encontros teológicos 62

Transcrição

encontros teológicos 62
Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC
Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC
ISSN 1415-4471
http://www.facasc.edu.br
http://www.itesc.org.br
FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARA
FACULDADE CATÓLICA DE SANTA CATARINA
INSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA
Diretor Geral da FACASC e do ITESC: Pe. Dr. Vitor Galdino Feller
Vice-Diretor do ITESC e Marketing da FACASC: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi
Diretora Acadêmica da FACASC: Ana Cristina Barreto Floriani
Diretor Administrativo da FACASC: Pe. Dr. Vilmar Adelino Vicente
Coordenador Pedagógico da FACASC e Secretário do ITESC: Celso Loraschi
Coordenador das Pós-Graduações da FACASC: Pe. Dr. Tarcísio Pedro Vieira
Corpo Técnico Administrativo:
Assistente Administrativo da FACASC e ITESC: Donizeti Mendes Guimarães
Bibliotecária da FACASC e do ITESC: Adriana de Mello Tomaz
Recursos Humanos: Aline Maria Pereira
Secretária Acadêmica da FACASC e do ITESC: Crisleine Daiana Radatz
Recepcionista da FACASC e do ITESC: Mariana Fritegoto Guaita
Serviços Gerais da FACASC e do ITESC: Geane Teresa Nascimento
[Catalogação na fonte por Daurecy Camilo (Beto)]
CRB-14/416
Encontros Teológicos. Revista da Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC e do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, n. 62, Florianópolis,
2012.
Quadrimestral ISSN 1415-4471
I. Instituto Teológico de Santa Catarina
CDU 2 (05)
Preço de Assinatura para o ano 2012
Contribuição a partir de R$ 40,00
Forma de Pagamento
Cheque em nome do Instituto Teológico de Santa Catarina
ou depósito bancário:
Banco do Brasil, Agência 3191-7, Conta 09.645-8
Correspondência e Assinatura
Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC
Caixa Postal 5041
88040-970 Florianópolis, SC
Fone/Fax: (0xx48) 3234-0400
Home Page: www.facasc.edu.br / www.itesc.org.br
E-mail: [email protected]
Revisão: Pe. Ney Brasil Pereira
Editoração eletrônica e projeto gráfico da capa: Atta
Projeto gráfico: Antônio Frutuoso
Printed in Brasil
Pede-se permuta
Exchange is Requested
ENCONTROS TEOLÓGICOS
Revista quadrimestral fundada em 1986
Diretor: Elias Wolff
Editor: Vitor Galdino Feller
Redator: Ney Brasil Pereira
Conselho Editorial:
Celso Loraschi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Domingos Nandi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Edinei da Rosa Cândido – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Elias Wolff – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Helcion Ribeiro – PUC – Curitiba, PR
Inácio Neutzling – UNISINOS – São Leopoldo, RS
João Batista Libânio – ISI-FAJE – Belo Horizonte, MG
José Artulino Besen – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Lilian Blanck de Oliveira – FURB – Blumenau, SC
Luiz Carlos Susin – PUC-RS e ESTEF – Porto Alegre, RS
Márcio Fabri dos Anjos – Pontifícia Faculdade N. Sra. da Assunção – São Paulo, SP
Maria Clara Bingemmer – PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ
Maria de Lourdes Pereira Dias – UFSC – Florianópolis, SC
Marlene Bertoldi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Ney Brasil Pereira – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Rudolf von Sinner – EST – São Leopoldo, RS
Valter Maurício Goedert – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Vilmar Adelino Vicente – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Vitor Galdino Feller – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
CoNSELHO CONSULTIVO:
Analita Candaten – Centro de Fomação Scalabriniana – Passo Fundo, RS
Armando Lisboa – UFSC – Florianópolis, SC
Cecília Hess – UNIVILLE – Joinville, SC
Érico Hammes – PUC-RS – Porto Alegre, RS 
Evaristo Debiasi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Fábio Régio Bento – UNISUL – Tubarão, SC
Gabriele Cipriani – CONIC – Brasília, DF
Joaquim Cavalcante – Universidade Estadual de Goiás – Itumbiara, GO
Luís Dietrich – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Luís Inácio Stadelmann SJ – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Márcio Bolda da Silva – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Mari Hammes – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Marta Magda Antunes Machado – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Paulo Cezar da Costa – PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJ
Roberto Iunskovski – UNISUL – Florianópolis, SC
Sérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PR
Siro Manoel de Oliveira – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Vilson Groh – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa.
Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisadores e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o
objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de
informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais.
Sumário
Editorial ....................................................................................................... Como a Igreja do Brasil adubou o terreno para o Concílio Vaticano II
José Ernanne Pinheiro..............................................................................................
A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II
J. B. Libanio..............................................................................................................
Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: Antecedentes históricos
Antonio Luiz Catelan Ferreira.................................................................................. A Liturgia no Concílio Vaticano II
Valter Maurício Goedert...........................................................................................
A Palavra de Deus no Vaticano II
Ney Brasil Pereira....................................................................................................
A “virada popular”: Discipulado missionário do Brasil para o mundo
secularizado e pluricultural à luz do Vaticano II e da caminhada latinoamericana
Paulo Suess .............................................................................................................. Concílio Vaticano II: 50 anos depois
Luis Stadelmann, SJ.................................................................................................. Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças
Vitor Hugo Mendes...................................................................................................
7
13
29
51
81
95
107
125
139
Carta das Religiões e o Cuidado da Terra
CNBB – Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo
e o Diálogo Inter-religioso........................................................................................
165
Recensões .................................................................................................... 169
Crônicas........................................................................................................ 181
Encontros Teológicos 26 anos....................................................................... 189
(Faça uma cópia, caso não queira recortar esta página da revista!)
Editorial
Em outubro de 2012 comemoramos o 50º. aniversário de abertura do
Concílio Vaticano II (1962-1965). Trata-se do 21º. Concílio Geral da
Igreja Católica e certamente o mais significativo desde os tempos da
Reforma do século XVI. Eventos que invocam “o espírito do Vaticano
II” estão em curso em todo o mundo católico. Fala-se de “revisitação”
do Concílio, de “recuperação” de suas orientações pastorais, de “fortalecimento” do seu posicionamento de abertura eclesial. É o processo
de recepção das orientações conciliares que se desenvolve no tempo.
Como foi possível o Vaticano II? O anúncio oficial do Concílio,
no dia 25 de janeiro de 1959, domingo de encerramento da Semana de
Oração pela Unidade dos Cristãos, surpreendeu a todos. Era uma ideia
pessoal do papa, a pouquíssimas pessoas confiada até então. Havia
quem pensava não mais haver a necessidade de um Concílio na Igreja,
depois que o Vaticano I (1870) estabeleceu a doutrina do primado do
bispo de Roma, concedendo-lhe plenos poderes em tudo na Igreja do
presente e do futuro.
Mas as mudanças na Igreja já estavam sendo preparadas há algumas décadas, sobretudo pelos movimentos litúrgico, bíblico e ecumênico.
Tratava-se de um movimento teológico inspirado nas Escrituras e nos
Padres da Igreja dos primeiros séculos. Esse fato preparou a Igreja para,
pela primeira vez em sua história, realizar uma convicta, global e consequente revisão de si mesma, em seu ser e agir. Isso implicava na busca
de reformas na sua organização, no seu ensino e na sua ação pastoral.
Reforma não é para mudar o essencial, mas para ajudar a Igreja a viver
na sua essência. A chave para tal foi o “retorno às fontes” bíblicas e
patrísticas, o que lhe possibilitou o re-encontro consigo mesma, em sua
identidade, natureza e missão.
Assim foi que o Papa João XXIII propôs como objetivos do Concílio a atualização (aggiornamento) da Igreja e a busca da unidade dos
cristãos. Três questões mostram o seu propósito: Igreja, o que dizes de ti
mesma? A resposta levou o Concílio a rever a identidade, a natureza e a
missão da Igreja, com a necessária reorganização institucional; Igreja,
quem é o mundo para você, e o que você tem a dizer para o mundo?
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
7
Editorial
Questão que levou a considerar a sociedade e as tendências da época
não como antagonistas, inimigos a serem combatidos, mas contexto de
missão, de parceria e de cooperação; Igreja, o que são para você as
outras tradições eclesiais e religiosas? Questão que abriu o catolicismo
para o movimento ecumênico e o diálogo inter-religioso.
A incidência do Concílio na vida eclesial foi notável nos primeiros
anos consecutivos à sua realização. Mudanças na liturgia, no pensar
teológico, no agir pastoral, nas relações entre os sujeitos eclesiais
impactaram os meios católicos a partir do Concílio. Como horizonte
maior dessas mudanças, estava o redimensionamento da consciência
eclesial sobre si mesma, sobre a sociedade, sobre as outras igrejas e as
religiões. Esse redimensionamento foi causa e também conseqüência
de uma nova postura que a Igreja conciliar adotou: de não ser apenas
“mater et magistra”, mas também aprendiz; de não apenas falar, mas
também ouvir; de não apenas denunciar e condenar possíveis erros
doutrinais, mas de exercer o diálogo e a misericórdia. Para alguns, tais
mudanças são compreendidas como ganhos e atualização necessária
da Igreja. Para outros, como perdas e desvios da antiga tradição. Seja
como for, poucos duvidam da magnitude do impacto dessas mudanças
na vida da Igreja.
A Igreja conciliar revê dois elementos que lhe são essenciais:
sua organização social e sua vocação divina. Em sua dimensão social
e humana, a Igreja organiza-se na complexidade das relações humanas,
com opções teológicas e institucionais, situando-se nos contextos político, econômico, cultural e religioso do mundo. O Concílio enfatiza a
humanidade da Igreja. De outro lado, o Concílio fortalece a dimensão
divina da Igreja, em sua origem, seu desenvolvimento e seu fim. Essas
duas dimensões interagem constantemente, de modo que o humano e
o divino constituem a identidade da una, santa, católica e apostólica
Igreja. A partir disso ela auto-compreende-se como Povo de Deus, Corpo
Místico, Templo do Espírito Santo, Sacramento do Reino.
O Vaticano II foi, essencialmente, um concílio pastoral. Na globalidade dos temas tratados pelo Concílio, não se observa mudança no
conteúdo de sempre da doutrina católica, mas em sua expressão, em sua
organização ad intra e sua relação ad extra. A renovada configuração
eclesial tem expressão na liturgia, nas estruturas pastorais, na presença e
atuação do leigo na evangelização, no diálogo de conciliação e parceria
com a sociedade, com as igrejas e as religiões. O Vaticano II não fez
8
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Editorial
acusações, condenações ou expulsões. Ao contrário, desenvolveu uma
postura positiva frente às diferenças, reconhecendo no outro os elementos
de enriquecimento para a fé em Deus e a promoção de uma nova ordem
social, ensinando que é exatamente nas tensões e contradições que se
deve buscar a conciliação.
Fundamental para que isso acontecesse foi a opção metodológica
para a discussão nas aulas conciliares: um é o depósito da fé, outra a sua
formulação. A verdade não se identifica com o conceito que a expressa.
Isso é o que dá à mensagem da Igreja a plausibilidade de ser ouvida
e acolhida em nosso tempo: “... A Igreja nunca poderá afastar-se do
sagrado depósito da verdade ... Mas ao mesmo tempo, ela deve sempre
olhar para o presente, para as novas condições e as novas formas de
vida introduzidas no interior do mundo moderno” (João XXIII, Discurso
de abertura). Essa opção metodológica foi chave para a realização do
principal objetivo do Concílio, a atualização – aggiornamento da Igreja:
“O maior objetivo do Concílio ecumênico é que o sagrado depósito da
doutrina cristã deverá ser guardado e ensinado mais eficazmente (João
XXIII, Discurso de abertura).
“Revisitar” o Concílio, retomar suas inspirações, é a forma atual
de afirmar e fortalecer a sua recepção. Fala-se de três fases no processo
de recepção do Vaticano II: a fase da “exuberância” dos primeiros tempos pós conciliares, com a impressão de que o Concílio foi um evento
totalmente novo, e impelia à busca de novidades, não poucas vezes indo
além do que o Concílio possibilitava.
Seguiu-se a fase do “desencanto” pelo fato de as expectativas de
renovação na Igreja não terem sido realizadas em muitos níveis. Tal é o
que se constata no quase abandono da concepção da Igreja como Povo
de Deus e na fragilidade dos princípios da colegialidade e da subsidiariedade que sustentam a concepção da Igreja como communio; na
relação entre ministérios ordenados e os demais serviços eclesiais; na
pouca valorização da Igreja local; na concepção dos sacramentos num
horizonte mais ritual do que evangelizador. O desencanto é provocado
também pelas atitudes de fechamento ao diálogo com o mundo, com as
igrejas e com as religiões; no desequilíbrio entre o jurídico e o teológico,
a instituição e o carisma, a disciplina e a caridade. Ares de intimidação
se manifestam em atitudes disciplinares que geram um silêncio que
paralisa a força pastoral e profética da primeira fase da recepção do
Concílio. Para alguns, a atual fase os leva gera uma espécie de cansaço
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
9
Editorial
pastoral; outros refugiam-se na inércia e no comodismo. Enfim, surgem
muitas perplexidades. O que dizer do retorno à missa em latim depois
de 50 anos da reforma litúrgica proposta pelo Concílio...?
Vivemos agora um terceiro momento da recepção do Vaticano II. A
celebração dos seus 50 anos pode trazer um novo movimento no interior
da Igreja, o que mostra que sua recepção e implementação ainda não está
concluída. Para isso, é fundamental ter presente alguns elementos:
Hermenêutica: no processo de recepção atual, uma questão
fundamental é a interpretação do Concílio. As opções hermenêuticas
diferem e divergem. O que alguns entendem como renovação, para
outros é um perigo à identidade eclesial e à fundamentação da fé. Urge
um consenso nos princípios de leitura do Vaticano II que possibilite a
todos uma acolhida que sustente um caminhar juntos, respeitando o ritmo
diferenciado dos passos, mas na mesma estrada do aggiornamento que o
papa João XXIII propôs para a Igreja dos nossos tempos. É fundamental
uma “hermenêutica da reforma”, que compreende o Vaticano II como
“renovação na continuidade” do único sujeito eclesial que se aprofunda
e desenvolve no tempo. Num processo de reforma, algumas descontinuidades podem necessariamente acontecer. Mas sem o abandono dos
princípios que sustentam a identidade cristã e eclesial de sempre.
Eclesiologia: o Vaticano II foi um concílio eminentemente eclesiológico, o que se expressa em seus 16 documentos finais. Há diferentes eclesiologias no Concílio, mas a ênfase está na compreensão da Igreja
como Mistério, Povo de Deus, Comunhão, Corpo de Cristo, Templo
do Espírito, Sacramento do Reino. Essas perspectivas eclesiológicas,
distintas mas não separadas, perspectivas precisam ser equilibradas na
organização institucional e pastoral da Igreja em cada tempo e lugar.
O “espírito” do Concílio: a recepção acontece com o sentire
cum ecclesia. E isso significa assumir o “espírito” do Vaticano II que
se caracteriza por relação, diálogo, parceria, comunhão. Nesse espírito,
o Vaticano II nos desafia a vivermos a colegialidade, a sinodalidade, a
koinonia; a acreditarmos numa Igreja servidora da humanidade, parceira
em suas tristezas e alegrias; a termos coragem para repensar instituições
e o exercício dos ministérios; a desenvolvermos o diálogo ecumênico e
inter-religioso; a concretizarmos a inculturação do Evangelho...
Para isso, os esforços de recepção do Vaticano II precisam superar
as crescentes manifestações de distanciamento do Concílio. Em alguns
10
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Editorial
ambientes eclesiais há uma sensação de que o legado do Concílio está
sendo abandonado ou, no mínimo, ignorado. Mesmo falar positivamente
do Concílio pode incorrer em suspeitas.
Urge buscar no Concílio a inspiração para o ser e agir da Igreja
hoje; a orientação para o enfrentamento de questões que não apareciam
no seu tempo (a biogenética, o poder da mídia e das redes sociais, as
questões ambientais ...); urge olhar para o futuro, re-alimentar a utopia do Reino que se manifesta em uma nova ordem eclesial e social, de
comunhão na fé e no amor. O que nos inspira no Concílio é, enfim, uma
Igreja diferente nos métodos, no estilo.
A presente publicação de Encontros Teológicos quer dar a sua
parcela de contribuição para os esforços de revisitação do Concílio
Vaticano II, no contexto da celebração dos 50 anos de sua abertura. Já
fizemos semelhante publicação pela ocasião dos 40 anos do Concílio (n.
33, 2002/2). Agora queremos aprofundar alguns dos temas ali tratados
e apresentar novas perspectivas. Publicamos aqui “Como a Igreja do
Brasil adubou o terreno para o Concílio Vaticano II”, por José Ernanne
Pinheiro; “A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II”, por J. B. Libanio; “Antecedentes históricos da eclesiologia do Concílio Ecumênico
Vaticano II”, por Antonio Luiz Catelan Ferreira; “A Liturgia no Concílio Vaticano II”, por Valter Maurício Goedert; “A Palavra de Deus no
Vaticano II”, por Ney Brasil Pereira; “A ‘virada popular’ – Discipulado
missionário do Brasil para o mundo secularizado e pluricultural à luz do
Vaticano II e da caminhada latino-americana”, por Paulo Suess; “Concílio Vaticano II: 50 anos depois”, por Luis Stadelmann, SJ; e “Vaticano
II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças”, por Vitor
Hugo Mendes. Temos, ainda, a “Carta das Religiões e o Cuidado da
Terra”, assinada por um grupo de líderes religiosos participantes da
Conferência da Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro em junho deste
ano, Recensões e Crônicas.
Pe Elias Wolff
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
11
Resumo: Para entendermos como a Igreja do Brasil acolheu “o novo” do Concílio
Vaticano II temos que compreender o que aconteceu com as “minorias abraâmicas” que prepararam o terreno para que as sementes de renovação caíssem
em terreno adubado. O texto aqui apresentado salienta três eixos da renovação
eclesial na década de 50 do século passado; a) a renovação litúrgica, raiz da
renovação cristológica e eclesiológica; b) a consciência do social; c) a dimensão
missionária e o compromisso eclesial na pastoral de conjunto.
Abstract: In order to understand how the Church in Brazil received the “innovations” of the Second Vatican Council we have to grasp what happened to the
minority groups likened to the families of Abraham from of old which prepared and
fertilized the soil for the plantation of the seeds of renovation. The text of this article
lays stress on three main focal points inherent in the ecclesial renovation shown
forth in the decade of the fifties of the last century: a) the liturgical renovation,
developed from the Christological and ecclesiological renewal; b) awareness of
the social dimension; c) the missionary activity of the Pastoral organizations of
each diocese as the contribution to the good of the Church universal.
Como a Igreja do Brasil adubou
o terreno para o Concílio Vaticano II
José Ernanne Pinheiro*
* Padre José Ernanne Pinheiro, natural do Ceará, atualmente incardinado na arquidiocese de Brasília. É assessor da CNBB como secretário do Centro Nacional de Fé e
Política (CEFEP).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012, p. 13-27.
Como a Igreja do Brasil adubou o terreno para o Concílio Vaticano II
“O Concílio Vaticano II foi um Concílio pastoral-eclesiológico... que
não veio para definir ou condenar, mas para servir e salvar. Toda a sua
postura não foi fuga do mundo, mas presença viva e atuante em favor do
mundo e da humanidade. Quis ser um fermento evangélico inserido no
coração do mundo e da humanidade, a fim de tornar o mundo o mais saudável possível no corpo e na alma” (Cardeal Aloísio Lorscheider).1
Vivemos tempos de jubileu. Há 50 anos, outubro de 1962, o Papa
João XXIII declarava aberto o Concílio Vaticano II, evento marcante no
século XX não só para os cristãos. Foi considerado um novo Pentecostes,
uma nova primavera.
O aspecto “ecumênico” do Concílio quer expressar tanto a
abertura para o diálogo com o mundo moderno como a sua dimensão
universal. O Concílio foi ecumênico porque contou com a presença
significativa de todos os continentes e, sobretudo, com expressões
eclesiais diversificadas.
O Cardeal Aloisio Lorscheider, por ocasião das celebrações dos
40 anos do Vaticano II, “resume o evento com duas palavras-chave
para compreender a sua pastoral e a sua eclesiologia – aggiornamento
e diálogo. Aggiornamento – com os seus sinônimos: atualização, renovação, rejuvenescimento – da Igreja: diaconia e serviço. Diálogo da
Igreja consigo mesma, com as outras Igrejas e mesmo com as outras
religiões e o mundo dos não-crentes. Sinônimo: comunhão, participação,
corresponsabilidade.2
É certo que o Concílio Vaticano II só mereceu um grande destaque
porque a Igreja vivia, nas décadas anteriores, um clima de criatividade
e de liberdade para novas experiências, legitimadas pelo conclave que
lhes ofereceu cidadania eclesial, maior aprofundamento e dimensão
universal.
Nas pegadas do Concílio Vaticano II, em comunhão com toda a
Igreja, celebramos com alegria os 50 anos da abertura do evento, mas
ao mesmo tempo procuramos revitalizar e atualizar a herança que nos
conduziu a este novo Pentecostes.
14
1
Cf. publicação coletiva Vaticano II – 40 anos depois, Paulus, 2002, pag. 49
2
Cf. obra citada, p. 40. Na mesma publicação, pp. 51-70, padre José Comblin, por
sua vez, expressa as Sete Palavras-chaves do Concílio Vaticano II: – Homem; –
Liberdade; – Povo de Deus; – Colégio episcopal; – Diálogo; – Serviço; – Missão.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
José Ernanne Pinheiro
É certo que as sementes de renovação foram plantadas ao longo
de períodos anteriores, mas acreditamos que elas deitaram raízes e produziram frutos abundantes, entre nós, de modo muito especial na década
de 50 do século passado.
Concordamos com Raimundo Caramuru Barros, no seu livro
“Para entender a Igreja no Brasil”, que a nossa Igreja viveu nos anos
50 do século passado uma das fases mais criativas da sua história, o que
quer dizer, adubou o terreno para receber as novidades do Concílio Vaticano II. Os títulos dos capítulos do seu livro já expressam o conteúdo
a ser tratado: as sementes de renovação (1931-1949); ... E a semente
cresceu e multiplicou-se (1950-1957); anos de expansão, transição e
conflito (1958-1962)... 3
Vivíamos, no Brasil, sobretudo nos anos que precederam o Concílio, um clima de renovação com sinais que indicavam pistas para
nova fase da fidelidade evangélica. Expressando-nos numa linguagem
aparentemente triunfalista (seguramente não o é), podemos dizer que o
Concílio Vaticano II começou entre nós na década de 1950.
Destacamos três linhas básicas da renovação eclesial que prepararam a vivência conciliar entre nós (embora não só entre nós), através
de três categorias:
1 – renovação litúrgica com uma nova mística que criava exigência
de ação, explicitada através da renovação eclesiológica, baseada numa visão de teologia da história e no desejo crescente
de celebrar a vida;
3
São os títulos dos capítulos do livro que o autor Raimundo Caramuru Barros (Servus
Mariae) escreve com autoridade: “Para entender a Igreja no Brasil – A Caminhada
que culminou no Vaticano II (1930-1968)”, Vozes, 1994. Trata-se de uma leitura
privilegiada dos acontecimentos porque ele foi assessor da CNBB durante vários
destes anos e o formulador de muitas das chaves de renovação do período correspondente aos anos próximos ao Vaticano II; portanto, uma leitura mais nacional. Procuro
complementá-la com minha experiência no período, vivenciada no Ceará, através
do Seminário da Prainha e dos leigos/as da Ação Católica especializada, sobretudo
na Juventude Agrária Católica (JAC), na Juventude Universitária Católica (JUC) e na
Juventude Operária Católica (JOC)...
Contamos com uma bibliografia sólida sobre a ação da Igreja do Brasil nesses anos.
Sobre a participação mais específica da Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II temos a excelente obra do padre José Oscar Beozzo: A Igreja do Brasil no Concílio
Vaticano II(1959-1965), Paulinas, 2005
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
15
Como a Igreja do Brasil adubou o terreno para o Concílio Vaticano II
2 – nova consciência do social, fundamentada nas exigências do
Evangelho, no Ensino Social da Igreja e nos apelos constantes
de um país em ebulição;
3 – a corresponsabilidade missionária, com sementes plantadas
em vários campos e em várias vertentes, qual um rio com seus
afluentes correndo para o mar, desenvolveu a pastoral de conjunto, na unidade entre os membros da hierarquia e os leigos,
até chegar a um a tentativa de planejamento de pastoral mais
orgânico, como exigência da missão.
1 A renovação litúrgica
A renovação litúrgica era um guarda-chuva que dava cobertura
a várias ramificações da renovação eclesial. Recebíamos influência de
grupos especializados de outros países (França, Bélgica, Alemanha), de
modo especial dos beneditinos, mas, também, despertávamos em criatividade com iniciativas próprias importantes. Na renovação litúrgica,
redescobrimos a centralidade de Jesus Cristo, superando o devocionismo das celebrações. A espiritualidade do Corpo Místico de Cristo nos
encaminhava tanto para Jesus Cristo como para uma nova relação entre
os membros do corpo – na Igreja, levando para nova eclesiologia com
fundamentos bíblicos e patrísticos. Também pela liturgia, começamos a
acentuar a urgência do espírito comunitário – o sentido da assembleia,
da participação e suas consequências para a missão. O papel do Movimento do Mundo Melhor, do padre Lombardi, na mística do Corpo
Místico, foi fundamental para desarmar os espíritos e criar um clima de
compromisso evangélico.
Foram passos promissores para acolhermos a Ação Católica especializada que, através do método ver, julgar e agir, nos formava para
a contemplação na ação, elaborando uma sensibilidade para os acontecimentos, lendo-os à luz da Palavra de Deus para um agir em sintonia
com a renovação eclesial. A dimensão política começa a despontar de
maneira implícita ou mesmo explícita nos respectivos meios sociais.
Todo este clima de renovação tinha seu desaguar, por intermédio de
alguns bispos e padres, dos Seminários Maiores e dos Movimentos de
ação católica especializada, também em algumas dioceses e paróquias
e outras expressões eclesiais, embora através de minorias e com tensões
entre modelos de Igreja.
16
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
José Ernanne Pinheiro
2 A nova consciência do social
Uma nova consciência do social, emanada tanto da dimensão
social dos movimentos sociais como da ação eclesial, penetrava de
cheio no âmago da Igreja. Naturalmente uma nova metodologia, não
mais só assistencial, mas também promocional, integrava os recintos
dos cristãos. Uma grande novidade: os cristãos leigos, sobretudo os
que se engajavam na realidade desafiante do nosso país, redescobriam
a categoria “pobres”, em moldes novos, com a descoberta da dimensão
política da pastoral. Estivera ela bastante ausente nas últimas décadas.
Também vinha à tona o sentido da dignidade do trabalho humano como
motivação das encíclicas sociais desde Leão XIII (cf. Rerum novarum),
mas também vivenciada pela juventude operária católica (a JOC do padre
José Cardijn), formando militantes admiráveis a quem muito devemos
ao entrarmos no emaranhado da renovação industrial.
Podemos relembrar entre nós outras experiências levadas ao Concílio, mas sobretudo, novas feições de bispos pastores e missionários,
muitos deles formados nas fileiras da Ação Católica especializada que
assumem, com acentuado espírito missionário, a novidade do Espírito
nos seus respectivos meios sociais – operário, camponês, estudantil e
universitário, profissional...
Pensemos igualmente no Movimento de Educação de Base (MEB),
na nascente Campanha da Fraternidade, nas semanas ruralistas defendendo a Reforma Agrária, no apoio aos sindicatos rurais, no papel da JAC
(Juventude Agrária Católica), no movimento de Natal que atingia todo
o Nordeste, mas também iluminava novos caminhos em outros Estados
da federação. De modo muito especial, tenhamos presente a ebulição no
meio da Juventude Estudantil e Universitária (JEC, JUC), despertando
para o ideal histórico, com repercussão no compromisso político, chegando a criar um partido político – a AP (Ação Popular).
O teólogo peruano Gustavo Gutierrez, autor de muitas publicações
sobre a Teologia na América Latina, por ocasião da elaboração do seu
livro sobre a Teologia da Libertação, veio ao Brasil entrevistar alguns
militantes da caminhada da Juventude Universitária Católica – suas intuições, seus pressupostos filosóficos e teológicos, sua prática política e
sua metodologia de formação4.
4
Cf. Luiz Alberto Gomez de Sousa, no seu livro “A JUC: os estudantes católicos e
a Política”, Vozes, p. 9
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
17
Como a Igreja do Brasil adubou o terreno para o Concílio Vaticano II
Seguramente essas experiências estavam em sintonia com experiências similares de outros países: padres operários da França, os grupos do
Abbé Pierre que trabalhavam a assistência aos pobres, de modo especial a
moradia popular; a espiritualidade do irmão Charles de Foucauld e tantas
outras. O Concílio Vaticano II não partia do zero, mas vinha carregado
da “esperança que não decepciona” (Rom 5,5).
3 Planejamento Pastoral
Pudemos já caracterizar pelo menos quatro eixos-chave da nossa
caminhava eclesial, que serão o sustentáculo ao conjunto do Concílio.
Como estes quatro eixos foram vivenciados pela Igreja do Brasil no
período anterior?
As sementes plantadas germinaram, colaborando para a pastoral
de Conjunto, para o Planejamento da Pastoral e para o Plano de pastoral
– Plano de Emergência, já antes do Concílio Vaticano II. Vejamo-las:
a) a volta às fontes da Palavra de Deus pelo movimento bíblico,
através dos instrumentos que colocavam a Sagrada Escritura
nas mãos do povo, tornando a Palavra de Deus luz para enfrentar os desafios correntes;
b) a consciência da vivência em comunidade na assembleia
litúrgica (o Povo de Deus), de base bíblica com significado
especial para a missão também do leigo/a; as assembleias
litúrgicas, com suas exigências de participação e de vivência
comunitária, fizeram germinar brotos de pequenas comunidades
de onde desabrocharam as Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs), à luz da Palavra de Deus, levando à ação do laicato
na mística da missão.
Caramuru já caracteriza as CEBs no período 1958-1962 ao
afirmar: “Nesse momento, já começava a tomar corpo a ideia da
comunidade eclesial de base. O nome, porém, ainda não havia
sido cunhado. Sê-lo-ia logo depois, embora como “comunidade
de base”. O termo eclesial só seria acrescentado em 1965”5
c) a questão da colegialidade-comunhão:
Em 1952 um grande acontecimento eclesial: a criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), inclusive com
5
18
Obra citada, pag.141.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
José Ernanne Pinheiro
ajuda dos leigos/as da Ação Católica especializada. Foi complementada pela criação da Conferência dos Religiosos do Brasil
(CRB) em l954, quais duas irmãs siamesas alimentando o espírito
comunitário e profético na renovação eclesial entre nós. Também
nascia o Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), em
1955, no Rio de Janeiro, abrindo horizontes para a mística latinoamericana. Um novo panorama se abre para a missão da Igreja,
com expectativa de novos passos em reconstrução.
“... É preciso deixar claro que um personagem central de nossa
Igreja, a partir dos anos 40 do século XX, Helder Pessoa Câmara,
terá papel destacado nesta reconstrução. Dom Helder foi um líder
proativo nos diversos processos intra e extra-eclesiais do período.
É também fonte de uma preciosa documentação, sem a qual seria
impossível olhar sob a superfície de tais processos”6.
O trabalho colegial entre os Bispos na perspectiva da Pastoral
de Conjunto foi produzindo um novo perfil de Episcopado nos
anos 50, valorizando: a colaboração fecunda entre os Bispos
e os Leigos, o exercício de corresponsabilidade colegial, os
encontros de representantes das hierarquias latino-americanas
e das hierarquias norte-americanas; o exercício da missão profética em uma sociedade em rápida mutação.
Nesse campo teve um papel fundamental a chegada ao Brasil
do novo Núncio Apostólico, Dom Armando Lombardi, com
atuação de excepcional importância para a renovação da Igreja
no Brasil até 19647.
d) os sinais dos tempos como sinais do Espírito
Eles se expressaram no Concílio pela Gaudium et Spes, com
a forte presença dos documentos pontifícios de cunho social,
6
Cf. o recente artigo de Luiz Carlos Luz Marques em parceria com José Oscar Beozzo:
A Igreja do Brasil na preparação do Vaticano II, publicado na Revista Horizonte,
PUC-Minas, n.24 (especial) Dossiê: Concilio Vaticano II: 50 anos, dezembro, 2011,
p. 988.
7
Diz Caramuru sobre o novo Núncio Armando Lombardi: “Durante dez anos visitou
praticamente o país inteiro, até remotas prelazias da Amazônia. Seus pronunciamentos
por ocasião das Assembleias do episcopado, eram programas de grande perspicácia
e descortino pastoral. O apoio decisivo e ostensivo que deu ao apostolado dos leigos
e, em especial, à criação de novas circunscrições eclesiásticas, a indicação para o
episcopado de sacerdotes com grande visão e experiência pastoral, a atitude amiga
e fraterna e ao mesmo tempo franca com que tratava os irmãos no episcopado, foram
contribuições que ajudaram significativamente a plasmar, no longo de uma década,
o novo perfil da Igreja no Brasil”, pag. 95.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
19
Como a Igreja do Brasil adubou o terreno para o Concílio Vaticano II
sobretudo as duas últimas encíclicas do Papa João XIII – Mater
et Magistra (1961) e a Pacem in terris (1963) e também pelos
dramáticos questionamentos da realidade social do mundo
moderno.
Quando o novo esquema “A Igreja no mundo de hoje” fez parte
da agenda do Concílio, recolhia as novidades das Igrejas já presentes no
mundo, em diálogo com o mundo, a serviço do mundo. Essa caminhada
já vinha de longe num caminhar lento, mas promissor, tanto nos países
desenvolvidos como nos países em desenvolvimento.
No Brasil, nos anos 50, vivíamos o grande impulso desenvolvimentista, surgido no país após a II Guerra Mundial; o crescimento desordenado das cidades; as exigências crescentes de uma transformação
estrutural na agricultura. Tudo isso não podia deixar de estimular uma
participação mais efetiva da Igreja que, por sua vez, continuou a marcar
presença nas questões educacionais e a preocupar-se com os meios de
comunicação social. As relações da Igreja com a sociedade civil promoviam um encontro feliz – no desenvolvimento rural e na reforma
agrária; no desenvolvimento nacional e regional; nas questões relativas
à educação e opinião pública8.
No desenvolvimento rural, muitas iniciativas estão em curso no
momento.
A título de exemplo: as semanas ruralistas, lembrando-nos de
modo especial da semana ruralista de Campanha – MG, onde o bispo
Dom Inocêncio Engelke em sua carta pastoral pronunciou uma frase
célebre: “Conosco, sem nós, ou contra nós, se fará a reforma agrária”;
o trabalho das cooperativas; o Serviço de Assistência Rural (SAR), em
Natal – RN; a educação rural através das escolas radiofônicas (o Movimento de Educação de Base – MEB) e outros.
O desenvolvimento nacional e regional aconteceu num diálogo
promissor entre Igreja e Estado, exatamente no momento em que o
Presidente Juscelino dava início a seu plano de metas e a seu projeto de
criação da nova capital em Brasília9 (em 1956 foi enviado ao Congresso
20
8
Cf. Caramuru, obra citada, pp. 105-111.
9
Em manuscrito, está depositada nos arquivos do Centro de Documentação Helder
Câmara, CeDocHC, uma carta de Dom Helder convidando o Papa João XXIII para estar
presente na inauguração da nova capital – Brasília, no dia 21 de abril de 1960.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
José Ernanne Pinheiro
o projeto de lei sobre a transferência da capital para o centro do país). O
presidente Juscelino defendia um desenvolvimento de “50 anos em 5”.
O episcopado concentrou suas atenções em dois aspectos fundamentais do desenvolvimento brasileiro: a) como processo integral,
envolvendo o homem todo e todos os homens; b) o desenvolvimento
não pode ser alcançado com base nas gritantes disparidades sociais e
regionais.
Nesse período já se fazia sentir, no Brasil, a influência do padre
dominicano Lebret, que vinha exatamente trabalhando na perspectiva de
um desenvolvimento que não fosse um simples crescimento econômico
mas que atendesse “ao homem todo e a todos os homens”, de acordo
com a feliz expressão por ele criada. Tinha ele grande preocupação com
o crescimento acelerado nas cidades brasileiras10.
Essa mesma discussão chegou com força ao Concílio durante a
elaboração da Gaudium et Spes, levada pela América Latina e outros
bispos, com o questionamento fundamental: não basta atender ao mundo
moderno. E o então chamado “terceiro mundo” – o mundo dos pobres
– como entra no Concílio?
João XXIII já tinha a intuição da problemática, verdadeiro desafio
do Evangelho. Por isso, na abertura do Concílio, afirmou que a Igreja
é de todos, sim, mas sobretudo dos pobres. Em comunhão evangélica,
prelados conciliares dos países ricos com colegas dos países pobres, começam a levantar a questão dos pobres como exigência de fidelidade ao
10
Nos anos 50, quando Dom Helder já era o Secretário Geral da CNBB, o padre Lebret
fundava em São Paulo o grupo “Economia e Humanismo”, cuja influência se fez sentir
em várias situações. Passemos um momento para o Vaticano II da Gaudium et Spes
e do seu complemento com a Carta encíclica de Paulo VI – a Populorum Progressio,
em 1967, sobre o Desenvolvimento dos povos. Esta carta encíclica teve Dom Helder
e Padre Lebret como assessores. Aí o Papa diz: ”O desenvolvimento não se reduz a
um simples crescimento. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover
todos os homens e o homem todo...” n.14. Sobre a atuação do padre Lebret nas cidades brasileiras, leia-se a análise do professor Alfredo Bosi, no seu livro: Ideologia
e contraideologia – temas e variações, Companhia de Letras, 2010, pp. 262-275.
Ele fala do papel renovador que “Economia e Humanismo” exerceu na formação
dos urbanistas de São Paulo, Recife e Belo Horizonte, chamando a atenção para
o crescimento desordenado das metrópoles e a situação deprimente das periferias,
induzindo a uma política de descentralização administrativa. Foi encaminhada uma
grande pesquisa, em 1957, sobre as condições de vida da cidade de São Paulo, tendo
como objetivo primeiro reordenar os espaços de pobreza no sentido de humanizá-los.
Lebret percebeu rápida e pioneiramente que o inchaço urbano nos grandes centros
de São Paulo, Recife e Belo Horizonte estava estruturalmente vinculado à imigração,
logo à pobreza do mundo rural nordestino.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
21
Como a Igreja do Brasil adubou o terreno para o Concílio Vaticano II
Evangelho. É verdade que o tema não representou mais um esquema no
Concílio, mas se tornou um ”ausente-presente” porque estava implícito
em várias das intervenções dos padres conciliares, com consequências
para a relação Igreja-Política, para o agir dos cristãos na política11.
A América Latina já vinha caminhando fortemente nesse veio
– opção pelos pobres, produzindo uma espiritualidade original, uma
teologia típica, uma evangelização libertadora que propunha uma
libertação-salvação da pessoa humana total e todas as pessoas humanas,
vítimas das injustiças.
Dom Oscar Romero, em discurso pronunciado na Universidade
de Lovaina, ao receber o título de doutor honoris causa, um mês antes
de ser assassinado (em 1980), revela a problemática dos pobres como
novidade da recepção do Vaticano II na América Latina:
“Devemos ter claro desde o princípio que a fé cristã e a ação da Igreja
sempre tiveram repercussões sócio-políticas. Por ação ou omissão, por
conivência com um ou outro grupo social, os cristãos sempre influíram
na configuração sociopolítica do mundo em que vivem. O problema então
reside em ver como deve ser esse seu influxo no mundo sociopolítico,
para que ele se faça verdadeiramente de acordo com a fé. Como primeira
ideia, ainda que bem geral, coloco a intuição do Concílio Vaticano II,
que está na base de todo o movimento eclesial da atualidade; a essência
da Igreja está em sua missão de serviço ao mundo, para salvá-lo em sua
totalidade e para salvá-lo na história, aqui e agora. A Igreja está no
mundo para solidarizar-se com as esperanças e alegrias, com as angústias e tristezas dos homens. Como Jesus, a Igreja veio para ‘evangelizar
os pobres e redimir os oprimidos, para procurar e salvar o que estava
perdido’” (Lumen Gentium,8).
As Relações Igreja-Estado na década de 50 e início da década de
60, no Brasil, já dão sinais da afirmação de Dom Oscar Romero quando
afirmava que “por ação ou omissão, por conivência com um ou outro
grupo social, os cristãos sempre influíram na configuração sociopolítica
do mundo em que vivem”.
A questão fulcral entre nós, no momento, era a consciência da
estrutura de injustiça reinante na sociedade e a urgência de uma atitude
11
22
Esta nova posição foi melhor explicitada pelo Papa Paulo VI, na Populorum Progressio,
1967, cumprindo uma promessa feita ao grupo de padres conciliares que trabalhavam
a questão da Igreja dos Pobres durante as sessões do Concílio Vaticano II.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
José Ernanne Pinheiro
de compromisso evangélico com mudanças sociais radicais12. Tornou-se
mais do que um imperativo ético. Tornou-se um imperativo teológico
espiritual. Também uma convicção, oferecida pela metodologia da Ação
Católica especializada ao “ver a realidade”, de que é necessário entendêla para transformá-la como parte constitutiva da evangelização.
A vivência de muitos agentes de pastoral no meio dos pobres,
vítimas de estruturas injustas, criava exigências novas em nome do
Evangelho; uma nova metodologia, baseada em Paulo Freire e no MEB,
insistia em que os pobres não só são dignos de compaixão, mas devem
ser sujeitos de seu destino, o que levava a passarmos do assistencialismo
para a promoção humana. A Igreja tornou-se mais ativa naqueles setores
da sociedade onde eram maiores as ameaças.
Dom Helder Câmara, no livro “Revolução dentro da Paz”, afirma:
“... confere à Igreja uma responsabilidade indiscutível, em face dos novos
desafios e lhe apresenta exigências inadiáveis. A Igreja não pode permitir
que os autênticos valores de nossa civilização, que ela ajudou a criar,
sejam levados de roldão nas mudanças estruturais a serem rapidamente
efetuadas. Mas é chamada a denunciar o pecado coletivo, as estruturas
injustas e estagnadas, não apenas como alguém que julga de fora, mas
como alguém que reconhece sua parcela de responsabilidade e culpa.
Deve ela ter a coragem de solidarizar-se com este passado e sentir-se
assim mais responsável pelo presente e pelo futuro” 13.
Os problemas supracitados, em ebulição na realidade brasileira,
com a atuação crescente da Igreja Católica, expressando uma posição
nova, exigiu novo estilo de diálogo e de cooperação no relacionamento
entre a Igreja e o Estado nesses anos. A Igreja coloca-se ao lado dos
injustiçados, exigindo mudanças sociais profundas através dos seus
pronunciamentos e das metodologias de formação, sobretudo do laicato
que foi mobilizado e formado para agir nessa perspectiva.
12
Para melhor conhecermos a atuação da Igreja nos tempos que precederam a ditadura
militar, veja-se o livro “O Catolicismo brasileiro em época de transição”, Edições
Loyola, 1974. Seu autor é o brasilianista canadense Thomas Bruneau, cujo âmbito
de estudo, no entanto, é mais amplo que os anos da ditadura.
13
Citação no livro de Thomas de Bruneau, p.146.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
23
Como a Igreja do Brasil adubou o terreno para o Concílio Vaticano II
Do processo de Planejamento de Pastoral
ao Plano de Emergência (1962)
Naturalmente, todo o caminhar das ideias (expressão muito querida
a Dom Helder Câmara) preparou a elaboração de um primeiro Plano de
Pastoral para a Igreja do Brasil, que se chamou “Plano de Emergência”,
mas também preparava a recepção do Concílio Vaticano II. Esse Plano
de Emergência foi um passo adiante em relação ao Planejamento de
Pastoral: era a “pastoral de conjunto” em andamento.
Tudo partiu de um apelo do Papa João XXIII, logo após a sua eleição, ao dirigir-se aos bispos da América Latina por ocasião do Encontro
dos Delegados do CELAM, realizado em Roma. Fazia o Papa um apelo
para uma tomada de consciência da situação grave do Continente, dos
desafios e exigências enfrentados pela Igreja.
Após uma rápida análise da situação continental, especialmente
da situação da Igreja, assim se expressa o Santo Padre:
“... Estamos seguros de que o espírito e a vida católica nas regiões da
América Latina têm em si forças suficientes para abrigar as mais alegres
esperanças de futuro. Mas para que se possam realizar de maneira feliz
e indispensável – além da Graça Celeste – que os sagrados Pastores
saibam empregar os meios particulares requeridos pela situação especial(...)”. Além dos dados da realidade, pede o papa um “Plano de
ação” que “correspondendo à realidade, seja perspicaz nos propósitos
e racional na seleção dos meios que se hão de empregar”.14
Em 8 de novembro de 1961, o Papa João volta à questão em carta
dirigida a todos os bispos latino-americanos, diante do aceleramento das
transformações históricas e da insuficiente renovação processada nas
estruturas pastorais.
Três pontos da carta merecem maior relevo:
– João XXIII pedia que cada país, o mais brevemente possível,
chegasse a um planejamento pastoral (e a um plano) com os
objetivos de iluminar as inteligências, revigorar a vida sacramental, fortalecer os católicos na fé;
14
24
Para maiores detalhes do apelo do Papa João XXIII aos Bispos da América Latina, cf.
outro livro de Raimundo Caramuru, já publicado em 1967, sob o título: ”Brasil: uma
Igreja em renovação”, pela Editora Vozes. Desse livro colho informações sobre o
Plano de Emergência.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
José Ernanne Pinheiro
– que os bispos mostrassem aos governantes e a todos os responsáveis a urgência das reformas estruturais e um esforço de
promoção das massas subdesenvolvidas;
– que a Hierarquia e toda a Igreja local, numa função subsidiária, cooperassem com os governos nesse esforço de promoção
humana e dele participassem ativamente.
A V Assembleia da CNBB, em abril de 1962, dedicou-se plenamente a atender ao apelo do Santo Padre. Logo nas páginas introdutórias
dizem os Bispos: “Todo este trabalho a que a Igreja do Brasil se propõe:
numa linha de reflexão sobre as necessidades da hora atual, numa preocupação de melhorar o que existe, inspirar novos empreendimentos,
coordenar esforços dentro de uma visão pastoral de conjunto; tudo isto
se insere providencialmente numa fase de história da Igreja Universal,
que vive já o clima do Concílio Vaticano II”.
Os Bispos do Brasil receberam contribuição do Movimento do
Mundo Melhor (MMM) para o esquema do Plano de Emergência através do Movimento de Natal, que tinha uma experiência solidificada em
planejamento de pastoral. Também é bom lembrar que o padre Ricardo
Lombardi tinha pregado pouco tempo antes um retiro para o episcopado,
propondo a espiritualidade do Movimento do Mundo Melhor.
Falando sobre o Plano de Emergência, assim se expressa o texto
dos Bispos:
“De acordo com o que nos foi sugerido pela Santa Sé, voltaremos as
vistas para uma Parte pastoral e para uma Parte Econômico-social.
Na primeira merecerão cuidado especial: a pastoral de Conjunto, a
Renovação paroquial, a renovação de Ministério Sacerdotal, a Renovação dos Educandários. Na segunda: o Movimento de Educação de
Base; as Frentes Agrárias, levando à Sindicalização Rural; a eventual
colaboração com a Aliança para o progresso; a coordenação das obras
apostólicas; o treinamento de líderes”.
Dom Helder Câmara, como secretário geral da CNBB, termina a
apresentação do Plano de Emergência com as seguintes palavras:
“Agradecemos a Deus que tudo isso aconteça na Vigília do Concílio
Ecumênico: o Plano de Emergência nos prepara para as reformas que
hão de vir como consequência do Vaticano II. E os Bispos do Brasil têm
inteira confiança de partir para Roma, deixando o Plano em marcha,
entregue aos nossos padres, religiosos e leigos”.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
25
Como a Igreja do Brasil adubou o terreno para o Concílio Vaticano II
Conclusão
Nos primeiros anos da década de 60, o Brasil viveu um período
de grande ebulição social e política. Uma sede de renovação perpassava
todas as áreas da sociedade, com fortes tensões ideológicas. Vivíamos
entre o temor e a esperança, dependendo de que lado se encaravam as
perspectivas para o País.
A Igreja Católica, através de suas forças vivas, vinha tomando
consciência das injustiças e, portanto, estava vivendo o furacão dos
embates travados na sociedade.
Já em pleno Concílio Vaticano II, em 1964, o Brasil enfrentou
um golpe militar que desbaratou passos e níveis desta caminhada, com
fortes repercussões para alguns campos do trabalho eclesial, sobretudo
levando em consideração tudo o que foi até então descrito como sinais
promissores de esperança.
Enquanto a Igreja vivia a nova primavera do Vaticano II, sofríamos
o clima quente de um verão causticante na realidade do país, inclusive
atingindo muitos dos seus filhos e filhas: prisões, torturas, exílios e mesmo
morte-martírio. Um calvário!
O Brasil dos anos 50 ficou de molho. As conquistas no plano
social e político – o sonho de uma democracia participativa foi para as
calendas de uma noite escura. Foram mais de duas décadas de espantos
e perplexidade (1964-1985) – o que vai acontecer?
No entanto, como disse Dom Helder Câmara no dia em que voltou a poder falar através dos meios de comunicação, após sete anos de
exílio na própria terra: “Quanto mais negra a noite, mais carrega em si
a madrugada”.
Nessa fase de escuridão, com a motivação da renovação conciliar
e com “a esperança que não decepciona” muitas sementes voltaram a
germinar em meio a obstáculos, mas com a pertinência de quem acredita
que o sol poderá de novo brilhar.
Nem tudo estava perdido. No período da ditadura se solidificou
o trabalho de pastoral de conjunto e de articulação dos trabalhos missionários, porque precisávamos mais uns dos outros e nos sentíamos
continuamente interpelados a respostas rápidas diante dos novos desafios. Nos anos de chumbo da ditadura militar, a CNBB teve um papel
fundamental ao concretizar sua missão também no caminho da defesa
26
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
José Ernanne Pinheiro
dos direitos humanos, ao expressar a voz profética através de pastores
valentes e corajosos.
A opção preferencial pelos pobres teve seu desenvolvimento considerando os pobres como sujeitos da evangelização. As Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs), com seus Intereclesiais periódicos (a partir
de 1975), deram sinais de Esperança como novo jeito de ser Igreja ou
como novo jeito de a Igreja ser.
Dom Helder Câmara definiu as CEBs para o Papa Paulo VI, cantando uma música do Movimento de Evangelização Popular (as CEBs
do Recife): “eu acredito que o mundo será melhor, quando o menor que
padece acreditar no menor”.
Em sintonia com seus Pastores, novas iniciativas desabrocham: o
nascimento do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Pastoral da
Terra (CPT) e muitas outras.
50 anos da abertura do Concílio Vaticano II!
Como recuperar o clima eclesial dos anos 50 do século passado?
Como recuperar o clima primaveril do Vaticano II? Como de novo visitar os documentos do Concílio Vaticano II, como palavras vivas de um
momento de Igreja, num contexto de mudanças culturais aceleradas em
que vivemos? Podemos pensar num Concílio Vaticano III ou sonhar como
Dom Helder – com um “Concílio Jerusalém II”, no reencontro com as
comunidades dos Atos dos Apóstolos com nova inculturação?
Endereço do Autor:
SE/Sul – Quadra 801 – Conj. B
CEP 70200-014 Brasília, DF
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
27
Resumo: O evento e os documentos do Concílio Vaticano II (1962-1965) tiveram
enorme impacto sobre a vida da Igreja católica e para além dela. A 50 anos de
distância do início, as interpretações continuam enriquecendo-lhe a memória.
Este artigo escolheu o viés do conflito de interpretações para captar-lhe o desenrolar, a gestação dos textos e sua recepção. Em cada momento, procurou-se
perceber as tensões hermenêuticas presentes. Por meio dessa leitura busca-se
entender como até hoje a Igreja católica vive conflitos que buscam fundamentarse no próprio Concílio sob a perspectiva da continuidade e da ruptura.
Abstract: The realization and immense significance of the Second Vatican
Council (1962-1965) had undoubtedly a profound impact on the life of the
Catholic Church and beyond. After a period of fifty years, the interpretations of
the documents continue to enrich a great variety of topics and the diversity of
interests in them. This article takes into account the conflict of interpretations in
order to seize the long-range-goals, including the preparation and their reception.
The endeavor in each moment was to capture the underlying hermeneutical tensions. The objective of this approach is to understand how the Catholic Church
until now strives to grow in spite of conflicts and applying its basis established
on the perspectives of Vatican Council in order to enhance the continuity and
rupture for the future.
A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II
J. B. Libanio*
* Professor de teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012, p. 29-50.
A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II
A Igreja de hoje reflete, embora com traços próprios do momento
atual, os principais conflitos de interpretação que se viveram antes, durante e na recepção imediata do Concílio1. Ilumina-nos percorrer aqueles
momentos sob a perspectiva de tais tensões interpretativas. Cada uma
delas repercute ainda hoje a seu modo.
Os conflitos hermenêuticos não se referem aqui somente à compreensão de textos, mas incluem também a diferença das mentalidades
presentes nos três momentos estudados: antes do Concílio, na gestação
dos textos, na sua leitura pós-conciliar e nas recepções. Portanto, refletiremos sobre quatro momentos do conflito hermenêutico.
1 O conflito hermenêutico dos padres conciliares
João XXIII ousou muito ao convocar o Concílio. Ao morrer Pio
XII (1958), a Igreja encontrava-se na encruzilhada do caminho da Tradição garantida pela autoridade e da inovação surgida na cultura moderna
que já alcançava o interior da Igreja. Pio XII soube equilibrar as duas
tendências conflituosas. Abriu espaço para os movimentos litúrgicos e
bíblicos que anunciavam o sujeito moderno em busca de autonomia, de
valorização da experiência pessoal, de acolhida dos avanços das ciências, da entrada da consciência histórica e da pujança hermenêutica a
invadirem os diferentes campos do saber.
Temeu, porém, que tal avalanche penetrasse dois rincões que ele
considerava intangíveis: a dogmática e a estrutura hierárquica da Igreja.
Mostrou-se firme em evitar as incursões da Nova Teologia francesa, do
ousado pensamento de Teilhard de Chardin, das arriscadas experiências
sociais dos padres operários, especialmente na França. A Encíclica Humani generis reflete o clima de desconfiança em relação a alguns aspectos
da modernidade em avanço.
As lides teológicas e pastorais refletiam o duro embate entre dois
grandes sujeitos sociais no interior da Igreja, que entrarão em 1962 na Aula
1
30
A expressão aparece no título de uma das obras de Paul Ricoeur: O conflito das
interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978. Aqui entendemos a expressão na seguinte perspectiva. Em face de tensão fundamental, como p.
ex., objetivo e subjetivo, o conflito consiste na acentuação de um dos polos em tensão
com o outro. Não significa necessariamente exclusão. O grau de conflito depende de
circunstâncias históricas e da polarização que se cria em torno de um dos polos. Vai
desde sadia tensão até o extremo da rejeição do lado oposto. Sob essa perspectiva,
analisaremos o Concílio Vaticano II nos diversos momentos até a recepção atual.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
J. B. Libanio
conciliar. Já vinham marcados por dois horizontes. Eles se localizavam bem
geograficamente. França, Holanda, Alemanha, Bélgica representavam o
clima novo na teologia e na pastoral. O mundo latino, tanto europeu como
o das Américas, permanecia firme na tradição neoescolástica em que predominava a força da tradição teológica clássica garantida pela autoridade,
reforçada pelas encíclicas e alocuções abundantes de Pio XII.
O grupo minoritário na entrada do Concílio respirava os ares de
renovação. Sonhava com um Concílio de diálogo com a modernidade que
se fortalecia na Europa depois da Segunda Guerra Mundial. Ele temia,
porém, que o Concílio não passasse, no máximo, de suave acomodação.
E o temor fundava-se em diversos sinais nítidos.
Em Roma, antes do Concílio, se realizara o Sínodo do Clero romano. Os resultados mostraram rosto bem conservador. A Constituição
Apostólica Veterum sapientia de João XXIII (22 de fevereiro de 1962)
reforçava o valor e uso do Latim no mundo eclesiástico, ao visar sobretudo o ensino nas Instituições acadêmicas. A sua recepção em vários países
sofreu arrepios, já que se iniciara neles o ensino da filosofia e teologia
eclesiásticas na língua vulgar.
