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PA EI R E V I S TA D E LETRAS UFMS Papéis - Rev. Letras UFMS Campo Grande, MS v. 1 n. 2 p. 1-84 jul./dez. 1997 1 PA EI R E V I S T A D E LETRAS UFMS UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL Reitor Jorge João Chacha Vice-Reitor Amaury de Souza CÂMARA EDITORIAL José Batista de Sales (DED-CEUL/UFMS) Alda Maria Quadros do Couto (..........) Ana Maria Pinto de Oliveira (CCHS-UFMS) Ana Maria Souza Lima Fargoni (......) Dercir Pedro de Oliveira (.....) Maria Adélia Menegazzo (CCHS-UFMS) Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (CEUD-UFMS) Rita Maria Baltar Van Der Laan (CEUC-UFMS) Ronaldo Assunção (CCHS-UFMS) Vânia Maria Lescano Guerra (.......) Ficha Catalográfica preparada pela Coordenadoria de Biblioteca Central-UFMS Papéis revista de letras UFMS. Vol. 1, n. 2 (jul-dez. 1997)- . -- Campo Grande, MS : Ed. UFMS, 1997v. : 27 cm. Semestral. 1. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. 2 APRESENTAÇÃO Papéis, Revista de Letras da UFMS, apresenta seu segundo número. De acordo com a orientação editorial, publica o resultado de pesquisas dos professores de quase todos os cursos de Letras desta universidade e de alguns pesquisadores de outras instituições de ensino superior, de maneira que possa divulgar parte das atividades desenvolvidas na UFMS, o que deve servir para veicular entre o meio acadêmico interno e externo uma amostra do que estamos realizando e, particularmente, estimular outros colegas, céticos ou receosos, a tomarem parte desta publicação nos próximos números. Como uma publicação de Letras, contamos com trabalhos na área de Lingüística e de Literatura, o que certamente contribuirá para o enriquecimento de uma gama variada de leitores. Vânia Maria Lescano Guerra e Celina Garcia Nascimento discorrem sobre os mecanismos utilizados na leitura e no ensino da escrita, no artigo “O conhecimento prévio e as inferências lexicais na sala de aula”. Noutro trabalho, “Um estudo da polifonia e da modalidade na estrutura argumentativa de dois textos jornalísticos”, a professora Vânia Guerra analisa a interrelação dos conceitos de polifonia e de modalidade discursiva na composição de estruturas argumentativas diferentes. Regina Dalcastagne faz uma fundamentada reflexão sobre a relação entre criação e opressão, a partir da análise de uma narrativa contemporânea, em seu artigo ‘‘Entre a palavra e a vida: intelectuais e o salazarismo no romance Bolor, de Augusto Abelaira’’, ficcionista português. Paulo Nolasco, em “A epígrafe - metáfora do conto Anel de Moebius, de Júlio Cortázar”, faz uma análise serniótica do conto Anel de Moebius, explorando a homologia entre a epígrafe, retirada da obra de Clarice Lispector, e a obra do autor de Orientação dos Gatos. Marileuza Ferreira da Silva, em “Uma leitura de Alice no país das maravilhas e As aventuras de Alice através dos espelhos, de Lewis Carroll”, elaborou um estudo sobre a construção textual, com destaque para o uso da sintaxe, nessas duas obras. O artigo de Edgar César Nolasco, ‘‘Clarice Lispector: a assinatura e a grafia da escritura”, é uma cuidadosa discussão sobre o processo de criação da autora de A hora da estrela. Josênia Marisa Chisini, com o artigo “O Quinto Império: confluências e divergências entre Fernando Pessoa e o Padre Antônio Vieira”, contribui com um rico estudo sobre as aproximações entre Fernando Pessoa e Padre Vieira, por meio de análises das características históricas, mística e literárias que envolvem a obra desses dois autores. O artigo “Guimarães Rosa: Tutaméia”, de Luiza Melo Vasconcelos, é um estudo de orientação estilística das formas de comparação do mencionado conto do autor de Grande Sertão: veredas. Em “Leitoras de Sabrina: Usuárias ou consumidoras”, uma original proposta de estudo da chamada literatura de consumo, seu autor, Genésio José Fernandes, nos instiga com uma arrojada proposta de análise. A professora Nadir de Boral, em seu artigo “Oral Strategies used by brasilian students learning english’’, procura estudar os procedimentos e as estratégias usadas no ensino de língua inglesa para adultos brasileiros. Como podemos observar, os temas são bastante variados, de modo a oferecer um leque amplo de informação e de abordagem. Sem dúvida representa um lance importante para os profissionais voltados para o ensino da literatura e da língua/linguagem, no segundo e no terceiro graus. José Batista de Sales 3 PA EI R E V I S T A D E LETRAS UFMS Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica Editora UFMS Revisão A revisão lingüística e ortográfica é de responsabilidade dos autores Impressão e Acabamento Divisão de Produção Gráfica - ACS/UFMS Distribuição Livraria UFMS Publicação da Rua 9 de Julho, 1922 CEP 79.081-050 - Campo Grande-MS Fone: (067) 787-1335 - Fax: (067) 787-7642 e-mail:[email protected] 4 SUMÁRIO 6 O CONHECIMENTO PRÉVIO E AS INFERÊNCIAS LEXICAIS NA SALA DE AULA 12 ENTRE A PALAVRA E A VIDA: INTELECTUAIS E O SALAZARISMO NO ROMANCE BOLOR, DE AUGUSTO ABELAIRA Vânia Maria Lescano Guerra e Celina Aparecida Garcia de S. Nascimento Regina Dalcastagnè 18 A EPÍGRAFE-METÁFORA DO CONTO ‘‘ANEL DE MOEBIUS’’ DE JÚLIO CORTÁZAR Paulo Sérgio Nolasco dos Santos 28 UMA LEITURA DE ‘‘ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS’’ E DE AS ‘‘AVENTURAS DE ALICE ATRAVÉS DO ESPELHO DE LEWIS CARROL Marileusa Ferreira da Silva 34 CLARICE LISPECTOR A ASSINATURA E A GRAFIA DA ESCRITURA 40 UM ESTUDO DA POLIFONIA E DA MODALIDADE NA ESTRUTURA ARGUMENTATIVA DE DOIS TEXTOS JORNALÍSTICOS Edgar Cézar Nolasco Vânia Maria Lescano Guerra 48 O QUINTO IMPÉRIO: CONFLUÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS ENTRE FERNANDO PESSOA E O PADRE ANTÔNIO VIEIRA Josenia Marisa Chisini 56 GUIMARÃES ROSA: TUTAMÉIA Luiza Mello Vasconcelos 60 LEITORAS DE SABRINA: USUÁRIAS OU CONSUMIDORAS? UMAPRIMEIRA TENTATIVA DE COMPREENSÃO DA PRÁTICA LEITORA DAS LEITORAS DE ROMANCES SENTIMENTAIS DE MASSA J. Genésio Fernandes 74 ORAL STRATEGIES USED BY BRAZILIAN STUDENTS LEARNING ENGLISH Nadir de Assis Borall 5 This paper presents some reflections about the lexical inferencing in reading comprehension within a public school. Key- words: * Vânia Maria Lescano Guerra é ....................UFMS/ PUC-SP ** Celina Aparecida Garcia de S. Nascimento é .................... UFMS/PUC-SP 6 O CONHECIMENTO PRÉVIO E AS INFERÊNCIAS LEXICAIS NA SALA DE AULA Vânia Maria Lescano Guerra* Celina Aparecida Garcia de S. Nascimento** Introdução Na vida acadêmica, já tornou comum a referência explicita ao insucesso escolar no que se refere ao ensina da leitura. Isto é, os argumentos valem-se dos resultados avaliados, quer no desempenho acadêmico, quer na atuação social e profíssional do professor. Daí nossa preocupação com esta prática pedagógica. O objetivo deste trabalho é verificar as estratégias de inferências lexicais utilizadas pelos alunos da 5ª série, em relação às atividades desenvolvidas durante a aula, na escola “João Dantas Filgueiras”, em Três Lagoas-MS. Este estudo é parte integrante de uma pesquisa mais ampla, desenvolvida pela Profa. Dra. Laís Furquim de Azevedo, pesquisadora responsável, da PUC-SP. As orientações para coletas e os instrumentos de pesquisa, foram fornecidos pela pesquisadora responsável, composta de dois textos: a primeira “Receptidade”, de Viriato Corrêa; e, o segundo, “Aproveitando o Solo”, retirado de um livro de Ciências. O córpus é constituído de 84 informantes cuja média de idade está entre 11 e 16 anos. São alunos da 5ª série A e B, período matutino. Pôde-se observar que as classes são heterogêneas, com alunos repetentes e com dificuldade de aprendizagem. As coletas duraram, em média de 50 minutos a uma hora e trinta minutos, a nossa participação foi de observadoras nos dois primeiros momentos e num terceiro, fizemos protocolo com quatro alunas que não haviam participado da 1ª etapa. Há algumas noções importantes que fundamentam nosso trabalho e que passaremos a expor; primeiramente por inferência lexical, entendemos a capacidade de se inferir palavras desconhecidas durante a leitura de um texto. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 6-11, jul./dez., 1997. Parece-nos que, para a efetividade do processo de inferência lexical, o leitor deve ser capaz de selecionar estratégias mais apropriadas e verificar as hipóteses formuladas através de um processo de monitoração eficaz, que lhe assegura a precisão das inferências feitas (Corte, 1991). Por monitoração, entendemos os controles conscientes e deliberado que se tem sobre as próprias ações cognitivas (Brown,1980). Entretanto, apesar de muitas pesquisas realizadas sobre a inferência lexical, restam muitas dúvidas a respeito desse processo. É evidente a necessidade de pesquisa nessa área, visando a uma elucidação mais precisa (Kleiman, 1.985). Quanto ao processo ensino/aprendizagem da leitura Miller (1978), diz que ao leitor caberia, a tarefa de “decodificar”, isto é, de “reconhecer” (os itens lingüíticos já conhecidos) e de descobrir (o significado dos itens desconhecidos). Nessa visão, o texto objetifica, ganha existência própria independente do sujeito e da situação de enunciação: o leitor seria, então, o “receptáculo” de uma saber contido no texto para construir o sentido. Note-se que, neste caso, constrói-se o sentido como se constrói uma casa, um objeto (a partir de unidade menores, combináveis entre si). Contrapondo a essa visão, a essa concepção, outros estudiosos e pesquisadores, como por exemplo Goodman (1970), defenderam a idéia de que o bom leitor seria aquele que diante dos dados de texto fosse capaz de acionar a que Rumelhart (1984) chama de “esquemas”. Considera-se esquemas um conhecimento de mundo, geralmente adquirido, informalmente, através de nossas experiências e convívio numa sociedade, conhecimento este cuja ativação no mundo oportuno é também essencial à compreensão de um texto. 7 Entre os modelos de leitura, Cavalcanti (1989), a descreve como um processo de solução de problemas, altamente complexo; uma combinação de processos controlados e automáticos. Em seu livro “Interpretação Leitor & Texto”, afirma que: “Os leitores, portanto, somente expõem abertamente seus sistemas de crença se eles adotam uma atividade em relação ao texto que representa a autoridade do autor”. A pessoa nunca só se baseia no texto que leu, ela aciona modelos cognitivos, “pacotes” de conhecimento na memória. Os conhecimentos permanecem armanezados nas pessoas. Os modelos estão frequentemente sendo modificados, transformados, aumentados, mudados, atualizados. Eles são altamente dinâmicos. 0 que o indivíduo tem armazenado ajuda a processar o que entra de novo e o que entra de novo também ajuda a atualizar o que já está no modelo. Outra noção essencial que é o conhecimento prévio na compreensão lingüística tem sido estudado como teoria de esquemas. Rumelhart (1980) a define, basicamente, como uma teoria sobre como nosso conhecimento prévio está representado em nossa mente e como esta representação facilita o uso de conhecimento de formas específicas. Brown (1980) define o processo de controle consciente deliberado que se tem sobre as próprias ações cognitivas (metacognição) como monitoracão. Assim, as estratégias cognitivas munem o leitor de procedimentos altamente eficazes e econômicos, responsáveis pelo processamento automático e inconsciente, mas são as estratégias metacognitivas que orientam o seu uso, a fim de desautomatizá-las em, situações de problemas (Kato, 1985). Kleiman (1985) parece compartilhar da mesma opinião quando alerta que o caráter precário do conhecimento lexical do aluno teria como uma das causas a sua incapacidade de controlar o processo de inferência lexical. Segundo a autora, a habilidade de monitorar a inferência lexical traria consequência não apenas para a compreensão, mas também para a aquisição do item lexical. Henriques (1989) avaliando o que leitores usavam quando tentavam adivinhar o significado de palavras desconhecidas ou parcialmente desconhecidas num texto, verificou a frequência do uso e também o grau de utilidade. Dessa forma, a autora conclui que é importante estar consciente das técnicas usadas, já que a maior parte delas são de certo modo úteis quando os leitores lidam com inferência lexical e, além disso sendo o contexto importante para inferência lexical, se a frase tiver muitas palavras desconhecidas será quase impossível adivinhar o seu significado. Análise do córpus e discussão Na primeira etapa de nossa análise, verificaremos as estratégias utilizadas pelos informantes no texto A (Receptidade) e no texto B (Aproveitando o Solo); em seguida passaremos a apresentar alguns exemplos das 8 transcrições dos protocolos verbais, em que foram utilizados os dois textos mencionados acima. Nos dois primeiros momentos desta pesquisa, os textos A e B foram trabalhados em dias diferentes, em que primeiramente foi solicitado aos informantes a leitura; após esta, solicitou-se que preenchessem as falhas anexas ao texto. Assim os alunos tentaram inferir o sentido aproximado das palavras e explicitar seu raciocínio, mostrandonos como haviam chegado a tal conclusão. Observamos que os informantes demonstraram fazer uso do mesmo tipo de estratégias, tanto no texto A como no B, entretanto os índices variam, principalmente em relação ao conhecimento Prévio e ao contexto imediato. (cf. quadro I). Esclarecemos que tivemos índices mais altos no texto A, pelo fato de que o mesmo contém 15 palavras em destaque para serem dados sinônimos, enquanto que no B, poderíamos ter 15 palavras supostamente desconhecidas, porém os informantes tentaram fazer inferências apenas nas palavras em que nomearam como desconhecidas. Talvez eles tenham percebido outras, porém ignoraram, parece-nos, por não encontrarem tais palavras em destaque. (cf. quadra I). Observamos que entre os 80 textos pesquisados a índice por palavras, de inferências com palavras originais ativadas pelo conhecimento prévio variou entre 38,7% para a palavra 6, redouças/pessoas; 26,2% para a palavra 9 tambas/cama; 22,5% para a Palavra 5 conesa/fome. Isto parece deixar transparecer a grande dificuldade dos informantes em selecionar uma palavra mais adequada de acordo com a sua compreensão do texto. Pode-se verificar que os índices por palavra apresentados com o uso do contexto imediato foram 47,5% para a palavra 5 conesa/alimento/cama; 37,5% para a palavra 15 receptidade/religião/dever; 30% para a palavra 1 receptidade/dever sagrado; e, l0,0% para a palavra 8 recâmaro/crianças. Isto possibilita-se supor que tais sujeitos estão acostumados a trabalhar dentro de um processo automático e inconsciente. Parece-nos, que em relação à inferência com sons semelhantes, os informantes tentaram adivinhar precocemente o significado da palavra, por não terem consciência de quais estratégias eles poderiam ter usado para chegar a uma aproximação do significado da referida palavra, de acordo com o contexto. Exemplificando, temos 8,7% para a palavra 9 tambas/tampas/tambores; 6,2% para a palavra 8 recâmaro/ reclamar/câmara; 5% para a palavra 2 redouças/bolsas/ redondo/louças. As palavras mais facilmente inferíveis no texto A foram conesa 22,5%; redouças, 38,7% e tambas 26,2%, correspondentes a fome, pessoas e cama. Supõe-se que os sujeitos pesquisados tenham tido mais facilidade nessas palavras por estarem mais relacionadas com suas experiências diárias ou por inferirem através do contexto imediato. As palavras mais dificilmente inferíveis do texto A foram receptidade 1 e recepto 3, para as quais não encontramos nenhuma palavra original substituindo-as. Isto pode ser observado no depoimento desse informante: Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 6-11, jul./dez., 1997. “Olha primeiro a senhora não esplicou o que é recepto pois eu só sei que recepto dorme na casa da gente... come e depois pede obrigado. Pois até agora eu não sei o que é recepto". Entre os 80 textos, tivemos um leque muito variado de inferências para cada palavra, chegando a um total de aproximadamente dezoito para receptos, exemplificando comida e avião; e dezoito para recâmaro, como por exemplo criança e despertador. É importante ressaltar que tivemos um total de 50% dos textos em que os alunos deixaram de uma a sete palavras em branco. Em se tratando das palavras do texto ou idéias que ajudavam nas inferências, o índice de cópia de frases ou parágrafos do texto, variou em média 52,5% para receptidade a 5,0% para contrucando. O que confirma novamente que os informantes tiveram maiores dificuldades ao tentar dar sinônimos à palavra receptidade e a outras com o mesmo cognato. Pensamos ser interessante comentar também que nos resumos dos 40 textos, solicitados antes da compreensão, obtivemos os seguintes resultados: 25,0% de resumos com cópias de alguns parágrafos do texto; 7,5% considerados aceitáveis; 45,0% com algumas idéias ou dados do texto. Três alunos não fizeram o resumo e os outros disseram que não entenderam o texto ou que o resumo fala de “coisa legal”. Verifique esse relato: “Eu não entendi muito. Mas eu acho que fala sobre as pessoas de religião’’. Pode-se dizer diante desses fatos que não foi possível afirmar que os resumos feitos no início do texto ajudaram na compreensão das palavras, ou menos ainda após a compreensão, pois, 50% não fizeram. Nesse último caso, é possível concluir que os informantes sentiram-se desestimulados diante da complexidade do texto, não inferindo satisfatoriamente. Em termos concludentes, retomando os pontos levantados nessa análise, os dados mostram-nos que as maiores dificuldades dos alunos foram como proceder para: a. entender cada enunciado apresentado; b. fazer a leitura do texto; c. procurar as palavras que não sabiam o significado; d. explicitar sobre o processo, após localizar a palavra no texto; e. fazer o resumo e, f. dar opinião ou idéias sobre o texto. Conforme expusemos anteriormente, quanto mais familiar for o texto, mais fácil será para o leitor ativar os esquemas necessários para a construção do seu significado. Assim, acreditamos que a processo de inferência lexical no texto B foi facilitado devido à existência de esquemas familiares para a leitor, contribuindo para a ocorrência de um maior número de inferências apropriadas. A ativação de esquemas, relacionados com o assunto tratado nos textos (conhecimento prévio), foi uma estratégia, frequentemente, utilizada pelos informantes. O índice foi de 51,2%, conforme já mostrado no quadro I. Verifique alguns exemplos, referentes ao texto Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 6-11, jul./dez., 1997. “lavrador eu acho que lavrador é aquele que planta, cuida da plantação e colhe. Eu acho que lavrador é aquele que cuida de suas roças porque sempre minha mãe fala que o meu pai era lavrador e falava que ele cuidava das suas roças sozinho”. “cereais é alimentação para pessoas. Explicação: eu vejo escrito em mercados, armazéns etc.”. ‘‘agricultura: é porque toda vez que meu tio planta ele fica cuidando da planta”. Notamos que os informantes inferiram o significado da palavra de maneira perfeitamente coerente dentro do contexto imediato, ou de acordo com seu conhecimento de mundo. Entretanto, à medida que analisamos o contexto imediato maior, isto é, analisamos outras informações contidas no mesmo parágrafo ou mesmo se levarmos em conta o contexto global (idéias apresentadas em outros parágrafos), observamos que as inferências tornam-se inconscientes. O uso do contexto imediato demonstrou ser uma estratégia muito utilizada também, com o índice de 43,7%, servindo como uma complementação, cuja função seria assegurar a precisão da inferência. Para Scott (1989), o uso do contexto esconde uma variedade de processos rápidos e inconscientes do leitor (conhecimento lingüístico e textual). Ex: ‘‘agrônomo - uma pessoa que entende de plantações porque explicou o problema ao lavrador’’. A análise de palavra (conhecimento morfológico ou reconhecimento e cognatos) apresentou um índice de 5% quando utilizada como estratégia isolada e não demonstrou levar à inferência lexical adequada. O contexto parece ter ficado obscurecido diante de tal estratégia, perdendo sua força, como se pode observar no trecho abaixo: ‘‘calagem eu acho que calagem é para as pessoas calar”. Em relação ao uso de estratégias ascendentes, o uso de associação de palavras por semelhança fonológica também ocorreu num índice de 7,5%, conforme ilustra o depoimento abaixo: ‘‘hortaliças são retirados da horta, verduras, o que me ajudou a descubrir isso foi o som da palavra pelo som eu achei que era esta resposta’’. Quanto ao processo de inferência lexical, outro ponto que merece ser discutido é o fato de o informante não saber explicar seu raciocínio ao inferir a palavra desconhecida, sendo que apenas uma minoria conseguiu tal resultado. Somos inclinados a acreditar que a explicação para a ocorrência de tal fato em nossos dados estaria no uso de estratégias cognitivas ou metacognitivas, já que as estratégias metacognitivas emergem quando as estratégias cognitivas são usadas automaticamente. (Kato, 1987). A estratégia de uso do contexto global (temático) foi menos usada no texto A do que no texto B. Acreditamos que, devido à ausência de um conhecimento prévio maior, que pudesse ajudar o processo de comprensão do texto A, os informantes obtiveram uma visão fragmen9 tada, não conseguindo, talvez, apreender seu todo. Daí a razão da estratégia ter tido uma ocorrência menor. Um fato que teve várias ocorrências foi a dificuldade de resumir que os alunos demonstraram. O fato é que fica dificultado o trabalho com o texto quando se pede para o informante falar sobre a sua compreensão e elaborar resumo, mesmo quando se percebe que ele entendeu as idéias centrais do texto. Eis um depoimento: ‘‘eu entendi quase tudo mas não sei resumir direito. Eu pudi entender que o solo precisa de fósforos, potássio, enxofre nitrogênio etc’’. Outro elemento que aparece muito nos textos A e B, principalmente no A, é a cópia literal, parecendo-nos que o informante não consegue compreender o que se pede e, não conseguindo inferir, apenas copia para dar uma resposta ou para não deixar em branco. Tais resultados retratam o que diz Kato (op.cit.), que se o assunto do texto não é familiar, espera-se uma abordagem especificamente ascendente, em que o leitor não faz uso do conhecimento lingüístico e nem textual. Quanto aos Protocolos Verbais, as inferências feitas foram por meio das estratégias do uso do conhecimento prévio e contexto imediato. Veja alguns exemplos, com uso do conhecimento prévio, no protocolo 01: C: “que... significa nitrogênio aqui? R: Nitrogênio?... Significa um adubo... prá terra... é a... que tem que fazer uma adubação correta... se não poderia até prejudicar as plantas... porque a adubação demais poderia prejudicar as plantas”. Selecionamos a seguir, as inferências feitas a partir do contexto imediato e observamos que nesses casos o informante tentava resolver o problema lançando mão de estratégias conscientes do tipo: releitura do texto, com acréscimo de novas informações através do sentido do mesmo ou da própria palavra. C: ‘‘O que você acha que é essa calagem RI? você conhece? R: Calagem eu não conheço”. Ao fazer algumas perguntas ao RI, ele disse que quando não sabe o significado de uma palavra na sala de aula, primeiro pergunta para professora, e, depois em casa olha no dicionário. A seguir perguntamos: C: Nesse caso... aqui no texto... essa calagem que você acha que seria? R: Seria a correção do solo?’’ (após uma releitura, RI esclarece que viu no texto essa resposta). Finalmente, pode-se afirmar que RI procedeu de forma clara e concisa, com marcadores frasais. Durante todo o trabalho ele vai refletindo sobre suas idéias, ordenando com uma certa segurança a sequência do assunto tratado, demonstrando ser um leitor que faz uso de forma interativa do conhecimento lingüística e conhecimento prévio, e ainda, usando os dois processos de leitura, conforme KATO (1985), que são descendente (top-down), dependente do leitor e ascendente (botton-up), dependente do texto. Assim como no Protocolo 01, tentaremos verificar no Protocolo 02 os tipos de inferência realizada a cada 10 palavra desconhecida e como o informante tentou resolver a situação-problema. Pode-se afirmar a partir dos dados que parece haver um único caso em que a informante, ao ter dificuldade para fazer inferência sobre uma palavra, fez uso do conhecimento prévio. C: ‘‘hummm!... tá erosão você conhece? ou não? R: mais ou menos. C: você já viu essa palavrinha Re? R: hum -humm C: O que você acha que é?’’ (...) R: "Não sei ( ) quando tem ( ) assim nas estradas ( ) aquelas montanhas de terra assim... daí pode chover muito... ventar... ( ) um pouco de terra e causa a erosão... C: e tem alguma... algum... alguma palavrinha ou idéia aqui no texto que ajudou a dá esse significado? ou você já viu em algum local... R: eu já estudei... no texto de ciências ( )" Observamos nesse relato que a informante tenta compreender o texto, recorrendo ao que já estudou em séries anteriores ou por já ter visto algum tipo de erosão. O uso do contexto imediato também demonstrou ser uma, estratégia utilizada pela informante RE, servindo como um suporte para assegurar a precisão da inferência. R: “provém... aqui C: Provém? o que você acha que é... o que o você está pensando... pode lê: novamente... (R fica em silêncio olhando para o texto por 12") R: ah! é precisa né? C: precisa?’’ R: ah... eu acho que os nutrientes ao solo VÊM das partículas minerais.’’ Observamos na Protocolo 03, um exemplo de uso de conhecimento prévio. T: ‘‘no sertão do Brasil... quem pergunta o preço da receptagem ofende aquele que a deu... é que num... num... acho que não tem preço... num precisa pagar para receptar...’’. O contexto imediato (anterior ou posterior) foi levado em conta aqui, veja um exemplo: T: ‘‘nossa casa vivia apinhada... de criatura... estranhas... várias... as gentes... estranhas que vinham... lá...’’. Já no Protocolo 04, a ativação do conhecimento prévio aparece na maioria das inferências realizadas. Veja: A: ‘‘a receptidade é um dever sagrado que cumpre religiosamente... é... que a receptidade é um dever... é... como se fosse uma religião...’’. Considerações Finais Este trabalho objetivou investigar as estratégias de inferência lexical que leitores da quinta série de uma escola da periferia utilizaram durante a leitura de dois textos distintos e do protocolo verbal. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 6-11, jul./dez., 1997. Vale a pena ressaltar novamente que os resultados apresentados neste estudo restringem-se ao tipo de informante escolhido, apresentando portanto, muitas limitações. Uma das limitações diz respeito à motivação ao executar a tarefa pedida. O texto B revelou ser muito mais interessante e motivante para os informantes do que o texto A. Tal fato pode ter representado uma variável interveniente na dificuldade encontrada pelos informantes ao processar os textos e executar as tarefas. Os informantes conseguiram inferir, apesar de suas limitadas condições, um número considerável de palavras em ambos os textos, revelando que a inferência lexical é uma estratégia frequente durante a leitura de textos. Os informantes também tenderam a ter desempenho melhor no texto B, sobre o qual possuíam maior conhecimento prévio, do que no texto A, revelando uma facilidade de se inferir termos desconhecidos quando o assunto do texto é familiar. O processo de inferência lexical tendeu a ocorrer a nível inconsciente com primazia de estratégias cognitivas sobre as metacognitivas. De uma certa forma, os resultados nos mostraram que de fato, o ensino da leitura em Língua Materna e compre- ensão de texto na nossa realidade, encontram-se bastante insatisfatórios por vários fatores que lentamente tem afetado a aprendizagem e o desenvolvimento de nossos alunos. Torna-se necessário mencionar que tivemos alguns alunos que se destacaram no texto escrito e no protocolo verbal em que trabalhamos com o texto B, transparecendo uma maior consciência, com atitudes de ativação de esquemas do conhecimento prévio, assim como formulação de hipóteses, construção de significado com o objetivo de dar coerência ao texto. Em consequência de diversas leituras, observa-se que o aluno aprende o que julga relevante e não aprende o que não percebe como útil para si próprio, pois o processo de aprender é regulado por princípios e julgamentos do aluno de forma consciente ou inconsciente e por pontos que esse aluno julgue desnecessária e/ou difíceis e que são por ele descartados. E por último, é importante salientar que um dos maiores impasses do processo ensino/aprendizagem atualmente é a formação equivocada do aluno e a inadequada formação profissional do professor, por falta de instrumentos adequados que transformem tanto o educando como o professor em leitores eficientes. QUADRO I ESTRATÉGIAS DE INFERENCIA LEXICAL UTILIZADAS Estrat. de Inferências texto A Recept. indice Texto B Solo indice T.de Est. de Infêr. Conhecimento Prévio 59/80 73,7% 41/80 51,2% 100 Contexto Imediato 70/80 87,5% 35/80 43,7% 105 Cognatos - - 04/80 05,0% 04 Som da Palav. 28/80 35% 06/80 07,5% 34 Sentido Liter. 25/80 31,2% - - 25 Dica Tipográf. - - 01/80 01,2% 01 182/80 227,4% 87/80 108,6% 269 T.de Infer. Por Texto Referências Bibliográficas AZEVEDO, L.F. (1992) Inferência e Coesão, mimeo. BROWN, G. & YULE, G. (1983) Discourse Analysis. Cambridge, Cambridge University Press. CAVALCANTI, M.C. Interacão leitor-texto. Campinas-SP. Editora da UNICAMP. CORACINI, M. J. (1989) Leitura: Decodificação, processo discursivo? In Anais do Gel, São Paulo. CORTE, A. C. O. (1991) Uma Análise do Uso de Estratégias de Inferência Lexical em Leitores Proficientes da Língua Inglesa. Dissertação de Mestrado, PUC/SP. GOODMAN, K. S. (1967) Reading: a psycholinguistic guessing game: In Journal of Reading Specialist. 6: 126-35. HENRIQUES, L. V. (1989) Lexical Inferencing for More Effecive Reading, Univesity of Lancaster, mimeo, 1999. KATO, M. (1985) O Aprendizado de Leitura. São Paulo, Matins Fontes. KLEIMAN, A. B. (1985) Estratégias de Inferência Lexical na Leitura de Segunda Língua. Ilha do Desterro. ––––––– . (1989) Leitura: Ensino e Pesquisa. Campinas-SP, Pontes. RUMELHART, D. E. Schemata: The Building, Blocks of Cognition. In Spiro et al. (eds) Theoretical Issues in Reading Comprehension. Hillsdale, N. I., Lawrence Erlbaum Associates Publishers. SCOTT, M. (1982) An Investigation into Student Preferences regarding the Topics of Texts. The Especialist 4, PUC-SP. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 6-11, jul./dez., 1997. 11 Mas homens são homens. E o melhor deles esquece-se, às vezes, de que é humano. Shakespeare O artigo discute a relação entre criação e opressão no romance Bolor, do português Augusto Abelaira. Em meio a uma ditadura que atravessaria quatro décadas, artistas e intelectuais se viam espremidos entre a impossibilidade de agir e a necessidade de continuar formulando discursos. As personagens de Abelaira são capturadas nesse instante, perdidas entre o medo e os restos dos antigos sonhos. Este trabalho procura definir as feições dessas figuras, revelando o que se esconde por trás de seus discursos. Palavras-chave: criação e opressão, discurso, literatura portuguesa contemporânea * The essay discusses the report between creation and oppression in the novel Bolor, from Portuguese writer Augusto Abelaira. In Salazar’s dictatorship, that will last by four decades, artists and intellectuals were divided between the impossibility to act and the need to remain to formulate discourses. Abelaira’s characters are capturated in this moment, lost between the fear and the rests of the old dreams. This paper searches to determine the features of these figures, exposing what is behind their discourses. Key-words: creation and oppression, discourse, Portuguese contemporary literature 12 Regina Dalcastagnè é Professora de Literatura Brasileira na Universidade de Brasília; doutora em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas; coordenadora do Grupo de Trabalho em Literatura Brasileira Contemporânea da UnB. É autora do ensaio O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro (Brasília: Editora UnB, 1996); e-mail: <[email protected]>. ENTRE A PALAVRA E A VIDA INTELECTUAIS E O SALAZARISMO NO ROMANCE BOLOR, DE AUGUSTO ABELAIRA Regina Dalcastagnè* O homem diante de uma página de papel em branco. Ela o convida e o constrange, exige respostas para perguntas que ainda não foram feitas, sonha sentidos jamais experimentados, reclama disciplina e talento. E o homem à sua frente o que faz? Mente, trapaceia, inventa emoções que talvez nunca venha a sentir, sugere razões que desconhece, perpetua uma angústia que não é só sua - saber-se traidor, seja da vida, já que se vê impedido de desfrutá-la sem recolher material para a escrita que se engendra dentro de si, seja da palavra, que não lhe basta para reconhecer o mundo. O dilema do homem diante do objeto de sua escrita ele próprio - é construído de forma extremamente original em Bolor, romance de Augusto Abelaira1. No Portugal dos anos 60, um homem chamado Humberto escreve um diário. Embora anunciando-se “antecipadamente sabedor da inutilidade das linhas” (pg. 9) que ainda não redigiu, ele sai em busca da palavra que pode resgatar a vida. E seu percurso vai se transformando numa sucessão de equívocos. Ao começar o diário, Humberto pensa estar procurando desvendar a mulher, Maria dos Remédios. Diz querer observá-la, “não com os olhos, mas com uma esferográfica” (pg. 13). Tenta desfazê-la em sua memória para só então revelála no papel. Mas é através de objetos que ele pensa poder recuperá-la. Pelo relógio ou pelos brincos que ela usa, pelas palavras que ela pronuncia: Pois se os teus brincos não fostes tu quem os fez, o mesmo sucede com as palavras. No fim de contas limitaste-te também a aceitá-las já feitas, escolhes estas ou aquelas como escolheste os brincos, uma escolha 1 sobre coisas existentes desde sempre, mesmo quando tu ainda não existias e ainda ninguém podia sonhar contigo (pg. 25). Irremediavelmente perdido num espaço qualquer entre a palavra e a vida, entre o discurso e a ação, Humberto escreve um diário - que também é escrito por Maria dos Remédios e por Aleixo, quem sabe até por Leonor - numa tentativa desesperada de reencontrar a si mesmo. Nesse universo ficcional ele não é apenas criador, mas também, e principalmente, criatura. Arma ciladas literárias, oculta pistas, dificulta o jogo, mas se embrenha no mesmo nevoeiro que ajudou a erguer e, de repente, já não é mais senhor de sua história. De narrador passa a narrado, um pouco como TchuangTseu que “não sabe se é um filósofo que sonha ser borboleta ou uma borboleta que sonha ser filósofo” (p. 125). Todas as personagens acabam reivindicando a autoria do diário. Primeiro é Maria dos Remédios - que se insere no caderno do marido para deixar-lhe um recado, passa a narrar sua própria angústia e termina por confessar que desde o início escreve em nome dele, como se fosse ele. Depois é Aleixo, amigo de Humberto e amante de Maria dos Remédios, que o vê redigindo, tem a mesma idéia e começa seu próprio “diário íntimo”. Não demora muito para que ele também diga que escreve como se fosse os outros dois, deduzindo seus pensamentos, imaginando seus rancores. Por fim, há Leonor, mulher de Aleixo, personagem menor que, numa constrangedora conversa com Maria dos Remédios nas últimas páginas do livro, revela também ter se insinuado no diário do marido. Augusto Abelaira, Bolor. 2ª ed. Lisboa: Bertrand, 1970 (1ª ed., 1968). Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 12-17, jul./dez., 1997. 13 Assim, Bolor tem quatro autores diferentes, quatro personagens que se escrevem mutuamente, que se destróem, se sonham e que se simulam através de palavras. Palavras “existentes desde sempre”, como quer Humberto, ou aquele que escreve em seu nome, mas que vão ganhando novo poder a partir de sua manipulação. Embora profundamente enraizados em seu tempo, Humberto, Maria dos Remédios, Aleixo e Leonor são pura ficção - irmãos do infeliz Augusto Pérez que em Névoa ousa questionar seu autor, Miguel de Unamuno. Pérez não se conforma com a situação de personagem, obra de um outro: “Se um homem sonha que vive... vá lá, mas que outra pessoa tenha esse sonho por ele...”2. As personagens de Bolor vivem esse mesmo drama, pressentem sua condição imaterial e sabem que têm de continuar se sonhando para que não sejam varridos deste mundo. Por isso a palavra é perseguida tão arduamente. Só ela pode dar opacidade a seres transparentes, descarnados, que se agarram aos objetos para tentar se enxergar: “Apesar de transparentes, de vez em quando pões um fato novo, eu um vestido novo... E às vezes conversamos de certa maneira..., talvez como agora. Não digo que fiquemos absolutamente visíveis, homem invisível, mas a transparência deixa de ser absoluta, torna-se translúcida... E é bom tropeçar numa coisa inesperada...” (p. 156). São as palavras, garante Humberto, “que dão olhos aos sentidos” (p. 36), são elas que o permitem sentir a vida, entrar em contato com o outro. Mas são elas também que o enclausuram e o condenam à sua condição de não existência. Como pode viver um ser que depende única e exclusivamente daquilo que escreve ou do que escrevem sobre ele? Diante da enormidade da vida, as palavras “são cegas, são surdas, não têm sabor, nem tacto...” (p. 35), protesta Maria dos Remédios. Como seres de ficção, eles não sentem de verdade, não amam, não odeiam, nem agem. Mas sofrem, porque têm consciência de vida, uma memória qualquer que os faz ter expectativas e alguns sonhos. É justamente essa consciência de não estarem vivos que os faz tão diferentes de personagens como Anna Karênina ou Julien Sorel, que mergulham intensamente naquilo que acreditam ser suas vidas sem questionar uma origem ou um fim. A única personagem que tem solidez, que é símbolo e representação da vida dentro de Bolor, é a faxineira. A “mulher a dias” de Maria dos Remédios não possui nome nem voz, tudo o que tem são cinco filhos miseráveis, dezoito abortos a sangue-frio e um marido estúpido, mas é o que há de mais real no livro. Maria dos Remédios tem consciência, talvez até inveja, dessa “materialidade” da empregada. A faxineira possui um corpo, não simplesmente pelo fato de ser uma des2 graçada, mas porque está em contraposição à transparência da outra, que se vê no limiar da insensibilidade: “De súbito sucedeu-me esta coisa incrível: olhei para ela e pensei que não pertencíamos à mesma espécie, éramos animais diferentes” (p. 57). Diante da mulher a dias Maria dos Remédios reconhece sua vida, e a de Humberto, em negativo: “Nada fizemos, mas somos felizes, não é? Felizes negativamente... Felizes sòmente porque não somos infelizes!” (p. 57). Vivas somente porque não estão mortas, cada uma das personagens tenta, através da escrita, resgatar algo que lhe permita sonhar a si mesma, construir a vida a partir de sua própria pessoa e não do outro. Maria dos Remédios escreve em nome de Humberto porque não se reconhece enquanto ser independente, “a minha vida própria transformou-se em adivinhar quem és, a minha vida própria, mesmo quando me limito a pensar, mesmo quando não escrevo, deixou de estar conjugada na minha primeira pessoa ou até na terceira pessoa referida a ti - mas numa primeira pessoa que é a tua” (p. 119). No diário, que a escravizaria até pronominalmente, Maria dos Remédios procura não a restituição do que ela teria sido um dia, mas a possibilidade de sonhar em ser algo diferente, de poder pronunciar frases e “simultâneamente as viver” (p. 128). Já Humberto busca, meio sem saber por quê, conquistar o direito à comunicação com o outro. Apesar de dizer, logo no início, que o diário é “a tentativa de encher os momentos em que sou obrigado a estar sozinho” (p. 32), ele acaba confessando que seu objetivo, na verdade, é “observar minuciosamente as minhas relações com os outros (amigos e simplesmente conhecidos), verificar se sim ou não os nossos diálogos gozam da propriedade comutativa, são intermutáveis, se onde está eu poderia estar indiferentemente ele” (p. 59). Humberto pressente que é só através do outro, Maria dos Remédios ou Aleixo, que ele pode se reconhecer, legitimar sua própria identidade. Mas, ainda vítima do sortilégio da palavra, se mantém isolado e, assim, não consegue reconectar seu ser, não é tocado pelo “milagre salvador” do qual fala Hannah Arendt, e permanece no equívoco. Afinal, todo ato de pensar é feito quando se está a sós, e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogo dos dois-em-um não perde o contato com o mundo dos meus semelhantes, pois que eles são representados no meu eu, com o qual estabeleço o diálogo do pensamento. O problema de estar a sós é que esses dois-em-um necessitam dos outros para que voltem a ser um - um indivíduo imutável cuja identidade jamais pode ser confundida com a de qualquer outro. Para a confirmação da minha identidade, dependo inteiramente de outras pessoas; e o grande milagre salvador da companhia para os homens solitários é que os “integra” novamente; poupa-os do diálogo do pensamento no qual permanecem Miguel de Unamuno, Névoa. Trad. de José Antônio Ceschin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 173 (ed. original, 1914). 