Reflecting about the reproductive health and the infertility situation

Transcrição

Reflecting about the reproductive health and the infertility situation
REFLETINDO SOBRE A SAÚDE REPRODUTIVA E A SITUAÇÃO DE INFERTILIDADE
Reflecting about the reproductive health and the infertility situation
Ana Beatriz Azevedo Queiroz1, Angela Arruda2
RESUMO
Esta é uma reflexão sobre a situação de infertilidade dentro do contexto da saúde
reprodutiva, analisando como ela passa a ser considerada uma “patologia”, necessitando
assim de intervenção biotecnológica. Dentro desse contexto, a dificuldade em ter
filhos conquista o mercado da indústria farmacêutica e faz surgir os Centros de
Reprodução Humana dentro da esfera da saúde privada, reforçando, mais uma vez, a
concepção que a sexualidade e a reprodução são objetos da tecnologia –
“tecnologização”. Por fim, defendemos que toda ação para se alcançar o desejo do
filho deve respeitar condutas éticas e também que a ciência e a tecnologia devem estar
sempre à mercê do bem estar do ser humano, e não aprisioná-lo ou dominá-lo.
PALAVRAS-CHAVE
Saúde reprodutiva, infertilidade, medicalização
ABSTRACT
It is a reflection about the infertility situation inside the context of reproductive health,
analysing how it gets to be considered as a “pathology” and therefore needing a
biotechnological intervention. In this context, the dificulty of having a child conquests
the market of the drug industry and Centers of Human Reproduction multiplicate
within the field of private health. The conception that sexuality and reproduction are
objects of the technology “technologization” thus becomes stronger. At last, we support
that every action aimed at fulfilling the desire for a child must respect an ethical
behavior as much as science and technology must always commit to the well-being of
the human being and not to arrest it or to rule it.
KEY WORDS
Reproductive health, infertility medicalization
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Esta reflexão circunscreve-se em questões da infertilidade dentro do contexto
da saúde reprodutiva. Pretende-se analisar o fato da dificuldade em ter filhos
1
Doutora em Enfermagem. Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil da
EEAN/UFRJ. e-mail: [email protected]
2
Doutora em Psicologia. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Social do Instituto de
Psicologia da UFRJ.
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passar a ser referenciada como “uma patologia”, necessitando de intervenção
biotecnológica. Diante desse contexto, a situação de infertilidade e o desejo pelo
filho são considerados “especialidade médica” denominada de Reprodução Humana,
que vem conquistando o mercado da indústria farmacêutica, dos laboratórios de
genética e a criação dos centros especializados em reprodução humana.
A questão da infertilidade vem atualmente tomando vulto seja na saúde, seja
na sociologia, seja na psicologia. Este fato pode ser explicado por inúmeras
razões: o acréscimo em torno de 30% dos casos de infertilidade nos grandes
centros urbanos (Abdelmassih, 1996), a expressiva queda na taxa de fecundidade
humana (Berquó, 1998), as biotecnologias como meio para solucionar o desejo
do filho, o impacto dessas tecnologias nas organizações familiares e sociais e as
questões éticas que as envolvem (Scavone, 2002).
Apesar de a infertilidade ser uma questão milenar, historicamente foi
considerada como uma maldição e um estigma para a mulher em quase todas
as culturas, sobretudo naquelas em que a maternidade é condição primordial
para a identidade feminina (Oliveira, 1996). A esse respeito, a ausência do
desejo e/ou do instinto maternais é percebida e condenada como desvio da
moral e como anti-natural.
Mamede e Clapis (2004), em estudo bibliográfico (1994/1999) sobre a
situação de infertilidade, constataram que vários autores vêm chamando atenção
para o fato de que a intensidade de sofrimento, ansiedade e depressão é mais
evidente na mulher do que no homem, isto porque a diferenciação entre os
gêneros no modo de vivenciar a infertilidade é sinalizada pela forma como os
papéis sociais são construídos (em nossa sociedade) e pela expectativa quanto ao
desempenho desses papéis.
Sabemos que, em função da mobilização das próprias mulheres e dos seus
movimentos organizados, como o movimento feminista, muitas alterações se
processaram nas relações de gênero no século passado, principalmente à pretensa
natureza feminina. Existe hoje significativo número de mulheres que desenvolvem
atividades profissionais e definem novos projetos de vida que não restritos à
maternidade, abrindo possibilidades para novas construções simbólicas a partir
das quais ser mãe não dá conta de todas as dimensões da vida da mulher.
