pdf completo - Revista Papeis

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EI
R E V I S TA D E
LETRAS
UFMS
Papéis - Rev. Letras UFMS
Campo Grande, MS
v. 1
n. 2
p. 1-84
jul./dez. 1997
1
PA
EI
R E V I S T A D E
LETRAS
UFMS
UNIVERSIDADE FEDERAL DE
MATO GROSSO DO SUL
Reitor
Jorge João Chacha
Vice-Reitor
Amaury de Souza
CÂMARA EDITORIAL
José Batista de Sales (DED-CEUL/UFMS)
Alda Maria Quadros do Couto (..........)
Ana Maria Pinto de Oliveira (CCHS-UFMS)
Ana Maria Souza Lima Fargoni (......)
Dercir Pedro de Oliveira (.....)
Maria Adélia Menegazzo (CCHS-UFMS)
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (CEUD-UFMS)
Rita Maria Baltar Van Der Laan (CEUC-UFMS)
Ronaldo Assunção (CCHS-UFMS)
Vânia Maria Lescano Guerra (.......)
Ficha Catalográfica preparada pela
Coordenadoria de Biblioteca Central-UFMS
Papéis revista de letras UFMS. Vol. 1, n. 2
(jul-dez. 1997)- . -- Campo Grande, MS :
Ed. UFMS, 1997v. : 27 cm.
Semestral.
1. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
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APRESENTAÇÃO
Papéis, Revista de Letras da UFMS, apresenta seu segundo número. De acordo com a orientação
editorial, publica o resultado de pesquisas dos professores de quase todos os cursos de Letras desta
universidade e de alguns pesquisadores de outras instituições de ensino superior, de maneira que possa
divulgar parte das atividades desenvolvidas na UFMS, o que deve servir para veicular entre o meio
acadêmico interno e externo uma amostra do que estamos realizando e, particularmente, estimular
outros colegas, céticos ou receosos, a tomarem parte desta publicação nos próximos números.
Como uma publicação de Letras, contamos com trabalhos na área de Lingüística e de Literatura,
o que certamente contribuirá para o enriquecimento de uma gama variada de leitores.
Vânia Maria Lescano Guerra e Celina Garcia Nascimento discorrem sobre os mecanismos
utilizados na leitura e no ensino da escrita, no artigo “O conhecimento prévio e as
inferências lexicais na sala de aula”. Noutro trabalho, “Um estudo da polifonia e da
modalidade na estrutura argumentativa de dois textos jornalísticos”, a professora Vânia
Guerra analisa a interrelação dos conceitos de polifonia e de modalidade discursiva na
composição de estruturas argumentativas diferentes.
Regina Dalcastagne faz uma fundamentada reflexão sobre a relação entre criação e opressão,
a partir da análise de uma narrativa contemporânea, em seu artigo ‘‘Entre a palavra e a vida:
intelectuais e o salazarismo no romance Bolor, de Augusto Abelaira’’, ficcionista português.
Paulo Nolasco, em “A epígrafe - metáfora do conto Anel de Moebius, de Júlio Cortázar”, faz
uma análise serniótica do conto Anel de Moebius, explorando a homologia entre a epígrafe,
retirada da obra de Clarice Lispector, e a obra do autor de Orientação dos Gatos.
Marileuza Ferreira da Silva, em “Uma leitura de Alice no país das maravilhas e As aventuras
de Alice através dos espelhos, de Lewis Carroll”, elaborou um estudo sobre a construção
textual, com destaque para o uso da sintaxe, nessas duas obras. O artigo de Edgar César
Nolasco, ‘‘Clarice Lispector: a assinatura e a grafia da escritura”, é uma cuidadosa discussão
sobre o processo de criação da autora de A hora da estrela.
Josênia Marisa Chisini, com o artigo “O Quinto Império: confluências e divergências entre
Fernando Pessoa e o Padre Antônio Vieira”, contribui com um rico estudo sobre as
aproximações entre Fernando Pessoa e Padre Vieira, por meio de análises das características
históricas, mística e literárias que envolvem a obra desses dois autores.
O artigo “Guimarães Rosa: Tutaméia”, de Luiza Melo Vasconcelos, é um estudo de
orientação estilística das formas de comparação do mencionado conto do autor de Grande
Sertão: veredas. Em “Leitoras de Sabrina: Usuárias ou consumidoras”, uma original
proposta de estudo da chamada literatura de consumo, seu autor, Genésio José Fernandes,
nos instiga com uma arrojada proposta de análise.
A professora Nadir de Boral, em seu artigo “Oral Strategies used by brasilian students
learning english’’, procura estudar os procedimentos e as estratégias usadas no ensino de
língua inglesa para adultos brasileiros.
Como podemos observar, os temas são bastante variados, de modo a oferecer um leque amplo
de informação e de abordagem. Sem dúvida representa um lance importante para os profissionais
voltados para o ensino da literatura e da língua/linguagem, no segundo e no terceiro graus.
José Batista de Sales
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R E V I S T A D E
LETRAS
UFMS
Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica
Editora UFMS
Revisão
A revisão lingüística e ortográfica é de responsabilidade dos autores
Impressão e Acabamento
Divisão de Produção Gráfica - ACS/UFMS
Distribuição
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Publicação da
Rua 9 de Julho, 1922
CEP 79.081-050 - Campo Grande-MS
Fone: (067) 787-1335 - Fax: (067) 787-7642
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4
SUMÁRIO
6
O CONHECIMENTO PRÉVIO E AS
INFERÊNCIAS LEXICAIS NA SALA DE AULA
12
ENTRE A PALAVRA E A VIDA: INTELECTUAIS E O
SALAZARISMO NO ROMANCE BOLOR, DE AUGUSTO ABELAIRA
Vânia Maria Lescano Guerra e Celina Aparecida Garcia de S. Nascimento
Regina Dalcastagnè
18
A EPÍGRAFE-METÁFORA DO CONTO
‘‘ANEL DE MOEBIUS’’ DE JÚLIO CORTÁZAR
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos
28
UMA LEITURA DE ‘‘ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS’’ E DE
AS ‘‘AVENTURAS DE ALICE ATRAVÉS DO ESPELHO DE LEWIS CARROL
Marileusa Ferreira da Silva
34
CLARICE LISPECTOR
A ASSINATURA E A GRAFIA DA ESCRITURA
40
UM ESTUDO DA POLIFONIA E DA MODALIDADE NA
ESTRUTURA ARGUMENTATIVA DE DOIS TEXTOS JORNALÍSTICOS
Edgar Cézar Nolasco
Vânia Maria Lescano Guerra
48
O QUINTO IMPÉRIO: CONFLUÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS ENTRE
FERNANDO PESSOA E O PADRE ANTÔNIO VIEIRA
Josenia Marisa Chisini
56
GUIMARÃES ROSA:
TUTAMÉIA
Luiza Mello Vasconcelos
60
LEITORAS DE SABRINA: USUÁRIAS OU CONSUMIDORAS?
UMAPRIMEIRA TENTATIVA DE COMPREENSÃO DA PRÁTICA LEITORA
DAS LEITORAS DE ROMANCES SENTIMENTAIS DE MASSA
J. Genésio Fernandes
74
ORAL STRATEGIES USED BY
BRAZILIAN STUDENTS LEARNING ENGLISH
Nadir de Assis Borall
5
This paper presents some reflections about the lexical
inferencing in reading comprehension within a public
school.
Key- words:
* Vânia Maria
Lescano Guerra é
....................UFMS/
PUC-SP
** Celina
Aparecida Garcia
de S. Nascimento
é ....................
UFMS/PUC-SP
6
O CONHECIMENTO PRÉVIO
E AS INFERÊNCIAS LEXICAIS
NA SALA DE AULA
Vânia Maria Lescano Guerra*
Celina Aparecida Garcia de S. Nascimento**
Introdução
Na vida acadêmica, já tornou comum a referência
explicita ao insucesso escolar no que se refere ao ensina
da leitura. Isto é, os argumentos valem-se dos resultados avaliados, quer no desempenho acadêmico, quer na
atuação social e profíssional do professor. Daí nossa preocupação com esta prática pedagógica.
O objetivo deste trabalho é verificar as estratégias de
inferências lexicais utilizadas pelos alunos da 5ª série,
em relação às atividades desenvolvidas durante a aula, na
escola “João Dantas Filgueiras”, em Três Lagoas-MS.
Este estudo é parte integrante de uma pesquisa mais
ampla, desenvolvida pela Profa. Dra. Laís Furquim de
Azevedo, pesquisadora responsável, da PUC-SP.
As orientações para coletas e os instrumentos de pesquisa, foram fornecidos pela pesquisadora responsável,
composta de dois textos: a primeira “Receptidade”, de
Viriato Corrêa; e, o segundo, “Aproveitando o Solo”, retirado de um livro de Ciências.
O córpus é constituído de 84 informantes cuja média
de idade está entre 11 e 16 anos. São alunos da 5ª série A
e B, período matutino. Pôde-se observar que as classes
são heterogêneas, com alunos repetentes e com dificuldade de aprendizagem.
As coletas duraram, em média de 50 minutos a uma
hora e trinta minutos, a nossa participação foi de observadoras nos dois primeiros momentos e num terceiro,
fizemos protocolo com quatro alunas que não haviam
participado da 1ª etapa.
Há algumas noções importantes que fundamentam nosso trabalho e que passaremos a expor; primeiramente por
inferência lexical, entendemos a capacidade de se inferir
palavras desconhecidas durante a leitura de um texto.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 6-11, jul./dez., 1997.
Parece-nos que, para a efetividade do processo de
inferência lexical, o leitor deve ser capaz de selecionar estratégias mais apropriadas e verificar as hipóteses formuladas através de um processo de monitoração eficaz, que lhe
assegura a precisão das inferências feitas (Corte, 1991).
Por monitoração, entendemos os controles conscientes e deliberado que se tem sobre as próprias ações
cognitivas (Brown,1980).
Entretanto, apesar de muitas pesquisas realizadas sobre a inferência lexical, restam muitas dúvidas a respeito
desse processo. É evidente a necessidade de pesquisa
nessa área, visando a uma elucidação mais precisa
(Kleiman, 1.985).
Quanto ao processo ensino/aprendizagem da leitura
Miller (1978), diz que ao leitor caberia, a tarefa de
“decodificar”, isto é, de “reconhecer” (os itens lingüíticos
já conhecidos) e de descobrir (o significado dos itens
desconhecidos).
Nessa visão, o texto objetifica, ganha existência própria
independente do sujeito e da situação de enunciação: o leitor seria, então, o “receptáculo” de uma saber contido no
texto para construir o sentido. Note-se que, neste caso,
constrói-se o sentido como se constrói uma casa, um objeto (a partir de unidade menores, combináveis entre si).
Contrapondo a essa visão, a essa concepção, outros
estudiosos e pesquisadores, como por exemplo Goodman
(1970), defenderam a idéia de que o bom leitor seria aquele que diante dos dados de texto fosse capaz de acionar a
que Rumelhart (1984) chama de “esquemas”.
Considera-se esquemas um conhecimento de mundo, geralmente adquirido, informalmente, através de nossas experiências e convívio numa sociedade, conhecimento este cuja ativação no mundo oportuno é também
essencial à compreensão de um texto.
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Entre os modelos de leitura, Cavalcanti (1989), a
descreve como um processo de solução de problemas,
altamente complexo; uma combinação de processos controlados e automáticos. Em seu livro “Interpretação Leitor & Texto”, afirma que:
“Os leitores, portanto, somente expõem abertamente seus
sistemas de crença se eles adotam uma atividade em
relação ao texto que representa a autoridade do autor”.
A pessoa nunca só se baseia no texto que leu, ela aciona modelos cognitivos, “pacotes” de conhecimento na
memória. Os conhecimentos permanecem armanezados
nas pessoas. Os modelos estão frequentemente sendo modificados, transformados, aumentados, mudados,
atualizados. Eles são altamente dinâmicos. 0 que o indivíduo tem armazenado ajuda a processar o que entra de
novo e o que entra de novo também ajuda a atualizar o que
já está no modelo.
Outra noção essencial que é o conhecimento prévio
na compreensão lingüística tem sido estudado como teoria de esquemas. Rumelhart (1980) a define, basicamente, como uma teoria sobre como nosso conhecimento prévio está representado em nossa mente e como
esta representação facilita o uso de conhecimento de formas específicas.
Brown (1980) define o processo de controle consciente
deliberado que se tem sobre as próprias ações cognitivas
(metacognição) como monitoracão. Assim, as estratégias
cognitivas munem o leitor de procedimentos altamente eficazes e econômicos, responsáveis pelo processamento automático e inconsciente, mas são as estratégias metacognitivas que orientam o seu uso, a fim de desautomatizá-las
em, situações de problemas (Kato, 1985).
Kleiman (1985) parece compartilhar da mesma opinião quando alerta que o caráter precário do conhecimento lexical do aluno teria como uma das causas a sua incapacidade de controlar o processo de inferência lexical.
Segundo a autora, a habilidade de monitorar a inferência
lexical traria consequência não apenas para a compreensão, mas também para a aquisição do item lexical.
Henriques (1989) avaliando o que leitores usavam
quando tentavam adivinhar o significado de palavras desconhecidas ou parcialmente desconhecidas num texto,
verificou a frequência do uso e também o grau de utilidade. Dessa forma, a autora conclui que é importante
estar consciente das técnicas usadas, já que a maior parte delas são de certo modo úteis quando os leitores lidam
com inferência lexical e, além disso sendo o contexto
importante para inferência lexical, se a frase tiver muitas
palavras desconhecidas será quase impossível adivinhar
o seu significado.
Análise do córpus
e discussão
Na primeira etapa de nossa análise, verificaremos as
estratégias utilizadas pelos informantes no texto A
(Receptidade) e no texto B (Aproveitando o Solo); em
seguida passaremos a apresentar alguns exemplos das
8
transcrições dos protocolos verbais, em que foram utilizados os dois textos mencionados acima.
Nos dois primeiros momentos desta pesquisa, os textos
A e B foram trabalhados em dias diferentes, em que primeiramente foi solicitado aos informantes a leitura; após
esta, solicitou-se que preenchessem as falhas anexas ao
texto. Assim os alunos tentaram inferir o sentido aproximado das palavras e explicitar seu raciocínio, mostrandonos como haviam chegado a tal conclusão.
Observamos que os informantes demonstraram fazer uso do mesmo tipo de estratégias, tanto no texto A
como no B, entretanto os índices variam, principalmente em relação ao conhecimento Prévio e ao contexto imediato. (cf. quadro I).
Esclarecemos que tivemos índices mais altos no texto A, pelo fato de que o mesmo contém 15 palavras em
destaque para serem dados sinônimos, enquanto que no
B, poderíamos ter 15 palavras supostamente desconhecidas, porém os informantes tentaram fazer inferências
apenas nas palavras em que nomearam como desconhecidas. Talvez eles tenham percebido outras, porém ignoraram, parece-nos, por não encontrarem tais palavras
em destaque. (cf. quadra I).
Observamos que entre os 80 textos pesquisados a
índice por palavras, de inferências com palavras originais ativadas pelo conhecimento prévio variou entre 38,7%
para a palavra 6, redouças/pessoas; 26,2% para a palavra
9 tambas/cama; 22,5% para a Palavra 5 conesa/fome.
Isto parece deixar transparecer a grande dificuldade dos
informantes em selecionar uma palavra mais adequada
de acordo com a sua compreensão do texto.
Pode-se verificar que os índices por palavra apresentados com o uso do contexto imediato foram 47,5%
para a palavra 5 conesa/alimento/cama; 37,5% para a
palavra 15 receptidade/religião/dever; 30% para a palavra 1 receptidade/dever sagrado; e, l0,0% para a palavra
8 recâmaro/crianças. Isto possibilita-se supor que tais
sujeitos estão acostumados a trabalhar dentro de um processo automático e inconsciente.
Parece-nos, que em relação à inferência com sons
semelhantes, os informantes tentaram adivinhar precocemente o significado da palavra, por não terem consciência de quais estratégias eles poderiam ter usado para
chegar a uma aproximação do significado da referida
palavra, de acordo com o contexto.
Exemplificando, temos 8,7% para a palavra 9
tambas/tampas/tambores; 6,2% para a palavra 8 recâmaro/
reclamar/câmara; 5% para a palavra 2 redouças/bolsas/
redondo/louças.
As palavras mais facilmente inferíveis no texto A foram
conesa 22,5%; redouças, 38,7% e tambas 26,2%, correspondentes a fome, pessoas e cama. Supõe-se que os sujeitos pesquisados tenham tido mais facilidade nessas palavras por estarem mais relacionadas com suas experiências
diárias ou por inferirem através do contexto imediato.
As palavras mais dificilmente inferíveis do texto A
foram receptidade 1 e recepto 3, para as quais não encontramos nenhuma palavra original substituindo-as. Isto
pode ser observado no depoimento desse informante:
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 6-11, jul./dez., 1997.
“Olha primeiro a senhora não esplicou o que é recepto pois eu só sei que recepto dorme na casa da
gente... come e depois pede obrigado. Pois até agora
eu não sei o que é recepto".
Entre os 80 textos, tivemos um leque muito variado
de inferências para cada palavra, chegando a um total de
aproximadamente dezoito para receptos, exemplificando
comida e avião; e dezoito para recâmaro, como por exemplo criança e despertador.
É importante ressaltar que tivemos um total de 50%
dos textos em que os alunos deixaram de uma a sete
palavras em branco.
Em se tratando das palavras do texto ou idéias que
ajudavam nas inferências, o índice de cópia de frases ou
parágrafos do texto, variou em média 52,5% para
receptidade a 5,0% para contrucando. O que confirma
novamente que os informantes tiveram maiores dificuldades ao tentar dar sinônimos à palavra receptidade e a
outras com o mesmo cognato.
Pensamos ser interessante comentar também que nos
resumos dos 40 textos, solicitados antes da compreensão, obtivemos os seguintes resultados: 25,0% de resumos com cópias de alguns parágrafos do texto; 7,5%
considerados aceitáveis; 45,0% com algumas idéias ou
dados do texto. Três alunos não fizeram o resumo e os
outros disseram que não entenderam o texto ou que o
resumo fala de “coisa legal”.
Verifique esse relato:
“Eu não entendi muito. Mas eu acho que fala sobre
as pessoas de religião’’.
Pode-se dizer diante desses fatos que não foi possível afirmar que os resumos feitos no início do texto
ajudaram na compreensão das palavras, ou menos ainda
após a compreensão, pois, 50% não fizeram. Nesse último caso, é possível concluir que os informantes
sentiram-se desestimulados diante da complexidade do
texto, não inferindo satisfatoriamente.
Em termos concludentes, retomando os pontos levantados nessa análise, os dados mostram-nos que as
maiores dificuldades dos alunos foram como proceder
para: a. entender cada enunciado apresentado; b. fazer a
leitura do texto; c. procurar as palavras que não sabiam
o significado; d. explicitar sobre o processo, após localizar a palavra no texto; e. fazer o resumo e, f. dar opinião ou idéias sobre o texto.
Conforme expusemos anteriormente, quanto mais
familiar for o texto, mais fácil será para o leitor ativar
os esquemas necessários para a construção do seu significado. Assim, acreditamos que a processo de
inferência lexical no texto B foi facilitado devido à existência de esquemas familiares para a leitor, contribuindo para a ocorrência de um maior número de inferências
apropriadas.
A ativação de esquemas, relacionados com o assunto
tratado nos textos (conhecimento prévio), foi uma estratégia, frequentemente, utilizada pelos informantes. O
índice foi de 51,2%, conforme já mostrado no quadro I.
Verifique alguns exemplos, referentes ao texto
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 6-11, jul./dez., 1997.
“lavrador eu acho que lavrador é aquele que planta,
cuida da plantação e colhe. Eu acho que lavrador é
aquele que cuida de suas roças porque sempre minha
mãe fala que o meu pai era lavrador e falava que ele
cuidava das suas roças sozinho”.
“cereais é alimentação para pessoas. Explicação: eu
vejo escrito em mercados, armazéns etc.”.
‘‘agricultura: é porque toda vez que meu tio planta
ele fica cuidando da planta”.
Notamos que os informantes inferiram o significado
da palavra de maneira perfeitamente coerente dentro do
contexto imediato, ou de acordo com seu conhecimento
de mundo. Entretanto, à medida que analisamos o contexto imediato maior, isto é, analisamos outras informações contidas no mesmo parágrafo ou mesmo se levarmos em conta o contexto global (idéias apresentadas em
outros parágrafos), observamos que as inferências
tornam-se inconscientes.
O uso do contexto imediato demonstrou ser uma estratégia muito utilizada também, com o índice de 43,7%,
servindo como uma complementação, cuja função seria
assegurar a precisão da inferência. Para Scott (1989), o
uso do contexto esconde uma variedade de processos
rápidos e inconscientes do leitor (conhecimento lingüístico e textual). Ex:
‘‘agrônomo - uma pessoa que entende de plantações
porque explicou o problema ao lavrador’’.
A análise de palavra (conhecimento morfológico ou
reconhecimento e cognatos) apresentou um índice de 5%
quando utilizada como estratégia isolada e não demonstrou levar à inferência lexical adequada. O contexto parece ter ficado obscurecido diante de tal estratégia, perdendo sua força, como se pode observar no trecho abaixo:
‘‘calagem eu acho que calagem é para as pessoas
calar”.
Em relação ao uso de estratégias ascendentes, o uso
de associação de palavras por semelhança fonológica
também ocorreu num índice de 7,5%, conforme ilustra
o depoimento abaixo:
‘‘hortaliças são retirados da horta, verduras, o que
me ajudou a descubrir isso foi o som da palavra pelo
som eu achei que era esta resposta’’.
Quanto ao processo de inferência lexical, outro ponto que merece ser discutido é o fato de o informante não
saber explicar seu raciocínio ao inferir a palavra desconhecida, sendo que apenas uma minoria conseguiu tal
resultado.
Somos inclinados a acreditar que a explicação para a
ocorrência de tal fato em nossos dados estaria no uso de
estratégias cognitivas ou metacognitivas, já que as estratégias metacognitivas emergem quando as estratégias
cognitivas são usadas automaticamente. (Kato, 1987).
A estratégia de uso do contexto global (temático) foi
menos usada no texto A do que no texto B. Acreditamos
que, devido à ausência de um conhecimento prévio maior, que pudesse ajudar o processo de comprensão do
texto A, os informantes obtiveram uma visão fragmen9
tada, não conseguindo, talvez, apreender seu todo. Daí a
razão da estratégia ter tido uma ocorrência menor.
Um fato que teve várias ocorrências foi a dificuldade
de resumir que os alunos demonstraram. O fato é que
fica dificultado o trabalho com o texto quando se pede
para o informante falar sobre a sua compreensão e elaborar resumo, mesmo quando se percebe que ele entendeu as idéias centrais do texto. Eis um depoimento:
‘‘eu entendi quase tudo mas não sei resumir direito.
Eu pudi entender que o solo precisa de fósforos, potássio, enxofre nitrogênio etc’’.
Outro elemento que aparece muito nos textos A e B,
principalmente no A, é a cópia literal, parecendo-nos
que o informante não consegue compreender o que se
pede e, não conseguindo inferir, apenas copia para dar
uma resposta ou para não deixar em branco.
Tais resultados retratam o que diz Kato (op.cit.), que
se o assunto do texto não é familiar, espera-se uma abordagem especificamente ascendente, em que o leitor não
faz uso do conhecimento lingüístico e nem textual.
Quanto aos Protocolos Verbais, as inferências feitas
foram por meio das estratégias do uso do conhecimento
prévio e contexto imediato. Veja alguns exemplos, com
uso do conhecimento prévio, no protocolo 01:
C: “que... significa nitrogênio aqui?
R: Nitrogênio?... Significa um adubo... prá terra... é
a... que tem que fazer uma adubação correta... se
não poderia até prejudicar as plantas... porque a adubação demais poderia prejudicar as plantas”.
Selecionamos a seguir, as inferências feitas a partir
do contexto imediato e observamos que nesses casos o
informante tentava resolver o problema lançando mão
de estratégias conscientes do tipo: releitura do texto, com
acréscimo de novas informações através do sentido do
mesmo ou da própria palavra.
C: ‘‘O que você acha que é essa calagem RI? você
conhece?
R: Calagem eu não conheço”.
Ao fazer algumas perguntas ao RI, ele disse que quando não sabe o significado de uma palavra na sala de aula,
primeiro pergunta para professora, e, depois em casa
olha no dicionário. A seguir perguntamos:
C: Nesse caso... aqui no texto... essa calagem que
você acha que seria?
R: Seria a correção do solo?’’ (após uma releitura,
RI esclarece que viu no texto essa resposta).
Finalmente, pode-se afirmar que RI procedeu de forma clara e concisa, com marcadores frasais. Durante todo
o trabalho ele vai refletindo sobre suas idéias, ordenando
com uma certa segurança a sequência do assunto tratado,
demonstrando ser um leitor que faz uso de forma interativa
do conhecimento lingüística e conhecimento prévio, e ainda, usando os dois processos de leitura, conforme KATO
(1985), que são descendente (top-down), dependente do
leitor e ascendente (botton-up), dependente do texto.
Assim como no Protocolo 01, tentaremos verificar
no Protocolo 02 os tipos de inferência realizada a cada
10
palavra desconhecida e como o informante tentou resolver a situação-problema.
Pode-se afirmar a partir dos dados que parece haver
um único caso em que a informante, ao ter dificuldade
para fazer inferência sobre uma palavra, fez uso do conhecimento prévio.
C: ‘‘hummm!... tá erosão você conhece? ou não?
R: mais ou menos.
C: você já viu essa palavrinha Re?
R: hum -humm
C: O que você acha que é?’’
(...)
R: "Não sei ( ) quando tem ( ) assim nas estradas
( ) aquelas montanhas de terra assim... daí pode
chover muito... ventar... ( ) um pouco de terra e
causa a erosão...
C: e tem alguma... algum... alguma palavrinha ou
idéia aqui no texto que ajudou a dá esse significado?
ou você já viu em algum local...
R: eu já estudei... no texto de ciências ( )"
Observamos nesse relato que a informante tenta compreender o texto, recorrendo ao que já estudou em séries anteriores ou por já ter visto algum tipo de erosão.
O uso do contexto imediato também demonstrou
ser uma, estratégia utilizada pela informante RE, servindo como um suporte para assegurar a precisão da
inferência.
R: “provém... aqui
C: Provém? o que você acha que é... o que o você
está pensando... pode lê: novamente... (R fica em
silêncio olhando para o texto por 12")
R: ah! é precisa né?
C: precisa?’’
R: ah... eu acho que os nutrientes ao solo VÊM das
partículas minerais.’’
Observamos na Protocolo 03, um exemplo de uso de
conhecimento prévio.
T: ‘‘no sertão do Brasil... quem pergunta o preço da
receptagem ofende aquele que a deu... é que num...
num... acho que não tem preço... num precisa pagar
para receptar...’’.
O contexto imediato (anterior ou posterior) foi levado em conta aqui, veja um exemplo:
T: ‘‘nossa casa vivia apinhada... de criatura... estranhas...
várias... as gentes... estranhas que vinham... lá...’’.
Já no Protocolo 04, a ativação do conhecimento prévio aparece na maioria das inferências realizadas. Veja:
A: ‘‘a receptidade é um dever sagrado que cumpre
religiosamente... é... que a receptidade é um dever...
é... como se fosse uma religião...’’.
Considerações Finais
Este trabalho objetivou investigar as estratégias de
inferência lexical que leitores da quinta série de uma escola da periferia utilizaram durante a leitura de dois textos distintos e do protocolo verbal.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 6-11, jul./dez., 1997.
Vale a pena ressaltar novamente que os resultados apresentados neste estudo restringem-se ao tipo de informante escolhido, apresentando portanto, muitas limitações.
Uma das limitações diz respeito à motivação ao executar a tarefa pedida. O texto B revelou ser muito mais
interessante e motivante para os informantes do que o
texto A. Tal fato pode ter representado uma variável
interveniente na dificuldade encontrada pelos informantes ao processar os textos e executar as tarefas.
Os informantes conseguiram inferir, apesar de suas
limitadas condições, um número considerável de palavras
em ambos os textos, revelando que a inferência lexical é
uma estratégia frequente durante a leitura de textos.
Os informantes também tenderam a ter desempenho
melhor no texto B, sobre o qual possuíam maior conhecimento prévio, do que no texto A, revelando uma facilidade de se inferir termos desconhecidos quando o assunto do texto é familiar.
O processo de inferência lexical tendeu a ocorrer a
nível inconsciente com primazia de estratégias cognitivas
sobre as metacognitivas.
De uma certa forma, os resultados nos mostraram que
de fato, o ensino da leitura em Língua Materna e compre-
ensão de texto na nossa realidade, encontram-se bastante
insatisfatórios por vários fatores que lentamente tem afetado a aprendizagem e o desenvolvimento de nossos alunos.
Torna-se necessário mencionar que tivemos alguns
alunos que se destacaram no texto escrito e no protocolo verbal em que trabalhamos com o texto B, transparecendo uma maior consciência, com atitudes de ativação
de esquemas do conhecimento prévio, assim como formulação de hipóteses, construção de significado com o
objetivo de dar coerência ao texto.
Em consequência de diversas leituras, observa-se que
o aluno aprende o que julga relevante e não aprende o
que não percebe como útil para si próprio, pois o processo de aprender é regulado por princípios e julgamentos do aluno de forma consciente ou inconsciente e por
pontos que esse aluno julgue desnecessária e/ou difíceis
e que são por ele descartados.
E por último, é importante salientar que um dos maiores impasses do processo ensino/aprendizagem atualmente é a formação equivocada do aluno e a inadequada
formação profissional do professor, por falta de instrumentos adequados que transformem tanto o educando
como o professor em leitores eficientes.
QUADRO I
ESTRATÉGIAS DE INFERENCIA LEXICAL UTILIZADAS
Estrat. de
Inferências
texto A
Recept.
indice
Texto B
Solo
indice
T.de Est.
de Infêr.
Conhecimento
Prévio
59/80
73,7%
41/80
51,2%
100
Contexto
Imediato
70/80
87,5%
35/80
43,7%
105
Cognatos
-
-
04/80
05,0%
04
Som da Palav.
28/80
35%
06/80
07,5%
34
Sentido Liter.
25/80
31,2%
-
-
25
Dica Tipográf.
-
-
01/80
01,2%
01
182/80
227,4%
87/80
108,6%
269
T.de Infer.
Por Texto
Referências Bibliográficas
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Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 6-11, jul./dez., 1997.
11
Mas homens são homens. E o melhor deles
esquece-se, às vezes, de que é humano.
Shakespeare
O artigo discute a relação entre criação e opressão no
romance Bolor, do português Augusto Abelaira. Em meio
a uma ditadura que atravessaria quatro décadas, artistas e
intelectuais se viam espremidos entre a impossibilidade de
agir e a necessidade de continuar formulando discursos. As
personagens de Abelaira são capturadas nesse instante,
perdidas entre o medo e os restos dos antigos sonhos. Este
trabalho procura definir as feições dessas figuras, revelando o que se esconde por trás de seus discursos.
Palavras-chave:
criação e opressão, discurso, literatura
portuguesa contemporânea
*
The essay discusses the report between creation and
oppression in the novel Bolor, from Portuguese writer
Augusto Abelaira. In Salazar’s dictatorship, that will
last by four decades, artists and intellectuals were
divided between the impossibility to act and the need to
remain to formulate discourses. Abelaira’s characters
are capturated in this moment, lost between the fear and
the rests of the old dreams. This paper searches to
determine the features of these figures, exposing what
is behind their discourses.
Key-words:
creation and oppression, discourse,
Portuguese contemporary literature
12
Regina Dalcastagnè é
Professora de Literatura
Brasileira na
Universidade de
Brasília; doutora em
Teoria Literária pela
Universidade Estadual
de Campinas;
coordenadora do Grupo
de Trabalho em
Literatura Brasileira
Contemporânea da UnB.
É autora do ensaio O
espaço da dor: o regime
de 64 no romance
brasileiro (Brasília:
Editora UnB, 1996);
e-mail:
<[email protected]>.
ENTRE A PALAVRA E A VIDA
INTELECTUAIS E O SALAZARISMO NO
ROMANCE BOLOR, DE AUGUSTO ABELAIRA
Regina Dalcastagnè*
O homem diante de uma página de papel em branco. Ela o convida e o constrange, exige respostas para
perguntas que ainda não foram feitas, sonha sentidos
jamais experimentados, reclama disciplina e talento. E
o homem à sua frente o que faz? Mente, trapaceia,
inventa emoções que talvez nunca venha a sentir, sugere razões que desconhece, perpetua uma angústia
que não é só sua - saber-se traidor, seja da vida, já que
se vê impedido de desfrutá-la sem recolher material
para a escrita que se engendra dentro de si, seja da
palavra, que não lhe basta para reconhecer o mundo.
O dilema do homem diante do objeto de sua escrita ele próprio - é construído de forma extremamente original em Bolor, romance de Augusto Abelaira1.
No Portugal dos anos 60, um homem chamado
Humberto escreve um diário. Embora anunciando-se
“antecipadamente sabedor da inutilidade das linhas” (pg.
9) que ainda não redigiu, ele sai em busca da palavra
que pode resgatar a vida. E seu percurso vai se transformando numa sucessão de equívocos. Ao começar o
diário, Humberto pensa estar procurando desvendar a
mulher, Maria dos Remédios. Diz querer observá-la, “não
com os olhos, mas com uma esferográfica” (pg. 13).
Tenta desfazê-la em sua memória para só então revelála no papel. Mas é através de objetos que ele pensa
poder recuperá-la. Pelo relógio ou pelos brincos que ela
usa, pelas palavras que ela pronuncia:
Pois se os teus brincos não fostes tu quem os fez, o
mesmo sucede com as palavras. No fim de contas limitaste-te também a aceitá-las já feitas, escolhes estas
ou aquelas como escolheste os brincos, uma escolha
1
sobre coisas existentes desde sempre, mesmo quando
tu ainda não existias e ainda ninguém podia sonhar
contigo (pg. 25).
Irremediavelmente perdido num espaço qualquer
entre a palavra e a vida, entre o discurso e a ação,
Humberto escreve um diário - que também é escrito
por Maria dos Remédios e por Aleixo, quem sabe até
por Leonor - numa tentativa desesperada de reencontrar a si mesmo. Nesse universo ficcional ele não é apenas criador, mas também, e principalmente, criatura.
Arma ciladas literárias, oculta pistas, dificulta o jogo,
mas se embrenha no mesmo nevoeiro que ajudou a erguer e, de repente, já não é mais senhor de sua história.
De narrador passa a narrado, um pouco como TchuangTseu que “não sabe se é um filósofo que sonha ser borboleta ou uma borboleta que sonha ser filósofo” (p. 125).
Todas as personagens acabam reivindicando a autoria do diário. Primeiro é Maria dos Remédios - que
se insere no caderno do marido para deixar-lhe um
recado, passa a narrar sua própria angústia e termina
por confessar que desde o início escreve em nome
dele, como se fosse ele. Depois é Aleixo, amigo de
Humberto e amante de Maria dos Remédios, que o vê
redigindo, tem a mesma idéia e começa seu próprio
“diário íntimo”. Não demora muito para que ele também diga que escreve como se fosse os outros dois,
deduzindo seus pensamentos, imaginando seus rancores. Por fim, há Leonor, mulher de Aleixo, personagem menor que, numa constrangedora conversa com
Maria dos Remédios nas últimas páginas do livro, revela também ter se insinuado no diário do marido.
Augusto Abelaira, Bolor. 2ª ed. Lisboa: Bertrand, 1970 (1ª ed., 1968).
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 12-17, jul./dez., 1997.
13
Assim, Bolor tem quatro autores diferentes, quatro
personagens que se escrevem mutuamente, que se
destróem, se sonham e que se simulam através de palavras. Palavras “existentes desde sempre”, como quer
Humberto, ou aquele que escreve em seu nome, mas
que vão ganhando novo poder a partir de sua manipulação. Embora profundamente enraizados em seu tempo, Humberto, Maria dos Remédios, Aleixo e Leonor
são pura ficção - irmãos do infeliz Augusto Pérez que
em Névoa ousa questionar seu autor, Miguel de
Unamuno. Pérez não se conforma com a situação de
personagem, obra de um outro: “Se um homem sonha
que vive... vá lá, mas que outra pessoa tenha esse sonho por ele...”2.
As personagens de Bolor vivem esse mesmo drama, pressentem sua condição imaterial e sabem que
têm de continuar se sonhando para que não sejam varridos deste mundo. Por isso a palavra é perseguida tão
arduamente. Só ela pode dar opacidade a seres transparentes, descarnados, que se agarram aos objetos para
tentar se enxergar: “Apesar de transparentes, de vez
em quando pões um fato novo, eu um vestido novo... E
às vezes conversamos de certa maneira..., talvez como
agora. Não digo que fiquemos absolutamente visíveis,
homem invisível, mas a transparência deixa de ser absoluta, torna-se translúcida... E é bom tropeçar numa
coisa inesperada...” (p. 156). São as palavras, garante
Humberto, “que dão olhos aos sentidos” (p. 36), são
elas que o permitem sentir a vida, entrar em contato
com o outro.
Mas são elas também que o enclausuram e o condenam à sua condição de não existência. Como pode
viver um ser que depende única e exclusivamente daquilo que escreve ou do que escrevem sobre ele? Diante da enormidade da vida, as palavras “são cegas,
são surdas, não têm sabor, nem tacto...” (p. 35), protesta Maria dos Remédios. Como seres de ficção, eles
não sentem de verdade, não amam, não odeiam, nem
agem. Mas sofrem, porque têm consciência de vida,
uma memória qualquer que os faz ter expectativas e
alguns sonhos. É justamente essa consciência de não
estarem vivos que os faz tão diferentes de personagens como Anna Karênina ou Julien Sorel, que mergulham intensamente naquilo que acreditam ser suas
vidas sem questionar uma origem ou um fim.
A única personagem que tem solidez, que é símbolo e representação da vida dentro de Bolor, é a faxineira. A “mulher a dias” de Maria dos Remédios não
possui nome nem voz, tudo o que tem são cinco filhos
miseráveis, dezoito abortos a sangue-frio e um marido
estúpido, mas é o que há de mais real no livro. Maria
dos Remédios tem consciência, talvez até inveja, dessa “materialidade” da empregada. A faxineira possui
um corpo, não simplesmente pelo fato de ser uma des2
graçada, mas porque está em contraposição à transparência da outra, que se vê no limiar da insensibilidade: “De súbito sucedeu-me esta coisa incrível: olhei
para ela e pensei que não pertencíamos à mesma espécie, éramos animais diferentes” (p. 57). Diante da
mulher a dias Maria dos Remédios reconhece sua vida,
e a de Humberto, em negativo: “Nada fizemos, mas
somos felizes, não é? Felizes negativamente... Felizes
sòmente porque não somos infelizes!” (p. 57).
Vivas somente porque não estão mortas, cada uma
das personagens tenta, através da escrita, resgatar algo
que lhe permita sonhar a si mesma, construir a vida a
partir de sua própria pessoa e não do outro. Maria dos
Remédios escreve em nome de Humberto porque não
se reconhece enquanto ser independente, “a minha vida
própria transformou-se em adivinhar quem és, a minha vida própria, mesmo quando me limito a pensar,
mesmo quando não escrevo, deixou de estar conjugada
na minha primeira pessoa ou até na terceira pessoa
referida a ti - mas numa primeira pessoa que é a tua”
(p. 119). No diário, que a escravizaria até pronominalmente, Maria dos Remédios procura não a restituição
do que ela teria sido um dia, mas a possibilidade de
sonhar em ser algo diferente, de poder pronunciar frases e “simultâneamente as viver” (p. 128).
Já Humberto busca, meio sem saber por quê, conquistar o direito à comunicação com o outro. Apesar
de dizer, logo no início, que o diário é “a tentativa de
encher os momentos em que sou obrigado a estar sozinho” (p. 32), ele acaba confessando que seu objetivo, na verdade, é “observar minuciosamente as minhas relações com os outros (amigos e simplesmente
conhecidos), verificar se sim ou não os nossos diálogos gozam da propriedade comutativa, são intermutáveis, se onde está eu poderia estar indiferentemente ele” (p. 59). Humberto pressente que é só através do outro, Maria dos Remédios ou Aleixo, que ele
pode se reconhecer, legitimar sua própria identidade.
Mas, ainda vítima do sortilégio da palavra, se mantém
isolado e, assim, não consegue reconectar seu ser, não
é tocado pelo “milagre salvador” do qual fala Hannah
Arendt, e permanece no equívoco. Afinal,
todo ato de pensar é feito quando se está a sós, e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogo
dos dois-em-um não perde o contato com o mundo dos
meus semelhantes, pois que eles são representados no
meu eu, com o qual estabeleço o diálogo do pensamento. O problema de estar a sós é que esses dois-em-um
necessitam dos outros para que voltem a ser um - um
indivíduo imutável cuja identidade jamais pode ser confundida com a de qualquer outro. Para a confirmação da
minha identidade, dependo inteiramente de outras pessoas; e o grande milagre salvador da companhia para os
homens solitários é que os “integra” novamente; poupa-os do diálogo do pensamento no qual permanecem
Miguel de Unamuno, Névoa. Trad. de José Antônio Ceschin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 173 (ed. original, 1914).
14
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 12-17, jul./dez., 1997.
sempre equívocos, e restabelecelhes a identidade que lhes permite
falar com a voz única da pessoa
impermutável3.
