famecos - Revistas da PUCRS
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Revista FAMECOS mídia, cultura e tecnologia Cinema Com os pés um pouco fora do chão: uma leitura de Andarilho, de Cao Guimarães With feet slightly off the ground: a reading of Drifter, by Cao Guimarães Rafael de Almeida Doutor em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (2013). Realizou Estágio de Doutorado (bolsa PDSE, Capes) na Faculdade de Ciências da Informação da UniversidadComplutense de Madrid (2012-2013). Como realizador audiovisual dirigiu alguns curtas, entre os quais destaca “Carrossel”, “A saudade é um filme sem fim” e “Impej”. <[email protected]> RESUMO ABSTRACT Andarilho (Cao Guimarães, 2007) configura-se como objeto de análise desse ensaio, no qual ponderamos, em especial, acerca da relação documentária e o tempo necessário para que esta seja construída. A temporalidade dilatada revela existências ordinárias que se ficcionalizam e nos impulsionam a reconhecer as potências do falso como passagem obrigatória no mundo em que vivemos. Drifter (Cao Guimarães, 2007) configures itself as the object of analysis of this essay in which we ponder, in particular, about the documentary relation and the time required for it to be built. Dilated temporality reveals common existences that fictionalize themselves and drive us to recognize the powers of the false as obligatory passage in the world in which we live. Palavras-chave: Documentário. Cao Guimarães. Andarilho (filme). Keywords: Documentary. Cao Guimarães. Drifter (film). Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, setembro-dezembro 2014 Cinema Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão A minha direção é a pessoa do vento. Manoel de Barros Uma poesia N o 18º verso da belíssima poesia O andarilho, último texto da 4ª parte de Livro sobre nada, intitulada Os outros: o melhor de mim sou Eles, Manoel de Barros nos remete a uma nota de rodapé. Antes fosse uma nota qualquer. “Penso que devemos conhecer algumas cousas sobre a fisiologia dos andarilhos. Avaliar até onde o isolamento tem o poder de influir sobre os seus gestos, sobre a abertura de sua voz, etc”. Pesquisar “a relação desse homem com as suas árvores, com as suas chuvas, com as suas pedras. Saber mais ou menos quanto tempo o andarilho pode permanecer em suas condições humanas, antes de se adquirir do chão a modo de um sapo”, parecia importante, talvez. Isso, “antes de se unir às vergônteas como as parasitas. Antes de revestir uma pedra à maneira do limo. Antes mesmo de ser apropriado por relentos como os lagartos”. Para que fosse possível “saber com exatidão quando que um modelo de pássaro se ajustará à sua voz. Saber o momento em que esse momento poderá sofrer de prenúncios. Saber enfim qual o momento em que esse homem começa a adivinhar” (Barros, 2004, p. 84). Cao Guimarães alega que tinha interesse em saber “a extensão do delírio quando se tem um excesso de oxigenação no cérebro”, saber “porque para determinadas pessoas o movimento é a razão de existir”1. A mim me parece que a nota de Manoel, se não impulsiona, dialoga com as intenções de Cao, artista de uma outra poesia, feita de sons e imagens, Andarilho (Cao Guimarães, 2007). No filme, segundo a sinopse, entre Montes Claros e Pedra Azul, no nordeste de Minas Gerais, três andarilhos solitários percorrem trajetórias distintas, relacionando-se, cada qual à sua maneira, com os elementos de um mundo onde tudo é transitório. Andarilho é o segundo filme da trilogia da solidão de Cao Guimarães, iniciada com A Alma do Osso, e trata da relação entre o caminhar Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1123 Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão Cinema e o pensar. A partir do constante movimento de sons e imagens, propõe uma reflexão sobre a vida como lugar de mera passagem2. É assim que Cao realiza, segundo ele, “um filme que se derrete na tela como os pensamentos quando se anda sobre um asfalto quente”, ou ainda, “um filme-fluxo, lentamente escorrendo pela tela, como as milhares de micropartículas que sedimentam uma estrada”. Isso, pois, vislumbrou o filme “como uma mera passagem, um trajeto sem destino certo, assim como a vida de seus personagens”. E para que a sensação da vida como mera passagem afete aquele que vê a obra, o