Essas alterações vividas pela mulher em nossa sociedade têm limites numa rede de
significados que se situam entre o feminino e o masculino (Boff & Muraro, 2002).
No seio dessas concepções, situa-se a crença na existência do feminino que é,
segundo Santos et al. (2001), herdeira das perspectivas filosóficas essencialistas,
bastante resistentes a mudanças. Por isso, a idéia de que a natureza feminina
(calcada em sua especificidade biológica) é responsável pelos traços que delimitam
a mulher percorreu séculos e continua a manter sua legitimidade nos dias atuais,
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em algumas sociedades. E é exatamente nessa forma de inserção que Heilborn
(1997) e Strey (1998), estudiosos sobre o conceito de gênero, destacam a
influência dessa concepção biologicista, na estruturação do processo de identidades
– femininas e masculinas.
2. A MEDICALIZAÇÃO DO SEXO E DA REPRODUÇÃO HUMANA
Em seus primórdios, a medicina apresentava uma concepção da cura pela
natureza, como efeito de relação equilibrada entre o homem e o meio. Sob esse
enfoque, qualquer pessoa poderia aprender e interpretar o poder curativo da natureza,
não necessitando de maiores conhecimentos sobre o corpo humano para preservar
e recuperar a saúde. Segundo análise de Foucault (1985), à época não havia
normas pré-estabelecidas a obedecer, nem tão pouco qualquer subordinação ao
saber especializado. Valorizava-se a prática reflexiva de cada pessoa sobre o seu
próprio corpo, tendo em vista encontrar a melhor forma de equilíbrio e de saúde.
No entanto, no final do século XIX, emergiu no contexto científico um
modelo de medicina experimental que provocou significativas mudanças, em
particular no campo das definições de saúde e doença, interferindo nas ações
médicas. Esse modelo assinala a passagem de uma visão totalizante da natureza
para uma concepção cada vez mais fragmentada do organismo e dos processos
de intervenção (Rotânia, 1998).
Desde então, a Medicina assumiu postura normativa, legitimando-se, segundo
Costa (1999), para reger as relações físicas e morais dos indivíduos e das sociedades.
Em outras palavras: a partir dessas inovações, o processo de medicalização social
acompanhou as grandes revoluções nos campos social, político e econômico.
Entre outras tendências, verificou-se que a medicina assumiu o monopólio
legal do discurso e da intervenção sobre o corpo, a saúde e a doença, o
sofrimento e a dor (Corrêa, 1997). E na área da medicina da mulher isso não
foi diferente. A ginecologia, tendo surgido no século XIX, estaria articulada a
um movimento científico mais amplo que Rinaldi (2002) denominou de ordenação
do mundo, o qual não se restringia só ao estudo das doenças femininas, mas se
encarregava de prescrever comportamentos sexuais a partir da estrita ligação
entre mulher e reprodução.
Mais tarde, a partir da segunda metade do século XIX, pôde-se identificar o
interesse da área médica pela sexualidade. De início, a medicina do sexo tomou
como referência a reprodução e, posteriormente, através da psiquiatria e de
outros campos das sociedades disciplinares, começou-se a compreender o prazer,
mas como desvio do sexo reprodutivo. A esse respeito, é pertinente refletir sobre
a contribuição de Foucault (1988) que, ao analisar essa forma de abordagem e
tratamento da sexualidade, denuncia que, através da prática e dos discursos da
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psicologia, da pedagogia e da própria medicina, buscou-se regulamentar as
condutas cotidianas dos indivíduos, com respaldo em enunciados científicos e
nos conceitos de normalidade e anormalidade.
Ainda com relação à tentativa de normatização do sexo, aquele mesmo autor
(Foucault, 1985) descreve que o grande destaque à sexualidade, como problema
de interesse público, deve-se à possibilidade de tratá-la como importante instrumento
de controle da ordem social pela via da medicalização. A idéia de que a vida é um
bem maior, uma riqueza única a ser preservada, produzida e reproduzida, deve
ter o seu eixo político na reprodução individual e coletiva.
Ainda assentada sobre esse alicerce, a reprodução humana tende a ser considerada
como fato natural/biológico, objeto de estudo sob duas vertentes principais: das
ciências médicas, que prioriza os processos do ciclo gravídico-puerperal, e das
ciências demográficas, orientadas para controle do crescimento da população.
A partir desse pressuposto ao longo da história, a medicina vem se ocupando
das diferentes seqüências da esfera reprodutiva, enfocando desde a orientação
para a vida sexual saudável com fins procriativos, os cuidados com o recémnascido e, mais recentemente, medicalizando o desejo de ter filhos (Corrêa, 1997).