Esse “milagre salvador” parece
ser prerrogativa exclusiva daqueles
que vivem, que habitam o mundo em
companhia de outros homens, não
de seres de mentira, que simulam
seus dramas e interpretam seus próprios discursos. Aleixo é mais atento
a esse fato, desiludido até. Diz escrever o diário apenas em busca do
remorso que não tem por trair o
amigo, camuflando assim a necessidade maior: “Se não
sentes remorsos, então estás morto, és um ser perdido” (p. 141). Parece tão pouco, mas é com esse sentimento - o remorso - que Aleixo pretende se agarrar à
vida, se fazer humano. Ele que se sabe máscara, que
se reconhece ficção: “Quando me encontro contigo
ponho uma máscara. Como os primitivos que nos grandes ritos anuais às duas por três acabam por acreditar
no poder da máscara... sinto-me outro, com outros
poderes, já não sou eu... ou sou verdadeiramente eu.
[...] E represento um papel, um papel bem mais rico
do que o meu, bem mais dramático” (pp. 128-9).
Mas há ainda Leonor, que lê escondida o diário do
marido e dá a entender que age da mesma maneira
que Maria dos Remédios, ou seja, que também escreve um diário em sobreposição ao de Aleixo. Ela é a
única que traz algumas reminiscências da infância, sempre ligadas a objetos - as primeiras meias de naylon, o
primeiro aparelho de rádio - mas são lembranças estagnadas, em um presente cristalizado: “Mas tudo isto
sei, não sinto... O mundo parece-me imóvel, tenho a
impressão de que continuo com a mesma idade, de
que nada se passou” (p. 187). Escrever o diário poderia ser a forma encontrada por Leonor para fazer seu
mundo girar, acordar de um pesadelo que a impede de
existir, de sonhar o homem amado e ser sonhada por
ele. Leonor, como Maria dos Remédios, imagina uma
relação amorosa diferente, muito mais intensa do que
a que possui. Talvez uma relação onde tudo estivesse
em jogo.
A palavra tudo, que Maria dos Remédios tenta
decodificar de mil maneiras, e que a leva sempre à
constatação de que Humberto não é tudo em sua vida
- o que, inconfessadamente, a irrita - vai assumindo
novas dimensões ao longo do diário. Traveste-se em
algo mágico, que tem de ser perseguido até o infinito,
como se fizesse parte de uma “essência humana”, algo
que pudesse ser apreciado, tocado com a ponta dos
dedos e, enfim, incorporado ao ser. A “Verdade”, a
“Certeza”, o “Tudo”, palavras ocas de concretude,
3
possuem um poder encantatório
sobre as personagens de Bolor - são
como jaulas transparentes que mantêm o cativo em ignorância de sua
condição. Maria dos Remédios,
Humberto, Aleixo e Leonor estão
enclausurados pelas palavras e a
cada instante que passa reforçam
eles próprios as paredes da prisão.
Armazenam palavras, constróem discursos numa tentativa
alucinada de se transformarem naquele “indivíduo imutável cuja identidade jamais pode ser confundida
com a de qualquer outro”. Mas, como se estivessem
abandonados sobre um campo de areia movediça, o
espernear de sua angústia só os faz afundar cada
vez mais rapidamente. Gastam todas as energias elaborando seus textos e depois ainda se vêem condenados a encená-los. Maria dos Remédios inventa categorias como o tudo e o insubstituível para tentar
sentir o mundo sob seus pés, mas acaba se deixando
escravizar por elas. Já não pode se imaginar feliz sem
ser tudo para o outro, sem que ele seja insubstituível
para si própria. Constatar que ninguém pode ser tudo,
que ninguém é insubstituível, só a deixa mais insegura, mais só.
O mesmo acontece com Humberto. Ao se casar
com Catarina, sua primeira esposa, ele pronuncia palavras que se pretendem mágicas: “Estamos no centro do mundo! [...] Aqui o tempo parou. Não: aqui o
fluir do tempo rompeu-se, regressámos ao momento
da criação, Marduk acaba de vencer Tiamat, imitamos a aurora do mundo, estamos verdadeiramente
na aurora do mundo, purificados, tudo vai começar,
acabamos de nascer...” (pg. 42). Palavras idênticas
às que utilizará ao casar-se com Maria dos Remédios. Um discurso que ele constrói do nada mas que se
estabelece como uma verdade, uma necessidade que
acaba não se concretizando. Humberto decepcionase ao perceber que não nasceu outro, é sempre o
mesmo, mas continua a acreditar no encanto de suas
palavras.
A partir daí, por não encontrar o culpado em si, por
não enxergar a origem de sua frustração, ele culpa
Maria dos Remédios. É a mulher que o impede de existir,
de ser outro, “de nascer de novo” - velha ilusão que
ela desmistifica quando pergunta “que farias tu de ti,
desse homem novo? Para que te serviria ele?” (pg.
125). Ao mesmo tempo ela também sabe que Humberto
é seu álibi. Ambos são o reflexo de um mesmo fracasso. De alguma forma amarrados um no outro, eles não
têm forças para dar o salto decisivo, não conseguem
sair do texto para entrar na vida.
Uma página de papel
em branco convida
e constrange.
Exige respostas para
perguntas que ainda
não foram feitas.
Reclama disciplina
e talento.
Hannah Arendt, Origens do totalitarismo. Trad. de Roberto Raposo. S. Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 528-9.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 12-17, jul./dez., 1997.
15
Se todo o diário, ou os diários, é uma grande prisão
de seres que não existem, suas três últimas páginas
são uma espécie de solitária, escura e fria, onde ficarão esquecidas personagens que não conseguiram se
fazer humanas. Personagens que, como o desgraçado
Augusto Pérez, de Névoa, não ouviram o conselho
amigo: “Não há pedagogia que mereça a pena. Só se
aprende a viver vivendo, e cada homem tem que recomeçar o aprendizado da vida...”4. Nas três últimas
páginas, Humberto encarcera definitivamente Maria
dos Remédios, condenando também a si próprio: “Ela
olha para mim em silêncio, escrevo que ela olha para
mim em silêncio, e aguardo as palavras restantes a fim
de as congelar neste diário [escrevo que aguardo as
palavras restantes a fim de as congelar neste diário (e
escrevo que escrevo que aguardo as palavras restantes a fim de as congelar neste diário - ... -)]” (pp. 1934). O “T” final, que encerra o livro, os remete, junto
com Aleixo e Leonor, a um vácuo qualquer, espaço
onde até a palavra se vê impossibilitada de continuar
existindo. E, assim, os “seres de mentira” de Abelaira
são expulsos do mundo dos homens.
Mas - e se eles não forem de mentira? Se, ao invés
de ocupados com sua existência ficcional eles estivessem simplesmente representando o drama do homem,
do intelectual português dos anos 60? Que terrível sonho poderia ter feito seres de verdade parecerem de
mentira? Humberto, Aleixo, Maria dos Remédios e
Leonor teriam então habitado efetivamente o mundo.
Um era advogado, defendia presos políticos; o outro
era artista plástico, e não se conformava em ver sua
arte “reduzida a dar beleza aos bem instalados na vida”
(p. 69). Maria dos Remédios foi cantora um dia e
Leonor, que tem dois filhos, está se sentindo envelhecer. São intelectuais, apreciam boa música e boa literatura, já viajaram bastante e estão sempre muito bem
informados. Passam horas discutindo o sonhado avanço e os inúmeros retrocessos políticos. Parecem tão
vivos quanto você. Mas não são.
Chegando bem perto dá para ver um vazio no fundo dos olhos, o medo bem apertado dentro da garganta, os ombros dobrados por um sentimento que é misto
de vergonha e culpa. Caso se tome uma distância um
pouco maior ainda dá para ouvi-los falar. Repare como
são largos seus gestos, como parecem seguros do que
dizem, como se sentem imponentes quando estão jun-
tos, numa mesa de bar, num evento social qualquer.
Mas ao voltar para casa já são outros de novo. Assustados, correm para seus diários, onde podem continuar
se confundindo com seus discursos. Só em barulhentos grupos podem ter a ilusão de ainda serem humanos, de estarem participando de uma vida comum àqueles que habitam o mundo.
Praticamente toda a obra de Abelaira, sempre
centrada na intelectualidade portuguesa, discute essa
impotência, essa impossibilidade de combinar discurso
e ação. Em Sem tecto, entre ruínas, a mesma situação é explicitada quando, em meio a uma festa, uma
das personagens questiona:
- Impressiona-me o ar sério com que todos representam
o seu papel. Como todos, por um momento, supõem que
esta casa é o país inteiro, talvez a Europa, não sei se o
universo, e que aqui se decifram os grandes acontecimentos, se decidem as grandes linhas da evolução futura. E como se sentiriam terrivelmente desprotegidos se
suspeitassem que não legislam sobre coisíssima nenhuma, que se limitam a passar tempo, substituir por palavras as horas, os minutos, os segundos! Que consomem
tempo em vez de o produzirem. São deuses, têm necessidade de se sentir deuses, de conhecer o futuro, não lhes
basta conhecer o presente5.
Para em seguida receber a resposta, que remete
diretamente a uma intrincada rede de mitos que cerca
Portugal: “Talvez a teia da história e do mundo se confunda com as palavras e esta sala seja efectivamente
tudo quanto existe no universo ou pelo menos o modelo do universo. À falta de poderem produzir tempo produzem símbolos, símbolos que nada simbolizam”6.
As personagens de Abelaira são seres alienados,
homens e mulheres cultos e bem informados, mas que
perderam o contato com o mundo e se tornaram alheios à sua própria humanidade7. Envolvidos por uma ditadura que se estenderia por quase meio século, eles
foram se transformando gradativamente nesses organismos estranhos, que se alimentam de tempo e que
parem símbolos ocos. Seres confusos, que se enredam em seu próprio discurso, e se deixam aprisionar
por ele, vivendo eternamente comprimidos entre a impossibilidade de agir, de produzir uma realidade social,
da qual se sabem responsáveis, e a necessidade de se
justificar por nada fazerem. Por isso falam tanto, escrevem tanto, e vivem tão pouco. A esfera política,
lugar onde os homens “agem em conjunto na realiza-
4
Unamuno, op. cit., p. 77.
Augusto Abelaira, Sem tecto, entre ruínas. 2ª ed. Lisboa: Sá da Costa, p. 18 (1ª ed., 1978).
6
Id., ib.
7
“L’être générique de l’homme, aussi bien la nature que ses facultés intellectuelles génériques, sont transformées en un être qui lui est
étranger, en moyen de son existence individuelle. Il rend étranger à l’homme son propre corps, comme la nature en dehors de lui, comme
son essence spirituelle, son essence humaine. [...] D’une manière générale, la proposition que son être générique est rendu étranger à
l’homme, signifie qu’un homme est rendu étranger à l’autre comme chacun d’eux est rendu étranger à l’essence humaine”. Karl Marx,
Manuscrits de 1844. Traduction de Emile Bottigelli. Paris: Editions Sociales, s.d., pp. 64-5.
5
16
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 12-17, jul./dez., 1997.
ção de um interesse comum”8, foi destruída pelo
salazarismo. E a esfera privada, refúgio natural da alma
humana, também se viu atingida. De politicamente isolados, eles vão se fazendo igualmente solitários.
E a solidão é o fundamento do terror, como demonstra Hannah Arendt. Momento em que o homem
se vê esvaziado do seu eu, onde ele “perde a confiança em si mesmo como parceiro dos próprios pensamentos e perde aquela confiança elementar no mundo
para que se possam ter quaisquer experiências”9.
Quando recorrem ao diário - para “preencher os momentos em que estão à sós” - as personagens de Bolor já não estão conseguindo mais restabelecer o diálogo com o outro. Aos poucos, ao longo da escrita,
percebem que já não podem contar sequer consigo
próprias. Maria dos Remédios não dispõe mais de sua
primeira pessoa. Perdida em meio ao jogo, ela precisa
desesperadamente confirmar sua identidade. Não o
consegue junto de Humberto; tenta Aleixo, mas também se decepciona. Eles não são “insubstituíveis”, o
que faz dela também um ser supérfluo.
Uma vez que nenhuma das personagens é insubstituível para a outra, todas são supérfluas e convivem
intimamente com o horror dessa descoberta. O único
que tem coragem de manifestar essa angústia é Aleixo
que, numa conversa com Humberto, faz o retrato de
sua própria impotência:
Sinto necessidade, através do voto, através de um ou outro
artigo escrito para o jornal, sei lá que mais!, de dar a minha
contribuição à marcha do mundo, isto é, sinto necessidade
de pesar, por pouco que seja, nos actos governativos, nas
grandes decisões... E que sucede? Não voto, não posso
escrever esses artigos... Se eu fosse verdadeiramente um
político ou um revolucionário a sério ainda poderia tentar
essa influência de outra maneira. Mas não. [...] O mundo
faz-se sem mim, sem o meu voto, nem sequer contra o meu
voto. Cortado da vida social, se por vida social entendermos a construção de uma sociedade nova. Isso destrói-me,
torna-me céptico, céptico até em relação às coisas em que
acredito, pessimista (pp. 95-6).
E aquilo que poderia ser o vislumbrar de uma solução para o impasse, mostra-se apenas como o reconhecimento, lúcido e brutal, da situação: “Através da
comparticipação na coisa pública o homem integra-se
na sociedade, domina a solidão. E essa solidão não se
vence a escrever diários ou livros, ou a pintar quadros,
compreendes? Não se vence também a conversar no
café com os amigos” (pg. 96). Aleixo é capaz de detectar o mal que sofre, conhece até o remédio, mas
está impedido de avançar até ele. Enquanto espera nem todos são revolucionários - vai se destruindo aos
poucos. Chega a propor que a arte se cale, que os
artistas cruzem os braços temporariamente, até que o
mundo mude, até que não haja mais “riqueza mal distribuída” (p.71).
Da mesma forma que Aleixo se sente culpado por
fornecer beleza àqueles que não a merecem, Humberto
se remói na vergonha de não lutar por aquilo em que
acredita. Eternamente frustrado, vendo em todos uma
espécie de “consciência do seu fracasso”, ele está duplamente condenado. Primeiro, pela ditadura, que o impede de agir, que lhe incute o medo; depois, por si próprio, uma vez que ele já não confia em si e põe antecipadamente em dúvida suas reações:
Esta noite sonhei que vivia no Porto em 1830. De repente,
vindo de Londres, o Alexandre Herculano aparece em minha casa e diz-me: “Vamos desembarcar dentro de poucas
horas, precisamos do teu apoio”. Acordei nesse instante
com suores frios e, por acaso, lembrei-me do sonho interrompido. Pensei então, repousadamente acordado: Que
responder? “Não conte comigo”? Nunca mais poderia
olhar para ele a direito (nunca mais poderia olhar para mim
mesmo a direito), mas como dizer-lhe: “Conte comigo” se
o medo invadira o meu coração e a minha alma? Sem querer, sem dar por isso, surpreendi-me a raciocinar deste
modo: “porque vieste? Eu vivia em paz, sim, vivia em paz,
sabedor de que nada poderia fazer, crente de que era por
isso que nada fazia. Porque vieste?” (pg. 51)
Se Aleixo realmente tivesse parado de pintar, se
Humberto vivesse mesmo em paz com sua consciência, entre os escombros da ditadura portuguesa teriam sido encontrados seres disformes, vagantes, sem
feições, nem alma. Não seriam “seres de mentira”;
esses ainda precisam de alguém que os crie, que os
sonhe, e o autoritarismo é o anti-sonho, a anti-criação. Seriam apenas homens desinventados, nus de
toda alegria, vazios de esperança. Aleixo não é mesmo nenhum revolucionário, sabe que assim a angústia da espera será ainda maior, mas vez ou outra pinta um quadro, e por baixo da beleza que produz camufla o horror que sente, chagas e podridões 10 .
Humberto também não faz muito. Defende alguns
presos políticos e envelhece. Mas à noite, quando volta
para casa, posta-se diante de um caderno e tenta recompor seu mundo, mesmo que ele surja infectado
de dúvidas, contaminado pelo medo. O homem diante de uma página de papel em branco ainda é uma
possibilidade em aberto.
8
Arendt, op. cit., p. 527.
Id., p. 529.
10
Na sua revolta contra aqueles que consomem a beleza sem merecê-la, Aleixo pinta o quadro de uma mulher nua “extremamente bela no
rosto, a Primavera, quem sabe?, com um corpo repelente, chagado - e um cão, também apodrecido, a lamber-lhe as feridas” (pp. 67-8).
Depois, esconde suas chagas sob uma camada de tinta especial, que se decomporá com o tempo, revelando a obra inicial: “Ao fim de
algum tempo, o bom burguês, comprador de uma genial Vénus para seu repouso, para embelezamento da sua sala de estar, verá aparecer
uma imagem repugnante. E, pelo menos como artista, deixarei de contribuir para o sossego dele” (p. 72).
9
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 12-17, jul./dez., 1997.
17
Este artigo tem por objetivo analisar o conto “Anel de
Moebius”de Julio Cortázar segundo princípios da semiótica
do paratexto. A partir da epígrafe de Clarice Lispector, procura-se discutir a relação de homologia entre a epígrafe e o
conto, enfocando as diferenças e as semelhanças que essa
relação implica.
Palavras-chave:
estratégia textual; crítica.
The aim of this article is to analyse Julio Cortázar’s story
“Anel de Moebius”. Taking Clarice Lispector’s epigraph
as reference, it is attempted to discuss the homology’s
relation between the epigraph and the story to emphasize
the differences and the similitudes contained in this relation.
Key-words:
textual strategies; critic
*
18
Paulo Sérgio Nolasco
dos Santos é doutor em
Letras, Professor de
Teoria Literária e
Literatura Comparada
no CEUD/UFMS.
A EPÍGRAFE-METÁFORA DO
CONTO “ANEL DE MOEBIUS”
DE JULIO CORTÁZAR
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos*
“ANEL DE MOEBIUS” é um dos contos de Julio Cortázar mais memorável do que conhecido.
Cortázar, admirado por escrever contos magníficos,
conseguiu neste relato, continuando sua mestria já
comprovada desde “A casa tomada” até “Blowup”1 , prender a atenção do leitor e obrigar a releitura.
Dai, o ser mais memorável; uma vez que, quem quer
que tenha lido “Anel de Moebius” dificilmente deixou de relê-lo e certamente não escapou do exercício de querer “escrever a leitura: interrompê-la com
freqüência, acossado por afluxo de idéias, excitações e associações - ou como diz Roland Barthes
“ler levantando a cabeça”2 .
“Anel de Moebius” tem na imagem do gato um
ponto em comum com os demais relatos da coletânea
Orientação dos Gatos, na qual está inserto3. Há, ali,
gatos por toda parte, e, se variados são os caracteres,
nuances e matizes do ser felino descrito pelo Autor, a
qualidade felina do “escorregadio” e do “esquivo” acaba predominando nesses relatos “des/orientando” o
leitor. Não é nossa intenção estudar a rede de significações que os títulos dos contos, inclusive o que dá
nome à coletânea, sugerem; nem, a partir disto, buscar
o elo que, por sua vez, possa justificar uma aproxima-
ção dos relatos, mesmo quando a pura imagem do gato
torne plausível a aludida aproximação. Entretanto, alguns dos lexemas aqui sublinhados já prenunciam o
caminho da difícil entrada no conto “Anel de Moebius”.
Nosso propósito é tentar uma aproximação da natureza metafórica da epígrafe que encabeça o conto;
uma reflexão em torno da epígrafe como correlato do
processo narrativo, como elemento extradiegético que
predispõe a leitura e amplifica o mundo representado.
A epígrafe de que se utiliza Cortázar foi extraída
de Perto do coração selvagem4, o primeiro romance
da escritora brasileira Clarice Lispector, e diz:
Impossível explicar. Afasta-se aos poucos daquela zona
onde as coisas têm forma fixa e arestas, onde tudo tem
um nome sólido e imutável. Cada vez mais afundava na
região líquida, quieta e insondável, onde pairavam
névoas vagas e frescas como as da madrugada5.
•
• •
A epígrafe, ocupando um lugar fora do texto, pode
significar apenas um revestimento de erudição e/ou
um testemunho de afinidades, no que sua função de
referência marginal pode ser prescindível para a pro-
1
“Blow-up”é o título da obra-prima de Micheangelo Antonioni. O título original deste conto de Cortázar é “Las babas del diablo”e está
inserido em Blow-up e outras histórias (título do original Las armas secretas), Trad. Maria Manuela Fernandes. Buenos Aires: EuropaAmérica, 1968, 208p.
2
BARTHES, Roland. “Escrever a leitura” e “Da leitura”, In: O Rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988
3
CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius”, In: Orientação dos Gatos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. p. 133-149
4
LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
5
A epígrafe de Cortázar, extraída, está na página 208 da 8ª ed. da obra citada
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997.
19
dessa meia-luz perpétua por onde
dução de sentido. Contudo, para a
Janet passava como uma mancha lousemiótica do paratexto, como
A
despeito
da
ra, um tilintar metálico (seu cantil
enfatiza G. Genette6, a epígrafe acadesorientação
quanto
mal ajustado ao cruzeiro de alumíba se constituindo em outro elemennio), o longo cabelo oferecido ao venà escolha de um fio
to que participa da rede de relações
to que seu corpo rompia e alterava,
que é toda narração. A epígrafe ao
condutor de leitura,
leve carranca afundando os pés no
acompanhar o discurso recolhe a
brando ceder alternado dos pedais,
necessário se faz
perspectiva do autor implícito, e asrecebendo na blusa a mão da brisa
sim se auto-remete enquanto texto
passear o olhar
apertando-lhe os seios, dupla carícomplementar a revelar um nível
cia dentro do duplo desfile de tronpela estrutura da
superior de compreensão. Gérard
cos e plantas em um verde translúcido
narrativa.
de túnel, um cheiro de fungos e cortiGenette, ao definir a epígrafe como
ças e musgos, as férias8.
uma citação, “du fait que l’épigraphe est une citation, il s’ensuit
O que aqui se observa para esse
presque nécessairement qu’elle consiste en un texte”7, tipo de monólogo interior vai se tornar uma constante
mostra que as suas utilizações são muito variáveis. Com em todo o relato. Procurando dar a impressão de que
isto, deixando de repetir aqui o histórico, o lugar, das é apenas a consciência da personagem que está sen“épigraphes”, e na terminologia do autor “épigrapheurs”, do mostrada, o autor apresenta marcas estilísticas que
“épigraphaires”, e as respectivas “fonctions”, tão mi- caracterizam o pensamento da personagem. Em texnuciosa quanto detalhadamente foram desenvolvidos, to cujo monólogo predomina pode-se constatar o “cavoltemos a atenção para a nossa proposição inicial que ráter associativo da seqüência de pensamentos, a sua
já se embasa no capítulo “Les épigraphes”de Seuils.
expressão truncada, e o estilo pessoal da personaAssim, para que se possa ir formando a correlação gem”9 . Com o predomínio desse tipo de monólogo
epígrafe-metáfora com o relato de “Anel de Moebius”, não se pode falar em ausência total de mediação do
a despeito da desorientação a que o leitor está subju- autor como nos casos do monólogo interior direto ou
gado quanto à escolha de um fio condutor de leitura, mesmo da onisciência seletiva múltipla. Nesses canecessário se faz passear o olhar pela estrutura mes- sos o foco narrativo centra-se no retrato de estádios
ma da narrativa.
psíquicos que se iniciam dentro da psique das persoA forma, a disposição espacial, que Cortázar im- nagens.
primiu ao relato resulta numa inquietação e perplexiA técnica do monólogo interior orientado acede a
dade que forçam o leitor a um trabalho de Sísifo. Antes
um lugar de destaque ao cobrir todo o conto de “Anel
de tudo, não se está diante de uma estrutura narratide Moebius”, deixando perscrutar nesse relato o reva sequer minimamente usual, ou que atenda às exgistro do estilo que caracteriza as personagens-propectativas do leitor comum — ainda que esteja este
tagonistas, e, bem assim, a apresentação de suas menfamiliarizado com as rupturas modernistas. O relato
tes. Já no aludido parágrafo de abertura do relato
se inicia com a utilização de uma das técnicas fundadepreende-se que o uso do monólogo interior põe em
mentais para a apresentação do fluxo da consciênevidência um narrador onisciente a apresentar matecia: o monólogo interior orientado, e convida a notar
rial não falado, truncado quanto à coerência, e por
o giro das frases, num parágrafo extenso, com obisso dá a impressão de que é apenas a consciência
servações parentéticas e ausência de ponto, a não
da personagem (no caso, Janet) que está sendo mosser no final:
trada. Até as três primeiras linhas do parágrafo, o
Por que não, talvez bastante propô-lo como ela have- lexema “nitidez” serve de eixo para aquilo que o
ria de fazê-lo mais tarde veementemente, e se a veria, narrador vê (Janet pedalando bosque adentro) e irá
se a sentiria com a mesma nitidez com que ela se via e
se sentia pedalando bosque adentro na manhã fresca, relatar, “contar” mais tarde ( o que será plasmado na
seguindo caminhos envoltos na sombra das plantas, tessitura de “Anel de Moebius”) e, ao mesmo temem algum lugar da Dordonha, que os jornais e o rádio po, remete e introduz o leitor no monólogo interior
encheriam mais tarde de uma efêmera e torpe celebri- de Janet, o qual vai até a constatação última: “as
dade até o rápido esquecimento, o silêncio vegetal férias”.
6
GENETTE, Gerard. “Les épigraphes”, In: Seuils. Paris: Seuils, 1987, p. 134-149.
Op. Cit. p.140
8
CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius”, Op. Cit. p.133-134
9
CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de . Foco Narrativo e Fluxo da Consciência. São Paulo: Pioneira, 1981. p.57. Nesta obra o autor
apresenta considerações sobre a vasta problemática do foco narrativo, inclusive, revendo obras consagradas sobre a matéria, e sugere uma
nomenclatura mais precisa para o assunto.
7
20
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997.
E também o outro bosque ainda que
O que observamos para esse
Se a observação
fosse o mesmo bosque, mas não para
parágrafo vai se tornar um procedo mundo só
Robert recusado nas granjas, sujo de
dimento reiterado em todo o relato.
uma noite de bruços sobre um mau
Entretanto, o elemento renovador,
se realiza através de
colchão de folhas secas, esfregando a
e que põe à prova a paciência do
um ponto de vista,
cara contra um raio de sol filtrado
leitor, diz respeito à estrutura, ao uso
pelos cedros, perguntando-se vagaconseqüentemente,
a
de “blocos” de narrativa deslocamente se valia a pena ficar na região
dos ao longo do relato. Trata-se de
grande particularidade
ou entrar nas planícies onde talvez o
(12) doze “blocos, também longos
esperasse um jarro de leite e um pouco
da obra de arte é
e apartados no decurso da narratide trabalho antes de voltar aos granva. A experiência advinda da leitua perspectiva exótica
des caminhos ou se perder de novo em
bosques sem nome, o mesmo bosque
ra de outros textos do Autor,
dessa percepção.
sempre com fome e essa inútil cólera
Rayuela, p.ex., faz crer que
que lhe torcia a boca.13
estamos diante de um experimentalismo que se deixa marcar pela renovação e revoluE no segundo bloco de narrativa:
ção presentes na arte narrativa contemporânea.
Não era fácil vê-lo da vereda. Sem saber havia dormido
Voltando à questão do foco narrativo, pode-se dizer
a vinte metros de um hangar abandonado, e agora
que vários são os modos pelos quais o autor provoca
achou estúpido haver dormido sobre o chão úmido
ou instaura um impacto ou estranhamento: se a obserquando atrás das tábuas de pinho cheias de buracos
vação do mundo só se realiza através de um ponto de
via-se um piso de palha seca sob o teto quase intacto.
vista, conseqüentemente, “a grande particularidade da
Não tinha mais sono e era uma pena; imóvel, olhou o
obra de arte é a perspectiva exótica dessa percephangar e não se surpreendeu que a ciclista chegasse
ção”10. São inúmeros os recursos dos quais o autor
pelo sendeiro e freasse, ela sim como que perturbada,
pode lançar mão para destacar o fato narrado pelo
diante da construção, aparecendo entre as árvores.
Antes que Janet o visse, ele já sabia tudo, tudo sobre
foco narrativo. Assim, a base dessa percepção exótiela e ele em uma única maré sem palavras, de uma imoca em “Anel de Moebius” se assenta no pressuposto
bilidade que era como um futuro escondido. Agora ela
da renovação e revitalização da linguagem, que ao
virava a cabeça, a bicicleta inclinada e um pé no chão,
mesmo tempo tende para um “descondicionamento”
e encontrava seus olhos. Os dois pescaram ao mesmo
da visão do leitor, esteoreotipada pelo olhar caseiro e
tempo.14
habitual:
Se em alguns blocos o narrador onisciente comparQuem vive na praia não escuta o barulho das ondas.
tilha
do monólogo interior de Robert, com a troca da
Quem vive nas grandes cidades não percebe a poluivoz
narrativa,
ora centrada no narrador, ora em Robert
ção sonora, nem que ela o leve à surdez. Não percebe—
confirmando
técnicas do estilo indireto e indireto
mos o que nos rodeia. O estranhamento é o modo parti11
livre
—,
outros
blocos
assumem a pura função de escular da percepção artística.
clarecimento
de
fatos
extradiegéticos.
Com isso, as
Toda a questão do estranho e do estranhamento
informações
caracterizadas
formalmente
nos Autos do
tem como um de seus objetivos despertar certo efeitoprocesso
instaurado
contra
Robert
(detalhes
que
leitura.12 Assim, no relato de “Anel de Moebius”, a
enformarão
os
Autos
como
o
processo
intaurado
en
utilização de blocos de narrativa encontram sua justififins
de
1956;
o
encontro
da
bicicleta
de
Janet
pelo
filho
cativa na medida em que o narrador põe em relevo
acontecimentos fulcrais do mundo narrado. Percebe- do lenhador e a constatação por parte dos guardas de
se que a figura do protagonista Robert encontra na- que o “o assassino não tinha tocado na mala ou na
queles blocos o lugar da manifestação de sua voz. A bolsa de Janet) trazem a marca da fala do narrador.
É interessante ressaltar, do que viemos comentanpresença de Robert é ostensiva em todos os blocos e é
do,
que a utilização do discurso indireto livre, enquanto
neles que o narrador, via monólogo interior, explora
meio
estilístico, resulta altamente significativo no relareiteramente a modalidade do discurso indireto livre, e
to
de
“Anel de Moebius”. É a partir do manejo sutil
passa a caracterizar a personagem:
10
FACÓ, Aglaêda. “Estranhamento”, In: Guimarães Rosa: Do Ícone ao Símbolo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 50.
Op. Cit. p.50
12
O sentido de estranho pode ser entendido, aqui, segundo Heidegger: “Estranho entendemos como o que sai e se retira do familiar (das
Heimliche) í.é. daquilo que nos é caseiro, íntimo, habitual, não ameaçado. O estranho não nos deixa estar em casa”. Cf. M. HEIDEGGER,
Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p.174.
13
CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius”, Op. Cit. p.134.
14
CORTÁZAR, Julio. Op. Cit. p.135.
11
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997.
21
desse estilo que se dá o processo
sando indvertida, não provocando
A singularidade da
osmótico entre narrador onisciente
cortes no relato. Com efeito, é intee personagem, com as fronteiras
ressante observar o quanto a quesestrutura narrativa em
entre ambos se evaporando, e critão do ponto de vista resulta
"Anel de Moebius"
ando uma ambivalência na qual o
relativizada nesses relatos:
parece ser tão
leitor não sabe se aquilo que o
“O estilo indireto livre, relativizando
narrador disse provém do relator
o ponto de vista, consegue uma via de
somente um jogo de
invisível ou do próprio personagem
ingresso até o íntimo do personagem,
prestidigitação que
que está monologando. Assim mouma aproximação à sua consciência,
que é tanto maior por quanto o interdelados/nivelados, personagem e
tem seu contraponto
mediário— parece volatilizar-se. O
narrador, ao leitor só resta pergunno próprio relato.
leitor tem a impressão de ter sido retar “quem é o sujeito que pensa?”,
cebido no seio mesmo dessa intimidauma vez que toda a astúcia emprede, de estar escutando, vendo, uma
gada para destacar a onisciência
consciência em movimento antes ou
do narrador acaba por denunciar que ele já não sabe
sem necessidade de que se converta um expressão oral,
tudo, que tem dúvidas e que seu poder diminui tremenquer dizer, sente que compartilha sua subjetividade”.17
damente, por isso nivelando-se ao personagem15.
Entretanto, a despeito do meio estilístico tender a
O segundo parágrafo do relato pode ilustrar essa
interação: iniciando-se com “Janet freou indecisa na aproximar narrador onisciente, personagem e leitor, as
estreita encruzilhada, direita ou esquerda ou quem sabe marcas do narrador não são apagadas, antes são nítipara a frente”(p.134), o resto do parágrafo é relatado das como na nota sobre Fanny Hill ao pé da página
através do discurso indireto livre preenchido 137 e nos blocos das páginas 141 e 143. Essa aproxiassociativamente pela seqüência de pensamentos da mação acaba por fazer ajustar tais consciências numa
personagem (seu monólogo interior advém da técnica temporalidade indivisa, pois o monólogo interior,
do fluxo da consciência). Somente após o longo trans- predelineando o movimento de leitura, ajusta “a conscurso de sua corrente de pensamento Janet parece ciência do personagem-narrador à consciência do leidecidir-se “À esquerda, talvez, havia uma leve desci- tor, as vivências de um devendo ser a do outro”18. Funda na sombra, deixar-se ir depois de um simples impul- de-se, então, o tempo da história com o tempo da esso de pedal”. Além desse parágrafo, os demais que crita e com o tempo da leitura.
Cotejando com outros textos de Cortázar, deparaintegram a primeira camada do relato — o que faz
preponderar o emprego do estilo indireto livre, visando mos com o também irrequieto relato de “A barca ou
narrar a intimidade —, tendem a aproximar o mais nova visita a Veneza”19 . Esse conto também aprepossível o leitor e a personagem. Daí, parecer-nos plau- senta “blocos” de narrativa insertos no relato. Todasível continuar indagando se o que o narrador disse em via, “A barca” (como se intitulava inicialmente) está
todo o quarto parágrafo do relato, ou em parte dele, precedido de uma nota de Cortázar explicando que
considerando as “mudas do narrador”16 , provém do acabara de encontrá-lo - “o acaso e um pacote de
narrador onisciente ou da personagem Janet, que está velhos papéis - e diz: “Que ruim! Escrevi-o em Veneza
monologando mentalmente. Quanto a isto notou muito em 1954; eu o releio dez anos depois, e me agrada, e
bem o estudioso de Madame Bovary que o estilo in- é tão ruim”. Em sua nota Cortázar explica que semdireto livre, interagindo maquiavelicamente, translada pre fora tentado pela idéia de reescrever textos, mas
a narração insensivelmente do mundo exterior ao inte- reescrever “A barca” lhe parecia falso e desleal: “É
rior e vice-versa. A transferência de um plano a outro então que Dora entra em cena”. Recusando-se a redá-se por um recurso complementar, com a troca do escrever o relato de “A barca”, Cortázar entressachanarrador onisciente a narrador — personagem pas- o com novos textos que resultam na renovação da15
Estudando o emprego do estilo indireto livre em Madame Bovary, o autor se refere à noção de “os personagens falavam a si mesmos e
contavam-se o que sentiam, pensavam ou recordavam. Nisso estriba-se a diferença: falavam, não pensavam. Mesmo quando o narrador
anota “Fulano pensou” e em seguida se retira da narração, o que fica no relato é uma voz, um personagem recitando, teatralmente, sua
vida interior,”(Cf. Llosa, Mario Vargas. “O estilo indireto livre”, IN: A orgia Perpétua. Rio de Janeiro: Francisco Alves, p.154.
16
Llosa se refere às mudas do narrador como decorrência do estilo indireto livre (Cf. Op. Cit. p.139). Também Harald Weinrich, no
capítulo “Realidade e irrealidade na Linguagem” anota: “Muchas veces ni siquiera puede distinguirse si un texto tiene como perspectiva
la introspección del narrador que comprende e interpreta al personaje o — como estilo indirecto libre —la perspectiva del personaje que
interviene en la acción”(Cf. WEINRICH, Harald. Estructura y función de los tiempos en el lenguaje. Madrid: Gredos, 1968, p.174.
17
Llosa,M. Vargas. Op. Cit. p.155.
18
NUNES, Benedito. “A sintonia no monólogo interior”,In: O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988, p.64.
19
CORTÁZAR, Julio. “A barca ou nova visita a Veneza”, In: Alguém que anda por aí. Rio; Nova Fronteira, p. 89-132. As citações que
comentam a origem de “A barca” foram extraídas da nota de Cortázar que está nas páginas 89-90.
22
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997.
quele em “A barca ou nova visita
1956”. Robert, defendido, “o Júri
a Veneza”.
não admitiu as circunstâncias ateNos jogos de emoções
Se por um lado o relato de “A
nuantes”. Também, “a apelação foi
e sentimentos em
barca” requer leitura diferente da
recusada e transferiram Robert à
de “Anel de Moebius”, por outro,
Santé na espera de execução”; d)
"Anel de Moebius, o
ele nos põe alerta o suficiente para
com Robert na prisão, Janet, que
leitor chega a
aceitar a narrativa de “Anel de
agora re/vive no estado cubo, visiMoebius”, considerando o caráter
ta-o. O reencontro de ambos dá-se
capitular frente a
sui generis deste e da leitura que
após o suicídio de Robert no presíqualquer possibilidade
ora realizamos, como um procedidio – só que agora no “estado cubo
de imputar culpa.
mento tendente a instaurar o
no agora sem tempo”.
estranhamento.
A singularidade com que a es• • •
trutura narrativa se apresenta em
“Anel de Moebius” parece ser tão-somente um jogo
A tentativa de ordenar os passos da narrativa de
de prestidigitação que tem seu contraponto no relato “Anel de Moebius” resulta numa tarefa quase impratimesmo, i. é., na história que é contada, e que é a da cável ou de paralisia face ao que é indefinível por nafigura do Anel de Moebius — história encenada, re- tureza. O estado cubo do qual co-participam os protapresentada no envolvimento dos protagonistas Janet e gonistas se caracteriza pela REPTAÇÃO, pelo “estaRobert.
do reptante”23 .
A história do “Anel de Moebius” pode ser assim
Explorando os significantes reputare e reptare siseqüênciada: a) Janet passeia por um bosque, numa multaneamente, porém mentalizando sobretudo a imamanhã, pedalando sua bicicleta, quando pára indecisa gem poética da “lagarta percorrendo uma folha”
na estreita encruzilhada. Tinha um caderno de capa (p.142), chega a ser instigante senão provocante aceilaranja para encher, fotografias para tirar e “dezenove tar o desafio de penetrar na simultaneidade dos estaanos ingleses já com muitos cadernos e milhas peda- dos vivenciados pela protagonista Janet. Simultaneilando”20 . Definindo-se por uma vereda da estreita en- dade que não significa permanência e continuidade,
cruzilhada, janet se aproxima de um hangar abandona- mas que traduz uma idéia de tempo estilhaçado em
do no bosque, perto do qual Robert passara a noite: instantes descontínuos ( os estados reptantes deixam
“Antes que Janet o visse, ele já sabia tudo, tudo sobre marcar-se pelo que é dinâmico). É assim que Janet,
ela e ele em uma única maré sem palavras, de uma saltando “de ponto em ponto ou de nota em nota”, enimobilidade que era como um futuro escondido”21 ; b) tra e sai dos diversos estados (sentimentos); identidacom o pé no pedal, Janet empurra a bicicleta para dar de metafórica com o réptil lagarta (observe-se a
a meia volta “quando Robert cortou-lhe a passagem e etimologia latina de réptil arrastando os dois signifisegurou a direção com uma mão de unhas pretas”22 . cados indicados): estado vento, estado reptante, estaJanet desgoverna-se, cai, e é “atacada” por Robert. do cubo, estado onda. Na passagem de um estado a
No hangar Robert irrompe num acesso de desejo — outro, o ser Janet anseia um modo-de-ser que seja o
misto de luxúria e ânsia de posse —, acabando por de plenitude. Dai que o seu suplício se assemelha ao
violentar Janet que, assim, de uma cena de drama de tântalo, sempre pensando tocar o alvo e sendefloramento vem a des/falecer; c) agora, a maior tindo-o fugitivo, esta a razão da sua (dela) própria vida.
parte da narrativa é preenchida por mutações - trans- Experimentando ser febre, ser onda, ser em ondas,
posições - de pólos, fazendo oscilar a mente do leitor ser em febre, “ser vento ou ser folhagem”, Janet deentre as alternâncias: ora estado febre, ora estado sorienta-se num torvelinho de maelstrom.24
onda e ora o estado cubo. Nessa oscilação, com joPara Janet, arrastar-se com lentidão e sofrimento
gos de emoções e sentimentos, o leitor chega a capitu- de um estado a outro, reptando nos diversos estados,
lar frente a qualquer possibilidade de imputar culpa ao jogada num redemoinho de maelstrom, “passando por
assassino Robert que, a esta altura, já se encontra de- suas caras e tornando a passar sem a menor visão
tido, “o processo instaurado em Potiers em fins de nem tato nem limite”, sua âncora só pode ser encon20
Cortázar, Julio. “Anel de Moebius”. Op. Cit. p. 134.
Cortázar, Julio. “Anel de Moebius”. Op. Cit. p. 135.
22
Cortázar, Julio. “Anel de Moebius”. Op. Cit. p. 136.