14 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 12-17, jul./dez., 1997. sempre equívocos, e restabelecelhes a identidade que lhes permite falar com a voz única da pessoa impermutável3. Esse “milagre salvador” parece ser prerrogativa exclusiva daqueles que vivem, que habitam o mundo em companhia de outros homens, não de seres de mentira, que simulam seus dramas e interpretam seus próprios discursos. Aleixo é mais atento a esse fato, desiludido até. Diz escrever o diário apenas em busca do remorso que não tem por trair o amigo, camuflando assim a necessidade maior: “Se não sentes remorsos, então estás morto, és um ser perdido” (p. 141). Parece tão pouco, mas é com esse sentimento - o remorso - que Aleixo pretende se agarrar à vida, se fazer humano. Ele que se sabe máscara, que se reconhece ficção: “Quando me encontro contigo ponho uma máscara. Como os primitivos que nos grandes ritos anuais às duas por três acabam por acreditar no poder da máscara... sinto-me outro, com outros poderes, já não sou eu... ou sou verdadeiramente eu. [...] E represento um papel, um papel bem mais rico do que o meu, bem mais dramático” (pp. 128-9). Mas há ainda Leonor, que lê escondida o diário do marido e dá a entender que age da mesma maneira que Maria dos Remédios, ou seja, que também escreve um diário em sobreposição ao de Aleixo. Ela é a única que traz algumas reminiscências da infância, sempre ligadas a objetos - as primeiras meias de naylon, o primeiro aparelho de rádio - mas são lembranças estagnadas, em um presente cristalizado: “Mas tudo isto sei, não sinto... O mundo parece-me imóvel, tenho a impressão de que continuo com a mesma idade, de que nada se passou” (p. 187). Escrever o diário poderia ser a forma encontrada por Leonor para fazer seu mundo girar, acordar de um pesadelo que a impede de existir, de sonhar o homem amado e ser sonhada por ele. Leonor, como Maria dos Remédios, imagina uma relação amorosa diferente, muito mais intensa do que a que possui. Talvez uma relação onde tudo estivesse em jogo. A palavra tudo, que Maria dos Remédios tenta decodificar de mil maneiras, e que a leva sempre à constatação de que Humberto não é tudo em sua vida - o que, inconfessadamente, a irrita - vai assumindo novas dimensões ao longo do diário. Traveste-se em algo mágico, que tem de ser perseguido até o infinito, como se fizesse parte de uma “essência humana”, algo que pudesse ser apreciado, tocado com a ponta dos dedos e, enfim, incorporado ao ser. A “Verdade”, a “Certeza”, o “Tudo”, palavras ocas de concretude, 3 possuem um poder encantatório sobre as personagens de Bolor - são como jaulas transparentes que mantêm o cativo em ignorância de sua condição. Maria dos Remédios, Humberto, Aleixo e Leonor estão enclausurados pelas palavras e a cada instante que passa reforçam eles próprios as paredes da prisão. Armazenam palavras, constróem discursos numa tentativa alucinada de se transformarem naquele “indivíduo imutável cuja identidade jamais pode ser confundida com a de qualquer outro”. Mas, como se estivessem abandonados sobre um campo de areia movediça, o espernear de sua angústia só os faz afundar cada vez mais rapidamente. Gastam todas as energias elaborando seus textos e depois ainda se vêem condenados a encená-los. Maria dos Remédios inventa categorias como o tudo e o insubstituível para tentar sentir o mundo sob seus pés, mas acaba se deixando escravizar por elas. Já não pode se imaginar feliz sem ser tudo para o outro, sem que ele seja insubstituível para si própria. Constatar que ninguém pode ser tudo, que ninguém é insubstituível, só a deixa mais insegura, mais só. O mesmo acontece com Humberto. Ao se casar com Catarina, sua primeira esposa, ele pronuncia palavras que se pretendem mágicas: “Estamos no centro do mundo! [...] Aqui o tempo parou. Não: aqui o fluir do tempo rompeu-se, regressámos ao momento da criação, Marduk acaba de vencer Tiamat, imitamos a aurora do mundo, estamos verdadeiramente na aurora do mundo, purificados, tudo vai começar, acabamos de nascer...” (pg. 42). Palavras idênticas às que utilizará ao casar-se com Maria dos Remédios. Um discurso que ele constrói do nada mas que se estabelece como uma verdade, uma necessidade que acaba não se concretizando. Humberto decepcionase ao perceber que não nasceu outro, é sempre o mesmo, mas continua a acreditar no encanto de suas palavras. A partir daí, por não encontrar o culpado em si, por não enxergar a origem de sua frustração, ele culpa Maria dos Remédios. É a mulher que o impede de existir, de ser outro, “de nascer de novo” - velha ilusão que ela desmistifica quando pergunta “que farias tu de ti, desse homem novo? Para que te serviria ele?” (pg. 125). Ao mesmo tempo ela também sabe que Humberto é seu álibi. Ambos são o reflexo de um mesmo fracasso. De alguma forma amarrados um no outro, eles não têm forças para dar o salto decisivo, não conseguem sair do texto para entrar na vida. Uma página de papel em branco convida e constrange. Exige respostas para perguntas que ainda não foram feitas. Reclama disciplina e talento. Hannah Arendt, Origens do totalitarismo. Trad. de Roberto Raposo. S. Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 528-9. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 12-17, jul./dez., 1997. 15 Se todo o diário, ou os diários, é uma grande prisão de seres que não existem, suas três últimas páginas são uma espécie de solitária, escura e fria, onde ficarão esquecidas personagens que não conseguiram se fazer humanas. Personagens que, como o desgraçado Augusto Pérez, de Névoa, não ouviram o conselho amigo: “Não há pedagogia que mereça a pena. Só se aprende a viver vivendo, e cada homem tem que recomeçar o aprendizado da vida...”4. Nas três últimas páginas, Humberto encarcera definitivamente Maria dos Remédios, condenando também a si próprio: “Ela olha para mim em silêncio, escrevo que ela olha para mim em silêncio, e aguardo as palavras restantes a fim de as congelar neste diário [escrevo que aguardo as palavras restantes a fim de as congelar neste diário (e escrevo que escrevo que aguardo as palavras restantes a fim de as congelar neste diário - ... -)]” (pp. 1934). O “T” final, que encerra o livro, os remete, junto com Aleixo e Leonor, a um vácuo qualquer, espaço onde até a palavra se vê impossibilitada de continuar existindo. E, assim, os “seres de mentira” de Abelaira são expulsos do mundo dos homens. Mas - e se eles não forem de mentira? Se, ao invés de ocupados com sua existência ficcional eles estivessem simplesmente representando o drama do homem, do intelectual português dos anos 60? Que terrível sonho poderia ter feito seres de verdade parecerem de mentira? Humberto, Aleixo, Maria dos Remédios e Leonor teriam então habitado efetivamente o mundo. Um era advogado, defendia presos políticos; o outro era artista plástico, e não se conformava em ver sua arte “reduzida a dar beleza aos bem instalados na vida” (p. 69). Maria dos Remédios foi cantora um dia e Leonor, que tem dois filhos, está se sentindo envelhecer. São intelectuais, apreciam boa música e boa literatura, já viajaram bastante e estão sempre muito bem informados. Passam horas discutindo o sonhado avanço e os inúmeros retrocessos políticos. Parecem tão vivos quanto você. Mas não são. Chegando bem perto dá para ver um vazio no fundo dos olhos, o medo bem apertado dentro da garganta, os ombros dobrados por um sentimento que é misto de vergonha e culpa. Caso se tome uma distância um pouco maior ainda dá para ouvi-los falar. Repare como são largos seus gestos, como parecem seguros do que dizem, como se sentem imponentes quando estão jun- tos, numa mesa de bar, num evento social qualquer. Mas ao voltar para casa já são outros de novo. Assustados, correm para seus diários, onde podem continuar se confundindo com seus discursos. Só em barulhentos grupos podem ter a ilusão de ainda serem humanos, de estarem participando de uma vida comum àqueles que habitam o mundo. Praticamente toda a obra de Abelaira, sempre centrada na intelectualidade portuguesa, discute essa impotência, essa impossibilidade de combinar discurso e ação. Em Sem tecto, entre ruínas, a mesma situação é explicitada quando, em meio a uma festa, uma das personagens questiona: - Impressiona-me o ar sério com que todos representam o seu papel. Como todos, por um momento, supõem que esta casa é o país inteiro, talvez a Europa, não sei se o universo, e que aqui se decifram os grandes acontecimentos, se decidem as grandes linhas da evolução futura. E como se sentiriam terrivelmente desprotegidos se suspeitassem que não legislam sobre coisíssima nenhuma, que se limitam a passar tempo, substituir por palavras as horas, os minutos, os segundos! Que consomem tempo em vez de o produzirem. São deuses, têm necessidade de se sentir deuses, de conhecer o futuro, não lhes basta conhecer o presente5. Para em seguida receber a resposta, que remete diretamente a uma intrincada rede de mitos que cerca Portugal: “Talvez a teia da história e do mundo se confunda com as palavras e esta sala seja efectivamente tudo quanto existe no universo ou pelo menos o modelo do universo. À falta de poderem produzir tempo produzem símbolos, símbolos que nada simbolizam”6. As personagens de Abelaira são seres alienados, homens e mulheres cultos e bem informados, mas que perderam o contato com o mundo e se tornaram alheios à sua própria humanidade7. Envolvidos por uma ditadura que se estenderia por quase meio século, eles foram se transformando gradativamente nesses organismos estranhos, que se alimentam de tempo e que parem símbolos ocos. Seres confusos, que se enredam em seu próprio discurso, e se deixam aprisionar por ele, vivendo eternamente comprimidos entre a impossibilidade de agir, de produzir uma realidade social, da qual se sabem responsáveis, e a necessidade de se justificar por nada fazerem. Por isso falam tanto, escrevem tanto, e vivem tão pouco. A esfera política, lugar onde os homens “agem em conjunto na realiza- 4 Unamuno, op. cit., p. 77. Augusto Abelaira, Sem tecto, entre ruínas. 2ª ed. Lisboa: Sá da Costa, p. 18 (1ª ed., 1978). 6 Id., ib. 7 “L’être générique de l’homme, aussi bien la nature que ses facultés intellectuelles génériques, sont transformées en un être qui lui est étranger, en moyen de son existence individuelle. Il rend étranger à l’homme son propre corps, comme la nature en dehors de lui, comme son essence spirituelle, son essence humaine. [...] D’une manière générale, la proposition que son être générique est rendu étranger à l’homme, signifie qu’un homme est rendu étranger à l’autre comme chacun d’eux est rendu étranger à l’essence humaine”. Karl Marx, Manuscrits de 1844. Traduction de Emile Bottigelli. Paris: Editions Sociales, s.d., pp. 64-5. 5 16 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 12-17, jul./dez., 1997. ção de um interesse comum”8, foi destruída pelo salazarismo. E a esfera privada, refúgio natural da alma humana, também se viu atingida. De politicamente isolados, eles vão se fazendo igualmente solitários. E a solidão é o fundamento do terror, como demonstra Hannah Arendt. Momento em que o homem se vê esvaziado do seu eu, onde ele “perde a confiança em si mesmo como parceiro dos próprios pensamentos e perde aquela confiança elementar no mundo para que se possam ter quaisquer experiências”9. Quando recorrem ao diário - para “preencher os momentos em que estão à sós” - as personagens de Bolor já não estão conseguindo mais restabelecer o diálogo com o outro. Aos poucos, ao longo da escrita, percebem que já não podem contar sequer consigo próprias. Maria dos Remédios não dispõe mais de sua primeira pessoa. Perdida em meio ao jogo, ela precisa desesperadamente confirmar sua identidade. Não o consegue junto de Humberto; tenta Aleixo, mas também se decepciona. Eles não são “insubstituíveis”, o que faz dela também um ser supérfluo. Uma vez que nenhuma das personagens é insubstituível para a outra, todas são supérfluas e convivem intimamente com o horror dessa descoberta. O único que tem coragem de manifestar essa angústia é Aleixo que, numa conversa com Humberto, faz o retrato de sua própria impotência: Sinto necessidade, através do voto, através de um ou outro artigo escrito para o jornal, sei lá que mais!, de dar a minha contribuição à marcha do mundo, isto é, sinto necessidade de pesar, por pouco que seja, nos actos governativos, nas grandes decisões... E que sucede? Não voto, não posso escrever esses artigos... Se eu fosse verdadeiramente um político ou um revolucionário a sério ainda poderia tentar essa influência de outra maneira. Mas não. [...] O mundo faz-se sem mim, sem o meu voto, nem sequer contra o meu voto. Cortado da vida social, se por vida social entendermos a construção de uma sociedade nova. Isso destrói-me, torna-me céptico, céptico até em relação às coisas em que acredito, pessimista (pp. 95-6). E aquilo que poderia ser o vislumbrar de uma solução para o impasse, mostra-se apenas como o reconhecimento, lúcido e brutal, da situação: “Através da comparticipação na coisa pública o homem integra-se na sociedade, domina a solidão. E essa solidão não se vence a escrever diários ou livros, ou a pintar quadros, compreendes? Não se vence também a conversar no café com os amigos” (pg. 96). Aleixo é capaz de detectar o mal que sofre, conhece até o remédio, mas está impedido de avançar até ele. Enquanto espera nem todos são revolucionários - vai se destruindo aos poucos. Chega a propor que a arte se cale, que os artistas cruzem os braços temporariamente, até que o mundo mude, até que não haja mais “riqueza mal distribuída” (p.71). Da mesma forma que Aleixo se sente culpado por fornecer beleza àqueles que não a merecem, Humberto se remói na vergonha de não lutar por aquilo em que acredita. Eternamente frustrado, vendo em todos uma espécie de “consciência do seu fracasso”, ele está duplamente condenado. Primeiro, pela ditadura, que o impede de agir, que lhe incute o medo; depois, por si próprio, uma vez que ele já não confia em si e põe antecipadamente em dúvida suas reações: Esta noite sonhei que vivia no Porto em 1830. De repente, vindo de Londres, o Alexandre Herculano aparece em minha casa e diz-me: “Vamos desembarcar dentro de poucas horas, precisamos do teu apoio”. Acordei nesse instante com suores frios e, por acaso, lembrei-me do sonho interrompido. Pensei então, repousadamente acordado: Que responder? “Não conte comigo”? Nunca mais poderia olhar para ele a direito (nunca mais poderia olhar para mim mesmo a direito), mas como dizer-lhe: “Conte comigo” se o medo invadira o meu coração e a minha alma? Sem querer, sem dar por isso, surpreendi-me a raciocinar deste modo: “porque vieste? Eu vivia em paz, sim, vivia em paz, sabedor de que nada poderia fazer, crente de que era por isso que nada fazia. Porque vieste?” (pg. 51) Se Aleixo realmente tivesse parado de pintar, se Humberto vivesse mesmo em paz com sua consciência, entre os escombros da ditadura portuguesa teriam sido encontrados seres disformes, vagantes, sem feições, nem alma. Não seriam “seres de mentira”; esses ainda precisam de alguém que os crie, que os sonhe, e o autoritarismo é o anti-sonho, a anti-criação. Seriam apenas homens desinventados, nus de toda alegria, vazios de esperança. Aleixo não é mesmo nenhum revolucionário, sabe que assim a angústia da espera será ainda maior, mas vez ou outra pinta um quadro, e por baixo da beleza que produz camufla o horror que sente, chagas e podridões 10 . Humberto também não faz muito. Defende alguns presos políticos e envelhece. Mas à noite, quando volta para casa, posta-se diante de um caderno e tenta recompor seu mundo, mesmo que ele surja infectado de dúvidas, contaminado pelo medo. O homem diante de uma página de papel em branco ainda é uma possibilidade em aberto. 8 Arendt, op. cit., p. 527. Id., p. 529. 10 Na sua revolta contra aqueles que consomem a beleza sem merecê-la, Aleixo pinta o quadro de uma mulher nua “extremamente bela no rosto, a Primavera, quem sabe?, com um corpo repelente, chagado - e um cão, também apodrecido, a lamber-lhe as feridas” (pp. 67-8). Depois, esconde suas chagas sob uma camada de tinta especial, que se decomporá com o tempo, revelando a obra inicial: “Ao fim de algum tempo, o bom burguês, comprador de uma genial Vénus para seu repouso, para embelezamento da sua sala de estar, verá aparecer uma imagem repugnante. E, pelo menos como artista, deixarei de contribuir para o sossego dele” (p. 72). 9 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 12-17, jul./dez., 1997. 17 Este artigo tem por objetivo analisar o conto “Anel de Moebius”de Julio Cortázar segundo princípios da semiótica do paratexto. A partir da epígrafe de Clarice Lispector, procura-se discutir a relação de homologia entre a epígrafe e o conto, enfocando as diferenças e as semelhanças que essa relação implica. Palavras-chave: estratégia textual; crítica. The aim of this article is to analyse Julio Cortázar’s story “Anel de Moebius”. Taking Clarice Lispector’s epigraph as reference, it is attempted to discuss the homology’s relation between the epigraph and the story to emphasize the differences and the similitudes contained in this relation. Key-words: textual strategies; critic * 18 Paulo Sérgio Nolasco dos Santos é doutor em Letras, Professor de Teoria Literária e Literatura Comparada no CEUD/UFMS. A EPÍGRAFE-METÁFORA DO CONTO “ANEL DE MOEBIUS” DE JULIO CORTÁZAR Paulo Sérgio Nolasco dos Santos* “ANEL DE MOEBIUS” é um dos contos de Julio Cortázar mais memorável do que conhecido. Cortázar, admirado por escrever contos magníficos, conseguiu neste relato, continuando sua mestria já comprovada desde “A casa tomada” até “Blowup”1 , prender a atenção do leitor e obrigar a releitura. Dai, o ser mais memorável; uma vez que, quem quer que tenha lido “Anel de Moebius” dificilmente deixou de relê-lo e certamente não escapou do exercício de querer “escrever a leitura: interrompê-la com freqüência, acossado por afluxo de idéias, excitações e associações - ou como diz Roland Barthes “ler levantando a cabeça”2 . “Anel de Moebius” tem na imagem do gato um ponto em comum com os demais relatos da coletânea Orientação dos Gatos, na qual está inserto3. Há, ali, gatos por toda parte, e, se variados são os caracteres, nuances e matizes do ser felino descrito pelo Autor, a qualidade felina do “escorregadio” e do “esquivo” acaba predominando nesses relatos “des/orientando” o leitor. Não é nossa intenção estudar a rede de significações que os títulos dos contos, inclusive o que dá nome à coletânea, sugerem; nem, a partir disto, buscar o elo que, por sua vez, possa justificar uma aproxima- ção dos relatos, mesmo quando a pura imagem do gato torne plausível a aludida aproximação. Entretanto, alguns dos lexemas aqui sublinhados já prenunciam o caminho da difícil entrada no conto “Anel de Moebius”. Nosso propósito é tentar uma aproximação da natureza metafórica da epígrafe que encabeça o conto; uma reflexão em torno da epígrafe como correlato do processo narrativo, como elemento extradiegético que predispõe a leitura e amplifica o mundo representado. A epígrafe de que se utiliza Cortázar foi extraída de Perto do coração selvagem4, o primeiro romance da escritora brasileira Clarice Lispector, e diz: Impossível explicar. Afasta-se aos poucos daquela zona onde as coisas têm forma fixa e arestas, onde tudo tem um nome sólido e imutável. Cada vez mais afundava na região líquida, quieta e insondável, onde pairavam névoas vagas e frescas como as da madrugada5. • • • A epígrafe, ocupando um lugar fora do texto, pode significar apenas um revestimento de erudição e/ou um testemunho de afinidades, no que sua função de referência marginal pode ser prescindível para a pro- 1 “Blow-up”é o título da obra-prima de Micheangelo Antonioni. O título original deste conto de Cortázar é “Las babas del diablo”e está inserido em Blow-up e outras histórias (título do original Las armas secretas), Trad. Maria Manuela Fernandes. Buenos Aires: EuropaAmérica, 1968, 208p. 2 BARTHES, Roland. “Escrever a leitura” e “Da leitura”, In: O Rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988 3 CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius”, In: Orientação dos Gatos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. p. 133-149 4 LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 5 A epígrafe de Cortázar, extraída, está na página 208 da 8ª ed. da obra citada Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997. 19 dessa meia-luz perpétua por onde dução de sentido. Contudo, para a Janet passava como uma mancha lousemiótica do paratexto, como A despeito da ra, um tilintar metálico (seu cantil enfatiza G. Genette6, a epígrafe acadesorientação quanto mal ajustado ao cruzeiro de alumíba se constituindo em outro elemennio), o longo cabelo oferecido ao venà escolha de um fio to que participa da rede de relações to que seu corpo rompia e alterava, que é toda narração. A epígrafe ao condutor de leitura, leve carranca afundando os pés no acompanhar o discurso recolhe a brando ceder alternado dos pedais, necessário se faz perspectiva do autor implícito, e asrecebendo na blusa a mão da brisa sim se auto-remete enquanto texto passear o olhar apertando-lhe os seios, dupla carícomplementar a revelar um nível cia dentro do duplo desfile de tronpela estrutura da superior de compreensão. Gérard cos e plantas em um verde translúcido narrativa. de túnel, um cheiro de fungos e cortiGenette, ao definir a epígrafe como ças e musgos, as férias8. uma citação, “du fait que l’épigraphe est une citation, il s’ensuit O que aqui se observa para esse presque nécessairement qu’elle consiste en un texte”7, tipo de monólogo interior vai se tornar uma constante mostra que as suas utilizações são muito variáveis. Com em todo o relato. Procurando dar a impressão de que isto, deixando de repetir aqui o histórico, o lugar, das é apenas a consciência da personagem que está sen“épigraphes”, e na terminologia do autor “épigrapheurs”, do mostrada, o autor apresenta marcas estilísticas que “épigraphaires”, e as respectivas “fonctions”, tão mi- caracterizam o pensamento da personagem. Em texnuciosa quanto detalhadamente foram desenvolvidos, to cujo monólogo predomina pode-se constatar o “cavoltemos a atenção para a nossa proposição inicial que ráter associativo da seqüência de pensamentos, a sua já se embasa no capítulo “Les épigraphes”de Seuils. expressão truncada, e o estilo pessoal da personaAssim, para que se possa ir formando a correlação gem”9 . Com o predomínio desse tipo de monólogo epígrafe-metáfora com o relato de “Anel de Moebius”, não se pode falar em ausência total de mediação do a despeito da desorientação a que o leitor está subju- autor como nos casos do monólogo interior direto ou gado quanto à escolha de um fio condutor de leitura, mesmo da onisciência seletiva múltipla. Nesses canecessário se faz passear o olhar pela estrutura mes- sos o foco narrativo centra-se no retrato de estádios ma da narrativa. psíquicos que se iniciam dentro da psique das persoA forma, a disposição espacial, que Cortázar im- nagens. primiu ao relato resulta numa inquietação e perplexiA técnica do monólogo interior orientado acede a dade que forçam o leitor a um trabalho de Sísifo. Antes um lugar de destaque ao cobrir todo o conto de “Anel de tudo, não se está diante de uma estrutura narratide Moebius”, deixando perscrutar nesse relato o reva sequer minimamente usual, ou que atenda às exgistro do estilo que caracteriza as personagens-propectativas do leitor comum — ainda que esteja este tagonistas, e, bem assim, a apresentação de suas menfamiliarizado com as rupturas modernistas. O relato tes. Já no aludido parágrafo de abertura do relato se inicia com a utilização de uma das técnicas fundadepreende-se que o uso do monólogo interior põe em mentais para a apresentação do fluxo da consciênevidência um narrador onisciente a apresentar matecia: o monólogo interior orientado, e convida a notar rial não falado, truncado quanto à coerência, e por o giro das frases, num parágrafo extenso, com obisso dá a impressão de que é apenas a consciência servações parentéticas e ausência de ponto, a não da personagem (no caso, Janet) que está sendo mosser no final: trada. Até as três primeiras linhas do parágrafo, o Por que não, talvez bastante propô-lo como ela have- lexema “nitidez” serve de eixo para aquilo que o ria de fazê-lo mais tarde veementemente, e se a veria, narrador vê (Janet pedalando bosque adentro) e irá se a sentiria com a mesma nitidez com que ela se via e se sentia pedalando bosque adentro na manhã fresca, relatar, “contar” mais tarde ( o que será plasmado na seguindo caminhos envoltos na sombra das plantas, tessitura de “Anel de Moebius”) e, ao mesmo temem algum lugar da Dordonha, que os jornais e o rádio po, remete e introduz o leitor no monólogo interior encheriam mais tarde de uma efêmera e torpe celebri- de Janet, o qual vai até a constatação última: “as dade até o rápido esquecimento, o silêncio vegetal férias”. 6 GENETTE, Gerard. “Les épigraphes”, In: Seuils. Paris: Seuils, 1987, p. 134-149. Op. Cit. p.140 8 CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius”, Op. Cit. p.133-134 9 CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de . Foco Narrativo e Fluxo da Consciência. São Paulo: Pioneira, 1981. p.57. Nesta obra o autor apresenta considerações sobre a vasta problemática do foco narrativo, inclusive, revendo obras consagradas sobre a matéria, e sugere uma nomenclatura mais precisa para o assunto. 7 20 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997. E também o outro bosque ainda que O que observamos para esse Se a observação fosse o mesmo bosque, mas não para parágrafo vai se tornar um procedo mundo só Robert recusado nas granjas, sujo de dimento reiterado em todo o relato. uma noite de bruços sobre um mau Entretanto, o elemento renovador, se realiza através de colchão de folhas secas, esfregando a e que põe à prova a paciência do um ponto de vista, cara contra um raio de sol filtrado leitor, diz respeito à estrutura, ao uso pelos cedros, perguntando-se vagaconseqüentemente, a de “blocos” de narrativa deslocamente se valia a pena ficar na região dos ao longo do relato. Trata-se de grande particularidade ou entrar nas planícies onde talvez o (12) doze “blocos, também longos esperasse um jarro de leite e um pouco da obra de arte é e apartados no decurso da narratide trabalho antes de voltar aos granva. A experiência advinda da leitua perspectiva exótica des caminhos ou se perder de novo em bosques sem nome, o mesmo bosque ra de outros textos do Autor, dessa percepção. sempre com fome e essa inútil cólera Rayuela, p.ex., faz crer que que lhe torcia a boca.13 estamos diante de um experimentalismo que se deixa marcar pela renovação e revoluE no segundo bloco de narrativa: ção presentes na arte narrativa contemporânea. Não era fácil vê-lo da vereda. Sem saber havia dormido Voltando à questão do foco narrativo, pode-se dizer a vinte metros de um hangar abandonado, e agora que vários são os modos pelos quais o autor provoca achou estúpido haver dormido sobre o chão úmido ou instaura um impacto ou estranhamento: se a obserquando atrás das tábuas de pinho cheias de buracos vação do mundo só se realiza através de um ponto de via-se um piso de palha seca sob o teto quase intacto. vista, conseqüentemente, “a grande particularidade da Não tinha mais sono e era uma pena; imóvel, olhou o obra de arte é a perspectiva exótica dessa percephangar e não se surpreendeu que a ciclista chegasse ção”10. São inúmeros os recursos dos quais o autor pelo sendeiro e freasse, ela sim como que perturbada, pode lançar mão para destacar o fato narrado pelo diante da construção, aparecendo entre as árvores. Antes que Janet o visse, ele já sabia tudo, tudo sobre foco narrativo. Assim, a base dessa percepção exótiela e ele em uma única maré sem palavras, de uma imoca em “Anel de Moebius” se assenta no pressuposto bilidade que era como um futuro escondido. Agora ela da renovação e revitalização da linguagem, que ao virava a cabeça, a bicicleta inclinada e um pé no chão, mesmo tempo tende para um “descondicionamento” e encontrava seus olhos. Os dois pescaram ao mesmo da visão do leitor, esteoreotipada pelo olhar caseiro e tempo.14 habitual: Se em alguns blocos o narrador onisciente comparQuem vive na praia não escuta o barulho das ondas. tilha do monólogo interior de Robert, com a troca da Quem vive nas grandes cidades não percebe a poluivoz narrativa, ora centrada no narrador, ora em Robert ção sonora, nem que ela o leve à surdez. Não percebe— confirmando técnicas do estilo indireto e indireto mos o que nos rodeia. O estranhamento é o modo parti11 livre —, outros blocos assumem a pura função de escular da percepção artística. clarecimento de fatos extradiegéticos. Com isso, as Toda a questão do estranho e do estranhamento informações caracterizadas formalmente nos Autos do tem como um de seus objetivos despertar certo efeitoprocesso instaurado contra Robert (detalhes que leitura.12 Assim, no relato de “Anel de Moebius”, a enformarão os Autos como o processo intaurado en utilização de blocos de narrativa encontram sua justififins de 1956; o encontro da bicicleta de Janet pelo filho cativa na medida em que o narrador põe em relevo acontecimentos fulcrais do mundo narrado. Percebe- do lenhador e a constatação por parte dos guardas de se que a figura do protagonista Robert encontra na- que o “o assassino não tinha tocado na mala ou na queles blocos o lugar da manifestação de sua voz. A bolsa de Janet) trazem a marca da fala do narrador. É interessante ressaltar, do que viemos comentanpresença de Robert é ostensiva em todos os blocos e é do, que a utilização do discurso indireto livre, enquanto neles que o narrador, via monólogo interior, explora meio estilístico, resulta altamente significativo no relareiteramente a modalidade do discurso indireto livre, e to de “Anel de Moebius”. É a partir do manejo sutil passa a caracterizar a personagem: 10 FACÓ, Aglaêda. “Estranhamento”, In: Guimarães Rosa: Do Ícone ao Símbolo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 50. Op. Cit. p.50 12 O sentido de estranho pode ser entendido, aqui, segundo Heidegger: “Estranho entendemos como o que sai e se retira do familiar (das Heimliche) í.é. daquilo que nos é caseiro, íntimo, habitual, não ameaçado. O estranho não nos deixa estar em casa”. Cf. M. HEIDEGGER, Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p.174. 13 CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius”, Op. Cit. p.134. 14 CORTÁZAR, Julio. Op. Cit. p.135. 11 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997. 21 desse estilo que se dá o processo sando indvertida, não provocando A singularidade da osmótico entre narrador onisciente cortes no relato. Com efeito, é intee personagem, com as fronteiras ressante observar o quanto a quesestrutura narrativa em entre ambos se evaporando, e critão do ponto de vista resulta "Anel de Moebius" ando uma ambivalência na qual o relativizada nesses relatos: parece ser tão leitor não sabe se aquilo que o “O estilo indireto livre, relativizando narrador disse provém do relator o ponto de vista, consegue uma via de somente um jogo de invisível ou do próprio personagem ingresso até o íntimo do personagem, prestidigitação que que está monologando. Assim mouma aproximação à sua consciência, que é tanto maior por quanto o interdelados/nivelados, personagem e tem seu contraponto mediário— parece volatilizar-se. O narrador, ao leitor só resta pergunno próprio relato. leitor tem a impressão de ter sido retar “quem é o sujeito que pensa?”, cebido no seio mesmo dessa intimidauma vez que toda a astúcia emprede, de estar escutando, vendo, uma gada para destacar a onisciência consciência em movimento antes ou do narrador acaba por denunciar que ele já não sabe sem necessidade de que se converta um expressão oral, tudo, que tem dúvidas e que seu poder diminui tremenquer dizer, sente que compartilha sua subjetividade”.17 damente, por isso nivelando-se ao personagem15. Entretanto, a despeito do meio estilístico tender a O segundo parágrafo do relato pode ilustrar essa interação: iniciando-se com “Janet freou indecisa na aproximar narrador onisciente, personagem e leitor, as estreita encruzilhada, direita ou esquerda ou quem sabe marcas do narrador não são apagadas, antes são nítipara a frente”(p.134), o resto do parágrafo é relatado das como na nota sobre Fanny Hill ao pé da página através do discurso indireto livre preenchido 137 e nos blocos das páginas 141 e 143. Essa aproxiassociativamente pela seqüência de pensamentos da mação acaba por fazer ajustar tais consciências numa personagem (seu monólogo interior advém da técnica temporalidade indivisa, pois o monólogo interior, do fluxo da consciência). Somente após o longo trans- predelineando o movimento de leitura, ajusta “a conscurso de sua corrente de pensamento Janet parece ciência do personagem-narrador à consciência do leidecidir-se “À esquerda, talvez, havia uma leve desci- tor, as vivências de um devendo ser a do outro”18. Funda na sombra, deixar-se ir depois de um simples impul- de-se, então, o tempo da história com o tempo da esso de pedal”. Além desse parágrafo, os demais que crita e com o tempo da leitura. Cotejando com outros textos de Cortázar, deparaintegram a primeira camada do relato — o que faz preponderar o emprego do estilo indireto livre, visando mos com o também irrequieto relato de “A barca ou narrar a intimidade —, tendem a aproximar o mais nova visita a Veneza”19 . Esse conto também aprepossível o leitor e a personagem. Daí, parecer-nos plau- senta “blocos” de narrativa insertos no relato. Todasível continuar indagando se o que o narrador disse em via, “A barca” (como se intitulava inicialmente) está todo o quarto parágrafo do relato, ou em parte dele, precedido de uma nota de Cortázar explicando que considerando as “mudas do narrador”16 , provém do acabara de encontrá-lo - “o acaso e um pacote de narrador onisciente ou da personagem Janet, que está velhos papéis - e diz: “Que ruim! Escrevi-o em Veneza monologando mentalmente. Quanto a isto notou muito em 1954; eu o releio dez anos depois, e me agrada, e bem o estudioso de Madame Bovary que o estilo in- é tão ruim”. Em sua nota Cortázar explica que semdireto livre, interagindo maquiavelicamente, translada pre fora tentado pela idéia de reescrever textos, mas a narração insensivelmente do mundo exterior ao inte- reescrever “A barca” lhe parecia falso e desleal: “É rior e vice-versa. A transferência de um plano a outro então que Dora entra em cena”. Recusando-se a redá-se por um recurso complementar, com a troca do escrever o relato de “A barca”, Cortázar entressachanarrador onisciente a narrador — personagem pas- o com novos textos que resultam na renovação da15 Estudando o emprego do estilo indireto livre em Madame Bovary, o autor se refere à noção de “os personagens falavam a si mesmos e contavam-se o que sentiam, pensavam ou recordavam. Nisso estriba-se a diferença: falavam, não pensavam. Mesmo quando o narrador anota “Fulano pensou” e em seguida se retira da narração, o que fica no relato é uma voz, um personagem recitando, teatralmente, sua vida interior,”(Cf. Llosa, Mario Vargas. “O estilo indireto livre”, IN: A orgia Perpétua. Rio de Janeiro: Francisco Alves, p.154. 16 Llosa se refere às mudas do narrador como decorrência do estilo indireto livre (Cf. Op. Cit. p.139). Também Harald Weinrich, no capítulo “Realidade e irrealidade na Linguagem” anota: “Muchas veces ni siquiera puede distinguirse si un texto tiene como perspectiva la introspección del narrador que comprende e interpreta al personaje o — como estilo indirecto libre —la perspectiva del personaje que interviene en la acción”(Cf. WEINRICH, Harald. Estructura y función de los tiempos en el lenguaje. Madrid: Gredos, 1968, p.174. 17 Llosa,M. Vargas. Op. Cit. p.155. 18 NUNES, Benedito. “A sintonia no monólogo interior”,In: O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988, p.64. 19 CORTÁZAR, Julio. “A barca ou nova visita a Veneza”, In: Alguém que anda por aí. Rio; Nova Fronteira, p. 89-132. As citações que comentam a origem de “A barca” foram extraídas da nota de Cortázar que está nas páginas 89-90. 22 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997. quele em “A barca ou nova visita 1956”. Robert, defendido, “o Júri a Veneza”. não admitiu as circunstâncias ateNos jogos de emoções Se por um lado o relato de “A nuantes”. Também, “a apelação foi e sentimentos em barca” requer leitura diferente da recusada e transferiram Robert à de “Anel de Moebius”, por outro, Santé na espera de execução”; d) "Anel de Moebius, o ele nos põe alerta o suficiente para com Robert na prisão, Janet, que leitor chega a aceitar a narrativa de “Anel de agora re/vive no estado cubo, visiMoebius”, considerando o caráter ta-o. O reencontro de ambos dá-se capitular frente a sui generis deste e da leitura que após o suicídio de Robert no presíqualquer possibilidade ora realizamos, como um procedidio – só que agora no “estado cubo de imputar culpa. mento tendente a instaurar o no agora sem tempo”. estranhamento. A singularidade com que a es• • • trutura narrativa se apresenta em “Anel de Moebius” parece ser tão-somente um jogo A tentativa de ordenar os passos da narrativa de de prestidigitação que tem seu contraponto no relato “Anel de Moebius” resulta numa tarefa quase impratimesmo, i. é., na história que é contada, e que é a da cável ou de paralisia face ao que é indefinível por nafigura do Anel de Moebius — história encenada, re- tureza. O estado cubo do qual co-participam os protapresentada no envolvimento dos protagonistas Janet e gonistas se caracteriza pela REPTAÇÃO, pelo “estaRobert. do reptante”23 . A história do “Anel de Moebius” pode ser assim Explorando os significantes reputare e reptare siseqüênciada: a) Janet passeia por um bosque, numa multaneamente, porém mentalizando sobretudo a imamanhã, pedalando sua bicicleta, quando pára indecisa gem poética da “lagarta percorrendo uma folha” na estreita encruzilhada. Tinha um caderno de capa (p.142), chega a ser instigante senão provocante aceilaranja para encher, fotografias para tirar e “dezenove tar o desafio de penetrar na simultaneidade dos estaanos ingleses já com muitos cadernos e milhas peda- dos vivenciados pela protagonista Janet. Simultaneilando”20 . Definindo-se por uma vereda da estreita en- dade que não significa permanência e continuidade, cruzilhada, janet se aproxima de um hangar abandona- mas que traduz uma idéia de tempo estilhaçado em do no bosque, perto do qual Robert passara a noite: instantes descontínuos ( os estados reptantes deixam “Antes que Janet o visse, ele já sabia tudo, tudo sobre marcar-se pelo que é dinâmico). É assim que Janet, ela e ele em uma única maré sem palavras, de uma saltando “de ponto em ponto ou de nota em nota”, enimobilidade que era como um futuro escondido”21 ; b) tra e sai dos diversos estados (sentimentos); identidacom o pé no pedal, Janet empurra a bicicleta para dar de metafórica com o réptil lagarta (observe-se a a meia volta “quando Robert cortou-lhe a passagem e etimologia latina de réptil arrastando os dois signifisegurou a direção com uma mão de unhas pretas”22 . cados indicados): estado vento, estado reptante, estaJanet desgoverna-se, cai, e é “atacada” por Robert. do cubo, estado onda. Na passagem de um estado a No hangar Robert irrompe num acesso de desejo — outro, o ser Janet anseia um modo-de-ser que seja o misto de luxúria e ânsia de posse —, acabando por de plenitude. Dai que o seu suplício se assemelha ao violentar Janet que, assim, de uma cena de drama de tântalo, sempre pensando tocar o alvo e sendefloramento vem a des/falecer; c) agora, a maior tindo-o fugitivo, esta a razão da sua (dela) própria vida. parte da narrativa é preenchida por mutações - trans- Experimentando ser febre, ser onda, ser em ondas, posições - de pólos, fazendo oscilar a mente do leitor ser em febre, “ser vento ou ser folhagem”, Janet deentre as alternâncias: ora estado febre, ora estado sorienta-se num torvelinho de maelstrom.24 onda e ora o estado cubo. Nessa oscilação, com joPara Janet, arrastar-se com lentidão e sofrimento gos de emoções e sentimentos, o leitor chega a capitu- de um estado a outro, reptando nos diversos estados, lar frente a qualquer possibilidade de imputar culpa ao jogada num redemoinho de maelstrom, “passando por assassino Robert que, a esta altura, já se encontra de- suas caras e tornando a passar sem a menor visão tido, “o processo instaurado em Potiers em fins de nem tato nem limite”, sua âncora só pode ser encon20 Cortázar, Julio. “Anel de Moebius”. Op. Cit. p. 134. Cortázar, Julio. “Anel de Moebius”. Op. Cit. p. 135. 22 Cortázar, Julio. “Anel de Moebius”. Op. Cit. p. 136. 23 “REPTAR”: (Do lat. reputare) 1. Estar em oposição a; 2. Desafiar, provocar. (Do lat. reptare) 1. Andar de rastos; rojar-se pelo chão; arrastar-se. O sintagma “reptar”com suas flexões aparece pelo menos oito vezes no relato. Cf. Dicionário Aurélio. 24 “torvelinho”: o mesmo que redemoinho. “MAELSTÖM”, s.m. corrente do mar Ártico, junto à costa norueguesa, que se caracteriza por constantes turbilhões. (Cf. Dicionário Caldas Aulete) 21 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997. 