MULHERES DA ELITE, “MISSIONÁRIAS DO PROGRESSO” (1902

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MULHERES DA ELITE, “MISSIONÁRIAS DO PROGRESSO” (1902
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MULHERES DA ELITE, “MISSIONÁRIAS DO PROGRESSO” (1902-1920)
Maria Apparecida Franco Pereira
Universidade Católica de Santos
RESUMO
Mulheres residentes em Santos, cidade portuária, têm uma atuação significativa no campo da educação,
no início do século XX, numa época em que o elemento feminino começava a ter visibilidade social. O
objetivo desta pesquisa é recuperar - para a historiografia da educação brasileira - a ação dessas
mulheres, na sua maioria sem formação específica para o magistério e com a contribuição de intelectuais
da cidade, que levaram avante uma instituição de ensino, hoje centenária. Assim, tentamos tirar do
anonimato histórico as principais protagonistas, num esforço biográfico, de uma atividade educativa, que
envolvia a formação de professoras (Liceu Feminino Santista) e a educação de crianças do meio operário
e imigrante ( com as escolas maternais), entrelaçando ideais de elite com educação popular. A formação
para o magistério abarcava, entretanto, fundamentalmente, um currículo de formação humanística
generalizante. Essa escola, apesar de ser considerada competente, no seu nível, na cidade , encontrou a
barreira do modelo da Escola Normal da Praça, na capital paulista. As balizas históricas compreendem, de
um lado, o ano de 1902 ( fundação do Liceu Feminino Santista e Escolas Maternais) e de outro, 1920(
época em que termina a atuação de Robertina Cochrane Simonsen, uma das baluartes desse grupo
feminino, desde o seu início). As pesquisas, dentro do rigor da metodologia histórica, indicam , numa
perspectiva de gênero, que essas mulheres vêm do seio de uma elite ligada às profissões liberais
(advogados, médicos, engenheiros) numa cidade que passava pelo processo de modernização e
higienização, mas também com uma militância socialista, no meio operário. O estudo mostra também
uma educação na perspectiva laica, com vestígios de ação maçônica, e uma preocupação com a elevação
cultural da mulher. Por outro lado sinalizam essas pesquisas a presença da influência cultural da capital
federal, Rio de Janeiro, e da capital paulista, que , além de ter a presença atuante da Academia de Direito,
vivia também as transformações advindas de uma época de modernização. Utilizaram-se fontes primárias
da instituição, que tem um arquivo bem conservado, com documentação fundamental, como relatórios
impressos, livros de atas das atividades administrativas e educacionais, livros de matrícula, material
iconográfico (fotos avulsas e em série, álbuns fotográficos de formatura) e alguns vestígios importantes
para a cultura escolar. Valemo- nos do aporte teórico de uma bibliografia de gênero (Maria Izilda Matos,
por exemplo); de magistério (Nóvoa, Catani) ; de autores que se dedicam também ao estudo da educação
infantil (Tizuko M. Kishimoto) ; da cultura escolar ( Viñao Frago, Ruiz Berrio, Rosa Fátima de Souza) e
da história das instituições (Justino P.Magalhães, Gatti,G.Inácio Filho).
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TRABALHO COMPLETO
As últimas décadas do século XIX são marcadas pela chamada era da modernização. A
Ilustração, no final do século XVIII, colocara novas perspectivas no campo do saber: o desenvolvimento
da razão como uma exigência universal (a educação torna-se um direito de todos) e transformada em
razão instrumental, alimentando o desenvolvimento de uma ciência que desencadeia uma revolução
tecnológica jamais vista até então, adentrando célere o século XX, ocasionando impactos principalmente
no campo das comunicações: o transatlântico, o telégrafo sem fio, o telefone, a eletricidade, a aviação, o
automóvel, o rádio, o cinema, além, é claro, dos avanços da própria indústria. Nicolau Sevcenko (1998,
p.514) chama atenção para a repercussão dessa vertiginosa virada: “Por volta de 1900, o poder da
tecnologia estava muito além do que qualquer outro século jamais sonhara”.
A idéia do progresso vai se tornar companheira da idéia de civilização, necessária para tirar o
mundo do seu atraso cultural e da barbárie dos costumes. Ao lado da universalização dos benefícios da
civilização, coloca-se a primazia do indivíduo - acrescente-se burguês - mas que também dá margem para
a presença das reivindicações de estratos mais populares da sociedade, filiadas às novas idéias socialistas
no decorrer da segunda metade do século XIX. O liberalismo é o pensamento dominante, acompanhado
de outras correntes como o positivismo, o evolucionismo que vão alimentar o evoluir do conhecimento,
trazendo também nesse panorama outros atores.