Sobre este assunto, Scavone (2002) alerta que os laços família-medicina se
estreitaram, pois temos hoje a medicalização do não desejo de criança, do
nascimento, além da intervenção no tamanho da família, na idade ideal de ter
filhos, na busca da procriação, assim como nos novos arranjos dos papéis familiares.
Sob a ótica do controle, quanto mais intervenções forem realizadas, melhor
será o resultado, em termos de prevenção de riscos à saúde da mulher, de
segurança ao nascimento e ao recém-nascido e de possibilidades de sucesso no
emprego das biotecnologias reprodutivas. Com isso, as mulheres foram transformadas
nas grandes consumidoras de medicamentos, de aplicação de técnicas e pesquisas,
quando se fala em reprodução (tanto quando se pretende ter filhos, como
quando se deseja evitá-los).
Transformações nesse modelo de controle da sexualidade aconteceram e
perduram ainda hoje num processo que aponta para novo modelo reprodutivo e
de controle sexual. Algumas mudanças merecem relevo, entre outras, a escolha
individual do cônjuge, normas mais flexíveis de homogamia, casamentos baseados
no amor-paixão, na possibilidade de divórcios, numa divisão de trabalho menos
rígida entre os sexos, na liberação e mesmo na valorização da sexualidade feminina,
na igualdade jurídica e social entre homens e mulheres, na identidade individual,
no controle tecnológico da contracepção que admite até mesmo dispensar o
intercurso sexual para fins reprodutivos.
Porém, as intervenções sobre a sexualidade que visam a produzir um organismo
feminino especializado na reprodução adquirem destaque, quando levamos em
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conta a mais complexa manipulação das condições biológicas da sexualidade
humana, levada a efeito em nossos dias. Nessa linha de pensamento, a
intervenção das ciências médicas no processo de reprodução humana não
constitui novidade, nem o surgimento das novas tecnologias reprodutivas pode
ser visto como acontecimento inesperado ou que represente ruptura com o
que vinha ocorrendo neste campo.
Assim, com o crescimento na área da biologia, concentrando interesse nos
estudos sobre o núcleo celular e a genética, cria-se um grande interesse pela
experimentação laboratorial, crescendo vertiginosamente nos nossos dias,
especificamente sobre a procriação (Brasil, 2003). O desenvolvimento científico
e tecnológico sobre o corpo humano vem tornando a sexualidade e a reprodução
em “objetos da tecnologia” – tecnologização. Ademais, as manipulações e intervenções
nesta área estão longe de acabar, visto o crescente interesse e desenvolvimento da
engenharia genética, dos centros de reprodução humana, das clonagens, entre outros.
3. MEDICALIZANDO A INFERTILIDADE
3.1. BUSCANDO DEFINIR A INFERTILIDADE
A ausência de filhos programados coloca hoje a infertilidade como fato que
requer diagnóstico e tratamento, enquadrando-se entre os procedimentos situados
no âmbito das especializações médicas – a reprodução humana.
Atualmente, isso é tão evidente que esta nova especialização busca definir
parâmetros para elucidar o que vem a ser infertilidade. Não se trata de tarefa
simples, especialmente quando essa definição contempla apenas conceitos e
paradigmas dentro da concepção biomédica, ignorando outras dimensões.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1990, tentou esclarecer que a
infertilidade resulta da falha em conceber, transcorridos pelo menos dois anos de vida
sexual normal sem uso de métodos contraceptivos. No entanto, há contradições nessa
visão. Healy (1994), em seu artigo Female Infertility afirmam que a fertilidade dita normal
ainda não foi adequadamente definida. Diz-se que um casal tem sua fertilidade
reduzida quando não consegue a gravidez após doze ciclos seguidos, sem proteção.
Busca-se ainda delimitar a prevalência e as causas da infertilidade; porém, no
Brasil (como, aliás, acontece nos demais países), não se dispõe de pesquisas que
indiquem com exatidão a realidade concreta e cristalina sobre o assunto. Esse
posicionamento é comprovado por Corrêa (1997), quando destaca que, do ponto
de vista epidemiológico, não se pode afirmar a incidência da infertilidade, por ser
esta mal conhecida e estudada. Este fato pode ser comprovado se levarmos em
consideração que 40% das situações de dificuldade para engravidar são de causa
não definida, conhecidas como idiopáticas.