23
“REPTAR”: (Do lat. reputare) 1. Estar em oposição a; 2. Desafiar, provocar. (Do lat. reptare) 1. Andar de rastos; rojar-se pelo chão;
arrastar-se. O sintagma “reptar”com suas flexões aparece pelo menos oito vezes no relato. Cf. Dicionário Aurélio.
24
“torvelinho”: o mesmo que redemoinho. “MAELSTÖM”, s.m. corrente do mar Ártico, junto à costa norueguesa, que se caracteriza por
constantes turbilhões. (Cf. Dicionário Caldas Aulete)
21
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997.
23
trada naquela imagem da lagarta percorrendo a folha:
Infinito anel de Moebius, reptação até a beira de uma
cara para ingressar ou já estar na oposta e voltar sem
interrupção de cara a cara, um arrastar lentíssimo e penoso aí onde não havia medida da lentidão ou do sofrimento mas se era reptação e ser reptação era lentidão e
sofrimento.25
Mas era no estado cubo que Janet ansiava permanecer, pois nele ela voltava, ainda que confusa, a um
reconhecimento de si. Reencontrava o hangar e o chocolate e “rápidas visões de campanários e colegas”:
O pouco que podia fazer lutava sobretudo por durar aí
o cúbico, por se manter nesse estado onde havia detenção e limites, onde acabaria por pensar e se reconhecer.26
Se pudesse decidir por sua vontade, decidira fixarse no estado cubo, no qual a sua sensibilidade aflorava
e podia lutar por uma relativa permanência. Entretanto, àquele que aspira à plenitude, e teme ser lesado em
alguma parte deste patrimônio infinito que é a soma
das experiências de que um homem é capaz, o estado
cúbico representa a réplica do anel de Moebius a
conciliar anverso e reverso. Neste sentido todo o relato não deixa de permeabilizar-se por uma aguda compreensão do ser à la Bachelard. Para Bachelard, ao
reconhecer que a linguagem que usamos no dia-a-dia
permanece cúmplice do continuísmo, uma vez que não
podemos falar sem empregar todos os advérbios,
todas as palavras que evocam o que dura, o que
passa, o que espera ( ponto nevrálgico de sua polêmica com Bergsom), não há lugar para a permanência
e para a continuidade, estamos no reino do “tempo estilhaçado em instantes descontínuos”.27
O estado cubo — cubo corresponde a um poliedro
regular com seis faces quadradas, hexaedro — é a
imagem de um certo plasmar temporal, que só se
corresponderia à imagem/metáfora do anel de
Moebius. Enquanto figura recorrente e de insistente
retorno no relato, o “estado cubo” representa o que
só se permite alcançar através da imagem de referentes indefiníveis ou quase nada precisos, segundo
o narrador: “rajadade imagens”. Dai, sua não
parmanência, mas sua descontinuidade. Momento
pontual e vetor do relato, um “meio hialino”, “suspensão hialina”, um “agora hialino” (hialino: o que tem
aparência ou transparência do vidro). Na ânsia de
captar o instante hialino, de tornar possível plasmar o
indizível, o “impossível explicar” que abre e prolonga
toda a epígrafe claricena, o narrador do “Anel de
Moebius” lança mão de sintagmas/significantes que
se entre-ofuscam:
garrafas cristalinas ou torvelinhos de maelstron em
suspensão hailina ou reptação penosa sobre superfície
de dupla face ou poliedros facetados.28
Outros exemplos mais notáveis, vocábulos índices, palavras e expressões valises, chamam a atenção e merecem destaque: “diafanidade”, “meio
translúcido”, “cristais”, “plexiglás” (p.140); “oceano de cristais ou de rochas diáfanas” (p.141); “estado em que tudo fluía como que se criando no ato
de fluir, uma fumaça girando em seu próprio casulo
que se abre e se enrosca em si mesmo, o ser em
ondas, no indefinível transferir-se que já tantas vezes a havia mantido em suspensão, alga ou casca
ou medusa”.(p.145); “cristais líquidos ou estrato de
nuvens” (p.146); “pedais cromados”, “cubo de diamante” (p.147); “tigre de espuma translúcida”, “níveis vagamente glaucos”, “hélice”, “salto metálico”
(p.148).
Sob o império da imagem29 , em que as rajadas de
imagens se evolam num estado de evanescência e fluidez, e ao conceber a ficção como uma teia de ara-
25
CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius, Op. Cit. p.142
CORTÁZAR, Julio. Op. Cit. p.144
27
A análise do pensamento de Bachelard é feita por José Américo Motta Pessanha em “Cultura como Ruptura”, In: BORNHEIM, Gerd
et alli, Tradição/Contradição, Rio de Janeiro: Zahar/Funarte, 1987, p 59.
28
CORTÁZAR, Julio. Op. Cit. p.143
29
Como quer Octavio Paz, para quem a imagem poética traduz-se no lugar de uma luta entre o silêncio que se instala e forças tendentes
a fugir dele. Ato de criar realidades, através da linguagem, contrárias à lógica: “O sentido da imagem poética é a própria imagem: não se
pode dizer com outras palavras. A imagem explica-se a si mesma”(Cf. PAZ, Octavio. “A imagem”, In: O Arco e a Lira. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1982, p.133).
Ainda, por imagem, deve-se entender, segundo René Wellek, como o que não sendo exclusivamente da poesia, mas que tem origem a partir
da analogia e da comparação, na própria definição de Ezra Pound: “aquilo que apresenta um complexo intelectual e emocional num
instante temporal”, “unificação de idéias díspares”. (Cf. WELLEK, René. “Imagem, Metáfora, Símbolo, Mito”, In: Teoria da Literatura.
Lisboa: Europa-América, 1962, p.231.
30
Sobre a concepção de que “a ficção é como uma teia de aranha”, cf. nosso estudo comparativo “Clarice Lispector e Virginia Woolf: a
escritura depondo o romancista”, In: Anais do 1º Congresso da ABRALIC, Porto Alegre: 01-04/06/88, v.II, p.49-55. Em Cortázar a
noção de “teia de teia” alude ao homem em sua relação com a “realidade”. Seguindo a idéia do particular e do universal. o cronópio
cortazariano padece de um sentimento de exceção: “sentimento de não estar de todo em qualquer das estruturas, das teias que a vida arma
e em que somos simultaneamente aranha e mosca”. (Cf. Prosa do observatório, p.45, e “Do sentimento de não estar de todo”, In: Valise
de Cronópio. Trad. de Davi Arrigucci Junior, São Paulo: Perspectiva, 1974, p.166).
26
24
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997.
nha,30 Julio Cortázar desenvolveu
a frente”, o narrador de “Anel de
na Prosa do Observatório 31 seu
Moebius” tenta a tessitura de seu
Para o homem
conceito, tão rico quanto diáfano, de
relato à sombra de um bosque (a
que se quer lançar
imagem poética. A figura centra da
esta metáfora do bosque voltareProsa - uma vez que não podemos
mos), lugar da perda, do des/falenuma concepção
falar em termos de personagens - ,
cimento e do defloramento, onde
do aberto,
é uma ENGUIA: “informe cabeça
“tudo era claríssimo e confuso a
seu desenho da
toda olhos e bocas e cabelos”32 .
um só tempo”35 ; “larvas translúEla é o signo da imagem pura, cabicidas flutuando entre duas águas,
realidade deverá
de de imagens, de quem o narrador
anfiteatro hialino de medusas e
ondular sobre si
está sempre falando, sem, contudo,
plâncton”, “urdindo seus fios para
nunca alcançar o objeto ( a enguia)
uma inteligência cúmplice, teia de
mesmo.
que lhe escapa pelos dedos e, por
teias”36 . Dai, também, sua incaconseguinte, da apreensão. Prosa
pacidade “de pensar articuladado Observatório vai configurar a a idéia-conceito de mente” 37 . Incapacidade e impossibilidade
enguia sobre a qual Cortázar desenvolve a teoria do problematizada, tematizada senão dramatizada por
anel de Moebius. Reduto da imagem, a Prosa elabora- todo o texto de “Anel de Moebius”. Neste sentido e
se como crítica às pretensões de cientificidade que tudo ao pé da letra, todo sentimento de perplexidade e esquer aprisionar e categorizar através de uma nomen- tranheza do leitor diante do texto decorre, decerto,
clatura. Crítica que vai em direção ao olhar da correlação com a epígrafe clariceana escolhida
institucionalizado, às concepções passivas e enlatadas por Cortázar. O texto de “Anel de Moebius”. é
da realidade:
reptação do texto epígrafe de Clarice Lispector e
Enguias, sultão, estrelas, professor da Academia de Ci- esse daquele, uma vez que, correlacionados formam
ências: é de outra maneira, de outro ponto de partida, um espaço textual único.
A epígrafe de Clarice, que nos lança para o munpara outra coisa que se deve emplumar e lançar a flecha da pergunta.33
do representado no conjunto de sua obra, também
Para o homem que se quer lançar numa concepção convida ao diálogo com o texto de Cortázar. Uma
do aberto, seu desenho da realidade deverá ondular espécie de forma monologal reúne a escritura de
sobre si mesmo (reptação), no anel de Moebius das ambos os autores. Ora, num e noutro o processo de
enguias, anverso e reverso conciliados. Somente nesta comunicação parece não se fundamentar, não se rerevolução de dentro para fora e de fora para dentro, o alizar através de um código, mas, como mostra W.Iser,
numa “dialética movida e regulada pelo que se moshomem poderá ocupar o seu posto nesta
38
pulsação de astro e enguias, anel de Moebius de tra e se cala” . Parece confluir aí um caráter de
uma figura do mundo onde a conciliação é possí- escrita semovente que envolve a um só tempo a
vel, onde anverso e reverso deixarão de se desgar- epígrafe e o próprio relato de “Anel de Moebius”,
rar, onde o homem poderá ocupar o seu posto nessa com um certo tema da paixão que predispõe o ato de
jubilosa dança que alguma vez chamaremos reali- leitura, arremetendo tudo para o terreno movediço
onde se situam texto literário e leitor. Ambos os texdade. (o grifo é meu)34
Tal como Janet que parara indecisa na “estreita tos ( epígrafe e relato) exigem do leitor uma particiencruzilhada, direita ou esquerda ou quem sabe para pação especial, na qual ele deve atuar com seu pró-
31
CORTÁZAR, Julio. Prosa do Observatório. Trad. de Davi Arrigucci Junior. São Paulo; Perspectiva, 1974. A apresentação à Prosa,
feita pelo tradutor, intitula-se “Paráfrase do Tradutor”e resultou num texto “síntese” da poética cortazariana: “Cortázar revém,
reinventado, reinventando: sinuoso, elástico, irônico, erótico, revolucionário: enguias, estrelas, estrias nos açudes celestes em que a
perseguição persiste com a proposição de um novo perscrutar: metafórico, metafísico, feérico, fálico, telescópico: abarcante desejo
cósmico de abraçar num só ato tudo de uma vez: curso de enguias e estrelas, decurso de palavras, discurso global do homem e de sua
necessidade de mudar”.
32
“Enguia”, espécie de peixe ápode, serpentiforme.
33
CORTÁZAR, Julio. Prosa do Observatório. Op. Cit. p.43.
34
CORTÁZAR, Julio. Op. Cit. p.73
35
CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius”, Op. Cit. p.136.
36
CORTÁZAR, Julio. Prosa do Observatório. Op. Cit. p.15 e 45 respectivamente.
37
CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius”, Op. Cit. p.146.
38
ISER, Wolfgang. “A interação do texto com o leitor”, In: Luiz Costa Lima (Org). A Literatura e o Leitor. - textos de estética da recepção.
São Paulo: Paz e Terra, 1979, p.90.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997.
25
prio universo cultural de leitor, suas vivências, sua
visão de mundo, seus valores, ou renunciando a tudo
isso. O labirinto como espaço de representação é o
signo do erradio e do transverso. Jogando com uma
escrita que envolve a participação do leitor, o aludido
“espaço textual único” metamorfoseia seu aproximarse do labiríntico do real:
Porque a ficção, a narrativa, o conto, hoje — marcados na sua base pelo alto grau de consciência do escritor sobre a própria criação —, parecem oscilar
entre estes dois pólos dialéticos: optando por uma
“maneira de dizer”, realizando uma escolha ao nível
do contar, o escritor está “matando” as outras formas
possíveis, cometendo um “assassinato” em relação ao
real.39
Problematizando a escrita ao nível do “contado”,
obrigando a participação do leitor no “como” o relato é
tecido, “Anel de Moebius” encena um processo narrativo onde o fluxo da consciência, modalizando a técnica do monólogo interior e sobretudo o meio estilístico
do discurso indireto livre, vai arrastar o leitor para o
mundo representado no qual tudo oscila entre pólos
dialéticos — de onde nascem os estados porque passa
a protagonista.
Em relação à epígrafe, “Anel de Moebius” deixa a
marca da diferença ( o outro) por realizar-se num espaço textual estruturado ( os limites do conto), com as
vozes dos narradores e suas mudas e por exigir do
leitor um tempo de leitura muito maior do que o da
epígrafe.
Numa época marcada pelo recorte das “semelhanças”, acabamos por tanto ver “semelhanças” e muito
pouco as “diferenças”. Contudo, é pertinente notar que
a literatura contemporânea, muito consciente de seus
procedimentos, aberta para o livre exercício da linguagem, a completa autonomia do texto, acaba por atenuar os limites de demarcação entre os gêneros. Com o
advento de uma episteme que põe em demanda a crise de representatividade na arte, o conto, a narrativa
tradicional sofreram evoluções e chegam à
modernidade acentuando seu caráter “poético”, de
poesia mesmo. Daí que, a epígrafe de Clarice Lispector,
um excerto do romance Perto do coração selvagem,
cai numa autonomia em relação ao texto de origem e
bem assim na sua relação com o relato de “Anel de
Moebius”, porém dialogando com este numa espécie
de síntese metafórica de toda a des/orientação que o
relato difunde.
É penetrante notar o quanto Clarice trafega livremente por dentre os gêneros literários, tornando
inviável a classificação de suas narrativas que têm
sido mais acertadamente vistas como uma forma
poemática. 40 Se a epígrafe-metáfora de Clarice pode
ser usada com variados graus de limite figurativo,
tornando pertinente a pergunta “De que valeriam as
metáforas se fossem exatamente a mesma coisa?”,
parece plausível ver nela a reptação do bosque como
ponto avançado criado pelo narrador do relato, para
nele colocar a imagem de uma vida concebida como
ensombrada por um bosque.41
Convém lembrar, como já se assinalou, de a figura
de Clarice Lispector ser o contrário do espírito
cartesiano, “para o qual a linearidade das naturezas
simples é o ideal do conhecimento”42 . Não é demais
notar que se trata de uma compreensão nãoeuclidiana da realidade que opera a partir de uma
perspectiva mais aberta, dando voz a sua própria equação existencial. Quanto a Cortázar é relevante notar, como o fez J. Alazraki, que sua geometria, sua
compreensão não-euclidiana da realidade, propugna,
em termos de uma nova postulação da realidade, uma
escr itur a “neofantástica” como alter nativa
gnoseológica:
Não só o fantástico novo, senão toda a literatura contemporânea opera a partir de uma perspectiva mais
aberta, sobre a qual o escritor abarca um campo mais
amplo, e mais complexo, no qual as categorias de causa e efeito e as leis de identidade começam a perder a
precisão de seus contornos, e com elas a límpida e prolixa imagem da realidade tecida nas lançadeiras dos
silogismos.43
Portanto, lembrando um pouco de mestre Borges,
orgulhamo-nos tão-somente de havermos lido ambos
os textos - epígrafe e relato - e num restrito espaço de
interferência e confluência ter-se dado deparar com
leituras cruzadas. Dai, a leitura desses textos deixar a
incômoda sensação de areia nos olhos, pois que ao
crítico, aqui, é vedado manter qualquer relação de subordinação quanto ao objeto literário; antes, deve adquirir seu mesmo nível e, portanto, seu mesmo grau de
39
MARIA, Luzia de. O que é conto. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.93.
NOVELLO, Nicolino. O Ato Criador de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Presença, 1987.
41
Cf. Gass, William H. “Em termos da biqueira do sapato: Ficção e as imagens da Vida”: “Numa metáfora significativa, nunca
se pode descer ao literal. (...) realizar, quando pudermos, a total e ardente participação do leitor naquilo que tem de ser uma
relação puramente conceitual, um envolvimento poético com a linguagem. ”In: A Ficção e as Imagens da Vida. São Paulo:
Cultrix, p.77.
42
PELLEGRINO, Hélio. “Perto do coração selvagem”, IN: Perto de Clarice. Homenagem a Clarice Lispector. 23 a 29/11/87. Casa de
Cultura Alvim.
43
ALAZRAKI, Jaime. En Busca del Unicornio: Los cuentos de Julio Cortázar. Madrid: Gredos, 1983, p.31.
40
26
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997.
ficcionalidade. Logo, a leitura exigida há que ser
transferencial: “às vezes se chama paixão - na qual o
sujeito se aniquila no objeto”44 . Com efeito, os textos
que ora comentamos parecem se auto-denunciar como
escritura silenciada, excluída dos sistemas e, num lugar intersticial entre o exílio e o desterro, se esquivam
das leituras oficiais. Da interação, epígrafe-relato/leitor, resulta “essa esquiva” que, para mencionar
Barthes, é a própria literatura.45
• • •
Girando devagar, como os raios de um holofote, a
epígrafe clariceana paira sobre o relato de “Anel de
Moebius”, projetando na mente do leitor miríades de
impressões. Assim como um holofote, ou espécie de
cubo, ou poliedros facetados, informe e sem aresta,
ela põe em espiral a mente do leitor, cada vez mais
projetada para uma região onde tudo é quedo e insondável, — onde pairam “névoas vagas e frescas como
as da madrugada”. Sua tênue brisa não é conduzida
pelo acaso, antes, como de uma estrela surgindo no
céu, ou de um Farol, vai se intrometendo pelos meandros do relato. E a essas luzes resvaladiças e a essas
lúdicas brisas que a epígrafe (holofote) sopra, não se
pode dizer-lhes (como Mrs. Ramsay ao Farol de To
the Lighthouse) que o que repousa ali no relato de “Anel
de Moebius” é imutável. Ao contrário, nele, elas podem tocar, podem destruir.
O trajeto que nos impusemos neste estudo, a saber,
cotejar a epígrafe de “Anel de Moebius” como metáfora catalizadora do relato, na tentativa de ampliar a
ida e a volta de um texto ao outro — devolvendo o
reflexo reptante de um anel de Moebius —, não nos
inibiu de retomar, unicamente, algumas obras de Clarice
e alguns textos críticos sobre a autora. A despeito da
escassez de bibliografia sobre a epígrafe, um artigo de
H. Verani foi fonte de leitura e estímulo46 .
Sobre a figura do anel de Moebius — a fita de
Moebius —, levantamos uma pesquisa heurísticoonomástica sobre sua origem e propriedades.
Deliberadamente, deixamos por último e para a nota o
seu valor significante.47
À guisa de conclusão, à maneira de uma “enguia”
ou de um anel de Moebius, resta acrescentar que diante de um texto como “Anel de Moebius”, como um
mundo que concilia anverso e reverso — num mundo
assim figurado —, só resta a escolha de um leitura
norteada pela imperspectiva, que esboroe não só nossas noções de espaço e tempo mas qualquer vetor ou
ponto axiomático.
Reservamos para o final deste trabalho, que, além
de ser um trabalho sobre leitura, é uma reflexão sobre
a epígrafe, a nossa epígrafe extraída do item “o efeitoleitor”, análise do conto “Orientação dos gatos” feita
pelo crítico francês Jean Andreau ao indagar “Quem
invadiu a ‘Casa tomada’ ”:
O texto não responde a estas questões e nem tem que
respondê-las, uma vez que elas não são colocadas. Criase uma espécie de vazio semântico que o leitor, em seu
élan, é tentado a preencher com sua própria imaginação
e segundo suas disponibilidades culturais. Mas, agindo
dessa maneira, o leitor dá uma resposta a uma questão
que a narrativa não coloca e anula o texto simplesmente
por querer satisfazer demais sua própria razão.48
44
ROSA, Nicolás. “Estos textos, estos restos”, In: Los fulgores del simulacro. Cuadernos de Extension Universitária. nº 15, Santa Fé:
1987, p.10.
45
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, trad. de Leyla Perrone-Moisés. p.31: “Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro
magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu chamo, quanto a mim:
literatura”.
46
VERANI, Hugo J. “Las mascaras de la nada: Apocalipsis, Dylan Thomas Y ‘El perseguidor’ de Julio Cortázar”, In: Narradores latino-americanos, 1929-1979, II Tomo, Caracas: Italgrafica, 1980. XIX Congresso Internacional de Literatura
Iberoamericana.
Cabe ressaltar que tendo realizado amplo levantamento de bibliografia sobre Julio Cortázar, nada encontramos sobre “Anel de
Moebius” enfocado na perspectiva que hora desenvolvemos.
47
MÖBIUS (August Ferdinand), 1790-1868. Matemático e astrônomo, ensinou toda a vida na Universidade de Leypzig. Publicou obras
de astronomia e geometria. Foi num memorando que apresentou à Academia das Ciências de Paris as propriedades das superfícies com
um só lado, tal como a fita que tem o seu nome: Fita de Möbius - superfície com um só lado; pode-se obter torcendo uma vez uma fita
de papel retangular e colando as extremidades topo a topo:
A
B’
B
A’
Trata-se de trabalho fundamental para o progresso da geometria projetiva. A faixa é uma figura tridimensional. Confiram-se:
FREITAS MOURÃO, Ronaldo Rogério de. Dicionário Enciclopédico de Astronomia e Astronáutica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/
CNPq, 1987.
GRANDE ENCICLOPÉDIA DELTA LAROUSSE. Rio de Janeiro: Editora Delta S.A., 1979, v.8.
LOUIS BOURSIN, Jean. Dicionário Elementar de Matemáticas Modernas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983.
48
ANDREAU, Jean. “Personage, lecteur auteur”. Distantiation et engagement cortazariens. L’Arc (80) , Paris, [s.n.t.] ( Revue trimestrielle
publié avec le concours du Centre National des Lettres).
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997.
27
Esse trabalho teve por finalidade a de tentar fazer uma
leitura crítica da construção textual, destacando o uso da
sintaxe. Deve-se ressaltar que, devido a riqueza das obras
em estudo e pela própria natureza deste trabalho, optou-se
por analisar alguns aspectos das obras em lugar de outros
não menos importantes.
Palavras-Chave:
Análise textual; leitura.
This work tries to make a critic reading of the textual
structure emphasizing the use of syntax. According to the
greatness of the studied works and by the nature of this
paper it was chosen to analyse some aspects of the works
in place of others no less important.
Key Words:
Textual analysis; reading.
* A idéia inicial desse
trabalho foi
desenvolvida
conjuntamente com
outras colegas da
disciplina Literatura
Infanto-Juvenil,
ministrada no II
semestre de 1993 no
curso de Letras do
CEUD/UFMS.
**Marileusa Ferreira
da Silva é professora do
Departamento de
Comunicação do Centro
Universitário de
Dourados/UFMS.
28
UMA LEITURA DE
"ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS"
E DE AS "AVENTURAS DE ALICE
ATRAVÉS DOS ESPELHOS
DE LEWIS CARROLL
*
Marileusa Ferreira da Silva**
I - Introdução
Este trabalho apresenta uma análise textual e psicanalítica das obras Alice no País das Maravilhas e
As Aventuras de Alice Através dos Espelhos.
Lewis Carrol é considerado um dos responsáveis pela nova visão da vida através da literatura do
absurdo, o nonsense. Diferente dos contos de
Perrault, Andersen, Grimm, observa-se ainda que o
maravilhoso se faz presente nas coisas do dia a dia.
Essa análise textual procurará destacar a questão do uso da sintaxe no texto. Será apresentado
também exemplos de leitura psicanalítica que podem ser aplicadas à obra.
II. Leitura das Obras
2.1 - UMA LEITURA DE ALICE NO
PAIS DAS MARAVILHAS
2.1.1 - ORIGEM DA OBRA
“Alice no País das Maravilhas” foi escrito na
segunda metade do séc. XIX, época em que o social era tema freqüente dos romances.
Alice é um livro que, mesmo enraizado em seu
tempo, anuncia a modernidade (contemporãneo,
romance não-linear: começo, meio e f im) .
O livro Alice no país das Maravilhas nasceu da
seguinte maneira:
“Numa tarde dourada de sol, o professor Lewis
Carroll convidou Alice Liddell e as irmãs para darem um passeio de barco no rio Tâmisa, Alice, alePapéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 28-33, jul./dez., 1997.
gre, pediu-lhe uma história. Carroll, que não sabia
dizer não à sua afilhada predileta, fez o que Alice
pedia e inventou logo ali uma história, cuja heroína
tinha o mesmo nome que o dela.
Para quem leu o livro ou assistiu ao filme,
pode-se dizer que tem partes divertidas, mas é
uma história sem pés nem cabeça. É a fantasia
que faz o encanto e a originalidade de Alice. A
fantasia é precisa, porque põe alegria no coração e imprevisão nos pensamentos. É também a
fantasia que permite imaginar uma lagarta fumando cachimbo, um grifo e uma tartaruga dançando a quadrilha das lagostas e um grande gato
desaparecendo e deixando apenas à mostra um
sorriso.
A própria menina inglesa para quem foi escrita a
história disse.- “- Quero que seja uma história sem
pés nem cabeça. Despropositada como um sonho!
“Há aventura mais bonita que um sonho?”
Quem lê o livro, chegando ao final, há de acordar como Alice, deslumbrada com tudo aquilo que
viu e viveu, ficando sabendo que o País das Maravilhas pertence a todos os meninas e àquelas pessoas que tal como os personagens, comuns e sem
complicações, utilizam o dom divino da imaginação.
2.1.2 - ANALISE TEXTUAL
Construção Lingüística Literária
Recursos Expressivos
1. Figuras fônicas:
a) Anáfora
Ex.: p. 92 - “Ora, o quê! Ela a Rainha!”
29
b) Aliteração - repetição das
mesmas sílabas no mesmo verso
ou nos versos seguidos.
Ex.: p. 62 - “... naquela direção, disse o gato... com a pata
direita.” p. 81 - “Os jogadores
jogavam...”
p. 86 - “Isto é o que eu queria
que...”
p. 119 - “Comece no começo...”
5. Repetição.
Ex.: p. 21 - “Rato, de um rato, para um rato, um
rato, ó rato!”
lhança com a coisa significada.
Uma figura: a história do rato
trazendo nela inscrito o rabo dos
protagonistas, gato-rato, e de
ação de perseguição que termina
na palavra Prato, em cujo interior é devorado o Rato.
A Professora da falsa tartaruga, a Torturuga, que já traz
inscrustada em seu nome a qualidade torturante.
Linguagem-coisa - p. 11 e 17:
“Palavra, som e imagem constroem, simultaneamente, uma mensagem icônica que se faz por inclusão e síntese,
sugerindo sentidos apenas possíveis. É a informação lançada no horizonte da arte feito de “um retalho de impalpável, outro de improvável, cosidos
todos com a agulha da imaginação”(Machado de
Assis).
P. 17: “Figura passa a designar, agora, um tipo
de construção icônica, seja ela visual, sonora, ou
verbal, estruturada com base em alguma semelhança que une a forma qualitativa do signo àquela do
objeto que representa. Figuras que, mais do que representam, desejam, representar os objetos pertencentes à realidades de outra ordem: aquelas das
formas possíveis, cuja existência se deve ao fato
de poderem ser imagináveis, independentes da conformação da experiência e da razão.”
“Alice, o Grifo, o Rei e a Rainha de Copas. Figuras apenas. Não há modo de vê-los como réplicas do ser humano. Não há como provar sua existência no contexto extratextual. Simples formas de
pensamento feitas da analogia palavra-som-imagem.
Seres de papel que habitam o imaginário do livro
e se transformam em lances vivos para outras formas de pensamento no instante mágico da leitura.
De Alice, não se tem a definição de uma representação visual, mas, ao contrário, a baixa definição de uma figura, que é, ao mesmo tempo, bruxa,
fada, serpente, anã e monstro. Tudo isso e nada disso. Alice é um poder ser. Sonho dentro de um sonho. Formas de metamorfose tal qual um diagrama
de uma cadeia de pensamentos, na qual ela própria
se vê inscrita como signo.
“Quando eu lia contos de fadas, pensava que
essas coisas jamais aconteciam, e cá estou eu metida numa dessas estórias! Deve haver um livro escrito sobre mim, deve haver! E quando eu crescer,
escreverei um... mas eu já cresci” - e acrescentou,
cheia de tristeza: “pelo menos aqui não existe mais
espaço para crescer”.
6. Iconização - modelização do signíficante em significado.
ícone - signo que mantém uma relação de seme-
7. Estranhamento - referente percebido de certa
maneira pelo autor.
Ex.: “Exmo. Sr. Pé Direito de Alice”.
c) Consonância - uniformidade
de sons na terminação das palavras ou das frases.
Exs.: p. 51 - “... mas achava que não adiantava...”
p. 54 - “... outro criado também uniformizado...”
d) Onomatopéia - reproduz aproximadamente certos sons ou ruídos.
Exs.: p. 59 - “ ... Uai! Uai! Uai!”
p. 60 - “ ... Buá, buá, buá.”
p. 92 - “Grifo Hjckreh!”
Expressividade Morfológica
1. Diminutivo - transmite afetividade.
Exs.: p. 24 - “ ... um louro, uma aguiazinha...”
p. 42 - “...um cachorrinho a espiava...”
p. 124 - “ ... umas folhinhas secas que tinham...”
2. Neologismo- palavra tomada com sentido novo.
EX.: “A tartaruga falsa, olha para Alice com desprezo - como você é burrinha!”
0 nonsense como se depreende deste exemplo é
a palavra que diz seu próprio sentido. Tortura +
Tartaruga é = Torturuga.
Embora a palavra Torturuga não possua qualquer sentido particular, ela não é a ausência deste. Pelo contrário, ela é a abundância dele porque doa e soma o sentido. No caso, de “Tartaruga que tor tur a”, numa gr ande economia
vocabular (Torturuga).
3. Paranomásia - emprego de palavras semelhantes no som.
Exs.: “torturuga” “brilha, esbrilha”
4. Substantivação da onomatopéia.
Ex.: p. 117 - “Se alguns dos jurados é capaz de
explicar esse blábláblá, eu lhe dou um doce.”
30
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 28-33, jul./dez., 1997.
Pode se dizer que, a partir
da entrada do coelho Branco
em cena, tu do é estr anhamento.
8. Materializacão de elementos abstratos em objetos
concretos - explora a peculiar idade do mundo infantil
(que consiste em indissociar
o real e o imaginário), donde
decorre a facilidade em transformar objetos, animais, sentimentos, fenômenos da natureza e os próprios pensamentos infantis, à imagem e semelhança de seres humanos.
Ex.: Cartas de baralho, coelho, gato, lebre, rato.
Expressividade da sintaxe do discurso poético
1. Repetições enfáticas (enguiço de pensamento)
Ex.: p. 20 - “E agora? As coisas estão piores do
que nunca - Pensou a pobre menina - Nunca
estive tão pequena assim antes.
Nunca!
2. Hipérbole - é o exagero na afirmação.
Exs.: p. 17 “ ... derramando baldes de lágrimas.”
p. 58 “... um sorriso que ia de uma orelha a
outra.”
3. Apresentação de um super código pictórico.
Ex.: p. 9 A OS
p. 31 “0 coelho em PUR”
p. 105
2.1.3 - UM EXEMPLO DE LEITURA
PSICANALITICA APLICADA.
Basearemos essa análise no momento histórico,
onde o Rei era apenas uma figura simbólica. Analisaremos o instante em que Alice estava no julgamento das Tortas.
A Rainha - Apresenta-nos uma pessoa cheia de
futilidades e seguida pelos súditos.
Exs.: tít. do cap. 11 - Porque as tortas tinham
sumido ela convocou um julgamento.
p. 111 - No meio dos depoimentos, ela pede uma
lista de cantores.
Parecem que estes dois assuntos estão fora de
questão no livro, entretanto lembremos que o
nonsense, onde o absurdo aparentemente é despropositado, nos mostra nestas cenas como a Rainha
não se preocupa com assuntos sérios.
Ela tem o controle total do País das Maravilhas,
seus súditos temem contrariá-la, mesmo ela sendo
uma ditadora.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 28-33, jul./dez., 1997.
Ex.: p. 110 “Aqui a Rainha olha
para o Chapeleiro.”
Nessa cena o Chapeleiro fica com
medo da Rainha mandar cortar sua
cabeça.
0 Rei - Aparentemente ele dá uma
idéia de autoridade, que é ele quem
comanda o r einado. Expr essões
como:
Exs.: p. 108 - “Dêem a sentença.”
p. 110 - “Preste o seu depoimento
disse o Rei e não fique nervoso se
não mando matá-lo imediatamente.”
Porém mais adiante na narrativa
sua verdadeira personalidade é revelada. Quando o
Coelho Branco o corrige:
Ex.: p. 117 - “Desinteressante é o que Vossa Majestade quer dizer, naturalmente, disse em tom
muito respeitoso, mas (aqui a quebra da expectativa de que acontecerá algo que contradizerá o
anterior), carrancudo e fazendo caretas.”
O que percebemos é que o Coelho Branco não
tem um respeito verdadeiro para com a Rei e, sim
uma imagem de que o monarca é um incompetente.
O que é repartido pelos demais e pelo próprio autor.
Ex.: “Houve uma salva de palmas no salão. Era
a primeira coisa realmente inteligente que o Rei
dizia nesse dia.”
Alice - Continua suas aventuras relacionando o
seu conhecimento de mundo anterior com este
novo. A procura de si mesma, procurando o absurdo para alguns, mas para ela, coisas comuns e
exploráveis.
Outros personagens - Porcos-da-India: representando a ignorância e a cegueira do povo, eles
não podiam se manifestar de nenhuma forma, pois
eram logo colocados em um saco e os guardas
sentavam sobre eles. Coelho: o subconsciente;
Alice durante suas aventuras corria sempre atrás
dele.
2.2 UMA LEITURA DE “AS AVENTURAS
DE ALICE ATRAVÉS DOS ESPELHOS”
2.2.1 - ORIGEM DA OBRA
Essa obra faz parte continuação de “Alice no
país das Maravilhas.
Alice no Pais das Maravilhas e Alice Através
do Espelho for mam obr as singu lar es que,
construídas com elementos da realidade, são muito
mais ricas que qualquer história de fadas. Nestes
livros, descobre-se o maravilhoso nas coisas cotidianas e em nós. Tudo quanto possuímos de poético e
de absurdo se apresentam nesses livros. Ao descer
31
pela toca do coelho, Alice passa
a habitar - como quando atravessa o espelho - um país diferente e
conhecido.
Em Alice Através do Espelho,
o espelho simboliza o elemento
chave da problemática do inconsciente. Na narrativa, Alice vai ao
encontro de seu inconsciente mergulhando no fundo do espelho para
viver o mundo de suas fantasias,
escapando do controle que se impõe por obediência ao adulto,
onde em vários trechos pode-se
perceber nitidamente a critica ao
mundo adulto que corrompe e domestica a criança.
Ex.: - “Você nunca foi castigada?
- Sim - respondeu Alice mas só quando eu tive
culpa”.
“Who are you?” Com essa pergunta, Lewis
Carroll soube ir ao fundo do inconsciente do seus
leitores - crianças e adultos - os “pequenos”
encontrão ironia nessa dúvida sobre a personalidade mas os grandes saberão o seu íntimo significado sobre ela.
Ex.: “Quem é você?
Eu - eu mal sei, senhor, neste momento - ao menos
sei quem eu era quando acordei esta manhã, mas
acho que devo ter mudado muitas vezes desde então.” (em Alice no País das Maravilhas).
A obra de Carroll é completamente surrealista,
já que explora o inconsciente, mas em certas passagens o surreal é bem claro aos nossos olhos,
como no aparecimento o desaparecimento do gato.
Outras passagens também envolvem problemas de
lógica, como na conver sa de Alice com o
Chapeleiro.
A poesia, os jogos de palavras, os trocadilhos
estão derramados em todas as páginas de suas
obras. Lewis joga livre com o pensamento de seus
per sonagens e as r imas atr aves sam a obr a
iluminando-a.
2.2.2 - ANALISE TEXTUAL
Perfil Estético - Estilístico
A obr a poética do mestr e do nonsense
apresenta-se com profundas mensagens e representa a mais notável representação lúdica da linguagem e do pensamento, portanto, o estudo estilístico
da obr a levara à for mulação deste univer so
ficcional.
1. Iconização: modelização do significante em significado.
Ex.: p. 21 - “Jaguadarte”.
2. Estranhamento: rompimento da lógica.
32
Ex.: p. 41 - “Um bode, sentado
ao lado do Cavalheiro de Branco,
fechou os olhos e disse em voz
alta...”
3. Singularização: modo de apreensão da realidade.
Ex.: p. 45 “Os insetos lá não me
dão prazer, na verdade explicou
Alice - porque tenho medo deles,
pelo menos dos maiores.”
4. Materialização: explora a
peculiaridade do mundo infantil,
que consiste em indissociar o real
e o imaginário; donde decorre a
facilidade em transformar objetos, animais, sentimentos, fenômenos da natureza e os próprios pensamentos infantis à imaginação e semelhança de
seres humanos.
Exs.: p. 16 - “As peças de Xadrez”.
“Ela se abaixou de quatro para observar melhor.
As figurinhas de xadrez estavam andando na sala,
duas à duas.”
Em “Alice Através do Espelho”, a linguagem revela o emprego de figuras fônicas tais como:
a. Anáfora - Ex.: p. 76 - “E ela mesma tentou
endireitar o broche. Mas era tarde: o alfinete tinha saltado e picado o dedo da Rainha.”
b. Aliteracão - Ex.: p. 21 - “Garra que agarra
bocarra que urra.”
c.Consonância - Ex.: p. 22 - “Era Briluz as
lesmolisas touvas. Roldavam e r elviam os
gramilvos. Estavam mimsicais as pintalourvas.
E os momirratos davam grilvos.”
d. Onomatopéia - Ex.:.p. 65 - “Puff”.
Em “Através dos Espelhos”, a linguagem adquire também um colorido todo especial, devido aos
diminutivos, que transmitem afetividade, e aos neologismos, que por sua vez, tomam palavras com sentido novo
- Diminutivo - Exs.: p. 67 - “Um pouquinho”
p. 82 - “Um caranquejinho”
- Neologismos -Exs.: p. 66 - “Irmão furibundo”
p. 21 - “Era Briluz as lesmolisas touvas.”
Na obra há também a presença de um super código pictórico que denota a expressividade da sintaxe e revela o próprio objeto da temática, o espelho.
Ex.: p. 21 - “JAGUADARTE” (refletido no espelho).
2.2.3 - UM EXEMPLO DE LEITURA
PSICANALITICA APLICADA
O livro de Carroll sobre o ponto de vista psicológica e repleto de possibilidades, mas neste trabalho
a anàlise será somente do capítulo que inicia a obra.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 28-33, jul./dez., 1997.
A estória resume as aventuras de Alice desde que ela sonha
atravessar o espelho da sala de
sua casa. 0 sonho representa a
fuga da nossa realidade - lado
obscuro e incerto dos acontecimentos; o espelho, por sua vez,
refere-se à função refletora do
pensamento, s imbolizando o
autoconhecimento e a consciência, como também a verdade e a
clareza, portanto, pode-se dizer
que Alice vai ao encontro de seu
inconsciente, mergulhando no fundo do espelho para desvendar a desconhecido. Para
adentrar à casa do espelho a menina utiliza a lareira - símbolo da família - deixando toda a proteção
do seu ambiente conhecido para ir em busca do misterioso, do obscuro, em busca da “casa do espelho.”
Na “casa do espelho”, o primeiro gesto que Alice fez foi o de olhar se havia fogo na lareira, e ficou muito contente em saber que havia “fogo de
verdade.” 0 poder de destruição do fogo é interpretado geralmente como meio para o renascimento
em uma esfera mais elevada e, por uma relação
analógica, pode-se dizer que a menina Alice cresceu interiormente, se libertando do mundo adulto,
como pode-se observar claramente neste trecho:
Ex.: p. 16 - “Assim ficarei tão quentinha aqui
como na minha antiga sala, pensou Alice, e na verdade até mais aquecida, porque não vai haver ninguém para ralhar comigo e me tirar de junto do fogo.
Ai, que engraçado, quando me virem aqui do outro
lado e não conseguirem me pegar.”
Na sala da “casa do espelho” Alice observa várias peças de xadrez andando na sala “duas à duas”.
Na narrativa o nümero dois é constante e simboliza
o equilíbrio na visão de mundo dualista: bem/mal;
vida/morte; dia./noite, etc. 0 mundo adulto imposto no mundo infantil.
O jogo de xadrez, que também
se relaciona com o mundo, dualista
aparece na estória como o campo
que Alice deve atravessar para se
encontrar interiormente. As personagens, as próprias peças do
xadrez, simbolizam as oposições
internas e a evolução do “Eu.”
A interpretação para “Alice
Através dos Espelhos”: casa do
espelho, aqui apresentada, é apenas uma das possíveis leituras que podemos fazer.
Vários temas aparecem na estória, e é esta riqueza
de idéias, esta variedade de significados profundos
que tornam o livro de Lewis Carroll uma obra de
arte.
III. Conclusão
Constatamos que as obras de Lewis Carroll,
“Alice no País das Maravilhas” e “As Aventuras
de Alice Através do Espelho”, são obras que rompem com a sintaxe linear - inicio, meio e fim fazendo com que a atenção do leitor seja redobrada. Percebemos, portanto, que Lewis Carroll
é um autor inovador. Suas obras são de cunho
imaginário, totalmente icônicas e com a predominância do nonsense, levando cada leitor a uma
diferente interpretação das obras.
