...]” ( ROSA, 1979, p. 90). O pai dentro da canoa naqueles
espaços do rio para dela não mais saltar. Vivia; esperando o abrigo da morte.
O rio, essas águas que não param, saindo do ventre da terra é como a vida e o
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tempo. Tenho então, minhas desconfianças, de que a terceira margem do rio é
o seu movimento contínuo, seu fluxo perpétuo na busca do infinito. Rumo à
vastidão do mar.
REFERÊNCIAS
CHAUÍ, Marilena. Convite a Filosofia. 12ª Ed. São Paulo: Ática, 2002.
DRUMOND, Josina Nunes. As Dobras do Sertão. São Paulo: Annablume,
2008.
ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984
ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguelim. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. J.
Olympio, 1979.
ROSENFIELD, Kathrin H. Grande Sertão: Veredas - Roteiro de Leitura. São
Paulo: Ed. Ática. 2002.
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A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM CIRANDA
DE PEDRA
Rubiani Boldrini da Silva1*
Karina de Rezende Tavares Fleury2**
RESUMO
Este artigo tem como objetivo discutir um dos aspectos da ficção da escritora
brasileira Lygia Fagundes Telles, que é a representação do feminino no romance
Ciranda de Pedra. Para tanto, necessário se faz analisar a trajetória da mulher
brasileira no contexto social e literário, nos séculos XIX e XX, e abordar alguns
dados da vida desta escritora nas possíveis ligações entre ficção e autobiografia.
Serão feitas algumas considerações a respeito da estrutura familiar e do declínio
do patriarcado presentes na narrativa. Dentro da visão do feminino serão
abordados os seguintes aspectos: submissão, transgressão e liberdade feminina.
Lygia vai dialogar com esses temas já retratados na ficção, principalmente pela
ótica masculina, e de certa forma subvertê-los e ironizá-los através de suas
marcantes personagens femininas. A leitura detalhada de seu romance Ciranda
de Pedra mostra como a escritora retoma a sociedade burguesa tradicional para
questionar a tradição e os mitos em torno da mulher. Conceitos teóricos de
Elódia Xavier, Simone de Beauvoir e outras pensadoras feministas servirão de
contraponto para esta leitura.
Palavras-Chave: Lygia Fagundes Telles. Ciranda de Pedra. Literatura Feminina.
Feminismo. Patriarcado.
1- ∗ Pós-Graduanda em Alfabetização e Letramento nas Séries Iniciais e na EJA pelo Centro de
Estudos Avançados em Pós-Graduação e Pesquisa (CESAP), Vitória, ES. Graduada em Letras
com habilitação em Português/Inglês pela Faculdade Saberes (2011), Vitória, ES. Docente da rede
privada em Vitória. E-mail: [email protected]
2- ** Doutoranda em Letras (área de concentração: Estudos Literários - UFES). Mestre em Letras
(área de concentração: Estudos Literários – 2008 - UFES). Pós Graduada em Teoria Psicanalítica
e Práticas Educacionais (2007). Graduada em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo
(1991). Graduada em Direito pela UVV (1991). E-mail: [email protected]
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Abstract: This article aims to discuss an aspect of fiction by Brazilian writer
Lygia Fagundes Telles, which is the representation of women in the novel
Ciranda de Pedra. To this end, it is necessary to analyze the trajectory of
Brazilian women in social and literary context in the nineteenth and twentieth
centuries, and address some of the data life of this writer on possible links
between fiction and autobiography. Are some considerations about the family
structure and the decline of patriarchy present in the narrative. Inside view of
the feminine will therefore consider the following: submission, transgression
and freedom of women. Lygia will engage with these issues already portrayed
in fiction, especially the male perspective, and a way to subvert them and mock
them through their remarkable female characters. A close reading of his novel
Ciranda de Pedra shows how the writer takes the traditional bourgeois society
to question tradition and myths around the woman. Theoretical concepts of
Elodea Xavier, Simone de Beauvoir and other feminist thinkers serve as a
counterpoint to this reading.
Keywords: Lygia Fagundes Telles. Ciranda de Pedra. Women’s Literature.
Feminism. Patriarchate.
Considerações preliminares
Assim como o tempo, fosco ou luminoso, os homens
serão maus ou serão bons e a vida fará o seu giro
imperturbável, desfazendo e criando entre declínios
e triunfos.
Júlia Lopes de Almeida
Lygia Fagundes de Azevedo nasce na capital paulista, em 19 de Abril de 1923.
Foi a terceira mulher a tomar posse na Academia Brasileira de Letras, eleita
em 1985 a fim de suceder Pedro Calmon. A escritora foi empossada em 12 de
maio de 1987, na cadeira de número 16. Em 1952, Lygia começa a escrever seu
primeiro romance, Ciranda de Pedra. Em 1954, as Edições O Cruzeiro, do Rio de
Janeiro, publicam-no.
A presença de Lygia Fagundes Telles na vida literária brasileira é constante
também pela sua participação em congressos, debates e seminários. Sua obra tem
merecido a melhor crítica no Brasil e no exterior, com publicações que alcançaram
demasiado sucesso. Sobre a escritora, Nelly Novaes Coelho assevera que
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[...] Lygia Fagundes Telles vem sendo, dentro da
literatura contemporânea, uma das mais lúcidas,
apaixonadas e apaixonantes testemunhas desse nosso
mundo-em-crise, o belo horrível mundo burguês,
alicerçado em razões, certezas e verdades absolutas
que já cumpriram sua tarefa no contínuo processo
de evolução da vida e do mundo (COELHO, 1993, p.
236).
O universo ficcional da autora é representado com refinada sensibilidade para
refletir as circunstâncias de uma relação familiar complexa, além de pontos
delicados da condição humana representados através de personagens cínicos,
amargos e cruéis. A partir de Bosi, depreendemos que Telles evidencia a relação
dramática de suas personagens com o passado, o reino de posse e de perda.
Para Monteiro (1980, p. 47), assim é Lygia: “Da vida para a literatura e daí para
a vida de novo.” A autora procura, através da escrita, representar a fragilidade
social mesclada na sedução do imaginário e da fantasia, utilizando recursos
metafóricos a fim de adestrar essa complexidade.
Em Lygia, a temática da ausência do pai e da desestruturação da família é algo
excessivamente recorrente, e está permeada de elementos de fatalidade e de
culpa. Entretanto, percebemos o tema mesclado à solidão, à morte, à loucura, à
doença, à fantasia e à infidelidade, por exemplo.
É Xavier, quem justifica a influência da desestruturação da instituição familiar
ao sustentar que “A família tem uma função importante, nesses romances,
na medida em que ela atua como ausência; é a desestruturação familiar a
responsável pelos conflitos, sobretudo, das personagens jovens” (XAVIER, 1998,
p. 44- 45). Destarte, o caráter exploratório dos romances de Lygia ficcionalizam
as relações familiares da burguesia paulistana, na década de 50, cuja ausência
do pai aponta para a decadência de um sistema patriarcal e para a consequente
perda dos referenciais.
Essencialmente, as estruturas familiares de Telles são as responsáveis pelos
dramas de suas personagens femininas que, por falta de adequação ao modelo
dominante, sentenciam-se como culpadas e inferiores para o convívio em
sociedade. Para tanto, a mulher passou a ser, então, a responsável pela geração
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e criação de novos homens e mulheres com novos valores instituídos: ao homem
atribuiu-se o papel de provedor e, à mulher, o papel de prestadora de serviços
dentro da casa.
Nesse conjunto, percebemos que Telles, de maneira extraordinária, salienta
que as mudanças sociais vêm sugerindo novas formas de relacionamento, que
escapam à rigidez e à pobreza das instituições, contribuindo, a priori, para a
difusão de novos valores na sociedade.
Segundo Gotlib3 (1998), a mulher, no seu espaço familiar, de que se vê na maioria
das vezes prisioneira, e a dimensão coletiva em que descortina a consciência
de seu não-espaço, marginal e massacrado, serão assuntos de vários romances
femininos, especialmente os de Lygia Fagundes Telles.
Em suas obras, a escritora se apropria do desfalecimento da família, e segundo
Elódia Xavier, tem marcado em seu universo ficcional, a ausência do pai
originário do declínio do patriarcado, que por sua vez, corrobora para a
desestruturação da família burguesa.
A ausência do pai é uma ausência estrutural,
sintomática da decadência do patriarcado e da
conseqüente perda dos referencias. Ora, o universo
ficcional de Lygia Fagundes Telles é marcado por essa
ausência do pai, isto é, pela desestruturação familiar;
e, daí, decorrem, como teremos oportunidade de ver,
os conflitos das personagens (XAVIER, 1998, p. 44).
Ao longo de seus estudos, Xavier discorre como o processo histórico patriarcal
influenciou na formação da família brasileira, e porque o homem, historicamente,
sempre representou o centro das decisões familiares. Assim, a literatura de
autoria feminina expõe como temas mais recorrentes a transfiguração, a
transgressão, a desconstrução e a representação da família.
O verbete família tem origem no latim famulus, que significa: conjunto de servos
e dependentes de um chefe ou senhor. Entre os subordinados da família grecoromana incluem-se a esposa e os filhos, seus fâmulos, servos livres e escravos
3- Cf. GOTLIB. Nádia Battella. A literatura feita por mulheres no Brasil. Disponível em < http://
www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm >. Acesso em 07 Out. 2011.
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(PRADO, 1985). Um conceito por demais cristalizado na sociedade ocidental
que, graças ao esforço de pesquisadores de diferentes áreas, desde o final do
século XX, vêm perdendo espaço, porém resistindo no senso comum. Para
Bock, a mais completa definição de família foi descrita pelo psicanalista francês
Jacques Lacan:
Entre todos os grupos humanos, a família desempenha
um papel primordial na transmissão da cultura. Se as
tradições espirituais, a manutenção dos ritos e dos
costumes, a conservação das técnicas e do patrimônio
são com ela disputados por outros grupos sociais, a
família prevalece na primeira educação, na repressão
dos instintos, na aquisição da língua acertadamente
chamada de materna. Com isso ela preside os
processos fundamentais do desenvolvimento psíquico
(Lacan, 1999, p. 250).
A autora acrescenta que a família, como primeiro grupo de pertencimento
do indivíduo é, por excelência, em nossa sociedade, o espaço em que esse
aprendizado ocorre. Ela ressalta que esse processo de aprender pode transcorrer
também em qualquer grupo humano do qual o indivíduo participe em seus
primeiros anos de vida.
A história da instituição familiar no Brasil tem como ponto de partida o modelo
patriarcal, importado pela colonização e adaptado às condições sociais de um
país latifundiário e escravagista. O patriarca era o detentor das posses, não
apenas de seu latifúndio, mas de sua família, de seus agregados e escravos.
Portanto, chega-se à conclusão de que os objetivos da família antiga se parecem
com os objetivos da família moderna. Ambos os tipos de família têm por função
contribuir para a reprodução biológica e social da sociedade, procurando de
uma geração a outra manter e, se possível, melhorar a posição da família no
espaço social.
No entanto, não mais vista exclusivamente como algo sagrado e natural, a família
burguesa se viu frágil e consciente de sua desordem, mas preocupada em recriar
novas concepções entre os homens e as mulheres. Segundo Therborn (2000, apud
FILGUEIRAS, ano 2009, p. 14), a família patriarcal, ligada intrinsecamente à
figura do pai como personagem de autoridade, com o advento da modernidade,
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não desapareceu por completo, da mesma forma, que os arranjos familiares
reconstituíram-se e ainda persistem na prática e na mentalidade comum.
Em uma reflexão sistemática sobre o declínio do patriarcado, vários elementos
variáveis se fazem presentes. Precedentemente de falarmos no fim, ou no que o
sueco Goran Therborn, sustenta ser o início da derrocada do patriarcado, fazse necessário uma abordagem teórica acerca da origem do patriarcado, na qual,
encontram-se lendas e cultos religiosos abrangendo o imaginário local.
A palavra patriarcado deriva do grego pater, e se refere ao determinado
território ou jurisdição no qual o patriarca governa. O uso do termo, no sentido
de orientação masculina da organização social, aparece, pela primeira vez,
entre os hebreus, no século IV, para qualificar o líder de uma sociedade judaica;
o termo seria originário do grego helenístico para denominar um líder de
comunidade. Ideologicamente, utiliza-se esse conceito a fim de denominar uma
organização social, cujo homem é a maior autoridade. O patriarca tinha sob seu
poder a mulher, os filhos, os escravos e os vassalos, além do direito de vida e de
morte sobre todos estes.
O conceito de patriarcado é apontado, em alguns casos, de maneira genérica,
ocasionando polêmica, pois sua definição ainda está presa às interpretações
patriarcais de seu significado, permanecendo esporadicamente compreendido
no seu sentindo literal de direito paterno, e associado diretamente às
relações familiares. Portanto, faz-se necessária a distinção entre patriarcado e
paternidade.
O poder do pai de família teve seu reinado entre a Idade Média até o século
XVII. No final desse século, começa o declínio. O livro Casa-grande & senzala,
publicado em 1933, reflete a formação colonial e o patriarcado no Brasil a
partir da ocupação portuguesa no nordeste litorâneo. Para Freyre, a formação
da sociedade brasileira, via nordeste, articulou-se em torno de três elementos:
o patriarcado, as etnias e culturas e o trópico. Entende-se que outros pontos
foram importantes nessa formação como clima, raça e biologia. Para tanto,
afirma o autor:
A formação patriarcal do Brasil explica-se, tanto
nas suas virtudes como nos seus defeitos, menos
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em termos de “raça” e de “religião” do que em
termos econômicos, de experiência de cultura e
de organização da família, que foi aqui a unidade
colonizadora. Economia e organização social que às
vezes contrariaram não só a moral sexual católica
como as tendências semitas do português aventureiro
para a mercancia do tráfico (FREYRE, 2006, p. 47).
Na sociedade marcada pelos ideais herdados do patriarcado, o cenário era
masculino, a vida pública era atributo do homem, e à mulher, restava o âmbito
do lar, da vida privada. Presumidamente, nota-se que a situação da mulher é
semelhante à do escravo, uma vez que esta se encontra também em uma espécie
de aprisionamento. Essa similaridade na condição de mulheres e negros vai ser
mantida até o final da escravidão e, mesmo após a abolição, usa-se a mesma
argumentação como parte de uma estratégia para mantê-los submetidos ao
patriarcado.
Escritoras contemporâneas costumam destacar em suas produções literárias
o processo ideológico da construção da mulher em relação ao seu sexo,
biologicamente, e ao seu gênero social e cultural, pois esse processo ideológico
de construção dos corpos e das identidades das mulheres, em nossa sociedade,
foram os principais objetos através dos quais todo um mecanismo de dominação
masculina e patriarcal foi criado e mantido. A fim de comprovar essa ideologia
Lygia Fagundes Telles em: A mulher escritora e o feminismo no Brasil assegura
que
A literatura feminina tem [...] Uma fisionomia própria
[...] decorrente da situação da mulher, das suas
raízes históricas [...] a mulher vem tradicionalmente
de uma servidão absoluta através do tempo e a
mulher brasileira mais do que as outras mulheres
do mundo [...] Quando as mulheres do mundo já se
comunicavam, através, por exemplo, de cartas, as
correspondências das mulheres dos salões, a mulher
brasileira estava fechada em casa, vivendo a vida das
senhoras da fazenda, da senhora da casa-grande [...]
viviam aprisionadas [...] (TELLES, 1197, p. 57).
As mulheres são consideradas historicamente inferiores aos homens. JulgavaSABERES Letras
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se que seriam inferiores biológicas, intelectual e moralmente. Essa concepção
sobre a mulher está tão enraizada em nossa cultura, que desencadeia a própria
estruturação do patriarcado.
É preciso revisar a ideia da hegemonia, da família em si, e dos papéis familiares,
dado as configurações e papéis alternativos. As normas são opressivas, fonte de
sofrimento psíquico e mal-estar na sociedade, gerando um terreno fértil para
desigualdades de gênero.
As mulheres começaram a receber tratamento diferente no seio familiar a partir
do século XIX, visto que o Brasil, ainda ruralista, debruça-se à procura da
modernidade, o que exigiu adequações por parte do sexo feminino.
Para tanto, em sua dissertação de mestrado, O papel da mulher e a mulher de papel:
vida e obra de Maria Antonieta Tatagiba, Fleury assevera:
Ao traçarmos um panorama da situação da mulher
na virada do século XIX para o XX, verificamos que,
incitando as mudanças comportamentais, as mulheres
oitocentistas instruídas, aos poucos, acabaram por
imprimir modificações na visão que se tinha da família
e da própria mulher na sociedade e na História, mas
que somente seriam de fato percebidas em meados do
novo século (FLEURY, 2008, p. 41). 4
De acordo com Simone de Beauvoir (1980), a palavra mulher era normalmente
associada a palavras como “útero”, “ovário” e “fêmea” por homens que
buscavam respostas simples. O termo fêmea, na perspectiva de Beauvoir, deveria
ser revogado, não por enfatizar a natureza animal da mulher, mas porque à
aprisiona em seu sexo. Beauvoir chama ainda nossa atenção para o fato de que os
homens tentam achar na biologia uma justificativa para considerar as mulheres
como possuidoras de uma natureza animal e, sendo assim, inferiores.
A sociedade criou uma grande variedade de crenças sobre as funções dos dois
4- Cf. FLEURY, Karina de R. Tavares. O papel da mulher e a mulher de papel: vida e obra de
Maria Antonieta Tatagiba. Vitória, 2008.145f. Dissertação (Mestrado em Letras)-Universidade
Federal do Espírito Santo, ES, 2008. Disponível em<http://www.bdtd.ufes.br/tde_busca/processaPesquisa.php?listaDetalhes%5B%5D=349&processar=Processar >. Acesso em 17 Ago.
2010.
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sexos. A princípio, essas crenças não possuíam nenhuma base científica e se
criaram com base em crenças sociais. Tais mitos foram o pedestal, sobre o qual,
o patriarcalismo e sua sociedade construíram-se assegurando seu poder sobre
as mulheres.
Na obra Lygiana, de maneira especial em Ciranda de Pedra, a questão da
identidade feminina tem sido focalizada sobre um eixo central constitutivo
dessa identidade, que é o da ligação entre mulheres, não pormenorizando o
aspecto mais claro que é o da relação entre homens e mulheres.
O que Telles realiza em Ciranda de Pedra, entretanto, é a representação de uma
família moderna, constituída de mulheres, comunidades femininas. O que se
observa no final do romance, é a substituição da família patriarcal, focada na
figura determinante do pai, por uma família composta de mulheres.
Ciranda de Pedra, publicado então em 1954, é um romance que se caracteriza
pela problemática de personagens femininas, considerando a predominância
de tais personagens femininas sobre os personagens masculinos e transmitindo,
dessa maneira, através de fortes personagens, possibilidade ampla de avaliação
e de entendimento do declínio do patriarcado e da constituição da formação de
novos núcleos familiares.
As relações de gêneros são evidenciadas através das relações homem e mulher,
nas quais o papel da mulher é revelado, distinguindo assim o declínio do
sistema patriarcal na busca de igualdade entre os sexos, constituindo, dessa
forma, novos paradigmas na sociedade.
Portanto, ao que se pode observar, ao investigarmos o olhar masculino sobre
a mulher e a esfera familiar dentro e fora do ambiente doméstico, retrata-se e
revela-se a crise da família como instituição.
O enfraquecimento da figura do pai: a constituição de
uma nova família
O processo de enfraquecimento da família patriarcal, segundo Filgueiras (2009)
foi reforçado pelas releituras teóricas contemporâneas acerca do espaço da
mulher e a emancipação do aspecto econômico sobre a autoridade parental.
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De fato, a autonomia das mulheres, sua capacidade comprovada de trabalhar e
sustentar sua família, junto com o crescente apoio do Estado e das instituições,
promoveu e contribuiu para a emancipação do sexo feminino.
No início era o verbo, mas o verbo era Deus, e Homem.
O silêncio é o comum das mulheres. Ele convém à sua
posição secundária e subordinada. Ele cai bem em
seus rostos, levemente sorridentes, não deformados
pela impertinência do riso barulhento e viril. Bocas
fechadas, lábios cerrados, pálpebras baixas, as
mulheres só podem chorar, deixar as lágrimas
correrem como a água de uma inesgotável dor, da
qual, segundo Michelet, elas “detém o sacerdócio”
(PERROT, 2007, apud FERREIRA, 2005, p. 9).
Menina que sabe muito
É menina atrapalhada
Para ser mãe de família
Saiba pouco ou saiba nada (HAHNER, 2003, apud
FLEURY, 2008, p. 57).
[...] Um gênio como o de Shakespeare não nasce entre
pessoas trabalhadoras, sem instrução e humildes.
Não nasceu na Inglaterra entre os saxões e os bretões.
Não nasce hoje nas classes operárias. Como então
poderia ter nascido entre mulheres, cujo trabalho
começava, [...] quase antes de largarem as bonecas,
que eram forçadas a ele por seus pais e presas a ele por
todo o poder da lei e dos costumes? Não obstante, alguma
espécie de talento deve ter existido entre as mulheres
[...] (WOOLF, 1985, apud DUARTE, 2011, p. 64, grifos
nossos).
Comumente torna-se impossível dissociar o patriarcado da condição da mulher
na sociedade e a estrutura familiar, pois se encontram concomitantemente e
invariavelmente ligados um ao outro. Definir patriarcado é, de fato, uma tarefa
difícil. As três citações acima são retratos de uma sociedade patriarcal que
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durante muito tempo negou a existência intelectual da mulher, ou que apenas a
via como um complemento útil ao homem.
Simone de Beauvoir (2008), também se impõe sobre a origem do patriarcado:
[...] na idade da Pedra, [...] nessa divisão primitiva do
trabalho, os dois sexos já constituem, até certo ponto,
duas classes; entre elas há igualdade. Enquanto o
homem caça e pesca, a mulher permanece no lar. [...]
a propriedade privada aparece: senhor dos escravos
e da terra, o homem torna-se também proprietário da
mulher. Nisso consiste “a grande derrota histórica do
sexo feminino”. [...] o direito paterno substituiu-se
então ao direito materno; a transmissão da propriedade
faz-se de pai a filho e não mais da mulher a seu clã.
É o aparecimento da família patriarcal baseada
na propriedade privada. Nessa família a mulher é
oprimida [...] (BEAUVOIR, p. 74).
Percebe-se que nessa ideologia, o poder patriarcal é capaz de anular
completamente a mulher, tornando-a um ser invisível, citando Xavier, “um
corpo invisível”. Ainda, segundo Elódia Xavier, esse tipo de corpo tem a
característica de ser completamente apagado tanto na corporalidade como no
que diz respeito a opiniões e atitudes. Trata-se da “inexistência da mulher como
sujeito do próprio destino” (2007, p. 34).
O patriarcado corresponde aos modos de organização social ou de dominação
social. “Pelos conceitos clássicos, chama-se patriarcalismo, a situação na
qual, dentro de uma associação, na maioria das vezes, fundamentalmente
econômica e familiar, a dominação é exercida por uma só pessoa, de acordo
com determinadas regras hereditárias fixas” (Weber, 1964, t.1.p.184), e
percebida como uma “situação natural” e “normal” (grifos nossos). Partindo
de tal legitimação, lembremos que Rousseau também defendia à diferença de
natureza entre sexos. Sobre a mulher, ele nos legou uma visão de inferioridade,
fraqueza e submissão ao marido:
Na união dos sexos cada qual concorre igualmente
para o objetivo comum, mas não da mesma maneira.
Dessa diversidade, nasce a primeira diferença
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assinalável entre as relações morais de um e de outro.