23 trada naquela imagem da lagarta percorrendo a folha: Infinito anel de Moebius, reptação até a beira de uma cara para ingressar ou já estar na oposta e voltar sem interrupção de cara a cara, um arrastar lentíssimo e penoso aí onde não havia medida da lentidão ou do sofrimento mas se era reptação e ser reptação era lentidão e sofrimento.25 Mas era no estado cubo que Janet ansiava permanecer, pois nele ela voltava, ainda que confusa, a um reconhecimento de si. Reencontrava o hangar e o chocolate e “rápidas visões de campanários e colegas”: O pouco que podia fazer lutava sobretudo por durar aí o cúbico, por se manter nesse estado onde havia detenção e limites, onde acabaria por pensar e se reconhecer.26 Se pudesse decidir por sua vontade, decidira fixarse no estado cubo, no qual a sua sensibilidade aflorava e podia lutar por uma relativa permanência. Entretanto, àquele que aspira à plenitude, e teme ser lesado em alguma parte deste patrimônio infinito que é a soma das experiências de que um homem é capaz, o estado cúbico representa a réplica do anel de Moebius a conciliar anverso e reverso. Neste sentido todo o relato não deixa de permeabilizar-se por uma aguda compreensão do ser à la Bachelard. Para Bachelard, ao reconhecer que a linguagem que usamos no dia-a-dia permanece cúmplice do continuísmo, uma vez que não podemos falar sem empregar todos os advérbios, todas as palavras que evocam o que dura, o que passa, o que espera ( ponto nevrálgico de sua polêmica com Bergsom), não há lugar para a permanência e para a continuidade, estamos no reino do “tempo estilhaçado em instantes descontínuos”.27 O estado cubo — cubo corresponde a um poliedro regular com seis faces quadradas, hexaedro — é a imagem de um certo plasmar temporal, que só se corresponderia à imagem/metáfora do anel de Moebius. Enquanto figura recorrente e de insistente retorno no relato, o “estado cubo” representa o que só se permite alcançar através da imagem de referentes indefiníveis ou quase nada precisos, segundo o narrador: “rajadade imagens”. Dai, sua não parmanência, mas sua descontinuidade. Momento pontual e vetor do relato, um “meio hialino”, “suspensão hialina”, um “agora hialino” (hialino: o que tem aparência ou transparência do vidro). Na ânsia de captar o instante hialino, de tornar possível plasmar o indizível, o “impossível explicar” que abre e prolonga toda a epígrafe claricena, o narrador do “Anel de Moebius” lança mão de sintagmas/significantes que se entre-ofuscam: garrafas cristalinas ou torvelinhos de maelstron em suspensão hailina ou reptação penosa sobre superfície de dupla face ou poliedros facetados.28 Outros exemplos mais notáveis, vocábulos índices, palavras e expressões valises, chamam a atenção e merecem destaque: “diafanidade”, “meio translúcido”, “cristais”, “plexiglás” (p.140); “oceano de cristais ou de rochas diáfanas” (p.141); “estado em que tudo fluía como que se criando no ato de fluir, uma fumaça girando em seu próprio casulo que se abre e se enrosca em si mesmo, o ser em ondas, no indefinível transferir-se que já tantas vezes a havia mantido em suspensão, alga ou casca ou medusa”.(p.145); “cristais líquidos ou estrato de nuvens” (p.146); “pedais cromados”, “cubo de diamante” (p.147); “tigre de espuma translúcida”, “níveis vagamente glaucos”, “hélice”, “salto metálico” (p.148). Sob o império da imagem29 , em que as rajadas de imagens se evolam num estado de evanescência e fluidez, e ao conceber a ficção como uma teia de ara- 25 CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius, Op. Cit. p.142 CORTÁZAR, Julio. Op. Cit. p.144 27 A análise do pensamento de Bachelard é feita por José Américo Motta Pessanha em “Cultura como Ruptura”, In: BORNHEIM, Gerd et alli, Tradição/Contradição, Rio de Janeiro: Zahar/Funarte, 1987, p 59. 28 CORTÁZAR, Julio. Op. Cit. p.143 29 Como quer Octavio Paz, para quem a imagem poética traduz-se no lugar de uma luta entre o silêncio que se instala e forças tendentes a fugir dele. Ato de criar realidades, através da linguagem, contrárias à lógica: “O sentido da imagem poética é a própria imagem: não se pode dizer com outras palavras. A imagem explica-se a si mesma”(Cf. PAZ, Octavio. “A imagem”, In: O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p.133). Ainda, por imagem, deve-se entender, segundo René Wellek, como o que não sendo exclusivamente da poesia, mas que tem origem a partir da analogia e da comparação, na própria definição de Ezra Pound: “aquilo que apresenta um complexo intelectual e emocional num instante temporal”, “unificação de idéias díspares”. (Cf. WELLEK, René. “Imagem, Metáfora, Símbolo, Mito”, In: Teoria da Literatura. Lisboa: Europa-América, 1962, p.231. 30 Sobre a concepção de que “a ficção é como uma teia de aranha”, cf. nosso estudo comparativo “Clarice Lispector e Virginia Woolf: a escritura depondo o romancista”, In: Anais do 1º Congresso da ABRALIC, Porto Alegre: 01-04/06/88, v.II, p.49-55. Em Cortázar a noção de “teia de teia” alude ao homem em sua relação com a “realidade”. Seguindo a idéia do particular e do universal. o cronópio cortazariano padece de um sentimento de exceção: “sentimento de não estar de todo em qualquer das estruturas, das teias que a vida arma e em que somos simultaneamente aranha e mosca”. (Cf. Prosa do observatório, p.45, e “Do sentimento de não estar de todo”, In: Valise de Cronópio. Trad. de Davi Arrigucci Junior, São Paulo: Perspectiva, 1974, p.166). 26 24 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997. nha,30 Julio Cortázar desenvolveu a frente”, o narrador de “Anel de na Prosa do Observatório 31 seu Moebius” tenta a tessitura de seu Para o homem conceito, tão rico quanto diáfano, de relato à sombra de um bosque (a que se quer lançar imagem poética. A figura centra da esta metáfora do bosque voltareProsa - uma vez que não podemos mos), lugar da perda, do des/falenuma concepção falar em termos de personagens - , cimento e do defloramento, onde do aberto, é uma ENGUIA: “informe cabeça “tudo era claríssimo e confuso a seu desenho da toda olhos e bocas e cabelos”32 . um só tempo”35 ; “larvas translúEla é o signo da imagem pura, cabicidas flutuando entre duas águas, realidade deverá de de imagens, de quem o narrador anfiteatro hialino de medusas e ondular sobre si está sempre falando, sem, contudo, plâncton”, “urdindo seus fios para nunca alcançar o objeto ( a enguia) uma inteligência cúmplice, teia de mesmo. que lhe escapa pelos dedos e, por teias”36 . Dai, também, sua incaconseguinte, da apreensão. Prosa pacidade “de pensar articuladado Observatório vai configurar a a idéia-conceito de mente” 37 . Incapacidade e impossibilidade enguia sobre a qual Cortázar desenvolve a teoria do problematizada, tematizada senão dramatizada por anel de Moebius. Reduto da imagem, a Prosa elabora- todo o texto de “Anel de Moebius”. Neste sentido e se como crítica às pretensões de cientificidade que tudo ao pé da letra, todo sentimento de perplexidade e esquer aprisionar e categorizar através de uma nomen- tranheza do leitor diante do texto decorre, decerto, clatura. Crítica que vai em direção ao olhar da correlação com a epígrafe clariceana escolhida institucionalizado, às concepções passivas e enlatadas por Cortázar. O texto de “Anel de Moebius”. é da realidade: reptação do texto epígrafe de Clarice Lispector e Enguias, sultão, estrelas, professor da Academia de Ci- esse daquele, uma vez que, correlacionados formam ências: é de outra maneira, de outro ponto de partida, um espaço textual único. A epígrafe de Clarice, que nos lança para o munpara outra coisa que se deve emplumar e lançar a flecha da pergunta.33 do representado no conjunto de sua obra, também Para o homem que se quer lançar numa concepção convida ao diálogo com o texto de Cortázar. Uma do aberto, seu desenho da realidade deverá ondular espécie de forma monologal reúne a escritura de sobre si mesmo (reptação), no anel de Moebius das ambos os autores. Ora, num e noutro o processo de enguias, anverso e reverso conciliados. Somente nesta comunicação parece não se fundamentar, não se rerevolução de dentro para fora e de fora para dentro, o alizar através de um código, mas, como mostra W.Iser, numa “dialética movida e regulada pelo que se moshomem poderá ocupar o seu posto nesta 38 pulsação de astro e enguias, anel de Moebius de tra e se cala” . Parece confluir aí um caráter de uma figura do mundo onde a conciliação é possí- escrita semovente que envolve a um só tempo a vel, onde anverso e reverso deixarão de se desgar- epígrafe e o próprio relato de “Anel de Moebius”, rar, onde o homem poderá ocupar o seu posto nessa com um certo tema da paixão que predispõe o ato de jubilosa dança que alguma vez chamaremos reali- leitura, arremetendo tudo para o terreno movediço onde se situam texto literário e leitor. Ambos os texdade. (o grifo é meu)34 Tal como Janet que parara indecisa na “estreita tos ( epígrafe e relato) exigem do leitor uma particiencruzilhada, direita ou esquerda ou quem sabe para pação especial, na qual ele deve atuar com seu pró- 31 CORTÁZAR, Julio. Prosa do Observatório. Trad. de Davi Arrigucci Junior. São Paulo; Perspectiva, 1974. A apresentação à Prosa, feita pelo tradutor, intitula-se “Paráfrase do Tradutor”e resultou num texto “síntese” da poética cortazariana: “Cortázar revém, reinventado, reinventando: sinuoso, elástico, irônico, erótico, revolucionário: enguias, estrelas, estrias nos açudes celestes em que a perseguição persiste com a proposição de um novo perscrutar: metafórico, metafísico, feérico, fálico, telescópico: abarcante desejo cósmico de abraçar num só ato tudo de uma vez: curso de enguias e estrelas, decurso de palavras, discurso global do homem e de sua necessidade de mudar”. 32 “Enguia”, espécie de peixe ápode, serpentiforme. 33 CORTÁZAR, Julio. Prosa do Observatório. Op. Cit. p.43. 34 CORTÁZAR, Julio. Op. Cit. p.73 35 CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius”, Op. Cit. p.136. 36 CORTÁZAR, Julio. Prosa do Observatório. Op. Cit. p.15 e 45 respectivamente. 37 CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius”, Op. Cit. p.146. 38 ISER, Wolfgang. “A interação do texto com o leitor”, In: Luiz Costa Lima (Org). A Literatura e o Leitor. - textos de estética da recepção. São Paulo: Paz e Terra, 1979, p.90. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997. 25 prio universo cultural de leitor, suas vivências, sua visão de mundo, seus valores, ou renunciando a tudo isso. O labirinto como espaço de representação é o signo do erradio e do transverso. Jogando com uma escrita que envolve a participação do leitor, o aludido “espaço textual único” metamorfoseia seu aproximarse do labiríntico do real: Porque a ficção, a narrativa, o conto, hoje — marcados na sua base pelo alto grau de consciência do escritor sobre a própria criação —, parecem oscilar entre estes dois pólos dialéticos: optando por uma “maneira de dizer”, realizando uma escolha ao nível do contar, o escritor está “matando” as outras formas possíveis, cometendo um “assassinato” em relação ao real.39 Problematizando a escrita ao nível do “contado”, obrigando a participação do leitor no “como” o relato é tecido, “Anel de Moebius” encena um processo narrativo onde o fluxo da consciência, modalizando a técnica do monólogo interior e sobretudo o meio estilístico do discurso indireto livre, vai arrastar o leitor para o mundo representado no qual tudo oscila entre pólos dialéticos — de onde nascem os estados porque passa a protagonista. Em relação à epígrafe, “Anel de Moebius” deixa a marca da diferença ( o outro) por realizar-se num espaço textual estruturado ( os limites do conto), com as vozes dos narradores e suas mudas e por exigir do leitor um tempo de leitura muito maior do que o da epígrafe. Numa época marcada pelo recorte das “semelhanças”, acabamos por tanto ver “semelhanças” e muito pouco as “diferenças”. Contudo, é pertinente notar que a literatura contemporânea, muito consciente de seus procedimentos, aberta para o livre exercício da linguagem, a completa autonomia do texto, acaba por atenuar os limites de demarcação entre os gêneros. Com o advento de uma episteme que põe em demanda a crise de representatividade na arte, o conto, a narrativa tradicional sofreram evoluções e chegam à modernidade acentuando seu caráter “poético”, de poesia mesmo. Daí que, a epígrafe de Clarice Lispector, um excerto do romance Perto do coração selvagem, cai numa autonomia em relação ao texto de origem e bem assim na sua relação com o relato de “Anel de Moebius”, porém dialogando com este numa espécie de síntese metafórica de toda a des/orientação que o relato difunde. É penetrante notar o quanto Clarice trafega livremente por dentre os gêneros literários, tornando inviável a classificação de suas narrativas que têm sido mais acertadamente vistas como uma forma poemática. 40 Se a epígrafe-metáfora de Clarice pode ser usada com variados graus de limite figurativo, tornando pertinente a pergunta “De que valeriam as metáforas se fossem exatamente a mesma coisa?”, parece plausível ver nela a reptação do bosque como ponto avançado criado pelo narrador do relato, para nele colocar a imagem de uma vida concebida como ensombrada por um bosque.41 Convém lembrar, como já se assinalou, de a figura de Clarice Lispector ser o contrário do espírito cartesiano, “para o qual a linearidade das naturezas simples é o ideal do conhecimento”42 . Não é demais notar que se trata de uma compreensão nãoeuclidiana da realidade que opera a partir de uma perspectiva mais aberta, dando voz a sua própria equação existencial. Quanto a Cortázar é relevante notar, como o fez J. Alazraki, que sua geometria, sua compreensão não-euclidiana da realidade, propugna, em termos de uma nova postulação da realidade, uma escr itur a “neofantástica” como alter nativa gnoseológica: Não só o fantástico novo, senão toda a literatura contemporânea opera a partir de uma perspectiva mais aberta, sobre a qual o escritor abarca um campo mais amplo, e mais complexo, no qual as categorias de causa e efeito e as leis de identidade começam a perder a precisão de seus contornos, e com elas a límpida e prolixa imagem da realidade tecida nas lançadeiras dos silogismos.43 Portanto, lembrando um pouco de mestre Borges, orgulhamo-nos tão-somente de havermos lido ambos os textos - epígrafe e relato - e num restrito espaço de interferência e confluência ter-se dado deparar com leituras cruzadas. Dai, a leitura desses textos deixar a incômoda sensação de areia nos olhos, pois que ao crítico, aqui, é vedado manter qualquer relação de subordinação quanto ao objeto literário; antes, deve adquirir seu mesmo nível e, portanto, seu mesmo grau de 39 MARIA, Luzia de. O que é conto. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.93. NOVELLO, Nicolino. O Ato Criador de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Presença, 1987. 41 Cf. Gass, William H. “Em termos da biqueira do sapato: Ficção e as imagens da Vida”: “Numa metáfora significativa, nunca se pode descer ao literal. (...) realizar, quando pudermos, a total e ardente participação do leitor naquilo que tem de ser uma relação puramente conceitual, um envolvimento poético com a linguagem. ”In: A Ficção e as Imagens da Vida. São Paulo: Cultrix, p.77. 42 PELLEGRINO, Hélio. “Perto do coração selvagem”, IN: Perto de Clarice. Homenagem a Clarice Lispector. 23 a 29/11/87. Casa de Cultura Alvim. 43 ALAZRAKI, Jaime. En Busca del Unicornio: Los cuentos de Julio Cortázar. Madrid: Gredos, 1983, p.31. 40 26 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997. ficcionalidade. Logo, a leitura exigida há que ser transferencial: “às vezes se chama paixão - na qual o sujeito se aniquila no objeto”44 . Com efeito, os textos que ora comentamos parecem se auto-denunciar como escritura silenciada, excluída dos sistemas e, num lugar intersticial entre o exílio e o desterro, se esquivam das leituras oficiais. Da interação, epígrafe-relato/leitor, resulta “essa esquiva” que, para mencionar Barthes, é a própria literatura.45 • • • Girando devagar, como os raios de um holofote, a epígrafe clariceana paira sobre o relato de “Anel de Moebius”, projetando na mente do leitor miríades de impressões. Assim como um holofote, ou espécie de cubo, ou poliedros facetados, informe e sem aresta, ela põe em espiral a mente do leitor, cada vez mais projetada para uma região onde tudo é quedo e insondável, — onde pairam “névoas vagas e frescas como as da madrugada”. Sua tênue brisa não é conduzida pelo acaso, antes, como de uma estrela surgindo no céu, ou de um Farol, vai se intrometendo pelos meandros do relato. E a essas luzes resvaladiças e a essas lúdicas brisas que a epígrafe (holofote) sopra, não se pode dizer-lhes (como Mrs. Ramsay ao Farol de To the Lighthouse) que o que repousa ali no relato de “Anel de Moebius” é imutável. Ao contrário, nele, elas podem tocar, podem destruir. O trajeto que nos impusemos neste estudo, a saber, cotejar a epígrafe de “Anel de Moebius” como metáfora catalizadora do relato, na tentativa de ampliar a ida e a volta de um texto ao outro — devolvendo o reflexo reptante de um anel de Moebius —, não nos inibiu de retomar, unicamente, algumas obras de Clarice e alguns textos críticos sobre a autora. A despeito da escassez de bibliografia sobre a epígrafe, um artigo de H. Verani foi fonte de leitura e estímulo46 . Sobre a figura do anel de Moebius — a fita de Moebius —, levantamos uma pesquisa heurísticoonomástica sobre sua origem e propriedades. Deliberadamente, deixamos por último e para a nota o seu valor significante.47 À guisa de conclusão, à maneira de uma “enguia” ou de um anel de Moebius, resta acrescentar que diante de um texto como “Anel de Moebius”, como um mundo que concilia anverso e reverso — num mundo assim figurado —, só resta a escolha de um leitura norteada pela imperspectiva, que esboroe não só nossas noções de espaço e tempo mas qualquer vetor ou ponto axiomático. Reservamos para o final deste trabalho, que, além de ser um trabalho sobre leitura, é uma reflexão sobre a epígrafe, a nossa epígrafe extraída do item “o efeitoleitor”, análise do conto “Orientação dos gatos” feita pelo crítico francês Jean Andreau ao indagar “Quem invadiu a ‘Casa tomada’ ”: O texto não responde a estas questões e nem tem que respondê-las, uma vez que elas não são colocadas. Criase uma espécie de vazio semântico que o leitor, em seu élan, é tentado a preencher com sua própria imaginação e segundo suas disponibilidades culturais. Mas, agindo dessa maneira, o leitor dá uma resposta a uma questão que a narrativa não coloca e anula o texto simplesmente por querer satisfazer demais sua própria razão.48 44 ROSA, Nicolás. “Estos textos, estos restos”, In: Los fulgores del simulacro. Cuadernos de Extension Universitária. nº 15, Santa Fé: 1987, p.10. 45 BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, trad. de Leyla Perrone-Moisés. p.31: “Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu chamo, quanto a mim: literatura”. 46 VERANI, Hugo J. “Las mascaras de la nada: Apocalipsis, Dylan Thomas Y ‘El perseguidor’ de Julio Cortázar”, In: Narradores latino-americanos, 1929-1979, II Tomo, Caracas: Italgrafica, 1980. XIX Congresso Internacional de Literatura Iberoamericana. Cabe ressaltar que tendo realizado amplo levantamento de bibliografia sobre Julio Cortázar, nada encontramos sobre “Anel de Moebius” enfocado na perspectiva que hora desenvolvemos. 47 MÖBIUS (August Ferdinand), 1790-1868. Matemático e astrônomo, ensinou toda a vida na Universidade de Leypzig. Publicou obras de astronomia e geometria. Foi num memorando que apresentou à Academia das Ciências de Paris as propriedades das superfícies com um só lado, tal como a fita que tem o seu nome: Fita de Möbius - superfície com um só lado; pode-se obter torcendo uma vez uma fita de papel retangular e colando as extremidades topo a topo: A B’ B A’ Trata-se de trabalho fundamental para o progresso da geometria projetiva. A faixa é uma figura tridimensional. Confiram-se: FREITAS MOURÃO, Ronaldo Rogério de. Dicionário Enciclopédico de Astronomia e Astronáutica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/ CNPq, 1987. GRANDE ENCICLOPÉDIA DELTA LAROUSSE. Rio de Janeiro: Editora Delta S.A., 1979, v.8. LOUIS BOURSIN, Jean. Dicionário Elementar de Matemáticas Modernas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983. 48 ANDREAU, Jean. “Personage, lecteur auteur”. Distantiation et engagement cortazariens. L’Arc (80) , Paris, [s.n.t.] ( Revue trimestrielle publié avec le concours du Centre National des Lettres). Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997. 27 Esse trabalho teve por finalidade a de tentar fazer uma leitura crítica da construção textual, destacando o uso da sintaxe. Deve-se ressaltar que, devido a riqueza das obras em estudo e pela própria natureza deste trabalho, optou-se por analisar alguns aspectos das obras em lugar de outros não menos importantes. Palavras-Chave: Análise textual; leitura. This work tries to make a critic reading of the textual structure emphasizing the use of syntax. According to the greatness of the studied works and by the nature of this paper it was chosen to analyse some aspects of the works in place of others no less important. Key Words: Textual analysis; reading. * A idéia inicial desse trabalho foi desenvolvida conjuntamente com outras colegas da disciplina Literatura Infanto-Juvenil, ministrada no II semestre de 1993 no curso de Letras do CEUD/UFMS. **Marileusa Ferreira da Silva é professora do Departamento de Comunicação do Centro Universitário de Dourados/UFMS. 28 UMA LEITURA DE "ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS" E DE AS "AVENTURAS DE ALICE ATRAVÉS DOS ESPELHOS DE LEWIS CARROLL * Marileusa Ferreira da Silva** I - Introdução Este trabalho apresenta uma análise textual e psicanalítica das obras Alice no País das Maravilhas e As Aventuras de Alice Através dos Espelhos. Lewis Carrol é considerado um dos responsáveis pela nova visão da vida através da literatura do absurdo, o nonsense. Diferente dos contos de Perrault, Andersen, Grimm, observa-se ainda que o maravilhoso se faz presente nas coisas do dia a dia. Essa análise textual procurará destacar a questão do uso da sintaxe no texto. Será apresentado também exemplos de leitura psicanalítica que podem ser aplicadas à obra. II. Leitura das Obras 2.1 - UMA LEITURA DE ALICE NO PAIS DAS MARAVILHAS 2.1.1 - ORIGEM DA OBRA “Alice no País das Maravilhas” foi escrito na segunda metade do séc. XIX, época em que o social era tema freqüente dos romances. Alice é um livro que, mesmo enraizado em seu tempo, anuncia a modernidade (contemporãneo, romance não-linear: começo, meio e f im) . O livro Alice no país das Maravilhas nasceu da seguinte maneira: “Numa tarde dourada de sol, o professor Lewis Carroll convidou Alice Liddell e as irmãs para darem um passeio de barco no rio Tâmisa, Alice, alePapéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 28-33, jul./dez., 1997. gre, pediu-lhe uma história. Carroll, que não sabia dizer não à sua afilhada predileta, fez o que Alice pedia e inventou logo ali uma história, cuja heroína tinha o mesmo nome que o dela. Para quem leu o livro ou assistiu ao filme, pode-se dizer que tem partes divertidas, mas é uma história sem pés nem cabeça. É a fantasia que faz o encanto e a originalidade de Alice. A fantasia é precisa, porque põe alegria no coração e imprevisão nos pensamentos. É também a fantasia que permite imaginar uma lagarta fumando cachimbo, um grifo e uma tartaruga dançando a quadrilha das lagostas e um grande gato desaparecendo e deixando apenas à mostra um sorriso. A própria menina inglesa para quem foi escrita a história disse.- “- Quero que seja uma história sem pés nem cabeça. Despropositada como um sonho! “Há aventura mais bonita que um sonho?” Quem lê o livro, chegando ao final, há de acordar como Alice, deslumbrada com tudo aquilo que viu e viveu, ficando sabendo que o País das Maravilhas pertence a todos os meninas e àquelas pessoas que tal como os personagens, comuns e sem complicações, utilizam o dom divino da imaginação. 2.1.2 - ANALISE TEXTUAL Construção Lingüística Literária Recursos Expressivos 1. Figuras fônicas: a) Anáfora Ex.: p. 92 - “Ora, o quê! Ela a Rainha!” 29 b) Aliteração - repetição das mesmas sílabas no mesmo verso ou nos versos seguidos. Ex.: p. 62 - “... naquela direção, disse o gato... com a pata direita.” p. 81 - “Os jogadores jogavam...” p. 86 - “Isto é o que eu queria que...” p. 119 - “Comece no começo...” 5. Repetição. Ex.: p. 21 - “Rato, de um rato, para um rato, um rato, ó rato!” lhança com a coisa significada. Uma figura: a história do rato trazendo nela inscrito o rabo dos protagonistas, gato-rato, e de ação de perseguição que termina na palavra Prato, em cujo interior é devorado o Rato. A Professora da falsa tartaruga, a Torturuga, que já traz inscrustada em seu nome a qualidade torturante. Linguagem-coisa - p. 11 e 17: “Palavra, som e imagem constroem, simultaneamente, uma mensagem icônica que se faz por inclusão e síntese, sugerindo sentidos apenas possíveis. É a informação lançada no horizonte da arte feito de “um retalho de impalpável, outro de improvável, cosidos todos com a agulha da imaginação”(Machado de Assis). P. 17: “Figura passa a designar, agora, um tipo de construção icônica, seja ela visual, sonora, ou verbal, estruturada com base em alguma semelhança que une a forma qualitativa do signo àquela do objeto que representa. Figuras que, mais do que representam, desejam, representar os objetos pertencentes à realidades de outra ordem: aquelas das formas possíveis, cuja existência se deve ao fato de poderem ser imagináveis, independentes da conformação da experiência e da razão.” “Alice, o Grifo, o Rei e a Rainha de Copas. Figuras apenas. Não há modo de vê-los como réplicas do ser humano. Não há como provar sua existência no contexto extratextual. Simples formas de pensamento feitas da analogia palavra-som-imagem. Seres de papel que habitam o imaginário do livro e se transformam em lances vivos para outras formas de pensamento no instante mágico da leitura. De Alice, não se tem a definição de uma representação visual, mas, ao contrário, a baixa definição de uma figura, que é, ao mesmo tempo, bruxa, fada, serpente, anã e monstro. Tudo isso e nada disso. Alice é um poder ser. Sonho dentro de um sonho. Formas de metamorfose tal qual um diagrama de uma cadeia de pensamentos, na qual ela própria se vê inscrita como signo. “Quando eu lia contos de fadas, pensava que essas coisas jamais aconteciam, e cá estou eu metida numa dessas estórias! Deve haver um livro escrito sobre mim, deve haver! E quando eu crescer, escreverei um... mas eu já cresci” - e acrescentou, cheia de tristeza: “pelo menos aqui não existe mais espaço para crescer”. 6. Iconização - modelização do signíficante em significado. ícone - signo que mantém uma relação de seme- 7. Estranhamento - referente percebido de certa maneira pelo autor. Ex.: “Exmo. Sr. Pé Direito de Alice”. c) Consonância - uniformidade de sons na terminação das palavras ou das frases. Exs.: p. 51 - “... mas achava que não adiantava...” p. 54 - “... outro criado também uniformizado...” d) Onomatopéia - reproduz aproximadamente certos sons ou ruídos. Exs.: p. 59 - “ ... Uai! Uai! Uai!” p. 60 - “ ... Buá, buá, buá.” p. 92 - “Grifo Hjckreh!” Expressividade Morfológica 1. Diminutivo - transmite afetividade. Exs.: p. 24 - “ ... um louro, uma aguiazinha...” p. 42 - “...um cachorrinho a espiava...” p. 124 - “ ... umas folhinhas secas que tinham...” 2. Neologismo- palavra tomada com sentido novo. EX.: “A tartaruga falsa, olha para Alice com desprezo - como você é burrinha!” 0 nonsense como se depreende deste exemplo é a palavra que diz seu próprio sentido. Tortura + Tartaruga é = Torturuga. Embora a palavra Torturuga não possua qualquer sentido particular, ela não é a ausência deste. Pelo contrário, ela é a abundância dele porque doa e soma o sentido. No caso, de “Tartaruga que tor tur a”, numa gr ande economia vocabular (Torturuga). 3. Paranomásia - emprego de palavras semelhantes no som. Exs.: “torturuga” “brilha, esbrilha” 4. Substantivação da onomatopéia. Ex.: p. 117 - “Se alguns dos jurados é capaz de explicar esse blábláblá, eu lhe dou um doce.” 30 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 28-33, jul./dez., 1997. Pode se dizer que, a partir da entrada do coelho Branco em cena, tu do é estr anhamento. 8. Materializacão de elementos abstratos em objetos concretos - explora a peculiar idade do mundo infantil (que consiste em indissociar o real e o imaginário), donde decorre a facilidade em transformar objetos, animais, sentimentos, fenômenos da natureza e os próprios pensamentos infantis, à imagem e semelhança de seres humanos. Ex.: Cartas de baralho, coelho, gato, lebre, rato. Expressividade da sintaxe do discurso poético 1. Repetições enfáticas (enguiço de pensamento) Ex.: p. 20 - “E agora? As coisas estão piores do que nunca - Pensou a pobre menina - Nunca estive tão pequena assim antes. Nunca! 2. Hipérbole - é o exagero na afirmação. Exs.: p. 17 “ ... derramando baldes de lágrimas.” p. 58 “... um sorriso que ia de uma orelha a outra.” 3. Apresentação de um super código pictórico. Ex.: p. 9 A OS p. 31 “0 coelho em PUR” p. 105 2.1.3 - UM EXEMPLO DE LEITURA PSICANALITICA APLICADA. Basearemos essa análise no momento histórico, onde o Rei era apenas uma figura simbólica. Analisaremos o instante em que Alice estava no julgamento das Tortas. A Rainha - Apresenta-nos uma pessoa cheia de futilidades e seguida pelos súditos. Exs.: tít. do cap. 11 - Porque as tortas tinham sumido ela convocou um julgamento. p. 111 - No meio dos depoimentos, ela pede uma lista de cantores. Parecem que estes dois assuntos estão fora de questão no livro, entretanto lembremos que o nonsense, onde o absurdo aparentemente é despropositado, nos mostra nestas cenas como a Rainha não se preocupa com assuntos sérios. Ela tem o controle total do País das Maravilhas, seus súditos temem contrariá-la, mesmo ela sendo uma ditadora. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 28-33, jul./dez., 1997. Ex.: p. 110 “Aqui a Rainha olha para o Chapeleiro.” Nessa cena o Chapeleiro fica com medo da Rainha mandar cortar sua cabeça. 0 Rei - Aparentemente ele dá uma idéia de autoridade, que é ele quem comanda o r einado. Expr essões como: Exs.: p. 108 - “Dêem a sentença.” p. 110 - “Preste o seu depoimento disse o Rei e não fique nervoso se não mando matá-lo imediatamente.” Porém mais adiante na narrativa sua verdadeira personalidade é revelada. Quando o Coelho Branco o corrige: Ex.: p. 117 - “Desinteressante é o que Vossa Majestade quer dizer, naturalmente, disse em tom muito respeitoso, mas (aqui a quebra da expectativa de que acontecerá algo que contradizerá o anterior), carrancudo e fazendo caretas.” O que percebemos é que o Coelho Branco não tem um respeito verdadeiro para com a Rei e, sim uma imagem de que o monarca é um incompetente. O que é repartido pelos demais e pelo próprio autor. Ex.: “Houve uma salva de palmas no salão. Era a primeira coisa realmente inteligente que o Rei dizia nesse dia.” Alice - Continua suas aventuras relacionando o seu conhecimento de mundo anterior com este novo. A procura de si mesma, procurando o absurdo para alguns, mas para ela, coisas comuns e exploráveis. Outros personagens - Porcos-da-India: representando a ignorância e a cegueira do povo, eles não podiam se manifestar de nenhuma forma, pois eram logo colocados em um saco e os guardas sentavam sobre eles. Coelho: o subconsciente; Alice durante suas aventuras corria sempre atrás dele. 2.2 UMA LEITURA DE “AS AVENTURAS DE ALICE ATRAVÉS DOS ESPELHOS” 2.2.1 - ORIGEM DA OBRA Essa obra faz parte continuação de “Alice no país das Maravilhas. Alice no Pais das Maravilhas e Alice Através do Espelho for mam obr as singu lar es que, construídas com elementos da realidade, são muito mais ricas que qualquer história de fadas. Nestes livros, descobre-se o maravilhoso nas coisas cotidianas e em nós. Tudo quanto possuímos de poético e de absurdo se apresentam nesses livros. Ao descer 31 pela toca do coelho, Alice passa a habitar - como quando atravessa o espelho - um país diferente e conhecido. Em Alice Através do Espelho, o espelho simboliza o elemento chave da problemática do inconsciente. Na narrativa, Alice vai ao encontro de seu inconsciente mergulhando no fundo do espelho para viver o mundo de suas fantasias, escapando do controle que se impõe por obediência ao adulto, onde em vários trechos pode-se perceber nitidamente a critica ao mundo adulto que corrompe e domestica a criança. Ex.: - “Você nunca foi castigada? - Sim - respondeu Alice mas só quando eu tive culpa”. “Who are you?” Com essa pergunta, Lewis Carroll soube ir ao fundo do inconsciente do seus leitores - crianças e adultos - os “pequenos” encontrão ironia nessa dúvida sobre a personalidade mas os grandes saberão o seu íntimo significado sobre ela. Ex.: “Quem é você? Eu - eu mal sei, senhor, neste momento - ao menos sei quem eu era quando acordei esta manhã, mas acho que devo ter mudado muitas vezes desde então.” (em Alice no País das Maravilhas). A obra de Carroll é completamente surrealista, já que explora o inconsciente, mas em certas passagens o surreal é bem claro aos nossos olhos, como no aparecimento o desaparecimento do gato. Outras passagens também envolvem problemas de lógica, como na conver sa de Alice com o Chapeleiro. A poesia, os jogos de palavras, os trocadilhos estão derramados em todas as páginas de suas obras. Lewis joga livre com o pensamento de seus per sonagens e as r imas atr aves sam a obr a iluminando-a. 2.2.2 - ANALISE TEXTUAL Perfil Estético - Estilístico A obr a poética do mestr e do nonsense apresenta-se com profundas mensagens e representa a mais notável representação lúdica da linguagem e do pensamento, portanto, o estudo estilístico da obr a levara à for mulação deste univer so ficcional. 1. Iconização: modelização do significante em significado. Ex.: p. 21 - “Jaguadarte”. 2. Estranhamento: rompimento da lógica. 32 Ex.: p. 41 - “Um bode, sentado ao lado do Cavalheiro de Branco, fechou os olhos e disse em voz alta...” 3. Singularização: modo de apreensão da realidade. Ex.: p. 45 “Os insetos lá não me dão prazer, na verdade explicou Alice - porque tenho medo deles, pelo menos dos maiores.” 4. Materialização: explora a peculiaridade do mundo infantil, que consiste em indissociar o real e o imaginário; donde decorre a facilidade em transformar objetos, animais, sentimentos, fenômenos da natureza e os próprios pensamentos infantis à imaginação e semelhança de seres humanos. Exs.: p. 16 - “As peças de Xadrez”. “Ela se abaixou de quatro para observar melhor. As figurinhas de xadrez estavam andando na sala, duas à duas.” Em “Alice Através do Espelho”, a linguagem revela o emprego de figuras fônicas tais como: a. Anáfora - Ex.: p. 76 - “E ela mesma tentou endireitar o broche. Mas era tarde: o alfinete tinha saltado e picado o dedo da Rainha.” b. Aliteracão - Ex.: p. 21 - “Garra que agarra bocarra que urra.” c.Consonância - Ex.: p. 22 - “Era Briluz as lesmolisas touvas. Roldavam e r elviam os gramilvos. Estavam mimsicais as pintalourvas. E os momirratos davam grilvos.” d. Onomatopéia - Ex.:.p. 65 - “Puff”. Em “Através dos Espelhos”, a linguagem adquire também um colorido todo especial, devido aos diminutivos, que transmitem afetividade, e aos neologismos, que por sua vez, tomam palavras com sentido novo - Diminutivo - Exs.: p. 67 - “Um pouquinho” p. 82 - “Um caranquejinho” - Neologismos -Exs.: p. 66 - “Irmão furibundo” p. 21 - “Era Briluz as lesmolisas touvas.” Na obra há também a presença de um super código pictórico que denota a expressividade da sintaxe e revela o próprio objeto da temática, o espelho. Ex.: p. 21 - “JAGUADARTE” (refletido no espelho). 2.2.3 - UM EXEMPLO DE LEITURA PSICANALITICA APLICADA O livro de Carroll sobre o ponto de vista psicológica e repleto de possibilidades, mas neste trabalho a anàlise será somente do capítulo que inicia a obra. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 28-33, jul./dez., 1997. A estória resume as aventuras de Alice desde que ela sonha atravessar o espelho da sala de sua casa. 0 sonho representa a fuga da nossa realidade - lado obscuro e incerto dos acontecimentos; o espelho, por sua vez, refere-se à função refletora do pensamento, s imbolizando o autoconhecimento e a consciência, como também a verdade e a clareza, portanto, pode-se dizer que Alice vai ao encontro de seu inconsciente, mergulhando no fundo do espelho para desvendar a desconhecido. Para adentrar à casa do espelho a menina utiliza a lareira - símbolo da família - deixando toda a proteção do seu ambiente conhecido para ir em busca do misterioso, do obscuro, em busca da “casa do espelho.” Na “casa do espelho”, o primeiro gesto que Alice fez foi o de olhar se havia fogo na lareira, e ficou muito contente em saber que havia “fogo de verdade.” 0 poder de destruição do fogo é interpretado geralmente como meio para o renascimento em uma esfera mais elevada e, por uma relação analógica, pode-se dizer que a menina Alice cresceu interiormente, se libertando do mundo adulto, como pode-se observar claramente neste trecho: Ex.: p. 16 - “Assim ficarei tão quentinha aqui como na minha antiga sala, pensou Alice, e na verdade até mais aquecida, porque não vai haver ninguém para ralhar comigo e me tirar de junto do fogo. Ai, que engraçado, quando me virem aqui do outro lado e não conseguirem me pegar.” Na sala da “casa do espelho” Alice observa várias peças de xadrez andando na sala “duas à duas”. Na narrativa o nümero dois é constante e simboliza o equilíbrio na visão de mundo dualista: bem/mal; vida/morte; dia./noite, etc. 0 mundo adulto imposto no mundo infantil. O jogo de xadrez, que também se relaciona com o mundo, dualista aparece na estória como o campo que Alice deve atravessar para se encontrar interiormente. As personagens, as próprias peças do xadrez, simbolizam as oposições internas e a evolução do “Eu.” A interpretação para “Alice Através dos Espelhos”: casa do espelho, aqui apresentada, é apenas uma das possíveis leituras que podemos fazer. Vários temas aparecem na estória, e é esta riqueza de idéias, esta variedade de significados profundos que tornam o livro de Lewis Carroll uma obra de arte. III. Conclusão Constatamos que as obras de Lewis Carroll, “Alice no País das Maravilhas” e “As Aventuras de Alice Através do Espelho”, são obras que rompem com a sintaxe linear - inicio, meio e fim fazendo com que a atenção do leitor seja redobrada. Percebemos, portanto, que Lewis Carroll é um autor inovador. Suas obras são de cunho imaginário, totalmente icônicas e com a predominância do nonsense, levando cada leitor a uma diferente interpretação das obras. O elemento fantástico e maravilhoso, apresentado nas obras de Lewis Carroll, desperta nos seus receptores o prazer pela leitura, pela criatividade, e oferece ainda muitos outros subsídios a serem explorados e aprofundados por todos aqueles que pretendem desenvolver um trabalho no campo de Literatura Infanto-Juvenil. IV. Referências Bibliográficas CARROLL, Lewis Aventuras de Alice Através dos Espelhos. SAo Paulo integral Tradução cedida pelo Círculo do Livro por cortesia de Sebastião Uchoa Leite. CARROLL, Lewis Alice no Pais das Maravilhas. São Paulo: -Brasil S/A, Produção de Oliveira Ribeiro Netto. COELHO, Nelly Novaes. Panorama Histórico da Literatura Infantil Juvenil. São Paulo: Atica, 4ª ed., 1991. KHÉDE, Sônia Salomão. Personagens da Literatura Infanto-Juvenil. São Paulo: Atica, 2. ed. 1990. MEIRELES, Cecília. Problemas da Literatura Infanto. Brasília: Summus, 3. ed. 1979. NARDES, Laura Battisti. Literatura Infanto-Juvenil: a estética literária em Lígia Bojunga Nunes/Tese. Brasília: Universo, 1988. ROSEMBERG, Flávia. Literatura Infantil e Ideologia. São Paulo: Global, 1985. PASCHOAL, Erlon José (Tradução) Dicionário de Símbolos. Herder Lexikon. São Paulo: Cultrix, 1990. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 28-33, jul./dez., 1997. 33 Acho que inventei tudo, nada disso existiu! Mas se inventei o que ontem me aconteceu – quem me garante que também não inventei toda a minha vida anterior a ontem? Clarice Lispector Com base na figura do autor, este artigo discute o processo de criação praticado por Clarice Lispector. Palavras-chave: autoria textual, produção According to the author’s illustrations, this article discusses the creation process pratised by Clarice Lispector. Key-words: textual authorship, production * Edgar Cézar Nolasco é mestre em Teoria da Literatura pela UFMG 34 CLARICE LISPECTOR A ASSINATURA E A GRAFIA DA ESCRITURA Edgar Cézar Nolasco* Passados vinte anos (1977-1997) da morte de Clarice, muita tinta ainda corre no papel a despeito de sua produção, e, conseqüentemente, sobre a própria escritora, uma vez que ela, ao escrever, também se escrevia nas entrelinhas da escritura, deixando na grafia não só as pegadas de tal prática, como também daquele que a praticou. Desse modo, ao estudarmos aqui o processo de criação operacionalizado por Clarice, um corpo, paralelo ao corpo escritural, se levanta e se apresenta no cenário do texto: um corpo, bem entendido, aquém e além do real, porque advindo completamente do ficcional, mas que, por “uma lembrança circular”, me faz lembrar da imagemcorpo do escritor ali interposto que trago comigo enquanto sujeito-leitor de sua obra. Pela constatação de que o que sobra ao leitor e ao crítico é tão-somente um “fictício de identidade” autoral, e o fato de que Clarice Lispector fez de sua vida matéria para sua ficção, acrescentamos, agora, que a autora fez da busca pela/na linguagem a inscrição e a procura de sua própria identidade de escritor.1 Para melhor abordarmos e exemplificarmos o que aqui queremos tratar, vamos nos valer das obras A Hora da Estrela e Um Sopro de Vida, por entendermos que mesmo não sendo elas romances, mas o “puramente romanesco”, tratam do factício e do fictício de toda identidade, quer esta seja de uma obra ou de um sujeito. Nesse es- paço romanesco, onde o escritor escreve sem nunca escrever,2 ocorre a circulação incessante de seus desejos e a inscrição de seu prazer que, como a escritura, é insustentável, impossível, circulando infinitamente nessa maquinaria de linguagem desejante chamada escritura. De acordo com Michel Schneider, diríamos que as escrituras, tanto a de A Hora da Estrela quanto a de Um Sopro de Vida, trabalham, num certo ponto de sua construção, o encontro de seu autor ficcional (?) com seu leitor, na medida em que um interroga sobre o outro, como se um sempre pudesse dizer a identidade do outro. Nesse sentido, a prática escritural dessas obras encontra-se aberta, demandando uma participação ativa do leitor para sua construção inacabada. A assinatura (ou nome próprio) Clarice Lispector aparece como um dos 14 subtítulos que abrem o registro chamado de A Hora da Estrela.3 Diferentemente dos demais subtítulos, esse não aparece escrito no corpo da escritura, mas, como essa, é totalmente explícito desde sua origem, remetendo o leitor para um autor sem máscara: traços de um corpo já-escrito e já-lido em outras escrituras clariceanas vêm se dizer ali, nessa última, querendo dizer ao leitor que essas escrituras nada mais são que seus “papéis de identidade”. A cada nova escritura, a cada novo registro, ele se inscreve — deixa sua assinatura no corpo escritural — tornando-se mais próximo de 1 SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.9. A respeito do texto que se escreve, Barthes afirma: “O escriptível é o romanesco sem o romance, a poesia sem o poema, o ensaio sem a dissertação, a escritura sem o estilo, a produção sem o produto, a estruturação sem a estrutura.” BARTHES. S/Z, p.11. 