O elemento fantástico e maravilhoso, apresentado nas obras de Lewis Carroll, desperta nos seus
receptores o prazer pela leitura, pela criatividade, e
oferece ainda muitos outros subsídios a serem explorados e aprofundados por todos aqueles que pretendem desenvolver um trabalho no campo de Literatura Infanto-Juvenil.
IV. Referências Bibliográficas
CARROLL, Lewis Aventuras de Alice Através dos Espelhos. SAo Paulo integral Tradução cedida pelo Círculo do Livro por
cortesia de Sebastião Uchoa Leite.
CARROLL, Lewis Alice no Pais das Maravilhas. São Paulo: -Brasil S/A, Produção de Oliveira Ribeiro Netto.
COELHO, Nelly Novaes. Panorama Histórico da Literatura Infantil Juvenil. São Paulo: Atica, 4ª ed., 1991.
KHÉDE, Sônia Salomão. Personagens da Literatura Infanto-Juvenil. São Paulo: Atica, 2. ed. 1990.
MEIRELES, Cecília. Problemas da Literatura Infanto. Brasília: Summus, 3. ed. 1979.
NARDES, Laura Battisti. Literatura Infanto-Juvenil: a estética literária em Lígia Bojunga Nunes/Tese. Brasília: Universo,
1988.
ROSEMBERG, Flávia. Literatura Infantil e Ideologia. São Paulo: Global, 1985.
PASCHOAL, Erlon José (Tradução) Dicionário de Símbolos. Herder Lexikon. São Paulo: Cultrix, 1990.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 28-33, jul./dez., 1997.
33
Acho que inventei tudo, nada disso existiu!
Mas se inventei o que ontem me
aconteceu – quem me garante
que também não inventei
toda a minha vida
anterior a ontem?
Clarice Lispector
Com base na figura do autor, este artigo discute o
processo de criação praticado por Clarice Lispector.
Palavras-chave:
autoria textual, produção
According to the author’s illustrations, this article
discusses the creation process pratised by Clarice Lispector.
Key-words:
textual authorship, production
* Edgar Cézar Nolasco
é mestre em Teoria da
Literatura pela UFMG
34
CLARICE LISPECTOR
A ASSINATURA E A GRAFIA
DA ESCRITURA
Edgar Cézar Nolasco*
Passados vinte anos (1977-1997) da morte de Clarice,
muita tinta ainda corre no papel a despeito de sua produção, e, conseqüentemente, sobre a própria escritora, uma
vez que ela, ao escrever, também se escrevia nas entrelinhas da escritura, deixando na grafia não só as pegadas
de tal prática, como também daquele que a praticou.
Desse modo, ao estudarmos aqui o processo de criação
operacionalizado por Clarice, um corpo, paralelo ao corpo escritural, se levanta e se apresenta no cenário do
texto: um corpo, bem entendido, aquém e além do real,
porque advindo completamente do ficcional, mas que, por
“uma lembrança circular”, me faz lembrar da imagemcorpo do escritor ali interposto que trago comigo enquanto sujeito-leitor de sua obra.
Pela constatação de que o que sobra ao leitor e ao
crítico é tão-somente um “fictício de identidade” autoral,
e o fato de que Clarice Lispector fez de sua vida matéria
para sua ficção, acrescentamos, agora, que a autora fez
da busca pela/na linguagem a inscrição e a procura de
sua própria identidade de escritor.1
Para melhor abordarmos e exemplificarmos o que aqui
queremos tratar, vamos nos valer das obras A Hora da
Estrela e Um Sopro de Vida, por entendermos que mesmo não sendo elas romances, mas o “puramente romanesco”, tratam do factício e do fictício de toda identidade,
quer esta seja de uma obra ou de um sujeito. Nesse es-
paço romanesco, onde o escritor escreve sem nunca escrever,2 ocorre a circulação incessante de seus desejos
e a inscrição de seu prazer que, como a escritura, é insustentável, impossível, circulando infinitamente nessa
maquinaria de linguagem desejante chamada escritura.
De acordo com Michel Schneider, diríamos que as
escrituras, tanto a de A Hora da Estrela quanto a de Um
Sopro de Vida, trabalham, num certo ponto de sua construção, o encontro de seu autor ficcional (?) com seu
leitor, na medida em que um interroga sobre o outro, como
se um sempre pudesse dizer a identidade do outro. Nesse sentido, a prática escritural dessas obras encontra-se
aberta, demandando uma participação ativa do leitor para
sua construção inacabada.
A assinatura (ou nome próprio) Clarice Lispector aparece como um dos 14 subtítulos que abrem o registro
chamado de A Hora da Estrela.3 Diferentemente dos
demais subtítulos, esse não aparece escrito no corpo da
escritura, mas, como essa, é totalmente explícito desde
sua origem, remetendo o leitor para um autor sem máscara: traços de um corpo já-escrito e já-lido em outras
escrituras clariceanas vêm se dizer ali, nessa última, querendo dizer ao leitor que essas escrituras nada mais são
que seus “papéis de identidade”. A cada nova escritura,
a cada novo registro, ele se inscreve — deixa sua assinatura no corpo escritural — tornando-se mais próximo de
1
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.9.
A respeito do texto que se escreve, Barthes afirma: “O escriptível é o romanesco sem o romance, a poesia sem o poema, o ensaio sem
a dissertação, a escritura sem o estilo, a produção sem o produto, a estruturação sem a estrutura.” BARTHES. S/Z, p.11.
3
Benedito Nunes fala em “treze títulos diferentes”; ao que acrescentaríamos mais um, o próprio nome da autora – Clarice Lispector – que
ali aparece assinado e ninguém o poderá retirar; o que, por sua vez, tal qual o nome A hora da estrela, pode ser lido como um dos sub/
títulos concorrentes para o livro. Cf. NUNES. O drama da linguagem, p.164.
2
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 34-39, jul./dez., 1997.
35
sua identidade. Atestar a identidade de escritor não é
mais se perguntar “quem sou eu?”4 mas, pelo contrário,
saber que se escreve com o próprio corpo e saber por
que se escreve: “Antes de tudo porque captei o espírito
da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo.
Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por
motivo geral de ‘força maior’, como se diz nos requerimentos oficiais, por ‘força de lei’.”5
É através dessa “força maior” que o escritor escreve
o que escreve, mesmo sabendo que não sabe o que vai
escrever, e se inscreve, às vezes se transfigurando em
outrem e materializando-se enfim em objeto escritural,
como é o caso do registro inacabado de A Hora da Estrela. Aplicando o exemplo ao livro Um Sopro de Vida,
Ângela, a personagem-autora criada pelo Autor, é a
materialidade ficcional do escritor.
Mas voltando ao “registro que em breve vai ter que
começar,6 e nunca começa, porque o escritor não quer
escrever nada senão seu próprio desejo de escrever,
que cessa no intransitivo da escritura, diríamos que nada
resta ao escritor (ou ao Autor do registro de A Hora da
Estrela) senão copiar a si mesmo, uma vez que o que
vai escrever já está de certa forma escrito em si, no seu
corpo. Esse escritor, essencialmente moderno, acaba
escrevendo sobre a própria literatura,7 o que denuncia,
por sua vez, que ele sofre de uma certa ansiedade, não
ansiedade da influência, mas, antes, de uma “falta” de
assunto (história) e de tema (ele tornou-se seu próprio
tema), tendo a linguagem nela mesma e o “ato de escrever” como sua busca. Como observa o Autor do
registro, “a palavra é fruto da palavra. A palavra tem
que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo. E a palavra não pode ser
enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela.”8
O que leva o escritor a escrever não é só por se achar
“desesperado” e estar “cansado”, por não suportar mais
a si mesmo e nem “a sempre novidade que é escrever”
mas, pelo contrário, o que parece mover essa prática
inacabada — pegar o “ato de escrever” nele mesmo se
escrevendo — é, mais do que o desejo que move qualquer escritor, uma certa solidão que advém de quem
tem a palavra como isca, uma solidão inerente e necessária a quem escreve. Tomando de empréstimo o que
disse Lacan a respeito da escritura de Duras, reafirmaríamos que um escritor não deve saber que escreve,
nem o que escreve, porque, caso ele viesse a saber, se
perderia, o que seria uma catástrofe, sobretudo para o
leitor. É esse abandono, essa solidão, que devolve o escritor ao seu lugar, produzindo a escritura. Nessa produção, estrutura-se um silêncio escritural, aquilo que não
é um “estilo”, mas que diferencia a prática de escrever
de um escritor, deixando reconhecer-se enquanto tal na
escritura, sendo esse reconhecimento como se fosse
sua verdade, sua assinatura definitiva.
Não é por acaso que o Autor do registro de A Hora
da Estrela afirma que escreve com o corpo.9 Duras, no
seu Escrever, também afirma: “Não se pode escrever
sem a força do corpo. É preciso ser mais forte do que si
mesmo para abordar a escrita.”10 Escrever com o corpo, sobretudo para Clarice, é não mais escrever, é nãofalar, é se recolher em sua própria solidão e no silêncio
escritural porque, ao escrever, não é mais o escritor que
escreve, é a própria escritura “que avança para o seu
destino e do seu autor”, escrevendo o seu escritor à sua
revelia, grafando no seu corpo as grafias do corpo dele,
enfim, declarando que a escritura é sempre, no final, “uniforme” e “ajuizada”. Por esse motivo, talvez possamos
dizer, ainda seguindo Duras, que escrita a escritura —
qualquer escritura —, jamais podemos afirmar quem a
escreveu, nem o que escreveu, nem em que estado “pessoal” a praticou, a não ser pela via do próprio ficcional,
atestando com isso, mais uma vez, que “o escritor se
produz no texto”.11
Esse autor que advém de sua escritura, essa “outra
pessoa que aparece e avança”, sabe que o ato de escrever é o desconhecido e que, antes de praticá-lo, nunca se sabe o que se vai escrever, o que independe de
sua “total lucidez”. Autor verdadeiro, porque mesmo
ao reconhecer-se enquanto tal na escritura, aceita e
mantém o “incontornável” na escritura para que essa
permaneça uma escritura verdadeira. Tal escritor, “que
nunca assina senão por procuração”,12 tem consciência de que
Escrever não é sequer uma reflexão, é um tipo de faculdade
que se possui ao lado da personalidade, paralela a ela, uma
outra pessoa que aparece e avança, invisível, dotada de
4
”Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar ‘quem sou eu’,
cairia estatelada e em cheio no chão. É que ‘quem sou eu’? provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é
incompleto.” LISPECTOR. A hora da estrela, p.21-22.
5
Ibidem. p.24.
6
LISPECTOR. A hora da estrela, p.30.
7
Ver SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.75.
8
LISPECTOR. A hora da estrela, p.26.
9
LISPECTOR. A hora da estrela, p.22.
10
DURAS. Escrever, p.23.
11
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.63.
12
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.135.
36
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 34-39, jul./dez., 1997.
pensamento, cólera, e que por vezes acaba colocando a si
mesma em risco de perder a vida.13
Como nos alerta o Autor de a “Dedicatória do Autor
(Na verdade Clarice Lispector)”, o livro A Hora da Estrela “trata-se de livro inacabado porque lhe falta a resposta”.14 Essa citação concorre para o projeto que move
qualquer escritor: escrever. Afinal, qualquer escritor,
mesmo não sabendo o que e sobre o que vai escrever, a
princípio tem um projeto. Nesse sentido, todo livro, falhado ou não, é a escrituração de um projeto. A escritura é
a pergunta mesma feita a sua arquitetura: “Escrever significa tentar saber aquilo que se escreveria se fôssemos
escrever — só se pode saber depois — antes, é a pergunta mais perigosa que se pode fazer.”15 É assim, desse modo, que Macabéa vive sem saber que vive, que seu
Autor escreve sua história falhada, mesmo sabendo que
a morte é sua “personagem principal”, enfim, é com base
nessa “não-sabença” que se move e se constrói qualquer produção escritural.
Semelhante ao livro A Hora da Estrela, porém mais
desconstruído, o livro Um Sopro de Vida assinala o próprio projeto de criação literária. Nele, seu autor, que assume o papel de escritor e inventa a personagem Ângela
Pralini para com ele dialogar e se fazer existir, é uma
personagem do projeto escritural para o leitor. Entretanto, além de desempenhar o papel de autor de sua personagem, bem como de sua escritura, desempenha também o papel de leitor de si mesmo: lê seu projeto escritural
no momento de sua arquitetura e relê, o mesmo projeto,
numa leitura posterior que acaba mudando sensivelmente o projeto inicial. Esse descentramento temporal de leitura só vem reforçar o aspecto fragmentário e descontínuo
do livro, porque trabalha para uma não linearidade no
trabalho operado pelo leitor.
Talvez em nenhum outro livro de Clarice o tema da
criação tenha aparecido de forma tão contundente. Se
tomarmos o livro A Hora da Estrela, só para exemplificar
o que aqui estamos querendo dizer, nele subscreve-se a
história da criação, mas há a história explícita de Macabéa,
atestando, em certo sentido, a volta clariceana à narrativa. Em Um Sopro de Vida, ao contrário, sua história, se
há alguma, se volta para o próprio escrever,16 porque é
nesse “ato” que Clarice, enquanto escritora, atinge o aqui
e agora mesmo da escrita, isto é, o momento mesmo da
enunciação onde a escritura se diz. Para Clarice, só existe esse tempo único e indivisível, longe de qualquer sentido ou verdade instituídos, confirmando que a autora trabalha com uma linguagem que ainda está por ser inventada, mesmo quando as palavras têm um certo tom
repetitivo como é o caso de Um Sopro de Vida.
O “Livro de Ângela” é uma réplica perfeita do livro
do Autor 17 na medida em que ambos tematizam e
problematizam o próprio escrever, o desejo comum a todo
escritor, o que nos reporta imediatamente ao desejo de
busca de criação da escritora Clarice Lispector, que se
presentifica em todos os seus livros, mas de modo especial neste Um Sopro de Vida. Esse livro, mais do que
uma “cilada escritural”, e suposta origem dessa mesma
escritura, é o lugar onde autores e personagens se dispersam, um ocupando o lugar do outro sem cerimônia,
onde a linha tênue entre real e ficção deixa de existir,
demandando do leitor uma certa desconfiança, uma vez
que a noção de autoria foi para sempre abalada nesse
campo minado chamado texto.
A escritura do Autor ficcional concorre com o quadro
que a sua personagem Ângela Pralini pinta chamado de
“Sem sentido”: enquanto o quadro se compõe de “coisas
soltas — objetos e seres que não se dizem respeito, como
borboleta e máquina de costura”, a escritura, muito semelhante, se constrói a partir de “destroços de livros”,
isto é, por fragmentos: “Esses fragmentos de livro querem dizer que eu trabalho em ruínas.”18 Além dessas
semelhanças escriturais, pode-se dizer ainda que ambos
os livros, tanto o do Autor quanto o de sua personagem
Ângela, se constroem por anotações: ora o Autor anota
uma nota, ora sua personagem anota outra, o que autentica a fragmentação escritural do livro, reforçando uma
marca constante da prática de construção escritural de
Clarice Lispector.19 Na verdade, essas anotações que
constituem o livro Um Sopro de Vida representam muitas vozes, ora do Autor, ora da personagem-autora Ângela
Pralini e, ora, da autora-personagem Clarice, o que concorre para o fato de que o livro foi escrito, por assim
dizer, a quatro mãos, uma vez que coube a Olga Borelli a
13
DURAS. Escrever, p.48. (Grifo nosso)
LISPECTOR. A hora da estrela, p.8
15
DURAS. Escrever, p.48.
16
”O que escrevo agora não é para ninguém: é diretamente para o próprio escrever, esse escrever consome o escrever.” LISPECTOR. Um
sopro de vida, p.77.
17
”Como começo?
Estou tão assustado que o jeito de entrar nesta escritura tem que ser de repente, sem aviso prévio.” LISPECTOR. Um sopro de vida,
p.24. Ângela, à página 100, diz: “Nem sei como começar.”
18
LISPECTOR. Um sopro de vida, p.19.
19
”Tudo se passa exatamente na hora em que está sendo escrito ou lido. Este trecho aqui foi na verdade escrito em relação à sua forma
básica depois de ter relido o livro porque no decorrer dele eu não tinha bem clara a noção do caminho a tomar. No entanto, sem dar
maiores razões lógicas, eu me aferrava exatamente em manter o aspecto fragmentário tanto em Ângela quanto em mim.” LISPECTOR.
Um sopro de vida, p.19.
14
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 34-39, jul./dez., 1997.
37
organização dos manuscritos, conforme ela mesma diz
na apresentação, o que repercute não só no estudo de
sua construção, como também, num sentido muito peculiar, desvia a leitura efetuada, reforçando com isso o
descentramento de qualquer noção de origem bem como
de qualquer suposta autoria.
Nesse livro de “não-memórias” a origem não existe
pelo fato mesmo de que seu Autor-leitor o lê no momento
mesmo do “ato de escrever” e relê, a posteriori, cortando
de ambos os livros o “supérfluo” como ele mesmo diz. É
essa leitura a posteriori, por parte de seu autor-leitor, do
“já-escrito”, em que o autor tem medo de copiar a si e sua
personagem, que contribui para a construção fragmentária e desconexa da escritura do livro Um Sopro de Vida.
Entretanto, segundo seu próprio Autor, mesmo sendo tudo
“fragmentário e dissonante e desconexo”, há em tudo uma
“ordem submersa”, uma verdade escritural. A preocupação do Autor-leitor com relação à imitação do outro, e
com o plágio, remete o leitor a uma problemática nodal
encontrada no livro, que é a questão da autoria. Sua escritora Clarice Lispector aparece e desaparece por trás das
máscaras de seus supostos autores, confundindo e dispersando os papéis autorais e apagando, de uma vez por toda,
a distância entre realidade e ficção.
Aquele “eu enviesado” encontrado na “dedicatória
do autor” de A Hora da Estrela soma-se agora ao sujeito enviesado20 apresentado por Clarice em Um Sopro
de Vida. Nesse livro, diferentemente daquele, podemos
elencar passagens escriturais que atestam a dispersão
autoral, afirmando que o escritor (Clarice Lispector) desenvolve seu projeto escritural através de “hieróglifos”
seus, e que, por isso mesmo, não lhe possibilitam “as verdadeiras palavras”, deixando-o preso no ato de escrever
e no “vórtice que é se pôr em estado de criação”. Assim,
dessa falta de estilo,21 o escritor enredado e perdido encontra-se consigo e com seu projeto escritural inacabado.
Esse escritor enviesado, que para escrever Um Sopro
de Vida abdica de toda sua obra e começa “humildemente”, se expõe “a um novo tipo de ficção” que não
sabe ainda como manejar, só reconhecendo de seu trabalho sua caligrafia. Tal escritor, que é ao mesmo tempo
Clarice Lispector, ludibriando mais uma vez o leitor quanto
à troca de papéis autorais, se pergunta: “E eu? será que
não serei meu próprio personagem? Será que eu me invento? Só sei de mim que sou o produto de um pai e de
uma mãe. É tudo que sei sobre a criação e a vida.”22
É com base nesse jogo intercambiável entre criação
e vida, Autor e autor, que passaremos a destacar algumas passagens escriturais — mesmo tendo a escritura
de Um Sopro de Vida como o exemplo maior — que
certificam o jogo consciente operacionalizado pelo escritor na construção de sua escritura. Mesmo reafirmando
que a escritura do livro como um todo simboliza a preocupação da própria escritora Clarice, encontramos, em
meio às anotações e fragmentos que compõem a escritura inacabada, grafias que nos remetem para a
“pessoalidade” da escritora, delatando que traços de sua
vida estravasaram para sua ficção, à revelia da própria
autora. Devemos ressaltar ainda que o livro Um Sopro
de Vida tem como “tema” a própria criação do monumento literário, além de ser o lugar no qual Autor e personagem participam do desejo comum de “escrever um
livro”. A personagem Ângela, falando de seu cachorro
Ulisses, relata: “Fui fazer um carinho nele, ele rosnou. E
cometi o erro de insistir. Ele deu um pulo que veio das
profundezas selvagens de lobo e mordeu-me a boca.
Assustei-me, tive que ir ao Pronto-socorro onde deramme dezesseis pontos.”23 Essa citação, não menos ficcional
que o resto do livro, remete o leitor, imediatamente, para
o fato ocorrido com a escritora Clarice Lispector que, na
verdade, tinha um cachorro que atendia pelo nome de
Ulisses.24
Outra passagem que podemos destacar, não só como
exemplo de trocas autorais de papéis, mas como prova
explícita de que o leitor não deve confiar no que o autor
diz, lendo-o com uma certa desconfiança, é nos dada mais
uma vez pela personagem Ângela: “Objeto — a coisa —
sempre me fascinou e de algum modo me destruiu. No
meu livro A Cidade Sitiada eu falo indiretamente no
mistério da coisa. (...) Há anos também descrevi um guarda-roupa. Depois veio a descrição de um imemorável
relógio chamado Sveglia: relógio eletrônico que me assombrou e assombraria qualquer pessoa viva no mundo.
Depois veio a vez do telefone. No ‘Ovo e a galinha’ falo
no guindaste.”25 Tal citação, além de fazer alusão direta
a outro texto da autora, nos permite postular ainda a respeito daquele cuidado excessivo do Autor da personagem Ângela quanto à imitação e ao plágio do livro de
ambos, o que nos remete agora para a preocupação da
própria escritora Clarice que se pegava, no decorrer de
sua prática, imitando e plagiando a si mesma, disfarçadamente.26 Não é por acaso que o processo de re-
20
”Eu sou um abismo de mim. Mas sempre serei enviesado.” LISPECTOR. Um sopro de vida, p.76.
”Eu perdi o meu estilo: o que considero um lucro: quanto menos estilo se tiver, mais pura sai a nua palavra.” LISPECTOR. Um sopro
de vida, p.83.
22
LISPECTOR. Um sopro de vida, p.143.
23
LISPECTOR. Um sopro de vida, p.58.
24
A respeito desse fato verídico, ver BORELLI. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato, p. 97-98.
25
LISPECTOR. Um sopro de vida, p.102.
26
”Noto que os meus imitadores são melhores do que eu. A imitação é mais requintada que a autenticidade em estado bruto. Estou com
a impressão de que ando me imitando um pouco. O pior plágio é o que faz de si mesma.” LISPECTOR. Um sopro de vida, p.30.
21
38
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 34-39, jul./dez., 1997.
escrever e a apropriação são uma constante na construção escritural praticada por Clarice.
A última passagem escritural por nós buscada para
finalizar a questão da “pessoalidade” da autora Clarice
Lispector, dessa vez nos é apresentada não mais pela
personagem Ângela, mas, pelo contrário, por seu próprio
Autor, quando diz: “Eu já falei isso no meu livro chamando esse grito de it.”27 A referência é clara porque remete o leitor para o livro Água Viva, onde a escritora trabalha a questão do it; mas, diferentemente, com relação à
autoria não podemos ter a mesma certeza, podendo dizer
que o Autor é e não é mais Clarice Lispector, ou melhor,
que ele apenas lembra por um processo circular a figura
da autora para sempre dispersa em sua ficção.
Entretanto, devemos reconhecer, ou pelo menos suspeitar, a presença mascarada da autora Clarice interposta a esse Autor ficcional — e por isso chamado aqui de
sujeito enviesado — que afirma ser “um escritor enredado e perdido”, relutando em convencer o leitor de que
esse “eu”, que aparece em seu livro, não é ele e que seu
livro não é em nada autobiográfico.28 Poderíamos contra-argumentar, dizendo que toda escritura, em certa medida, é também a escritura de uma autobiografia, uma
vez que só há escritura — qualquer forma de escritura
— “a partir de uma relação em que o sujeito se encontra
desde sempre emaranhado ao objeto que supostamente
deve descobrir ou criar”.29 Desse modo, o escritor, ao
escrever, se inscreve e deixa suas marcas “pessoais” na
escritura, que nada mais é que a grafia de seu desejo.
Por esse viés de leitura crítica, que parte do pressuposto
de que os significados são produzidos por um “sistema de
articulação”, podemos dizer que o leitor sempre acaba
ocupando também uma “posição autoral” na relação com
o texto literário.
O Autor ficcional de Um Sopro de Vida, por saber
demais o seu compromisso com o papel a desempenhar
em relação à sua personagem, a si mesmo e ao outro,
observa em “nota” que não pode se esquecer de dar
“um rosto a Ângela” porque, dando um rosto a sua personagem, está se reconhecendo no seu reflexo, uma
vez que nessa relação a personagem se apresenta “mais
forte” do que seu Autor. Entretanto, nessa busca, o Autor distancia-se de sua personagem, perde o Livro de
Ângela,30 e extravia o seu próprio livro não escrito, deixando a escritura para sempre inacabada como só seu
sujeito consegue ser: “Eu.... eu.... não. Não posso acabar.”31 Como esse Autor-leitor mesmo nos alerta, no
início do livro, que seu fim não deve ser lido antes, porque “se emenda num círculo ao começo, cobra que engole o próprio rabo”,32 talvez possamos pensar que sua
busca, assim como a busca da autora Clarice Lispector,
e sua própria escritura, se encontram resumidas na página em branco deixada pelos autores, propositadamente, no centro do livro, refletindo as “pulsações” de uma
escritura que se constrói por notas de seus personagens que são autores, que dialogam entre si e com sua
autora, que dialoga consigo e com seu leitor imaginário
por toda sua prática escritural.
27
Ibidem. p.153.
”Eu sei que este livro não é fácil, mas é fácil apenas para aqueles que acreditam no mistério. Ao escrevê-lo não me conheço, eu me
esqueço de mim. Eu que apareço neste livro não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim.” LISPECTOR. Um sopro
de vida, p.19.
29
ARROJO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p.47.
30
LISPECTOR. Um sopro de vida, p.160.
31
LISPECTOR. Um sopro de vida, p.162.
32
Ibidem. p.20.
28
Referências Bibliográficas
ARROJO, Rosemary. Tradução, desconstrução e psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1993. 212p. (Biblioteca Pierre Menard).
BARTHES, Roland. S/Z. Trad. Maria de Santa Cruz e Ana Mafalda Leite. Lisboa: Edições 70, 1980. 199 p.
BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 147p.
DURAS, Marguérite. Escrever. Trad. Rubens Figueiredo. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 115p.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 7.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 98p.
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. 162p.
NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 1997, 249 p.
(Dissertação de Mestrado em Letras – Teoria da Literatura)
NUNES, Benedito. O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995. 175p.
SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras. Trad. Luiz Fernando P. N. Franco. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
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39
Este artigo tem como meta demonstrar como os conceitos de polifonia e de modalidade se interrelacionam para
compor estruturas argumentativas diferentes. Embora tenhamos comparado dois textos jornalísticos diferentemente
organizados, os efeitos da argumentação foram semelhantes.
Palavras-chave:
polifonia - discurso - argumentação
This article aims at demonstrating how the concepts
of poliphony and modality interrelate to form
different argumentative structures. Although we have
compared two differently organized newspaper texts,
the effects of argumentation were similar.
Key-words:
polifony - discourse - argumentation
40
* Vânia Maria Lescano
Guerra é professora de
Lingüística e Língua
Portuguesa no curso de
Letras do Departamento
de Educação do CEUL/
UFMS, com Mestrado
em Lingüística Aplicada
pela Pontifícia
Universidade Católica de
São Paulo.
UM ESTUDO DA POLIFONIA
E DA MODALIDADE NA
ESTRUTURA ARGUMENTATIVA DE
DOIS TEXTOS JORNALÍSTICOS
Vânia Maria Lescano Guerra*
Introdução
Este trabalho tem por objetivo a análise de um
corpus constituído por dois textos escritos, retirados de duas seções dos jornais “Diário do Comércio e Indústria “e o “Estado de São Paulo”. Os dois
textos atingem leitores específicos, isto é, aqueles
que se interessam particularmente por economia,
negócios, etc, sendo que o texto 1 é escrito por um
jornalista e o 2 é escrito pelo presidente de uma
empresa.
É importante ressaltar, ainda, que os dois textos
se referem à Empresa Simonsen Associados.
A análise se dará à luz da teoria da Semântica
Argumentativa, tendo como base os estudos desenvolvidos por Ducrot (1987), com relação à polifonia.
Um outro fenômeno da argumentação que ainda
norteará nossa pesquisa é o das modalidades do discurso, utilizando trabalhos de Cervoni (1989) e
Maingueneau (1991).
Algumas questões estarão orientando a nossa
dis cu s s ã o. E m p r imeir o lu ga r, como es t á
construída a estrutura argumentativa dos textos
que compõem o corpus em questão? Ou ainda:
quais as variabilidades e regularidades, no nível
lingüístico, existentes entre elas? E finalmente,
como definir o ato perlocucionário derivado dessa argumentação?
I - Fundamentação Teórica
Para procedermos a análise do corpus, é necessário examinarmos alguns conceitos essenciais rePapéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 40-47, jul./dez., 1997.
ferentes à organização da estrutura argumentativa
dos textos. Para tal, mobilizaremos os conceitos de
argumentação, polifonia e modalidades do discurso.
1. Argumentação: Ducrot dando início à sua
teor ia da ar gu ment ação ( a pu d In du rs ky,
1989:94-95), conclui que tal atividade deixa marcas lingüísticas no enunciado. Através do estudo
de algu ma s dest as ma r cas ( os oper a dor es
argumentativos), o autor incorpora à sua teoria a
noção de orientação argumentativa a qual representaria uma função constitutiva do discurso, ou
seja, de conduzir o interlocutor a uma determinada
conclusão ou mesmo a uma mudança de comportamento ou posicionamento em relação a uma opinião.
2. Polifonia: Partindo dos estudos de Bakthin,
Ducrot postula que é constitutivo do sujeito - ou
locutor, em seus termos - estar em relação constante com um outro do discurso. Segundo a teoria
polifônica, o locutor só existe enquanto se estiver
falando em um discurso, enunciação ou enunciado.
Já o sujeito falante é um elemento da experiência,
ou seja, é aquele que existe empiricamente. De acordo com Ducrot (1987:182) o locutor é “um ser
que é, no próprio sentido do enunciado, apresentado como seu responsável, ou seja, como
alguém a quem se deve imputar a responsabilidade deste enunciado”.
O locutor quando está explícito pode se apre41
sentar segundo um EU ou um
mesmo. A “subjetividade” tão
Ao fazer uma asserção
NÓS, causando efeitos de sentipreocupante em certos discursos
dos diferentes. O efeito do uso de
dá lugar a uma “objetividade” deo locutor valoriza o fato,
EU pode se referir a uma tomada
sejada. O enunciado adquire, enfazendo-o falar por si
clara de posição. Em muitos catão, valor de verdade irrefutável.
mesmo. O enunciado
sos, como mostra Charaudeau
Em termos perlocucionários, o
(1992), as marcas de primeira
discurso assertivo se apresenta
adquire, então, valor de
pessoa desaparecem dando lugar
como o discurso da ciência e da
verdade irrefutável.
a formas lingüísticas cuja princiautoridade.
pal função é apagar a responsabilidade ou participação do locutor com relação ao
enunciado.
Ainda segundo Ducrot, a polifonia pode ocorrer
em um outro nível: o do enunciador. Dentro de um
Na exposição teórica que fizemos, explicitamos
enunciado podem existir vários pontos de vista dis- nossa intenção de car acter izar a estr utur a
tintos. Cada um desses pontos de vista é represen- argumentativa dos textos, decompondo-a segundo
tado por enunciadores que são incorporados na algumas categorias: a polifonia associada ao uso de
enunciação do locutor. É nesse imbricamento de pronomes, e a modalidade. Como estas questões
enunciadores que se estabelece o jogo polifônico contribuem para a identificação da orientação
das vozes que compõem o discurso.
argumentativa dos textos?
II - Análise e Interpretação
do corpus
3. Modalidades: Ao se utilizar de modalidades,
o locutor estabelece relações com o seu próprio
enunciado, podendo mostrar um maior ou menor
engajamento ou distanciamento com o que diz. Pode
também decorrer do uso das modalidades que o locutor se apresenta como autoritário ou polêmico.
Cervoni (1989) estudou as modalidades do ponto
de vista formal e estrutural. Ele considera somente
modais algumas estruturas sintáticas e itens lexicais
como pertencentes a um “núcleo duro”. Dentro de
tal núcleo duro, encontram-se as modalidades que
os lógicos denominaram de aléticas, epistêmicas e
deônticas.
As modalidades aléticas dizem respeito ao necessário e ao possível, enquanto que as modalidades epistêmicas referem-se ao nível do certo e
do provável. E as modalidades deônticas dizem
respeito ao que é obrigatório e permitido.
Se o campo das modalidades é complexo, podemos acrescentar que o da asserção pode ser
considerado extremamente delicado. A partir da
reflexão sobre as modalidades nos estudos de
Cervoni e Maingueneau, cremos que a assertiva
possui as seguintes características formais: a. pode
ser afirmativa ou negativa, já que uma asserção
se faz em termos positivos ou não; b. não apresenta marcas lingüísticas específicas, que seriam
englobadas dentro da classificação de “núcleo
duro”; e, c. não pode ser imperativa, interrogativa
ou exclamativa.
Semanticamente, ao fazer uma asserção o locutor valoriza o fato, tentando esconder suas opiniões
sobre ele e, portanto, fazendo o fato falar por si
42
O Texto 1
O texto 1 (anexo 1) foi publicado no jornal “Diário do Comércio e Indústria” em 08 de maio de
1986. O autor é jornalista, as características gerais
são da empresa Simonsen Associados e o seu título é “Simonsen, crescendo com seus clientes desde 1966.”
Para procedermos a nossa análise, buscaremos
no texto os locutores e enunciadores que o compõem. O locutor (L1) é jornalista e autor do texto.
Sua voz é representada por E1. L2 é o presidente
da empresa e fala da perspectiva de E2 (representa o presidente Simonsen cuja voz se confunde com
a de sua própria empresa). E3 representa a pessoa
Simonsen que lutou para chegar à construção de
sua empresa. E4 é a voz dos técnicos da empresa.
Os exemplos a seguir são recortes da análise total
do texto:
Ex. 1 - “Harry Simonsen Júnior, presidente
da empresa diz que o ano de 1966, quando
a empresa começou a atuar, foi uma espécie
de divisor.”
L1 - E1: “Harry Simonsen Júnior, presidente da empresa, diz que ...” em que L1 marca
claramente que a sua fala posterior pertence
a um outro. A perspectiva aqui é do próprio
L1 enquanto jornalista que conhece os fatos e
os apresenta, contextualizando o tema que pretende tratar.
L1 - E2: “...o ano de 1966, quando a empresa começou a atuar, foi uma espécie de
divisor.” A perspectiva aqui já muda para a de
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 40-47, jul./dez., 1997.
Simonsen, pois ocorre uma
companhia e ELE(A) refere-se
Na organização da
série de comentários que preà empresa propriamente dita, em
argumentação, existe a
tendem valorizar a empresa.
que ambos (presidente e empresa) assumem uma só perspectiquestão dos pronomes
Ex 2 - “Antes de criar a
va, a de E2.
Simonsen, fiz uma boa pesque se relaciona com a
Já o EU cuja perspectiva corquisa de mercado para sadistinção
dos
particiresponde
a E3, representa o indiber o que estava faltando e
víduo
que
lutou para conseguir um
pantes do enunciado.
resolvi criar esta empresa.
determinado
objetivo. No exemConfesso que fui desencoplo
percebe-se
como, argumentarajado por muitos, mas setivamente,
L2
constrói
um
processo
de valorização
guimos em frente e aqui estamos.”
de
si
mesmo
e
de
sua
empresa.
Ao
mostrar-se
atraL2 - E3: “Antes de criar a Simonsen... Confesso que fui desencorajado por muitos,...” vés de um EU, ele se apresenta como indivíduo que
Neste caso, E3 representa a pessoa que lutou passou por dificuldades para desenvolver com sucesso sua empresa. Ao utilizar NÓS, L2 explicitapara chegar à construção de sua empresa.
L2 - E2: “ ...mas seguimos em frente e aqui mente marca a sua posição atual de autoridade
estamos”. Já E2 representa o presidente Simon- conferida pelo seu cargo de presidente. A partir daí,
sen cuja voz se confunde com a de sua própria ele passa a falar de um lugar discursivo que o desloca da posição do indivíduo para a do representancompanhia.
te da empresa em questão.
Ex. 3 - “ É por isso que nossos técnicos preA estrutura do exemplo é, então, a seguinte:
ferem ser chamados de “Engenheiros do LuAntes da Simonsen MAS Ir em frente
cro”, pois é uma equipe que busca resultaEU
NÓS
dos”.
L2 - E4: “É por isso que nossos técnicos preVerificamos, assim, que E2 e E3 são identificaferem ser chamados de “Engenheiros do Lu- dos, neste caso, não só pelo uso dos pronomes, mas
cro”, pois é uma equipe que busca resulta- também pelo próprio uso do operador argumentativo
dos”. Neste caso, a valorização do trabalho da MAS. A teoria acima comprova a existência das
empresa é compartilhado pelos seus técnicos, vozes distintas que identificamos no enunciado.
cuja voz se faz ouvir juntamente com a do preDentro do processo argumentativo, analisaremos
sidente.
ainda as modalidades, que identificamos a partir do
No texto como um todo, houve a predominância critério proposto por Cervoni. Encontramos três
da voz do enunciador 2, isto vem confirmar que o modalidades deônticas e uma epistêmica. Como
delocutário passa de um simples referente a uma exemplo, podemos citar:
pessoa fundamental deste discurso, já que o mes“... como devem penetrar no mercado etc.”
mo vai ser apr esentado seguindo uma linha
(deôntica)
argumentativa que visa a persuadir o público quan“...a Simonsen olha para frente para saber o
to à importância da empresa em questão.
que acontecerá...”(epistêmica)
Dentro da organização da argumentação, existe
Quando Simonsen usa estas modalidades, seu disainda a questão dos pronomes, que se relaciona com curso adquire o valor de autoritário e sua imagem é
a distinção dos participantes do enunciado. Duas de detentor do poder. Portanto, sua argumentação
marcas pronominais se evidenciam no texto: EU e não deixa espaço para uma refutação de ordem poNÓS. Vejamos o exemplo:
lêmica.
“Antes de criar a Simonsen fiz uma boa pesA estrutura do texto, porém, gira em torno do
quisa de mercado para saber o que estava uso do que chamamos de modalidades assertivas:
faltando e resolvi criar esta empresa.Confesso
“Esta empresa é a Simonsen Associados que
que fui desencorajado por muitos, mas seguirapidamente passou...”
mos em frente e aqui estamos. Para criar uma
“O normal de todos os empresários era olhar
empresa de serviços como a nossa, acentua,
para...”
há necessidade de três itens importantes: in“...seus funcionários trabalhavam baseados
tenção, recursos e coragem. No nosso caso
no conceito...”
ficamos com a coragem.”
O efeito deste uso é o mesmo que o do anterior,
O NÓS neste texto adquire o valor de EU + ou seja, de não permitir a existência de um espaço
ELE. EU seria representado pelo presidente da de ordem polêmica.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 40-47, jul./dez., 1997.
43
Pode-se dizer que a autoridalidade de ocorrência de cada
A avaliação de um
de do Simonsen, caracterizada
um dos eventos...”
empreendimento, quer
pela frequência do aparecimento
L1 - E3: é a voz do enunciador
de sua voz (como E2), do uso
restritivo que tenta se defender de
seja existente, quer
que faz dos pronomes e das moqualquer possível refutação de alesteja apenas em
dalidades, chega mesmo a ter um
gum alocutár io. (Mar cado
projeto, é sempre uma
efeito de apagamento de L1. Isto
lingüisticamente pelo operador
é, Simonsen é o que traz o coapenas).
tarefa subjetiva...
nhecimento e a verdade para o
Ex. 4 - “...que pode tanto ser
texto. A função de L1 fica reduaplicado a empreendimentos
zida a ser veículo (como uma espécie de microfoexistentes como estendido, em termos de conne) de L2.
ceito, a empreendimentos novos...”
L1-E4: é a voz metadiscursiva, representada
através de uma oração explicativa, no sentido de
que tenta explicitar um enunciado anterior.
O texto 2 (anexo 2) foi publicado no “Caderno
Argumentativamente, o efeito de sentido que se
de Empresas” do jornal “O Estado de São Paulo”
obtém, é que L1 procura garantir uma ausência
em 23 de maio de 1986. O autor é Simonsen, preside mal-entendidos.
dente da empresa de mesmo nome. O título do texDe um modo geral, E1 é a voz predominante no
to é “Métodos para avaliação de negócios”.
Este texto se diferencia do anterior principalmen- texto. Quanto à questão dos pronomes, encontrate pelo fato de que o jogo polifônico converge para mos no texto estratégias de ocultamento do sujeito
a presença de um único locutor (L1), o presidente da enunciação, predominando o uso de nomida Simonsen Associados e autor do texto. Durante nalizações e de voz passiva (cf. Charaudeau). Veo processo de construção do texto, L1 incorpora jamos alguns exemplos:
uma série de vozes (enunciadores) que equivalem
“A avali ação de um empreendimento...”
a diferentes representações que o mesmo faz do
(nominalização)
tema em questão. A seguir, identificamos as diver“...são aceitos mais ou menos uniformesas ocorrências enunciativas: E1 é a voz do presimente...”(voz passiva)
dente. E2 é a voz que poderia estar em desacordo
Em relação às modalidades, verificamos que o
com E1. E3 é a voz r estr itiva. E4 é a voz texto é constituído por quatro modalidades deônticas
metadiscursiva. Observemos exemplos de cada uma
e quatro modalidades epistêmicas, sendo que as modessas vozes:
dalidades assertivas permeiam todo o discurso. Eis
Ex. 1 - “A avaliação de um empreendimento, algumas das modalidades analisadas:
quer seja existente, quer esteja apenas em
“É importante para a empresa...” (modalidaprojeto, é sempre uma tarefa subjetiva...”
de deôntica).