Um deve ser ativo e forte, o outro passivo e fraco; é
necessário que um queira e possa, basta que o outro
resista pouco. Estabelecido este princípio, segue-se
que a mulher é feita especialmente para agradar ao
homem [...]: “Se a mulher é feita para agradar e ser
subjugada, ela deve tornar-se agradável ao homem
ao invés de provocá-lo” (ROUSSEAU, 1973, apud
SOUZA, 2003, p. 415).
O patriarcalismo não se desenvolveu apenas em uma localidade, mas em várias
partes do mundo, e durante séculos foi dominante. No Brasil, Nísia Floresta
escreveu sobre a opressão feminina em seu primeiro livro, uma tradução livre
de Vindication of the Rright of Woman, de Mary Wollstonecraft, que teve seu título
em português como Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens. Nessa obra a
autora denunciava o estado de inferioridade em que viviam as mulheres de seu
tempo.
Se cada homem, em particular, fosse obrigado
a declarar o que sente a respeito de nosso sexo,
encontraríamos todos de acordo em dizer que nós
somos próprias se não para procriar e nutrir nossos
filhos na infância, reger uma casa, servir, obedecer
e aprazer aos nossos amos, isto é, eles homens...
Entretanto, eu não posso considerar esse raciocínio
senão como grandes palavras, expressões ridículas
e empoladas, que é mais fácil dizer do que provar
(FLORESTA, 1983, apud DUARTE, 2003, p. 35).5
É Simone de Beauvoir (2008), quem afirma no segundo volume de seu livro O
Segundo Sexo, que “o regime patriarcal é cruel com as mulheres e as determina
um papel resignador” (p. 87).
Nesse sentido, entende-se que o patriarcado é indissociável da história da
mulher e da relação que mantém com família. Portanto, acredita-se que a
organização familiar brasileira é importante para a compreensão do patriarcado
no Brasil. Para Gilberto Freyre a família brasileira conservou estruturas que
5- Cf. DUARTE, Eduardo Assis de. Virginia Woolf: a androginia como desconstrução. Disponível
em< http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_eduardo.htm >. Acesso em 22 Jun. 2011.
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se mantiveram sólidas desde os tempos do Brasil colônia e que acabaram por
atribuir traços bastante particulares à nossa sociedade. Freyre, assim destaca o
papel da família colonial na constituição da sociedade brasileira:
Vivo e absorvente órgão da formação social brasileira,
a família colonial reuniu, sobre a base econômica da
riqueza agrícola e do trabalho escravo, uma variedade
de funções sociais e econômicas. Inclusive, (...) a do
mando político: o oligarquismo ou nepotismo, que
aqui madrugou [...], a família, não o indivíduo, nem
tampouco o Estado nem nenhuma companhia de
comércio, é desde o século XVI o grande colonizador
no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava
o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois,
ferramentas, a força social que se desdobra em
política, constituindo-se na aristocracia colonial mais
poderosa da América (FREYRE, 2004, p. 92).
Certamente, por causa desses excessos da figura masculina do pai, no Brasil
surgiu o maternalismo, do qual o patriarcado brasileiro se caracteriza.
Durante esse período, o pai deixa de ser uma figura reverenciada, e após esta
descaracterização da figura do pai, o sistema patriarcal inicia o seu declínio.
Freyre reconhece a presença de mulheres como chefes de domicílio, de famílias
matriarcais, entretanto considera esses casos exceções; cita duas vezes a escritora
Nísia Floresta, e reafirma que Nísia foi um caso de exceção no regime patriarcal
do Brasil.
Em ensaio recente, a mulher na literatura brasileira,
(nordeste, agosto, 1947), [...] durante o segundo
reinado, mesmo vigiado de perto por patriarcas,
o talento feminino começou a brilhar entre nós. “A
verdade é que esse eco de brilho da inteligência
feminina nos salões patriarcais do Brasil data do
primeiro reinado até da época colonial: [...] Mas não
nos iludamos com a participação da mulher na vida
intelectual do primeiro reinado e mesmo no segundo:
o que houve foi uma ou outra flor de estufa. Tanto
que Nísia floresta seria um escândalo para a sociedade
brasileira do seu tempo, merecendo seu caso estudo
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a parte que bem poderia ser empreendido pelo Sr
jurema. [...] (FREYRE, 2006, p. 194).
Contudo, a queda do patriarca traz também outros fatores para a sociedade
brasileira, como a possibilidade da emancipação feminina, a libertação da
medicina dos costumes rurais e caseiros, e o fortalecimento dos colégios
católicos:
Era o declínio do patriarcalismo. O desprestígio
dos avós terríveis, suavizados agora nas vovós. O
desprestígio dos “senhores pais”, que começavam a
ser simplesmente “pais” ou “papais”. Era o menino
começando a se libertar da tirania do homem [...] O
filho revoltando-se contra o pai [...]. (FREYRE, 2006,
p. 200).
Se antes do declínio, a mulher era considerada pelo patriarca como sexo fraco
e belo, enquanto o homem como sexo forte e nobre, no sistema patriarcal
enfraquecido, inicia-se, segundo Freyre, o processo de sua libertação da condição
de “uma doente, deformada no corpo para ser a serva do homem e a boneca de
carne do marido” (FREYRE, 2006, p.238). Refém que era da exploração sexual,
com o desenvolvimento urbano e os espaços dos cuidados medicinais aplicados
sobre o corpo feminino, a mulher do patriarca “se liberta” do governo absoluto
do esposo.
Com raras exceções, as mulheres eram consideradas incapazes de qualquer
reflexão mais profunda. Sua figura era sempre associada às atividades mais
fúteis, enquanto os homens deveriam ser os provedores da família e cuidar de
todos os assuntos de maior relevância, dos quais as mulheres eram consideradas
incapazes de tratar. Freyre destaca ainda, que mulheres das mais altas classes
sociais viviam na mais absoluta ignorância, e novamente se põe a citar a poetisa
Nísia Floresta como honrosa exceção:
Nas letras, já nos fins do século XIX apareceu uma
Narcisa Amália. Depois, uma Carmen Dolores. Ainda
mais tarde uma Júlia Lopes de Almeida. Antes delas,
quase que só houve bacharelas medíocres, solteironas
pedantes ou simplórias [...] Nísia Floresta surgiu –
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repita-se – como uma exceção escandalosa. Verdadeira
machona entre as sinhazinhas dengosas do meado
do século XIX. No meio dos homens a dominarem
sozinhos todas as atividades extradomésticas, as
próprias baronesas e viscondessas mal sabendo
escrever, as senhoras mais finas soletrando apenas
livros devotos e novelas que eram quase histórias
do Trancoso, causa pasmo ver uma figura como a
de Nísia, ou mesmo uma mulher como a marqueza
de santos ou Da. Francisca do rio formoso ou Da.
Joaquina do Pompeu. (FREYRE, 2004, p. 225)
Todas essas mudanças repercutiram sobre a figura masculina, promovendo um
novo arranjo familiar e corroborando para a diminuição do espaço paterno. Essa
explosão de reações femininas caracterizou a “destruição” do poder masculino,
instituído há milhares de anos.
Enfim, diz-se que as mulheres obtiveram êxito, pois através do declínio do
patriarcado conseguiram sair do seu confinamento milenar, em termos de
situação de classe e intelectualidade. A partir dessas conquistas, a posição e o
papel da mulher na sociedade tornaram-se originalmente diversos, daquilo que
a história feita pelos homens normalizou durante muito tempo.
A representação da mulher através das personagens
lygianas
Por caminhos tortos, viera a cair num destino de
mulher, com a surpresa de nele caber como se o
tivesse inventado.
Clarice Lispector
O romance Ciranda de Pedra tem como foco principal a tensão familiar entre
as principais personagens femininas: Virgínia, Laura, Otávia, Bruna e Letícia.
A principal característica na construção dessas personagens é a condição da
mulher na sociedade patriarcal, revelando sua vivência neste espaço.
A importância das personagens principais evidencia-se em sua constituição
mais delineada. A caracterização, seja emocional, física ou social, é elaborada
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para dar maior riqueza à narrativa. Cada uma é complexamente construída,
segundo Souza (2009)6 “como um emaranhado de fios que compõe um tecido”
(p.11). Portanto, a coordenação deste elemento com os demais origina o enredo.
Segundo Cândido,
Os três elementos centrais dum desenvolvimento
novelístico (o enredo e a personagem, que representam
o seu significado, - e que são o conjunto elaborados pela
técnica), estes três elementos só existem intimamente
ligados, inseparáveis, nos romances bem realizados.
No meio deles, avulta a personagem, que representa
a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do
leitor, pelos mecanismos de identificação, projeção,
transferência etc. A personagem vive o enredo e as
idéias, e os torna vivos. (CANDIDO, 2007, p.54).
A diversidade de características da personagem, construída na narrativa por
meio da linguagem, está proporcionalmente relacionada à sua importância no
enredo, pois através dela os fatos e as ideias se concretizam. Quanto maior for
sua relevância, maior será sua complexidade e, consequentemente, ocorrerá a
centralização dos eventos em suas ações.
A personagem feminina confina-se, em parte dos textos da literatura, ao espaço
da casa, à tarefa de mãe e à ocupação da família, seu espaço está restrito ao
particular, ao fechado e ao limitado. Para ela, foi construído o que Simone de
Beauvoir chamou de “destino de mulher”: a rainha do lar, a mãe, a geradora, a
acolhedora, ou ainda, o que segundo Fleury (2008), pode-se chamar de “tríade
sacrossanta.”
O casamento também se impõe como uma situação recorrente e problemática.
As narrativas se desenvolvem sobre o desgaste deste relacionamento, que se
baseia no clichê “até que a morte nos separe”. A felicidade eterna ilusionada
pelas personagens é descoberta como uma fraude ao perceberem os problemas
gerados pelo tempo.
As diferenças de comportamento refletem a riqueza das construções das
6- Cf. SOUZA, Wanessa Zanon de. Representações da mulher em obras de Helena Parente Cunha, Lygia Fagundes Telles e Marina Colasanti. Disponível em< http://www.letras.ufrj.br/pos�
verna/mestrado/SouzaWZ.pdf >. Acesso em: 18 Jun. 2011.
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personagens, as quais, por vezes, representam mulheres que seguem seus
destinos e, por outras, que se aproximam do ideal da mulher tradicional, ainda
seguido em parte da narrativa. Estuda-se aqui, portanto, representações que,
ora refletem, ora subvertem padrões de comportamento da sociedade.
Ao se analisar Laura, mãe de Virgínia, percebe-se que devido à infidelidade e à
quebra de padrões impostos pela sociedade burguesa, na qual estava inserida,
ela se torna motivo de reprovação para suas filhas Bruna e Otávia e, nessa
condição, a loucura vai consumindo-a pouco a pouco. As filhas consideram
que sua mãe “manchou” a honra da família, como se pode notar no diálogo de
Bruna:
Nossa mãe está pagando um erro terrível, será que
você não percebe? Abandonou o marido, as filhas,
abandonou tudo e foi viver com outro homem.
Esqueceu-se dos seus deveres, enxovalhou a honra da
família, caiu em pecado mortal (TELLES, 1998, p. 37).
E acrescenta:
[...] Nosso pai adorava a mamãe, [...] ela vivia como
uma rainha, [...] como uma rainha! Depois que Otávia
nasceu, [...] entrou em casa com um novo médico,
um moço bonito [...] Era o Doutor Daniel. Nosso pai
[...] expulso-o de casa como se expulsa um demônio.
Durante algum tempo havia sumido [...] Quando
voltou, você tinha acabado de nascer e a mamãe já
estava meio esquisita, com umas manias, papai teve
que interná-la num sanatório. Quando ela melhorou,
está claro que nosso pai não podia aceitá-la, imagine
um escândalo desses (TELLES, 1998, p. 45).
A partir desse trecho evidencia-se a presença de uma sociedade patriarcal
demarcada pelas aparências, cujo papel da mulher era o de esposa e mãe,
a “rainha” do lar. Aqui está explícita a ideia defendida por Hahner em A
emancipação do sexo feminino, que “a educação das mulheres concentrava-se na
preparação para o seu destino último: esposas e mães” (2003, p. 123). Portanto,
Laura representa a mulher adúltera, aquela que, ao tentar fugir dos padrões
impostos pela sociedade, acaba enlouquecendo.
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Em contrapartida, temos Otávia, artista plástica, distraída e irônica, que se
dedica Pa pintura de alguns amantes ocasionais, e se envolve até com o motorista
da família. Essa personagem não sonha com a união matrimonial, deixando
claramente exposta a sua opinião sobre o casamento: “E se falasse nisso, ah, que
prosaico, que burguês! Ora, casar” [...] (TELLES, 1998, p. 142).
Segundo Showalter, apud Cibele Beirith, “a figura de Otávia representa “a
nova mulher”, sexualmente independente”, aquela que criticava a insistência
da sociedade que enxergava a união matrimonial como única opção para a
realização da vida da mulher. Otávia é a mulher emancipada, descomprometida
de sentimentos, que busca o sexo oposto apenas para a satisfação de seus
prazeres.
Regressando as personagens de Lygia, encontramos Bruna, uma personagem
contraditória. Em princípio, ela reprova a atitude de traição da mãe e sente
compaixão do pai por ter sido “abandonado”. Seus julgamentos baseiam-se na
Bíblia Sagrada, o que põe em discussão no romance a grande influência da igreja
sobre a formação da sociedade. Bruna crê que sua mãe está sendo castigada
através da loucura, pelo fato de ter traído seu pai:
– O castigo já caiu sobre ela – disse num tom vacilante.
Franziu a boca a boca em forma de pirâmide: - Mas
ele não escapa. Ah, Virginia, só eu sei o que o nosso
pai tem sofrido! Você é a caçula, ficou lá com os dois,
não compreende certas coisas (TELLES, 1998, p. 47).
Inicialmente, Bruna representa a mulher conservadora, que tem a Bíblia como
respaldo e que defende o modelo de família burguesa tradicional, na qual a
mulher se vê como a dona do lar. Ela então casa-se com Afonso, com quem tem
um filho. Sua principal preocupação era de constituir um “lar”, não havendo
outras intenções. No entanto, no decorrer da narrativa, percebe-se uma
mudança de comportamento na personagem. Bruna se envolve numa relação
extraconjugal com Rogério, amigo da família.
Essa personagem se contradiz, tendo em vista que anteriormente repreendia a
mãe pelo adultério, mas, tempos depois, envereda-se na mesma problemática.
Nesse sentido, Bruna representa a imagem da mulher que mantêm as “relações
de aparências”, uma falsa imagem da família tradicional para a sociedade, visto
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que a ela não assume o seu caso extraconjugal publicamente:
A descoberta a transfigurou. Bruna tinha um amante.
Um amante, Bruna, Bruna! A Bruna dos anjos, das
Bíblias, a Bruna que açulara contra a mãe, a Bruna que
lançara no seu coração a semente de ódio por Daniel...
[...] Tão pronta sempre para julgar [...] (TELLES, 1998,
p. 160).
O ato do adultério sempre foi encarado de maneiras distintas por diversas
sociedades, sendo tratado com o mais extremo rigor por algumas e considerado
como um ato totalmente aceitável por outras. Geralmente, o adultério é objeto de
forte reprovação moral e religiosa, sendo ao longo da história, constantemente
punido pela sociedade. Segundo Nader
As mulheres honradas possuíam comportamentos de
acordo com as regras instituídas pelo código moral e,
consequentemente pela sociedade. A honra feminina
era muito importante e dependia das impressões
que a mulher causava aos outros [...] As mulheres
desonradas eram aquelas que ou se entregavam a um
homem antes do casamento, ou traíam seus maridos
e traziam para a casa a vergonha de sua virtude
(Nader , 1997, p. 66).
Entretanto seja qual for a motivação que leva o indivíduo a cometer o adultério,
o fato é que este comportamento já faz parte da cultura universal, indo contra
qualquer imposição religiosa ou social.
De outro modo, ao se analisar Letícia, visualiza-se em destaque na obra outra
vertente que também estava atrelada a liberdade feminina. A personagem vê-se
apaixonada pelo marido de Bruna, mas, em virtude de ser rejeitada por Afonso,
Letícia busca outros caminhos: inicia-se nos esportes e torna-se uma tenista
famosa.
- Quando os dois se casaram, devo ter ficado com a
mesma cara que você ficou, vendo Otávia e Conrado
tocando juntos... [...] Pois foi a última vez que chorei,
mas então chorei mesmo, chorei definitivamente
todas a lágrimas. Todas. Quando já não restava mais
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nenhuma, parti para uma competição de tênias, havia
uma competição importante. Fui e ganhei minha
primeira taça (TELLES, 1998, 125).
As relações entre o feminismo e o lesbianismo foram marcadas por tensões e
aproximações no desenrolar das teorias feministas e dos movimentos sociais de
mulheres. Segundo Swain7
[...] o lesbianismo aparece no movimento feminista
como a radicalização extrema na recusa de um mundo
patriarcal, propondo o separatismo na vida social,
a criação de espaços de onde os valores masculinos
seriam extirpados, uma utopia moderna onde a
violência e o poder não teriam lugar de existência ou
expansão (Swain, 1999, p. 110).
A personagem de Telles, muito bem representa essa concepção, pois depois de
inúmeras tentativas e de um amor não correspondido, Letícia vira lésbica e vai
morar sozinha. A homossexualidade ainda é um tabu nessa sociedade, mas ao
seu percurso de formação a autora não deixa de acrescentar essa experiência.
Através do homossexualismo, da mulher que se sentia frustrada por não ser
correspondida por alguém do sexto oposto, Lygia expõe o que Swain (1999)
defende ser [...] “a radicalização extrema na recusa de um mundo patriarcal” (p.
110) e a busca por uma identidade feminina (grifos nossos).
A atitude negativa pela temática do homossexualismo é apresentada através
do comportamento dos demais personagens, que acham Letícia estranha e
misteriosa. Portanto, acredita-se que a homossexualidade estava instaurada
dentro de uma cultural patriarcal e machista, na qual o preconceito em aceitar a
relação de pessoas do mesmo sexo era evidente.
- Aquela Letícia... – murmurou Bruna num tom meio
divertido, meio maliciosa. [...] Não sei por que faz
tanta questão de parecer mais feia ainda do que é. Vá
lá que queira se vestir como um rapaz, mas ao menos
podia ter um pouco mais de gosto. [...]
7- Cf. SWAIN, Tania Navarro. Feminismo e lesbianismo: a identidade em questão. Disponível em<
http://www.maismulheresnopoderbrasil.com.br/pdf/Sociedade/Feminismo_e_Lesbianismo_A_
Identidade_em_Questao.pdf >. Acesso em 20 Jun. 2011.
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- Ela me arrumou um trabalho na editora, traduções.
- Cuidado... (TELLES, 1998, p. 130)
A figura feminina vai perdendo aquela imagem estereotipada de delicadeza e
de necessidade de protecionismo estabelecida pelos romances românticos e, cria
uma imagem de força e ação. Em Ciranda de Pedra compreende-se claramente tal
proposta na figura da protagonista Virgínia.
A imagem de Virgínia remete à mulher moderna, aquela que transgrediu de
uma posição de ingenuidade para uma situação de independência. Ela sai de
casa para estudar, amadurece através de suas frustrações que são percebidas
na própria fala da personagem: “[...] eu queria tanto mudar, quero dizer, voltar
diferente, sem marcas antigas, apagar aquela Virgínia que fui...” (TELLES, 1998,
p. 136).
A personagem lygiana representa a mulher moderna, capaz de lidar e
ultrapassar situações difíceis sozinha, pois é independente. Virgínia não escapa
do amor inacessível que nunca se concretizará. Desde menina é apaixonada por
Conrado. Em algumas passagens da narrativa, chega a dizer que ele parecia um
santo ou que era “belo como um deus” (TELLES 1998, p. 38).
Em sua iniciação amorosa, Virgínia chega a tocar o corpo de uma mulher mesmo
não chegando a consumar uma relação sexual. Decepcionada e tomada pela
vontade de superar os seus limites, ela resolve partir para longe de sua família.
Uma viagem sem destino certo, num navio que a levará para onde possa estudar,
trabalhar e se manter. Aqui fica explícita a clara ideia de renascimento que viria
na simbologia de uma viagem pela água (símbolo da fonte de vida, purificação
e regeneração). Essa é a forma que encontra para romper com os últimos laços
que ainda restavam: a dependência financeira do pai e o amor que nunca lhe
trouxera felicidade.
Todo o sofrimento, as perdas pelas quais passou seriam aliviadas com a
distância. Portanto, Virgínia é a mulher moderna, forte, não mais o “sexo frágil”
e indefeso, mas livre, sendo assim, motivo de desejo por todos os componentes
da ciranda. A protagonista é uma personagem segura, decidida, partiu sozinha,
não cedeu a sua decisão, nem ao lhe ser revelado o amor de Conrado, o homem
que sempre amara.
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- Mas agora está tudo bem. Você tinha razão, Conrado,
atravessei as provas sem me queimar realmente,
foi duro, mas passou. Nós nos amamos. Não quero
mais nada, juro que não peço mais nada a não ser
esta certeza, acredite em mim, não quero mais nada
(TELLES, 1998, p. 188).
A mulher, durante anos, foi vista como sinônimo de delicadeza e suas maiores
conquistas estavam relacionadas às atividades domésticas. Contudo, os rumos
tomados pela sociedade em conjunto com a força feminina, fez com que alguns
desses estigmas fossem rompidos, proporcionando à mulher oportunidades de
mostrar seu potencial aos mais diversos grupos.
Nesse contexto, as personagens apresentadas em Ciranda de Pedra são
encontradas fora do centro da norma de conduta da sociedade. Através de suas
ações, como o amadurecimento de Virgínia, o adultério de Laura, a mudança de
comportamento de Bruna (vivenciado o adultério), a liberdade sexual de Otávia
e o homossexualismo de Letícia, evidenciam-se as mudanças no perfil feminino,
tendo em vista que todas as personagens quebram padrões e transgridem regras
da sociedade burguesa e patriarcal.
Conclui-se, portanto, que Lygia Fagundes Telles cria um mundo ficcional em
que várias facetas do mundo real são nele representadas. É através da sutil
apreensão do quase indizível, que a autora detém o fascínio de seus leitores. Sua
obra não se esgota, porque é capaz de atravessar o tempo num fazer literário
que permanece atual por lidar com o que é essencialmente humano.
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Encontraria a literatura?
As buscas pela maga em rayuela, de julio
cortázar
Weverson Dadalto1*
Resumo
Rayuela, de Julio Cortázar, empreende uma busca por uma literatura que seja
capaz de promover o encontro com uma outra realidade possível, questionando
assim os valores estéticos, cognitivos e sociais do Ocidente. A Maga é a melhor
representação dessa busca, já que essa personagem constitui-se enquanto
poesia. Horacio Oliveira, por sua vez, protagonista buscador, pensa questões
existenciais e estéticas e projeta suas expectativas de respostas na mulher
amada. Por meio de uma análise interpretativa, tentamos uma aproximação
pessoal desse romance cortazariano, aventurando-nos no jogo proposto pelo
texto, cujos resultados são aqui apresentados.
Palavras-chave: Julio Cortázar. Rayuela. Busca. Literatura. A Maga.
Resumen: Rayuela, de Julio Cortázar, emprende una búsqueda por una literatura
que sea capaz de promover el encuentro con otra realidad posible, cuestionando
así los valores estéticos, cognitivos y sociales del Occidente. La Maga es la
mejor representación de esa búsqueda, ya que esa personaje se constituye como
poesía. Horacio Oliveira, por su vez, protagonista buscador, piensa cuestiones
existenciales y estéticas y proyeta sus expectativas en la mujer amada. Por medio
de un análisis interpretativo, hemos intentado un acercamiento personal a esa
novela cortazariana, aventurándonos en el juego propuesto por el texto, cuyos
resultados son aquí presentados.