A consagração da ciência positiva como o apanágio do
progresso no século XIX pôs em cena uma nova elite de
personagens envolvidos na sua gestão: cientistas, médicos,
engenheiros, arquitetos, urbanistas, administradores e técnicos
[...] nova burocracia científico-tecnológica.
(Sevcenko, 2001, p.17)
Eis, então, a vanguarda de uma força modernizadora quando se elabora um discurso onde se
privilegia a urbanização e a higienização das cidades. Bárbara Freitag-Rouanet, em artigo intitulado
“Vida urbana e cultura”, chama a atenção para a ação educadora da cidade: “Preservar dentro da vida
urbana uma civilidade e uma cidadania, que parece estar na origem da própria fundação dos centros
urbanos” (2002, p.30). Flusser (apud Freitag-Rouanet, 2002, p. 31) enumera os três grandes espaços
urbanos: “o político, o econômico e o cultural”, este último ocupado pelas instituições artísticas e
educacionais.
Os grandes centros urbanos no Brasil, num movimento sincronizado, vão perdendo as suas vestes
arcaicas que trazem desde os tempos coloniais. Observem-se, na passagem do século XIX para o XX, no
Rio de Janeiro, a modernização do porto, o saneamento da cidade e a reforma urbana. O mesmo esquema
se dá na cidade portuária de Santos, respeitadas suas peculiaridades.
No Brasil (não esquecendo da existência dos “dois Brasis” de Roger Bastide) a riqueza
ocasionada pelo grande desenvolvimento da economia agro-exportadora do café ajuda a colocar o país,
principalmente as suas metrópoles, no clima da modernização. Rio de Janeiro, a capital federal, está à
frente, mas São Paulo aos poucos assume a liderança do desenvolvimento da economia cafeeira e
também se moderniza. Os modelos são europeus, pois a elite tem suas raízes na Europa, onde viagens
sistemáticas alimentam as suas crenças. Os valores da cultura francesa são os mais imitados, inclusive na
arquitetura e na moda. As regras de civilidade são francesas, embora ao adentrar o século XX o modelo
americano de vida, difundido pelo cinema, vai tomando paulatinamente conta do país.
A substituição do Império pela República, antecedida pela abolição da escravatura e pelo advento
da imigração; a laicização com a separação de Igreja e Estado também são outros indicativos de que o
Brasil estava em novos tempos.
A modernização do ensino, liderada por São Paulo e seguida por outros estados, é introduzida pela
Reforma da Instituição Pública Paulista de 1890 que dá início a modificações fundamentais: o ensino
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seriado, a institucionalização dos grupos escolares, a estruturação da máquina administrativa. Com uma
grande dotação orçamentária inicial, os projetos das construções escolares dão visibilidade à escola como
centro irradiador de uma nova luz.
De todos esses índices – a meta era civilizar toda a sociedade -, dois estão dentro dos objetivos
desta análise: a nova imagem da mulher e a sua apropriação da educação, no Brasil ao iniciar do século
XX. Gatti Júnior e Pessanha observam que “a cultura escolar disseminada em uma cidade em processo de
urbanização e modernização, discursiva e física, tem a função de deixar patente a superioridade do
progresso e da ação humana sobre a natureza” (2005, p.84).
Os papéis sociais femininos ainda estão se construindo. Na passagem do século XIX para o XX
as mulheres de uma elite nas grandes cidades, via de regra, já não estão tão reclusas. Sua presença é
notada nas festas e espetáculos públicos, o que de uma maneira ou outra muitas já exerciam papéis nos
encontros, nas intimidades dos lares. “Os recursos de arte implicam, primeiramente, uma vivência que,
bem ou mal, é acessível a ambos os sexos e a várias categorias sociais”, lembra Etelvina Maria de Castro
Trindade, a respeito da vida em Curitiba (1996, p.250-253).
A presença na literatura, principalmente nos jornais femininos, na 2a metade do século XIX , não
é desconhecida da historiografia brasileira. Anália Franco (cf. Bernardes, nov.1989, p.26) chama a
atenção sobre o papel importante da imprensa na sua “missão civilizadora”.
Na filantropia elas podem, sem maiores problemas, mostrar seus dotes e ampliar o avanço da
mulher no espaço público.