3 Benedito Nunes fala em “treze títulos diferentes”; ao que acrescentaríamos mais um, o próprio nome da autora – Clarice Lispector – que ali aparece assinado e ninguém o poderá retirar; o que, por sua vez, tal qual o nome A hora da estrela, pode ser lido como um dos sub/ títulos concorrentes para o livro. Cf. NUNES. O drama da linguagem, p.164. 2 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 34-39, jul./dez., 1997. 35 sua identidade. Atestar a identidade de escritor não é mais se perguntar “quem sou eu?”4 mas, pelo contrário, saber que se escreve com o próprio corpo e saber por que se escreve: “Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo geral de ‘força maior’, como se diz nos requerimentos oficiais, por ‘força de lei’.”5 É através dessa “força maior” que o escritor escreve o que escreve, mesmo sabendo que não sabe o que vai escrever, e se inscreve, às vezes se transfigurando em outrem e materializando-se enfim em objeto escritural, como é o caso do registro inacabado de A Hora da Estrela. Aplicando o exemplo ao livro Um Sopro de Vida, Ângela, a personagem-autora criada pelo Autor, é a materialidade ficcional do escritor. Mas voltando ao “registro que em breve vai ter que começar,6 e nunca começa, porque o escritor não quer escrever nada senão seu próprio desejo de escrever, que cessa no intransitivo da escritura, diríamos que nada resta ao escritor (ou ao Autor do registro de A Hora da Estrela) senão copiar a si mesmo, uma vez que o que vai escrever já está de certa forma escrito em si, no seu corpo. Esse escritor, essencialmente moderno, acaba escrevendo sobre a própria literatura,7 o que denuncia, por sua vez, que ele sofre de uma certa ansiedade, não ansiedade da influência, mas, antes, de uma “falta” de assunto (história) e de tema (ele tornou-se seu próprio tema), tendo a linguagem nela mesma e o “ato de escrever” como sua busca. Como observa o Autor do registro, “a palavra é fruto da palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo. E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela.”8 O que leva o escritor a escrever não é só por se achar “desesperado” e estar “cansado”, por não suportar mais a si mesmo e nem “a sempre novidade que é escrever” mas, pelo contrário, o que parece mover essa prática inacabada — pegar o “ato de escrever” nele mesmo se escrevendo — é, mais do que o desejo que move qualquer escritor, uma certa solidão que advém de quem tem a palavra como isca, uma solidão inerente e necessária a quem escreve. Tomando de empréstimo o que disse Lacan a respeito da escritura de Duras, reafirmaríamos que um escritor não deve saber que escreve, nem o que escreve, porque, caso ele viesse a saber, se perderia, o que seria uma catástrofe, sobretudo para o leitor. É esse abandono, essa solidão, que devolve o escritor ao seu lugar, produzindo a escritura. Nessa produção, estrutura-se um silêncio escritural, aquilo que não é um “estilo”, mas que diferencia a prática de escrever de um escritor, deixando reconhecer-se enquanto tal na escritura, sendo esse reconhecimento como se fosse sua verdade, sua assinatura definitiva. Não é por acaso que o Autor do registro de A Hora da Estrela afirma que escreve com o corpo.9 Duras, no seu Escrever, também afirma: “Não se pode escrever sem a força do corpo. É preciso ser mais forte do que si mesmo para abordar a escrita.”10 Escrever com o corpo, sobretudo para Clarice, é não mais escrever, é nãofalar, é se recolher em sua própria solidão e no silêncio escritural porque, ao escrever, não é mais o escritor que escreve, é a própria escritura “que avança para o seu destino e do seu autor”, escrevendo o seu escritor à sua revelia, grafando no seu corpo as grafias do corpo dele, enfim, declarando que a escritura é sempre, no final, “uniforme” e “ajuizada”. Por esse motivo, talvez possamos dizer, ainda seguindo Duras, que escrita a escritura — qualquer escritura —, jamais podemos afirmar quem a escreveu, nem o que escreveu, nem em que estado “pessoal” a praticou, a não ser pela via do próprio ficcional, atestando com isso, mais uma vez, que “o escritor se produz no texto”.11 Esse autor que advém de sua escritura, essa “outra pessoa que aparece e avança”, sabe que o ato de escrever é o desconhecido e que, antes de praticá-lo, nunca se sabe o que se vai escrever, o que independe de sua “total lucidez”. Autor verdadeiro, porque mesmo ao reconhecer-se enquanto tal na escritura, aceita e mantém o “incontornável” na escritura para que essa permaneça uma escritura verdadeira. Tal escritor, “que nunca assina senão por procuração”,12 tem consciência de que Escrever não é sequer uma reflexão, é um tipo de faculdade que se possui ao lado da personalidade, paralela a ela, uma outra pessoa que aparece e avança, invisível, dotada de 4 ”Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar ‘quem sou eu’, cairia estatelada e em cheio no chão. É que ‘quem sou eu’? provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto.” LISPECTOR. A hora da estrela, p.21-22. 5 Ibidem. p.24. 6 LISPECTOR. A hora da estrela, p.30. 7 Ver SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.75. 8 LISPECTOR. A hora da estrela, p.26. 9 LISPECTOR. A hora da estrela, p.22. 10 DURAS. Escrever, p.23. 11 SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.63. 12 SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.135. 36 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 34-39, jul./dez., 1997. pensamento, cólera, e que por vezes acaba colocando a si mesma em risco de perder a vida.13 Como nos alerta o Autor de a “Dedicatória do Autor (Na verdade Clarice Lispector)”, o livro A Hora da Estrela “trata-se de livro inacabado porque lhe falta a resposta”.14 Essa citação concorre para o projeto que move qualquer escritor: escrever. Afinal, qualquer escritor, mesmo não sabendo o que e sobre o que vai escrever, a princípio tem um projeto. Nesse sentido, todo livro, falhado ou não, é a escrituração de um projeto. A escritura é a pergunta mesma feita a sua arquitetura: “Escrever significa tentar saber aquilo que se escreveria se fôssemos escrever — só se pode saber depois — antes, é a pergunta mais perigosa que se pode fazer.”15 É assim, desse modo, que Macabéa vive sem saber que vive, que seu Autor escreve sua história falhada, mesmo sabendo que a morte é sua “personagem principal”, enfim, é com base nessa “não-sabença” que se move e se constrói qualquer produção escritural. Semelhante ao livro A Hora da Estrela, porém mais desconstruído, o livro Um Sopro de Vida assinala o próprio projeto de criação literária. Nele, seu autor, que assume o papel de escritor e inventa a personagem Ângela Pralini para com ele dialogar e se fazer existir, é uma personagem do projeto escritural para o leitor. Entretanto, além de desempenhar o papel de autor de sua personagem, bem como de sua escritura, desempenha também o papel de leitor de si mesmo: lê seu projeto escritural no momento de sua arquitetura e relê, o mesmo projeto, numa leitura posterior que acaba mudando sensivelmente o projeto inicial. Esse descentramento temporal de leitura só vem reforçar o aspecto fragmentário e descontínuo do livro, porque trabalha para uma não linearidade no trabalho operado pelo leitor. Talvez em nenhum outro livro de Clarice o tema da criação tenha aparecido de forma tão contundente. Se tomarmos o livro A Hora da Estrela, só para exemplificar o que aqui estamos querendo dizer, nele subscreve-se a história da criação, mas há a história explícita de Macabéa, atestando, em certo sentido, a volta clariceana à narrativa. Em Um Sopro de Vida, ao contrário, sua história, se há alguma, se volta para o próprio escrever,16 porque é nesse “ato” que Clarice, enquanto escritora, atinge o aqui e agora mesmo da escrita, isto é, o momento mesmo da enunciação onde a escritura se diz. Para Clarice, só existe esse tempo único e indivisível, longe de qualquer sentido ou verdade instituídos, confirmando que a autora trabalha com uma linguagem que ainda está por ser inventada, mesmo quando as palavras têm um certo tom repetitivo como é o caso de Um Sopro de Vida. O “Livro de Ângela” é uma réplica perfeita do livro do Autor 17 na medida em que ambos tematizam e problematizam o próprio escrever, o desejo comum a todo escritor, o que nos reporta imediatamente ao desejo de busca de criação da escritora Clarice Lispector, que se presentifica em todos os seus livros, mas de modo especial neste Um Sopro de Vida. Esse livro, mais do que uma “cilada escritural”, e suposta origem dessa mesma escritura, é o lugar onde autores e personagens se dispersam, um ocupando o lugar do outro sem cerimônia, onde a linha tênue entre real e ficção deixa de existir, demandando do leitor uma certa desconfiança, uma vez que a noção de autoria foi para sempre abalada nesse campo minado chamado texto. A escritura do Autor ficcional concorre com o quadro que a sua personagem Ângela Pralini pinta chamado de “Sem sentido”: enquanto o quadro se compõe de “coisas soltas — objetos e seres que não se dizem respeito, como borboleta e máquina de costura”, a escritura, muito semelhante, se constrói a partir de “destroços de livros”, isto é, por fragmentos: “Esses fragmentos de livro querem dizer que eu trabalho em ruínas.”18 Além dessas semelhanças escriturais, pode-se dizer ainda que ambos os livros, tanto o do Autor quanto o de sua personagem Ângela, se constroem por anotações: ora o Autor anota uma nota, ora sua personagem anota outra, o que autentica a fragmentação escritural do livro, reforçando uma marca constante da prática de construção escritural de Clarice Lispector.19 Na verdade, essas anotações que constituem o livro Um Sopro de Vida representam muitas vozes, ora do Autor, ora da personagem-autora Ângela Pralini e, ora, da autora-personagem Clarice, o que concorre para o fato de que o livro foi escrito, por assim dizer, a quatro mãos, uma vez que coube a Olga Borelli a 13 DURAS. Escrever, p.48. (Grifo nosso) LISPECTOR. A hora da estrela, p.8 15 DURAS. Escrever, p.48. 16 ”O que escrevo agora não é para ninguém: é diretamente para o próprio escrever, esse escrever consome o escrever.” LISPECTOR. Um sopro de vida, p.77. 17 ”Como começo? Estou tão assustado que o jeito de entrar nesta escritura tem que ser de repente, sem aviso prévio.” LISPECTOR. Um sopro de vida, p.24. Ângela, à página 100, diz: “Nem sei como começar.” 18 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.19. 19 ”Tudo se passa exatamente na hora em que está sendo escrito ou lido. Este trecho aqui foi na verdade escrito em relação à sua forma básica depois de ter relido o livro porque no decorrer dele eu não tinha bem clara a noção do caminho a tomar. No entanto, sem dar maiores razões lógicas, eu me aferrava exatamente em manter o aspecto fragmentário tanto em Ângela quanto em mim.” LISPECTOR. Um sopro de vida, p.19. 14 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 34-39, jul./dez., 1997. 37 organização dos manuscritos, conforme ela mesma diz na apresentação, o que repercute não só no estudo de sua construção, como também, num sentido muito peculiar, desvia a leitura efetuada, reforçando com isso o descentramento de qualquer noção de origem bem como de qualquer suposta autoria. Nesse livro de “não-memórias” a origem não existe pelo fato mesmo de que seu Autor-leitor o lê no momento mesmo do “ato de escrever” e relê, a posteriori, cortando de ambos os livros o “supérfluo” como ele mesmo diz. É essa leitura a posteriori, por parte de seu autor-leitor, do “já-escrito”, em que o autor tem medo de copiar a si e sua personagem, que contribui para a construção fragmentária e desconexa da escritura do livro Um Sopro de Vida. Entretanto, segundo seu próprio Autor, mesmo sendo tudo “fragmentário e dissonante e desconexo”, há em tudo uma “ordem submersa”, uma verdade escritural. A preocupação do Autor-leitor com relação à imitação do outro, e com o plágio, remete o leitor a uma problemática nodal encontrada no livro, que é a questão da autoria. Sua escritora Clarice Lispector aparece e desaparece por trás das máscaras de seus supostos autores, confundindo e dispersando os papéis autorais e apagando, de uma vez por toda, a distância entre realidade e ficção. Aquele “eu enviesado” encontrado na “dedicatória do autor” de A Hora da Estrela soma-se agora ao sujeito enviesado20 apresentado por Clarice em Um Sopro de Vida. Nesse livro, diferentemente daquele, podemos elencar passagens escriturais que atestam a dispersão autoral, afirmando que o escritor (Clarice Lispector) desenvolve seu projeto escritural através de “hieróglifos” seus, e que, por isso mesmo, não lhe possibilitam “as verdadeiras palavras”, deixando-o preso no ato de escrever e no “vórtice que é se pôr em estado de criação”. Assim, dessa falta de estilo,21 o escritor enredado e perdido encontra-se consigo e com seu projeto escritural inacabado. Esse escritor enviesado, que para escrever Um Sopro de Vida abdica de toda sua obra e começa “humildemente”, se expõe “a um novo tipo de ficção” que não sabe ainda como manejar, só reconhecendo de seu trabalho sua caligrafia. Tal escritor, que é ao mesmo tempo Clarice Lispector, ludibriando mais uma vez o leitor quanto à troca de papéis autorais, se pergunta: “E eu? será que não serei meu próprio personagem? Será que eu me invento? Só sei de mim que sou o produto de um pai e de uma mãe. É tudo que sei sobre a criação e a vida.”22 É com base nesse jogo intercambiável entre criação e vida, Autor e autor, que passaremos a destacar algumas passagens escriturais — mesmo tendo a escritura de Um Sopro de Vida como o exemplo maior — que certificam o jogo consciente operacionalizado pelo escritor na construção de sua escritura. Mesmo reafirmando que a escritura do livro como um todo simboliza a preocupação da própria escritora Clarice, encontramos, em meio às anotações e fragmentos que compõem a escritura inacabada, grafias que nos remetem para a “pessoalidade” da escritora, delatando que traços de sua vida estravasaram para sua ficção, à revelia da própria autora. Devemos ressaltar ainda que o livro Um Sopro de Vida tem como “tema” a própria criação do monumento literário, além de ser o lugar no qual Autor e personagem participam do desejo comum de “escrever um livro”. A personagem Ângela, falando de seu cachorro Ulisses, relata: “Fui fazer um carinho nele, ele rosnou. E cometi o erro de insistir. Ele deu um pulo que veio das profundezas selvagens de lobo e mordeu-me a boca. Assustei-me, tive que ir ao Pronto-socorro onde deramme dezesseis pontos.”23 Essa citação, não menos ficcional que o resto do livro, remete o leitor, imediatamente, para o fato ocorrido com a escritora Clarice Lispector que, na verdade, tinha um cachorro que atendia pelo nome de Ulisses.24 Outra passagem que podemos destacar, não só como exemplo de trocas autorais de papéis, mas como prova explícita de que o leitor não deve confiar no que o autor diz, lendo-o com uma certa desconfiança, é nos dada mais uma vez pela personagem Ângela: “Objeto — a coisa — sempre me fascinou e de algum modo me destruiu. No meu livro A Cidade Sitiada eu falo indiretamente no mistério da coisa. (...) Há anos também descrevi um guarda-roupa. Depois veio a descrição de um imemorável relógio chamado Sveglia: relógio eletrônico que me assombrou e assombraria qualquer pessoa viva no mundo. Depois veio a vez do telefone. No ‘Ovo e a galinha’ falo no guindaste.”25 Tal citação, além de fazer alusão direta a outro texto da autora, nos permite postular ainda a respeito daquele cuidado excessivo do Autor da personagem Ângela quanto à imitação e ao plágio do livro de ambos, o que nos remete agora para a preocupação da própria escritora Clarice que se pegava, no decorrer de sua prática, imitando e plagiando a si mesma, disfarçadamente.26 Não é por acaso que o processo de re- 20 ”Eu sou um abismo de mim. Mas sempre serei enviesado.” LISPECTOR. Um sopro de vida, p.76. ”Eu perdi o meu estilo: o que considero um lucro: quanto menos estilo se tiver, mais pura sai a nua palavra.” LISPECTOR. Um sopro de vida, p.83. 22 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.143. 23 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.58. 24 A respeito desse fato verídico, ver BORELLI. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato, p. 97-98. 25 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.102. 26 ”Noto que os meus imitadores são melhores do que eu. A imitação é mais requintada que a autenticidade em estado bruto. Estou com a impressão de que ando me imitando um pouco. O pior plágio é o que faz de si mesma.” LISPECTOR. Um sopro de vida, p.30. 21 38 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 34-39, jul./dez., 1997. escrever e a apropriação são uma constante na construção escritural praticada por Clarice. A última passagem escritural por nós buscada para finalizar a questão da “pessoalidade” da autora Clarice Lispector, dessa vez nos é apresentada não mais pela personagem Ângela, mas, pelo contrário, por seu próprio Autor, quando diz: “Eu já falei isso no meu livro chamando esse grito de it.”27 A referência é clara porque remete o leitor para o livro Água Viva, onde a escritora trabalha a questão do it; mas, diferentemente, com relação à autoria não podemos ter a mesma certeza, podendo dizer que o Autor é e não é mais Clarice Lispector, ou melhor, que ele apenas lembra por um processo circular a figura da autora para sempre dispersa em sua ficção. Entretanto, devemos reconhecer, ou pelo menos suspeitar, a presença mascarada da autora Clarice interposta a esse Autor ficcional — e por isso chamado aqui de sujeito enviesado — que afirma ser “um escritor enredado e perdido”, relutando em convencer o leitor de que esse “eu”, que aparece em seu livro, não é ele e que seu livro não é em nada autobiográfico.28 Poderíamos contra-argumentar, dizendo que toda escritura, em certa medida, é também a escritura de uma autobiografia, uma vez que só há escritura — qualquer forma de escritura — “a partir de uma relação em que o sujeito se encontra desde sempre emaranhado ao objeto que supostamente deve descobrir ou criar”.29 Desse modo, o escritor, ao escrever, se inscreve e deixa suas marcas “pessoais” na escritura, que nada mais é que a grafia de seu desejo. Por esse viés de leitura crítica, que parte do pressuposto de que os significados são produzidos por um “sistema de articulação”, podemos dizer que o leitor sempre acaba ocupando também uma “posição autoral” na relação com o texto literário. O Autor ficcional de Um Sopro de Vida, por saber demais o seu compromisso com o papel a desempenhar em relação à sua personagem, a si mesmo e ao outro, observa em “nota” que não pode se esquecer de dar “um rosto a Ângela” porque, dando um rosto a sua personagem, está se reconhecendo no seu reflexo, uma vez que nessa relação a personagem se apresenta “mais forte” do que seu Autor. Entretanto, nessa busca, o Autor distancia-se de sua personagem, perde o Livro de Ângela,30 e extravia o seu próprio livro não escrito, deixando a escritura para sempre inacabada como só seu sujeito consegue ser: “Eu.... eu.... não. Não posso acabar.”31 Como esse Autor-leitor mesmo nos alerta, no início do livro, que seu fim não deve ser lido antes, porque “se emenda num círculo ao começo, cobra que engole o próprio rabo”,32 talvez possamos pensar que sua busca, assim como a busca da autora Clarice Lispector, e sua própria escritura, se encontram resumidas na página em branco deixada pelos autores, propositadamente, no centro do livro, refletindo as “pulsações” de uma escritura que se constrói por notas de seus personagens que são autores, que dialogam entre si e com sua autora, que dialoga consigo e com seu leitor imaginário por toda sua prática escritural. 27 Ibidem. p.153. ”Eu sei que este livro não é fácil, mas é fácil apenas para aqueles que acreditam no mistério. Ao escrevê-lo não me conheço, eu me esqueço de mim. Eu que apareço neste livro não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim.” LISPECTOR. Um sopro de vida, p.19. 29 ARROJO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p.47. 30 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.160. 31 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.162. 32 Ibidem. p.20. 28 Referências Bibliográficas ARROJO, Rosemary. Tradução, desconstrução e psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1993. 212p. (Biblioteca Pierre Menard). BARTHES, Roland. S/Z. Trad. Maria de Santa Cruz e Ana Mafalda Leite. Lisboa: Edições 70, 1980. 199 p. BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 147p. DURAS, Marguérite. Escrever. Trad. Rubens Figueiredo. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 115p. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 7.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 98p. LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. 162p. NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 1997, 249 p. (Dissertação de Mestrado em Letras – Teoria da Literatura) NUNES, Benedito. O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995. 175p. SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras. Trad. Luiz Fernando P. N. Franco. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 34-39, jul./dez., 1997. 39 Este artigo tem como meta demonstrar como os conceitos de polifonia e de modalidade se interrelacionam para compor estruturas argumentativas diferentes. Embora tenhamos comparado dois textos jornalísticos diferentemente organizados, os efeitos da argumentação foram semelhantes. Palavras-chave: polifonia - discurso - argumentação This article aims at demonstrating how the concepts of poliphony and modality interrelate to form different argumentative structures. Although we have compared two differently organized newspaper texts, the effects of argumentation were similar. Key-words: polifony - discourse - argumentation 40 * Vânia Maria Lescano Guerra é professora de Lingüística e Língua Portuguesa no curso de Letras do Departamento de Educação do CEUL/ UFMS, com Mestrado em Lingüística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. UM ESTUDO DA POLIFONIA E DA MODALIDADE NA ESTRUTURA ARGUMENTATIVA DE DOIS TEXTOS JORNALÍSTICOS Vânia Maria Lescano Guerra* Introdução Este trabalho tem por objetivo a análise de um corpus constituído por dois textos escritos, retirados de duas seções dos jornais “Diário do Comércio e Indústria “e o “Estado de São Paulo”. Os dois textos atingem leitores específicos, isto é, aqueles que se interessam particularmente por economia, negócios, etc, sendo que o texto 1 é escrito por um jornalista e o 2 é escrito pelo presidente de uma empresa. É importante ressaltar, ainda, que os dois textos se referem à Empresa Simonsen Associados. A análise se dará à luz da teoria da Semântica Argumentativa, tendo como base os estudos desenvolvidos por Ducrot (1987), com relação à polifonia. Um outro fenômeno da argumentação que ainda norteará nossa pesquisa é o das modalidades do discurso, utilizando trabalhos de Cervoni (1989) e Maingueneau (1991). Algumas questões estarão orientando a nossa dis cu s s ã o. E m p r imeir o lu ga r, como es t á construída a estrutura argumentativa dos textos que compõem o corpus em questão? Ou ainda: quais as variabilidades e regularidades, no nível lingüístico, existentes entre elas? E finalmente, como definir o ato perlocucionário derivado dessa argumentação? I - Fundamentação Teórica Para procedermos a análise do corpus, é necessário examinarmos alguns conceitos essenciais rePapéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 40-47, jul./dez., 1997. ferentes à organização da estrutura argumentativa dos textos. Para tal, mobilizaremos os conceitos de argumentação, polifonia e modalidades do discurso. 1. Argumentação: Ducrot dando início à sua teor ia da ar gu ment ação ( a pu d In du rs ky, 1989:94-95), conclui que tal atividade deixa marcas lingüísticas no enunciado. Através do estudo de algu ma s dest as ma r cas ( os oper a dor es argumentativos), o autor incorpora à sua teoria a noção de orientação argumentativa a qual representaria uma função constitutiva do discurso, ou seja, de conduzir o interlocutor a uma determinada conclusão ou mesmo a uma mudança de comportamento ou posicionamento em relação a uma opinião. 2. Polifonia: Partindo dos estudos de Bakthin, Ducrot postula que é constitutivo do sujeito - ou locutor, em seus termos - estar em relação constante com um outro do discurso. Segundo a teoria polifônica, o locutor só existe enquanto se estiver falando em um discurso, enunciação ou enunciado. Já o sujeito falante é um elemento da experiência, ou seja, é aquele que existe empiricamente. De acordo com Ducrot (1987:182) o locutor é “um ser que é, no próprio sentido do enunciado, apresentado como seu responsável, ou seja, como alguém a quem se deve imputar a responsabilidade deste enunciado”. O locutor quando está explícito pode se apre41 sentar segundo um EU ou um mesmo. A “subjetividade” tão Ao fazer uma asserção NÓS, causando efeitos de sentipreocupante em certos discursos dos diferentes. O efeito do uso de dá lugar a uma “objetividade” deo locutor valoriza o fato, EU pode se referir a uma tomada sejada. O enunciado adquire, enfazendo-o falar por si clara de posição. Em muitos catão, valor de verdade irrefutável. mesmo. O enunciado sos, como mostra Charaudeau Em termos perlocucionários, o (1992), as marcas de primeira discurso assertivo se apresenta adquire, então, valor de pessoa desaparecem dando lugar como o discurso da ciência e da verdade irrefutável. a formas lingüísticas cuja princiautoridade. pal função é apagar a responsabilidade ou participação do locutor com relação ao enunciado. Ainda segundo Ducrot, a polifonia pode ocorrer em um outro nível: o do enunciador. Dentro de um Na exposição teórica que fizemos, explicitamos enunciado podem existir vários pontos de vista dis- nossa intenção de car acter izar a estr utur a tintos. Cada um desses pontos de vista é represen- argumentativa dos textos, decompondo-a segundo tado por enunciadores que são incorporados na algumas categorias: a polifonia associada ao uso de enunciação do locutor. É nesse imbricamento de pronomes, e a modalidade. Como estas questões enunciadores que se estabelece o jogo polifônico contribuem para a identificação da orientação das vozes que compõem o discurso. argumentativa dos textos? II - Análise e Interpretação do corpus 3. Modalidades: Ao se utilizar de modalidades, o locutor estabelece relações com o seu próprio enunciado, podendo mostrar um maior ou menor engajamento ou distanciamento com o que diz. Pode também decorrer do uso das modalidades que o locutor se apresenta como autoritário ou polêmico. Cervoni (1989) estudou as modalidades do ponto de vista formal e estrutural. Ele considera somente modais algumas estruturas sintáticas e itens lexicais como pertencentes a um “núcleo duro”. Dentro de tal núcleo duro, encontram-se as modalidades que os lógicos denominaram de aléticas, epistêmicas e deônticas. As modalidades aléticas dizem respeito ao necessário e ao possível, enquanto que as modalidades epistêmicas referem-se ao nível do certo e do provável. E as modalidades deônticas dizem respeito ao que é obrigatório e permitido. Se o campo das modalidades é complexo, podemos acrescentar que o da asserção pode ser considerado extremamente delicado. A partir da reflexão sobre as modalidades nos estudos de Cervoni e Maingueneau, cremos que a assertiva possui as seguintes características formais: a. pode ser afirmativa ou negativa, já que uma asserção se faz em termos positivos ou não; b. não apresenta marcas lingüísticas específicas, que seriam englobadas dentro da classificação de “núcleo duro”; e, c. não pode ser imperativa, interrogativa ou exclamativa. Semanticamente, ao fazer uma asserção o locutor valoriza o fato, tentando esconder suas opiniões sobre ele e, portanto, fazendo o fato falar por si 42 O Texto 1 O texto 1 (anexo 1) foi publicado no jornal “Diário do Comércio e Indústria” em 08 de maio de 1986. O autor é jornalista, as características gerais são da empresa Simonsen Associados e o seu título é “Simonsen, crescendo com seus clientes desde 1966.” Para procedermos a nossa análise, buscaremos no texto os locutores e enunciadores que o compõem. O locutor (L1) é jornalista e autor do texto. Sua voz é representada por E1. L2 é o presidente da empresa e fala da perspectiva de E2 (representa o presidente Simonsen cuja voz se confunde com a de sua própria empresa). E3 representa a pessoa Simonsen que lutou para chegar à construção de sua empresa. E4 é a voz dos técnicos da empresa. Os exemplos a seguir são recortes da análise total do texto: Ex. 1 - “Harry Simonsen Júnior, presidente da empresa diz que o ano de 1966, quando a empresa começou a atuar, foi uma espécie de divisor.” L1 - E1: “Harry Simonsen Júnior, presidente da empresa, diz que ...” em que L1 marca claramente que a sua fala posterior pertence a um outro. A perspectiva aqui é do próprio L1 enquanto jornalista que conhece os fatos e os apresenta, contextualizando o tema que pretende tratar. L1 - E2: “...o ano de 1966, quando a empresa começou a atuar, foi uma espécie de divisor.” A perspectiva aqui já muda para a de Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 40-47, jul./dez., 1997. Simonsen, pois ocorre uma companhia e ELE(A) refere-se Na organização da série de comentários que preà empresa propriamente dita, em argumentação, existe a tendem valorizar a empresa. que ambos (presidente e empresa) assumem uma só perspectiquestão dos pronomes Ex 2 - “Antes de criar a va, a de E2. Simonsen, fiz uma boa pesque se relaciona com a Já o EU cuja perspectiva corquisa de mercado para sadistinção dos particiresponde a E3, representa o indiber o que estava faltando e víduo que lutou para conseguir um pantes do enunciado. resolvi criar esta empresa. determinado objetivo. No exemConfesso que fui desencoplo percebe-se como, argumentarajado por muitos, mas setivamente, L2 constrói um processo de valorização guimos em frente e aqui estamos.” de si mesmo e de sua empresa. Ao mostrar-se atraL2 - E3: “Antes de criar a Simonsen... Confesso que fui desencorajado por muitos,...” vés de um EU, ele se apresenta como indivíduo que Neste caso, E3 representa a pessoa que lutou passou por dificuldades para desenvolver com sucesso sua empresa. Ao utilizar NÓS, L2 explicitapara chegar à construção de sua empresa. L2 - E2: “ ...mas seguimos em frente e aqui mente marca a sua posição atual de autoridade estamos”. Já E2 representa o presidente Simon- conferida pelo seu cargo de presidente. A partir daí, sen cuja voz se confunde com a de sua própria ele passa a falar de um lugar discursivo que o desloca da posição do indivíduo para a do representancompanhia. te da empresa em questão. Ex. 3 - “ É por isso que nossos técnicos preA estrutura do exemplo é, então, a seguinte: ferem ser chamados de “Engenheiros do LuAntes da Simonsen MAS Ir em frente cro”, pois é uma equipe que busca resultaEU NÓS dos”. L2 - E4: “É por isso que nossos técnicos preVerificamos, assim, que E2 e E3 são identificaferem ser chamados de “Engenheiros do Lu- dos, neste caso, não só pelo uso dos pronomes, mas cro”, pois é uma equipe que busca resulta- também pelo próprio uso do operador argumentativo dos”. Neste caso, a valorização do trabalho da MAS. A teoria acima comprova a existência das empresa é compartilhado pelos seus técnicos, vozes distintas que identificamos no enunciado. cuja voz se faz ouvir juntamente com a do preDentro do processo argumentativo, analisaremos sidente. ainda as modalidades, que identificamos a partir do No texto como um todo, houve a predominância critério proposto por Cervoni. Encontramos três da voz do enunciador 2, isto vem confirmar que o modalidades deônticas e uma epistêmica. Como delocutário passa de um simples referente a uma exemplo, podemos citar: pessoa fundamental deste discurso, já que o mes“... como devem penetrar no mercado etc.” mo vai ser apr esentado seguindo uma linha (deôntica) argumentativa que visa a persuadir o público quan“...a Simonsen olha para frente para saber o to à importância da empresa em questão. que acontecerá...”(epistêmica) Dentro da organização da argumentação, existe Quando Simonsen usa estas modalidades, seu disainda a questão dos pronomes, que se relaciona com curso adquire o valor de autoritário e sua imagem é a distinção dos participantes do enunciado. Duas de detentor do poder. Portanto, sua argumentação marcas pronominais se evidenciam no texto: EU e não deixa espaço para uma refutação de ordem poNÓS. Vejamos o exemplo: lêmica. “Antes de criar a Simonsen fiz uma boa pesA estrutura do texto, porém, gira em torno do quisa de mercado para saber o que estava uso do que chamamos de modalidades assertivas: faltando e resolvi criar esta empresa.Confesso “Esta empresa é a Simonsen Associados que que fui desencorajado por muitos, mas seguirapidamente passou...” mos em frente e aqui estamos. Para criar uma “O normal de todos os empresários era olhar empresa de serviços como a nossa, acentua, para...” há necessidade de três itens importantes: in“...seus funcionários trabalhavam baseados tenção, recursos e coragem. No nosso caso no conceito...” ficamos com a coragem.” O efeito deste uso é o mesmo que o do anterior, O NÓS neste texto adquire o valor de EU + ou seja, de não permitir a existência de um espaço ELE. EU seria representado pelo presidente da de ordem polêmica. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 40-47, jul./dez., 1997. 43 Pode-se dizer que a autoridalidade de ocorrência de cada A avaliação de um de do Simonsen, caracterizada um dos eventos...” empreendimento, quer pela frequência do aparecimento L1 - E3: é a voz do enunciador de sua voz (como E2), do uso restritivo que tenta se defender de seja existente, quer que faz dos pronomes e das moqualquer possível refutação de alesteja apenas em dalidades, chega mesmo a ter um gum alocutár io. (Mar cado projeto, é sempre uma efeito de apagamento de L1. Isto lingüisticamente pelo operador é, Simonsen é o que traz o coapenas). tarefa subjetiva... nhecimento e a verdade para o Ex. 4 - “...que pode tanto ser texto. A função de L1 fica reduaplicado a empreendimentos zida a ser veículo (como uma espécie de microfoexistentes como estendido, em termos de conne) de L2. ceito, a empreendimentos novos...” L1-E4: é a voz metadiscursiva, representada através de uma oração explicativa, no sentido de que tenta explicitar um enunciado anterior. O texto 2 (anexo 2) foi publicado no “Caderno Argumentativamente, o efeito de sentido que se de Empresas” do jornal “O Estado de São Paulo” obtém, é que L1 procura garantir uma ausência em 23 de maio de 1986. O autor é Simonsen, preside mal-entendidos. dente da empresa de mesmo nome. O título do texDe um modo geral, E1 é a voz predominante no to é “Métodos para avaliação de negócios”. Este texto se diferencia do anterior principalmen- texto. Quanto à questão dos pronomes, encontrate pelo fato de que o jogo polifônico converge para mos no texto estratégias de ocultamento do sujeito a presença de um único locutor (L1), o presidente da enunciação, predominando o uso de nomida Simonsen Associados e autor do texto. Durante nalizações e de voz passiva (cf. Charaudeau). Veo processo de construção do texto, L1 incorpora jamos alguns exemplos: uma série de vozes (enunciadores) que equivalem “A avali ação de um empreendimento...” a diferentes representações que o mesmo faz do (nominalização) tema em questão. A seguir, identificamos as diver“...são aceitos mais ou menos uniformesas ocorrências enunciativas: E1 é a voz do presimente...”(voz passiva) dente. E2 é a voz que poderia estar em desacordo Em relação às modalidades, verificamos que o com E1. E3 é a voz r estr itiva. E4 é a voz texto é constituído por quatro modalidades deônticas metadiscursiva. Observemos exemplos de cada uma e quatro modalidades epistêmicas, sendo que as modessas vozes: dalidades assertivas permeiam todo o discurso. Eis Ex. 1 - “A avaliação de um empreendimento, algumas das modalidades analisadas: quer seja existente, quer esteja apenas em “É importante para a empresa...” (modalidaprojeto, é sempre uma tarefa subjetiva...” de deôntica). L1-E1:é a voz do presidente enquanto conhece“... pode ser considerado de três formas disdor do tema de que trata. Assume um tom didátintas... ” (modalidade epistêmica). tico ao expor seu conhecimento e experiência “...é o que prevalece sobre todos os outros sobre o assunto, e é isto que delineará a orienmétodos...” (modalidade assertiva). tação argumentativa do seu discurso. De acordo com o quadro teórico as modalidades Ex. 2 - “ ...não só em termos do empreendi- assertivas dão ao corpus um valor de verdade asmento como em termos do ambiente onde ele sociada ao saber do locutor. Em decorrência do está colocado.” que foi exposto, pode-se dizer que o discurso, L1-E2: é a voz que poderia estar em desa- como um todo, mostra-se autoritário. cordo com E1, no sentido de apresentar uma idéia de que tudo o que o autor disse antes se daria em um certo nível,e,a partir do uso do NÃO, E1 pode, então, refutar este E 2 potencial, reiterando a posição que defenderá A partir da análise do corpus, foi possível ob(mecanismo ar gumentativo r ecorr ente freservar como as categorias de polifonia e de modaquente no texto). lidade se interrelacionam para compor estruturas Ex. 3 - “Recomendável apenas naqueles ca- argumentativas diferentes. sos em que for possível estimar-se a probabiO texto 1 caracteriza-se pelo fato de que o O Texto 2 III. Considerações Finais 44 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 40-47, jul./dez., 1997. delocutário torna-se locutor 2, que, freqüentemente, se Naargumentação, o uso vozes chegando até a apagar o locutor sobrepõem umas às outras, resuldos pronomes contribui tando disso um movimento 1, que a princípio deveria ser o responsável pelos enunciados. O ato enunciativo polifônico bastante para uma construção perlocucionário resultante deste espesso. da imagem do deslocamento diz respeito a um Este recurso argumentativo presidente como mecanismo argumentativo de L2 associado à questão do uso das para convencer ou persuadir os modalidades neste texto, caractelutador bem sucedido. alocutários quanto ao valor de sua rizando-o como autoritário, cria o empresa. efeito perlocucionário de que a É interessante notar que, embora o locutor 2 empresa citada é digna de valor e eficiente em seus pretenda formar uma opinião positiva sobre a métodos de avaliação e serviços prestados. Simonsen, nem ele nem L1 mencionam o alocutário. A presença do alocutário neste texto também é O que podemos considerar como uma possível men- extremamente implícita. Ela se dá a partir do ção, em nível bas tante implícito é o t ítulo: enunciador 3, o qual assume uma posição defensi“Simonsen, crescendo com seus clientes.” A re- va a uma possível refutação. E3, então, marcaria ferência acima é uma estratégia discursiva para indiretamente a referência ao alocutário. trazer o alocutário para o quadro de clientes. Se tentarmos comparar os dois textos acima, o Dentro da argumentação, o uso dos pronomes que nos chama a atenção é o seguinte: contribui para um efeito perlocucionário de uma a) pode-se dizer que há uma referência, ainda construção da imagem do presidente como lutador que indireta, aos alocutários nos dois textos. No bem sucedido, o que valoriza ainda mais a própria texto 1, isto ocorre no título, sendo feita pelo L1(E1). empresa. A justaposição do presidente e da com- Já no texto 2, a referência se dá através de L1 panhia, feita pelo uso do NÓS, confere uma força (E3); argumentativa a L2, caracterizada pela autoridade b) quanto ao jogo polifônico, ele se dá de forde um cargo empresarial. mas distintas. No texto 1, existe um movimento A autoridade acima se ratifica pelo uso que L2 que leva ora a L1 ora a L2, através de uma faz das modalidades do discurso. Há a predomi- multiplicidade de vozes, as quais darão predominância das modalidades deônticas e das assertivas, nância a L2. No texto 2, este movimento ocorre bem como das epistêmicas. As categorias de aná- no nível dos enunciadores de um único locutor lise que adotamos se entrelaçam de tal forma que (L1); criam uma aparente unidade discursiva cujo efeito c) em termos de modalidades, o uso é semelhande sentido é o de uma valorização indiscutível do te nos dois textos, com ênfase nas assertivas. Esdelocutário. tas modalidades, em geral, caracterizam os textos Já no texto 2 o que ocorre é que o locutor utiliza como autoritários; e, uma estratégia de produzir um discurso que tenta d) com relação ao ato perlocucionário, pode-se apagá-lo enquanto sujeito/utor. Tal apagamento ser- dizer que é igual nos dois textos: o de mostrar uma ve de fachada para abrigar uma multiplicidade de imagem positiva e bem sucedida da empresa. Referências Bibliográficas BEACCO, J. C. (1988). Les roles enonciatifs. In : La rhetorique de l’historien:une analyse linguistique du discours. Berne, Peter Lang, 136-154. BRANDÃO, H. H. N. (1988). Dialogismo e polifonia enunciativa. Análise do Discurso da Propaganda. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. _________________ (1991). A Constituição da Subjetividade no discurso da Propaganda. In: D. E.L.T.A., vol 7, nº 2: 449-462. São Paulo, EDUC. CERVONI, J. (1989). A Enunciação. São Paulo. Ática. CHARAUDEAU, P. (1992). Faits de discours. In: Grammaire du sens et de l’expressions. Paris, Hachette. DUCROT, O. (1987).Esboço de uma Teoria Polifônica da Enunciação. In: O Dizer e o Dito. Campinas, Pontes, 161-218. INDURSKY, F. (1989). Relatório Pinotti: O Jogo Polifônico das Representações no Ato de Argumentar. In: GUIMARÃES, E. ( org.). História e Sentido na Linguagem. Campinas, Pontes, 93-127. MAINGUENEAU, D. (1991). L’énonciation.In: L’Analyse du discours: une introduction aux lectures de l’archive. Paris, Hachette, 107-126. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 40-47, jul./dez., 1997. 45 ANEXO I Simonsen, Crescendo com seus clientes desde 1966 Quando o Brasil se lançou na sua corrida desenvolvimentista, por volta de 1966, faltou suporte e conhecimento para as empresas nas áreas de marketing, administração, planejamento e sistemas. Muitas empresas cresceram e se desorganizaram. Enquanto isso, uma outra empresa começou a trabalhar e a acertar na prestação de serviços às indústrias em planejamento e marketing, especialmente em informações de mercado, distribuição, transporte e tudo o que estivesse diretamente ligado à comercialização de seus produtos e serviços. Esta empresa é a Simonsen Associados que rapidamente passou a ter uma participação meia abrangente, envolvendo-se em consultoria geral, em estudos de organização e métodos, planejamento financeiro, sistemas de informações gerenciais, estudos de viabilidade e de localização, e na coordenação de investimentos. Harry Simonsen Júnior, presidente da empresa diz que, o ano de 1966, quando a empresa começou a atuar, foi uma espécie de divisor. O normal de todos os empresários era olhar para dentro das fábricas achando que uma máquina resolvia qualquer problema. A partir daí, passou-se a ver o mercado como gerador de lucros. “Antes de criar a Simonsen, fiz uma boa pesquisa de mercado para saber o que estava faltando e resolvi criar esta empresa. Confesso que fui desencorajado por muitos, mas seguimos em frente e aqui estamos. Para criar uma empresa de serviços como a nossa, acentua, há necessidade de três itens importantes: intenção, recursos e coragem. No nosso caso ficamos com a coragem”. Nestes 20 anos de atividades, a Simonsen Associados completou um grande número de programas, de ampla variedade: informação de mercado, viabilidade e localização, expansão e diversificação, planejamento financeiro, aquisição e desinvestimento, organização e métodos. Além disso, sua equipe técnica desenvolveu série de modelos de simulação, tanto modelos algorítmicos - muitos dos quais com aplicação em computador - como modelos heurísticos utilizados principalmente na previsão de cenários empresariais. A empresa, informa, vem desenvolvendo continuamente e seus inúmeros clientes utilizam há mais de 15 anos programas integrados de simulação de empreendimentos e operações, através de seus instrumentos financeiros - previsão de vendas, orçamentos de lucros e perdas, de fluxo de caixa, de investimentos e de pessoal, bem como as subsequentes análise de sensitividade e análise de risco - e instrumentos estatísticos de inferência e aferição. Na realidade, a Simonsen, garante o seu presidente, dá toda a ajuda à empresa cliente, buscando detectar os mercados para os quais deveria vender seus produtos, mostrando a demanda, concorrentes, como competir com sucesso, como fazer fluir os produtos, quais produtos e como devem penetrar no mercado etc. O primeiro trabalho realizado pela empresa, informa Simonsen, foi para o BNDE - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico. “Nosso trabalho envolveu a mudança do conceito de análise de avaliação dos empreendimentos. Até então seus funcionários trabalhavam baseados no conceito do lucro e nós mostramos que o segredo estava no fluxo de caixa. O próprio País vive problema de fluxo de caixa. É por isso que nossos técnicos preferem ser chamados de “Engenheiros de Lucro”, pois é uma equipe que busca resultados”. O presidente da Simonsen diz que, a principal finalidade de qualquer forma é a de gerar lucros aos seus acionistas, as outras funções são decorrências, como gerar empregos, pagar impostos etc. Neste período, acentua, a Simonsen está apta adizer que desenvolveu uma série de instrumentos que lhe permite abordar os problemas de mercado para dentro da empresa. Ele garante que seus funcionários atuam totalmente ao contrário dos auditores, pois enquanto eles olham para trás para ver o que foi feito, a Simonsen olha para frente para saber o que acontecerá e como transformá-los em benefícios para os clientes, em todos os segmentos da livre empresa. Um grande mérito da empresa, segundo o seu presidente, pode ser atribuído aos computadores. Explica que antes desses equipamentos eram guardados apenas 50% das informações que passava pela empresa. Depois passou a classificar cerca de 80 a 90% da informação coletada para uma recuperação de 60 a 80%. “Antes nós éramos o maior banco de informação privada do País e continuamos sendo”, garante. Dirce Siqueira - O ESTADO DE SÃO.PAULO, DCI, em 08/05/86 - p. 03 46 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 40-47, jul./dez., 1997. ANEXO 2 Métodos para avaliação de negócios A avaliação de um empreendimento, quer seja existente quer esteja apenas em projeto, é sempre uma tarefa subjetiva; requer que se refinam vários parâmetros e várias grandezas e que se faça isso olhando para o futuro muito mais que para o presente ou para o passado, não só em termos do empreendimento como em termos do ambiente onde ele está colocado. Alguns métodos estão consagrados pela prática e são aceitos mais ou menos uniformemente nos países de livre empresa, pelo menos por empresas e executivos mais experimentados. Nesse ponto, consideração importante deve ser feita. Diz respeito à finalidade da avaliação, se para venda ou para compra de empresas, se para decisão sobre execução de um novo empreendimento ou sobre a descontinuidade de uma operação. Nestes termos a maioria das avaliações utiliza mais de um método, servindo a vários resultados como limites do intervalo de valores. O mais usual dos métodos de avaliação, que pode tanto ser aplicado a empreendimentos existentes como estendido, em termos de conceito, a empreendimentos novos é o do Valor Patrimonial Atual. É importante para a empresa cujo patrimônio contábil é maior que aquele necessário para as operações normais. O valor patrimonial pode ser considerado de três formas distintas: valor patrimonial contábil (basicamente igual ao valor do “não exigível” da empresa. Obviamente apenas com as reservas corretas); valor patrimonial venal (em que o valor do ativo é computado em termos de mercado, para venda, e do qual são deduzidas as exigibilidades); valor patrimonial de reposição (em que os valores dos ativos - prédios, máquinas, equipamentos, veículos, estoques, contas a receber - são computados ao valor de reposição correspondente ao estado em que se encontram). Além do valor patrimonial atual há também o futuro que, embora seja financeiramente mais complexo que o primeiro, pois necessita de projeções futuras das operações, não apresenta benefícios adicionais em termos de precisão. Permite, sim, que o valor do empreendimento seja calculado em termos de valor patrimonial contábil ao fim do período escolhido para análise. Outro método utilizado para a avaliação é o do período de repagamento (Pay-Back), que corresponde ao tempo que o empreendimento necessita para gerar os fundos necessários e amortizar o investimento feito. Calcula-se o período necessário para que o valor dos recursos gerados seja igual ao valor do investimento, em cruzados. Multiplicador de lucro, o quarto dos oito métodos é baseado na capacidade de gerar lucros de um empreendimento. Este método leva em consideração parâmetros estabelecidos nas Bolsas de Valores, para a relação preço-lucro das ações. Valor presente do fluxo de caixa descontado. Este método é utilizado para avaliar um empreendimento em função do valor presente do dinheiro gerado pelo empreendimento. Requer que se defina a taxa de desconto, isto é, a expectativa de remuneração de capital investidor, expectativa esta que é em geral baseada em outras oportunidades alternativas de investimento que existem. Completando os métodos de avaliação encontram-se: taxa interna de retorno; análises de risco e preço do vendedor. O primeiro deles (Taxa interna de Retorno) parte da premissa que o empreendimento é realizado com recursos próprios e tem por objetivo calcular a taxa de desconto que zera o valor presente do fluxo de caixa. Isto é, uma vez fixado o prazo para avaliação, é calculada a taxa de desconto que iguala os saldos de caixa de investimentos. Recomendável apenas naqueles casos em que for possível estimar-se a probabilidade de ocorrência de cada um dos eventos, a análise de risco introduz o cálculo de probabilidade para qualificar o valor de fluxo de caixa descontado e elaborado na forma descrita anteriormente. A análise de risco é feita sob várias formas, com graus de sofisticação bastante viáveis. A abordagem mais simples consiste na atribuição de probabilidades para a ocorrência de eventos que vão estabelecer as grandezas, as quais, por sua vez, determinam a geração de fluxo de caixa e, conseqüentemente, o respectivo valor presente. Como a soma dessas probabilidades é igual a 1, o valor presente do empreendimento sob várias probabilidades será o resultado da soma do fluxo de caixa descontado e multiplicado pela respectiva probabilidade de ocorrência. Por último, o método preço do vendedor, que se baseia na avaliação intuitiva dos donos do empreendimento, no caso de venda. Em muitas das vezes é o que prevalece sobre todos os outros métodos científicos de avaliação. O autor é Harry Simonsen Jr., engenheiro civil e presidente da Simonsen Associados. O ESTADO DE SÃO PAULO - CADERNO DE EMPRESAS, em 23/05/86, p.03 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 40-47, jul./dez., 1997. 47 Para compor algumas passagens sobre a utopia do Quinto Império, mediatizo contrastes de abrangências sincrética, histórica, mítica e artística, entre o Padre Antônio Vieira e Fernando Pessoa. Articulo as influências proféticas em Portugal, expostas pelas idéias de Vieira, que consagram o Império Universal de Cristo. Cotejo esses posicionamentos, através do pensamento e dos registros deixados nas obras e no Espólio de Fernando Pessoa. Entre convergências e divergências propicio um elo unificador sobre dois escritores, que tiveram em comum um talento intelectual dedicado às origens cósmicas de uma divindade universal, plena de valores espirituais e supra-nacionais. Palavras-chave: Quinto Império - Antônio Vieira - Fernando Pessoa In order to compose some passages about the utopia of the Fifth Empire, I unravel contrasts of syncretic, historical, mythological, and artistic amplitude, between Father Antônio Vieira and Fernando Pessoa. I articulate the prophetic influences in Portugal, as exposed by the ideas of Vieira, which consecrate the Universal Empire of Christ. I appraise these perspectives by way of the ideas and notes left in the works and in the Bequest of Fernando Pessoa. Among convergences and divergences I point out a link between the two writers, who had in common an intellectual talent dedicated to the cosmic origins of a universal divinity, full of spiritual and supra national values. Key-Words: Fifth Empire -Antônio Vieira - Fernando Pessoa 48 * Josenia Marisa Chisini é professora de Literatura Portuguesa UFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - Brasil. O QUINTO IMPÉRIO CONFLUÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS ENTRE FERNANDO PESSOA E O PADRE ANTÔNIO VIEIRA Josenia Marisa Chisini * O tema que desenvolvo neste ensaio é vasto e inesgotável, porque transcorre pelas peculiaridades subjetivas da Nação Portuguesa, que vivenciou uma multiculturaneidade histórica, religiosa, mítica e artística. Recorro a algumas sinalizações contrastivas sobre a dimensão daquilo que seja nominado de Quinto Império. Demonstro a confluência de idéias utópicas que estiveram impregnadas de espiritualidade, patriotismo, motivos do engenho intelectual universalizante e também artístico de dois inigualáveis escritores: Fernando Pessoa e Padre Antônio Vieira. Para ilustrar, coloco as palavras de admiração de Fernando Pessoa ao Padre Antônio Vieira, onde aparece a seguinte declaração, indicando o contexto das trovas de Bandarra: “As Profecias desse sapateiro de Trancoso, amou-as e as comentou o maior artista da nossa terra, o Grão Mestre, que foi da Ordem Templária de Portugal” (Joel. Serrão. Org. Fernando Pessoa Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional, Ática, 1979, p. 179). Padre Vieira estréia suas preleções religiosas e proféticas na Capela Real, em 1642, demonstrando como Portugal ligava-se a uma força divina, cuja potencialidade conduzia as marcas dos textos proféticos da Bíblia. Ele comunica, que era desde a Batalha de Ourique, que os padres prognosticavam um futuro, no qual adviria um momento de Restau- 1 ração para o ano de 1640. A convicção sobre essas idéias foi decisiva para que ele elaborasse a obra História do Futuro, onde intencionalmente legitima a voz das profecias, nos destinos e nas esperanças de Portugal. Na obra vê-se como o projeto do Quinto Império propicia um alargamento difusor e também repleto de sentimentos de nacionalidade, que ascendem o espírito religioso lusitano. Tem-se a oportunidade de verificar como o exercício evangelizador é argumentativo, ilustrativo, exposto por uma caudalosa linguagem interpretativa, que dá acesso às preconizações judaicas, metaforicamente transferidas ao catolicismo. Vieira aproveita essas ocasiões para convocar o leitor, alertando-o para o tipo de dificuldade que a Igreja Católica, as Instituições clericais vinham enfrentando. Diante desse intuito, ele alerta para o fato de que - os padres não haviam entendido o verdadeiro sentido das profecias, sobretudo, porque não sabiam acompanhar a evolução dos tempos.1 Lembro, que mesmo dentro do espírito religioso, o Padre Vieira não poupou críticas à sua Instituição, aos nobres, ao clero, e aqueles que detinham o poder financeiro. Ao mesmo tempo defendeu os Cristãos-novos, principalmente os judeus convertidos ao catolicismo, já que estes faziam parte do povo e da historicidade de Portugal. Nesse contexto recorro ao trabalho profícuo do professor Alfredo Bosi, VIEIRA, Antônio. História do Futuro. São Paulo: Edições e Publicações Brasil, s.d., pp. 202-217. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997. 49 com o seu ensaio - Vieira. Ou a vantamentos feitos por Isabel Segundo Bosi, Cruz da Desigualdade 2 onde Buescu, colocados no texto - Vínpara Vieira a lei de aparecem algumas informações culos da Memória: Ourique e a Cristo era o sobre o projeto político, e os conFundação do Reino. A pesquisa ceitos desenvolvidos sobre os encontra-se obra organizada por instrumento legislador “Três Estados”. A construção reYvette K. Centeno - Portugal que promoveria a flexiva revela quais eram os comMitos Revisitados 3. Neste trabatransformação e o promissos, os deveres da nobrelho a pesquisadora salienta, que a za, do clero e do povo, cujas claspromessa de um ‘‘Império Crisalcance de um ses sociais deveriam se entender tão Universal’’ seria encarnado "re-nascimento". para poderem elevar a dignidade por um descendente do primeiro da nação portuguesa. Vieira arRei de Portugal e esse destino gumenta que os três Estados, meshavia sido sinalizado pelo Padre mo sendo desiguais, tinham posVieira. Além disso, encontram-se sibilidades de diminuir e transformar as injustiças informações preciosas sobre a descoberta do “Jusociais, cuja finalidade produziria um refinamento ramento”, a avaliação das análises sobre a fidelidacultural à raça portuguesa, e aos domínios coloni- de do referido documento, uma mensagem, que por ais. Por conseqüência, a lei de Cristo era o instru- si traz um valor histórico para os registros da cultumento legislador que promoveria a transformação, ra portuguesa. e o alcance de um “Re-Nascimento”. Essa edifiFernando Pessoa deixou vários apontamentos que cação continha ressonâncias messiânicas, que emol- tratam sobre o Quinto Império, Bandarra e o duravam uma herança de “Reis Benfeitores”. De Sebastianismo. As informações estão ligadas à sua acordo com a prática da fé cristã ocorreria uma ade- própria inciação espiritual, aos ideais de nacionaliquada “Restauração Política em Portugal”. dade, aos temas ocultistas, os quais heraldicamente A preocupação política de Vieira perpassa por estão simbolizados por uma linguagem hermética. uma forte influência precursora dos textos bíblicos, Em relação ao Padre Vieira, há uma variedade de fazendo com que ele se apropriasse da história do declarações, tanto na obra poética como em prosa. povo judeu, das expectativas da vinda do Messias. Um momento primordial é aquele que aparece no As elucubrações interagem similarmente com a his- Livro do Desassossego, no qual Vieira é valiosatória, com a cultura do povo português. As profeci- mente designado através do emblema de “Meu as e seus envolvimentos simbólicos recaem cons- Mestre”. Certamente essa imagem idealizadora intantemente sobre os profetas Daniel, Isaías, fluenciou as conotações místicas, míticas de Jeremias, nos Evangelhos de São João, São Mateus Fernando Pessoa4, dentro do seu pensamento. e nas cartas de São Paulo. Estas passagens são A idéia e o desenvolvimento das significâncias reinterpretadas na História do Futuro, onde Vieira sobre o “Grande Império” têm uma forte exposição argumenta que a nacionalidade lusa presentificou-se na História do Futuro, na qual desígnios profétiquando houve a intervenção divina de Cristo a Afon- cos trazem uma comunicação cifrada, cheia de so Henriques, na Batalha de Ourique. Esse sinal simbologias, que foram encobertas pelo tempo e pelo demarcava vivamente a ação divinizante, compro- seus efeitos polissêmicos. Para essa demonstração vada no documento do ‘‘Juramento’’, o qual sobre- evolutiva e progressiva, Vieira retomou a figura do vivera e havia sido motivo de várias análises. O Infante D. Henrique, para indicar a origem do desencontro demiúrgico revela-se com o aparecimento tino do Grande Império. Nesse curso, o Navegador de Cristo, oferecendo a garantia de êxito para Por- também servia de exemplo, porque tinha sido um tugal, na Batalha de Ourique, cuja concordância iria ser preparado cientificamente e moralmente para ser preservada até o desenrolar da 16ª geração de dar continuidade ao espírito religioso, empreendereis, ligadas à Casa de Avis. dor do desejo de progresso humanista. Em decorPara revitalizar os temas míticos e místicos é rência desses fatos, Portugal tivera oportunidade de oportuno lembrar os elucidativos e detalhados le- adquirir os conhecimentos náuticos e centrar-se no 2 BOSI, Alfredo, Revista CEBRAP. São Paulo: 1989, v.25. pp. 28-49. BUESCU, Ana Isabel.Vínculos da Memória: Ourique e a Fundação do Reino. In: Portugal: Mitos Revisitados. Lisboa: Edições Salamandra, 1993, pp. 9-50 et pp. 18,19,20. Recomendamos leitura de Antônio Vieira no livro Ante Primeiro da História do Futuro. In: José Van Den Besselaar. Padre Antônio Vieira – Livro Ante Primeiro da História do Futuro. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1983, Cap. 5, pp. 51-52. 4 PESSOA, Fernando, Livro do Desassossego. São Paulo: Editora Unicamp, 1994, v.2, p. 31. 3 50 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997. Ciclo das Grandes Descobertas. crata e régia, transmitida desde Vieira traz a voz Interessante são as ilações metaAfonso Henriques 7, que havia profética de Isaías e fóricas, históricas sobre o Cabo concretizado a união de dois esdela retira situações Bojador, indicando um desafio ulpaços: o terreno e o espiritual. O tramarino, científico e espiritual, suporte textual das profecias de exemplares para diante de um mundo desconheciDaniel e Esequiel permitia com impulsionar a fé no mundo. do. É no Livro Ante Primeiro5 de que Vieira demonstrasse o QuinPortugal é o destinatário to Império sendo o sucessor do História do Futuro, que Vieira abre seu pensamento de forma Império Romano. No curso das dessa propagação mítica, explicando que a primeira referências simbólico-judaicas aos povos da América pessoa a ultrapassar aquele espaestão as impregnações cabalíse do Oriente. ço geográfico tinha sido o portuticas, que incidirão sobre o ano guês Gilianes. E se esse Cabo, era de 1666, data ansiada por Vieira, outrora denominado de “Não”, era visto que nela ocorreria a suposporque o mesmo envolvia-se em sombras, num ne- ta “fundação do Reinado Universal de Cristo”8. voeiro, que serviam de exemplo desafiador para uma As profecias de São João, no texto do Apocareflexão ao povo português, que agora estava sen- lipse9 trazem uma base para Vieira instalasse utodo convocado para uma missão. picamente as “Esperanças de Portugal”, movidas Eu aproveito o tema acima para associá-lo e pelo desejo do “Quinto Império do Mundo”, um “Imaproximá-lo com às idéias de Antônio Vieira e à pério Esperado”. “Todos os reinos deveriam se unir poeticidade dos textos de Mensagem e Quinto Im- sob um cetro, e os homens obedeceriam a uma supério6 de Fernando Pessoa. As palavras nos res- prema cabeça e todas as coroas teriam um só pectivos poemas contextualizam um Portugal sob ne- diadema, a Cruz de Cristo”. As declarações fazem voeiro, mas que deveria superar as dificuldades e parte tanto nos prognósticos do Livro Ante Primeiunir-se num desejo de concitar uma melhoria políti- ro, nos capítulos segundo e terceiro, como também ca, um aprimoramento espiritual, aludidas nestas pa- anteriormente já tinham sido proferidas no Sermão lavras: “É a Hora!/ Valete, Fratres”; “Convoco to- dos Bons Anos em 1642, cujas palavras reforçados sem saber/ (É a Hora!) aqui!” Esses momentos vam a idéia da Restauração, sendo uma consetrazem a influência da marca do “Mestre”, daquele quência de ordem divina e messiânica. Vieira do Livro Ante Primeiro, capítulo 10, que apeA intencionalidade em comprovar a eficácia das la para o povo português, lembrando os episó- profecias para que elas servissem aos objetivos dios da travessia do ‘‘Cabo Não’’, ao utilizar a se- difusores, faz com que Vieira proponha a utopia do guinte convocatória - “porque chegou a hora”. Es- Império de Cristo, ou seja o Quinto Império, com a tas palavras tinham a capacidade de promover um participação do clero na vida nacional e na expan“Re-Nascimento”, uma Restauração político- são da fé cristã. Essa proposição aparece de forma religiosa. muito ilustrativa e ao mesmo tempo traz um sentido Vieira traz a voz profética de Isaías e dela retira ocultista secreto, quando Vieira fala sobre os “Casituações exemplares para impulsionar a difusão da valeiros de Cristo”. Essa passagem textual pode ser fé no mundo. Portugal aparece como o destinatário constatada nos fragmentos da seguinte citação: dessa propagação aos povos da América e do Ori“Os portugueses foram aqueles cavaleiros a quem ente, cuja fé cristã seria levada à China, ao Japão e Cristo abriu o primeiro caminho pelo mar ( ... ) ao Brasil, através do envio de religiosos que tivespisaram as ondas do mar, como os cavalos pisasem “grandes virtudes”. ram o lodo da terra. ( ... ) As naus dos portugueEssas prospecções e conclamações fazem com ses, aquelas carroças que levaram pelo mar a fé e a salvação: ( ... ) a primeira empresa e vitória desque a utopia do Império seja de uma herança aristo- 5 BESSELAAR, Van Den. Padre Antonio Vieira – Livro Ante Primeiro da História do Futuro. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1983, p. 108, cap. 10, observa-se: O Livro Ante Primeiro é um texto introdutório à História do Futuro, composto em 12 capítulos, sendo publicado pela primeira vez, em 1718. 6 PESSOA. Fernando. Obra Poética. In: Mensagem, Quinto Império. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, pp. 89 et 97. 7 VIEIRA, Antônio. História do Futuro. São Paulo: Edições e Publicações Brasil, s.d., pp. 240-241. 8 CIDADE, Hernani. Padre Antônio Vieira - A Obra e o Homem. Lisboa: Editora Arcádia, s. d., p. 144. Et Lucio Azevedo. A Evolução do Sebastianismo. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1947, p. 89. 9 VIEIRA, Antônio. A História do Futuro. São Paulo: Edições Publicações Brasil, s.d., pp. 49, 53-54. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997. 51 ta Cavalaria de Cristo foi a sujeição do mesmo mar bravo o maior ministro do Evangelho se embarcou nas carroças desta Cavalaria ( ... ) foi o grande Apóstolo da Índia São Francisco Xavier, ele foi cavaleiro da mesma Ordem. ( ... ) O mesmo santo apóstolo apareceu vestido com a Cruz vermelha no peito, como insigne cavaleiro desta santa cavalaria ( ... ) da Ordem dos Cavaleiros de Cristo de Portugal” (Vieira. História do Futuro, pp.264,265). Nas expectativas messiânicas e proféticas também estava a visão medieval teocêntica, porém diluída nas canalizações dos princípios ecumênicos, na modernidade política e no avanço tecnológico. Essas circunstâncias dialogavam entre idéias contraditórias, silogismos organizados por uma linguagem ornamental, que não desprezava a herança e a tradição cultural, principalmente a de influência judaica. A convicção da força messiânica da figura de Jesus Cristo sobreleva-se e transporta-se na fundação da Igreja Católica, dando a esta poderes sobrenaturais, mesmo quando Vieira critica profundamente os jesuítas. A valoração de uma ideologia política, religiosa e monárquica expande-se pelo desejo de colocar ações globalizantes no mundo daquela época. Portanto, a nacionalidade de Vieira é vista pela supranacionalidade, na qual Deus engloba a espiritualidade do ser humano, fazendo parte de um supra sistema civilizacional, a Monarquia Universal do Reino de Cristo. Observo que Vieira acreditava na vinda de um novo messias, no renascimento de Cristo, porém na concepção do Encoberto, que se revelava exemplarmente na crença da ressurreição de D. João IV, ou ainda, da incorporação de D. Sebastião em outros reis. Nisso agregam-se os conhecimentos provindos de uma sabedoria secreta, ou da Teosofia, que assumem proporções ocultistas. Creio, ser este um grande caminho de averiguações, para que se possa compreender o Padre Vieira dentro de um contexto espiritual, ideológico de maior abrangência. Após essas incursões, quero agora deter-me nas influências e entendimentos de Fernando Pessoa, junto ao tema sobre o Quinto Império. Certamente são nos documentos reunidos no Espólio, que podemos melhor verificar o modo pelo qual houve essa determinada dedicação, valorizando a nacionalidade lusa e o seu envolvimento cultural. Como eu ex10 52 pus no início desta minha análise, é preciso levar-se em conta o conjunto das manifestações de ordem hermético-ocultistas, as idéias estéticas, filosóficas e políticosociais, para que se possa avaliar com proficiência as informações deixadas por Pessoa. Quero esclarecer e também transmitir o seguinte depoimento: - Foram nas pesquisas efetivadas sobre os tipos de cânones e fontes influenciadoras da estética sensacionista, que encontrei o modo extremamente singular das significâncias intelectuais, espirituais e ocultistas de Fernando Pessoa. Dentre essa busca, deti-me nas questões míticas nacionais, na compreensão sobre Deus, sobre as religiões e a arte. De acordo com algumas premissas, reservadas no meu trabalho, eu fui compreendendo, percebendo que, o entendimento sobre Pessoa dependia da minha entrega às investigações nos campos culturais, porque neles expandia-se uma invasão profunda da personalidade e das idéias originais desse escritor. Nos aspectos científicos utilizei a Ciência da Literatura, tomei a linha metodológica comparatista e com isso verifiquei o vigor da construção da obra e da vida de Pessoa, constatando ligações constantes com o conhecimento da Sabedoria Teosófica, desenvolvida em várias civilizações e presentificadas nos textos, tanto poéticos como em prosa de Fernando Pessoa, especialmente nos fragmentos do Espólio. Diante desse enorme desafio e com algumas hipóteses em mente, direcionei-me às procedências multiculturais, que desaguávam, nos aspectos civilizatórios, cosmogônicos e transcendentais. Como exemplo do que referendei acima, estão as trovas de Bandarra, apreciadas sob o ângulo do Quinto Império, e que são revisitadas por Fernando Pessoa, quando verifica a existência de uma dicotomia mental, expostas em duas forças: do lado esquerdo, a presença da Sabedoria da Ciência, o raciocínio, a especulação intelectual. No lado direito, o posicionamento do conhecimento oculto, a intuição, a especulação mística e a kabalística. Dentre essas forças haveria um só deus conhecido, uma paz para todo mundo e a existência de uma só fraternidade, contudo quando isso iria acontecer, era imprevisível10. É também rentável se observar, junto a essas declarações, a posição sobre a compreensão de Deus, Vieira acreditava na vinda de um novo messias, no renascimento de Cristo, porém na concepção do Enconberto, que se revelava na crença da ressureição e incorporação de reis. SERRÃO, Joel et alii, Fernando Pessoa, Sobre Potugual - Introdução ao Problema Nacional. Lisboa: Ática, 1979, pp. 239, 146. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997. que para Pessoa fica exposta nas seguintes palavras: “o mundo nosso não [é] o único, porque [há] outros universos, como tantos outros deuses e isso torna-se um mistério de mais alto ocultismo”. Os fragmentos do Espólio demonstram sobre esse tema as seguintes questões sobre as profecias, cujas circunstacialidades são bastante esclarecedoras. de uma evolução européia, diante das dimensões materiais, intelectuais e espirituais e sob três ordens: espacial, temporal e intelectual. A prolepse visionária de Pessoa amplia-se e indica o término do Quinto Império através da dissolução de nossa civilização e que a mesma ocorreria fatalmente naquilo que era denominado por ‘‘Fim do Mundo’’, com a vitória cristã, porém o fim do mundo também significava a “morte da religião católica”. As observâncias de Pessoa entram em comum acordo com as profecias de Nostradamus, que previam a extinção cristã da forma romana-católica para o século XX12. Sobre a veracidade das profecias de Nostradamus, Pessoa afirma que elas tinham sido imparciais, como também as de Bandarra e de São Francisco de Paula, pois este havia previsto que surgiria uma nova Religião13. Esclarece, ainda, que as interpretações sobre as profecias de Daniel, no sonho de Nabucodonosor, elas não correspondiam e não estavam corretas às associações culturais com Portugal, visto que, a tradição hebraica e a divisão dos impérios, apresentada nesses sonhos, indicavam circunstancialidades diferentes, e por isso o Quinto Império aparecia de forma duvidosa. Com essas demonstrações, conclui-se que Pessoa não partilhava das mesmas interpretações proféticas e religiosas do Padre Antônio Vieira, sobretudo, quando demonstra em várias ocasiões, que o Quinto Império seria uma decorrência do progresso cultural de Portugal. Para isso a nação deveria se preparar para esse cultivo e se caso isso viesse acontecer, não poderia sê-lo de maneira estéril, movida ao ‘‘universalismo humanitário” e nem com a “brutalidade de um nacionalismo extra-cultural’’. Mas sim, ele deveria acontecer com a dimensão de uma fraternidade universal semelhante à doutrina social, íntima dos Rosa Cruz”14. Fernando Pessoa ao interpretar e analisar o corpo das “altas profecias’’, expostas pelas Trovas de Bandarra, em que estão as sugeridoras alusões a D. João IV, manifestou uma posição contrária a de Vieira, porque entendeu que a linguagem das trovas não poderia ser tomada como sendo uma prova efi- Para Pessoa, o mundo nosso não é o único, porque há outros universos, como tantos outros deuses e isso torna-se um mistério de mais alto ocultismo. ‘‘( ... )A profecia é a visão dos acontecimentos na sua forma corpórea. [Ela] pode às vezes (ou sempre) aplicar-se a várias cousas. Isto não invalida a profecia. É que vários acontecimentos são um acontecimento só, isto é, um só ente sob várias formas (Serrão. Opus Cit, p. 196)’’. Para Fernando Pessoa a divisão histórica dos cinco impérios, nos quais incluía-se o quinto, através do Império Hebreu, era uma suposição ingênua, porque essa divisão não se concretizava. Haveria-se de compreender os impérios a partir da construção de “várias coisas e influências”. Junto a esses conteúdos, também deve-se levar em conta a inclinação constante de Pessoa na sua construção transcendental panteísta, bastante trabalhada intelectualmente nas referências dos textos sobre arte, filosofia e cultura. Pessoa demonstra a sua concepção religiosa, utilizando a filosofia pagã, dentro das quatro grega e fundira isso a outros povos formadores; o Império Cristão com a inserção de cultura grega, que ainda se agregava aos elementos de toda ordem oriental, incluindo o hebraico. Por último aparece o Império Inglês, distribuído por toda a terra, e este trazia um resultado provindo dos outros três impérios. Por conseqüência dessa progressão, o Quinto Império fundiria os quatro impérios antecedentes 11. Como pode-se constatar, Pessoa desejava a universalização da civilização européia, de modo que o objetivo do Quinto Império seria congregar uma só religião, em uma só situação espiritual, mas que ela desse conta de um caráter ecumênico, holístico, pois esta proposta recaía nos conhecimentos de procedência Teosófica. Ressalto que essa religiosidade ecumênica não era do cristianismo católico, mas sim de um cristianismo de origem sincrética e de influência cosmogânica. Essa decorrência viria por meio 11 Idem, ibidem. pp. 148-149. Idem. ibidem. 185-186; 241-242. 13 Idem, ibidem. pp. 150-151. 14 Idem, ibidem. p. 239. 12 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997. 53 crista’, a hebraica. No esquema caz da inclusão de D. João IV. Na Vieira dessacralizou a profético, em que este conceito verdade, essa passagem deveria Teologia de sua aparece, determina-se a existênser entendida dentro de uma cercia de cinco impérios, até aquilo a Instituição, que só ta época histórica, na qual Portuque simbolicamente os profetas gal, ligava-se ao surgimento do admite a ressureição chamam de ‘fim do mundo’. (...) “Primeiro Perigo do Norte”. As isto é o fim do conceito que têm para o Filho de Deus, palavras pessoanas deixam uma do mundo (...), o fim do ciclo psírestando aos homens a quico-ordinariamente um ciclo relacuna indagativa, pois o escritor verifica que naquela época da ligioso a que pertencem os profepromessa de uma Restauração, acontecera o aparetas]. (...) Usado por um cristão futura ressureição. cimento de “ondas de misticismo” serve instintivamente [ para ] designar o fim da religião cristã’’ e desse modo teriam ocorrido na (Serrão. Opus. Cit., 1979, p.241). História Cultural de Portugal três grandes falsos encobertos. Eles Além dessas informações é teriam surgido através de circunstâncias sociais obs- importante manter-se esse conceito costurado às curas, as quais trouxeram D. João IV, o Marquês inter-relações dos processos civilizatórios, porque de Pombal e Sidónio [ Pais ]15. eles são constantemente levados em consideração Eu não poderia deixar de comentar alguma coisa por Fernando Pessoa, que os divide em três estádisobre a interpretação e a influência do Sebastianismo os: o imperialismo de domínio, o de expansão e o da em Pessoa, todavia sabemos que ele ficou bem lem- cultura, este como consequência do segundo. As alubrado por Antônio Quadros, na sua obra Poesia e sões condicionam-se ao período que inicia-se com a Filosofia do Mito Sebastianista. Este escritor tam- Renascença, que trouxe o imperialismo de domínio bém utiliza os apontamentos do Espólio e conclui e o do século XIX, o qual desenvolveu-se dentro de que a posição de Pessoa referente ao Sebastianismo uma ação modelada pela expansão. Segundo os esela é teosófica e mitosófica16. Observa-se que o clarecimentos do escritor, é a partir desse momento “Grande Regresso” constrói-se num contexto, onde em diante que surge a formação do imperialismo da D. Sebastião é visto por Fernando Pessoa como uma cultura, no qual Portugal possuía condições de sinalização, advinda do desejo de se obter a unidade desenvolver-se como uma grande potência espirituIbérica, através de Portugal. Este acontecimento al. Essa vocação ocorrera desde as descobertas ocorreria a partir da retirada dos elementos estran- marítimas, que haviam sido um ato cultural, sobregeiros, tais como o Cristianismo Católico, inimigo tudo de criação civilizacional. Segundo Pessoa a radical da Pátria. Após essa passagem é que come- própria idéia de descoberta gerara um processo de çaria despontar o Quinto Império, o qual permane- busca, no desejo de encontro com o desconhecido. ceria oculto até o princípio do século XX. Fernando Podemos obter maiores detalhes, em outros esPessoa transmite outras informações, dizendo que critos, nos quais o Quinto Império é demonstrado o movimento “em volta de uma figura nacional’’17 como fruto de uma imanência espiritual, origem dos tinha um sentido simbólico. Portanto D. Sebastião prognósticos de profetas bíblicos. Fernando Pessoa representava Portugal e era um fenômeno que fa- declara que em Portugal as profecias estavam funzia parte da assombrosa sociedade secreta, que cada dadas nas trovas de Bandarra e nas quadras de vez mais se ocultava e guardava religiosamente esse Nostradamus. Como resultado, o futuro de Portugal segredo, no qual estava o sentido simbólico portu- condicionava-se em “sermos tudo”.18 guês. Frente ao exposto, conclui-se que Vieira conduA compreensão conceitual sobre o Quinto Impé- ziu uma intencionalidade espiritual aproximada a de rio aparece nos registros do Espólio, que trazem as Fernando Pessoa. Porém a utilização dos instrumenseguintes anotações: tos ideológicos, religiosos e a sua própria formação ‘‘O conceito de ‘quinto império’ é antigo na pro- clerical o tornaram diametralmente diferente de Pesfética cristã e pré-cristã, entendendo por ‘pré- soa, sobretudo, porque esses escritores ocuparam 15 Idem, ibidem. pp. 206-207. QUADROS, Antônio. Poesia e Filolofia do Mito Sebastianista. Lisboa: Guimarães e Cia. Editores, 1982. v.1. p. 117. 17 SERRÃO, Joel et alii. Fernando Pessoa, Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Lisboa: Ática, pp. 190-191. 18 PESSOA, Fernando. Obra Em Prosa. In: O Futuro de Portugal, O Sensacionismo, Idéias Filosóficas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1990, pp. 332,334; 424,454; 543,576. 