Presidiam a muitas das comissões constituídas para preparar os documentos conciliares cardeais da Cúria romana de forte viés tradicional, embora
tenham sido convocados assessores representantes da vertente renovadora
da Igreja. O peso, porém, ainda pendia para o lado conservador.
Significativa parte do episcopado mundial não tinha tido acesso ao
movimento renovador teológico e pastoral dos países centro-europeus.
Permanecia ligado à tradição neoescolástica de visão dogmatista, na
expressão de Cl. Geffré. O ponto de partida de tal perspectiva teológica
vinha do magistério e da tradição ulterior. A Escritura e a Tradição serviam de provas para o tipo de ensinamento do magistério oficial, verdadeiro reflexo da Igreja institucional.2 Acentuava-se o aspecto objetivo ao
extremo. Ressoava nela a famosa afirmação de S. Vicente de Lérins: “In
ipsa item catholica ecclesia magnopere curandum est ut id teneamus,
quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est”. “Na Igreja
assim católica grandemente deve-se cuidar que retenhamos o que em
toda a parte, o que sempre, o que por todos foi crido”3.
2
GEFFRÉ, Cl.: Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes,
2004, p. 35s
3
S. Vincentius Lirinensis, Commonitorium, n. 2, in Rouet de Journel: Enchiridion
Patristicum, Friburgo: Herder, 1951, ed. 17., n. 2168, p. 686. Nessa mesma linha, vale
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
31
A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II
A perspectiva dogmatista se interessava por responder à pergunta
da escolástica: Quid est? Que é? Criou-se a palavra latina quidditas, de
pouca elegância, para significar a essência, a “coisa” (res) nela mesma,
fora de qualquer contexto interpretativo. O dicionário Houaiss define a
“quididade” como essência ou natureza real de algo, segundo o pensamento escolástico. A preocupação dogmatista predominava na maioria
dos que vieram ao Concílio. Buscava-se a ”coesão das verdades da fé
entre si e no projeto total da Revelação”, sem questionar o contexto de
interpretação4. Pretendia-se assim propor a verdade de forma definitiva,
fixa, imutável. A fonte principal encontrava-se no ensinamento magisterial da hierarquia e da academia eclesiástica.
No fundo, a maioria conciliar dos inícios interessava-se por estabelecer a inteligência essencial do conteúdo do “depósito da fé”. Pretendia
no final do Concílio ter a doutrina dogmática da Igreja confirmada e
reafirmada em resposta aos questionamentos da modernidade.
Imaginava tal maioria que os fieis da Igreja católica esperavam do
Concílio clareza doutrinal, condenação das heresias e erros do momento
presente, que para ela pululavam por obra da soberania absoluta da razão
e da afirmação do valor da práxis. Contra elas, afirmava-se a força da fé
e das obras de caridade.
O conflito se estabelecia com a minoria que viera tocada pelas grandes perguntas da modernidade: a revolução científica, a razão iluminista,
a autonomia e liberdade do sujeito, a história e a práxis. Questões ameaçadoras para a formulação doutrinal tradicional. Eis o primeiro magno
conflito entre os padres conciliares já ao chegarem ao Concílio, vindos
do mundo inteiro. Deixamos de lado a pluralidade teológica, litúrgica,
cultural que os orientais e a jovem geração de bispos africanos traziam.
A América Latina ainda apenas mostrava alguma originalidade, com a
exceção de homens de extraordinário carisma como Dom Helder e Mons.
recordar F. Marín-Sola, outro clássico dessa visão fixista: “Portanto, todos os dogmas já
definidos pela Igreja e quantos no futuro se definam estavam na mente dos apóstolos,
não de uma maneira mediata ou virtual ou implícita, mas de uma maneira imediata,
formal, explícita. (...) Se se toma, pois, como termo de comparação o sentido do depósito revelado, tal como estava na mente dos apóstolos, para compará-lo com o sentido
que nós conhecemos, então deve-se dizer algo semelhante ao que dizemos ao falar
da mente divina, isto é, que não houve progresso, mas sim diminuição ou retrocesso”.
F. Marín-Sola, La evolución homogénea del dogma católico, Madri-Valencia, 1963,
157s., cit. por A. Torres Queiruga, El pluralismo como riesgo y oportunidad para la fe,
in L. González-Caravajal, F. Elizondo et alii, Madri, PPC, [2000], p. 99.
4
32
Catecismo da Igreja Católica. Petrópolis: Vozes, 1993, n. 114.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
J. B. Libanio
Larrain5. A surpreendente novidade desse Continente explodirá depois do
Concílio em Medellín, quando da recepção. Veremos mais na frente.
2 Conflito hermenêutico na produção dos textos
O embate se introduziu para dentro da aula. A maioria vinha preparada para elaborar, segundo a longa tradição conciliar, os documentos
na perspectiva dogmática de afirmações de verdades definitivas contra
os erros e heresias. Surge fator inesperado que embaralha as cartas já
marcadas. João XXII profere discurso inaugural em tom surpreendente
e oferece os critérios para a produção dos textos conciliares que decidem sobre a natureza do Concílio. Desloca o conflito entre dogmatistas
majoritários e hermeneutas minoritários para o lado da interpretação
atualizada da tradição eclesial. A minoria cresce então de força.
A Segunda Guerra Mundial terminara, ao deixar atrás de si a escuridão de regimes e ações extremamente criminosas. A consciência mundial
abalara-se diante da perversidade humana que se alastrara por vários países.
Na guerra se esquecem as atitudes éticas mais comezinhas. As reações
pós-guerra afetaram a religião e em particular a Igreja católica na esteira
de forte secularização. O mundo se torna temível para a Igreja.
Em face de tal situação ameaçadora, João XXIII, no discurso
inaugural, pede atitude de confiança, de otimismo, de esperança, ao
contrapor-se aos “profetas de desventura que anunciam acontecimentos
sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo”6.
Ao Concílio “se dirigem não só os olhares de todos os povos, mas
também as esperanças do mundo inteiro”. Queira o céu que ele corresponda “plenamente às aspirações universais”7. Esse desejo do Papa atingiu
tão forte os padres conciliares que lhes inspirou as primeiras palavras
da Constituição Pastoral Gaudium et spes. “As alegrias e as esperanças,
as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e
de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as
5
Ver a exaustiva e rigorosa pesquisa de BEOZZO, J. O.: A Igreja do Brasil no Concílio
Vaticano II: 1959-1965. São Paulo: Paulinas, 2005.
6
O Programático Discurso de Abertura [do Papa João XXIII], in KLOPPENBURG, B.:
Concílio Vaticano II. Vol.: II. Primeira Sessão (set.-dez. 1962), Petrópolis: Vozes, 1963,
p. 308.
7
O Programático Discurso de Abertura..., p. 312.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
33
A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II
tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma
verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”8.
Tal toque de otimismo anuncia virada hermenêutica. A preocupação
distancia-se das condenações, das objurgações típicas de Concílios anteriores,
para atitude tranquila, embora firme, diante da verdade a ser proposta a fim de
responder às demandas do momento atual. João XXIII pede ao Concílio, em
vez de usar de severidade na condenação dos erros, que recorra ao “remédio
da misericórdia”. Assim julga “satisfazer melhor às necessidades de hoje
mostrando a validez da sua doutrina que condenando erros”9.
Avança então nova hermenêutica. Não se trata de repisar as verdades do arsenal dogmático da Igreja, acumulado ao longo dos séculos.
Para isso não se necessitaria de Concílio. Mas de esforçar-se por encontrar
formulações, interpretações dessas mesmas verdades em consonância
com o pensar de hoje.10.
João XXIII continua a assinalar os aspectos da realidade presente
que merecem destaque. Ele já mostrara, com a criação do Secretariado
para a União dos Cristãos, confiado ao Cardeal Bea, singular sensibilidade ecumênica. Agora, de maneira solene, estabelece a perspectiva
ecumênica como critério hermenêutico para produzir os textos. Mais
outro deslocamento no conflito de interpretações. Em vez de lapidar os
textos segundo o rigor semântico católico romano, João XXIII propõe o
esforço de encontrar expressões que consigam consenso ou, ao menos,
não firam a sensibilidade das outras confissões cristãs.
O horizonte ecumênico abre-se ainda mais para os fieis de outras
religiões e para todo o gênero humano. Aí estão aqueles que não assumiram a fé cristã, por não a terem conhecido ou por não a aceitarem no
horizonte de sua consciência religiosa e humana. O Concílio, no entanto,
pensa em todos eles no momento de redigir os textos, em contraste com os
que queriam restringir-se unicamente ao destinatário católico romano.
8
9
10
34
Concílio Vaticano II: Constituição pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo
actual, n. 1. A tradução portuguesa é tirada de: Concílio Vaticano II. Documentos do
Vaticano II. Constituições, Decretos e Declarações. Petrópolis: Vozes, 1966.
O Programático Discurso de Abertura..., p. 310.
Ibid.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
J. B. Libanio
Nesse ponto, o Concílio toca as raízes mesmas da fé cristã dos
inícios. O tertium genus11 que o Cristianismo gerou não se prendeu nem
ao judeu nem se confundiu com o pagão, mas se dirigiu a ambos com
a novidade da fé em Cristo. Até hoje conserva a vocação de anúncio a
toda pessoa de boa vontade e não se prende a nenhum horizonte fechado.
O Concílio abre mais uma vez a janela hermenêutica da fé para todas
as culturas e civilizações. João XXIII vê o Concílio propor-se “que, ao
mesmo tempo que une as melhores energias da Igreja e se empenha por
fazer acolher pelos homens mais favoravelmente a boa nova da salvação,
como que prepara e consolida o caminho para aquela unidade do gênero
humano, que se requer como fundamento necessário para que a cidade
terrestre se conforme à Cidade celeste ‘na qual reina a verdade, é lei a
caridade, é a extensão a eternidade’ (cf. S. Augustin., Epist. 138,3)”12.
Ao pontualizar ainda mais a tarefa dos padres conciliares, o Papa
oferece-lhes o critério hermenêutico, aparentemente inocente, do caráter
eminentemente pastoral do Concílio. Termo de semântica plural. Em
estudo da década de 60, logo após o Concílio, distingui três sentidos
de pastoral. Embora eles se referissem primordialmente à reforma dos
estudos eclesiásticos, refletiam a concepção geral daquele momento em
que aconteceu o Concílio. Nesse sentido, a compreensão plural do conceito pastoral serviu de critério hermenêutico na confecção dos textos
em conflito com aqueles que pretendiam elaborá-los na linha dogmatista,
intelectual, precipuamente conceitual.
À medida que se caminhava na redação dos documentos conciliares, mesmo os de índole dogmática, crescia a preocupação de dar-lhes
dimensão pastoral. Tal aparece de maneira expressa no Decreto Optatam
totius, onde se diz claramente que “todos os aspectos da formação [sacerdotal], o espiritual, o intelectual e o disciplinar, em ação conjunta devem
ordenar-se a este fim pastoral”13. Ao tratar dessa passagem, observa J.
Schröffer que se trata de um sentido aprofundado. Define o significado
pastoral a partir do envio e da atitude de Cristo. Esta visa à salvação das
pessoas. A dimensão pastoral subjaz ao agir de Jesus, a seu anúncio, a
seu ministério sacerdotal de oferecer e ser oferecido, de conduzir as pes11
Ver a nota de: ROUSTANG, F.: Le troisième homme, in Christus t.13, 1966, n, 49,
p. 561. Aí ele explica que essa expressão era utilizada pelos primeiros cristãos para
definir sua situação em relação aos judeus e pagãos. Tratava-se para eles de explicar
sua situação histórica à luz do Evangelho.
12
O Programático Discurso de Abertura..., p. 311s.
13
Concílio Vaticano II: Decreto sobre a Formação Sacerdotal Optatam totius, n. 4.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
35
A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II
soas no caminho de Deus. No fundo, está uma atitude espiritual, de que
o seminarista precisa apropriar-se. Ela necessita penetrar-lhe o tríplice
ministério. A vontade salvífica de Cristo constitui a postura fundamental
com a qual a Igreja se encontra com o mundo14.
Essa concepção de pastoral não influenciou unicamente o Decreto
sobre a Formação sacerdotal, mas serviu de orientação para os demais
textos. Há outros dois sentidos típicos da formação dos seminaristas, que
não vêm ao caso: o curso de teologia pastoral como matéria do currículo
acadêmico e as práticas pastorais que os estudantes exercem nas paróquias
e em outros campos. Ambos fazem parte da formação.
Interessa-nos a dimensão pastoral que se tornou realmente critério hermenêutico na elaboração dos documentos conciliares em toda a
amplitude. Ela acentua dois aspectos fundamentais a serem levados em
conta: interpretar os ensinamentos sob a ótica do mistério de Jesus Cristo
e da História da salvação e responder às necessidades e formas de pensar
do momento atual, observava já naquela época J. M. Setién15.
O Papa não via contradição entre a natureza do magistério e o
caráter pastoral proposto como critério hermenêutico, porque aquele se
entende prevalentemente na função pastoral16.
Em resumo, o conflito de interpretação na gestação dos textos
conciliares se deu entre uma maioria progressista que se ia constituindo
e uma maioria conservadora que ia diminuindo pelo impacto do discurso
de abertura de João XXII. Os quatro pontos centrais se resumem em
produzir textos na perspectiva ecumênica, pastoral, em diálogo com o
mundo moderno e portanto em processo de aggiornamento, na expressão
preferida de João XXIII17.
36
14
�������������������������������������������������������������������������������
SCHRÖFFER, J.: Erläuterung zu dem III. Kapitel
����������������������������������������
“De seminariorum maiorum ordinatione”, in Seminarium 6 (1966), p. 343s. in LIBANIO, J. B., Estudos teológicos. Análise
crítica, renovação, perspectivas. São Paulo: Loyola, 1969, p. 292ss.
15
SETIÉN, J. M.: Concilio Vaticano II: Formación de los candidatos al sacerdocio, in
Surge 24 (1966), p. 168.
16
O Programático Discurso de Abertura..., p. 310.
17
BARREIRO, A.: A figura carismática de João XXIII e seu programa conciliar de aggiornamento, in Síntese Nova Fase 1 (1974) n. 2, p. 21-40: cita-se bibliografia.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
J. B. Libanio
3 Conflito hermenêutico na leitura dos documentos
Eis-nos diante do conjunto dos textos do Concílio. A primeira
tarefa na leitura implica encontrar chaves de interpretação. Nos limites
desse artigo, escolhi três documentos que me parecem fundamentais e
centrais para entender os outros: Dei Verbum, Lumen gentium e Gaudium
et spes. E em cada um deles, existe conflito interpretativo.
Toda escolha supõe critérios que revelam já atitude prévia. A
objetividade não consiste em não escolher, mas em indicar as razões da
escolha para que o leitor se inteire delas e as julgue.
Ao considerar o conjunto do Concílio, duas opções mostram-se
primordiais: o primado da Palavra de Deus e a centralidade eclesial com
o duplo olhar para dentro e para fora da Igreja. A Constituição dogmática Dei Verbum consubstancializa a primeira decisão fundamental do
Concilio. A Constituição dogmática Lumen gentium concentra o olhar
para dentro da Igreja e a Constituição Pastoral Gaudium et spes mira o
mundo moderno na complexidade atual. Esses três documentos cobrem
o objetivo principal do Concílio e à sua luz se entendem os outros. Ao
perseguir a metodologia assumida, indicar-se-ão neles alguns dos conflitos hermenêuticos importantes, cujos efeitos permanecem até hoje.
Constituição dogmática Dei Verbum
Ela enfrentou o espinhoso problema do conflito entre a posição
católica tridentina e a ecumênica. Na teologia tradicional afirmava-se, no
meio católico, a existência de duas fontes independentes da Revelação:
a Escritura e a Tradição. A nova tendência ecumênica, sem negar o valor
da Tradição para a Igreja católica romana, buscava assinalar a última
origem de uma única Fonte da Revelação, a própria automanifestação
de Deus transmitida pela Escritura.
Esse conflito apareceu já na primeira sessão. O esquema preparatório sobre a Revelação trazia o título: “As duas fontes da Revelação”.
Afirmava logo de início a posição tradicional. Ao ser proposto na aula
conciliar para exame prévio e decisão sobre a viabilidade da discussão
sobre ele, ficou celebre a intervenção do bispo de Bruges, Mons. De
Smet, membro do Secretariado para a União dos Cristãos. Em nome do
Secretariado, pediu a rejeição sem mais do Esquema. “Segundo nosso
parecer, o esquema falha notavelmente em seu caráter ecumênico. Ele
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
37
A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II
não representa progresso para o encontro com os não-católicos, mas
um empecilho; muito mais, é prejudicial18.” Tal afirmação contundente
indicava o conflito hermenêutico de um texto em que a Palavra de Deus
não recebia o claro primado. O argumento vinha do lado ecumênico que
exprimia a sensibilidade em face da posição protestante, que se inscreve
na longa tradição luterana do dito sola Scriptura. O bispo belga não se
acanha em dizer que “o nosso ensinamento é omisso ou pouco esclarecido, como, por exemplo, a doutrina da palavra de Deus”19.
O desenrolar dos fatos marcou vitória parcial da tendência hermenêutica ecumênica. Embora a votação majoritária sobre o Documento
preparatório não tenha alcançado os 2/3 necessários para a rejeição, João
XXIII achou por bem retirá-lo e entregá-lo a nova comissão constituída
por ele com a presença de membros da perspectiva ecumênica, que não
havia na anterior. A Dei Verbum despertou muitas discussões, de tal maneira que só recebeu a votação final na última sessão conciliar. Mostrou
a hegemonia da perspectiva ecumênica do Primado da Palavra de Deus,
em texto bem trabalhado e sutil.
Vários pontos assinalaram a mudança da concepção da Revelação
em relação à posição tradicional. Em vez de entendê-la como comunicação de verdades a serem cridas, a Dei Verbum a compreende como ação
de Deus na história por meio de atos e palavras (gestis verbisque). Ele
revela a si mesmo e “o mistério de sua vontade pelo qual os homens, por
intermédio do Cristo, Verbo feito carne, e no Espírito Santo, têm acesso
ao Pai e se tornam participantes da natureza divina”20.
Acentua-se-lhe o papel trinitário, dialogal, histórico, sacramental e da
iniciativa primeira de Deus, que oferece ao ser humano participar da sua vida
íntima, trinitária. E tal diálogo chega ao auge pela Encarnação do Verbo21.
Rompe com a ideia da concepção rude das duas fontes da Revelação para interpretação cuidadosa, ao afirmar a unidade da fonte divina.
“A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura estão portanto estreitamente
unidas e comunicantes. Pois, promanando ambas da mesma fonte divina,
38
18
KLOPPENBURG, B.: Concílio Vaticano II. Vol. 2: Primeira sessão (set.-Dez. 1962),
Petrópolis, Vozes, 1963, p. 181.
19
KLOPPENBURG, B.: Concílio Vaticano II. Vol. 2: Primeira sessão (set.-Dez. 1962),
Petrópolis, Vozes, 1963, p. 179ss.
20
Concílio Vaticano II: Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina, n. 2.
21
Ver também: LIBANIO, J. B.: Teologia da revelação a partir da modernidade. São
Paulo: Loyola, 2012, 6ª ed.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
J. B. Libanio
formam de certo modo um só todo e tendem para o mesmo fim”22. Mais
adiante acrescenta: “A sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem
um só sagrado depósito da palavra de Deus”23.
A unidade radical não anula a diferença e importância de suas
funções diferentes, incluindo entre elas também o magistério. “Fica,
portanto, claro que segundo o sapientíssimo plano divino a Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja, estão de tal maneira
entrelaçados e unidos, que um não tem consistência sem os outros, e
que juntos, cada qual a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo,
contribuem eficazmente para a salvação das almas”24.
Na perspectiva do conflito, o texto mostra, sem dúvida, preferência
pela leitura ecumênica da unidade da fonte última da Revelação.25 No
entanto, afirma a importância das duas, quase como duas fontes de revelação: “A Sagrada Escritura é a Palavra de Deus enquanto é redigida sob
a moção do Espírito Santo; a Sagrada Tradição, por sua vez, transmite
integralmente aos sucessores dos Apóstolos a palavra de Deus confiada
pelo Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos para que, sob a
luz do Espírito de verdade, eles por sua pregação fielmente a conservem,
exponham e a difundam; resulta, assim, que não é através da Sagrada
Escritura apenas que a Igreja deriva sua certeza a respeito de tudo que
foi revelado. Por isso, ambas [Escritura e Tradição] devem ser aceitas e
veneradas com igual sentimento de piedade e reverência”26.
A Dei Verbum mostra claramente a tensão hermenêutica que atravessa os textos conciliares. De um lado, a posição ecumênica e moderna
de encontrar a unidade na fonte da Revelação e de outro o ensinamento
pós-tridentino da autonomia da Tradição. O texto revela esforço de
evitar posições extremistas de “única fonte da Escritura”, segundo certa
doutrina luterana da “sola Scriptura”, e de duas fontes delimitáveis” na
interpretação tridentina corrente.
A respeito do Magistério, a Dei Verbum restringe a prática comum
em meios eclesiásticos de contentar-se com os seus ensinamentos, espe22
Dei Verbum, n. 9.
23
Dei Verbum, n. 10.
24
Dei Verbum, n. 10.
25
Dei Verbum, n. 9.
26
Dei Verbum, n. 9.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
39
A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II
cialmente pontifícios, em detrimento do recurso à fonte da Escritura27.
Pelo contrário, afirma que “tal magistério evidentemente não está acima
da palavra de Deus, mas a seu serviço, não ensinando senão o que foi
transmitido, no sentido de que, por mandato divino e com a assistência
do Espírito Santo, piamente ausculta aquela palavra, santamente a guarda
e fielmente a expõe. E deste depósito único da fé tira [o Magistério] o
que propõe para ser crido como divinamente revelado”28.
Constituição dogmática Lumen gentium
Nessa constituição, travam-se os conflitos hermenêuticos mais
importantes que repercutem até hoje na prática da Igreja. Por razões de
brevidade, apontamos três: entre Povo de Deus e estrutura hierárquica,
entre colegialidade e monocentrismo eclesiástico e entre diaconia do
magistério e uso do poder eclesiástico. Embora, às vezes, na linguagem
apareça harmonia, os conflitos se dão no campo da práxis.
O esquema preparatório previa, depois da introdução, a sucessão
de dois capítulos. Um primeiro versava sobre a hierarquia e o outro sobre
os leigos. O esquema revelava a eclesiologia tradicional de que tocava à
hierarquia ir construindo a Igreja ao longo do tempo e do espaço. Usavase até mesmo a expressão: Plantatio ecclesiae29, com que se pensava
cumprir o mandato do Senhor: “Ide, pois, fazer discípulos entre todas
as nações, e batizai-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Ensinai-lhes a observar tudo o que vos tenho ordenado. Eis que estou
convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,19-20).
40
27
Conta-se que certo eminente eclesiástico, ao ser perguntado porque ele citava mais
as palavras do Papa que da Escritura, teria respondido: “Na dúvida, posso recorrer à
fonte viva do Papa e saber o sentido da afirmação. A respeito da Escritura, perco-me
no labirinto dos exegetas”. Por segurança, certo tipo de fieis preferem os ensinamentos
do magistério, unívocos e explícitos no contexto eclesial presente e conhecidos com
jogo mínimo de interpretação, ao esforço interpretativo maior da Escritura.
28
Dei Verbum, n. 10.
29
Trata-se de um conceito curial canônico que significa a missão de implantar a Igreja
visível naquelas regiões onde ainda não se estabelecera, especialmente por meio da
formação do clero. Ela remonta de uma expressão do Ofício litúrgico dos Apóstolos:
plantaverunt Ecclesiam sanguine suo – os apóstolos plantaram a Igreja com o seu sangue. Primeiramente a usaram no séc. XV missionários carmelitas e depois a assumiram
jesuítas que a tornaram ideia importante da teologia da missão e foi confirmada depois
por vários documentos eclesiásticos até o Concílio Vaticano II. Ver: SUBANAR , G. B.:
The local Church in the light of Magisterium teaching on mission. A case in Point: The
Archdiocese of Semarang – Indonesia (1940-1981). Roma, Editrice Pontificia Università
Gregoriana, 2001, Thesi Gregoriana. Serie Missiologia, n. 2, p. 48. 54.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
J. B. Libanio
Essa posição eclesiológica sentia-se respaldada por afirmações
de Gregório XVI (1831-1846) de que “ninguém pode desconhecer que
a Igreja é uma sociedade desigual, na qual Deus destinou a uns como
governantes, a outros como servidores. Estes são os leigos, aqueles são os
clérigos”. Pesava o ensinamento de Pio X na mesma direção: “Somente
o colégio dos pastores tem o direito e a autoridade de dirigir e governar.
A massa não tem direito algum a não ser o de deixar-se governar qual
rebanho obediente que segue seu Pastor”30.
O conflito hermenêutico se deu com outra visão eclesiológica presente na Lumen gentium. Em vez de pensar a constituição da Igreja a partir
da hierarquia, o Concílio introduziu o capítulo “O Povo de Deus”. Nele se
explicitou que anterior a qualquer distinção entre hierarquia e clero, existe
a unidade e igualdade fundamental por força do batismo. Mais: o Concílio
afirmou que o ministério hierárquico existe para servir os fieis, o Povo de
Deus. Está aí o conflito hermenêutico, não tanto nos conceitos, quanto na
prática pastoral. Uma leitura insiste na precedência e no poder clerical, outra
no protagonismo dos leigos em nome da condição de Povo de Deus.
Em contexto eclesiástico bastante difícil e conflituoso, o Documento de Santo Domingo reforça o protagonismo do leigo. “Que todos os
leigos sejam protagonistas da nova evangelização, da promoção humana
e da cultura cristã. É necessário a constante promoção do laicato, livre de
todo clericalismo e sem redução ao intra-eclesial”31. Parece que a linha
hegemônica do Vaticano II da precedência do Povo de Deus em relação
à hierarquia se tenha imposto. No entanto, no concreto da vida pastoral
30
Cf. M. Schmaus, Der Glaube der Kirche, II, Munique, 1970: 102, cit. por: BOFF, L.,
Igreja: carisma e poder. Ensaios de Eclesiologia Militante, Petrópolis, Vozes, 1981,
p. 218. Ainda mais explicitamente, Pio X invoca a originalidade da Igreja, fundada
por Jesus Cristo, para tratar da relação entre leigos e clero. Ela é o corpo místico de
Cristo, regido pelos Pastores e Doutores, – sociedade de homens, consequentemente, no seio da qual alguns presidem aos outros com pleno e perfeito poder de reger,
ensinar e julgar. É esta sociedade, portanto, por sua força e natureza (vi et natura),
desigual; compreende duas categorias (ordinem) de pessoas, os pastores e a grei,
isto é, aqueles que estão postos nos diversos graus da hierarquia e a multidão dos
fiéis. Estas categorias são de tal maneira entre si distintas que unicamente na hierarquia residem o direito e a autoridade de mover e dirigir os seus membros para a
finalidade proposta da sociedade; é dever da multidão, deixar-se (parte) ser governada
e seguir obedientemente a condução dos dirigentes” (ACTES DE S. S. PIE X, Paris,
Ed. des Questions actuelles, s/d, II, pp. 27.132-134 em tradução livre do latim feita
por mim).
31
Conferência Episcopal Latino-Americana. Santo Domingo: conclusões. São Paulo:
Loyola, 1993, 4. ed. n. 97, p. 105.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
41
A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II
tem-se experimentado o contrário: crescente neoconservadorismo marcado pelo clericalismo32.
Tal jogo interpretativo teve ressonância no Decreto Ad gentes.
Retoma a expressão da implantação da Igreja. “A tarefa de fundação
[plantationis] da Igreja numa sociedade atinge o alvo certo, quando a
comunidade dos fiéis, já enraizada na vida social e até certo ponto conformada com a cultura local, goza de alguma estabilidade e segurança.
Dotada de um contingente próprio, ainda que insuficiente, de sacerdotes
locais, de religiosos e de leigos, possui os meios e instituições necessárias para viver e expandir a vida do povo de Deus, sob a guia do próprio
Bispo”33. Esse texto pareceria reforçar a posição tradicional de a Igreja
ser criada pela hierarquia. No entanto, em outra passagem insiste em
que “como Cristo, por Sua encarnação se ligou às condições sociais e
culturais dos homens com quem conviveu, assim deve a Igreja inserir-se
em todas essas sociedades, para que a todas possa oferecer o mistério da
salvação e a vida trazida por Deus”34.
Constituição pastoral Gaudium et spes
O fato de escrever uma constituição pastoral significa tomada de
posição em torno do conflito entre a visão dogmática e a perspectiva
pastoral. Na posição tradicional, reinava nítido corte entre dogmática e
pastoral. A dogmática alimentava a inteligência da fé. A pastoral exercia
a prática da caridade. A função do magistério ordinário e extraordinário
se orientava precipuamente para alimentar a fé. Depois os pregadores,
orientadores espirituais e outros “aplicariam” tais ensinamentos no agir
da Igreja que constitui o cerne da pastoral. A fé ocupava a instância
superior de iluminação enquanto a pastoral concretizava o que lá se
visualizava, ensinava.
42
32
GONZÁLEZ FAUS, J. I.: El meollo de la involución eclesial, in Razón y Fe 220 (1989),
n. 1089/90, p. 67-84; O neoconservadorismo. Um fenômeno social e religioso, in Concilium n. 161 - 1981/1; CARTAXO ROLIM, F.: Neoconservadorismo eclesiástico e uma
estratégia política, in REB 49 (1989), p. 259-281; COMBLIN, J.: O ressurgimento do
tradicionalismo na teologia latino-americana, in REB 50 (1990), p. 44-73; P. BLANQUART, P.: Le pape en voyage: la géopolitique de Jean-Paul II, in P. LADRIÈRE,
P. - R. LUNEAU, R., dir.: Le retour des certitudes. Événéments et orthodoxie depuis
Vatican II, Paris, Le Centurion, 1987, p. 161-178.
33
Concílio Vaticano II: Decreto Ad gentes sobre a Atividade Missionária da Igreja, n. 19.
34
Ad gentes, n. 10.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
J. B. Libanio
O Concílio Vaticano II, ao elaborar várias Constituições dogmáticas e uma pastoral, aproximou-as no mesmo exercício do magistério.
Mais: nas próprias constituições dogmáticas se valorizou a perspectiva
pastoral, como vimos acima entre os critérios da gestação dos textos conciliares. O conflito entre as duas perspectivas se travou entre a posição da
distância entre elas até a oposição com desdenho do aspecto pastoral e a
articulação e o enriquecimento mútuo entre ambas. O Concílio inclinouse desde o início para a segunda perspectiva.
Haja vista a reação de Mgr. Lefebvre e seu grupo, que rejeitaram
os documentos do Vaticano II por ser um Concílio pastoral. Argumentaram que preferiam ficar com o Concílio de Trento e Vaticano I,
dogmáticos, a abraçar o Vaticano II pastoral. Segundo eles, o dogma
goza de superioridade em relação à pastoral, já que esta não passa de
aplicação do dogma.
A visão eclesiológica do Vaticano II afasta-se de tal posição, ao
fazer pender o braço da balança para maior articulação e enriquecimento
mútuo entre pastoral e dogma.
A Gaudium et spes ousou ser o primeiro documento na história
da Igreja em que um Concílio toma posição em face das realidades terrestres, de maneira positiva, sob a perspectiva da fé. Vê nelas a presença
criadora e salvadora de Deus e não erros e heresias.
O conflito interpretativo dava-se entre a visão conservadora, que
dividia a realidade humana em natural e sobrenatural, e a leitura integradora e integrada da Transcendência e imanência. Na primeira perspectiva,
entram os movimentos espiritualistas, enquanto a teologia da libertação
se insere nas esteiras da segunda. Tão fortemente o dualismo impregnara
a mente tradicional que até hoje persiste tal tensão.
Já as primeiras frases da Gaudium et spes revelam a opção central da
identidade entre as alegrias, esperanças, tristezas e angústias das pessoas, sobretudo dos pobres, com as dos discípulos de Cristo. A compreensão dualista
não conseguiria encontrar tal identidade. O “sobrenatural” faria a diferença.
As pessoas comuns não viveriam a dimensão sobrenatural, portanto não
participariam do lado luminoso da graça. O cristão, pela fé, sim.
Por sua vez, o outro polo faz passar a linha divisória não pela fé
explícita, mas pelo amor, justiça, valores humanos. Opõe-se ao mundo da
graça, não o fato de viver sem a cobertura visível da Igreja ou da profissão
declarada de fé, mas de rejeitar a dimensão profundamente humana do
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
43
A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II
amor e da justiça, tocada naturalmente pelo ato criativo e santificador de
Deus. Ele não exclui ninguém do chamado existencial ao amor. Só pela
rejeição explícita, pelo ódio, pela injustiça, pelo mal conscientemente
praticado, a pessoa afasta-se de Deus. Verdadeira revolução no tratado
da criação e da graça. Ela subjaz à linha principal da Gaudium et spes.
4 Conflito hermenêutico na recepção dos textos
Outros conflitos mereceriam atenção como os da linguagem, do
jogo de conceitos. Os limites de um artigo impedem de adentrar-nos
nessas questões.
No momento atual, vivemos o conflito de recepções. Esse termo
teológico traduz o complexo de atividades acadêmicas e pastorais que
revelam o quanto e em que se assimilou, se interpretou, se vivenciou determinado texto. A recepção do Concílio Vaticano II aparece na Igreja católica
por meio das transformações na vida interna e na relação com as outras
denominações cristãs, religiosas, com os não crentes e com as realidades
terrestres. Os dois eixos decisivos para perceber a recepção se cruzam na
parte conceitual e na prática pastoral em mútua e crítica relação.
A teologia do Concílio ilumina a prática eclesial e esta torna viva
e concreta a dimensão teórico-teológica. Para ter-se ideia da recepção
do Concílio, basta recorrer à influência exercida, à quantidade de livros,
artigos, conferências, cursos que giram em torno dele. As Igrejas particulares, em decisões importantes, apelam para a legitimação do Concílio.
Tudo isso traduz a sua recepção.
A amplitude do conspecto da recepção obriga-nos a reduzi-lo a
pontos fulcrais sob dois aspectos básicos: geográfico e conceitual. No
primeiro, distinguiremos dois blocos interpretativos que nos afetam.
Os aspectos conceituais mostram-nos por onde andam as intuições do
Concílio na atual vida eclesial.
Recepção geográfica
Impossível cobrir os continentes e países e lá analisar a recepção.
De maneira bem simplificada, na perspectiva do conflito, selecionamos
dois tipos de centros geográficos: a Europa pela via da teologia pósconciliar e a América Latina por meio de Medellín. Portanto, os dois
pontos geográficos escolhidos têm algo de simbólico. Um simboliza a
44
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
J. B. Libanio
teologia moderna do Vaticano II, gestada por renomados teólogos, como
K. Rahner, Y. Congar, E. Schillebeeckx, H. Küng, por igrejas particulares e bispos que se ligaram a tal perspectiva. O outro grupo reflete a
tradição crítica e libertadora da América Latina, para a qual Medellín
avulta como símbolo maior.
A tensão hermenêutica entre esses dois centros se traduz no tipo
de pergunta a que pretendem principalmente responder35. A recepção
do Vaticano II, nos países centrais da Europa, orientou-se na linha de
enfrentar as questões levantadas pela modernidade rica e central: secularização, autonomia e liberdade do sujeito, impacto das ciências modernas,
consciência histórica, práxis transformadora da realidade. No fundo,
portanto, as grandes perguntas brotam da ciência, da subjetividade, da
história e da práxis, típicas do sujeito moderno.
A recepção de Medellín partiu de outra pergunta básica que livros
de G. Gutiérrez bem simbolizam: “Teologia da libertação36” e “Força
histórica dos pobres37”, “Onde dormirão os pobres38”? Por conseguinte,
duas palavras: pobres e libertação.
Sob outra formulação, as questões soam: que serviço a Igreja da
América Latina pode prestar ao povo pobre em continente de opressão
e libertação? Que significa comprometer-se, no contexto de América
Latina? Sob tal ótica, lê-se, interpreta-se, vivencia-se o Concílio Vaticano II.
Na Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Medellin (1968), tal opção fundamental se exprimiu numa série de textos
que trabalharam os temas: justiça, paz, família e demografia, educação,
juventude, pastoral popular e de elites, catequese e liturgia. A respeito da
Igreja visível e de suas estruturas, a Conferência debruçou-se sobre os
movimentos de leigos, sacerdotes, formação do clero, pobreza da Igreja,
pastoral de conjunto e meios de comunicação39.
35
J. Sobrino resumiu claramente os dois universos de perguntas: SOBRINO, J. El
conocimiento teológico en la Teología europea y latinoamericana in Encuentro latinoamericano: Liberación y Cautiverio: debates en torno al método de la teología en
América Latina México, [s.n.], 1976, p. 177-207.
36
GUTIÉRREZ, G.: Teologia da libertação: perspectivas. São Paulo: Loyola, 2000.
37
GUTIÉRREZ, G.: A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981.
38
GUTIÉRREZ, G.: Onde dormirão os pobres? São Paulo: Paulus, 1998.
39
CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. A Igreja na atual transformação da
América Latina à luz do Concílio: conclusões de Medellin. Petrópolis: Vozes, 1977. 6. ed.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
45
A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II
Ao olharem-se simplesmente os títulos dos temas abordados, não
se tem ideia clara das reais opções e da diferenciada interpretação do
Concílio feita por Medellín. Em resumo, as decisões centrais de Medellín,
na perspectiva da recepção do Concílio, soam as seguintes: opção pelos
pobres, por sua libertação histórica com centralidade na justiça social,
pelas Cebs com valorização da religiosidade popular, pela vida consagrada inserida, pela educação conscientizadora e libertadora nas pegadas
de Paulo Freire, por Igreja pobre e comprometida com os pobres.
Em breves palavras: a vertente centro-europeia enfrentou as
perguntas da razão moderna no contexto da secularização iluminista e
a Igreja da América Latina a pergunta da práxis cristã em situação de
opressão e libertação.
Recepção conceitual e pastoral no momento atual
O fato de assumir-se como inevitável a necessidade de interpretar
o Concílio diminuiu ou até mesmo desqualificou teoricamente a posição dogmatista. Ela se restringe hoje a pequenos grupos com tendência
fanática e rigorista.
O conflito principal se dá entre a hermenêutica da continuidade e
a hermenêutica da ruptura. Elas exprimem compreensões diferentes na
necessidade inexorável de ter de interpretar.
A hermenêutica da continuidade lê o texto conciliar em busca dos
elementos em que ele significou a menor ruptura possível e até mesmo
a continuidade com as tradições anteriores. E assim, em nome do próprio Concílio, se reafirmam posições até então parecidas superadas e
postergadas. A liturgia apresenta caso sintomático. Julgava-se que com
o Concílio a liturgia tridentina tivesse cedido lugar para as reformas
litúrgicas pós-conciliares.
No momento, assistimos, em grau maior de continuidade, à volta à
celebração em latim da missa tridentina na versão reformulada por João
XXIII. Paulo VI, nas esteiras do Concílio Vaticano II, ab-rogara-a, ao
promulgar a nova versão litúrgica. Quis dar-lhe o poder de lei.
Na “hermenêutica da continuidade” inserem-se vários aspectos disciplinares que nos anos pós-conciliares tinham praticamente desaparecido
e que retornam: hábitos, trajes clericais, ritos de genuflexões, formas de
devoção, rubricismo acentuado, reforço da exterioridade e visibilidade dis-
46
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
J. B. Libanio
tintiva de clero e leigo, comportamentos autoritativos, crescimento do clericalismo, movimentos de leigos com posições teológicas tradicionais.
A “hermenêutica da ruptura” continua o processo de interpretação
dogmática, pastoral e disciplinar na linha de responder às demandas do momento atual40. Evidentemente, nem todos os esforços têm a mesma capacidade de assumir o núcleo fundamental da Tradição (com T maiúsculo), ao lado
do distanciar-se de tradições consideradas caducas (com t minúsculo).
A modo de verbete, segue-se série de conflitos hermenêuticos
que vigem em face da recepção do Concílio. Cada um mereceria maior
reflexão. Fica para o leitor avançá-la.
O Concílio significa ponto de chegada da caminhada da Igreja em
confronto com a modernidade. Cabe tempo de pausa para assimilá-lo.
Em tensão com tal posição, entende-se que ele indica começo do começo.
Serviu qual farol que ilumina por onde o barco pode caminhar, mas não lhe
traça a rota exata e rigorosa. Inicia tempo de abertura, de criatividade, de
contínuos avanços. O primeiro braço do conflito não só se firma, mas também se liga à hermenêutica da continuidade e assim retém o avanço e sugere
até recuos em vista do julgado excesso de liberdade pós-conciliar.
Em outra tensão, reafirmam-se a coerência, a estabilidade, a perpetuidade, a garantia de continuidade da Igreja por obra da hierarquia
assistida pelo Espírito Santo. O polo oposto acentua a Ecclesia semper
reformanda por ser santa e pecadora. O primeiro braço da balança esquece
a dimensão de pecado e frisa a santidade. Estoutro chama a atenção para
o lado frágil, pecador, limitado da Igreja. E vê o Concílio nesse balancear
para um lado ou para outro.
Duas expressões soam antitéticas: volta à origem e pensar o futuro. O conflito dá-se no sentido de antes acentuar a tradição a imaginar a
novidade. A origem indica-nos de onde se veio e que se fez nos inícios.
Para a fé cristã, ela tem caráter revelador do projeto de Deus. Daí a sua
importância. Em face dela, o pensamento se atém a mantê-la através do
tempo com o máximo de fidelidade. Se possível fosse, até literal. Assim,
40
À guisa de exemplo, recebeu ampla circulação o questionador livro de: LENAERS,
R.: Outro cristianismo é possível: a fé em linguagem moderna. São Paulo: Paulus,
2010. 2. ed. Tem trabalhado sistematicamente nessa linha de traduzir a fé cristã para
a cultura moderna e pós-moderna o teólogo galego André Torres Queiruga. Ver: Fim
do cristianismo pré-moderno: desafios para um novo horizonte. São Paulo: Paulus,
2003. O mesmo vale para Hans Küng. Para o Brasil, estão as vigorosas e amplas
publicações de L. Boff.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
47
A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II
a interpretação do Concílio se faria à luz dessa origem no sentido de
confirmá-la nos tempos de hoje,
A outra vertente não despreza a origem, nem pode fazê-lo. Mas
submete-a à interpretação que os tempos atuais provocam com a liberdade
dos filhos e filhas de Deus, confiando no Espírito. Interessa seguir para
frente em direção ao futuro a ser construído.
Semelhante conflito se formula com os termos filosóficos de ontologia e história. Afirmar a exclusividade ou preponderância da ontologia
sobre a história levaria a entender o Concílio como algo definitivo e
fechado. Por outro lado, ao atribuir importância à história, ele é pensado
em contínuo processo interpretativo.
O embate entre os extremos desse conflito mereceu reflexão serena de H. Vaz41. Ele não se atém a nenhuma ontologia que desconheça a
história, nem mergulha no historicismo dissolvente de todo Absoluto. A
ontologia não garante nenhuma imutabilidade, nem definitividade, nem
universalidade que negue as mudanças. A cultura atual corre o risco de
desconhecer a ontologia, ao proclamar a morte da metafísica. Também
sofre da doença do fim da própria história42.
A pós-modernidade, com a morte da metafísica e da história,
anula qualquer hermenêutica, ao fixar-se em presentismo de natureza
pouco racional. Por isso, esse embate entre ontologia e história carece
de agudeza intelectual para encontrar o equilíbrio.
Na relação com o mundo, o choque hermenêutico se trava na atitude de fuga mundi de concepção negativa em relação às coisas terrestres
e a oposta posição de diálogo e abertura em face do mundo, visto na
bondade radical de criatura de Deus e de destinado à transformação pela
glorificação. O texto da Gaudium et spes manifesta posição de esperança
otimista em relação à criação de Deus e à nossa atividade humana de
propagarmos na terra, no Espírito do Senhor e por Sua ordem, valores
da dignidade humana, da comunidade fraterna e da liberdade. Ele acrescenta: “Todos estes bons frutos da natureza e do nosso trabalho nós os
encontraremos novamente, quando Cristo entregar ao Pai ‘o reino eterno
48
41
VAZ, H. CL. de LIMA: Escritos de filosofia VI: ontologia e história. São Paulo, Loyola, 2001.
42
FUKUYAMA, F.: O fim da história e o último Homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
J. B. Libanio
e universal, reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça,
reino de justiça, de amor e de paz’”43.
Caberia ainda apontar vários outros conflitos importantes, mas
que escapam do propósito deste artigo. Segue-se simples enumeração
para deixar ao leitor o desejo de explicitá-los.
No Concílio se lê a afirmação da Igreja universal de que a Igreja
de Roma se faz principal responsável e concreta encarnação, de um
lado, e a valorização da Igreja particular na autêntica autonomia ou em
comunhão com as de sua região.
Persiste a tensão entre a valorização do clero, máxime do episcopado, e a afirmação da presença e relevância do leigo a partir da compreensão da Igreja como Povo de Deus.
Sofre-se ainda o conflito entre a afirmação da romanidade e o espírito ecumênico, o diálogo interreligioso e a abertura aos não crentes.
Atravessa a leitura do Concílio a afirmação do eclesiocentrismo,
mas também a perspectiva cristocêntrica com acenos para o teocentrismo,
hoje afirmado com insistência por obra do diálogo interreligioso.
Acentua-se por obra da influência da Conferência de Aparecida
a clareza na cidadania católica, em tensão com a valorização do cristão
anônimo em mundo secularizado e humanista.
A defesa da firmeza, da universalidade e do caráter absoluto da verdade até as raias do fundamentalismo esbarra com a afirmação destemida da
liberdade religiosa, do pluralismo religioso no projeto salvador de Deus.
Ao lado da defesa de Igreja minoritária, fiel à totalidade do seu ensinamento dogmático, moral e disciplinar levanta-se a hermenêutica da prescindência de tais injunções em nome da liberdade de consciência do cristão,
que vem sendo chamada de “cisma branco”44, “cisma silencioso”45.
43
Concílio Vaticano II: Constituição Pastoral Gaudium et spes sobre a Igreja no
Mundo de Hoje, n. 39.
44
JAMES, C.: Análise de conjuntura religioso-eclesial. Por onde andam as forças, in
Perspectiva teológica 28 (1996), p. 157-182.
45
CAPPELLI, P.: O Cisma silencioso da casta clerical à profecia da fé. São Paulo; Paulus,
2010.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
49
A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II
Conclusão
Os conflitos hermenêuticos do Concílio Vaticano II acompanhamlhe o desenrolar desde a entrada na aula conciliar dos Padres conciliares
passando pela confecção dos documentos, de sua interpretação até a
recepção com as leituras diversificadas de hoje. Texto tão rico e tecido
no meio a duros embates não consegue escapar dos jogos interpretativos,
também eles contrastantes.
Em face dos polos opostos, toca-nos perguntar que interpretação corresponde melhor à fidelidade ao Concílio e às interpelações do
momento atual. Nem toda acentuação de um polo se iguala. Cabe-nos
encontrar aquele polo que suporta melhor validação respeito ao evento
e aos documentos do Concílio. Aí a hermenêutica cumpre “sua mais alta
tarefa, que seria uma verdadeira arbitragem entre as pretensões totalitárias
de cada uma das interpretações”, justificando “cada uma nos limites de
sua própria circunscrição teórica”46.
Sempre é possível argumentar a favor ou contra uma interpretação,
confrontá-las e buscar um acordo “mesmo se tal acordo ficar para além
de nosso alcance imediato”47.
Paulo ensinou-nos a liberdade do Espírito. Nenhuma letra consegue freiá-la. Em face dela, a letra mostra-se morta. É para a liberdade
que Cristo nos libertou (Gl 5, 1).
Endereço do Autor:
Av. Cristiano Guimarães, 2127
31720-300 Belo Horizonte, MG
50
46
RICOEUR, P. : O conflito das interpretações : ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro:
Imago, 1978, cit. por: 121, com pequena correção da citação de Ricoeur segundo
a edição citada. Tanto essa citação como a de baixo encontram-se em: BETTI, M.:
A Janela De Vidro: Esporte, Televisão e Educação Física. Universidade Estadual de
Campinas. Faculdade de Educação. Campinas1997, p. 121, disponível in <http://
pt.scribd.com/doc/44704099/16/o-conflito-das-interpretacoes>.
47
RICOEUR, P.: Teoria da interpretação; o discurso e o excesso de significação. Lisboa,
Edições 70, 1987, p. 91
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Resumo: O presente estudo pretende contribuir para a reflexão sobre a eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II em perspectiva de história das ideias.
Situa-a com relação ao movimento de renovação da eclesiologia, que se desenvolveu ao longo de cerca de cento e cinquenta anos, para compreender as raízes
das noções que utiliza e as propostas de renovação da vida eclesial de que é
portadora. Privilegia as noções de sociedade, corpo místico de Cristo, povo de
Deus e comunhão, por serem as que aglutinam maior número de contribuições
em termos de compreensão da realidade eclesial e em termos de inspiração
para elementos estruturais concretos e para as relações entre eles.
Termos chave: Igreja, eclesiologia, concílio Vaticano II, noções eclesiológicas.
Abstract: The present paper aims to contribute for the reflection on the ecclesiology of Ecumenical Council Vatican II from the point of view of the history
of the ideas. Setting it in relation with the ecclesiological renewal movement,
developed along one and half century, to understand the roots of the notions
used and of the propositions for renewing ecclesial life. Emphasizes the notions
of society, mystical body of Christ, people of God and communion, because those
best articulate elements for the understanding of the ecclesial reality, inspiring
structural elements and relating them into one another.
Key words: Church, ecclesiology, Council Vatican II, ecclesiological notions.
Eclesiologia do Concílio Ecumênico
Vaticano II: antecedentes históricos
Antonio Luiz Catelan Ferreira*
*
O autor, Antonio Luiz Catelan Ferreira, é presbítero da Diocese de Umuarama – PR,
doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Professor na
Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Assessor da Comissão Episcopal Pastoral
para a Doutrina da Fé na CNBB.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012, p. 51-79.
Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos
Introdução
A eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II se compreende
dentro de um movimento de renovação, de cujas conquistas se beneficia, do qual extrai consequências concretas para a vida da Igreja e cujo
curso procura orientar. A interpretação do Concílio, ou, como está mais
em voga dizer, a hermenêutica do Concílio, precisa levar em conta o
movimento histórico em que ele se insere. Sua historicização é decisiva
para sua compreensão e aplicação. Por historicização se entenda seu
enraizamento histórico concreto.
Nosso objetivo é estudar alguns elementos desse processo,
especialmente as noções eclesiológicas mais destacadas, em vista de
compreender a história, os fundamentos e algumas das principais consequências da eclesiologia do Concílio Vaticano II. Trata-se de um ensaio
de situar o Concílio no movimento mais amplo da história das ideias
e doutrinas teológicas. Para isto, o presente estudo se divide em cinco
partes. A primeira trata da noção de sociedade, que, na formulação mais
radical se caracteriza com os adjetivos “perfeita” e “desigual”. Isto se
justifica por ser esse o contraponto dialético de referência para a renovação eclesiológica, dentro da qual se situa a eclesiologia do Vaticano
II. A segunda parte, trata dos dois momentos de especial impulso da
renovação eclesiológica: o Romantismo e o período entre Guerras. A
terceira parte procura identificar os resultados principais da renovação,
sobretudo a contribuição dos estudos bíblicos e patrísticos. A quarta
parte, versa sobre as principais noções de Igreja que estão em questão
e a renovada compreensão da Igreja que está relacionada com elas. A
última parte recorda mais diretamente alguns dos principais elementos
da eclesiologia do Vaticano II, destacando algumas das consequências
mais concretas para a compreensão da Igreja e para sua renovação, como
propostas pelo Concílio1.
1
52
As obras de caráter geral mais utilizadas neste estudo são: F.M. Braun, Aspects
nouveaux du problème de l’Église, Fribourg – Lyon 1942; E.D.C. Lialine, «Une étappe en ecclésiologie», Irénikon 19 (1946) p. 129-152; 283-317; 20 (1947) p. 34-54;
R. Aubert, La théologie catholique au milieu du XXe siècle, Tournai – Paris 1954; T.
Zapelena, «De actuali statu ecclesiologiae», in Congresso Internazionale
per il IV Centenario della Pontificia Università Gregoriana, Problemi
scelti di teologia contemporanea, Roma 1954, p. 143-164; S. Jáki, Les tendences
nouvelles de l’ecclésiologie, Roma 1957; G. Thils, Orientations de la théologie,
Louvain 1958; E. Menard, L’Ecclésiologie hier et aujourd’hui, Bruges – Paris 1966;
Y. Congar, «L’Ecclésiologie de la révolution française au concile du Vatican, sous le
signe de l’affirmation de l’autorité», in M. Nédoncelle, L’Ecclésiolgie au XIXe siècle,
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Antonio Luiz Catelan Ferreira
1 A eclesiologia da sociedade perfeita
No dizer de S. Jáki, estudioso da eclesiologia da primeira metade
do século XX, “o que é mais característico nessas tendências novas, é a
intenção de exceder os limites da eclesiologia pós-tridentina”2. Por isso,
aqui, o ponto de partida é a caracterização geral da eclesiologia, a que se
contrapõe o movimento de renovação eclesiológica. Dessa eclesiologia,
especialmente da que se encontra nos manuais de entre os Concílios
Vaticanos, Y. Congar faz um juízo severo.
Os tratados apologéticos prevalecem sobre os tratados dogmáticos
e, mesmo nesses, não se trata de outra coisa que dos poderes da autoridade – em particular do magistério – e dos direitos da Igreja. Os
aspectos interiores e verdadeiramente teológicos são passados sob
silêncio ou reduzidos a uma breve menção. A Igreja não é apresentada
como a expansão do mistério de Cristo, mas como fundada por Ele. É
uma sociedade hierarquizada, piramidal […]. São ausentes algumas
dimensões: assim em uma época missionária fortemente ativa, falta o
dinamismo da missão. Em geral, a dimensão escatológica e também a
histórica é fraca […]. Aí não se ocupa dos fiéis senão para afirmar sua
situação subordinada e seu dever de obediência3.
Muito severo é também o julgamento de S. Jáki, que, tendo estudado os manuais de teologia em uso na primeira metade do século XX,
conclui que “pode ser dito, sem exagero, que os manuais De Ecclesia,
quase sem exceção, […] desenvolvem os aspectos exterior, hierárquico
e sociológico da Igreja, com algumas anotações sobre seu mistério. Em
outras palavras: ao lado de desenvolvimentos detalhados sobre a estrutura
da Igreja, a vida, à qual tal estrutura deve servir, é quase inteiramente
negligenciada”.4
Paris 1960, p. 77-114; Id., L’Église de saint Augustin à l’époque moderne, Paris 1970;
P.C. Bori, Koinonia. L’idea della comunione nell’ecclesiologia recente e nel Nuovo
Testamento, Brescia 1972; Facoltà Teologica Interregionale Milano,
L’ecclesiologia dal Vaticano I al Vaticano II, Brescia 1973; A. Antón, El Misterio de la
Iglesia, evolución historica de las ideas eclesiologicas, vol. 2, Madrid – Toledo 1987; J.
Ratzinger, Compreender a Igreja hoje, vocação para viver a comunhão, Petrópolis
1992.
2
S. Jáki, Les tendences nouvelles de l’ecclésiologie, p. 6. Também B. Sesboüé,
L’Avvenire della fede, la teologia del XX secolo, Milano 2009, 138.
