Risco e Precaução no Desastre Tecnológico

Transcrição

Risco e Precaução no Desastre Tecnológico
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
1
13(1):67-84, 2005
Risco e precaução no desastre tecnológico
Risk and precaution in technological disaster
Renato Rocha Lieber
Professor doutor do Departamento de Produção da Faculdade de Engenharia da
Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Guaratinguetá, SP
Caixa Postal 205
12516-410 Guaratinguetá SP
Email: [email protected]
Nicolina Silvana Romano-Lieber
Professora doutora do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de
Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
1
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
2
13(1):67-84, 2005
Risco e precaução no desastre tecnológico
Risk and precaution in technological disaster
Resumo
Desastres tecnológicos são “acontecimentos” decorrentes do uso do conhecimento
científico. Para entender a sua natureza e as suas implicações, propõe-se uma
abordagem fenomenológica, onde o pressuposto é o conhecimento como uma coemergência do fenômeno, redefinindo-se conceitos como acontecimento, evento,
causa e contexto. Como proposta de entendimento, a condição de desastre foi
reconsiderada a partir da interpretação de Poicaré (1902) para a produção e o uso
do conhecimento científico. Com isto, fica explícito que a ciência detém uma
condição de “conhecimento provisório” e de operação na incerteza. Conclui-se que,
os desastres,
embora expressem perdas de diferentes gêneros e magnitudes,
também se prestam à superação desta ignorância, presente em toda prática
científica na fronteira do conhecimento. Demostra-se também que, embora o
processo conduzido pela razão faça o conhecimento convergir para o mundo real,
ele, por si mesmo, não pode excluir totalmente a incerteza, de forma que a ação
racional sujeita-se sempre a uma condição de risco. Sendo assim, é próprio da ação,
enquanto racional, impor um limite ao agir. A necessidade de “precaução”, portanto,
não é subjetiva. Subjetiva será a ordem das escolhas, possíveis e necessárias para
a plena relação das pessoas com o mundo.
Unitermos: Ambiente, Incerteza, Causalidade, Acidente
Abstract
Technological disasters are “happenings” that result from the use of scientific
knowledge. A phenomenological approach is proposed to understand their nature
and implications, the premise of which is knowledge as co-emergence of the
phenomenon, redefining concepts as happenings, events, causes and context. As a
proposal for understanding, the disaster condition was reconsidered based on
Poicaré’s (1902) interpretation of the production and use of scientific knowledge. With
this, it is clear that science has a “temporary knowledge” condition that operates in
2
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
3
13(1):67-84, 2005
uncertainty. One can conclude that disasters, although expressing loss of different
sorts and magnitudes, also allow one to overcome the ignorance present in all
scientific practices carried out on the frontier of knowledge. One can also
demonstrate that, although when the process is led by reason knowledge converges
to the real world, in and of itself, knowledge cannot totally exclude uncertainty, thus,
rational action is always subject to a condition of risk.
Therefore, one of the
characteristics of action, while rational, is to impose a limit on acting. The need for
“precaution,” thus, is not subjective. What is subjective is the order of possible and
necessary choices so people can fully relate to the world.
Keywords: Environment, Uncertainty, Causality, Accident
1. Introdução
O início do século XXI foi marcado por comoções de grande impacto. De natureza
súbita e expressando prejuízos de toda ordem, os desastres se configuraram em
quase todas as regiões do globo. Em diferentes magnitudes, grupos populacionais
foram atingidos das mais diversas formas, resultando tragédias coletivas e atenção
especial para a preservação da saúde. Além das guerras ou conflitos armados,
assolando todos os continentes, um terremoto atingiu o Irã e chuvas e inundações
cobriram a Àsia. A cidade de Nova Iorque ficou marcada por atentados terroristas,
além de um “blackout”. A Europa contou com ondas de calor à oeste e inundações
à leste em 2002, promovendo perda de vidas e conseqüências econômicas. No
Brasil,
pela primeira vez, registrou-se um tornado no litoral de Santa Catarina. Na
Argentina, cerca de 177 jovens morrem num incêndio em Buenos Aires. E, no final
de 2004, uma maremoto no oceano Índico traz proporção global à tragédia, ao
atingir diferentes países em época de turismo. Nas tragédias, as existências se
3
4
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
13(1):67-84, 2005
perdem e os sobreviventes se interrogam. Na concepção moderna, as respostas
cabem à ciência.
A busca de entendimento científico relativo aos desastres é relativamente recente e
se deu no curso do século XX a partir do grande incêndio em 1917 na cidade de
Halifax, Canadá. O choque entre dois navios provocou a explosão de um suprimento
de munição atingindo mais de 10.000 pessoas, entre mortos e feridos, além de
25.000 desabrigados (BAKER, 2002). A tragédia promoveu constrangimento público
que não pode ficar sem resposta. É exemplo, portanto, de como a dimensão social
transforma um dado problema em problema científico.
Embora convertidos em objetos da ciência, os desastres não dispõem de definições
inequívocas e a sua conceituação não é tarefa fácil.
Além disso, é intuitivo que a
fatos tão dispares como a erupção de um vulcão, um deslizamento de encosta, um
maremoto, um incêndio florestal, um tornado, um vazamento de óleo, um choque
ferroviário, uma contaminação ambiental, uma epidemia ou mesmo, uma crise
econômica,
todos
decorrente de conflitos armados ou da obstinação das idéias, podem
configurar desastre. É da prática,
portanto,
se classificar os desastres a
partir de definições ou mesmo de “taxonomias” (KREPS, 1989). Tradicionalmente, os
desastres
vêm
provocados
sendo
pelo
classificados
homem”
como
(man-made
“desastres
disaster),
às
naturais”,
vezes
e
“desastres
confundidos
com
“desastres tecnológicos”. Esta forma denota a ênfase no fato deflagrador, quer seja
um terremoto, uma guerra ou um choque de aeronaves, respectivamente. Para
alguns, os “desastres tecnológicos”, como um vazamento radioativo, não podem ser
confundidos com um conflito armado, uma vez que o trauma decorre de períodos de
latência
diferentes
(HODGKINSON,
1989).