cineasta convida um outro personagem, sem um rosto próprio, para se somar aos três – o tempo. O cineasta não crê que os andarilhos “sejam menos ou mais solitários do que nós, que vivemos nas grandes cidades. Eles têm muito a ensinar, é a gambiarra da existência, o desprendimento do consumo, do convívio social, do ritmo de vida acelerado, é um outro tempo”3. Esse outro tempo, personagem, é que o diretor de Andarilho insere no filme, provocando o espectador a entrar em um estado onírico, em um outro ritmo. Tempo em estado puro O título do filme aparece sobre a imagem desacelerada de um plano geral fixo, com um leve contra-plongèe, em movimento de travelling vertical, que percorre uma estrada em sua porção central. Formando, dessa forma, uma série de linhas que convergem para um mesmo ponto no centro superior do quadro, gerando um ponto de fuga. Um ponto que faz com que o olhar do espectador, coincida com esse outro olhar que possibilita a visibilidade dessa imagem, como de um pássaro que voa lentamente, ou um terceiro olho, o olho do espírito. De acordo com Jacques Aumont, não é possível escapar disso: “o olho, o olhar mobilizado, entregue ao tempo, explora o espaço, o investe, o enquadra, instala nele uma profundidade ficcional, faz dele uma cena, e a deposita sobre uma tela, a do cinema ou do quadro” (Aumont, 2004, p. 193). A partir Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1124 Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão Cinema daí, a próxima sequência de imagens nos dá a ver paisagens alucinatórias de carros percorrendo estradas bronzeadas, cercadas pela escuridão. O vapor do chão fazendo com que o asfalto se liquefaça, vibre. Uma senhora que se mescla ao asfalto, enquanto caminha com um capacete na cabeça. Deleuze apontará que “quando as paisagens se tornam alucinatórias num meio que não retém mais que germes cristalinos e matérias cristalizáveis”, existe um espaço cristalizado. Segundo ele, o que “caracteriza esses espaços é que seus caracteres não podem ser explicados de modo apenas espacial. Eles implicam relações não localizáveis. São apresentações diretas do tempo”. O que significa dizer que a lógica se inverte, “não temos mais uma imagem indireta do tempo que resulta do movimento, mas uma imagem-tempo direta da qual resulta o movimento”. Logo, ao invés de “um tempo cronológico que pode ser perturbado por movimentos eventualmente anormais”, temos “um tempo crônico, não-cronológico, que produz movimentos necessariamente ‘anormais’, essencialmente ‘falsos’” (Deleuze, 2007a, p. 159). E, assim, as imagens de Andarilho entram em um regime de indeterminabilidade e começa a perder a importância a distinção entre o que é subjetivo e objetivo, elas são uma declaração de que “não se sabe mais o que é imaginário ou real, físico ou mental na situação, não que sejam confundidos, mas porque não é preciso saber, e nem mesmo há lugar para a pergunta”. Através de enquadramentos fotográficos que compõem planos longos, fixos, e, por vezes, rarefeitos, é que Cao vai permitindo paulatinamente que esse quarto personagem de Andarilho – o tempo – se mostre, passageiro e transitório, frágil e belo, como a vida. “É como se o real e o imaginário corressem um atrás do outro, se refletissem um no outro, em torno de um ponto de indiscernibilidade” (Deleuze, 2007a, p. 16). É esse ponto em que atual e virtual vibram incessantemente, sem que seja possível distinguir um do outro, que Deleuze nomeou como imagem-cristal. O que vemos no cristal é o tempo em estado puro, em pessoa. Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1125 Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão Cinema Ao munir as imagens filmadas de uma lentidão propositiva, fazendo com que os movimentos encontrem novos modos de ser, Cao Guimarães gera uma reversão dupla. Isto é, por um lado, o movimento dos caminhões, dos passos dos andarilhos, das luzes dos faróis noturnos, já não se diz em nome da verdade, são essencialmente falsos; e, por outro lado, o tempo deixa de ser subordinado ao movimento. Conforme diria Deleuze, o “movimento fundamental descentrado torna-se movimento em falso, e o tempo fundamentalmente libertado torna-se potência do falso que agora se efetua no movimento em falso” (Deleuze, 2007a, p. 174). É por uma imagem-cristal que somos