Palabras clave: Julio Cortázar. Rayuela. Búsqueda. Literatura. La Maga.
¿Encontraría a la Maga?
O primeiro capítulo de Rayuela, num dos múltiplos inícios possíveis que oferece
1- * Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e profes�
sor do Curso de Letras da Faculdade Saberes (SABERES) – Vitória, ES. weversonletras@yahoo.
com.br.
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o livro, coloca de imediato o leitor diante de uma pergunta: “¿Encontraría a la
Maga?” (1:11)2. A questão sugere, já desde o começo do romance, que a Maga é
a principal representação da busca constante que perpassa toda a obra. Horacio
Oliveira deseja encontrar-se com sua amante ao mesmo tempo em que anseia
por encontrar respostas para as grandes questões existenciais que o atormentam,
alcançando assim o sentido de uma vida que lhe escapa.
A presença da Maga, contudo, é incerta, e o caminho que leva até ela é insólito:
sem encontros marcados, é preciso vagar por Paris, esperar por um encontro
casual, distingui-la dentre as diversas outras mulheres que andam pela cidade,
assim como dentre os vários elementos do mundo urbano, num país ao qual
ambos não pertencem. O caráter de estrangeiros em uma já arcaica capital
mundial (Paris) é significativo: Oliveira sente-se estranho no mundo, incomodase com suas circunstâncias, não é capaz de adequar-se à ordem vigente, que se
lhe impõe; carrega consigo, dessa forma, o peso de não poder ingressar no que
habitualmente se considera normalidade, à qual acredita ser bastante obsoleta e
insuficiente, e de não aceitar a herança cognitivo-cultural do mundo ocidental,
sem, ao mesmo tempo, poder subtrair-se desse mundo.
A Maga, por sua vez, não se coloca diante dessas questões; embora esteja sempre
a perguntar, o que deseja é fruir o momento, viver simplesmente, e justamente
por isso parece alheia à opressão do mundo à sua volta. O encontro com a Maga
serve para Oliveira como uma espécie de refúgio, de possibilidade de colocar-se
diante do ser, e do seu ser, de maneira menos intelectual e mais positivamente
real. Os encontros com a Maga são, infelizmente, imprecisos e precários.
Talvez, por isso, na série de capítulos (1-8) que inicia a primeira parte da obra (“Del
lado de allá”), a organização espaço-temporal é vaga: apresentam-se os encontros
do casal pelas ruas de Paris, as conversas e situações absurdas que ambos vivem
juntos, sua intimidade erótica: um longo elogio à Maga. O primeiro bloco de
capítulos parece referir-se a um tempo ora posterior, ora anterior às sequências
seguintes, apresentadas de forma um pouco mais definida cronologicamente.
A partir do capítulo 9, a Maga é inserida no Clube da Serpente (cujos membros
parecem representar, cada um a seu modo, aspectos do próprio Oliveira), ora
2- Nas citações de Rayuela indicaremos respectivamente, daqui em diante, o capítulo e a página
da edição que adotamos (CORTÁZAR, 1996).
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como uma espécie de deusa3, inspiradora e provocadora de inveja, ora como
a própria representação da ignorância e da estupidez, rechaçada e humilhada.
Após o encontro do clube (capítulo 19 em diante), Oliveira e Maga aparecem em
sua vida de casados: contraditoriamente, enquanto compartilham um quarto
começam a sentir o afastamento que aos poucos se revela entre ambos. Os
ciúmes de Oliveira por Gregorovius, os ciúmes da Maga por Pola e a presença
de Rocamadour, filho da Maga, são os principais problemas percebidos por eles,
encobrindo-se os entraves mais profundos do desencanto proporcionado pela
vida cotidiana. A doença e a morte do menino são os fatores determinantes para
o rompimento do casal: a Maga sai com um destino incerto (talvez continue em
Paris, talvez tenha ido à Itália ou voltado ao Uruguai, seu país natal, talvez se
tenha atirado no rio Sena), enquanto Oliveira, após viver alguns episódios em
Paris (como o encontro com o velho escritor Morelli e com a pianista Berthe
Trépat), acaba por ser flagrado pela polícia em um envolvimento erótico com
uma clocharde, e é deportado a Buenos Aires.
Na segunda parte da obra (“Del lado de acá”, a partir do capítulo 37), desde
a viagem de volta Oliveira insiste em pensar na Maga, vendo-a em outras
mulheres do navio, procurando-a por Montevidéu; chegando à capital argentina,
encontra a Maga em Talita, esposa de seu amigo, Traveler, de quem é vizinho
e companheiro de trabalho, primeiro em um circo e depois em um manicômio.
Oliveira é o único personagem, portanto, que perpassa todo o enredo; a Maga,
contudo, mesmo saltando-se pelos capítulos prescindíveis da terceira parte (“De
otros lados”), intercalados pelo tabuleiro de direção (apresentado no início do
livro) entre os capítulos da primeira e da segunda parte, e saltando-se de Paris
a Buenos Aires, está sempre junta a ele: compõe-se não só de presença, mas, e
sobretudo, de expectativa, ilusão e desejo.
Os capítulos iniciais, pancrônicos, funcionam como uma espécie de prólogo ao
romance, apresentando a angústia fundamental de Oliveira, sua busca e seus
desejos, dos quais a Maga se ergue como maior símbolo, e a preocupação da
própria obra: fazer literatura prescindindo dos princípios lógicos e espaçotemporais. Os tempos verbais neles empregados (mescla de presente, passado,
com uso constante do pretérito imperfeito, e futuro, com frequência do futuro
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- Sobre a simbologia mítica ou arquetípica da Maga para o Clube e para Oliveira, ver AMES�
TOY, 1972, p. 69-71.
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do pretérito, desde a questão inicial) indicam a desorganização cronológica,
e, aliados à variação espacial (ruas por que perambulam, quartos de hotéis),
são elementos indicativos da tentativa de extrapolação dos limites temporais
e espaciais, condicionadores da percepção. Esses capítulos descrevem, dessa
forma, uma espécie de passado mítico vivido pelo casal, onde a Maga é a
grande musa que encanta Oliveira, atendendo não só ao seu desejo erótico, mas,
e sobretudo, aos seus anseios metafísicos, uma vez que ela sabe viver o que ele
apenas, e mal, sabe teorizar.
Mesmo nos capítulos iniciais, não há uniformidade no tratamento que Oliveira
dá à Maga: ela é idolatrada, mas também estranhada, já que é provocadora de
confrontos e, com sua forma de agir, desafia a cultura letrada e lógica à qual
Oliveira está fatalmente ligado. Por isso ela incomoda. Uma das versões do
primeiro encontro com a Maga (há pelo menos duas) é bastante explícita:
Sé que un día llegué a París, sé que estuve un tiempo
viviendo de prestado, haciendo lo que los otros
hacen y viendo lo que otros ven. Sé que salías de un
café de la rue du Cherche-Midi y que nos hablamos.
Esa tarde todo anduvo mal, porque mis costumbres
argentinas me prohibían cruzar continuamente de una
vereda a otra para mirar las cosas más insignificantes
en las vitrinas apenas iluminadas de unas calles que
ya no recuerdo. Entonces te seguía de mala gana,
encontrándote petulante y malcriada, hasta que te
cansaste de no estar cansada y nos metimos en un café
del Boul’Mich’ y de golpe, entre dos medialunas, me
contaste un gran pedazo de tu vida. (1:13)
O andar aleatório da Maga para olhar coisas insignificantes acompanha o
movimento proposto por Rayuela: também o leitor é convidado a sair da
ordem narrativa tradicional e saltar pelos capítulos do livro, deparando-se
frequentemente com fragmentos narrativos, citações e reflexões teóricas que
não dizem diretamente respeito à história que está sendo narrada. O olhar
da Maga é, dessa forma, identificado desde o início com a tentativa da obra:
olhar de outro modo a literatura e o mundo, desconstruir a linearidade e
superficialidade falsificadoras, adquiridas pelo hábito, tentativa da qual o leitor
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pode participar. Sem saber, a Maga questiona a maneira de ver o mundo que
Oliveira (aproximado assim do leitor pretendido por Rayuela) construiu ao
longo da vida, enquanto se adequava à cultura ocidental. Oliveira, na verdade,
já desconfiava dos meios de conhecimento de que dispunha, e da realidade
alcançada por esses meios: a Maga aparece bruscamente como um signo de
sua insatisfação, por um lado, e de seus anseios, por outro. Causa, por isso, ao
mesmo tempo fascinação e desafio. “Oh Maga, y no estábamos contentos” (1:12),
diz Oliveira já nos parágrafos iniciais.
“Me había llevado muy poco comprender que a la Maga no había que plantearle la
realidad en términos metódicos, el elogio del desorden la hubiera escandalizado tanto como
su denuncia. Para ella no había desorden […]” (2:18), diz Oliveira, que estabelece
como meta, então, o acesso a essa outra ordem em que ela vive, lutando por
conseguir desistir de vez de suas tentativas de ordenar intelectualmente o
mundo e, por conseguinte, lutando por alcançar outras vias, não metódicas e
racionais, pelas quais seja possível responder às questões que se propõe. “Llegué
a aceptar el desorden de la Maga como la condición natural de cada instante” (2:17),
diz, e, mais do que aceitação, passa a desejar o ingresso naquilo que depois
vem a chamar de “mundo-Maga”. Oliveira, contudo, pensa nisso, e a Maga não
pode conduzi-lo pelas vias do raciocínio como o conduzia pelas ruas de Paris:
tratando-se de pensamento, ele apresenta uma resistência muito maior, uma
vez que é pelo próprio pensamento que se constitui. Horacio raciocina todo
o tempo, reflete, busca imagens; além disso, não encontra outro elemento que
realmente o identifica, a não ser a cultura e as faculdades analíticas que domina,
já que não tem profissão ou talentos particulares, por exemplo. A Maga lhe é
inacessível, então. Pode ser contemplada, admirada, desejada, mas ele não pode
(embora queira) ser como ela. Ao recordar sua contemplação, reflete:
[…] se me ocurría como una especie de eructo mental
que todo ese abecé de mi vida era una penosa estupidez
porque se quedaba en mero movimiento dialéctico, en
la elección de una inconducta en vez de una conducta,
de una módica indecencia en vez de una decencia
gregaria. La Maga se peinaba, se despeinaba, se volvía
a peinar. Pensaba en Rocamadour, cantaba algo de
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Hugo Wolf (mal), me besaba, me preguntaba por el
peinado, se ponía a dibujar en un papelito amarillo,
y todo eso era ella indisolublemente mientras yo ahí,
en una cama deliberadamente sucia, bebiendo una
cerveza deliberadamente tibia, era siempre yo y mi
vida, yo con mi vida frente a la vida de los otros.
(2:18)
Para Oliveira, os encontros com a Maga são momentos epifânicos, em que se
põe em crise enquanto se extasia com a possibilidade de ser outro, de ser de
outra forma, de separar-se do restante das pessoas, que seguem o fluxo da
normalidade:
Y era tan natural cruzar la calle, subir los peldaños
del puente, entrar en su delgada cintura y acercarme
a la Maga que sonreía sin sorpresa, convencida como
yo de que un encuentro casual era lo menos casual en
nuestras vidas, y que la gente que se da citas precisas
es la misma que necesita papel rayado para escribirse
o que aprieta desde abajo el tubo de dentrífico” (1:11)
Esse devotamento, contudo, não pode sustentar-se indefinidamente: a convivência
diária, quando passam a morar juntos, revela a Oliveira a impossibilidade de
encontrar-se absolutamente com a Maga. Procurada, esperada, desejada, a
Maga é sobretudo ausência. E pela ausência, é imaginação, construção: ilusão
desencantada quando se convive com um menino doente, uma amante e um
rival. Separam-se a mulher idealizada e a mulher real. A segunda, revela-se ao
leitor, tem nome e vida próprias, tem também suas angústias, suas preocupações
e problemas: chama-se Lucía. A qual delas Oliveira realmente deseja? E o que
representa esse desejo?
A Maga e Lucía
Rayuela é narrada a partir de vários pontos de vista, ora em primeira, ora em
terceira pessoa4. Há também inúmeras variações temporais, espaciais, estilísticas
4- Sobre a questão da estrutura narrativa de Rayuela, ver especialmente GENOVER, 1973, p. 4964 e ARRIGUCCI Jr., 2003, p. 261-278.
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e temáticas no interior das unidades narrativas (os capítulos funcionam mais ou
menos como unidades autônomas, a serem dispostas em ordenações distintas,
não se limitando às duas propostas do tabuleiro de direção apresentado no
início da obra, mas possibilitando outras combinações, a cargo do leitor). Os
pontos de vista narrativos, a despeito de sua variedade, podem ser organizados
sobretudo em três grupos:
El narrador es, a veces, Horacio discursivo, dialéctico,
metafísico, con mucha sed, amargo, auto-inquisidor
e inquisidor real pero con lágrimas en los ojos, viril
de una manera desgarrada, desolada y noble, gauloise,
lleno el pecho de humo y de ternura. Otras veces, el
narrador es omnisciente, sujeto de ojo cruel, satírico,
erudito, vomitoso, tercera persona entrometida,
empeñada en empujar Horacio al hoyo. Novelista.
Añádase a estos dos individuos un tercero, Morelli, a
cargo de exponer la teoría de la novela y del lenguaje
que da base a Rayuela. (ALEGRÍA, 1996, p. 721).
Mesmo quando se apresenta em terceira pessoa, contudo, o narrador está muito
próximo a Oliveira, reflete seus pensamentos e suas angústias. Nas cenas em
que Oliveira não participa, é comum encontrá-lo presente como assunto da
conversa entre personagens: o longo diálogo entre Lucía e Gregorovius, na
primeira parte (cap. 24 a 27), gira em torno de Horacio; algo parecido se pode
dizer das conversas entre Traveler e Talita, na segunda parte (capítulos 37, 44
e 45, por exemplo), em que, se Oliveira não é o centro da discussão, seus temas
e questões fundamentais, pelo menos, identificam-se com as angústias do casal
portenho. Os capítulos dedicados a Morelli, por sua vez, ora apresentando
citações do próprio escritor fictício, ora tecendo comentários sobre sua suposta
obra teórica (Morelli é lido e comentado por Oliveira e seus companheiros do
Clube da Serpente), elevam a um plano teórico questões que Oliveira discute no
plano dos personagens.
Oliveira, portanto, ocupa o centro da narração: em primeira pessoa, apresenta
solilóquios e rememora fatos vividos; em terceira, parece procurar um
distanciamento crítico e vê a si mesmo a partir dos olhos de outros. Coloca-se
em outros pontos de vista para tentar alcançar, por meio da narração, a saída
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de si mesmo, a ubiquidade que lhe é negada num nível existencial. O tempo da
narração não é uniforme: em alguns momentos parece estar bem próximo aos
fatos vividos, em outros se percebe um longo afastamento, como se Oliveira
buscasse os fatos narrados em uma memória longínqua, recriando-os, ou,
sobretudo em alguns capítulos iniciais, como se os projetasse em um futuro
hipotético, imaginando-os. Davi Arrigucci Jr. aborda a questão:
A identificação entre o protagonista e o narrador
leva a uma constante confusão entre o tempo dos
acontecimentos narrados e o tempo da narração. Dessa
forma, o leitor não só se vê diante da intersecção de
diversos planos temporais (fatos passados, ora mais,
ora menos remotos; fatos concomitantes e, até mesmo,
posteriores com relação ao tempo da narração), como
também não pode determinar, a cada instante, o grau
de contemporaneidade que aproxima ou distancia
o narrador de sua própria história. Na verdade,
o narrador parece estar mergulhado no próprio
fluxo do devir, em que se dissolvem as distinções
temporais, conforme sugere, no plano da expressão,
o baralhamento dos tempos verbais empregados ao
longo desses dois primeiros capítulos [1-2]. (2003, p.
274)
A distinção entre Oliveira-narrador e Oliveira-personagem separa os fatos
vividos pelo protagonista dos fatos recordados (às vezes idealizados, às vezes
lamentados) pelo narrador. Essa separação provoca uma outra, fundamental: a
Maga existe na narração, é uma criação do narrador, e sua existência dificilmente
pode ser verificada no plano dos personagens. Oliveira-personagem havia se
relacionado com Lucía, compartilhando sua presença com os amigos do Clube;
Oliveira-narrador se encarrega de recriar a personagem chamando-a de Maga.
A dissolução do tempo apontada por Arrigucci Jr. convém ao encontro com a
Maga pela narração: ela mesma é uma recusa da temporalidade, um símbolo do
anseio pelo ingresso em um mundo mítico, a-histórico, anterior (ou posterior) à
categorização do tempo inerente à civilização ocidental. Lucía, por outro lado,
é nomeada quando a narrativa tende a assumir uma ordem cronológica mais
perceptível.
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“Lucía, usted estaba por contar de su niñez” (12:47), diz Ossip Gregorovius; “¿Cómo
sigue el niño, Lucía?” (28:134), pergunta Etienne; “Lucía – dijo Babs, acercando las
dos manos a sus hombros, pero sin tocarla”, ao que segue o narrador: “El líquido
cayó sobre el cobertor, y la cuchara encima. La Maga gritó y se volcó sobre la cama
[...]” (28:144). É a Lucía que os personagens do Clube se dirigem; o narrador
não hesita em continuar chamando-a de Maga. Apenas uma vez nos diálogos
um personagem refere-se diretamente à Maga: “Si fuera cierto que la Maga se
ha ahogado [...]” (29:149), diz Ossip Gregorovius a Oliveira, num momento em
que este se “afogava” em suas especulações morais e metafísicas; Gregorovius
parece referir-se, então, mais ao sentimento de Oliveira do que propriamente ao
destino de Lucía. Por outro lado, Oliveira raramente se dirige à sua amante nos
diálogos chamando-a pelo verdadeiro nome; quando o faz, ouve o protesto:
− Vamos a ver, Lucía: ¿Vos sabés bien lo que es la
unidad?
− Yo me llamo Lucía pero vos no tenés que llamarme
así – dijo la Maga −. La unidad, claro que sé lo que
es. Vos querés decir que todo se junte en tu vida para
que puedas verlo al mismo tiempo. ¿Es así, no? (19:73,
grifos nossos)
Protesto que não se repete em relação aos outros personagens. A Maga, existe,
portanto, para Horacio, e, embora possa ter desempenhado para o Clube um
papel semelhante ao que desempenha para o narrador, está intimamente
associada aos olhos deste, pelos quais o leitor tem acesso à trama.
A proximidade de Lucía na narração é inversamente proporcional à proximidade
da Maga. No capítulo 93, posposto pelo tabuleiro de direção ao capítulo 8, lê-se:
“Hablo de entonces, de Sèvres-Babylone, no de este balance elegíaco en que ya sabemos
que el juego está jugado” (93:352). O “agora” do narrador está, neste momento,
muito distante da ação, e a busca só é possível por meio da escritura. “Pero
ella no estaría ahora en el puente”, lamenta no primeiro capítulo. Lucía está
irremediavelmente perdida, enquanto a Maga é invocada no texto, ou melhor,
por meio do texto:
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Cómo podía yo sospechar que aquello que parecía
tan mentira era verdadero, un Figari con violetas de
anochecer, con caras lívidas, con hambre y golpes
en los rincones. Más tarde te creí, más tarde hubo
razones, hubo madame Léonie que mirándome la
mano que había dormido con tus senos me repitió
casi tus mismas palabras. “Ella sufre en alguna parte.
Siempre ha sufrido. Es muy alegre, adora el amarillo,
su pájaro es el mirlo, su hora la noche, su puente el
Pont des Arts” (Una pinaza color borravino, Maga, y
por qué no nos habremos ido en ella cuando todavía
era tiempo) (1:13, grifos nossos).
Essa imagem vaga e longínqua da Maga fica comprometida quando a narração
mostra mais de perto a convivência diária entre Horacio e Lucía. Entre os capítulos
9 e 20, o distanciamento entre os dois torna-se claro: Lucía é cortejada por
Gregorovius e aí ela conta como foi estuprada na adolescência; adiante, Oliveira
percebe que Lucía é capaz de tomar decisões práticas, como o fato de ela propor
economizarem dinheiro dividindo um mesmo apartamento (19:74), o que não
corresponde à imagem da Maga; por fim, a possibilidade de ambos manterem
relacionamentos extraconjugais e o incômodo provocado pelo filho doente
de Lucía aumentam o afastamento: “Rocamadour había sido un sosegate bastante
desagradable, no sabía por qué” (4:27), já havia dito Oliveira. “Nunca me quisiste, era
otra cosa, una manera de soñar” (20:78), queixa-se Lucía. O comprometimento da
imagem já havia sido anunciado metaforicamente no final do primeiro bloco de
capítulos: quando o casal observava peixes “colgados del aire” em um aquário,
anuncia-se que, subitamente, cessará a admiração e se instalará a percepção da
corrupção. A beleza da imagem mostra sua fragilidade:
Descubríamos como la vida se instala en las formas
privadas de tercera dimensión, que desaparecen si
se ponen de filo o dejan apenas una rayita rosada
inmóvil vertical en el agua. Un golpe de aleta y
monstruosamente está de nuevo ahí con los ojos
bigotes aletas y del vientre a veces saliéndole y
flotando una transparente cinta de excremento
que no acaba de soltarse, un lastre que de golpe los
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pone entre nosotros, los arranca a su perfección de
imágenes puras, los compromete, por decirlo con una
de las grandes palabras que tanto empleábamos por
ahí y en esos días. (8:38)
A Maga volta a ocupar novamente o primeiro plano narrativo depois do
rompimento entre Horacio e Lucía. “Y por qué no, por qué no había que buscar a la
Maga” (21:86), reflete Oliveira num capítulo em que, colocado logo em seguida à
discussão da separação, se assemelha muito aos capítulos iniciais. “Por supuesto
que nos encontraremos mágicamente en los sitios más extraños, como aquella noche en
la bastille, te acordás”. (20:81 grifo nosso), evoca. Com a saída de cena de Lucía,
a Maga se torna um ideal, um símbolo, a ser procurado em outras mulheres,
até alcançar Talita, por meio da qual Oliveira insiste em ver a Maga, na série de
capítulos de Buenos Aires. É certo que Oliveira-personagem se refere à Maga, e
não a Lucía, nos diálogos com Talita e Traveler; nesse período, contudo, Lucía
já estava completamente ausente, e para Oliveira a Maga se convertera em uma
forma, aplicável a outras mulheres. Daí as palavras de Talita a Oliveira, quando
percebe que ela própria está servindo de rosto à Maga: “La Maga era solamente
un nombre, y ahora ya tiene una cara” (54:261).
Além disso, há um (mais um) jogo metanarrativo nessa parte, uma vez que o
pouco que sabem Talita e Traveler sobre a vida de Oliveira em Paris é aquilo que
o próprio Oliveira contou (quase nada, além das vagas referências à Maga, sem
referências concretas à vida de Lucía): Oliveira é aqui um narrador no interior
do plano das personagens em que está inserido, e a Maga não é, para o casal
argentino, nada mais do que narrativa. Uma narrativa omissa, que se recusa a
explicitar a história, resgatada depois pelo narrador onisciente (mesmo assim
muito próximo a Oliveira) que domina essa parte da obra.
A Maga acompanha, portanto, toda a narração, embora Lucía não o faça. A
compreensão de que a distinção entre Lucía e a Maga não é apenas uma questão
de duplicidade de nomes, mas remete a dimensões diferentes da personagem
(embora não a uma oposição, já que a primeira é provocadora da segunda) foi
percebida pela crítica. Lida Aronne Amestoy é bastante clara:
Mi propósito no es discutir Lucía – y creo que el
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desdoblamiento aclara el problema – sino limitarme a
“la Maga”, ese atributo o estado de Lucía condicionado
esencialmente por la presencia de Horacio (quizá, en
menor grado, de Etienne) y por su carácter de mujer.