Outros
ainda
entendem
que
os
“desastres tecnológicos” admitem uma condição crônica como, por exemplo, na
4
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
5
13(1):67-84, 2005
poluição de um curso hídrico em condições prolongadas (KROLL-SMITH et al.,
1987; SOLIMAN, 1996; GRAMLIN & KROGMAN, 1997).
A
mitigação
dos
efeitos
dos
desastres
envolve
com
freqüência
órgãos
supranacionais, como a Organização da Nações Unidas (ONU). Os seus diferentes
organismos dependem de definições que vão além de meras classificações. A
condução de ações deve ser justificada e, preferencialmente, nas diferentes
dimensões que o fato apresenta. A saúde é apenas um dos componentes e, por
vezes, não o mais importante (LECHAT, 1976).
Com isto, ganha importância o
conceito. Desde 1971, com a criação da UNDRO ( Unided Nations Disaster Relief
Organization) as definições vem sendo modificadas, buscando estas dimensões de
singularidade, de impacto social e econômico, além da vulnerabilidade específica.1
Em dezembro de 1989, a ONU estabeleceu a “Década Internacional de Redução de
Desastres Naturais”. Com as sucessivas reformas administrativas dos anos 90,
criou-se a DHA (Department of Humanitarian Affairs), subordinado à Secretaria
Geral, com atribuições mais amplas, inclusive para desastres industriais. A UNDRO
e outros órgãos de assistência foram incorporados e criou-se a ISDR (International
Strategy for Disaster Reduction) dentro da DHA. 2 Em sua revisão mais recente, a
ISDR define desastre como:
1
As definições para desastre da UNDRO tornaram-se cada vez mais gerais, graças às sucessivas
revisões dos módulos de treinam ento editados. Para edição mais recente ver STEPHENSON, 1994.
2
Conforme resolução 46/182 de 1992. O DHA conta com dois órgãos, a OCHA (Unided Nations
Office for the Coordination of Humanitarian Affairs) e a ISDR (International Estrategy for Disaster
Reduction). A OCHA tem papel coordenador das diversas entidades envolvidas em emergências. A
ISDR, embora tenha como principal foco os problemas ligados aos fenômenos climáticos “el nino” e
“efeito estufa” , permite articulação do problema nas diferentes d imensões, propondo conceituações
mais gerais. Maiores detalhes em: htpp:// www.unece.org/env/teia/english/R_10.HTM e htpp://
www.ochaonline.un.org.
5
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
6
13(1):67-84, 2005
“Uma séria ruptura do funcionamento de uma comunidade ou
sociedade, causando perdas humanas, materiais, econômicas e
ambientais expressivas (widespread) que excedem a capacidade da
comunidade ou sociedade em atender (to cope) com os próprios
recursos.” (ISDR, 2004)
A América Latina conta com o Centro Regional de Informações sobre Desastres
(CRID), incentivando a pesquisa embora poucas publicadas no Brasil.3 A definição
adotada não é muito diferente daquela formalizada acima, muito embora se faça
distinção entre “desastre natural”, como terremoto, inundação; desastre provocado
pelo homem, como guerra; e “desastre tecnológico”, como aqueles derivados de
acidentes envolvendo substâncias químicas ou equipamentos perigosos (CRID,
2001).
As definições atuais refletem muitos questionamentos colocados na literatura. Nos
anos 80, chegou-se a argumentar, por exemplo, que os desastres deveriam ser
definidos como “atualização da vulnerabilidade do sistema social” (PELANDA, 1981),
ou então pela idéia de “recuperação”, pois um evento que não exigisse recuperação
não seria um desastre (BATES et al., 1989). Mesmo assim, a possibilidade de um
conflito armado vir ou não a constituir-se um desastre não é consensual, conforme
QUARANTELLI, 1995. Na pesquisa científica, portanto, a distinção “natural” e “não–
natural” para os desastres se mantém, enquanto que os órgãos de apoio e ação se
mostram mais favoráveis ao conceito genérico.
Este aparente dissenso foi objeto de análise por KROLL-SMITH et. al., 1991 os
quais identificaram duas abordagens possíveis para conceituação de desastre: (i)
uma definição genérica, baseada exclusivamente na mudança social e (ii) outra
3
Além da monografia editada pela OPAS, 1995; cabe destacar os trabalhos de MATTEDI & BUTZKE,
2001 para desastres naturais e de FREITAS et al., 2000 para desastres tecnológicos.
6
7
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
13(1):67-84, 2005
baseada nas perspectivas físicas. Para eles, a abordagem deveria ser ecológica,
uma vez que as pessoas interagem com o ambiente e vice-versa, sendo o desastre
subjetivamente apreendido. Para PORFIRIEV, 1995, o entendimento do desastre
deveria partir de categorizações. Por um lado, há a orientação aplicada/pragmática
e, por outro, um enfoque teórico/conceitual.
O
propósito
deste
aplicado/pragmático
e
trabalho
é
teórico/conceitual,
aproximar
revendo-se
estes
dois
entendimentos,
o
significado
de
desastre
tecnológico no âmbito da ação, onde o risco estabelece uma condição de incerteza
(LIEBER & ROMANO -LIEBER, 2003) e a precaução é a lógica decorrente no uso da
ciência.
Como
método
de
abordagem
propõe-se
uma
aproximação
fenomenológica,
conforme proposição de Husserl (1859-1938). Nesta caso, o fenômeno é a coisa em
si, identifica-se com o seu ser. Ou seja, aquilo que se percebe ou se imagina é o
fato. Se a coisa pode ser tomada por outras aparências, isso não reduziria a
significação do fenômeno enquanto fato, pois o fato só tem sentido dentro do
contexto da percepção (teoria da Gestalt). O próprio desastre seria o fato em si (no
que a vítima concordaria plenamente), repleto de verdade, para onde todas as
considerações deveriam convergir. A busca de causas ocultas não faria nenhum
sentido, porque estaria migrando para um outro contexto, capaz de revelar outras
verdades, porém carentes de significação para o fato considerado.
A exposição do tema inicia-se reconsiderando o desastre como um fenômeno.
Formaliza-se distinções conceituais entre “acontecimento” e “evento” e analisa-se o
uso do conhecimento científico envolvido no desastre tecnológico. A verificação da
forma de produção e uso da ciência evidencia a incerteza do processo e a
7
8
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
13(1):67-84, 2005
precaução como decorrência. Nas considerações finais, discute-se as implicações
destes achados nos acontecimentos mais recentes.