L1-E1:é a voz do presidente enquanto conhece“... pode ser considerado de três formas disdor do tema de que trata. Assume um tom didátintas... ” (modalidade epistêmica).
tico ao expor seu conhecimento e experiência
“...é o que prevalece sobre todos os outros
sobre o assunto, e é isto que delineará a orienmétodos...” (modalidade assertiva).
tação argumentativa do seu discurso.
De acordo com o quadro teórico as modalidades
Ex. 2 - “ ...não só em termos do empreendi- assertivas dão ao corpus um valor de verdade asmento como em termos do ambiente onde ele sociada ao saber do locutor. Em decorrência do
está colocado.”
que foi exposto, pode-se dizer que o discurso,
L1-E2: é a voz que poderia estar em desa- como um todo, mostra-se autoritário.
cordo com E1, no sentido de apresentar uma
idéia de que tudo o que o autor disse antes se
daria em um certo nível,e,a partir do uso do
NÃO, E1 pode, então, refutar este E 2 potencial, reiterando a posição que defenderá
A partir da análise do corpus, foi possível ob(mecanismo ar gumentativo r ecorr ente freservar como as categorias de polifonia e de modaquente no texto).
lidade se interrelacionam para compor estruturas
Ex. 3 - “Recomendável apenas naqueles ca- argumentativas diferentes.
sos em que for possível estimar-se a probabiO texto 1 caracteriza-se pelo fato de que o
O Texto 2
III. Considerações
Finais
44
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 40-47, jul./dez., 1997.
delocutário torna-se locutor 2,
que, freqüentemente, se
Naargumentação, o uso vozes
chegando até a apagar o locutor
sobrepõem umas às outras, resuldos pronomes contribui tando disso um movimento
1, que a princípio deveria ser o responsável pelos enunciados. O ato
enunciativo polifônico bastante
para uma construção
perlocucionário resultante deste
espesso.
da imagem do
deslocamento diz respeito a um
Este recurso argumentativo
presidente como
mecanismo argumentativo de L2
associado à questão do uso das
para convencer ou persuadir os
modalidades neste texto, caractelutador bem sucedido.
alocutários quanto ao valor de sua
rizando-o como autoritário, cria o
empresa.
efeito perlocucionário de que a
É interessante notar que, embora o locutor 2 empresa citada é digna de valor e eficiente em seus
pretenda formar uma opinião positiva sobre a métodos de avaliação e serviços prestados.
Simonsen, nem ele nem L1 mencionam o alocutário.
A presença do alocutário neste texto também é
O que podemos considerar como uma possível men- extremamente implícita. Ela se dá a partir do
ção, em nível bas tante implícito é o t ítulo: enunciador 3, o qual assume uma posição defensi“Simonsen, crescendo com seus clientes.” A re- va a uma possível refutação. E3, então, marcaria
ferência acima é uma estratégia discursiva para indiretamente a referência ao alocutário.
trazer o alocutário para o quadro de clientes.
Se tentarmos comparar os dois textos acima, o
Dentro da argumentação, o uso dos pronomes que nos chama a atenção é o seguinte:
contribui para um efeito perlocucionário de uma
a) pode-se dizer que há uma referência, ainda
construção da imagem do presidente como lutador que indireta, aos alocutários nos dois textos. No
bem sucedido, o que valoriza ainda mais a própria texto 1, isto ocorre no título, sendo feita pelo L1(E1).
empresa. A justaposição do presidente e da com- Já no texto 2, a referência se dá através de L1
panhia, feita pelo uso do NÓS, confere uma força (E3);
argumentativa a L2, caracterizada pela autoridade
b) quanto ao jogo polifônico, ele se dá de forde um cargo empresarial.
mas distintas. No texto 1, existe um movimento
A autoridade acima se ratifica pelo uso que L2 que leva ora a L1 ora a L2, através de uma
faz das modalidades do discurso. Há a predomi- multiplicidade de vozes, as quais darão predominância das modalidades deônticas e das assertivas, nância a L2. No texto 2, este movimento ocorre
bem como das epistêmicas. As categorias de aná- no nível dos enunciadores de um único locutor
lise que adotamos se entrelaçam de tal forma que (L1);
criam uma aparente unidade discursiva cujo efeito
c) em termos de modalidades, o uso é semelhande sentido é o de uma valorização indiscutível do te nos dois textos, com ênfase nas assertivas. Esdelocutário.
tas modalidades, em geral, caracterizam os textos
Já no texto 2 o que ocorre é que o locutor utiliza como autoritários; e,
uma estratégia de produzir um discurso que tenta
d) com relação ao ato perlocucionário, pode-se
apagá-lo enquanto sujeito/utor. Tal apagamento ser- dizer que é igual nos dois textos: o de mostrar uma
ve de fachada para abrigar uma multiplicidade de imagem positiva e bem sucedida da empresa.
Referências Bibliográficas
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136-154.
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_________________ (1991). A Constituição da Subjetividade no discurso da Propaganda. In: D. E.L.T.A., vol 7, nº 2: 449-462.
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CERVONI, J. (1989). A Enunciação. São Paulo. Ática.
CHARAUDEAU, P. (1992). Faits de discours. In: Grammaire du sens et de l’expressions. Paris, Hachette.
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MAINGUENEAU, D. (1991). L’énonciation.In: L’Analyse du discours: une introduction aux lectures de l’archive. Paris, Hachette,
107-126.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 40-47, jul./dez., 1997.
45
ANEXO I
Simonsen, Crescendo com seus clientes desde 1966
Quando o Brasil se lançou na sua corrida desenvolvimentista, por volta de 1966, faltou suporte e
conhecimento para as empresas nas áreas de marketing, administração, planejamento e sistemas.
Muitas empresas cresceram e se desorganizaram. Enquanto isso, uma outra empresa começou a
trabalhar e a acertar na prestação de serviços às indústrias em planejamento e marketing, especialmente em informações de mercado, distribuição, transporte e tudo o que estivesse diretamente ligado
à comercialização de seus produtos e serviços. Esta empresa é a Simonsen Associados que rapidamente passou a ter uma participação meia abrangente, envolvendo-se em consultoria geral, em estudos de organização e métodos, planejamento financeiro, sistemas de informações gerenciais, estudos
de viabilidade e de localização, e na coordenação de investimentos.
Harry Simonsen Júnior, presidente da empresa diz que, o ano de 1966, quando a empresa começou a atuar, foi uma espécie de divisor. O normal de todos os empresários era olhar para dentro das
fábricas achando que uma máquina resolvia qualquer problema. A partir daí, passou-se a ver o mercado como gerador de lucros. “Antes de criar a Simonsen, fiz uma boa pesquisa de mercado para
saber o que estava faltando e resolvi criar esta empresa. Confesso que fui desencorajado por muitos,
mas seguimos em frente e aqui estamos. Para criar uma empresa de serviços como a nossa, acentua,
há necessidade de três itens importantes: intenção, recursos e coragem. No nosso caso ficamos com
a coragem”.
Nestes 20 anos de atividades, a Simonsen Associados completou um grande número de programas, de ampla variedade: informação de mercado, viabilidade e localização, expansão e diversificação, planejamento financeiro, aquisição e desinvestimento, organização e métodos. Além disso, sua
equipe técnica desenvolveu série de modelos de simulação, tanto modelos algorítmicos - muitos dos
quais com aplicação em computador - como modelos heurísticos utilizados principalmente na previsão de cenários empresariais.
A empresa, informa, vem desenvolvendo continuamente e seus inúmeros clientes utilizam há
mais de 15 anos programas integrados de simulação de empreendimentos e operações, através de
seus instrumentos financeiros - previsão de vendas, orçamentos de lucros e perdas, de fluxo de
caixa, de investimentos e de pessoal, bem como as subsequentes análise de sensitividade e análise de
risco - e instrumentos estatísticos de inferência e aferição.
Na realidade, a Simonsen, garante o seu presidente, dá toda a ajuda à empresa cliente, buscando
detectar os mercados para os quais deveria vender seus produtos, mostrando a demanda, concorrentes, como competir com sucesso, como fazer fluir os produtos, quais produtos e como devem penetrar no mercado etc.
O primeiro trabalho realizado pela empresa, informa Simonsen, foi para o BNDE - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico. “Nosso trabalho envolveu a mudança do conceito de análise de
avaliação dos empreendimentos. Até então seus funcionários trabalhavam baseados no conceito do
lucro e nós mostramos que o segredo estava no fluxo de caixa. O próprio País vive problema de fluxo
de caixa. É por isso que nossos técnicos preferem ser chamados de “Engenheiros de Lucro”, pois é
uma equipe que busca resultados”.
O presidente da Simonsen diz que, a principal finalidade de qualquer forma é a de gerar lucros aos
seus acionistas, as outras funções são decorrências, como gerar empregos, pagar impostos etc. Neste período, acentua, a Simonsen está apta adizer que desenvolveu uma série de instrumentos que lhe
permite abordar os problemas de mercado para dentro da empresa. Ele garante que seus funcionários atuam totalmente ao contrário dos auditores, pois enquanto eles olham para trás para ver o que foi
feito, a Simonsen olha para frente para saber o que acontecerá e como transformá-los em benefícios
para os clientes, em todos os segmentos da livre empresa.
Um grande mérito da empresa, segundo o seu presidente, pode ser atribuído aos computadores.
Explica que antes desses equipamentos eram guardados apenas 50% das informações que passava pela empresa. Depois passou a classificar cerca de 80 a 90% da informação coletada para uma
recuperação de 60 a 80%. “Antes nós éramos o maior banco de informação privada do País e
continuamos sendo”, garante.
Dirce Siqueira - O ESTADO DE SÃO.PAULO, DCI, em 08/05/86 - p. 03
46
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 40-47, jul./dez., 1997.
ANEXO 2
Métodos para avaliação de negócios
A avaliação de um empreendimento, quer seja existente quer esteja apenas em projeto, é sempre
uma tarefa subjetiva; requer que se refinam vários parâmetros e várias grandezas e que se faça isso
olhando para o futuro muito mais que para o presente ou para o passado, não só em termos do
empreendimento como em termos do ambiente onde ele está colocado. Alguns métodos estão consagrados pela prática e são aceitos mais ou menos uniformemente nos países de livre empresa, pelo
menos por empresas e executivos mais experimentados.
Nesse ponto, consideração importante deve ser feita. Diz respeito à finalidade da avaliação, se
para venda ou para compra de empresas, se para decisão sobre execução de um novo empreendimento ou sobre a descontinuidade de uma operação. Nestes termos a maioria das avaliações utiliza
mais de um método, servindo a vários resultados como limites do intervalo de valores.
O mais usual dos métodos de avaliação, que pode tanto ser aplicado a empreendimentos existentes como estendido, em termos de conceito, a empreendimentos novos é o do Valor Patrimonial
Atual. É importante para a empresa cujo patrimônio contábil é maior que aquele necessário para as
operações normais. O valor patrimonial pode ser considerado de três formas distintas: valor patrimonial
contábil (basicamente igual ao valor do “não exigível” da empresa. Obviamente apenas com as reservas corretas); valor patrimonial venal (em que o valor do ativo é computado em termos de mercado, para venda, e do qual são deduzidas as exigibilidades); valor patrimonial de reposição (em que os
valores dos ativos - prédios, máquinas, equipamentos, veículos, estoques, contas a receber - são
computados ao valor de reposição correspondente ao estado em que se encontram). Além do valor
patrimonial atual há também o futuro que, embora seja financeiramente mais complexo que o primeiro, pois necessita de projeções futuras das operações, não apresenta benefícios adicionais em termos de precisão. Permite, sim, que o valor do empreendimento seja calculado em termos de valor
patrimonial contábil ao fim do período escolhido para análise.
Outro método utilizado para a avaliação é o do período de repagamento (Pay-Back), que
corresponde ao tempo que o empreendimento necessita para gerar os fundos necessários e amortizar
o investimento feito. Calcula-se o período necessário para que o valor dos recursos gerados seja
igual ao valor do investimento, em cruzados. Multiplicador de lucro, o quarto dos oito métodos é
baseado na capacidade de gerar lucros de um empreendimento. Este método leva em consideração
parâmetros estabelecidos nas Bolsas de Valores, para a relação preço-lucro das ações.
Valor presente do fluxo de caixa descontado. Este método é utilizado para avaliar um empreendimento em função do valor presente do dinheiro gerado pelo empreendimento. Requer que se defina
a taxa de desconto, isto é, a expectativa de remuneração de capital investidor, expectativa esta que
é em geral baseada em outras oportunidades alternativas de investimento que existem.
Completando os métodos de avaliação encontram-se: taxa interna de retorno; análises de risco e
preço do vendedor. O primeiro deles (Taxa interna de Retorno) parte da premissa que o empreendimento é realizado com recursos próprios e tem por objetivo calcular a taxa de desconto que zera o
valor presente do fluxo de caixa. Isto é, uma vez fixado o prazo para avaliação, é calculada a taxa de
desconto que iguala os saldos de caixa de investimentos.
Recomendável apenas naqueles casos em que for possível estimar-se a probabilidade de ocorrência de cada um dos eventos, a análise de risco introduz o cálculo de probabilidade para qualificar o
valor de fluxo de caixa descontado e elaborado na forma descrita anteriormente. A análise de risco
é feita sob várias formas, com graus de sofisticação bastante viáveis. A abordagem mais simples
consiste na atribuição de probabilidades para a ocorrência de eventos que vão estabelecer as grandezas, as quais, por sua vez, determinam a geração de fluxo de caixa e, conseqüentemente, o respectivo
valor presente. Como a soma dessas probabilidades é igual a 1, o valor presente do empreendimento
sob várias probabilidades será o resultado da soma do fluxo de caixa descontado e multiplicado pela
respectiva probabilidade de ocorrência.
Por último, o método preço do vendedor, que se baseia na avaliação intuitiva dos donos do empreendimento, no caso de venda. Em muitas das vezes é o que prevalece sobre todos os outros métodos
científicos de avaliação.
O autor é Harry Simonsen Jr., engenheiro civil e presidente da Simonsen Associados.
O ESTADO DE SÃO PAULO - CADERNO DE EMPRESAS, em 23/05/86, p.03
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 40-47, jul./dez., 1997.
47
Para compor algumas passagens sobre a utopia do Quinto
Império, mediatizo contrastes de abrangências sincrética,
histórica, mítica e artística, entre o Padre Antônio Vieira e
Fernando Pessoa. Articulo as influências proféticas em
Portugal, expostas pelas idéias de Vieira, que consagram o
Império Universal de Cristo. Cotejo esses posicionamentos,
através do pensamento e dos registros deixados nas obras e
no Espólio de Fernando Pessoa. Entre convergências e
divergências propicio um elo unificador sobre dois escritores, que tiveram em comum um talento intelectual dedicado
às origens cósmicas de uma divindade universal, plena de
valores espirituais e supra-nacionais.
Palavras-chave:
Quinto Império - Antônio Vieira - Fernando Pessoa
In order to compose some passages about the utopia of
the Fifth Empire, I unravel contrasts of syncretic,
historical, mythological, and artistic amplitude, between
Father Antônio Vieira and Fernando Pessoa. I articulate
the prophetic influences in Portugal, as exposed by the
ideas of Vieira, which consecrate the Universal Empire
of Christ. I appraise these perspectives by way of the
ideas and notes left in the works and in the Bequest of
Fernando Pessoa. Among convergences and divergences
I point out a link between the two writers, who had in
common an intellectual talent dedicated to the cosmic
origins of a universal divinity, full of spiritual and supra
national values.
Key-Words:
Fifth Empire -Antônio Vieira - Fernando Pessoa
48
* Josenia Marisa Chisini
é professora de
Literatura Portuguesa
UFMS - Universidade
Federal de Mato
Grosso do Sul - Brasil.
O QUINTO IMPÉRIO
CONFLUÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS
ENTRE FERNANDO PESSOA E O
PADRE ANTÔNIO VIEIRA
Josenia Marisa Chisini *
O tema que desenvolvo neste ensaio é vasto e
inesgotável, porque transcorre pelas peculiaridades
subjetivas da Nação Portuguesa, que vivenciou uma
multiculturaneidade histórica, religiosa, mítica e artística. Recorro a algumas sinalizações contrastivas
sobre a dimensão daquilo que seja nominado de
Quinto Império. Demonstro a confluência de idéias
utópicas que estiveram impregnadas de espiritualidade, patriotismo, motivos do engenho intelectual universalizante e também artístico de dois
inigualáveis escritores: Fernando Pessoa e Padre
Antônio Vieira.
Para ilustrar, coloco as palavras de admiração
de Fernando Pessoa ao Padre Antônio Vieira, onde
aparece a seguinte declaração, indicando o contexto das trovas de Bandarra: “As Profecias desse sapateiro de Trancoso, amou-as e as comentou o maior artista da nossa terra, o Grão Mestre, que foi da
Ordem Templária de Portugal” (Joel. Serrão. Org.
Fernando Pessoa Sobre Portugal - Introdução
ao Problema Nacional, Ática, 1979, p. 179).
Padre Vieira estréia suas preleções religiosas e
proféticas na Capela Real, em 1642, demonstrando
como Portugal ligava-se a uma força divina, cuja
potencialidade conduzia as marcas dos textos proféticos da Bíblia. Ele comunica, que era desde a
Batalha de Ourique, que os padres prognosticavam
um futuro, no qual adviria um momento de Restau-
1
ração para o ano de 1640. A convicção sobre essas
idéias foi decisiva para que ele elaborasse a obra
História do Futuro, onde intencionalmente legitima a voz das profecias, nos destinos e nas esperanças de Portugal. Na obra vê-se como o projeto do
Quinto Império propicia um alargamento difusor e
também repleto de sentimentos de nacionalidade,
que ascendem o espírito religioso lusitano. Tem-se
a oportunidade de verificar como o exercício
evangelizador é argumentativo, ilustrativo, exposto
por uma caudalosa linguagem interpretativa, que dá
acesso às preconizações judaicas, metaforicamente transferidas ao catolicismo.
Vieira aproveita essas ocasiões para convocar o
leitor, alertando-o para o tipo de dificuldade que a
Igreja Católica, as Instituições clericais vinham enfrentando. Diante desse intuito, ele alerta para o fato
de que - os padres não haviam entendido o verdadeiro sentido das profecias, sobretudo, porque não
sabiam acompanhar a evolução dos tempos.1
Lembro, que mesmo dentro do espírito religioso,
o Padre Vieira não poupou críticas à sua Instituição, aos nobres, ao clero, e aqueles que detinham o
poder financeiro. Ao mesmo tempo defendeu os
Cristãos-novos, principalmente os judeus convertidos ao catolicismo, já que estes faziam parte do povo
e da historicidade de Portugal. Nesse contexto recorro ao trabalho profícuo do professor Alfredo Bosi,
VIEIRA, Antônio. História do Futuro. São Paulo: Edições e Publicações Brasil, s.d., pp. 202-217.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997.
49
com o seu ensaio - Vieira. Ou a
vantamentos feitos por Isabel
Segundo Bosi,
Cruz da Desigualdade 2 onde
Buescu, colocados no texto - Vínpara Vieira a lei de
aparecem algumas informações
culos da Memória: Ourique e a
Cristo era o
sobre o projeto político, e os conFundação do Reino. A pesquisa
ceitos desenvolvidos sobre os
encontra-se obra organizada por
instrumento legislador
“Três Estados”. A construção reYvette K. Centeno - Portugal
que promoveria a
flexiva revela quais eram os comMitos Revisitados 3. Neste trabatransformação e o
promissos, os deveres da nobrelho a pesquisadora salienta, que a
za, do clero e do povo, cujas claspromessa de um ‘‘Império Crisalcance de um
ses sociais deveriam se entender
tão Universal’’ seria encarnado
"re-nascimento".
para poderem elevar a dignidade
por um descendente do primeiro
da nação portuguesa. Vieira arRei de Portugal e esse destino
gumenta que os três Estados, meshavia sido sinalizado pelo Padre
mo sendo desiguais, tinham posVieira. Além disso, encontram-se
sibilidades de diminuir e transformar as injustiças informações preciosas sobre a descoberta do “Jusociais, cuja finalidade produziria um refinamento ramento”, a avaliação das análises sobre a fidelidacultural à raça portuguesa, e aos domínios coloni- de do referido documento, uma mensagem, que por
ais. Por conseqüência, a lei de Cristo era o instru- si traz um valor histórico para os registros da cultumento legislador que promoveria a transformação, ra portuguesa.
e o alcance de um “Re-Nascimento”. Essa edifiFernando Pessoa deixou vários apontamentos que
cação continha ressonâncias messiânicas, que emol- tratam sobre o Quinto Império, Bandarra e o
duravam uma herança de “Reis Benfeitores”. De Sebastianismo. As informações estão ligadas à sua
acordo com a prática da fé cristã ocorreria uma ade- própria inciação espiritual, aos ideais de nacionaliquada “Restauração Política em Portugal”.
dade, aos temas ocultistas, os quais heraldicamente
A preocupação política de Vieira perpassa por estão simbolizados por uma linguagem hermética.
uma forte influência precursora dos textos bíblicos, Em relação ao Padre Vieira, há uma variedade de
fazendo com que ele se apropriasse da história do declarações, tanto na obra poética como em prosa.
povo judeu, das expectativas da vinda do Messias. Um momento primordial é aquele que aparece no
As elucubrações interagem similarmente com a his- Livro do Desassossego, no qual Vieira é valiosatória, com a cultura do povo português. As profeci- mente designado através do emblema de “Meu
as e seus envolvimentos simbólicos recaem cons- Mestre”. Certamente essa imagem idealizadora intantemente sobre os profetas Daniel, Isaías, fluenciou as conotações místicas, míticas de
Jeremias, nos Evangelhos de São João, São Mateus Fernando Pessoa4, dentro do seu pensamento.
e nas cartas de São Paulo. Estas passagens são
A idéia e o desenvolvimento das significâncias
reinterpretadas na História do Futuro, onde Vieira sobre o “Grande Império” têm uma forte exposição
argumenta que a nacionalidade lusa presentificou-se na História do Futuro, na qual desígnios profétiquando houve a intervenção divina de Cristo a Afon- cos trazem uma comunicação cifrada, cheia de
so Henriques, na Batalha de Ourique. Esse sinal simbologias, que foram encobertas pelo tempo e pelo
demarcava vivamente a ação divinizante, compro- seus efeitos polissêmicos. Para essa demonstração
vada no documento do ‘‘Juramento’’, o qual sobre- evolutiva e progressiva, Vieira retomou a figura do
vivera e havia sido motivo de várias análises. O Infante D. Henrique, para indicar a origem do desencontro demiúrgico revela-se com o aparecimento tino do Grande Império. Nesse curso, o Navegador
de Cristo, oferecendo a garantia de êxito para Por- também servia de exemplo, porque tinha sido um
tugal, na Batalha de Ourique, cuja concordância iria ser preparado cientificamente e moralmente para
ser preservada até o desenrolar da 16ª geração de dar continuidade ao espírito religioso, empreendereis, ligadas à Casa de Avis.
dor do desejo de progresso humanista. Em decorPara revitalizar os temas míticos e místicos é rência desses fatos, Portugal tivera oportunidade de
oportuno lembrar os elucidativos e detalhados le- adquirir os conhecimentos náuticos e centrar-se no
2
BOSI, Alfredo, Revista CEBRAP. São Paulo: 1989, v.25. pp. 28-49.
BUESCU, Ana Isabel.Vínculos da Memória: Ourique e a Fundação do Reino. In: Portugal: Mitos Revisitados. Lisboa: Edições Salamandra,
1993, pp. 9-50 et pp. 18,19,20. Recomendamos leitura de Antônio Vieira no livro Ante Primeiro da História do Futuro. In: José Van Den
Besselaar. Padre Antônio Vieira – Livro Ante Primeiro da História do Futuro. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1983, Cap. 5, pp. 51-52.
4
PESSOA, Fernando, Livro do Desassossego. São Paulo: Editora Unicamp, 1994, v.2, p. 31.
3
50
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997.
Ciclo das Grandes Descobertas.
crata e régia, transmitida desde
Vieira traz a voz
Interessante são as ilações metaAfonso Henriques 7, que havia
profética
de
Isaías
e
fóricas, históricas sobre o Cabo
concretizado a união de dois esdela retira situações
Bojador, indicando um desafio ulpaços: o terreno e o espiritual. O
tramarino, científico e espiritual,
suporte textual das profecias de
exemplares para
diante de um mundo desconheciDaniel e Esequiel permitia com
impulsionar a fé no mundo.
do. É no Livro Ante Primeiro5 de
que Vieira demonstrasse o QuinPortugal é o destinatário to Império sendo o sucessor do
História do Futuro, que Vieira
abre seu pensamento de forma
Império Romano. No curso das
dessa propagação
mítica, explicando que a primeira
referências simbólico-judaicas
aos povos da América
pessoa a ultrapassar aquele espaestão as impregnações cabalíse do Oriente.
ço geográfico tinha sido o portuticas, que incidirão sobre o ano
guês Gilianes. E se esse Cabo, era
de 1666, data ansiada por Vieira,
outrora denominado de “Não”, era
visto que nela ocorreria a suposporque o mesmo envolvia-se em sombras, num ne- ta “fundação do Reinado Universal de Cristo”8.
voeiro, que serviam de exemplo desafiador para uma
As profecias de São João, no texto do Apocareflexão ao povo português, que agora estava sen- lipse9 trazem uma base para Vieira instalasse utodo convocado para uma missão.
picamente as “Esperanças de Portugal”, movidas
Eu aproveito o tema acima para associá-lo e pelo desejo do “Quinto Império do Mundo”, um “Imaproximá-lo com às idéias de Antônio Vieira e à pério Esperado”. “Todos os reinos deveriam se unir
poeticidade dos textos de Mensagem e Quinto Im- sob um cetro, e os homens obedeceriam a uma supério6 de Fernando Pessoa. As palavras nos res- prema cabeça e todas as coroas teriam um só
pectivos poemas contextualizam um Portugal sob ne- diadema, a Cruz de Cristo”. As declarações fazem
voeiro, mas que deveria superar as dificuldades e parte tanto nos prognósticos do Livro Ante Primeiunir-se num desejo de concitar uma melhoria políti- ro, nos capítulos segundo e terceiro, como também
ca, um aprimoramento espiritual, aludidas nestas pa- anteriormente já tinham sido proferidas no Sermão
lavras: “É a Hora!/ Valete, Fratres”; “Convoco to- dos Bons Anos em 1642, cujas palavras reforçados sem saber/ (É a Hora!) aqui!” Esses momentos vam a idéia da Restauração, sendo uma consetrazem a influência da marca do “Mestre”, daquele quência de ordem divina e messiânica.
Vieira do Livro Ante Primeiro, capítulo 10, que apeA intencionalidade em comprovar a eficácia das
la para o povo português, lembrando os episó- profecias para que elas servissem aos objetivos
dios da travessia do ‘‘Cabo Não’’, ao utilizar a se- difusores, faz com que Vieira proponha a utopia do
guinte convocatória - “porque chegou a hora”. Es- Império de Cristo, ou seja o Quinto Império, com a
tas palavras tinham a capacidade de promover um participação do clero na vida nacional e na expan“Re-Nascimento”, uma Restauração político- são da fé cristã. Essa proposição aparece de forma
religiosa.
muito ilustrativa e ao mesmo tempo traz um sentido
Vieira traz a voz profética de Isaías e dela retira ocultista secreto, quando Vieira fala sobre os “Casituações exemplares para impulsionar a difusão da valeiros de Cristo”. Essa passagem textual pode ser
fé no mundo. Portugal aparece como o destinatário constatada nos fragmentos da seguinte citação:
dessa propagação aos povos da América e do Ori“Os portugueses foram aqueles cavaleiros a quem
ente, cuja fé cristã seria levada à China, ao Japão e
Cristo abriu o primeiro caminho pelo mar ( ... )
ao Brasil, através do envio de religiosos que tivespisaram as ondas do mar, como os cavalos pisasem “grandes virtudes”.
ram o lodo da terra. ( ... ) As naus dos portugueEssas prospecções e conclamações fazem com
ses, aquelas carroças que levaram pelo mar a fé e
a salvação: ( ... ) a primeira empresa e vitória desque a utopia do Império seja de uma herança aristo-
5
BESSELAAR, Van Den. Padre Antonio Vieira – Livro Ante Primeiro da História do Futuro. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1983, p. 108,
cap. 10, observa-se: O Livro Ante Primeiro é um texto introdutório à História do Futuro, composto em 12 capítulos, sendo publicado
pela primeira vez, em 1718.
6
PESSOA. Fernando. Obra Poética. In: Mensagem, Quinto Império. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, pp. 89 et 97.
7
VIEIRA, Antônio. História do Futuro. São Paulo: Edições e Publicações Brasil, s.d., pp. 240-241.
8
CIDADE, Hernani. Padre Antônio Vieira - A Obra e o Homem. Lisboa: Editora Arcádia, s. d., p. 144. Et Lucio Azevedo. A Evolução
do Sebastianismo. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1947, p. 89.
9
VIEIRA, Antônio. A História do Futuro. São Paulo: Edições Publicações Brasil, s.d., pp. 49, 53-54.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997.
51
ta Cavalaria de Cristo foi a sujeição do mesmo mar bravo o
maior ministro do Evangelho se
embarcou nas carroças desta
Cavalaria ( ... ) foi o grande
Apóstolo da Índia São Francisco Xavier, ele foi cavaleiro da
mesma Ordem. ( ... ) O mesmo
santo apóstolo apareceu vestido com a Cruz vermelha no peito, como insigne cavaleiro desta santa cavalaria ( ... ) da Ordem dos Cavaleiros de Cristo de
Portugal” (Vieira. História do
Futuro, pp.264,265).
Nas expectativas messiânicas e proféticas também estava a visão medieval teocêntica, porém diluída nas canalizações dos princípios ecumênicos,
na modernidade política e no avanço tecnológico.
Essas circunstâncias dialogavam entre idéias contraditórias, silogismos organizados por uma linguagem ornamental, que não desprezava a herança e a
tradição cultural, principalmente a de influência judaica. A convicção da força messiânica da figura
de Jesus Cristo sobreleva-se e transporta-se na fundação da Igreja Católica, dando a esta poderes sobrenaturais, mesmo quando Vieira critica profundamente os jesuítas. A valoração de uma ideologia política, religiosa e monárquica expande-se pelo desejo de colocar ações globalizantes no mundo daquela
época. Portanto, a nacionalidade de Vieira é vista
pela supranacionalidade, na qual Deus engloba a
espiritualidade do ser humano, fazendo parte de um
supra sistema civilizacional, a Monarquia Universal
do Reino de Cristo.
Observo que Vieira acreditava na vinda de um
novo messias, no renascimento de Cristo, porém na
concepção do Encoberto, que se revelava exemplarmente na crença da ressurreição de D. João IV, ou
ainda, da incorporação de D. Sebastião em outros
reis. Nisso agregam-se os conhecimentos provindos de uma sabedoria secreta, ou da Teosofia, que
assumem proporções ocultistas. Creio, ser este um
grande caminho de averiguações, para que se possa compreender o Padre Vieira dentro de um contexto espiritual, ideológico de maior abrangência.
Após essas incursões, quero agora deter-me nas
influências e entendimentos de Fernando Pessoa,
junto ao tema sobre o Quinto Império. Certamente
são nos documentos reunidos no Espólio, que podemos melhor verificar o modo pelo qual houve essa
determinada dedicação, valorizando a nacionalidade lusa e o seu envolvimento cultural. Como eu ex10
52
pus no início desta minha análise,
é preciso levar-se em conta o conjunto das manifestações de ordem
hermético-ocultistas, as idéias estéticas, filosóficas e políticosociais, para que se possa avaliar
com proficiência as informações
deixadas por Pessoa.
Quero esclarecer e também
transmitir o seguinte depoimento:
- Foram nas pesquisas efetivadas
sobre os tipos de cânones e fontes influenciadoras da estética
sensacionista, que encontrei o
modo extremamente singular das significâncias intelectuais, espirituais e ocultistas de Fernando Pessoa. Dentre essa busca, deti-me nas questões míticas
nacionais, na compreensão sobre Deus, sobre as religiões e a arte. De acordo com algumas premissas,
reservadas no meu trabalho, eu fui compreendendo,
percebendo que, o entendimento sobre Pessoa dependia da minha entrega às investigações nos campos culturais, porque neles expandia-se uma invasão profunda da personalidade e das idéias originais
desse escritor. Nos aspectos científicos utilizei a
Ciência da Literatura, tomei a linha metodológica
comparatista e com isso verifiquei o vigor da construção da obra e da vida de Pessoa, constatando
ligações constantes com o conhecimento da Sabedoria Teosófica, desenvolvida em várias civilizações
e presentificadas nos textos, tanto poéticos como
em prosa de Fernando Pessoa, especialmente nos
fragmentos do Espólio. Diante desse enorme desafio e com algumas hipóteses em mente, direcionei-me às procedências multiculturais, que
desaguávam, nos aspectos civilizatórios, cosmogônicos e transcendentais.
Como exemplo do que referendei acima, estão
as trovas de Bandarra, apreciadas sob o ângulo do
Quinto Império, e que são revisitadas por Fernando
Pessoa, quando verifica a existência de uma
dicotomia mental, expostas em duas forças: do lado
esquerdo, a presença da Sabedoria da Ciência, o
raciocínio, a especulação intelectual. No lado direito, o posicionamento do conhecimento oculto, a intuição, a especulação mística e a kabalística. Dentre essas forças haveria um só deus conhecido, uma
paz para todo mundo e a existência de uma só
fraternidade, contudo quando isso iria acontecer, era
imprevisível10.
É também rentável se observar, junto a essas declarações, a posição sobre a compreensão de Deus,
Vieira acreditava na
vinda de um novo
messias, no
renascimento de Cristo,
porém na concepção do
Enconberto, que se
revelava na crença da
ressureição e
incorporação de reis.
SERRÃO, Joel et alii, Fernando Pessoa, Sobre Potugual - Introdução ao Problema Nacional. Lisboa: Ática, 1979, pp. 239, 146.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997.
que para Pessoa fica exposta nas
seguintes palavras: “o mundo nosso não [é] o único, porque [há]
outros universos, como tantos outros deuses e isso torna-se um
mistério de mais alto ocultismo”.
Os fragmentos do Espólio demonstram sobre esse tema as seguintes questões sobre as profecias, cujas circunstacialidades são
bastante esclarecedoras.
de uma evolução européia, diante das dimensões materiais, intelectuais e espirituais e sob três
ordens: espacial, temporal e intelectual. A prolepse visionária de
Pessoa amplia-se e indica o término do Quinto Império através
da dissolução de nossa civilização
e que a mesma ocorreria fatalmente naquilo que era denominado por ‘‘Fim do Mundo’’, com a
vitória cristã, porém o fim do
mundo também significava a
“morte da religião católica”. As
observâncias de Pessoa entram em comum acordo
com as profecias de Nostradamus, que previam a
extinção cristã da forma romana-católica para o
século XX12.
Sobre a veracidade das profecias de Nostradamus, Pessoa afirma que elas tinham sido imparciais, como também as de Bandarra e de São Francisco de Paula, pois este havia previsto que surgiria
uma nova Religião13. Esclarece, ainda, que as interpretações sobre as profecias de Daniel, no sonho
de Nabucodonosor, elas não correspondiam e não
estavam corretas às associações culturais com Portugal, visto que, a tradição hebraica e a divisão dos
impérios, apresentada nesses sonhos, indicavam
circunstancialidades diferentes, e por isso o Quinto
Império aparecia de forma duvidosa. Com essas demonstrações, conclui-se que Pessoa não partilhava
das mesmas interpretações proféticas e religiosas
do Padre Antônio Vieira, sobretudo, quando demonstra em várias ocasiões, que o Quinto Império seria
uma decorrência do progresso cultural de Portugal.
Para isso a nação deveria se preparar para esse
cultivo e se caso isso viesse acontecer, não poderia
sê-lo de maneira estéril, movida ao ‘‘universalismo
humanitário” e nem com a “brutalidade de um nacionalismo extra-cultural’’. Mas sim, ele deveria acontecer com a dimensão de uma fraternidade universal semelhante à doutrina social, íntima dos Rosa
Cruz”14.
Fernando Pessoa ao interpretar e analisar o corpo das “altas profecias’’, expostas pelas Trovas de
Bandarra, em que estão as sugeridoras alusões a
D. João IV, manifestou uma posição contrária a de
Vieira, porque entendeu que a linguagem das trovas
não poderia ser tomada como sendo uma prova efi-
Para Pessoa,
o mundo nosso não
é o único, porque há
outros universos, como
tantos outros deuses
e isso torna-se
um mistério de
mais alto ocultismo.
‘‘( ... )A profecia é a visão dos
acontecimentos na sua forma
corpórea. [Ela] pode às vezes
(ou sempre) aplicar-se a várias cousas. Isto não
invalida a profecia. É que vários acontecimentos
são um acontecimento só, isto é, um só ente sob
várias formas (Serrão. Opus Cit, p. 196)’’.
Para Fernando Pessoa a divisão histórica dos cinco impérios, nos quais incluía-se o quinto, através
do Império Hebreu, era uma suposição ingênua,
porque essa divisão não se concretizava. Haveria-se
de compreender os impérios a partir da construção
de “várias coisas e influências”. Junto a esses conteúdos, também deve-se levar em conta a inclinação constante de Pessoa na sua construção transcendental panteísta, bastante trabalhada intelectualmente nas referências dos textos sobre arte, filosofia e cultura. Pessoa demonstra a sua concepção
religiosa, utilizando a filosofia pagã, dentro das quatro grega e fundira isso a outros povos formadores;
o Império Cristão com a inserção de cultura grega,
que ainda se agregava aos elementos de toda ordem oriental, incluindo o hebraico. Por último aparece o Império Inglês, distribuído por toda a terra, e
este trazia um resultado provindo dos outros três
impérios. Por conseqüência dessa progressão, o
Quinto Império fundiria os quatro impérios antecedentes 11.
Como pode-se constatar, Pessoa desejava a universalização da civilização européia, de modo que o
objetivo do Quinto Império seria congregar uma só
religião, em uma só situação espiritual, mas que ela
desse conta de um caráter ecumênico, holístico, pois
esta proposta recaía nos conhecimentos de procedência Teosófica. Ressalto que essa religiosidade
ecumênica não era do cristianismo católico, mas sim
de um cristianismo de origem sincrética e de influência cosmogânica. Essa decorrência viria por meio
11
Idem, ibidem. pp. 148-149.
Idem. ibidem. 185-186; 241-242.
13
Idem, ibidem. pp. 150-151.
14
Idem, ibidem. p. 239.
12
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997.
53
crista’, a hebraica. No esquema
caz da inclusão de D. João IV. Na
Vieira dessacralizou a
profético, em que este conceito
verdade, essa passagem deveria
Teologia de sua
aparece, determina-se a existênser entendida dentro de uma cercia de cinco impérios, até aquilo a
Instituição, que só
ta época histórica, na qual Portuque simbolicamente os profetas
gal, ligava-se ao surgimento do
admite a ressureição
chamam de ‘fim do mundo’. (...)
“Primeiro Perigo do Norte”. As
isto é o fim do conceito que têm
para o Filho de Deus,
palavras pessoanas deixam uma
do mundo (...), o fim do ciclo psírestando aos homens a quico-ordinariamente um ciclo relacuna indagativa, pois o escritor
verifica que naquela época da
ligioso a que pertencem os profepromessa de uma
Restauração, acontecera o aparetas]. (...) Usado por um cristão
futura ressureição.
cimento de “ondas de misticismo”
serve instintivamente [ para ] designar o fim da religião cristã’’
e desse modo teriam ocorrido na
(Serrão. Opus. Cit., 1979, p.241).
História Cultural de Portugal três
grandes falsos encobertos. Eles
Além dessas informações é
teriam surgido através de circunstâncias sociais obs- importante manter-se esse conceito costurado às
curas, as quais trouxeram D. João IV, o Marquês inter-relações dos processos civilizatórios, porque
de Pombal e Sidónio [ Pais ]15.
eles são constantemente levados em consideração
Eu não poderia deixar de comentar alguma coisa por Fernando Pessoa, que os divide em três estádisobre a interpretação e a influência do Sebastianismo os: o imperialismo de domínio, o de expansão e o da
em Pessoa, todavia sabemos que ele ficou bem lem- cultura, este como consequência do segundo. As alubrado por Antônio Quadros, na sua obra Poesia e sões condicionam-se ao período que inicia-se com a
Filosofia do Mito Sebastianista. Este escritor tam- Renascença, que trouxe o imperialismo de domínio
bém utiliza os apontamentos do Espólio e conclui e o do século XIX, o qual desenvolveu-se dentro de
que a posição de Pessoa referente ao Sebastianismo uma ação modelada pela expansão. Segundo os esela é teosófica e mitosófica16. Observa-se que o clarecimentos do escritor, é a partir desse momento
“Grande Regresso” constrói-se num contexto, onde em diante que surge a formação do imperialismo da
D. Sebastião é visto por Fernando Pessoa como uma cultura, no qual Portugal possuía condições de
sinalização, advinda do desejo de se obter a unidade desenvolver-se como uma grande potência espirituIbérica, através de Portugal. Este acontecimento al. Essa vocação ocorrera desde as descobertas
ocorreria a partir da retirada dos elementos estran- marítimas, que haviam sido um ato cultural, sobregeiros, tais como o Cristianismo Católico, inimigo tudo de criação civilizacional. Segundo Pessoa a
radical da Pátria. Após essa passagem é que come- própria idéia de descoberta gerara um processo de
çaria despontar o Quinto Império, o qual permane- busca, no desejo de encontro com o desconhecido.
ceria oculto até o princípio do século XX. Fernando
Podemos obter maiores detalhes, em outros esPessoa transmite outras informações, dizendo que critos, nos quais o Quinto Império é demonstrado
o movimento “em volta de uma figura nacional’’17 como fruto de uma imanência espiritual, origem dos
tinha um sentido simbólico. Portanto D. Sebastião prognósticos de profetas bíblicos. Fernando Pessoa
representava Portugal e era um fenômeno que fa- declara que em Portugal as profecias estavam funzia parte da assombrosa sociedade secreta, que cada dadas nas trovas de Bandarra e nas quadras de
vez mais se ocultava e guardava religiosamente esse Nostradamus. Como resultado, o futuro de Portugal
segredo, no qual estava o sentido simbólico portu- condicionava-se em “sermos tudo”.18
guês.
