O luxo está em plena expansão

Transcrição

O luxo está em plena expansão
01-06-2012 | Ípsilon
O luxo está
em plena
expansão.
É o consumo
imprudente
que está
em crise
Tiago Bartolomeu Costa
Pág: 32
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Semanal
Área: 26,82 x 31,82 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 2
PEDRO CUNHA
ID: 42087240
Tiragem: 46102
Em 2003, o filósofo francês Gilles
Lipovetsky (Millau, 1944) escreveu
com Elyette Roux um livro em que
distinguia o luxo público, secular,
com vista ao bem social, do luxo privado, associado à qualidade de vida
e à alteração dos padrões de consumo. Publicado agora em Portugal
pelas Edições 70, O Luxo Eterno pode
ser lido como a história de um outro
mundo, sem crise, dominado pelo
paradigma do neo-individualismo
— pode parecer que não, mas esse
mundo existe. Lipovetsky esteve em
Lisboa para defender, precisamente,
que o luxo está em plena expansão.
Os mercados movem-se, os grandes
sonhos colectivos acabaram e o único risco que corremos é o de sermos
imprudentes.
Desde que escreveu este livro, a
economia entrou de rompante
no discurso diário. Falar de
luxo será, hoje, razoável,
perante uma crise que interfere
até com os padrões básicos de
consumo?
A classe média está em erosão, a
Europa perdeu a sua centralidade
económica e vivemos numa considerável crise de crença. Ao mesmo
tempo, as marcas de luxo continuam, no essencial, a ser europeias.
O primeiro grupo de luxo mundial,
a Gucci, é francês e o terceiro, a
LMVH, também. Quando se deu a
crise do subprime, em 2008, é verdade que houve um abrandamento
do mercado de luxo. Mas já na altura disse que não acreditava na
crise do luxo. Um ano depois, os
factos deram-me razão. O mercado
de luxo não pára de crescer. É verdade que na Europa o mercado estagnou, mas a Europa são 100 milhões de habitantes. E foi isso que
mudou. O mercado do luxo está em
plena expansão noutras geografias.
Porque há cada vez mais ricos no
mundo.
Acredita então que a crise que
vivemos não é económica, mas
de valores?
A crise de valores é outra coisa, mais
antiga. Não se pode ver a crise europeia com uma lupa. A Europa é apenas uma parte do mundo. Podemos
imaginar que na China existirão 100
milhões de pessoas susceptíveis de
adquirirem alguns bens de luxo. Como interpretar que há 30 ou 40 anos
a marca Dior tivesse apenas duas lojas, e hoje tenha mais de 350 pelo
mundo? O mesmo para a Hermès,
que tinha uma loja na Rue de SaintHonoré, em Paris, e hoje tem 340.
Isso não é necessariamente
mau.
Não digo isso. O que digo é que estamos num momento em que o lu-
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xo, ao contrário do que se diz, não
está em regressão, mas em expansão. Não é um subgénero do consumo.
As motivações por trás da
compra desses artigos são as
mesmas na Europa e no resto
do mundo? Ascender a um
determinado estatuto social
ou, por outro lado, aproximarse de um padrão de valores
essencialmente ocidental?
O que diz é exacto, provavelmente,
para a maioria dos países emergentes, como a China, o Brasil ou a Rússia, onde o mercado do luxo é bemsucedido; a compra de bens de luxo
serve um objectivo de reconhecimento social. Social e materialmente, o objecto de luxo permite uma
certa afirmação. Na Europa isso ainda acontece, com aquilo a que chamo o consumo demonstrativo. É o
que em França apelidamos de blingbling, ou novos-ricos. Mas há variantes. Por exemplo, o luxo emocional,
ou experiencial, para os que querem
um outro padrão de qualidade. Essa
dimensão ainda não é dominante
nos países emergentes, mas já é visível. As pessoas deslocam-se, informam-se e querem distinguir-se do
que as faz parecer vulgares. Imagine
o que acontecerá quando todos tiverem um saco Gucci…
01-06-2012 | Ípsilon
A Gucci vai inventar outro
saco…
Ou vai ser mais chique não o mostrar.
Mas a essa teatralização da
riqueza, como lhe chama, está
associado um outro factor, que
é a democratização do acesso
ao luxo.
Essa é uma das grandes belezas desta época. O luxo era extremamente
minoritário, com fronteiras claras e
intransponíveis entre os grupos sociais. Hoje os adolescentes conhecem os bens de luxo de cor, viramnos na televisão, no cinema e nas
revistas, e querem beneficiar desse
acesso. O que antes era muito sectário alargou-se, e as pessoas têm
hoje acesso, quanto mais não seja,
ao sonho.
O que diz é que, hoje, o poder
de compra inclui também a
possibilidade de sonhar?
Exactamente. Num mundo hipermoderno há uma dimensão emocional no consumo de luxo. As pessoas
não procuram apenas exibir um estatuto social. Querem também obter
uma satisfação pessoal. Antigamente, quando um homem queria mostrar a sua riqueza, comprava um
diamante à sua mulher, ou à sua
amante. Mas hoje as mulheres ganham o seu próprio dinheiro e po-
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País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Semanal
Área: 26,67 x 31,39 cm²
Âmbito: Informação Geral
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“A Europa é apenas
uma parte do
mundo. Podemos
imaginar que
na China existirão
100 milhões
de pessoas
susceptíveis
de adquirirem
bens de luxo”
dem comprá-lo elas. Fazem-no para
se exibirem? Também, mas sobretudo para criarem para si mesmas