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Apesar dessas lacunas e inexatidões, um ponto em comum é ressaltado por
autores, como Abdelmassih (1996) e Mesquita et al. (2000): a infertilidade
aumentou gradativamente, atingindo cerca de 20% a 30% dos casais nos grandes
centros urbanos brasileiros.
Na verdade, não se conhecem os determinantes do agravamento do problema.
Entretanto, não faltam suposições a respeito de suas prováveis causas, entre as
quais podemos destacar: stress da vida urbana; degradação ambiental como a
poluição que provoca danos na delicada estrutura do organismo reprodutivo;
expansão das doenças sexualmente transmissíveis; uso indiscriminado de anticoncepcionais orais; medicalização excessiva; abuso de álcool; fumo e outras drogas.
Porém, não podemos explicar o aumento da infertilidade somente por um
prisma tecnicista, pois outros motivos socioeconômicos e culturais fizeram com
que a dificuldade de gestar adquirisse maior vulto. Dentre essas causas, citamos a
inserção da mulher no mercado de trabalho levando ao adiamento do “sonho”
da maternidade, motivado por outros interesses e necessidades, que se confrontam
com a tentativa de engravidar numa faixa etária em que o organismo já não é tão
fértil; a urbanização, a possibilidade de controle da fecundidade, a liberação
sexual, levando a um maior número de parceiros, o que propicia aumento de
risco de contaminação e de lesar o delicado aparelho reprodutor feminino, fatores
que podem levar a um quadro de esterilidade imunológica. Além dos fatores
psicológicos, pois como afirma Maldonado (1990) na gênese de problemas da
dificuldade em conceber ou de levar uma gravidez a termo estão conflitos
profundos com relação à gestação, ao parto e a própria maternidade. A mistura
de terror e desejo, frustração e impaciência, persistência e desalento associado
à sensação de vazio existencial, podem ser expressados por distúrbios hormonais,
espasmos tubários, perturbações da ovulação ou pela simples impossibilidade
sem causa aparente.
3.2. MATERNIDADE NO CONTEXTO DA INFERTILIDADE: OPÇÃO, DESTINO OU IMPOSIÇÃO?
Anos se passaram e, sem dúvida, a situação sócio-econômica, política e afetiva
da mulher mudou, em muitos aspectos.
O desenvolvimento capitalista, juntamente com o movimento feminista, abriu
as portas para o trabalho da mulher. Esse fato fez com que ela se mobilizasse em
busca de independência econômica, o que, de certa forma, contribuiu para a
mudança nos paradigmas hegemônicos acerca do ser-mulher. No entanto, com a
entrada da mulher no mercado de trabalho, verificaram-se novas exigências, tanto
no que concerne à divisão de tarefas domésticas, como no cuidado dos filhos,
embora elas nem sempre tenham significado melhoria de qualidade de vida para
as mulheres. Ao mesmo tempo, a vida da mulher fora da esfera privada levou-a a
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desenvolver outros focos de interesse, que propiciaram o surgimento de novos
desejos de promoção, de relacionamento, de estética, transformando assim alguns
relevantes aspectos da subjetividade feminina.
No que pese todas as transformações, para algumas mulheres a infertilidade
surge como um acontecimento inesperado e violento sobre a sua personalidade.
Muitas vezes, toda a programação de sua vida é abalada com esse choque e as
idéias de perfeição humana são duramente atingidas. Apesar das mudanças na
situação da mulher, o desejo pela maternidade/maternagem e/ou o modelo
tradicional, socialmente estabelecido, que preconiza a obrigação por ser
mãe, transforma a infertilidade em condição de doença, vista muitas vezes
até como castigo divino.
Sobre esse assunto, Queiroz e Arruda (2003), num estudo qualitativo sobre a
questão da infertilidade e o ser-mulher realizado com 27 mulheres inférteis,
constataram que, quanto à motivação para engravidar, existe uma forte presença
na crença da “natureza feminina” definida pela maternidade. Esse dado sugere
que uma das maiores motivações para engravidar ainda decorre do entendimento
de questões relacionadas à natureza/biologia e o funcionamento do corpo da
mulher. Sob esse enfoque, a maternidade é representada analogamente à noção
de carimbo que confere legitimidade ao cumprimento do “papel” atribuído à
mulher pela cultura tradicional.
Outra motivação encontrada pelas autoras, com peso igual ao anterior, foi a
motivação ligada ao modelo social, ou seja, as mulheres afirmaram que seu desejo
de engravidar era fruto de pressão e cobranças sociais já que são consideradas as
principais responsáveis pela procriação. Esse dado leva a considerar que, ainda
hoje, as normas parentais são fortemente coercitivas, levando essas mulheres a
sentir-se pressionadas a cumprir um papel pré-estabelecido socialmente, a despeito
de seus próprios valores, desejos e projetos de vida.