Frente ao exposto, conclui-se que Vieira conduA compreensão conceitual sobre o Quinto Impé- ziu uma intencionalidade espiritual aproximada a de
rio aparece nos registros do Espólio, que trazem as Fernando Pessoa. Porém a utilização dos instrumenseguintes anotações:
tos ideológicos, religiosos e a sua própria formação
‘‘O conceito de ‘quinto império’ é antigo na pro- clerical o tornaram diametralmente diferente de Pesfética cristã e pré-cristã, entendendo por ‘pré- soa, sobretudo, porque esses escritores ocuparam
15
Idem, ibidem. pp. 206-207.
QUADROS, Antônio. Poesia e Filolofia do Mito Sebastianista. Lisboa: Guimarães e Cia. Editores, 1982. v.1. p. 117.
17
SERRÃO, Joel et alii. Fernando Pessoa, Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Lisboa: Ática, pp. 190-191.
18
PESSOA, Fernando. Obra Em Prosa. In: O Futuro de Portugal, O Sensacionismo, Idéias Filosóficas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1990, pp.
332,334; 424,454; 543,576.
16
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Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997.
circunstancialidades históricas culcos e secretos, surge uma abissal
turais e artísticas diversas. Vieira
impossibilidade investigitiva e
O mito do "Encoberto"
desejou o “Império Universal de
interpretativa, a mesma que levou
trazia uma aparente
Cristo”, exercendo uma potenciaVieira à Inquisição, ao ter que enheresia,
porque
lidade temporal e espiritual, que
frentar os dogmatismos da Igreja
exigia um novo Estado para a IgreCatólica. Além disso, ele desdimensionava "atos de
ja. Ao mesmo tempo, vivenciou
sacralizou a Teologia de sua Insreaparecimento", nos
uma complexa situação, diante da
tituição, que só admite a ressurquais fundia-se o corpo reição do corpo e da alma para o
Igreja Católica, a Monarquia, que
confrontavam-se com a expansão
Filho de Deus, Jesus Cristo, na recom o espírito,
financeira judaica, impondo uma
alidade o que resta é uma prodignificados na alma.
conversão religiosa aos judeus.
messa de uma futura ressurreiPara enfrentar o Tribunal do Sanção para os homens. Também,
to Ofício, Vieira produziu para a
deve-se levar em consideração a
sua própria defesa a peça textual jurídica, Repre- força parenética daquele jesuíta, sobre as profecisentações. Nesta pode-se apreciar a agudeza inte- as, os evangelhos, pois estes textos tinham sido
lectual, as posições corajosas e argumentativas des- reinterpretados mediante à tradição hebraica, que
se jesuíta, declarando que “o mundo se converteria continha elementos, significâncias transferíveis à Peuniversalmente cristão e toda essa ( ... ) proprie- nínsula Ibérica, mais especificamente aos territóridade se chamaria “Reino e Império Cristão”19.
os, de Portugal.
A divergência fundamental entre os dois escriO mito do “Encoberto” trazia uma aparente hetores apresenta-se através do uso dos meios pelos resia, porque dimensionava ‘‘atos de reaparequais se realizaria a utopia da imperialização. Para cimento”,nos quais fundia-se a matéria, o corpo com
Pessoa, as vias de acesso seriam as reflexões crí- o espírito, digníficados na alma. Um exemplo foram
ticas culturais, a composição religiosa sincrética, os textos produzidos em torno de D. João IV e soque tinham possibilidades de revigorar a tradição bre outros reis, que Vieira elaborou, afirmando o seu
pagã-panteísta, precursora das multiplicidades re- posicionamento sobrenatural e profético, isso não
ligiosas e do conhecimento adquirido pelas civili- compatível aos dogmas e a teologia da Igreja Catózações. O Quinto Império seria construído medi- lica.
ante o caminho individual, altamente iniciático, o
Conclui-se que há um elo de aproximações entre
qual reverteria numa nação próspera, engajada ao os dois escritores aqui estudados, porque neles apauniversal. Esse intuito privilegiava um encontro sob rece a crença da imortalidade da alma, produzindo
três dimensões: espacial, temporal e espititual. Para uma fenomenologia transcendental, cujos desdobraessa busca, a humanidade, especialmente Portu- mentos ocorrem nas dimensões desconhecidas - um
gal, estava convocado devido à sua vocação místi- laço com o além, com outras vidas, que se comunica e secular, a conviver numa mentalidade incor- cam após a morte.20
porada por ações holísticas, emanadas pelo
O que chama a atenção são as palavras de
aprofundamento da consciência. Pessoa acredita- Fernando Pessoa, quando referiu-se a Vieira, dizendo
va na imortalidade da alma, porque ela tinha o po- que ele era o “Grão-Mestre da Ordem Templária
der de desaparecer e reaparecer, evocando-se em de Portugal”. Essa afirmação não é gratuita, visto
outras formas e trocas 20.
que as Ordens Secretas trazem essas informações.
A postura sobrenaturalista, aparentemente ab- Na verdade elas é que terão as melhores explicasurda de Vieira, frente à ressurreição de D. João ções e revelações para que possamos obter as oriIV, conferindo a este rei o poder da transfiguração gens místicas, cheias de mistérios dos reis, das crensebastianista, deve ser entendida sob o prisma da ças e da cultura de Portugal. Tanto nos textos de
Sabedoria Teosófica, que possui a “Arca do Conhe- Vieira como nos de Pessoa há esses comprometicimento do Universo”, emblemas traduzidos pelas mentos esotéricos, herméticos, principalmente aquecivilizações egípcias e judaica. Devido à ignorância les associados à utopia universalista de uma cultura
da humanidade sobre esses conhecimentos arcai- espiritual, denominada de Quinto Império.
19
CIDADE, Hernani. Prefácio. Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957, pp. XV et pp
222,310. v.2.
20
SERRÃO, Joel et alii. Fernando Pessoa, Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Lisboa: Ática, 1979, p. 196.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997.
55
A comparação parece ser uma das figuras de linguagem
mais utilizadas pelo sertanejo brasileiro. Este ensaio comenta as formas de comparação utilizadas por Guimarães
Rosa em Tutaméia, considerado pelos críticos como de
importância capital na interpretação da obra do escritor mineiro.
Palavras chave:
Literatura brasileira, teoria literária, crítica literária.
The comparison seems to be one of the most common
figures of language used by the brazilian “sertanejo”.
This essay comments the ways Guimarães Rosa uses the
comparison in Tutaméia, seen by his critiques as of crucial
importance for the interpretation of his work.
Key-words:
Brazilian literature, literary theory, literary critique
56
* Luiza Mello
Vasconcelos é
professora do Curso de
Letras no Centro
Universitário da
Grande Dourados/
UNIGRAN. Mestre em
Lingüística pela
Universidade Católica
do Paraná
GUIMARÃES ROSA
TUTAMÉIA
Luiza Mello Vasconcelos *
Literatura é arte ; assim como as demais formas
de arte, possui seu meio próprio de expressão. A
palavra é para a Literatura o que são as cores para
a pintura e os sons para a música. O escritor utiliza
os recursos lingüísticos de que dispõe de maneira a
expressar seus sentimentos, da melhor maneira possível.
Guimarães Rosa, segundo Mary Daniels
(1968), chama a atenção para o valor inerente e o potencial da palavra. As palavras todas
de Rosa em Tutaméia são medidas e pesadas,
postas no seu exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o
livro sem desequilibrar o conjunto. (Ronái, apud
Daniels, 1968)
Muito já se falou sobre a linguagem do escritor
mineiro. O presente artigo tem intenções modestas
e não pretende ser original. Procura apenas relacionar as formas de comparação utilizadas por ele
em Tutaméia com algumas considerações sobre linguagem, Guimarães Rosa e sua obra.
Para muitos críticos, a obra de Guimarães Rosa é
obra de artífice, de artesanato incomparável, tão
consciente, que é impossível conceber que alguém
faça aquilo sem uma total adesão às tarefas que executa. Peregrino Jr., também citado por Daniels (1968),
é um deles: É o temperamento do relojoeiro.
Segundo Wilson Martins (apud Daniels, 1968),
Guimarães Rosa não rompe com a tradição literária de seus país, nem seria grande escritor se o
fizesse:
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 56-59, jul./dez., 1997.
... sua obra define-se como a tentativa, não raro
bem sucedida e sempre, de qualquer forma, extremamente original, de superá-la e prolongá-la pela
inclusão num processo espiritual de outra ordem.
(...) Parece um erro sobrepor o que há de universal e estético na obra de Rosa àquilo que nela existe
de regional e sociológico. (...) Dois caracteres de
estrutura histórica a distinguem: por um lado, a
renovação do regionalismo e, por outro lado, a
fixação literária da linguagem rural. (...) Seria
preciso definir a arte de Guimarães Rosa como uma
arte “sintática”; mesmo no plano romanesco, as
técnicas que empregou são exatamente as mesmas
que condicionaram a invenção do seu estilo enquanto linguagem. É natural que haja, por um
lado, relações estruturais sobre a intriga, os personagens e o meio, e, por outro lado, entre essa
arquitetura e a sua natureza de criação puramente
estética.
Ainda Daniels (1968) considera Guimarães Rosa
regionalista, referindo-se não só à sua representação simpática e viva dos tipos regionais de Minas
mas também à penetração mais profunda nos problemas perenes da personalidade humana tal como
estes se revelam nos homens, mulheres e meninos
simples que habitam o Sertão, refletindo a influência desse fator na sua vida.
Tutaméia foi o último livro de Guimarães Rosa
a ser editado em vida. É considerado pela crítica
como de importância capital na interpretação da
obra de Rosa devido às confidências que nele faz
o autor.
57
tão: Veredas” e “Primeiras EstóriNo apêndice da edição José
A obra de Guimarães
as”. É uma prosa intensiva, comOlympio/MEC, Paulo Ronái diz:
Rosa é obra de artífice,
pacta, até telegráfica na sua ânsia
ele me segredou que dava a
de comunicação imediata e direta de
artesanato
maior importância a este livro,
uma prosa que encurta palavras e
surgindo em seu espírito como
incomparável, tão
frases, elimina ligações extensas, inum todo perfeito não obstante
verte e repete elementos na criação
consciente,
que
é
o que os contos necessariamende um estilo forte, viril, oral. As
impossível conceber que
te tivessem de fragmentário.
múltiplas faces e facetas da existênQuanto ao título, toda minha,
alguém faça aquilo sem
cia, da realidade vivida, sentida, e
confirma a asserção de que o
às vezes pensada de cada indivíduo
total adesão às
ficcionista pôs no livro muito, se
- eis aí a essência de Tutaméia e aliás
tarefas que executa.
não tudo, de si.
de toda a obra rosiana. Daí a
imagética tão típica do autor, a conTutaméia, ou Terceiras Estójunção de elementos às vezes aparias, saiu do prelo pouco mais de
rentemente
díspares
com o fito de recriar experiêntrês meses antes da morte do grande mineiro em
cias
sinestésicas
e
sugerir
novas tomadas de consci1967, e vem coroar a obra dele num estranho
ência.
momento de verdade, tão próximo do fim de sua
Em Tutaméia dá-se uma série de quadros sertacarreira. Mantendo a tradição do conto breve
nejos,
instantâneos da vida, costumes, e ambiente
estabelecida por Primeiras Estórias, Tutaméia nos
do
sertão,
cada qual a revelar-nos uma faceta ditraz uma série de quarenta estórias brevíssimas e
quatro prefácios, estes em forma de ensaio sobre versa e complementar para completar a visão do
vários aspectos da criação literária: o primeiro - conjunto.
Pode-se dizer que Tutaméia contém a chave
Aletria e Hermenêutica - visa à linguagem figurade
toda a obra de Guimarães Rosa e que vem
da; o segundo - Hipotrélico - à criação e uso de
muito
a propósito como última palavra do granneologismos; o terceiro - Nós, os Temulentos nos apresenta uma deliciosa anedota humorística de mineiro.
Casais Monteiro, também citado por Daniels
(uma das poucas, aliás, do autor, e de temática
urbana); o último dos prefácios - Sobre a Escova (1968), afirma que Guimarães Rosa imita o sertae a Dúvida - figura-se de suma importância para nejo no seu processo, mas de modo algum copia a
qualquer leitor da obra rosiana no que tem de de- maneira como ele fala; imita a atitude dele para com
finitivo, confessional, pois é neste prefácio que Gui- a língua, coloca-se no lugar dele, como um sertanemarães Rosa fala abertamente da fé, da felicida- jo erudito, um sertanejo que conhece a beleza da
de, do processo criador, e da essência da vida, sua fala.
Na linguagem espontânea e coloquial observadando-nos por assim dizer a sua auto-análise ou
se
a
atuação constante das figuras e tropos. Dentre
autopsicografia.
eles, a comparação é, sem dúvida, um dos recursos
Para Mary Daniels,
Tutaméia constitui a afirmação definitiva da obra básicos da linguagem sertaneja. Podemos observar,
rosiana. As quarenta minúsculas “estórias” do vo- nas comparações feitas por Rosa em Tutaméia, que
lume, arrumadas numa seqüência mais ou menos as mesmas utilizam palavras familiares, comuns, coalfabética segundo os respectivos títulos, continu- nhecidas por todos, mas combinadas de tal modo
am o padrão estabelecido por “Primeiras Estóri- que sua associação chega a ser poética. Confirmanas”: episódios concisos, de orientação introspectiva, do Nereu Corrêa (1978): não raro desborda do
especulativa. No que diz respeito às características lógico para o poético e deste para o alegórico
lingüísticas (...) pode-se dizer que Tutaméia confir- nos seus arroubos imagísticos:
ma plenamente o caminho escolhido e mantido des... como é como uma fruta azul a água fechade Sagarana, trazendo-nos novamente formas orida na cisterna (Tutaméia, p. 127)
ginais criadas dentro dos padrões reconhecidos como
Por meio do emprego sensível das técnicas poéjá típicos da obra dele. Tais são os geniais “achaticas
e retóricas, Guimarães Rosa cria uma prosa
dos” neologísticos, nenhum igual a seus antecessores
de
beleza
estética e poder expressivo:
nas obras anteriores do autor mas todos obedecen...
miúda,
mansa feito botão em flor (Tutaméia,
do às mesmas tendências formais e criadoras. Evidencia-se em Tutaméia a mesma preocupação pela p. 45)
Diz Viggiano (1974): como grande criador, ele
simultaneidade e dinamismo de expressão que se nota
em “Sagarana”, “Corpo de Baile”, “Grande Ser- transpõe a realidade para o texto de forma ex58
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 56-59, jul./dez., 1997.
tremamente seletiva, a come... e aí eis, salteada de perTutaméia foi o último
çar pelo idioma, que elabora a
fil, como um retrato em branlivro de Guimarães
grau elevadíssimo, a ponto de
co, alheante, fixa no perpasso
Rosa a ser editado em
recriá-lo.
(Tutaméia, p. 123)
... fechada a gestos, ladeanO significado faz uma curva no
vida. É de importância
do o tempo, como o que semecaminho da comunicação; porém,
capital na
lhava causada morte (Tutaméia,
para chegar carregado com um
interpretação de sua
p. 143)
significado mais rico, captado
Para Bosi, citado por Megale
mais em profundidade e, no final
obra devido as
(1978), Rosa reencontra a paisada operação, mais luminoso:
confidências que nele
gem e o mito na materialidade da
Mas o assunto enriquecido
faz o autor.
linguagem:
- como do amarelo extraem-se
... que amistosa o esperava
idéias sem matéria.(Tutaméia,
como o mel que as abelhas crip. 81)
am no mato (Tutaméia, p. 135)
A linguagem oblíqua, por sua irradiação e opaciA linguagem de Guimarães Rosa, segundo a clas- dade, é aberta e sem recortes, ou seja, fundamentalsificação de Coronado (1960), é essencialmente mente interpretativa. Interpretativa no termo justo, enoblíqua: na linguagem oblíqua, pela sua irradia- quanto que obriga o leitor a procurar e encontrar a
ção, o significado radical e o real se dilata, alar- verdadeira mensagem que, embora aberta e de difícil
ga-se pelo contágio imaginário de outros signi- interpretação, não pode ser senão única:
ficados, em graus diversos e dos mais vários
...tão certo como eu hoje estou o que nunca
modos, carregando-se da energia entitativa dos fui (Tutaméia, p. 46)
mesmos; e por esse contágio, seus contornos
Ainda segundo Coronado, uma linguagem preaparecem oscilantes e fluidos dinamizando a re- dominantemente oblíqua tenderia a apagar a
alidade.
para-realidade e o factismo radical da matéria
Queria eu, um dia, que fôsse, atravessar o do conto em benefício de uma mais ou menos
rio, como quem abre enfim os olhos (Tutaméia, disfarçada meta-realidade, como tenderia a
p. 135)
transformar a índole narrativa dos fatos em preA linguagem oblíqua apresenta um caráter alusi- texto ou ponto de partida para outra atitude não
vo e referencial, aberto a outros horizontes, ganhan- maciçamente fáctica e nem relevantemente nardo em riqueza e sensibilidade o que perde em estri- rativa pois, para ele, a linguagem do conto é esto rigor:
sencialmente reta, atendendo às características do
... como o dia de ontem que não passou gênero.
(Tutaméia, p. 133)
Extrapolando as observações feitas com relação
O escritor, aproveitando o sistema estabeleci- à linguagem de Guimarães Rosa, considerando-a,
do e mantendo-o nas suas bases (pois, de outro de acordo com a classificação de Coronado(1970)
modo, não seria entendido pela comunidade) in- como linguagem tipicamente oblíqua, coloca-se uma
troduz nos sinais comuns de comunicação algumas questão: pode-se dizer que os contos de Rosa são
modificações pessoais que dão outra dimensão à os supostos contos mencionados pelo teórico, que,
mensagem lingüística, embaçando inicialmente a em virtude da linguagem oblíqua, estão de tal modo
superfície de sua transparência, o imediatismo de desfigurados que, mais do que contos, acabam sensua transmissão:
do peças literárias de outra natureza e gênero?
Referências Bibliográficas
CORONADO, Guillermo de La Cruz (1970). Teoria do Conto. Separata de Estudos Anglo-Hispânicos m. 2-3. S. José do Rio Preto:
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
CORRÊA, Nereu (1978). A tapeçaria lingüística dós Sertões e outros estudos. S. Paulo: Quíron/MEC.
DANIELS, Mary (1968). João Guimarães Rosa: Travessia Literária. Rio de Janeiro: José Olympio.
MEGALE, Heitor e MATSUOKA, Marilena (org.) (1978). Contos - Guimarães Rosa. Série Literária, vol.3. S. Paulo: Nacional.
VIGGIANO,Alan (1974). Itinerário de Riobaldo Tatarana. B. Horizonte: Comunicação/MEC.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 56-59, jul./dez., 1997.
59
Neste trabalho fazemos uma primeira tentativa de compreensão da prática leitora das leitoras de romances sentimentais de massa. A partir de novas concepções de linguagem, de sujeito e de leitura, defendemos a hipótese de que
essas leitoras são “usuárias’’ e não “consumidoras” recolhidas à passividade e à alienação. Nos momentos de leitura, elas vivem uma experiência estética: como no filme A
Rosa Púrpura do Cairo, há uma fratura nos acontecimentos
cotidianos, uma conjunção sujeito/objeto e uma visão momentânea, da ‘‘perfeição’’ que as predispõem à construção
de utopias.
Palavras-chave:
leitura, práticas leitoras,
romances sentimentais de massa, utopia.
In this work, we make a first attempt in order to
understand the practical reading of a group of readers
who enjoy a kind of popular sentimental romances. Starting
from a new language conception, about subject and about
reading, we hold the hypothesis that these readers are
“users” and not “consumers” due to the passivity and the
alienation. While reading, they have an aesthetic
experience: like in the film “The Purple Rose of Cairo”,
there is a rupture in the daily events, a conjunction subject
/ object and a momentary vision of the “perfection” that
predispose them in a construction of utopias.
Key-words:
reading, practical reading,
popular sentimental romances, utopia
60
* J. Genésio Fernandes
é artista plástico e prof.
de Teoria Literária do
Depto de Letras da
UFMS. Mestre em
Teoria da Literatura
pela UFPE e doutorando
pela USP.
LEITORAS DE SABRINA:
USUÁRIAS OU
CONSUMIDORAS?
UMA PRIMEIRA TENTATIVA DE COMPREENSÃO
DA PRÁTICA LEITORA DAS LEITORAS
DE ROMANCES SENTIMENTAIS DE MASSA
J. Genésio Fernandes*
1. Introdução
1.1. Ao leitor
“A leitura tem uma história. Não foi sempre e em toda parte a
mesma. (...) Os esquemas interpretativos pertencem, a configurações culturais, que têm variado enormemente através dos
tempos. Como nossos ancestrais viviam em mundos mentais
diferentes, devem ter lido de forma diferente, e a história da
leitura poderia ser tão complexa quanto a história do
penssamento.”1
“A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção qualificada de ‘‘consumo’’: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insunia ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar por produtos
próprios mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. (...) Essas práticas
colocam em jogo uma ratio ‘‘popular’’, uma maneira de pensar investida numa maneira de agir, uma arte de combinar
indissociável de uma maneira de utilizar.’’2
Para aqueles leitores que têm a leitura na conta
de uma atividade sagrada de poucos iniciados com
as obras que a instituição literária elegeu como “clássicos”, “obras-primas’’, ou ‘‘bons livros’’ o título aci-
ma não deixa de inquietar.3 Há aqueles que, antes de
qualquer consideração, precipitam-se e revelam um
enorme zelo de guardião: “mas isso não é literatura!”. Há também os que são movidos por uma ojeriza
declarada pelos produtos dos meios de comunicação
de massa, porque os concebem como eficientes fábricas de massas dominadas e homogêneas. 4 E há
aqueles outros que, embora gostem de novelas, filmes e romances sentimentais, mantêm o hábito
inconfesso e se portam como os leitores de um
Maugham fora de moda, descritos por Frederico
Branco: “Retiram furtivamente os volumes das prateleiras, quase como quem se arrisca a comprar cocaína de um fornecedor fortuito. Feita a aquisição,
partem com seu Maugham cuidadosamente embrulhado em papel opaco, sorrateiramente, olhando de
soslaio, temendo serem pilhados em flagrante de concessão à vulgaridade por amigos ou inimigos”.5
Aos primeiros, adianto que não tenho a pretensão
de desmerecer a Literatura ou pregar a morte dela
para, em seu lugar, exaltar a literatura de massa.
Tranqüilizem-se. Também sou dessas águas, ainda que
sem a exigência de que sejam absolutas.6 Aos segundos, lembraria que “Sempre é bom recordar que não
1
Darton, Robert, História da Leitura: In: Burke, Peter (Org.), A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo, Unesp, 1992, p. 218.
Certeau, Michel. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1994
3
Jean Hebrard diz que as políticas pedagógicas ‘‘conhecem apenas uma modalidade, universal, da leitura, aquela que, por sua transparência, permite ao livro, pura mensagem, transformar a cera mole que imaginamos ser o leitor’’. Ver seu artigo ‘‘Autodidatismo Exemplar:
Como Valentin Janery-Duval Aprendeu a Ler?’’ In: Chartier, Roger, Práticas da Leitura. São Paulo, Estação Liberdade, 1996, p. 36.
4
Ver: Felinto, Marilene, Mulheres que Lêem Bobagem. In: Folha de São Paulo de 29 de janeiro de 1995.
5
Branco, Frederico, Por que reler Maugham. In O Estado de São Paulo, de 15 de maio de 1988.
6
Lacoue-Labarthe, Philiphe et Nancy, Jean Luc (Orgs). L’Absolu Littéraire: Theorie de la Littérature du Romantisme Alemand. Paris, Du
Seuil, 1978
2
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997.
61
se deve tomar os outros por idiotas”.7 E, aos terceiros,
quero dizer que, embora não sendo um aficionado por
romances sentimentais de massa, também experimentei uma certa vergonha ao perceber que escolhera como
objeto de estudo uma prática leitora que valoriza um
gênero tão negativamente marcado como “porcaria’’
ou ‘‘bobagem’’8 por freqüentadores assíduos da Literatura, numa ponta e, na outra, pelos que têm elevado
grau de inapetência à leitura. Essa vergonha, proveniente das coerções do campo cultural9 em que milito,
surpreendeu-me, colocou interrogações e foi o fator
que firmou a decisão pelo estudo do assunto. Entretanto o que há muito tempo me despertara para as
operações dos usuários dos produtos culturais foi um
caso pitoresco.
1.2. A obra de arte no
pé de tomate
e o caso do teatro do absurdo
Em 1987 mudei-me de Minas para o Acre. Lá dava
aula de Teoria da Literatura e de Literatura, pintava
minhas obras em duratex e, assim, continuava seguro
dos conceitos necessários para atuar na área, até que
a estranha conjunção de uma obra de arte com um pé
de tomate perturbou-me o conforto intelectual.10
Dona Ana, a vizinha viu a pintura em duratex na
varanda de minha casa, maravilhou-se com o que estava procurando, falou dos planos, para a sala, descreveu
longamente a moldura que colocaria e as combinações
que faria com ela, levou o quadro, e o tempo passou.
Um belo dia, dona Vera apareceu lá em casa. Estava injuriada com dona Ana e fazia um pedido quase
desagravo: queria o tal quadro. “Que aquilo era uma
ofensa’’, e que eu fosse vê-lo, discretamente, na horta
da vizinha. Tudo muito estranho, mas fui e vi. Lá estava minha obra de arte, molhada, suja de terra, servindo
de jirau para um belo pé de tomate.
Para atender dona Vera, salvar a obra e evitar
encrenca, sugeri que propusesse uma troca bem argumentada à desalmada dona Ana: uma estaca boa pelo
pedaço de duratex. Que fosse ‘‘para tapar buraco da
casa dos cachorros”. Dito e feito. Dona Vera, vitoriosa, levou a obra de arte para casa e a história teria
acabado por aí se, depois de algum tempo, não chegasse a vez de dona Ana também ir ver-me injuriada.
Apareceu na varanda com ares de vítima. Fora
enganada, estava ofendida, mas demorou mais na
descrição voluptuosa da moldura cor de ouro e
arabescada, caríssima, que a danada da Vera colocara, lá na cidade maravilhosa, no Rio de Janeiro.
Desconsolada com a perda, pediu por favor outro quadro. Prometi, mas, desta vez, compreendendo que havia uma diferença entre o que eu lhe dava e o que
ela recebia e usava. O quadro como um mundo de
valores expressivos, independente da moldura e das
combinações que pudesse estabelecer com os móveis da casa, contava pouco para dona Ana. Diante
de um produto cultural dado como signo de distinção
e de bom gosto estético, e não podendo tratar dele
convenientemente por desconhecer a linguagem que
o campo das artes utiliza para fazê-lo circular como
um valor, ela parasitava-o com uma arte de usar
muito própria e sofisticada. O que contava para ela
era uma arte de combinar indissociável de uma maneira de utilizar.
Em l978, chegou ao Acre o projeto de apresentação
de uma peça de teatro do absurdo na cidade de Sena
Madureira, por um grupo de missionários da cultura do
Rio de Janeiro.
Disse-lhes que a cidadezinha fora no passado, na
época áurea da borracha, um palco de apresentação
de comédias, que provavelmente teriam bom público e
que repensassem a programação de peças que
destacavam mais as inovações formais. Dito isso, foram
risonhos e voltaram de olho arregalado.
A peça tinha sido um sucesso de público e um
fracasso de gosto, quase dera em tragédia. As pessoas
chegaram cedo, suportaram as movimentações e os
diálogos absurdos no palco e, depois da peça, ficaram
esperando a Peça. Como os artistas estranhassem a
expectativa delas, trataram de corrigi-la: o espetáculo
era aquilo mesmo e já acabara. Babau! Poderiam ir
embora. E foi então que apresentou-se o absurdo, agora
para os artistas: ofendidas, sairiam todas, mas queriam
o dinheiro do ingresso, nem que fosse à força.
Resultado: os artistas só puderam sair do camarim bem
de madrugada.
A Dona Ana e as pessoas de Sena Madureira
tinham uma prática leitora diversa da erudita, e
provavelmente, experimentassem o prazer estético no
contato com objetos artísticos que privilegiavam a forma
do conteúdo, uma arte mais mimética, como a pintura
figurativa ( quando muito até a pintura impressionista),
a comédia e as narrativas tradicionais.
7
Certeau, Michel, op. Cit. P. 19
Nas entrevistas, as leitoras de Sabrina, Bianca, Júlia, etc., falam, explícita ou implicitamente, que há uma censura muito forte em relação
a sua prática leitora: ‘‘Isso aí é porcaria, dizem eles. Isso principalmente quem nem lê nada’’.
9
A expressão pertence a Pierre Bourdieu. Ver A Economia das Trocas Simbólicas, São Paulo, Perspectiva, 1987.
10
Para não parecer ingênuo ou pretensioso, esclareço que não pretendo colocar meus trabalhos de pintura na categoria consagradora de
“obra de arte”. Nomeio-os assim, colocando-me no ponto de vista daqueles que os acolheram em museus e salões de arte - sem garantia
alguma de que estejam certos. Meu interesse aqui é outro.
8
62
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997.
No campo dos estudos dos bens culturais que o
homem produz ao longo da história, tem sido comum
os estudiosos, homens cultos de uma determinada sociedade, elegerem um posto de observação voltado
para o passado e, daí, munidos do protocolo verbal
próprio do campo cultural em que militam, passarem
a estabelecer conceitos e teorias com pretensões de
universalidade e, com eles, os divisores de água entre o que é e o que não é cultura erudita, cultura de
massa, cultura popular, arte, arte primitiva, Literatura, para-literatura, contra-literatura, literatura feminina. Por meio da teoria (theorein, fazer crer) e de
uma amnésia do processo de constituição dessas categorias estabelecem a diferença e promulgam o sagrado. 11 Não quero dizer que os estudiosos possam
prescindir do estabelecimento de categorias e conceitos para pensar, mas tem sido comum ver explícita
ou implicitamente no trabalho de reflexão que fazem
sobre os produtos culturais, sobre a Literatura, por
exemplo, uma dificuldade em tomar a própria reflexão e o objeto a que ela se aplica como um produto
historicamente marcado. Não lhes ocorre com freqüência desviar o olhar do objeto e dos valores que
lhe atribuem para um outro objeto, o uso que o sujeito faz desse objeto dentro de determinadas condições
sociais e históricas, no interior de determinadas práticas leitoras.
A leitura é uma prática milenar e diversificada de
atualização desse objeto virtual que é o livro12. O sentido é produzido, atualizado ou atribuído ao texto dentro de determinada prática leitora, de determinadas
condições de produção. Aqui, para tratar da leitura,
mais especificamente, da leitura dos romances sentimentais de massa, como uma atividade de algum modo
produtiva e não passiva, atividade de consumidores (dominados) como querem crer os seguidores dos postulados marxistas e frankfurtianos, é preciso romper com
a concepção de sujeito universal e abstrato, de sujeito
assujeitado13, com a concepção de linguagem como
sistema de signos e meio de comunicação e, conseqüentemente, com a concepção de leitura como mera
decodificação 14 .
2. Alguns Pressupostos
Teóricos
Para explicitar a concepção de linguagem com que
concordamos, temos, necessariamente, de começar por
fazer referência ao Curso de Lingüística Geral.
Saussure, embora tenha se ocupado da língua como
um sistema de signos, não deixa de fazer distinção entre
linguagem e língua. Diz ele:
‘‘Tomada como um todo, a linguagem é multiforme
e heteróclita; participando de diversos domínios, tanto do físico, quanto do fisiológico e do psíquico, ela
pertence ainda ao domínio do individual e ao domínio do social; ela não se deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos humanos, porque não se
sabe como isolar sua unidade. A língua, ao contrário, é um todo em si mesma e um princípio de classificação. A partir do momento em que atribuímos
o maior destaque entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num conjunto que
não se presta a nenhuma outra clasificação.’’15
Essa é a distinção que faz, tomando a totalidade
dos fenômenos das manifestações lingüísticas. A partir dela, estabelece a dicotomia língua/fala, separando o que é social do que é individual. Enquanto a língua
é, para ele, um produto que o indivíduo registra passivamente; a fala é um ato de vontade absolutamente
individual. Com essa concepção abstrata e ideal de
língua, com esse recorte por demais redutor, Sausurre
conseguiu dar impulso aos estudos da língua e conferir
estatuto de ciência à Lingüística. Muito, porém, do que
é a língua viva ficou de fora.
Não é essa, entretanto, a concepção que postulamos aqui. Ela nos levaria conseqüentemente, à concepção de leitura como decodificação16, e ao princípio de legibilidade17 que, uma vez resguardado na
produção, asseguraria recepção ótima daquilo que o
emissor pensa que seu texto quer dizer e vai dizer. Por
outras palavras, e utilizando os termos de Eco, a constituição do autor-modelo, por meio de estratégias adequadas estabelecidas, pela habilidade de previsão do
autor-empírico, instaurar-se-ia, no mesmo lance, um
Leitor-Modelo e, assim, assegurar-se-ia um princípio
11
Ver Bourdieu, Pierre, O Poder Simbólico, p. 293.
‘‘Desde suas origens mesopotâmicas, o texto é um objueto virtual, abstrato, independente de um suporte específico. Essa entidade
virtual atualiza-se em múltiplas versões, traduções, edições, exemplares e cópias. Ao interpretar, ao dar sentido ao texto aqui e agora,
o leitor leva adiante essa cascata de atualizações’’: Lévi, Pierre, O Que é Virtual. São Paulo, Editora 34, 1996, p. 35.
13
Ver referência a Althusseur, Luis, Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado in Brandão, Helena H. Nagamine, Introdução à Análise
do Discurso. Campinas, Editora da Unicamp, 1993, p. 23.
14
Kleiman, Angela, Texto e Leitor. Campinas, Pontes, 1984. Para a autora, não se pode conceber a leitura como decodificação, mas como
atribuição de sentido ao texto.
15
Saussure, Ferdinand, Curso de Linguística Geral. São Paulo, Cultrix, s. d., apud Brandão, Helena H. Nagamine, op. cit. supra.
16
Codificar tem o sentido de colocar um conteúdo no código e decodificar, o sentido de retirá-lo do código, de traduzi-lo - e a atividade
de leitura não se resume a isso. Ver Kleiman, Angela, op. Cit Supra.
17
Orlandi questiona esse conceito: ‘‘Percebi que a legibilidade do texto tinha pouco de ‘‘objetivo’’ e não era apenas uma consequência
direta, unilateral e automática da escrita. Não me parecia verdadeira a afirmação: ‘‘um texto bem escrito é legível’’. Eu me perguntava:
bem escrito para quem? Legível para quem?’’ Orlandi, Eni Pulcinelli, Discurso & Leitura, Unicamp, cortez, 1988, p. 8
12
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de legibilidade e, conseqüentemente, a decodificação do
texto por parte do leitor-empírico18. Esse modo de pensar a linguagem e a leitura nos levaria a concordar com a
opinião corrente de que os leitores da literatura de massa
recebem exatamente aquilo que o texto (com estrutura
simples e vocabulário fácil) quer dizer.19 Parece que são
essas as concepções que estão no fundo de grande parte
dos estudos da literatura de massa, orientados pelo pensamento da Escola de Frankfurt, e que tomam os leitores
como consumidores, vítimas da competência técnica
homogeneizante da indústria cultural. Ecléa Bosi, por
exemplo, diz que na literatura açucarada ‘‘reduz-se o leitor ao nível da aceitação passiva’’.20 Discordamos dessas concepções, pois se a ‘‘língua pode ajudar a moldar a
identidade coletiva”, também “pode atuar como parteira
da identidade individual, a viga mestra da biografia.”21
Preferimos as contribuições de Bakhtin e da Análise do
Discurso que nos permitem uma concepção diversa de
linguagem, de sujeito e de leitura.
Bakhtin, por um lado, concorda com Saussure quanto
ao princípio de que a língua é um fato social; mas, por
outro, discorda dele, ao conceber a língua como um
fenômeno concreto, produto da interação social22 .
Nessa concepção de língua como fenômeno vivo de
interação entre indivíduos sociais, o signo ganha espessura: não se trata mais de um ‘‘sinal’’ inerte e
preexistente ao ato de fala, mas de signo dialético, vivo,
arena de luta dos valores sociais. Para ele, a palavra,
signo ideológico, dirigindo-se a um interlocutor, “é função da pessoa desse interlocutor’’23 e de sua atividade
social. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, diz:
‘‘Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela
é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige a alguém. Ela
constitui justamente o produto da interação do locutor
e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um
em relação ao outro. Através da palavra, defino-me
em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade.’’24 Para Bakhtin, a linguagem é,
portanto, um processo que instaura, ao mesmo tempo,
o ato individual da fala, o sujeito (indivíduo e ser social), e a própria linguagem.
Em sua Estética da Criação Verbal, Bakhtin diz que,
no começo da constituição da subjetividade, tudo que
diz respeito a mim, e que vai fluindo para minha consciência, a começar pelo meu nome, me vem do mundo
exterior, através da palavra alheia, no caso, a voz de
meus familiares, com todo o colorido de emoções e
valores.25 Mesmo os objetos do mundo, diferentemente do que parece querer Paulo Freire em seu texto A
Importância do Ato de Ler, me vêm revestidos de
signos e da memória social deles. Em outras palavras,
as primeiras referências que formo de mim mesmo
me vêm através dos outros: “a consciência do homem
desperta envolvida na consciência alheia’’26.
Essas, palavras alheias, por sua vez, passam por
um processo de reelaboração do qual resultam as palavras próprias alheias e, depois, as palavras próprias, com o esquecimento de suas origens. É com essas
palavras próprias, marcadas já por um caráter criativo,
que formo as contrapalavras com as quais entro em
diálogo ou em combate dialógico e ideológico com a
palavra do outro, agindo sobre ela, sobre a cultura.27
Por isso, não há como concordar com a noção de
sujeito assujeitado28 produto do meio e das condições históricas; e nem com a noção de um sujeito
como origem e fonte de seu dizer. Com a contribuição
de Bakhtin e as reflexões de João Wanderley Geraldi,
entendemos que o sujeito é sempre incompletude
fundante29 que, pelo desejo de completude, mobiliza o
18
Utilizamos aqui os termos da Eco, mas seria injusto dar a entender que ele concebe a instauração adequada do ‘‘autor-modelo’’ como
suficiente para assegurar leituras corretas. O que se pode dizer é que em ‘‘Lector in Fabula’’ ele dá maior destaque ou parece crer, ainda,
que o ‘‘autor-modelo’’, como conjunto de estratégias de previsão de um ‘‘leitor-modelo’’, seria uma construção totalmente consciente
- o que, sabemos hoje, não é bem assim. Essa afirmação pode ser comprovada com as reações do Eco romancista às cartas e opiniões dos
leitores sobre seus romances: de início, ele se confessa até zangado com as atribuições de alguns sentidos, para ele improcedentes, ao seu
texto; mas posteriormente admite e confessa que alguns leitores tinham razão.
19
Lotman afirma que ‘‘É falso que os pensamentos se repetem. Cada pensamento é novo, porque a novidade rodeia-o e lhe dá forma.’’:
Lotman, Iuri, A Estrutura do Texto Artístico, Lisboa, Estampa, 1978, p. 38.
20
Bosi, Ecléa. Cultura de Massa e Cultura Popular. Petrópolis, Vozes, 1986, p. 165.
21
Burke, Peter et Porter, Roy (Orgs.), linguagem, indivíduo e Sociedade. Unesp, p. 2
22
Bakhtin, Mikhail (V. N. Volochínov), Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec, 1992. Ver principalmente capítulo 4:
‘‘Duas orientações do pensamento filosófico-lingüístico’’.
23
Bakhtin, op. cit. supra P. 112
24
Bakhtin, op. cit. supra p. 113
25
Bakhtin, Mikhail, A Estética da Criação Verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
26
Bakhtin apud Claudia T. G. de Lemos. In Barros, Diana Luz Pessoa de et Fiorin, José Luiz, Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade.
São Paulo, Edusp, 1975, p. 39.
27
Ver Claudia T. Lemos. In: op. Cit Supra.
28
Ver referência a esse termo em nota acima.