3
Y. Congar, L’Église de saint Augustin à l’époque moderne, Paris 1970, p. 456457.
4
S. Jáki, Les tendences nouvelles, p. 12.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
53
Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos
Essa eclesiologia se configurou lentamente, a partir de fatores
históricos situados em um passado de muitos séculos, marcada pela
auto-afirmação conflitiva. O ponto mais remoto é situado por Y. Congar
no século XII, quando se defende a realidade institucional e social da
Igreja contra os movimentos espiritualistas anti-hierárquicos, e contra o
movimento das comunas5. A teologia experimentou concomitantemente,
na passagem do século XII ao XIII, a mudança da linguagem simbólica à dialética, de uma concepção sintética a uma concepção analítica,
que marcará também a eclesiologia medieval. Esta teologia científica
contribuiu muito para a formação de um ensino doutoral, universitário,
diverso do que predominou até o século XII, que era um ensino pastoral
e monástico, ligado à vida litúrgica e contemplativa. Em seguida, no
século XIV, vêm os conflitos entre os Papas e os Imperadores, quando
se conhece uma afirmação sem precedentes das prerrogativas independentes e superiores da Igreja com relação ao poder político6. Começa
também nesse século o longo período da afirmação dos direitos do papa
em oposição às pretensões dos Bispos e do Concílio Ecumênico7. Embora
permaneça algo da eclesiologia patrística, como a compreensão da Igreja
como congregatio fidelium, a celebração regular dos Concílios provinciais
ou regionais, novos elementos vão se afirmando, como a utilização prioritária das categorias populus christianus, societas christiana, civitas8, a
identificação entre Igreja e hierarquia, sobretudo com o Papa9, e é feita
54
5
Y. Congar, Jalons pour une théologie du Laïcat, Paris 19542, p. 59-60, 407-408; E.
Benz, Ecclesia spiritualis. Kirchenidee und Gesichtstheologie der franziscanischen
Reformation, Stuttgart 1934.
6
Cf. Y. Congar, L’Église de saint Augustin, p. 271-295.
7
Cf. G. Alberigo, Chiesa conciliare. Identità e significato del conciliarismo, Brescia
1981; Y. Congar, L’Église de saint Augustin, p. 340-368.
8
Cf. B.D. de la Soujeole, «“Societé” et “communion” chez saint Thomas d’Aquin»,
Revue Thomiste 90 (1990) p. 587-622.
9
Egídio Romano (Arcebispo de Brouges entre 1295 e 1316), afirma que «o sumo
pontífice [...] pode ser considerado a Igreja»: «Ecclesia [...] est timenda et mandata
eius sunt observanda, sive summus pontifex, qui tenet apicem ecclesiae et qui potest
dici ecclesia, est timendus et sua mandata sunt observanda, quia potestas eius est
spiritualis, celestis et divina, et est sine pondere, numero et mensura» (Aegidius
Romanus, De Ecclesiastica potestate, R. Scholz, ed., Weimar 1929, p. 209).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Antonio Luiz Catelan Ferreira
uma distinção radical entre clérigos e leigos10. Assim a Igreja passa a ser
enquadrada sociologicamente na categoria de potestas11.
Depois, já na Modernidade, no contexto da Reforma protestante,
que negou a validade da existência de uma hierarquia no cristianismo e
também a consistência teológica da visibilidade da Igreja, opõem-se uma
eclesiologia invisibilista e uma eclesiologia visibilista, que exprimem e,
ao mesmo tempo, alimentam a Reforma Protestante, e a Reforma Católica12. Tornou-se comum, a partir de então, descrever-se a Igreja como uma
sociedade. Esta compreensão, durante a modernidade, contra o jansenismo, as tendências galicanas e várias formas de episcopalismo, laicismo e
10
11
«Dois são os gêneros de cristãos. O primeiro é consagrado ao ofício divino e dedicado à contemplação e à oração e lhe convém abster-se de todo envolvimento com
as coisas materiais: são os clérigos e as pessoas devotadas a Deus, ou seja, os
conversos. Kleros, em grego, em latim sors: por isso, alguns homens são chamados
clérigos, o que significa eleitos por sorte, pois a eles Deus elegeu como seus. Estes
são reis, isto é, regem a si e a outros pelas virtudes, e assim têm o Reino em Deus.
E é justamente isso que a coroa na cabeça indica. [...] O outro é o gênero de cristãos
que são leigos. Laós é, com efeito, o povo. Estes podem ter bens temporais, mas
apenas para uso. Nada é mais miserável do que desprezar a Deus por uma moeda.
É-lhes permitido casar-se, cultivar a terra, promover a justiça, representar, levar as
ofertas ao altar, devolver os dízimos, e poderão salvar-se fazendo o bem e evitando
os vícios» (Decr. Grat. II, C. XII, q.1, c.7, in Corpus iuris canonici, E. Friedberg,
ed., Graz 1959, col. 678).
O tratado De regimine christiano, de Giacomo Capocci da Viterbo, considerado o
primeiro tratado de eclesiologia, publicado em 1301-1302, em suas duas partes, se
estrutura respectivamente a partir de duas categorias: reino (regnum) e poder (potestas) (H.X. Arquillière, Le plus ancien traité de l’Église: Jacques de Viterbe, De
regimine christiano, Paris 1926). É verdade que também nos tratados que propõem
a concepção do papado limitada pelos poderes do Concílio, a categoria de poder é
igualmente central. A. Antón refere onze deles (cf. A. Antón, El misterio de la Iglesia,
vol. 1, Madrid – Toledo 1986, p. 200-260).
12
A compreensão da Igreja de M. Lutero se exprime assim: «a primeira [realidade] que
é essencial, fundamental e verdadeiramente Igreja, vamos chamá-la de cristandade
espiritual. A outra, que é uma criação humana e um fato exterior, vamos chamá-la de
cristandade corporal e exterior» (M. Lutero, Traité de la papauté, maio de 1520, apud
H. de Lubac, Méditation sur l’Église, Paris 1953, p. 71, nota 2]). A compreensão católica
do período se encontra em São R. Bellarmino: «a Igreja é uma sociedade composta por
homens unidos entre si pela profissão de uma única e idêntica fé cristã e pela comunhão nos mesmos sacramentos sob a jurisdição de pastores legítimos, sobretudo do
romano pontífice. Para que alguém possa em alguma medida fazer parte da verdadeira
Igreja […] não se exige nenhuma virtude interior, mas somente a profissão exterior da
fé e a participação nos sacramentos, que são coisas que se podem perceber com os
sentidos. De fato, a Igreja é um grupo de pessoas tão visível e palpável quanto o grupo
de pessoas que formam o povo romano, o reino da França ou a república de Veneza»
(R. Bellarmino, «De definitione Ecclesiae», in Id., De controversiis christianae fidei
adversos nostri temporibus haereticos, vol. 2, Ingolstadt 1601, col. 137-138, apud J.
Hamer, L’Église est une communion, Paris, 1962, p. 88).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
55
Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos
absolutismo13, se acentuou muito mais. Sobretudo diante do Iluminismo,
a Igreja será afirmada como sociedade perfeita14 e desigual15.
A convergência dos posicionamentos assumidos ao longo desse
percurso de auto-afirmação da Igreja frente ao contraditório, aqui apenas
genericamente indicado, resultou na afirmação da Igreja como uma sociedade perfeita, e mais especificamente em uma concentração da definição
da Igreja a partir dos poderes da hierarquia, sobretudo dos poderes papais.
Uma sociedade “perfeita e desigual”, como já dito acima. Essa história
de oposição polêmica deixou suas marcas na eclesiologia16. Tais marcas
se fazem ver na eclesiologia do Concílio Vaticano I, que é apresentada
por A. Antón como centrada nas estruturas da Igreja em cujo vértice está
o papa, cujo primado de jurisdição e infalibilidade são definidos17. O
mesmo autor apresenta a eclesiologia dos documentos pontifícios e dos
manuais de eclesiologia do período que vai do Vaticano I a 1920 como
influenciada ainda por essa história, baseada sobre o tema da autoridade,
horizontal-visibilista; papista; hierárquico-clerical; apologética18.
56
13
Cf. Y. Congar, «L’ecclésiologie de la Révolution Française au Concile du Vatican»,
p. 77-114.
14
No sentido de sociedade verdadeira, autônoma e que em si mesma tem todos os
meios e poderes necessários para a obtenção de seu fim sobrenatural, por direito
divino. Um exemplo se encontra no «Silabo», de Pio IX, anexo à encíclica «Quanta
cura» [08.12.1864], onde é condenada a proposição segundo a qual «a Igreja não é
uma sociedade verdadeira e perfeita, completamente livre, nem dispõe de seus próprios e permanentes direitos, a ela conferidos por seu fundador divino, mas compete
ao poder civil definir quais são os direitos da Igreja e os limites dentro dos quais ela
possa exercer esses direitos» (DzH 2919).
15
«A Escritura afirma, e a doutrina transmitida pelos Pais confirma que a Igreja é o
corpo místico de Cristo, administrado pela autoridade dos pastores e doutores,
isto é, a sociedade de homens na qual alguns presidem aos demais com plena e
perfeita potestade de reger, ensinar e julgar. Portanto, esta sociedade é, por sua
força e natureza, desigual [...] e estas ordens são de tal modo entre si distintas, que
só na hierarquia residem o direito e a autoridade de mover e dirigir os consócios ao
fim proposto à sociedade; o papel da multidão, porém, é o de deixar-se governar e
seguir obedientemente a condução de seus dirigentes» (S. Pio X, «Vehementer nos»
[11.02.1906]: ASS, 39 [1906] p. 8-9).
16
A uma tal eclesiologia, Y. Congar denominou «hierarcologia» (cf. Y. Congar, Jalons
pour une théologie du laïcat, 74. Cf. sua própria avaliação a respeito em «Bulletin
d’ecclésiologie [1939-1946]», Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques
31 [1947] p. 78).
17
Cf. A. Antón, «Lo sviluppo della dottrina sulla Chiesa nella teologia dal Vaticano I al
Vaticano II», in Facoltà Teologica Interregionale Milano, L’ecclesiologia
dal Vaticano I al Vaticano II, p. 49.
18
Cf. A. Antón, «La imagen de la Iglesia en los manuales De Ecclesia en el periodo
1870-1920», in Id., El Misterio de la Iglesia, vol. 2, 406-427.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Antonio Luiz Catelan Ferreira
Nota-se, porém, de Bonifácio VIII a São Pio X (1903-1914),
também uma continuidade da compreensão da Igreja sob a noção de
corpo de Cristo19, embora o significado da noção não seja totalmente
coincidente. Essas duas tendências, societária e do corpo místico, estão
presentes nas discussões do Vaticano I. A partir de C. Passaglia, Cl.
Schrader e J.B. Franzelin, a teologia do corpo místico reproposta por
J.A. Möhler se faz sentir na primeira redação do Schema constitutionis
dogmaticae de Ecclesia Christi do Vaticano I, especialmente no primeiro
capítulo20. Mas discutida e recusada21, cederá espaço para a eclesiologia
da sociedade perfeita na redação de J. Kleutgen22. Em torno da noção de
corpo místico de Cristo, porém, se articularão as primeiras reações do
movimento eclesiológico, reivindicando um aprofundamento espiritual
e uma impostação propriamente teológica da eclesiologia.
2 A renovação da eclesiologia
2.1 O impulso renovador no período do Romantismo
Nesse mesmo período, a partir do final do século XVIII e durante
o século XIX, a afirmação da eclesiologia da sociedade perfeita, em
contraste com a difusão da cultura romântica, desperta movimentos
de recuperação de outras perspectivas, testemunhadas na Tradição. O
Romantismo foi decisivo na virada eclesiológica23. Com sua insistência
sobre o elemento vital e sobre a historicidade, ele deslocará o acento da
temática eclesiológica para a questão da experiência vivida da Igreja.
Sua recepção em âmbito teológico valoriza a vivência unitária do dado
revelado24.
19
E essa continuidade se prolongará em outros documentos, uma vez que Pio XII virá
a citar, na Mystici Corporis, as encíclicas de Leão XIII «Satis cognitum» (29.06.1896)
(cf. ASS 28 [1895-1896] p. 210, 218, 223) e «Divinum illud» (09.05.1897) (cf. ASS 29
[1896-1897] p. 220, 232).
20
Cf. Mansi 51, col. 539. As anotações que acompanham o esquema explicam o motivo
da escolha (Mansi 51, col. 553) e justificam o plano do primeiro capítulo.
21
As principais motivações da recusa podem ser vistas em Mansi 51, col. 744, 753, 755,
757, 760, 762 (apud A. Antón, «Lo sviluppo della dottrina sulla Chiesa», p. 47).
22
Cf. J. Hamer, L’Église est une communion, 11-16; A. Antón, El misterio de la Iglesia,
vol. 2, p. 344-355.
23
Y. Congar, L’Église de saint Augustin, p. 417, especialmente a bibliografia da nota 1.
24
S. Jáki, Les tendances nouvelles, p. 21-35.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
57
Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos
A importância do Romantismo para a renovação da eclesiologia
pode ser mais bem compreendida a partir do conhecimento da reflexão
feita pelos grandes teólogos desse período. Sensíveis às características
de seu tempo, a partir delas encontraram nas mais legítimas fontes da
Escritura e da Tradição os elementos para a proposição de uma renovada
reflexão sobre a Igreja, que respondesse efetivamente às necessidades.
Os teólogos da escola de Tubinga são os primeiros a acolher a influência do pensamento romântico na teologia. Eles procuram o espírito do
cristianismo na vivência do mistério da Igreja.
J.A. Möhler (1796-1838) é o maior representante da escola de
Tubinga e o inspirador das principais correntes eclesiológicas do século
XX25. Sua primeira grande obra é A Unidade. Segundo ele, o fundamento da unidade da Igreja reside em seu próprio mistério, realidade
sobrenatural vivida, que se deseja comunicar homogeneamente a todos.
É uma unidade orgânica e viva. Sua comunicação vital é obra do Espírito. A unidade no espaço – sincrônica – se dá pela profissão de fé; no
tempo – diacrônica – pela Tradição e também pelo ministério dos Bispos
como sucessores dos Apóstolos. Estas duas formas de união compõem
a unidade orgânica da Igreja. Há nelas uma preocupação especial em
demonstrar a continuidade orgânica entre a Igreja primitiva e a Igreja
atual. O conhecimento das verdades sobrenaturais também encontra na
vivência concreta seu melhor modo de ser captado e compreendido. Esta
mesma experiência vivida está no fundo da essência da Igreja e justifica
sua estrutura exterior, encarnando-se nela26. Desta sua primeira grande
obra, os temas da unidade e do aspecto místico da Igreja são os dois que
mais atenção receberam da eclesiologia posterior e que mais contribuíram para sua renovação. Mas também se devem mencionar outros, como
o enfoque da estrutura visível da Igreja a partir de sua interioridade, a
58
25
Suas obras eclesiológicas principais são: J.A. Möhler, Die Einheit in der Kirche
oder das Prinzip des Katholizismus dargestellt im Geist der Kirchenväter der drei
ersten Jahrhunderte, Tübingen 1825 (designada como A Unidade); Id., Symbolik oder
Darstellung der dogmatische Gegensätze der Katholischen und Protestanten nach
ihren öffentlichen Bekenntnisschriften, Mainz 1832 (designada como Simbólica).
26
Sua obra, especialmente A Unidade, recebeu críticas, na discussão de cujo mérito não
podemos aqui entrar. A principal delas se refere ao papel que reconhece ao magistério.
«O magistério e as funções eclesiásticas se submetem à predominância absoluta do
princípio do Amor, do qual elas não são senão as manifestações necessárias» (S.
Jáki, Les tendences nouvelles, p. 28). Sobre isto, se pode consultar Ch. Journet,
«La hiérarchie dans le livre de Moehler sur L’unité dans l’Église», in Id., L’Église du
Verbe Incarné, vol. 1, Paris 1941, p. 630-641.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Antonio Luiz Catelan Ferreira
importância do diálogo ecumênico, o retorno aos Pais27. Como juízo de
conjunto sobre sua obra e de sua intuição fundamental apresentada em
“A unidade”, podemos citar Ch. Journet: «é autêntica, profunda, antiga
como o cristianismo, eternamente fecunda»28.
Na Simbólica, ao lado do primado do amor que afirmara na primeira obra, J.A. Möhler acentua o papel da encarnação de Cristo como
fundamento da necessária expressão do mistério em estruturas visíveis,
como o Episcopado. Entre a verdade interior e a realidade exterior, a
mediação é feita pela estrutura eclesial29. A expressão concreta da união
interior dos cristãos e da sua ligação com Cristo é a Igreja visível. Nisto há uma continuidade da economia da encarnação e se verifica uma
orientação para a objetividade da revelação.
O desafio da eclesiologia de encontrar uma síntese equilibrada
e justa entre o subjetivo e o objetivo na Igreja é percebido por ele. A
elaboração dessa síntese entre o aspecto vital e concreto da Igreja, que
caracteriza “A unidade”, e a valorização do aspecto visível da Igreja,
expresso na “Simbólica”30 é perceptível nas modificações que ele introduziu na segunda edição desta última obra.
Também na teologia de J.H. Newman (1801-1890) a Igreja ocupa
um lugar central, embora não o tenha abordado de modo sistemático31.
Por seu modo de ver a Igreja a partir de sua vitalidade, concreção e mís27
Cf. As contribuições feitas por ocasião da comemoração do centenário de seu nascimento em P. Chaillet, ed., L’Église est une. Hommage à Moehler, Paris 1939.
28
Ch. Journet, L’Eglise du Verbe Incarné, vol. 1, p. 640.
29
Verifica-se nesta obra uma postura crítica de J.A. Möhler a respeito do Romantismo.
Ele abrira horizontes para a eclesiologia, mas comportava também riscos, como o de
limitar a objetividade do dado revelado e definido à psicologia religiosa. O princípio da
experiência vital não é suficiente em vista da distinção das «corporificações» essenciais das que são contextuais. Por isso, nessa nova obra, aborda o aspecto visível
da Igreja sob novo prisma.
30
O capítulo que ele inclui na segunda edição da “Simbólica” («§ 37. Exposição mais
detalhada do modo como os católicos vêem a Igreja») é interpretado como um esforço
nesse sentido (cf. S. Jáki, Les tendences nouvelles, p. 35, nota 75). A eclesiologia
posterior tratará desses dois aspectos, o vivencial e o institucional, como dois princípios: comunitário e apostólico. «Em ‘A unidade’, o teólogo alemão nos dá uma primeira
elaboração do aspecto vital da Igreja. Na ‘Simbólica’, ele detecta as deficiências de
um vitalismo unilateral. Uma morte prematura o impediu de realizar a síntese que
pretendia» (Id., «Bulletin d’ecclésiologie», Revue des Sciences Philosophiques et
Théologiques, p. 43 [1959] p. 331).
31
Cf. L. Bouyer, Newman. Sa vie. Sa spiritualité, Paris 1952; E.J. Milton, John
Henry Newman on the Idea of Church, Milton 1987. «[Suas conferências sobre a
Justificação] preparam, se não produzem elas mesmas antecipadamente, o que os
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
59
Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos
tica, e pela influência que teve na renovação da eclesiologia, é também
considerado um iniciador da nova compreensão da Igreja32. Para ele,
a estrutura sacramental da Igreja e o senso religioso pessoal não estão
separados. Este último se baseia na união pessoal do crente com Deus33,
sem se concluir no intimismo, porque a Igreja é a ligação entre a consciência e a Trindade. Sua compreensão da Igreja se baseia na noção de
santidade34. Sua preocupação com a questão histórica da Igreja não tem
cunho apologético, mas de continuidade vital35. Por isso ele reconhece
a preponderância do caráter sacramental da Igreja: ela é a continuadora
da vida da graça. E também em consonância com isso valoriza a liturgia.
O mesmo motivo o faz ter em alta conta a doutrina da sucessão apostólica, pois pelos Bispos Cristo cumpre a promessa de permanecer para
sempre em sua Igreja36. A organicicidade viva da Igreja se manifesta
em seu desenvolvimento doutrinal no qual têm papel ativo os leigos37.
A correspondência entre a voz da consciência e a do magistério eclesial
testemunha essa organicidade38. Avaliando globalmente sua eclesiologia,
desenvolvimentos da teologia do Corpo Místico no século XX deveriam revelar de
mais fecundo» (L. Bouyer, Newman, p. 222).
60
32
Cf. S. Jáki, Les tendences nouvelles, p. 36. A importante questão do enquadramento
de J.H. Newman com relação às correntes teológicas de seu tempo é discutido bastante
detalhadamente em J.-H. Walgrave, «La croissance spirituelle de Newman et l’idée
du développement», in Id., Newman, le développement du dogme, Tournai – Paris
1957, p. 36-52.
33
Cf. J.H. Newman, Apologia pro vita sua, London 1864, 23.
34
«A noção de santidade é central para Newman, e sobre ela constrói sua eclesiologia» (J. Hamer, «Bulletin d’ecclésiologie», Revue des Sciences Philosophiques et
Théologiques, 63 [1959] p. 334).
35
Cf. L. Bouyer, Newman, p. 210.
36
Cf. J.H. Newman, Parochial and Plain Sermons, London 1869, vol. 2, p. 310; Ibid.,
vol. 3, p. 248. «A apostolicidade é a razão da conversão de Newman» (Ch. Journet,
L’Église du Verbe incarné, vol. 1, p. 682).
37
«Newman percebeu em sua época a importância de problemas que estão hoje no centro
das atenções: a Igreja no mundo, o lugar dos leigos na conservação e no desenvolvimento da fé» (J. Hamer, «Bulletin d’ecclésiologie», RSPhTh 63 [1959] p. 334).
38
«Por um lado, o instinto do povo fiel é infalível em matéria de fé e, por outro, a autoridade eclesiástica é o princípio fundamental que preside a todo crescimento da vida
de fé. O Espírito que conduz a Igreja, age ao mesmo tempo na fé da comunidade
crente, na teologia autêntica e na infalível autoridade doutrinal» (J. Hamer, «Bulletin
d’ecclésiologie», Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques, 63 [1959] p.
334). Não se trata de dois ou três sujeitos da infalibilidade. «A infalibilidade pertence
a mesmo tempo à comunidade e à hierarquia, como a um só corpo, mas ela não é
exercida senão pela suprema autoridade doutrinal» (J.-H. Walgrave, Newman, le
développement du dogme, p. 211).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Antonio Luiz Catelan Ferreira
Y. Congar considera que, assim como J.A. Möhler, J.H. Newman abordou
o mistério da Igreja pelo lado do “sujeito religioso”39.
Nesse período, a teologia se enriquece consideravelmente com
relação à sua situação anterior. A partir do caráter vital e orgânico que
o contexto cultural do Romantismo lhe proporcionou, ela se beneficiou
do rejuvenescimento que o contato com as fontes patrísticas e com os
grandes escolásticos proporciona. A noção de corpo místico de Cristo, na
qual se destaca a ideia de unidade, lhe oferece a categoria e o fundamento
tradicional para reinterpretar a noção eclesiológica de sociedade a partir
da ideia de unidade viva e orgânica. As categorias de mistério e sacramento conferem à eclesiologia desse período o elemento transcendente.
A aproximação à categoria sociológica de Gemeinschaft40, interpretada
a partir da ideia de comunhão, permite à eclesiologia a recuperação da
dimensão comunitária, que é entendida como a forma especificamente
humana da unidade.
A partir da categoria de corpo místico de Cristo, a eclesiologia
desse período deu sua contribuição mais fecunda à renovação da eclesiologia. O legado dessa etapa está associado à importância do que virá
a ser chamado ressourcement. A categoria do poder se enriquece e se
corrige com a categoria de vida. O mesmo ocorre com a noção de unidade jurídica, pela de unidade orgânica; e com a de sociedade desigual,
pela de comunidade. Praticamente todos os grandes temas da renovação
eclesiológica estão postos nessa importante fase.
2.2 O impulso renovador entre as duas Guerras Mundiais
É geralmente reconhecida uma influência sobre a eclesiologia
também da parte da experiência peculiar do período que vai da primeira
39
Y. Congar, Vraie et fausse réforme dans l’Église, p. 9. E avaliando sua produção,
escreve: «Ele realizou a síntese, não perfeitamente, certo, mas excepcionalmente, pela
qual se empenha nosso tempo, entre os valores santos e necessários: fé e razão, vida
espiritual e intelectualismo, história e pensamento, psicologia e dogma, profetismo e
instituição, sujeito e objeto, progresso e tradição, reflexão e poesia [...]» (Id., «Bulletin
d’ecclésiologie», Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques, 31 [1947] p.
96). Alguns aspectos pelos quais sua eclesiologia se aproxima da eclesiologia de
comunhão foram destacados em J. Tolhurst, The Church – A Communion in the
Preaching and Thought of John Henry Newman, Sauthhampton 1988.
40
F. Pilgram, Physiologie der Kirche. Forschungen über die geistigen Gesetze,
in denen die Kirche nach ihrer natürlichen Seite besteht, Mainz 1860; trad. francesa:
Physiologie de l’Église, Paris – Bruxelles 1864, p. 13-15, 114, 186.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
61
Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos
à segunda Grande Guerra do século XX41. Essa experiência pode ser
caracterizada como sentimento de solidão e de necessidade de atuação
comunitária42. Nesse período, diversos temas são retomados com novo
vigor, tanto na teologia católica quanto na teologia ortodoxa e evangélica.
Entre eles destacamos: a Palavra como criadora da Igreja, o culto como
espaço vital interior da Escritura e da Igreja, uma renovada compreensão da relação entre Jesus e a Igreja, a Eucaristia como origem e norma
permanente da Igreja, a influência da escatologia sobre a compreensão
da Igreja43.
Nessa fase, o aprofundamento da eclesiologia foi realizado não
apenas com a contribuição de grandes teólogos, mas também, e sobretudo, dos movimentos de renovação, que conheciam então o apogeu de
sua atuação entre as duas Guerras Mundiais44. O sentido comunitário e o
despertar do laicato são duas grandes características desse período, que
darão contribuição decisiva para a renovação da eclesiologia45.
O documento magisterial que trata da questão eclesiológica com
maior amplitude, antes do Concílio Vaticano II, é a encíclica Mystici
corporis (29/06/1943), de Pio XII. Nela a noção de corpo de Cristo
exprime a ideia fundamental segundo a qual se compreende a natureza
da Igreja46. Nas discussões do Vaticano I sobre a noção de Igreja a ser
considerada estruturante, essa noção foi considerada inadequada para
exprimir em conjunto o ensino sobre a Igreja: por ser obscura, imprecisa,
metafórica, perigosa por reforçar o aspecto invisível, marcada por sabor
jansenista. A evolução que se processou no interstício evidenciou dados
62
41
«Toda a experiência da guerra foi, no fundo, esta: despertamos e tivemos aquela
experiência do mundo que Agostinho nos descreve: este mundo em realidade não
“é”. Toda a nossa vida, cada palavra que dizemos, cada respiro em realidade não “é”.
Na realidade tudo é só um “foi” e um “será”» (E. Przywara, Katholische Krise,
Düsseldorf 1967, 47, apud P.C. Bori, Koinonia, 15).
42
«A Primeira Guerra Mundial trouxe consigo o desmoronamento do mundo liberal e
com ele, também, o distanciamento em relação a seu individualismo e moralismo. As
grandes instituições políticas que se apoiavam inteiramente na ciência e na técnica
como sustentáculos do progresso da humanidade fracassaram em sua qualidade de
forças da ordem moral. Daí o redespertar do anseio de integrar uma comunidade de
vivência sacral» (J. Ratzinger, Compreender a Igreja hoje, p. 10).
43
Cf. J. Ratzinger, Compreender a Igreja hoje, p. 9-13; P.C. Bori, Koinonia, p. 15-46.
44
Eles são bem conhecidos (Movimento Litúrgico, Movimento Ecumênico, Movimento
Bíblico, Ação Católica, entre outros), por isso não nos ocupamos pormenorizadamente
deles aqui.
45
Cf. A. Antón, «Lo sviluppo della dottrina sulla Chiesa», p. 64-67.
46
Acta Apostolicae Sedis, 35 (1943), p. 199.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Antonio Luiz Catelan Ferreira
que permitiram a superação daquelas reservas. Esses dados tanto se referem aos fundamentos bíblicos e tradicionais da noção, como também
a sua articulação com a noção de sociedade, já bastante depurada dos
acentos com que foi marcada até a Idade Moderna. Nesse período, a
Mystici corporis é um marco de superação. A unidade entre os elementos
societários e místicos da Igreja, nenhum devendo excluir o outro como
não-essencial, se fundava na analogia com o mistério do Verbo encarnado. A dimensão pneumática se apresenta unida à dimensão institucional,
o que a encíclica articula a partir da ideia da missão de Cristo e de sua
capitalidade, que se prolonga na missão jurídica e pneumática dos apóstolos. Superando os limites da eclesiologia da sociedade perfeita, coloca
ainda em primeiro plano o aspecto institucional e hierárquico por meio
da estreita identificação entre o corpo místico e a sociedade eclesiástica,
que coincide com a Igreja Católica Romana.
O decurso desse grande período, especialmente impulsionado
nas duas fases mais intensas, resulta na renovação da compreensão da
Igreja a partir da harmonia de seus dois aspectos mais característicos:
o aspecto humano, comunitário, empírico; e o de mistério, espiritual,
transcendente. De modo geral, ela afeta não somente a teologia católica.
Um papel decisivo é desempenhado pela exegese, que acolhe essas novas
tendências e influencia também decisivamente sobre seu curso47. Nela
se desenvolve uma importante reflexão sobre a relação entre Jesus e a
Igreja, no âmbito da interpretação escatológica da mensagem de Jesus48.
É também digna de nota a atenção concedida à centralidade da Eucaristia, que encontra um referencial imprescindível na Última Ceia como
geradora da comunidade49. Sob a marca dessa influência fundamental, no
47
Duas obras decisivas do ponto de vista das mudanças da exegese no campo da
eclesiologia: O. Linton, Das Problem der Urkirche in der neueren Forschung, Uppsala 1932; F.M. Braun, Aspects nouveaux du problème de l’Église (J. Ratzinger
testemunha a importância desta última obra: «No final desse movimento, F.M. Braun
apresentou sumariamente o seu desenvolvimento, no livro que ainda hoje merece
ser lido» [Compreender a Igreja hoje, p. 25]).
48
Uma particular atenção é conferida, nesse âmbito, à relação entre Igreja e Reino. Cf.
G. Gloege, Reich Gottes und Kirche im N.T., Gütersloh 1929 (em que insiste na
distinção entre ambos e na instrumentalidade da Igreja com relação ao Reino). R.
Bultmann insiste sobre o aspecto escatológico da Igreja a partir de seus estudos sobre
a relação entre Ekklesia e Qahal (cf. R. Bultmann, «Kirche und Lehre im N.T.»,
Zwischen den Zeiten 7 [1929] p. 9-43), como também E. Peterson, Die Kirche,
München.
49
J. Ratzinger indica o início dessa ideia em F. Kattenbusch, Der Quellort der Kirchenidee. Festgabe für A. Harnack, Tübingen 1921, p. 143-172 (cf. J. Ratzinger,
Compreender a Igreja hoje, p. 10-11). É também decisivo, para esta discussão, H.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
63
Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos
campo da eclesiologia católica assiste-se a sistematizações que mostram
o vínculo indissociável entre a Igreja enquanto sociedade e enquanto
mistério (trata-se da afirmação do caráter mistérico e comunitário)50.
Como o século XX é o que conhece o apogeu desse movimento,
é conhecido como “século da Igreja”51, ou “século da eclesiologia”52.
Em termos de experiência vivida, trata-se do que R. Guardini chamou
de o “despertar da Igreja nas almas”53.
3 Resultados da renovação eclesiológica
J. Hamer identifica três “momentos característicos” resultantes
da renovação eclesiológica: (1) O tratado De Ecclesia se entende como
parte importante da apologética e da teologia fundamental, e nele se
destaca uma de suas funções: proclamar a verdade e conservar o depósito
revelado; (2) A eclesiologia reconquista um lugar na teologia especial,
tendo como indicação cronológica o período que abrange as décadas
de 30 e de 40 do século XX, sendo seu ápice a publicação da Mystici
Corporis; como temática principal, ele aponta a reflexão sobre a natureza
profunda da Igreja; (3) Depois do início do pontificado de João XXIII e
sobretudo a partir do Concílio Vaticano II, a eclesiologia se desenvolve
em extensão e em organização54.
Entre as principais consequências da renovação da eclesiologia,
pode-se indicar uma nova abordagem das fontes da teologia, uma modificação nas imagens predominantes da Igreja e a ampliação da compreensão
da Igreja, nas suas dimensões mistérica, comunitária e escatológica, em
sua unidade e em seu caráter sacramental.
Lietzmann, Messe und Herrenmahl. Eine Studie zur Geschichte der Liturgie, Bonn
1926.
64
50
As obras mais típicas nesse sentido são as de H. de Lubac, Catholicisme, les aspects
sociaux du dogme, Paris 1937; e Id., Corpus Mysticum, l’Eucharistie et l’Église au
moyen âge, Paris 1949.
51
Cf. O. Dibelius, Das Jahrhundert der Kirche, p. 1926.
52
Cf. P.C. Bori, Koinonia, p. 19.
53
«Um processo de incalculável alcance se iniciou: o despertar da Igreja nas almas»
(R. Guardini, Il senso della Chiesa, Brescia 20072, p. 15). Esta afirmação, que viria
a se tornar como uma divisa do movimento eclesiológico, foi pronunciada durante as
Lições sobre a Igreja, na Universidade de Bonn, em 1921.
54
Cf. J. Hamer, «L’ecclesiologia oggi», Sapienza 17 (1964) p. 12-13.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Antonio Luiz Catelan Ferreira
Efeito dos fatores de renovação da eclesiologia acima mencionados, o modo de se abordar as fontes da teologia da Igreja – a Escritura,
os Pais e os grandes autores da escolástica – passou também por uma
grande transformação.
Os elementos exegéticos que mais influíram sobre esta renovação
foram: a compreensão do significado dos termos Ekklesía55 e koinonía56;
os estudos sobre a eclesiologia paulina, especialmente sobre sua noção
de corpo de Cristo57 e sobre o fundamento da noção de povo de Deus58;
também o estudo do papel dos elementos estruturais e do ministério
de Pedro na Igreja59, assim como a centralidade da Eucaristia para a
compreensão da Igreja a partir de sua relação com Jesus Cristo e de
seus fundamentos bíblicos60, e da forma de vida dos cristãos61. Também
a temática do Reino de Deus se enriquece e sua relação com a Igreja se
explicita em termos mais bem articulados, especialmente em estudos
55
Cf. K.L. Schmidt, «Die Kirche des Urchristentums», in Festgabe A. Deissmann,
Tübingen 1927, 258-319; Id., «Ekklesia», GLNT, vol. 4, Brescia 1968, col. 1490-1580.
Destaca-se a emergência da convicção a respeito da preexistência da Igreja universal com respeito às Igreja particulares (cf. F. Kattenbusch, «Der Quellort der
Kirchenidee», in Festgabe A. Harnack, Tübingen 1921, p. 143-172).
56
Cf. J.A. Campbell, «The Communion of the Body», The Expositor 8/series 18 (1919)
121-130; Id., «Koinonia and its Cognates in the NT», Journal of Biblical Literature
51 (1932) p. 353-380; H. Seesemann, Der Begriff Koinonia im Neuen Testament,
Giessen 1933.
57
Cf. E. Mersch, Le Corps mystique du Christ. Etudes de théologie historique, 2 vol.,
Paris 1933-1936; S. Tromp, Corpus Christi quod est Ecclesia. Introductio generalis,
Romae 1946.
58
É necessário recordar aqui a proposta de M.-D. Koster de substituir a noção de corpo
místico pela de povo de Deus. Segundo ele, corpo místico tem ascendência excessivamente espiritualizante, não se prestando a uma definição da Igreja, que deve incluir
aquilo que na Igreja é humanamente cognoscível. A noção de corpo se prestaria a
isto se fosse entendida no sentido de sociedade eclesial (cf. M.-D. Koster,
Ekklesiologie im Werden, Paderborn 1940, p. 15, 20, 110, 125).
59
Deve ser citado o influente estudo de L. Hertling, «Communio und Primat. Kirche
und Papsttum in der christlichen Antike», Miscellanea Historiae Pontificiae 7 (1943) p.
1-48; trad. italiana: Communio. Chiesa e Papato nell‘antichità cristiana, Roma 1961.
60
A literatura neste campo é imensa. Indicamos a respeito o estudo de B. Forte, La
Chiesa nell’eucaristia: per un’ecclesiologia eucaristica alla luce del Vaticano II. D’Auria,
Napoli, 1975, com ampla bibliografia.
61
Sobre a forma de vida do cristianismo primitivo, cf.: H. Chirat, L’assemblée chrétienne
à l’âge apostolique, Paris 1949; S.M. Iglesias, «Concepto biblico de koinonia», in
XII Semana biblica Española, El movimiento ecumenista, Madrid 1953, p. 195-224.
Estes dois temas continuarão a receber muita atenção nos anos sessenta do século
XX (cf. J. Ratzinger, Die christliche Brüderlichkeit, München 1960; J. Dupont,
«La koinonia des premiers chrétiens dans les Actes des Apôtres», Nouvelle Revue
Théologique 91 [1969] p. 897-915).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
65
Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos
sobre os Sinóticos. O papel do Espírito Santo se destaca a partir dos
estudos sobre são João. A concordância profunda que há entre as noções
de Reino, mistério, vida, é destacada62.
O retorno aos Pais mostrou a riqueza de conteúdo que tem a doutrina da Igreja, que se exprime em várias imagens, sobretudo a de corpo
místico, que é a prevalecente no período em questão63. Ela contribui
para a solução de questões de modo mais satisfatório que a pura crítica
textual da Escritura64. As pesquisas do início do século XX sobre os Pais
revelaram a predominância entre eles do aspecto interior da Igreja65 e da
relação entre a Igreja e a Eucaristia66, e destacaram também a importância
da noção colegial dos ministérios eclesiais67.
A continuidade da temática patrística, com acentos particulares, em
uma abordagem rica em espiritualidade, caracteriza os grandes autores
da escolástica68, que são relidos à luz da Tradição69. Neles, a imagem
da Igreja é concreta, viva e multifacetada70. Não se encontra entre suas
obras um De Ecclesia. A razão é que, antes de ser objeto de estudo, a
Igreja é a própria atmosfera geral em que respiram; não é uma pedra no
66
62
Cf. o detalhado documentário de S. Jáki, Les tendences nouvelles, p. 156-170.
63
Já o início da renovação eclesiológica se inspirou nos Pais. De sua teologia se obtém
o ambiente vital e o clima espiritual adequados e necessários para o conhecimento da
realidade profunda da Igreja. O estudo de E. Mersch (Le Corps mystique du Christ)
é um exemplo de síntese da tradição patrística em torno de um tema eclesiológico
fundamental. Merecem especial menção os estudos de H. de Lubac, Corpus Mysticum. L’Eucharistie et l’Église au Moye-Âge, Paris 19492.
64
Cf. J. Colson, L’évêque dans les communautés primitives. Tradition paulinienne et
Tradition Johannique de l’Episcopat, des origines à saint Irénée, Paris 1951.
65
Cf. H. Rahner, Symbole der Kirche, Salzburg 1964; J. Ratzinger, Popolo e casa
di Dio in sant’Agostino.
66
Cf. H. de Lubac, Corpus Mysticum, obra cuja totalidade se ocupa desta temática.
67
Y. Congar – B.-D. Dupuy, ed., L’épiscopat et l’Église universelle, Paris 1962; J.
Lecuyer, Études sur la collegialité épiscopale, Le Puy – Lyon 1964; G. D’Ercole,
Communio – collegialità – primato e sollicitudo omnium ecclesiarum dai Vangeli a
Costantino, Roma 1964; J. Colson, L’épiscopat catholique. Collegialité et primauté
dans les trois premiers siècles de L’Église, Paris 1963.
68
Cf. S. Jáki, Les tendences nouvelles, p. 191-201.
69
R. Aubert conclui que eles «não foram somente leitores de Aristóteles, mas foram
também religiosos que pensaram sua fé em uma atmosfera espiritual, à luz de uma
tradição religiosa» («Les grandes tendences théologiques», 19). Y. Congar põe em
guarda contra o preconceito a respeito dos autores medievais, pois, quando se conhece sua obra, se a descobre «proba, humilde, rigorosa, religiosa» (Id., Esquisses
du mystère de l’Église, Paris 1942, p. 60).
70
Cf. H. de Lubac, «L’Église, corps mystique», in Id., Corpus Mysticum, p. 116-135.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Antonio Luiz Catelan Ferreira
edifício teológico, é o plano arquitetônico71. A graça de Cristo, como
vida sobrenatural, é o tema predominante na reflexão escolástica sobre
a Igreja, cuja unidade é entendida a partir da Trindade e da encarnação72.
“Para os escolásticos, a noção de corpo místico é situada antes de tudo no
plano da vida e não no da instituição”73. O aspecto cristológico da Igreja
é, para eles, ligado ao mistério da Eucaristia74. As espécies eucarísticas,
sacramentum tantum, e o corpo eucarístico de Cristo, res sacramenti, são
ordenados à unidade da Igreja, res tantum. Fala-se mesmo de estrutura
sacramental da Igreja no pensamento escolástico75. O predomínio da razão
dialética no período sucessivo faz emergir um caráter mais especulativo
da teologia. Os estudos eclesiológicos começam a ser elaborados pela
incipiente ciência canônica e vão identificando cada vez mais a noção de
corpo místico de Cristo ao corpo social da Igreja, o que vai resultando
em uma eclesiologia muito diferente daquela dos Pais76. A obra de H.
de Lubac mostrou que o abandono da via simbólica, e a adoção da via
puramente especulativa, gerou um empobrecimento da noção de Igreja,
sendo de grande interesse integrar novamente esse modo de abordagem
eclesiológica77.
4 As noções de Igreja predominantes
Propomos aqui uma releitura desse período da eclesiologia a partir
das principais noções eclesiológicas: sociedade, corpo místico de Cristo,
e povo de Deus, e as relacionamos com a eclesiologia conciliar.
A primeira delas é a de sociedade. Há dois modos de compreender
esta noção: como sociedade perfeita, de que já se tratou na primeira parte
deste estudo, e como corpo organizado, visível e histórico. O primeiro
modo é aquele a que se opõe o movimento de renovação da eclesiologia.
71
Cf. J. Ranft, «La Tradition vivante: unité et développement», in P. Chaillet, ed.,
L’Église est une, 102-126.
72
Cf. O. Dominguez, «La fe, fundamento del cuerpo mistico en la doctrina del Angélico», Ciencia Tomistica 76 (1949) p. 550-586.
73
S. Jáki, Les tendences nouvelles, 194.
74
Em geral, nos grandes escolásticos, a Igreja é entendida a partir da função de distribuição da graça, por uma primazia espiritual. É também característica sua estrutura
sacramental (cf. A. Piolanti, Il corpo mistico e le sue relazioni con l’Eucaristia in S.
Alberto Magno, Roma 1939).
75
Cf. A. Piolanti, Il corpo mistico, p. 98-99.
76
Cf. H. de Lubac, Corpus Mysticum, p. 112.
77
Cf. H. de Lubac, Corpus mysticum, p. 293.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
67
Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos
Sua ideia básica é a do primado da instituição visível e de sua estruturação, considerando-se a Igreja essencialmente uma sociedade. O
longuíssimo arco de tempo de sua vigência vai do final do século XI até
a metade do século XX78, quando B.C. Butler sustentou que de acordo
com os católicos romanos a Igreja é essencialmente só uma sociedade
histórica, com leis próprias, com um corpo de dirigentes e membros
que aceitam essa constituição e essas regras79. A instituição juridicamente organizada é predominante nessa noção. Em geral se considera
que esse enfoque atingiu seu apogeu na constituição dogmática sobre
a Igreja preparada pelo Concílio Vaticano I. Nos esquemas preparados
para o Vaticano II havia diversos sinais dessa eclesiologia. Tornaramse clássicos os termos com que Mons. Emilio de Smedt a caracterizou:
clericalismo, juridicismo e triunfalismo80. Segundo ele, é clerical, porque
considera membros ativos da Igreja somente os ministros ordenados, e
de modo piramidal pelo critério do poder hierárquico que desce do papa.
Juridicista, porque tende a compreender a missão da Igreja a partir da
jurisdição e a ela tudo reduzir quanto à sua compreensão. Triunfalista,
porque age como um exército em ordem de batalha, sempre vitorioso.
A. Dulles apresenta, como debilidades fundamentais dessa tendência, a
falta de bases bíblicas, a acentuação unilateral de algumas virtudes (por
exemplo, maximiza o papel da obediência), sua tendência a exagerar as
tarefas da autoridade humana na Igreja81.
O segundo modo de compreensão da noção de sociedade é o que
considera a Igreja do ponto de vista de sua organização, necessária à
existência histórica concreta e ao cumprimento de sua missão82. Neste
sentido, essa compreensão tem valores irrenunciáveis. No sentido que
readquiriu na renovação eclesiológica, essa noção indica a forma da
comunhão derivada da relação fundamental com Deus.
68
78
Cf. Y. Congar, «Peut’on définir l’Église?», p. 31.
79
Cf. B.C. Butler, The Idea of the Church, Baltimore 1962 (cf. especialmente p.
39).
80
Cf. Acta Synodalia, vol. 1/4, Città del Vaticano 1971, 142-144.
81
Cf. A. Dulles, Models of the Church, New York 19912, 42.
82
«Bem sabemos que a Igreja, como comunidade de vida divina, é realizada aqui em
baixo em condições homogêneas à natureza humana, ou seja: é uma sociedade una,
de uma unidade de cidade […] porque sua realidade espiritual é encarnada, não há
nela [a Igreja], aqui em baixo, “comunidade” que não seja “sociedade”» (Y. Congar,
Chrétiens désunis, p. 93).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Antonio Luiz Catelan Ferreira
A noção de sociedade e a categoria sociedade perfeita não estão
ausentes dos documentos do Vaticano II. A noção de sociedade em
sentido eclesiológico ocorre diversas vezes (cf. LG, 8, 14, 15, 20). Seu
significado é a Igreja enquanto «estrutura visível e social» (cf. LG, 14),
«grupo visível», «dotada de organismos hierárquicos» (cf. LG, 14, 20,
23). Ela se refere à «Igreja terrena», «estabelecida e estruturada neste
mundo como uma sociedade» (cf. LG, 8). Neste sentido, ela se torna
uma referência importante para a elaboração do direito eclesial83. Quanto
à categoria “sociedade perfeita”, seu uso em textos do Concílio ocorre
somente no sentido técnico de afirmar a autonomia relativamente a outras
organizações, como a sociedade civil ou o Estado, no que ser refere aos
meios necessários à consecução de sua finalidade (cf. GS, 42; DH, 13).
Deve ser notado, portanto, que a noção eclesiológica de sociedade não
é tomada como base fundamental da eclesiologia. Nem, muito menos, o
é a categoria “sociedade perfeita”, mesmo considerando as importantes
modificações de sentido com que o Concílio a emprega. Indicam, porém,
dimensões importantes da vida eclesial.
A segunda noção é a de corpo de Cristo, cuja retomada contribuiu
para a reposição da reflexão eclesiológica em bases claramente bíblicas
e tradicionais. Contribuiu também para a superação de um enfoque em
que o elemento jurídico e societário predominavam de modo quase exclusivo, englobando-os em uma compreensão mais completa. A união
a Cristo como constitutiva do ser da Igreja, e a afirmação de seu caráter
místico, embora esse adjetivo não seja de origem bíblica ou patrística84,
são eficazes para a reação contra a dissociação entre a teologia da Igreja e seu enraizamento eucarístico85. O tema terá um desenvolvimento
vertiginoso na reflexão teológica, especialmente a partir de 192086. Mas
nem sempre a clareza cresce proporcionalmente. As interpretações vão
83
E. Corecco, «Teologia del Diritto Canonico», Nuovo Dizionario di Teologia, Milano
1977, p. 1711-1753.
84
Sua origem é medieval e está ligada à disputa sobre a Eucaristia. «Em nenhum escritor
da antiguidade cristã ou da alta Idade Média foi encontrada até hoje essa expressão
para designar a Igreja» (H. de Lubac, Corpus Mysticum, p. 26).
85
Cf. J. Hamer, L’Église est une communion, p. 74.
86
«Em 1920 começa um período de extraordinário crescimento. De 1920 a 1925, a
quantidade de literatura sobre a questão iguala a dos vinte anos precedentes. De
1925 a 1930, a produção é dobrada. Durante os cinco anos seguintes, temos que é
quintuplicada com relação aos dez anos precedentes. O ápice da aceleração parece ter
sido atingido em 1937, a partir de quando continua, mas em ritmo mais moderado» (F.
Malmberg, Een lichaam en een geest. Nieuwe gezichtspunkten in de ecclesiologie,
Utrecht 1958, 19, apud J. Hamer, L’Église est une communion, p. 16). São desse
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
69
Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos
desde uma defesa da teologia do corpo místico em termos de identidade
real entre Cristo e o cristão, até à recusa do tema como pré-teológico87.
Nesse contexto se insere a encíclica Mystici corporis, de Pio XII88, que
procurou pôr termo às disputas e incertezas na discussão do tema. Ela
própria, porém, gerou também novas discussões, as maiores sendo sua
insistência na visibilidade e identificação com a Igreja de Roma e sua
doutrina a respeito dos membros da Igreja89.
No esquema preparatório da Constituição dogmática sobre a Igreja,
do Concílio Vaticano II, esta noção era predominante. Após as sucessivas
modificações, foi mantida em um único longo número, LG 7, situado
no primeiro capítulo, sobre o mistério da Igreja. Subdividido em duas
partes, na primeira sobressaem as referências ao batismo e à eucaristia.
Claramente se encontram aí as bases para a eclesiologia eucarística que é
explicitada em LG 26. A segunda parte cita quatro vezes a Mystici corporis, e trabalha a espinhosa questão dos membros da Igreja, que foi muito
discutida do ponto de vista ecumênico depois da encíclica de Pio XII.
Assim, prepara as bases para a discussão da relação entre os elementos
visíveis e os elementos espirituais da Igreja e para o “subsistit in” que
será apresentado em LG 8. Outra ocorrência da expressão se dá em OE
2. Em seu conjunto, o Concílio entende, com a noção de corpo de Cristo,
trabalhar a dimensão cristológico-soteriológica da Igreja.90
Também a utilização da categoria povo de Deus para a compreensão da Igreja é redescoberta e revalorizada. Deve ser destacado o seu
sentido histórico e escatológico91. Essa expressão bíblica manifesta o
caráter histórico-salvífico da Igreja, sua relação com o povo da primeira
Aliança, sua índole escatológica, sua natureza comunitária, a condição de
igualdade fundamental quanto ao ser cristão de todos os batizados e sua
comum responsabilidade. Reconhece-se seu papel central na concepção
período as duas importantes obras: E. Mersch, Le corps mystique du Christ. Études
de théologie historique, Paris – Bruxelles, 1933 e S. Tromp, Corpus Christi.
70
87
Destacam-se as confusões doutrinais geradas por enfoques inadequados dessa
categoria e a proposta de que essa noção fosse substituída pela de povo de Deus
(cf. J. Hamer, L’Église est une communion, p. 16-19).
88
Cf. Acta Apostolicae Sedis, 35 (1943) p. 193-248.
89
Cf. S. Pié-Ninot, Eclesiología, p. 158.
90
Cf. S. Pié-Ninot, Eclesiología, p. 160.
91
Cf. J. Ratzinger, «L’ecclesiologia del Vaticano II», in Id., Iglesia, ecumenismo y
política, p. 20-21.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Antonio Luiz Catelan Ferreira
paulina da Igreja, como foi já indicado. Foi utilizado pelos Pais92, entre
os quais até se chegou a definir a Igreja por ele93. É também presente em
documentos do magistério, como por exemplo, o catecismo do Concílio
de Trento94 e na Liturgia, que com ele exprime o aspecto segundo o qual
a Igreja, feita por homens, necessita da contínua ajuda divina95. A exegese, após atribuí-lo exclusivamente ao Israel do AT, reconhece a esta
noção seu conteúdo eclesiológico96 e conhece a partir dela um grande
desenvolvimento97. No início da sistematização eclesiológica a partir
dessa categoria, a dimensão sacramental se tornou importante para ligar
a realidade visível de povo à sua condição religiosa expressa pela especificação «de Deus»98. Não se reconheceu a esta noção a capacidade de
exprimir sozinha e por si mesma a natureza da Igreja99. Ligado à grande
capacidade de explicitar a dimensão histórica da Igreja, esta noção encontra seu maior risco na possibilidade de se limitar a ela e ao que a ela
92
Cf. Um importante estudo do tema é a tese doutoral de J. Ratzinger, de 1954 (Volk und
Haus Gottes in Augustins Lehre von der Kirche). A conclusão é não ser ele um conceito
objetivo da Igreja, mas «se torna conceito de Igreja só através de um processo de
transposição espiritual […] em um procedimento tipológico. […]» (J. Ratzinger,
«Presentazione all’edizione italiana», in Id., Popolo e casa di Dio in sant’Agostino,
Milano 20052, XII).
93
«Que é a Igreja católica senão o povo consagrado a Deus e espalhado por toda a
terra?» (Fausto de Riez, Tract. de Symbolo, apud Y. Congar, «Peut’on définir
l’Église?», p. 23.
94
«[A Igreja] é o povo fiel disperso pelo orbe terrestre» (Catecismo do Concílio de Trento,
I, X, 2), que atribui a fórmula a Sto. Agostinho.
95
Cf. A. Vonier, Le Peuple de Dieu.
96
A referência fundamental nesse campo é N.A. Dahl, Das Volks Gottes.
97
«[Povo de Deus] tornou-se, em alguns anos, uma categoria de pensamento fundamental do catolicismo de língua francesa. “Povo de Deus” significa evidentemente
uma multidão de pesssoas sobre a qual Deus reina. Assim os que fazem desta ideia
o ponto de partida de seu De Ecclesia, e que até fazem dela sua definição da Igreja, a
veem sob o signo de reino de Deus a ser realizado. […] como categoria eclesiológica,
“Povo de Deus” presta os mesmos serviços que “sociedade”, tendo uma aura menos
jurídica» (cf. Y. Congar, «Peut’on définir l’Église?», p. 24-25).
98
Um exemplo desse procedimento se encontra em M.-D. Koster, Ekklesiologie im
Werden. Em sua proposta de elaborar uma eclesiologia científica a partir da categoria
povo de Deus, utiliza a categoria sacramento para indicar a referencia mútua existente
entre o exterior e o interior da Igreja. Assim ela encontra nos caracteres sacramentais
seus fulcros organizacionais.
99
A. Oepeke, Das neue Gottesvolk, Gütersloh 1950, discutindo a relação entre povo
de Deus e corpo de Cristo, afirma que a noção de povo de Deus por muitos motivos
conduz à noção de corpo de Cristo, mas o inverso não se dá. (cf. 25-26). Nessa fase,
a conclusão de Y. Congar é que «Não se pode definir a Igreja do Novo Testamento
como Povo de Deus senão acrescentando imediatamente “e Corpo de Cristo”» (Y.
Congar, Sainte Église, p. 26).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
71
Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos
se refere, como as características políticas e ideológicas100. O aspecto
da comunhão se destaca na pertença do povo a Deus por um vínculo de
Aliança, que é a forma típica de comunhão entre Deus e os homens que
a Escritura reconhece, e em sua afirmação de igual dignidade e responsabilidade de todos os batizados101. Esta tornou-se uma noção fundamental
para a compreensão da eclesiologia do Concílio Vaticano II e do debate
em torno de sua recepção eclesiológica. Já presente na constituição sobre
a liturgia, particularmente no número 41, o debate sobre a LG confere
centralidade a esta noção, que se torna a mais importante nos diversos
outros documentos, influindo estruturalmente sobre eles. No schema
belgicum, de Mons. G. Philips, que se apresentava como alternativa ao
Schema De Ecclesia, dos quatro capítulos, o terceiro se intitulava «Sobre
o povo de Deus, especialmente os leigos». Por sugestão do card. J.L.
Suenens, feita no transcurso da terceira sessão, este capítulo não só foi
refeito, mas passou a versar sobre o «povo de Deus», em segundo lugar,
logo depois do «Mistério da Igreja» (cap. I), antes da «Hierarquia da
Igreja» (cap. III) e dos «Leigos» (cap. IV)102.
De modo geral, se pode dizer que a revalorização da noção eclesiológica de comunhão como categoria privilegiada para significar a Igreja
amadureceu lentamente no pensamento teológico durante o processo da
72
100
Cf. J. Ratzinger, «L’Ecclesiologia della costituzione “Lumen Gentium”», in R. Fisichella, ed., Il Concilio Vaticano II. Recezione e attualità alla luce del Giubileo,
Milano 2000, 68-69, onde, citando N. Lohfink, fala de «fogo de artifício» em torno da
expressão povo de Deus (cf. Ibid., 68); Id, «La eclesiología del Vaticano II», p. 6, 20-21.