2. Desastre como fenômeno
Desastres, entendidos como fenômenos, são acontecimentos ou fatos singulares
caracterizados
por
diferentes
prejuízos,
entre
os
quais
aqueles
relativos
às
condições favoráveis à vida. Embora os desastres possam atingir qualquer ser vivo
indistintamente, a condição social de homem o particulariza. Neste, por um lado,
articulam -se os prejuízos materiais, morais, físicos e emocionais, de forma que os
sobreviventes configuram com freqüência quadros patológicos específicos, como o
bem
conhecido
estresse
pós-traumático
(MURRAY,
1992;
URSANO,
1997;
HAVENAAR & VAN DEN BRINK, 1997). Ao mesmo tempo, o homem conta com
ação social. Graças à ordem do Estado, das instituições e mesmo das redes
interpessoais nas comunidades, o homem convive melhor com as incertezas, com
os infortúnios e se habilita mais facilmente à recuperação do seu papel social uma
vez superada a crise. Desastres, portanto, não são meros fenômenos naturais.
Enquanto algo que emerge no meio social, os desastres interrogam a sociedade em
seus meios e propósitos, tanto por aquilo que (não) se fez antes (a prevenção e a
precaução), como naquilo que (não) se faz durante (a gestão da crise) ou depois (as
transformações necessárias).
Desastres, enquanto acontecimentos, acontecem. Ou seja, a menos que se trate de
um atentado ou sabotagem, o desastre pressupõe uma condição acidental, onde há
falta de intencionalidade para aquilo que se expressa. Nesse entendimento, é uma
falha conceitual buscar-se “a causa” do desastre.
Por que o desastre se deu nesse
instante e não em outro ou atingiu essa pessoa e não outra, só se explica pelo
acaso, ou “falta de causa”, como quis Aristóteles na antigüidade. A questão
8
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
9
13(1):67-84, 2005
necessária, objeto da ciência, é como se dá o desastre. Ou seja, como diferentes
circunstâncias são reunidas, se articulam num processo e resultam no desastre. A
ciência
tenta,
portanto,
aproximar-se da natureza do fenômeno a partir da
configuração do contexto, cuja forma possibilita o acaso que leva ao desastre
(LIEBER & ROMANO -LIEBER, 2001).
Cada um dos diferentes aspectos que formam o contexto é insuficiente por si
mesmos para possibilitar o desastre. A idéia de atribuir-lhes condição de “causa”,
portanto, sob o ponto de vista lógico, fica impossibilitada. Além disso, o papel
contributivo ou de preponderância de cada aspecto do contexto para o desastre não
pode ser entendido apenas por ele mesmo. O que é favorável numa situação pode
ser prejudicial em outra. As contribuições de contexto, portanto, só podem ser
entendidas no processo, ou na forma como cada uma delas se articula com as
demais. Sendo assim, cada fator de contexto configura-se como uma “contribuição
incerta” ou, mais precisamente, como um fator de risco.
Em síntese, uma compreensão científica do desastre implica em entendê-lo como
fato único, ou acontecimento, onde fatores de risco configuram um contexto próprio
para um acaso perigoso. Exemplificando, um sujeito que morre soterrado numa
encosta desmoronada em dia de chuva é fato único. Mas a presença do sujeito, a
chuva, a natureza da encosta, as possibilidades de socorro e outros aspectos são
fatores de risco, pois a concomitância deles, embora não suficiente para aquela
morte, foi necessária.
3. Acontecimento e evento
As proposições científicas decorrem de inferências dedutivas. A análise de um fato
singular deve sugerir a generalização, cuja validade depende de observações ou
experimentos
posteriores, sempre singulares. No caso de um desastre, ainda que
9
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
10
13(1):67-84, 2005
as condições de contexto se reproduzam, nenhum cientista pode dar “certeza” do
seu resultado. Na melhor das hipóteses, a ciência permite uma medida da incerteza.
Em outras palavras, cada fator de risco pode configurar uma probabilidade de
desastre. Como ?
Para configurar uma probabilidade, se faz necessária uma série histórica. Todavia,
como cada desastre é um acontecimento único, uma série histórica não é possível a
menos que se reduza o acontecimento à uma coleção de fragmentos passíveis de
observação sistemática ao longo do tempo. Estes fragmentos são os eventos.4
Eventos são a presença ou não de dado fator de contexto. Se uma situação reúne
vários eventos antes presentes em outros desastres, pode-se afirmar que esta
também é catastrófica?
A rigor não. Primeiro porque um evento qualquer (presença/ausência de fator de
contexto) não determina, mas apenas possibilita o acontecimento. Segundo, o fato
de um evento ter sido encontrado não exclui o fato de o mesmo evento poder ser
encontrado em outras situações não catastróficas. Na melhor das hipóteses, podese formalizar uma probabilidade, dividindo-se o total de catástrofes pelo total de
ocorrências. E terceiro, como visto, o evento, referindo-se ao fator de contexto, só
tem sentido na configuração do processo. Por isso, o entendimento depende de uma
construção de sentido, aquilo que se conhece como teoria. Por exemplo, a “fase da
lua” é algo que permite uma série histórica, presente ou ausente em desastres.
Todavia, a “fase da lua” só é fator de contexto (ou evento válido) se uma implicação
puder ser estabelecida, dentro de uma acepção lógica no conhecimento existente.
4
Em estatística define-se eventos dependentes e independentes em função das respectivas
variáveis. Aqui, propõe-se preserva-se o termo “evento” para as variáveis independentes e
“acontecimento” para a variável dependente.
10
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
11
13(1):67-84, 2005
Logo, “fase da lua” pode possivelmente ser fator de contexto para maremoto, mas
dificilmente o será para incêndio ou explosão. Isto porque, há uma teoria possível no
primeiro caso (forças gravitacionais) mas não há ainda para o segundo caso.
Do exposto, fica clara a importância da articulação entre o fato empírico e a
proposição teórica para o entendimento dos desastres. Se a teoria se presta ao
entendimento do desastre, o desastre se presta à teoria, confirmando ou refutando
os seus pressupostos. Isto ocorre particularmente no desastre tecnológico, resultado
do uso da ciência. Antes de se examinar esta particularidade, convém rever como a
ciência moderna convive com a incerteza e produz conhecimento a partir das
evidências empíricas.