Toda essa problemática ocorre, como se dizia, a despeito de todas as
transformações e evoluções político-culturais que aconteceram nas últimas décadas:
ter filhos ainda ocupa um lugar central na definição da identidade psíquica e
social para os indivíduos, em nosso país. Sob essa perspectiva, ocorre uma busca
incessante pelo filho. Não há lugar para dizer não ao “filho biológico”. Há de se
vencer essa impotência, há de se tentar todas as possibilidades!
3.3. A TRÍADE: INFERTILIDADE, MULHER E TECNOLOGIA
Apesar de os meios científicos e órgãos governamentais citarem e classificarem
a condição como casais estéreis, quando nos aproximamos dessa temática, a realidade
transforma a infertilidade em um problema de mulher. Do exposto, resulta clara a
inferência de que o processo que envolve a infertilidade incide, primordialmente,
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sobre a mulher. Por essa razão e por motivos culturais, atribui-se a ela a maior
carga de investigação, pois é a personagem principal de toda exploração e
manipulação das ciências médicas. Rotania (1998) acrescenta que, devido ao fato
de, até o momento, os estudos científicos sobre a reprodução não lograram
extravasar a função intracorporal, a tecnociência biológica ainda depende do
corpo da mulher e do fornecimento de material genético. Além do que, no nível
de tratamento, a mulher passa a ser vista como uma espécie de matéria prima de
óvulos, animal de procriação e de experimento de laboratórios.
Assim procedendo, a mercantilização da procriação aproveita-se da fragilidade,
da angústia, e principalmente da ansiedade da mulher que vive o processo da
infertilidade. A grande verdade é que, no campo da esterilidade, cria-se um espaço
não só para a manipulação de corpos humanos, mas também de sentimentos e
desejos. Ao mesmo tempo, o mito da ciência se afirma mais uma vez anunciando
soluções quase inacreditáveis.
Sob esse ponto de vista, não existe a probabilidade de lidar com promessas
onipotentes, milagrosas, pressa ou resultados imediatos. A mulher precisa de boa
dose de paciência e tolerância à frustração. Há de se esperar vários ciclos, levantar
e testar hipóteses, fazer exames ansiogênicos, dolorosos, constrangedores, por
exemplo, o teste pós-coito, e até cirurgias.
Não raro, muitas dessas etapas geram problemas para a vida sexual do casal,
que passa a girar apenas em torno da busca do esperado filho. As mulheres, por
sentirem-se incapazes de conceber, começam a ter problemas de orgasmo, de
falta de desejo sexual e, muitas vezes, a espontaneidade da relação fica perdida
entre gráficos, temperaturas, testes e tratamentos. Nessas circunstâncias, o
prazer sexual fica latente; eis que sua dimensão restringe-se à obrigação de
provar a fecundidade.
Essa inferência pode ser constatada no estudo de Queiroz e Arruda (2002),
citado anteriormente, quando 90% das mulheres indicaram que houve alteração
na vida sexual, no contexto da infertilidade. A busca pela vinda de um filho, por
ser histórica (não só fisiologicamente) e culturalmente ligada ao ato sexual, fez
com que essas mulheres passassem a experimentar uma prática sexual mecânica e
robotizada. Essa vivência tende ainda a ser afetada por toda a propedêutica que
envolve a infertilidade, fazendo com que a concepção tecnicista e de medicalização
afete diretamente a vida sexual.
Com a transformação da dificuldade de ter filhos em patologia médica,
adquirem relevo as biotecnologias reprodutivas, definidas, por muitos, como “única
solução” para resolver a infertilidade. Ao refletir sobre essa problemática, não se
podem negar os grandes avanços que estão ocorrendo na área da reprodução
humana. Pesquisadores e cientistas trabalham, cada vez mais minuciosamente, na
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fisiologia da reprodução, dosam enzimas de muco cervical, filmam a ovulação
com minúsculas câmeras, cultivam ovos “in vitro”, transferem embriões para as
trompas, fertilizam in vitro... Em síntese: evidenciam, através do seu trabalho, o
progresso das Ciências Biotecnológicas.