[…] “La Maga” existe para y por Horacio, encarna sus
falencias – la dimensión codicionada; pero el hecho
de que sea mujer y dueña (por añadidura) de tan
descomunal ignorancia no es fortuito. (1972, p. 66)
Também Arrigucci Jr. aponta a distinção:
Lucía, definida por uma imagem poética que encarna a própria contradição
(concreción de nebulosa), indefinida, na verdade, por essa analogia concreta que
estilhaça os princípios lógicos da razão que define as categorias abstratas, atua,
para Horacio, como um catalisador da perdida dimensão mágica. Desde o
princípio de Rayuela, ela é a Maga; só depois, ficamos sabendo que seu nome
é Lucía. A alcunha, que a designa, aponta para a dimensão mais profunda que
ela evoca, e não se deve apenas à manobra mágica que ela urde para livrar-se de
sua rival, Pola. O sortilégio da boneca alfinetada é somente uma manifestação
da sua coerência com o mundo em que vive: o mundo-Maga, como Oliveira o
chama. Desaparecida Lucía, o fascínio nebuloso desse mundo persiste atraindo
a lucidez inquisitória de Oliveira, como um convite à passagem, um caminho
para o centro (2003, p. 286).
Grande parte da crítica, contudo, utiliza indiscriminadamente ora um ora outro
nome, e mesmo nos textos citados acima, embora seja nítida a percepção de que
a Maga existe como um atributo (ou um conjunto de atributos) de Lucía para
Oliveira, que corresponde mais ao seu desejo do que a características próprias
da mulher com quem se relaciona, a distinção entre o plano da ação vivida
pelos personagens e o plano da narração, onde a Maga se separa de Lucía, por
transcendência, não é muito clara.
A Maga não apenas existe para Oliveira; existe para a narração de Oliveira, é
por ela criada e é um símbolo da própria criação poética. Não é gratuito, como
dissemos acima, o fato de que a própria ordenação dos capítulos e organização
espaço-temporal no interior deles e entre eles corresponda ao andar aleatório
da Maga, a sua maneira de ver o mundo. A Maga é alvo da procura de Oliveira
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que, frustrado em sua busca pessoal, busca recuperá-la pela escritura.
“¿Encontraría a la Maga?” Las primeras palabras
de Rayuela entregan la clave de esa búsqueda
inconclusa “increíble” que, cerrada antes de escribir
el libro, Oliveira representa en la ceremonia de la
escritura del libro. Porque sólo el libro le permitirá
el nuevo encuentro con la Maga, esa “concreción
de nebulosa”, ligeramente cándida, ligeramente
perversa, continuamente recordada y prevista en un
tiempo presente de la literatura […] (FUENTES, 1996,
p. 704).
Ao analisar contos de Julio Cortázar, Passos conclui que “a escritura trabalha a
busca, o sonho; dá-lhes forma e abre a possibilidade de contato com o ‘outro’, ou
seja, com a ficção, enquanto ‘outro modo de mirar’” (1986, p. 60). Para a autora,
em Cortázar o desejo está “indissoluvelmente ligado à escritura” (1986, p. 73):
“A escritura significa o espaço ambíguo da revelação e do simulacro; lugar onde
o desejo se cumpre, é também onde ele se apresenta ‘imaginariamente’ como
realizado” (1986, p. 167); a escritura se constitui, dessa forma, como “mescla
de prazer e engano” (1986, p. 167). Pode-se aplicar as afirmações de Passos à
narração de Rayuela: o narrador busca alcançar, por meio do texto, algo que
foi (ou é) irrecuperável pela ação. A Maga é, por isso, não apenas objeto de
descrição, mas de evocação, sobretudo no primeiro capítulo. Observe-se, por
exemplo, o uso dos vocativos e da segunda pessoa verbal: “Oh Maga, en cada
mujer parecida a vos se agolpaba como un silencio ensordecedor” (1:11) e “Justamente
un paraguas, Maga, te acordarias quizá de aquel paraguas viejo [...]” (1:11).
Seria então a Maga um duplo de Lucía, reflexo do respectivo desdobramento de
Oliveira em narrador e personagem?
A abordagem da questão do duplo é constante nas análises de Rayuela; o tema,
com efeito, estava presente já no planejamento da obra, acessível no Cuaderno de
Bitácora, em que Cortázar registra:
El doppelgänger
Todo lo que podría ser:
Quizá lo que ocurre es otra cosa, que no vemos.
Quizá hay como un segundo acontecer por encima o a través de lo que pasa.
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Quizá hay una duplicación de signo inverso (por eso el sentimiento de
doppelgänger)
Quizá la Maga está ahí, entonces.
Quizá nunca hubo Maga e solamente Talita.
Quizá hubo solamente Pola, Lilith. (1996b, p. 507)
Lucía não aparece na lista, e há outra personagem feminina, Lilith, que não
entra na obra. Já havia, para Cortázar, durante a composição de Rayuela, a
possibilidade da inexistência da Maga, pelo menos no mesmo plano das outras
personagens femininas. Não nos interessa aqui verificar na obra cada uma das
possibilidades acima; o que motiva a citação é a constatação de que, desde o
início de sua produção, Rayuela foi pensada como um complexo jogo de espelhos,
onde os personagens se duplicam, se dividem e se fundem uns com os outros.
Os caracteres individuais se apagam em função de sua participação numa rede
de personagens intimamente relacionados.
É possível, então, entender a Maga como um duplo de Oliveira: para Leônidas
Câmara, por exemplo, a “Maga seria o outro lado do ser de Oliveira, a parte
que lhe falta na vida. E Talita seria para Horacio o duplo da Maga” (1983, p.
50). Estendendo a hipótese, pode-se dizer que as várias personagens femininas
de Rayuela mantêm relação com a Maga: Pola, Emmanuèle, Talita, Gekrepten e
Babs, sobretudo, seriam seus diversos duplos: por inversão, por oposição, por
contiguidade ou por complementação.
Barrenechea, nesse sentido, reconhece uma diversidade de duplos em Rayuela,
e tenta classificá-los em três grupos:
1. Complementarios, desdoblamiento en opuestos que recompondrían la unidad
perdida (Maga/Horario, Traveler/Horacio).
2. Gemelos, identificación en figuras semejantes con leves variaciones (Maga,
Talita, Pola; Horacio, Morelli; Talita, Traveler).
3. Versiones deformantes, lectura humorística, ridícula, grotesca y degradada de
los héroes (Ossip, de Horacio; Berthe Trépat y la clocharde Emmanuèle, de la
Maga). (1996, p. 565)
Oliveira está, nessa classificação, numa posição central; dele deriva a
hierarquia. O próprio Oliveira, contudo, desdobra-se continuamente, por ser
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ao mesmo tempo narrador e personagem, por zombar constantemente de si
próprio e por tentar agir sempre contra sua própria tendência, por exemplo.
Barrenechea aponta essa complexidade, e eleva a questão do duplo em Rayuela
a possibilidades infinitas:
Si se amplía el estudio de los personajes y la función de los dobles a otros
niveles que no sean los de la estructura, incluyendo además al narrador, cabría
desarrollar algunos aspectos. Entrarían en ellos las propias duplicaciones
de Horacio Oliveira que en sus soliloquios tiende a desdoblarse en narrador
y personaje para tomar distancia con respecto a sí mismo. Esta disyunción
puede aparecer en el personaje independientemente de la voz enunciadora. Al
acumularse ambos procedimientos se produce un desdoblamiento en segundo
grado que multiplica las perspectivas. Otras duplicaciones en la narratividad
o en el uso de los símbolos iluminarían el trabajo constante de fragmentación
y unificación transformados hasta lo infinito en la escritura de Rayuela y en el
Cuaderno. (1996, p. 565)
Por mais apropriadas que sejam as observações de Câmara e Barrenechea,
incorrem em uma negligência importante: não consideram Lucía. A atribuição
de dois nomes à personagem a aproximaria, neste caso, de outros personagens
que apresentam nomes duplos – Horacio Oliveira, Ossip Gregorovius, Manuel
Traveler, por exemplo. A Maga, contudo, não se chama Lucía Maga. É chamada
ora por um, ora por outro nome5, e cada um aponta para uma realidade a que
ela pode remeter. Enquanto Lucía (derivado de “luz”, o nome pode fazer uma
referência ao “Século das Luzes”, ícone do que Oliveira quer afastar de si) está
sempre querendo aprender algo, é estúpida e rotineira, a Maga (de “magia”,
o que aponta para os aspectos obscuros, míticos ou inconscientes, geralmente
ignorados pelos sistemas cognitivos ocidentais) se ergue como oposição à
especulação de Oliveira e de todo o Clube. Lucía não se adéqua ao grupo por
incompetência intelectual; a Maga não se adéqua por transcender, pela intuição,
a necessidade de conhecimento. A separação está mais próxima, contudo, à
forma como a personagem é acolhida e interpretada pelos outros, sobretudo
por Oliveira, do que à sua constituição interna.
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- Algo semelhante, em menor grau, acontece com Talita, que é algumas vezes nomeada de Ata�
lía, e com Manuel Traveler, que é chamado, em algumas circunstâncias, de Manolo ou Manú.
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“La Maga es un personaje real, desrealizado hasta alcanzar el nivel de una figura-símbolo.
Su inocencia poética se contrapone al mundo intelectual y suficiente del Club; es el vivir
mágico, la entrega sin desdoblamiento crítico, pero también sin responsabilidad”, afirma
Sola (1968, p. 93). Sola não nomeia Lucía, a personagem real, desrealizada até
se tornar a Maga. Entendemos, então, que Lucía entra no grupo dos duplos,
junto às outras mulheres; a Maga, nascida em Lucía, se prolonga ou se nega
em todas as personagens femininas com quem Oliveira manteve algum tipo
de relacionamento, inclusive Lucía, às quais ele concede ou nega os atributos
“mágicos”, por meio da narração. Mais do que duplo das outras personagens
femininas e de Oliveira-narrador, a Maga é uma zona de convergência para
onde apontam os diversos aspectos da obra, é o aspecto fundamental para a
constituição da “figura”, conceito caro a Cortázar, que abordaremos adiante.
“Lucía” e “Maga” referem-se à duplicidade da própria realidade: por um
lado, a realidade dada, pré-fabricada, a ser assimilada passivamente por
aqueles que aceitam a imposição de “la Gran Costumbre” (73:315); por outro, a
realidade a ser alcançada, ativamente formulada e construída por quem quer
viver autenticamente, superando as limitações impostas pelo hábito, onde o ser
não estaria falseado pelo sistema de convicções e conhecimentos herdados da
tradição ocidental − “el otro lado de la costumbre” (73:314). Nesse sentido, Leônidas
Câmara observa que “na ficção de Cortázar o recurso habitual da mutação da
personagem no seu duplo está intimamente ligado a um ‘duplo registro’ da
realidade” (1983, p. 25):
Em Cortázar, que se debate na recusa do dualismo
característico da cultura ocidental, com seu sistema
binário de pensamento lógico, há extrema necessidade
de insinuar na ficção uma ambiguidade de ordem
metafísica e uma indagação ontológica permanente. As
duas linhas teriam um ponto de convergência, toda vez
que a realidade imposta pela vida pode ser violentamente
transportada pela rivalidade desejada. Algo que se
aproxima do romantismo, do primeiro romantismo
alemão, quando se defronta com o dualismo finito e
infinito, o eu e o não eu, posições delineadas por Kant
e resolvidas pela atitude neoplatônica do Absoluto de
Schelling, como se a filosofia – e assim pensa Schelling
– nascesse da poesia. Uma nova ordem mitológica.
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(CÂMARA, 1983, p. 26)
Câmara distingue, então, a abordagem psicológica da questão do duplo –
desdobramento da pessoa em múltiplas personalidades – de uma abordagem
mais própria à filosofia e à arte: “o duplo como instrumento de apreensão
a-racional da realidade”. Para o autor, a distinção de personagens em duplos
serve, assim, de base ora para a representação múltipla da realidade, ora para
afirmação do irracionalismo (1983, p. 27)6.
A Maga é figura-símbolo do irracionalismo proposto por Rayuela, irracionalismo
não entendido como indiferença ou recusa total à razão, mas como rejeição
a essa forma de razão proposta segundo os moldes ocidentais, motivada
pela constatação de sua insuficiência; uma recusa aliada à busca de outras
possibilidades de acesso ao conhecimento, por meio das quais se poderia
ascender a outros níveis de compreensão do mundo, outras formas de encontro
com o ser. O homem ocidental, do qual Oliveira é um grande exemplar,
contudo, não pode prescindir tão facilmente de suas estruturas mentais, não
pode mais escolher; é preciso, então, reinventar a partir de dentro, utilizando os
mecanismos que tem às mãos e, por meio deles, recriar a realidade.
Nossa verdade possível tem que ser invenção, afirma-se no capítulo 73, outro
possível início da obra proposto pelo tabuleiro de direção. Para superar as
dicotomias que viciam as escolhas e a compreensão do homem representado
por Oliveira, para chegar ao outro lado do hábito, é preciso recriar a realidade.
A via privilegiada por Oliveira-Cortázar, para isso, é a escritura, entendida
como arte.
Todo es escritura, es decir fábula. ¿Pero de qué nos
sirve la verdad que tranquiliza al propietario honesto?
Nuestra verdad posible tiene que ser invención, es decir
escritura, literatura, pintura, escultura, agricultura,
piscicultura, todas las turas de este mundo. Los valores,
turas, la santidad, una tura, la sociedad, una tura, el
amor, pura tura, la belleza, tura de turas (73:314).
6- Ver todo o estudo de Leônidas Câmara (1983) para uma visão mais ampla da questão do duplo
em Cortázar, especialmente em Rayuela.
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A invenção, contudo, não é completa oposição ao mundo: não é possível ao
homem dispor de outros elementos senão os que já tem. É preciso recriar a
partir de dentro:
Puede ser que haya otro mundo dentro de éste, pero
no lo encontramos recortando su silueta en el tumulto
fabuloso de los días y las vidas, no lo encontraremos
ni en la atrofia ni en la hipertrofia. Ese mundo no
existe, hay que crearlo como el fénix. Ese mundo
existe en éste, pero como el agua en el oxígeno y el
hidrógeno, o como en las páginas 78, 457, 3, 271, 688,
75 y 456 del diccionario de la Academia Española
está lo necesario para escribir un cierto endecasílabo
de Garcilaso. Digamos que este mundo es una figura,
hay que leerla. Por leerla entendamos generarla. ¿A
quién le importa un diccionario por el diccionario
mismo? Si de delicadas alquimias, ósmosis y mezclas
de simples surge por fin Beatriz a orillas del río, ¿cómo
no sospechar maravilladamente lo que a su vez podría
nacer de ella? (71:311)
A Maga é invenção, criada por meio da combinação dos elementos da experiência
de Oliveira com Lucía, de suas questões existenciais, de seus anseios e desejos;
é produto e meta de sua escritura. O duplo registro da personagem, assim como
a fragmentação do protagonista, é metáfora da multiplicidade da realidade, das
várias possibilidades de acesso a essa realidade, seja pela via do conformismo
falsificador, rejeitado por Oliveira, seja pela invenção criativa e possibilitadora
do acesso autêntico, na qual ele se empenha.
A Maga é sobretudo literatura, é símbolo da literatura, e é nesse sentido que é
narrada. É claro, todo o livro é literatura, o leitor tem em mãos um romance. Mas
há aqui um recuo metanarrativo: Oliveira, narrador, escreve uma personagem
sobre outra, e reescreve-se a si próprio, reformula-se enquanto personagem.
Oliveira desenha a Maga, projeta-se nela, idealiza-a, delata-a, deixa que o leitor
perceba sua invenção. Ao escrever a Maga, explicita seu projeto, indica que
por trás dela há Lucía, e desmascara assim seu jogo aos olhos do leitor. Não
abdica, contudo, de continuar buscando a Maga, porque essa desistência seria a
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confissão última e fatal de sua derrota.
Toco tu boca, con un dedo toco el borde de tu boca,
voy dibujándola como si saliera de mi mano, como si
por primera vez tu boca se entreabriera, y me basta
cerrar los ojos para deshacerlo todo y recomenzar,
hago nacer cada vez la boca que deseo, la boca que
mi mano elige y te dibuja en la cara, una boca elegida
entre todas, con soberana libertad elegida por mí para
dibujarla con mi mano en tu cara, y que por un azar
que no busco comprender coincide exactamente con
tu boca que sonríe por debajo de la que mi mano te
dibuja. (7:36)
Ao redesenhar Lucía, impondo-se sobre ela, Oliveira não pode deixar de
perceber, contudo, que por baixo de seu desenho há uma outra boca que lhe
sorri. Sob a idealização há o espelho. E é justamente para sentir-se soberano
sobre o que vê no espelho que projeta e idealiza. A Maga é o reflexo de sua
condenação e sua possibilidade de salvação.
Espelho Ideal
Não é fácil distinguir, na imagem, o que é reflexo daquele que se vê por meio
de um espelho e o que é idealização, desejo. Lucía e Maga se complementam, se
sobrepõem, se confundem constantemente. Os aspectos não se opõem nela, mas
naquele que se vê refletido: Horacio, sim, é cindido, tem consciência de si, do
que se tornou, e sabe vagamente o que gostaria de ser. A Maga é uma tomada de
consciência, justamente no momento em que Oliveira gostaria de deixar de ser
consciente. Ela é força poética, é ser, enquanto ele é no máximo poeta. Oliveira
imagina, mas não pode se converter na imagem.
Y así es cómo los que nos iluminan son los ciegos.
Asi es cómo alguien, sin saberlo, llega a mostrarte
irrefutablemente un camino que por su parte sería
incapaz de seguir. La Maga no sabrá nunca cómo su
dedo apuntaba hacia la fina raya que triza el espejo,
hasta qué punto ciertos silencios, ciertas atenciones
absurdas, ciertas carreras de ciempiés deslumbrado
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eran el santo y seña para mi bien plantado estar en mí
mismo, que no era estar en ninguna parte. En fin, eso
de la fina raya… Si quieres ser feliz como me dices / No
poetices, Horacio, no poetices7. (98:360)
Pensar em Maga e Lucía como polos opostos de um movimento dialético é
operar nela uma separação equivocada. A proposta final da obra é de superação
da dialética: “el ser será otra cosa que cuerpos y, que cuerpos y almas y, que yo y lo
otro, que ayer y mañana (61:295), e “Entre el Yin y el Yang, ¿cuántos eones? Del sí al
no, ¿cuántos quizá?” (73:314). Na Maga, os opostos se integram numa unidade
final. Em Oliveira, não, e é ele quem estabelece a oposição. O equívoco, então,
é de Oliveira.
Davi Arrigucci Jr. vê em Oliveira e na Maga a oposição antitética correspondente
aos modos de encarar a realidade, de forma que cada um dos personagens
encarna um dos polos das antinomias básicas características do pensamento
ocidental: “Oliveira é a ‘razão’, e a Maga, a ‘intuição’; Oliveira é a ‘contemplação’,
e a Maga, a ‘ação’, e assim por diante.” (2003, p. 287). Apoia-se na metáfora
utilizada pelo próprio Oliveira8 para indicar a oposição entre o requinte cultural
e modernidade histórica de Oliveira (Sèvres), por um lado, e “a dimensão
primitiva e mágica de Lucía” (2003, p. 292 – diríamos “da Maga”), por outro.
“Ao identificar, pela metáfora, a Maga com Babylone, Oliveira vê nela uma
possibilidade de comunicação com a plenitude do real, com o ‘outro lado’,
com a outridade, que é também uma outra idade, o não-tempo primordial da
integralidade do ser” (2003, p. 292)9. É importante notar que na Maga não há
oposição: embora ela represente para Oliveira o seu contrário, ou melhor, o
7- Referência aos versos do poeta espanhol Joaquín Bartrina (1850-1880): “Si quieres ser feliz,
como me dices, / no analices, muchacho, no analices.”
8- “[…] y cambiamos dos palabras y nos fuimos a tomar una copa de pelure d’oignon en un
café de Sévre-Babylone (hablando de metáforas, yo delicada porcelana recién desembarcada,
HANDLE WITH CARE, y ella Babilonia, raíz de tiempo, cosa anterior, primeval being, terror
y delicia de los comienzos, romanticismos de Atala pero con un tigre auténtico esperando detrás
del árbol)” (93:352).
9- Todo o estudo de Arrigucci Jr., “A destruição arriscada”, é muito interessante, nesse sentido.
(2003, p. 261-305)
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contrário do que ele efetivamente é, indica também o que ele quer ser, o que
vislumbra como possibilidade para si, e, portanto, é uma exposição do seu
suposto ser potencial. A cisão está, assim, em Oliveira: a Maga é unidade, e a
distinção nela entre as faces “Lucía” e “Maga” não é mais do que o reflexo da
cisão de quem a vê. Por isso a Maga “não saberá nunca” que é a responsável
pela percepção do estilhaçamento de Oliveira.
Gregorovius, quando fala a Lucía, percebe que esta não se dá conta do que é
capaz de provocar: “Es curioso cómo ha ido cambiando Horacio en estos meses que
lo conozco. Usted no se ha dado cuenta, me imagino, demasiado cerca y responsable de
ese cambio” (26:116). Horacio, de fato, havia evitado torná-la consciente do que
se passava:
Nunca te llevé a que madame Léonie te mirara la
palma de la mano, a lo mejor tuve miedo de que
leyera en tu mano alguna verdad sobre mí, porque
fuiste siempre un espejo terrible, una espantosa
máquina de repeticiones, y lo que llamamos amarnos
fue quizá que yo estaba de pie delante de vos, con una
flor amarilla10 en la mano, y vos sostenías dos velas
verdes y el tiempo soplaba contra nuestras caras una
lenta lluvia de renuncias y despedidas y tickets de
metro (1:12).
A preocupação de Horacio, no entanto, não se reduz a não revelar a Lucía o
processo que ocorre por meio dela. Ele tem medo porque ainda não pode lidar
tranquilamente com o que ela lhe revela. Inquieta-se, impacienta-se diante de
uma imagem dupla de si mesmo, que não consegue ainda unificar. “Y así me
había encontrado con la Maga, que era mi testigo y mi espía sin saberlo, y la irritación
de estar pensando en todo eso y sabiendo que como siempre me costaba mucho menos
pensar que ser […]” (2:18), narra.
Diante disso, prefere fechar os olhos para si mesmo, para contemplar a Maga,
e continuar buscando-a para, quem sabe, pela proximidade (alcançada pela
escritura, essa forma de autocomposição), chegar a ser como ela.
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- Possível referência de Cortázar a seu próprio conto, “Una flor amarilla” (2007, p. 455-462),
em que se aparece o tema do duplo e da imortalidade.
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Y mirá que apenas nos conocíamos y ya la vida urdía
lo necesario para desencontrarnos minuciosamente.
Como no sabías disimular me di cuenta en seguida
de que para verte como yo quería era necesario
empezar por cerrar los ojos, y entonces primero
cosas como estrellas amarillas (moviéndose en una
jalea de terciopelo), luego saltos rojos del humor y de
las horas, ingreso paulatino en un mundo-Maga que
era la torpeza y la confusión pero también helechos
con la firma de la araña Klee, el circo Miró, los espejos
de ceniza Vieira da Silva, un mundo donde te movías
como un caballo de ajedrez que se moviera como
una torre que se moviera como un alfil (1:13, grifos
nossos).
Tenta superar pela escrita o desencontro ocorrido na vida. Os olhos não podem,
contudo, fechar-se de todo, já que para escrever a Maga é necessário usar
palavras, as palavras de Oliveira, que a afastaram dela. Toda a composição do
texto é, então, uma tentativa, nunca completamente lograda, de afastar-se de
si próprio, de sua própria linguagem, para alcançar o mundo-Maga ansiado.