16 54 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997. circunstancialidades históricas culcos e secretos, surge uma abissal turais e artísticas diversas. Vieira impossibilidade investigitiva e O mito do "Encoberto" desejou o “Império Universal de interpretativa, a mesma que levou trazia uma aparente Cristo”, exercendo uma potenciaVieira à Inquisição, ao ter que enheresia, porque lidade temporal e espiritual, que frentar os dogmatismos da Igreja exigia um novo Estado para a IgreCatólica. Além disso, ele desdimensionava "atos de ja. Ao mesmo tempo, vivenciou sacralizou a Teologia de sua Insreaparecimento", nos uma complexa situação, diante da tituição, que só admite a ressurquais fundia-se o corpo reição do corpo e da alma para o Igreja Católica, a Monarquia, que confrontavam-se com a expansão Filho de Deus, Jesus Cristo, na recom o espírito, financeira judaica, impondo uma alidade o que resta é uma prodignificados na alma. conversão religiosa aos judeus. messa de uma futura ressurreiPara enfrentar o Tribunal do Sanção para os homens. Também, to Ofício, Vieira produziu para a deve-se levar em consideração a sua própria defesa a peça textual jurídica, Repre- força parenética daquele jesuíta, sobre as profecisentações. Nesta pode-se apreciar a agudeza inte- as, os evangelhos, pois estes textos tinham sido lectual, as posições corajosas e argumentativas des- reinterpretados mediante à tradição hebraica, que se jesuíta, declarando que “o mundo se converteria continha elementos, significâncias transferíveis à Peuniversalmente cristão e toda essa ( ... ) proprie- nínsula Ibérica, mais especificamente aos territóridade se chamaria “Reino e Império Cristão”19. os, de Portugal. A divergência fundamental entre os dois escriO mito do “Encoberto” trazia uma aparente hetores apresenta-se através do uso dos meios pelos resia, porque dimensionava ‘‘atos de reaparequais se realizaria a utopia da imperialização. Para cimento”,nos quais fundia-se a matéria, o corpo com Pessoa, as vias de acesso seriam as reflexões crí- o espírito, digníficados na alma. Um exemplo foram ticas culturais, a composição religiosa sincrética, os textos produzidos em torno de D. João IV e soque tinham possibilidades de revigorar a tradição bre outros reis, que Vieira elaborou, afirmando o seu pagã-panteísta, precursora das multiplicidades re- posicionamento sobrenatural e profético, isso não ligiosas e do conhecimento adquirido pelas civili- compatível aos dogmas e a teologia da Igreja Catózações. O Quinto Império seria construído medi- lica. ante o caminho individual, altamente iniciático, o Conclui-se que há um elo de aproximações entre qual reverteria numa nação próspera, engajada ao os dois escritores aqui estudados, porque neles apauniversal. Esse intuito privilegiava um encontro sob rece a crença da imortalidade da alma, produzindo três dimensões: espacial, temporal e espititual. Para uma fenomenologia transcendental, cujos desdobraessa busca, a humanidade, especialmente Portu- mentos ocorrem nas dimensões desconhecidas - um gal, estava convocado devido à sua vocação místi- laço com o além, com outras vidas, que se comunica e secular, a conviver numa mentalidade incor- cam após a morte.20 porada por ações holísticas, emanadas pelo O que chama a atenção são as palavras de aprofundamento da consciência. Pessoa acredita- Fernando Pessoa, quando referiu-se a Vieira, dizendo va na imortalidade da alma, porque ela tinha o po- que ele era o “Grão-Mestre da Ordem Templária der de desaparecer e reaparecer, evocando-se em de Portugal”. Essa afirmação não é gratuita, visto outras formas e trocas 20. que as Ordens Secretas trazem essas informações. A postura sobrenaturalista, aparentemente ab- Na verdade elas é que terão as melhores explicasurda de Vieira, frente à ressurreição de D. João ções e revelações para que possamos obter as oriIV, conferindo a este rei o poder da transfiguração gens místicas, cheias de mistérios dos reis, das crensebastianista, deve ser entendida sob o prisma da ças e da cultura de Portugal. Tanto nos textos de Sabedoria Teosófica, que possui a “Arca do Conhe- Vieira como nos de Pessoa há esses comprometicimento do Universo”, emblemas traduzidos pelas mentos esotéricos, herméticos, principalmente aquecivilizações egípcias e judaica. Devido à ignorância les associados à utopia universalista de uma cultura da humanidade sobre esses conhecimentos arcai- espiritual, denominada de Quinto Império. 19 CIDADE, Hernani. Prefácio. Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957, pp. XV et pp 222,310. v.2. 20 SERRÃO, Joel et alii. Fernando Pessoa, Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Lisboa: Ática, 1979, p. 196. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997. 55 A comparação parece ser uma das figuras de linguagem mais utilizadas pelo sertanejo brasileiro. Este ensaio comenta as formas de comparação utilizadas por Guimarães Rosa em Tutaméia, considerado pelos críticos como de importância capital na interpretação da obra do escritor mineiro. Palavras chave: Literatura brasileira, teoria literária, crítica literária. The comparison seems to be one of the most common figures of language used by the brazilian “sertanejo”. This essay comments the ways Guimarães Rosa uses the comparison in Tutaméia, seen by his critiques as of crucial importance for the interpretation of his work. Key-words: Brazilian literature, literary theory, literary critique 56 * Luiza Mello Vasconcelos é professora do Curso de Letras no Centro Universitário da Grande Dourados/ UNIGRAN. Mestre em Lingüística pela Universidade Católica do Paraná GUIMARÃES ROSA TUTAMÉIA Luiza Mello Vasconcelos * Literatura é arte ; assim como as demais formas de arte, possui seu meio próprio de expressão. A palavra é para a Literatura o que são as cores para a pintura e os sons para a música. O escritor utiliza os recursos lingüísticos de que dispõe de maneira a expressar seus sentimentos, da melhor maneira possível. Guimarães Rosa, segundo Mary Daniels (1968), chama a atenção para o valor inerente e o potencial da palavra. As palavras todas de Rosa em Tutaméia são medidas e pesadas, postas no seu exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o livro sem desequilibrar o conjunto. (Ronái, apud Daniels, 1968) Muito já se falou sobre a linguagem do escritor mineiro. O presente artigo tem intenções modestas e não pretende ser original. Procura apenas relacionar as formas de comparação utilizadas por ele em Tutaméia com algumas considerações sobre linguagem, Guimarães Rosa e sua obra. Para muitos críticos, a obra de Guimarães Rosa é obra de artífice, de artesanato incomparável, tão consciente, que é impossível conceber que alguém faça aquilo sem uma total adesão às tarefas que executa. Peregrino Jr., também citado por Daniels (1968), é um deles: É o temperamento do relojoeiro. Segundo Wilson Martins (apud Daniels, 1968), Guimarães Rosa não rompe com a tradição literária de seus país, nem seria grande escritor se o fizesse: Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 56-59, jul./dez., 1997. ... sua obra define-se como a tentativa, não raro bem sucedida e sempre, de qualquer forma, extremamente original, de superá-la e prolongá-la pela inclusão num processo espiritual de outra ordem. (...) Parece um erro sobrepor o que há de universal e estético na obra de Rosa àquilo que nela existe de regional e sociológico. (...) Dois caracteres de estrutura histórica a distinguem: por um lado, a renovação do regionalismo e, por outro lado, a fixação literária da linguagem rural. (...) Seria preciso definir a arte de Guimarães Rosa como uma arte “sintática”; mesmo no plano romanesco, as técnicas que empregou são exatamente as mesmas que condicionaram a invenção do seu estilo enquanto linguagem. É natural que haja, por um lado, relações estruturais sobre a intriga, os personagens e o meio, e, por outro lado, entre essa arquitetura e a sua natureza de criação puramente estética. Ainda Daniels (1968) considera Guimarães Rosa regionalista, referindo-se não só à sua representação simpática e viva dos tipos regionais de Minas mas também à penetração mais profunda nos problemas perenes da personalidade humana tal como estes se revelam nos homens, mulheres e meninos simples que habitam o Sertão, refletindo a influência desse fator na sua vida. Tutaméia foi o último livro de Guimarães Rosa a ser editado em vida. É considerado pela crítica como de importância capital na interpretação da obra de Rosa devido às confidências que nele faz o autor. 57 tão: Veredas” e “Primeiras EstóriNo apêndice da edição José A obra de Guimarães as”. É uma prosa intensiva, comOlympio/MEC, Paulo Ronái diz: Rosa é obra de artífice, pacta, até telegráfica na sua ânsia ele me segredou que dava a de comunicação imediata e direta de artesanato maior importância a este livro, uma prosa que encurta palavras e surgindo em seu espírito como incomparável, tão frases, elimina ligações extensas, inum todo perfeito não obstante verte e repete elementos na criação consciente, que é o que os contos necessariamende um estilo forte, viril, oral. As impossível conceber que te tivessem de fragmentário. múltiplas faces e facetas da existênQuanto ao título, toda minha, alguém faça aquilo sem cia, da realidade vivida, sentida, e confirma a asserção de que o às vezes pensada de cada indivíduo total adesão às ficcionista pôs no livro muito, se - eis aí a essência de Tutaméia e aliás tarefas que executa. não tudo, de si. de toda a obra rosiana. Daí a imagética tão típica do autor, a conTutaméia, ou Terceiras Estójunção de elementos às vezes aparias, saiu do prelo pouco mais de rentemente díspares com o fito de recriar experiêntrês meses antes da morte do grande mineiro em cias sinestésicas e sugerir novas tomadas de consci1967, e vem coroar a obra dele num estranho ência. momento de verdade, tão próximo do fim de sua Em Tutaméia dá-se uma série de quadros sertacarreira. Mantendo a tradição do conto breve nejos, instantâneos da vida, costumes, e ambiente estabelecida por Primeiras Estórias, Tutaméia nos do sertão, cada qual a revelar-nos uma faceta ditraz uma série de quarenta estórias brevíssimas e quatro prefácios, estes em forma de ensaio sobre versa e complementar para completar a visão do vários aspectos da criação literária: o primeiro - conjunto. Pode-se dizer que Tutaméia contém a chave Aletria e Hermenêutica - visa à linguagem figurade toda a obra de Guimarães Rosa e que vem da; o segundo - Hipotrélico - à criação e uso de muito a propósito como última palavra do granneologismos; o terceiro - Nós, os Temulentos nos apresenta uma deliciosa anedota humorística de mineiro. Casais Monteiro, também citado por Daniels (uma das poucas, aliás, do autor, e de temática urbana); o último dos prefácios - Sobre a Escova (1968), afirma que Guimarães Rosa imita o sertae a Dúvida - figura-se de suma importância para nejo no seu processo, mas de modo algum copia a qualquer leitor da obra rosiana no que tem de de- maneira como ele fala; imita a atitude dele para com finitivo, confessional, pois é neste prefácio que Gui- a língua, coloca-se no lugar dele, como um sertanemarães Rosa fala abertamente da fé, da felicida- jo erudito, um sertanejo que conhece a beleza da de, do processo criador, e da essência da vida, sua fala. Na linguagem espontânea e coloquial observadando-nos por assim dizer a sua auto-análise ou se a atuação constante das figuras e tropos. Dentre autopsicografia. eles, a comparação é, sem dúvida, um dos recursos Para Mary Daniels, Tutaméia constitui a afirmação definitiva da obra básicos da linguagem sertaneja. Podemos observar, rosiana. As quarenta minúsculas “estórias” do vo- nas comparações feitas por Rosa em Tutaméia, que lume, arrumadas numa seqüência mais ou menos as mesmas utilizam palavras familiares, comuns, coalfabética segundo os respectivos títulos, continu- nhecidas por todos, mas combinadas de tal modo am o padrão estabelecido por “Primeiras Estóri- que sua associação chega a ser poética. Confirmanas”: episódios concisos, de orientação introspectiva, do Nereu Corrêa (1978): não raro desborda do especulativa. No que diz respeito às características lógico para o poético e deste para o alegórico lingüísticas (...) pode-se dizer que Tutaméia confir- nos seus arroubos imagísticos: ma plenamente o caminho escolhido e mantido des... como é como uma fruta azul a água fechade Sagarana, trazendo-nos novamente formas orida na cisterna (Tutaméia, p. 127) ginais criadas dentro dos padrões reconhecidos como Por meio do emprego sensível das técnicas poéjá típicos da obra dele. Tais são os geniais “achaticas e retóricas, Guimarães Rosa cria uma prosa dos” neologísticos, nenhum igual a seus antecessores de beleza estética e poder expressivo: nas obras anteriores do autor mas todos obedecen... miúda, mansa feito botão em flor (Tutaméia, do às mesmas tendências formais e criadoras. Evidencia-se em Tutaméia a mesma preocupação pela p. 45) Diz Viggiano (1974): como grande criador, ele simultaneidade e dinamismo de expressão que se nota em “Sagarana”, “Corpo de Baile”, “Grande Ser- transpõe a realidade para o texto de forma ex58 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 56-59, jul./dez., 1997. tremamente seletiva, a come... e aí eis, salteada de perTutaméia foi o último çar pelo idioma, que elabora a fil, como um retrato em branlivro de Guimarães grau elevadíssimo, a ponto de co, alheante, fixa no perpasso Rosa a ser editado em recriá-lo. (Tutaméia, p. 123) ... fechada a gestos, ladeanO significado faz uma curva no vida. É de importância do o tempo, como o que semecaminho da comunicação; porém, capital na lhava causada morte (Tutaméia, para chegar carregado com um interpretação de sua p. 143) significado mais rico, captado Para Bosi, citado por Megale mais em profundidade e, no final obra devido as (1978), Rosa reencontra a paisada operação, mais luminoso: confidências que nele gem e o mito na materialidade da Mas o assunto enriquecido faz o autor. linguagem: - como do amarelo extraem-se ... que amistosa o esperava idéias sem matéria.(Tutaméia, como o mel que as abelhas crip. 81) am no mato (Tutaméia, p. 135) A linguagem oblíqua, por sua irradiação e opaciA linguagem de Guimarães Rosa, segundo a clas- dade, é aberta e sem recortes, ou seja, fundamentalsificação de Coronado (1960), é essencialmente mente interpretativa. Interpretativa no termo justo, enoblíqua: na linguagem oblíqua, pela sua irradia- quanto que obriga o leitor a procurar e encontrar a ção, o significado radical e o real se dilata, alar- verdadeira mensagem que, embora aberta e de difícil ga-se pelo contágio imaginário de outros signi- interpretação, não pode ser senão única: ficados, em graus diversos e dos mais vários ...tão certo como eu hoje estou o que nunca modos, carregando-se da energia entitativa dos fui (Tutaméia, p. 46) mesmos; e por esse contágio, seus contornos Ainda segundo Coronado, uma linguagem preaparecem oscilantes e fluidos dinamizando a re- dominantemente oblíqua tenderia a apagar a alidade. para-realidade e o factismo radical da matéria Queria eu, um dia, que fôsse, atravessar o do conto em benefício de uma mais ou menos rio, como quem abre enfim os olhos (Tutaméia, disfarçada meta-realidade, como tenderia a p. 135) transformar a índole narrativa dos fatos em preA linguagem oblíqua apresenta um caráter alusi- texto ou ponto de partida para outra atitude não vo e referencial, aberto a outros horizontes, ganhan- maciçamente fáctica e nem relevantemente nardo em riqueza e sensibilidade o que perde em estri- rativa pois, para ele, a linguagem do conto é esto rigor: sencialmente reta, atendendo às características do ... como o dia de ontem que não passou gênero. (Tutaméia, p. 133) Extrapolando as observações feitas com relação O escritor, aproveitando o sistema estabeleci- à linguagem de Guimarães Rosa, considerando-a, do e mantendo-o nas suas bases (pois, de outro de acordo com a classificação de Coronado(1970) modo, não seria entendido pela comunidade) in- como linguagem tipicamente oblíqua, coloca-se uma troduz nos sinais comuns de comunicação algumas questão: pode-se dizer que os contos de Rosa são modificações pessoais que dão outra dimensão à os supostos contos mencionados pelo teórico, que, mensagem lingüística, embaçando inicialmente a em virtude da linguagem oblíqua, estão de tal modo superfície de sua transparência, o imediatismo de desfigurados que, mais do que contos, acabam sensua transmissão: do peças literárias de outra natureza e gênero? Referências Bibliográficas CORONADO, Guillermo de La Cruz (1970). Teoria do Conto. Separata de Estudos Anglo-Hispânicos m. 2-3. S. José do Rio Preto: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. CORRÊA, Nereu (1978). A tapeçaria lingüística dós Sertões e outros estudos. S. Paulo: Quíron/MEC. DANIELS, Mary (1968). João Guimarães Rosa: Travessia Literária. Rio de Janeiro: José Olympio. MEGALE, Heitor e MATSUOKA, Marilena (org.) (1978). Contos - Guimarães Rosa. Série Literária, vol.3. S. Paulo: Nacional. VIGGIANO,Alan (1974). Itinerário de Riobaldo Tatarana. B. Horizonte: Comunicação/MEC. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 56-59, jul./dez., 1997. 59 Neste trabalho fazemos uma primeira tentativa de compreensão da prática leitora das leitoras de romances sentimentais de massa. A partir de novas concepções de linguagem, de sujeito e de leitura, defendemos a hipótese de que essas leitoras são “usuárias’’ e não “consumidoras” recolhidas à passividade e à alienação. Nos momentos de leitura, elas vivem uma experiência estética: como no filme A Rosa Púrpura do Cairo, há uma fratura nos acontecimentos cotidianos, uma conjunção sujeito/objeto e uma visão momentânea, da ‘‘perfeição’’ que as predispõem à construção de utopias. Palavras-chave: leitura, práticas leitoras, romances sentimentais de massa, utopia. In this work, we make a first attempt in order to understand the practical reading of a group of readers who enjoy a kind of popular sentimental romances. Starting from a new language conception, about subject and about reading, we hold the hypothesis that these readers are “users” and not “consumers” due to the passivity and the alienation. While reading, they have an aesthetic experience: like in the film “The Purple Rose of Cairo”, there is a rupture in the daily events, a conjunction subject / object and a momentary vision of the “perfection” that predispose them in a construction of utopias. Key-words: reading, practical reading, popular sentimental romances, utopia 60 * J. Genésio Fernandes é artista plástico e prof. de Teoria Literária do Depto de Letras da UFMS. Mestre em Teoria da Literatura pela UFPE e doutorando pela USP. LEITORAS DE SABRINA: USUÁRIAS OU CONSUMIDORAS? UMA PRIMEIRA TENTATIVA DE COMPREENSÃO DA PRÁTICA LEITORA DAS LEITORAS DE ROMANCES SENTIMENTAIS DE MASSA J. Genésio Fernandes* 1. Introdução 1.1. Ao leitor “A leitura tem uma história. Não foi sempre e em toda parte a mesma. (...) Os esquemas interpretativos pertencem, a configurações culturais, que têm variado enormemente através dos tempos. Como nossos ancestrais viviam em mundos mentais diferentes, devem ter lido de forma diferente, e a história da leitura poderia ser tão complexa quanto a história do penssamento.”1 “A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção qualificada de ‘‘consumo’’: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insunia ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar por produtos próprios mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. (...) Essas práticas colocam em jogo uma ratio ‘‘popular’’, uma maneira de pensar investida numa maneira de agir, uma arte de combinar indissociável de uma maneira de utilizar.’’2 Para aqueles leitores que têm a leitura na conta de uma atividade sagrada de poucos iniciados com as obras que a instituição literária elegeu como “clássicos”, “obras-primas’’, ou ‘‘bons livros’’ o título aci- ma não deixa de inquietar.3 Há aqueles que, antes de qualquer consideração, precipitam-se e revelam um enorme zelo de guardião: “mas isso não é literatura!”. Há também os que são movidos por uma ojeriza declarada pelos produtos dos meios de comunicação de massa, porque os concebem como eficientes fábricas de massas dominadas e homogêneas. 4 E há aqueles outros que, embora gostem de novelas, filmes e romances sentimentais, mantêm o hábito inconfesso e se portam como os leitores de um Maugham fora de moda, descritos por Frederico Branco: “Retiram furtivamente os volumes das prateleiras, quase como quem se arrisca a comprar cocaína de um fornecedor fortuito. Feita a aquisição, partem com seu Maugham cuidadosamente embrulhado em papel opaco, sorrateiramente, olhando de soslaio, temendo serem pilhados em flagrante de concessão à vulgaridade por amigos ou inimigos”.5 Aos primeiros, adianto que não tenho a pretensão de desmerecer a Literatura ou pregar a morte dela para, em seu lugar, exaltar a literatura de massa. Tranqüilizem-se. Também sou dessas águas, ainda que sem a exigência de que sejam absolutas.6 Aos segundos, lembraria que “Sempre é bom recordar que não 1 Darton, Robert, História da Leitura: In: Burke, Peter (Org.), A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo, Unesp, 1992, p. 218. Certeau, Michel. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1994 3 Jean Hebrard diz que as políticas pedagógicas ‘‘conhecem apenas uma modalidade, universal, da leitura, aquela que, por sua transparência, permite ao livro, pura mensagem, transformar a cera mole que imaginamos ser o leitor’’. Ver seu artigo ‘‘Autodidatismo Exemplar: Como Valentin Janery-Duval Aprendeu a Ler?’’ In: Chartier, Roger, Práticas da Leitura. São Paulo, Estação Liberdade, 1996, p. 36. 4 Ver: Felinto, Marilene, Mulheres que Lêem Bobagem. In: Folha de São Paulo de 29 de janeiro de 1995. 5 Branco, Frederico, Por que reler Maugham. In O Estado de São Paulo, de 15 de maio de 1988. 6 Lacoue-Labarthe, Philiphe et Nancy, Jean Luc (Orgs). L’Absolu Littéraire: Theorie de la Littérature du Romantisme Alemand. Paris, Du Seuil, 1978 2 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997. 61 se deve tomar os outros por idiotas”.7 E, aos terceiros, quero dizer que, embora não sendo um aficionado por romances sentimentais de massa, também experimentei uma certa vergonha ao perceber que escolhera como objeto de estudo uma prática leitora que valoriza um gênero tão negativamente marcado como “porcaria’’ ou ‘‘bobagem’’8 por freqüentadores assíduos da Literatura, numa ponta e, na outra, pelos que têm elevado grau de inapetência à leitura. Essa vergonha, proveniente das coerções do campo cultural9 em que milito, surpreendeu-me, colocou interrogações e foi o fator que firmou a decisão pelo estudo do assunto. Entretanto o que há muito tempo me despertara para as operações dos usuários dos produtos culturais foi um caso pitoresco. 1.2. A obra de arte no pé de tomate e o caso do teatro do absurdo Em 1987 mudei-me de Minas para o Acre. Lá dava aula de Teoria da Literatura e de Literatura, pintava minhas obras em duratex e, assim, continuava seguro dos conceitos necessários para atuar na área, até que a estranha conjunção de uma obra de arte com um pé de tomate perturbou-me o conforto intelectual.10 Dona Ana, a vizinha viu a pintura em duratex na varanda de minha casa, maravilhou-se com o que estava procurando, falou dos planos, para a sala, descreveu longamente a moldura que colocaria e as combinações que faria com ela, levou o quadro, e o tempo passou. Um belo dia, dona Vera apareceu lá em casa. Estava injuriada com dona Ana e fazia um pedido quase desagravo: queria o tal quadro. “Que aquilo era uma ofensa’’, e que eu fosse vê-lo, discretamente, na horta da vizinha. Tudo muito estranho, mas fui e vi. Lá estava minha obra de arte, molhada, suja de terra, servindo de jirau para um belo pé de tomate. Para atender dona Vera, salvar a obra e evitar encrenca, sugeri que propusesse uma troca bem argumentada à desalmada dona Ana: uma estaca boa pelo pedaço de duratex. Que fosse ‘‘para tapar buraco da casa dos cachorros”. Dito e feito. Dona Vera, vitoriosa, levou a obra de arte para casa e a história teria acabado por aí se, depois de algum tempo, não chegasse a vez de dona Ana também ir ver-me injuriada. Apareceu na varanda com ares de vítima. Fora enganada, estava ofendida, mas demorou mais na descrição voluptuosa da moldura cor de ouro e arabescada, caríssima, que a danada da Vera colocara, lá na cidade maravilhosa, no Rio de Janeiro. Desconsolada com a perda, pediu por favor outro quadro. Prometi, mas, desta vez, compreendendo que havia uma diferença entre o que eu lhe dava e o que ela recebia e usava. O quadro como um mundo de valores expressivos, independente da moldura e das combinações que pudesse estabelecer com os móveis da casa, contava pouco para dona Ana. Diante de um produto cultural dado como signo de distinção e de bom gosto estético, e não podendo tratar dele convenientemente por desconhecer a linguagem que o campo das artes utiliza para fazê-lo circular como um valor, ela parasitava-o com uma arte de usar muito própria e sofisticada. O que contava para ela era uma arte de combinar indissociável de uma maneira de utilizar. Em l978, chegou ao Acre o projeto de apresentação de uma peça de teatro do absurdo na cidade de Sena Madureira, por um grupo de missionários da cultura do Rio de Janeiro. Disse-lhes que a cidadezinha fora no passado, na época áurea da borracha, um palco de apresentação de comédias, que provavelmente teriam bom público e que repensassem a programação de peças que destacavam mais as inovações formais. Dito isso, foram risonhos e voltaram de olho arregalado. A peça tinha sido um sucesso de público e um fracasso de gosto, quase dera em tragédia. As pessoas chegaram cedo, suportaram as movimentações e os diálogos absurdos no palco e, depois da peça, ficaram esperando a Peça. Como os artistas estranhassem a expectativa delas, trataram de corrigi-la: o espetáculo era aquilo mesmo e já acabara. Babau! Poderiam ir embora. E foi então que apresentou-se o absurdo, agora para os artistas: ofendidas, sairiam todas, mas queriam o dinheiro do ingresso, nem que fosse à força. Resultado: os artistas só puderam sair do camarim bem de madrugada. A Dona Ana e as pessoas de Sena Madureira tinham uma prática leitora diversa da erudita, e provavelmente, experimentassem o prazer estético no contato com objetos artísticos que privilegiavam a forma do conteúdo, uma arte mais mimética, como a pintura figurativa ( quando muito até a pintura impressionista), a comédia e as narrativas tradicionais. 7 Certeau, Michel, op. Cit. P. 19 Nas entrevistas, as leitoras de Sabrina, Bianca, Júlia, etc., falam, explícita ou implicitamente, que há uma censura muito forte em relação a sua prática leitora: ‘‘Isso aí é porcaria, dizem eles. Isso principalmente quem nem lê nada’’. 9 A expressão pertence a Pierre Bourdieu. Ver A Economia das Trocas Simbólicas, São Paulo, Perspectiva, 1987. 10 Para não parecer ingênuo ou pretensioso, esclareço que não pretendo colocar meus trabalhos de pintura na categoria consagradora de “obra de arte”. Nomeio-os assim, colocando-me no ponto de vista daqueles que os acolheram em museus e salões de arte - sem garantia alguma de que estejam certos. Meu interesse aqui é outro. 8 62 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997. No campo dos estudos dos bens culturais que o homem produz ao longo da história, tem sido comum os estudiosos, homens cultos de uma determinada sociedade, elegerem um posto de observação voltado para o passado e, daí, munidos do protocolo verbal próprio do campo cultural em que militam, passarem a estabelecer conceitos e teorias com pretensões de universalidade e, com eles, os divisores de água entre o que é e o que não é cultura erudita, cultura de massa, cultura popular, arte, arte primitiva, Literatura, para-literatura, contra-literatura, literatura feminina. Por meio da teoria (theorein, fazer crer) e de uma amnésia do processo de constituição dessas categorias estabelecem a diferença e promulgam o sagrado. 11 Não quero dizer que os estudiosos possam prescindir do estabelecimento de categorias e conceitos para pensar, mas tem sido comum ver explícita ou implicitamente no trabalho de reflexão que fazem sobre os produtos culturais, sobre a Literatura, por exemplo, uma dificuldade em tomar a própria reflexão e o objeto a que ela se aplica como um produto historicamente marcado. Não lhes ocorre com freqüência desviar o olhar do objeto e dos valores que lhe atribuem para um outro objeto, o uso que o sujeito faz desse objeto dentro de determinadas condições sociais e históricas, no interior de determinadas práticas leitoras. A leitura é uma prática milenar e diversificada de atualização desse objeto virtual que é o livro12. O sentido é produzido, atualizado ou atribuído ao texto dentro de determinada prática leitora, de determinadas condições de produção. Aqui, para tratar da leitura, mais especificamente, da leitura dos romances sentimentais de massa, como uma atividade de algum modo produtiva e não passiva, atividade de consumidores (dominados) como querem crer os seguidores dos postulados marxistas e frankfurtianos, é preciso romper com a concepção de sujeito universal e abstrato, de sujeito assujeitado13, com a concepção de linguagem como sistema de signos e meio de comunicação e, conseqüentemente, com a concepção de leitura como mera decodificação 14 . 2. Alguns Pressupostos Teóricos Para explicitar a concepção de linguagem com que concordamos, temos, necessariamente, de começar por fazer referência ao Curso de Lingüística Geral. Saussure, embora tenha se ocupado da língua como um sistema de signos, não deixa de fazer distinção entre linguagem e língua. Diz ele: ‘‘Tomada como um todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; participando de diversos domínios, tanto do físico, quanto do fisiológico e do psíquico, ela pertence ainda ao domínio do individual e ao domínio do social; ela não se deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos humanos, porque não se sabe como isolar sua unidade. A língua, ao contrário, é um todo em si mesma e um princípio de classificação. A partir do momento em que atribuímos o maior destaque entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se presta a nenhuma outra clasificação.’’15 Essa é a distinção que faz, tomando a totalidade dos fenômenos das manifestações lingüísticas. A partir dela, estabelece a dicotomia língua/fala, separando o que é social do que é individual. Enquanto a língua é, para ele, um produto que o indivíduo registra passivamente; a fala é um ato de vontade absolutamente individual. Com essa concepção abstrata e ideal de língua, com esse recorte por demais redutor, Sausurre conseguiu dar impulso aos estudos da língua e conferir estatuto de ciência à Lingüística. Muito, porém, do que é a língua viva ficou de fora. Não é essa, entretanto, a concepção que postulamos aqui. Ela nos levaria conseqüentemente, à concepção de leitura como decodificação16, e ao princípio de legibilidade17 que, uma vez resguardado na produção, asseguraria recepção ótima daquilo que o emissor pensa que seu texto quer dizer e vai dizer. Por outras palavras, e utilizando os termos de Eco, a constituição do autor-modelo, por meio de estratégias adequadas estabelecidas, pela habilidade de previsão do autor-empírico, instaurar-se-ia, no mesmo lance, um Leitor-Modelo e, assim, assegurar-se-ia um princípio 11 Ver Bourdieu, Pierre, O Poder Simbólico, p. 293. ‘‘Desde suas origens mesopotâmicas, o texto é um objueto virtual, abstrato, independente de um suporte específico. Essa entidade virtual atualiza-se em múltiplas versões, traduções, edições, exemplares e cópias. Ao interpretar, ao dar sentido ao texto aqui e agora, o leitor leva adiante essa cascata de atualizações’’: Lévi, Pierre, O Que é Virtual. São Paulo, Editora 34, 1996, p. 35. 13 Ver referência a Althusseur, Luis, Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado in Brandão, Helena H. Nagamine, Introdução à Análise do Discurso. Campinas, Editora da Unicamp, 1993, p. 23. 14 Kleiman, Angela, Texto e Leitor. Campinas, Pontes, 1984. Para a autora, não se pode conceber a leitura como decodificação, mas como atribuição de sentido ao texto. 15 Saussure, Ferdinand, Curso de Linguística Geral. São Paulo, Cultrix, s. d., apud Brandão, Helena H. Nagamine, op. cit. supra. 16 Codificar tem o sentido de colocar um conteúdo no código e decodificar, o sentido de retirá-lo do código, de traduzi-lo - e a atividade de leitura não se resume a isso. Ver Kleiman, Angela, op. Cit Supra. 17 Orlandi questiona esse conceito: ‘‘Percebi que a legibilidade do texto tinha pouco de ‘‘objetivo’’ e não era apenas uma consequência direta, unilateral e automática da escrita. Não me parecia verdadeira a afirmação: ‘‘um texto bem escrito é legível’’. Eu me perguntava: bem escrito para quem? Legível para quem?’’ Orlandi, Eni Pulcinelli, Discurso & Leitura, Unicamp, cortez, 1988, p. 8 12 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997. 63 de legibilidade e, conseqüentemente, a decodificação do texto por parte do leitor-empírico18. Esse modo de pensar a linguagem e a leitura nos levaria a concordar com a opinião corrente de que os leitores da literatura de massa recebem exatamente aquilo que o texto (com estrutura simples e vocabulário fácil) quer dizer.19 Parece que são essas as concepções que estão no fundo de grande parte dos estudos da literatura de massa, orientados pelo pensamento da Escola de Frankfurt, e que tomam os leitores como consumidores, vítimas da competência técnica homogeneizante da indústria cultural. Ecléa Bosi, por exemplo, diz que na literatura açucarada ‘‘reduz-se o leitor ao nível da aceitação passiva’’.20 Discordamos dessas concepções, pois se a ‘‘língua pode ajudar a moldar a identidade coletiva”, também “pode atuar como parteira da identidade individual, a viga mestra da biografia.”21 Preferimos as contribuições de Bakhtin e da Análise do Discurso que nos permitem uma concepção diversa de linguagem, de sujeito e de leitura. Bakhtin, por um lado, concorda com Saussure quanto ao princípio de que a língua é um fato social; mas, por outro, discorda dele, ao conceber a língua como um fenômeno concreto, produto da interação social22 . Nessa concepção de língua como fenômeno vivo de interação entre indivíduos sociais, o signo ganha espessura: não se trata mais de um ‘‘sinal’’ inerte e preexistente ao ato de fala, mas de signo dialético, vivo, arena de luta dos valores sociais. Para ele, a palavra, signo ideológico, dirigindo-se a um interlocutor, “é função da pessoa desse interlocutor’’23 e de sua atividade social. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, diz: ‘‘Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige a alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade.’’24 Para Bakhtin, a linguagem é, portanto, um processo que instaura, ao mesmo tempo, o ato individual da fala, o sujeito (indivíduo e ser social), e a própria linguagem. Em sua Estética da Criação Verbal, Bakhtin diz que, no começo da constituição da subjetividade, tudo que diz respeito a mim, e que vai fluindo para minha consciência, a começar pelo meu nome, me vem do mundo exterior, através da palavra alheia, no caso, a voz de meus familiares, com todo o colorido de emoções e valores.25 Mesmo os objetos do mundo, diferentemente do que parece querer Paulo Freire em seu texto A Importância do Ato de Ler, me vêm revestidos de signos e da memória social deles. Em outras palavras, as primeiras referências que formo de mim mesmo me vêm através dos outros: “a consciência do homem desperta envolvida na consciência alheia’’26. Essas, palavras alheias, por sua vez, passam por um processo de reelaboração do qual resultam as palavras próprias alheias e, depois, as palavras próprias, com o esquecimento de suas origens. É com essas palavras próprias, marcadas já por um caráter criativo, que formo as contrapalavras com as quais entro em diálogo ou em combate dialógico e ideológico com a palavra do outro, agindo sobre ela, sobre a cultura.27 Por isso, não há como concordar com a noção de sujeito assujeitado28 produto do meio e das condições históricas; e nem com a noção de um sujeito como origem e fonte de seu dizer. Com a contribuição de Bakhtin e as reflexões de João Wanderley Geraldi, entendemos que o sujeito é sempre incompletude fundante29 que, pelo desejo de completude, mobiliza o 18 Utilizamos aqui os termos da Eco, mas seria injusto dar a entender que ele concebe a instauração adequada do ‘‘autor-modelo’’ como suficiente para assegurar leituras corretas. O que se pode dizer é que em ‘‘Lector in Fabula’’ ele dá maior destaque ou parece crer, ainda, que o ‘‘autor-modelo’’, como conjunto de estratégias de previsão de um ‘‘leitor-modelo’’, seria uma construção totalmente consciente - o que, sabemos hoje, não é bem assim. Essa afirmação pode ser comprovada com as reações do Eco romancista às cartas e opiniões dos leitores sobre seus romances: de início, ele se confessa até zangado com as atribuições de alguns sentidos, para ele improcedentes, ao seu texto; mas posteriormente admite e confessa que alguns leitores tinham razão. 19 Lotman afirma que ‘‘É falso que os pensamentos se repetem. Cada pensamento é novo, porque a novidade rodeia-o e lhe dá forma.’’: Lotman, Iuri, A Estrutura do Texto Artístico, Lisboa, Estampa, 1978, p. 38. 20 Bosi, Ecléa. Cultura de Massa e Cultura Popular. Petrópolis, Vozes, 1986, p. 165. 21 Burke, Peter et Porter, Roy (Orgs.), linguagem, indivíduo e Sociedade. Unesp, p. 2 22 Bakhtin, Mikhail (V. N. Volochínov), Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec, 1992. Ver principalmente capítulo 4: ‘‘Duas orientações do pensamento filosófico-lingüístico’’. 23 Bakhtin, op. cit. supra P. 112 24 Bakhtin, op. cit. supra p. 113 25 Bakhtin, Mikhail, A Estética da Criação Verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992. 26 Bakhtin apud Claudia T. G. de Lemos. In Barros, Diana Luz Pessoa de et Fiorin, José Luiz, Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo, Edusp, 1975, p. 39. 27 Ver Claudia T. Lemos. In: op. Cit Supra. 28 Ver referência a esse termo em nota acima. 29 Todorov, Tzvetan, A Vida Em Comum: Ensaios de Antropologia Social. São Paulo, Papirus, 1996. p. 22: ‘‘Os animais e os deuses são auto-suficientes, pode-se portanto, representá-los a sós; o homem, por sua vez, é irremediavelmente incompleto, tem necessidade dos outros.’’; ‘‘A vida em sociedade não provém de uma escolha: somos sempre sociais. Como já observaram, quase na mesma época, orusso Bakhtin e o americano H. G. Mead, jamais podemos nos ver fisicamente por inteiro; é a prova gritante de nossa incompletude constitutiva, da necessidade que temos dos outros para estabelecer nossa consciência do eu, portanto, também para existir. 64 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997. outro, miragem de completude, para se fazer inteiro, configurando, assim, um espaço discursivo onde identidade e alteridade se apresentam sempre em relação dinâmica 30 . Nesse espaço discursivo de constituição da subjetividade, agem a força do sujeito enquanto produto de condições mas, também e sobremaneira, um indivíduo criativo, que articula, sempre, e de maneira diferente, a herança cultural, produzindo nesse presente a diferença, a história de amanhã. 31 Dessas concepções de línguagem e de sujeito deriva a concepção de leitura que postulamos: a leitura como um combate dialógico e ideológico de minhas palavras, as que internalizei no processo histórico de minha constituição, com a palavra alheia, para a produção de sentidos novos, de diferenças, de identidade. 32 Os estudos de Maingueneau sobre a passagem do Humanismo Devoto ao Jansenismo33 nos ajudam a compreender que, a despeito de todas as coerções do código língüístico e do código dos gêneros, o que realizamos no processo de leitura é uma tradução dos enunciados do outro em nossas próprias categorias - e com a agravante de que não se trata dos enunciados do outro como tais, mas dos simulacros que deles construímos. Si sur le plan de langue chacun des protagonistes discursifs peut croire q’uil “comprend’’ les énoncé de l’autre, i1 ne vá pas de même sur le plan du discours, où s’exercent des contraintes historiques irrédutibles. Chacun ne fait que traduire les énoncés de l’autre dans ses propres catérgories, les mots circulent bien d’une pôle de l’échance a l’autre, mais avec les ‘‘mêmes’’ mots ils ne parlent assurement pas de la même chose.34 Maingueneau postula assim uma interincompreensão fundante e recíproca entre os interlocutores; uma interincompreensão irremediável por qualquer dicionário ou higiene lingüística que se convoque, porque constitutiva da atividade da linguagem, da identidade do sujeito em relação ao Outro.” É por isso que Maingueneau estabelece o primado do interdiscurso sobre o discurso, ou seja, a unidade de análise é, para ele, o interdiscurso como um espaço de relação entre vários discursos. O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva é conduzida (...) a incorporar elementos pré-construídos produzidos no exterior dela própria; a produzir sua redefinição e seu retorno, a suscitar igualmente a lembrança de seus próprios elementos, a organizar sua repetição, mas também a provocar eventualmente seu apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação35 Nessa perspectiva, os sentidos não estão para sempre dados, trafegando incorruptíveis de um pólo ao outro da comunicação e com o poder de se imprimir na cera mole dos leitores, mas em constituição. Segundo Jean Hebrard, ‘‘as políticas de alfabetização, quaisquer que sejam, guardam um otimismo pedagógico inabalável: elas conhecem apenas uma modalidade, universal, universal, de leitura, aquela que, por sua transparência, permite ao livro, pura mensagem, transformar a cera mole que imaginamos ser o leitor. Nesse sentido, ensinar a ler a um grupo social até então analfabeto, é apresentá-lo ao poder, com direito infinito, do livro.’’36 Isso nos leva a considerar as leitoras de Sabrina, Bianca, Julia não como consumidoras, no sentido de dominadas por uma mensagem ideológica, mas como usuárias com muito maior grau de consciência do que fazem e com muito maior julgamento crítico sobre o objeto que usam do que comumente, ou preconceituosamente, se supõe. Talvez para ela a leitura não seja apenas uma operação intelectual, mas uma operação de caça semelhante àquela da personagem de Eugênio Onieguin, de Pushkin, quando, visitando a biblioteca do homem que ama: olha na lombada os títulos das obras, folheia os livros retendo-se aqui e ali - não para perceber a qualidade literária dos volumes, mas para negacear um código de acesso ao mundo do amado. A todo momento, os usuários dos códigos estão a transformá-los em metáforas e elipses de suas caçadas, mesmo que 30 Geraldi, Wanderley, conferência proferida no 10º Cole, Campinas, 1995. Geraldi, conferência citada acima. 32 Idem. 33 Maingueneau, Dominique, Sémantique de la Polémique. Lausanne, Suisse, 1983. 34 Maingueneau, op. Cit. 25: ‘‘Se no plano da língua cada um dos protagonistas do discurso podem acreditar que ‘‘compreendem’’ os enunciados do outro, não ocorre o mesmo no plano do discurso onde ocorrem constrangimentos históricos irredutíveis. Cada um traduz os enunciados do outro em suas próprias categorias; as palavras circulam de um pólo ao outro da interação, mas eles, com as ‘‘mesmas’’ palavras, não falam da mesma coisa. 35 Courtine et Morandin, 1981, apud Brandão, Helena H. Nagamine, op. cit. supra. 