Sem dúvida, essas novas técnicas beneficiam e encorajam grandes esperanças
nos casais estéreis. Às vezes, criam até ilusões, pois todas essas possibilidades no
campo da manipulação genética são extremamente dispendiosas e não têm
possibilidade de assegurar sucesso em todos os casos. No Brasil, a grande maioria
das mulheres que vive a esterilidade/infertilidade não tem acesso a esse tipo de
terapêutica especializada, devido ao alto custo. A esse grupo resta tomar conhecimento
do diagnóstico da causa do problema, quando possível, e aceitar a conclusão,
como se toda a problemática acabasse com a emissão de um simples diagnóstico.
De outra forma, se os avanços no diagnóstico e no tratamento dos distúrbios
da reprodução humana vêm promovendo resultados positivos, vários problemas
de natureza ética, moral e religiosa, vêm surgindo, concomitantemente. Nesse
sentido, cumpre ressaltar a falta de fiscalização adequada sobre as novas técnicas,
o que faz emergir a necessidade de maior discussão e definição dos limites que
separam o que é legal do que não o é, bem como a falta de honestidade de alguns
profissionais que manipulam as emoções humanas, fortemente mobilizadas, quando
se deparam com essa problemática, a comercialização das terapêuticas, o
desconhecimento das limitações de cada cliente, a questão da acessibilidade do
tratamento, em função de seu custo e, principalmente, as conseqüências dessas
biotecnias para a saúde da mulher. Ademais, cumpre ampliar o debate sobre a
saúde mental dos ditos “filhos da ciência”.
Sob esse enfoque, pode-se considerar que essas técnicas são mais uma
manifestação do controle de vida e da sexualidade humanas, por parte do poder.
Ele encontra legitimação na forma médico-sanitária, que constitui a ficção de
uma superestrutura científica, capaz de unificar e totalizar o saber. O congelamento
de espermas e de embriões suspende definitivamente o tempo da reprodução,
enquanto as tecnologias reprodutivas, não só separam o corpo reprodutor,
orgânico, do corpo libidinal, como também fragmentam todo o processo
reprodutivo. Mesmo sabendo-se que a reprodução humana é indissociável do
desejo, da sexualidade e do corpo, as técnicas são empregadas como se nos
deparássemos com mera questão de gametas e órgãos.
Outro aspecto que merece a nossa reflexão deriva de vários estudos sobre as
biotecnologias reprodutivas, os quais concluíram que as mesmas são mais valorizadas
pela mídia do que pelos reais sucessos alcançados. Corrêa (1997) afirma que, na
realidade, não existem dados precisos sobre os resultados dos métodos empregados
nessas novas tecnologias reprodutivas.
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O motivo pelo qual essas estatísticas não correspondem ao real decorre de os
centros de reprodução assistida estarem quase exclusivamente restritos ao setor
privado, ficando os dados manipulados conforme interesses do setor. Há falta de
fiscalização epidemiológica; problemas nos registros; inexistência de estudos
comparativos entre o sucesso na utilização das técnicas e nas diferentes situações
de esterilidade, além da falta de uma uniformização quanto à cifra do sucesso
relacionado ao momento da intervenção do processo. Desta forma, num terreno
ainda pouco conhecido, abre-se um leque de possibilidades de manipulação das
reais taxas de sucesso das biotecnologias reprodutivas, tornando os dados dos
centros de reprodução humana de difícil questionamento.
Por fim, é necessária uma visão cuidadosa e crítica sobre o que a mídia nos
faz acreditar, quando destaca com retumbância o milagre das novas biotecnologias
(Corrêa, 1997). É igualmente digno de nota que pouco se fala no constrangimento,
no sofrimento, no sacrifício e na dor das mulheres que se submetem a tais métodos.
Quando abordamos o assunto, não podemos deixar de referir a bioética
como abordagem apropriada ao trato das procriações medicamente assistidas.
Refletindo sobre o tema, observamos que, quando as ciências se apropriam dos
homens, do seu corpo e do segredo da sua filiação ou da sua descendência, todas
as referências éticas tornam-se objeto de interrogações. Diante desse quadro,
cremos não ser exagero dizer que as esperanças das novas biotecnologias abrem,
ao mesmo tempo, espaço para novas inquietações e perplexidades. Cabe refletir
seriamente sobre o impacto dessas tecnologias na família, pois emerge uma série
de questionamentos sobre filiação, organização e estrutura familiar.
Essas dúvidas advêm do fato de que a procriação assistida perturba valores,
crenças e representações, que alguns julgavam intocáveis. A propedêutica dissocia
a sexualidade da reprodução, a concepção da filiação, a filiação biológica dos
laços afetivos e educativos, a mãe biológica da mãe gestante e da mãe educadora.
