Ayn Rand e a ética empresarial contemporânea

Transcrição

Ayn Rand e a ética empresarial contemporânea
Journal of Accounting, Ethics & Public Policy
Volume 3, Número 1 (Inverno 2003), pp. 1-26
Ayn Rand e a ética empresarial contemporânea
Stephen R. C. Hicks
Tradução pro Matheus Pacini e revisão por Vinicius Cintra (2015)
Introdução: negócios e uma sociedade livre
Os defensores de uma sociedade livre consideram os negócios como parte
integral de uma sociedade dinâmica e próspera. No Ocidente, o
desenvolvimento de uma cultura favorável aos negócios desencadeou energias
incalculavelmente produtivas. Os profissionais de negócios utilizaram os
produtos da ciência e revolucionaram os campos da agricultura, transporte e
medicina. Da mesma forma, utilizaram os produtos da arte e aumentaram, de
forma considerável, nosso acesso a eles.
Temos mais alimentos, maior mobilidade, maior assistência médica e acesso a
obras de ficção, peças de teatro e músicas do que qualquer pessoa poderia
racionalmente prever alguns séculos atrás. O resultado dos negócios no
Ocidente e, mais recentemente, em partes do Oriente, tem sido um aumento
colossal no padrão de vida do indivíduo. No espaço de alguns séculos,
passamos de uma época na qual, talvez, 10% da população vivia de forma
confortável e 90% perto da subsistência, para outra, na qual 90% vivem melhor
que confortavelmente e 10% perto da subsistência. E nós não desistimos desses
10%.
Intelectuais que estudam a sociedade livre têm, nos campos da economia e da
política, um bom entendimento do que a torna possível: o individualismo. Na
economia, existe um excelente entendimento de como - a partir de indivíduos
autônomos que se envolvem em transações voluntárias - bens, serviços e
informação fluem de forma eficiente para onde são demandados. Na política,
existe um bom entendimento de como a proteção dos direitos individuais e a
limitação do poder governamental evitam a arbitrariedade e a estultificação que
suprimem a criatividade e o incentivo dos indivíduos em todas as áreas da
vida. Não queremos dizer com isso que as teorias individualistas na economia e
na política levaram a melhor; não obstante, tiveram um grande impacto. São
respeitadas por seus oponentes, e continuam a ter muitos defensores
competentes.
O mesmo não se aplica, todavia, ao individualismo na ética. O individualismo
na ética é a tese do egoísmo: a visão de que o indivíduo é o padrão de valor, que
os indivíduos são fins em si mesmos. No entanto, a ética tradicional sempre
considerou o egoísmo extremamente problemático. Além disso, sempre
considerou expressões consistentes de egoísmo problemáticas — como aquelas
presentes no mundo dos negócios. O mundo dos negócios é uma rede de
indivíduos, cada qual com seu projeto de vida, trabalhando primordialmente
em busca do lucro, interagindo com outros indivíduos somente em benefício
próprio. Os negócios são um mundo social governado pelo autointeresse, e
avaliações morais do autointeresse determinam as avaliações morais do mundo
dos negócios.
O propósito desse artigo é defender o egoísmo do qual depende o mundo dos
negócios. Os negócios tratam da produção e do comércio. A produção é
consequência da responsabilidade do indivíduo por sua vida, do exercício do
seu julgamento racional na identificação de suas necessidades e como melhor
atendê-las. O comércio é uma consequência da disposição dos indivíduos a
interagirem de forma cooperativa com vistas ao benefício mútuo. Esses
princípios — responsabilidade, racionalidade e cooperação — são os princípios
centrais de qualquer sistema moral saudável, e formam os princípios centrais
do mundo dos negócios.
Obviamente, nem todos os indivíduos no mundo dos negócios agem de forma
responsável, racional e cooperativa. Tais casos problemáticos são, no entanto,
exceções. Os negócios existem e florescem na medida em que os indivíduos no
mundo dos negócios são produtivos e cooperativos, portanto a maior parte da
ética empresarial deveria tratar dos princípios que permitem que os indivíduos
trabalhem de forma produtiva e cooperativa. Contudo, por causa dos
problemas que podem ser criados por indivíduos irresponsáveis, irracionais e
não cooperativos, parte da ética empresarial trata-se do seguinte: como os
indivíduos deveriam resolver os problemas causados pelos irresponsáveis.
Essa tese, no entanto, implica em uma revisão da ética empresarial
contemporânea, dado que os modelos atualmente dominantes defendem o
contrário — que os negócios são, em princípio, amorais ou imorais, e que o
comportamento ético é a exceção.