No prólogo de 1978 à reedição de sua tese doutoral, J. Ratzinger fala de «banalização»
desse conceito na teologia pós-conciliar (Cf. J. Ratzinger, Popolo e casa di Dio
in sant’Agostino, p. xv). Cf. Ainda, Comissione Teologica Internazionale,
«Temi scelti d’ecclesiologia in occasione del XX aniversario della chiusura del concilio
Vaticano II», in Id., Documenti, 1969-2004, p. 290.
101
A Comissão Teológica Internacional destaca essa valência da expressão da seguinte
forma: «relativamente a outras, a expressão “povo de Deus” tinha a vantagem de melhor significar a realidade sacramental comum, condividida por todos os batizados, seja
como dignidade na Igreja, seja como responsabilidade no mundo; ou seja, com uma
mesma fórmula, evidenciam-se ao mesmo tempo a natureza comunitária e a dimensão
histórica da Igreja» (CTI, «Temi scelti d’ecclesiologia in occasione del XX aniversario
della chiusura del concilio Vaticano II», 3.1, in Id., Documenti, 1969-2004, p. 289).
102
«Não se tratava apenas de expor o que é comum a todos os membros da Igreja no
nível da dignidade da existência cristã, anteriormente a toda distinção de função ou
de estado de vida, o que é bom método; tratava-se de dar prioridade e primazia ao
ser cristão, com suas responsabilidades de culto, de serviço e de testemunho, face à
organização, seja de origem apostólica ou divina» (Y. Congar, Le Concile de Vatican
II. Son Église peuple de Dieu et Corps du Christ, Paris 1984, p. 109).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Antonio Luiz Catelan Ferreira
renovação da eclesiologia. É precisamente um de seus frutos103. Presente
na Escritura, a noção de comunhão é testemunhada de modo diversificado
e com ênfase diferenciada na Tradição viva da Igreja e ao longo da história
da eclesiologia. Ela se expressa no estilo de vida dos cristãos e se concretiza
em algumas instituições que a expressam privilegiadamente. Na teologia
dos Pais ela é o contexto vivo. Permanece na teologia medieval do corpo
místico e da congregatio fidelium. É eclipsada progressivamente com a
gradual ascensão do modo predominantemente jurídico de compreender
a Igreja e suas instituições, que se firmou na Idade Média. A compreensão
apologética, societária, visibilista e centrada na hierarquia, por que se caracterizava a eclesiologia moderna, como que consagra este afastamento.
Nesse longo percurso, como resposta aos desafios mais característicos, a
comunhão brota das raízes mais genuínas da fé. Aggiornamento e ressourcement são correspondentes. A antiga compreensão da comunhão dos cristãos como resultante da comunhão com Deus pela mediação sacramental
da Igreja e de suas estruturas históricas para servir a essa comunhão, se
encontra com uma forma de compreender a missão da Igreja a partir da
resposta aos desafios que lhe vêm do mundo e da cultura, o que confere
à noção de comunhão uma configuração pastoral. A tradição mais antiga
da comunhão universal das Igrejas locais se encontra com uma forma de
compreender a Igreja a partir de graus de pertença, o que dá à comunhão
uma configuração ecumênica.
Dentro desse movimento de renovação, alguns autores utilizaram a
categoria da comunhão como apta para exprimir a natureza ou a essência
da Igreja104. Próximos à metade do século XX, a encontramos presente na
obra de teólogos entre os mais representativos na metade do século XX
como H. de Lubac105 e Y. Congar106. Como tema ela está presente ainda
103
«A eclesiologia não nasce por acaso dentro do debate conciliar, nem é fruto de uma
improvisação teológica, mas se afirma lentamente como resultado da progressiva, laboriosa e significativa renovação teológica […]» (E. Scognamiglio, «L’Ecclesiologia di
comunione nella teologia post-conciliare», Miscellanea Francescana 98 [1998] p. 726).
104
Cf. Y. M.-J. Congar, «Concept de communion», in Sainte Église, p. 37-44.
105
Quando se trata das principais obras de eclesiologia do século XX na perspectiva da
comunhão, é comum serem citadas H. de Lubac, Catholicisme (Paris 1938) e
Id., Méditations sur l’Église (Paris 1953).
106
Cf. Y. Congar, «Notes sur les mots “confession”, “Eglise”, et “communion”», Irénikon
23 (1950), p. 3-36.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
73
Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos
na obra do ecumenista M.-J. le Guillou107 e na investigação histórica de
L. Hertling108.
Nesse período que precede imediatamente o Concílio Vaticano
II, destaca-se, nesta linha, J. Hamer, cuja obra fundamental é publicada
em setembro de 1962, mês imediatamente precedente ao da abertura do
Concílio109. Nessa obra, a comunhão é proposta como categoria eclesiológica, como noção capaz de exprimir a Igreja de modo abrangente: sua
natureza e as relações que nela são características; como expressão apta
a significar seja os elementos interiores, seja os elementos exteriores,
apresentados em uma perspectiva unitária. Ele assume a comunhão como
característica fundamental de sua concepção de Igreja.
A continuidade da discussão eclesiológica, após o Concílio, reconhece a unidade profunda existente entre as diversas noções110. Não
se pode deixar de observar, porém, a significativa conflitividade que se
dá no encontro delas, especialmente nas diferentes propostas a respeito
de qual delas devia ser considerada prioritária em vista da compreensão
global predominante da Igreja111. No Vaticano I, o confronto se deu entre
as noções de sociedade e de corpo místico. Com o avanço da reflexão,
embora nos manuais permanecesse predominante a noção de sociedade,
na produção teológica do início do século XX em geral predominava a de
corpo místico. Na década de quarenta desse século, já a noção de povo de
Deus como categoria eclesiológica básica ia se fortalecendo. Em geral,
isto se dava de modo sereno, mas o conflito não foi ausente112. Nesse
107
Este autor aprofundou a noção de comunhão em M.-J. le Guillou, Mission et unité,
les exigences de la communion, 2 vol., Paris 1960.
108
L. Hertling, Communio und Primat. L. Hertling não faz um estudo sistemático de
eclesiologia, mas da concepção de comunhão na Igreja Antiga.
109
J. Hamer, L’Église est une communion. Paris, 1962.
110
111
Entre as obras que tratam da questão da hermenêutica do Concílio Vaticano II, para
citar algumas mais representativas dentre a extensa bibliografia: G. Alberigo – J.P.
Jossua, ed., Il Vaticano II e la Chiesa, Brescia 1985; R. Latourelle, ed., Vaticano
II. Bilancio e prospettive venticinque anni dopo, Assisi 1987; G. Routhier, Le Défi
de la communion, une relecture de Vatican II, Montréal 1994; R. Fisichella, ed., Il
concilio Vaticano II. Recezione e attualità alla luce del Giubileo, Milano 2000; A. Marchetto, Il concilio ecumenico Vaticano II. Contrapunto per la sua storia, Vaticano
2005; Ch. Théobald, La réception du concile Vatican II, vol. I: Accéder à la source,
Paris, Vaticano 2005.
112
74
Cf. J. Hamer, L’Église est une communion, p. 50, 66, 70.
K. Pelz, Der Christ als Christus, (manuscrito) 1939, em que chegava a identificar os
cristãos com Cristo, que foi incluído no Index librorum prohibitorum (30.10.1940) (cf.
Acta Apostolicae Sedis, 32 [1940] p. 502, e 33 [1940] p. 24); M. Kassiepe, Irrwege
und Umwege im Frömmigkeitsleben der Gegenwart, Kevelaer 1939, que denuncia
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Antonio Luiz Catelan Ferreira
contexto, o magistério assumiu corpo místico como definição da Igreja,
na encíclica Mystici Corporis. A partir daí, a noção de povo de Deus começa a se fortalecer, e nos debates em aula conciliar, durante o Vaticano
II, as alternativas que se apresentam se situam entre Corpo místico de
Cristo e Povo de Deus. Mas já a noção de comunhão surgia com força,
porém ainda pouco aprofundada, vai gozar de uma grande preferência
nas discussões hermenêuticas sobre a eclesiologia do Concílio.
5 As contribuições mais relevantes do movimento
de renovação eclesiológica para a eclesiologia
do Concílio Vaticano II
Tomando em consideração apenas os temas mais destacados do
movimento de renovação da eclesiologia, podemos indicar alguns dos
seus importantes avanços que serão decisivos para a compreensão da
eclesiologia conciliar.
Os estudos bíblicos salientam as dimensões vital e escatológica da
Igreja. Os estudos patrísticos e escolásticos ajudam a enfocar de modo
renovado os elementos visíveis da Igreja a partir de seu mistério, e sobretudo a predominância do ofício de santificar da hierarquia para além
de sua autoridade jurídica. Assim se atinge o aprofundamento espiritual
e a ampliação comunitária, apanágios do movimento de renovação da
eclesiologia.
O centro dos estudos eclesiológicos é ocupado pelo tema da natureza da Igreja ou de sua essência113. Com tal preocupação se aprofunda seu
aspecto cristológico. Uma maior clareza a respeito da relação entre Igreja
e Espírito Santo114, sua alma, permite uma compreensão mais profunda das
erros em torno da noção de corpo de Cristo; M.D. Koster, que em conflito com esta
noção propõe a de povo de Deus; e Mons. C. Gröber, que denuncia a situação de
confusão doutrinal e apela a Roma (cf. E.D.C. Lialine, «Une étappe en ecclésiologie», Irénikon 19 [1946] p. 127).
113
Cf. S. Jáki, Les tendences nouvelles, 205. F. Pilgram, dez anos antes do Vaticano
I, colocou claramente a questão da natureza da Igreja e a indicou como sendo a
comunhão: «[…] o princípio, ou, para usar uma expressão da escolástica, a forma
substancial da Igreja é a comunhão» (F. Pilgram, Physiologie de l’Église, p. 16).
114
Uma grande influência em vista do desenvolvimento pneumatológico na eclesiologia
foi a encíclica «Divinum Illud» (09.05.1897), de Leão XIII. Ela situa o mistério da Igreja
com relação às missões divinas e afirma ser o Espírito Santo o princípio vivificante
da Igreja.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
75
Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos
funções hierárquicas e do lugar dos leigos na vida e na missão eclesial115.
Esta consciência renovada se manifesta em uma nova compreensão do
laicato e de sua pertença constitucional à Igreja, a partir do Batismo e
da Crisma e de sua atuação organizada por meio da Ação Católica e da
participação ativa na liturgia116. Afirma-se, assim, uma compreensão da
Igreja como realidade viva, dinâmica e caracterizada por suas relações
múltiplas. Deste modo se reage para superar o estilo da eclesiologia da
sociedade perfeita, dirigindo os esforços no sentido da afirmação do primado do mistério da Igreja e de sua relação com os elementos visíveis,
que se fundamentam nos elementos espirituais. A renovação está, portanto,
associada a valores comunitários na vida da Igreja.
Outra característica marcante que se evidencia na renovação
eclesiológica é a unidade da Igreja. Ela se encontra na convergência dos
elementos mistérico e comunitário. Trata-se de um modo diferente daquele sob o qual o tema era entendido a partir da acentuação jurídica que
recebia na perspectiva da sociedade perfeita. O equilíbrio gerado pelos
dois elementos antes mencionados possibilita uma compreensão mais
articulada da unidade. Fundamentalmente, ela é um dom, gerado pela
presença do Espírito Santo em cada um e em todos os fiéis. Essa unidade
se projeta para fora das estruturas eclesiais, como diálogo ecumênico e
relação com os não cristãos. As outras notas da Igreja recebem também
uma orientação nova. A catolicidade numérica é englobada e subordinada
à catolicidade da fé e da resposta aos anseios humanos, que se encontra
em Cristo. A santidade não é atributo de alguns ou de uma elite, mas
vocação universal, enfocada a partir da paternidade de Deus, de modo a
implicar o dever de se reformar continuamente. A apostolicidade não é
uma qualidade da hierarquia somente, mas o modo como toda a Igreja,
pelos apóstolos, professa a fé e participa da missão de Cristo.
O aspecto sacramental da Igreja é redescoberto. Em sua pesquisa,
S. Jáki117 mostra que o grande inspirador dessa idéia é K. Adam, ao indicar com precisão que a Igreja, sendo uma unidade interpessoal, em seu
aspecto comunitário, sociológico, é como um sinal ou sacramento, que
perpetua e torna eficazmente presente o mistério de Cristo. Nesse enfoque
76
115
A afirmação clara do sacerdócio comum dos fiéis e o da corresponsabilidade pelo
cumprimento da missão da Igreja são consequências dessa renovada consciência.
116
Cf. Abbaye du mont-César, La participation active des fidèles au culte (travaux
de la XVIe semaine liturgique belge de langue française), Louvain 1933.
117
A primeira edição, em 1885 é publicada por Palamé; a segunda, atualizada, é publicada
em 1907, pela Maison de la Bonne Presse, de Paris.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Antonio Luiz Catelan Ferreira
a reflexão sobre a hierarquia vai encontrando o justo lugar. Não é uma
estrutura de poder, meramente sociológica. É um elemento essencial da
Igreja, ligado a seu mistério, fundado no seu caráter pneumatológico. A
partir daí se redescobre a consistência teológica da Igreja local, que, ao
longo do segundo milênio não fora contemplada suficientemente. A obra
pioneira de Dom A. Géa, L’Église et sa divine constitution, é celebrada
pioneira, ao tratar do tema depois de mais de mil anos de silêncio118.
O problema da salvação dos não cristãos é pensado a partir da
compreensão dos graus de pertença à Igreja, cuja mediação é necessária
na salvação de todos, em vista do que muito contribui a noção de povo de
Deus e o enfoque sacramental da Igreja119. Este modo de enfocar a questão
não encontra muito apoio na noção de corpo de Cristo, enquanto a outra
noção, a de povo de Deus, vai oferecer clarificações mais significativas,
permitindo articular mais satisfatoriamente os elementos em questão120.
O aspecto escatológico é recuperado junto com a dimensão mistérica. Trata-se da composição do equilíbrio da Igreja em suas dimensões
terrestre e celeste. A noção de corpo de Cristo é tendente a um certo triunfalismo e a uma identificação com o corpo do Ressuscitado. O equilíbrio
lhe vem da consideração da historicidade da Igreja e do caráter ainda
inconcluso da realização das promessas, possibilitado pela noção de
povo de Deus. Ao interior desse aspecto, surge um tema que será muito
fecundo para a teologia, a relação entre Maria e a Igreja121.
Conclusão
Este grande período aqui estudado tem fases bastante diferentes entre si. Mas tem também, do ponto de vista da eclesiologia, um
claro fio condutor: o compromisso com a renovação da Igreja e de sua
abordagem teológica. Na grande variedade de ideias, dois movimentos
são concomitantes: a ampliação da compreensão da Igreja e a melhor
articulação de seus elementos. De variados modos, isto se percebe ao
longo de todo o período.
118
S. Jáki, Les tendences nouvelles, 203-259.
119
Cf. A panorâmica geral que apresenta S. Jáki: «Recherches systématiques sur
l’Église», in Id., Les tendences nouvelles, p. 203-259.
120
Um exemplo da articulação possibilitada pela noção de Povo de Deus se encontra
no segundo capítulo da Lumen Gentium, números 13-16.
121
Cf. Ch. Journet, «La Vierge est au coeur de l’Eglise», Nova et Vetera 25 (1950) p.
39-95.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
77
Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos
Os anseios mais profundos de renovação a que responde o percurso
da eclesiologia nesse período são a superação da insistência prioritária na
visibilidade da Igreja, na desigualdade entre seus membros, na sua compreensão jurídica e no seu afastamento do mundo. A isso o movimento
responde com a integração do aspecto místico da Igreja, da igualdade
fundamental dos cristãos, da dimensão vivencial e da natureza pastoral
da missão da Igreja. É o que se designa como ressourcement que, em
profundidade, corresponde ao aggiornamento.
O movimento de ampliação vem inicialmente pela gradual recuperação da noção de corpo de Cristo. Ela responde à sensibilidade
pelo elemento vital e comunitário. Insiste sobre a dimensão espiritual
da Igreja e da ligação entre os fiéis. Quando se trata da questão de qual
noção deva ser tomada como ponto de partida da compreensão da Igreja, seu encontro, e às vezes confronto, é com a noção de sociedade. Do
Vaticano I à Mystici corporis o esforço da teologia e do magistério gira
em torno da correta articulação dessas duas noções e dos elementos que
elas respectivamente destacam.
Redescoberta em um contexto cultural diverso, a partir de uma
nova situação em que a eclesiologia gozava já dos benefícios de estudos
mais numerosos e profundos, pouco antes dessa Encíclica, a noção de
povo de Deus é proposta, tanto na teologia católica quanto na protestante, como a que melhor responderia a este desafio, e com vantagens
adicionais. A eclesiologia goza de uma síntese mais amadurecida entre
os elementos espirituais e históricos. A articulação entre as categorias
bíblicas de corpo de Cristo e de povo de Deus mostra-se mais capaz
de fazer frente aos elementos jurídicos ainda muito preponderantes na
noção eclesiológica de sociedade. O contexto eclesial valoriza mais a
participação e a responsabilidade de todos os fiéis na vida e na missão
da Igreja, ao que essa noção responde bem. Mas os estudos históricos e
exegéticos revelam que ela precisa ser integrada com a noção de corpo
de Cristo para exprimir a natureza da Igreja.
O aprofundamento dos estudos bíblicos e patrísticos, e a reflexão
da teologia dogmática sobre os dados por eles obtidos, destacam cada
vez mais a nota da unidade da Igreja, já muito salientada desde o início
desse período. As noções de koinonia e communio, que caracterizam
a compreensão da Igreja no NT e na teologia dos Pais, mostram cada
vez mais sua capacidade de exprimir a natureza da Igreja e de articular
78
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Antonio Luiz Catelan Ferreira
coerentemente seus vários elementos. E ainda se mostram capazes de
integrar muitos dos aspectos destacados por outras noções.
Essas noções importam sobretudo pela enorme quantidade de
questões específicas que elas iluminam e permitem sistematizar. A relação entre a Igreja universal e a Igreja local; entre o ministério petrino
e o ministério episcopal; a colegialidade episcopal e os órgãos em que
se visibiliza o afeto colegial, como o sínodo dos bispos, as conferências
episcopais, os conselhos diocesanos e paroquiais; as relações da Igreja
com as outras Igrejas e comunidades cristãs, com o judaísmo e com as
outras religiões, com o mundo e a cultura. Estas, para citar algumas entre
as mais importantes, são aprofundadas em seu significado e propostas
de modo renovado à vida eclesial em sua concretude.
Nada disso foi feito apenas durante o Concílio. Há uma história
longa e pormenorizada de estudos e aprofundamentos. Os debates da
aula conciliar refletem o percurso dessas ideias no movimento de renovação da eclesiologia. A eclesiologia do Concílio Vaticano II recebe
contribuições decisivas desses desenvolvimentos. Mas, por um lado,
contribuirá de modo também decisivo: tirar as consequências teológicas
e estruturais que as fontes da reflexão fornecem e colaborar para fixá-las
na consciência eclesial. Situar o Concílio no movimento vivo das ideias
que o precederam é decisivo para interpretar sua eclesiologia e, sobretudo,
para prosseguir sua recepção e aplicação.
Endereço do Autor:
SE/Sul – Quadra 801 – Conj. B
CEP 70200-014 Brasília, DF
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
79
Resumo: O artigo aborda dois dos aspectos da reforma litúrgica protagonizada
pelo Concílio: 1) A liturgia como momento histórico da salvação, em cinco dimensões: 1. O conceito de história. 2. A história da salvação. 3. Liturgia, celebração
da história da salvação. 4. Liturgia, celebração do mistério pascal. 5. A liturgia
como ação ritual. 2) Liturgia, exercício do sacerdócio de Cristo, Cabeça e membros, sob três aspectos: 1. O verdadeiro culto no Corpo de Cristo. 2. Do Corpo
de Cristo ao Corpo de Cristo-Igreja. 3. O sacerdócio comum dos fiéis.
O autor deseja colaborar para o aprofundamento do tema na esperança de
que possamos vivenciar, na ação litúrgica, um inesquecível encontro com
Deus-Trindade, no qual o ser humano entra na intimidade com as Pessoas
divinas, segundo a ação particular que cada uma delas realiza na história da
salvação.
Abstract: The article focuses on two aspects of the liturgical reform as proposed
by the II Vatican Council; A. the Liturgy is considered as an historical event in
the history of salvation, which lays stress on Five dimensions: 1º the concept of
history; 2º the history of salvation; 3º Liturgy and the privileged moment which
makes present Christ the Savior as the protagonist of the history of salvation;
4º Liturgy as the outstanding means by which the faithful can express in their
lives the paschal mystery; 5º Liturgy as a ritual action by which the faithful
derive the true Christian spirit. B. Liturgy is most important in order to manifest
the priesthood of Christ as head of the faith-community in three aspects: 1. the
true nature of the adoration rendered to the Body of Christ; 2. from the Body of
Christ towards the Church as his Body; 3. the common priesthood of the laity.
The author intents to undertake a careful investigation into the elements which
are pertinent to an active participation of the Christian people in the Triune God
so as to nurture a warm and living love for the divine Persons who are directly
involved in a particularly effective way in the history of salvation.
A Liturgia no Concílio Vaticano II
Valter Maurício Goedert*
* Pe. Valter M. Goedert é presbítero da Arquidiocese de Florianópolis, Doutor em Liturgia
e professor na Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC. Diretor da Escola
Diaconal da Arquidiocese desde 1982.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012, p. 81-94.
A Liturgia no Concílio Vaticano II
Introdução
Celebrando os cinquenta anos do início do Concílio Vaticano II, a
Igreja retoma, com novo ardor e com renovado entusiasmo, uma reflexão
sistemática sobre os textos e os ensinamentos conciliares. Creio ser momento
oportuno para redescobrir as riquezas ali contidas, mas, acima de tudo, ocasião para aprofundar temas essenciais à vida da Igreja, por vezes abordados e
transmitidos de modo inadequado, a partir de visão superficial, sem a devida
profundidade. Tem-se a impressão de que, em muitos segmentos da vida da
Igreja, a renovação desejada pelo Concílio se ateve ao exterior, ao epidérmico,
e não incorporou a compreensão do verdadeiro Mistério da Igreja.
Sente-se, em vários setores da vida eclesial, de um lado, uma
decepção difusa por não termos conseguido, como era de se desejar,
renovação mais consistente, mais duradoura, mais efetiva. Por outro
lado, vivemos momento de impasse. Houve avanços significativos, mas
também fortes resistências ao novo momento eclesial, inaugurado pelo
Concílio. Essas reações não só persistem em nossos dias, como são responsáveis pelo processo de volta ao passado, de retorno à tradição do
Concílio de Trento, gerando perplexidade e incertezas.
Os temas principais, abordados pelo Vaticano II, já haviam sido
cuidadosamente preparados e aprofundados pelo Movimento Litúrgico
na primeira metade do século XX e, em boa parte, assumidos pelo Papa
Pio XII na Encíclica Mediator Dei, promulgada aos 20 de novembro de
1947. A temática foi retomada e amplamente examinada pelo Concílio
na Constituição Sacrosanctum Concilium.
Concretamente, abordarei dois dos aspectos da reforma litúrgica
protagonizada pelo Concílio:
I – A liturgia como momento histórico da salvação
Neste contexto, atenho-me a cinco dimensões: 1. O conceito de
história. 2. A história da salvação. 3. Liturgia, celebração da história da
salvação. 4. Liturgia, celebração do mistério pascal. 5. A liturgia como
ação ritual.
II – Liturgia, exercício do sacerdócio de Cristo, Cabeça e membros
Proponho os seguintes pontos: 1. O verdadeiro culto no Corpo de
Cristo. 2. Do Corpo de Cristo ao Corpo de Cristo-Igreja. 3. O sacerdócio
comum dos fiéis.
82
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Valter Maurício Goedert
Desejo colaborar para o aprofundamento do tema na esperança
de que possamos vivenciar, na ação litúrgica, um inesquecível encontro
com Deus-Trindade, no qual o ser humano entra na intimidade com as
Pessoas divinas, segundo a ação particular que cada uma delas realiza
na história da salvação.1
I – A liturgia, momento histórico da salvação
1 O conceito de história
A história humana é o lugar e o meio da salvação, uma vez que
nela Deus se revela e age. A história humana está repleta das maravilhas
do Senhor. “Louvemos, todos, o nome do Senhor, porque só o seu nome
é excelso. Sua majestade transcende a terra e o céu” (Sl 146,13). O ser
humano acolhe a salvação não fora da história, mas na história. A salvação, portanto, não significa evasão da história, mas um modo peculiar
de assumi-la. Nela dá-se a revelação de Deus.
Uma história simultaneamente linear, porque parte de um único
ponto: Deus Criador; uma história unitária em que uma fase conduz
necessariamente a outra; uma história marcada por forte dimensão escatológica: todas as fases tendem para uma consumação, um fim único,
num contínuo processo ontológico absolutamente necessário, e que tem
como protagonistas Deus, os anjos, e os homens. As etapas que constituem essa história sagrada coincidem com a história bíblica: o tempo
das promessas, o tempo do cumprimento e da plenitude e o tempo da
instauração definitiva do Reino de Deus.
2 A história da salvação
Em oposição ao evento mítico, encontra-se o acontecimento
histórico. Jesus Cristo está no começo, no centro e no fim da história;
nele se realiza e se modifica definitivamente a condição humana. Ele é
“o desígnio salvador de Deus, o mistério oculto desde a eternidade em
Deus, que tudo criou” (Ef 3,9). O mistério guardado em segredo durante
séculos (Rm 16,25), a sabedoria misteriosa e secreta que Deus predestinou antes de existir o tempo (1Cor 2,7), manifestado aos seus santos
1
Cf. CHUPUNGCO, A. J. Nozione di Liturgia, in CHUPUNGCO, A. J. Scientia Liturgica,
Vol. I, Piemme, 1998, p. 21.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
83
A Liturgia no Concílio Vaticano II
e aos gentios, Cristo, a esperança da glória (Cl 1,26-27). Ele realiza
plenamente a vontade de Deus (Ef 1,9).
A revelação do mistério escondido em Deus através de uma sucessão de eventos salvíficos que, de modos e em tempos diferentes indicam
sua realização já existente na eternidade de Deus, preparado no seio das
nações pelo Espírito do Senhor, particularmente em Israel, encontra em
Cristo plena realização (SC 6). “Sua humanidade, na unidade da pessoa
do Verbo, foi o instrumento da nossa salvação. Pelo que, em Cristo,
ocorreu a perfeita satisfação de nossa reconciliação e nos foi comunicada
a plenitude do culto divino” (SC 5). Dessa forma, Deus foi plenamente
glorificado e a humanidade foi inteiramente restaurada. Morrendo, Jesus
destruiu nossa morte e, ressuscitando, recuperou nossa vida.
Por força dessa centralidade, Cristo é Deus que revela e o Deus
revelado; revela o mistério e é o próprio mistério; é o caminho da revelação e a própria revelação; é causa e autor da revelação; o Deus que fala
e o Deus do qual se fala; Cristo é a plenitude da revelação e a resposta
perfeita que a humanidade dá à revelação. Nele culmina a revelação como
ação, como economia, como mensagem e como encontro.2
Encontramos a realidade do mistério na cultura greco-romana. O
mysterion determinava o culto prestado aos deuses, cujo reconhecimento
era reservado aos que o praticavam. Eram regidos pela lei do arcano,
do segredo. Na religião cristã o mistério designa a pessoa, a ação e a
mensagem de Jesus Cristo. Deus, desde toda a eternidade, o constituiu
Cabeça de toda a criatura. A história sagrada se divide em antes e depois
de Cristo. Antes dele foi uma etapa de preparação; depois dele, uma
continuidade de sua pessoa e missão, através da aliança Cristo-Igreja (Ef
5,32). Paulo faz referência ainda ao mistério do Evangelho (Ef 6,19),
ao mistério da fé (1Tm 3,9), e ao mistério da piedade (1Tm 2,16). No
tempo que transcorre entre a ascensão e a segunda vinda de Cristo, ele
comunica seu mistério salvífico aos homens mediante sua Igreja.
3 Liturgia, celebração da história da salvação
Tanto na religião natural como na revelada existem sinais que estão
em relação com momentos ou intervenções divinas na história humana.
Além da intervenção divina, constituem elementos de diálogo entre Deus
2
84
Cf. LATOURELLE, R. Teologia da Revelação, São Paulo, Paulinas, 1972, pp. 483-485.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Valter Maurício Goedert
e os seres humanos. O sinal manifesta não só o poder, mas também o
amor salvífico de Deus. “Esse diálogo acontece, todavia, numa linha
histórica no sentido de que os sinais não são produto de invenção, mas
são ambientados no tempo e no espaço e têm determinadas características
(temporalidade e espacialidade dos sinais); O sinal serve, por isso, para
historicizar a intervenção divina.3
“Compreender que toda a história sagrada é mistério de Cristo, que
nessa história anterior a ele tudo tende a ele, mais precisamente à sua
morte e ressurreição, e que depois dele tudo dele deriva; compreender
que depois de sua morte e ressurreição não se deve esperar nada de
radicalmente novo, mas que se vai apenas reproduzir nas criaturas,
até o final dos tempos, o mistério do Filho de Deus encarnado, morto
e ressuscitado, contanto que essas participem e se saciem na sua plenitude; compreender tudo isto é essencial para adentrar no mundo da
liturgia”.4
Por conseguinte, a afirmação solene do Concílio: “Realmente,
em tão grandiosa obra, pela qual Deus é perfeitamente glorificado e os
homens santificados, Cristo sempre associa a si a Igreja, sua Esposa
diletíssima, que invoca seu Senhor e por Ele presta culto ao eterno Pai.
Com razão, pois, a liturgia é tida como o exercício do múnus sacerdotal de Jesus Cristo, no qual, mediante sinais sensíveis, é significada e,
de modo peculiar a cada sinal, realizada a santificação do homem; e é
exercido o culto público integral pelo Corpo Místico de Cristo, Cabeça
e membros” (SC 7).
A presença de Cristo na liturgia abre a reflexão teológica do
número 07 do documento conciliar: “Cristo está sempre presente na
sua Igreja, sobretudo nas ações litúrgicas”. Em seguida, descreve: na
pessoa do ministro; na celebração eucarística; nos demais sacramentos;
na palavra; no irmão, na Igreja reunida (SC 7). Todas estas presenças
são reais, ainda que se aplique à Eucaristia o termo real por excelência.5
Entre a presença real de Jesus na Eucaristia e as outras presenças reais
não existe diferença quando à presença de Cristo e à realidade dessa
presença; existe diferença no que se refere ao modo como essas diversas
presenças são reais.
3
Cf. MARSILI, S. Sinais do Mistério de Cristo, São Paulo, Paulinas, 2010, pp. 73-74.
4
Cf. VAGAGGINI, C. O Sentido Teológico da Liturgia, São Paulo, Loyola, 2009, p. 36.
5
Cf. Paulo VI, Mysterium Fidei, 41.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
85
A Liturgia no Concílio Vaticano II
A liturgia é, pois, toda orientada para a história da salvação, que
é o mistério de Cristo em seus tempos, ritos e sinais. Cristo é o sinalrealidade; o Antigo Testamento, sinal profético; o tempo da Igreja, sinal
da continuação efetiva do tempo de Cristo. “É um evento real, acontecido
na história, mas é único: todos os outros eventos da história acontecem
uma vez e depois passam, engolidos pelo passado. O mistério pascal
de Cristo, ao contrário, não pode ficar somente no passado, já que, por
sua morte, destruiu a morte, e tudo o que Cristo é, fez e sofreu por nós
homens participa da eternidade divina e, por isso, abraça todos os tempos
e neles se mantém presente. O evento da cruz e ressurreição permanece
e atrai tudo para a vida” (CIC 1085).
4 Liturgia, celebração do mistério pascal
A redenção dos homens tem início no momento da encarnação
do Verbo e se completa no momento da morte-ressurreição-ascensão.
Este único e grande evento salvífico encontra-se no centro da história
da salvação e, portanto, no coração da liturgia cristã. A Páscoa de Israel
é prefiguração, anúncio, preparação e antecipação da Páscoa definitiva
de Cristo e dos cristãos, celebrada na liturgia da Igreja, até que ele venha
e faça novas todas as coisas (Ap 21,5). Em Cristo, a humanidade entrou
verdadeiramente naquela libertação e salvação que Deus, desde toda a
eternidade, pensava e queria para todos os homens. Não mais uma Páscoa
de promessa, mas sua plena realização.6
Em Israel, o evento pascal transfere-se para o rito no contexto da
Ceia pascal e dos sacrifícios no Templo. A Sacrosanctum Concilium, ao
falar da realização do mistério pascal de Cristo, através de sinais sensíveis
rituais, refere-se à liturgia: Cristo enviou os apóstolos a anunciarem a
salvação através do anúncio da palavra, da fração do pão, da comunhão
fraterna e da fidelidade aos ensinamentos dos apóstolos. A vivência sacramental constitui elemento central da liturgia. Os sacramentos de Cristo,
celebrados pela Igreja, não são, portanto, ritos vazios. Pelo contrário:
são sinais eficazes (palavras, gestos) da realidade pascal da verdadeira
salvação operada por Cristo. “A realização desta salvação torna-se eficaz
para os homens no momento em que Cristo será glorificado, isto é, no
6
86
Cf. MARSILI, S. Liturgia, Momento histórico da salvação, São Paulo, Paulinas, 1987,
p. 118.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Valter Maurício Goedert
momento, que por ser aquele último e conclusivo da complexa salvação
pascal, por antonomásia e por excelência se denomina Páscoa”.7
O rito, porém, por si só, não abrange a totalidade do mistério de
Cristo. “O rito, um dos elementos centrais da liturgia, não é tudo. Dentro
ou através de uma ação litúrgica se encontra o mistério e a vida, por detrás
do que aparece se encontra o ser, no significante ou formas externas se
manifestam o conteúdo e o sentido interno”.8 É obra de Deus e do homem. O âmbito mais significativo do encontro e do diálogo entre Deus
e o homem, na comunidade e através da comunidade. A ação ritual não
constitui somente o exercício de um direito ou dever; é uma experiência
de comunhão, não só uma experiência pública ou privada; um tempo
festivo que nos foi doado, não apenas um tempo livre ou dedicado ao
trabalho; fonte e cume e não só uma função e um meio.9
Por detrás dessa eficácia dos sinais litúrgicos de instituição divina
está especialmente a doutrina do opus operatum. As ações litúrgicas
são ações de Cristo em sua Igreja. Segundo Odo Casel, na ação cúltica
sacramental torna-se objetivamente presente não somente o efeito das
ações histórico-salvíficas de Cristo, especialmente da paixão, ou seja,
torna-se objetivamente presente não só a graça, mas também a mesma
ação redentora, naquilo que tem de essencial, na sua substância.10 Em
relação aos sinais litúrgicos de instituição humana, temos, sobretudo,
o ex opere operantis ecclesiae, que está relacionado à dignidade moral,
ao mérito e à santidade de vida de quem recebe esses ritos e de quem
os preside.
5 A liturgia como ação ritual
A liturgia não se resume, pois, a um conjunto de ritos. É igualmente
falso afirmar que a liturgia cristã, para ser autenticamente tal, deve excluir qualquer forma de rito. O ritualismo, que dá valor exagerado ao rito
ou que o torna vazio, este sim, deve ser excluído. O rito, em si, traduz
aquela exigência natural do homem de servir‑se de sinais, palavras e
gestos para exprimir os próprios sentimentos e atitudes interiores, sob
7
Cf. Ibidem, p. 121.
8
Cf. BOROBIO, D. Celebrar para viver, São Paulo, Loyola, 2009, p. 17.
9
Cf. GRILLO, A. Liturgia, momento histórico da salvação na SC e nos demais documentos do Concílio, Exposição no Seminário Nacional de Liturgia, Itaici, SP, 2012.
10
Cf. VAGAGGINI, C. Ibidem, p. 112.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
87
A Liturgia no Concílio Vaticano II
o plano da relação, tanto humana, quanto divina. Os sinais litúrgicos
expressam, portanto, o relacionamento que o ser humano procura estabelecer com Deus.
A relação existente entre Sagrada Escritura e liturgia faz entender
que o rito assume outra conotação, própria da religião revelada e, em
particular, do cristianismo, e que consiste no ser sinal daquela realidade
especial e divina que é Cristo. Cristo, de fato, é o sinal dado por Deus (Jo
6,28). Em dependência desse sinal sacramental que é Cristo, é preciso
entender, igualmente, os sinais rituais do Novo Testamento. São sinais
objetivamente reais, no sentido de que atuam a mesma realidade do
acontecimento que refletem.
Por esse motivo, a liturgia se distingue de qualquer outra forma
de culto existente nas outras religiões naturais. Há uma presença da
ação divina sob a forma ritual. A liturgia não é um culto qualquer, mas
único, porque nela o culto realiza a sua verdadeira natureza. A liturgia
cristã constitui um regime de sinais que, inserindo no mistério de Cristo
cada um dos seres humanos, faz deles adoradores em espírito e verdade.
A liturgia não é, antes de tudo, ação pela qual os homens se unem a
Deus, mas é, em primeiro lugar, ação pela qual Deus, em Cristo, vem
ao encontro dos homens.
II – Liturgia, exercício do sacerdócio de Cristo,
Cabeça e membros
1 O verdadeiro culto no Corpo de Cristo
Ao expulsar os vendilhões do Templo, Jesus se apresenta como
o verdadeiro Templo de Deus: em seu Corpo, morto e ressuscitado, se
oferecerá o único e autêntico culto agradável ao Pai. A comunidade cristã
primitiva, refletindo sobre o sinal do templo anunciado por Cristo (Jo
2,21), para a qual o Corpo de Jesus é o templo de Deus, adquirirá logo
plena consciência de que Deus não pode habitar num templo feito por
mãos humanas (At 7,48).
Os cristãos, pela sua união com Cristo, vivificado pelo Espírito
(1Cor 15,45), tornaram-se, também eles, espírito no seu Corpo (1Cor
16-17); transformam-se, assim, em templo espiritual como o corpo humano de Cristo. Edificados sobre Cristo, pedra angular rejeitada pelos
88
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Valter Maurício Goedert
construtores (Lc 20,17), os cristãos oferecem seus corpos como vítima
viva, santa e agradável a Deus, como seu culto espiritual (1Pd 2,5).
“Cristo Senhor, Pontífice tomado dentre os homens (Hb 5,1-5),
fez do novo povo um reino de sacerdotes para o Pai (Ap 1,6). Pois os
batizados, pela regeneração e unção do Espírito Santo são consagrados
como casa espiritual e sacerdócio santo, para que, por todas as obras do
homem cristão, ofereçam sacrifícios espirituais e anunciem os poderes
daquele que das trevas os chamou à sua admirável luz” (LG 10). Os
fiéis são, pois, delegados ao culto da religião cristã. Participando do sacrifício eucarístico, fonte e ápice de toda a vida cristã, oferecem a Deus
a Vítima Divina e com ela a si mesmos (LG 11). Por isso, o Concílio
insiste em que os fiéis participem das ações litúrgicas consciente, piedosa
e ativamente, e aprendam a oferecer a si próprios oferecendo a hóstia
imaculada (SC 48).
Liturgia é o culto da Igreja. A Encíclica Mediator Dei, de Pio XII,
já definia a liturgia como ação sacerdotal de Cristo continuada pela
Igreja, culto do Corpo Místico (MD 17). A Sacrosanctum Concilium
afirma que “as ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações
da Igreja, que é o sacramento da unidade, isto é, o povo santo, unido e
ordenado sob a orientação dos bispos” (SC 26). Essas ações pertencem
a todo o Corpo da Igreja, manifestam-no e o afetam. Cabe à hierarquia
coordenar, animar, promover e orientar a ação litúrgica como agente particular dessa mesma ação. A liturgia, pela qual “se exerce a obra da nossa
redenção, constitui o modo mais excelente para que os fiéis exprimam
em suas vidas e aos outros manifestem o mistério de Cristo e a genuína
natureza da verdadeira Igreja” (SC 2). Os fiéis, no entanto, ainda não são
considerados sujeitos da liturgia. Não está ainda suficientemente clara a
noção de Sacerdócio dos Fiéis e o próprio conceito é ainda prevalentemente exterior. Ou seja: a liturgia manifesta sua realidade, seu valor, pelo
fato de ser ação do sacerdócio hierárquico externo e visível e não pelo
fato de ser ação dos fiéis, membros de Cristo Sacerdote. Por conseguinte,
a liturgia é ainda dominada excessivamente pelo aspecto ritual exterior
e é vista quase que exclusivamente como ação da hierarquia.
2 Do Corpo de Cristo ao Corpo de Cristo-Igreja
Cristo institui a sua Igreja (Mt 16,18). Edificada com pedras
vivas, é estabelecida como um sacerdócio santo para oferecer vítimas
espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo, e sobre ele se constrói
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
89
A Liturgia no Concílio Vaticano II
(1Pd 2,5). A Igreja é uma comunidade não só em nível sociológico, mas,
sobretudo, cultual. Em Cristo, o povo de Deus do Novo Testamento é
constituído uma raça escolhida, um sacerdócio régio, uma nação santa,
um povo adquirido para Deus (1Pd 2, 9).
“A Igreja, pois, ainda que no seu conteúdo real se identifique com o povo
de Deus, contudo vem a indicar, de maneira direta, o momento cultual
dele, ou seja, a Igreja existe no tempo e no lugar em que o povo de Deus
responde à chamada, que o reúne de fato e em concreto em torno de
Deus (culto). Enfim, a Igreja é a projeção teológico-cultual do povo de
Deus, considerado como reino de sacerdotes (Ex 19,6), como sacerdotes
de Deus (Is 61,6), isto é, como povo destinado ao culto de Deus até ser
essencialmente por isso qualificado”.11
A Encíclica Mediator Dei define a liturgia como adoração pública
que o nosso Redentor, como Cabeça da Igreja, oferece ao Pai; como a
adoração que a comunidade dos fiéis rende ao seu Fundador e, através
dele, ao Pai Celeste. Portanto, uma adoração prestada pelo Corpo
Místico de Cristo, Cabeça e membros (n.17). A Constituição Conciliar
insere elementos mais precisos; inclui o conceito fundamental da presença de Cristo no Sacrifício da Missa, nos sacramentos, na palavra e
no ofício divino: “Presente está pela sua força nos sacramentos, de tal
forma que, quando alguém batiza, é Cristo mesmo que batiza. Presente
está pela sua palavra, pois é ele mesmo que fala, quando se leem as
Sagradas Escrituras na igreja. Está presente finalmente, quando a Igreja
ora e salmodia”. A finalidade última da liturgia é a perfeita glorificação
de Deus e a santificação daqueles que a celebram (SC 7).
Por outro lado, tornar-se Corpo de Cristo não deve ser entendido
unicamente em nível moral. O ser humano foi criado à imagem de Cristo
(Cl 1,15) e, por isso, somente pode realizar-se em Cristo (Ef 1,25; 4,15).
Isso acontece exatamente através do processo sacramental, particularmente pela participação na Eucaristia. Pelo sacramento do pão eucarístico,
ao mesmo tempo é representada e se realiza a unidade dos fiéis que
constituem um só corpo em Cristo (1Cor 10,17). A Igreja faz-se Corpo
de Cristo, porque se une à oferta sacramental do Senhor. O Batismo nos
insere no Corpo de Cristo e a Eucaristia nos identifica com esse mesmo
Corpo. Afirma o Papa João Paulo II: “A incorporação em Cristo, realizada pelo Batismo, renova-se e consolida-se continuamente através da
11
90
Cf. MARSILI, S. Ibidem, pp. 134-135.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Valter Maurício Goedert
participação no sacrifício eucarístico, sobretudo na sua forma plena que
é a comunhão sacramental. Podemos dizer não só que cada um de nós
recebe Cristo, mas também que Cristo recebe cada um de nós”.12
A liturgia é ação do Cristo todo (Christus totus). A Igreja celeste
não cessa de clamar dia e noite: “Santo, Santo, Santo, é o Senhor, Deus
Todo-poderoso, Aquele-que-era, Aquele-que-é e Aquele-que-vem” (Ap
4,8). A multidão dos salvos o adoram ao redor do trono (Ap 7,11). Os
eleitos cantam um cântico novo (Ap 14,3). Na liturgia terrena, antegozando, participamos da liturgia celeste, que se celebra na cidade santa
de Jerusalém, para a qual peregrinamos (SC 8).
A Igreja é, de fato, o momento em que acontece a assembleia
cristã, e isso ocorre precisamente na assembleia da Igreja local. A Igreja
se define, portanto, como comunidade litúrgica, antes de tudo ao nível
local (IGMR 59; 74). A Igreja local realiza o evento da Igreja universal.
A celebração eucarística tem como caráter essencial o fato de ser determinada localmente, não podendo ser realizada senão em uma comunidade
reunida em um lugar determinado. A Igreja é destinada, por sua própria
natureza, a concretizar‑se e a atuar‑se em um lugar determinado. Sendo
a Eucaristia uma celebração local, ela não só acontece na Igreja, mas a
própria Igreja se torna um corpo visível, no sentido mais pleno do termo,
somente na celebração local do sacrifício.
3 O sacerdócio comum dos fiéis
Em relação ao sacerdócio comum dos fiéis, a Encíclica Mediator
Dei deu um passo importante, embora ainda inicial: “É necessário, pois,
veneráveis irmãos, que todos os fiéis tenham por seu principal dever e suma
dignidade participar do santo sacrifício eucarístico, não com assistência
passiva, negligente e distraída, mas com tal empenho e fervor que os ponha
em contato íntimo com o sumo sacerdote, como diz o Apóstolo: ‘Tende
em vós os mesmos sentimentos que Jesus Cristo experimentou’ (Fl 2,5),
oferecendo com ele e por ele, santificando-se com ele” (MD 73). Tudo isso
consta da fé verdadeira; mas deve-se, além disso, afirmar que também os
fiéis oferecem a vítima divina, sob um aspecto diverso (MD 77).
Ao estabelecer a relação entre o sacerdócio comum e o ministerial,
a Encíclica enfatiza: “Dessa oblação propriamente dita os fiéis participam
12
Cf. JOÃO PAULO II, Ecclesia De Eucharistia, 22.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
91
A Liturgia no Concílio Vaticano II
do modo que lhes é possível e por um duplo motivo: porque oferecem
o sacrifício não somente pelas mãos do sacerdote, mas, de certo modo
ainda, junto com ele; e ainda porque, com essa participação, também a
oferta feita pelo povo pertence ao culto litúrgico. Que os fiéis oferecem
o sacrifício, por meio do sacerdote, é claro, pois o ministro do altar age
na pessoa de Cristo enquanto Cabeça, que oferece em nome de todos os
membros; pelo que, em bom direito, se diz que toda a Igreja, por meio
de Cristo, realiza a oblação da vítima” (MD 83).
O Concílio Vaticano II aborda o tema com maior abrangência. O
povo cristão, enquanto sacerdócio régio, indica o direito e o dever de
participar da liturgia em virtude do Batismo (SC 14). Toda a Igreja constitui uma comunidade sacerdotal, porque todos os discípulos de Cristo,
estabelecidos como o povo de Deus, foram constituídos sacerdotes (LG
3). Os cristãos formam um sacerdócio régio, enquanto participam da
missão à qual Jesus foi consagrado (ungido) pelo Espírito Santo na sua
humanidade (PO 2).
O sacerdócio está, pois, presente em cada um dos fiéis cristãos
em virtude de sua inserção em Cristo pelo Batismo. Contudo, se lhes
aplica o título de povo sacerdotal e de comunidade sacerdotal somente
quando estão formados e realizados como povo sacerdotal, em virtude do
dinamismo litúrgico, por aquele que, como cabeça sacerdotal (ministro
ordenado), preside essa comunidade sacerdotal.
Trata-se de um sacerdócio comum, universal, de todos os cristãos
(os cristãos leigos, os religiosos e o clero). Todos formam o único povo
de Deus. O sacerdócio comum e o ministerial ordenam-se um ao outro,
embora se diferenciem não apenas por grau, mas por natureza (LG 10).
Essa diferença essencial provém do sacramento da Ordem e de seu caráter. Por isso, afirma-se que o ministro ordenado age in persona Christi e
não in persona fidelium. O ministério ordenado não substitui o sacerdócio
dos fiéis, mas o preside ministerialmente na celebração eucarística.
O sacrifício dos cristãos consiste em se tornarem um só corpo em
Cristo. Este é o ato de culto que cada cristão, consagrado pelo Batismo,
oferece continuamente a Deus com a santidade de vida. Este ato de
culto plenifica-se na liturgia sacramental, particularmente na Eucaristia. “Os fiéis, na missa, em virtude do seu caráter batismal, oferecem
um sacrifício em regime cristão, e assim exercitam um sacerdócio em
regime cristão que, com respeito aos conceitos acima definidos, é tal não
equivocamente, nem só metaforicamente, mas realmente. Isso consiste
92
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Valter Maurício Goedert
propriamente no fato de que oferecem como seu próprio sacrifício, incluindo, portanto, aí a oferta de si mesmos até a destruição da própria
vida, se assim aprouver a Deus, o sacrifício que Cristo oferece por meio
do sacerdócio hierárquico”.13
Visando a essa melhor participação, a Introdução Geral sobre o
Missal Romano indica vários meios: o sacerdócio régio dos fiéis, cujo sacrifício espiritual atinge plena realização pelo ministério dos presbíteros,
em união com o sacrifício de Cristo, único Mediador (n. 5); a comunhão
sob duas espécies como oportunidade para se compreender melhor o
mistério de que os fiéis participam (n. 14); a aproximação dos fiéis da
sagrada liturgia (n. 15). Visando a essa participação plena, é necessário
investir na formação e na educação dos fiéis.
Conclusão
Como se pode constatar, a reforma litúrgica desejada e promovida
pelo Concílio não se ateve a uma mudança de ritos, de cerimônias, ainda
que essas devessem concorrer para uma participação consciente, piedosa
(SC 48). Além de verdadeira inculturação, a Constituição teve como
objetivo aproximar os fiéis da celebração, fazendo com que a liturgia
fosse, de fato, fonte e cume de toda a vida cristã (SC 10).
Educar, pois, para a participação plena da celebração da comunidade eclesial é tarefa permanente da pastoral litúrgica. Também não é
suficiente propor uma série de conteúdos teológico-litúrgicos, embora
isso seja necessário. É preciso cultivar autêntica espiritualidade litúrgica.
A celebração viva e genuína da ação litúrgica conduz à plena realização
da vida espiritual. Aí reside o ápice, a fonte, o contato mais profundo
com o Senhor Jesus. Quanto mais transformador for esse encontro, mais
a presença de Jesus será percebida nos demais atos de piedade, no empenho pela evangelização libertadora, no compromisso transformante da
sociedade, no discipulado e na ação missionária da Igreja, e nas diversas
atividades da vida diária. Na medida em que o cristão se saciar dessa
fonte (Jo 7,37-38), ele mesmo irá se identificando com Cristo, porque
estará bebendo de seu Espírito (Jo 7,39).
Celebrando o Mistério de Cristo, a liturgia torna presente a ação
de Deus em todos os povos, lugares e tempos (Ef 1,3-14). O fundamento
13
Cf. VAGAGGINI, C., Ibidem, p. 152.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
93
A Liturgia no Concílio Vaticano II
objetivo de toda a vida espiritual está na celebração, no memorial real, na
atualização, na representação do Mistério de Jesus Cristo em sua morte
e ressurreição, em vista da edificação da Igreja, para a santificação dos
fiéis e de todo o povo de Deus.
A espiritualidade litúrgica se alimenta da celebração, mas não
termina com ela. Não se pode falar em espiritualidade se não se faz a
água viva chegar às diversas circunstâncias da vida diária, às diferentes
atividades, aos mais variados ambientes, lugares e situações, e a todas as
pessoas. Não se trata de atitude intimista, de espiritualismo indefinido,
inócuo. A espiritualidade que não impulsiona para a vida, para a ação,
para o compromisso libertador e integral do ser humano, da sociedade e
do mundo secular, não é coerente e se esvazia em si mesma.
A celebração viva e genuína da ação litúrgica conduz à plena
realização da vida espiritual. É preciso encontrar o Senhor, conviver
com Ele, e tornar-se seu discípulo. Na estrada de Emaús, os discípulos
sentiram a força arrebatadora do Senhor ressuscitado. Somente Aquele
que tem palavras de vida eterna (Jo 6,68) é capaz de retomar a vida dos
discípulos desiludidos e de impulsioná-los para uma missão tão gigantesca quanto a fé que os animava. Ele mesmo irá à sua frente abrindo os
caminhos da evangelização na força do Seu Espírito (Jo 7,39).
Endereço do Autor:
Faculdade Católica de Santa Catarina – Facasc – Itesc
Caixa Postal 5041
88040-970 Florianópolis, SC
94
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Resumo: Depois de lembrar que a Dei Verbum foi recentemente comentada
pela Exortação Apostólica póssinodal Verbum Domini, de Bento XVI, o autor desenvolve seu tema em cinco pontos: 1. A qualificação dogmática da Constituição
Dei Verbum; 2. A relação entre Bíblia e Teologia; 3. A verdade da Escritura, ou
seja, sua “inerrância”; 4. A interpretação da Bíblia “no Espírito”; 5. A possibilidade de alargamento da Dei Verbum no Nostra Aetate e sua conseqüência no
diálogo interreligioso.
Abstract: After remembering that Dei Verbum was recently commentated by
the post-synodal Apostolic Exhortation Verbum Domini, the author unfolds his
subject in five points: 1. The dogmatic qualification of Dei Verbum; 2. The mutual
relation between Bible and Theology; 3. The truth of the Sacred Scripture, or the
question of its “inerrancy”; 4. The interpretation ob the Bible “in the Spirit”; 5. The
possibility of enlargement of Dei Verbum in Nostra Aetate and its consequences
for the interreligious dialogue.
A Palavra de Deus no Vaticano II
Ney Brasil Pereira*
* O autor, presbítero da arquidiocese de Florianópolis, é Mestre em Ciências Bíblicas
e professor no ITESC desde 1973. Também, desde 2001, é membro da Pontifícia
Comissão Bíblica.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012, p. 95-106.
A Palavra de Deus no Vaticano II
Introdução
Começo, citando a perspicaz observação de Johan Konings, em
artigo recente1: “A Exortação pós-sinodal Verbum Domini, do papa Bento
XVI, parece uma “releitura” da Dei Verbum do Vaticano II, pois é fruto
de um sínodo pós-conciliar, convocado para ver a “recepção” e efeito
do Concílio e para aprofundar a sua interpretação no novo contexto que
se criou. Como o Concílio quis dialogar com a Modernidade, o pósConcílio tem de dialogar com a Pós-Modernidade. Continua Konings:
“Um dos acentos do sínodo de 2008 e da Verbum Domini é a dimensão
hermenêutica da leitura bíblica (VD 57-97). A Dei Verbum do concílio
Vaticano II, embora mencionando essa dimensão (DV 12-13), considerou
sobretudo o estudo histórico-crítico da Bíblia (na linha, aliás, da Divino
Afflante Spiritu, de Pio XII, que lhe abrira o caminho vinte anos antes).
Já o sínodo de 2008 e a Verbum Domini, no contexto da proliferação
do ceticismo por um lado e do fundamentalismo por outro, insistem
mais no sentido aberto do texto bíblico, que chamaremos de ‘sentido
hermenêutico’: ‘Que é que a Bíblia me/nos diz? Qual a mensagem que
apresenta hoje?’”2.
Focalizando agora o título deste artigo, “A Palavra de Deus no
Vaticano II”, advirto que não é minha atenção entendê-lo de forma abrangente, p. ex., abordando o uso dos textos bíblicos nas quatro Constituições
Dogmáticas, nos nove Decretos e nas três Declarações, que totalizam
os 16 documentos do Concílio. Nada, portanto, de estatística dos textos
ou de avaliação da argumentação bíblica dos Padres Conciliares. Vou,
de fato, cingir-me a algumas reflexões sobre a própria “Dei Verbum”,
aproveitando um estudo do meu venerado professor de Escritos Joaninos
no Pontífício Instituto Bíblico, o Pe. Ignace De la Potterie SJ, na obra
coletiva “Exegese Cristã Hoje”, publicada na Itália em 19913, portanto,
20 anos atrás, mas relativamente atual. Digo “relativamente”, porque,
em nossa época frenética, 20 anos é bastante tempo. Título do estudo:
“O Concílio Vaticano II e a Bíblia”4. O autor adverte que sua intenção é
96
1
KONINGS, J., “A Verbum Domini e a hermenêutica bíblica”, in “Encontros Teológicos”,
ITESC, Florianópolis, n. 59 (2-11/2), pp. 27-42.