Note-se que, atualmente, uma criança pode nascer com a bagagem genética de
uma terceira pessoa, cuja identidade jamais será conhecida; dois gêmeos podem
nascer com vários anos de diferença; uma mulher pode parir uma criança sem ter
concebido ou que concebeu com o esperma de um homem morto; uma criança
pode ter até cinco genitores; uma avó pode engravidar de uma criança concebida
por sua filha e seu genro...
Por outro lado, é pertinente lembrar o perigo da eugenia, dentro dessas novas
tecnologias, pois que essa ideologia procura legitimação científica aderindo às teorias
genéticas comuns e corriqueiras na reprodução assistida. O perigo está em
transformar a reprodução em produção; ou seja, na busca de uma raça de “melhor
qualidade”. Nesse contexto, não se estaria mais no âmbito da busca de solução
terapêutica para a infertilidade: esta cederia lugar ao o poder da escolha e do desejo.
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Enfim, a demanda do filho não pode justificar o desenvolvimento da
“medicina do desejo”. Se hoje tudo é válido para obter o desejado filho, amanhã,
selecionar os traços possíveis de um ser humano e fabricá-lo sob medida poderá
tornar-se a norma.
Todavia, pouco se estuda ou trabalha no sentido de conhecer a real origem
da infertilidade, na busca dos múltiplos determinantes (físicos, e sobretudo
psicológicos, afetivos, sociais) e das alternativas de terapêuticas possíveis.
Na verdade, ainda carecemos de estudos detalhados sobre a situação de
infertilidade, a segurança das biotécnicas, uma vez que ainda ignoramos como as
mulheres convivem com a concepção artificial, assim como necessitamos de que
se estabeleça efetivamente o papel fiscalizador do Estado e da sociedade civil em
relação à reprodução assistida, pois a formulação de normas, diretrizes e leis não
tem acompanhado o crescimento dessas tecnologias no Brasil.
O dossiê sobre reprodução humana elaborado pela Rede Nacional Feminista
de Saúde e Direitos Reprodutivos (Brasil, 2003) constata, no Brasil, a inexistência
de legislação específica quanto às questões da reprodução assistida e afins, e uma
ambigüidade em termos de instâncias de competências governamentais para
avaliação e normatização. Atualmente, a rede de serviços conta apenas com
normas estabelecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), através da
Resolução n° 1.358/92, contendo princípios gerais que definem a população a
ser beneficiada, caracterizam as condições físicas e os recursos humanos necessários,
especificam condições para a doação e o congelamento de embriões e gametas,
assim como a utilização da maternidade de aluguel. No entanto, deixa algumas
lacunas como casos de separação de casais e a desistência de transferência dos
embriões ou morte da esposa e a discussão da Reprodução Humana Assistida
desvinculada da problemática da clonagem humana, dentre outros.
Vale ainda destacar que, segundo informações atualizadas de janeiro de
2003, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria/CFÊMEA (Brasil, 2003),
existem 22 projetos de lei que têm como temática clonagem e reprodução
humana assistida, porém o dossiê já citado chama a atenção para o viés cientificista
desses projetos em tramitação, que tendem a favorecer a classe médica, muitas
vezes em detrimento das usuárias, e aponta para o fato de que somente os
profissionais dessa classe foram ouvidos, sem que se tenha aberto um debate
amplo e multidisciplinar.
Por outro lado, alguns casais optam pela adoção como solução para o desejo
de ter um filho. Essa prática ainda é comum entre parceiros que vivem a infertilidade
e não podem ter acesso às biotecnologias, ou não as aceitam. A adoção pode ser,
para muitos, uma experiência de reintegração social importante, além do que,
pode ter uma característica de prática solidária e cooperativa.
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No entanto, nem todos aceitam essa solução pacificamente. Diante do
ambiente atual de predomínio da tecnologia, no qual se afirma ideologicamente
a necessidade da vinda do filho biológico, reforçando as velhas representações a
respeito da reprodução da espécie, do papel da fertilidade e do valor da transmissão
do sangue, muitos rejeitam esta possibilidade.