“¿Por qué tan lejos de los dioses? Quizá por preguntarlo” (147:450), diz. O sucesso
definitivo não é possível porque para ser como a Maga é necessário recusar de
vez as palavras, estar somente. “Feliz de ella que podía creer sin ver, que formaba
cuerpo con la duración, el continuo de la vida. Feliz de ella que estaba dentro de la pieza,
que tenía derecho de ciudad en todo lo que tocaba y convivía, pez río abajo, hoja en el
árbol, nube en el cielo, imagen en el poema” (3:25). Se não é possível prescindir da
linguagem, se não há outro modo de encontrar-se com a Maga senão dizendo-a,
é necessário mudar a linguagem, torná-la outra, transferi-la do lado Oliveira
para o interior da Maga. Pela palavra renovada, estar dentro do ser.
Entre la Maga y yo crece un cañaveral de palabras,
apenas nos separan unas horas y unas cuadras y ya mi
pena se llama pena, mi amor se llama mi amor… Cada
vez iré sintiendo menos y recordando más, pero qué
es el recuerdo sino el idioma de los sentimientos […].
Y no le hablo con las palabras que sólo han servido
para no entendernos, ahora que ya es tarde empiezo
a elegir otras, las de ella, las envueltas en eso que ella
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comprende y que no tiene nombre, auras y tensiones
que crispan el aire entre dos cuerpos o llenan de polvo
de oro una habitación o un verso. […] No necesita saber
como yo, puede vivir en el desorden sin que ninguna
consciencia de orden la retenga. Ese desorden que es
su orden misterioso, esa bohemia del cuerpo y el alma
que le abre de par en par las verdaderas puertas. Su
vida no es desorden más que para mí, enterrado en
prejuicios que desprecio y respeto al mismo tiempo.
Yo, condenado a ser absuelto pela Maga que me juzga
sin saberlo. Ah, dejame entrar, dejame ver algún día
como ven tus ojos (21:87-88, grifos nossos).
As palavras que enchem de pó de ouro um quarto ou um verso só podem ser
literatura, arte. A Maga é encontrada, como mencionado acima, sobre “el Pont des
Arts”, e a voz madame Léonie, uma autorização mística, oposta aos preconceitos
ocidentais, confirma que esse é seu lugar. Ponte das Artes: “el nombre alude
simbólicamente al arte como puente para llegar a la Maga” (AMESTOY, 1972, p. 68).
Em outro momento da narrativa, a Maga é encontrada saindo de uma livraria,
sinal de sua composição literária, como o próprio Oliveira explicita: “Y ella salió
de la librería (recién ahora me doy cuenta de que era como una metáfora, ella saliendo
nada menos de que de una librería” (93:352). Os últimos episódios narrados da vida
de Lucía estão ligados à literatura: uma carta que ela deixa a Rocamadour e um
romance que ela havia lido (cap. 32 a 34). Varela Jácome, referindo-se à Maga,
afirma que “configuram su presencia varias resonancias literarias” (1992, p. 166).
A escritura idealizada da Maga ocorre por meio da transformação de Lucía
em literatura, por parte de Oliveira-narrador. A busca pela Maga não é, assim,
expressão e reflexo da busca de Oliveira e, com ele, do próprio Cortázar,
pelo encontro com a palavra plena, que não mascare, mas que dê acesso ao
ser. A Maga é a maior e mais completa representação, em Rayuela, da própria
literatura.
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Algumas considerações sobre o leitor e
o olhar em Dom Casmurro, de Machado
de Assis
Wolmyr Aimberê Alcantara Filho1*
RESUMO
A metáfora do olhar como espelho da alma se tornou cada vez mais freqüente
na obra machadiana, sobretudo a partir da chamada Segunda Fase do escritor.
Capitu é apenas um exemplo, entre muitos, nos escritos do Bruxo do Cosme
Velho, de como os olhos guardam mistérios e perigos insondáveis, que podem
tragar, simbólica ou literalmente, os observadores menos precavidos. A questão
do olhar em Machado, no entanto, parece apontar também para outra vertente: a
impossibilidade real de conhecermos a verdade sobre alguém ou uma situação.
A busca incansável por mudanças de expressão, giros de cabeça, olhares baixos
ou de soslaio, que parecem esconder algo, surgem em Machado como a nos
dizer, por imagens, o que Jacó Tavares, personagem das Memórias póstumas
de Brás Cubas, tão bem expressou, verbalmente: que a sinceridade absoluta é
incompatível com as sociedades modernas.
Palavras-chave: Dom Casmurro, Machado de Assis, olhar, sociedade.
Abstract: The metaphor of the look as a mirror of the soul has become increasingly
frequent in Machado’s work, especially from the so-called second phase of the
writer. Capitu is just one example among many, in the writings of the Wiizard
of the Cosme Velho of how the eyes can keep unfathomable mysteries and
dangers that can down, symbolically or literally, the least cautious observers.
The question of the look in Machado, however, also seems to point to another
aspect: the impossibility of knowing the real truth about someone or a situation.
The relentless search for changes in expression, head turnings, looks down or
sideways, which seems to hide something, rise in Machado to tell us, for images,
what Jacó Tavares, from Memórias póstumas de Brás Cubas, so well expressed
verbally: that absolute honesty is incompatible with modern societies.
Keywords: Dom Casmurro, Machado de Assis, look, society.
1- * Mestre em Estudos Literários pela UFES, professor da Faculdade Saberes.
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Algumas considerações sobre o leitor e o olhar em
Dom Casmurro, de Machado de Assis
O resto aparecerá um dia, se aparecer algum dia.
Conselheiro Aires
Dom Casmurro, como em geral o restante da obra madura de Machado de Assis,
é um livro lacunar. Bentinho a ele assim parece se referir, no Capítulo LIX:
“Convivas de boa memória”.
Logo após confessar não ser exímio em recordar fatos passados, incapaz de
dizer quais calças usou no dia anterior (em contradição às minúcias narradas
por ele sobre fatos ocorridos há quarenta anos), escreve:
[...] E antes seja olvido que confusão, explico-me.
Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo
se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio
algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que
faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar
todas as cousas que não achei nele. Quantas idéias
finas me acodem então! Que de reflexões profundas!
Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas
folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas
águas, as suas árvores, os seus altares, e os generais
sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e
os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e
tudo marcha com uma alma imprevista.
É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor
amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim
podes também preencher as minhas. (Assis, 1997, p.
98)
À exceção da falsa modéstia do trecho final, Bento parece resumir essa importante
característica do romance, isto é, de ser recheado de lacunas que nos vedam –
em última instância – uma leitura calcada em solo firme, isenta de dúvidas e
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desconfianças.
Logo no início, após apresentar o livro, o narrador se detém no capítulo “A
denúncia” (cujo título se torna absolutamente sugestivo, logo que compreendemos
a direção que o enredo tomará, mais à frente). No trecho, Bentinho narra o que
secretamente ouviu da conversa entre José Dias, o agregado da família, e a mãe,
D. Glória:
– D. Glória, a senhora persiste na idéia de meter o
nosso Bentinho no seminário? É mais que tempo, e já
agora pode haver uma dificuldade.
– Que dificuldade?
– Uma grande dificuldade.
Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois
de alguns instantes de concentração, veio ver se
havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou
e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na
casa ao pé, a gente do Pádua.
– A gente do Pádua?
– Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas
não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso
Bentinho ande metido nos cantos com a filha do
Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles
pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar
para separá-los.
– Não acho. Metidos nos cantos?
– É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos.
Bentinho quase que não sai de lá. A pequena é uma
desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as
cousas corressem de maneira, que... Compreendo o
seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos, parecelhe que todos têm a alma cândida... (Assis, 1997, p.
15)
O diálogo prossegue com D. Glória, apoiada por tio Cosme, optando por não
aceitar a versão de José Dias, pois, para ela, Capitu e Bentinho são ainda “duas
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criançolas”. A insistência faz a mãe do futuro seminarista verter algumas
lágrimas, à lembrança do afastamento do filho.
Vários capítulos à frente, comentando o que Bento ouvira, Capitu indaga ao
amigo:
– E que interesse tem José Dias em lembrar isto?
perguntou-me no fim.
– Acho que nenhum; foi só para fazer mal. É um
sujeito muito ruim; mas, deixe estar que me há de
pagar. Quando eu for dono da casa, quem vai para a
rua é ele; você verá; não me fica um instante Mamãe
é boa demais; dá-lhe atenção demais. Parece até que
chorou. (Assis, 1997, p. 30)
A pergunta de Capitu, que Bento tão prontamente responde, talvez merecesse
maior atenção. Escapa à percepção do jovem a razão última do gesto estudado
de José Dias, ao recordar à D. Glória a ideia do seminário que supunha talvez
esquecido e, de quebra, lançar a ponta de uma dúvida (seria a primeira “ponta
de Iago?”) a respeito das relações do “filho amantíssimo” com a filha do
funcionário do Ministério da Guerra.
Certamente, seu interesse pode ser, tão somente, “fazer mal”. Mas há outras
possibilidades, em um livro tão ambíguo. O agregado pode também supor que,
sem Bentinho em casa, e com tio Cosme e tia Justina já idosos, ele é quem passará
a dar as cartas por lá. A razão ainda pode ser outra. Uma vez que José Dias não
morre de amores por Pádua, nada mais natural que transferir seus sentimentos
à filha deste, e, assim, impedir um possível casamento que seria vantajoso, tanto
para Capitu, como para toda a sua família. De fato, há em Dom Casmurro, parece,
certo teatro entre os agregados, cada um nutrindo para si um pouco daquele
“amor da nomeada”, do qual nos fala Brás Cubas, mas que, entre aqueles que
vivem do favor, pode ser traduzido como necessidade e sobrevivência2.
2- O trecho é o do episódio em que, nas Memórias Póstumas, o pai de Brás vem visitá-lo na Tijuca, onde se encontra recluso, para chamar-lhe de volta à vida em sociedade: “E foi por diante
o mágico, a agitar diante de mim um chocalho, como me faziam, em pequeno, para eu andar
depressa, e a flor da hipocondria recolheu-se ao botão para deixar a outra flor menos amarela,
e nada mórbida - o amor da nomeada, o emplasto Brás Cubas” (Assis, 2000, p. 60). O caso dos
agregados de Dom Casmurro, no entanto, parece se ajustar mais à situação de Dona Plácida,
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Assim é que Prima Justina sente ciúmes de Capitu, quando esta se encarrega
de cuidar de D. Glória na ocasião de uma febre, permanecendo dia e noite na
alcova daquela senhora (“Não precisa correr tanto; o que tiver de ser seu às
mãos lhe há de ir” diz-lhe a velha viúva3.). A fala do Pádua à Bento, quando vem
se despedir do adolescente, às vésperas deste ir para o seminário, é também um
bom exemplo desse teatro (“Se algum dia perder sua mãe e seu tio, – cousa que
eu, por esta luz que me alumia, não desejo, porque são boas pessoas, excelentes
pessoas, e eu sou grato às finezas recebidas... Não, eu não sou como outros,
certos parasitas, vindos de fora para desunião das famílias, aduladores baixos,
não; Eu sou de outra espécie; não vivo papando os jantares nem morando em
casa alheia... Enfim, são os mais felizes!4”), bem como o engraçado – mas não
menos significativo – episódio em que o pai de Capitu e o agregado da família
Santiago brigam para ver quem levará o pálio na procissão (com vitória para o
segundo).5
Finalmente, poderíamos extrapolar e imaginar que o cinqüentenário José Dias
guardasse para si algum sentimento a mais do que gratidão pela viúva mãe
de Bentinho. Também nesse caso, a ausência do adolescente na casa seria bem
vinda... Mas isso já seria superinterpretar a obra...
O fato é que a razão última do gesto de José Dias não pode ser alcançada, com
certeza de sucesso, nem pelos personagens, nem pelo leitor.
que, para escapar à miséria, torna-se cúmplice dos amores de Brás e Virgília, sendo por isso
muito grata ao casal de amantes. “Estive lá muitos meses, um ano, mais de um ano, agregada,
costurando. Saí quando Iaiá casou. Depois vivi como Deus foi servido. Olhe os meus dedos, olhe
estas mãos... E mostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas da agulha.
– Não se cria isto à toa, meu senhor; Deus sabe como é que isto se cria... Felizmente, Iaiá me
protegeu, e o senhor doutor também... Eu tinha um medo de acabar na rua, pedindo esmola . . .”
(Assis, 2000, p. 106)
3- Assis, 1997, p. 110.
4- Assis, 1997, p. 85.
5- Ainda sobre as relações entre Pádua e José Dias, deve-se lembrar que o agregado é o único na
casa de D. Glória que o chama, pejorativamente, de “Tartaruga”, por conta da aparência física do
funcionário do Ministério da Guerra.
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O olhar
Não à toa, os personagens estão sempre em busca de significação para qualquer
gesto, mover de cabeça, tom de voz dado a uma frase e, principalmente, a
maneira de olhar do outro.
A metáfora do olhar como espelho da alma está presente em Dom Casmurro,
como a ratificar um tema tão caro ao romance: a dissimulação.
Palavra presente em mais de uma ocasião, dá mesmo título ao capítulo LXV.
Nele, Bento a utiliza de maneira quase inocente:
Mas comi mal, estava tão contente com aquela grande
dissimulação de Capitu que não vi mais nada, e, logo
que almocei, corri a referir-lhe a conversa e a louvarlhe a astúcia. Capitu sorriu de agradecida.
– Você tem razão, Capitu, concluí eu; vamos enganar
toda esta gente. (Assis, 1997, p. 109)
Nós a vemos transformada em verbo, no Capítulo LXXVI, quando Capitu
oferece ao marido explicações sobre ter ou não olhado um rapaz que passava a
cavalo:
Confessou-me que não conhecia o rapaz, senão como
os outros que ali passavam às tardes, a cavalo ou a
pé. Se olhara para ele, era prova exatamente de não
haver nada entre ambos; se houvesse, era natural
dissimular. (Assis, 1997, p. 123)
Também surge no Capítulo CXXVI, quase ao fim do romance, quando o narrador
procura vestígios da culpa da esposa:
Não seria o mesmo caso de Capitu. Cuidei de
recompor-lhe os olhos, a posição em que a vi, o
ajuntamento de pessoas que devia naturalmente
impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo que
dissimular. (Assis, 1997, p. 191)
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Tendo-se por base que nenhum dos personagens diz de fato o que mora em
seu interior, dissimulando a todo instante, necessário é buscar suas verdadeiras
razões e interesses nos gestos e olhares em que aqueles se deixam entrever,
mesmo que à revelia dos “atores”, se assim podemos chamar a Bento e aos seus,
tendo por base a comparação de que a vida é uma ópera, ouvida pelo narrador
de um tenor italiano6.
Lembremo-nos do que diz José Dias ao “filho amantíssimo” de D. Glória sobre
Capitu:
A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar
daqueles olhos que o Diabo lhe deu... Você já
reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua
e dissimulada. (Assis, 1997, p. 40)
Bento, a partir desse momento, é que começará a observar mais detidamente os
olhos da amiga:
– Juro. Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera
deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada.” Eu
não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia,
e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixouse fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se
nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor
e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da
contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu
intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los
mais de perto, com os meus olhos longos, constantes,
6- Em um longo capítulo, Marcolini, um tenor italiano, já decadente, expõe a Bentinho o sig�
nificado da definição: “A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo
soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o soprano e o contralto que
lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimários. Há coros a numer�
osos, muitos bailados, e a orquestração é excelente...” (Assis, 1997, p. 13). Às negações de Bento,
ele completa, observando que, na ópera do mundo, Deus é o poeta e a música é de Satanás. Este
último, após tentativa de rebelião, quando sua partitura não foi aceita, levou o libreto de Deus para
o inferno, compôs sobre ele e o trouxe de volta para que o Criador lhe re-admitisse no céu com a
obra. Deus aceitou a ópera, mas sua execução deveria ser feita em um teatro especial, isto é, nosso
planeta. (Assis, 1997, p. 14-15)
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enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar
crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão
que... (Assis, 1997, p. 53-54)
Se José Dias dá a primeira definição célebre dos olhos de Capitu, Bentinho é
quem dá a segunda. Note-se, no entanto, que se a do agregado faz duvidar
moralmente da personagem, a do futuro marido confere-lhes (aos olhos) um
estranho poder, a ponto de irmaná-los à própria natureza:
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação
exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos
de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem
quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me
fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me
dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que
fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava
para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos
dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me
às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos
cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa
buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha
crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me,
puxar-me e tragar-me. (Assis, 1997, p. 54)
Em um romance no qual as personagens sabidamente mentem sobre suas
naturezas e o real sentido de seus atos, a busca incessante por enxergar atrás das
aparências surge como a única saída possível. Assim, nos momentos de dúvida
ou desconfiança, perscrutar o olhar do outro é chave para se descobrir “o que
for menos claro ou totalmente escuro”7.
7- Trata-se do obscuro trecho de Esaú e Jacó, romance de Machado imediatamente posterior
a Dom Casmurro. Aires (se é que podemos dizer com segurança que é Aires o narrador desse
romance, aparentemente escrito em terceira pessoa pela personagem do Conselheiro) assim se
expressa: “Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me
ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias que
deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro
ou totalmente escuro. Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade espécie de troca de serviços, entre o
enxadrista e os seus trebelhos”. (Assis, 2001, p. 54)
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Durante algum tempo não pude dizer o resto, que era
pouco, e vinha de cor. José Dias tornou a perguntar
o que era, sacudia-me com brandura, levantava-me o
queixo e espetava os olhos em mim, ansioso também,
como a prima Justina na véspera. (Assis, 1997, p.
41)
Também Escobar “espeta” em Bentinho os olhos para tirar deles o motivo do
amigo parecer distraído:
Ouvia, espetando-me os olhos. Três dias depois disse
que me estavam achando muito distraído; era bom
disfarçar o mais que pudesse. Ele, à sua parte, tinha
razões para andar distraído também, mas buscava
ficar atento. (Assis, 1997, p. 124)
Ainda são para os olhos, desta vez de Ezequiel, que Capitu (curiosamente,
Capitu) chama a atenção do marido:
– Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma
expressão esquisita? perguntou-me Capitu. Só vi
duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto
Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para
o lado de papai, não precisa revirar os olhos, assim,
assim...
Era depois de jantar, estávamos ainda à mesa,
Capitu brincava com o filho, ou ele com ela, ou um
com outro, porque, em verdade, queriam-se muito,
mas é também certo que ele me queria ainda mais a
mim. Aproximei-me de Ezequiel, achei que Capitu
tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não me
pareceram esquisitos por isso. Afinal não haveria
mais que meia dúzia de expressões no mundo,
e muitas semelhanças se dariam naturalmente.
Ezequiel não entendeu nada, olhou espantado para
ela e para mim, e afinal saltou-me ao colo [...] (Assis,
1997, p. 196-197)
Ser Capitu aquela que faz ver a Bentinho a semelhança é uma das graças do
capítulo (e certamente outra urdidura de Machado de Assis, no que tange a
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plantar a dúvida sobre o adultério no tribunal particular do leitor – Afinal,
por que uma esposa adúltera ajudaria a erguer o muro de sua culpa à vista
do marido?). Independente disso, e também do futuro casmurro não aparentar
ligar para o detalhe, ao término do capítulo, ele mesmo escreverá: “fiquemos
nos olhos de Ezequiel”, pois os olhos, aqui, mais uma vez, é que deverão (ou
deveriam) revelar a verdade.
O leitor no circuito
Se as personagens estão sempre em busca de decifração, de uma verdade que
lhes foi velada, escondida ao olhar mais prosaico e desatento, também o leitor,
antes que perceba, será envolvido por esse torvelinho, e como os seres de papel e
tinta que saem da pena do autor, passará a também observar, medir e qualificar
este ou outro comportamento daqueles primeiros.
Não foi esta a única vez que Machado fez do leitor voyeur da comédia humana
que se desenrola aos olhos das suas personagens: contos como “Uns braços” e
“Galeria póstuma” são alguns dos que apontam para situações semelhantes.
No primeiro, assistimos o que vê o jovem Inácio: os braços do título, de
propriedade de D. Severina, esposa do solicitador Borges:
[...] Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina
que se não esquecesse de si e de tudo. [...] Na verdade,
eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que
era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a
maciez por viverem ao ar. (Gledson, 1998, p. 299)
Da mesma forma, Bento mirava os de Capitu e nós por ele.
O segundo conto citado, bastante curioso, trata de um diário íntimo encontrado
após a morte da amável figura de Joaquim Fidélis. A ironia do nome do finado
não é à toa, uma vez que a galeria dos tipos que o bom homem elenca no texto
póstumo, e que, para surpresa nossa, ali desanca sem pudor, é a mesma gente
para quem sorria em vida, ironia bem machadiana. Junto com seu sobrinho
Benjamim, acompanhamos, estarrecidos, a leitura do documento, que depois
será vedado a olhares de terceiros.
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Benjamim ia lendo; de repente deu com o Diogo Vilares. E leu estas poucas
linhas:
Diogo Vilares. – Tenho-me referido muitas vezes a
este amigo, e fá-lo-ei algumas outras mais, se ele me
não matar de tédio, coisa em que o reputo profissional.
Pediu-me há anos que lhe arranjasse um emprego, e
arranjei-lho. Não me avisou da moeda em que me
pagaria. Que singular gratidão. Chegou ao excesso
de compor um soneto e publicá-lo. Falava-me do
obséquio a cada passo, dava-me grandes nomes,
enfim, acabou. [...] Bom pai de família [...] Estúpido
e crédulo. [...]
A primeira sensação de Benjamim foi a do perigo
evitado. Se o Diogo Vilares estivesse ali? Releu o
retrato e mal podia crer; mas não havia negá-lo, era o
próprio nome do Diogo Vilares, era a mesma letra do
tio. E não era o único dos familiares [...] (Gledson,
1998, p. 87)
Em “A causa secreta”, talvez mais do que nos demais, o olhar de espreita sobre
uma personagem (e, conseqüentemente, sobre as crueldades por ela praticadas)
é transferido ao leitor, cúmplice-voyeur. Garcia, que assiste às maldades de
Fortunato, o médico pretensamente altruísta, cuja razão última de suas ações
parece ser o prazer que sente com “a dor alheia, física ou moral”, espanta-se
com sua descoberta, ao mesmo tempo em que não consegue desviar dela sua
atenção. Do mesmo modo o leitor.
Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do
gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito
de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o
índice da mão esquerda segurava um barbante, de
cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita
tinha uma tesoura. No momento em que Garcia
entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em
seguida desceu o infeliz até à chama, rápido, para
não matá-lo e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira,
pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou
horrorizado..
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– Mate-o logo! Disse-lhe.
– Já vai. (Gledson, 1998, p. 294)
Em Dom Casmurro, então, o leitor, ao espreitar (e, por conseguinte, desconfiar),
parece lançado em um mundo de inverdades, verdades aparentes e dissimulação,
todos temas caros aos contos já citados e, em última instância, à obra de Machado
de Assis como um todo.
Considerações finais: Uma leitura para ruminar8
O leitor de uma obra assim, cujas lacunas dos personagens e do enredo precisam
ser preenchidas por meio da interpretação, será o “leitor ruminante”, de que o
narrador de Esaú e Jacó (Aires?) faz menção, a certa altura do livro:
Tal foi a conclusão de Aires, segundo se lê no
Memorial. Tal será a do leitor, se gosta de concluir.