apresentados ao terceiro andarilho, enquanto ele, de costas, se afastando da câmera, empurra um carrinho, que saberemos depois se tratar do lugar em que ele guarda todos os seus pertences, como se fosse uma casa móvel. A imagem saturada, de tom róseo-dourado, vibra permanentemente. A textura rígida do asfalto se desfaz diante de nossos olhos. E com a câmera rés ao chão, o vapor quente nos dá a ver as figuras caminharem do sólido para o líquido e gasoso. Uma superfície plástica da imagem é revelada. Caminhões, ônibus, motos, tudo se desfaz, se liquidifica. A sensação estética é da estrada como uma rasa superfície espelhada e metamórfica, na qual, de acordo com sua aproximação, as figuras se mesclam. O nosso personagem para de empurrar o carrinho. Caminha para o lado oposto do plano, dando a ver uma parte de si que está dentro, metamorfoseada, e outra que está fora, do “espelho”. Depois volta a empurrar, ainda se afastando da câmera, de mim, até que a paisagem se mostrará vibrante e sem indivíduos. Ele teria imergido no espelho. E houve tempo para que o espectador se sentisse convidado a também se lançar. Por essa perspectiva, o que Andarilho revela é uma narrativa que “não se refere mais a um ideal de verdade a constituir sua veracidade, mas torna-se uma ‘pseudonarrativa’, um poema, uma narrativa que simula ou antes uma simulação de narrativa” (Deleuze, 2007a, p. 181). Uma narrativa que “se realiza tão-somente pela via de uma afirmação das potências do falso ativadas pelo ato de fabulação, pela reunião de atual Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1126 Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão Cinema e virtual numa imagem tempo direta”, enfim, uma narrativa que se faz “através de um discurso indireto livre em que personagem e cineasta, o subjetivo e o objetivo, estão sempre se tornando ‘outros’ na série do devir” (Teixeira, 2004, p. 51-52). Eu é outro Diz-se que a facilidade do cinema documentário é relativa à clareza das identidades colocadas em diálogo na relação documentária, ou seja, sabe-se quem se é e quem se irá filmar. No entanto, essa fórmula não funciona aqui. E há uma razão para isso: “contrariamente à forma do verdadeiro que é unificante e tende à identificação de uma personagem (sua descoberta ou simplesmente sua coerência), a potência do falso não é separável de uma irredutível multiplicidade. ‘Eu é outro’ substitui Eu = Eu” (Deleuze, 2007a, p. 163). Se, conforme Comolli, a especificidade do documentário está na suposição de um não-controle daquilo que o constitui – a relação com o outro –, poderíamos dizer, pela operação das potências do falso, que a falta de controle afeta cada uma das partes envolvidas, impulsionando-as a atravessar processos de subjetivação, e a produzir novos sujeitos. Pois, “abordar a questão desse outro sob o ângulo do medo que temos dele é justamente significar o seu contrário: o desejo (de uns e do outro)” (Comolli, 2008, p. 88). E quando se fala em desejo, é um desejo de vir a ser, de habitar os mundos possíveis do outro, um devir-outro. Não sendo eu, experimentar o outro de mim que poderia alocar-se em um mundo possível de outrem. Pasolini dizia que as “pseudo-narrativas”, por meio da língua da poesia, abriam “a possibilidade, em suma, de uma prosa de arte, de uma série de páginas líricas” (Pasolini, 1982, p. 151), garantidas pelo uso do discurso indireto livre. Ou seja, trata-se da “formação de uma narrativa simulante, de uma simulação de narrativa ou de uma narrativa de simulação que destrona a forma de narrativa veraz” (Deleuze, 2007a, p. 186), que encontramos no “Eu é outro” rimbaudiano. Se, banhados pelas potências Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1127 Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão Cinema falsificantes, estamos distantes da forma do verdadeiro e da identidade entre eu e mim mesmo, o que resta ao documentarista? Resta “a possibilidade de se dar ‘intercessores’, isto é, de tomar personagens reais e não fictícias, mas colocando-as em condição de ‘ficcionar’ por si próprias, de ‘criar lendas’, ‘fabular’”. Deste modo, a fabulação atuaria como “uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca para de atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política, e produz, ela própria, enunciados coletivos” (Deleuze, 