Entretanto é no espaço do magistério que a mulher alcança maior legitimidade social. Já no
século XIX, antes da implantação dos grupos escolares, a escola funcionava no seu lar ou numa sala
alugada numa casa de família. Mas a profissionalização não era aceita para a mulher burguesa. Ela
recebia instrução em casa ou geralmente nos colégios religiosos, durante a Primeira República. “A
mulher burguesa deveria ter acesso ao ensino para a expansão às suas qualidades de espírito, a seus dotes
afetivos, mais para satisfazer o senso estético do que para contribuir para o próprio bem estar, para a
manutenção de sua vida” (Nadai, 1991, p.31). Sua educação relacionava-se, sobretudo, à sua condição de
mãe e congregadora nuclear da família.
Poderia parecer diminuição do poder financeiro do pai, a filha ter que trabalhar; ela “deveria dar
lugar a outra jovem que precisasse ganhar a vida”(informação que recebi numa entrevista com uma
protagonista da época). Entretanto no caso das agruras ou revezes econômicos do café, a mulher estava
preparada para assumir papéis próprios de uma classe média.
* * *
A virada do século em Santos se dá no contexto da modernização. A ferrovia São Paulo-Railway
é inaugurada em 1867, ligando o interior produtor da rubiácea ao porto. O primeiro trecho do cais de
pedra é aberto aos navios em 1891. As epidemias começaram a ser vencidas, a cidade é saneada , o
discurso médico-higienista é bastante presente. O desenvolvimento urbanístico dispara.
Por outro lado, Santos – de tradição portuária e comercial – destacava-se como grande porto
escoadouro da grande riqueza paulista, o café. O crescimento do comércio cafeeiro impulsionava a
cidade para o progresso.
Júlio Ribeiro, em sua obra “A carne”, coloca informações sobre a cidade em 1889: “O povo
santista é polido, afável, obsequioso, franco: a riqueza que lhe proporcionou o comércio de sua cidade fálo generoso, até pródigo” (1952, p.95).
Embora haja um mercado “pantopolista” a atividade cafeeira é
a que direciona toda a vida do centro da cidade: Pelas ruas vai
e vem, encontra-se, esbarra-se um enxame de gente de todas as
classes e de todas as cores, conduzindo notas de consignação,
contas comerciais, cheques bancários, maços de cédula do
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tesouro, latinhas chatas com amostras de mercadorias. Enormes
carroções articulados, de quatro rodas, tirados por muares
possantes, transportam da estação do caminho de ferro para os
armazéns e deles para as pontes, para o embarcadouro, os sacos
de loura aniagem, empanturrados, regorgitando de café.
Homens de força bruta, portugueses em sua maioria,
baldearam-nas para bordo, sobre a cabeça, de uma a um, ou
mesmo dois, em passo acelerado, ao som, por vezes, de uma
cantiga ritmada, monótona, excitativa de movimento como um
toque de corneta.
(Ribeiro, 1952, p. 100)
Nesse grande centro dos negócios do café vibra uma elite que é formada por gente de tradição do
comércio santista, muitos de origem portuguesa, que se mescla por contratos sociais ou por casamentos
com famílias dos setores agrícolas do Estado. Convivem fazendeiros e comerciantes de café,
importadores e exportadores e agentes de bancos estrangeiros, todos filiados à Associação Comercial de
Santos.
Nessa elite também circulam intelectuais formados nas Escolas de Direito, de Medicina e
Engenharia ou nas viagens européias, intelectuais ligados à administração, muitos participantes da política
local. O espírito da Belle Époque do Rio de Janeiro soprava na cidade assim como os contatos com a
capital paulista.
Santos vai recebendo, cada vez mais, número maior de instituições de ensino: algumas mais
efêmeras, outras pontuais (professores particulares, de instituições de imigrantes portugueses,espanhóis e
italianos e de entidades operárias). Em 1900 e 1902, dois grupos escolares estaduais (Cesário Bastos e
Barnabé); reúnem-se outras escolas municipais (Grupo Escolar Olavo Bilac). Em 1904, duas
congregações religiosas (Maristas e Coração de Maria) sediam suas escolas que vão ser freqüentadas por
uma classe média.
* * *
Em 1902, por uma iniciativa da Associação Beneficente Instrutora do Estado de São Paulo,
dirigida pela educadora e escritora Anália Franco (1856-1919), funda-se em Santos, tendo à frente a
professora normalista Eunice Caldas, uma filial dessa instituição, começando a funcionar duas escolas
maternais e o Liceu Feminino Santista (para a formação de suas professoras).