2
Id. Ibid., p. 28.
3
VV.AA. “L’Esegesi Cristiana oggi”, Ed. Piemme, Casale Monferrato, 1991, traduzida
em português com o título “Exegese Cristã Hoje”, ed. Vozes, Petrópolis, 1996, 326 p.
Nessa obra, DE LA POTTERIE contribui com dois estudos: “O Concílio Vaticano e a
Bíblia” (pp. 23-52), e “A Exegese Bíblica – ciência da fé” (pp. 141-187).
4
Edição brasileira cit., pp. 23-52.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Ney Brasil Pereira
sobretudo “precisar quanto a DV contém de verdadeiramente novo em
relação aos documentos precedentes do Magistério sobre a Escritura5”,
especialmente em relação à libertadora encíclica de Pio XII, a Divino
Afflante Spiritu, de 1943. A propósito, citando o teólogo italiano Dianich,
De La Potterie se afirma “convicto de que, definitivamente, o coração
do Concílio está nisto: abordou diretamente o problema da interpretação da fé... isto é, recolocou em movimento o processo da exigência
hermenêutica.”6 Quer dizer, a questão não é mais saber se é legítimo
para os católicos fazer uso da exegese científica (foi a luta dos anos 40),
e sim, como fazer para que a exegese científica, na teologia, não deixe
de ser também teológica, isto é, uma ciência da fé. O problema de fundo
é o da interpretação, da hermenêutica, do significado da Escritura para o
homem e a mulher de hoje, para os crentes, para a Igreja. Essa insistência
na ligação entre Escritura e Igreja é, segundo De La Potterie, o “valor
principal” da Dei Verbum.
1 Uma constituição dogmática
Vejamos, pois, a Dei Verbum. Nesse documento conciliar, a Bíblia
não é tratada por si mesma, mas está inserida num contexto diretamente
teológico e doutrinal: o da revelação divina. O próprio título, extraído
do início da primeira frase do documento, não indica diretamente a Palavra de Deus escrita, mas a divina Revelação, manifestada e plenificada
em Cristo. Assim, após um primeiro capítulo sobre a Revelação, e um
segundo sobre a sua transmissão, por meio da Tradição e da Escritura,
a Constituição começa a falar da Bíblia nos quatro capítulos seguintes,
mas agora numa perspectiva mais ampla, a da história da salvação7.
Pelo contrário, nas três grandes encíclicas bíblicas precedentes, desde a
Providentíssimus, de Leão XIII (1893), até a Divino Afflante, de Pio XII
(1943), a Bíblia era considerada em si mesma, ou ainda na sua relação
dialética com os erros da época.
Assim, na Providentissimus, Leão XIII dedicava apenas poucas
frases, na introdução, ao tema da revelação (EB 81), mas indicava desde o início seu objetivo preciso, o de recomendar o estudo da Sagrada
Escritura sobretudo diante do perigo maior na época, o racionalismo
5
DE LA POTTERIE, ibid., p. 24.
6
Id., ibid., p. 25.
7
Id., ibid., p. 27.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
97
A Palavra de Deus no Vaticano II
(EB 100); a tonalidade do conjunto era de tom apologético. A Spiritus
Paráclitus, de Bento XV, 1920, no 15º centenário da morte de São Jerônimo, foi uma encíclica de caráter mais pastoral, porém mantinha a
orientação apologética e polêmica com respeito à posição daqueles que
desejavam, de qualquer modo, limitar a inerrância bíblica (EB 453-455).
Esse problema retornou no Vaticano II, sobretudo no início, levantando
ásperas discussões. A Divino Afflante, de Pio XII, 1943, é uma encíclica
“audaciosa”, pelo fato de que não apenas permite, mas oficialmente
prescreve aos exegetas católicos utilizarem os métodos críticos no estudo da Bíblia, especialmente distinguindo os gêneros literários, além
de os advertir contra “a interpretação que alguns denominam espiritual
e mística” (EB 552), advertência que retornou na Humani Generis, de
1950 (DS 3888). Essa advertência, aliás, parece estranha hoje, quando
se pensa na revalorização da exegese dos Pais da Igreja pelos estudos,
p.ex. de De Lubac e Daniélou, mas na época suscitou controvérsias em
relação aos “sentidos” da Escritura. Ainda quanto à Divino Afflante, De
la Potterie observa que, “salvo o título, a Encíclica praticamente não
fala do Espírito Santo e do que implica a inspiração para a interpretação
da Bíblia”8. Não se encontra ainda aquele amplo horizonte teológico
que deveria abrir-se com o Vaticano II, um Concílio que não quis mais
enfrentar os erros do tempo, mas que procurou apresentar positivamente
a fé católica, na ótica da história da salvação.
Outra diferença entre a Dei Verbum e os documentos precedentes
está na maneira nova de considerar as relações entre Magistério e Escritura. Anteriormente, o Magistério apresentava-se como guia e juiz,
de certo modo absoluto, em matéria de interpretação da Bíblia, como
o demonstram, p. ex., as intervenções da Pontifícia Comissão Bíblica,
criada por Leão XIII quase no final do seu pontificado, em 1902. A
Dei Verbum mantém esse ensinamento, evidentemente, mas com outro
espírito. Reconhece, p.ex., no final do n. 12, o “dever dos exegetas de
esforçar-se para expor com maior aprofundamento o sentido da Sagrada
Escritura, a fim de que, por seu trabalho como que preparatório – notese essa expressão – amadureça o julgamento da Igreja. Pois todas estas
coisas que concernem à maneira de interpretar a Escritura, estão sujeitas
em última instância ao juízo da Igreja, que exerce o divino mandato e
ministério de guardar e interpretar a palavra de Deus.” Notar, ainda, sobre
o Magistério, o que se diz no n. 10: “Tal Magistério evidentemente não
8
98
Id., ibid. p. 29.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Ney Brasil Pereira
está acima da Palavra de Deus mas a seu serviço, não ensinando senão
o que foi transmitido, oralmente ou por escrito.” No final desse mesmo
n. 10, fala-se do “tripé” sobre o qual se apóia a fé da Igreja: “Segundo
o sapientíssimo plano divino, a Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura
e o Magistério da Igreja estão de tal maneira entrelaçados e unidos, que
um não tem consistência sem os outros e que, juntos, cada qual a seu
modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente
para a salvação”.
2 Bíblia e Teologia
Do último capítulo da Dei Verbum, o cap. VI, escreveu Lohfink
que “é o capítulo mais importante e transcendental para o futuro”9. Nesse capitulo, o n. 24 utiliza três imagens para expressar a relação entre a
Palavra de Deus, escrita e oral, e a Teologia: a Palavra deve ser o “fundamento”, a “força perene de renovação” e, enfim, como que “a alma” da
Teologia. A imagem do “fundamento” vem, naturalmente, de São Paulo,
que, na primeira carta aos Coríntios, identifica esse “fundamento” com o
próprio Cristo (1Cor 3,10-11), chave e síntese de toda a Escritura. Esse
princípio, comenta De la Potterie, “opõe-se a certo tipo de dogmatismo
pós-tridentino, que se havia afastado muito do texto bíblico”10. Quanto à
“força de renovação” que é a Escritura em relação à Teologia, a imagem
bíblica que ocorre é a da “água viva”, água corrente, segundo Jo 4,10-14.
A propósito, Clemente Alexandrino, falando da vida dos filhos de Deus,
diz que ela permanece sempre jovem exatamente por causa da água viva
da Verdade11, cuja fonte se encontra na Escritura e, concretamente, no
próprio Cristo, de cujo seio vão jorrar rios de água viva (cf Jo 7,38).
Quanto à expressão, de certo modo revolucionária, do estudo da
Escritura como a “alma da Teologia”, nós já a encontramos na Providentíssimus Deus, de Leão XIII (EB 114), que provavelmente a retoma
do prefácio da Introdução do jesuíta alemão, Pe. R. Cornely, ao seu
monumental “Cursus Scripturae Sacrae”, de 188512. Por sua vez, Pe.
Cornely informa que a expressão vem da “Ratio Studiorum” dos Jesuítas,
publicada em 1687, na época da crítica bíblica de Spinoza (†1677) e do
9
LOHFINK, N., in “Exégesis Bíblica y Teologia”, p. 18.
10
11
DE LA POTTERIE, op.cit., p. 33.
Cf. CLEMENTE ALEXANDRINO, Pedagog. I, 5, 20 (SC 70,147).
12
Cf. DE LA POTTERIE, op.cit., p. 35.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
99
A Palavra de Deus no Vaticano II
católico Richard Simon (†1712), expressão retomada pela Companhia
de Jesus em 1883, isto é, dois anos antes da “Introdução” do Pe. Cornely. Da Providentissimus, a expressão passou para a Spiritus Paraclitus
e, finalmente para dois documentos do Vaticano II: a Constituição Dei
Verbum (n. 24) e o Decreto Optatam Totius (n. 16).
Ainda quanto à expressão “alma da Teologia”, não se trata apenas
de reconhecer a preeminência da Escritura, p. ex., fazendo rigorosamente
a exegese científica. Como o observa De La Potterie13, o convite a “perscrutar, à luz da fé, toda a verdade encerrada no mistério de Cristo”, vale
não só para os teólogos como também para os exegetas. Somente nessa
condição, a interpretação exegética da Bíblia poderá tornar-se a “alma
da Teologia”, porque exegeta e teólogo possuem, em última análise, o
mesmo objeto formal: investigar a verdade de Cristo. Em suma, “porque
exegese bíblica é a interpretação da Escritura, o exegeta verdadeiro não
é somente um filólogo ou historiador, mas deverá também ser um crente e
um teólogo”14. De fato, o verdadeiro objeto da interpretação da Escritura
pertence ao nível do mistério da fé; não é, portanto, apenas o âmbito da
pesquisa histórico-crítica. Esse, aliás, foi o sentido da intervenção escrita
de Bento XVI no Sínodo de 2008, alertando para o seguinte: “Somente
quando se observam os dois níveis metodológicos, o histórico-crítico e
o teológico, é que se pode falar de uma exegese teológica, isto é, uma
exegese adequada à Escritura”15.
3 A Verdade da Escritura
Afinal, qual é a “verdade” da Escritura? Após discussões acirradas,
que convergiram no consenso apenas na última sessão do Concílio, os
Padres conciliares chegaram a esta formulação: “... os livros da Escritura
ensinam com certeza, fielmente e sem erro, a verdade que Deus, em vista
de nossa salvação, quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras” (DV
n. 11). São conhecidas as cinco etapas da elaboração do texto, desde
o esquema I, pré-conciliar, até o esquema V, que foi promulgado em
18 de novembro de 1965. Todo o acento do esquema I se concentrava
na inerrância absoluta da Bíblia, em qualquer matéria, religiosa ou
profana, o que foi rejeitado na primeira Sessão, em 1962. O esquema
100
13
Id., ibid., p. 38.
14
Id., ibid.
15
BENTO XVI, Exortação Pós-sinodal “Verbum Domini” (2010), n. 34.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Ney Brasil Pereira
III expressou-se de forma positiva sobre o conteúdo da Escritura: “Os
livros bíblicos... contêm a verdade sem nenhum erro”. Mas o esquema
IV deu a virada decisiva quando acrescentou o adjetivo “salutar”: “Os
livros bíblicos... contêm sem erro a verdade salutar.” Essa expressão
fora usada pelo concílio de Trento (DS 1501) e já constava no n. 7 da
própria Dei Verbum, na passagem que fala do Evangelho como “fonte
de toda verdade salutar e de toda regra moral”. Apesar disso, a fórmula
provocou fortes reações, como observa De La Potterie: “Não se corria
o risco talvez de introduzir novamente a teoria perigosa que restringia
a inspiração e a inerrância somente aos assuntos religiosos e morais,
aqueles ‘relativos à salvação’?16” Para eliminar qualquer ambiguidade,
o esquema V substituiu o adjetivo “salutar” por uma proposição relativa
que menciona a intenção salvífica de Deus: trata-se, pois, da “verdade que
Deus, em vista de nossa salvação, quis fosse consignada nas Sagradas
Escrituras” (DV n. 11).
Superava-se assim a “tradição concordista do século XIX”, quase
exclusivamente dominada pelo postulado da inerrância absoluta da Bíblia,
que atribuía a ausência de erro a todas as afirmações dos autores bíblicos.
Esse postulado era devedor da noção grega e escolástica de “verdade”
como conformidade entre a palavra e a realidade: adaequatio intellectus
et rei. Também por esse motivo falava-se das “verdades” da fé no plural,
no sentido mais conceitual de enunciações dogmáticas ou equivalentes.
A propósito, na Dei Verbum, a palavra “verdade”, utilizada 13 vezes,
é encontrada sempre no singular. Redescobriu-se a noção bíblica de
“verdade” que, segundo Paulo e João, significa fundamentalmente a revelação que Deus faz do seu plano salvífico, revelação aliás concretizada
em Jesus Cristo. Ainda De la Potterie: “Nesses textos da Dei Verbum
sobre a verdade da Escritura, o Concílio libertou-se de uma concepção
estritamente apologética, para elevar-se ao nível teológico do conjunto
do documento, o da divina Revelação. A Escritura, portanto, contém a
“verdade”, não no sentido científico de que todas as suas afirmações
sejam exatas, mas porque ela nos transmite tudo quanto interessa à fé:
o desenvolvimento, na história humana, do plano divino da salvação,
ou seja, ela nos transmite a revelação. E essa revelação na história, esse
significado dos acontecimentos, é o que conta para a fé do povo de Deus.
Descobrir esse significado é, deveria ser, o objetivo da investigação dos
exegetas, como aliás se explica no n. 12 a seguir (DV n.12).
16
DE LA POTTERIE, op. cit., p. 40.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
101
A Palavra de Deus no Vaticano II
4 A interpretação da Escritura “no Espírito”
Que quer dizer a Dei Verbum quando afirma que “a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada no mesmo Espírito em que foi escrita”
(DV 12,3; cf. 2Pd 1,20-21)? De que interpretação se trata? A Dei Verbum
o expõe em dois grandes parágrafos, no n. 12, após uma introdução que
adverte sobre o “modo humano” como Deus nos fala: o primeiro, retoma, resumindo a Divino Afflante, as regras do método histórico-crítico;
o segundo, indica em que condições a exegese será teológica e eclesial:
deve ser “canônica”17, isto é, que leve em conta a totalidade do cânon, a
saber, o conteúdo e a unidade de toda a Escritura, além da Tradição viva
de toda a Igreja e a “analogia da fé” (cf Rm 12,6b). No esquema IV ainda
não constava esse inciso da “interpretação no mesmo Espírito”, incluído
só na última sessão do Concílio, no esquema V, como princípio geral de
interpretação teológica. A fonte desse inciso encontra-se na Spiritus Paraclitus (EB 469), que alude a um texto de São Jerônimo, o qual por sua
vez o havia recebido de Orígenes. A propósito, como afirma o Pe. Congar,
“na Igreja nunca se deixou de afirmar que ninguém poderá compreender
a Palavra de Deus sem aquele mesmo Espírito que a inspirou”18. De
fato, o exegeta deverá em certo sentido colocar-se em comunhão com a
fé e com a experiência espiritual do hagiógrafo. E isso porque, segundo
Gregório Magno, “as palavras de Deus não podem ser compreendidas
sem a sua sabedoria; porque, se alguém não recebeu o espírito de Deus,
não poderá de modo algum entender as palavras de Deus”19. Aliás, esse
princípio é um corolário imediato da inspiração da Escritura, na qual,
na expressão de De Lubac, “o Espírito habita”20. Como escreve Orígenes
no De Principiis, “as Escrituras foram compostas sob a ação do Espírito
de Deus; além do seu sentido óbvio, possuem um outro sentido que foge
102
17
“Canônica”, referente à exegese, é um adjetivo que aparece no documento da Pontifícia
Comissão Bíblica de 1993, sobre a interpretação da Bíblia na Igreja. Era o centenário
da encíclica Providentíssimus, de Leão XIII. Nesse documento da Comissão Bíblica,
o capítulo I trata dos “métodos e abordagens para a interpretação”. Entre as “abordagens”, a letra C dedica-se às “abordagens baseadas na Tradição”, a primeira das
quais é justamente a “abordagem canônica”, isto é, a que leva em conta a totalidade
do cânon.
18
Cf. a citação de CONGAR, com sua fonte, em DE LA POTTERIE, op. cit., p. 47.
19
Cf a citação de GREGÓRIO MAGNO, com sua fonte, também em DE LA POTTERIE,
ibid.
20
DE LUBAC, H., Histoire et Esprit. Intelligence de l’Ecriture d’après Origène, Paris,
1950, p. 296.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Ney Brasil Pereira
aos demais, pois o que está escrito é, simultaneamente, a figura de certos
mistérios e a imagem das realidades divinas”21.
Retornemos à Dei Verbum. Não padece dúvida o fato de que a
“interpretação no Espírito” está ligada ao dogma da inspiração, pois se
fala do “Espírito no qual foi escrita a Escritura”. Com as três normas
teológicas da abordagem canônica, da tradição viva da Igreja e da analogia da fé (DV 12,3), é essa “interpretação no Espírito” que nos permite
entender “o que Deus mesmo quis comunicar-nos” (DV 12,1); é ela que
nos faz descobrir “a verdade que Deus, para nossa salvação, quis fosse
consignada na Sagrada Escritura (DV 11,1); é ela, enfim, que nos faz
perceber com clareza, como os Pais da Igreja o perceberam, que Cristo
é o centro da Bíblia, como aliás o lemos no evangelho segundo João:
“Examinais as Escrituras, pensando ter nelas a vida eterna. Ora, são elas
que dão testemunho de mim” (Jo 10,39). A propósito, sirva de exemplo
o célebre texto de Hugo de São Vítor, do séc. XII: “Toda a Escritura
divina fala de Cristo, e toda a Escritura se cumpre em Cristo: afinal, é
toda ela um único livro, o livro da vida”22. Pois bem, como constatou De
Lubac, “um dos principais méritos da Dei Verbum é ter reconduzido tudo
à unidade. Unidade do Revelador e do Revelado, Jesus Cristo, ‘autor e
consumador da nossa fé’ (Hb 12,2); unidade nele dos dois Testamentos; unidade da Escritura e da Tradição, que jamais se podem separar;
unidade do Verbo, a Palavra de Deus, sob as duas formas com as quais
se faz presente entre nós, na Escritura e na Eucaristia”23.
Cito ainda DE LA POTTERIE, na conclusão do seu estudo de 20
anos atrás: “A Dei Verbum é um documento de imensa importância teológica. A ‘história da salvação’, da qual fala, não está no mesmo plano da
história profana. A Revelação, descrita no seu cap. I, situa-se na história,
mas não se identifica apenas com os eventos da história. A ‘verdade’ da
Escritura, portanto, não é a sua verdade historiográfica, mais ou menos
comprovada, mas é a verdade da salvação, encerrada no mistério do
Cristo (DV 24), aquela que poderíamos chamar de ‘verdade interior do
mistério’: é o valor de revelação que a história bíblica possui para a fé
cristã. Ora, esta ‘verdade’ da Escritura não pode ser conseguida apenas
com o método histórico-crítico; ela não pode ser compreendida a não ser
21
Cf. citação de ORÍGENES em DE LA POTTERIE, op. cit., p. 48.
22
Cf a citação de HUGO DE SÃO VÍTOR em DE LA POTTERIE, ibid., p. 50.
23
DE LUBAC, H., La Révélation Divine, Paris, 1983, p. 174, cit. em DE LA POTTERIE,
ibid., p. 50.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
103
A Palavra de Deus no Vaticano II
quando a Palavra de Deus é lida ‘no mesmo Espírito em que foi escrita’
(DV 12,3)”24. Ora, é justamente para essa percepção que a Dei Verbum
e, agora, a Verbum Domini, nos convidam.
5 Alargamento da Dei Verbum na Nostra Aetate?
Um dos muitos sinais de abertura ao mundo, no Vaticano II, foi
sem dúvida o Decreto conciliar “Nostra Aetate”, sobre as relações da
Igreja com as religiões não-cristãs. Estas, segundo o Concílio, nesse
documento, “esforçam-se de diversos modos por irem ao encontro da
inquietação do espírito humano, propondo caminhos, isto é, doutrinas
e regras de vida, como também ritos sagrados. A Igreja Católica nada
rejeita do que há de verdadeiro e santo nessas religiões (...) que, não raro,
refletem lampejos daquela Verdade que ilumina a todos os homens” (NA
2). Afirmação semelhante se encontra na Lumen Gentium: “Tudo o que
de bom e verdadeiro se encontra entre eles – os não cristãos – a Igreja
considera-o como uma “preparação evangélica”25, dada por Aquele que
ilumina todo homem, para que enfim tenha a vida” (LG 16).
Não seria lógico, então, que essa abertura se explicitasse mais
claramente em relação aos livros sagrados dessas religiões, reconhecendo
neles também a ação do Espírito Santo e, nesse sentido, o seu caráter
também ou, de certo modo, “inspirado”? Isto seria, parece-me, o “alargamento” da Dei Verbum, ao qual me referi na pergunta acima. Entretanto,
esse passo não foi dado na Nova Aetate, e justamente essa hipótese é
comentada e rejeitada na Declaração Dominus Jesus, da Congregação
para a Doutrina da Fé, de 6-8-2000, 35 anos depois da Dei Verbum26.
Cito: “Existe também quem avance a hipótese do valor inspirado dos
textos sagrados de outras religiões. Certamente deve admitir-se que
alguns elementos presentes neles são de fato instrumentos, através dos
quais, multidões de pessoas puderam, através dos séculos, e podem ainda
hoje, alimentar e manter a sua relação religiosa com Deus. (...) A tradição
da Igreja, porém, reserva o qualificativo de textos inspirados aos livros
canônicos do Antigo e do Novo testamento, enquanto inspirados pelo
Espírito Santo. Fiel a esta tradição, a Constituição Dogmática sobre a
divina Revelação do Concílio Vaticano II ensina: “Com efeito, a Santa
104
24
DE LA POTTERIE, ibid., p. 51.
25
EUSÉBIO de Cesareia, Praeparatio Evangelica 1,1.
26
Declaração assinada pelo então Cardeal Ratzinger e aprovada por João Paulo II.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Ney Brasil Pereira
Mãe Igreja, por fé apostólica, tem como sagrados e canônicos os livros
inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, porque
escritos por inspiração do Espírito Santo, têm Deus por autor e, como
tais, foram confiados à própria Igreja.” (DV 11). Tais livros “ensinam
com firmeza, com fidelidade e sem erro, a verdade que Deus, por causa
da nossa salvação, quis consignar nas Sagradas Letras” (DV 11)27.
Agora, um questionamento. Mesmo sabendo, e crendo, que a
inspiração escriturística é um carisma reservado aos livros canônicos,
isto é, reconhecidos como “inspirados”, quem somos nós, como lembrou
Pedro à comunidade de Jerusalém, ao comentar o acontecido na casa
do pagão Cornélio (At 10,34-48), quem somos nós para impor limites à
ação do Espírito? (cf. At 11,17) Nesse sentido, o “alargamento” a que me
refiro não mina, absolutamente, o dogma da Inspiração, mas reconhece,
humilde e alegremente, a sua abrangência maior, universal: O Espírito
do Senhor enche toda a terra e, abrangendo tudo, tem conhecimento
de cada som (Sb 1,7). Não é isso o que faz o inspirado Paulo, ao citar
e assumir, no Areópago de Atenas, textos de poetas gregos (At 17,28)?
E não enriqueceria essa perspectiva o diálogo interreligioso? Quanto
ao perigo de confusão terminológica, que a Declaração Dominus Jesus
quer com razão evitar, creio que não é difícil solucionar o problema,
entendendo bem o conceito de “canônico”. Só assim reconheceremos,
como Pedro, lembrado acima, que não podemos impor limites à ação do
Espírito. Este, de fato, sopra onde quer (Jo 3,8).
Conclusão
Concluindo, cito o epílogo da Dei Verbum (DV 26): “Assim,
pois, por meio da leitura e o estudo dos Livros Sagrados seja difundida
e glorificada a Palavra de Deus (2Ts 3,1), e que o tesouro da Revelação confiado à Igreja cada vez mais encha os corações dos homens [e
mulheres] do nosso tempo. Assim como a vida da Igreja se desenvolve
pela assídua participação no mistério eucarístico, assim é lícito esperar
um novo impulso de vida espiritual de uma acrescida veneração pela
Palavra de Deus, que permanece para sempre (Is 40,8; 1Pd 1,23-25).”
Esses, os votos do Concílio Vaticano II, expressos quase 50 anos atrás.
Realizaram-se? Aqui também, como para as realidades escatológicas,
respondemos: Já, e ainda não. “Já”, porque é inegável o crescimento no
27
Dominus Jesus, 8.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
105
A Palavra de Deus no Vaticano II
estudo e no amor da Palavra de Deus em nossa Igreja e em nossa pátria.
E “ainda não”, pois ainda falta muito para que o Reino de Deus, isto é,
a fraternidade humana vivida em seu nome, o maior fruto dessa Palavra,
se torne concreta realidade entre nós e no mundo. Entretanto, por todos
os esforços, por toda a pesquisa, por toda leitura orante, por tudo, seja
Deus louvado. E Ele, que inspirou os autores sagrados a escreverem a
Sua Palavra, e que inspira os exegetas bíblicos a aprofundar o seu sentido
e a comentá-la, e inspira nossos Bispos a liderarem a “animação bíblica de toda a Pastoral”28, Ele nos conceda a todos nós a graça maior de
vivê-la. Porque é na prática, na vivência da Palavra, que encontraremos
a Vida, como nos assegura o Senhor Jesus: Faze isso, e terás a vida!
(Lc 10,28).
Endereço do Autor:
E-mail: [email protected]
28
106
Título da Mensagem da CNBB em julho de 2010, por ocasião do XVI Congresso
Eucarístico Nacional em Brasília.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Resumo: Sob o enfoque da “virada popular”, que integra as dimensões da
inculturação na microestrutura dos contextos vivenciais e do aggiornamento macroestrutural à modernidade, o Autor procura tecer o fio condutor que perpassa
os 16 documentos do Vaticano II. Para essa “virada popular”, o Concílio é ponto
de partida e apelo à nossa memória, fidelidade e audácia (cf. DAp 11).
Abstract: Taking into consideration the “popular turning point” which integrates
the dimensions of the inculturation in the microstructure of the life contexts and
of the macrostructural up-to-dating to modernity, the paper looks to show the
conducting thread which bypass the 16 Documents of Vatican II. To this “popular
turning point” the Council is both point of departure and appeal to our memory,
fidelity, and boldness (cf. Ap 11).
A “virada popular”
Discipulado missionário do Brasil para o mundo secularizado
e pluricultural à luz do Vaticano II e da caminhada latinoamericana1
Paulo Suess*
*
1
Por dez anos, trabalhou na Amazônia e a partir de 1979 exerceu o cargo de Secretário
Geral do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Em 1987 fundou o Departamento
de Pós-Graduação em Missiologia, em São Paulo. Entre 2000 e 2004, era presidente
da Associação Internacional de Missiologia (IAMS). Atualmente é assessor teológico
do CIMI e professor do Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP), no cíclo
de pós-graduação de Missiologia.
Entre suas publicações: “Introdução à Teologia da Missão”, (Vozes/Abya Yala, 2007);
“Dicionário de Aparecida” (Paulus, São Paulo/Bogotá, 3. ed. 2010); “Impulsos e intervenções” (Paulus, 2012).
Palestra proferida dia 3 de julho 2012, em Palmas/TO, durante o 3º Congresso
Missionário Nacional. Para esta apresentação em Encontros Teológicos, o texto foi
ligeiramente revisado.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012, p. 107-123.
A “virada popular”
O Vaticano II iniciou uma “virada popular”, que não se completou.
Passaram-se 50 anos e essa virada parece inibida, travada, interrompida.
Seu objetivo era “continuar a obra do próprio Cristo que veio ao mundo para dar testemunho da Verdade, para salvar e não para condenar,
para servir e não para ser servido” (GS 3,2). Quais são os impulsos do
Concílio que configuram essa “virada popular” e quais os passos para
desinibi-la, hoje?
1 Aggiornamento como orientação programática
Ainda antes de iniciar o Concílio, o papa João XXIII mostrou,
simbolicamente, que a Igreja Católica precisava abrir-se ao mundo, o que
ele chamou de aggiornamento. Para um interlocutor, que o perguntou
sobre o significado desse aggiornamento, ele abriu as janelas de uma
sala e deu para entender: a Igreja precisa deixar sol e vento entrar para
ver longe e respirar fundo. O sucessor de João XXIII, Paulo VI, em sua
Carta Encíclica Ecclesiam suam (1964), menciona o “aggiornamento”
como “orientação programática” do Concílio (ES 27).
A “orientação programática” do Vaticano II, portanto, era abertura, deixar a realidade do mundo entrar na Igreja e fazer essa Igreja
entrar na realidade do mundo. E essa realidade tem várias dimensões: a
dimensão macrocultural do mundo moderno, da modernidade secularizada, e a dimensão da vida cotidiana, a microestrutura das culturas, da
convivência concreta no mundo pluricultural. Aggiornamento expressa
a vontade de construir duas pontes de mão dupla: uma entre Igreja e a
dimensão universal das conquistas da modernidade e do mundo secular,
e outra, entre Igreja e o mundo local e cultural, a vida cotidiana onde o
povo vive, se encontra e comunica.
O Concílio nomeou essas tentativas de aproximação aos povos e
ao mundo com algumas palavras balbuciantes, como “aggiornamento”
e “adaptação” (SC 37s; GS 514), “autonomia da realidade terrestre” (GS
36; 56) e da cultura, “sinais do tempo” (GS 4; 11), e “diálogo” (CD 13;
UR 4), “encarnação” e “solidariedade” (GS 32). Em nossa caminhada
teológico-pastoral latino-americana, traduzimos essas palavras como
“opção pelos pobres” e “libertação”, em Medellín (1968), “participação”,
“assunção” e “comunidades de base”, em Puebla (1979), como “inserção”
e “inculturação”, em Santo Domingo (1992) e como “missão”, “testemunho” e “serviço” de uma Igreja samaritana e advogada da justiça e
dos pobres, em Aparecida (2007). Nenhuma dessas palavras descreve
108
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Paulo Suess
a totalidade do projeto pastoral do Vaticano II, mas seu conjunto representa uma síntese daquilo que o Vaticano II queria ser: um farol da luz
de Cristo no meio do povo e do mundo.
2 Ser farol da luz de Cristo
As primeiras palavras das duas Constituições sobre a Igreja, a
Lumen gentium (“luz dos povos”) e a Gaudium et spes (“alegria e esperança”), já apontam para o programa da “virada popular”. Ser farol da luz
de Cristo para os povos e acompanhá-los, sobretudo os pobres, em suas
alegrias e tristezas, e ser, como povo de Deus, instrumento de salvação de
Jesus encarnado – eis a origem, identidade e meta dos discípulos. No ser
transparente para o mundo e no estar próximo aos crucificados na história
temos o núcleo da “virada popular” do discipulado missionário.
Quando Paulo, em Damasco, ouviu a voz do Mestre, por ele perseguido, Jesus lhe deu razões para uma vida nova: foste chamado para
voltar das trevas à luz e constituído “servo e testemunha” (At 26,16). No
início da vida do discípulo missionário há sempre uma iluminação e uma
conversão. “Voltar das trevas à luz” significa conversão, dar foco à vida,
sair da alienação, fazer discernimentos, estabelecer prioridades para que
Deus possa resplandecer na face das testemunhas e nas mãos dos servos
enviados. O Filho amado, que se submeteu às águas do Jordão, é o Filho
iluminado, despojado e enviado.
Na Igreja antiga, sobretudo entre os cristãos ortodoxos, a Festa da
Epifania foi celebrada como “Festa das luzes”, memória do batismo de
Jesus, festa da iluminação e dos iluminados pelo batismo, manifestação
da Santíssima Trindade. Para ser luz do mundo e dos povos (Lumen
gentium), Jesus submeteu-se às águas do Jordão; despojado de tudo, recebeu o batismo de João. Nesse despojamento, como nos despojamentos
do presépio e da cruz, se revela o amor trinitário de Deus e a missão de
Jesus. A Epifania é Teofania, revelação de Deus no amor que ilumina e
envia. O Filho amado é o Filho iluminado, despojado e enviado.
No batismo, a iluminação torna-se recriação do mundo, como
mostra o episódio da cura do cego de nascença. Com a colocação do
barro nos olhos do cego, Jesus reproduz, simbolicamente, a criação do
mundo novo, o fim das trevas e da cegueira naquele que renasce da água
e do Espírito Santo. O ungido com o barro é enviado para lavar-se na
piscina de Siloé e Siloé significa: “enviado”. “Vai lavar-te na piscina de
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
109
A “virada popular”
Siloé” (Jo 9,7), abre os olhos, és enviado para ser luz do mundo! Ser
enviado significa ter consciência, ser iluminado e libertado para encontrar o Caminho. Dar vista aos cegos é um sinal messiânico da salvação
definitiva (Is 29,18ss; cf. 35,5.10). Os profetas anunciaram o Messias
como luz das nações que abre os olhos dos cegos, liberta dos cárceres
os presos, e da prisão os que habitam nas trevas (Is 49,6.9). O cego de
nascença, que era mendigo, representa os discípulos missionários. Na
Conclusão do Decreto Ad gentes, os padres conciliares fazem votos que
“a claridade de Deus, que resplandece na face de Cristo Jesus, pelo Espírito Santo a todos ilumine” (AG 42,2). Quem recupera a vista ganha
mobilidade e autonomia para “iluminar todas as pessoas com a claridade
de Cristo” (LG 1), pelo anúncio e testemunho do “Evangelho do Reino
da vida” (DAp 143).
3 “Virada popular” com audácia e fidelidade
A “virada popular” do Vaticano II, essa tentativa de definir o
povo, adulto e autônomo, como sujeito da Igreja, sacudiu a instituição
e a pastoral da Igreja Católica. Uma Igreja que olhou na celebração
eucarística para a parede e falava em latim, que a sua teologia entendeu
como explicação de dogmas e que em sua pastoral estava amarrada a
padrões culturais da Europa, essa Igreja deu no Concílio uma meia volta
versus populum, que podemos chamar de “virada popular”. Ela exigiu
a passagem de um mundo pré-moderno e fundamentalista à assunção
crítica da modernidade e a passagem do monólogo salvífico ao diálogo
com outras religiões, credos e visões do mundo.
A “virada popular” despertou para a necessidade de uma nova
presença da Igreja no mundo secularizado e pluricultural. Ela precisava
estender seus braços em direção da macroestrutura da modernidade e
das microestruturas dos contextos vivenciais dos povos. Nos contextos
vivenciais, onde acontecem as lutas dos pobres pela redistribuição dos
bens, e dos outros, em busca do reconhecimento de sua alteridade, essa
“virada popular” tem o nome de “inculturação”. Na macroestrutura, que
clama por transformações sistêmicas, a “virada popular” tem o nome de
“libertação”, “participação” e “articulação”..
Como inserir a herança da fé nas culturas tradicionais e articular,
muitas vezes, na contramão do mundo secularizado? Ao definir-se como
concílio pastoral, o Vaticano II procurou responder a essa pergunta.
Procurou – através de uma metodologia indutiva – partir da realidade
110
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Paulo Suess
concreta das pessoas. À luz da fé, buscou com essa realidade estabelecer uma comunicação em linguagens contemporâneas, “porque uma
coisa é o próprio depósito da Fé ou as verdades, e outra é o modo de
enunciá-las” (GS 62,2).
A proximidade do mundo, e dos reais problemas da humanidade,
e o reconhecimento da autonomia da realidade terrestre e da pessoa são
aprendizados históricos; são buscas permanentes para escapar da conformação alienante à prosperidade material e da adaptação superficial
a modas nesse mundo, e do distanciamento desse mundo em nichos de
bem-estar espiritual.
Aparecida reconheceu a necessidade de a Igreja “repensar profundamente e relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas
circunstâncias latino-americanas e mundiais” (DAp 11). Repensar a missão no contexto do cinquentenário do Concílio Vaticano II (1962-1965)
significa aprofundar a origem e alcance da “natureza missionária” (cf.
AG 2) de todos os batizados. “Fidelidade”, nessa reconstrução, só faz
sentido se houver “audácia” na recepção, nos aggiornamentos contínuos
e na projeção do Vaticano II.
“Fidelidade” remete-nos não só às origens do cristianismo, à revelação e tradição apostólica, à relatividade e necessidade de acréscimos
históricos e culturais, que se podem configurar pontes e prisões, mas
remete-nos também ao discernimento entre tradição e tradicionalismo.
A fidelidade está ameaçada por cristalizações de um tradicionalismo
fundamentalista sem consciência histórica e pela resistência do patriarcalismo contra uma humanidade adulta e sociedade leiga, que não aceita
qualquer tipo de tutela eclesiástica.
“Audácia” é a outra componente do aggiornamento. Sem audácia
não haverá tradução, encarnação e comunicabilidade do cristianismo
em novos contextos micro e macroculturais. A urbanização, que impulsionou as transformações culturais da América Latina nestes anos pósconciliares, afetou a presença pastoral das Igrejas em todos os contextos
socioculturais. Exige-se, hoje, um discernimento audaz tanto na assunção
dos múltiplos projetos de vida, que culturas regionais representam, como
na avaliação de conquistas da modernidade que, com sua dupla face de
progresso e violência, beneficiam e ameaçam a sobrevivência da humanidade. A audácia pode ser confundida com adaptações apressadas, com
modernizações meramente técnicas, com a corrida atrás de modas e do
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
111
A “virada popular”
sempre novo, igualmente sem consciência histórica. Missas e ministros
midiáticos, copiando padrões de marketing, podem destruir o sagrado.
4 Igreja povo de Deus
O texto missiológico mais denso do Vaticano II se encontra na
Constituição Dogmática sobre a Igreja, que é mistério (LG, cap. I) e povo
de Deus (LG, cap. II), “comunidade espiritual” e “assembleia visível”.
Ambas as dimensões, a invisível e a visível, “formam uma só realidade
complexa em que se funde o elemento divino e humano” (LG 8,1). A
abordagem dessa realidade, na Lumen gentium, precede considerações
sobre a “constituição hierárquica da Igreja” (LG, cap. III). Para explicar
essa complexa relação entre mistério e povo de Deus, a Lumen gentium
estabelece uma “não medíocre analogia” com o mistério do Verbo
encarnado. Como a natureza assumida pelo Jesus histórico, o Verbo
encarnado, serve ao Verbo Divino, assim “o organismo social da Igreja
serve ao Espírito de Cristo” (LG 8,1).
Antes de estruturar-se em diferentes ministérios e serviços e antes
de debruçar-se sobre a Igreja instituição, o Concílio invocou na palavra
“mistério” sua realidade divina, sem mistificação, e no conceito “povo de
Deus” sua composição histórica e sociológica. Nos conceitos “mistério”
e “povo de Deus” se configura a “virada popular” eclesiológica.
A compreensão da Igreja como povo de Deus abre o caminho para
uma Igreja de adultos e iguais. Ainda que nessa “Igreja povo de Deus”
haja diferentes serviços, “reina, contudo, entre todos verdadeira igualdade quanto à dignidade e ação comum a todos os fiéis na edificação do
Corpo de Cristo” (LG 32,3). No interior da Igreja povo de Deus ”todos
participam do sacerdócio comum dos fiéis (LG 10,2), do “múnus profético
de Cristo” (LG 12,1; cf. AA 2,2) e do apostolado, que “é participação na
própria missão salvífica da Igreja” (LG 33,2). A dupla missão da Igreja
de levar aos homens a mensagem de Cristo e sua graça, às vezes denominada “evangelização explícita”, e de “penetrar do espírito evangélico as
realidades temporais e aperfeiçoá-las” através das obras, que devem levar
em conta “satisfazer em primeiro lugar as exigências da justiça, para que
não se dê como caridade o que já é devido a título de justiça” (AA 8,5) e
que alguns consideram “evangelização implícita”, por princípio, cabe a
todo o povo de Deus (cf. AA 5). Muitas vezes as palavras “apostolado”,
“missão” e “evangelização” se tornaram sinônimos.
112
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Paulo Suess
Tudo o que é dito sobre a “Igreja povo de Deus”, devido à igualdade fundamental que determina esse povo, vale também para os leigos,
religiosos e clérigos (LG 30). Em virtude de seu batismo e crisma, todos
os que “foram incorporados a Cristo” (LG 31,1), constituem o povo de
Deus e são chamados ao apostolado: “O apostolado dos leigos é participação na própria missão salvífica da Igreja” (LG 33,2). “Eles exercem seu
apostolado múltiplo tanto na Igreja quanto no mundo (AA 9). Todo leigo
“é ao mesmo tempo testemunha e instrumento vivo da própria missão da
Igreja” (LG 33,2). A diversidade de serviços na Igreja povo de Deus, não
significa inferioridade de uns e superioridade de outros. A universalidade
(catolicidade) desse povo, que “deve estender-se a todo o mundo e por
todos os tempos” (ibid.), é a razão de sua missionariedade permanente.
A Igreja povo de Deus é a Igreja constituída por sujeitos, não por
rebanhos. E desse ser sujeito coletivo – Igreja povo de Deus – emerge
uma responsabilidade de todos os fiéis no que se refere à fé, à verdade
interna e à divulgação desta verdade a partir do “sacerdócio comum dos
fiéis” (LG 10), que tem seu fundamento no batismo. “O conjunto dos
fiéis, ungidos que são pela unção do Santo (cf. 1Jo 2,20 e 27), não pode
enganar-se no ato de fé” (LG 12).
A infalibilidade do povo de Deus no ato de fé (in credendo) faz
parte da doutrina católica. Por isso a validade de qualquer dogma depende
da participação do povo de Deus na sua formulação, como também de
sua recepção pela comunidade dos fiéis. Se isso vale para a parte mais
íntima da Igreja, para a formulação doutrinal, vale ainda mais para a
administração da Igreja como instituição. Isso teria consequências sérias,
por exemplo, para a nomeação dos bispos, para a prática da subsidiariedade na administração da Igreja e para a participação da Igreja local
nas decisões da Igreja Romana, cuja universalidade está estreitamente
ligada à articulação com as Igrejas locais. Nem a Igreja universal nem as
Igrejas locais podem, separadamente, cumprir a sua missão de, a serviço
do Reino, construir a paz universal: “Em qualquer casa onde entrardes,
dizei primeiro: Paz seja nesta casa! E quando entrardes numa cidade,
anunciai-lhes: Está próximo o Reino de Deus” (cf. Lc 10,5.9).
Essa paz é construída em mutirão com toda a humanidade. À
construção dessa paz “são ordenados de modos diversos quer os fiéis
católicos, quer os outros crentes em Cristo, quer enfim todos os homens
em geral, chamados à salvação pela graça de Deus” (LG 13,4). Suas
“legítimas variedades” (LG 13,3) são protegidas como dons a serviço
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
113
A “virada popular”
da paz. A partir do horizonte universal da paz, sinônimo de salvação,
que antecipa a unidade, embora ainda esteja num processo de construção
histórica, o povo de Deus da Nova Aliança perdeu sua exclusividade.
A humanidade inteira, fiéis batizados e autênticos seguidores de outras
religiões e visões do mundo, “podem conseguir a salvação eterna”. Para
todos, a salvação não é direito nem privilégio; será sempre graça de Deus.
Toda a humanidade está numa caminhada de “preparação evangélica”
(LG 16) a serviço da unidade a ser historicamente construída. O que
distingue os batizados dos não batizados não é a “posse da salvação”,
mas o imperativo da missão: “Ai... de mim se eu não evangelizar!” (1
Cor 9,16; LG 17).
5 Partilhar, dialogar, encarnar (GS, DH, NA)
A teologia da missão da Lumen gentium encontra seu desdobramento prático na Constituição Pastoral Gaudium et spes. A Igreja povo
de Deus se constitui na relevância e responsabilidade de sua missão
pastoral: relevância para o mundo em transformação e responsabilidade
social pela humanidade, sobretudo pelos pobres e por aqueles que sofrem.
Pastoral e missão da Igreja não são os braços seculares de uma Igreja
em si espiritual. O que é verdadeiramente religioso é sempre profundamente humano e concreto. O Povo de Deus e a humanidade, na qual ele
se insere, prestam-se serviços mútuos. A revelação de Deus no mundo
continua: “a própria Igreja não ignora o quanto tenha recebido da história
e da evolução da humanidade” (GS 44,1).
A “virada popular”, na Gaudium et spes, se configura como proximidade dos povos, responsabilidade pela humanidade e interpelação
pelos desafios concretos: “Os povos oprimidos pela fome interpelam os
povos mais ricos. As mulheres reivindicam [...] sua paridade de direitos
[...]. Os operários e lavradores não querem somente ganhar o necessário
para a alimentação, mas também pelo trabalho cultivar sua personalidade
[...]. Agora, pela primeira vez na história humana, todos os povos já estão
convencidos de que os benefícios da cultura, realmente, podem e devem
ser estendidos a todos” (GS 9,2): “deve-se portanto reconhecer cada vez
mais a igualdade fundamental entre todos” (GS 29,1).
Povos e indivíduos, até então tutelados por outros, descobrem que
só podem progredir, material e espiritualmente, conquistando a sua autonomia: “No mundo inteiro cresce cada vez mais o senso de autonomia
e, ao mesmo tempo, de responsabilidade, que é de máxima importância
114
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Paulo Suess
para o amadurecimento espiritual e moral do gênero humano” (GS 55).
“Reconhecer legítima a autonomia” (GS 56,6) da ciência e cultura é um
pressuposto da existência e da criatividade humanas. A “autonomia das
realidades terrestres” (GS 36,2), entendida como leis e valores próprios
das diferentes sociedades, é uma exigência das diferentes culturas e um
pressuposto da missão como diálogo.
O diálogo em todas as suas dimensões – intercultural, interreligioso, ecumênico, com o ateísmo – depende “não só de uma adequada
exposição doutrinária, mas também da pureza de vida da Igreja” (GS
21,5), do “testemunho de uma fé viva e adulta” (ibid.). Para o bem da
humanidade, a Constituição Pastoral solicita uma ampla colaboração
interreligiosa: “todos os homens, crentes e não crentes, devem prestar
seu auxílio à construção adequada deste mundo” (GS 21,6), o que exige
“sincero e prudente diálogo” (ibd.). A Gaudium et spes já inclui as intenções essenciais da Declaração “Dignitatis humanae” sobre a ‘liberdade
religiosa’ (DH) e da ‘Declaração Nostra aetate sobre as relações da Igreja
com as religiões não-cristãs’ (NA).
A liberdade religiosa, na elaboração do Vaticano II, é um direito
humano e não um ato de tolerância do Estado moderno ou da própria
comunidade religiosa: “Na difusão, porém, da fé religiosa e na introdução de costumes, sempre se há de abster de qualquer tipo de ação que
possa ter sabor de coibição ou de persuasão desonesta [...]. Tal modo de
agir deve considerar-se como abuso do direito próprio e lesão do direito
alheio” (DH 4,4). A liberdade religiosa é um pressuposto do pluralismo
religioso. O pluralismo como norma reconhecida na sociedade civil e
política é um bem normatizado que pode garantir a paz social. Exige-se
do Estado moderno que cumpra sua função em equidistância aos credos
religiosos. A Declaração sobre a liberdade religiosa marca uma dimensão
da transição da cristandade para uma situação de pluralismo religioso.
A liberdade religiosa não enfraquece a religião nem suspende a missão,
mas como tal, é condição do anúncio e testemunho missionário.
Como a Lumen gentium, também a Gaudium et spes aponta para
o seguimento e a encarnação como método missionário imprescindível:
“Por Sua encarnação, o Filho de Deus uniu-Se de algum modo a todo
homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana
[...], tornou-Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo,
exceto no pecado” (GS 22,2). Por amor a nós padeceu e “nos deu o
exemplo para que sigamos os Seus passos, mas ainda abriu novo camiEncontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
115
A “virada popular”
nho” (LG 22,3). Neste caminho anunciaremos o mistério pascal, que é a
mensagem central do querigma missionário: A vida tem sentido, a morte
foi vencida. Cristo morreu e ressuscitou por todos e, por conseguinte, “o
Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de se associarem, de modo
conhecido por Deus, a este mistério pascal” (GS 22,5).
A proximidade da encarnação como seguimento de Jesus nos faz
“adaptar o Evangelho, enquanto possível, à capacidade de todos” (GS
44,2). Em suas culturas, os povos já realizam o plano de Deus e completam a criação (cf. GS 57,2) antes de entrar em contato com o Evangelho.
As diferentes culturas podem ser interpretadas como “pedagogia para o
Deus verdadeiro ou como preparação evangélica” (AG 3,1; cf. LG 16;
Evangelii nuntiandi 53). O trabalho missionário protege as culturas mais
frágeis contra a cultura hegemônica, para que os intercâmbios culturais
“não destruam a sabedoria dos antepassados e nem coloquem em perigo
a índole própria de cada povo” (GS 56,2).
As questões abertas, que o Vaticano II retomou num aggiornamento com a modernidade e na fidelidade à tradição da Igreja, podem
ser pensadas numa dimensão trinitária: o Pai envia em missão; o Filho,
que é a Palavra encarnada, é diálogo salvífico com toda a humanidade,
e o Espírito Santo, que é Deus no gesto do dom, é aquela graça que
transcende as modalidades salvíficas das quais a Igreja dispõe.
6 Enviado para o mundo pluricultural
e secularizado
O mundo secular, secularizado e pluricultural, nos ensinou a separar a religião do poder político, relativizar a monocultura ocidental e
considerar salvíficas também outras religiões. Aprendemos também que,
nesse mundo secular, algo falta e que a missão precisa tomar outro rumo.
Antes do século XVI, via de regra, não era possível não crer em Deus
ou não ter religião. Por conseguinte, os destinatários da missão eram
seguidores de outras religiões, judeus e budistas, fetichistas e pagãos. A
estes, a doutrina católica, negava a possibilidade da salvação. Francisco
Xavier, o padroeiro da missão, e Antônio Vieira, lamentavam a condenação eterna daqueles que morreram sem ter recebido o sacramento do
batismo. Sua situação era de exclusão definitiva.
Hoje, não crer em Deus é possível. No censo de 2010, segundo
dados do IBGE, 15 milhões de brasileiros se dizem sem religião. A fé
116
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Paulo Suess
em Deus não é mais algo comum, público e partilhado por todos. Fé e
religião migraram para o campo do privado, extra estatal e, muitas vezes, extra institucional. O fim da religião do Estado é algo irreversível
e, no caso do cristianismo, contribuiu para sua maior coerência com o
Evangelho.
No mundo secular, o grande divisor das águas salvíficas passa
entre crentes em Deus e não crentes, entre a comunidade macro ecumênica, à qual a Igreja Católica “concede” certo potencial salvífico, e o
grupo crescente que se declara ateu ou se diz sem religião. Se o grupo
macro ecumênico também se pode salvar, embora só indiretamente
através de Jesus Cristo, então não é mais destinatário de ação missionária como antes. O grupo prioritário são os sem religião, os ateus, os
que deixaram o cristianismo a meio caminho, aos quais se dirige hoje
a Nova Evangelização.
Na periferia do cenário religioso surgiu, ao lado dos “sem religião”
ou “pós-metafísicos” o grupo dos “pós-seculares”. O mundo pós-secular
é o mundo daqueles que estão de volta da montanha da secularização. Os
pós-seculares procuram, no mercado religioso, uma cesta básica, um jogo
de unidades curativas e lucrativas. O mundo pós-secular é o mundo dos
aborrecidos com o mundo adulto, racional e autônomo. Esse grupo reintegra elementos compensatórios e alienantes das religiões em sua vida,
inflados com elementos soltos da pré e pós-modernidade. Na religião dos
pós-seculares encontra-se a religião do cangaceiro com a religiosidade do
traficante de drogas, que antes do assalto a um Banco invoca a proteção
de Nossa Senhora e depois, na cadeia, se torna crente.
Hoje, a missão ad gentes tem dois interlocutores: num extremo
estão os sem religião e os sem Deus, e no outro lado estão os sem Deus
com uma religiosidade funcional e descompromissada. Um pós-secular
de múltipla escolha não é propriamente um seguidor de Jesus Cristo, mas
um interlocutor da missão. Neste caso, missão significa transformar a
perspectiva da prosperidade em perspectiva de gratuidade, o narcisismo
em altruísmo, solidariedade em doação da vida.
Como cristãos, acreditamos que é possível ser cientista secular
e religioso, desde que não confundamos os diferentes níveis entre fé
revelada por Deus e ciência secular. O cientista pode ser crente sem ser
incoerente com a ciência. O bom cientista e o bom cristão conhecem os
limites de sua “disciplina”. A herança cultural tem pouca influência sobre
ciência e religião. A fé se torna cada vez mais uma opção individual que
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
117
A “virada popular”
não contradiz a ciência. A interlocução missionária se situa no lugar do
facilitador e catalisador dessa fé possível e, muitas vezes, aprendida fora
da cultura de origem dos destinatários.
Um agnóstico, como Habermas, nos lembrou de três dons, que são
ao mesmo tempo tarefas próprias do cristianismo para o mundo secular.
O mundo civil e o estado secular (neutro em sua relação com as religiões) não podem oferecer algo fora de uma legalidade positiva. O Estado
secular não pode oferecer solidariedade nem ritualidade ou comunidade.
A solidariedade pode ir mais longe que a justiça. Os ritos secularizados
não oferecem perdão ou, em ritos de despedida, um imaginário além
do esquecimento. As mudanças rápidas impulsionadas pela ciência e a
economia corroeram também as relações humanas e a capacidade comunitária prolongada de grupos sociais. A religião, que tem como eixos
o perdão, a memória e a justiça, que resiste à morte decretada pelo mais
forte e que considera a vida não uma soma de casos, mas uma causa
universal em prol dos desfavorecidos, pode contribuir com aquilo que
falta na sociedade secular.
Talvez seja, hoje, uma das tarefas missionárias mais importantes,
articular comunidades e movimentos sociais para “desafinar o coro dos
contentes” (Torquato Neto) e desgovernar a nau dos adaptados. Muitos se
contentam com o pouco que o gozo regressivo à fase oral e anal (Freud)
via consumo e acumulação de maneira destrutiva oferece. A destrutividade do projeto em curso se evidencia pela violência globalizada e
estrutural. Também o mundo religioso, na forma do fundamentalismo
globalizado, que invoca como bases de sua legitimação instâncias mais
sagradas que lei e razão, não é isento dessa violência. No mundo secular,
cabe aos discípulos missionários articular frentes dispostas a puxar o freio
de emergência do projeto acelerado e desgovernado em curso e, politicamente, propor outro projeto civilizatório que contemple a todos.
7 Algo falta: recepção e desafios
do Vaticano II hoje
Numa primeira fase, a recepção do Vaticano II na América Latina
foi marcada por um consenso esperançoso, por entusiasmo e criatividade.
Depois de Medellín, surgiu uma divisão mais visível dos caminhos pastorais. Hoje, setores que procuram inibir a “virada popular” na liturgia e na
pastoral, na teologia e na organização institucional, ganham força. Mas a
118
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Paulo Suess
história nunca é linear. Muitas conquistas do Vaticano II estão presentes
em nossa realidade pastoral e nos documentos produzidos nesse tempo
pós-conciliar. Apesar de certo descompasso entre documentos e prática
missionária, somos uma Igreja de apóstolos, profetas e mártires, uma
Igreja de santos e pecadores.
Vejamos as Conclusões de Medellín, de 1968. Tiveram como
programa, expresso no subtítulo: “A Igreja na atual transformação da
América Latina à luz do Concílio”. O Documento de Aparecida, de 2007,
ainda invoca as mesmas transformações. O que fizemos nesses 40 anos?
Quase tudo está em transformação e deve ser transformado, diz Aparecida: a realidade (DAp 210), o mundo (DAp 290), a sociedade (DAp 283,
330, 336) e estruturas eclesiais e pastorais (DAp 365). O mundo está em
estado permanente de transformação, e a Igreja não quer nem saber de
transformar estruturas pastorais!