Note que aqui lhe poupei o trabalho de Aires; não
o obriguei a achar por si o que, de outras vezes, é
obrigado a fazer. O leitor atento, verdadeiramente
ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e
por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até
que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar
escondida. (Assis, 2001, p. 159)
Da mesma maneira que as personagens “ruminam” aquilo que ouvem e vêem, o
leitor de Dom Casmurro se sente no interesse de fazê-lo também, com o objetivo
de descobrir a verdade, “que estava, ou parecia estar escondida”.
Quando os olhos do leitor se movem como os das personagens, cheios de
desconfiança e suspeita, Machado parece chamar a atenção para as relações e
“enredos” que caminham por debaixo das “franjas do mar” que compõem o
escuro oceano da trama social (apenas para usar uma metáfora marítima, o que
8- A crítica de Dom Casmurro parece também ter ruminado o romance durante a história de sua
recepção: situado à época da publicação como uma história sobre o adultério, apenas no início
dos anos 1960, com o livro de Helen Caldwell, O Otelo brasileiro de Machado de Assis, o romance passou a ser lido sob o signo da dúvida, uma dúvida a pairar sobre o narrador-ciumento.
Mais recentemente, estudos como de John Gledson (Impostura e realismo: uma reinterpretação
de Dom Casmurro, 1991) e Roberto Schwarz (Duas meninas, 1997) passam a entender o enredo
como emblema das relações (frustradas) entre classes diferentes.
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talvez fosse do agrado de Bentinho).
Vista da superfície, também a verdade nem sempre é tão clara e nítida como
escritores anteriores ou contemporâneos ao autor de Dom Casmurro (e até
mesmo posteriores a ele) poderiam talvez supor. “Instinto de nacionalidade”,
seu famoso ensaio de 1873, entre outras coisas, postulava que “o que se deve
exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem
do seu tempo e do seu país” (Bosi, 1982, p. 383).
Quando nos deparamos com a possível natureza desse país, cheio de
contradições, uma nação que se queria moderna, mas que, a despeito disso, foi
a última das Américas a abolir o trabalho escravo, mais necessário parece ser
o olhar de desconfiança para com tudo. Mais que uma postura literária, uma
postura crítica.
Assim, fazendo de seu texto um construto enigmático, de rara sofisticação,
Machado de Assis indica como pode ser verdadeira – e ao mesmo tempo perigosa
– a afirmação que Bento, tão singelamente, professa sobre a “verossimilhança,
que é muita vez toda a verdade”. (Assis, 1997, p.16)
Bento, o único que, em última instância, talvez nenhuma desconfiança real
possuísse, apesar das aparências, mas uma certeza fria que se deixa entrever
na denúncia final, após a reunião de todas as “provas” e “indícios” elencados
durante a narrativa:
E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica,
e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber,
que a minha primeira amiga e o meu maior amigo,
tão extremosos ambos e tão queridos também, quis
o destino que acabassem juntando-se e enganandome... A terra lhes seja leve! Vamos à “História dos
Subúrbios”. (Assis, 1997, p. 217)
“Se tais certezas a ele confortam, deixemos que fique com elas. Mas não as
queirais para vós, amados leitores”, talvez nos sussurre, de algum canto remoto
de nossa própria consciência, Machado de Assis.
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Referências
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Globo, 1997.
____ Esaú e Jacó. São Paulo: Ediouro, 2001.
____ Memorial de Aires. São Paulo: Ática, 2000.
____ Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 2000.
BOSI, Alfredo (Org.). Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982.
CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis. Rio de Janeiro:
Ateliê Editorial, 2002.
GLEDSON, John (Org.). Machado de Assis, Contos: uma antologia. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, v. 2.
____ Machado de Assis: impostura e realismo: uma reinterpretação de Dom
Casmurro. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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Seção III
Estudos sobre o Ensino
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UMA NOTÍCIA DE PESQUISA: A FORMAÇÃO DE
PROFESSORES NO ESPÍRITO SANTO: LEITURA,
LITERATURA E MATERIAIS DIDÁTICOS
Adriana Falqueto Lemos1*
Anna Catharina Izoton Mariano2**
Maria Amélia Dalvi3***
Sérgio Alves de Novais4****
Resumo
Trata-se de notícia de pesquisa que toma parte no projeto interinstitucional (UEL,
UERN, UFES, UFLA, UFMA, UFPA, UFU, UNIFAL, UNEMAT e USP) intitulado
“Disciplinas da licenciatura voltadas para o ensino de Língua Portuguesa”. Na
pesquisa aqui apresentada o foco está nas abordagens da leitura, da literatura e
dos materiais didáticos nas disciplinas da formação docente inicial nos cursos
de Letras5 e Pedagogia da UFES. Caracteriza-se como bibliográfico-documental,
sendo sua abordagem teórico-metodológica histórico-cultural (Chartier, 1988,
2002a, 2002b, 2003). A produção e a análise de dados supõem a consideração
de fontes documentais escritas atinentes aos cursos de licenciatura em Letras
e Pedagogia levados a turno pela instituição-sede. Visa a: a) investigar
1-* Graduanda em Letras-Inglês e voluntária de Iniciação Científica da UFES.
2- ** Graduanda em Letras-Português e bolsista de Iniciação Científica pela UFES/Facitec.
3- *** Professora do Departamento de Linguagens, Cultura e Educação do Centro de Educação
da UFES.
4- **** Graduando em Letras-Português/Francês e bolsista de Iniciação Científica da UFES.
5- Atualmente, a Universidade Federal do Espírito Santo conta com cinco cursos de Licenciatura
em Letras, sendo quatro deles voltados à formação de professores de Língua Portuguesa (LetrasPortuguês/Literatura; Letras-Português/Espanhol; Letras-Português/Francês; e Letras-Português/
Italiano).
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representações sobre o que seja a “adequada” formação inicial do professor de
Língua Portuguesa, em relação à leitura, à literatura e aos materiais didáticos; e
b) propor discussões sobre a existência de um objeto que caracterize o campo do
qual se encarregaria a Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, no âmbito
dos cursos de formação de professores de língua materna.
Palavras-chave: Formação de Professores. Leitura. Literatura. Materiais
Didáticos. Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa.
Abstract: This is research news that takes part in the institutions (UEL UERN,
UFES, UFLA, UFMA, UFPA, UFU, UNIFAL, UNEMAT and USP) project entitled
“Subjects of the teaching degree course focused on the teaching of Portuguese
language.” In the research here presented the focus is on the approaching in
reading, literature and textbooks in the disciplines of initial teacher training
courses in Literature [5] and Pedagogy of UFES. The research is characterized as
bibliographic and documentary, with a theoretical-methodological historicalcultural approach (Chartier, 1988, 2002a, 2002b, 2003). Production and analysis
of data imply the consideration of written documentary sources relating to
undergraduate courses in Teaching Degree and Education led by the institution.
It aims to: a) investigate depictions of what is an “appropriate” teacher of
Portuguese training in relation to reading, literature and materials; and b) call
forth for discussions on the existence of an object that characterizes the field
which would undertake the Methodology of Portuguese Language Teaching,
as part of training courses for mother-tongue language teachers.
Keywords: Teacher Formation. Reading. Literature. Instructional Materials.
Portuguese Teaching Methodology.
Introdução
O principal problema a ser abordado na pesquisa “A formação do professor
de Língua Portuguesa no Espírito Santo: abordagens da leitura, da literatura e
dos materiais didáticos”, que aqui noticiamos, são as práticas, representações
e saberes mobilizados no interior das disciplinas voltadas especificamente
à formação de professores de Língua Portuguesa nos cursos de Letras e de
Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo, em cotejo com as
realidades de cursos de outras instituições sediadas no Brasil, tais como UEL,
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UERN, UFLA, UFMA, UFPA, UFU, UNIFAL, UNEMAT e USP6; no caso deste
projeto, enfocaremos particularmente as abordagens da leitura, da literatura
e dos materiais didáticos no âmbito das disciplinas que compõem a área de
estudos tradicionalmente conhecida como “Metodologia do Ensino de Língua
Portuguesa”.
Dito de outro modo: queremos saber como se afigura a formação do professor
de Língua Portuguesa levada a turno na formação docente inicial em Letras e
em Pedagogia, no que tange à leitura, à literatura e aos materiais didáticos, na
instituição-sede da pesquisa (a saber, a Universidade Federal do Espírito Santo),
para cotejá-la com a realidade de outras instituições públicas de formação de
professores de Língua Portuguesa, em outros estados do país. Perguntamo-nos,
de saída: a) que representações da formação de professores e da metodologia
do ensino de língua portuguesa os documentos escritos (projetos políticopedagógicos, matrizes curriculares, ementários, planos de curso, relatórios de
estágio e outros materiais escritos que circulam nos cursos de licenciatura em
Letras e em Pedagogia) dão a ver?; b) que conhecimentos, saberes, objetivos,
práticas, materiais, referências e métodos têm sido recorrentes nos cursos
de Letras e Pedagogia no que concerne à formação do professor de língua
portuguesa, especialmente no que tange à leitura, à literatura e aos materiais
didáticos?
Entendemos que a delimitação da pesquisa em torno da leitura, da literatura
e dos materiais didáticos atende ao propósito de contribuir com novas
reflexões no entorno das temáticas estruturadoras de nosso recorte: formação
de professores de Língua Portuguesa, leitura, literatura e materiais didáticos –
pois, parece-nos, conforme a revisão de literatura empreendida em Dalvi (2010),
que os temas leitura, literatura e materiais didáticos são, individualmente, bem
pesquisados, mas há relativamente poucos estudos que os conjugam. Assim
sendo, para melhor qualificarmos nosso problema de pesquisa, subdividimos
sua apresentação em duas partes: uma dedicada à formação de professores
no Brasil e à formação de professores para o ensino de Língua Portuguesa na
educação básica; e outra dedicada à apresentação da pesquisa propriamente
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- Essas instituições são as que, no momento, participam da pesquisa interinstitucional, com en�
contros virtuais (por meio das novas tecnologias de informação e comunicação, como video�
conferências, e-mails e chats de conversação) e por meio de encontros periódicos presenciais,
realizados nos campi das distintas instituições.
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dita.
A formação de professores no Brasil e a formação de
professores para o ensino de Língua Portuguesa na
educação básica
O tema “formação docente” ou “formação de professores” nunca esteve fora da
ordem do dia, no Brasil. Mas, nos últimos anos, especialmente após a nova Lei
de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96), que elevou a formação dos
professores das séries iniciais ao nível superior, o tema tem angariado muitos
estudos e motivado intensos debates. Porém, os estudos e debates surgidos
na esteira da nova LDB ou como consequência das atividades dos centros de
pesquisa brasileiros não são consoantes entre si – embora indiquem, em sua
maioria, a necessidade de se repensarem os rumos da formação docente inicial
em nível superior7, não apenas daqueles que atuarão nas séries iniciais, mas
também dos que atuarão nos anos subsequentes do ensino fundamental e do
médio. No cerne das discussões está, quase sempre, o questionamento acerca
dos projetos e saberes implicados na formação inicial dos profissionais do
magistério. Como afirma Helena Freitas,
(...) o debate sobre políticas de formação de professores
evoca dois movimentos (...): o movimento dos
educadores e sua trajetória em prol da reformulação
dos cursos de formação dos profissionais da educação;
e o processo de definição das políticas públicas no
campo da educação, em particular da formação de
professores8 (FREITAS, 2002, p. 136).
Como parte deste debate, trazemos à baila a questão da formação do professor
de português como língua materna – especificamente daquele profissional
licenciado em Letras-Português, ou duplamente habilitado, em língua portuguesa
e em uma língua estrangeira, e do profissional licenciado em Pedagogia, que
7- Consulte-se a respeito GATTI, B. A. Formação de professores e carreira: problemas e movi�
mentos de renovação. 2. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2000.
8- A expressão mais visível de tais políticas está nos Referenciais Curriculares para Formação
de Professores (1999), no Parecer 115/99, que criou os institutos superiores de educação, e nas
Diretrizes Curriculares para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica em
Nível Superior (2001).
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atuará nas séries iniciais; obviamente, não porque a preocupação com a leitura
e, assim, também com a literatura e os materiais didáticos utilizados para tais
fins seja exclusivamente tarefa do professor de português como língua materna9,
mas porque tais professores são parte inequívoca do processo10:
(...) os licenciandos de hoje, às voltas com suas próprias
dificuldades, terão em breve a responsabilidade
de fazer com que crianças e jovens usem a leitura e
a escrita dentro e fora da escola para fins sociais de
comunicação, expressão pessoal, busca e registro de
informações e ainda para a fruição da literatura como
experiência estética (CARVALHO, 2001, p. 8).
A criação e o estabelecimento de cursos destinados precipuamente à preparação
de professores – como é o caso, hoje, das licenciaturas, dentre as quais se incluem
as em Letras e em Pedagogia – para o exercício do magistério estão vinculados à
institucionalização da instrução pública e, também, à secularização da educação11.
9- Marlene Carvalho defende que são necessárias mudanças na formação de todos os professores
que atuarão na educação básica, visando a um domínio mais amplo da língua escrita, tanto em
termos de produção, quanto em termos de recepção de textos complexos, uma vez que “a questão
dos usos da língua não compete apenas aos que vão ensinar português” (CARVALHO, 2001, p. 8).
Consulte-se a respeito CARVALHO, M. A leitura dos futuros professores: por uma pedagogia da
leitura no ensino superior. Teias: Revista da Faculdade de Educação da Uerj. n. 5 (junho de 2002).
Rio de Janeiro: Uerj, Faculdade de Educação, 2001, p. 7-20.
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- É o que afirma, por exemplo, Sabine Vanhulle. A autora propõe mudanças na formação de
professores de língua materna a partir da participação conjunta das faculdades de Letras e de
Educação, uma vez que tais professores têm um papel preponderante na aquisição de compe�
tências para o exercício pleno da leitura e da produção linguística oral e/ou escrita por parte dos
estudantes alvo do que, no Brasil, denominamos como “educação básica”. Consulte-se a respeito
VANHULLE, S. La littérature dans la formation des futurs enseignants. In Les cahiers du Service de Pédagogie Experimentale. Service de Pédagogie Experimentale. Université de Liège, n.
1 et 2, jan. 2000.
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- Para um retrospecto mais amplo acerca da história da formação docente em Portugal e, espe�
cialmente, no Brasil, consulte-se CATANI, A. M.; OLIVEIRA, R. P. de (orgs.). Reformas educacionais em Portugal e no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000; FIGUEIREDO, M. C. M.;
COWEN, R. Modelos de cursos de formação de professores e mudanças em políticas: um estudo
sobre o Brasil. In BROCK, C.; SCHWARTZMAN, S. (orgs.). Os desafios da educação no Brasil.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 181-196; SAVIANI, D. et al. O legado educacional do
século XX no Brasil. 2. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2006; e TANURI, L. M. História
da formação de professores. In Revista Brasileira de Educação. N. 14 (maio a agosto de 2000).
São Paulo: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, 2000, p. 61-88.
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No Brasil, a criação das chamadas “escolas normais” – um dos primeiros
tipos de instituição voltada à preparação de profissionais docentes – resultou
de uma importação de modelos europeus (o que explica, ao menos em parte,
seu caráter “transplantado” e se justifica pelas contradições internas inerentes
à nossa sociedade); tal modelo coincidiu com o projeto do grupo social mais
conservador de consolidar sua postura política e ideológica e, assim, assegurar
sua hegemonia12. Como isso se fez? Basicamente, pela redução do currículo de
formação do professor a um currículo mínimo, que compreendia, normalmente:
a) apenas noções básicas de língua portuguesa, matemática, história, geografia
e de “doutrina cristã”; e b) uma rudimentar formação pedagógica, de caráter
essencialmente prescritivo.
De lá para cá, os cursos de formação de professores têm sobrevivido a diversas
mudanças de rumos, até desembocar no estágio atual, em que, por exemplo, a
Associação Nacional para a Formação de Profissionais da Educação (Anfope)
se vê na obrigação de sugerir ou solicitar ao poder público que as políticas de
formação inicial privilegiem o caráter científico e acadêmico, ao invés do caráter
técnico-profissional13. Ora, este breve retrospecto nos faz deduzir que, se ainda é
necessário explicar ou justificar, como o faz a Anfope, a importância de as políticas
de formação inicial privilegiarem o caráter científico e acadêmico, ao invés do
caráter técnico-profissional, está provado continuar em vigor, ainda hoje, uma
política de formação docente que propõe a redução do currículo de formação
do professor a um currículo mínimo, reduzido aos saberes indispensáveis à
reprodução do conhecimento, e não à sua produção, em sentido mais amplo14:
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- Heloisa Villela desenvolve a idéia de que a criação da Escola Normal da Província do Rio
de Janeiro, a saber, a primeira “escola normal” brasileira, ainda no século XIX, não representou
apenas a transplantação de um modelo europeu, mas, também, a consolidação e a expansão da
supremacia do grupo que se encontrava no poder. Consulte-se VILLELA, H. de O. S. “A primeira
escola normal do Brasil”. In: Nunes, C. (org.). O passado sempre presente. São Paulo: Cortez,
1992.
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- A respeito do assunto, consulte-se o Boletim da Anfope. Ano XIII, n. 01. Outubro de 2007.
Disponível em http://lite.fae.unicamp.br/anfope/novo/html/boletim_outubro_007.html.
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- “A educação aqui [no Brasil] – monopólio dos jesuítas por, pelo menos, os primeiros duzen�
tos anos de colonização – fez de mestres e alunos (...) repetidores da lição, impossibilitando a
produção de conhecimento. (...) Nunca conhecemos o mestre que produzia conhecimento, nunca
experimentamos verdadeiramente uma relação de discipulação” (GUEDES, 2006, p. 15-16).
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(...) O professor se constituirá socialmente [a partir
do Mercantilismo, e até hoje] como um sujeito que
domina um certo saber, isto é, o produto do trabalho
científico, a que tem acesso em sua formação, sem se
tornar ele próprio produtor de conhecimentos. (...) Não
convivendo com a pesquisa e com os pesquisadores e
tampouco sendo responsável pela produção do que
vai ensinar, o professor (e sua escola) está sempre
um passo aquém da atualidade. No entanto, sua
competência se medirá pelo seu acompanhamento e
atualização. Neste sentido, o professor emerge como
categoria sob o signo da desatualização (GERALDI,
1991, p. 86).
Todavia, como nos lembra Freitas (2002), em decorrência do esforço dos
educadores e de sua trajetória em prol da reformulação dos cursos de formação
dos profissionais da educação, os professores licenciados nas últimas décadas
têm ao menos parcialmente clareza de que a formação que recebem não é
adequada ao que a profissão lhes exige. É o que atesta, por exemplo, Celso
Ferrarezi Jr, a respeito dos cursos de Letras.: “(...) é opinião corrente entre a
maioria dos professores de língua materna no país [que] a formação na área
(...) é muito simplória” (2008, p. 9). Se tal ocorre é porque, embora de maneira
fragmentada, os licenciandos em Letras e em Pedagogia ouvem falar, ao longo
de sua formação, que linguagem e ideologia são intrinsecamente vinculadas; que
a concepção que se tem de língua determina relações de poder mais ou menos
democráticas; que é necessário aprofundamento teórico para que o professor
possa compreender com mais clareza as dificuldades por que seus alunos passam
e para que possa propor estratégias de superação eficazes para essas mesmas
dificuldades; que o livro didático não é ou não deve ser o principal instrumento
de trabalho do professor de português; que compete (também) ao professor a
ampliação do universo cultural de seus alunos; que é necessário formar alunos
efetivamente leitores, alunos efetivamente críticos, alunos efetivamente aptos
ao trabalho com textos das mais diversas procedências; que o ensino de língua e
literatura não se excluem; que o ensino de gramática não pode se pautar por uma
concepção elitista e autoritária; que não se deve desprezar a variante linguística
que o aluno traz consigo, oriunda de suas redes sociais; que não se deve
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trabalhar a produção de texto descontextualizadamente; que o professor deve
partir de situações concretas para a formulação de problemas que exijam dos
alunos a proposição de possibilidades de respostas às demandas da realidade;
que o professor deve ser um pesquisador, consciente dos métodos que aplica e
pautado em teorias consistentemente embasadas; etc. – o que talvez nos permita
entender, ao menos parcialmente, o porquê de muitos dos licenciados ou
licenciandos em Letras e em Pedagogia terem uma enorme insegurança relativa
à sua formação e, assim, à sua competência para o exercício profissional: sabem
que o que fazem ou o que farão não é “o adequado”, mas, por outro lado, não
sabem ou acham que não sabem fazer de outra forma.
Destarte, num contexto em que: a) o tema formação docente está em voga; b) os
estudos e debates mais fecundos na área da educação apontam a necessidade
de se repensarem os rumos da formação docente no país; c) a participação do
professor de português como língua materna na apropriação da leitura (e, assim,
também da literatura) e dos materiais didáticos destinados a tal fim é inegável;
e d) muitos dos licenciados ou licenciandos em Letras e em Pedagogia têm uma
enorme insegurança relativa à própria formação e à própria competência para
o exercício profissional; faz-se necessário saber quais são as práticas, representações
e saberes mobilizados no âmbito das disciplinas entrelaçados à Metodologia do Ensino
de Língua Portuguesa, justamente para que se possa conhecer melhor a realidade
da formação docente inicial nesta área e planejar e propor mudanças de rumo, que,
certamente, refletir-se-ão na qualidade da educação básica – não em uma perspectiva
de “diagnosticar” o que está “inadequado”, mas de conhecer o que se tem feito,
e pensar juntos a respeito.
Como consequência das pesquisas em Linguística e Linguística Aplicada (nos
anos de 1970), da divulgação dessas pesquisas ao grande público (nos anos de
1980), da instituição de uma nova Lei de Diretrizes e Bases e de Parâmetros
Curriculares Nacionais para o ensino fundamental e médio (nos anos de 1990)
e, ainda, como consequência das discussões / pesquisas relativas à formação
docente inicial do professor de língua materna (Kleiman, Matêncio, 2005; Bunzen,
Mendonça, 2006; Guedes, 2006; Andrade, 2007; Signori, 2007; Mendes, Castro,
2008; Daher, Giorgi, Rodrigues, 2009; Bortoni-Ricardo, Machado, Castanheira,
2010; Oliveira, 2010; Harmuch, Saleh, 2011), as mudanças implementadas nos
projetos de curso das Instituições de Ensino Superior que formam professores de Língua
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Portuguesa vêm exigir que se repense a existência ou não de um perfil claramente
delimitado para o professor de Língua Portuguesa que atuará na educação básica e,
portanto, a existência ou não de uma disciplina (como um campo de saber) que se
afiguraria como Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa (MELP). Além disso,
entre aqueles que se ocupam da formação inicial do professor, tendo em vista
uma escola básica democrática e de qualidade, as discussões no que concerne à
leitura, à literatura e aos materiais didáticos ainda estão aquém do desejado, como
demonstra a revisão de literatura empreendida, por exemplo, em Dalvi (2010).
Nesse sentido, com foco específico na formação de professores de Língua
Portuguesa no estado do Espírito Santo, tendo por recorte as abordagens da
leitura, da literatura e dos materiais didáticos nas disciplinas das licenciaturas
em Letras e em Pedagogia na única universidade pública capixaba, o projeto
aqui apresentado pretende dar continuidade a importantes mapeamentos já
realizados15. Tomamos como um dos exemplos o relatório técnico da pesquisa
desenvolvida pela Fundação Carlos Chagas, sob encomenda da Secretaria de
Educação do Espírito Santo, intitulada “Formação de professores para o ensino
fundamental: instituições formadoras e seus currículos no Espírito Santo”, que
foi publicado em novembro de 2009 (FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, 2009).