2007a, p. 264). Sendo assim, em Andarilho, se Cao dá um passo rumo aos andarilhos, eles o retribuem com outro em sua direção: duplo devir. Deste modo, “a fala escapa, se desgarra para regiões em que a linguagem se rarefaz. Andar e delirar e, ao fazê-lo, falar uma linguagem errante, que torneia os assuntos e objetos, mas que se desprende, escapando sem cessar ao entendimento” (Brasil, 2009). As modulações da sonoridade emitida pelas vozes de cada um deles são suficientes para que compreendamos que se trata de um ato de fala, de resistência às forças impostas pelo meio, assim como o delírio que toma conta dos personagens. Delírio como maneira de resistir, de minar os poderes exercidos sobre eles pelas realidades que os cercam. Delírio que ganha visibilidade pela plasticidade das imagens. Se o ato de fala “é uma luta”, que deve ser “extremamente violento para ser, ele próprio, uma resistência, um ato de resistência” (Deleuze, 2007a, p. 301), em Andarilho, certamente,não é preciso compreender por completo a significância das palavras que saem da boca dos andarilhos, para que ele seja configurado como um. Nesse sentido, os personagens de Andarilho, em estado de puro devir, “encontramse condenadas à deambulação ou à perambulação. São puros videntes, que existem tão-somente no intervalo de movimento, e não têm sequer o consolo do sublime, que os faria encontrar a matéria ou conquistar o espírito” (Deleuze, 2007a, p. 55). E, aqui, seria impossível não se lembrar das queixas do primeiro andarilho, Nercino, em relação à falta de paz que tanto o persegue, aos espíritos malignos que tanto o atormentam. Ou Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1128 Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão Cinema os xingamentos sussurrados constantemente por Paulão. Ou, ainda, a inquietude de Valdemar, que faz com ele carregue nos braços sua “casa”, enquanto anda. Talvez, penso eu, seja para fugir de sua cotidianidade, que eles caminhem durante todo o tempo. Talvez, segundo Cao, seja “melhor pensar que estão em busca de alguma coisa”, pois “se estão fugindo, estão fugindo do que pensamos sobre eles, ou do que desejamos deles, ou do que delimitamos para eles”. É provável que Cao tenha razão, “melhor pensar que não existam nem nós nem eles, que somos todos também andarilhos e eremitas buscando e fugindo sempre de uma mesma coisa – o amor”4. E, assim, a imagem de seus corpos e rostos, nos dá a ver uma situação ótica e sonora pura, uma imagem-tempo direta. “A personagem não é separável de um antes e de um depois, mas que ela reúne na passagem de um estado a outro. Ela própria se torna um outro, quando se põe a fabular sem nunca ser fictícia”, conforme Deleuze. “E, por seu lado, o cineasta tornase outro quando assim ‘se intercede’ personagens reais que substituem em bloco suas próprias ficções pelas fabulações próprias deles” (Deleuze, 2007a, p. 183). Por essa perspectiva, será possível afirmar que o filme de Cao Guimarães se converterá nesse encontro, dialógico e falsificante, dos outros, tanto dos personagens, quanto do diretor, que é o discurso indireto livre, a todo o tempo. A ficção documentária O primeiro plano de Andarilho revela um senhor, de traços bem marcados no rosto e roupas gastas, sentado em meio à relva. Ele está levemente deslocado para a esquerda da porção central do quadro, em plano médio. Sentimos uma profundidade relativa na imagem, pois tanto a folhagem anterior quanto a posterior a ele, estão fora de foco, gerando uma sensação de simbiose entre ele e o espaço. Suas mãos manuseiam um cigarro de palha, que ele havia passado a língua logo nos primeiros segundos do Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1129 Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão Cinema filme. Seu corpo não está voltado para a câmera, mas seu rosto está. E seus olhos fitam fixamente a objetiva, como se fossem capazes de atravessá-la e alcançar o outro lado – o que está ou estará, o diretor ou a mim. Agamben dirá que se os personagens olham para a objetiva, “significa que eles mostram estar simulando; e, todavia, paradoxalmente, propriamente na medida em que exibem a falsificação, eles parecem mais verdadeiros”. Isso, pois, conforme Deleuze e Guattari, “o rosto é uma superfície: traços, linhas, rugas do