4. Evidência e incerteza
Os processos e práticas estabelecidos pela ciência moderna subentendem a
formulação de hipóteses e a verificação empírica. Tal orientação hipotético-dedutiva
capacita (embora sem suficiência) o pesquisador ao prognóstico, ao fazer uso de
teorias. Ao mesmo tempo, ela condiciona a necessária contingência de todas as
afirmações científicas, caracterizadas sempre como um conhecimento provisório e
sujeito a revisão.
Tratando-se de conhecimento científico, portanto, evidência e incerteza se articulam,
pois aquilo que se apresenta, se apresenta graças ao recurso científico, ele próprio
contingente e, ao mesmo tempo, instrumento da constatação da contingência
daquilo que havia se verificado até então. A realidade que se descortina com o uso
de uma lupa dissipa-se com o uso do microscópio ótico ou ganha novos sentidos
quando iluminada por comprimentos de onda que escapam à visão. Em suma, a
cuidadosa apreensão pelos sentidos e o pleno consenso entre os observadores não
garante o conhecimento da coisa. Este foi um dos legados de Galileu (1564-1642) à
11
12
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
13(1):67-84, 2005
ciência moderna, graças às suas observações astronômicas decorrentes do seu
invento. Todavia, mais importante que o instrumento em si, foi a forma de criá-lo.
Galileu concebeu um telescópio sem jamais ter sido um polidor de lentes e o fez a
partir de relações geométricas, na precisão matemática e não na tentativa e erro do
ato empírico, próprio de sua época. A partir daí, o mundo pensado e o mundo vivido
deixaram de ser incompatíveis, como supunha-se desde a Grécia antiga, e a
realização humana ganhou uma perspectiva ilimitada de realização, porque a
capacidade de imaginação é infinita. Consequentemente, o empirismo abnegado,
limitado ao que é, como da alquimia, perdeu toda a pretensão de ciência. Ao mesmo
tempo, a humanidade tornou-se capaz de manipular não apenas a natureza do
mundo mas a sua própria, como demonstra a intervenção nos genomas.
Mas qual é o significado deste paradoxo de libertar-se das possibilidades do mundo
real para dominá-lo? Ou melhor dizendo, no que consiste essa incerteza decorrente
deste paradoxo? Se evidência e incerteza se articulam como verso e reverso na
ciência moderna, é a análise deste processo que possibilita algum entendimento.
5. Produção do conhecimento científico
Entender o processo da produção do conhecimento científico é uma necessidade
não apenas daquele que faz ciência, mas também daquele que faz uso dos seus
resultados,
submetendo
alguém
ou
submetendo-se
ele
próprio
aos
seus
prognósticos. Como foi ensinado por POINCARÉ, 1902, a convergência entre a
evidência empírica, em sua circunstância particularíssima da observação controlada,
e o mundo real vindouro, objeto de circunstâncias próprias daquele novo tempo, só
pode se dar pela ponte da formulação teórica. Aquilo que foi obtido no laboratório
tem significado restrito à própria observação, sempre sujeita ao erro. É por isso que
12
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
13
13(1):67-84, 2005
não se admite em ciência nenhuma extrapolação pura e simples daquilo que se
observa. (figura 1A). No resultado empírico não há a “verdade” do fenômeno,
cabendo
à
imaginação
encontrá-la com o recurso da perfeição do cálculo
matemático. A proposição teórica, portanto, é a “verdade do fato”. É verdade porque
é perfeita, é perfeita porque é matemática e pertence ao fato porque o mundo
empírico liga-se a ela por relações perfeitas (interpolação matemática ajustada).
Além disso, ou sobretudo por isso, é verdade “porque funciona”, conforme o
pragmatismo de Bacon (1561-1626), e possibilita um “mundo novo” fatual, graças à
extrapolação que a função matemática permite (Figura 1B).
================================================================
INSERIR FIGURA
================================================================
Todavia, existe uma outra “verdade” contida no processo. A escolha da função
matemática (ou relação teórica) não é um processo meramente decorrente das
evidências fatuais. O cientista não só usa um conjunto de gêneros de funções
preestabelecido, como também “ajusta” ou “concilia” sua observações com a função
pretendida. Ao se excluir o “idiossincrático”, salva-se o paradigma teórico. Além
disso, a pretensa perfeição do processo de passagem do dado empírico para o
teórico, decorre do pressuposto de uma lógica no erro! Em outras palavras, as
evidências contém erros, mas estes erros são todos da mesma natureza, basta, por
exemplo, minimizá-los (processo dos mínimos quadrados, por exemplo).
Não surpreende, portanto, que o “mundo criado” seja catastrófico. Surpreendente é
o fato do automóvel rodar como pretendido! Ou, rodar quase sempre assim! Em
síntese, é próprio do uso da ciência, a possibilidade de um desastre particular, o
desastre tecnológico.
13
14
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
13(1):67-84, 2005
6. Desastre tecnológico
Desastres tecnológicos distinguem-se não apenas dos desastres naturais, como
sugere o senso comum, mas também de desastres técnicos. Isto porque, tecnologia
não é o mero uso de técnicas.
A palavra “técnico” deriva do grego “tekhnikós”, cujo uso equivalente latino é “ars”,
dando
origem
ao
termo
“arte”.
Técnica
pressupõe
habilidade,
reprodução,
virtuosidade. A condição técnica é própria de um artesão. O artesão, quando
constrói um barco, o faz conforme uma “arte” consolidada. Se o barco naufraga, o
desastre é técnic o, pois faltou a perfeição reprodutiva de uma tradição aceita.
A tecnologia é algo muito diferente. A tecnologia é o resultado do traspasse entre o
mundo empírico (próprio ao lidar técnico) e o mundo imaginado (próprio à reflexão),
iniciado por Galileu no século XVII ao criar o telescópio. A partir dele, a imaginação,
como visto, estabeleceu o novo referencial para fazer as coisas. Foi possível
inventar-se um mundo novo, correspondendo aos objetos, máquinas, materiais ou
mesmo seres vivos absolutamente artificiais, cuja disponibilidade, de uma forma ou
de outra, facilita a existência.