um momento de emoção e valorizarem a sua imagem.
O que interfere, também, com
os papéis sociais do homem e
da mulher. O homem perdeu a
sua centralidade na sociedade.
Mas ainda é a figura central. Os grandes grupos económicos são presididos por homens, os lugares de direcção são ocupados por homens.
Mas o que é aqui determinante é o
acesso das mulheres à dignidade
salarial, e o reconhecimento, pelos
homens, da sua importância. Provavelmente, entre as mulheres, a
dimensão de prazer e de volúpia é
mais forte do que entre os homens,
que procurarão afirmar-se de outro
modo na hierarquia social e profissional. As mulheres são mais atentas
à qualidade de vida. Compram, não
como numa sociedade burguesa,
mas como numa sociedade pósburguesa. Ou seja, compram o que
gostam, e não o que é preciso comprar. E isso leva-nos de volta ao problema da estagnação do mercado
de luxo na Europa.
É diferente nos outros países?
Nos países emergentes a noção de
estatuto é diferente. Mas com o tempo as coisas vão equilibrar-se em
direcção a formas de consumo diversas. As marcas terão de saber
jogar esse jogo.
A ideia de consumo também
evoluiu. Deixou de ser um luxo
comprar uma casa, um carro
ou uma viagem. O que diz é
que será necessário encontrar
não apenas outra forma de
consumir, mas outros objectos
de consumo.
Precisamente. É a isso que chamo
de consumo emocional. Quando as
pessoas escolhem gastar em três
dias num spa o que poderiam gastar
numa semana, escolhem um momento de qualidade de vida extrema
como forma de evasão. Não se trata
de ostentação, nem de representação. É uma procura emocional de
momentos que rompam com o quotidiano. O consumo está hoje por
todo o lado e é praticado por toda a
gente. Antigamente as pessoas cultivavam aquilo que comiam, hoje
até as coisas mais básicas precisamos de comprar. O consumo banalizou-se, por exemplo através da
publicidade — e, face a essa banalização, o luxo imprime a diferença
do que é excepcional.
Essa banalização também
pode ser entendida como
democratização do acesso ao
consumo.
Sim, é verdade. Mas o luxo introduz
uma dimensão de sonho no consumo, numa altura em que já não há
grandes sonhos. Já não se acredita
muito na ideia de paraíso, nem na
ideia de revolução. E nem falemos
da Europa.
O luxo está então ligado a uma
utopia?
Sim, para as pessoas que não o podem ter. Para quem o pode ter é a
realidade.
Não há um limite para o luxo?
Não. Olhe o exemplo de Dennis Tito,
que pagou 22 milhões de euros para
ir à lua. São momentos de experiência extrema, como quem decide
atravessar o mar numa canoa. Isso
também é um luxo. As pessoas têm
a necessidade de sentir. O homem
moderno não suporta viver sempre
de forma igual. Antigamente sim,
era a tradição. Mas hoje já não temos
tradições. Se não existir, de tempos
a tempos, algo que se distinga, ficase com impressão de se estar viver
uma vida pobre. Isso é distinto do
luxo da ostentação social. Há aquilo
a que chamo de luxo eterno. Não há
sociedade sem luxo, mas o luxo tem
uma história.
Uma história cíclica.
Sim, é. Mas o luxo de que falo é algo
diferente. Não é o luxo social, religioso, pela glória do Senhor. Veja o
caso de um casamento. É um luxo
à medida de cada um: um vestido
muito caro que só se usará, esperase, uma vez; uma festa com os seus
amigos, uma lua-de-mel… Isso não
tem nada a ver com ostentação.
É isso que define como neoindividualismo?
Sim, [um paradigma em que] cada um
de nós é o centro da sua cidade.
Que sociedade se constrói a
partir destes novos cidadãos?
Dou-lhe um exemplo: a arte. É muito cara e é um objecto de luxo. Mas
poderíamos aceitar uma sociedade
sem arte? Quando vemos os preços
a que os quadros são vendidos hoje,
é escandaloso. A leitura moral do
luxo parece-me incorrecta e, no entanto, não lhe podemos escapar. Há
demasiado desperdício. Mas é a condição para que algo excepcional
emerja. Na história do mundo, sem
o luxo não teríamos os castelos, os
palácios e as catedrais que compõem a beleza da humanidade. As
duas ideias que estou a procurar
opor neste livro são as de luxo privado e luxo público. E este está em
perda. É a escolha entre comprar
um diamante ou uma mala Dior, e
comparar com os romanos que, com
o seu dinheiro, mandavam construir
palácios. Eu não sou um moralista,
mas o dinheiro também permite um
luxo público. Olhe o caso de importantes marcas que criam fundações
que são novos marcos arquitectónicos nas cidades. Não é tanto o luxo
que se denuncia, mas antes um uso
excessivamente privado, um novoriquismo que não se transforma.
Não se deve diabolizar o luxo.
Defende um luxo partilhável?
O luxo privado tem a sua legitimidade. Se as pessoas ganham dinheiro,
devem poder gastá-lo. A posição estritamente moral é demasiado fácil
e não toca a realidade das coisas. O
luxo existiu sempre e está hoje em
plena expansão. Mas o ideal humano não é o de consumir,antes o de
criar, partilhar, melhorar a vida. É
preciso que as coisas encontrem o
lugar justo. O consumo ganhou uma
preponderância excessiva, e é isso
que é preocupante. Vive-se na acumulação. Mesmo em crise, o consumo nunca acabará. O que há para o
substituir? É por isso que não acredito numa crise do consumo, mas
numa crise do consumidor imprudente.

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