rosto, rosto comprido, quadrado, triangular”; enfim, “o rosto é um mapa”, o qual “só se produz quando a cabeça deixa de fazer parte do corpo, quando pára de ser codificada pelo corpo” (Deleuze; Guattari, 1996, p. 35), ou seja, o rosto opera uma desterritorialização da cabeça. E para “compreender a verdade do rosto significa tomar não a semelhança, mas a simultaneidade dos semblantes, a inquieta potência que os mantêm juntos e os reúne em comum” (Agamben, 2000, p. 94). Assim, conforme Deleuze, “se a alternativa real-fictício é tão completamente ultrapassada é porque a câmera, em vez de talhar um presente, fictício ou real, liga constantemente a personagem ao antes e ao depois”, que irão compor uma imagem direta do tempo. “É preciso que a personagem seja primeiro real, para afirmar a ficção como potência e não como modelo: é preciso que ela comece a fabular para se afinar ainda mais como real, como fictícia” (Deleuze, 2007a, p. 185). Isso, pois ao estar sob as operações das potências do falso, por meio da função de fabulação, o personagem se insere em um processo de mutação permanente, em um processo de devir. É nesse sentido que afirma-se que o “que se opõe à ficção não é o real, não é a verdade que é sempre a dos dominantes ou dos colonizadores, é a função fabuladora dos pobres, na medida em que dá ao falso a potência que faz deste uma memória, uma lenda, um monstro” (Deleuze, 2007a, p. 183). Nesse sentido, “um novo afastamento se impõe: trata-se, agora, de colocar em primeiro plano não a forma mas a metamorfose enquanto algo pertinente ao campo documental” (Teixeira, 2004, p. 47). Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1130 Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão Cinema Digo isso, pois, segundo Comolli, “o cinema não gosta da paz nem da indiferença”. E o que resta a ele é, talvez, engajar-se no desejo maior. “Passar de um gênero ao outro, tecer na mesma trama o fio do documentário e o da ficção, escapar das referências, perder os saberes” (Comolli, 2008, p. 95). Enfim, prolongar o jogo da relação documentária e permitir perder-se, dar passos sobre linhas frágeis e costurar com as peças que encontrar pelo caminho, independente do domínio. Recomeçar. Perceber, ao mesmo tempo, o documentário como “o contrário da informação, das informações; o reino da ambigüidade; o território das metamorfoses; o domínio da narrativa”; e a ficção, como “força que nos faz sair dos eixos”, como “porta que nos faz passar para o outro lado do espelho narcísico no qual os meios de comunicação nos aprisionam” (Comolli, 2007, p. 127). Nesse sentido Rancière afirmou que “o real precisa ser ficcionado para ser pensado”. O que, segundo ele, trata-se menos de “dizer que tudo é ficção”, do que “constatar que a ficção da era estética definiu modelos de conexão entre apresentação dos fatos e formas de inteligibilidade que tornam indefinida a fronteira entre razão dos fatos e razão da ficção”. Ou seja, “escrever a história e escrever histórias pertencem a um mesmo regime de verdade” (Rancière, 2005, p. 58). O que nos permitiria afirmar, que Andarilho, ao se dedicar ao real, aquilo que foge da realidade, torna-se operante de uma potência de invenção que ficcionaliza de maneira mais forte que o dito cinema de ficção. Já que este último, na maior parte das vezes, adere à lógica do espetáculo imagético e, declina-se à rasura de personagens estereotipados. Os personagens de Andarilho, homens ordinários que não são atores por natureza, poderiam desempenhar o seu papel simplesmente – de andarilhos, de indivíduos que caminham incessantemente. Entretanto, nessa auto--mise-en-scène, eles se aventuram nos limites da encenação de si. “Desempenhar-se, dar-se, expor-se: a forma pronominal marca bem que se trata aqui de um ultrapassamento de si”. Um utrapassar que chega Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1131 Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão Cinema a suspender a relação com o sujeito que filma, para intensificar a relação com o corpo maquínico, a câmera. “Com o risco de perder-se. É este risco aceito e assumido que faz o ser filmado passar do estatuto de personagem ao de “sujeito do filme” (Comolli, 2007, p. 133-134). Os andarilhos de estrada que conhecemos são homens ordinários, um qualquer, “são personagens em