Todavia, esta mesma imaginação, embora infinita, não se dá de forma completa. O
mundo
empírico
continua
a
surpreender
pela
sua
extravagância.
A
efetiva
descoberta científica, possível na medida que se avança na prova das possibilidades
da teoria, é o resultado inaudito, contrário aos pressupostos existentes e, portanto,
sempre um “desastre” sob o ponto de vista formal (figura 1C). A nova teoria, agora
mais completa, será, da mesma forma, submetida aos novos limites, até mostrar-se
insuficiente na efetividade do “seu desastre”, recomeçando o ciclo.
Sendo assim, este processo de descoberta, ao proporcionar novas e melhores
possibilidades, não exclui uma perda de fato, relativa não só às idéias e concepções
14
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
15
13(1):67-84, 2005
incompletas, mas também referente aos objetos e seres vivos colocados à prova. Se
uma simples relação de custo-benefício pode ser estabelecida para os primeiros, o
mesmo não pode ser feito em relação às existências, em particular à do homem,
cujo pressuposto é a dignidade, como lembra HORKHEIMER, 1968/1990: xvii.
A tecnologia, portanto, facilitando a existência e prolongando a vida, decorre da
força imaginativa da teoria cientifica, cujo avanço em validade depende do confronto
empírico, por natureza, desastroso. As implicações do desastre dependem, como
mencionado, daquilo que se faz antes, durante e depois dele. As relações de custobenefício, por sua vez, dependem das possibilidades de retorno econômico da nova
descoberta ou proposição teórica decorrente. Este retorno se efetiva na sociedade e
será maximizado com a nova teoria levada agora ela mesma aos seus limites de
predição. Como este limite é desconhecido de antemão, configura-se uma situação
de incerteza ou de risco. A generalização desta situação singular abre espaço para o
surgimento daquilo que veio a ser conhecido como “sociedade de risco”.
7. Sociedade de risco
A expressão “sociedade de risco” foi cunhada por BECK (1986) e tornou-se
referência obrigatória no estudo contemporâneo do risco nas ciências sociais. Sua
análise dos problemas da sociedade contemporânea e do papel do risco cobre
diferentes
áreas,
tratando
de
várias
questões
atuais,
como
contingência,
ambivalência, pluralismo e individualização.
O termo “sociedade de risco” é introduzido como uma forma de tentar definir o
momento presente, farto de perigos ambientais e das inseguranças decorrentes do
processo de modernização, pois, no seu entender, a modernização envolve não
apenas mudanças estruturais, mas também
a transformação das relações entre
estruturas sociais e seus agentes. Assim, observa-se as classes sociais perdendo
15
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
16
13(1):67-84, 2005
referência, sendo substituídas pela condição de “classes de risco”, onde a
distribuição de risco toma o lugar do processo da distribuição desigual de riqueza.
Para Beck a produção e a distribuição de riqueza é inseparável da produção de risco
e da sua distribuição nas esferas ecológica e psicosocial. Ele argumenta que a cada
avanço na produção tecnológica surge um novo risco imprevisível de degradação
dos recursos ambientais, criando demanda para mais cientificismo na produção. O
processo acaba se configurando numa geração contínua, “algo como um jogo automantido entre o risco e economia”. Assim, medo e sua saciedade são meramente
simbólicos
e independem do seu contexto para satisfazer as necessidades
humanas. Para ele, proliferação de riscos decorre do fato do processo de inovação
tecnológica ter perdido o controle social, convertendo-se em solução para qualquer
problema. A sociedade virou um laboratório em que ninguém mais se responsabiliza
pelos resultados das experiências. Por isso, ele clama por uma “cultura de
incerteza”, distinta daquela mantida até agora, limitada entre
do risco marginal
a adoção do controle
(seguro) por um lado e a adoção de barreiras à inovação, ou de
segurança absoluta (o não risco), por outro.
A obra de Beck é ampla e extensamente discutida. O entendimento das implicações
depende de outros conceitos, em particular da distinção entre a perspectiva
objetivista e subjetivista para o significado de risco. Risco não é um mero cálculo de
probabilidade, mas é também uma construção social, ditando o que é e o que não é
perigoso, própria para exercício do poder (LIEBER & ROMANO -LIEBER, 2002).
Em síntese, a lógica de mercado, converte o conhecimento científico em mercadoria,
ao transformá-lo em tecnologia. Como em toda lógica de mercado, os retornos
marginais (lucro) são sempre decrescentes e o empreendimento capitalista depende
de inovações para superação das suas crises inevitáveis, conf. Schumpeter (1883-
16
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
17
13(1):67-84, 2005
1950). A exposição social aos desastres tecnológicos, portanto, decorre desse
convívio cada vez mais próximo com o “mundo de descoberta” (figura 1C), antes
próprio ou exclusivo ao laboratório. Nestes termos, o significado do risco vai muito
além do aspecto científico ou mesmo da aceitação pessoal. É o projeto social que
está em jogo e, assim sendo, trata-se de um problema político, como sugere a
proposta do “princípio da precaução”.
8. Princípio da Precaução
Princípio da precaução (PP) é uma diretriz que se generaliza no mundo da ciência
aplicada, onde as relações, cada vez mais, se exprimem em termos de “riscos” ao
invés de “causas”. Isto por que, enquanto o risco se configura por relações
probabilísticas, o cálculo da probabilidade por si mesmo é apenas capaz de
dimensionar a incerteza, mas não de excluí-la. Há sempre algo em todo fenômeno
que não se pode medir, pois é desconhecido. Logo, como proceder cientificamente
em relação ao que se ignora? Agir com “prudência”, ou com “virtude”, é a resposta
que se dispõe. O “princípio da precaução” é, em síntese, a relação entre esse agir
virtuoso e a natureza do conhecimento científico sempre incompleto.
As primeiras propostas para uso do PP surgem na Alemanha nos anos 70,
originalmente para se lidar com alguns problemas ambientais específicos. A partir
dos anos 90, o uso do PP ganhou maior destaque na França, quando se denunciou
sérias contaminações de sangue e de hemoderivados por HIV. Todavia, só em fins
do ano 2000, a Comunidade Européia chegou a um consenso, possibilitando a
reformulação das legislações nacionais pelos diferentes membros. Hoje, o seu
emprego alcança as mais diversas áreas de proteção à saúde, orientando desde o
uso de telefones celulares até o de organismos geneticamente modificados,
abrangendo desde a saúde ambiental até a farmacoterapia (KRIEBEL e col. 2001).