A formação de professores de Língua Portuguesa no
Espírito Santo: abordagens da leitura, da literatura e
dos materiais didáticos
A pesquisa que aqui noticiamos toma parte no projeto interinstitucional (UEL,
UERN, UFES, UFLA, UFMA, UFPA, UFU, UNIFAL, UNEMAT e USP) intitulado
“Disciplinas da licenciatura voltadas para o ensino de Língua Portuguesa:
saberes e práticas na formação docente”, que tem como objeto práticas,
representações e saberes mobilizados no âmbito da Metodologia do Ensino de
Língua Portuguesa. A pesquisa interinstitucional é coordenada nacionalmente
pelos professores Maria Núbia Barbosa Bonfim (UFMA) e Valdir Heitor Barzotto
(USP), sendo implementada por vários pesquisadores em diferentes instituições
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- Referimo-nos, aqui, a dissertações e teses que têm sido dadas a lume por pesquisadores vin�
culados ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização, Leitura e Escrita do Espírito Santo
(Nepales), ao qual esta pesquisa também está vinculada. Ao longo da última década pelo menos
20 (vinte) dissertações e teses tratam da formação de professores de Língua Portuguesa no Espíri�
to Santo, seja na educação infantil, no ensino fundamental ou no ensino médio.
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de ensino superior sediadas no país.
O projeto interinstitucional obteve apoio em 2009 do PROCAD-CAPES
(cooperação acadêmica entre USP, UERN e UFMA) e, com a vinculação das
outras universidades, encontra-se em pleno desenvolvimento no que se refere
aos intercâmbios de pós-graduandos, às pesquisas documentais e às observações
em salas de aula nos diferentes estados. Foram obtidos financiamentos de
agências de pesquisa em Minas Gerais (Fapemig) e no Maranhão (Fapema).
No momento, a pesquisa interinstitucional passa por uma ampliação de sua
atuação, estabelecendo diálogos com pesquisadores de outras instituições
brasileiras (sediadas em Goiás, Rondônia e Tocantis), e com a possibilidade de
incorporação de pesquisadores de Costa Rica, Honduras e Portugal.
No estado do Espírito Santo, o projeto está registrado na Pró-Reitoria de Pesquisa
e Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo e foi contemplado
pelo edital do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica 2011-2012
com duas bolsas estudantis, por 12 (doze) meses, no período de agosto/2011 a
julho/2012. O projeto também foi submetido à Fundação de Amparo à Pesquisa
do Espírito Santo (Fapes), com previsão de resultado em novembro/2011 – à
Fapes foi pedida uma outra bolsa estudantil, pelo período de 24 (vinte e quatro)
meses, além de subsídio para aquisição de equipamentos e mobiliário para o
espaço físico destinado à pesquisa. A coordenadora, com dedicação exclusiva
à Universidade Federal do Espírito Santo, conta com a atribuição de 10 (dez)
horas semanais para dedicação aos trabalhos deste projeto.
Caracterizando-se como uma pesquisa bibliográfico-documental, cuja
abordagem teórico-metodológica é histórico-cultural (Chartier, 1988, 2002a,
2002b, 2003), a produção e a análise de dados (“A formação do professor de
Língua Portuguesa no Espírito Santo: abordagens da leitura, da literatura e
dos materiais didáticos”) supõe a consideração de fontes documentais escritas
que circulam nos cursos de licenciatura em Letras-Português e em Pedagogia
levados a turno pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). A leitura
a ser empreendida das fontes documentais estabelecerá diálogo com a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, com as Diretrizes para a Formação
Inicial de Professores da Educação Básica em cursos de nível superior, com as
Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil, para o Ensino Fundamental e
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para o Ensino Médio e com os Parâmetros e Referenciais Curriculares para a
Educação Básica.
Visa a: a) investigar representações sobre o que seja a “adequada” formação
inicial do professor de Língua Portuguesa, especialmente em relação à leitura,
à literatura e aos materiais didáticos, identificando as práticas e os saberes
mobilizados no que concerne ao tema, em conformidade com os documentos
escritos atinentes aos cursos de Letras-Português e de Pedagogia levados a
turno na UFES; e b) propor, em diálogo com os demais participantes da pesquisa
interinstitucional, discussões sobre a existência ou não de um objeto específico
que caracterize o campo do qual se encarregariam as disciplinas diretamente
relacionadas à Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, no âmbito dos
cursos de formação de professores de língua materna. As disciplinas dos cursos
de formação docente inicial de Letras e Pedagogia que estarão em foco serão:
“Alfabetização I”, “Alfabetização II” e “Português: conteúdo e metodologia”,
no curso de Pedagogia, e “Estágio Supervisionado I” e “Estágio Supervisionado
II”, no curso de Letras-Português, além de outras optativas em ambos os cursos,
como os “Tópicos Especiais” e os “Laboratórios de Práticas Culturais”.
Investigaremos as disciplinas e, portanto, as ementas, os objetivos, os conteúdos,
os materiais, os métodos e a bibliografia dos planos de curso atinentes, no que
concerne à leitura, à literatura e aos materiais didáticos, levando em consideração,
simultaneamente, outros documentos escritos, como, por exemplo, os projetos
político-pedagógicos, as matrizes curriculares, os relatórios de estágio e
demais materiais pertinentes. Entende-se que essa pesquisa, que historiografa
o presente, possibilitará, a despeito das já previsíveis lacunas, caracterizar o
período atual em relação às práticas e representações em curso e também em
relação às bases da constituição de uma nova comunidade de interpretação e,
portanto, de uma apropriação específica (Chartier, 2002), no que concerne à
formação dos professores de Língua Portuguesa no Espírito Santo. Esta é uma
primeira etapa; um desdobramento posterior previsto para o projeto é que as
práticas escolares de ensino de Língua Portuguesa no estado do Espírito Santo
(especialmente no que concerne à leitura, à literatura e aos materiais didáticos)
se tornem o objeto privilegiado de investigação, estabelecendo um circuito entre
Universidade – escola – Universidade – escola etc.
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Os objetivos do projeto aqui noticiado são os seguintes: a) Compreender
representações do que seja a intentada formação inicial do professor de Língua
Portuguesa nos cursos de licenciatura em Letras-Português e Pedagogia
oferecidos pela UFES, a partir do exame de fontes documentais escritas,
especialmente no que tange à leitura, à literatura e aos materiais didáticos; e b)
Propor, em diálogo com o projeto interinstitucional, discussões sobre a existência
ou não de um objeto específico que caracterize o campo do qual se encarregam as
disciplinas voltadas à formação do professor de Língua Portuguesa nos cursos
de licenciatura em Letras-Português e em Pedagogia oferecidos pela UFES, em
cotejo com as experiências em outras instituições públicas de ensino superior
que atuam na formação de professores.
Quanto às metas traçadas, a pesquisa “A formação de professores de Língua
Portuguesa no Espírito Santo: abordagens da leitura, da literatura e dos
materiais didáticos” propõe: a) Inventariar um corpo bibliográfico-documental
que esteja à disposição de outros pesquisadores, in loco e/ou por um sítio virtual
na Internet; b) Contribuir para a formação de jovens pesquisadores através da
Iniciação Científica, com vistas a futuras pesquisas em nível de pós-graduação
(lato e stricto sensu); c) Participar de eventos nacionais e internacionais pertinentes
às áreas de estudos envolvidas, para apresentação de resultados parciais e
finais, bem como para intercâmbio de saberes e experiências; d) Publicar artigos
em anais de eventos, em periódicos qualificados (pelo Qualis Educação e pelo
Qualis Letras e Linguística) e em livros, em suporte impresso ou eletrônico,
para debate das questões contempladas pela pesquisa, sempre tendo em vista
dialogar com a comunidade interna e externa à UFES; e e) Refletir coletivamente
sobre possíveis/necessários ajustes na formação de professores de Língua
Portuguesa âmbito dos cursos de Letras-Português e de Pedagogia oferecidos
pela UFES especialmente no que concerne à leitura, à literatura e aos materiais
didáticos.
Caracterizando-se como uma pesquisa bibliográfico-documental, cuja
abordagem teórico-metodológica é histórico-cultural (a partir dos trabalhos de
Roger Chartier, 1988, 2002a, 2002b e 2003), a produção, a análise e a discussão de
dados supõe a consideração de fontes documentais escritas (projetos políticopedagógicos, matrizes curriculares, ementários, planos de curso, relatórios de
estágio etc.) que circulam nos cursos de licenciatura em Letras e em Pedagogia
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da UFES. Pretende-se, em um primeiro momento, levantar tais documentos
junto aos órgãos responsáveis (professores das disciplinas, Departamentos,
Colegiados de Curso e Pró-Reitoria de Graduação), reproduzi-los digitalmente
e organizá-los arquivisticamente. Em um segundo momento, lê-los em separado
e em seu conjunto, tendo em vista a produção de dados que considerem, para
além das informações textualmente explicitadas, os gêneros, os suportes, as
instâncias enunciativas e os protocolos de leitura atinentes a cada caso16.
A leitura a ser empreendida das fontes documentais estabelecerá diálogo com
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, com as Diretrizes para a
Formação Inicial de Professores da Educação Básica em cursos de nível superior,
com as Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil, para o Ensino Fundamental
e para o Ensino Médio e com os Parâmetros e Referenciais Curriculares para
a Educação Básica. Considerar-se-á, em todo o processo, que os documentos
em questão são produzidos por instâncias responsáveis pela formação de
professores e se fundamentam, simultaneamente, em propostas, parâmetros e
diretrizes oficiais e em documentos de divulgação de conhecimentos produzidos
academicamente (artigos, ensaios, guias, livros etc.); são documentos, portanto,
que apresentam duplo caráter: de normatização e de formação.
Desse modo, a análise terá como objetivo conhecer: a) as relações interdiscursivas
(ou representações) que são atinentes à Metodologia do Ensino de Língua
Portuguesa e à formação de professores de Língua Portuguesa, no que concerne à
leitura, à literatura e aos materiais didáticos, no âmbito dos cursos de licenciatura
em Letras e em Pedagogia, da UFES, considerando simultaneamente as práticas
e saberes mobilizados; e b) as posições discursivas ou representações atribuídas,
nos documentos em análise, ao professor em formação, ao professor formador,
aos documentos oficiais e às instâncias acadêmicas de produção e divulgação
do saber pertinente à área, especialmente no que concerne à leitura, à literatura
e aos materiais didáticos.
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- O mesmo procedimento será adotado com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
com as Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica em cursos de nível
superior, com as Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil, para o Ensino Fundamental e
para o Ensino Médio e com os Parâmetros e Referenciais Curriculares para a Educação Básica,
que se encontram disponíveis na Internet, para consulta pública, no sítio virtual do Ministério da
Educação.
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No pensamento de Dominique Maingueneau (1997, 2002 e 2005), nos interessa,
para a implementação da pesquisa apresentada, a ideia de que a produção
discursiva se faz de acordo com uma semântica global, com base num sistema
de restrições; considera-se, pois, que a determinados discursos correspondem
estruturações textuais específicas, isto é, que os gêneros textuais estão em
concordância com a semântica de uma dada formação discursiva. Nesse sentido,
a observação de elementos constituintes de determinada estruturação textual,
do intradiscurso, do modo como um discurso se desenvolve na materialidade,
sua formulação, se constitui um meio de observação das características do(s)
discurso(s) em que o(s) texto(s) se inscreve(m).
As noções teóricas privilegiadas no âmbito de nossa pesquisa, no pensamento
de Roger Chartier (1988, 2002a, 2002b e 2003), serão as de objeto cultural,
representações culturais, práticas culturais, comunidades de interpretação e
apropriação – noções desenvolvidas e exemplificadas em Dalvi (2010) e em
outros artigos. O pensamento chartieriano nos auxilia a darmos um passo
além da preocupação discursiva presente no pensamento maingueneauniano,
superando-a pela vinculação entre práticas e representações, no âmbito de
experiências históricas e culturais praticadas/representadas e apropriadas
por comunidades específicas. Outro passo além, ao adotarmos o pensamento
chartieriano para as análises, é a possibilidade de tomarmos os documentos
escritos não apenas como fonte, mas principalmente como legítimos objetos de
pesquisa. Dizemos isso porque, para Roger Chartier, a Nova História Cultural
“tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e
momentos uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a
ler” (CHARTIER, 1990, p. 16-17).
As leituras e discussões realizadas serão registradas por meio de diários de
pesquisa, fichamentos, tabelas especialmente produzidas para o levantamento/
produção de dados, e, enfim, darão origem a textos nos quais se explicitem o
passo a passo percorrido, bem como as análises efetuadas, sempre em diálogo
com os trabalhos do grupo interinstitucional.
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A equipe executora, as principais contribuições da proposta
e as razões de socializá-la, em estágio embrionário, com
a comunidade científica
Acreditamos que, do ponto de vista do conhecimento científico, a proposta
aqui delineada é de grande interesse, dado seu ineditismo (em contemplar, no
Espírito Santo, a formação de professores de Língua Portuguesa, tanto para as
séries iniciais – no curso de Pedagogia –, quanto para as séries finais do ensino
fundamental e para o ensino médio – nos cursos de Letras) e sua possibilidade em
contribuir para um panorama nacional acerca da implementação das disciplinas
vinculadas à área do conhecimento conhecida como “Metodologia do Ensino de
Língua Portuguesa”. Outro ponto importante é que a pesquisa aqui afigurada dá
sequência a uma série de estudos que se vêm realizando, vinculadas, sobretudo,
ao Nepales, sobre a história do ensino e da formação de professores de Língua
Portuguesa no Espírito Santo, contribuindo substancialmente ao oferecer um
panorama do tempo presente.
Como indicadores de resultado, ao final do projeto (em julho de 2013), apontamos
os seguintes: a) Criação e publicização de um inventário de documentos
referentes à formação de professores de Língua Portuguesa nos cursos de
Letras e Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo; b) Participação
dos membros do grupo em pelo menos três eventos locais ou nacionais ou
internacionais para divulgação dos resultados de pesquisa; c) Publicação de
pelo menos três trabalhos do grupo relativos à pesquisa, em anais de eventos,
periódicos ou livros; d) Organização de um evento local e de um evento
interinstitucional para mútua formação e divulgação/debate dos resultados de
pesquisa, com publicação dos trabalhos; e) Criação e manutenção de um sítio
na internet do grupo de pesquisa, com informações pertinentes à pesquisa; f)
Oferta de dois cursos de extensão nas áreas de formação de professores, leitura,
literatura e materiais didáticos, com no mínimo 50 vagas/ano, totalizando pelo
menos 100 vagas.
Como repercussão e/ou parte dos resultados esperados temos: a) Formação
de estudantes de graduação como pesquisadores, no âmbito teórico-prático,
preparando-os a dar continuidade aos estudos em nível de pós-graduação; b)
Formação continuada de professores já em exercício na educação básica, através
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de atualizações nas áreas de formação docente, leitura, literatura e materiais
didáticos; e c) Interlocução com os departamentos da UFES envolvidos na
formação de professores de Língua Portuguesa nos cursos de Letras e Pedagogia
e com as Secretarias Municipais e Estadual de Educação, com apresentação dos
resultados da pesquisa, tendo em vista possíveis revisões curriculares e projetos
de parceria na formação de professores.
Para a consecução dos objetivos propostos, nossa equipe é composta de uma
coordenadora, uma assessora, três pesquisadores e três estudantes de iniciação
científica: Prof.ª Dr.ª Cleonara Maria Schwartz (UFES) – pesquisadora; Prof.ª
Dr.ª Maria Amélia Dalvi (UFES) – coordenadora e pesquisadora; Prof.ª Dr.ª
Neide Luzia de Rezende (USP) – pesquisadora e assessora; Adriana Falqueto
Lemos, Anna Catharina Izoton Alves Mariano e
Sérgio Alves de Novais (estudante de graduação e de iniciação científica,
UFES).
As parcerias interinstitucionais da pesquisa que damos a conhecimento da
comunidade científica são estabelecidas com docentes da graduação e da
pós-graduação, na área de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa nas
seguintes instituições: Universidade Estadual de Londrina, Universidade
Estadual do Rio Grande do Norte, Universidade Federal de Lavras, Universidade
Federal do Maranhão, Universidade Federal do Pará, Universidade Federal de
Uberlândia, Universidade Federal de Alfenas, Universidade do Estado de Mato
Grosso e Universidade de São Paulo. Nesse sentido, realizam-se intercâmbios
presenciais ou virtuais, nos quais se fazem relatos de experiência das pesquisas
em casa instituição, rediscutindo-se os pressupostos teórico-metodológicos e os
resultados parciais. A importância de um grupo tão diversificado é evidente: há
instituições tradicionais e com programas de pós-graduação consolidados; outras
instituições menos tradicionais, mas que constituem pólos regionais de grande
importância; e instituições novas, algumas recém-criadas, com seus cursos de
licenciatura ainda em fase de estruturação – tudo isso certamente contribui para
que os resultados de cada grupo local e o intercâmbio interinstitucional sejam
ainda mais ricos, já que abrangendo instituições de perfis muito díspares entre
si, com práticas, representações e saberes extremamente diversificados.
A equipe interdisciplinar do projeto maior ao qual este nosso projeto se vincula é
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composta pelos seguintes membros: a) Coordenadores: Prof.ª Dr.ª Maria Núbia
Barbosa Bonfim e Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto; b) Assessores / consultores
técnicos: Prof. Dr. Antonio Paulino de Sousa, Prof. Dr. Claudemir Belintane,
Prof.ª Dr.ª Claudia Rosa Riolfi, Prof. Dr. Émerson de Pietri, Prof.ª, Dr.ª Idméa
Semeghini-Siqueira, Prof.ª Dr.ª Neide Luzia de Rezende, Prof. Dr. Sandoval
Nonato Gomes Santos e Prof.ª Dr.ª Veraluce Lima dos Santos; e
c) Pesquisadores: professores da área de Metodologia do Ensino de Língua
Portuguesa das seguintes instituições: UEL, UERN, UFES, UFLA, UFMA,
UFPA, UFU, UNIFAL, UNEMAT e USP. A equipe realiza encontros regulares,
presenciais e virtuais (por vídeo-conferência, e-mail ou chat de conversação),
para discussões de natureza teórico-metodológica e de resultados parciais de
pesquisa. O último encontro foi realizado no estado do Rio Grande do Norte
e o próximo encontro, em 2011, está previsto para ocorrer no estado de Minas
Gerais. O estado do Espírito Santo deve ser incluído como sede na agenda
das próximas reuniões, no ano de 2012 ou 2013. Além disso, cabe reforçar que
os resultados parciais são publicados no sítio virtual do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Produção Escrita e Psicanálise (http://paje.fe.usp.br/~geppep/
index.htm) e na revista MELP (Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa)
da Faculdade de Educação da USP.
Algumas das possíveis dificuldades e riscos potenciais que poderão interferir
na execução das ações propostas nesta notícia são os seguintes: a) a dificuldade
em se obterem os documentos escritos necessários à pesquisa – para contornála, o pedido de cópia desses documentos será oficialmente protocolado junto
aos departamentos e centros envolvidos, de modo que qualquer negativa
tenha que ser feita por caminhos oficiais, os quais permitem apelação junto
a instâncias superiores; b) a dificuldade em manter diálogo com a equipe
interinstitucional, dada a distância entre as instituições – para contorná-la
se pretende usar dos meios virtuais; c) a dificuldade em se obter um espaço
físico junto ao Centro de Educação para alocação dos equipamentos que seja
100% seguro – para contorná-la, já obtivemos a concordância da coordenação
do Nepales para compartilhamos o espaço físico da sala e já conseguimos que
a sala 22 do Edifício IC-4, na qual desenvolveremos a pesquisa, tivesse suas
grades, fechaduras e trancas substituídas; d) o reduzido número de bolsistas
de pesquisa e a possibilidade de que desistam da pesquisa para se dedicarem
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a empregos ou estágios – para contorná-lo concorremos a todos os editais de
bolsas no âmbito da Ufes e contamos com voluntários de pesquisa, procurando
esclarecer a importância desse tipo de formação para quem pretende seguir uma
carreira acadêmica; e) o alto custo de participação nos eventos fora do estado,
especialmente para os bolsistas e voluntários de iniciação científica – para
contorná-lo pediremos auxílio à PRPPG da UFES e demais agências de fomento,
sempre que for pertinente; f) a possibilidade de que eventuais relatos de pesquisa
/ artigos não sejam aceitos para apresentação em eventos ou para a publicação
em periódicos – para contorná-la submeteremos propostas a diversos eventos
e periódicos; e g) o diminuto montante de recursos destinado a financiamento
de projetos não experimentais, nas agências de fomento municipal e estadual
– para contorná-lo subsidiaremos parte da pesquisa com recursos próprios
(especialmente no que concerne à aquisição de materiais bibliográficos).
Parece-nos, reafirmando o que dissemos na introdução, que o mais importante,
ao socializarmos esta pesquisa em estágio embrionário, é a possibilidade de que
outros pesquisadores (professores ou estudantes) possam se identificar (por
adesão ou oposição) com a temática, o recorte, a filiação teórico-metodológica
e, quem sabe, possam vir compor nossa equipe (local e interinstitucional),
enriquecendo os diálogos e ofertando a possibilidade de consideração de outros
dados, diferentes dos que já dispomos. Acreditamos nisso porque a pesquisa
acadêmico-científica deve ter como ponto de partida e como ponto de chegada
o diálogo com as questões candentes de nossas práticas e representações sociais:
e, não é preciso dizer, a formação de professores de língua portuguesa é uma
delas, tendo em vista o anseio coletivo de incremento de qualidade de nossa
educação básica. Nesse sentido, esta notícia de pesquisa é, mais do que uma
prestação de contas à sociedade do tempo porque somos remunerados no
serviço público, um convite à(s) parceria(s).
Referências
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discursivas de conhecimentos e de saberes. Belo Horizonte: Autêntica; Ceale,
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ANFOPE. Boletim da Anfope. Ano XIII. n.º 01. Outubro de 2007. Disponível em
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Um estudo da concepção de leitura
presente nas atividades de compreensão
e interpretação de textos do ensino
fundamental
Danielle Maximo Plens Pinelli
Adriana Recla
Resumo
O presente artigo tem por finalidade evidenciar uma análise de algumas
atividades de compreensão e interpretação de texto, presentes nas apostilas
destinadas a 8ª série do Ensino Fundamental, de uma escola particular, visando
uma abordagem da(s) concepção(s) de leitura que orienta essas atividades.
Verificamos, por meio desse artigo, o quanto à concepção de leitura de quem
elabora as atividades de compreensão e interpretação de texto reflete na
aprendizagem do aluno.
Palavras-chave: Leitura. Atividades. Ensino.
Abstract: This article aims to highlight a review of some activities to understand
and interpret text, present in the handouts for the 8th grade of elementary
school,a private school, seeking an approach (s) design (s) reading that guides
these activities. We found through this article, read about the design of
those planning activities to understand and interpret text reflects on student
learning.
Keywords: Reading. Activities. Teaching.
Introdução
A leitura deixou, há tempos, de ser concebida como mera decodificação da escrita,
ou representação do pensamento. Por muitas décadas a leitura foi postulada
na escola como uma atividade intramuros, utilizada com fim pedagógico e
utilitário. Seguindo esses pressupostos, cabia ao leitor o papel de um sujeito
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passivo, que decodificava o código linguístico, a fim de compreender o sentido
do texto estabelecido apenas pelo autor.
Hoje, é inconcebível essa concepção, pois a leitura é compreendida como uma
atividade complexa, como um trabalho ativo realizado pelo leitor, em que se
busca estabelecer um sentido ao que está sendo lido, por meio da interação
“autor-texto-leitor”, (Koch e Elias, 2006).
Trata-se, portanto, de um processo em que os indivíduos interagem
dialogicamente com o texto, trocando experiências e estabelecendo sentidos
socialmente construídos.