Eunice Caldas era apresentada na imprensa local como “evangelizadora do espírito caritativo”,
que vinha para defender a sorte de tantos pequeninos seres condenados à ignorância. (A Tribuna,
Santos, 20/maio/1902).
Anália Franco explica nessa mesma reportagem:
Os fins da Associação Beneficente, ainda repetimos uma vez,
são amparar e educar a infância desvalida e todos que
procuram a fonte civilizadora da instrução, sem distinção de
classes, nem de seitas, porque a caridade verdadeira não tem
rótulos.
Abri, pois, os vossos corações e os vossos braços generosos,
afim de amparar uma multidão de crianças, que, sem uma
sólida educação científica e moral, caminhará para o inevitável
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abismo da degeneração, comprometedora do futuro de nosso
caro Brasil.
A população santista também foi conclamada a aderir à fundação da sucursal em Santos, com a
contribuição espontânea e indeterminada (ao alcance de suas bolsas) “no intento de auxiliar os promotores
de tão humanitária e civilizadora tentativa, colocando-se à disposição de uma luta permanente para
receber as assinaturas dos que queriam contribuir para tão elevado fim”, noticiou o jornal local “A
Tribuna”, a 13 de maio de 1902.
Em 1903 o grupo santista desliga-se de São Paulo, fundando a Associação Feminina Santista
(A.F.S.) que desenvolverá, durante dezenas de anos, a sua caminhada em prol da educação da mulher e da
criança, até 1976, quando encerra suas atividades e transfere a instituição escolar, hoje com mais de cem
anos, para a Mitra Diocesana de Santos.
Esse movimento vem mostrar que a nova mulher tem também tarefas na construção de uma
sociedade civilizada e precisa estar melhor preparada para a regeneração social. Anália Franco
lembra(apud Bernardes,1989):
A atividade consciente e racional, que é apanágio do homem,
tem operado neste século a mais admirável transformação,
quer no mundo físico, quer no mundo intelectual; mas o triste
preconceito, que infelizmente predomina em muitos espíritos
antagonistas do nosso desenvolvimento físico, intelectual e
moral, conserva-nos ainda comprimidas nos acanhados da
educação que nos legou a idade média.
Eunice Caldas, no Relatório à Diretoria da A.F.S., datado de 6/abr./1904, à p. 13, escreve: “A
creação desse estabelecimento de ensino superior à imitação do Curso Normal de São Paulo representa
uma tentativa arrojada contra a inércia que permanecíamos sobre a matéria de ensino feminino em
Santos”.
É nesse sentido que se deve entender o movimento da Associação Feminina Santista, que cuja
direção congrega a elite santista a partir de 1902. Prepara mulheres para melhor desempenharem a sua
função educativa de formar e civilizar crianças de estratos mais inferiores da sociedade, principalmente na
época, filhos de imigrantes, ligados às atividades dependentes do comércio de café (ferroviárias,
portuárias; sacarias, transporte etc.) e da construção civil.
Raymond Williams (cit. em Lanna, p.20, nota 11) observa que “a classe dominante queria desfrutar
as vantagens de um processo de transformação que ela própria estava promovendo e ao mesmo tempo,
controlar ou suprir suas conseqüências indesejáveis, porém inevitáveis”. Seria esta também a intenção
desse grupo?
O curso de magistério do Liceu, apesar da boa adesão inicial, diploma apenas quatro alunas na
primeira turma. Estaria essa elite realmente conscientizada da importância de seu papel na sociedade
civilizada?
O curso maternal registrou no início mais de 100 crianças por ano. E o estudo dos matriculados
revela que não atendia somente aos menos protegidos da sorte. Aliás, no estatuto da A.F.S., a escola
maternal era “para todas as classes”.
Em artigo no jornal A Tribuna (datado de 15 de abril de 1952, p.3) o historiador Jaime Franco
comentava: “O diploma do Liceu equivalia a uma consagração à inteligência da mulher santista e à
segurança duma excelente educadora, à qual podiam confiar seus filhos”.
O ensino é laico, conforme prega a nova República, e praticamente a presença da religião é nula
nos primeiros anos (único ato da presença do sacerdote registrado é no lançamento da pedra fundamental
do prédio escolar e a contribuição mensal de dois padres). Seus mestres são profissionais liberais e
muitos deles, maçons.