17
18
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
13(1):67-84, 2005
O PP aplica-se onde o risco potencial combina o perigo com a escassez de
conhecimentos a respeito da complexidade envolvida. O PP inova ao separar o
conhecimento científico da tomada de decisão, ao inverter o ônus da prova e ao criar
um contexto normativo novo. O PP não é a “prevenção” por si mesmo (não se pode
prever o que não se sabe). Todavia, ele a enfatiza, ao exigir maior formalização do
conhecimento do perigo e não a sua mera “gestão”, como propõe a “análise de
riscos” nos EUA.
A base conceitual do PP é a “certeza da incerteza“. Consequentemente, o PP
interfere em diferentes interesses e relações sociais, sendo objeto de intenso debate
em
diversas
áreas
de
conhecimento.
Seu
emprego
crescente
(ou
mesmo
incondicional) na atualidade decorre sobretudo da crise contemporânea. Por um
lado, há demandas por uma vida mais segura no mundo desenvolvido e, por outro,
os empreendimentos na economia capitalista carecem de inovações para vencer os
retornos marginais decrescentes. Todavia, as argumentações, prós e contra, focam
sobretudo aspectos instrumentais e raramente se atém ao fato que a “certeza da
incerteza” no conhecimento científico decorre do próprio processo da sua obtenção,
como apresentado acima. Além disso, poucos se dão conta também que o PP não
deriva de relações propriamente objetivas. Pelo contrário, ele advém do conjunto de
virtudes proposto na Grécia antiga, o qual permitia justificar as ações éticas de cada
indivíduo na sua comunidade. Sua introdução no mundo atual, assim, não se dá sem
razão.
Na gestão de crises o PP é o mais forte aliado na prevenção das decisões
autoritárias, muitas vezes bem intencionadas mas calamitosas em seus resultados.
Expressando cautela sobre o que se dispõe, o PP embasa relações mais eqüitativas
entre os diferentes interesses. Ele constitui por si um forte argumento para refutar o
18
19
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
13(1):67-84, 2005
cientificismo, para democratizar a escolha de opções, para promover o avanço das
pesquisas em busca de tecnologias mais seguras e, sobretudo, para inovar os
procedimentos do uso da ciência no entendimento da natureza e da condição
humana.
9. Considerações finais
Nos tempos de polarização ideológica, os desastres puderam ser entendidos como
“mais um outro aspecto da vida normal” no âmbito da “luta de classes” entre os mais
e menos favorecidos (CLAUSEN et al. 1978). Tal conceito, todavia, não basta diante
de um acontecimento em que milhares de suecos morrem em decorrência de um
maremoto no oceano Índico em 2004. Como destacou HERNANDEZ ROSETE,
2001, o marxismo contribuiu para o entendimento dos desastres como um fenômeno
social, mas muito além da ação do homem em oposição à natureza, os desastres
deveriam
ser
entendidos
como
fenômenos
antropogênicos.
Para
este
autor,
desastres são processos historicamente condicionados e a sua prevenção é um
problema de âmbito político, cabendo questão ao papel da sociedade, da economia
e do Estado na produção de vulnerabilidade. O presente trabalho, contudo, m ostra
que muito além destes aspectos está o processo neo-platônico de produção de
conhecimento, base da ciência moderna. É a racionalidade científica que guia e
legitima as ações nestas esferas de poder numa forma tautológica. É graças à
tecnologia que suecos e alemães aos milhares cruzam os oceanos à caminho de um
desastre e é graças também à tecnologia que uma ilha no oceano Índico converte-se
em “atrativo turístico”, mas será sempre pela sua “falta” que os maremotos levam
centenas de milhares à morte.
Não é sem razão, por conseguinte, que na Austrália os fazendeiros são cada vez
mais constrangidos a considerar suas perdas não mais por desastres “naturais”, mas
19
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
20
13(1):67-84, 2005
sim por falta de “manejo tecnológico” (HIGGINS, 2001). Passa-se ao largo da noção
de vulnerabilidade, pois a maioria das vitimas nos desastres são sempre os mais
carentes de recursos (JASWAL, 2000). Ignora-se que estas mesmas constituem o
foco permanente dos “programas de desenvolvimento”, os quais, por si mesmos,
levam aos desastres ao desestruturar as formas tradicionais de vida em prol da
moderna economia de mercado (STEPHENSON, 1994). Considerando que tais
“programas
de
desenvolvimento”,
calcados
na
racionalidade
científica,
quase
sempre se voltam para as “intervenções”, para as “inovações” ou para a “reprodução
de experiências” em novos contextos, não
deveria surpreender o resultado em
desastre, pois a única premissa válida das propostas é a inferência teórica que o
agente faz uso. Assim, se deu certo em “X” dará certo em “Y”, observadas as
“condições de contorno” presumido.
Enquanto isto, o “terceiro setor engajado” submete-se ao discurso clássico das
“causas” para os desastres, buscando os “sinais de aviso” 5 , desconsiderando que
“sinais de aviso” dependem de uma construção de sentido, conforme uma dada
teoria.
A ciência moderna, com sua inusitada capacidade de predição, tornou-se presente
em praticamente todas as esferas do saber, conduzindo iniciativas e orientando
decisões com sucessos, mas também com fracassos. O brilho do êxito, em
detrimento dos malogros, não decorre apenas da dissimulação das incertezas, nem
da mera relação de freqüência, como poderia sugerir o pensamento utilitarista. O
fato é que, graças à tecnologia, cada vez mais se faz uso de objetos cujo
funcionamento é desconhecido ao homem comum, como denuncia HABERMAS,
5
Ver por exemplo em http://www.cwserp.org/techdis/id.html
20
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
21
13(1):67-84, 2005
1998. Esta dependência de especialistas para solução de problemas cotidianos
promove uma dimensão irreal. Não é sem razão, portanto, que alguns já entendam o
tempo atual como “pós-história”, como se a existência estivesse livre da natureza
num mundo absolutamente inventado (PAUNESCU, 1996).