A leitura deve ser percebida pelo educador e pelo educando como um processo
que vai além das simples decodificações das palavras de um texto, ou seja, como
uma forma de se apropriar e de se interagir no e com o mundo. Solé (1996, p.33)
considera que o problema do ensino da leitura na escola não se situa no nível do
método, mas na própria conceitualização do que é leitura. Assim, a proposição
de colocá-la como atividade interacional vem cada vez mais galgando patamares
sustentáveis na disciplina de língua Portuguesa.
Chartier (2001, p. 247) afirma que é muito importante à prática da leitura, sendo
absolutamente interessante discernir o que o leitor diz sobre suas leituras,
afinal, ela é um “espaço próprio de apropriação” de novos conhecimentos e de
enriquecimentos dos já adquiridos.
Por sua vez, Bourdieu (IN CHARTIER, 2001) postula a importância da leitura
como prática social, ressaltando que o livro é algo que permite agir à distância,
afinal, tem poder de agir sobre as estruturas mentais e a partir dessas chegar às
estruturas sociais devido ao seu poder simbólico.
Por meio da reflexão de Bourdier (op.cit) se evidencia também que o livro pode
transformar a visão do mundo social e através da visão do mundo transformar
também o próprio mundo social.
Garcez (2004) acrescenta uma outra reflexão a respeito da leitura ao considerála como um processo muito complexo que envolve a decodificação de signos;
interpretação de itens lexicais e gramaticais; agrupamento de palavras em blocos
conceituais; identificação de palavras-chave; seleção e hierarquização de ideias;
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associação de informações anteriores; antecipação de informações; elaboração
de hipóteses; construção de inferências; compreensão de pressupostos;
reorientação dos próprios procedimentos mentais e outros.
Além desses procedimentos apontados por Garcez, podemos recorrer a alguns
conceitos que são extremamente relevantes para compreendermos o que vem a
ser a leitura, como, por exemplo, as noções de sentido, estratégia, objetivos da
leitura, representações mentais e leitura e ensino.
Enfim, conceberemos neste trabalho a leitura como uma atividade de interação
entre autor-texto-leitor, que envolve uma série de procedimentos complexos,
realizados em uma dimensão linguística, social, discursiva e cognitiva.
A linguística textual preconiza a concepção de leitura sócio-cognitivointeracional, considerando-se os sujeitos como autores e/ou construtores sociais,
sujeitos ativos que constroem-se e são construídos no texto, considerando o
próprio texto como um lugar da interação e da constituição dos sujeitos.
A noção de língua/gem vista em uma perspectiva dialógica e interacional
(Bakthin, 2000), deve ser, atualmente, o pressuposto básico de todos os
professores de língua materna para a realização dos diferentes trabalhos
elaborados na escola, entre eles, os que envolvem a leitura.
O ensino da leitura, em muitas instituições escolares, ainda se encontra deficiente,
por conta de atividades inadequadas, sem objetivos, e também devido à má
compreensão que o professor tem sobre esse conceito.
Infelizmente, na maioria das atividades de compreensão e interpretação de
textos, permanece o hábito de se considerar a leitura como mera decodificação
da escrita ou representação do pensamento; o leitor é visto como uma pessoa
passiva que recebe a informação presente no texto, sendo o seu concebido como
algo pronto e pré-estabelecido pelo autor.
Diante dos questionamentos acima apontados e da ausência de atividades
que proponham um ensino proficiente de leitura, resolvemos analisar alguns
exercícios presentes nas apostilas destinadas a 8ª série do Ensino Fundamental
de uma escola particular, observando qual a concepção de leitura que orienta
essas atividades.
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Queremos propor uma reflexão sobre o ensino da leitura, afim de que ela seja
considerada uma atividade complexa realizada por um leitor ativo que utiliza
uma série de estratégias ao interagir com o texto e, a partir dele, constrói
sentidos.
A seguir, discutiremos sobre os principais conceitos que envolvem a leitura,
pensando em um ensino real, pautando-nos principalmente em uma perspectiva
sócio-cognitiva e interacional da linguagem.
Leitura e Produção de Sentido
Sabemos da dificuldade que muitos leitores têm para compreenderem um
texto, pois não entendem que eles próprios atuam no processo de construção de
seu sentido, ocorrido, por exemplo, por meio de seus objetivos, conhecimentos
prévios e estratégias. Isso significa, que nem todos os leitores possuem os
mesmos conhecimentos prévios, as mesmas experiências, sendo assim, tornase evidente que, muitas vezes, a compreensão pode até ser parecida, mas nem
sempre a mesma.
Dessa forma, o sentido de um texto não é apenas resultado de uma intenção
estabelecida apenas pelo seu autor. Ambos (autor e leitor) estão envolvidos na
construção desse sentido.
Koch e Elias (2006) propõem dois fatores relevantes para que o leitor estabeleça
um sentido ao texto. O primeiro deles se refere à relação do autor com o leitor,
pois envolve os conhecimentos que ambos partilham sobre a língua, o gênero
textual e o tipo textual.
O segundo, diz respeito ao texto, mais especificamente aos aspectos nãolinguistiscos como, por exemplo, “tamanho e clareza das letras, cor do papel, a
fonte empregada, a constituição de parágrafos muito longos, e outros” além dos
aspectos lingüísticos como “léxico pouco conhecido, ausência ou inadequação
do uso de sinais de pontuação”, etc (p. 24-31).
Além dos fatores acima, acrescentamos que todo processo de leitura é decorrente
de conhecimento prévio do leitor, como já mencionamos, que interpreta,
constrói e reconstrói sentidos aos textos e, a todo o momento, incorpora tais
conhecimentos sob a forma de esquemas mentais.
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Assim, compreensão de um texto também se dá pela nossa memória, pois
temos um conhecimento já estruturado sobre alguns eventos determinados por
meio de nossa cultura, assuntos, situações, que chamamos de esquemas. Esses
esquemas estão diretamente relacionados com a organização do conhecimento
e com a forma de processamento da informação.
Van Dijk (1996) postula como se dá à organização do processamento da
informação e aplicação do conhecimento, e, partindo desses dois pressupostos,
cria às noções de representação textual e modelo de situação.
Para esse autor, (1996) um discurso torna-se compreensível de acordo com a
relação que o usuário da língua tem desse modelo na memória; se ele constrói
ou recupera um determinado modelo do discurso, diria-se que compreendeu o
texto e que ele é concebido como coerente.
Dessa maneira, segundo Van Dijk, (op.cit.) quando o leitor tenta imaginar do
que o texto trata, ele está criando um modelo de situação. Esses modelos são
fabricados a partir de nossos conhecimentos, experiências pessoais, etc.
Os modelos podem estar armazenados na memória semântica ou social, por meio
de frames (forma de conhecimento de ordem mais geral) e scripts (seqüência
linear de ações) ou ainda por meio da memória episódica ou individual, que
está atrelada às experiências pessoais das pessoas com o mundo.
Para Koch e Elias (2006) o processamento textual envolve alguns tipos de
conhecimento como o lingüístico, o de mundo, e o interacional.
O conhecimento lingüístico refere-se aos conhecimentos lexical e gramatical que
o usuário possui. O conhecimento de mundo está relacionado às experiências
pessoais vivenciadas pelas pessoas que podem ser de ordem social ou individual
e o conhecimento interacional refere-se às interações por meio da linguagem e
envolvem os conhecimentos ilocucional, comunicacional, metacomunicativo e
superestrutural (ver Koch e Elias, 2006, p. 45-56).
É necessário comentar que o leitor, além de ativar as formas de conhecimento,
acima discutidas, também realiza uma série de estratégias que contribuem, e
muito, para a construção do sentido de sua leitura.
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Estratégias e objetivos de leitura
Quando o leitor realiza uma leitura de maneira estratégica dizemos que é um
leitor ativo, que sabe quando não está compreendendo um texto e, assim, orienta
seus próprios procedimentos, supervisionando sua compreensão de leitura, a
fim de que ela torne-se mais proficiente.
Van Dijk e Kintsch (IN VAN DIJK, 1996, p. 169) postulam “que os usuários
da língua realizam passos interpretativos finalisticamente orientados, efetivos,
eficientes, flexíveis, tentativos, em vários níveis ao mesmo tempo”.
Para Solé (1998), as estratégias de leitura são consideradas “suspeitas
inteligentes”, elas envolvem a ideia principal, que se refere a seleção que o
leitor opera cognitivamente a fim de saber o que é essencial em um texto, a
previsão, a qual consiste na eliminação de alternativas que são improváveis
para a continuidade do texto, e a inferência que está relacionada ao esforço do
leitor para elaborar um sentido ao texto, partindo, muitas vezes de ideias que
encontram-se implícitas nele.
Podemos dizer que essas estratégias são realizadas quando um leitor tem
consciência de seus objetivos de leitura de acordo com a finalidade que possui.
Assim, achamos necessário evidenciar as reflexões de Colomer e Camps (2002)
a esse respeito.
Colomer e Camps (2002) comentam a respeito da importância de se realizar
uma leitura com objetivos bem definidos. Essa reflexão proposta pelas autoras
está direcionada ao profissional que deve elaborar e orientar atividades que
envolvam um ensino proficiente da leitura, proporcionando que seus alunos
tenham consciência de seus objetivos de acordo com seus próprios interesses.
Nessa perspectiva, os objetivos são um dos requisitos que contribuem para
compreensão, pois servem para orientar a leitura e determinam as estratégias
do leitor, além do conhecimento prévio por ele ativado.
Durante o ato de ler, um leitor que pré-estabelece seus objetivos de leitura exerce
um papel ativo prestando atenção somente ao que lhe é mais relevante naquele
momento para construir um sentido ao que está sendo lido.
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Solé (1998, p. 93-98) destaca alguns objetivos gerais de leitura tais como “ler
para obter uma informação precisa, ler para seguir instruções, ler para obter
informação de caráter geral, ler para aprender, ler para revisar um escrito
próprio, ler por prazer e ler para comunicar um texto a um auditório”.
Sabemos que, além dos objetivos acima, mencionados por Solé, (op.cit.) existem
outros objetivos que o leitor pode estabelecer.
Passaremos a seguir a discutir a respeito da importância leitura na dimensão do
ensino e das atividades de interpretação e compreensão de textos elaborados
aos alunos.
Leitura e Ensino
Embora muitas escolas venham buscando melhorar seu desempenho e estejam
interessadas em propiciar aos seus alunos um ensino de leitura com qualidade,
infelizmente, ainda nos deparamos em sala de aula com atividades que, na
verdade, propõe uma “simulação” do ensino leitura, cujo trabalho não prepara
um leitor proficiente que compreenda significativamente.
Essa deficiência no ensino da leitura se deve, muitas vezes, a falta de compreensão
que o professor tem sobre esse conceito, ou devido à carência de um ensino
coerente que instigue no aluno a utilização de uma série de estratégias de leitura,
de objetivos a serem cumpridos, do estabelecimento de inferências, ativação do
conhecimento prévio, conhecimento de mundo e outros.
Para Correa e Cunha (IN PAULIUKONIS; SANTOS, 2006), muitos alunos ainda
possuem o hábito de considerarem a leitura como um processo de decodificação
da escrita. Nessa perspectiva, o ensino da leitura deixa de ser concebido em sua
dimensão discursiva, a qual considera, por exemplo, as condições de produção
do texto, o suporte em que ele está inserido, o gênero a que pertence e sua
finalidade, além do trabalho que o próprio leitor realiza cognitivamente.
Colomer e Camps (2002) afirmam que a condição fundamental para um bom
ensino de leitura requer uma mudança em sua prática social e cultural. Elas
afirmam sobre a importância de se promover um ensino real da leitura que
requer, por exemplo, que os alunos saibam ler e, mais que isso, que tenham a
capacidade de saber como devem ler para uma finalidade concreta.
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Essas mesmas autoras (2002, p. 90) destacam uma programação do ensino da
leitura baseada em alguns eixos como: o trabalho em situações reais de leitura
com diferentes funções e intenções, o auxilio ao aluno para ele interpretar textos
de dificuldade progressiva, contribuindo com sua autonomia leitora e o exercício
das habilidades específicas em textos reais, sendo eles escolares ou não.
Por meio dessa programação propostas pelas autoras elas acrescentam uma
série de atividades relevantes para que o professor possa elaborar com seus
alunos. Entre elas, destacam-se algumas atividades realizadas por meio de
representações gráficas (desenhos, quadros etc.), que contribuem para que o
aluno consiga representar mais facilmente a ordenação das informações mais
relevantes, a compreensão global do texto, a construção de textos em cadeia,
a continuação de textos narrativos, a elaboração de resumos, exercícios de
pressuposição e inferência e outros Colomer e Camps (2002 p. 120-169).
Não podemos deixar de mencionar, nessa discussão sobre leitura e ensino, os
problemas que decorrem dos próprios materiais didáticos, entre eles, livros e
apostilas que a escola recebe.
Cunha e Corrêa (IN PAULIUKONIS; SANTOS, 2006) afirmam que muitos
estudos contem criticas a algumas atividades de leitura propostas em materiais
didáticos, uma vez que não consideram o texto em sua dimensão discursiva.
Por sua vez. Marcuschi (IN DIONISIO; BEZERRA, 2002, p. 51) afirma que, em
geral, os autores dos livros didáticos evidenciam ser importante o trabalho com
a compreensão do texto, porém, segundo sua opinião, o problema não está na
presença ou ausência desse tipo de atividade, e sim, na sua natureza.
Assim, Marcuschi (op.cit.) aponta que na maior parte dos exercícios a
compreensão é vista como uma simples decodificação do conteúdo, vêm
misturadas com uma série de questões que nada tem a ver com o assunto do
texto e raramente levam os alunos a reflexões críticas sobre o texto, o que não
permitiria sua expansão e construção do sentido.
Castro e Dionísio (2003) acrescentam que alguns textos perdem sua originalidade
ao serem “deslocados de seu material originário” e inseridos nos materiais
didáticos, e isso pode acarretar numa possível recontextualização pedagógica
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que atribui ao texto sentidos específicos. Segundo esses autores muitas atividades
presentes em materiais didáticos estabelecem as coordenadas de sentido que o
aluno – leitor deve atribuir ao texto.
Para finalizar, ressaltamos que o material utilizado em sala pode servir apenas
para orientar o professor a fim de que ele escolha os procedimentos que achar
mais adequado à realidade de seus alunos, e de acordo com os objetivos de
leitura que persegue
Constituição do corpus e procedimentos de análise
Para a realização da análise selecionamos quatro exercícios que envolvem,
basicamente, a leitura de um texto seguida de algumas atividades de
compreensão e interpretação.
Conforme já mencionado, observaremos qual/ou quais a(s) concepção(s) de
leitura que orienta essas atividades.
Antes, porém, se faz necessário fazermos algumas observações sobre o “corpus”
em questão, a saber, as apostilas selecionadas, as atividades de leitura que serão
analisadas e os textos que as norteiam.
Os exercícios que analisamos foram retirados de duas apostilas de uma escola
particular, considerada de “excelente” nível, destinados a 8ª série do ensino
fundamental. Escolhemos dois exercícios de cada apostila sendo que cada uma
delas pertence a um trimestre, considerando que o aluno recebe quatro dessas
no ano, ou seja, uma apostila a cada trimestre.
Primeiramente, notamos que se trata de dois materiais que trabalham com uma
diversidade de disciplinas, que envolvem, na parte de Língua Portuguesa, uma
seção denominada “LEITURA”.
Nessas seções, há, essencialmente, uma variedade de temas, gêneros textuais,
contextos sociais de uso, enfim, considerando que o texto é a base do trabalho
em Língua Portuguesa, pode-se dizer que são materiais ricos no “quesito”
textual, se considerarmos que permite ao aluno o contato com uma diversidade
de textos, contribuindo assim para a formação como leitor.
As atividades analisadas pertencem a apostila do 1º trimestre (nomeada na
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análise de apostila 1) e a apostila do 3º trimestre (nomeada de apostila 3).
Essa escolha se deu por acharmos interessante observar se houve um “avanço”
nessas atividades que envolvem a leitura, pois elas poderiam partir de
questões menos complexas para questões mais complexas, considerando que
proporcionassem ao aluno, nesse espaçamento de tempo entre o primeiro e o
terceiro trimestre, uma capacidade interpretativa maior.
Porém, outra questão relevante que observamos é que nas duas apostilas (1º
e 3º trimestre) as atividades de Língua Portuguesa foram elaboradas por autores
diferentes.
Quanto aos textos a serem lidos pelos alunos o primeiro deles, ou seja, o texto
pertencente a apostila um (1º trimestre) é um conto, intitulado “NUNCA É
TARDE, SEMPRE É TARDE” elaborado por Sílvio Fiorani, publicado no livro
“Os estandartes de Átila, em 1980.
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O segundo é na realidade composto de uma coletânea, onde há primeiramente
um pequeno texto informativo seguido posteriormente de dois textos distintos,
a saber, um artigo e uma notícia, ambos publicados na Folha de São Paulo, em
7 de janeiro de 1996.
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Faremos, a seguir, a análise propriamente dita das atividades em
questão.
A análise propriamente dita
Apostila do 1º trimestre (Apostila 1)
Na apostila 1, pertencente ao primeiro trimestre, podemos observar
primeiramente a solicitação da seguinte atividade:
1. Explique o título do conto?
a)- Porque nunca é tarde?
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_______________
b)- Porque sempre é tarde?
______________________________________________________________
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______________________________________________________________
_______________
Por meio dessa atividade notamos que refletir sobre o título é sempre
“a primeira entrada cognitiva” no texto, o aluno pode, a partir dele, fazer uma
série de suposições que podem ser confirmadas ou modificadas no decorrer da
leitura. Esse tipo de atividade também sugere que os alunos façam inferências e
assimilem o conteúdo global do texto.
Assim, notamos que essa atividade pressupõe um leitor ativo que
trabalha cognitivamente e utiliza seu conhecimento prévio, fazendo estratégias,
a fim de tentar compreender o sentido do texto.
2. Qual dos diagramas seguintes esquematiza corretamente o conto de Sílvio
Fiorani?
Justifique sua resposta.
a)
+
+
+
b)
Notamos que essa segunda atividade, da apostila 1, é um tanto diferenciada da
primeira, pois foi elaborada apenas por meio de uma representação gráfica, em
forma de diagramas, quadros.
No diagrama “a” está implícito que a personagem Su, diante da preocupação
de chegar atrasada ao trabalho, sonha várias vezes seguidas, ou seja, tem um
sonho atrás do outro. Por sua vez, o diagrama “b”, nos permite observar que
Su, a todo o momento, sonha que está sonhando, ou seja, os sonhos se realizam
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simultaneamente.
Como podemos observar o aluno tem que optar pelo “esquema” que melhor
evidencia o acontecimento do conto em questão.
Assim, quanto à concepção de leitura que orienta essa segunda atividade,
notamos também que é a de um leitor ativo, proficiente, que interage com o texto a
fim de construir seu sentido global.
Trata-se de uma atividade que não é simples, mas, se bem conduzida, permite
ao aluno que construa uma representação mental do texto escrito, o que facilita
que ele tenha consciência da maneira de operar seus conhecimentos adquiridos,
representados por meio dos diagramas.
Observando essas duas atividades da apostila 1, que se deram de maneiras
diferentes de proceder frente à leitura do texto “NUNCA É TARDE, SEMPRE
É TARDE”, notamos que são bem elaboradas e refletem com clareza uma
concepção interacional da leitura onde o leitor ativo, realiza estratégias, interage
com o texto e constrói um sentido a partir dele.
Cabe acrescentar que as demais atividades que se referem a esse mesmo texto,
“Nunca é tarde, sempre é tarde”, são bastante diferenciadas umas das outras,
mas todas são orientadas por essa mesma concepção de leitura.
Apostila do 3º trimestre (Apostila 3)
A primeira atividade da apostila 3 evidencia a seguinte questão para o aluno:
1)- Qual o principal argumento utilizado pelo autor do artigo para justificar sua
posição diante do problema?
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Podemos observar, nessa primeira atividade, que o aluno tem que
apresentar o argumento utilzado pelo autor do artigo que melhor justifica o
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problema da chegada da informática e da possível eliminação da linguagem
escrita. Trata-se, dessa forma, de uma busca de resposta encontrada na própria
superfície do texto.
Como o gênero artigo e notícia requerem uma reflexão do aluno sobre os
argumentos utilizados pelos autores, não descartamos a importância de
atividades como essas, porém, fora essas atividades que selecionamos para
analisar, notamos que as demais também se restringem ao trabalho com os
argumentos dos textos.
Isso nos permite dizer que a concepção de leitura que orienta essas atividades
da apostila 3, é mais de um leitor decodificador, passivo, que recebe uma
informação na qual o sentido é pré-estabelecido pelo autor, do que de um sujeito
ativo que, por meio da interação com o texto, constrói sentidos.
Assim, embora os textos que respaldam essas atividades são considerados
bons, até porque os alunos trabalham com dois gêneros ao mesmo tempo, e
a temática é considerada relevante, em virtude da transformação social que
estamos passando, diante do avanço da tecnologia, notamos que nesse exercício
a leitura é considerada como uma simples atividade de decodificação, que se
resume apenas à extração dos conteúdos.
2) Copie na primeira coluna do quadro abaixo, os três argumentos negativos. Na
segunda coluna, transforme-os em argumentos positivos em relação ao livro.
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É visível que essa atividade também não proporciona ao aluno o uso da leitura
em uma dimensão real, e sim, uma “simulação da leitura”, tampouco, leva-o
refletir sobre ela, uma vez que permite apenas que ele observe os argumentos
negativos e positivos tanto a respeito dos meios eletrônicos como dos livros.
O quadro que o aluno tem que preencher até contribui para que ele ordene as
informações do texto, porém, neste caso, ele estará refletindo apenas sobre os
argumentos utilizados pelos dois autores e não sobre o sentido que pode ser
retirado dos dois textos em questão.
Na apostila do terceiro trimestre (apostila 3), notamos uma outra concepção
de linguagem que subjaz essas atividades. Não podemos esquecer-nos que
elas forma feitas por autores diferentes, o que compromete certamente nessas
diferenças entre as apostilas, e, conseqüentemente, entre uma atividade e
outra.
Assim, nas duas atividades a seguir, notamos que o professor terá que avaliar o
“grau de compreensão” do aluno apenas por meio de questões onde eles serão
limitados à busca e a cópia de informações, trabalhando mais especificamente
com a questão da argumentação.
Como se tratam de atividades baseadas em praticamente três textos seria válido
que os autores dessas atividades elaborassem algum tipo de exercício que
fizesse com que o aluno refletisse mais sobre o sentido dos textos, sem é claro
desconsiderar as demais atividades presentes.
Considerações Finais
Mesmo considerando a boa escolha dos textos a serem lidos pelos alunos,
percebemos por meio de algumas atividades que ainda há uma divergência de
pensamentos quanto à concepção de leitura que as orienta.
Ao contrário do que poderíamos prever, a passagem de uma apostila para outra
não proporcionou um avanço na complexidade dessas atividades.
As atividades da apostila 1, pressupõe um leitor ativo, que interage com o texto
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e constrói um sentido a partir do mesmo.
Por sua vez, na apostila 3, notamos uma tendência a considerar a leitura como
decodificação da escrita, como algo pronto, acabado, devido ao uso da leitura
apenas para explorar “os argumentos positivos e negativos do livro e do meio
eletrônico”.
Além disso, é possível afirmar que as considerações acima ainda revelam
posturas diferenciadas nas atividades, uma vez que foram elaboradas por
autores distintos, ou seja, cada autor pressupõe uma concepção de leitura.
Enfim, sabemos que se faz necessário uma mudança de postura, a fim de que o
ensino da leitura seja feito em uma dimensão discursiva, assim, de uma maneira
mais adequada à realidade do aprendiz para que ele alcance sua competência
leitora, com objetivos e finalidades que se adequem as suas necessidades, além
dos outros fatores por nós já mencionados.
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