36 ‘‘Mas as políticas de alfabetização, quaisquer que sejam, guardam um otimismo pedagógico inabalável: elas conhecem apenas uma modalidade universal, de leitura, aquela que, por sua transparência, permite ao livro, pura mensagem, transformar a cera mole que imaginamos ser o leitor. Nesse sentido, ensinar a ler a um grupo social até então analfabeto, é apresentá-lo ao poder, com direito infinito, do livro.’’: Hébrard, Jean, ‘‘O Autodidatismo Exemplar: Como Valentin Jamerey-Durval Aprendeu, a Ler?’’ in Bourdieu, Pierre, Bresson, François et Chartier, Roger (Orgs), Práticas da Leitura. São Paulo, Estação Liberdade, 1996, p. 36. 31 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997. 65 não autorizadas pelas práticas dominantes.37 Por astúcias que remontam às profundezas das eras, ao mimetismo desenvolvido por certos peixes disfarçados e insetos camuflados, assim também procederam os índios da América submetidos à religião dos vencedores; os seguidores do Candomblé da Bahia diante da igreja católica; as mulheres em relação aos códigos masculinos de contenção e de heroísmo; os leitores em relação à escrita que se impôs como uma racionalidade estável pelo banimento do corpo.38 A leitura é, por isso, uma atividade tática e não estratégica. Denomina-se estratégia ‘‘o cálculo das relações de força que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um ‘ambiente’. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e, portanto, capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta.’’39 Quanto à tática, ao contrário, ela refere-se a “um cálculo que não pode contar com um próprio, nem, portanto, com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o outro.” 40 O migrante, por exemplo, não tem um lugar ‘próprio’, uma base onde capitalizar seu ganhos, instaurar sua independência, projetar sua expansão. Ele está dentro do lugar do outro, de sua língua, de sua cultura, de seus domínios. Assim, por esse fato, a tática depende do tempo. O migrante vigia no tempo para tirar proveitos, fazer jogadas oportunas, combinando elementos heterogêneos, sem contudo capitalizar seus proveitos, isto é, sem dominar o tempo. A estratégia, ao contrário, postulando um lugar, um próprio, “é uma vitória do lugar sobre o tempo’’. Para diferenciar os tipos de táticas, podem-se encontrar modelos na retórica. Nada de surpreendente, pois, de um lado, ela descreve os “rodeios” de que uma língua pode ser simultaneamente o lugar e o objeto e, de outro, essas manipulações são relativas às ocasiões e às maneiras de mudar (seduzir, persuadir, utilizar) o querer do outro (o destinatário). Por essas duas razões, a retórica, ou ciências das “maneiras de falar’’ oferece um aparelho de figuras típicas para a análise das maneiras cotidianas de fazer ao passo que ela, em princípio se acha excluída do discurso científico. Duas lógicas da ação (uma tática e outra estratégica) se depreendem dessas duas maneiras de praticar a linguagem. No espaço da língua (como no dos jogos) uma sociedade explícita mais as regras formais do agir e os funcionamentos que as diferenciam. (...) os sofistas ocupam um lugar privilegiado, do ponto de vista das táticas. Tinham eles como princípio segundo Corax, tornar “mais forte” a posição “mais fraca’’ e pretendiam possuir a arte de vencer o poder por uma certa maneira de aproveitar a ocasião. As suas teorias inscrevem aliás as táticas em uma longa tradição de reflexões sobre as relações que a razão mentém com a ação e com o instante. Passando pela Arte da Guerra de Shu Tzu na China ou pela antologia árabe do Livro das Astúcias, esta tradição de uma lógica articulada em cima da conjuntura e a vontade do outro, conduz até a sociolingüística contemporânea.41 37 Jean Hébrad diz que ‘‘O trabalho de leitura é, em grande parte, um processo de produção de sentido no qual o texto participa mais como um conjunto de obrigações (que o leitor toma mais ou menos em consideração) do que como estrita mensagem. A partir de então, pensamos poder mostrar que as inferências inerentes ao ato léxico apóiam-se mais sobre a capitalização cultural específica de cada leitor de que sobre a aprendizagem escolar de uma técnica de decifração.’’ Ver Bourdieu, Pierre, op. cit. p. 37. 38 Certeau, Michel, op. cit. p. 19 e 38. Ver também: Vattimo, Gianni, The Problem os Subjectivity From Nietsche to Heidegger. In: Garravetta, Peter (editor), Differentia: Review of Italian Thought, number 1. Itália, Differentia Ltd, 1986, p. 10: ‘‘...in the struggle for survival, mimicry, camouflage [mimetismo] is a crucial instrument.’’ Ver, ainda, Certeau, op. cit. p. 229: A virada da modernidade se caracteriza em primeiro lugar, no século XVII, pela desvalorização do enunciado e pela concentração sobre o ato de enunciar, a enunciação. Quando se tinha certeza quanto ao interlocutor (‘‘Deus falava no mundo’’), a atenção se voltava para o ato de decodificar os seus enunciados, os ‘‘mistérios’’ do mundo. Mas quando essa certeza fica perturbada com as instituições política e religiosas que lhe deram garantia, pergunta-se pela possibilidade de achar substitutos para o único locutor: quem falará? E a quem? Com o desaparecimento do primeiro locutor surge o problema da comunicação, ou seja, de uma linguagem que se deve fazer e não mais somente ouvir. No oceano da linguagem progressivamente disseminado, mundo sem margens e sem âncoras é duvidoso, e logo improvável que um único sujeito se aproprie dele para fazê-lo falar), cada discurso particular atesta a ausência que, no passado, era atribuído ao indivíduo pela organização de um cosmos e, portanto, a necessidade de cortar para si um lugar por uma maneira própria de tratar um departamento da língua. Noutros termos, pelo fato de perder seu lugar, o indivíduo nasce como sujeito. O lugar que lhe era outrora fixado por uma língua cosmológica, ouvida como ‘‘vocação’’ e colocação numa ordem do mundo, torna-se agora um ‘‘nada’’, uma espécie de vácuo que obriga o sujeito a apoderar-se de um espaço, colocar-se si mesmo como um produtor de escritura. Devido a esse isolamento do sujeito, a linguagem se objetiva, tornando-se um campo que se deve lavrar e não mais decifrar, uma natureza desordenada que se há de cultivar. A ideologia dominante se muda em técnica, tendo por programa essencial a construção de uma linguagem e não mais a sua leitura. A própria linguagem deve ser agora fabricada, ‘‘escrita’’. Construir uma ciência e construir uma língua é, para Condillac, o mesmo trabalho, bem como estabelecer a revolução e, para os homens de 1790, forjar e impor um francês nacional, isso implica um afastamento do corpo vivido (tradicional e individual) e, portanto, também de tudo aquilo que, no povo, continua ligado à terra, ao lugar, à oralidade ou às tarefas não-verbais. O domínio da linguagem garante e isola um novo poder, ‘‘burguês’’, o poder de fazer a história fabricando linguagens. Este poder essencialmente escriturístico, não contesta apenas o privilégio do ‘‘nascimento’’, ou seja, da nobreza: ele define o código da promoção socio-econômica e domina, controla ou seleciona segundo suas normas todos aqueles que não possuem esse domínio da linguagem. A escritura se torna um princípio da hierarquização social que privilegia, ontem o burguês, hoje o tecnocrata.’’ 39 Certeau, Michel, op. cit. p. 46 40 Certeau, Michel, op. cit. p. 46 e 47 41 Certeau, Michel, op. cit. p. 47 e 48 66 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997. Como dissemos, a atividade leitora, diferentemente da atividade escrita, é de ordem tática, pois o fluir dos olhos sobre a página não domina o tempo, não capitaliza. Os leitores viajam, caçam nas terras alheias, regalam-se com os bens que colhem, mas não estocam, não acumulam; a escrita ao contrário, acumula, estoca e bate-se contra o tempo pela fundação de um lugar. A atividade leitora das leitoras de Sabrina, acreditamos, contrariamente aos que a têm como lugar de dominação, de inércia e submissão, constitui-se como uma produção silenciosa: (...) flutuação através da página, metamorfose do olho pelo texto que viaja, improvisação e expectação de significados introduzidos de certas palavras, intersecções de espaços escritos, dança efêmera. Mas incapaz de fazer um estoque (salvo se escreve ou ‘‘registra’’), o leitor não se garante contra o gasto do tempo (ele se esquece lendo e esquece o que já leu) a não ser pela compra do objeto (livro, imagens) que é apenas o ersatz (o resíduo ou promessa) de instantes ‘‘perdidos’’ na leitura. Ele insinua as astúcias do prazer e da reapropriação do texto do outro: aí vai caçar, ali é transportado, ali se faz plural como os ruídos do corpo. Astúcia, metáfora, combinatória, esta produção é igualmente uma ‘‘produção’’ de memória. Faz das palavras as soluções de histórias mudas. O legível se transforma em memorável: Barthes lê Proust nos textos de Stendhal; o espectador lê a paisagem de sua infância na reportagem de atualidades. A fina película do escrito se torna um remover de camadas, um jogo de espaços. Um mundo diferente (o do leitor) se introduz no lugar do autor. Esta mutação torna o texto habitável, à maneira de um apartamento alugado. Ela transforma a propriedade do outro em lugar tomado de empréstimo, por alguns instantes, por um passante. Os locatários efetuam uma mudança semelhante no apartamento que mobiliam com seus gestos e recordações; os locutores, na língua materna (...).’’42 Mesmo assim, e diante de novas Concepção de linguagem e de leitura, há quem negue poder existir produção de sentido na relação de determinados leitores com a literatura de massa, Sabrina, Bianca, Júlia, por exemplo. Para esses, o contato com essa literatura, que faz ou pode fazer mal, não possibilita experiência estética de nenhum grau. Já se chegou a argumentar que, para constatar se essa leitura (de “bobagens”) leva ou não o seu leitor à produção de sentido, a uma ressemantização da vida, bastaria observar quem votou no Collor, o que, a nosso ver, é afirmação demais para verificação de menos. Muitos ainda acreditam na fixação dos consumidores na posição de receptáculos e na circulação dos meios. Para esses, só restaria às massas “a liberdade de pastar a ração de simulacros que o sistema distribui a cada um’’.43 Alguns escritores da literatura erudita parecem pensar o mesmo. Marilene Felinto, em artigo intitulado “Mulheres que lêem bobagem”,44 na Folha de São Paulo de 29 de janeiro de 95, diante da constatação da pesquisa do Datafolha de que as mulheres determinaram, com 55% das compras, os cinco primeiros colocados da lista dos livros mais vendidos em janeiro de 95, compara a sua história de leitura com a de sua irmã , leitora de “bobagens’’, e conclui que a leitura da literatura “açucarada’’ é prejudicial: ela tornou-se ‘‘escritora’’ e, sua irmã, uma ‘‘leitora insone’’ que rejeita a literatura erudita. O que orienta a autora do artigo é a suposição de que assimilar é tornar-se semelhante àquilo que se absorve, e não tornálo semelhante àquilo que se é, por mil maneiras de reapropriação e uso.45 Para ela, “as mulheres não são mais burras que os homens por ler Sheldon; são apena mais ridículas’’. Chega a essa conclusão a despeito do conhecimento textual, pragmático e referencial revelado pelas leitoras de ‘‘bobagens’’, suas interlocutoras, no julgamento dos textos e da leitura que fazem deles. Enquanto a autora do artigo está preocupada com o valor da Literatura erudita e com os malefícios da literatura de massa, as leitoras estão interessadas no uso que podem fazer daquilo que lhes dá a indústria dos meios de comunicação de massa. Mais ainda: elas explicam o que, o como, e o porquê de suas leituras. Portanto, as mulheres dessa “procissão silenciosa assaltando livrarias’’ não parecem tão hipnotizadas como quer a articulista da Folha, mas empenhadas em operações de “caças não autorizadas”. O momento da leitura desses romances representa para elas uma fratura nos acontecimentos cotidianos e a possibilidade de uma conjunção sujeito/objeto em um outro tempo e lugar, ainda que fugaz, da “perfeição”.46 Falando 42 Certeau, Michel, op. cit. p. 49 Certeau, Michel, op. cit. p. 260 44 Felinto, Marilene, Mulheres que Lêem Bobagem, in Folha de São Paulo. São Paulo, 29 de janeiro de 1995. 45 Certeau, Michel, op. cit. p. 261 46 Greimas. Algirdas-Julien. De La Imperfección, presentatión, traducción y notas de Raúl Dorra. México, Fondo de Cultura Económica, Universidad Autónoma de Puebla, 1990. No capítulo V dessa obra, Greimas, tomando um conto de Júlio Cortazar para refletir sobre a experiência estética da leitura da obra literária, quando o leitor ‘‘morre’’ para o mundo imperfeito e duradouro da vida cotidiana para viver a perfeição efêmera do mundo novelesco, diz o seguinte: ‘‘Se trata, poes, del vertimiento progressivo del sujeto de estado que entra en contato de manera sucesiva com los distintos estratos del objeto literário: primero su organización temática (‘‘la trama’’, ‘‘el dibujo de los personajes’’, ‘‘los nombres’’, ‘‘las imagenes de los protagonistas’’) expressadas com los términos de la crítica literária clássica, y en seguida su manifestación figurativa (‘‘imágenes que se concertaban y adquiríam color e movimiento’’) que amarra um nuevo modo de aprehensión.’’ p. 62. 43 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997. 67 do momento de suas leituras, uma das leitoras de Sabrina, nossa entrevistada, diz, que se ‘‘encaixa’’ na personagem e é ‘‘encaixada’’ por ela, desenhando, por essa construção simpática, o movimento do sujeito para o objeto e deste para o primeiro, para a fusão plena e perfeita no mundo ficcional. ( ... ) eu viajo na leitura, eu me sinto como personagem, eu me sinto como personagem. ( ... ) Então eu procuro assim, é... eu me, eu me enqua... eu me encaixo perfeitamente, eu me sinto encaixada perfeitamente na... na personagem, ( ... ) nos livros espíritas também eu me sinto assim como se fosse a personagem, eu me sinto como se eu tivesse vivendo aquela história. E eu adoro ler, eu adoro ler, é uma coisa assim que eu esqueço do mundo, esqueço da realidade, eu viajo. Na minha imaginação eu viajo na... nas leituras.47 Algumas das entrevistadas, mais envergonhadas de sua prática leitora, dizem o mesmo pelos implícitos de uma fala defensiva. Essa confirmação torna-se mais relevante ainda se considerarmos que esta referência à maneira de ler foi parasitada em um turno de fala em que o assunto era bem outro. ( ... ) ela passa a se fundir naquele personagem. E eu, realmente, assim, não tenho uma idéia porque eu não... eu não... eu não me fundo em nenhuma personagem. Eu gosto de ler, assim, eu acho divertido. Se ela é divertida, eu acho divertido, mas não que eu passe por aquela pessoa. É uma coisa que eu não sei. Não entro dentro do personagem pra saber. Já essas pessoas que gostam, que são apaixonadas por eles, assim pelo romance em si, ela entra no personagem. E eu não entro, não, não sei.48 Essa experiência estética vivida na fruição, se não através da forma da expressão - que demandaria educação esmerada na prática leitora erudita -, pelo menos através da forma do conteúdo, desempenha um papel importate na construção das utopias desse leitorado, mesmo que a modernidade tenha prometido um futuro sem futuro. 49 Esses momentos catárticos, longe de meramente alienantes, provocam uma ressemantização da vida dessas leitoras, semelhante ao que ocorre com a personagem Cecília no filme A Rosa Púrpura do Cairo. Diante de uma vida miserável, oprimida pelo marido e pelo patrão, reduzida a objeto de uso, ela busca a sala do cinema, onde morre para a realidade dada como real e passa a viver outra realidade luminosa, a da ficção dos filmes românticos e de aventuras. É através dessa fratura da vida imperfeita do cotidiano e da vivência de momentos de perfeição que ela, de assujeitada, passa a sujeito, com vontade e coragem para agir. Dentro do enunciado do filme, identificada com o herói Tom Baxter, que é “honesto, corajoso, romântico e beija bem”, ela enfrenta pela primeira vez o marido opressor. Você “foi corajosa também, você o enfrentou”, diz a personagem e Cecília, pessoa, responde: “Você me inspirou”. O depoimento de uma das leitoras entrevistadas por nós confirmam a fala das personagens do filme dentro do filme: “você se sente totalmente transforma’’. 50 3. Leitoras nada passivas 3. 1. Limites deste trabalho Uma vez esboçados os postulados com que pretendemos compreender a prática leitora desses romances sentimentais, passamos a apresentar alguns resultados de uma primeira leitura do material que constitui nosso corpus: entrevistas, cartas e as narrativas da série Sabrina. São resultados, repetimos, de uma primeira leitura do material, mas suficientes para sustentar a tese de que não se trata de leitoras recolhidas numa atividade passiva e, assim, cada dia mais dominadas. 3.2. Sabrina, Bianca, Júlia: ‘‘mauvais livres’’, ‘‘mauvais genres’’ Sabrina, Júlia e Bianca, são denominações de três séries de publicações de romances de amor - na categoria livro e não revista - em formato de bolso, barato e dentro tradição do romance sentimental que vem desde as trobairittz, mulheres trovadoras da Idade Média. Cada série obedece certos padrões de gênero recomendados pela empresa e que as torna diferentes umas das outras. As séries Sabrina, Júlia, Bianca, Tentação, Clássicos Românticos, Clássicos Históricos e 476 Entrevista com leitoras de Sabrina, Bianca, Júlia: entrevista 5, p.1. Entrevista com as leitoras: entrevista 14, p. 14 49 ‘‘ ‘O futuro já é o que era’, diz um graffitto numa rua de Buenos Aires. O futuro prometido pela modernidade não tem, de fato, futuro. (...) ‘‘Perante isto, como proceder? Penso que só há uma solução: a utopia. A utopia é a exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via da oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem direito de desejar e porque merece a pena lutar. A utopia é, assim, duplamente relativa. Por um lado, é uma chamada de atenção para o que não existe como (contra)parte integrante, mas silenciada, do que existe. Pertence à época pelo modo como se aparta dela. Por outro lado, a utopia é sempre desigualmente utópica, na medida em que a imaginação do novo é composta em parte por novas combinações e novas escalas do que existe. Uma compreensão profunda da realidade é assim essencial ao exercício da utopia, condição para que a radicalidade da imaginação não colida com seu realismo.’’ Santos, Boa Ventura de Souza. Pelas Mãos de Alice. São Paulo, Cortez, 1995, p. 232, 233. 50 Entrevistas com leitoras de Sabrina, Bianca e Júlia: entrevista 11, p.7. 48 68 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997. outras são publicadas no Brasil pela Abril Cultural que, mediante contrato com a Harlequin, uma empresa canadense, tem direitos exclusivos de publicação e distribuição para todo o território nacional. A Harlequin foi fundada em 1949, em Wennipeg, uma pequena cidade do Canadá e, desde então, não parou de crescer. Os romances que edita e distribui são publicados em noventa países de culturas diferentes.51 Há mulheres lendo os romances da Harlequin na Arábia Saudita, na África, na Austrália, na América do Norte, na Europa do Leste, na América Latina e em muitos outros países. Cada sucursal se encarrega de traduzir as histórias para a língua local, conservando sempre as características e os nomes anglo-saxãos dos personagens. Na França, por exemplo, há três milhões de leitoras dos romances da Harlequin. Quarenta e nove títulos novos são mensalmente lançados no mercado, somando um total de quinze milhões de exemplares ano.52 No Brasil, a Abril Cultural está sozinha no mercado desse tipo de livro, publicando trinta dos sessenta e sete originais que recebe mensalmente da empresa canadense. A Abril Cultural traduz, publica e distribui para todo o país. Até mesmo os cromos das capas, antes fotografias, hoje fotografias pintadas em estilo impressionista já vêm prontos da Harlequin. A Abril Cultural começou a publicar a série Sabrina, semanalmente, em 1979 e, segundo a editora, no espaço vazio deixado pela foto-novela, que perdeu terreno para a televisão. Desde o lançamento, foi um sucesso entre as leitoras de todo o Brasil, chegando a vender o total de um milhão de exemplares em 1983.53 Sabrina, inicialmente, era uma publicação da Mills & Boon, uma empresa inglesa. A Harlequin comprou depois a Mills & Boon e continuou a publicar a série. Quando a Abril Cultural começou a publicar a série Sabrina, a Mills & Boon já era da Herlequin. Escrita por mulheres, lida por mulheres e caracterizada como sentimental, essa literatura recebeu e recebe qualificativos com evidentes conotações negativas: popular, de massa, feminina sentimental. Ao contrário de outros gêneros considerados mais nobres, esses “mauvais genres” não são considerados dignos de se tornarem objeto de trabalhos acadêmicos, não merecem ser citados, não merecem convívio com outros livros nas prateleiras de livrarias e de bibliotecas, e nem são considerados best sellers. Para muitos lei- tores eruditos, trata-se de “bobagem” e para os leitores de livro algum, em uníssono coro de pura e simples condenação com os primeiros, de “porcaria’’. Um doutor em Teoria Literária e apaixonado pela arte que se impõe sobremaneira por uma poética da forma da expressão e um vendedor de banca, que mal conseguiu assimilar o Impressionismo, estão inteiramente de acordo: para o primeiro, somos loucos”; para o segundo, ‘‘isso aí, para estudo de doutorado, não serve.’’54 As “disciplinas” e os “campos artísticos” vigiam suas fronteiras muito além delas, pois sabe-se que não se “pode falar de qualquer coisa”.55 3.3 As leitoras desqualificadas: quem são? A primeira constatação é de que todas passaram pelos bancos escolares de primeiro, de segundo ou de terceiro grau é todas tiveram “aula de literatura’’ ou pelo menos ouviram falar dela. Muitas se lembram das astúcias de que se utilizavam para sobreviverem às obrigações de leitura de José de Alencar e de Machado, leituras, para elas, intragáveis por causa da linguagem considerada “difícil’’ e do conteúdo pouco atraente. Pouquíssimas se lembram do nome de uma obra da Literatura Brasileira ou podem se referir a um romance que leram. “Aquilo lá, ih! Não desce”, diz uma; ‘‘na época, eu detestava’’, diz outra.56 Se ficássemos somente nas falas em que tocam na questão da leitura nos bancos escolares, teríamos a impressão de que jamais pegariam em um livro para ler. No entanto, essas mulheres de todas as idades, de 18 a 65 anos, secretárias, domésticas, professoras, diretoras de escola, vendedoras, comerciantes, aposentadas e presidiárias, todas, em algum momento de suas vidas, por iniciativa própria ou influenciadas pelas amigas da rede de leitoras, buscaram e encontraram um material de leitura para elas atraente nas bancas de revistas, na rede de troca com as amigas, nos sebos ou nas banquinhas barateiras da esquina. E, a partir do achado, todas se tornam, como elas mesmas se denominam nas entrevistas e nas cartas, leitoras “assíduas”, “apaixonadas’’ e “vorazes’’. Há as que leêm cinco, dez, vinte, trinta, sessenta e até mesmo cem, romances de 130 páginas por mês, encontrando prazer em dizer da velocidade de leitura a que chegaram e das 51 Houel, Annik. Le Romant D’Amour et as Lectrice. França/Canadá, Lármattan, 1997, p. 72. Houel, Annik, op. Cit. Supra, p. 72. 53 Informação dada pela editora. Observamos que ela não se dispõe a dar informação sobre seu desempenho no mercado dos anos mais recentes, o que é uma forma de proteger o seu negócio. Desconfiamos a princípio dessa informação, mas os donos de bancas e de casa de livros velhos tendem a confirmar um boom da série Sabrina nesse ano. 54 Opinião de um professor quando soube o objeto deste estudo; e opinião de um vendedor de banca de revista, quando soube a razão do nosso pedido de informação sobre as leitoras de romances sentimentais. 55 Foucault, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo, Loyola, 1996, p. 9 56 Dos depoimentos das leitoras nas entrevistas semidirigidas. 52 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997. 69 “viagens’’ que fazem. Todas lêem compulsivamente nas brechas do trabalho tedioso e mal pago, no ônibus e, em 90% dos casos, na cama, à noite, cabeça e corpo nivelados, deitadas na espuma fofa do texto, flutuando na água-com-açúcar do romantismo, viajando por terras de pasárgadas distantes. 3.4. Em busca da prática leitora erudita ou a utopia da educação de qualidade O que é notável é que todas, a despeito do trabalho competentemente inibidor do gosto da leitura, feito pela escola, e a despeito da censura exercida pelos freqüentadores da Literatura erudita, pela família, pelos maridos, pelos pastores e, principalmente, pelos que sofrem de inapetência crônica pela leitura de um livro, elas buscaram a leitura por iniciativa própria, desviando superlativamente de seus fins, “para as más leituras”, o diminuto saber ler que lhes foi conferido pela instituição escolar. Não é por acaso que a voz da escola e da igreja façam coro na condenação dessa leitura. Em coro, todos dizem que isso não as leva a nada, que vão ficar aí, para sempre lendo ‘‘bobagens’’, “narcotizadas’’, e que nunca experimentarão o prazer estético de ler Literatura mesmo, “de verdade’: fala de guardiões encastelados numa prática dada como única, extremamente capazes de tomar os outros por idiotas, e de fixar essa leitoras na posição de dominadas pelos meios de comunicação de massa. Com essa atitude, pretensamente reencaminhadora da ovelha desgarrada da boa prática, excluem ainda mais essas leitoras da mesma maneira que a estigmatização de bairros periféricos na mesmice de uma vida de crime e de miséria concorre para reforçar a sua negação e exclusão. Quem diz que essas leitoras não vão a lugar algum, que são conformistas, e que não aspiram mais do que aos romances de Sabrina, pode ter surpresas. Um primeiro exame das entrevistas parece indicar dois tipos de leitoras desses romances sentimentais: as que são mais ou menos novatas na prática e se restringem à leitura dos romances mais simples e menores como Sabrina, Bianca, Júlia, e as que praticam há muito mais tempo a leitura desses romances sentimentais e, de alguma forma, já não se limitam à leitura só deles. Tanto da parte das primeiras como das segundas, embora se encantem com o romantismo das narrativas, com a facilidade da linguagem, com o prazer da leitura para passar o tempo e reanimar a vida e mesmo com os conhecimentos que obtêm deles - deixam transparecer, aqui e ali, uma certa insatisfação com o capital cultural dessas leituras. Nos depoimentos que fazem sobre suas leituras, concebem, implicitamente, a existência de uma outra prática leitora cujo capital cultural é maior e de maior prestígio social. As leitoras que há mais tempo lêem os romances de 70 Sabrina, conquanto continuem a fazê-lo, desmerecem essas narrativas: ‘‘leu uma, leu todas’’, dizem, percebendo claramente a estrutura narrativa fixa delas. Ou seja, percebendo o que um estudo teórido revelaria com a fórmula: X quer entrar em conjunção com o amor de Y, X não pode fazê-lo (há um obstáculo), X passa a poder fazê-lo (o obstáculo é removido), o amor realizase. Assim, colocam-nas na conta de leituras do passado, e se confessam leitoras que evoluíram para um grau acima. Há as que estão nos romances denominados Clássicos Históricos; as que já chegaram a Sidney Sheldom; as que estão lendo mas diversificadamente e até mesmo aquelas que já chegaram a incluir as obras da Literatura Brasileira, algumas da mesma lista das obrigatórias do tempo de escola. Utilizando as categorias de quantidade e de dificuldade, postulam um grau de complexidade crescente para esses romances colocados entre Sabrina e as obras da Literatura brasileira, o que é, de alguma forma, procedente. O que isso pode significar? Provavelmente duas coisas. Primeiro, que querem mesmo é ascender ao patamar da prática leitora de prestígio, àquela cujo valor é inconteste e; segundo, que excluída dela por um sistema de ensino ineficiente, estão fabricando um caminho ou escada de acesso a Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997. ela com a literatura de massa, mais especificamente com as ‘‘más leituras’’, a leitura de “bobagens”.57 A um erudito que lhes dissesse: ‘‘lendo essas bobagens, com que roupa vocês vão um dia ler boas obras?”, elas poderiam responder, “é com essas mesmas que nos dão, é com essas que temos, e com as quais, ao nosso modo, fazemos caminho, embora sob serrada condenação para nos excluir ainda mais’’. Uma das entrevistadas considera que o encontro com essa literatura de massa possibilita aquilo que a escola não consegue desenvolver nos alunos: a predisposição para ler, uma atitude leitora que envolve também o corpo, e evolui em direção a outros livros - o que não está distante da afirmação de Paul Zumthor de que “A leitura exige iniciativa e ação física tanto quanto audácia intelectual.’’58 Sabem, enfim, o que não sabia Kaper Houser quando pergunta no filme “por que não se pode tocar piano como quem respira’’.59 Eu acho que aprende aprende a, a ... ter um pouquinho de paciência, sentar, ler. Acho que nisso aí ajuda sim. Porque é uma coisa que te, te envolve, né? Então eu acho que você adquire aquela paciência prá você pegar outros livros, né, e... e ler60. Nesse sentido, esse grande contingente de leitoras excluídas no trabalho, na educação e na prática leitora, longe de recolher-se numa subjetividade conformista, está a repor, sob a forma de usar esses objetos da comunicação de massa, a velha utopia dos filhos dos trabalhadores do século XVIII: a educação de boa qualidade dos filhos dos humanistas e burgueses, sem os conteúdos rebaixados com que, depois, foi estendida para todos.61 Por si mesmas, e a sua maneira, vão 56 ‘‘O conhecimento tem ainda um sentido mais geral, de sorte que se encontra também nas idéias ou termos, antes de chegarmos às proposições ou verdades. Pode-se dizer que aquele que tiver visto com atenção mais retratos de plantas e animais, mais figuras de máquinas, mais descrições ou representações de casas ou de fortalezas, que tiver lido mais romances engenhosos, ouvido mais narrações curiosas, este, digo eu, terá mais conhecimento que um outro, mesmo que não houvesse uma só palavra de verdade em tudo o que viu representado ou ouviu. Com efeito, o hábito que tem de representar no espírito muitas concepções ou idéias expressas e atuais o torna mais apto a conhecer o que se lhe propõe, e é certo que ele será mais intruído e mais capaz do que um outro, que não viu, não leu, nem ouviu nada, sob a condição de que nessas histórias e representações não considere verdadeiro o que não o é, e que suas impressões não o impeçam de discernir o real do imaginário, ou o existente do puramente possível.’’ Leibniz, Gottfried Wilhelm, 1646-1716. Novos Ensaios sobre o entendimento humano, trad de Luiz João Baraúna, 2. Ed. São Paulo, Abril Cultural, 1984, p. 285. 57 Zumthor, Paul. A Letra e a Voz. São Paulo, Companhia das Letras, p. 104 58 O Enigma de Casper Houser, de Werner Herzog. Kasper Houser, depois de ouvir os sons do piano: - Isso me soa muito no peito. A música me soa muito forte no meu peito. Agora eu me sinto velho. Por que tudo é tão difícil? Por que não posso tocar piano como respeito?’’. 59 Entrevista com as leitoras: entrevista 13, p. 9 60 Alves, Gilberto Luiz, Quatro Teses Sobre a Educação Material da Escola Pública Contemporânea. In: Intermeio: Revista do Mestrado em Educação, v. 1 n.2. Campo Grande, UFMS, 1995, p. 10: ‘‘Quando a escola nova burguesa chegou aos trabalhadores, o conteúdo da escola tradicional, apesar de ser o seu ponto de partida, foi subvertido de uma forma tal que a dita formação humanista, calcada no trivium e no quadrivium, assim como a formação científica, fecundada no desenvolvimento das ciências modernas, passaram por um processo de desvitalização progressiva até submergir numa mera apologia da dominação do capital.’’ Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997. 71 aprendendo a ler, vão assimilando as condições elementares exigidas por esse ato. O desejo de se tornarem escritoras de muitas delas, e as exigências de que os editores zelem pela correção das publicações, manifestados em cartas para a editora, comprovam-no. 3. 5. A vergonha e a utopia de Pasárgada As leitoras dos romances sentimentais de Sabrina, todas são tomadas por um sentimento: a vergonha de ser as leitoras que são. Poucas delas confessam explicitamente ter esse sentimento, a maioria o deixa implícito ou admite a existência dele, não nelas, mas nas outras - o que é natural, pois da vergonha não se fala. Darwin diz que o rubor é a mais humana de todas as expressões e que somente os animais e os idiotas não se ruborizam, não se envergonham62. ‘‘J’ai honte, donc j’existe”, diz Jankelevitch’’.63 Para se ter o sentimento da vergonha, é preciso alguém mais, um outro para quem o sujeito desloca sua atenção, à procura do como esse outro o vê e avalia, ou seja, da imagem de si feita por esse outro digno de fé, merecedor de consideração. É assim que a vergonha é a primeira fobia da má consciência, uma vez que ‘‘Ela se instaura num sujeito cindido, desdobrado e debruçado sobre si mesmo. Objeto do pensamento alheio, objeto do próprio pensamento, objeto.... Sujeito que percebe estar sujeito e não ser sujeito, percebe ocupar uma posição de sujeito, quando pensa, quando olha; de objeto, quando é pensado, quando é olhado’’.64 As leitoras de Sabrina vivem uma dicotomia interior. Reclusas na intimidade do lar, no fundo das noites e no aconchego da cama, essas leitoras habitam os textos dos romances, dando vez e voz ao corpo. A leitura não é mais, predominantemente, operação intelectual obediente aos constrangimentos e regras. Ali viajam por terras de Pasárgadas, fartam-se e confortam-se com projeções de si num imaginário de confiança e relaxamento. Tudo parece em equilíbrio, tudo é otimismo enquanto existe, dentro do simulacro existencial que tecem, identificação do sujeito a sua imagem, ou seja, enquanto imagem e sujeito configuram um mesmo e único valor. Quando, porém, na esfera pública, perdem esse estado de relaxamento. Disfarçam ou ocultam a pertença a essa prática leitora. Para elas, é claro e pesado o olhar da outra prática leitora, o valor que no meio social lhe atribuem leitores e não-leitores. O olhar da prática leitora dominante está ali, sancionando impiedosamente para um quase nada a imagem de leitoras com que acreditavam representar-se: ‘‘leitoras de porcaria’’ diz um; ‘‘melhor que nada’’ diz.outro; ‘‘leitoras insone’’, acrescenta um terceiro. O modo como essas leitoras se vêm na esfera ínti- ma ou diante de interlocutores menos perigosos revela-se em desajuste com o modo como percebem que são vistas. Como imagem e sujeito são indissociáveis, essas leitoras reconhecem não ser leitoras de fato, passam para um estado de tensão e temem o juízo dos outros, cuidando para não franquear ao domínio público o conhecimento de seus hábitos de leitura. A vergonha é, pois, um sentimento intersubjetivo conflitante. As leitoras se desdobram entre dois simulacros: o simulacro em que se atribuem uma competência positiva; e o simulacro em que não se julgam possuidoras dessa competência. Em termos com que opera a semiótica greimasiana, a leitora de Sabrina é um ator que desempenha, ao mesmo tempo, o papel dos actantes destinatário e destinador julgador, pois é ela mesma que se atribui uma competência e, ao mesmo tempo, a sanciona como negativa, em conformidade com outro destinador julgador, aqueles leitores e não-leitores que reconhecem a competência leitora erudita como a única legítima. Longe de serem “insones’, essas leitoras vivem um drama: reconhecem muito bem a prática leitora erudita como a que vale socialmente; elegem-na como parâmetro para julgar negativamente a imagem de leitoras que projetam de si internamente a própria prática. O sentimento de inferioridade é, pois, resultado de um fazer cognitivo. Longe de serem “insones”, essas leitoras percebem muito bem o poder simbólico excludente das práticas. O sentimento de vergonha se instaura porque, tanto elas, leitoras das narrativas-água-com açúcar, quanto os leitores eruditos e também os leitores de livro algum compartilham um mesmo modo de pensar sobre a noção de leitura que tem valor: a noção de leitura como operação intelectual obediente às coerções do texto para aquisição de conhecimento imposta a todos pelo sistema educacional. Assim, essas leitoras compõem uma massa de envergonhadas e culpadas por não possuírem aquilo que o sistema educacional não lhes permite possuir e as faz crer que têm o dever moral e social de saber: ler conforme a prática leitora erudita. Se a vergonha é a fobia daquela consciência cindida que se percebe a si mesma como objeto (estando sujeita ao olhar do outro) e como sujeito (pensando-se e vendo-se negada) é compreensível que, para livrar-se dessa situação fóbica, as leitoras desviem-se da utopia de tudo conhecer pelo intelecto para a utopia do corpo, do sentir; para a utopia de Pasárgada. Nas brechas das incoerências de um sistema normativo e prescrito que as oprime, instauram desvios, repõem o que foi subordinado à mente e banido da escrita e da leitura: o corpo.65 Deitadas, intelecto e corpo no mesmo nível, pilo- 62 Darwin, Charles. L’expression des émotions chez l’homme et les animaux. Belgique, Editions Complexes, 1981. Jankélévitcha, W. Traité de Vertues III: L’inocence et la Mechanceté. Paris, Flamarion, 1986 64 Harkot-de-la-taille, Elizabeth. Ensaio de Semiótica sobre a Vergonha. Tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1996. 63 72 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997. tam o texto a corpo, mirando outros corpos iluminados, sujeitos de Pasárgadas distantes, cujos nomes são atestados de possibilidades de realizações de sonhos: Suécia, Texas, Canadá, Grécia - geografias que ancoram as narrativas no real. E, como diz Pierre Lévin, Aqui não é mais a unidade do texto que está em jogo, mas a construção de si, construção sempre a refazer, inacabada. Não é mais o sentido do texto que nos ocupa, mas a direção e a elaboração de nossos prazeres, o fio de nossos sonhos. Desta vez o texto não é mais amarrotado, dobrado feito uma bola sobre si mesmo, mas recortado, pulverizado, distribuído, avaliado segundo critérios de uma subjetividade que produz a si mesma. Do texto, propriamente, em breve nada mais resta, no melhor do casos, teremos, graças a ele, dado um retoque em nossos modelos de mundo. (...) Ele nos terá servido de interface com nós mesmos. (...) O texto serve aqui de vetor, de suporte ou de pretexto à atualização de nosso próprio espaço mental. Confiamos às vezes alguns fragmentos do texto aos povos de signos que nomadizam dentro de nós.65 Se no passado os romances de Macedo e de José de Alencar respondiam às necessidades e sonhos de muitas mulheres, hoje são essas narrativas sentimentais de massa a paisagem onde essas excluídas do mercado de trabalho compensador, do próprio corpo, do país e das prática leitora reconhecida, vão repetir compulsivamente o sonho do paraíso perdido ou por vir. Assim, ao seu modo, via corpo e sonho, ouvindo reiterados atestados de exclusão, vão aprendendo a ler (Por vias tortas?) a geografia do mundo. 4. Conclusão “Os esquemas interpretativos pertencem a configurações culturais, que têm variado enormemente através dos tempos.” Aqueles que vivem em mundos mentais diferentes, lêem de maneira diferente e, assim, a história da leitura poderia ser tão complexa quanto a história do pensamento.”66 Há pouco tempo, pensou-se que a sociedade de masa seria uma sociedade homogeneizada ao extremo pela ideologia que detivesse o poder dos modernos meios de comunicação, mas hoje os fatos indicam que não é bem assim. A massa fragmentou-se e torna-se cada dia mais complexa: no lugar das seitas, milhares de credos; no lugar do ‘‘Belo’’ dado por um grupo, os ‘‘belos’’ distribuídos por milhares de grupos e, assim, até a vertigem. Os gestos concretos dos meios de comunicação de massa, dirigem-se, cada dia mais, à fatias específicas de público, dão testemunho disso. Os universos mentais se multiplicam e, com eles, as maneiras de ler, o fenômeno do encontro entre o ‘‘mundo do texto’’ e o ‘‘mundo do leitor’’.67 Parece que, com a falta de visibilidade das instituições poderosamente coesas, que garantiam uma determianda disciplina do ler, os códigos ficaram flutuando a mercê do uso de quem quer que seja que os habite com seu universo mental. É como se, na queda de braço entre as imposições do texto ao leitor e do leitor ao texto, o leitor estivesse levando a melhor e simplesmente habitando os códigos disponíveis com os imperativos de seus universos mentais. Em um cinema de um das galerias da Avenida Paulista um homem está na fila para comprar ingresso. A tabuleta dá, em cima, o nome do filme, O Paciente Inglês, formando um pequeno bloco ou parágrafo; e, mais em baixo, como que dando idéia de outro bloco, os dizeres: “Sex. a Dom.”. O homem então pede um ingresso para “Sex(o) a Dom(icílio)’’. A mulher da bilheteria ri, rimos - e o homem sai meio sem jeito. À essa atitude de habitar o código a seu modo corresponde outra de produzi-lo, não por uma retórica de uma imposição logica, mas por uma retórica dos brancos, das disponibilidades para um inquilinato. Contra o estudo da recepção das obras pautada numa definição puramente semântica do texto, Chartier diz que a reconstrução do processo de atualização dos textos em suas dimensões históricas “exige, inicialmente, considerar que as suas significações são dependentes das formas pelas quais eles são recebidos e apropriados pelos seus leitores (e editores)’’68 O estudo da leitura hoje, mais do que em outros tempos, se não quiser ser uma miragem ou abstração, precisa interessar-se pelas diversas e cada vez mais numerosas práticas do ler. Compreender a prática leitora das leitoras de romances sentimentais não deve ser destituído de interesse e importância principalmente, para aqueles que se dedicam ao ensino da literatura e nela acreditam sobremaneira como possibilidade de uma experiência estética (mais rica?) no nível da forma da expressão e da forma do conteúdo. 