Vejamos a “Carta dos bispos ao Povo de Deus na Amazônia”,
escrita no dia 6 de julho p.p., em comemoração aos 40 anos do Primeiro
Encontro de Santarém, em 1972. O Encontro de Santarém, em 1972,
escolheu, no dizer de D. Moacyr Grecchi, dois faróis, a encarnação na
realidade e a evangelização libertadora, para iluminar quatro linhas
prioritárias: a formação de agentes pastorais, a formação das comunidades de base, a pastoral indigenista e as frentes pioneiras (presença nas
estradas e nos grupos deslocados pela corrida atrás de trabalho).
40 anos mais tarde, na página web da CNBB, no dia 7.7, li a
seguinte manchete: “Compromisso e opção pelos pobres. Esse é um
dos principais resultados do 10º Encontro da Amazônia em Santarém,
anunciado durante entrevista coletiva, no seminário São Pio X (Santarém)”. A manchete poderia expressar certa pobreza e estagnação desse
encontro. Mas dois dias mais tarde recebi as “Conclusões do encontro
de Santarém 2012. Memória e Compromisso”. O texto faz um grande
esforço para resgatar a caminhada missionária da Amazônia e nos procura
novamente envolver num “compromisso profético de transformação e
profunda conversão pastoral”. Propõe palavras-programas, que já se
tornaram chavões, como protagonismo, sustentabilidade, novo Pentecostes. Fala-nos até, simpaticamente, de como a sabedoria tradicional e
a religiosidade popular da Igreja amazônica estão sendo fortalecidas e
ungidas pela Palavra de Deus e pela Eucaristia. Pela Eucaristia?
Esperava-se, depois de 40 anos de jejum eucarístico, na maioria
das comunidades amazônicas, uma proposta nova na direção certa, um
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
119
A “virada popular”
grito preocupado. Não basta elogiar as CEBs. Queremos CEBs com
Eucaristia. Não basta invocar a bondade do povo e privá-lo da participação nas decisões pastorais. Esperava-se que alguém dissesse em voz
alta, o que em off, em conversas de Nicodemos, todo mundo admite:
Precisamos repensar a nossa estrutura sacramental. Pisamos na bola?
Empurramos com a barriga a opção pelos pobres sem os pobres, as
CEBs sem Eucaristia?
O projeto das Igrejas Irmãs, que empresta por dois ou três anos
um padre para trabalhar na Amazônia, precisa ser repensado econômica
e pastoralmente. Economicamente: “Vocês não tem ideia de como é
caro manter os barcos para o transporte nos rios amazônicos, levando
os missionários”, lamentou D. Moacir. Pastoralmente: Quem vai se
inculturar ou encarnar em três anos nas comunidades dos rios Xingu,
Tapajós, Purus, Madeira, Negro ou Solimões? Estamos caminhando de
emergência para emergência. Os missionários, com a maior boa vontade,
estão correndo como pilotos da Fórmula 1, com pit stop nas capelinhas,
aldeias e comunidade. Precisamos avançar na construção de uma Igreja
autóctone, que aposta em presença e não só em visitas.
O Vaticano II produziu muitos frutos. Todavia, falta algo para
desinibir a “virada popular”. Deus escuta os dois gritos de seu povo: o
grito por justiça dos pobres e o grito por misericórdia dos pecadores. “A
conversão a Deus consiste sempre na descoberta da sua misericórdia”
(DM 13,6). Essa conversão passa por três retomadas da “virada popular”,
por três ajustes:
– a opção pelos pobres há de ser com os pobres/outros como
sujeitos;
– a opção pelos e com os leigos e leigas como povo de Deus;
– e a opção por inculturação, encarnação e aggiornamento, que
são pressupostos de uma Igreja universalmente autóctone em
diálogo com o mundo.
7.1 Os pobres e os outros: sujeitos e mediadores
A “opção pelos pobres” e “pelos outros”, que se tornou linha mestra
da reflexão teológica da América Latina, precisa hoje transfigurar-se em
“opção com os pobres/outros” e “opção dos próprios pobres/outros” de
uma Igreja povo pobre de Deus. Aparecida reconhece que os pobres “se
fazem sujeitos da evangelização e da promoção humana integral [...], e
120
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Paulo Suess
dão vida ao peregrinar da Igreja” (DAp 398). “Quantas vezes os pobres
e os que sofrem [...] evangelizam realmente” (DAp 257) a Igreja! Todas
essas frases de efeito e benevolência para com os pobres, nos documentos
da Igreja, ainda refletem certo paternalismo e um divórcio sociológico
entre pobres e Igreja. A Igreja parece fazer algo para alguém que ainda não
é Igreja. Quando Aparecida afirma que “a Igreja é [...] casa dos pobres”
(DAp 8) ainda parece que os pobres e os outros, nessa casa, habitam um
quartinho de empregada ou são inquilinos, e não proprietários. Também
a “Igreja samaritana” (DAp 26) ainda é uma benfeitora dos pobres e não
expressa sua subjetividade na Igreja pobre.
Aos pobres, sujeitos da evangelização integral, corresponde seu
estatuto mediador da graça: “O encontro com Jesus Cristo através dos
pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé” (DAp 257). Um comprometimento mais próximo com os pobres (cf. DAp 396), com a intenção
de fazê-los realmente sujeitos na Igreja, o que desde seu batismo já são,
aponta não só para uma conversão eclesial, mas para uma reestruturação
pastoral que ainda não aconteceu (cf. DAp 396).
7.2 Os leigos: sacerdotes, profetas, apóstolos
Até a véspera do Vaticano II, o papel do leigo e da leiga na Igreja
era o de um auxiliar e subordinado do clero. O Concílio rompeu com essa
visão. A Igreja é, antes de qualquer diferenciação em funções, carismas
e ministérios, povo de Deus, comunidade fraterna com uma igualdade
constitucional (cf. LG 37). Leigos e leigas participam do sacerdócio
comum dos fiéis (LG 34), do “múnus profético de Cristo” (LG 12; 35,1)
e do apostolado. Essa visão do Vaticano II espera ainda por sua tradução pastoral: “O apostolado dos leigos é participação na própria missão
salvífica da Igreja. A este apostolado todos são destinados pelo próprio
Senhor através do batismo e da confirmação. [...] Assim todo leigo, em
virtude dos próprios dons que lhe foram conferidos, é ao mesmo tempo
testemunha e instrumento vivo da própria missão da Igreja `na medida
do dom de Cristo´” (LG 33,2). Geralmente, o estatuto laical participativo
não avançou além de uma função consultativa. A escassez ministerial,
que põe em risco a pastoral ordinária, ainda não conta, como deve, com a
participação do povo de Deus, também na elaboração de alternativas.
A questão dos leigos é uma causa dos leigos, uma causa do povo
de Deus, uma causa evangélica da igualdade dos filhos e filhas de Deus.
O conjunto do povo de Deus, certamente, teria mais soluções para os
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
121
A “virada popular”
problemas pastorais atuais do que um pequeno grupo clerical. O Espírito
sopra onde quer. Ao definir a Igreja como “mistério” e como “povo de
Deus”, o Vaticano II nos deixou muitas tarefas. Não conseguiu. A tarefa
da “virada popular” como “virada laical” permanece.
7.3 Igreja autóctone: da supervisão à inculturação
O Vaticano II procurou, com espírito crítico, acolher a realidade de
seus interlocutores que vivem inseridos numa cultura específica (microestrutura) e pertencem, ao mesmo tempo, à modernidade, com desafios
e conquistas. Na lógica do Reino, “os pequenos”, os que vivem do lado
sombrio do mundo, as vítimas na estrada de Jerusalém para Jericó são
caminhos da verdade e porta da vida; são lugar da epifania de Deus, por
excelência. A questão social está estreitamente vinculada à questão da
ortodoxia. Pecado significa também indiferença diante da exploração
dos pobres e do desprezo aos que sofrem.
Com os pobres e os outros trabalhamos e convivemos com o culturalmente disponível. Não somos os supervisores do projeto de Deus
nem das “obras sociais” que inspiramos. Meios sofisticados e lugares de
comando são um contratestemunho para a missão. A “supervisão” nos
afasta do chão e dos rostos concretos dos pobres. A eficácia missionária
não está nos instrumentos utilizados nem na liderança em “nossas obras”,
mas na coerência entre a mensagem do Reino e sua contextualização,
também através do nosso estilo de vida.
A passagem da supervisão para a inculturação atinge, obviamente, o campo, onde o povo celebra sua vida, ou seja, o campo litúrgico.
Algumas reformas litúrgicas pós-conciliares, feitas por “supervisores”
sem conhecimento e participação do povo, estão caminhando para o
distanciamento pré-conciliar. A Missa Tridentina, em latim, não vai reverter a fuga em massa de católicos de sua Igreja nem vai ajudar o povo
no conhecimento autêntico da fé em Jesus Cristo.
A “virada popular” do Vaticano II clama por uma Igreja autóctone
que rompe com qualquer tipo de tutela colonial. Para que na prática pastoral possa responder à diversidade sociocultural, dispersão geográfica e
necessidade espiritual do povo de Deus, ela precisa de certa autonomia
para a ampliação, descentralização e reestruturação dos ministérios.
Depois da Carta da Congregação para o Culto Divino (26.10.2005),
que qualificou “o projeto de uma Igreja Autóctone” como um projeto
122
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Paulo Suess
ideológico que deve ser imediatamente interrompido, já não se pode
mais afirmar com o Decreto Ad gentes que “por todo o mundo surgem as
Igrejas particulares autóctones” (AG 6,3).2 Chiapas era só um exemplo
de como uma Igreja indígena local respondeu à escassez de ministros
ordenados através da ordenação de diáconos mais próximos de seu povo,
como a Teologia Índia mostra a necessária contextualidade da reflexão
teológica.
A Igreja autóctone será uma Igreja evangelicamente pobre. Por não
ter cultura própria, ela não importa cultura, mas a empresta dos respectivos povos. Ela será serva, peregrina, hóspede, instrumento, sinal. Ela tem
rumo. Nasce e renasce ao pé da cruz, na perseguição e na fuga, no êxodo
e na peregrinação. Para que servem os discursos do aggiornamento e da
inculturação, se não para a construção de uma Igreja autóctone, coerente
com o Evangelho e relevante para o mundo?
Realizemos o que prometemos, e aprofundemos essas caminhadas
marcadas pela graça e pelo pecado, com fidelidade, sem continuísmo, com
audácia, sem atrevimento autoritário. Imaginemos que, neste momento
pós-conciliar, a Igreja latino-americana esteja esperando numa estação
de ônibus. Já se passaram horas e nenhum veículo coletivo chegou. Do
outro lado da rua, na direção oposta, chega um ônibus atrás do outro. Ao
anoitecer, muitos estão tomando um ônibus de volta, do outro lado da rua,
ao menos até o abrigo “Vaticano II”. Outros querem ir mais para trás, até
os castelos da Cristandade. Os que não baixam a voz quando falam da
Teologia da Libertação propõem caminhar na direção de sua esperança,
em vez de esperar um ônibus que talvez não chegue. Sua esperança está
no caminhar de uma Igreja povo de Deus, universalmente articulada em
rede, e localmente autóctone. Seus passos, nem samba nem tango. Andam
lentamente como uma caravana que atravessa o deserto...
Endereço do Autor:
E-mail: [email protected]
Blog: http://paulosuess.blogspot.com.br
2
Cf. P. Suess, Samuel Ruiz e a Igreja autóctone, in: Idem, Impulsos e intervenções.
Atualidade da Missão. São Paulo, Paulus, 2012, p. 81-89, aqui 88.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
123
Resumo: A recepção do Concílio Ecumênico Vaticano II na América Latina
foi privilegiada devido a quatro eventos de importante atualização e aprofundamento durante as décadas subseqüentes, por ocasião das Conferências
Gerais do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, realizadas em Medellín
(1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007). Cada uma
dessas Conferências foi devidamente preparada por comissões de teólogos e
agentes de pastoral, cujos estudos e contribuições foram redigidos em textos e
publicados em todos os países do continente para reflexão e aprofundamento
temático entre os fiéis. Os Documentos de Síntese recolheram as contribuições das conferências episcopais que são válidas para todas as Igrejas locais
e servem de incentivo para a consolidação das atividades eclesiais que dão
credibilidade à Igreja Católica.
Abstract: The assembly of bishops of Latin America at the General Conferences at Medellin (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992), and Aparecida
(2007) had the purpose, to a large extent, to express the reception and practical application of the teaching of the II Vatican Council in the course of fifty
years. Each of these Episcopal Assemblies had been thoroughly prepared by
theological commissions and pastoral experts in various fields of the apostolic
commitment, whose findings were gathered in official reports and distributed
among interested readers for additional viewpoints. The paradigm-syntheses
of these conferences are highly regarded as precious documents of permanent
value describing the evangelizing role of the Catholic Church, and contributing
to its credibility in the world.
Concílio Vaticano II: 50 anos depois
Luis Stadelmann, SJ*
*
O autor, Doutor em Línguas e Literatura Semíticas, Cincinnati, e Mestre em Ciências
Bíblicas, é Professor no ITESC.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012, p. 125-138.
Concílio Vaticano II: 50 anos depois
Introdução
A recepção do Concílio Ecumênico Vaticano II a 50 anos do seu
encerramento, (em setembro de 1965), teve entre nós uma periodização
de quatro décadas, cujos pontos altos foram as Conferências Gerais do
Episcopado Latino-Americano. Com efeito, a segunda Conferência aconteceu em Medellin (1968), a terceira em Puebla (1979), a quarta em Santo
Domingo (1992) e a quinta em Aparecida (2007)1. Fato notável desses
acontecimentos eclesiais é a divulgação dos documentos preparatórios,
elaborados pelas comissões de teólogos, e dos textos conclusivos editados
pelos Conselhos Episcopais. O teor desses relatórios representa um conjunto de orientações pastorais e doutrinais acerca da vivência da fé cristã
na Igreja Católica, e constitui um incentivo à autêntica evangelização de
todas as nações através de um intercâmbio entre as culturas. Ao mesmo
tempo, são exemplos de recepção seletiva e criativa do Vaticano II, por
aplicarem as determinações conciliares à realidade cultural e histórica
no contexto do continente latino-americano.
A característica marcante desses documentos oficiais é de apresentarem doutrinas e reflexões aos fiéis não meramente como ouvintes,
mas como protagonistas atuando nas comunidades eclesiais. Competelhes aplicar as metas do Vaticano II em sentido criativo, a fim de superar uma pastoral de conservação, baseada na sacramentalização, com
pouca atenção à evangelização, e buscar valores mais autenticamente
evangélicos, bem como novas e renovadoras estruturas que façam jus às
orientações conciliares. As metas visam superar a mentalidade de uma
Igreja que esteja confinada aos parâmetros da cultura europeia e engajar
as lideranças católicas na promoção da América Latina.
Durante as últimas quatro décadas se realizaram quatro Conferências Gerais que contribuíram eficazmente para a abertura de novos
rumos em meio ao subdesenvolvimento que afasta os nossos irmãos de
sua própria realização humana. Cada uma das Conferências se esforçou
por assimilar alguns aspectos essenciais da tarefa da Igreja na Promoção
Humana do continente Latino-Americano para transmitir as respostas
aos desafios e os critérios de atualização do Vaticano II para os tempos
1
126
A Primeira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano foi realizada no Rio de
Janeiro, em 1955, tendo como objeto central de seu trabalho o problema fundamental
que aflige as nações de todo o continente, a saber: a escassez de presbíteros, ao
lado de outro: o da instrução religiosa. Cf. REB, vol., 15, fasc. 4, Dezembro de 1955,
1035-1039.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Luis Stadelmann, SJ
atuais. Visava-se, em especial, salientar os parâmetros dos documentos
conciliares para fins da evangelização de amplas faixas da população
latino-americana, tornando-a uma Igreja autóctone e fiel à sua missão
de serviço aos povos do continente.
A. Conferência Geral de Medellín (1968)2
O tema da Promoção Humana foi apresentado como assunto de
responsabilidade providencial e no aperfeiçoamento das tarefas eclesiais,
em seus métodos de ação e na formação das consciências, retomando
o documento conciliar “Gaudium et Spes” (sobre a Igreja no mundo de
hoje). O imperativo para uma ação concentrada nessa área levou em
consideração o papel da Igreja face à problemática social da América
Latina. Por uma parte impôs-se a tarefa de superar os efeitos da primitiva
evangelização, precisando ser complementada e até ser transformada
no sentido de fazê-la sair da sacristia e torná-la engajada nas áreas de
âmbito público do mundo do trabalho, da política, da economia, das
empresas e da cultura3. Entretanto, o critério de transformação de um
estágio para outro supõe uma fundamentação precisa e clara do que seja
a instituição da Igreja, cujas estruturas possam servir de coordenadas
sólidas e firmes para a ação promocional na sociedade. Veio a propósito
a organização das comunidades de base, bem como as cooperativas e os
sindicatos fornecendo os organismos de promoção humana e comunitária
para implementar os projetos eclesiais entre seus associados. Visavase, sobretudo, propulsionar com seu dinamismo outros grupos sociais,
fazendo-os perceber e quiçá partilhar as inovações no plano comunitário.
Nesses projetos eclesiais é que se fez sentir a força propulsora da Igreja
tanto institucional como carismática. A inspiração de grande fomento
para uma atuação revitalizada de suas instituições surgiu, mormente, dos
documentos conciliares, citados amplamente nos Vicariatos forâneos,
Sínodos, Conferências Episcopais, Cúrias Diocesanas e nos ministérios
implementados pela Pastoral de Conjunto4.
Na abordagem dos temas atuais sobre a Igreja visível e suas estruturas, bem como nas Orientações Doutrinais e Pastorais, têm prepon2
Odilon Orth, A Igreja na Atual Transformação da América Latina à luz do Concílio:
Conclusões de Medellín, Ed. Vozes, Petrópolis, 1969.
3
Cf. Eugênio de Araújo Sales, “A Igreja na América Latina e a Promoção Humana”,
REB, vol. 28, fasc. 3, Setembro de 1968, 537-554.
4
Cf. Odilon Orth, Conclusões de Medellín, cap 15, “Pastoral de Conjunto − Colegialidade”.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
127
Concílio Vaticano II: 50 anos depois
derância os documentos conciliares Gaudium et Spes (sobre a Igreja no
mundo de hoje) e Lumen Gentium (sobre a Igreja). Entrou em foco um
visor marcadamente inovador na perspectiva sobre a situação do homem
latino-americano, levando em conta não apenas as carências da existência
humana de muitos habitantes, mas principalmente a sua marginalidade
privando-os da dignidade, da auto-estima e da fé cristã.
Entre os problemas de demografia do nosso continente impõe-se
como tarefa prioritária uma pastoral familiar segundo as diretrizes conciliares sobre “o Apostolado dos Leigos” (AA). Além disso, com grande
empenho de todas as comunidades eclesiais deu-se um incentivo à organização de grupos da juventude (cap. V “A juventude”), inspirando-se
nessas diretrizes sobre a formação dos jovens (§ 12) que representam
hoje uma grande força nova de pressão, com ideias e valores próprios,
com dinamismo interno de se tornarem futuros líderes na renovação do
mundo à luz do Plano de Deus. É que os jovens são mais sensíveis aos
problemas sociais e aos valores positivos do processo de secularização,
desejando um mundo mais comunitário e pluralista, rejeitando uma
imagem desfigurada de Deus para buscar valores mais autenticamente
evangélicos.
Em vista da grande repercussão dos Meios de Comunicação Social
(MCS), impôs-se nas “Recomendações Pastorais” como um dos projetos
prioritários para a Igreja a tarefa de apresentar a este Continente uma
imagem mais exata e fiel de si mesma, transmitindo ao grande público
não apenas notícias relativas aos acontecimentos da vida eclesial e de
suas atividades, mas, sobretudo, interpretando os fatos à luz do pensamento cristão (§ 16).
Concluindo com um retrospecto sobre a Conferência Geral de
Medellín, citamos as palavras da homilia do Papa João Paulo II, recordando com grande estima e apreço, após dez anos, “a intencionalidade
evangelizadora que se manifesta nos 16 temas abordados e reunidos em
torno de três grandes áreas, mutuamente complementares: promoção humana, evangelização e crescimento na fé, Igreja visível e suas estruturas.
Com sua opção pelo homem latino-americano, visto em sua integridade,
com seu amor preferencial, mas não exclusivo pelos pobres, com seu
estímulo a uma libertação integral dos homens e dos povos, Medellín,
128
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Luis Stadelmann, SJ
a Igreja ali presente, foi um apelo de esperança para metas mais cristãs
e mais humanas”5.
B. Conferência Geral de Puebla (1979)6
Decorrida uma década após a de Medellín, foi convocada a Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano para retomar em Puebla
os textos que nos últimos anos tinham sido produzidos a nível de episcopados nacionais, sobre a situação dos pobres, dos marginalizados e de
uma multidão de «anônimos sociais» pois concluíra-se, com o Papa Paulo
VI, que «quando um homem é ferido em sua dignidade, toda a Igreja
sofre». Mas a Igreja tem de haver-se ainda com as diferentes análises da
conjuntura atual do continente. Daí que, antes de iniciar a consulta preparatória de Puebla, foram retomados os principais elementos da análise
da obra de evangelização em vigor. Constatou-se que os diagnósticos
não são neutros nem fluem automaticamente da realidade. Tampouco
são fruto da simples utilização dos métodos científicos das ciências
sociais. Sempre se observa o mundo de um ponto de vista determinado,
seja a partir dos setores dominantes, isto é, de cima, ou vendo as coisas
de baixo, a partir dos pobres e das classes emergentes. O lugar social do
observador condiciona seu lugar epistemológico7.
Tentou-se a criação de um consenso a partir das práticas pastorais.
Mas mesmo assim não foi possível conseguir um consenso de dois terços
necessários para ser aprovada, no plenário, a visão pastoral do contexto
sócio-cultural. Foi mais fácil pôr-se de acordo e aprovar os capítulos
doutrinais e as opções pastorais do que elaborar o diagnóstico. O Documento de Puebla introduziu os textos numa perspectiva da colegialidade
de todos os bispos com o capítulo sobre a visão histórica da realidade
latino-americana. A seguir, especificou a visão sócio-cultural da mesma
realidade. Logo em seguida, concentrou sua atenção na realidade eclesial
hoje no Continente, finalizando essa parte introdutória com a exposição
5
O Papa João Paulo II, “Medellín, foi um apelo de esperança”: da homilia pronunciada
na Basílica de Guadalupe, 27-1-1979, REB, vol. 39, fasc. 153, Março de 1979, 124.
6
Cf. João B. Libânio, III. Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano − Puebla:
Conclusões: A Evangelização no presente e no futuro da América Latina, São Paulo,
Ed. Loyola 1979.
7
Cf. Luiz A. Gómez de Souza, “Documento de Puebla: Diagnóstico a partir dos Pobres”, REB, vol. 39, fasc. 153, Março de 1979, 64-87; Clodovis Boff, Teologia e prática.
Teologia do político e de suas mediações, Ed. Vozes, Petrópolis, 1978; J.B. Libânio,
O problema da salvação no catolicismo do povo, Ed. Vozes, Petrópolis, 1977.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
129
Concílio Vaticano II: 50 anos depois
sobre as tendências atuais e a evangelização no futuro. Encontram-se
aí alguns temas de intuição profunda e reflexões teológicas originais,
como p.ex. a “evangelização”, remetendo continuamente aos documentos
conciliares do Vat. II, especialmente ao decreto “Ad Gentes” (sobre a
atividade missionária da Igreja), e à exortação apostólica “Evangelii nuntiandi” (sobre a evangelização no mundo contemporâneo) do Papa Paulo
VI (1975). Essa temática foi desenvolvida em referência à ação social da
Igreja, família, cultura, educação, comunicação social, catequese, liturgia,
juventude, ecumenismo e descrença num mundo secularizado. Como
remate, abordou-se a pastoral orgânica, empenhando-se na evangelização
e não meramente na promoção de um humanismo dispensando a contribuição fundamental da religião católica, que explicita a profissão de fé e
reafirma que somos discípulos de Cristo, o enviado do Pai celeste8.
O colegiado dos Bispos se deu conta de que, ao formular o método de análise da realidade, não se podia adotar uma posição neutra,
mas tinha que se optar por um compromisso de engajamento pela ação
pastoral com e a favor dos pobres. É que eles são a maioria da população do Continente, e são eles que são bem-vindos quando trazem a
mensagem de salvação. Aliás, o próprio método de análise da realidade,
desde que foi difundido a aplicado no século XX pela “Ação Católica”,
foi recomendado pelo Concílio Vaticano II (AA nº 29), e utilizado nos
Documentos de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida. Na
prática pastoral entre os grupos de jovens se constatou que o método
ver-julgar-agir é um método prático de formação no engajamento que
nos tira da acomodação, despertando a consciência crítica e levando-nos
a assumir compromissos na transformação da sociedade. Entretanto,
para ser implementado é preciso acrescentar ao método a dimensão
comunitária: rever e celebrar9.
Intimamente ligadas à atividade pastoral entre os pobres estão as
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) como lugar de encontro do povo.
São elas que tomam consciência de suas necessidades e de sua potencialidade transformadora. Mas é na Igreja que se organizam e dizem sua
palavra de Fé e de Justiça. Enquanto na Conferência de Medellín eram
130
8
Cf. Aloísio Card. Lorscheider, Síntese do Documento de Puebla, Ed. Paulinas,
São Paulo 1979; ver também C. Floristan e J. Tamayo, El Vaticano II, veinte años
después, Madrid, Cristiandad, 1985.
9
Cf. Mary Donzelini (Coord.). “O método: ver-julgar-agir-rever-celebrar”. Em. Metodologia fé e vida caminham juntas em comunidade: subsídio de reflexão para a formação
dos catequistas. Ed. Paulus, São Paulo, 2. ed. 1998; (Caderno Catequético, v.9).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Luis Stadelmann, SJ
apenas uma experiência incipiente, após dez anos elas se multiplicaram
e amadureceram, sobretudo em alguns países, de tal forma que agora
constituem um dos motivos de alegria e esperança para a Igreja. É que
se tornaram focos de evangelização e incentivos atuantes de libertação e
de desenvolvimento. Nelas participaram as próprias paróquias dos centros
urbanos, vinculadas com as paróquias da periferia, como se fossem filiais
sufragâneas de suas matrizes. Foi aí que se deram conta de que os dons
mais preciosos que possuíam eram os de partilha, precisamente com os
irmãos na fé. Superou-se de longe o proselitismo das seitas, devido à
difusão de dons divinos entre os irmãos na fé e não meramente entre
meros prosélitos.
Entre os 21 temas abordados, cobrindo mais de 200 páginas no
livro de conclusões, se destacam as cinco partes de amplos debates
em assembleia e assimilação aprofundada em comissões de teólogos.
Publicou-se em Puebla um documento de grande riqueza teológica com
significativos ganhos e avanços, servindo grandemente para a evangelização do Continente latino-americano. É notável o nível pastoral no
Documento final de Puebla, em especial na dimensão da soteriologia,
cristologia, eclesiologia, antropologia teológica10. Foi deveras de grande
proveito na recepção e atualização das doutrinas transmitidas pelo Concílio Vaticano II, principalmente porque a reflexão doutrinal e pastoral
foi levada a todos os níveis da Igreja, desde as comunidades eclesiais
de base até os mais altos escalões, dando origem a um aprofundamento
considerável, espelhado em inúmeros documentos e iniciativas pastorais.
Com efeito, a Conferência Geral de Puebla (1979) representa um marco
de grande prestígio para a Igreja Católica da América Latina.
C. Conferência Geral de Santo Domingo (1992)11
Em preparação da IV Conferência geral foi encaminhado um
documento de trabalho, visando à recepção dos temas fundamentais do
Concílio Vat. II. É que se tinha por objetivo transcender o confinamento de
questões restritas à região deste Continente, do âmbito latino-americano,
para atingir o cerne da doutrina cristã transmitida pelo cristianismo desde
10
11
Cf. Leonardo Boff, “Puebla: Ganhos, Avanços, Questões emergentes”, REB, vol.
30, fasc. 153, Março de 1979, 43-63.
Cf. J.B. Libânio, Santo Domingo, Conclusões: Nova Evangelização, Promoção
Humana, Cultura Cristã, Jesus Cristo Ontem, Hoje e Sempre, CELAM, Ed. Loyola,
São Paulo 1992.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
131
Concílio Vaticano II: 50 anos depois
seus primórdios e ao longo dos concílios da Igreja, realizados nos vários
séculos. Mas, em vista da realidade do nosso Continente, era preciso
aprofundar os temas da “nova evangelização, promoção humana e cultura cristã”12. O objetivo não era, porém, criar um impacto nos tempos
de hoje, para ganhar um lugar ao sol entre as culturas, mas se queria
enfrentar o desafio de atualizar os ensinamentos do Vaticano II através
da inculturação desse ensino nos povos da América Latina mediante
a catequese. Visava-se, sobretudo, relacionar a catequese com a nova
evangelização, com a promoção humana e com a cultura cristã13. Ao
colocar a catequese como eixo da educação cristã, um dos ministérios
da pastoral diocesana foi elevado a um nível mais proeminente, pois os
catequistas são chamados a ensinar os jovens a aprenderem a vivência da
fé e não só a praticarem atos de piedade, que são típicos já das tradições
culturais herdadas desde a casa paterna. A aprendizagem consiste na
interiorização da doutrina cristã do Catecismo, cujos temas abrangem o
Credo, os mandamentos, os sacramentos e a oração. Na própria seleção
dos catequistas para o exercício deste ministério eclesial tem prioridade,
mais do que a mera competência pedagógica, o carisma típico de um
modelo de mediação da vivência da fé que saiba não apenas doutrinar
da boca para fora, mas sobretudo tornar o ensino uma aprendizagem
empolgante. O requisito básico é sem dúvida inculcar a fé na mentalidade dos jovens através da “inculturação” dos temas, através de sua
assimilação e expressão em ambiente de convivência e alteridade nas
diversas faixas etárias desde a infância até a adolescência, para tornar-se
uma fé de conteúdo autóctone, na idade adulta, sem resquícios espúrios
do folclore antigo e antiquado.
A metodologia da “inculturação” levou em consideração a diferença do termo na língua inglesa, na qual tem sentido negativo: “ausência
de cultura” (inculturation). Entrou em voga ali o uso da palavra “aculturação” que significa mera justaposição de duas ou mais temáticas sem
inserir uma na outra nem sobrepor uma sobre outra. Resulta então um
paralelo entre cultura antiga e moderna, cultura ameríndia e europeia,
cultura afro-descendente e mestiça, cultura dos pobres e dos ricos, cultura
132
12
“Contribuições do DECAT Cone Sul-Brasil à IV CELAM em São Domingos: “nova evangelização, promoção humana e cultura cristã”, Buenos Aires, San Martin (La Crujia), 10 de
abril de 1992, Participantes do Encontro dos Países do Cone Sul-Brasil do Departamento
de Catequese do CELAM; REB vol. 52, fasc. 207, Setembro de 1992, 699-791.
13
Cf. F. Taborda, “Nova Evangelização – Promoção humana – Cultura cristã”, em
Santo Domingo: uma leitura pastoral, Ed. Paulinas, São Paulo, 1993, 103-125.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Luis Stadelmann, SJ
dos jovens e dos velhos, cultura audiovisual e bibliográfica, cultura da
morte e da vitalidade, cultura cristã e secularizante14.
O tema da “cultura” foi amplamente tratado na “Gaudium et Spes”
(sobre a Igreja no mundo de hoje) do Vat. II, e precisava ser retomado
devido à fisionomia cultural que a Igreja católica imprime nos povos
latino-americanos através da evangelização. Daí que a liturgia fornece
um traço inerente na vivência pública da fé cristã bem como na ética do
comportamento dos grupos sociais. Além disso, a Pastoral de Conjunto
das dioceses contribuiu enormemente para o convívio social e econômico das populações: haja vista as instituições educacionais em todos os
níveis de educação da juventude (escolas e creches), nas organizações
assistenciais dos enfermos, dependentes químicos, marginalizados, oprimidos das áreas de risco migrando para as periferias urbanas, trazendo
na bagagem a problemática não resolvida das áreas de sua proveniência.
Muitas das obras assistenciais foram assumidas pelo Estado e constam
nos regimentos da legislação da própria Constituição de cada país.
Com efeito, sem o engajamento nos vários setores da pastoral da Igreja
não teria sido possível a vida social desses grupos nem sua inserção na
população estável dos diversos países do Continente15. Trata-se de uma
cultura assistencial promovida pela ação pastoral da Igreja, visando
não apenas garantir a subsistência, mas sobretudo a dignidade humana.
Houve um esforço comunitário para despertar um crescente senso de
auto-estima mesmo em condições precárias e nos estágios de transição
para a melhoria, sem desmerecer os resultados parciais porque frutos
da labuta individual e comunitária. O “agir” e as opções pastorais da
Igreja eram motivados não apenas em vista de um mundo melhor, mas
também para colaborar na implantação do Reino de Deus no mundo. É
que a evangelização da cultura cristã na América Latina constitui uma
contribuição sui generis de grandíssimo proveito para a humanidade
inteira. Pois o traço marcante do sadio otimismo da vivência do povo é
oriundo do cristianismo e constitui o único antídoto contra o pessimismo
profundo motivado pelas religiões dos povos asiáticos.
Entre os compromissos pastorais encontramos o importante tema
sobre “os adolescentes e os jovens” (nº 111-120) ocupando lugar de
14
Cf. Paulo Suess, “O processo da inculturação”, em Santo Domingo: uma leitura
pastoral, op. cit., 53-71.
15
Cf. A. Antoniazzi, “Novos Temas para Santo Domingo: Observações sobre o «Documento de Trabalho»”, REB, vol. 52, fasc. 207, Setembro de 1992, 538-551.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
133
Concílio Vaticano II: 50 anos depois
destaque, como não podia deixar de ser, visto que o Vat. II dedicou-lhes
o documento conciliar “Gravissimum Educationis” (sobre a Educação
Cristã). Na verdade, só teremos uma juventude engajada na vivência da
fé cristã, quando as convicções religiosas forem amoldadas às diretrizes
da Educação Cristã, superando os ditames do humanismo secularizante
do Ensino Público. Um fator marcante da pedagogia eclesial é a dimensão vocacional, a fim de que os formandos aprendam a desenvolver a
capacidade cognitiva e volitiva, moral e criativa, emocional e afetiva
dentro das próprias potencialidades, em preparação da sua missão na vida,
quando adultos. É que Igreja é mestra da formação humana pela dimensão
comunitária da civilização do Ocidente, desde séculos de comprovada
competência pedagógica para todas as gerações humanas. Pois a força
dinâmica da pedagogia é atribuída à ação do Espírito Santo impulsionando as instituições de ensino a proclamar a verdade num confronto aberto
e honesto com a sociedade toda com que está envolvida.
D. Conferência Geral de Aparecida (2007)16
No conjunto dos vários temas abordados em Aparecida, o fundamental é a identidade católica. De dentro dela, o processo educativo se
abre ao social, ao pobre, à formação integral do educando. À luz do papel
da Igreja na obra da evangelização aparece nitidamente a “missão” que
aos fiéis, como “discípulos” de Cristo, compete assumir na América Latina. Nesta perspectiva é preciso engajar todas as camadas da comunidade
cristã e principalmente a grande maioria dos que por circunstâncias conjunturais são os “pobres”. Desde já se especifica a perspectiva sociológica
da situação econômico-social focalizando a disponibilidade dos fiéis que
valorizam a fé como dom de Deus e são agradecidos pelo chamamento
de pertencer à Igreja Católica. Não estão imbuídos de um senso elitista
ou exclusividade frente aos grupos de crentes pentecostais protestantes,
precisamente porque estão impulsionados pela motivação decorrente
da “missão” de serem portadores de dons salvíficos para todo o mundo.
É que estão cônscios do chamamento de Deus que conta com eles para
difundir o “poder salvador e libertador de seu Reino” (nº 30). Chamamos
a atenção para a ênfase sobre a religião cristã visando à “salvação” − de
cunho espiritual, religioso e sobrenatural −, em contraste com as religiões
16
134
Cf. Documento de Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado
Latino-Americano e do Caribe, Ed. Paulus, São Paulo, 2007.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Luis Stadelmann, SJ
de servidão da Antiguidade17. É para não esquecer, porém, que a religião
de salvação abarca a “teologia da libertação”18 e, graças ao Documento
de Aparecida, é possível acrescentar uma complementação muito elucidativa ao incorporar a dimensão da “teologia do abraço”19 interpretando
o compromisso de vida como desdobramento da evangelização20. Ora,
os pastores crentes apregoam uma fé muito exuberante, interpretando
esse movimento como fruto de uma “teologia da prosperidade”, mas
sem exigirem dos seus ouvintes que professem sua adesão a Deus numa
comunidade de fiéis. Não é de admirar que esses se sintam isentos de
qualquer missão religiosa e por isso estariam livres desse compromisso
social, porque substituem o testemunho de fé por uma mundanização de
tudo o que se refere à dimensão espiritual e por mera antropologização,
promovendo ao invés o senso da auto-estima como corolário da cidadania. Entretanto, a essência da religião não é uma promoção cultural
nem mero movimento de religiosidade e, sim, é a mensagem de salvação
divina para toda a humanidade e abarca a vida terrena até desembocar
na vida eterna. Dai que crenças avulsas, exotéricas ou superstições, têm
efeito deletério com graves consequências, já aqui na convivência social
e também nas expectativas preternaturais da vida no além.
O itinerário formativo dos fiéis no seguimento de Cristo como
“discípulos” visa a uma perspectiva muito mais ampla da vida cristã,
porque envolve a disponibilidade a serviço do Reino de Deus e não
meramente da instituição Igreja, da cultura cristã ou da civilização do
17
Cf. W. O. Piazza, Religiões da Humanidade, Ed. Loyola, S.Paulo, 2. ed., 1991.
Entre as religiões de servidão constam: antigo Egito, Mesopotâmia, indo-europeus:
celtas, eslavos, germanos, gregos, romanos, semitas; cananeus, antiga China, Japão, astecas, mayas, incas; entre as religiões de libertação estão: a religião de Mani,
gnosticismo, antiga Índia, hinduísmo, budismo, jainismo, budismo chinês, budismo
japonês, budismo tibetano, confucionismo; religiões de salvação: masdeísmo, religião
de Israel, cristianismo, islamismo. Cf. W.O. Piazza, Religiões da Humanidade, Ed.
Loyola, S. Paulo, 2. ed., 1991.
18
Na articulação entre a teologia e a sociologia é preciso focalizar exclusivamente a
fé cristã e o compromisso social sem enveredar para a problemática do MST ou da
demografia, ou ecologia ambiental, sem mencionar as terapias cosméticas da farmacologia, usando esta expressão por “misnomer”.
19
Na implementação da “teologia do abraço” impõe-se aos educadores a norma de
proceder com o cuidado preventivo contra abusos sexuais nas instituições de ensino
e de assistência social.
20
Cf. Clodovis Boff, “Teologia da Libertação e Volta ao Fundamento”, em REB, vol.67,
fasc. 268, Outubro de 2007, 1001-1022.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
135
Concílio Vaticano II: 50 anos depois
Ocidente21. O fator decisivo é a abertura para a dimensão sobrenatural
que unicamente compete a Deus desvendar por meio de Jesus Cristo,
e não Buda, Confúcio, Maomé ou qualquer guru asiático. Pois o que é
decisivo na revelação de verdades sobrenaturais não é o pensamento
humano sobre Deus e, sim, o que Deus exige de nós para relacionar-nos
com Ele e com a ecologia humana e com a espiritual.
A motivação primordial da Conferência Geral de Aparecida é
eclesial, na esteira do Vat. II, visando à atualização do ensinamento
conciliar da Igreja no mundo e não precipuamente a relevância teológica
e pastoral da Igreja Católica na América Latina. É que a presença da
Igreja neste Continente é um comprovante decisivo da sua existência, de
cunho empolgante, no mundo, mas ela cai ou se mantém de pé não pela
promulgação de dogmas ou documentos episcopais e, sim, pela vivência
da fé nas comunidades cristãs e não propriamente pelos programas televisivos de shows de propaganda religiosa com motivação carismática,
seja eclesial ou sectária. O fator decisivo é sem dúvida, quem é discípulo
de Cristo, hoje, neste tempo, diante do atual cenário conjuntural22.
Uma das características marcantes dos discursos pronunciados
pelos participantes da Conferência é a linguagem dos missionários em
estilo persuasivo e eloquente, de comunicação direta com os ouvintes. Lembram também o importante documento “Ad Gentes” (sobre
a atividade missionária da Igreja) do Vat. II, que traça as coordenadas
para a obra evangelizadora da Igreja. Desde o início do cristianismo,
os “missionários” estão a serviço do Espírito Santo e são identificados
como “discípulos”, no seguimento de Cristo, estabelecendo comunidades cristãs para a formação dos fiéis na doutrina e na celebração dos
sacramentos, partilhando os dons divinos. A escolha do termo se inspira
na peculiaridade do NT quando a religião era designada como “caminho” significando o modo de vida dos fiéis vindos de outras regiões e
países estabelecendo comunidades cristãs, que por sua vez cultivavam a
vivência religiosa e irradiavam-na para as populações mais diversas do
Império Romano e nos países de outras culturas. Adotou-se a praxe, no
cristianismo, de consolidar a fé ao engajar os próprios fiéis na obra de
implantá-la no coração do grupo de catecúmenos, principalmente entre
136
21
Cf. P. Suess, “Quinta Conferência − Quinta-essência: A missão como paradigmasíntese de Aparecida”, REB, vol.67, fasc. 268, Outubro de 2007, 908-928, esp. 919.
22
Cf. E. Cescon, “Ser discípulos num tempo de mudança”, REB, vol. 67, fasc. 268,
Outubro de 2007, 949-961.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Luis Stadelmann, SJ
os jovens, e também nos neófitos de número cada vez mais crescente. É
importante notar que a ação missionária não descuidou de pregar “missões
populares” a fim de recuperar a relevância da fé cristã entre as camadas
da sociedade que perderam sua vivência na comunidade eclesial e procuraram viver sem fé alguma. Aliás, é do conhecimento de todos que
aqueles que se bandearam para movimentos pentecostais protestantes,
não retornam à comunidade católica porque renunciaram ao Credo, à
recepção dos sacramentos e à frequência às celebrações da liturgia. Uns
partiram para outras crenças, outros se identificaram com correntes culturais marcadas pelo indiferentismo religioso. Trata-se de uma partida
sem novo começo, porque muitas vezes já fazia tempo que esses andavam
a esmo, nem rumo ou meta alguma. Acontece, porém, que o caminho
do retorno vem sendo trilhado por alguns afastados da Igreja, quando
acompanhados pelos missionários incumbidos da Pastoral de Conjunto
da diocese, inspirada no documento conciliar “sobre o Apostolado dos
Leigos” (AA). E precisamente são os leigos das paróquias e das Comunidades Eclesiais de Base comprometidos com sua fé que se engajam no
acolhimento de todos os que procuram sua inserção na Igreja23. Devido às
várias instâncias pastorais é que as paróquias promovem a formação da
fé cristã que tem seu ponto inicial num encontro em profundidade com
Jesus Cristo, marcando o início da pertença ao cristianismo.
Conclusão
Escrever sobre a recepção do Concílio do Vaticano II, 50 anos
após sua realização, é tocar em um tema de muita atualidade na América
Latina. Com efeito, a periodização de quatro Conferências Gerais do
Episcopado deste Continente lança uma luz que se projeta sobre a vitalidade da Igreja a partir do encerramento do Vaticano II até hoje. Graças
a esses eventos eclesiais houve um novo surto de revivescimento daquela
atmosfera de comunhão eclesial e de aprofundamento do ensinamento
conciliar em ordem à sua aplicação na vida da Igreja. Surgiram também
lacunas no quadro dos organismos diocesanos e paroquiais devido à
diminuição do número de padres, religiosos e agentes de pastoral, cuja
demanda está aumentando cada vez mais, enquanto as famílias cristãs
não têm condições de atender à procura. Daí é que resultam buscas de
solução alternativa para preencher as ausências, mas não houve respostas
23
Cf. Maria Clara L. Bingemer, “Eclesialidade e Cidadania: O lugar do laicato no
Documento de Aparecida”, REB, vol. 67, fasc. 268, Outubro de 2007, 977-1000.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
137
Concílio Vaticano II: 50 anos depois
positivas em âmbito do Continente latino-americano para a renovação
dos discípulos missionários das comunidades de fé a serviço de Deus
e da Igreja, nem surgiram novas iniciativas para a promoção das vocações. Entretanto, pela maneira como foi preparado e pelo espírito como
foi realizado, este encontro dos bispos em Aparecida servirá agora de
inspiração fecunda para a busca de saídas dos problemas e descoberta de
novas iniciativas para atender aos compromissos da Igreja nos próximos
anos. Pois o grande fruto desses encontros entre bispos é certamente um
maior intercâmbio não só entre teólogos, mas também entre representantes das dioceses e organismos eclesiais em comunhão e colaboração com
os dicastérios do Vaticano e os ministérios do CELAM e CNBB.
Endereço do Autor:
Colégio Catarinense
Rua Esteves Júnior 711,
Caixa Postal 135
CEP 88015-130 Florianópolis, SC
E-mail: [email protected]
138
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Resumo: O presente artigo, refazendo o percurso da eclesialidade católica em
confronto com a secular modernidade, rebusca, ao modo de notas de pesquisa,
em largas linhas, alguns antecedentes históricos que permitem retomar, em
melhor medida, a devida importância e o grande alcance do Concílio Vaticano II.
Coloca em destaque o intento conciliar de restabelecer um diálogo compatível
com o mundo moderno-contemporâneo. Se as muitas recepções do Concilio nem
sempre possibilitaram uma resposta eclesial à altura das transformações de nossa
história recente, nem por isso, podemos deixar cair na descrença do anacronismo
suas interrogantes fundamentais e grandes intuições. Nesse particular, resgatar os
vínculos que nos unem ao passado parece-nos um modo interessante de seguir
em frente. Talvez esta seja a tarefa que, neste ainda início de milênio, nos coloca
a caminho como discípulos-missionários de Jesus Cristo.
Palavras Chave: Modernidade – Eclesialidade Católica – Vaticano II – Modernity – Catholic Ecclesiology II Vatican Council
Abstract: The aim of this article is to enhance the theme of Catholic ecclesiology
in confrontation with secular modernity so as to draw on previous tendencies
which prevailed before the II Vatican Council. The purpose is to re-establish a type
of dialogue which is compatible with the contemporary modern world. Although
the approach to the outlook of the Council did not always promote an ecclesial
response at the level of the transformation of recent history, it certainly does not
permit us to let it fall into oblivion or cast off on account of a lack of interest in
all the fundamental and grand intuitions. In this particular point of theological
analysis it seems that the links connecting us with the past are quite suggestive
to be pursued in view of the future that lays ahead. This would seem to be the
task to be envisaged at the beginning of the new millennium which the disciples
will have to embrace and follow as missionaries of Jesus Christ.
Vaticano II: a modernidade da Igreja em
um contexto de mudanças
Vitor Hugo Mendes*
*
Presbítero da Diocese de Lages, Santa Catarina, Brasil. Mestre em Educação, História e Politica (UFSC/1998). Mestre em Teologia Sistemática (PUCRS/2004). Doutor
em Educação (UFRGS/2006). Secretário Executivo do Departamento de Cultura e
Educação – CELAM (2011). Professor no Instituto Teológico-pastoral para a América
Latina – ITEPAL, Bogotá, Colômbia.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012, p. 139-163.
Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças
“La historia de la humanidad,
a la que Dios nunca abandona,
trascurre bajo su mirada compassiva”
(DA 30)
A celebração dos 50 anos do Concilio Vaticano II já inclui grande
movimentação e uma agenda de incontáveis atividades no decorrer dos
próximos anos. A convocação (1959) e realização (1962-1965) deste
grande acontecimento tornou-se, sem dúvida, um marco referencial
indispensável no percurso do Cristianismo Católico e demarcou o inicio
de uma autêntica reforma na vida da Igreja.
Vale lembrar que, com a crise da Cristandade medieval e a emergência do mundo moderno, tempos difíceis sobrevieram para a instituição Católica. As tentativas de reforma, paradoxalmente, enfrentaram a
relutância e a resistência interna a mudanças profundas, particularmente,
no que dizia respeito à auto-compreensão de uma Igreja que não mais
coincidia com a “extensão do mundo” e os rumos do esclarecimento
iluminista (Aufklärung).
Neste sentido, a conturbada relação que se estabeleceu entre Igreja
Católica e o modus operandi moderno, – aquela buscando restauração e
este querendo salvaguardar a maioridade conquistada –, permite entrever, nessa disputa, alguns motivos da progressiva perda da hegemonia
eclesiástica. Em clima de contenda, torna-se inevitável a reclusão da
instituição eclesial à esfera do espiritual desentranhado da historicidade
do mundo. Sob o influxo de uma disputa política intensa, não sem razão,
mas, de modo geral e recíproco, se estabeleceu um ambiente de ataques
constantes, obliterações, autodefesa e ferrenha oposição, no mais das
vezes, em prejuízo de todos.
Este prolongado e polêmico debate histórico retém o complexo
substrato que engendrou a decidida reforma da Igreja. Muito embora o
anseio e a urgência de mudanças substanciais no seio do Cristianismo Católico tenham-se tornado uma legitima reclamação, somente a realização
do Concílio Vaticano II levou a termo e de modo radical, transformações
que pudessem alterar, significativamente, a arquitetônica eclesial e suas
relações com a sensibilidade (pós)moderna.
Em sua carta-testamento Novo Millennio Ineunte (2001), João
Paulo II lembra “quantas riquezas” estão presentes nas diretrizes do
Concílio Vaticano II e pergunta sobre a recepção do Concílio. Aconteceu?
Trata-se de uma indagação importante, oportuna e atual na dinâmica
140
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Vitor Hugo Mendes
do tempo que se chama hoje e, não menos, para orientar um propósito
adequado no contexto das comemorações cinquentenárias. No dizer do
agora Beato João Paulo II,
À medida que os anos passam, aqueles textos não perdem seu valor
nem sua beleza. É preciso que sejam lidos adequadamente, que possam
ser conhecidos e assimilados, como textos qualificados e normativos
do Magistério da Igreja. [...] sinto ainda mais intensamente o dever de
indicar o Concilio como a grande graça de que se beneficiou a Igreja
no século XX: nele se encontra uma bússula segura para nos orientar
no caminho que se inicia (NMI 57).
O presente artigo, refazendo o percurso da eclesialidade católica
em confronto com a secular modernidade, rebusca, ao modo de notas de
pesquisa, em largas linhas, alguns antecedentes históricos que permitem
retomar, em melhor medida, a devida importância e o grande alcance do
Concílio Vaticano II. Coloca em destaque o intento conciliar de restabelecer um diálogo compatível com o mundo moderno-contemporâneo.
Se as muitas recepções do Concilio nem sempre possibilitaram
uma resposta eclesial à altura das transformações de nossa história recente, nem por isso, podemos deixar cair na descrença do anacronismo
suas interrogantes fundamentais e grandes intuições. Nesse particular,
resgatar os vínculos que nos unem ao passado parece-nos um modo interessante de seguir em frente. Talvez esta seja a tarefa que, neste ainda
início de milênio, nos coloca a caminho como discípulos-missionários
de Jesus Cristo.
1 Antecedentes de uma grande reviravolta na
eclesialidade Católica
A era moderna caracteriza-se, entre outros, sobretudo, pelo rompimento com a Cristandade medieval. A tomada de Constantinopla pelos
turcos Otomanos (1453) não deixa de ser um marco, pois indica o fim
do Império Romano do Oriente. No entanto, tal como propõe Brighenti
(1995), a ruptura mesmo se processa em dois marcos distintos da história:
a Reforma Protestante (1521) e a Revolução Francesa (1789).
Embora estes acontecimentos estejam, historicamente, distanciados no tempo, em uma visão de conjunto eles demarcam, neste processo, momentos decisivos na constituição da modernidade, e na mesma
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
141
Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças
medida, desafios concretos em que a Igreja Católica, chamada em causa
pública, buscou dar uma reposta precisa a situações e problemas específicos. É na perspectiva mais ampla dessa complexidade histórica que se
delineia, não obstante a peculiaridade de cada momento, entre outros,
uma espécie de vínculo e continuidade entre a realização do Concílio de
Trento (1545-1563) e o Concílio Vaticano I (1870). Embora os motivos
históricos sejam distintos, as exigências que se apresentavam para o
Catolicismo eram as mesmas: reivindicar e garantir os direitos da Igreja
diante das novas condições do mundo moderno. Neste sentido, as bases
doutrinais, teológicas e pastorais do Concílio de Trento são retomadas,
confirmadas e aprofundadas no Vaticano I. No avançado da época moderna, uma explicita reação e renovada oposição ao desenvolvido processo
emancipatório da sociedade, atitude que se vê reforçada até as vésperas
da realização do Vaticano II.
Na conturbada clarividência deste alargado movimento histórico, em condições difíceis, constituiu-se a reação oficial, sistemática e
institucional da Igreja Católica em defesa de sua Tradição eclesial, da
autoridade papal e, não menos, do seu patrimônio espiritual, frente a um
mundo cada vez mais distanciado da matriz religiosa católica.
Refazendo este percurso, pode-se afirmar que a Reforma Protestante sinaliza o rompimento interno da cristandade medieval. Ocupando a
primeira metade do século XVI, este acontecimento provocou um grande
1
1
142
A Reforma Protestante no século XVI foi, sem dúvida, o acontecimento mais dramático
da Igreja Católica Romana ao longo de sua história. Embora se trate de um movimento
amplo, quer em suas causas quer em sua repercussão (cf. Villoslada, 1979), a
reforma que se fez protesto – e resultou, na ruptura do Catolicismo, no surgimento de
novas Igrejas –, tem como figura emblemática Martinho Lutero (1483-1546). Tratavase de um período de grandes transformações da sociedade daquele tempo, situação
que não deixava de exigir mudanças na organização da Igreja e da Religião. Dessa
maneira, os conflitos que ocorreram a partir de outubro de 1517, quando Lutero
afixa, na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, as suas Noventa e Cinco Teses,
alcançam uma dimensão muito mais ampla do que a simples oposição à Doutrina das
Indulgências. “Duas semanas depois, copiado e difundido por estudantes entusiastas,
o documento já era conhecido em toda a Alemanha: muitos pressentiram que, para
além da doutrina das indulgências, era o conjunto de uma reforma religiosa e de
uma renovação espiritual que o monge saxão se aprestava a abordar” (PIERRARD,
1986, p. 171). Chamado a Roma sob a acusação de heresia, pela intervenção do
Príncipe da Saxônia, Frederico, Lutero foi ouvido na cidade de Augsburgo (1518).
Recusando-se a mudar de opinião, permanecia o impasse e aumentava os problemas
para a Igreja. A resposta do Papa, em junho de1520 foi a declaração de herege e de
excomunhão, concedendo-lhe um prazo de 60 dias para retratação. Em protesto, no
Natal do mesmo ano, Lutero queima publicamente a bula papal (Exsurge Domine),
sendo definitivamente excomungado em 1521.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Vitor Hugo Mendes
desgaste na vida interna da Igreja e o desfecho final, com a ruptura definitiva, significou o marco histórico da quebra na unidade católica. Por
sua vez, este fato já é, por si mesmo, a confluência de múltiplos fatores
sociais que em situação anterior, dados os movimentos que se faziam
presentes na vida cultural, pressionavam a Igreja na urgência de realizar
mudanças e reformas. Na visão desenvolvida por Brighenti,
A Reforma se caracteriza por uma série de perturbações sociopolíticas, socioculturais e religiosas que abalaram, não somente a Igreja do
Ocidente, mas também os Estados, que seriam profundamente afetados.
Coube a Lutero personificar todas essas aspirações generalizadas
num movimento religioso que desembocou na Reforma Protestante,
responsável, mas não única, pelo rompimento interno da cristandade.
(BRIGHENTI, 1995, p. 200).
No contexto da Reforma há, sem dúvida, um processo emancipatório muito mais amplo que reivindica, seja no campo cultural, seja no
campo religioso, uma crescente participação dos homens e mulheres na
ordem do mundo. Assim, pode-se reconhecer que “a causa fundamental
do desfecho da ruptura foi a admissão do princípio do livre exame, do
critério individual na interpretação das Escrituras, que em grande parte
resume as principais aspirações, tanto do humanismo quanto da Renascença” (BRIGHENTI, 1995, p. 205).