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Outros indícios mostram a presença da Maçonaria: em 1902, nos primeiros meses de existência
do curso a professora fundadora da A.F.S., D. Eunice Caldas, solicitou da Loja Maçônica Braz Cubas
(Aug. Oriente de Santos) a cessão de espaço para funcionar esse curso. Embora a resposta tenha sido
positiva, outro espaço foi ocupado. (Of. N 49, de 12/nov./1902, assinado por M. Pompílio dos Santos,
secretário da Loja).
Em sessão magna da Conferência a Loja Fraternidade homenageia a Associação Feminina
Santista, convidando D. Elisa de Affonseca, presidente da instituição, para tomar assento à mesa. O
orador oficial da noite é o Cel. Antônio Raposo de Almeida, maçom e professor do Liceu. O Tronco da
Beneficência é destinado à Associação Feminina Santista, totalmente (ata da Loja Fraternidade de
20/05/1905).
A participação maçônica envolve também uma formação positivista. Nomes importantes da
política e cultura santista (Galeão Carvalhal, Alberto Sousa, Vicente de Carvalho, Silva Jardim,
Herculano Inglês de Sousa, jurista e renomado romancista – O Missionário) assumiram o positivismo.
Muitos o nutriram na Faculdade de Direito de São Paulo.
Apesar do cunho cientificista, a importância dada a outros aspectos da cultura como o literário, o
musical é marcante nessa época na sociedade santista. Portanto, ao lado desses missionários, com sua
formação cientificista, convivem os valores estéticos, talvez resíduos da necessidade da vida nos grandes
salões. A existência dos cursos livres de piano e da pintura, a recitação da poesia, a leitura de trechos de
obras literárias, os certames literários, os recitais de canto, fazem parte da educação e da convivência
social. É uma preocupação com a elevação intelectual da mulher, com a formação da mulher bem educada
através da educação artística e literária, sem descurar, contudo, da educação dos filhos, preparação para o
lar (em 1933, curso de cozinha fez sucesso).
Festas literárias sempre fizeram parte da vida do Liceu, desde a sua fundação. Assim,
acompanhando esse espírito cientificista que domina a educação da época, missionária do progresso
(tecnológico, laico, de difusão da cultura), a dimensão artística e literária está presente. A educação
relaciona-se com a vida da sociedade e a vivência literária é uma realidade nessa “belle èpoque” que se
tenta ensaiar, a exemplo do Rio de Janeiro de então.
* * *
Uma questão coloca-se à nossa reflexão, após um relance em atividades do Liceu Santista: como
um grupo de senhoras, cujos nomes são tão pouco conhecidos da historiografia, levaram a cabo uma obra
tão importante?
Embora o grupo mais atuante na “filosofia” da instituição fosse oriundo dos estratos de
profissionais liberais, todas as grandes firmas ligadas ao setor cafeeiro contribuíam para a manutenção das
escolas da Associação (o ensino era gratuito).
O grande desenvolvimento do alto comércio da praça santista, que incluía, como dissemos, casas
exportadoras nacionais e estrangeiras e comissárias de café, importadores, bancos estrangeiros,
possibilitou uma tradição de auxílio financeiro mensal às realizações filantrópicas e assistenciais. E a
A.F.S. várias vezes dá testemunho disso: “muito devemos ao auxílio que nos tem prestado o culto
Comércio desta praça /.../” (Relatório, 1905, p.3). A relação nominal aparece em todos os relatórios
impressos dessa entidade. A comissão de contas da instituição era composta por três dessas firmas.
Essa maciça participação foi conseguida através de uma equipe especialmente designada.
Robertina C. Simonsen, membro atuante da diretoria da A.F.S., colaborou nessa arrecadação,
conjuntamente trabalhando com o seu marido, Sidney Simonsen, proprietário de firma de café.
Essa grande contribuição do comércio santista era também acompanhada pela mensalidade de
centenas de mulheres, sob o cuidado - durante muitos anos - de uma eficiente tesoureira do grupo
fundador, Serafina Eugênia Millon.
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Porém a grande performance era de mulheres de homens especiais.
Como
vimos,
a
urbanização crescente atraía os serviços de profissionais liberais como médicos, advogados, engenheiros
que, freqüentadores dos bancos escolares, sabiam do valor da instrução: Médicos como Germano
Melchert, Raimundo Soter de Araújo, Silvério Fontes, Tomás Catunda; engenheiros como Saturnino de
Brito, Miguel Presgrave. Grandes nomes da instrução em Santos como Adolfo Porchat de Assis (médico
formado no Rio de Janeiro) e seu irmão Artur (advogado); Vicente de Carvalho, bacharel e poeta etc.