devir, mas personagens nos quais não é indispensável acreditar imediatamente, pois sabemos que existem, que eles têm existência e realidade garantidas” (Comolli, 2007, p. 127). “A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem ‘ficções’” (Rancière, 2005, p. 59). Com um documentário como Andarilho, que é permeado tanto por uma quanto pela outra, seria inevitável que o mesmo acontecesse. O filme, igualmente, arquiteta ficções, através das quais não perde de vista aquilo que o funda, aquilo que é sua potência: a relação documentária. O tempo da relação A imagem do corpo, por continuar “reunindo traços (o espesso, o opaco, o estratificado, o errante, o incontrolado...) que convocam, ao mesmo tempo, a parte encarnada e parte impensada do corpo, marcas de vida, marcas de experiência vivida” (Comolli, 2008, p. 256), é o que resiste no cinema. E será através da relação entre os corpos, mediada pela câmera, que a escritura documentária se efetivará, ou seja, “de cada lado da máquina há alguma coisa do corpo”, logo “essa relação entre quem filma e quem é filmado via máquina significa a redução da distância que sempre se coloca no trabalho de mise-en-scène, e, ao mesmo tempo, aumenta a própria possibilidade de representar o íntimo” (Comolli, 2008, p. 110). Cao nos diz: “A força da relação entre caminhar e pensar que eu percebia em mim enquanto caminhava, ativou um desejo de conhecer mais de perto este processo em pessoas que literalmente passavam a vida andando – os andarilhos de estrada”. É pelo que percebe em seu próprio corpo, nas relações compartilhadas entre o seu físico Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1132 Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão Cinema e mental, que o diretor de Andarilho, se sente impulsionado a experimentar outro universo, outra corporeidade. É por intermédio do corpo que se abre a possibilidade de constituição dessa relação com outrem, para a qual seria necessário “incluir aí um regime de afetos e de crenças, de condutas e de práticas, de universos imaginados, de falas criadas e esquecidas diariamente, sem registro; enfim, a expressão de um mundo possível” (Guimarães, 2010, p. 190), para além das diferenças sócio-econômicas que distanciaria os personagens do diretor. Outrem, enquanto estrutura, “é constituída pela categoria do possível. Outrem a priori é a existência do possível em geral: na medida em que o possível existe somente como expresso, isto é, em um exprimente que não se parece a ele” (Deleuze, 2007b, p. 327). Desta forma, é outrem como estrutura, que fundamenta a relação documentária em Andarilho. É a partir dos desejos, dos afetos de Cao, que surge a vontade de habitar o mundo de outrem, de conhecer esse outro, de imergir nesse mundo. Entretanto, para que isso seja possível, digo, para que uma relação seja construída é preciso tempo. Logo, ao tempo da narrativa que nos dá a sensação da vida como mera passagem, será adicionado um outro – o tempo da relação. Durações sobrepostas. Se para Comolli, a duração seria o tempo para que uma relação se formasse entre o sujeito que filma e o filmado (Comolli, 2007, p. 128), Andarilho teria um motivo a mais para lidar com o tempo em pessoa, puro – nos dá a ver a construção dessa relação, passo a passo, a cada gota de tempo. Para que, ao longo do filme, o andarilho “alcance seu devir personagem, que ele surja como um ser em transformação e que possa, por isso mesmo, deslocar, transformar o próprio espectador”, é preciso tempo. Assim, esse tempo relacional, possui uma dupla função. Por um lado, “ele permite, simultaneamente, que o homem ordinário passe por um devir (ao se colocar na vizinhança da ficção)”, enquanto, por outro, “o próprio filme estabelece uma relação com o espectador que o põe em confronto com o Outro” (Guimarães, 2007, p. 146). Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1133 Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão Cinema Como já disse, Andarilho faz parte da trilogia da solidão de Cao. Nesse sentido, que tipo de paradoxo me leva a refletir acerca de uma temporalidade dilatada relativa ao tempo da relação com o outro, instaurada pelo documentário, enquanto o filme trata de três personagens que vagam solitariamente? Comolli dirá que “sempre haverá um nível mínimo de relação, nem que seja aquela que é preciso criar para filmar uma nãorelação”. Assim sendo, não é possível estar sozinho enquanto personagem. A solidão é “ficcionada” durante todo o tempo. Os personagens do filme de Cao devem “aceitar ao mesmo tempo a presença dos espectadores e da máquina cinematográfica, sem poder adivinhar entre esses dois olhares que se acrescentam ao seu isolamento, qual deles mais o inclui e o compreende” (Comolli, 2007, p. 130). Portanto, durante o filme, cada um deles, Nercino, Paulão e Valdemar, caminham à margem da estrada, andam devagar e atrasam o final do dia, pertencem de andar atoamente (Barros, 2004, p. 85). Mas jamais estão sozinhos. À beira da estrada Cao Guimarães diz que seu “trabalho está muito pautado em uma observação permanente de situações, personagens e atitudes que se distanciam deste lugarcomum”. Lugar-comum esse programado pelos sistemas de poder. “E note que este distanciar não é um movimento racional, pensado, programado, mas fruto de uma situação de necessidade. Meus heróis são trágicos, não necessariamente românticos”5. Ou seja, são, nesse sentido, desheróis, como diria o poeta Manoel de Barros, para quem o “andarilho é um antipiqueteiro por vocação. Ninguém o embuçala. Não tem nome nem relógio. Vagabundear é a virtude atuante para ele. Nem é um idiota programado como nós. O próprio esmo é o que erra” (Barros, 1997, p. 47). Aumont dirá que “se vidro algum separa aquele que filma do filmado, é porque os papéis são intercambiáveis, porque aquele que filma é alguém ‘como-você-e-eu’” Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1134 Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão Cinema (Aumont, 2004, p. 193). Acredito ser nesse sentido que Cao afirma: “Se o meu assunto é a realidade, não estou isento dela e nem ela está isenta de mim. Nesse exercício da reciprocidade, da generosidade da entrega, vários graus de subjetividade estão interagindo entre si”. Deste modo, para o cineasta, “a questão não é objetivar o olhar diante da realidade, mas mesclar sua subjetividade com a subjetividade do outro” (Guimarães, 2007, p. 69). Andarilho acompanha a inexistência de acontecimentos extraordinários na vida de seus personagens, que para além da beira da estrada, encontram-se às margens da sociedade, “perambulam em uma zona de indiscernibilidade entre o dentro e o fora. Seu trânsito os leva à margem, à fronteira: fronteira social, fronteira da linguagem”. A participação deles “na política, na polis, é tão difícil quanto necessária: esse discurso no limite do cognoscível – taxado de inculto ou de louco – é o que permite levar a linguagem ao seu estado bruto, musical, gestual, estético” (Brasil, 2009). E a maneira que Cao lida com esses materiais de composição, para, paulatinamente, ir costurando a narrativa, demonstra não se satisfazer “com as formas usuais de visibilidade produzidas pelo regime da informação nem se restringir simplesmente a produzir outras representações em contraposição aos modelos identitários dominantes”. O que vejo, a cada passo dado para uma próxima linha desse ensaio, é que o filme de Cao inventa “novos processos de abordagem do sujeito filmado para que este escape da mera condição de objeto de um discurso e alcance uma enunciação singular, feita de palavras, gestos, entonações, olhares” (Guimarães, 2006, p. 46). Apesar de apostar na transitoriedade dos processos de subjetivação dados durante a relação documentária, que produzem sujeitos desejosos e capazes de habitar o mundo de outrem, ao invés de crer na possibilidade de mesclar a subjetividade com a do outro, como disse o diretor. No filme, Cao “consegue inventar uma forma de estar com esses indivíduos através do compartilhamento de um viés poético em relação ao mundo e às coisas”. Andarilho Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1135 Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão Cinema inventa um espaço comum, logo político, “entre o universo dos andarilhos e do filme”, essencialmente estético, “um espaço de visibilidade em que os momentos em que a fala falta ou se perde, em que o corpo se contorce ou se desfuncionaliza” (Migliorin, 2007) convertem-se em potência, tanto do filme, enquanto escritura, como do universo das formas-de-vida filmadas. Assim, se “exemplar é aquele que simplesmente expõe