A verdade do desastre enquanto fato é a dimensão da ignorância exposta da forma
mais cruel. Ignorância esta tanto em relação à natureza como em relação às
necessidades da condição humana. Embora a noção de compaixão venha sendo
pouco a pouco substituída pela idéia de direito universal, as expressões individuais
de dor continuam carentes na capacidade de tradução, particularmente num
contexto em que o embotamento converteu-se em estratégia defensiva. Logo, são
os desastres, com seus impactos e magnitudes sociais, que reposicionam as
percepções, constituindo, por vezes, a rara oportunidade de manifesto legítimo de
aflições há muito represadas. Todavia, nem a dimensão do acontecimento, nem a
grandeza do clamor são suficientes para promover transformações efetivas. É o
pressuposto da eqüidade, alvo permanente da tradição ocidental, que fomenta a
relação política, dando impulso às realizações sonhadas. Essa vem sendo a lição da
história contemporânea,
cujos
percalços
nas
utopias
políticas
e
econômicas
terminaram por mostrar que desenvolvimento científico efetivo se dá na plenitude
democrática. São as chances de questionamento pela sociedade que possibilitam o
seu avanço e não a simples justificação dos meios pelos fins, como é prática no
totalitarismo.
A esfera normativa, como não podia deixar de ser, vai refletir a tradição e o contexto
social transformador em que se vive. Com a incerteza, explicitamente colocada pela
ciência, e com a condição democrática, agora mais plena graças ao exercício de
21
22
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
13(1):67-84, 2005
liberdades mais fundamentais 6, o apelo é a retomada das virtudes. Em outras
palavras, é a constatação que a vida social, embora prescindindo das relações
objetivas
proporcionadas
pela
ciência,
não
dispensa
as
relações
subjetivas
orientadas pelos valores. O ressurgimento da precaução, um termo de uso mercantil
que se emprega no sentido virtuoso da prudência, próprio da pólis, mostra o projeto
social moderno em vias de transformação. A tradição grega, cuja interrogação era: O
que eu faço para ser bom ?, torna-se alternativa para a tradição latina: O que eu devo
fazer se eu faço correto?, conf. MCINTYRE, 1966/1996: 94-109. Em síntese, o
amparo da sociedade burguesa na exatidão (através da ciência) e nos deveres
imanentes e transcendentes (códigos, leis, culpa e pecado) ficou insuficiente. A
incerteza reconfigura o espaço do possível. E, se para a ciência emerge o novo,
para o homem surge a oportunidade inusitada de realização do juízo, configurando
aquilo que se entende por responsabilidade (LIEBER & ROMANO-LIEBER, 2003).
Concluindo, a distinção entre “desastre natural” e “desastre tecnológico” só procede
numa concepção metafísica, onde o mundo se conduz pelas “causas”, onde os
desejos submetem-se à autoridade das “leis naturais”. No entanto, o desastre expõe
a fragilidade dessa concepção, afrontando o domínio do cientificismo e expondo, em
termos práticos, a condição inerente da incerteza que ele mesmo supera graças à
sua emergência. Um fato natural pode ser um deflagrador, mas a condição
desastrosa será sempre definida pelo contexto, configurado pelo homem.
6
Conf. A. Senn, liberdades fundamentais são aquelas relativas ao corpo, como liberdade de ir e vir ou
liberdade das privações como a fome, ver SENN, 1999. Também H. Arendt enfatiza esta condição,
lembrando que a concepção geral de liberdade como liberdade psíquica ou do espírito foi decorrente
da fé cristã e sua ênfase no controle da vontade. Ver ARENDT, 1954 / 2001:159.
22
23
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
13(1):67-84, 2005
Todavia, para a existência humana, além dessa ordem do mundo real, há também
uma ordem relativa aos valores. E se a racionalidade impõe objetivamente a
precaução no mundo diante do desconhecido, é no mundo dos valores que se
configura as escolhas que poderão humanizar esta existência.
Referências bibliográficas
ARENDT, H. (1954) Entre o passado e o futuro. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva. 2001.
BAKER, H.
When hell came to Hallifax. History today. v52. n12. p.42. 2002.
Disponível
em
http://www.findarticles.com/p/articles/
mi_m1373/is_12_52/ai_95206654
BATES, F.L; PEACOCK, W.G. Long term recovery. International Journal of Mass
Emergencies and Disasters. v7. n3. p.349-365. 1989.
BECK U. (1986).
Risk society: Towards a new modernity.
Newbury Park: SAGE
Publications, 1992.
CLAUSEN, L.; CONLON, P.; JAGER, W.; METREVELI, S. New aspects of the
sociology of disaster: A theoretical note. Mass Emergencies. v3. n1. p.61-65. 1978.
CRID (Centro Regional de Informacion sobre desastres)
sobre
desastres.
São
José.
2001.
Vocabulário controlado
Disponível
em
http://www.crid.or.cr/crid/esp/vocabulario_controlado.html
FREITAS,
C.M.;
PORTO,
M.F.S.;
MACHADO,
J.M.H.
Acidentes
industriais
ampliados.
Desafios e perspectivas para o controle e a prevenção. Rio de Janeiro:
Ed. Fiocruz. 2000.
23
24
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
13(1):67-84, 2005
GRAMLING, R.; KROGMAN, N. Communities, policy and chronic technological
disasters. Current Sociology/La Sociologie Contemporaine. v45. n3. p.41-57. 1997.
HABERMAS, J.; BEISTER, H. (trad.). Learning by disaster? A diagnostic look back
on the short 20th century. Constellations. v5. n3. p. 307-320. 1998.
HAVENAAR, J.M.; VAN DEN BRINK,W. Psychological factors affecting health after
toxicological disasters. Clin. Psychol. Rev. v17. n4. p. 359-374. 1997.
HERNANDEZ ROSETE, D. The domestication of nature and the prevention of
disasters in the west. Acta Sociologica. v31. Jan-Apr. p.17-63. 2001.
HIGGINS, V. Calculating climate: 'Advanced Liberalism' and the governing of risk in
Australian drought policy. Journal of Sociology. v37. n3. p.299-316. 2001.
HODGKINSON,
P.E.
Technological
disaster-survival
and
bereavement.
Social
Science Medicine. v29. n3. p.351-356. 1989.
HORKHEIMER, M. (1968) Teoria crítica I . São Paulo: Perspectiva, 1990.