29
Todorov, Tzvetan, A Vida Em Comum: Ensaios de Antropologia Social. São Paulo, Papirus, 1996. p. 22: ‘‘Os animais e os deuses são
auto-suficientes, pode-se portanto, representá-los a sós; o homem, por sua vez, é irremediavelmente incompleto, tem necessidade dos
outros.’’; ‘‘A vida em sociedade não provém de uma escolha: somos sempre sociais. Como já observaram, quase na mesma época, orusso
Bakhtin e o americano H. G. Mead, jamais podemos nos ver fisicamente por inteiro; é a prova gritante de nossa incompletude
constitutiva, da necessidade que temos dos outros para estabelecer nossa consciência do eu, portanto, também para existir.
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outro, miragem de completude, para se fazer inteiro,
configurando, assim, um espaço discursivo onde identidade e alteridade se apresentam sempre em relação dinâmica 30 . Nesse espaço discursivo de constituição da subjetividade, agem a força do sujeito enquanto produto de condições mas, também e sobremaneira, um indivíduo criativo, que articula, sempre, e de maneira diferente, a herança cultural, produzindo nesse presente a diferença, a história de amanhã. 31
Dessas concepções de línguagem e de sujeito deriva a concepção de leitura que postulamos: a leitura como um combate dialógico e ideológico de minhas palavras, as que internalizei no processo histórico de minha constituição, com a palavra alheia, para
a produção de sentidos novos, de diferenças, de identidade. 32
Os estudos de Maingueneau sobre a passagem do
Humanismo Devoto ao Jansenismo33 nos ajudam a
compreender que, a despeito de todas as coerções do
código língüístico e do código dos gêneros, o que realizamos no processo de leitura é uma tradução dos enunciados do outro em nossas próprias categorias - e com
a agravante de que não se trata dos enunciados do
outro como tais, mas dos simulacros que deles construímos.
Si sur le plan de langue chacun des protagonistes
discursifs peut croire q’uil “comprend’’ les énoncé
de l’autre, i1 ne vá pas de même sur le plan du
discours, où s’exercent des contraintes historiques
irrédutibles. Chacun ne fait que traduire les énoncés
de l’autre dans ses propres catérgories, les mots
circulent bien d’une pôle de l’échance a l’autre, mais
avec les ‘‘mêmes’’ mots ils ne parlent assurement
pas de la même chose.34
Maingueneau postula assim uma interincompreensão fundante e recíproca entre os interlocutores; uma interincompreensão irremediável por
qualquer dicionário ou higiene lingüística que se convoque, porque constitutiva da atividade da linguagem,
da identidade do sujeito em relação ao Outro.” É por
isso que Maingueneau estabelece o primado do
interdiscurso sobre o discurso, ou seja, a unidade de
análise é, para ele, o interdiscurso como um espaço de
relação entre vários discursos.
O interdiscurso consiste em um processo de
reconfiguração incessante no qual uma formação
discursiva é conduzida (...) a incorporar elementos
pré-construídos produzidos no exterior dela própria;
a produzir sua redefinição e seu retorno, a suscitar
igualmente a lembrança de seus próprios elementos, a organizar sua repetição, mas também a provocar eventualmente seu apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação35
Nessa perspectiva, os sentidos não estão para sempre dados, trafegando incorruptíveis de um pólo ao outro
da comunicação e com o poder de se imprimir na cera
mole dos leitores, mas em constituição. Segundo Jean
Hebrard, ‘‘as políticas de alfabetização, quaisquer que
sejam, guardam um otimismo pedagógico inabalável:
elas conhecem apenas uma modalidade, universal, universal, de leitura, aquela que, por sua transparência,
permite ao livro, pura mensagem, transformar a cera
mole que imaginamos ser o leitor. Nesse sentido, ensinar a ler a um grupo social até então analfabeto, é
apresentá-lo ao poder, com direito infinito, do livro.’’36
Isso nos leva a considerar as leitoras de Sabrina, Bianca,
Julia não como consumidoras, no sentido de dominadas por uma mensagem ideológica, mas como usuárias
com muito maior grau de consciência do que fazem e
com muito maior julgamento crítico sobre o objeto que
usam do que comumente, ou preconceituosamente, se
supõe. Talvez para ela a leitura não seja apenas uma
operação intelectual, mas uma operação de caça semelhante àquela da personagem de Eugênio Onieguin,
de Pushkin, quando, visitando a biblioteca do homem
que ama: olha na lombada os títulos das obras, folheia
os livros retendo-se aqui e ali - não para perceber a
qualidade literária dos volumes, mas para negacear um
código de acesso ao mundo do amado. A todo momento, os usuários dos códigos estão a transformá-los
em metáforas e elipses de suas caçadas, mesmo que
30
Geraldi, Wanderley, conferência proferida no 10º Cole, Campinas, 1995.
Geraldi, conferência citada acima.
32
Idem.
33
Maingueneau, Dominique, Sémantique de la Polémique. Lausanne, Suisse, 1983.
34
Maingueneau, op. Cit. 25: ‘‘Se no plano da língua cada um dos protagonistas do discurso podem acreditar que ‘‘compreendem’’ os
enunciados do outro, não ocorre o mesmo no plano do discurso onde ocorrem constrangimentos históricos irredutíveis. Cada um traduz
os enunciados do outro em suas próprias categorias; as palavras circulam de um pólo ao outro da interação, mas eles, com as ‘‘mesmas’’
palavras, não falam da mesma coisa.
35
Courtine et Morandin, 1981, apud Brandão, Helena H. Nagamine, op. cit. supra.
36
‘‘Mas as políticas de alfabetização, quaisquer que sejam, guardam um otimismo pedagógico inabalável: elas conhecem apenas uma
modalidade universal, de leitura, aquela que, por sua transparência, permite ao livro, pura mensagem, transformar a cera mole que
imaginamos ser o leitor. Nesse sentido, ensinar a ler a um grupo social até então analfabeto, é apresentá-lo ao poder, com direito infinito,
do livro.’’: Hébrard, Jean, ‘‘O Autodidatismo Exemplar: Como Valentin Jamerey-Durval Aprendeu, a Ler?’’ in Bourdieu, Pierre,
Bresson, François et Chartier, Roger (Orgs), Práticas da Leitura. São Paulo, Estação Liberdade, 1996, p. 36.
31
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não autorizadas pelas práticas dominantes.37 Por astúcias que remontam às profundezas das eras, ao
mimetismo desenvolvido por certos peixes disfarçados e insetos camuflados, assim também procederam
os índios da América submetidos à religião dos vencedores; os seguidores do Candomblé da Bahia diante
da igreja católica; as mulheres em relação aos códigos
masculinos de contenção e de heroísmo; os leitores
em relação à escrita que se impôs como uma
racionalidade estável pelo banimento do corpo.38
A leitura é, por isso, uma atividade tática e não
estratégica. Denomina-se estratégia ‘‘o cálculo das
relações de força que se torna possível a partir do
momento em que um sujeito de querer e poder é
isolável de um ‘ambiente’. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e, portanto,
capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta.’’39 Quanto à
tática, ao contrário, ela refere-se a “um cálculo que
não pode contar com um próprio, nem, portanto, com
uma fronteira que distingue o outro como totalidade
visível. A tática só tem por lugar o outro.” 40 O
migrante, por exemplo, não tem um lugar ‘próprio’,
uma base onde capitalizar seu ganhos, instaurar sua
independência, projetar sua expansão. Ele está dentro do lugar do outro, de sua língua, de sua cultura, de
seus domínios. Assim, por esse fato, a tática depende do tempo. O migrante vigia no tempo para tirar
proveitos, fazer jogadas oportunas, combinando elementos heterogêneos, sem contudo capitalizar seus
proveitos, isto é, sem dominar o tempo. A estratégia,
ao contrário, postulando um lugar, um próprio, “é uma
vitória do lugar sobre o tempo’’.
Para diferenciar os tipos de táticas, podem-se encontrar modelos na retórica. Nada de surpreendente, pois, de um lado, ela descreve os “rodeios” de
que uma língua pode ser simultaneamente o lugar e o
objeto e, de outro, essas manipulações são relativas
às ocasiões e às maneiras de mudar (seduzir, persuadir, utilizar) o querer do outro (o destinatário). Por
essas duas razões, a retórica, ou ciências das “maneiras de falar’’ oferece um aparelho de figuras típicas para a análise das maneiras cotidianas de fazer
ao passo que ela, em princípio se acha excluída do
discurso científico. Duas lógicas da ação (uma tática
e outra estratégica) se depreendem dessas duas maneiras de praticar a linguagem. No espaço da língua
(como no dos jogos) uma sociedade explícita mais as
regras formais do agir e os funcionamentos que as
diferenciam. (...) os sofistas ocupam um lugar privilegiado, do ponto de vista das táticas. Tinham eles
como princípio segundo Corax, tornar “mais forte” a
posição “mais fraca’’ e pretendiam possuir a arte de
vencer o poder por uma certa maneira de aproveitar
a ocasião. As suas teorias inscrevem aliás as táticas
em uma longa tradição de reflexões sobre as relações que a razão mentém com a ação e com o instante. Passando pela Arte da Guerra de Shu Tzu na
China ou pela antologia árabe do Livro das Astúcias, esta tradição de uma lógica articulada em cima
da conjuntura e a vontade do outro, conduz até a
sociolingüística contemporânea.41
37
Jean Hébrad diz que ‘‘O trabalho de leitura é, em grande parte, um processo de produção de sentido no qual o texto participa mais como
um conjunto de obrigações (que o leitor toma mais ou menos em consideração) do que como estrita mensagem. A partir de então,
pensamos poder mostrar que as inferências inerentes ao ato léxico apóiam-se mais sobre a capitalização cultural específica de cada leitor
de que sobre a aprendizagem escolar de uma técnica de decifração.’’ Ver Bourdieu, Pierre, op. cit. p. 37.
38
Certeau, Michel, op. cit. p. 19 e 38. Ver também: Vattimo, Gianni, The Problem os Subjectivity From Nietsche to Heidegger. In:
Garravetta, Peter (editor), Differentia: Review of Italian Thought, number 1. Itália, Differentia Ltd, 1986, p. 10: ‘‘...in the struggle for
survival, mimicry, camouflage [mimetismo] is a crucial instrument.’’ Ver, ainda, Certeau, op. cit. p. 229: A virada da modernidade se
caracteriza em primeiro lugar, no século XVII, pela desvalorização do enunciado e pela concentração sobre o ato de enunciar, a
enunciação. Quando se tinha certeza quanto ao interlocutor (‘‘Deus falava no mundo’’), a atenção se voltava para o ato de decodificar
os seus enunciados, os ‘‘mistérios’’ do mundo. Mas quando essa certeza fica perturbada com as instituições política e religiosas que lhe
deram garantia, pergunta-se pela possibilidade de achar substitutos para o único locutor: quem falará? E a quem? Com o desaparecimento do primeiro locutor surge o problema da comunicação, ou seja, de uma linguagem que se deve fazer e não mais somente ouvir. No
oceano da linguagem progressivamente disseminado, mundo sem margens e sem âncoras é duvidoso, e logo improvável que um único
sujeito se aproprie dele para fazê-lo falar), cada discurso particular atesta a ausência que, no passado, era atribuído ao indivíduo pela
organização de um cosmos e, portanto, a necessidade de cortar para si um lugar por uma maneira própria de tratar um departamento da
língua. Noutros termos, pelo fato de perder seu lugar, o indivíduo nasce como sujeito. O lugar que lhe era outrora fixado por uma língua
cosmológica, ouvida como ‘‘vocação’’ e colocação numa ordem do mundo, torna-se agora um ‘‘nada’’, uma espécie de vácuo que obriga
o sujeito a apoderar-se de um espaço, colocar-se si mesmo como um produtor de escritura. Devido a esse isolamento do sujeito, a
linguagem se objetiva, tornando-se um campo que se deve lavrar e não mais decifrar, uma natureza desordenada que se há de cultivar. A
ideologia dominante se muda em técnica, tendo por programa essencial a construção de uma linguagem e não mais a sua leitura. A própria
linguagem deve ser agora fabricada, ‘‘escrita’’. Construir uma ciência e construir uma língua é, para Condillac, o mesmo trabalho, bem
como estabelecer a revolução e, para os homens de 1790, forjar e impor um francês nacional, isso implica um afastamento do corpo
vivido (tradicional e individual) e, portanto, também de tudo aquilo que, no povo, continua ligado à terra, ao lugar, à oralidade ou às
tarefas não-verbais. O domínio da linguagem garante e isola um novo poder, ‘‘burguês’’, o poder de fazer a história fabricando linguagens.
Este poder essencialmente escriturístico, não contesta apenas o privilégio do ‘‘nascimento’’, ou seja, da nobreza: ele define o código da
promoção socio-econômica e domina, controla ou seleciona segundo suas normas todos aqueles que não possuem esse domínio da
linguagem. A escritura se torna um princípio da hierarquização social que privilegia, ontem o burguês, hoje o tecnocrata.’’
39
Certeau, Michel, op. cit. p. 46
40
Certeau, Michel, op. cit. p. 46 e 47
41
Certeau, Michel, op. cit. p. 47 e 48
66
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997.
Como dissemos, a atividade leitora, diferentemente
da atividade escrita, é de ordem tática, pois o fluir dos
olhos sobre a página não domina o tempo, não capitaliza. Os leitores viajam, caçam nas terras alheias, regalam-se com os bens que colhem, mas não estocam,
não acumulam; a escrita ao contrário, acumula, estoca
e bate-se contra o tempo pela fundação de um lugar.
A atividade leitora das leitoras de Sabrina, acreditamos, contrariamente aos que a têm como lugar de dominação, de inércia e submissão, constitui-se como uma
produção silenciosa:
(...) flutuação através da página, metamorfose do olho
pelo texto que viaja, improvisação e expectação de
significados introduzidos de certas palavras,
intersecções de espaços escritos, dança efêmera. Mas
incapaz de fazer um estoque (salvo se escreve ou
‘‘registra’’), o leitor não se garante contra o gasto do
tempo (ele se esquece lendo e esquece o que já leu) a
não ser pela compra do objeto (livro, imagens) que é
apenas o ersatz (o resíduo ou promessa) de instantes
‘‘perdidos’’ na leitura. Ele insinua as astúcias do prazer e da reapropriação do texto do outro: aí vai caçar,
ali é transportado, ali se faz plural como os ruídos do
corpo. Astúcia, metáfora, combinatória, esta produção é igualmente uma ‘‘produção’’ de memória. Faz
das palavras as soluções de histórias mudas. O legível
se transforma em memorável: Barthes lê Proust nos
textos de Stendhal; o espectador lê a paisagem de sua
infância na reportagem de atualidades. A fina película
do escrito se torna um remover de camadas, um jogo
de espaços. Um mundo diferente (o do leitor) se introduz no lugar do autor.
Esta mutação torna o texto habitável, à maneira de
um apartamento alugado. Ela transforma a propriedade do outro em lugar tomado de empréstimo,
por alguns instantes, por um passante. Os locatários efetuam uma mudança semelhante no apartamento que mobiliam com seus gestos e recordações; os locutores, na língua materna (...).’’42
Mesmo assim, e diante de novas Concepção de linguagem e de leitura, há quem negue poder existir produção de sentido na relação de determinados leitores
com a literatura de massa, Sabrina, Bianca, Júlia, por
exemplo. Para esses, o contato com essa literatura,
que faz ou pode fazer mal, não possibilita experiência
estética de nenhum grau. Já se chegou a argumentar
que, para constatar se essa leitura (de “bobagens”)
leva ou não o seu leitor à produção de sentido, a uma
ressemantização da vida, bastaria observar quem votou no Collor, o que, a nosso ver, é afirmação demais
para verificação de menos. Muitos ainda acreditam na
fixação dos consumidores na posição de receptáculos
e na circulação dos meios. Para esses, só restaria às
massas “a liberdade de pastar a ração de simulacros
que o sistema distribui a cada um’’.43
Alguns escritores da literatura erudita parecem pensar o mesmo. Marilene Felinto, em artigo intitulado “Mulheres que lêem bobagem”,44 na Folha de São Paulo de
29 de janeiro de 95, diante da constatação da pesquisa do
Datafolha de que as mulheres determinaram, com 55%
das compras, os cinco primeiros colocados da lista dos
livros mais vendidos em janeiro de 95, compara a sua
história de leitura com a de sua irmã , leitora de “bobagens’’, e conclui que a leitura da literatura “açucarada’’ é
prejudicial: ela tornou-se ‘‘escritora’’ e, sua irmã, uma
‘‘leitora insone’’ que rejeita a literatura erudita. O que
orienta a autora do artigo é a suposição de que assimilar é
tornar-se semelhante àquilo que se absorve, e não tornálo semelhante àquilo que se é, por mil maneiras de
reapropriação e uso.45 Para ela, “as mulheres não são
mais burras que os homens por ler Sheldon; são apena
mais ridículas’’. Chega a essa conclusão a despeito do
conhecimento textual, pragmático e referencial revelado pelas leitoras de ‘‘bobagens’’, suas interlocutoras, no
julgamento dos textos e da leitura que fazem deles. Enquanto a autora do artigo está preocupada com o valor da
Literatura erudita e com os malefícios da literatura de
massa, as leitoras estão interessadas no uso que podem
fazer daquilo que lhes dá a indústria dos meios de comunicação de massa. Mais ainda: elas explicam o que, o
como, e o porquê de suas leituras.
Portanto, as mulheres dessa “procissão silenciosa
assaltando livrarias’’ não parecem tão hipnotizadas
como quer a articulista da Folha, mas empenhadas em
operações de “caças não autorizadas”. O momento
da leitura desses romances representa para elas uma
fratura nos acontecimentos cotidianos e a possibilidade de uma conjunção sujeito/objeto em um outro tempo e lugar, ainda que fugaz, da “perfeição”.46 Falando
42
Certeau, Michel, op. cit. p. 49
Certeau, Michel, op. cit. p. 260
44
Felinto, Marilene, Mulheres que Lêem Bobagem, in Folha de São Paulo. São Paulo, 29 de janeiro de 1995.
45
Certeau, Michel, op. cit. p. 261
46
Greimas. Algirdas-Julien. De La Imperfección, presentatión, traducción y notas de Raúl Dorra. México, Fondo de Cultura Económica,
Universidad Autónoma de Puebla, 1990. No capítulo V dessa obra, Greimas, tomando um conto de Júlio Cortazar para refletir sobre a
experiência estética da leitura da obra literária, quando o leitor ‘‘morre’’ para o mundo imperfeito e duradouro da vida cotidiana para viver
a perfeição efêmera do mundo novelesco, diz o seguinte: ‘‘Se trata, poes, del vertimiento progressivo del sujeto de estado que entra en
contato de manera sucesiva com los distintos estratos del objeto literário: primero su organización temática (‘‘la trama’’, ‘‘el dibujo de los
personajes’’, ‘‘los nombres’’, ‘‘las imagenes de los protagonistas’’) expressadas com los términos de la crítica literária clássica, y en seguida su
manifestación figurativa (‘‘imágenes que se concertaban y adquiríam color e movimiento’’) que amarra um nuevo modo de aprehensión.’’ p. 62.
43
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997.
67
do momento de suas leituras, uma das leitoras de
Sabrina, nossa entrevistada, diz, que se ‘‘encaixa’’ na
personagem e é ‘‘encaixada’’ por ela, desenhando, por
essa construção simpática, o movimento do sujeito para
o objeto e deste para o primeiro, para a fusão plena e
perfeita no mundo ficcional.
( ... ) eu viajo na leitura, eu me sinto como personagem, eu me sinto como personagem. ( ... ) Então
eu procuro assim, é... eu me, eu me enqua... eu me
encaixo perfeitamente, eu me sinto encaixada perfeitamente na... na personagem, ( ... ) nos livros
espíritas também eu me sinto assim como se fosse
a personagem, eu me sinto como se eu tivesse vivendo aquela história. E eu adoro ler, eu adoro ler, é
uma coisa assim que eu esqueço do mundo, esqueço da realidade, eu viajo. Na minha imaginação eu
viajo na... nas leituras.47
Algumas das entrevistadas, mais envergonhadas de
sua prática leitora, dizem o mesmo pelos implícitos de
uma fala defensiva. Essa confirmação torna-se mais
relevante ainda se considerarmos que esta referência
à maneira de ler foi parasitada em um turno de fala em
que o assunto era bem outro.
( ... ) ela passa a se fundir naquele personagem. E eu,
realmente, assim, não tenho uma idéia porque eu não...
eu não... eu não me fundo em nenhuma personagem.
Eu gosto de ler, assim, eu acho divertido. Se ela é
divertida, eu acho divertido, mas não que eu passe por
aquela pessoa. É uma coisa que eu não sei. Não entro
dentro do personagem pra saber. Já essas pessoas
que gostam, que são apaixonadas por eles, assim pelo
romance em si, ela entra no personagem. E eu não
entro, não, não sei.48
Essa experiência estética vivida na fruição, se não
através da forma da expressão - que demandaria
educação esmerada na prática leitora erudita -, pelo
menos através da forma do conteúdo, desempenha
um papel importate na construção das utopias desse
leitorado, mesmo que a modernidade tenha prometido um futuro sem futuro. 49 Esses momentos
catárticos, longe de meramente alienantes, provocam
uma ressemantização da vida dessas leitoras, semelhante ao que ocorre com a personagem Cecília no
filme A Rosa Púrpura do Cairo. Diante de uma vida
miserável, oprimida pelo marido e pelo patrão, reduzida a objeto de uso, ela busca a sala do cinema, onde
morre para a realidade dada como real e passa a viver outra realidade luminosa, a da ficção dos filmes
românticos e de aventuras. É através dessa fratura
da vida imperfeita do cotidiano e da vivência de momentos de perfeição que ela, de assujeitada, passa a
sujeito, com vontade e coragem para agir. Dentro do
enunciado do filme, identificada com o herói Tom
Baxter, que é “honesto, corajoso, romântico e beija
bem”, ela enfrenta pela primeira vez o marido opressor. Você “foi corajosa também, você o enfrentou”,
diz a personagem e Cecília, pessoa, responde: “Você
me inspirou”. O depoimento de uma das leitoras entrevistadas por nós confirmam a fala das personagens do filme dentro do filme: “você se sente totalmente transforma’’. 50
3. Leitoras nada passivas
3. 1. Limites deste trabalho
Uma vez esboçados os postulados com que pretendemos compreender a prática leitora desses romances sentimentais, passamos a apresentar alguns
resultados de uma primeira leitura do material que
constitui nosso corpus: entrevistas, cartas e as narrativas da série Sabrina. São resultados, repetimos, de
uma primeira leitura do material, mas suficientes para
sustentar a tese de que não se trata de leitoras recolhidas numa atividade passiva e, assim, cada dia mais
dominadas.
3.2. Sabrina, Bianca, Júlia:
‘‘mauvais livres’’, ‘‘mauvais genres’’
Sabrina, Júlia e Bianca, são denominações de três
séries de publicações de romances de amor - na categoria livro e não revista - em formato de bolso, barato e
dentro tradição do romance sentimental que vem desde
as trobairittz, mulheres trovadoras da Idade Média.
Cada série obedece certos padrões de gênero recomendados pela empresa e que as torna diferentes
umas das outras. As séries Sabrina, Júlia, Bianca, Tentação, Clássicos Românticos, Clássicos Históricos e
476
Entrevista com leitoras de Sabrina, Bianca, Júlia: entrevista 5, p.1.
Entrevista com as leitoras: entrevista 14, p. 14
49
‘‘ ‘O futuro já é o que era’, diz um graffitto numa rua de Buenos Aires. O futuro prometido pela modernidade não tem, de fato, futuro.
(...) ‘‘Perante isto, como proceder? Penso que só há uma solução: a utopia. A utopia é a exploração de novas possibilidades e vontades
humanas, por via da oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que a
humanidade tem direito de desejar e porque merece a pena lutar. A utopia é, assim, duplamente relativa. Por um lado, é uma chamada de
atenção para o que não existe como (contra)parte integrante, mas silenciada, do que existe. Pertence à época pelo modo como se aparta
dela. Por outro lado, a utopia é sempre desigualmente utópica, na medida em que a imaginação do novo é composta em parte por novas
combinações e novas escalas do que existe. Uma compreensão profunda da realidade é assim essencial ao exercício da utopia, condição
para que a radicalidade da imaginação não colida com seu realismo.’’ Santos, Boa Ventura de Souza. Pelas Mãos de Alice. São Paulo,
Cortez, 1995, p. 232, 233.
50
Entrevistas com leitoras de Sabrina, Bianca e Júlia: entrevista 11, p.7.
48
68
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997.
outras são publicadas no Brasil pela Abril Cultural que,
mediante contrato com a Harlequin, uma empresa canadense, tem direitos exclusivos de publicação e distribuição para todo o território nacional.
A Harlequin foi fundada em 1949, em Wennipeg,
uma pequena cidade do Canadá e, desde então, não
parou de crescer. Os romances que edita e distribui
são publicados em noventa países de culturas diferentes.51 Há mulheres lendo os romances da Harlequin
na Arábia Saudita, na África, na Austrália, na América do Norte, na Europa do Leste, na América Latina e
em muitos outros países. Cada sucursal se encarrega
de traduzir as histórias para a língua local, conservando sempre as características e os nomes anglo-saxãos
dos personagens.
Na França, por exemplo, há três milhões de leitoras
dos romances da Harlequin. Quarenta e nove títulos
novos são mensalmente lançados no mercado, somando um total de quinze milhões de exemplares ano.52
No Brasil, a Abril Cultural está sozinha no mercado
desse tipo de livro, publicando trinta dos sessenta e
sete originais que recebe mensalmente da empresa canadense. A Abril Cultural traduz, publica e distribui
para todo o país. Até mesmo os cromos das capas,
antes fotografias, hoje fotografias pintadas em estilo
impressionista já vêm prontos da Harlequin.
A Abril Cultural começou a publicar a série Sabrina,
semanalmente, em 1979 e, segundo a editora, no espaço vazio deixado pela foto-novela, que perdeu terreno
para a televisão. Desde o lançamento, foi um sucesso
entre as leitoras de todo o Brasil, chegando a vender o
total de um milhão de exemplares em 1983.53 Sabrina,
inicialmente, era uma publicação da Mills & Boon, uma
empresa inglesa. A Harlequin comprou depois a Mills
& Boon e continuou a publicar a série. Quando a Abril
Cultural começou a publicar a série Sabrina, a Mills &
Boon já era da Herlequin.
Escrita por mulheres, lida por mulheres e caracterizada como sentimental, essa literatura recebeu e recebe qualificativos com evidentes conotações negativas: popular, de massa, feminina sentimental. Ao contrário de outros gêneros considerados mais nobres,
esses “mauvais genres” não são considerados dignos
de se tornarem objeto de trabalhos acadêmicos, não
merecem ser citados, não merecem convívio com outros livros nas prateleiras de livrarias e de bibliotecas,
e nem são considerados best sellers. Para muitos lei-
tores eruditos, trata-se de “bobagem” e para os leitores de livro algum, em uníssono coro de pura e simples
condenação com os primeiros, de “porcaria’’. Um doutor em Teoria Literária e apaixonado pela arte que se
impõe sobremaneira por uma poética da forma da expressão e um vendedor de banca, que mal conseguiu
assimilar o Impressionismo, estão inteiramente de acordo: para o primeiro, somos loucos”; para o segundo,
‘‘isso aí, para estudo de doutorado, não serve.’’54 As
“disciplinas” e os “campos artísticos” vigiam suas fronteiras muito além delas, pois sabe-se que não se “pode
falar de qualquer coisa”.55
3.3 As leitoras
desqualificadas:
quem são?
A primeira constatação é de que todas passaram
pelos bancos escolares de primeiro, de segundo ou de
terceiro grau é todas tiveram “aula de literatura’’ ou
pelo menos ouviram falar dela. Muitas se lembram das
astúcias de que se utilizavam para sobreviverem às
obrigações de leitura de José de Alencar e de Machado, leituras, para elas, intragáveis por causa da linguagem considerada “difícil’’ e do conteúdo pouco atraente. Pouquíssimas se lembram do nome de uma obra
da Literatura Brasileira ou podem se referir a um romance que leram. “Aquilo lá, ih! Não desce”, diz uma;
‘‘na época, eu detestava’’, diz outra.56 Se ficássemos
somente nas falas em que tocam na questão da leitura
nos bancos escolares, teríamos a impressão de que
jamais pegariam em um livro para ler. No entanto, essas mulheres de todas as idades, de 18 a 65 anos, secretárias, domésticas, professoras, diretoras de escola, vendedoras, comerciantes, aposentadas e
presidiárias, todas, em algum momento de suas vidas,
por iniciativa própria ou influenciadas pelas amigas da
rede de leitoras, buscaram e encontraram um material
de leitura para elas atraente nas bancas de revistas, na
rede de troca com as amigas, nos sebos ou nas
banquinhas barateiras da esquina. E, a partir do achado, todas se tornam, como elas mesmas se denominam nas entrevistas e nas cartas, leitoras “assíduas”,
“apaixonadas’’ e “vorazes’’. Há as que leêm cinco,
dez, vinte, trinta, sessenta e até mesmo cem, romances de 130 páginas por mês, encontrando prazer em
dizer da velocidade de leitura a que chegaram e das
51
Houel, Annik. Le Romant D’Amour et as Lectrice. França/Canadá, Lármattan, 1997, p. 72.
Houel, Annik, op. Cit. Supra, p. 72.
53
Informação dada pela editora. Observamos que ela não se dispõe a dar informação sobre seu desempenho no mercado dos anos mais
recentes, o que é uma forma de proteger o seu negócio. Desconfiamos a princípio dessa informação, mas os donos de bancas e de casa
de livros velhos tendem a confirmar um boom da série Sabrina nesse ano.
54
Opinião de um professor quando soube o objeto deste estudo; e opinião de um vendedor de banca de revista, quando soube a razão do
nosso pedido de informação sobre as leitoras de romances sentimentais.
55
Foucault, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo, Loyola, 1996, p. 9
56
Dos depoimentos das leitoras nas entrevistas semidirigidas.
52
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69
“viagens’’ que fazem. Todas lêem compulsivamente
nas brechas do trabalho tedioso e mal pago, no ônibus
e, em 90% dos casos, na cama, à noite, cabeça e corpo nivelados, deitadas na espuma fofa do texto, flutuando na água-com-açúcar do romantismo, viajando por
terras de pasárgadas distantes.
3.4. Em busca da prática
leitora erudita ou a utopia da
educação de qualidade
O que é notável é que todas, a despeito do trabalho
competentemente inibidor do gosto da leitura, feito pela
escola, e a despeito da censura exercida pelos
freqüentadores da Literatura erudita, pela família, pelos
maridos, pelos pastores e, principalmente, pelos que sofrem de inapetência crônica pela leitura de um livro, elas
buscaram a leitura por iniciativa própria, desviando superlativamente de seus fins, “para as más leituras”, o
diminuto saber ler que lhes foi conferido pela instituição
escolar. Não é por acaso que a voz da escola e da igreja
façam coro na condenação dessa leitura.
Em coro, todos dizem que isso não as leva a nada,
que vão ficar aí, para sempre lendo ‘‘bobagens’’,
“narcotizadas’’, e que nunca experimentarão o prazer
estético de ler Literatura mesmo, “de verdade’: fala
de guardiões encastelados numa prática dada como
única, extremamente capazes de tomar os outros por
idiotas, e de fixar essa leitoras na posição de dominadas pelos meios de comunicação de massa. Com essa
atitude, pretensamente reencaminhadora da ovelha desgarrada da boa prática, excluem ainda mais essas leitoras da mesma maneira que a estigmatização de bairros periféricos na mesmice de uma vida de crime e de
miséria concorre para reforçar a sua negação e exclusão. Quem diz que essas leitoras não vão a lugar algum, que são conformistas, e que não aspiram mais do
que aos romances de Sabrina, pode ter surpresas.
Um primeiro exame das entrevistas parece indicar
dois tipos de leitoras desses romances sentimentais: as
que são mais ou menos novatas na prática e se restringem à leitura dos romances mais simples e menores
como Sabrina, Bianca, Júlia, e as que praticam há muito
mais tempo a leitura desses romances sentimentais e,
de alguma forma, já não se limitam à leitura só deles.
Tanto da parte das primeiras como das segundas, embora se encantem com o romantismo das narrativas,
com a facilidade da linguagem, com o prazer da leitura
para passar o tempo e reanimar a vida e mesmo com
os conhecimentos que obtêm deles - deixam
transparecer, aqui e ali, uma certa insatisfação com o
capital cultural dessas leituras. Nos depoimentos que
fazem sobre suas leituras, concebem, implicitamente,
a existência de uma outra prática leitora cujo capital
cultural é maior e de maior prestígio social.
As leitoras que há mais tempo lêem os romances de
70
Sabrina, conquanto continuem a fazê-lo, desmerecem
essas narrativas: ‘‘leu uma, leu todas’’, dizem, percebendo claramente a estrutura narrativa fixa delas. Ou
seja, percebendo o que um estudo teórido revelaria com
a fórmula: X quer entrar em conjunção com o amor de
Y, X não pode fazê-lo (há um obstáculo), X passa a
poder fazê-lo (o obstáculo é removido), o amor realizase. Assim, colocam-nas na conta de leituras do passado, e se confessam leitoras que evoluíram para um grau
acima. Há as que estão nos romances denominados
Clássicos Históricos; as que já chegaram a Sidney
Sheldom; as que estão lendo mas diversificadamente e
até mesmo aquelas que já chegaram a incluir as obras
da Literatura Brasileira, algumas da mesma lista das
obrigatórias do tempo de escola. Utilizando as categorias de quantidade e de dificuldade, postulam um grau de
complexidade crescente para esses romances colocados entre Sabrina e as obras da Literatura brasileira, o
que é, de alguma forma, procedente. O que isso pode
significar?
Provavelmente duas coisas. Primeiro, que querem
mesmo é ascender ao patamar da prática leitora de
prestígio, àquela cujo valor é inconteste e; segundo,
que excluída dela por um sistema de ensino ineficiente,
estão fabricando um caminho ou escada de acesso a
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997.
ela com a literatura de massa, mais especificamente
com as ‘‘más leituras’’, a leitura de “bobagens”.57 A
um erudito que lhes dissesse: ‘‘lendo essas bobagens,
com que roupa vocês vão um dia ler boas obras?”,
elas poderiam responder, “é com essas mesmas que
nos dão, é com essas que temos, e com as quais, ao
nosso modo, fazemos caminho, embora sob serrada
condenação para nos excluir ainda mais’’. Uma das
entrevistadas considera que o encontro com essa literatura de massa possibilita aquilo que a escola não consegue desenvolver nos alunos: a predisposição para
ler, uma atitude leitora que envolve também o corpo, e
evolui em direção a outros livros - o que não está distante da afirmação de Paul Zumthor de que “A leitura
exige iniciativa e ação física tanto quanto audácia intelectual.’’58 Sabem, enfim, o que não sabia Kaper
Houser quando pergunta no filme “por que não se pode
tocar piano como quem respira’’.59
Eu acho que aprende aprende a, a ... ter um
pouquinho de paciência, sentar, ler. Acho que nisso aí ajuda sim. Porque é uma coisa que te, te envolve,
né? Então eu acho que você adquire aquela paciência prá você pegar outros livros, né, e... e ler60.
Nesse sentido, esse grande contingente de leitoras
excluídas no trabalho, na educação e na prática leitora, longe de recolher-se numa subjetividade conformista, está a repor, sob a forma de usar esses objetos
da comunicação de massa, a velha utopia dos filhos
dos trabalhadores do século XVIII: a educação de boa
qualidade dos filhos dos humanistas e burgueses, sem
os conteúdos rebaixados com que, depois, foi estendida para todos.61 Por si mesmas, e a sua maneira, vão
56
‘‘O conhecimento tem ainda um sentido mais geral, de sorte que se encontra também nas idéias ou termos, antes de chegarmos às
proposições ou verdades. Pode-se dizer que aquele que tiver visto com atenção mais retratos de plantas e animais, mais figuras de
máquinas, mais descrições ou representações de casas ou de fortalezas, que tiver lido mais romances engenhosos, ouvido mais narrações
curiosas, este, digo eu, terá mais conhecimento que um outro, mesmo que não houvesse uma só palavra de verdade em tudo o que viu
representado ou ouviu. Com efeito, o hábito que tem de representar no espírito muitas concepções ou idéias expressas e atuais o torna
mais apto a conhecer o que se lhe propõe, e é certo que ele será mais intruído e mais capaz do que um outro, que não viu, não leu, nem
ouviu nada, sob a condição de que nessas histórias e representações não considere verdadeiro o que não o é, e que suas impressões não
o impeçam de discernir o real do imaginário, ou o existente do puramente possível.’’ Leibniz, Gottfried Wilhelm, 1646-1716. Novos
Ensaios sobre o entendimento humano, trad de Luiz João Baraúna, 2. Ed. São Paulo, Abril Cultural, 1984, p. 285.
57
Zumthor, Paul. A Letra e a Voz. São Paulo, Companhia das Letras, p. 104
58
O Enigma de Casper Houser, de Werner Herzog. Kasper Houser, depois de ouvir os sons do piano: - Isso me soa muito no peito. A música
me soa muito forte no meu peito. Agora eu me sinto velho. Por que tudo é tão difícil? Por que não posso tocar piano como respeito?’’.
59
Entrevista com as leitoras: entrevista 13, p. 9
60
Alves, Gilberto Luiz, Quatro Teses Sobre a Educação Material da Escola Pública Contemporânea. In: Intermeio: Revista do Mestrado
em Educação, v. 1 n.2. Campo Grande, UFMS, 1995, p. 10: ‘‘Quando a escola nova burguesa chegou aos trabalhadores, o conteúdo da
escola tradicional, apesar de ser o seu ponto de partida, foi subvertido de uma forma tal que a dita formação humanista, calcada no
trivium e no quadrivium, assim como a formação científica, fecundada no desenvolvimento das ciências modernas, passaram por um
processo de desvitalização progressiva até submergir numa mera apologia da dominação do capital.’’
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997.
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aprendendo a ler, vão assimilando as condições elementares exigidas por esse ato. O desejo de se tornarem escritoras de muitas delas, e as exigências de que
os editores zelem pela correção das publicações, manifestados em cartas para a editora, comprovam-no.
3. 5. A vergonha e a utopia de
Pasárgada
As leitoras dos romances sentimentais de Sabrina,
todas são tomadas por um sentimento: a vergonha de
ser as leitoras que são. Poucas delas confessam explicitamente ter esse sentimento, a maioria o deixa implícito ou admite a existência dele, não nelas, mas nas outras
- o que é natural, pois da vergonha não se fala. Darwin
diz que o rubor é a mais humana de todas as expressões
e que somente os animais e os idiotas não se ruborizam,
não se envergonham62. ‘‘J’ai honte, donc j’existe”, diz
Jankelevitch’’.63 Para se ter o sentimento da vergonha,
é preciso alguém mais, um outro para quem o sujeito
desloca sua atenção, à procura do como esse outro o vê
e avalia, ou seja, da imagem de si feita por esse outro
digno de fé, merecedor de consideração. É assim que a
vergonha é a primeira fobia da má consciência, uma
vez que ‘‘Ela se instaura num sujeito cindido, desdobrado e debruçado sobre si mesmo. Objeto do pensamento
alheio, objeto do próprio pensamento, objeto.... Sujeito
que percebe estar sujeito e não ser sujeito, percebe ocupar uma posição de sujeito, quando pensa, quando olha;
de objeto, quando é pensado, quando é olhado’’.64
As leitoras de Sabrina vivem uma dicotomia interior. Reclusas na intimidade do lar, no fundo das noites e
no aconchego da cama, essas leitoras habitam os textos dos romances, dando vez e voz ao corpo. A leitura
não é mais, predominantemente, operação intelectual
obediente aos constrangimentos e regras. Ali viajam
por terras de Pasárgadas, fartam-se e confortam-se
com projeções de si num imaginário de confiança e
relaxamento. Tudo parece em equilíbrio, tudo é otimismo enquanto existe, dentro do simulacro existencial
que tecem, identificação do sujeito a sua imagem, ou
seja, enquanto imagem e sujeito configuram um mesmo e único valor. Quando, porém, na esfera pública,
perdem esse estado de relaxamento. Disfarçam ou
ocultam a pertença a essa prática leitora. Para elas, é
claro e pesado o olhar da outra prática leitora, o valor
que no meio social lhe atribuem leitores e não-leitores.
O olhar da prática leitora dominante está ali, sancionando impiedosamente para um quase nada a imagem
de leitoras com que acreditavam representar-se: ‘‘leitoras de porcaria’’ diz um; ‘‘melhor que nada’’ diz.outro;
‘‘leitoras insone’’, acrescenta um terceiro.