a condição de ser-assim sem que ela seja sua propriedade ou um caráter próprio seu”, o documentário de Cao, revela cada um de seus personagens como um homem “comum e qualquer, uno e múltiplo”, demonstrando que “o ser qualquer existe, a cada vez, exemplarmente” (Guimarães, 2007, p. 140). Com os pés um pouco fora do chão Tomei emprestada a expressão “Com os pés um pouco fora do chão” de Cao Guimarães. Esse seria o nome de seu filme. Mas desconfio do motivo pelo qual a alteração tenha sido feita. O diretor de Andarilho diz que “o viver-junto se sustenta muito mais por esta cumplicidade no medo do que pela sincera curiosidade pelo outro, pelo espaço dialético que se forma quando nos confrontamos com o outro”. Isso, pois, segundo ele, “o outro não é o seu igual e sim, o seu diferente, aquele que vai colocar suas certezas em risco”, desestabilizar suas verdades, rachar uma abertura para o real em seu mundo. “Viver-junto é um sutil movimento interno do ser, quando sentimos um leve deslocamento de um iceberg dentro de nós. Este movimento tectônico é saber viver-junto como também saber morrer-sozinho”6. É este movimento que Cao convida o espectador a experimentar. O convida, pelas potências do tempo, a “crer e não crer no mundo filmado, e talvez preferir o filme, mas ao mesmo tempo e no mesmo movimento, diante do mundo filmado, desejar acreditar que é justamente o mundo que garante o filme, e não o filme que garante o mundo...” (Comolli, 2008, p. 146). Assim, o modo como a narrativa é composta convence ao Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1136 Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão Cinema espectador de que “as potências do falso e as vertigens do simulacro são atualmente a passagem obrigatória de nossa presença no mundo: não apenas ‘eu é um outro’, mas a entrega a essa alteridade” (Comolli, 2008, p. 297), que nos abre a inúmeras possibilidades, a processos outros, a outros modos de ver e falar, de sentir, de ser. Sendo assim, não é possível ao espectador de Andarilho permanecer indiferente ao filme, pois “essa duração que acolhe os corpos filmados e a fala dos sujeitos” também o alcança, já que “ela é fabricada por uma escrita que apela para que ele invista imaginariamente o espaço-tempo do filme e se reaproprie da miseenscène”. O que, por essa perspectiva, nos leva a crer que, enquanto espectadores, somos singulares, “todos somos homens ordinários do cinema, não qualquer um, mas um qualquer, pois o filme nos atinge um a um” (Guimarães, 2007, p. 146). E, assim, diz Cao, “finalmente, na sala de cinema, todos flutuam com os pés um pouco acima do chão” (Guimarães, 2007, p. 70). Essa é a sensação estética pela qual somos tomados em Andarilho, e aqui reside a minha aposta. Utilizar a expressão como título do filme seria tornar previsível essa sensação. Andarilho, como a poesia de Manoel de Barros, subtraído o artigo, foi uma escolha melhor. A poesia começava aí. l REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. The face. In: Means without end: notes on politics. Universityof Minnesota Press, Minneapolis, 2000. p. 91-100. AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo, Cosac &Naify, 2004. BARROS, Manoel de. Livro de pré-coisas: roteiro para uma excursão poética no Pantanal. Rio de Janeiro: Record, 1997. ______. 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Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1138 Almeida, R. de – Com os pés um pouco fora do chão Cinema NOTAS As falas do diretor de Andarilho, Cao Guimarães, quando não referenciadas, foram encontradas no material destinado à imprensa. 2 Sinopse da obra. 3 Cao Guimarães em entrevista concedida à Ana d‘Angelo, em setembro de 2008. 4 Cao Guimarães em entrevista concedida à Bienal de São Paulo, em outubro de 2006. 5 Cao Guimarães em entrevista concedida à Bienal de São Paulo, em outubro de 2006. 6 Cao Guimarães em entrevista concedida à Bienal de São Paulo, em outubro de 2006. 1 Recebido em: 05 nov. 2013 Aceito em: 15 nov. 2014 Endereço do autor: Rafael de Almeida <[email protected]> Instituto de Artes – Unicamp Rua Elis Regina, 50 Cidade Universitária “Zeferino Vaz” – Barão Geraldo 13083-854 Campinas, SP, Brasil Tel.: +55 (19) 3289-1510 Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 1122-1139, set.-dez. 2014 1139