Mais uma vez, o estudo de Queiroz e Arruda (2003) confirma essa análise,
pois quando questionadas sobre às alternativas de solução para enfrentar o
problema da infertilidade, 70% das mulheres estudadas apontaram para a
não-aceitação da adoção ou então, ser esta a última escolha, sendo aceita apenas
quando esgotadas todas as outras possibilidades acessíveis. Várias foram as
justificativas para essa recusa: ter certeza de engravidar, acreditar na realização
da mulher apenas pela gravidez, aceitar viver sem filhos ou ter parceiros com
filhos “legítimos” de outros relacionamentos. Sobre esse último aspecto, as autoras
verificaram que as entrevistadas que viviam essa situação foram unânimes (total de 07)
em acreditar que haveria distinção entre os filhos adotados e os biológicos.
Está longe o momento em que o valor social dado aos laços consangüíneos de
maternidade e paternidade será equivalente ao significado da adoção. Fonseca (1995),
em estudo sobre os caminhos da adoção, concluiu que a idealização do vínculo
entre mãe biológica e a criança surge implacavelmente em discursos sociais e jurídicos,
pois ainda hoje se atribui à “naturalização” da família conjugal e de consangüinidade.
A cultura hedonista e narcísica das sociedades contemporâneas também reforçam
a necessidade de prover tudo que promova o indivíduo; o filho biológico é aquele
em quem ele pode se espelhar diretamente. Há quem refira medo do preconceito
e que jamais se sentiriam pais verdadeiros, como se o vínculo amoroso dependesse
de “laços de sangue”. Não podemos esquecer que as representações sobre as
concepções de família e parentesco ainda são fortemente ancoradas ao espectro
do biológico/natural e pouco situadas no âmbito do sistema cultural. Em outras
palavras, enquanto a adoção pode ser considerada como incorporação de um
“estranho na família”, as biotecnologias introduzem nela apenas um “meio estranho”,
que depois segue seu curso natural, sugerindo vínculos familiares possibilitados pela
intervenção tecnológica, que terminam por se apresentar como idênticos aos
estabelecidos pela natureza, ou como uma ajuda que a técnica vem dar a ela.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em suma, destaca-se que a situação de infertilidade, ainda é hoje, perpassada
pela controvérsia que focaliza o binômio entre natureza e cultura. De forma
coerente, se as atribuições femininas giram em torno das características biológicas/
naturais impostas pela cultura, a infertilidade também tem suas bases calçadas
nesta linha interpretativa.
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Considerando-se a natureza como objeto de controle, a partir da contribuição
do aparato tecnológico e científico e das biotecnologias reprodutivas, para
alguns, recorrer à ajuda desses recursos adquire o sentido de re-construir o natural.
Sob esse enfoque, a técnica humana (tecnologização) seria capaz de driblar
determinações impostas pela natureza.
No entanto, não se pode mais admitir que a infertilidade seja tratada
como uma questão meramente biológica, não se pode esquecer, que assim
como a reprodução humana, a dificuldade em ter filhos envolve questões
sociais, emocionais, culturais e éticas e como tal deve ser encarada.
A rigor, pouco se faz em prol dos cuidados a essas mulheres e/ou casais que
vivem essa dificuldade. Se, por um lado, a qualidade de vida deveria ganhar com
todo esse avanço tecnológico, na verdade, produziu-se e avançou-se no sentido de
um a fecundação via tecno-científica, sem rosto, sem corpo, sem vida, sem alma.
Sabe-se que a trajetória dos avanços da tecnologia não cessa, nem diminui
seu ritmo. Diante disso, é urgente incrementar-se o debate, partindo de questões
como as seguintes: Não seria hora de refletir sobre as reais causas da infertilidade?
Tentar encontrar formas que ajudassem a orientar e prestar cuidados coerentes
com a filosofia da humanização da prevenção e tratamento dessas pessoas? Por
que deparqar-se hoje com este aumento desenfreado de casais com dificuldade
de engravidar? Como lidar com esses casais e suas famílias?
É importante ressaltar que todas as mulheres têm o direito à maternidade,
desde que seja um desejo próprio, e não uma imposição social relacionada ao
ideário de subordinação e abnegação, atribuído historicamente ao gênero feminino.
Pois, a questão aqui a ser levada em conta é que, através de tal pressão social, a
mulher passa a “desejar” o que o social lhe apresenta como desejável.
Acredito que se tem um enorme caminho a percorrer, tendo em vista a
prevenção da esterilidade conjugal em nosso meio. Nessa direção, não se pode
esquecer a singularidade de cada mulher, de cada casal e de sua condição humana,
pois a vida é muito mais do que mero processo bioquímico.
Por fim, toda a ação para se gerar o filho deve respeitar condutas éticas, pois
a ciência e a justiça devem objetivar o bem-estar do ser humano sem procurar
dominá-lo ou aprisioná-lo.
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