O modo como essas leitoras se vêm na esfera ínti-
ma ou diante de interlocutores menos perigosos
revela-se em desajuste com o modo como percebem
que são vistas. Como imagem e sujeito são
indissociáveis, essas leitoras reconhecem não ser leitoras de fato, passam para um estado de tensão e temem o juízo dos outros, cuidando para não franquear
ao domínio público o conhecimento de seus hábitos de
leitura. A vergonha é, pois, um sentimento intersubjetivo
conflitante. As leitoras se desdobram entre dois simulacros: o simulacro em que se atribuem uma competência positiva; e o simulacro em que não se julgam
possuidoras dessa competência. Em termos com que
opera a semiótica greimasiana, a leitora de Sabrina é
um ator que desempenha, ao mesmo tempo, o papel
dos actantes destinatário e destinador julgador, pois
é ela mesma que se atribui uma competência e, ao
mesmo tempo, a sanciona como negativa, em conformidade com outro destinador julgador, aqueles leitores
e não-leitores que reconhecem a competência leitora
erudita como a única legítima. Longe de serem “insones’, essas leitoras vivem um drama: reconhecem muito
bem a prática leitora erudita como a que vale socialmente; elegem-na como parâmetro para julgar negativamente a imagem de leitoras que projetam de si internamente a própria prática. O sentimento de inferioridade é, pois, resultado de um fazer cognitivo. Longe
de serem “insones”, essas leitoras percebem muito bem
o poder simbólico excludente das práticas. O sentimento de vergonha se instaura porque, tanto elas, leitoras das narrativas-água-com açúcar, quanto os leitores eruditos e também os leitores de livro algum compartilham um mesmo modo de pensar sobre a noção
de leitura que tem valor: a noção de leitura como operação intelectual obediente às coerções do texto para
aquisição de conhecimento imposta a todos pelo sistema educacional.
Assim, essas leitoras compõem uma massa de envergonhadas e culpadas por não possuírem aquilo que
o sistema educacional não lhes permite possuir e as
faz crer que têm o dever moral e social de saber: ler
conforme a prática leitora erudita. Se a vergonha é a
fobia daquela consciência cindida que se percebe a si
mesma como objeto (estando sujeita ao olhar do outro) e como sujeito (pensando-se e vendo-se negada) é compreensível que, para livrar-se dessa situação
fóbica, as leitoras desviem-se da utopia de tudo conhecer pelo intelecto para a utopia do corpo, do sentir;
para a utopia de Pasárgada. Nas brechas das incoerências de um sistema normativo e prescrito que as
oprime, instauram desvios, repõem o que foi subordinado à mente e banido da escrita e da leitura: o corpo.65 Deitadas, intelecto e corpo no mesmo nível, pilo-
62
Darwin, Charles. L’expression des émotions chez l’homme et les animaux. Belgique, Editions Complexes, 1981.
Jankélévitcha, W. Traité de Vertues III: L’inocence et la Mechanceté. Paris, Flamarion, 1986
64
Harkot-de-la-taille, Elizabeth. Ensaio de Semiótica sobre a Vergonha. Tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1996.
63
72
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997.
tam o texto a corpo, mirando outros corpos iluminados,
sujeitos de Pasárgadas distantes, cujos nomes são atestados de possibilidades de realizações de sonhos: Suécia, Texas, Canadá, Grécia - geografias que ancoram
as narrativas no real. E, como diz Pierre Lévin,
Aqui não é mais a unidade do texto que está em jogo,
mas a construção de si, construção sempre a refazer,
inacabada. Não é mais o sentido do texto que nos
ocupa, mas a direção e a elaboração de nossos prazeres, o fio de nossos sonhos. Desta vez o texto não é
mais amarrotado, dobrado feito uma bola sobre si
mesmo, mas recortado, pulverizado, distribuído, avaliado segundo critérios de uma subjetividade que produz a si mesma. Do texto, propriamente, em breve
nada mais resta, no melhor do casos, teremos, graças
a ele, dado um retoque em nossos modelos de mundo.
(...) Ele nos terá servido de interface com nós mesmos. (...) O texto serve aqui de vetor, de suporte ou de
pretexto à atualização de nosso próprio espaço mental. Confiamos às vezes alguns fragmentos do texto
aos povos de signos que nomadizam dentro de nós.65
Se no passado os romances de Macedo e de José
de Alencar respondiam às necessidades e sonhos de
muitas mulheres, hoje são essas narrativas sentimentais de massa a paisagem onde essas excluídas do
mercado de trabalho compensador, do próprio corpo,
do país e das prática leitora reconhecida, vão repetir
compulsivamente o sonho do paraíso perdido ou por
vir. Assim, ao seu modo, via corpo e sonho, ouvindo
reiterados atestados de exclusão, vão aprendendo a
ler (Por vias tortas?) a geografia do mundo.
4. Conclusão
“Os esquemas interpretativos pertencem a configurações culturais, que têm variado enormemente através dos tempos.” Aqueles que vivem em mundos mentais diferentes, lêem de maneira diferente e, assim, a
história da leitura poderia ser tão complexa quanto a
história do pensamento.”66 Há pouco tempo, pensou-se
que a sociedade de masa seria uma sociedade
homogeneizada ao extremo pela ideologia que detivesse
o poder dos modernos meios de comunicação, mas hoje
os fatos indicam que não é bem assim. A massa
fragmentou-se e torna-se cada dia mais complexa: no
lugar das seitas, milhares de credos; no lugar do ‘‘Belo’’
dado por um grupo, os ‘‘belos’’ distribuídos por milhares de grupos e, assim, até a vertigem. Os gestos concretos dos meios de comunicação de massa,
dirigem-se, cada dia mais, à fatias específicas de público, dão testemunho disso. Os universos mentais se
multiplicam e, com eles, as maneiras de ler, o fenômeno do encontro entre o ‘‘mundo do texto’’ e o ‘‘mundo
do leitor’’.67 Parece que, com a falta de visibilidade
das instituições poderosamente coesas, que garantiam
uma determianda disciplina do ler, os códigos ficaram
flutuando a mercê do uso de quem quer que seja que
os habite com seu universo mental. É como se, na queda
de braço entre as imposições do texto ao leitor e do
leitor ao texto, o leitor estivesse levando a melhor e
simplesmente habitando os códigos disponíveis com os
imperativos de seus universos mentais.
Em um cinema de um das galerias da Avenida
Paulista um homem está na fila para comprar ingresso. A tabuleta dá, em cima, o nome do filme, O Paciente Inglês, formando um pequeno bloco ou parágrafo; e, mais em baixo, como que dando idéia de outro
bloco, os dizeres: “Sex. a Dom.”. O homem então pede
um ingresso para “Sex(o) a Dom(icílio)’’. A mulher da
bilheteria ri, rimos - e o homem sai meio sem jeito. À
essa atitude de habitar o código a seu modo corresponde
outra de produzi-lo, não por uma retórica de uma imposição logica, mas por uma retórica dos brancos, das
disponibilidades para um inquilinato.
Contra o estudo da recepção das obras pautada
numa definição puramente semântica do texto, Chartier
diz que a reconstrução do processo de atualização dos
textos em suas dimensões históricas “exige, inicialmente, considerar que as suas significações são dependentes das formas pelas quais eles são recebidos e
apropriados pelos seus leitores (e editores)’’68 O estudo da leitura hoje, mais do que em outros tempos, se
não quiser ser uma miragem ou abstração, precisa
interessar-se pelas diversas e cada vez mais numerosas práticas do ler. Compreender a prática leitora das
leitoras de romances sentimentais não deve ser destituído de interesse e importância principalmente, para
aqueles que se dedicam ao ensino da literatura e nela
acreditam sobremaneira como possibilidade de uma
experiência estética (mais rica?) no nível da forma da
expressão e da forma do conteúdo.
65
‘‘A escrita adquire um direito sobre a história, em vista de corrigi-la, domesticá-la ou educá-la. Ela se torna poder nas mãos de uma
‘‘burguesia’’ que coloca a instrumentalidade da letra no lugar do privilégio do nascimento, ligado à hipótese de que o mundo dado é
razão.’’ Certeau, Michel, op. cit. p. 235.
‘‘Onde se acha o limite da maquinaria pela qual uma sociedade se representa por gente viva e dela faz as suas representações? Onde é que
pára o aparelho disciplinar que desloca e corrige, acrescenta ou tira nesses corpos, maleáveis sob a instrumentação de um sem-número de
leis? Na verdade, eles só se tornam corpos graças à sua conformação a esses códigos. Pois onde é que há, e quando, algo do corpo que não
seja escrito, refeito, cultivado, identificado pelos instrumentos de uma simbologia social? Talvez na fronteira extrema dessas escrituras
incansáveis, ou furando-as com lapsos, exista somente o grito: ele escapa, escapa-lhes.’’. Certeau, Michel, op, cit, p. 240.
66
‘‘Lévin, Pierre. Op. Cit p. 36
67
Darton, Robert, História da Leitura. In: Burke, Peter. A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo, Unesp, 1992, p. 233
68
Ricoeur, Paul. Temps et Récit, tomo III, Le Temps Raconté, Paris Éditions du Seuil, 1985, p. 228-263
69
Chartier, Roger. A Ordem dos Livros. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1994, p. 12
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997.
73
The purpose of this study is to identify and to analyze the
strategies a group of adult Brazilian learners (learning English as a
foreign language) draw on to solve their communicatíve problems.
The data for the study came from subjects of three different
proficiency levels who were tested on theree different tasks. The
learners’ mental processes in the production of speech were
inferred from the subjects’ performance data and introspection.
The taxonomy for the identification of communication
strategies(CSs) for the present study was based on the typologies,
of Tarone, Cohen and Dumas (1980); Faerch and Kasper (1984);
Wilhems (1987) and Oxford (1990).
The general results of the study indicated that Interlanguage
(IL) speakers consciously or unconsciously employ CSs to convey
meaning when communication runs into difficulties. This study
identified many strategies in the speakers’ performance. The most
frequent ones are foreignizing, code switching, approximation,
overgeneralization and paraphrase.
Key-words:
monono mnonon mnonon mnono mnono mnon
Este estudo tem como principal objetivo identificar, definir e analisar as estratégias de comunicação e signos de hesitação nas falas de um grupo de estudantes brasileiros, adultos, aprendizes de inglês. Adicionalmente, a relação entre o nível de proficiência linguística do grupo e o emprego de estratégias orais é discutida.
Os dados para o estudo forarn obtidos de alunos de três diferentes níveis de proficiência que foram testados em três diferentes atividades. Os processos mentais de produção de fala dos alunos foram inferidos a partir de dados de desempenho e introspecção.
A taxonomia empregada para a identificação das estratégias de comunicação foi baseada em tipologias existentes, mais especialmente as de Tarone, Cohen e Dumas (1980);
Faerch e Kasper (1984); Willhems (1987) e Oxford (1990).
Os resultados gerais deste estudo indicaram que apesar dos falantes basicamente
empregarem o mesmo tipo de estratégia de comunicação e signos de hesitação para superar
seus problemas comunicativos, a frequência de uso de estratégias de comunicação e os
signos de hesitação variam de acordo com os níveis de proficiência, sugerindo que os estudantes brasileiros evoluem em termos de tipos (pouco significativos) e frequência (bastante significativos) no uso de estratégias de comunicação e signos de hesitação.
Os resultados parecem portanto indicar que o comportarnenteo comunicativo dos
falantes é transitório e dinâmico.
Palavras-chave:
monno mnonon mnonon mnonno mnonon
74
* Nadir de Assis Borall é
..............................
................ ...........
..................................
ORAL STRATEGIES USED BY
BRAZILIAN STUDENTS
LEARNING ENGLISH
Nadir de Assis Borall
Introduction
In the past few years, a good deal of research has
been done on the interlanguages of leaners, in many
different situations. The theories of interlanguanges are
of great importance since their principles may
contribute to the understanding of the learning and the
teaching methodology of second languages (SLs). Since
Selinker’s proposal of the ‘interlanguage’ theory, there
has been a growing interest in the study of the learning
process, rather than the learning product (cf. Ellis, 1984;
Wenden and Rubin, 1987; Crookes, 1989). Champeau
(1989) points out that the “focus has shifted from the
teacher to the learner and with this has come the
realization that each learner is an individual with distinct
needs, learning styles, mental schemata and attitudes’’
(p.2). This position has motivated a growing interest in
understanding the internal mechanisms the learner
displays when s/he wishes to convey messages whose
linguistic knowledge does not permit him/her to express
adequately. Thus, in recent years, an. increasing
number of studies in interlanguage research have
focussed on the phenomena that take place in
second-language learners’ performance. Special
emphasis has been put on communication strategies
(CSs) and phenomena of hesitation (PH) occurring in
the planning/execution phase of speech production.
Research on second-language acquisition has
identified a variety of strategies that learners use to
convey meaning when communication breaks down
or runs into difficulties in the target language. It has
been observed that depending on what the learners
want or need to communicate they are often forced
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997.
to use rules of which they do not have an adequate
command. This can happen in all domains of
language: morphology, phonology, syntax and lexis
and leads learners to constantly plan and revise their
utterances during the process of speech production.
Accor ding to Faer ch and Kasper (1983),
second-language learner s, when faced with
difficulties caused by lack of knowledge in the
target-language (TL), employ certain strategies that
are ‘potentially conscious’ to solve troublesome
situations. These strategies (pauses, repetitions,
drawlings, the use of foreignizing, paraphrase,
approximation) can be clearly observed while the
learners are attempting to communicate.
Considerable research in the area of second
language acquisition (Tarone, 1977; Faerch and
Kasper, 1983; Wenden and Rubin, 1987; Oxford,
1990) has been devoted to discovering and
understanding the internal mechanisms of the speech
production process, to providing clues about the kind
of strategies second or foreign learners employ to
communicate, and to providing information important
to the field of second-language (SL) and
foreign-language (FL) teaching and learning.
The purpose of this study is to increase our
understanding of the second/foreign language
communication processes through an investigation of
the internal mechanisms Brazilian learners display while
they are trying to communicate in a foreign language.
In this investigation a framework will be provided
describing the strategies these learners draw on to solve
their communicative problems.
75
Methodology
Subjects
The data for the study came from twenty-four
subjects of three different proficiency levels:
High-Proficiency Speakers (HPSs); Intermediate Proficiency Speakers (IPSs) and Low-Proficiency
Speakers (LPSs). The subjects were from
undergraduate students enrolled in the Letras Course
(campus of Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul/UFMS).The students were all adults, (twenty-one
females and three males) their age ranging from 18 to
30, and were all speakers of the same Ll, Portuguese.
Collection of data
Data were collected over a span of two months at
the beginning of the school year. Students took part in
three oral production tasks resulting in a total of 72
speech production samples. The data were audio-taped
and collected in a normal language classroom. Students
participated voluntarily in the experiment. They were
told to produce the best they could and as much
language as possible. Each task session lasted from 20
to 40 mínutes.
Instruments
The subjects in all three groups performed three
production tasks: an oral description of a sequence of
pictures (CP) (appendix 1); the retelling of a story told
by the experimenter in L1 (RS)(appendix 2); the
explanation of four concrete and four abstract concepts
(EC)(appendix 3). These tasks were selected because
they have been mentioned in the literature as involving
a variety of oral speech styles and being frequently
performed in real life situations (cf. Morrow, 1979; Pint,
1981; Shohamy, 1983; Fulcher, 1987).
Procedures
The tasks were performed under a psycholinguistic
perspective (i.e.each learner tried to find a solution her/
himself without the cooperative assistance of the
interlocutor, in opposition to the interactional
perspective). The approach followed to detect CSs was
the ‘phenomena of hesitation’ reflected in the
interlanguage performance as an index of ‘how’ and
‘where’problems in planning and execution are taking
place (cf. Beattie and Bradbury, 1979; Dechert and
Raupach, 1983; Faerch and Kasper, 1983).
Because of considerable evidence that learners can
be used as informants to offer a better understanding
of the internal mechanisms of their speech production,
a second research tool used in this study was
self-observation: immediate retrospection based on a
questionnaire.
The methodological framework for reaching the
learner’s mental processes in the production of specch
was based on suggestions provided by Hosenfeld (1977)
76
(1979) Cohen and Aphek, (1981) Cohen and Hosenfeld
(1981) and Cohen (1984).
For eliciting data, a brief questionnaire with the
questions given below was given to the students, and
further explanation and clarification was given in
Portuguese. Students were free to write their answers
in English or Portuguese language.
Questionnaire
- Try to identify the strategies you employed to solve
your communicative problems in the TL.
-Did you have troubles with vocabulary while you
were trying to communicate in the TL?
In order to obtain further insights on the learner’s
mental activities involved in the process, a third research
tool used in this study was self-observation: delayed
retrospection based on interviews.
As in Cohen and Aphek (1981) an ‘external
elicitation format’ - namely questions of the type: “Why
did you say X?”, “Why is this type of signal of hesitation
present in your speech?”, was used in this study. The
elicitation and response were oral ín the subject’s
mother tongue or in the target language, depending on
the speakers proficiency level. In order to capture some
of the processes/strategies used by the speakers, they
were asked individually by the experimenter in a
retrospective session a day after and in some cases
two or three days later, to discuss and comment of the
problems they had faced while performing the task.
The reason why this retrospective session was
discussed only a day after or some days later was the
need to have the data transcribed before interviewing
the subjects. A tape-recorder with the students’
language taped was used as a stimulus for the students
to reconstruct what was going on in their minds at given
moments.
Thus, the analysis of hesitation phenomena in the
learners’ speech data and an introspective analysis
reflecting both immediate retrospection based on
indirect questions (questionnaire), and delayed
retrospection based on direct questions (interviews)
were considered promising approaches for
understanding mental activities involved in language
processing.
Analysis of Data
Each session was tape-recorded and later
transcribed following the transcription symbols
suggested by Marcuschi, (1986), and Heritage and
Atkinson, (1987).
Although the subjects were free to make the
introspective comments in their own language or in the
TL, when transcribed to this study, the comments which
were given in LI were translated into English.
The taxonomy of CSs for the present study is based
on the typologies of Tarone, Cohen and Dumas (1983);
Faerch and Kasper (1984); Wilhems (1987) and Oxford
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997.
(1990) Although the description of CSs was based on
existing research in the area, the categories were
reorganized and classified to fit the performance and
introspection data of this experiment. In order to simplify
the task (following suggestions in Bialystok, 1980) the
CSs are divided into two main groups of strategies: A)
strategies based on LI linguistic knowledge and B)
strategies based on the TL linguistic knowledge.
Results
and Discussion
The following types of CSs were identified in the
TL learners’ speech production to convey the desired
message when they lacked the appropriate TL words.
Taxonomy of Communication Strategies
A. L1 BASED STRATEGIES
a.1 Foreignizing or Anglicizing
a.2 Code Switching or Borrowing
B. L2 BASED STRATEGIES
b.1 Paraphrase or Circumlocution
b.1.1 Exemplifications
b.1.2 Definitions
b.1.3 Descriptions
b.2 Approximation or Substitution
b.3 Overgeneralization or Word Coinage
C. REPAIRS
c.1 Partial Immediate Repair
c.2 Full Immediate Repair
c.3 Restructuring
c.4 Completion Repair
D. OTHER STRATEGIES
d.1 Semantic Field
d.2 Omission
d.3 Message Abandonment
d.4 Mimes and Gestures
Discussion of Communication Strategies
A. LI BASED STRATEGIES
a. 1 Foreignizing or Anglicizing: One of the most
common resources for coping with TL difficulties for
low-proficiency speakers is the process labelled
foreignizing or anglicizing. This consists in applying L2
rules of phonology or morphology or both processes
simultaneously to a L1 lexical item. According to the
speakers, in many circumstances, they try to invent or
create a new word based on L1, giving to the word a
L2 pronunciation. However, in some points of their
speech they did, not know how the word came to their
minds. Actually they did not know they were using a
deviant lexical item. The three following examples
extracted from the data exemplify the use of
foreignizing.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997.
Ed (LPS) used /’eskeleid/ for climbed up, inserting
phonological and morphological rules to the Portuguese
verb ‘escalar’. Lc (LPS) in her struggle to find a verb
to fill her speech gap reported: “I had to say ‘organizou’
or ‘preparou’. I didn’t know how to say these words in
English because my English vocabulary is too poor, I,
then, tried a similar word in Portuguese. I know the ending
of regular verbs is -ed and I tried to add this suffix to the
verb and I also tried to pronounce it in English and then
1 had ‘organizeitid/. “ Kr (LPS) trying to express the
word secure, used /se’guiur/. When asked why she
used this form, she answered: “Well I thought it was
correct to say /se’guiur/. I do not know if I thought in
Portuguese before saying the word”. As the word /
se’guiur/ in her performance data is not preceded by a
series of signals of hesitations we can say that the word
was used spontaneously by the speaker.
Many of the lower-proficiency speakers said they
used this process because they are aware of the
similarities between the two systems (L1 and L2) and
so looked for a word based on L1 to solve a specific
language problem they were having. The following
statements provided by Ap (LPS) in example 1, and
Lc (LPS) in example 2 Mr(HPS) in exarnple 3, Cr(IPS)
in example 4 illustrate the use of this strategy:
(1) My little experience has showed me that there
are many words that are very similar to
Portuguese. Then I tried the word in the hope of
guessing the appropriate item. Ap(LPS)
(2) I tried the word based on Portuguese because
I know it works sometimes. Lc(LPS)
(3) I used the word /reptail/ for reptile. I
remember this word caused me great problems. I
didn’t know if it was correct to use this word
and also I don’t know if I had heard it before, or
if I thought in Portuguese to use the word.
Mr(HPS)
(4) The time was so short. I had to think quickly
and I used the first word that came to my mind to
say ‘cometer’ and I said to /komi:t/ mistakes,
but I always think in Portuguese before deciding
about the word that I don’t know yet. Cr(IPS)
a.2 Code Switching or Borrowing: The use of
code switching or borrowing is not so common in my
data as the use of foreignizing. However, speakers did
occasionally use code switching as a way of
overcoming their problems in communication. Code
switching consists in using an item from L1 (without
translating it to L2) with L1 pronunciation. Observe
the two following examples extracted from the data:
(5) One day he: - (he) were (0:10) (he were) ‘procurando’ -(eh) rich families - for stole...
Mt(LPS)
77
(6) Paul and John - taking a ‘pedra’ and broking
the vase. Nd(LPS)
the lexical item they try to explain the word, to define it
or to give examples.
(7) He: (he) had to: (to) (pause) he had to
‘descer’(laughter). Dn(PS).
Z1, a HPS, did not know how to say ‘duet’ but she
tried to express it in the following way:
Some subjects affirmed they rarely resorted to this
strategy because they know it is not very helpful. Some
reported that they just resorted to this strategy because
they were having serious problems, and they knew they
could not use the word, but the circumstances forced
them to say something. Others reported that the word
came at once, spontaneously. It came like an impulse.
The introspections below illustrate, the strategy.
(13) ... a couple of - (a couple of) young persons
were playing - ‘a four hands’on the piano.
Zl(HPS)
(8) I was in a terrible situation. I didn’t have
much time to think and I was getting very
nervous. It seems that the word just disappeared
from my mind and at once I found myself using
a Portuguese word. Mt (LPS)
(9) I don’t know why I used a word from
Portuguese, it was so spontaneous that when I
became aware I had already said the word.
Nd(LPS)
(10) Sometimes I use a Portuguese word because
there is no other alternative. You are forced to.
Dn (IPS)
If we take into consideration the statements (11
and 12) below it is possible to say that the extent to
which code switching is present in some of the
lear ners’ inter languages will depend on the
interlocutor, namely, if s/he is talking to a person
sharing the same L1 or a person who does not share
the same language
(11) If I am talking to my English teacher or a
Brazilian friend I always insert words from
Portuguese into my conversation, but I wouldn’t
use the same resource if I were talking to a natíve
speaker. Lc(LPS)
(12) If I were in a normal situation, talking to
an English person, for instance, I would not use
a word in Portuguese because the person would
not understand me. I would try other resources.
Kt(HPS)
B. L2 BASED STRATEGIES
b.1 Paraphrase or Circumlocution: The learner
tries to describe the characteristics of the object or
action instead of using the appropriate target language
item. In order to overcome communication problems
s/he resorts to the following processes: a) descriptions,
b) definitions and c)exemplifications. According to the
speakers’ statements this is the most common strategy
employed by them. Almost all of the subjects reported
in the introspective analysis that when they do not know
78
Sd(IPS), in her attempt to produce ‘hide and
seek’, said:
(14) Children are playing. One of them need to close his eyes and the others - Will try to find a
place. Sd (IPS)
Kr(LPS), trying to express the verb ‘to steal,
produced:
(15) He obtained other peopIe to - get their
things for he. Kr(LPS)
It is important to mention that paraphrase seems to
be a conscious strategy since all the speakers reported
that when they did not know the appropriate TL lexical
item, they made a great effort to explain it. The following
two statements are typical of the learners’ introspection
about this strategy:
(16) When I find myself in trouble with the words
I have not learned yet,one of the ways I always
try to solve the problem is to explain, to give
definitions. Cr (IPS)
(17) It is impossible to memorize all of the words
of a foreign language. I have discovered by
myself that the best way of dealing with this is to
try to explain, to give examples, synonyms or
definitions of the unknown word. Rc(HPS)
b.2 Approximation or Substitution: This is a very
common type of strategy employed by the subjects,
specially the low-proficiency ones. It can be observed
that they substitute a TL item they do not know or
remember by another TL item they think can
approximate in meaning or produce the same effect of
the intended item. From the point of view of the subjects,
their main problem is to find a word that can
appropriately substitute the TL item they do not know
or remember.
Looking at the examples presented below we can
observe that the substituted items in certain cases do
not give us the exact idea of what happened, but they
could be accepted in other situations. Interesting to
observe is the fact that in many cases these items are
not preceded by long pauses, showing that the process
may be quite spontaneous. There is no long search for
the word.
(18) Instead of saying. A boy was climbing up
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997.
the tree the learner produced. “A boy - was playing on the tree.’’Ap(LPS)
(19) Instead of saying: Peter hid under the tree,
the learner produced: "Peter stayed under - the
tree" Nd(LPS)
(20) Instead of saying: ...suddenly he fell into
the vase, the learner produced: “... suddenly
(0:5) he went to the vase.’’ Dn(IPS)
When the learners were asked why they used this
process to communicate, they offered the following
explanations:
(21) I was not going to be able to say exactly
what I had to, but instead of not saying anything
I preferred to say it in a different way. Kr(LPS)
(22) Trying to find substitutes is not an easy
task. It takes me a lot of time thinking if the
word would be the same that a native speaker
would use. Rh(IPS)
(23) I don’t have much troubles. If I perceive 1
won’t be able to say the word because I don’t
remember or have not learned it, I try to substitute
it by a word which produces a similar effect.
Gr(HPS)
b.3 Overgeneralization or word coinage: This is
not such a common strategy used by the group of
learners. However, it represents another technique of
creating nonexistent words. The learner consciously
or unconsciously invents or creates a new word
induced by his/her linguistic knowledge of the TL. The
process of overgeneralization consists in extending the
use of a lexical item and/or grammatical rule beyond
its accepted uses, e.g., one of the learners Mt(LPS) of
this experiment needed to use the word ‘robber’ , but
didn’t remember the word. To solve the problem she
took another word from the same semantic field
(available in her repertoire at the moment of speaking)
and attached the suffix -er, producing “stoler”. It seems
that she had automatized the general rule for the
formation of nouns designating professions as in
“player”, “writer”, etc . It seems that the process was
highly spontaneous. When asked, the learner said she
remembered she was having trouble, but was not able
to explain how the word ‘stoler’ came to her mind,
although she was conscious about the use of the -er.
The following are typical examples of
overgeneralization:
Asked about example (24), the learner said she
knew the word ‘govern’ and the ruler to designate
professions, although at the time of speaking she was
not sure if it was correct to say ‘governer’ or not.
Most learners were not able to give satisfactory
explanations about this process of creating new words,
as exemplified by the introspective comments in (26)
and (27):
(26) I don’t know how the word “stoler” came to
my mind. Perhaps I had already heard the word
in class. It was spontaneous. Mt(LPS)
(27) Sometimes I am so confused! The words and
the grammatical rules all of them mix in my mind.
I didn’t have much time to think. 1 have no other
way axcept trying to make some adaptations to
the words. Dn(IPS)
C. REPAIRS
This is a very common kind of strategy employed
by speakers at all levels of proficiency. It consists of
setting up a new speech plan everytime the speaker
perceives the original one has failed, or has not produced
the intended meaning. In my data the speakers
employed the following kind of repairs:
c. 1 Partial Immediate Repair: When the learner
uses a linguistic form and perceives, before concluding
the whole sentence, that s/he has made an error and
immediately corrects it. This is the most frequent type
of repair used by the learners, although they are not
always able to produce a correct version. Examples of
partial immediate repair are:
(28) ... many peoples and children go (eh)
“went”- to a park. Lc(LPS)
(29) ... he didn’t want to did “to do” the work.
Mr(HPS)
c.2 Full lmmediate Repairs: This happens when
the learner says a whole sentence or stops in the middle
of the message because s/he perceives the sentence
is not going to express the desired meaning or s/he is
just not satisfied with it because s/he produced an
ungrammatical sequence. Observe the following
examples:
(30) When he became to the house, he came
back home... Kr(LPS)
(24) You work - very-much - a:nd (0:7) receive
money and: the govern, governer? - stay..
Nd(LPS)
(31) I wanna a - easy work that give - me a lot
of money, and (0:5) with the govern... didn’t know
- (0:5). - No I wanna - an easy work that give me a lot of money, and - (the) the government
didn’t know abont it. Sd (IPS)
(25) It it - it’s the contrary to - unhonesty...
Dn(IPS)
c.3 Restructuring: This is another strategy used
by LPSs and it is a very interesting one. It happens
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997.
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when the learner is unable to plan a whole sentence at
once because the operation is complex. Phonological,
morphological and lexical difficulties have to be faced
simultaneously and the learner plans and executes his/
her utterances step by step or in small chunks until s/
he can produce them as a whole. Examples 32 and 33
illustrate this strategy:
(32) Then, to: (0:5)
Then, Jim decided to - be...(long pause)
Then, Jim decided to become - a thief. Ap(LPS)
(33) I don’t because - he:
I don’t be...
I don’t know because - he: was: crying. Ed(LPS)
c.4 Completion Repair: This happens when the
learner is unable to utter the lexical item as a whole
and s/he tries to say it part by part:
(34)flag is a sym... symb... symbol... Cr(IPS)
(35) but - he - orga... organi... organizated...
Lc(LPS)
D. OTHER STRATEGIES
d.1 Semantic Field: It was found that students
face difficulties when they have to cope with items
that belong to semantic fields that overlap or items
that have small differences in pronunciation but great
differences in meaning. These items normally operate
in pairs such as tall and high, persons and people,
steal and rob, large and big, push and pull, etc.
According to the speakers, differentiating between
these words causes them considerable difficulty
because it is very hard to automatize the small
differences, specially because, in many cases, there
are no parallel words in L1. It seems the learners are
not always aware of the processes they employ to
cope with this difficulty. Observe the two examples,
of this strategy in (36) and (37) and the introspective
statements in (38), (39), (40) and (41):
d.2 Omission: This consists of omitting a lexical
item when the learner has tried all other available
resources. The learner omits the item but does not give
up the whole idea. This kind of strategy is not employed
by the HPSs. It is employed by LPSs and to a lesser
extent by IPSs. Observe the two examples below
where Rh (example 42) wanted to use the word
‘assault’(observe the signal - ‘?’) but omitted it because
she was not able to remember it, and Mt (example 43)
did not remember the past tense of ‘be’ and did not
know how to say the word ‘same’.
(42) He planned all the (0:7) (he planned) (0:8)
(?) and (and) this man (0:13) (and this man) did
- the robbery. Rh(IPS)
(43) ... one - boy and one girl - (?) playing together on the - (?) piano. Mt(LPS)
The following are the learners’ introspective
statements about examples (42) and (43):
(44) I didn’t know how to say the word. I didn’t
know how to explain it either. I had no other
resource except to omit the word. Rh(IPS)
(45) Sometimes I don’t know the word, I don’t
know how to explain it either. In this case I just
omit it. Mt(LPS)
d.3 Message Abandonment: The speaker
abandons communication in mid-utterance because s/
he perceives s/he is not going to be able to complete it.
The subject gives up and does not try another way.
Utterances (46) and (47) illustrate this strategy.
Introspective statement (48) and (49) are typical of
the learners’ introspection about this strategy:
(46)... flag we use - how (/) ... Kr(LPS)
(47) ... a people was pride he is a - (a) people
(eh) that know (uh) (/) Não sei explicar. Mn(LPS)
(36) ... but the bottle was very - tall very high.
Sd(IPS)
Introspective Statements:
(37) ... they enter that house and to steal and to
rob. El(HPS)
(48) Sometimes I change the sentence a lot of
times and if it’s not possible to express my idea,
I have no other way out but giving up. Kr(LPS)
Introspective Statements:
(38) When there are two words in English which
have a small difference in meaning and I can
not discriminate the difference I use both forms.
Sd(IPS)
(39) If you use both forms, people will be in
doubt if you know the word or not. Mt(LPS)
(40) I never know which form is correct. I choose
one of them and I say it. Is(LPS)
80
(41) I was in doubt between to steal and to rob.
I don’t know why I used both forms. El(HPS)
(49) I have a lot of trouble because I don’t have
enough vocabulary. I try everything, but
sometimes I have to abandon the idea. Mn(LPS)
d.4 Mimes or Gestures and Appeals for
assistance:
These strategies were not included in the study
because they occur in conversations under an
interactional perspective and the subjects who
participated in this study performed monologue
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997.
activities. However, all of the subjects mentioned that
they employ mimes or gestures and ask for the
interlocutor‘s help every time they are unable to
communicate the intended item. One type of evidence
that the speaker would certainly appeal for assistance
while communicating with others is the changing of
intonation to a rising tone as if the subject was asking
for confirmation. The signal (?) is used when the
changing of intonation was observed. Observe these
pieces extracted from the data:
(50) Honesty is (0:8) when a man or a woman
not say - (eh) - (eh) mentiras? Nd(LPs)
(51) You see, you work hard - but - the /gov
nment/? /gov nmemt/ (uh) (help me) (laugh).
Vl(IPs)
General Results
Foreignizing seems to be the most important type
of CS based on L1 linguistic knowledge employed by
LPSs. It is seldom employed by IPSs and it does not
play any important role for HPSs.
Code Switching is not employed by HPSs. It is
almost absent in the IPSs speech data, but it is employed
to a limited degree by LPSs.
Paraphrase seems (based on the learners’
introspection) to be the most important type of strategy
employed by the learners. All of the IPSs and HPSs
reported to use paraphrase when they run into
difficulties trying to express the desired item.
Approximation is another common type of CS
employed by LPSs and it is still a very important type
of CS employed by IPSs. Although HPSs reported
making large use of this strategy, there were no
examples found in their performance data. It is possible
that the activities of the experiment did not make strong
demands on their language competence. It was
observed that IPSs usually get positive results when
they replace the unknown items by other ones that
approximate the meaning while LPSs, in many cases,
used items which produced vague meanings, sometimes
hard to understand.
Overgeneralization and semantic field also play
a role in the speaker’s communication. No speaker in
the introspective analysis reported using semantic
field, but when asked about examples of this strategy
in their speech, they were able to give some reasonable
explanations (see comments (26) and (27)).
It was observed that LPSs made a good deal of use
of message abandonment and occasional use of
omission. However, less use of these strategies is
made by IPSs, omission is not used by HPSs and
message abandonment was used only twice by them.
These strategies seem to be seldom used because they
do not enhance communication.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997.
Repairs, specially partial immediate repair, are
regularly used by almost all of the speakers in this study.
The use of repairs are perfectly justifiable for
low-proficiency speakers who do not yet have acquired
a good command of the TL. However, this fact
becomes interesting when it is discovered that repairs
is still largely employed by, higher-proficiency speakers.
The data revealed that both IPSs and HPSs have a
great predisposition to monitor and correct their speech.
lt may be that the issue of repair is much broader than
the mere corretion of errors, and its use does not just
indicate lack of competence in the TL. But, before
drawing conclusions about this issue, we still need much
descriptive and analytical information about the use of
repairs by foreigner speakers. However, based on
literature and on the introspections of this study, there
are at least two possible reasons for the large use of
repairs.
1. In everyday communication, speakers
spontaneously correct their speech in a kind of
automatic monitoring, even if they are not always aware
that the strategy of monitoring is taking place. According
to Klein (1986) “any speaking involves an automatic
monitoring of the speech. In a way, our
speech-production and monitor is always in action ”.
2. The type of instructions received in foreign
language classroom encourage the overt correction of
the TL use. Teachers expect perfect performance, and
students are told that in order to develop communicative
competence in a TL they must use the language
according to the grammatical rules of the language.
This leads learners to monitor and repair their language
(cf. Lier, 1988; Mclaughlin, 1990). Although no attempt
was made to verify the type of instructions students
receive from their teachers to communicate in the TL,
statements collected from the students during interviews
seem to confirm that the need of repairing for some
FL speakers is great. They reported that usually they
are very insecure about what they have just produced
and try to say it again in a different way: by changing
part or the whole sentence produced, or by substituting
lexical or grammatical items. Others reported that they
were not conscious that they were always correcting
their speech. This confirms that repair may also be a
spontaneous mechanism of speech production.
Implications of this study
for second language
teaching and learning
With the shift from teaching methods and teacher
training towards more emphasis on the discovery of
learners’ cognitive styles and the development of
communication skills, the findings of studies like this
may have important applications in the field of second
81
language teaching, most specifically in the areas of
syllabus design and teaching methodology. Syllabuses
should be designed to favor the development of
learners’ communicative competence (cf. Canale and
Swain, 1980 and Littlewood, 1981).
It seems possible to develop subjects’
communicative competence by increasing their strategic
competence and CSs may serve this purpose. They
may bring very positive contributions to the development
of oral communicative skills and consequently for
learning the TL in general. According to Si-Quing,
(1990) “a more practical and economical way to develop
learners’ communicative competence specially in the
formal classroom setting, and the acquisition - poor
enviromnent, is to increase learner ’s strategic
competence, their ability to use communication
strategies to cope with various communicative problems
they might encounter” (p. 180). It has been mentioned
in the literature (cf Bialystok and Frohlich, 1980;
Wenden and Rubin, 1987; Willems, 1987 and Oxford,
1990) that CSs are important tools to be used by the
learners(specially in the initial stages of learning) and
if encouraged, the use of these tools, it will help them
to become more aware of their potentialities, which in
turn, will revert in more fluency of the new language.
In this view, teachers’ roles should go beyond the
provision of linguistic information. They should create
a classroom atmosphere favourable to learning, as
Krashen (1982) says, ‘situations where comprehensible
input is plentiful’ (p.31). Students must be advised to
forget their inhibitions and the fear of losing face.
Wenden and Rubin (1987) report that a willingness to
take risks is a characteristic of successful language
learners . Part of being a good teacher is trying to
eliminate the ‘high affective filter ’ (Krashen’s
terminology) so that learning can occur in an
environment in which CSs are not only allowed, but
encouraged. As the learners’ TL experience increases,
their language naturally improves and they will
automatically abandon the use of certain CSs.
To reinforce the position that CSs should be accepted
and encouraged in classroom, I agree with the view put
forward by Si-Quing, (1990), that “any attempt to use
CSs for the purpose of reaching communicative goals,
however poor, is better than none”(p. 183). Although it
seems clear that TL users should be advised to benefit
from CS resources, there are two important points that
should be taken into account before introducing them in
the classroom. First, it is necessary to investigate whether
learners are already employing CSs in their speech and
if so, what types. Second we have to know more about
the effectiveness of different types of CSs before
advising learners which strategies to adopt and which
ones to avoid.
Finally, it is believed that a better understanding of
our students’ process of communication in the TL is
basic for modifying and improving the teaching of a
second/foreign language.
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APPENDIX 1
Composition Through Pictures (CP)
Students were given five minutes to prepare the composition in advance. They were told to build a story based
on the pictures, to use the imagination as much as possible and to build at least five sentences for each picture.
When asked, the experimenter helped the subjects to interpret the pictures. The pictures selected follow the sequence
presented below (in a more reduced size) and they came from Composition through Pictures by Heaton J.B, 1966.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997.
83
APPENDIX 2
Retelling of a Story (RS)
In this activity the analyst told the subjects a brief story in L1 (five paragraphs) to be told by them in the TL.
The story was told twice and slowly and subjects had the opportunity to tell the story in L1 to the analyst in order
to check if s/he had not forgotten important details. Then, the subjects were asked to retell it in the TL at a
normal speed. The story selected came frorn L.A. Hill’s Series of Stories for Reproduction(see the story
below).
“Jim era inteligente, mas não gostava de trabalho árduo. Ele dizia, “a gente trabalha muito, ganha muito
dinheiro, e o governo fica com a maior parte dele. Quero um trabalho fácil que me dê bastante dinheiro e que o
governo não fique sabendo”.
Resolveu ser ladrão - mas não fazia os roubos: contratou outras pessoas (um grupo) para roubar para ele.
Estas pessoas eram muito menos inteligentes que ele, portanto ele organizava tudo e pedia para que elas fizessem
o serviço.
Um dia ele saiu à procura de famílias ricas para roubar, e mais tarde enviou um dos homens do grupo para
roubar uma bela e grande casa que ficava nos arredores da cidade.
Era noite, e quando o homem olhou através de uma das vidraças da casa, viu um casal de jovens tocando um
dueto no piano.
O homem retornou até Jim e disse: “Aquela família não tem muito dinheiro. Duas pessoas estavam tocando
no mesmo piano.
APPENDIX 3
Explanation of Concepts (EC)
The subjects were required to explain orally four concrete and four abstract words. The concepts were
written in L1 and TL (in order to avoid ambiguities), and distributed to the subjects. The subjects were, asked to
explain the meaning of the items as if they were trying to explain to someone who did not know the meaning of
the word at all. This activity was introduced because the analyst believed that it was more complex than the 1st
and 2nd ones, since it is difficult to explain concepts even in L1, and this would force the subjects to use more
CSs.
The words were:
Concrete Concepts
1. Lantern (lanterna)
2. Flag (bandeira)
3. Alligator (crocodilo)
4. Bachelor (solteirão)
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Abstract Concepts
1. Pride (orgulho)
2. Patience (paciência)
3. Courage (coragem)
4. Honesty (honestidade)
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