65 ‘‘A escrita adquire um direito sobre a história, em vista de corrigi-la, domesticá-la ou educá-la. Ela se torna poder nas mãos de uma ‘‘burguesia’’ que coloca a instrumentalidade da letra no lugar do privilégio do nascimento, ligado à hipótese de que o mundo dado é razão.’’ Certeau, Michel, op. cit. p. 235. ‘‘Onde se acha o limite da maquinaria pela qual uma sociedade se representa por gente viva e dela faz as suas representações? Onde é que pára o aparelho disciplinar que desloca e corrige, acrescenta ou tira nesses corpos, maleáveis sob a instrumentação de um sem-número de leis? Na verdade, eles só se tornam corpos graças à sua conformação a esses códigos. Pois onde é que há, e quando, algo do corpo que não seja escrito, refeito, cultivado, identificado pelos instrumentos de uma simbologia social? Talvez na fronteira extrema dessas escrituras incansáveis, ou furando-as com lapsos, exista somente o grito: ele escapa, escapa-lhes.’’. Certeau, Michel, op, cit, p. 240. 66 ‘‘Lévin, Pierre. Op. Cit p. 36 67 Darton, Robert, História da Leitura. In: Burke, Peter. A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo, Unesp, 1992, p. 233 68 Ricoeur, Paul. Temps et Récit, tomo III, Le Temps Raconté, Paris Éditions du Seuil, 1985, p. 228-263 69 Chartier, Roger. A Ordem dos Livros. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1994, p. 12 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997. 73 The purpose of this study is to identify and to analyze the strategies a group of adult Brazilian learners (learning English as a foreign language) draw on to solve their communicatíve problems. The data for the study came from subjects of three different proficiency levels who were tested on theree different tasks. The learners’ mental processes in the production of speech were inferred from the subjects’ performance data and introspection. The taxonomy for the identification of communication strategies(CSs) for the present study was based on the typologies, of Tarone, Cohen and Dumas (1980); Faerch and Kasper (1984); Wilhems (1987) and Oxford (1990). The general results of the study indicated that Interlanguage (IL) speakers consciously or unconsciously employ CSs to convey meaning when communication runs into difficulties. This study identified many strategies in the speakers’ performance. The most frequent ones are foreignizing, code switching, approximation, overgeneralization and paraphrase. Key-words: monono mnonon mnonon mnono mnono mnon Este estudo tem como principal objetivo identificar, definir e analisar as estratégias de comunicação e signos de hesitação nas falas de um grupo de estudantes brasileiros, adultos, aprendizes de inglês. Adicionalmente, a relação entre o nível de proficiência linguística do grupo e o emprego de estratégias orais é discutida. Os dados para o estudo forarn obtidos de alunos de três diferentes níveis de proficiência que foram testados em três diferentes atividades. Os processos mentais de produção de fala dos alunos foram inferidos a partir de dados de desempenho e introspecção. A taxonomia empregada para a identificação das estratégias de comunicação foi baseada em tipologias existentes, mais especialmente as de Tarone, Cohen e Dumas (1980); Faerch e Kasper (1984); Willhems (1987) e Oxford (1990). Os resultados gerais deste estudo indicaram que apesar dos falantes basicamente empregarem o mesmo tipo de estratégia de comunicação e signos de hesitação para superar seus problemas comunicativos, a frequência de uso de estratégias de comunicação e os signos de hesitação variam de acordo com os níveis de proficiência, sugerindo que os estudantes brasileiros evoluem em termos de tipos (pouco significativos) e frequência (bastante significativos) no uso de estratégias de comunicação e signos de hesitação. Os resultados parecem portanto indicar que o comportarnenteo comunicativo dos falantes é transitório e dinâmico. Palavras-chave: monno mnonon mnonon mnonno mnonon 74 * Nadir de Assis Borall é .............................. ................ ........... .................................. ORAL STRATEGIES USED BY BRAZILIAN STUDENTS LEARNING ENGLISH Nadir de Assis Borall Introduction In the past few years, a good deal of research has been done on the interlanguages of leaners, in many different situations. The theories of interlanguanges are of great importance since their principles may contribute to the understanding of the learning and the teaching methodology of second languages (SLs). Since Selinker’s proposal of the ‘interlanguage’ theory, there has been a growing interest in the study of the learning process, rather than the learning product (cf. Ellis, 1984; Wenden and Rubin, 1987; Crookes, 1989). Champeau (1989) points out that the “focus has shifted from the teacher to the learner and with this has come the realization that each learner is an individual with distinct needs, learning styles, mental schemata and attitudes’’ (p.2). This position has motivated a growing interest in understanding the internal mechanisms the learner displays when s/he wishes to convey messages whose linguistic knowledge does not permit him/her to express adequately. Thus, in recent years, an. increasing number of studies in interlanguage research have focussed on the phenomena that take place in second-language learners’ performance. Special emphasis has been put on communication strategies (CSs) and phenomena of hesitation (PH) occurring in the planning/execution phase of speech production. Research on second-language acquisition has identified a variety of strategies that learners use to convey meaning when communication breaks down or runs into difficulties in the target language. It has been observed that depending on what the learners want or need to communicate they are often forced Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997. to use rules of which they do not have an adequate command. This can happen in all domains of language: morphology, phonology, syntax and lexis and leads learners to constantly plan and revise their utterances during the process of speech production. Accor ding to Faer ch and Kasper (1983), second-language learner s, when faced with difficulties caused by lack of knowledge in the target-language (TL), employ certain strategies that are ‘potentially conscious’ to solve troublesome situations. These strategies (pauses, repetitions, drawlings, the use of foreignizing, paraphrase, approximation) can be clearly observed while the learners are attempting to communicate. Considerable research in the area of second language acquisition (Tarone, 1977; Faerch and Kasper, 1983; Wenden and Rubin, 1987; Oxford, 1990) has been devoted to discovering and understanding the internal mechanisms of the speech production process, to providing clues about the kind of strategies second or foreign learners employ to communicate, and to providing information important to the field of second-language (SL) and foreign-language (FL) teaching and learning. The purpose of this study is to increase our understanding of the second/foreign language communication processes through an investigation of the internal mechanisms Brazilian learners display while they are trying to communicate in a foreign language. In this investigation a framework will be provided describing the strategies these learners draw on to solve their communicative problems. 75 Methodology Subjects The data for the study came from twenty-four subjects of three different proficiency levels: High-Proficiency Speakers (HPSs); Intermediate Proficiency Speakers (IPSs) and Low-Proficiency Speakers (LPSs). The subjects were from undergraduate students enrolled in the Letras Course (campus of Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS).The students were all adults, (twenty-one females and three males) their age ranging from 18 to 30, and were all speakers of the same Ll, Portuguese. Collection of data Data were collected over a span of two months at the beginning of the school year. Students took part in three oral production tasks resulting in a total of 72 speech production samples. The data were audio-taped and collected in a normal language classroom. Students participated voluntarily in the experiment. They were told to produce the best they could and as much language as possible. Each task session lasted from 20 to 40 mínutes. Instruments The subjects in all three groups performed three production tasks: an oral description of a sequence of pictures (CP) (appendix 1); the retelling of a story told by the experimenter in L1 (RS)(appendix 2); the explanation of four concrete and four abstract concepts (EC)(appendix 3). These tasks were selected because they have been mentioned in the literature as involving a variety of oral speech styles and being frequently performed in real life situations (cf. Morrow, 1979; Pint, 1981; Shohamy, 1983; Fulcher, 1987). Procedures The tasks were performed under a psycholinguistic perspective (i.e.each learner tried to find a solution her/ himself without the cooperative assistance of the interlocutor, in opposition to the interactional perspective). The approach followed to detect CSs was the ‘phenomena of hesitation’ reflected in the interlanguage performance as an index of ‘how’ and ‘where’problems in planning and execution are taking place (cf. Beattie and Bradbury, 1979; Dechert and Raupach, 1983; Faerch and Kasper, 1983). Because of considerable evidence that learners can be used as informants to offer a better understanding of the internal mechanisms of their speech production, a second research tool used in this study was self-observation: immediate retrospection based on a questionnaire. The methodological framework for reaching the learner’s mental processes in the production of specch was based on suggestions provided by Hosenfeld (1977) 76 (1979) Cohen and Aphek, (1981) Cohen and Hosenfeld (1981) and Cohen (1984). For eliciting data, a brief questionnaire with the questions given below was given to the students, and further explanation and clarification was given in Portuguese. Students were free to write their answers in English or Portuguese language. Questionnaire - Try to identify the strategies you employed to solve your communicative problems in the TL. -Did you have troubles with vocabulary while you were trying to communicate in the TL? In order to obtain further insights on the learner’s mental activities involved in the process, a third research tool used in this study was self-observation: delayed retrospection based on interviews. As in Cohen and Aphek (1981) an ‘external elicitation format’ - namely questions of the type: “Why did you say X?”, “Why is this type of signal of hesitation present in your speech?”, was used in this study. The elicitation and response were oral ín the subject’s mother tongue or in the target language, depending on the speakers proficiency level. In order to capture some of the processes/strategies used by the speakers, they were asked individually by the experimenter in a retrospective session a day after and in some cases two or three days later, to discuss and comment of the problems they had faced while performing the task. The reason why this retrospective session was discussed only a day after or some days later was the need to have the data transcribed before interviewing the subjects. A tape-recorder with the students’ language taped was used as a stimulus for the students to reconstruct what was going on in their minds at given moments. Thus, the analysis of hesitation phenomena in the learners’ speech data and an introspective analysis reflecting both immediate retrospection based on indirect questions (questionnaire), and delayed retrospection based on direct questions (interviews) were considered promising approaches for understanding mental activities involved in language processing. Analysis of Data Each session was tape-recorded and later transcribed following the transcription symbols suggested by Marcuschi, (1986), and Heritage and Atkinson, (1987). Although the subjects were free to make the introspective comments in their own language or in the TL, when transcribed to this study, the comments which were given in LI were translated into English. The taxonomy of CSs for the present study is based on the typologies of Tarone, Cohen and Dumas (1983); Faerch and Kasper (1984); Wilhems (1987) and Oxford Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997. (1990) Although the description of CSs was based on existing research in the area, the categories were reorganized and classified to fit the performance and introspection data of this experiment. In order to simplify the task (following suggestions in Bialystok, 1980) the CSs are divided into two main groups of strategies: A) strategies based on LI linguistic knowledge and B) strategies based on the TL linguistic knowledge. Results and Discussion The following types of CSs were identified in the TL learners’ speech production to convey the desired message when they lacked the appropriate TL words. Taxonomy of Communication Strategies A. L1 BASED STRATEGIES a.1 Foreignizing or Anglicizing a.2 Code Switching or Borrowing B. L2 BASED STRATEGIES b.1 Paraphrase or Circumlocution b.1.1 Exemplifications b.1.2 Definitions b.1.3 Descriptions b.2 Approximation or Substitution b.3 Overgeneralization or Word Coinage C. REPAIRS c.1 Partial Immediate Repair c.2 Full Immediate Repair c.3 Restructuring c.4 Completion Repair D. OTHER STRATEGIES d.1 Semantic Field d.2 Omission d.3 Message Abandonment d.4 Mimes and Gestures Discussion of Communication Strategies A. LI BASED STRATEGIES a. 1 Foreignizing or Anglicizing: One of the most common resources for coping with TL difficulties for low-proficiency speakers is the process labelled foreignizing or anglicizing. This consists in applying L2 rules of phonology or morphology or both processes simultaneously to a L1 lexical item. According to the speakers, in many circumstances, they try to invent or create a new word based on L1, giving to the word a L2 pronunciation. However, in some points of their speech they did, not know how the word came to their minds. Actually they did not know they were using a deviant lexical item. The three following examples extracted from the data exemplify the use of foreignizing. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997. Ed (LPS) used /’eskeleid/ for climbed up, inserting phonological and morphological rules to the Portuguese verb ‘escalar’. Lc (LPS) in her struggle to find a verb to fill her speech gap reported: “I had to say ‘organizou’ or ‘preparou’. I didn’t know how to say these words in English because my English vocabulary is too poor, I, then, tried a similar word in Portuguese. I know the ending of regular verbs is -ed and I tried to add this suffix to the verb and I also tried to pronounce it in English and then 1 had ‘organizeitid/. “ Kr (LPS) trying to express the word secure, used /se’guiur/. When asked why she used this form, she answered: “Well I thought it was correct to say /se’guiur/. I do not know if I thought in Portuguese before saying the word”. As the word / se’guiur/ in her performance data is not preceded by a series of signals of hesitations we can say that the word was used spontaneously by the speaker. Many of the lower-proficiency speakers said they used this process because they are aware of the similarities between the two systems (L1 and L2) and so looked for a word based on L1 to solve a specific language problem they were having. The following statements provided by Ap (LPS) in example 1, and Lc (LPS) in example 2 Mr(HPS) in exarnple 3, Cr(IPS) in example 4 illustrate the use of this strategy: (1) My little experience has showed me that there are many words that are very similar to Portuguese. Then I tried the word in the hope of guessing the appropriate item. Ap(LPS) (2) I tried the word based on Portuguese because I know it works sometimes. Lc(LPS) (3) I used the word /reptail/ for reptile. I remember this word caused me great problems. I didn’t know if it was correct to use this word and also I don’t know if I had heard it before, or if I thought in Portuguese to use the word. Mr(HPS) (4) The time was so short. I had to think quickly and I used the first word that came to my mind to say ‘cometer’ and I said to /komi:t/ mistakes, but I always think in Portuguese before deciding about the word that I don’t know yet. Cr(IPS) a.2 Code Switching or Borrowing: The use of code switching or borrowing is not so common in my data as the use of foreignizing. However, speakers did occasionally use code switching as a way of overcoming their problems in communication. Code switching consists in using an item from L1 (without translating it to L2) with L1 pronunciation. Observe the two following examples extracted from the data: (5) One day he: - (he) were (0:10) (he were) ‘procurando’ -(eh) rich families - for stole... Mt(LPS) 77 (6) Paul and John - taking a ‘pedra’ and broking the vase. Nd(LPS) the lexical item they try to explain the word, to define it or to give examples. (7) He: (he) had to: (to) (pause) he had to ‘descer’(laughter). Dn(PS). Z1, a HPS, did not know how to say ‘duet’ but she tried to express it in the following way: Some subjects affirmed they rarely resorted to this strategy because they know it is not very helpful. Some reported that they just resorted to this strategy because they were having serious problems, and they knew they could not use the word, but the circumstances forced them to say something. Others reported that the word came at once, spontaneously. It came like an impulse. The introspections below illustrate, the strategy. (13) ... a couple of - (a couple of) young persons were playing - ‘a four hands’on the piano. Zl(HPS) (8) I was in a terrible situation. I didn’t have much time to think and I was getting very nervous. It seems that the word just disappeared from my mind and at once I found myself using a Portuguese word. Mt (LPS) (9) I don’t know why I used a word from Portuguese, it was so spontaneous that when I became aware I had already said the word. Nd(LPS) (10) Sometimes I use a Portuguese word because there is no other alternative. You are forced to. Dn (IPS) If we take into consideration the statements (11 and 12) below it is possible to say that the extent to which code switching is present in some of the lear ners’ inter languages will depend on the interlocutor, namely, if s/he is talking to a person sharing the same L1 or a person who does not share the same language (11) If I am talking to my English teacher or a Brazilian friend I always insert words from Portuguese into my conversation, but I wouldn’t use the same resource if I were talking to a natíve speaker. Lc(LPS) (12) If I were in a normal situation, talking to an English person, for instance, I would not use a word in Portuguese because the person would not understand me. I would try other resources. Kt(HPS) B. L2 BASED STRATEGIES b.1 Paraphrase or Circumlocution: The learner tries to describe the characteristics of the object or action instead of using the appropriate target language item. In order to overcome communication problems s/he resorts to the following processes: a) descriptions, b) definitions and c)exemplifications. According to the speakers’ statements this is the most common strategy employed by them. Almost all of the subjects reported in the introspective analysis that when they do not know 78 Sd(IPS), in her attempt to produce ‘hide and seek’, said: (14) Children are playing. One of them need to close his eyes and the others - Will try to find a place. Sd (IPS) Kr(LPS), trying to express the verb ‘to steal, produced: (15) He obtained other peopIe to - get their things for he. Kr(LPS) It is important to mention that paraphrase seems to be a conscious strategy since all the speakers reported that when they did not know the appropriate TL lexical item, they made a great effort to explain it. The following two statements are typical of the learners’ introspection about this strategy: (16) When I find myself in trouble with the words I have not learned yet,one of the ways I always try to solve the problem is to explain, to give definitions. Cr (IPS) (17) It is impossible to memorize all of the words of a foreign language. I have discovered by myself that the best way of dealing with this is to try to explain, to give examples, synonyms or definitions of the unknown word. Rc(HPS) b.2 Approximation or Substitution: This is a very common type of strategy employed by the subjects, specially the low-proficiency ones. It can be observed that they substitute a TL item they do not know or remember by another TL item they think can approximate in meaning or produce the same effect of the intended item. From the point of view of the subjects, their main problem is to find a word that can appropriately substitute the TL item they do not know or remember. Looking at the examples presented below we can observe that the substituted items in certain cases do not give us the exact idea of what happened, but they could be accepted in other situations. Interesting to observe is the fact that in many cases these items are not preceded by long pauses, showing that the process may be quite spontaneous. There is no long search for the word. (18) Instead of saying. A boy was climbing up Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997. the tree the learner produced. “A boy - was playing on the tree.’’Ap(LPS) (19) Instead of saying: Peter hid under the tree, the learner produced: "Peter stayed under - the tree" Nd(LPS) (20) Instead of saying: ...suddenly he fell into the vase, the learner produced: “... suddenly (0:5) he went to the vase.’’ Dn(IPS) When the learners were asked why they used this process to communicate, they offered the following explanations: (21) I was not going to be able to say exactly what I had to, but instead of not saying anything I preferred to say it in a different way. Kr(LPS) (22) Trying to find substitutes is not an easy task. It takes me a lot of time thinking if the word would be the same that a native speaker would use. Rh(IPS) (23) I don’t have much troubles. If I perceive 1 won’t be able to say the word because I don’t remember or have not learned it, I try to substitute it by a word which produces a similar effect. Gr(HPS) b.3 Overgeneralization or word coinage: This is not such a common strategy used by the group of learners. However, it represents another technique of creating nonexistent words. The learner consciously or unconsciously invents or creates a new word induced by his/her linguistic knowledge of the TL. The process of overgeneralization consists in extending the use of a lexical item and/or grammatical rule beyond its accepted uses, e.g., one of the learners Mt(LPS) of this experiment needed to use the word ‘robber’ , but didn’t remember the word. To solve the problem she took another word from the same semantic field (available in her repertoire at the moment of speaking) and attached the suffix -er, producing “stoler”. It seems that she had automatized the general rule for the formation of nouns designating professions as in “player”, “writer”, etc . It seems that the process was highly spontaneous. When asked, the learner said she remembered she was having trouble, but was not able to explain how the word ‘stoler’ came to her mind, although she was conscious about the use of the -er. The following are typical examples of overgeneralization: Asked about example (24), the learner said she knew the word ‘govern’ and the ruler to designate professions, although at the time of speaking she was not sure if it was correct to say ‘governer’ or not. Most learners were not able to give satisfactory explanations about this process of creating new words, as exemplified by the introspective comments in (26) and (27): (26) I don’t know how the word “stoler” came to my mind. Perhaps I had already heard the word in class. It was spontaneous. Mt(LPS) (27) Sometimes I am so confused! The words and the grammatical rules all of them mix in my mind. I didn’t have much time to think. 1 have no other way axcept trying to make some adaptations to the words. Dn(IPS) C. REPAIRS This is a very common kind of strategy employed by speakers at all levels of proficiency. It consists of setting up a new speech plan everytime the speaker perceives the original one has failed, or has not produced the intended meaning. In my data the speakers employed the following kind of repairs: c. 1 Partial Immediate Repair: When the learner uses a linguistic form and perceives, before concluding the whole sentence, that s/he has made an error and immediately corrects it. This is the most frequent type of repair used by the learners, although they are not always able to produce a correct version. Examples of partial immediate repair are: (28) ... many peoples and children go (eh) “went”- to a park. Lc(LPS) (29) ... he didn’t want to did “to do” the work. Mr(HPS) c.2 Full lmmediate Repairs: This happens when the learner says a whole sentence or stops in the middle of the message because s/he perceives the sentence is not going to express the desired meaning or s/he is just not satisfied with it because s/he produced an ungrammatical sequence. Observe the following examples: (30) When he became to the house, he came back home... Kr(LPS) (24) You work - very-much - a:nd (0:7) receive money and: the govern, governer? - stay.. Nd(LPS) (31) I wanna a - easy work that give - me a lot of money, and (0:5) with the govern... didn’t know - (0:5). - No I wanna - an easy work that give me a lot of money, and - (the) the government didn’t know abont it. Sd (IPS) (25) It it - it’s the contrary to - unhonesty... Dn(IPS) c.3 Restructuring: This is another strategy used by LPSs and it is a very interesting one. It happens Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997. 79 when the learner is unable to plan a whole sentence at once because the operation is complex. Phonological, morphological and lexical difficulties have to be faced simultaneously and the learner plans and executes his/ her utterances step by step or in small chunks until s/ he can produce them as a whole. Examples 32 and 33 illustrate this strategy: (32) Then, to: (0:5) Then, Jim decided to - be...(long pause) Then, Jim decided to become - a thief. Ap(LPS) (33) I don’t because - he: I don’t be... I don’t know because - he: was: crying. Ed(LPS) c.4 Completion Repair: This happens when the learner is unable to utter the lexical item as a whole and s/he tries to say it part by part: (34)flag is a sym... symb... symbol... Cr(IPS) (35) but - he - orga... organi... organizated... Lc(LPS) D. OTHER STRATEGIES d.1 Semantic Field: It was found that students face difficulties when they have to cope with items that belong to semantic fields that overlap or items that have small differences in pronunciation but great differences in meaning. These items normally operate in pairs such as tall and high, persons and people, steal and rob, large and big, push and pull, etc. According to the speakers, differentiating between these words causes them considerable difficulty because it is very hard to automatize the small differences, specially because, in many cases, there are no parallel words in L1. It seems the learners are not always aware of the processes they employ to cope with this difficulty. Observe the two examples, of this strategy in (36) and (37) and the introspective statements in (38), (39), (40) and (41): d.2 Omission: This consists of omitting a lexical item when the learner has tried all other available resources. The learner omits the item but does not give up the whole idea. This kind of strategy is not employed by the HPSs. It is employed by LPSs and to a lesser extent by IPSs. Observe the two examples below where Rh (example 42) wanted to use the word ‘assault’(observe the signal - ‘?’) but omitted it because she was not able to remember it, and Mt (example 43) did not remember the past tense of ‘be’ and did not know how to say the word ‘same’. (42) He planned all the (0:7) (he planned) (0:8) (?) and (and) this man (0:13) (and this man) did - the robbery. Rh(IPS) (43) ... one - boy and one girl - (?) playing together on the - (?) piano. Mt(LPS) The following are the learners’ introspective statements about examples (42) and (43): (44) I didn’t know how to say the word. I didn’t know how to explain it either. I had no other resource except to omit the word. Rh(IPS) (45) Sometimes I don’t know the word, I don’t know how to explain it either. In this case I just omit it. Mt(LPS) d.3 Message Abandonment: The speaker abandons communication in mid-utterance because s/ he perceives s/he is not going to be able to complete it. The subject gives up and does not try another way. Utterances (46) and (47) illustrate this strategy. Introspective statement (48) and (49) are typical of the learners’ introspection about this strategy: (46)... flag we use - how (/) ... Kr(LPS) (47) ... a people was pride he is a - (a) people (eh) that know (uh) (/) Não sei explicar. Mn(LPS) (36) ... but the bottle was very - tall very high. Sd(IPS) Introspective Statements: (37) ... they enter that house and to steal and to rob. El(HPS) (48) Sometimes I change the sentence a lot of times and if it’s not possible to express my idea, I have no other way out but giving up. Kr(LPS) Introspective Statements: (38) When there are two words in English which have a small difference in meaning and I can not discriminate the difference I use both forms. Sd(IPS) (39) If you use both forms, people will be in doubt if you know the word or not. Mt(LPS) (40) I never know which form is correct. I choose one of them and I say it. Is(LPS) 80 (41) I was in doubt between to steal and to rob. I don’t know why I used both forms. El(HPS) (49) I have a lot of trouble because I don’t have enough vocabulary. I try everything, but sometimes I have to abandon the idea. Mn(LPS) d.4 Mimes or Gestures and Appeals for assistance: These strategies were not included in the study because they occur in conversations under an interactional perspective and the subjects who participated in this study performed monologue Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997. activities. However, all of the subjects mentioned that they employ mimes or gestures and ask for the interlocutor‘s help every time they are unable to communicate the intended item. One type of evidence that the speaker would certainly appeal for assistance while communicating with others is the changing of intonation to a rising tone as if the subject was asking for confirmation. The signal (?) is used when the changing of intonation was observed. Observe these pieces extracted from the data: (50) Honesty is (0:8) when a man or a woman not say - (eh) - (eh) mentiras? Nd(LPs) (51) You see, you work hard - but - the /gov nment/? /gov nmemt/ (uh) (help me) (laugh). Vl(IPs) General Results Foreignizing seems to be the most important type of CS based on L1 linguistic knowledge employed by LPSs. It is seldom employed by IPSs and it does not play any important role for HPSs. Code Switching is not employed by HPSs. It is almost absent in the IPSs speech data, but it is employed to a limited degree by LPSs. Paraphrase seems (based on the learners’ introspection) to be the most important type of strategy employed by the learners. All of the IPSs and HPSs reported to use paraphrase when they run into difficulties trying to express the desired item. Approximation is another common type of CS employed by LPSs and it is still a very important type of CS employed by IPSs. Although HPSs reported making large use of this strategy, there were no examples found in their performance data. It is possible that the activities of the experiment did not make strong demands on their language competence. It was observed that IPSs usually get positive results when they replace the unknown items by other ones that approximate the meaning while LPSs, in many cases, used items which produced vague meanings, sometimes hard to understand. Overgeneralization and semantic field also play a role in the speaker’s communication. No speaker in the introspective analysis reported using semantic field, but when asked about examples of this strategy in their speech, they were able to give some reasonable explanations (see comments (26) and (27)). It was observed that LPSs made a good deal of use of message abandonment and occasional use of omission. However, less use of these strategies is made by IPSs, omission is not used by HPSs and message abandonment was used only twice by them. These strategies seem to be seldom used because they do not enhance communication. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997. Repairs, specially partial immediate repair, are regularly used by almost all of the speakers in this study. The use of repairs are perfectly justifiable for low-proficiency speakers who do not yet have acquired a good command of the TL. However, this fact becomes interesting when it is discovered that repairs is still largely employed by, higher-proficiency speakers. The data revealed that both IPSs and HPSs have a great predisposition to monitor and correct their speech. lt may be that the issue of repair is much broader than the mere corretion of errors, and its use does not just indicate lack of competence in the TL. But, before drawing conclusions about this issue, we still need much descriptive and analytical information about the use of repairs by foreigner speakers. However, based on literature and on the introspections of this study, there are at least two possible reasons for the large use of repairs. 1. In everyday communication, speakers spontaneously correct their speech in a kind of automatic monitoring, even if they are not always aware that the strategy of monitoring is taking place. According to Klein (1986) “any speaking involves an automatic monitoring of the speech. In a way, our speech-production and monitor is always in action ”. 2. The type of instructions received in foreign language classroom encourage the overt correction of the TL use. Teachers expect perfect performance, and students are told that in order to develop communicative competence in a TL they must use the language according to the grammatical rules of the language. This leads learners to monitor and repair their language (cf. Lier, 1988; Mclaughlin, 1990). Although no attempt was made to verify the type of instructions students receive from their teachers to communicate in the TL, statements collected from the students during interviews seem to confirm that the need of repairing for some FL speakers is great. They reported that usually they are very insecure about what they have just produced and try to say it again in a different way: by changing part or the whole sentence produced, or by substituting lexical or grammatical items. Others reported that they were not conscious that they were always correcting their speech. This confirms that repair may also be a spontaneous mechanism of speech production. Implications of this study for second language teaching and learning With the shift from teaching methods and teacher training towards more emphasis on the discovery of learners’ cognitive styles and the development of communication skills, the findings of studies like this may have important applications in the field of second 81 language teaching, most specifically in the areas of syllabus design and teaching methodology. Syllabuses should be designed to favor the development of learners’ communicative competence (cf. Canale and Swain, 1980 and Littlewood, 1981). It seems possible to develop subjects’ communicative competence by increasing their strategic competence and CSs may serve this purpose. They may bring very positive contributions to the development of oral communicative skills and consequently for learning the TL in general. According to Si-Quing, (1990) “a more practical and economical way to develop learners’ communicative competence specially in the formal classroom setting, and the acquisition - poor enviromnent, is to increase learner ’s strategic competence, their ability to use communication strategies to cope with various communicative problems they might encounter” (p. 180). It has been mentioned in the literature (cf Bialystok and Frohlich, 1980; Wenden and Rubin, 1987; Willems, 1987 and Oxford, 1990) that CSs are important tools to be used by the learners(specially in the initial stages of learning) and if encouraged, the use of these tools, it will help them to become more aware of their potentialities, which in turn, will revert in more fluency of the new language. In this view, teachers’ roles should go beyond the provision of linguistic information. They should create a classroom atmosphere favourable to learning, as Krashen (1982) says, ‘situations where comprehensible input is plentiful’ (p.31). Students must be advised to forget their inhibitions and the fear of losing face. Wenden and Rubin (1987) report that a willingness to take risks is a characteristic of successful language learners . Part of being a good teacher is trying to eliminate the ‘high affective filter ’ (Krashen’s terminology) so that learning can occur in an environment in which CSs are not only allowed, but encouraged. As the learners’ TL experience increases, their language naturally improves and they will automatically abandon the use of certain CSs. To reinforce the position that CSs should be accepted and encouraged in classroom, I agree with the view put forward by Si-Quing, (1990), that “any attempt to use CSs for the purpose of reaching communicative goals, however poor, is better than none”(p. 183). Although it seems clear that TL users should be advised to benefit from CS resources, there are two important points that should be taken into account before introducing them in the classroom. First, it is necessary to investigate whether learners are already employing CSs in their speech and if so, what types. Second we have to know more about the effectiveness of different types of CSs before advising learners which strategies to adopt and which ones to avoid. Finally, it is believed that a better understanding of our students’ process of communication in the TL is basic for modifying and improving the teaching of a second/foreign language. References Beattie, G and Bradbury, R. J. (1979). ‘An Experimental Investigation of the Modifiability of the Temporal Structure of Spontaneous Speech’ Journal of Psycolinguistics Research, Vol. 8, nº. 3 : 227-247. Bialystok, E. and Frohlich, M. 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The pictures selected follow the sequence presented below (in a more reduced size) and they came from Composition through Pictures by Heaton J.B, 1966. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997. 83 APPENDIX 2 Retelling of a Story (RS) In this activity the analyst told the subjects a brief story in L1 (five paragraphs) to be told by them in the TL. The story was told twice and slowly and subjects had the opportunity to tell the story in L1 to the analyst in order to check if s/he had not forgotten important details. Then, the subjects were asked to retell it in the TL at a normal speed. The story selected came frorn L.A. Hill’s Series of Stories for Reproduction(see the story below). “Jim era inteligente, mas não gostava de trabalho árduo. Ele dizia, “a gente trabalha muito, ganha muito dinheiro, e o governo fica com a maior parte dele. Quero um trabalho fácil que me dê bastante dinheiro e que o governo não fique sabendo”. Resolveu ser ladrão - mas não fazia os roubos: contratou outras pessoas (um grupo) para roubar para ele. Estas pessoas eram muito menos inteligentes que ele, portanto ele organizava tudo e pedia para que elas fizessem o serviço. Um dia ele saiu à procura de famílias ricas para roubar, e mais tarde enviou um dos homens do grupo para roubar uma bela e grande casa que ficava nos arredores da cidade. Era noite, e quando o homem olhou através de uma das vidraças da casa, viu um casal de jovens tocando um dueto no piano. O homem retornou até Jim e disse: “Aquela família não tem muito dinheiro. Duas pessoas estavam tocando no mesmo piano. APPENDIX 3 Explanation of Concepts (EC) The subjects were required to explain orally four concrete and four abstract words. The concepts were written in L1 and TL (in order to avoid ambiguities), and distributed to the subjects. The subjects were, asked to explain the meaning of the items as if they were trying to explain to someone who did not know the meaning of the word at all. This activity was introduced because the analyst believed that it was more complex than the 1st and 2nd ones, since it is difficult to explain concepts even in L1, and this would force the subjects to use more CSs. The words were: Concrete Concepts 1. Lantern (lanterna) 2. Flag (bandeira) 3. Alligator (crocodilo) 4. Bachelor (solteirão) 84 Abstract Concepts 1. Pride (orgulho) 2. Patience (paciência) 3. Courage (coragem) 4. Honesty (honestidade) Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997.