ISDR (International Estrategy for Disaster Reduction). Terminology: basic terms of
disaster
risk
reduction.
(revisão
de
31/03/2004).
Disponível
em:
http://
unisdr.org/eng/library/lib-terminology-eng-p.htm
JASWAL, S. Disasters and mental health. The Indian Journal of Social Work. v61.
n4. p.521-526. 2000.
KREPS, G.A. Disaster and the social order. Sociological Theory. v3. n1. p.49-64.
1985.
24
25
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
13(1):67-84, 2005
KREPS, G.A. Future directions in disaster research: The role of taxonomy.
International Journal of Mass Emergencies and Disasters. v7. n3. p.215-241. 1989.
KRIEBEL, D.; TICKNER, J.; EPSTEIN, P. ; LEMONS, J.; LEVINS, R.; LOECHLER
E.L.; QUINN, M.; RUDEL, R., SCHETTLER, T.; STOTO, M.
principle in environmental science.
The precautionary
Environmental Health Perspectives. v109. p.871-
876. 2001.
KROLL-SMITH, J.S.; COUCH, S.R. A chronic technical disaster and the irrelevance
of religious meaning: The case of Centralia, Pennsylvania.
Journal for the Scientific
Study of Religion. v26. n1. p.25-37. 1987.
KROLL-SMITH, J.S.; CROUCH, S.R. What is a disaster? An ecological-symbolic
approach
to
resolving
the
definitional
debate.
International
Journal
of
Mass
Emergencies and Disasters. v9. n3. p.355-366. 1991.
LECHAT M.F. The epidemiology of disasters. Proceedings of Royal Society of
Medicine. v69. n6. p.421-426. 1976.
LIEBER, R.R.; ROMANO-LIEBER, N.S.
de
risco?
In:
ENCONTRO
Acidentes e catástrofes: Causa ou fatores
NACIONAL
DE
ENGENHARIA
DE
PRODUÇÃO
(ENEGEP), 21º. 2001. Salvador, BA. Anais. UFRGS, Porto Alegre-RS. Associação
Brasileira de Engenharia de Produção, ABEPRO. 2001. (cd-rom). Disponível em
www.bvs-sp.fsp.usp.br/tecom/docs/2001/lie001.pdf
LIEBER, R.R.; ROMANO-LIEBER, N.S. O conceito de risco: Janus reinventado. In:
MINAYO, M.C.S.; MIRANDA, A.C.
Saúde e ambiente sustentável: estreitando os
nós. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz/Abrasco, 2002. p.69-111.
25
26
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
13(1):67-84, 2005
LIEBER, R.R.; ROMANO-LIEBER, N.S. Risco, incerteza e as possibilidades de ação
na saúde ambiental. Revista Brasileira de Epidemiologia. v6. n2. p.121-134. 2003.
MACINTYRE. A. (1966) A short history of ethics. New York: Ed. Touchstone. 1996.
MATTEDI, M. A. ; BUTZKE, I. C.
A relação entre o social e o natural nas
abordagens de hazards e de desastres. Ambiente & Sociedade. v4. n9. p. 93-114.
2001.
MURRAY, J.B. Posstraumatic stress disorder: A review. Genetic, Social, and General
Psychology Monographs. v118. n3. p.315-338. 1992.
ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD (OPAS). Anteproyecto de ley
marco sobre prevención, mitigacion y atención de desastres de origen natural o
tecnológico para el área de América Latina. Washington, D.C.: OPAS: 1995. 13 p.
Disponível
em:
http://cidbimena.desastres.hn/docum/crid/Marzo2004/pdf/spa/doc10727/doc10727.ht
m
PAUNESCU, I. The emergence of posthistory: Parameters of definition. History and
Theory. v35. n1. 56-79. 1996.
PELANDA,
C.
Disaster
and
sociosystemic
vulnerability.
Rassegna
Italiana
di
Sociologia. v22. n4. p.507-532. 1981.
POINCARÉ, H. (1902) A ciência e a hipótese. 2ed. Brasília: Ed. UnB. 1988.
26
27
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
13(1):67-84, 2005
PORFIRIEV, B.N. Disaster and disaster areas: Methodological issues of definition
and delineation. International Journal of Mass Emergencies and Disasters. v13. n3.
p.285-304. 1995.
QUARANTELLI, E.L. Epilogue. International Journal of Mass Emergencies and
Disasters. v13. n3. p.361-364. 1995.
SENN, A. (1999) Desenvolvimento com liberdade. São Paulo: Cia das Letras. 2000.
SOLIMAN, H. H. Community responses to chronic technological disaster: The case
of the Pigeon River. Journal of Social Service Research. v22. n1/2.p.89-108. 1996.
STEPHENSON, R.S. Disasters and development. 2nd. Edition. UNDP, DHA, 1994.
Disponível
em
www.undmtp.org/english/disaster_
development/disaster_development.pdf
URSANO,
R.J.
Disaster:
stress,
immunologic
function,
and
health
behavior.
Psychosomatic Medicine. v59. n2. p.142-143. 1997.
27
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
28
13(1):67-84, 2005
LEGENDA DA FIGURA 1
Processo de produção e uso do conhecimento científico. (a) As relações empíricas (
Xi e Yi ) correspondem ao mundo observado mas não podem ser extrapoladas, pois
contém o erro da observação. (b)
Quando uma relação teórica é estabelecida, a
extrapolação é possível porque a relação matemática é perfeita, permitindo a
invenção do não existente. (c) A verificação empírica da teoria deixa explícito o
mundo da descoberta. Quando o achado não confere com o esperado, configura-se
o “desastre” e a relação teórica pode assumir uma nova forma, mais completa.
28
29
Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva,
13(1):67-84, 2005
FIGURA 1
(a): Relações Empíricas
y
(b): Relações Teóricas
y
y = f(x)
yn
y3
contorno inválido
y3
Mundo da Imaginação
y2
y2
y1
X
x1
x2
x3
X
x1
Mundo da Observação
Esperado
x2
x3
xn
Mundo Inventado
(c): Relações de Verificação
y
y = f(x)
Desastre
y = f ’(x)
Mundo da Descoberta
Achado
X
x1
x2
x3
xn
Mundo Desejado
29

Documentos relacionados