Esta dessacralização, em medida sempre maior, favoreceu o esfacelamento da “ordem social cristã”, rebeldia que veio de encontro com
a rígida e inamovível posição das autoridades católicas. No entanto, tal
enrijecimento não fez mais que acirrar os ânimos de protestos e aprofundar a mobilização mais ampla das forças contrárias aos arcaísmos
da Cristandade.
Frente a tudo isto, deve-se ressaltar,
Não faltaram vozes que se levantaram do seio da Igreja, prevenindo o
desastre de uma ruptura iminente. Mas a corrupção e os abusos [...]
teriam um efeito asfixiante em relação a todas as tentativas de renovação autêntica. [...] O desfecho foi inevitável. As respostas da Igreja
não somente vieram muito tarde como, em seu conjunto, se mostravam
totalmente inadequadas (BRIGHENTI, 1995, p. 206).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
143
Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças
No espírito de Contra-Reforma ou Reforma Católica, o Concílio de
Trento2 (1545-1563), apresentava-se como um lento despertar em meio
aos assombros de um terremoto. Em sua forma reativa, o que parecia
de início a busca de proteção, logo se transformou em defesa e intento
explícito de “frear” a sublevação que se havia constituído, em visível
pretensão de reforma-restauração.
Restrito aos clérigos católicos e dirigido a responder aos conflitos oriundos da posição luterana, Trento atribuiu particular atenção aos
problemas dogmáticos, orientando-os a esclarecer, elaborar e definir a
fé católica, como também, estabelecer alguns encaminhamentos práticos
da Reforma da Igreja3. De qualquer maneira, não obstante os esforços,
a tentativa conciliar não deixou de causar desilusões. Não bastasse o
seu caráter jurídico-dogmático ter sancionado a divisão da Igreja, “os
144
2
Convocado em 1536, pelo papa Paulo III (1534-1549), mas prejudicado em sua
realização, o esperado Concílio foi novamente convocado em 1542, sendo que a
falta de êxito desta segunda tentativa somente vigorou na terceira convocação, em
15 de março de 1545, de modo que sua abertura oficial deu-se aos 13 de dezembro
daquele ano. “Dos poucos participantes da solene abertura do Concílio (eram, além
dos três Cardeais Legados, ainda o Cardeal de Trento, quatro arcebispos, vinte e um
bispos, cinco Superiores Gerais de Ordens, os delegados do rei Fernando, e cinqüenta
cientistas, na maior parte teólogos), nenhum deles podia suspeitar que o Concílio
Ecumênico, após duas interrupções, só iria terminar dezoito anos mais tarde, e que,
convocado com tanta dificuldade, teria por muitos séculos eminente importância para
a vida da Igreja” (TÜCHLE; BOUMAN, 1971, p. 142).
3
O Concílio de Trento, que se realizou em três sessões (1545-1549; 1551-1552; 15621563), produziu numerosos documentos. Tais decretos “dizem respeito antes de tudo
a temas levantados por Lutero: a doutrina da justificação, as fontes da fé (a relação
entre a Escritura e a Tradição), o pecado original, os sacramentos”. Entre outros, “os
casamentos clandestinos são declarados inválidos e não apenas ilícitos. Os deveres
do ministério episcopal são regulamentados: convocação anual de sínodos diocesanos,
reunião de sínodos provinciais a cada três anos; obrigação de residência; proibição
de ocupar ao mesmo tempo diversas sedes episcopais (acumulação de benefícios)”
(FRÖNLICH, 1987, p. 126). Das reformas levadas a termo pelo Concílio, em termos
de suas implicações na vida pastoral da Igreja, ressalta-se a Instituição dos Seminários. Considerando as experiências que já se vinham fazendo desde o II Concílio de
Toledo (527), em suas indicações para formação sacerdotal, mais de mil anos depois,
Trento resgata, institucionaliza e torna católica, universal, a modalidade de Seminário.
É oportuno indicar que se trata de um momento histórico datado. Segundo Häring,
“seria uma grande injustiça, e temos de ter consciência disso, se pretendêssemos
julgar os seminários tridentinos e o clero aí formado, em relação às exigências e as
possibilidades de hoje. A Igreja fez, sem dúvida o que pôde. E o Concílio de Trento
não é responsável pelo facto de as suas reformas terem sido enterradas ‘embalsamadas’ ou metidas num congelador”. Mesmo assim, o autor acentua dois problemas
de fundo na formação deste período: separação e alienação do ‘mundo’ como forma
de conservar a vocação; e o anacronismo da filosofia e teologia, “absolutamente
intemporais, ideais, as mesmas para todos os tempos, para todas as classes, para
todas as regiões do mundo” (HÄRING, 1995, p. 85-93).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Vitor Hugo Mendes
decretos reformatórios do Concílio pareciam muitas vezes desconexos
entre si. Sua execução só se processou aos poucos, depois de superadas
muitas dificuldades” (TÜCHLE; BOUMAN, 1971, p. 157). Em todo
caso, muitas iniciativas de reforma que já vinham sendo implementadas
de forma localizada, foram oficialmente absorvidas e promulgadas como
normas legislativas para a Igreja Universal. De modo geral, o Concílio
propôs uma renovada orientação para a vida religiosa e moral do clero e
do povo, um programa que pretendia restabelecer, em novas condições,
a vida cristã, como também, eliminar o excesso de abusos que, aliás, não
podiam ser negados ao interno da vida eclesial.
Sem de fato ter conseguido restabelecer a unidade da Igreja, e
incapaz de conter o avanço de sua perda de prestígio junto à sociedade,
a debilidade crescente da presença pública da Igreja no mundo foi novamente abalada no contexto do século XVIII. O desenvolvimento do movimento iluminista que culminou na Revolução Francesa (1789), tornou-se
a referência fundamental do rompimento externo da Cristandade.
Na medida em que se processa a ruptura entre trono e altar, paulatinamente, a identidade de “cidadão” sobrepõe-se a do “cristão”, sendo
que a centralidade da vida social desloca-se do “fiel” para a dignidade
do “homem” em seus direitos e deveres. Configura-se, assim, no conluio
de um movimento político-social, a aspiração libertária que corrobora as
bases da sociedade moderna, caracteristicamente, os ideais da modernidade ilustrada do século XVIII.
Segundo Pierrard, comparativamente, assim como
os papas da Idade Média haviam conseguido fazer a unidade da Europa
na Cristandade, a França revolucionária agruparia os espíritos em torno
de algumas ideias generosas – liberdade, igualdade, fraternidade – que,
embora se liguem ao Evangelho através da “religião natural”, não se
inscrevem verdadeiramente num contexto cristão: o triunfo da burguesia que marcaria o século XIX se faria acompanhar de uma profunda
laicização (PIERRARD, 1986, p. 211).
De fato, esse movimento revolucionário que sacudiu a Europa e
se impôs de forma radical, mediante uma controvertida aliança entre a
burguesia liberal insurgente e o imenso contingente do campesinato, formado de massas miseráveis, desembocou na derrocada do regime feudal
e na separação definitiva entre trono e altar. A Declaração dos Direitos do
Homem (1789) definia e, a seu modo referendava, os novos princípios
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
145
Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças
da ordem a ser estabelecida, sempre destacando a soberania do povo em
detrimento de uma ordem divina, capitaneada pela Igreja Católica.
Sob o influxo de um humanismo racional, o acento positivo da
razão crítica, purificada no “tribunal da razão”, no período subsequente,
favoreceu uma atitude de reverberação contra a Igreja e a progressiva
limitação de suas prerrogativas. Fragilizada e com dificuldades de se
impor, a Igreja se mantinha na afirmação das formulações de Trento que,
a seu favor, até esse momento revolucionário, havia conseguido manter
uma relativa unidade do Catolicismo.
Diante das perturbações que se somavam social e politicamente em
atitude de oposição, somente 80 anos depois da Revolução Francesa, sob
forte pressão, a Igreja decidiu enfrentar, institucionalmente a situação,
mediante a convocação de um novo concílio4, o Vaticano I (1870). Embora inconcluso, pois foi interrompido pela Questão Romana, sua brevidade
foi suficiente para que o posicionamento oficial da Igreja, ao retomar o
Concílio de Trento, tivesse como meta fortalecer a Instituição5, como
também, manifestar sua aversão a tudo o que pudesse estar associado ao
mundo moderno. Diante de tantos problemas, voltando-se para si, a Igreja
146
4
O Papa Pio IX, ainda no início de seu pontificado, já havia indicado a sua intenção de
reformar a sociedade cristã. Contra o laicismo e a corrupção causada pelo pecado, o
papa insistia na necessidade do auxílio espiritual. O Dogma da Imaculada Conceição
(1854), o Syllabus (1864), a Quanta Cura (1864), dão mostras de sua preocupação
com a situação da Igreja no mundo. Em meio a tudo isso, o papa foi amadurecendo
a idéia de promover um novo Concílio. Haviam passado 300 anos do encerramento
de Trento e os desafios que se apresentavam urgiam em novos encaminhamentos.
Anunciado secretamente aos cardeais em dezembro de 1864, em pouco mais de dois
anos, por ocasião da celebração do Martírio de São Pedro, em 1867, Pio IX tornou
público, aos bispos presentes, a sua intenção de convocar o Concílio. Finalmente, em
29 de junho de 1868, pela bula Aeterni Patris Unigenitus, realizava-se a convocação
para o Vigésimo Concílio Ecumênico da Igreja Católica, tendo o seu início previsto
para 08 de dezembro de 1869. Segundo Bilmeyer; Tuechle, “como finalidade principal
do concílio declarava-se reunir todo o mundo católico numa poderosa manifestação
da verdade, em contraposição aos erros do tempo, e adequar em numerosos pontos
a disciplina às transformadas condições dos tempos. O anúncio do concílio, porém,
encontrou na opinião pública, uma difundida inquietação e irritação, intensificadas ainda
mais quando um artigo da Civiltà Cattolica, de fevereiro de 1869, deixou entender que
do concílio se esperava a definição da infalibilidade papal, a ser acolhida por simples
aclamação” (1965, p. 520).
5
Não sem razão, em nova tentativa, busca-se restabelecer a autoridade do Pontífice na
afirmação de sua infalibilidade ex cathedra. Mesmo sob polêmica, na quarta sessão de
18 de julho de 1870, Pio IX ratificou e proclamou a Constituição Dogmática sobre a Igreja
de Cristo (Pastor Aeternus) que, em quatro breves capítulos, apresenta “o fundamento,
a duração perpétua, o valor e a essência do primado romano e o magistério infalível do
papa” (BIHLMEYER; TUECHLE, 1965, p. 522; cf. PA, no. 1821 a 1840).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Vitor Hugo Mendes
reforçava o caminho de distanciamento daquela situação de mundo6,
enquanto a vida social européia rapidamente se descristianizava.
Emancipada em suas intenções e autônoma em conduzir o seu
caminho, mesmo já pressentindo os sintomas de suas ambigüidades, a
modernidade, levando a termo seus feitos, prosseguia o seu caminho
na indiferença para com as admoestações eclesiais. A Igreja, por sua
vez, fiel à sua doutrina, seguia no esforço de reprimir, ao menos em sua
jurisdição, o fermento moderno7.
6
Isso se torna visível, na Constituição Dogmática sobre a fé católica (Dei Filius),
aprovada na Quarta sessão solene de 24 de abril de 1870. Depois de enunciar os
temas fundamentais da fé: Deus, criador de todas as coisas (Capítulo I); A Revelação
(Capítulo II); A fé (Capítulo III); A fé e a razão (Capítulo IV); na mesma seqüência
temática a Constituição discrimina e formula a condenação dos erros contrários à
fé, naquele contexto, entendidos como terríveis ameaças à religião. Depois de uma
longa listagem conclui: “Cumprindo o supremo ofício pastoral que nos cabe exercer,
pedimos insistentemente pelas entranhas de Jesus Cristo a todos os fiéis cristãos,
especialmente aos chefes e aos que exercem o ofício de ensinar, e mandamos, com a
autoridade do mesmo Deus e Salvador nosso, que se esforcem por eliminar e afastar
da Santa Igreja tais erros, e por difundir a luz da fé pura e verdadeira. Porém, já que
não é possível evitar a heresia, a não ser fugindo também diligentemente daqueles
erros que se aproximam mais ou menos dela, lembramos a todos o dever de observar
também as Constituições e os Decretos pelos quais esta Santa Sé proscreve e proíbe
tais opiniões perversas, que não vêm aqui enumeradas” (DF, no. 1819 e 1820).
7
Tal como vem proposto na Constituição Dogmática sobre a fé católica, sem demonstrar
qualquer interesse positivo pelas mudanças que estavam em curso na sociedade, o
Concílio ensina: “porquanto somente à Igreja Católica pertencem todos os caracteres,
tão numerosos e tão admiravelmente estabelecidos por Deus para tornar evidente
a credibilidade da fé cristã. Além disso, a Igreja em si mesma, pela sua admirável
propagação, exímia santidade e inesgotável fecundidade em todos os bens, pela sua
unidade católica e invicta estabilidade, é um grave e perpétuo motivo de credibilidade,
e um testemunho irrefragável da sua missão divina. Donde resulta que a mesma Igreja,
como um estandarte que se ergue no meio das nações (Is 11,12), não só convida os
incrédulos a entrarem no seu grêmio, mas também garante a seus filhos que a fé que
professam se baseia em fundamento firmíssimo” (DF, no. 1794). Sobrepondo a primazia
da fé aos possíveis equívocos de uma razão desorientada, a mesma Constituição
busca esclarecer, com o devido cuidado, naquelas circunstâncias, a problemática da
fé e da razão: “ainda que a fé esteja acima da razão, jamais pode haver verdadeira
desarmonia entre uma e outra, porquanto o mesmo Deus que revela os mistérios e
infunde a fé, dotou o espírito humano da luz da razão; e Deus não pode negar-se a
si mesmo, nem a verdade jamais contradizer à verdade. A vã aparência de tal contradição nasce principalmente ou de os dogmas da fé não terem sido entendidos e
expostos segundo a mente da Igreja, ou de se terem as simples opiniões em conta
de axiomas certos da razão. Por conseguinte, “definimos como inteiramente falsa
qualquer asserção contrária a uma verdade de fé [V Concílio de Latrão]” (DF, no.
1797). Finalmente, tendo em vista precaver a todos do risco daquilo que considera a
“ciência falsa”, sem sombras de dúvida o grande inimigo da época, assevera e proíbe:
“a Igreja, que juntamente com o múnus apostólico de ensinar recebeu o mandato de
guardar o depósito da fé, tem também de Deus o direito e o dever de proscrever a
ciência falsa, [1 Tim 6,20], a fim de que ninguém se deixe embair pela filosofia e por
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
147
Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças
De modo geral, a teologia desse período se fundamentava nas
sólidas formulações doutrinais e pastorais que, elaboradas por ocasião
do Concílio de Trento, e retomadas pelo Vaticano I, não sofreram,
substancialmente, nenhuma alteração. Seguindo os passos da teologia
medieval, nada menos que a construção majestosa ao modo de Suma
Teológica, produzida, entre outros, por Tomás de Aquino, o Concílio
de Trento recriou sua visão teológica na perspectiva do que se tornou
conhecido como “tomismo de escola”8.
Embora esse modo teológico tenha acompanhado Tomás de Aquino na concepção de fazer teologia como ciência, o seu débito para com
a Escolástica não conseguiu desfazer-se do formalismo com que esta
se configurava. Tendo em vista a sua complexa tessitura, prevenida de
vulnerabilidades, pois se tratava de referir ao conjunto de todas as coisas
(teologia, Igreja, mundo), a teologia de escola “conseguiu transformar
a revelação cristã num sistema de verdades perfeitamente articulado
e coerente, que apresentava uma visão unitária de toda a realidade”
(PALÁCIO, 2001, p. 16). Sob esta modulação, em todos os sentidos,
Trento foi o elemento estruturante da identidade eclesial católica e a
força aglutinadora da Igreja por quatro séculos.
Esta arquitetônica teológica encorajou, por exemplo, os pressupostos que serviram de sustentação teórica na elaboração da encíclica
Aeterni Patris (1879), de Leão XIII e que, como efeito, prolongou-se
sofismas pagãos [Col. 2,8]. Eis porque não só é vedado a todos os cristãos defender
como legítimas conclusões da ciência tais opiniões reconhecidamente contrárias à
fé, máxime se tiverem sido reprovadas pela Igreja, mas ainda estão inteiramente
obrigados a tê-las por conta de erros, revestidas de uma falsa aparência de verdade”
(DF, no. 1798).
8
148
Segundo o Dicionário de Teologia “entende-se por Tomismo o sistema teológico e filosófico do maior pensador da Idade Média, Tomás de Aquino, que viveu de 1224 a 1274. É
assim chamada a Escola ou corrente de pensamento que se esforça o mais possível em
seguir Tomás de Aquino em todos os pontos de sua doutrina. Os elementos essenciais
de sua doutrina foram recolhidos, sob Pio X, nas chamadas vinte e quatro teses, que
embora tendo recebido daquele pontífice uma certa confirmação, nem por isso devem
ser acolhidas obrigatoriamente por todos os pensadores católicos. Declaram-no explicitamente os papas posteriores (FRIES, 1971, p. 330). Para Palácio, de quem tomamos
a expressão, “tomismo de escola ou teologia de escola é uma expressão cômoda para
designar a teologia ensinada de fato nos seminários e mesmo nas faculdades de teologia
até os anos 50. Essa teologia, destinada antes de tudo à formação dos padres, era,
em certo sentido, a ‘teologia oficial’. Teologia ‘de escola’ também porque privilegiava de
modo quase exclusivo a doutrina tomista que, mesmo quando batizada com o nome de
neotomismo, pouco tinha a ver com o pensamento de Santo Tomás. É o que justifica
a distinção que hoje se impõe cada mais entre ‘pensamento tomásico’ e ‘tomismo’ ou
‘neotomismo’ ” (PALÁCIO, 2001, p. 16).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Vitor Hugo Mendes
até a Humani Generis (1950), de Pio XII, em declarada contraposição
às inventivas modernas9.
Em atitude de confronto, explicitava-se aí um curto, porém renovado, ciclo de “catolicismo intransigente”, em cujo modo retroativo
de projeção, o motivo teológico mantinha-se dentro de um “horizonte
filosófico da razão antiga e de um universo ordenado teocentricamente”.
Anacrônico, este modo de pensar teológico mostrava-se incapaz ou ao
menos impossibilitado de dialogar com um modernismo que, “radicalmente
antropocêntrico”, deixava-se guiar pelo alcance da práxis histórica. Resumidamente, “a cristandade continuou a ser subliminarmente o modelo da
sociedade cristã até a época moderna” (cf. PALÁCIO, 2001, p. 16-18).
Importa observar que, apesar da intransigência em termos de
doutrina e das severas orientações reeditadas no conjunto dessas duas encíclicas, particularmente na Humani Generis, – em grande parte dirigida
a conter o “modernismo” e o movimento da nouvelle théologie10, – em
instâncias da mesma Igreja, havia pessoas interessadas em considerar
os princípios da modernidade e dialogar com as ciências. O processo
de revitalização teológica11, ainda que periférico, assumiu proporções
O confronto com o modernismo, nesse período, provocou a intervenção de Pio X
mediante três importantes documentos: o Decreto Lamentabili (1907), a Encíclica
Pascendi (1908) e o Motu Próprio Sacrorum Antistitum (1910), pelo qual o papa exigia,
dos padres, a obrigação do juramento antimodernista.
10
O movimento da Nouvelle théologie, – expressão que, segundo parece, deve ser
atribuída a Garrigou-Lagrange (1877-1964), a partir de um artigo (La nouvelle théologie, où va-t-elle?), publicado em 1946, na revista Angelicum, dos dominicanos de
Roma –, se desenvolveu na França, no período imediato à Segunda Guerra Mundial,
vinculado a duas escolas teológicas: a dos jesuítas, em Lyon, com Henri De Lubac e
Jean Daniélou, e a dos dominicanos, em Le Saulchoir, com Marie Dominique Chenu e
Yves Congar. Segundo Palácio, “a nouvelle théologie nunca existiu como movimento
articulado, a não ser na cabeça dos seus opositores. Menos ainda como escola de
teologia” (2001, p. 27). Em todo caso, o intento desses teólogos em articular a fé com a
história, fazendo uso dos novos métodos crítico-históricos, deu início a uma renovação
da pesquisa teológica, fato que não tardou em confrontá-los com a censura romana.
Não só os jesuítas e os dominicanos de Roma, em defesa do “tomismo”, reagiram
negativamente às novas ideias teológicas que eram fomentadas, mas, diante da tensão que se criou entre as duas tendências, Pio XII interveio com a Encíclica Humani
Generis (1950), em declarada restauração da teologia tomista (PIERRARD, 1986, p.
267-270; COLLANTES, 1995, p. 69-70; LIBANIO, 2000, p. 37-43, Cf. LIBANIO, 1983,
1989).
9
11
Palácio indica “dois traços peculiares que caracterizavam a intenção do que poderia
ser considerado o grupo inicial da nouvelle théologie: a convicção da força inspiradora
que tinha para a teologia o contato com os Santos Padres e a importância da história
das doutrinas para um tratamento renovado dos temas teológicos. Traços significativos que estavam relacionados a dois aspectos problemáticos do tomismo de escola:
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
149
Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças
irreversíveis, embora em medida crescente tenha acirrado os conflitos
com a Igreja oficial e, neste chamar atenção sobre si, provocou correções
punitivas para muitos dos seus representantes12.
Palácio, na análise das questões colocadas em causa nessa calorosa
discussão, considera que,
as abordagens da Nouvelle Théologie resultavam ameaçadoras para a
teologia de escola porque não podiam ser assimiladas por ela. Assumir
a perspectiva aberta pela pesquisa histórica das fontes equivaleria a
pôr em questão a totalidade do método e do sistema da ‘teologia das
conclusões’. No fundo se tratava de duas lógicas incompatíveis. Para
a ratio theológica da escolástica, tudo o que não provinha da razão
dedutiva era pré-teológico. A chamada teologia positiva – ou seja, os
dados obtidos na investigação histórica e exegética – só poderia adquirir
valor teológico se assumida dentro da lógica dedutiva que caracterizava
a argumentação de escola nas teses e nos tratados. Por isso, a perspectiva aberta pela ‘nova teologia’ nunca poderia afetar por dentro a
ratio theológica tradicional. Nem, por conseguinte, transformar o seu
modelo de conceber e de fazer a teologia. Eram, na verdade, teologias
alternativas, dois caminhos, não só paralelos, mas opostos, e mesmo
irreconciliáveis (PALÁCIO, 2001, p. 29).
É em meio a este panorama que o Concílio Vaticano II foi convocado pelo Papa João XXIII. As tensões e a polarização entre estas duas
perspectivas teológicas, inevitavelmente, ressoaram com intensidade na
realização do Concílio13.
Embora as diversas comissões indicadas para preparar os esquemas prévios de trabalho e os presidentes nomeados para as comissões
individuais no Concílio, em sua maioria, estivessem afinadas com a Cúria
a questão da tradição e a incapacidade de abrir-se ao que havia de ‘moderno’ no
método histórico” (PALÁCIO, 2001, p. 28).
150
12
Segundo Libânio, depois das restrições que são apresentadas à nouvelle théologie, na
Humani generis, “segue-se, por parte dos superiores gerais das ordens dos jesuítas
e dos dominicanos, uma série de medidas de punição aos teólogos envolvidos nesse
movimento. Muitos são proibidos de ensinar ou de exercer alguma função importante
no mundo da teologia: Y. Congar, H. de Lubac, J. Danièlou. P. Chenu, etc. Várias de
suas obras são retiradas das bibliotecas dos estudantes de filosofia e teologia. Paira
sobre eles a suspeita de heresia” (LIBANIO, 2000, p. 41).
13
Os tempos eram outros e a inserção da Igreja no mundo exigia uma renovada postura
teológica. No entanto, como lembra Palácio, “considerando a década que separa a
Humani Generis da convocação do Concílio Vaticano II, a longa agonia da teologia
de escola terá durado mais de 60 anos, o que dá a medida não só das resistências,
mas do que estava em jogo” (PALÁCIO, 2001, p. 23).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Vitor Hugo Mendes
Romana e a posição “anti-moderna” retroalimentada no paradigma da
teologia de Trento, o espírito reinante no Vaticano II, a começar pelo
Papa, mas também, por um significativo número de Padres conciliares,
mostrava-se aberto ao influxo das discussões que perpassaram a nouvelle
théologie14.
Não obstante o confronto, as concessões, a negociação entre as
tendências, a discrição proposital do Papa e a prudência da assembleia
conciliar, em alcançar um termo médio nas discussões, no resultado das
votações, prevaleceu e se fez confirmar o sopro renovador do Espírito
frente aos “sinais dos tempos”.
Palácio reconhece que “é difícil explicar por que caminhos se deu
a lenta transformação da ‘minoria’ em ‘maioria’ conciliar, que tornaria
possível a aprovação dos textos”. No entanto, reitera o autor, “apesar de
tudo, ninguém poderia negar que o Concílio foi uma virada teológica,
um divisor de águas que permite falar de um ‘antes’ e um ‘depois’. Não
só pela obra teológica que levou a cabo, mas também pela atividade
teológica que desencadeou” (PALÁCIO, 2001, p. 36).
2 Vaticano II: reconciliação com o mundo moderno
e re-significação teológica
O Concílio Vaticano II, na perspectiva de aggiornamento, significou a confluência, como vimos, de um prolongado e tumultuado
processo de reforma da Igreja Católica. Grosso modo a difícil ruptura
com a Cristandade medieval, sobrepujada no levante da Reforma Protestante (1521) e no caráter emancipatório da Revolução Francesa (1789),
provocou uma espécie de retraimento da Igreja, obrigada a condividir
com outras esferas da sociedade uma hegemonia que, havia pouco, no
período medieval, fora apenas sua.
14
Palácio ressalta que “Tradição e atualidade foram os dois pilares da revolução
­teológica protagonizada pelo Concílio. Primeiro, como experiência do ‘teologizar’ em
ato. A realização do Concílio foi o exercício concreto de uma nova maneira de fazer
teologia. Depois, porque ao fazer as suas opções o Concílio reconduziu a teologia a
seu devido lugar: a teologia pressupõe a revelação e a experiência de fé, mas não
se confunde com elas. Finalmente, pelo dinamismo teológico desencadeado pelo
Concílio. Todos os temas da teologia foram atingidos de certa forma pela reviravolta
conciliar. Em poucos anos operou-se uma verdadeira metamorfose da teologia e do
panorama teológico” (PALÁCIO, 2001, p. 38).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
151
Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças
Deveras, não obstante tentativas de uma autêntica Reforma, o débito restaurador do Concílio de Trento e do Vaticano I, – na exasperação
de épocas que se mostraram, em medida crescente, hostis em conceder
qualquer benefício à instituição eclesial –, pouco contribuiu para aproximar e favorecer as relações entre a Igreja – Sociedade Perfeita –, e o
mundo moderno – Sociedade de Indivíduos com direitos inalienáveis.
Neste sentido, o esforço de renovação eclesial indicado pelo
Concílio Vaticano II rompeu, definitivamente, com uma mentalidade
“conservadora” da tradição cristã, para instaurar uma nova hermenêutica
teológica-pastoral, não sem considerar o auxílio de novos instrumentos de
análise da realidade e que, por sua vez, implicaram na auto-compreensão
de sua ação no mundo.
Embora se possa dizer que o intento de modernização do discurso
religioso à altura dos acontecimentos provocados pela emergência da
modernidade efetivava-se, no catolicismo, tardiamente, realizava-se,
dessa maneira, a reviravolta “copernicana” no âmbito da eclesialidade
católica.
Neste acontecimento, sem dúvida, não passa despercebido a peculiar participação do Cardeal Angelo Roncalli. Eleito “Papa de transição”
aos 77 anos, em apenas quatro anos de pontificado, sua ação decidida
modificou significativamente os rumos dos últimos 400 anos da Igreja.
Em todo caso, pode-se dizer que o clima anterior à realização do Concílio,
fecundado na agudeza de incomensuráveis problemas sociais e outras
tantas iniciativas eclesiais, foi pródigo em apressar a sensibilidade do
Papa buono na urgência de convocar o Concílio.
Não bastasse a teologia negativa do final do século XIX, “Deus
está morto”, o século XX trazia as marcas trágicas de duas Grandes
Guerras e, nos seus destroços, a busca desesperada de sentido para uma
existência que, sobremaneira, via-se forçada a dar algum crédito aos
argumentos explicativos, seja do marxismo seja do existencialismo.
No âmbito eclesial, a inevitável convivência com o mundo operário,
a fermentação da Nouvelle Théologie, o movimento bíblico-litúrgico,
as iniciativas pastorais etc, não só explicitavam o caráter inadequado
e insuficiente do permanecer anacrônico de certas instâncias eclesiais,
mas, na mesma medida, antecipavam-se em indicar possibilidades e
alternativas para o engajamento da Igreja no mundo.
152
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Vitor Hugo Mendes
Sendo assim, o Vaticano II, como visibilidade de um processo
que se fez anteceder, secularmente, por inúmeras iniciativas de reforma
e que culminaram, no protagonismo de João XXIII, na convocação de
um Concílio, no sentido estrito da palavra, visava conciliar a presença
e atuação da Igreja com os novos tempos. Neste sentido, no dizer de
Palácio,
A intenção de João XXIII poderia ser qualificada como voluntariamente
moderna. Com a intuição e a simplicidade que o caracterizavam, João
XXIII deixou bem claro que o objetivo do Concílio era pensar a fé de
tal forma que ela pudesse se tornar significativa para o homem de hoje.
A volta à autêntica tradição não podia ser confundida com a obsessão
pelo passado, assim como a vontade de atualização em nada se opunha
à seriedade doutrinal do Concílio. Esse era o sentido de caracterizá-lo
como “pastoral”. Na preocupação de “fazer-se compreender” estava
inscrito o desejo de aproximação e diálogo com o mundo. Ao distinguir
o depósito da fé de suas expressões, o papa abria as portas para um
trabalho teológico livre dos entraves e da rigidez da teologia oficial. A
preocupação pastoral que levou o papa a falar em “pulo à frente”, a
questão tão moderna da linguagem, o incentivo a utilizar os métodos
modernos, são alguns indícios de que João XXIII não estava paralisado
pelo fantasma do modernismo, abrindo a Igreja e a teologia para uma
reconciliação com o mundo moderno (PALÁCIO, 2001, p. 35).
Se, por um lado, o Concílio exigia uma volta às fontes, à Tradição em sua radical expressão, à Sagrada Escritura e, dessa maneira,
re-significar os elementos constitutivos da vida cristã, a Bíblia, a Igreja
e a Liturgia (Dei Verbum, Lumen Gentium e Sacrossanctum Concilium);
por outro lado, não descurou em rumar, decididamente, para uma atitude
de abertura às realidades terrestres (Gaudium et Spes), ao ecumenismo
(Unitatis Redintegratio), às Igrejas Orientais Católicas (Orientalium
Ecclesiarum), as relações da Igreja com as Religiões não-cristãs (Nostra
Aetate) etc.
O que poderia parecer para os opositores uma nova estratégia
ou mero oportunismo, – inserir-se no mundo e se engajar nos seus problemas, desafios e possibilidades para angariar força e poder –, antes
explicitava o horizonte de uma nova fisionomia identificando a missão
evangelizadora da Igreja na sociedade: “as alegrias e as esperanças, as
tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de
todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas
e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS, no. 1).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
153
Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças
Helder Câmara, em uma conferência pronunciada em Roma, em
novembro de 1965, ao término do Vaticano II, referindo-se ao pensamento teológico, permite-nos entrever as trilhas que o Concílio abriu:
Bastem-nos os quatro séculos de anti que, no ocidente, tiveram o triste
efeito de secar a Teologia, de quase esvaziá-la. Desejamos a Teologia
que para sempre faz da Bíblia o seu pão de vida; que bebe da água profunda e pura da Patrística; lucidamente fiel às orientações do Magistério
vivo; em relação estreita com a liturgia, em relação inteligente com as
ciências, em clima ecumênico; pondo firmemente os olhos na terra dos
homens e tendo os olhos abertos para as viagens espaciais (CÂMARA
apud KLOPPENBURG, 1965, p. 529).
No espírito decidido de “volta às fontes”, o Concílio se propunha
promover a tão esperada reforma da Igreja sob o signo do aggiornamento. À luz da Sagrada Escritura, “alma de toda a teologia”, deveriam
ser revisados os fundamentos dogmáticos da interpretação doutrinal – a
Teologia Dogmática –, não sem a devida consideração do patrimônio
patrístico, quer como explicitação da “Verdade da Revelação” quer em
suas conseqüências para a história dos dogmas e para a própria compreensão da história da Igreja.
Tudo isso, tal como vem apresentado em toda clareza na Optatam
Totius, o decreto conciliar sobre a Formação Sacerdotal, havia de repercutir intensamente na vida de cada estudante, no aprendizado do saber
teológico15 e, sobremaneira, na tarefa do ensino da teologia, a começar
pela sua reformulação teórico-metodológica, sempre em vista de favorecer a ação da Igreja no mundo dos homens e mulheres.
Nessa perspectiva, o decreto orienta que “as outras disciplinas
teológicas sejam igualmente restauradas por um contato mais vivo com
o mistério de Cristo e a história da Salvação”. Ainda assim, especifica:
“Consagre-se cuidado especial ao aperfeiçoamento da Teologia Moral,
cuja exposição científica, mais alimentada pela doutrina da Sagrada
Escritura, evidencie a sublimidade da vocação dos fiéis em Cristo e
15
154
Segundo os termos do decreto, “para ilustrar quanto possível integralmente os mistérios da salvação, aprendam os estudantes a penetrá-los com mais profundeza e
a perceber-lhes o nexo mediante a especulação, tendo Santo Tomás como mestre.
Aprendam a reconhecê-los sempre operantes nos atos litúrgicos e em toda a vida
da Igreja; a procurar as soluções dos problemas humanos sob a luz da Revelação;
a aplicar suas verdades eternas à mutável condição das realidades humanas; e a
comunicá-las de modo adaptado aos homens de hoje” (OT, no. 16).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Vitor Hugo Mendes
sua obrigação de produzir frutos na caridade para a vida do mundo”
(OT, no. 16).
Entre tantos aspectos dessa grande reviravolta, um dos elementos
mais sobressalientes diz respeito ao modo como a Igreja buscou compreender o seu ser e a sua missão no mundo, respectivamente, a Constituição Dogmática Lumen Gentium e a Constituição Pastoral Gaudium et
Spes. O marco determinante, segundo alguns autores, foi a restauração
do conceito “Igreja povo de Deus”, a superação mais explícita do verticalismo e do centralismo, até então vigente, na eclesiologia advinda do
Concílio de Trento.
Embora o capítulo III da Lumen Gentium, “A constituição hierárquica da Igreja”, retorne a formulações devedoras de uma teologia
pré-vaticana, o capítulo II da Constituição Dogmática resgata, em medida
crescente, a dimensão humana da Igreja em sua legitima consistência
histórica16. Isto permite, por exemplo, que a Gaudium et Spes, ao tratar
da Igreja no mundo de hoje, de forma recorrente, possa reclamar o intercâmbio indispensável entre a visão da fé e o agir humano na história:
Movido pela fé, conduzido pelo Espírito do Senhor que enche o orbe da
terra, o Povo de Deus esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas
exigências e nas aspirações de nossos tempos, em que participa com os
outros homens, quais sejam os sinais verdadeiros da presença ou dos
desígnios de Deus. A fé, com efeito, esclarece todas as coisas com luz
nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do homem. E por
isso orienta a mente para soluções plenamente humanas (GS, nº 11).
Na medida em que o Concílio possibilitou à Igreja abrir-se à condição dos tempos modernos como lugar e história da salvação, a ruptura
provocada com o esquema anterior exigia cada vez mais alterações no
cotidiano da vida eclesial a partir da realidade do mundo. Em meio a
16
Segundo Comblin, no livro O povo de Deus, “Os padres conciliares queriam realizar
mudanças profundas na eclesiologia. Queriam expressar essa vontade de mudança
escolhendo o tema povo de Deus. Não foi inadvertência. Os padres conciliares queriam explicitamente essas palavras, entendendo-lhes muito bem o sentido. Queriam
inaugurar nova época e pôr ponto final a uma época ultrapassada. [...] A eclesiologia
anterior estava fundada no conceito de societas perfecta e se inspirava nos conceitos nominalistas segundo os quais o essencial da sociedade são os poderes que
a regem. Com essa concepção, a eclesiologia era uma hierarquiologia. Os padres
conciliares queriam explicitamente apagar esta figura e voltar às origens da Igreja,
às fontes bíblicas e patrísticas, assim como aos grandes teólogos do século XIII”
(COMBLIN, 2002, p. 20).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
155
Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças
esta desestabilização, sem tardar muito, o entusiasmo inicial de mudanças e reformas foi dando lugar à perplexidade. A recepção e aplicação
do Concilio se efetiva em uma realidade cada vez mais fragmentária e
distinta.
3 A recepção e a aplicação do Concilio: um
caminho que continua
O Concílio e o pós-Concílio, como intento de aproximação e
diálogo com o mundo moderno, deram-se, paradoxalmente, em um contexto social controvertido e de grandes turbulências. O clima de “crise”
generalizada naquele momento exigia do mundo e, portanto, não só da
Igreja Católica, situar-se em meio a grandes rupturas e outras tantas
desintegrações de valores e tradições que naufragaram na quebra dos
princípios da razão moderna. Sem esta força unificadora, cada vez mais
a vida tendia a uma flutuante flexibilização de suas tradicionais regras
normativas. Em meio a tudo isto, o mercado em constante expansão,
o alto custo do progresso, o incremento da técnica e do consumo etc,
anunciavam um futuro desafortunado.
Com a dissipação do otimismo moderno e a derrocada do Projeto
Iluminista, sob o efeito de uma multiplicidade de movimentos contraculturais e antimodernistas17, rompia-se definitiva e paulatinamente a ideia
de um sentido único, objetivo e universal, para a experiência cotidiana
das pessoas, forçadas a lidar, em todas as dimensões, com um excessivo
fluxo de novidades e outras tantas perspectivas sempre mais efêmeras
e fragmentárias.
Embora carregado de ambigüidades, em sua conjuntura mais
ampla, a culminância desse movimentado processo revolucionário,
ao contrapor e colocar sob suspeita qualquer tipo de vinculação com
o passado recente, em vias de dissolução, engendrava uma ambiência
pós-moderna e, dessa maneira, criava as condições necessárias para a
formulação de um discurso propriamente pós-moderno18.
156
17
Nesse contexto ubica-se, e alcança particular importância, o movimento de maio de
1968. Segundo Harvey, ainda que tenha fracassado em seus propósitos, na turbulência
global desse período, o acontecimento de 1968 foi paradigmático e pode ser considerado “o arauto cultural e político da subseqüente virada para o pós-modernismo”
(HARVEY, 1994, p. 44).
18
Segundo Moraes, “o discurso pós-moderno e as teorias que o compõem não expressam, por certo, um corpo conceitual coerente e unificado. Ao contrário, quando se
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Vitor Hugo Mendes
Sob esta perspectiva, o Cristianismo católico, não obstante o seu
intento de renovação, confrontava-se com uma série de dificuldades e de
impedimentos quase intransponíveis. A pretensão de oferecer uma palavra
efetiva, afetiva e não menos definitiva, em se tratando da verdade sobre
Deus, o Homem e o Mundo, ainda que buscasse considerar o caráter
autônomo e plural da sociedade, em outro extremo, pouco sintonizava
com a explícita negação de uma formulação totalizante e explicativa da
condição humana, o relativismo cultural emergente, sobretudo, no que
se referia a questões ético-morais.
Nessa conjuntura, como esclarece Palácio, “a vertiginosa rapidez das transformações modificou não só a fisionomia do mundo, mas
a situação da fé e da teologia nesse novo contexto. [...] Os primeiros
tempos pós-conciliares viram um entusiasmo avassalador e uma euforia
reformista tomarem conta da Igreja”. No entanto, prossegue o autor, “a
partir desse momento começou também, em muitos setores da Igreja, um
movimento de reação, surda mas crescente” (PALÁCIO, 2001, p. 39).
Quanto mais se distancia a realização do Concílio, tão mais problemática se transforma a sua recepção19. Enquanto, para uns, o Vaticano
quer delimitar o seu sentido, nos deparamos com uma pluralidade de propostas e
interpretações, muitas vezes conflitantes entre si. Entre os seus representantes mais
notáveis existem diferenças marcantes, e só uma leitura superficial poderia incluí-los
em uma mesma corrente de pensamento. Na verdade, o que se convencionou chamar de pós-moderno possui hoje tanta abrangência que se transformou em um tipo
de ‘conceito guarda-chuva’, dizendo respeito a quase tudo: de questões estéticas e
culturais, a questões filosóficas e político sociais” (MORAES, 1996, p. 46).
19
Em busca compreender esta problemática, Brighenti, utilizando-se de um parâmetro
comparativo, afirma: “analogicamente à crise da modernidade, há uma crise da vaticanidade” (BRIGHENTI, 1999, p. 400). Neste enquadramento, na mesma perspectiva, o
autor indica que à pós-modernidade, corresponde uma espécie de pós-vaticanidade.
Em decorrência, sua análise delineia, para a pós-vaticanidade, posturas distintas e
que são caracterizadas como de “anti-vaticanidade” e “sobre-vaticanidade”. Segundo
o autor, “a pós-vaticanidade como anti-vaticanidade se caracteriza por um desencanto
com a vaticanidade. Para a anti-vaticanidade é quase uma ironia histórica que o concílio Vaticano II tenha começado a desenvolver sua teologia dos ‘sinais dos tempos’
na euforia do desenvolvimentismo e das possibilidades ilimitadas da técnica, num
momento em que os intérpretes mais críticos da época, desde há muito, já haviam
posto à luz do dia a dialética negativa da modernidade. Por isso, ainda que tarde,
para a anti-vaticanidade é preciso denunciar o ‘mito’ Vaticano II’” (BRIGHENTI, 1999,
p. 400). Por sua vez, em outra direção, a pós-vaticanidade como sobre-modernidade,
distanciando-se desta visão que mais expressa uma “involução eclesial” e a tentativa
quase anacrônica de neocristandade, assume uma postura menos dramática e mais
dialogal. Para esta perspectiva, “nem tudo é caduco no Vaticano II, ao contrário,
suas intuições fundamentais e seus princípios orientadores continuam pertinentes e
relevantes para a época atual. [...] Na perspectiva aberta pelo Concílio, para a sobrevaticanidade, é preciso continuar repensando a relação do ser humano com a verdade
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
157
Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças
II representou a entrada da modernidade na Igreja e, na mesma medida,
a sua destruição; para outros, o processo em curso mostrava-se não só
oportuno como também, indispensável.
Diante da incomensurabilidade dos problemas que sobrevinham
de uma realidade sócio-cultural em “crise”, – o sentido plural de todas as
coisas, a emergência sempre mais forte do relativismo, enfim, a multiplicidade reinante nas formas de vida, o perspectivismo epistemológico –, a
situação deixava entrever que os desafios do mundo e da vida mostravamse muito maiores que os propósitos renovadores do Concílio.
Se, de um lado, esta situação encontrada pela Igreja revitalizou a
tendência de voltar à segurança do passado, restringindo as realizações do
Concílio Vaticano II, de outro, o ambiente plural deflagrou o incremento
de uma infinidade de novas teologias. Segundo Palácio,
Um dos resultados inesperados do pluralismo foi a emergência de outros
pólos teológicos que abriram uma brecha na hegemonia inquestionável
da teologia européia. A entrada na cena teológica, primeiro, da teologia da libertação na América Latina e, depois, das teologias asiática e
africana, foi uma afirmação do pluralismo de fato: a reflexão teológica
deve ser feita a partir do contexto cultural e social no qual é vivida a fé.
O mito de uma teologia única e universal nunca passou de uma teologia
particular indevidamente universalizada” (PALÁCIO, 2001, p. 41).
Ademais, o pluralismo no campo teológico remetia, de forma
progressiva, ao ocaso de uma teologia que, havia séculos, metodologicamente, articulava-se em torno ao caráter totalizante do tomismo. Essa
quebra, junto com a crise da razão ocidental, trazia à tona um problema
de grande extensão no âmbito da reflexão teórica, qual seja, a questão
epistemológica. A produção do conhecimento nas ciências em geral,
e na teologia, em particular, é desafiada a enfrentar, no espaço teórico
que lhe é próprio, a variante da crítica cultural. E isso leva ao desafio de
encontrar sentido para a existência humana, sem poder contar com as
bases explicativas da razão clássica.
Neste sentido, Palácio esclarece que,
a crise da teologia é a crise do próprio cristianismo, obrigado a tomar
distância do mundo e da cultura ocidentais com os quais se tinha idene a veracidade, para poder testemunhar uma verdade menos epistemológica e mais
ontológica e existencial” (BRIGHENTI, 1999, p. 400).
158
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Vitor Hugo Mendes
tificado historicamente. Por isso, a crise da razão ocidental é também
a crise da razão teológica e da majestosa construção que ela se deu na
teologia tradicional. [...] A situação de desamparo de que dá provas a
teologia atual é inseparável da radical transformação de seu horizonte
teórico (PALÁCIO, 2001, p. 43).
Assim sendo, às vésperas de comemorarmos os 50 anos do início
do Concílio Vaticano II, multiplicam-se as análises do período pósconciliar. Diante do complexo quadro de mudanças sociais, religiosas e
eclesiais, ocorridas nas últimas décadas, no embate da discussão moderna
e sua extensão pós-moderna, em se tratando de indicar perspectivas para
este grande acontecimento da Igreja20, os pontos de vista navegam um
rio caudaloso e de águas agitadas21.
Palácio, em sua análise, considera que, no período posterior ao
concílio, diante das tensões que perpassaram a sua realização, recepção e
aplicação, vários “pós-concílios” foram colocados em movimento. Assim,
este motivo teria levado o Sínodo extraordinário de 1985, por ocasião
dos 20 anos do Vaticano II, a apresentar uma interpretação “oficial” do
Concílio, de modo que, as “últimas décadas estão marcadas por esse
20
Em a Igreja contemporânea, Libanio faz, em forma de síntese, um balanço da Igreja
no encontro com a modernidade. Segundo o teólogo, “a Igreja, nas últimas décadas, tem entrado num processo decidido de enfrentamento com o mundo moderno
diferentemente das duas atitudes anteriores. Com efeito, num primeiro momento,
até o pontificado de Pio XII, ela manteve-se encastelada em sua doutrina e sistema
tradicional, lançando farpas contra a modernidade. Assumiu pouco dessa modernidade, já que a considerava um inimigo irreconciliável. Num segundo momento, com
o Concílio Vaticano II, fez as pazes com a modernidade. Assimilou muitos elementos
do seu projeto: liberdade, valorização das experiências pessoais e comunitárias,
pluralismo de opiniões, diálogo aberto com as posições diferentes, maior participação democrática nas estruturas eclesiásticas, etc. Neste terceiro momento presente,
reagindo às conseqüências negativas da aceitação ampla de valores da modernidade, estabelece um diálogo de conquista, usando, sim, os recursos técnicos mais
avançados da modernidade. Enfrenta-se com os seus contravalores, apresentando
um programa coeso de ‘Nova Evangelização’ a partir dos valores tradicionais do cristianismo. Entretanto, delineiam-se no horizonte graves problemas para essa atitude
de enfrentamento com a modernidade avançada”. [...] A Igreja, que com o Concílio
Vaticano II entrou na modernidade depois de quatro séculos de hesitação, é chamada
agora a fazer mudanças muito rápidas dentro de tempo recorde. Instituição de porte
mundial e de tradição bimilenar, facilmente presa de seu gigantismo, está a viver a
era das mudanças, do provisório, do descartável, da fragmentação, do pluralismo”
(LIBANIO, 2000, p. 184).
21
Enquanto João Paulo II reafirma o Vaticano II como “a grande graça de que se beneficiou
a Igreja no século XX”, insistindo: “nele se encontra uma bússola segura para nos orientar
no caminho que se inicia” (NMI, nº. 57), há quem se antecipe em falar da necessidade
de um Vaticano III (SOUZA, 2004), muito embora, como pondera Comblin, “não poderia
haver Vaticano III sem, primeiro, voltar ao Vaticano II” (COMBLIN, 2002, p. 05).
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
159
Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças
movimento de restauração”, acompanhado de uma forte tendência em
“voltar ao passado das seguranças, das clarezas e da uniformidade que
o modelo tradicional tornava possível” (PALÁCIO, 2001, p. 40).
Contudo, parece oportuno ressaltar que esse período de “restauração”, que coincide em grande medida com o longo pontificado de João
Paulo II, não deixa de referendar as diretrizes do Concilio Vaticano II.
Trata-se de uma “bússola segura” (NMI, 57) e, portanto, indispensável
para o desempenho da Igreja Católica nas atuais circunstancias. Muito
embora não tenhamos alternativa conciliar onde possamos ancorar os
anseios e necessidades de renovação da Igreja e da Evangelização, nesta
primeira década do terceiro milênio, também é evidente que o Vaticano
II não esgotou suas possibilidades “pastorais”. Estamos apenas a meio
século de sua realização. Sua recepção e aplicação é um caminho que
continua em aberto e que depende da audácia de, atentos aos sinais dos
tempos, seguir em frente.
Da era Ratzinger ao pastoreio de Bento XVI – em um particular
desafio de sucessão, continuidades-descontinuidades –, vemos o Papa
reafirmando o Concilio como “uma grande força para a renovação sempre
necessária da Igreja” (PF 5). Neste sentido, a celebração cinquentenária
do Vaticano II supõe a relevância de um contexto sociocultural complexo,
tanto quanto as iniciativas eclesiais de uma Nova Evangelização.
Sob a luz do Concilio, a recente promulgação da Exortação póssinodal Verbum Domini (2010), sobre A Palavra de Deus na vida e
na missão da Igreja enseja, uma vez mais, decidida volta às fontes. A
Palavra de Deus é o coração de toda a atividade eclesial (VD 1). Esta
perspectiva bíblica, sem dúvida, realça a convocação do Ano da Fé
(2012). Um tempo de especial reflexão e redescobrimento da fé (PF 4);
a hermenêutica de uma esperança secular que se expressa na caridade.
Coincidindo com os 20 anos de publicação do Catecismo da Igreja
Católica (2012) e, ainda, a realização do Sínodo sobre A nova evangelização para a transmissão da fé cristã (2012), o motu proprio de Bento
XVI, Porta Fidei, endereça a Evangelização no mundo contemporâneo:
Crer e Evangelizar. Uma dinâmica que mobiliza e impulsa a Igreja nas
trilhas da renovação conciliar, cada vez mais, chamada a ser um ambiente
de acolhida e um espaço de interlocução, como sinaliza a iniciativa do
Átrio dos Gentios.
160
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Vitor Hugo Mendes
A título de palavras finais
Recentemente, por ocasião das Jornadas Teológicas Andinas 2011,
em Bogotá, (Colômbia), D. Demétrio Valentini, Bispo de Jales (Brasil),
na conferencia inaugural, 50 Anos do Concílio Vaticano II: Esperanças,
Interrogações, desafios, insistiu na necessidade de “revisitar” o Concilio
e a importância de “retomar seus objetivos e sua dinâmica”.
De fato, trata-se de um acontecimento que, distanciado no tempo,
sente o desaparecimento dos últimos Padres Conciliares de então, memórias vivas e protagonistas da grande reviravolta na Igreja Católica;
no entanto, apresenta o belo saldo do empenho pastoral de renovação
implementado em incontáveis comunidades, paróquias, dioceses. Os que
pertencemos à geração pós-Concilio, somente com certo esforço podemos
intuir as razões de um tempo que não foi o nosso e as mudanças que se
tornaram necessárias para recriar a vida eclesial (cf. www.vivailconcilio.
it). Revisitar o Concílio é, por assim dizer, seguir avançando no necessário
propósito de permanente renovação e constante conversão pastoral.
Referências
BENTO XVI. A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja (Verbum
Domini). Roma: LEV, 2010.
_____. Porta Fidei. Roma: LEV, 2011
BILMEYER, K.; TUECHLE, H. História da Igreja. São Paulo: Paulinas,
1965, v. III.
BRIGHENTI, A. Contribuição do Catolicismo Social para a reconciliação
da Igreja com o mundo moderno. Revista Medellín, Medellín: ITEPAL/
CELAM, n. 82, v. XXI, jun. 1995. Suplemento.
_____. A Igreja Católica na América Latina na Aurora do Terceiro
Milênio. Desafios e Perspectivas. Convergência – Revista Mensal da
Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), São Paulo: Publicações
da CRB, ano XXIV, n. 325, set. 1999.
COLANTES, J. La fé de la Iglesia Católica. �������������������������
Madri: Biblioteca de Auctores Cristianos, 1995.
CONCÍLIO ECUMÊNICO DE TRENTO. Contra as inovações doutrinárias dos Protestantes. Petrópolis: Vozes, 1953.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
161
Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO I. Constituição Dogmática sobre
a fé católica (Dei Filius). Petrópolis: Vozes, 1953.
_____. Constituição Dogmática sobre a Igreja de Cristo (Pastor Aeternus). Petrópolis: Vozes, 1953.
CONCÍLIO VATICANO II. Constituições, Decretos e Declarações.
Petrópolis: Vozes, 1980.
COMBLIN, J. O Povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2002.
FRIES, H. Dicionário de Teologia. Conceitos fundamentais da teologia
atual. São Paulo: Loyola, 1971. v. V.
FRÖHLICH, R. Curso básico de História da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1987.
HÄRING, B. Que Padres ... Para a Igreja? Aparecida: Santuário,
1995.
HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1994.
JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte. São Paulo:
Paulus/Loyola, 2001.
KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II – Quarta Sessão (set.-dez.
1965). Petrópolis: Editora Vozes, 1966. p. 529-534
LEÃO XIII. Sobre a Filosofia Cristã (Aeterni Patris). Petrópolis: Vozes,
1947.
LIBANIO, J. B. Volta à grande disciplina. Reflexão teológico-pastoral
sobre a atual conjuntura da Igreja. São Paulo: Loyola, 1983.
_____. Cenários da Igreja. São Paulo: Loyola, 1999.
_____. Igreja contemporânea – encontro com a modernidade. São Paulo:
Loyola, 2000.
MENDES, V. H. Ser Igreja no Novo Milênio: A Formação Presbiteral.
Revista Encontros Teológicos, Florianópolis, ano 16, v. 1, n. 30, 2001.
_____. O Seminário e a questão educativa. Revista Teocomunicação,
Porto Alegre: PUC, v. 32, n. 137, set. 2002.
MORAES, M.C.M.M. Os “pós-ismos” e outras querelas ideológicas.
Perspectiva. Revista do Centro de Ciências da Educação, Florianópolis:
Ed. da UFSC, ano 14, n. 25, jan./jun. 1996.
162
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Vitor Hugo Mendes
PALÁCIO, C. Deslocamentos da teologia, mutações do cristianismo.
São Paulo: Loyola, 2001.
PIERRARD, P. História da Igreja. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1986.
PIO IX. Sobre os erros do naturalismo e liberalismo (Quanta Cura –
Syllabus). Petrópolis: Vozes, 1947.
SOUZA, L.A.G. Do Vaticano II a um novo concílio? O olhar de um cristão leigo sobre a Igreja. São Paulo: Loyola/CERIS/Rede da Paz, 2004.
TÜCHLE, G.; BOUMAN, C. A. Nova História da Igreja. Reforma e
contra-Reforma. Petrópolis: Vozes, 1971. v. III.
VILLOSLADA, R.G. Radici storiche del luteranesimo. Brescia:
�������������
Morcelliana, 1979.
Endereço do Autor:
Consejo Episcopal Latinoamericano – CELAM
Carrera 5 N° 118 - 31
Bogotá D.C. (Colombia)
E-mail: [email protected]
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
163
Carta das Religiões e o Cuidado da Terra
CNBB – Comissão Episcopal Pastoral para o
Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso
No Espaço da Coalizão Ecumênica e Inter-religiosa “Religiões
por Direitos”, no âmbito da Cúpula dos Povos na Rio+20 para a Justiça
Social e Ambiental, contra a mercantilização da vida e em defesa dos
bens comuns, os líderes religiosos do Brasil signatários, aderindo à iniciativa da Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo
Interreligioso da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e de
Religiões pela Paz, reuniram-se para debater a relação entre as religiões
e as questões ambientais. Como resultado do diálogo, concordou-se que
a agenda das religiões na atualidade não deve desconsiderar a agenda do
cotidiano da vida das pessoas na sociedade e das exigências da justiça
ambiental.