O que, para nós, parece claro é que a atuação dessas mulheres da elite, na cidade santista, tem na
retaguarda seus pais, seus maridos, de profissões liberais, a incentivá-las ou assessorá-las.
A presença desses “missionários do progresso” na educação não é fato isolado de Santos.
Etelvina M. de Castro Trindade, ao estudar as mulheres de Curitiba na Primeira República (1889-1930),
refere-se às muitas vozes preocupadas
com a agora indispensável formação feminina. Pertencem elas
a homens públicos, intelectuais, jornalistas, professores e
professoras que, mercê de algum trato com assuntos de ensino
ou das mulheres, julgam-se habilitados a opinar sobre as
fórmulas aplicáveis à sua educação
(1996, p.29).
A título de amostra, chamaremos a atenção para algumas mulheres que foram atuantes nos
primeiros anos nas diretorias da Associação Feminina Santista e para sua relação com familiares dessa
elite intelectual.
A Comissão que organizou os Estatutos da Associação Feminina Santista era composta de:
Adolfo Porchat de Assis (médico) – esposo de Dulce de Lamare Porchat de Assis;
Vicente de Carvalho (bacharel) – esposo de Ermelinda de Mesquita Carvalho;
Luiz Porto Moretz-Sohn de Castro, juiz de direito e casado com Irene Plaat Moretz-Sohn; Miguel
Presgrave (engenheiro), cônjuge de Iracema Presgrave e cunhado de Eunice Caldas(as duas são irmãs de
Vital Brasil); Adolpho Augusto Millon (hoteleiro e Juiz de Paz), esposo de Serafina Eugênia Pinto
Millon.
Os quase primeiros vinte anos da presidência da Associação Feminina Santista (1902-1920) estão
divididos entre Elisa Sodré de Affonseca, da importante família dos Azevedo Sodré, esposa do comissário
de café e ex-prefeito Carlos Affonseca; Diva de Lamare Porchat de Assis, Robertina C. Simonsen,
Gertrudes Schmidt Whitaker.
Diva de Lamare Porchat de Assis é casada com Adolfo Porchat de Assis, formado pela Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro, homem de dotes literários, de grande atuação na vida escolar da cidade. É
a presença masculina mais presente na documentação da entidade.Ela vem do Rio de Janeiro, após o
casamento.
Robertina Cochrane Simonsen, da família Cochrane do Rio de Janeiro, de engenheiros ligados às
ferrovias, filha de Inácio Wallace Gama Cochrane e esposa do inglês Sydney Simonsen, que veio para o
Brasil dedicar-se aos negócios do café. Mãe de Roberto Cochrane Simonsen, um dos líderes intelectuais
primeiros da indústria nacional, foi, até 1920, uma das mulheres mais atuantes da Associação.
Ermelinda Mesquita de Carvalho – irmã do liberal Júlio de Mesquita (de O Estado de São Paulo)
e casada com o Poeta do Mar, Vicente de Carvalho, que foi Secretário do Interior em 1892 (a que a pasta
da instrução estava sujeita; adquiriu prática com a legislação escolar). Teve uma pequena experiência
como fazendeiro de café. Participou também da vida do Liceu Feminino Santista, compondo a letra do
hino da escola e como professor. Era bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo.
Mariana Conceição, da família do comissariado de café Freitas Guimarães, era consorciada do
comissário de café, homem de benemerência e largueza de visão – Júlio Conceição, filho do barão de
Serra Negra (Piracicaba), amigo de Pedro II.
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O Liceu, concluindo, é obra da força conjugada do ideal de homens e mulheres que acreditaram
na educação, dentro do espírito de uma época, muito bem resumida por Louro e Meyer, nov. 1993, p. 50):
O discurso médico-higienista, por exemplo, inseria-se num
processo de transformação social mais amplo, marcado pela
urbanização, pela presença dos imigrantes, pelo início da
industrialização, além da circulação de idéias positivistas e
liberais. É nesse contexto que vem justificar a crença na
escolarização como fundamental para o avanço e
modernização do país. É também, a partir daí que a educação
para jovens mulheres vai assumindo, gradativamente, algumas
das características / que antes apontamos /.
“Missionárias e missionários do progresso”,cujo conhecimento a historiografia da educação deve
dedicar ainda muitos estudos.
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