A agenda das religiões deve incluir os elementos que traçam
os projetos do ser humano na busca de realização da sua existência e
afirmar compromissos efetivos com a defesa da vida no planeta. Religiões, sociedade, desenvolvimento sustentável e meio ambiente não
são realidades distanciadas, mas estreitamente correlatas. As tradições
religiosas contribuem para a afirmação dos valores fundamentais da vida
pessoal, sócio-econômica e ambiental, orientando para a convivência
pacífica e respeitosa entre os povos, culturas e credos, e destes com
toda a criação.
Assim, é fundamental, na agenda das tradições religiosas hoje:
a) Apresentar ao mundo o sentido da existência humana. A
humanidade vive momentos de pessimismo, com sensação de
fracasso e desânimo, sobretudo nas situações e ambientes de
crises econômicas, de injustiças, de violência e de guerras.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012, p. 165-168.
Carta das Religiões e o Cuidado da Terra
Comprometemo-nos em fazer com que as nossas tradições
religiosas afirmem de modo concreto o valor da vida de cada
pessoa, independente da sua condição social, religiosa, cultural,
étnica e de gênero, ajudando-as na superação dos problemas que
as afligem no cotidiano, sejam eles de caráter sócio-econômicopolítico e cultural, sejam eles de caráter pisíquico-espiritual.
b) Promover a educação e a prática do respeito mútuo, do
diálogo, da convivência pacífica e da cooperação entre os
diferentes povos, culturas e religiões, fundamental no mundo
plural em que vivemos.
Assumimos o compromisso de trabalhar para a convergência
dos diferentes paradigmas culturais e religiosos dos povos,
como uma possibilidade para melhor entendermos o mundo
dentro de suas inter-relações e a convivência entre todos os
seres humanos.
c) Explicitar mais e melhor o que já possuímos em comum.
Nossas tradições já condividem valores religiosos, como a fé
em um Ser Criador, o cultivo da relação com Ele, a compreensão da origem e do fim de cada pessoa.
Comprometemo-nos a partilhar as riquezas que possuímos para
fortalecer as relações entre nossas tradições, o enriquecimento
e o reconhecimento mútuos, bases para a cooperação interreligiosa em projetos que promovem o bem comum.
d) Discernir juntos os valores que constroem a paz no mundo.
Sabemos que a paz não é simples ausência da guerra, mas é
fruto da justiça e da prática do amor.
Comprometemo-nos na promoção da convivência pacífica entre
os povos e o desenvolvimento da fraternidade e da solidariedade
universal, superando todo fundamentalismo e exclusivismo,
bem como o consumismo irresponsável, que causam conflitos
entre as pessoas e os povos.
e) Viver a compaixão para com os mais necessitados, empobrecidos e excluídos da sociedade.
Assumimos o compromisso de realizar juntos projetos sociais
que fortaleçam a solidariedade nas comunidades religiosas e
na família humana.
f) Promover o valor e o cuidado da criação. Tomamos conhecimento das ameaças à vida do planeta, consequências dos
166
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
CNBB – Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso
interesses econômicos que constroem uma cultura utilitarista
e consumista na sociedade em que vivemos.
Comprometemo-nos com o desenvolvimento de uma nova
ética na relação com o meio ambiente, capaz de orientar novas
atitudes defensoras de todas as formas de vida, sustentadas
em políticas públicas de justiça ambiental e numa mística/
espiritualidade que explicite a gratuidade e o dom da vida da
criação.
g) Afirmar elementos de uma ética comum que, sustentada nas
convicções religiosas que possuímos, seja capaz de orientar
atitudes e comportamentos de paz e de justiça, tanto dos membros das nossas tradições como de todos os povos.
Comprometemo-nos a desenvolver novos comportamentos, com
prevalência da ética da tolerância e da liberdade cultural e religiosa, do
respeito às diferenças, da dignidade de toda pessoa, da convivência entre
credos e culturas, dos direitos humanos.
Finalmente, solicitamos à Conferência das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento Sustentável Rio+20, acolher a contribuição das religiões para o cuidado da vida na terra, reconhecendo que os imperativos
morais das nossas tradições, convicções e crenças, bem como os nossos
esforços de diálogo e cooperação inter-religiosa, são imprescindíveis para
alcançarmos o desenvolvimento sustentável de toda a humanidade.
Rio de Janeiro, 19 de junho de 2012
Revmo. Dom Francisco Biasin
Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo
Inter-religioso daConferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Rev. Pe. Peter Hughes
Secretário Executivo do Departamento de Justiça e Solidariedade do Conselho
Episcopal Latino-americano (CELAM)
Revmo. Dom Francisco de Assis da Silva
Primeiro Vice-presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil
(CONIC)
Rev. Dr. Walter Altmann
Moderador do Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas (CMI)
Rev. Nilton Giese
Secretário Geral do Conselho Latino-americano de Igrejas ( CLAI)
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
167
Carta das Religiões e o Cuidado da Terra
Rabino Sergio Margulies
Representante da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (FIERJ)
Sami Armed Isbelle
Diretor do Departamento Educacional e de Divulgação da Sociedade
Beneficente Mulçumana do Rio de Janeiro (SBMRJ)
Ialorixá Laura Teixeira
Coordenadora Estadual do Instituto Nacional da Tradição e Cultura AfroBrasileiras – Rio de Janeiro (INTECAB)
Irmã Jayam Kirpalani
Direitora Européia da Universidade Espiritual Mundial Brahma Kumaris
Elias Szczytnicki
Secretário Geral e Diretor Regional de Religiões pela Paz América Latina e o
Caribe
168
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Recensões
ALMEIDA, Antonio José de, Lumen Gentium. A transição necessária. Paulus, 2005, 274 páginas.
Lucas Fernandes Bombazar*
Este trabalho do padre Antônio José de Almeida é, como a contracapa da obra diz, “uma tentativa de lançar de novo a semente do Concílio no solo invernal da Igreja”. Essa afirmação é suficiente para uma
breve apresentação da grande preocupação do autor. “Lumen Gentium.
A transição necessária” vem ser uma voz profética no seio da Igreja
contemporânea. Sinal de que, no tempo forte em que vivemos, neste ano
quando vamos comemorar os 50 anos do grande aggionarmento conciliar,
suas decisões devem ser constantemente retomadas. A obra, composta
por muitos, mas breves capítulos, é portadora de uma didática particular
que envolve a pessoa que a lê.
Na introdução, (p. 13-24) o autor apresenta um resumo dos dois
milênios de história na Igreja. Vinte e um concílios fazem parte dessa
história. Os concílios demonstram claramente que a essência da Igreja
é ser, antes de mais nada, uma Igreja de comunhão. Pois “o concílio é,
na verdade, a expressão máxima da comunhão eclesial em sua dimensão
visível e institucional. “ (p. 14) Dentre todos os concílios, que abordaram
os mais variados temas voltados à doutrina e aos dogmas em si mesmos,
o Vaticano II resgatou a dimensão eclesiológica. Assim como o Verbo
se fez carne, e isso foi tratado em outros concílios com muita propriedade, a Igreja se fez história. E disso sabiamente o Concílio Vaticano
II se ocupou.
Dois memoráveis documentos fazem parte deste corpus conciliare:
a constituição dogmática Lumen Gentium, tratando especificamente da
essência da Igreja e a constituição pastoral Gaudium et Spes, sobre a
missão da Igreja no mundo de hoje. Um concílio essencialmente pastoral,
*
O recensor é Bacharel em Filosofia pela Faculdade Vicentina de Curitiba PR e acadêmico do sétimo semestre de Teologia do Instituto Teológico de Santa Catarina.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
169
Recensões
que fez a Igreja dar passos à frente de seu tempo. E agora mais do que
nunca esses passos precisam ser renovados.
O segundo capítulo (p. 25-45) apresenta a inspiração de um Papa
considerado por muitos como um papa de transição, João XXIII, que
surpreendeu o mundo com a inauguração de um concílio que realmente
mexeu com toda a Igreja. Passou-se assim de uma Igreja ad intra, estagnada, para uma Igreja ad extra, peregrina, que caminha com os seres
humanos, em busca do Reino definitivo. De fato, o Concílio contribuiu
para a Igreja ir ao encontro dos irmãos separados, para a abertura ao
Homem contemporâneo, e para a volta às fontes patrísticas e bíblicas,
com uma inevitável conversão ao Evangelho.
Uma palavra chave, que o autor emprega repetidamente, é:
transição. Dentre tantas transições necessárias, no segundo capítulo (p.
47-56) o autor trabalha a questão da transição de uma linguagem conceitual e jurídica para uma linguagem imagética. No concílio anterior,
o Vaticano I, vimos a presença forte de uma Igreja ainda encharcada
de resquícios da cristandade, preferindo a noção de “sociedade” à de
“corpo místico de Cristo”. No Vaticano II, reforça-se a ideia da Igreja
“Corpo de Cristo”, presente na Lumen Gentium n. 7, insistindo-se em
que com isso não se está lidando simplesmente com uma “metáfora”,
mas com uma realidade de Igreja organismo vivo, que liga e religa
seus membros num só corpo.
O brevíssimo capítulo terceiro (p. 57-60), trata da transição de
uma Igreja voltada para si a uma Igreja voltada para Cristo. Fruto
desse processo é a compreensão de que, na Igreja, Cristo é sempre
o centro. Antes reconhecendo-se como sociedade perfeita, a Igreja
agora se entende como servidora da humanidade. O Reino de Deus é
maior que a Igreja.
No quarto capítulo (p. 61-66), Transição de uma eclesiologia
“cristomonista” a uma eclesiologia “trinitária”, mostra-se a Trindade como fonte e modelo da Igreja, embora Cristo possua um papel
central, seja na vida intratrinitária (Trindade imanente), seja na sua
manifestação histórica (Trindade econômica). Assim, pela eclesiologia
do Corpo Místico, o Vaticano II reencontrou a inspiração trinitária do
Novo Testamento.
Capítulo quinto (p. 67-72), a transição de uma Igreja autofinalizada a uma Igreja reinocêntrica. Na vida de Cristo, o Reino de Deus
170
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Recensões
foi o centro da sua pregação. E a Igreja, cujo início está ligado a essa
proclamação, é na terra o germe e o início deste reino. A partir daí, podese responder à questão levantada pelo teólogo modernista Alfred Loisy:
“Jesus anunciou o Reino e o que veio foi a Igreja.” Pode-se dizer, com
o autor, que “Jesus anunciou, sim, o Reino de Deus, não a Igreja; que
a Igreja é diferente, sim, do Reino; mas a Igreja nasce e vive do vigor e
da interpelação do Reino, como seu sinal, germe, início.” (p. 70)
O capítulo sexto (p. 73-78), A transição de uma Igreja socíetas a
uma Igreja mystérion, busca desenvolver a evolução que partiu da eclesiologia cristomonista – totalmente visibilista, institucional, que valorizou
a categoria de Igreja-sociedade perfeita, para a visão conciliar de Igreja
mistérica. Mistério no sentido bíblico-paulino, presente também nos
Pais da Igreja. A Lumen Gentium ocupou-se, em seu primeiro capitulo,
deste tema. No entanto, a Igreja não pode esquecer-se de que é atuante
na história, se faz história.
Capítulo sétimo (p. 79-85): A transição de uma Igreja socíetas
inaequalis a uma Igreja Povo de Deus. A Igreja era vista somente a partir
de sua hierarquia (sociedade desigual). Era uma visão puramente institucional, jurídica, clerical, verticalista da Igreja. Assim a “eclesiologia
consistia quase exclusivamente num tratado de direito canônico” (cf Y.
CONGAR, O Concílio Vaticano II, p. 15). Com o Concílio, especialmente
no capítulo segundo da Lumen Gentium, a noção de Povo de Deus vai
ocupar o lugar que, na eclesiologia anterior, era indevidamente ocupado pela noção de “sociedade desigual”. E uma revolução copernicana
acontece. Padre José Comblin faz uma equiparação muito feliz entre a
renovação bíblica que antecedeu a reforma conciliar e o novo modelo
eclesial, que, segundo ele, não devia ser novidade, uma vez que está claro
na Escritura (Cf. J. COMBLIN, O Povo de Deus, p. 29).
O oitavo Capítulo (p. 87-91) trata da transição de uma Igreja
Socíetas Perfecta a uma Igreja Sacramentum Unitatis. No contexto de
Sociedade Perfeita, a Igreja assumiu matizes de conotações morais e
ideológicas idealizadas, apresentando-se sem erros nem pecados, uma
Igreja que pensava não necessitar de conversão ou de reforma. O concílio, porém, num documento especial, formulou o programa de uma
Igreja no mundo atual, que não é mais o da Cristandade. Por isso, esse
documento se intitula: Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo
de hoje. Essa Igreja se faz, verdadeiramente, “irmã dos homens.” (Cf.
Eclesiam Suam 90). Sabendo de sua missão no mundo, a Igreja não se
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
171
Recensões
dissolve na história, mas tem uma responsabilidade histórica não apenas
acidental, mas essencial.
Nono capítulo (p. 93-97): A transição de uma Igreja centralizadora
para uma Igreja de co-responsabilidade. Como se percebe pela exposição
do autor desde os capítulos anteriores, a Igreja anterior ao Vaticano II
é uma Igreja centralizadora. Aos poucos, foi chegando à noção correta
de que a Igreja universal não é uma diocese gigantesca espalhada pelos
quatro cantos do mundo, mas é de fato constituída por um sem número
de igrejas locais, verdadeiras “igrejas”.
Capítulo décimo (p. 99-104): De uma Igreja in statu gloriae a uma
Igreja in itinere histórico. Seguindo as pegadas do Papa Bom, o bispo
de Bruges, De Smedt, chamou a atenção de todos para compreenderem
a Igreja como “especialista em humanidade”, especialmente incumbida
de proclamar a liberdade de consciência de todo ser humano e combater “a trilogia do clericalismo, do juridismo, do triunfalismo.” Todo o
aparato institucional deve estar subordinado ao anúncio do evangelho e
à comunhão de vida em Cristo. A santidade da Igreja é verdadeira, embora imperfeita, pois é “o povo de Deus a caminho”. Enquanto vive no
tempo, ela traz em si a figura deste mundo que passa. Pois está imersa
na história humana, com suas luzes e sombras.
Capítulo onze (p. 105- 114): transição de uma Igreja Dómina, Mater et Magistra a uma Igreja Serva. É perceptível para os historiadores da
eclesiologia a diferença entre a Igreja dos Pais (fim do século II ao século
VIII) e a Igreja Moderna (final do século XVI, senão já desde o final do
século XIV). Essa eclesiologia não era outra coisa senão um tratado de
direito público eclesiástico em versão apologética. O autor explica como
a Igreja foi mudando e se conformando ao poder vigente. Ela se tornou
Mãe e Mestra, ou seja, um princípio indiscutível de autoridade. Assim
foi-se infiltrando na Igreja a exterioridade ritual, a ostentação presente nas
indumentárias, as insígnias e distintivos eclesiais. O próprio episcopado
e presbiterado se tornam mais um status, confirmado por vestimentas
exteriores que imitavam as dos imperadores e pessoas ligadas ao poder.
Veja-se a opinião de São Bernardo (séc. XII) sobre tudo isso: “Aquilo
que agora se chama cúria Romana, antes se chamava igreja Romana.
Ninguém refere que Pedro andasse ornado de pedras preciosas, vestido
de seda, coberto de ouro, montado num cavalo branco, rodeado de
soldados ou acompanhado por um rumoroso séquito de criados... Em
todas estas coisas, tu pareces ter sucedido não a Pedro, mas a Cons-
172
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Recensões
tantino. Lembra-te de que a tua Igreja Romana é mãe, não dona das
outras igrejas. Daí resulta que não és senhor de todos os bispos, mas
um deles, irmão dos que amam a Deus.” (São BERNARDO, Tractatus
de Ecclesiasticis negotiis). Quanto a isso o papa bom lembrava: “Precisamos com urgência sacudir a poeira imperial que foi caindo, desde
Constantino, sobre o trono de São Pedro” (apud FESQUET, Fioretti do
bom Papa João).
Para os homens e as mulheres de hoje, “não é de um maravilhoso
hagiográfico nem do brilho de um cerimonial que virá o atrativo para a
Igreja, mas muito mais do fato de se encontrar nela a verdade da relação
espiritual de comunhão, na base de uma autêntica e exigente atitude
evangélica de fé viva, de obediência interior, de oração verdadeira, de
amor e de serviço” (apud Y. CONGAR, Igreja serva e pobre, p. 155).
Essa é a Igreja do serviço, consagrada pelo Vaticano II. Para todos os
seminaristas, a recordação da Optatam Totius, n. 9: “convençam-se os
estudantes uma vez por todas que não é ao poder e às honras que eles
se destinam, mas que se abandonem totalmente ao serviço de Deus e ao
ministério Pastoral...”.
Capítulo doze: a transição de uma Igreja comprometida com o poder a uma Igreja solidária com os pobres (p. 115-131). A história revela
que existe um antes e depois Constantino, para esse comprometimento
da Igreja com o poder. De uma religião apenas tolerada, passou a uma
religião reconhecida e por fim privilegiada. Aos poucos, Constantino
tornou-se um “décimo terceiro Apóstolo”, ao ponto de convocar concílios, e de tomar decisões até sobre questões doutrinárias. Essa relação
do espiritual/temporal foi bem administrada por papas como Gregório
Magno (590-604). Outras vezes, mal interpretada por papas como Gregório VII (1073-1085), ou Inocêncio III (1198-1216), ou ainda Bonifácio
VIII, cerca de 1300, com a polêmica bula Unam Sanctam: “Declaramos,
afirmamos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário
para a salvação de toda criatura humana que ela esteja sujeita ao pontífice
romano.” Infelizmente, essa eclesiologia de cristandade prevaleceu até
a época moderna.
Mas é maravilhoso lembrar que, mesmo em meio a tantas sombras,
brilham fortes luzes. O exemplo de Gregório Magno, que, no início do
século VII, respondeu ao Patriarca de Alexandria, que o saudara com o
título de ‘bispo universal’: “Vossa Beatitude (...) peço-lhe que não utilize
essas palavras falando de mim, pois sei o que sou e o que vós sois. Pela
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
173
Recensões
posição, vós sois meus irmãos; pelas tradições, sois meus pais” (Cf.
GREGÓRIO I, Epist. VIII). Em nosso tempo, não podemos esquecer
homens santos como Dom Hélder Câmara, entre outros que deram um
contributo determinante no andamento do Concílio Vaticano II. Agora
nasce a eclesiologia dos pobres, do Verbo encarnado na realidade do
mundo contemporâneo, agora pode o mundo estar certo de que “a Igreja olha para ele com profunda compreensão, com sincera admiração e
com o puro propósito não de conquistá-lo, mas de valorizá-lo; não de
condená-lo, mas de confortá-lo e salvá-lo” (Paulo VI, discurso na abertura
do segundo período do Concílio, em 1963).
O décimo terceiro capítulo aborda a transição de uma Igreja Arca
de Salvação a uma Igreja Sacramento de Salvação (p. 133-160). Desde
muito cedo, já com Cipriano de Cartago (séc. III), em clima de controvérsia, propagou-se o princípio: “extra Ecclesiam nulla salus”, muitas
vezes interpretado rigidamente. Assim, enquanto a teologia mantém
aberta a possibilidade de uma salvação universal, o magistério insiste
em chamar a atenção para a unicidade da Igreja verdadeira, a Católica
romana.ação à salvação escatológica. Mas, com o confronto entre as
diversas culturas e religiões, sob o modelo da relação entre o uno e o
múltiplo, constatou-se que é impossível encerrar Deus em formas históricas. Nesse sentido, graças a humanistas como Pico Della Mirandola e
Nicolau de Cusa (séc. XV), encontrou-se uma nova base para a unidade
do gênero humano. Descobriu-se paulatinamente que a unidade não se
encontra num movimento que conduz para dentro do cristianismo, mas
numa recondução do múltiplo ao uno transcendente (Renascimento).
O autor comenta quatro tendências principais relacionadas entre si:
a historização, a generalização, a racionalização e o antropocentrismo. A
historização – servindo-se do modelo histórico-evolutivo leva, por um
lado, a valorizar cada acontecimento em sua singularidade e irrepetibilidade; por outro, a colocar a verdade última, definitiva, além da história.
A historização do mundo leva à desistorização e à espiritualização do
religioso. Com a Reforma Protestante, a Igreja veio supervalorizar a apologética e assim se autoafirmar como único caminho de salvação. Eram
os três degraus da apologética católica: o ser humano é naturalmente
religioso; em seguida, o cristianismo é a verdadeira religião; finalmente,
é a Igreja Católica a verdadeira Igreja. Enfim, retomando a percepção
de Justino Mártir (séc. II), da presença das sementes do Verbo em outras
culturas e religiões, chegou-se, no Vaticano II, à Lumen Gentium, na qual
é evidente a transição de um modelo eclesiológico para outro. O Concí-
174
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Recensões
lio não nega a necessidade da Igreja para a salvação (LG 14), mas o faz
com um enfoque inovador, não mais exclusivo mas inclusivo. Assim, do
axioma: “fora da Igreja não há salvação”, passamos para outro: “fora de
Cristo, no qual subsiste a Igreja, não há salvação.” Percebe-se uma diferença qualitativa na reflexão teológica, e a busca continua hoje, cinqüenta
anos depois! Mais que no eclesiocentrismo, insiste-se no teocentrismo”,
no sentido em que tudo se origina em Deus e a Deus tende, e a Igreja
tem valor somente enquanto sinal e instrumento de Deus.
No capítulo quatorze (p. 161-177), apresenta-se o necessário nexo
entre a Constituição Dogmática Lumen Gentium e a Constituição Pastoral
Gaudium Et Spes. O autor dmonstra que entre ambas não há oposição,
mas sim complementaridade. É a transição assim expressa pelo cardeal
Suenens: “uma Igreja ad intra, que passa a ser a Igreja ad extra.” (p.
161). O elo que liga ambas as constituições é a concepção de “Igreja
Sacramento de Salvação”. A Igreja é e “sacramento de unidade dos homens com Deus e entre si”, pois é, neste mundo, a presença misteriosa
de Deus, sem esgotá-la. Para a Gaudium et Spes, a expressão “Igreja no
Mundo” está ligada à idéia de uma história assumida pelos seres humanos,
e, ao mesmo tempo, movida por Deus. “Mundo” não é aqui concebido
no sentido negativo, mas é o gênero humano e sua história. A missão de
Cristo é a missão da Igreja, sem contraposição. Cristo abraçou a humanidade em suas dores, esperanças e contradições, assim do mesmo modo a
Igreja abraça “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos
homens e das mulheres de hoje.” (Cf. GS 1) Trilhar a história humana é
dar continuidade ao caminho de salvação iniciado por Cristo.
A grande razão teológica que motivou o Concílio Vaticano II
a buscar uma Igreja aberta ao diálogo, não fechada em si mesma, é a
concepção cristã de ser humano como “imagem e semelhança de Deus”.
Essa certeza, própria da fé, rege toda a lógica da Gaudium et Spes quanto
à atitude dos cristãos e cristãs em relação aos demais seres humanos.
É a lógica do diálogo e do mútuo enriquecimento. A história humana é
também portadora do mistério. Não existem duas histórias: uma profana
e outra sagrada. Uma só é a história da salvação.
A transição de uma Igreja que se autoentendia como sociedade
perfeita a uma Igreja chamada a compreender-se como “sacramento da
união íntima com Deus”, é um processo não só necessário, mas também
doloroso. Existem tentações e serem superadas. A tentação de antecipar
o “ano sabático” numa ilha de tranqüilidade, enquanto a humanidade se
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
175
Recensões
agita em meio às ondas tempestuosas de seus projetos históricos. Essa
transição, e todas as transições apresentadas ao longo dos capítulos deste
livro, exige sem dúvida uma conversão profunda de cada um. Deus é o
Deus da história. O Verbo se fez carne. A Igreja se fez história. Se alguém
ainda pensa num cristianismo desencarnado e descomprometido com
“as dores e angústias dos homens e mulheres de hoje”, esse alguém é
herege, pois não crê que o Filho de Deus veio na carne (Cf. 1 Jo 4,2), e
consequentemente não vive isso na sua vida e nas suas opções.
No último capítulo (p. 179-190), o autor conclui a obra com a
temática mariana: a transição de uma mariologia apenas “cristotípica”
(à luz de Cristo), a uma mariologia também “eclesiotípica” (à luz da
Igreja). A humildade de Maria sempre nos ensina. E o capítulo VIII da
Lumen Gentium, apresentando Maria como ícone, mas membro da Igreja
– não dela separada – é um verdadeiro divisor de águas para a mariologia, superando o temor de alguns Padres de que a inclusão de Maria no
esquema eclesiológico significaria uma diminuição da glória da Mãe do
Senhor.O texto do referido capítulo VIII contém o que havia de melhor
na tradição mariológica católica. O gênero literário aplicado é bíblico e
narrativo, uma opção feliz, sobretudo numa perspectiva ecumênica. Em
sua metodologia, mostra os quatro pontos fundantes desta mariologia: o
princípio da solidariedade (ou seja, do estreito envolvimento de Maria
na história de Jesus); o princípio da singularidade (a relação única de
Maria com Jesus); o princípio da eminência (Maria representa o máximo
da eficácia da graça de Cristo num ser humano não assumido hipostaticamente); o princípio de exemplaridade (conseqüência dos princípios
anteriores, Maria representa o modelo, o exemplar, o tipo daquilo que o
cristão e a cristã são chamados a ser).
Concluamos, com o autor. A Igreja é não apenas sinal, mas realidade da salvação. Se, de um lado, o aspecto espiritual se manifesta no
institucional, que age como sinal e instrumento do primeiro, por outro, o
aspecto social da Igreja é sustentado, vivificado e justificado pela realidade espiritual, que o envolve e permeia. Este é o verdadeiro equilíbrio de
uma Igreja simultaneamente visível e espiritual. Se os Bispos viajaram
a Roma, para o Concílio, como “príncipes”, mesmo na melhor acepção
do termo, de lá voltaram como “servos dos servos de Deus.” Esta é a
característica dessa Ecclesia Semper Reformanda e Casta Meretrix, uma
Igreja sempre em vias de conversão, com a consciência de que é santa
e pecadora, não num dualismo inconciliável mas num sentido pleno do
ser divina e humana. Uma Igreja peregrina, povo de Deus, Igreja mais
176
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Recensões
carismática e por isso plural; feita de unidade na multiplicidade; uma
Igreja toda ministerial, ecumênica e mariana. Eis a Igreja do Concílio mais
eclesiológico e pastoral de todos os já realizados. Vale a pena revisitá-lo,
para dele poder colher os frutos ainda não percebidos.
Endereço do Recensor:
Rua Cônego Thomaz Fontes, 192
Bairro Santa Mônica
CEP 88035-030 Florianopolis, SC
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
177
Recensões
Livros de nossos professores
BESEN, José Artulino, História da Igreja no Brasil – O Evangelho
acolhido pelos pobres, São Paulo, Ed. Mundo e Missão, 2012,
22.5 x 15.5 cm., 280 p.
Pe. Ney Brasil Pereira*
Parte deste livro foi escrita no contexto histórico da celebração dos
500 anos do Brasil e do Projeto Rumo ao Novo Milênio. Reformulado
totalmente e ampliado, 12 anos depois, continua dirigido a quem desejar
ter um primeiro contato com a história da vida católica brasileira. São
pontos da história da Igreja a partir do povo, dos pobres, os verdadeiros
agentes da história eclesial, e sempre a maioria da população brasileira.
Nesse povo, estão incluídos todos aqueles que trabalharam pela causa
do Reino em nosso país. A história novamente se volta para pessoas cuja
vida transforma uma época ou instituição. Está muito forte a aceitação
de biografias. Convicto dessa importância na vida da Igreja – ninguém
pode negar que Francisco de Assis mudou o século em que viveu – o autor
procurou nesta edição traçar pequenas biografias, apresentar homens e
mulheres que, de modo excepcional, se consagraram ao Evangelho do
Senhor. Deveria ser aumentada a lista, mas o espaço de um livro impõe
limitações e escolhas.
A atenção dedicada aos indígenas, aos negros, aos missionários
populares, como Pe. Ibiapina, Pe. Cícero, às mulheres plantadoras e sustentáculo de comunidades, leva o leitor à alegria do Evangelho encarnado
no mundo do povo, dos humildes que aceitam a Boa Nova de Jesus de
Nazaré. As figuras ímpares de Dom Hélder, Dom Luciano, Dom Aloísio
revelam a grandeza desses homens, verdadeiros Pais da Igreja.
Chama atenção a qualidade gráfica, a riqueza de imagens que, por
si só, explicitam a História. Pe. José Artulino Besen, há 38 anos professor de História da Igreja no ITESC, conseguiu transmitir, com clareza e
sinceridade, a beleza e riqueza do Evangelho acolhido pelos pobres.
*
178
O recensor é Mestre em Ciências Bíblicas e professor do ITESC e da Faculdade
Católica de Santa Catarina, FACASC, em Florianópolis.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Recensões
BESEN, José Artulino, História da Igreja – da idade apostólica
aos nossos tempos, São Paulo, Ed. Mundo e Missão, 2012, 22.5
x 15,5 cm., 295 p. 2. ed.
Pe. Ney Brasil Pereira*
Uma “História da Igreja” diferente. Diferente pelo espírito “de
humildade e realismo” com que foi elaborada e publicada. Uma História
da Igreja que leva à penitência e à gratidão a Deus, pela superação dos
pecados. Uma “História da Igreja” diferente, como vê-se nas palavras do
autor: “Ao elaborar esta breve História da Igreja, tive de fazer escolhas
no tratar alguns temas e deixar outros de igual ou até maior importância, oferecendo uma visão complexiva do acontecer da Igreja situada
na história dos homens, e assumindo atitude ecumênica no respeito às
outras histórias de Igrejas e Comunidades cristãs.” A obra, publicada
em comemoração do Grande Jubileu, no ano 2000, sai agora, revista,
em 2ª edição.
É significativa a citação de Santo Agostinho, encabeçando todo
o livro: “A arca de Noé tinha tanto o corvo como a pomba, os dois
gêneros. Se a arca é prefiguração da Igreja, observai que, neste dilúvio
do mundo, é inevitável que a Igreja contenha os dois gêneros, tanto o
corvo como a pomba. Quem são os corvos? São aqueles que buscam
as próprias coisas. Quem são as pombas? São aqueles que procuram
as coisas que são de Cristo” (Agostinho, In Joan. Ev. 6,2). E ainda, do
autor, o convite ao leitor: “O leitor é convidado a não deter-se nos pecados ou nas vitórias, mas a ter sempre presente que a confessio peccati
é também confessio laudis: confessando nossos pecados, proclamamos
o louvor de Deus” (p.10).
Quanto ao capítulo final (capítulo 75, pp. 288-292), o autor faz
questão de fechar o seu livro com a memória do gesto profético de João
Paulo II, sua grande confissão, na quaresma do Ano Santo do Grande
Jubileu. Após esse gesto, conclui o autor, “todo triunfalismo na Igreja
não passa de doença espiritual de almas reacionárias. Se o uso do poder
provocou tantos pecados, o caminho que Jesus oferece aos seus discípulos
é o do humilde serviço evangélico ao ser humano” (p. 292).
Creio que esta “História da Igreja” fará um grande bem. A franqueza, ou, como já dito acima, o “espírito de humildade e realismo” com que
aborda os diversos temas, mesmo os mais espinhosos (século de ferro,
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
179
Recensões
Inquisição, Reforma, absolutismo, questão social etc), contribuirá com
certeza para seu positivo esclarecimento. Do ponto de vista didático,
os pequenos capítulos se prestam a seminários, palestras, debates, nos
cursos de Teologia para leigos ou em cursos de cultura religiosa nas
universidades. Parabéns ao autor.
E-mail do Recensor:
[email protected]
180
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Crônicas
Tríduo bíblico sobre “Animação bíblica da pastoral”
Celebrando o 40º aniversário do ITESC e o 50º do Concílio Vaticano II, nos dias 04 a 06 de junho último a comunidade acadêmica da
Faculdade Católica de Santa Catarina (FACASC) e do Instituto Teológico
de Santa Catarina (ITESC) esteve envolvida com o Tríduo Bíblico sobre
“Animação bíblica da vida e da pastoral”. O objetivo do tríduo foi socializar as conferências e debates havidos no 1º. Congresso de Animação
Bíblica da Pastoral, promovido pela CNBB em outubro de 2011, em
Goiânia. Nessa ocasião, os participantes, provindos das dioceses de nosso
Regional Sul IV, comprometeram-se a repassar o conteúdo do Congresso
e, a partir dele, motivar a reflexão sobre a importância da animação bíblica da pastoral em todos os âmbitos de nossa Igreja catarinense. Neste
sentido, a FACASC, através do Núcleo de Estudos Bíblicos, promoveu
o Tríduo Bíblico sobre a Animação Bíblica da Pastoral, com o objetivo
de proporcionar a oportunidade não só de conhecer o conteúdo refletido
no Congresso, mas também de partilhar como a animação bíblica da
vida e da pastoral – uma das cinco urgências da ação evangelizadora da
Igreja no Brasil – pode dinamizar a vida, as estruturas e a ação da Igreja
em sua totalidade.
A programação constou das seguintes conferências, todas elas
seguidas de animados debates: A Animação Bíblica da Pastoral no Brasil
(com Dom Jacinto Inácio Flach e Pe. Antônio Mendes, da Diocese de
Criciúma); Da Pastoral Bíblica à Animação Bíblica de toda a Pastoral
– Do Concílio aos nossos dias (com Pe. Osmar Debatin, da Diocese de
Rio do Sul); A Igreja num mundo em mudança, e A Pastoral na vida da
Igreja – Repensando a Missão Evangelizadora em tempos de mudança
(com Pe. Márcio Martins Rosa, da Diocese de Caçador); A Palavra
preparada, encarnada e anunciada (com os professores Sílvia Togneri
e Celso Loraschi, da Arquidiocese de Florianópolis; A Palavra de Deus
é viva e eficaz (com Ir. Marlene Bertoldi e a Comissão Regional de Animação Bíblica da Pastoral). Assim, numa programação conjunta com
o Regional Sul IV da CNBB, todas as dioceses catarinenses estiveram
envolvidas na formação de nossos estudantes.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
181
Crônicas
Confirmou-se no Tríduo o anseio da Mensagem final do I Congresso Nacional de Animação Bíblica da Pastoral de que “a Animação
Bíblica da Pastoral é uma dádiva de Deus capaz de reavivar na Igreja
a consciência de sua missão e de sua identidade; capaz de renovar e
dinamizar a vida, as estruturas e a ação da Igreja em sua totalidade”.
Todas as palestras do 1º. Congresso de Animação Bíblica da Pastoral, de Goiânia, encontram-se à disposição dos interessados no site da
FACASC: <www.facasc.edu.br>.
1º. Simpósio de Intelectuais e Profissionais Católicos
No contexto das celebrações do Jubileu de Rubi (40 anos) do
ITESC, a FACASC promoveu o 1º. Simpósio de Intelectuais e Profissionais Católicos, no último dia 09 de agosto, à noite. O auditório de nossa
faculdade ficou repleto de pessoas interessadas, membros de comunidades, pastorais e movimentos, intelectuais e profissionais, que aderiram ao
convite. Coordenado pelo Diretor Administrativo, Pe. Dr. Vilmar Adelino
Vicente, o simpósio foi aberto por Dom Wilson Tadeu Jönck, arcebispo
metropolitano, que exaltou a importância do evento e fez votos de que
a FACASC assuma com coragem sua missão de fazer-se mais presente
na sociedade catarinense. Em seguida, o Diretor da FACASC, Pe. Dr.
Vitor Galdino Feller, proferiu conferência sobre “O perfil do intelectual
e do profissional católicos diante dos apelos do Concílio Vaticano II”.
Após as reações dos convidados Dr. Alberto Oscar Cupani, professor
de Filosofia da Ciência e da Tecnologia no Curso de Filosofia da UFSC
e Dra. Salma Ferraz, ensaísta, crítica literária, escritora e coordenadora
do Núcleo de Estudos em Teologia e Literatura (NUTEL) da UFSC,
abriu-se espaço para o debate, em que uma dezena de participantes
manifestou seu apreço pelo evento e pela proposta do conferencista de
um diálogo mais profícuo da Igreja e da Teologia com o mundo que nos
cerca. Por fim, diante do projeto anunciado pelo Pe. Vilmar, a assembleia
dos participantes manifestou-se positivamente quanto à continuidade de
eventos desse porte.
Formação Continuada de Docentes
Bom número de professores reuniu-se no dia 14 de agosto, à tarde
e à noite, para dar continuidade à formação dos docentes da FACASC e
do ITESC. Inicialmente, foi apresentado a todos, pelo Pe. Dr. Edinei da
182
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Crônicas
Rosa Cândido, presidente da Comissão Própria de Avaliação, o resultado
da primeira avaliação feita pelos alunos acerca da infraestrutura da FACASC e da metodologia de ensino dos professores do primeiro semestre.
Anunciou que a avaliação a ser feita no segundo semestre terá maior
abrangência, envolvendo também o corpo técnico-administrativo e o
corpo docente. Insistiu na necessidade de estarmos atentos aos resultados
dessas avaliações, que apontam lacunas e problemas, com o desafio de
os resolvermos do melhor modo e o mais imediatamente possível.
Em seguida, sob a coordenação da Diretora Pedagógica, Profa.
Ms. Ana Cristina Barreto Floriani, os professores estudaram dois textos
significativos no campo da formação pedagógica: 1) Docência no Ensino
Superior: professor aulista ou professor pesquisador?, de Jeiffieny da
Silva Costa; e Metodologia do Ensino Superior ou Ética da Ação do
Professor?, de T.M. Baibich-Faria e F. Meneghetti.
Ambos foram muito úteis para a percepção de que não se pode
fixar a ação do ensino superior só como transmissão de conhecimentos,
mas que é urgente contrapor-se à prática de “professor aulista” e servirse de elementos que enriqueçam a prática pedagógica. Assim, convém
ressaltar a relação de afetividade entre docente e discentes, através da
cooperação, do trabalho em equipe e da solidariedade entre educador e
educando. Pois a ação educativa é complexa, e se constitui do processo
ensino-aprendizagem, na pesquisa, na atualização contínua, na gestão de
contextos educativos e na perspectiva da gestão democrática; e, ainda, no
estímulo da criação cultural e do desenvolvimento do espírito científico
e do pensamento reflexivo. Quanto ao perfil do docente universitário,
insiste-se em quatro eixos: a preparação pedagógica; a visão do professor
como conceptor e gestor do currículo; a relação professor-estudante e
estudante-estudante; e o domínio da tecnologia educacional. Conclui-se
que o ensino implica em compromisso ético pleno.
Estimulados por essas novas percepções, os professores da FACASC e do ITESC percebem que é urgente desenvolver um projeto
sistemático e orgânico que favoreça e estimule sua própria formação,
sobretudo no campo da didática e da pedagogia.
Cursos de Extensão
Os Cursos de Extensão da FACASC têm o objetivo de contribuir
para a formação de lideranças leigas. Esses cursos vêm funcionando
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
183
Crônicas
desde o tempo da fundação do ITESC, em 1973. Seguindo a programação estabelecida para essa formação, que tem um ciclo de dois anos,
a partir do primeiro semestre de 2012 estão acontecendo os cursos de:
Teologia Sistemática com 45 alunos; Bíblia-Segundo Testamento com
47 alunos; Teologia Litúrgica-Fundamental com 32 alunos e Teologia
Catequética-Pastoral com 18 alunos. E, também, para atender as necessidades das comunidades cristãs no campo do Canto e Música Litúrgica,
neste segundo semestre de 2012, teve início o Curso de Canto e Música
Litúrgica, o qual conta com 74 alunos.
Congresso Teológico sobre o Concílio Vaticano II
Para celebrar os 40 anos do ITESC, a FACASC está promovendo
um Congresso Teológico com o tema Concílio Vaticano II – Memórias
e Perspectivas, a realizar-se nos dias 3 a 6 de setembro deste ano.
A programação consta das seguintes conferências e respectivos
conferencistas: Na segunda, dia 3, de manhã, “Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos”, com a teóloga carioca Maria Clara
Bingemer, e à tarde, “Lumen Gentium: Pilar Eclesiológico do Concílio
Vaticano II”, com nosso diretor, o Pe. Vitor Galdino Feller. Na terça, dia
4, de manhã, “50 anos do Concílio Vaticano II – Esperanças e Desafios”,
com Dom Luiz Demétrio Valentini, Bispo de Jales, SP, e à noite, “Igreja,
Sociedade e Juventude”, com o teólogo jesuíta mineiro, Pe. João Batista
Libânio. Na quarta, dia 5, de manhã, “Formação Presbiteral na Igreja
Atual”, também com o Pe. João Batista Libânio, e à noite, “40 Anos da
Caminhada do ITESC”, com nosso professor de história da Igreja, Pe.
José Artulino Besen. Concluindo o congresso, na quinta, dia 6, de manhã,
teremos a conferência “Gaudium et Spes: Pilar Teológico Pastoral do
Concílio Vaticano II”, com nosso ex-diretor, o teólogo uruguaio leigo,
Dr. Daniel Ramada Piendibene, atual embaixador do Uruguai Junto à
Santa Sé.
Na noite de quinta, dia 6, a FACASC patrocina a apresentação
teatral “O Contestado”, no Teatro Pedro Ivo Campos, pelo Grupo TOCA
de Teatro Universitário, da UNOESC, de Joaçaba, SC.
Encontro dos Ex-alunos do ITESC e Sessão Solene na ALESC
Anteriormente programado para o dia 7-9, logo após o Congresso
Teológico, o Encontro dos ex-alunos será realizado no dia 15-10, segunda
184
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Crônicas
feira, com várias atividades previstas durante o dia, e concluindo com
uma Sessão Solene na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, em
homenagem aos 40 anos do ITESC.
Blog sobre o Ano da fé
Com a Carta Apostólica Porta Fidei (A porta da fé), de 11 de
outubro de 2011, o Papa Bento XVI proclamou o Ano da Fé, que se
estenderá de 10 de outubro de 2012 a 24 de novembro de 2013. Ocasião próxima do Ano da Fé é a celebração dos 50 anos do início do
Concílio Ecumênico do Vaticano II, anunciado e iniciado pelo Papa
João XXIII e, com a graça de Deus, concluído pelo Papa Paulo VI.
O ITESC e a FACASC decidiram oferecer ao povo de Deus a
oportunidade de refletir sobre cada Documento do Vaticano II, com
explicitação dos textos. Finalidade: ler e conhecer melhor a riqueza
teológica, espiritual e pastoral que os Padres Conciliares ofereceram a
toda a Igreja, riquezas ainda pouco conhecidas e exploradas.
Com essa finalidade, o ITESC e a FACASC, sob a coordenação do
Pe. José Artulino Besen e a administração técnica do Pe. André Sperandio
(da Igreja Ortodoxa), editam o blog <anodafe.wordpress.com> dividido
em três partes: Documentos de João XXIII; Documentos do Concílio,
e comentários elaborados por nossos professores. Os textos já estão
sendo editados e são um ótimo instrumento de formação para padres,
religiosos, agentes de pastoral e povo de Deus.
Interdiocesanos reúnem 12 mil
Quatro encontros interdiocesanos simultâneos de Grupos de
Reflexão, Famílias e Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) reuniram
cerca de 12 mil pessoas nas dioceses do Regional Sul IV da CNBB, no
estado de Santa Catarina, dia 20-05. “Justiça e profecia no campo e na
cidade” foi o tema da terceira edição do evento, que reuniu animadores,
líderes e participantes desses Grupos.
As dioceses de Caçador, Joaçaba e Chapecó, reuniram-se em Xaxim, com 3,5 mil pessoas. De início, caminharam por dois quilômetros
com três Bíblias Sagradas, postas em peneiras confeccionadas por indígenas. Uma memória à tradição da festa do “Dia do Divino”, celebrada
por povos nativos da região.
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
185
Crônicas
A celebração de abertura continuou na Igreja Matriz, presidida
pelo bispo de Chapecó, Dom Manoel João Francisco.
“Foi um momento de romaria, de sair cedo de casa, de caminhar, rezar, cantar, encontrar-se com os companheiros de caminhada e de missão.
Momento de encontrar Deus, que caminha junto do seu povo” declarou
o padre Paulo Cézar Klein de São Domingos, Diocese de Chapecó.
À tarde, no ginásio paroquial, as dioceses apresentaram três temas
centrais: os cem anos do Contestado (Caçador), Abertura do Concílio
Vaticano II (Joaçaba), e História e Animação bíblica dos Grupos de
Reflexão (Chapecó).
No litoral, 4 mil pessoas das Dioceses de Criciúma, Tubarão e a
Arquidiocese de Florianópolis realizaram o evento no CEAR, em Governador Celso Ramos. Problemas sócio-econômicos, políticos, ecológicos
e religiosos foram abordados.
De acordo com a assessora Sirlei Antônia Gasparetto, de Chapecó,
o cristão deve ser profeta da justiça. “O próprio caminho do Evangelho
nos mostra isso. A luz da inculturação do Evangelho e a iniciação cristã
vem dos grupos de reflexão, que são célula viva da Igreja de Jesus Cristo. A Palavra de Deus vai entrando em nós. E, como fermento, vamos
transformando o mundo para melhor”, disse.
Padre Vilson Groh, da Arquidiocese, discutiu as urgências das
Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, apresentadas pelas
dioceses em forma de teatro. Ele disse que é preciso entrar nas estruturas
da cidade a partir dos pobres. “Os Grupos de Famílias são os espaços
onde se faz a experiência mística e completa da Palavra de Jesus Cristo.
São espaços de serviço, de diálogo. Enviam-nos à missão de formar
comunidade nos prédios, periferias e áreas rurais”, analisou.
As Dioceses de Blumenau e Joinville levaram a Jaraguá do Sul,
também, aproximadamente, 4 mil pessoas. Além do tema oficial, elas
comemoraram o 46º Dia Mundial das Comunicações. A apresentação
de uma banda local animou o evento, que ainda teve orações, reflexão e
partilha de experiências das dioceses.
Uma programação similar aconteceu em Taió com 600 pessoas das
Dioceses de Lages e Rio do Sul. A missa de encerramento foi concelebrada por Dom Augustinho Petry e Dom Irineu Andreassa, de Rio do Sul
e Lages, respectivamente. Com a metodologia ver-julgar-agir, o objetivo
186
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Crônicas
dos encontros, que são bianuais, é celebrar a caminhada e fortalecer a
missão dos Grupos de Família/Reflexão e das CEBs.
Outra atividade regional destes grupos será o 11º Encontro Estadual das CEBs, programado para 07 a 09 de setembro. As delegações das
dioceses do interior visitarão comunidades da periferia de Florianópolis,
inspiradas pelo lema “CEBs: Justiça e profecia a serviço da vida”.
Curso especial de Teologia Hebraica
Entre os dias 13 a 15 de agosto de 2012, no período matutino
e vespertino, na FACASC, tivemos um Curso de Teologia Hebraica,
ministrado pelo Pe. Vitório Cipriani, especialista em teologia hebraica
pela Universidade de Jerusalém e professor na Faculdade Assunção, em
São Paulo. Estiveram presentes alguns professores, e principalmente os
alunos do primeiro ano da FACASC e os do segundo ano do ITESC.
Durante o curso buscou-se fazer uma análise profunda de grandes
temáticas bíblicas, analisando-as a partir de uma perspectiva históricocrítica, buscando entender o Segundo Testamento a partir da herança
recebida do Primeiro Testamento, quer dizer a herança do mundo judaico. Pe Cipriani é um homem com conhecimento profundo da tradição
rabínica, o que nos proporcionou analisar as Escrituras na perspectiva
do judaísmo, o que é sem dúvida a maior riqueza do curso.
Suas colocações, lúcidas e coerentes, despertaram em muitos de
nós novos questionamentos, como que novas “brasas acesas sobre nossas
cabeças”, brasas que sustentam o fogo de nossa fé. Essas novas questões nos auxiliam a entender cada vez mais nossas raízes, para sermos
coerentes com a fé que professamos. Num tempo de tantas incertezas e
extremismos, inclusive dentro da Igreja, um curso como este ajuda muito
a encontrar um caminho de equilíbrio e de diálogo no debate teológico
contemporâneo. (Murilo Guesser, aluno do 1º ano da FACASC)
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
187
Hino para os 40 anos do ITESC
Letra: Claudemir Serafim, diocese de Tubarão
1. A Ciência divina e criadora
De saber e inteligência nos dotou (Eclo 1,1).
Quis que dela conhecêssemos a Glória (Jo 1,14)
E o ITESC, dom da Fé, assim brotou.
Refrão: Glória a vós, Trindade Santa, ó Mistério sem igual!
Pelo ITESC nós vos louvamos, com um canto sideral.
O saber da Teologia nos ajude a compreender
Que a missão de cada dia é a Vida promover (cf. Jo 10,10).
2. Teologia com o chão da nossa história,
Revelando os sinais da Salvação,
Foi o sonho dos Pastores de outrora
E nos guia nestes tempos, na Missão.
3. Padre Paulo*, com firmeza e ousadia,
Lança as bases do Instituto a se formar:
Foi semente que, ao morrer, trouxe alegria (cf Jo 12,24),
Pois seus frutos viemos hoje celebrar.
4. Mergulhados nas Sagradas Escrituras,
Quais discípulos, dispostos a escutar (cf Is 50, 4b),
Entendamos que a toda criatura
O evangelho nós devemos anunciar (cf Mt 28,19)!
5. Jubilosos, entoemos este hino:
Quatro décadas, os frutos a colher!
Pelo ITESC,que celebra suas bodas,
Gratidão, ó Senhor, viemos render!
* Padre Paulo Bratti, falecido prematuramente em 15-05-1982, foi o
primeiro Diretor do ITESC.
Encontros Teológicos – 25 anos
REVISTA “ENCONTROS TEOLÓGICOS”
1986 – 26 ANOS – 2012
Títulos dos 62 números monográficos
1986, n. 1 (1986/1): O Leigo na Igreja
n. 2 (1986/2): Planejamento Pastoral do Regional Sul IV –
Contribuições
1987, n. 3 (1987/1): A Mulher, ontem e hoje
1988, n. 4 (1988/1): No Ano Mariano, Maria
n. 5 (1988/2): Comunicação e Evangelização
1989, n. 6 (1989/1): Religiosidade Popular em Santa Catarina
n. 7 (1989/2): Experiências Pastorais em Santa Catarina
1990, n. 8 (1990/1): A Mulher, na Igreja e na Sociedade
n. 9 (1990/2): O Trabalho
1991,n. 10 (1991/1): A visita do Papa à Igreja que está em Santa
Catarina
n. 11 (1991/2): Os Jovens e a Juventude
1992,n. 12 (1992/1): Evangelização da América Latina – 500 anos
e †Pe. Paulo Bratti – 10 anos
n. 13 (1992/2): Fraternidade e Moradia – CF 1993
1993, n. 14 (1993/1): Santo Domingo – o Documento
e ITESC – 20 anos
n. 15 (1993/2): Fraternidade e Família – CF 1994
1994, n. 16 (1994/1): Política e Igreja e Centenário de Dom Jaime
de Barros Câmara
n. 17 (1994/2): Fraternidade e Excluídos – CF 1995
1995, n. 18 (1995/1): A Era do Espírito
n. 19 (1995/2): Fraternidade e Política – CF 1996
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
189
Encontros Teológicos – 25 anos
1996, n. 20 (1996/1): Espiritualidade e Espiritualidades
n. 21 (1996/2): Fraternidade e Encarcerados – CF 1997
1997, n. 22 (1997/1): Cristo, Fé e Batismo
n. 23 (1997/2): Fraternidade e Educação – CF 1998
1998, n. 24 (1998/1): Espírito Santo, Esperança e Crisma
n. 25 (1998/2): Fraternidade e Desempregados – CF 1999
1999, n. 26 (1999/1): Deus Pai, Caridade e Reconciliação
n. 27 (1999/2): CF 2000 Ecumênica: Por um Milênio sem
exclusões
2000, n. 28 (2000/1): Trindade, Eucaristia, Jubileu
n. 29 (2000/2): CF 2001: Vida, sim; drogas, não!
2001, n. 30 (2001/1): Ser Igreja no novo Milênio
n. 31 (2001/2): CF 2002: Fraternidade e Povos indígenas
2002, n. 32 (2002/1): CNBB: 50 anos de serviço à Evangelização
no Brasil
n. 33 (2002/2): Concílio Vaticano II: 40 anos depois
2003, n. 34 (2003/1): CF 2003: Fraternidade e Pessoas Idosas
n. 35 (2003/2): Ética e Teologia
n. 36 (2003/3): ITESC – 30 anos
2004,n. 37 (2004/1): CF 2004: Fraternidade e Água
n. 38 (2004/2): O escândalo da Fome
n. 39 (2004/3): Lumen Gentium – 40 anos
Pessoa, Comunidade, Sociedade
2005, n. 40 (2005/1): CF 2005 Ecumênica: Solidariedade e Paz
n. 41 (2005/2): A Eucaristia: Ele está no meio de nós
n. 42 (2005/3): Gaudium et Spes – 40 anos
2006, n. 43 (2006/1): CF 2006: Fraternidade e Pessoas
com deficiência
n. 44 (2006/2): XV Congresso Eucarístico Nacional
– maio de 2006
n. 45 (2006/3): Conferência Geral do Episcopado Latino
Americano e Caribenho
Aparecida – preparação
190
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
Encontros Teológicos – 25 anos
2007, n. 46 (2007/1): CF 2007: Amazônia, Vida e Missão nesse chão
n. 47 (2007/2): Espiritualidade
n. 48 (2007/3): A Igreja em Santa Catarina
2008,n. 49 (2008/1): CF 2008: Fraternidade e Defesa da Vida
n. 50 (2008/2): A Igreja em Santa Catarina – II
n. 51 (2008/3): A Igreja no Documento de Aparecida
2009, n. 52 (2009/1): CF 2009: Fraternidade e Segurança Pública
n. 53 (2009/2): Ano Sacerdotal: 2009-2010
n. 54 (2009/3): Diaconato Permanente
2010, n. 55 (2010/1): CF 2010 Ecumênica: Economia e Vida
n. 56 (2010/2): Igreja e Sociedade
n. 57 (2010/3): O Projeto Pastoral de Aparecida
2011, n. 58 (2011/1): CF 2011: Fraternidade e a Vida no Planeta
n. 59 (2011/2): VERBUM DOMINI: Exortação pós-sinodal
de Bento XVI
n. 60 (2011/3): Presbítero: vida e missão
2012, n. 61 (2012/1): CF 2012: Fraternidade e Saúde Pública
n. 62 (2012/2): Vaticano II: 50 anos
Encontros Teológicos nº 62
Ano 27 / número 2 / 2012
191
A Nossa Senhora do ITESC
Texto e Música: Pe. Ney Brasil
Refrão: Ó Nossa Senhora do ITESC, ó nossa Mãe,
ouvi o louvor e a oração, ó Mãe de Deus!
1. Formastes Jesus Sacerdote, / a Ele ensinastes a andar, / a Ele que
é a Palavra fizestes falar,
No lar-Nazaré o educastes, / no lar, Seminário de amor, / atenta a
seus primeiros passos que levam ao Tabor.
Maria, rogai por nós! Formai-nos, também a nós!
2. No início do seu ministério, / o vinho faltando em Caná, / a vossa
palavra o levou a sua Glória mostrar,
Olhai para nossas carências, / nossa água em vinho mudai, / e tudo
o que Ele disser nós faremos ao Pai!
Maria, rogai por nós! Formai-nos, também a nós!
3. Na Cruz estivestes com Ele, / com Ele quisestes sofrer, / e Mãe
vos tornastes de quem vos quiser receber,
Pois nós, como João, decidimos / no ITESC, entre nós, acolher-vos,
/ Mostrai que vós sois Mãe fiel destes filhos e servos!
Maria, rogai por nós! Formai-nos, também a nós!
4. Ó Mãe da Unidade, Maria, / que lá no Cenáculo orastes / e os dons
do Espírito Santo à Igreja alcançastes,
Fazei que a unidade busquemos / aquela que faz superar / as rixas
e as divisões mais profundas que o mar...
Maria, rogai por nós! Formai-nos, também a nós!

Documentos relacionados