Minha tese é que o núcleo dos negócios é moral assim como o núcleo de
qualquer profissão válida é moral: educação, ciência, artes. A profissão de
educador gera valor: a transmissão de conhecimento entre gerações. A profissão
de cientista gera valor: a descoberta de novo conhecimento. A profissão de
artista gera valor: objetos que expressam e invocam questões humanas
relevantes. Em todos os tipos de profissões, alguns indivíduos agem de forma
antiética. Com justiça, tais indivíduos não são considerados como
representantes da natureza da educação, da ciência e da arte.
Os negócios, no entanto, são segregados por muitos eticistas em uma categoria
especial e problemática. Ao fazê-lo, grande parte da ética empresarial
contemporânea presta um desserviço aos negócios. Pior do que isso, as curas
propostas geram consequências intencionais e não intencionais que são
frequentemente muito piores do que os problemas que tentam resolver. Dessa
forma, minha tarefa é dividida em quatro partes.
 Delinear os axiomas da ética empresarial contemporânea — a saber, que
o autointeresse e a busca do lucro não são morais, e que o altruísmo é
necessário para o comportamento ético.
 Investigar as considerações ético-teóricas subjacentes que levaram à
rejeição do autointeresse e à promoção do altruísmo — isto é, que a
economia é um jogo de soma zero e que a natureza humana é
inerentemente destrutiva.
 Argumentar que a concepção racional do autointeresse resolve os
problemas causados por se considerar a natureza humana destrutiva ou
a economia como um jogo de soma zero — isto é, que os humanos são
fins em si mesmos, que os requisitos de produção são fundamentais na
ética, e que a razão aplicada à produção elimina o cenário de soma zero.
 Esboçar quais são os efeitos de uma ética racional do autointeresse na
ética dos negócios — isto é, que todas as partes podem ser vistas como
agentes responsáveis que interagem somente em condições
mutualmente benéficas.
A literatura contemporânea: negócios como amorais ou imorais
Na literatura atual sobre ética empresarial, supõe-se que os negócios são, na
melhor das hipóteses, uma atividade amoral, e a expectativa é que, com
frequência, a prática dos negócios tenha maior probabilidade de ser imoral.
A razão para tal é a teoria quase universalmente aceita dentro da ética
empresarial: as considerações morais e as considerações que normalmente
impulsionam os negócios estão em categorias completamente diferentes. Pelos
negócios serem movidos pelo autointeresse e pelo lucro, a maioria dos eticistas
empresariais classifica, automaticamente, o autointeresse e o lucro como
amorais ou imorais.
Alex Michalos, filósofo e editor-chefe do Journal of Business Ethics, escreve: “na
medida em que um indivíduo age primariamente com o objetivo do aumento
do lucro, é normalmente verdade que o seu interesse primordial não é fazer o
que é moralmente correto.”1 O argumento de Michalos é que não é nem mesmo
questionável que a busca do lucro e o comportamento moral estão em
categorias diferentes.
Dois professores de administração, conhecedores de filosofia, escrevem no
Academy of Management Review: “duas visões normativas são comuns ... . A
primeira defende que, como os gerentes de nível executivo são representantes
dos acionistas, maximizar o valor presente da firma é o princípio motivador
adequado à administração. A segunda (por exemplo, a teoria normativa das
partes interessadas) defende que o raciocínio moral deve motivar as decisões
administrativas.”2 Aqui, contrastamos o raciocínio moral à maximização do
autointeresse dos proprietários da empresa.
Amartya Sen, filósofo e economista de Harvard, escreve em um de seus livros
sobre a relação entre ética e economia: “A visão da racionalidade como
autointeresse envolve, inter alia, uma firme rejeição à concepção da motivação
“relacionada à ética.”3 Aqui, contrastamos a motivação do autointeresse à
motivação ética.
Al Gini, coautor juntamente com o destacado eticista empresarial Tom
Donaldson: “Fazer a coisa certa porque está na moda ou no seu autointeresse
não vale do ponto de vista ético — mesmo se os resultados desejados são
alcançados”4. Aqui vemos que a ética não está preocupada com o autointeresse.
A lista poderia ser ampliada indefinidamente. Vale a pena ressaltar que as
citações acima são retiradas de autores moderados da ética empresarial, isto é,
que não se veem como, em princípio, hostis aos negócios ou a favor da total
regulamentação governamental da atividade econômica. A questão é
simplesmente que a separação da ética e do autointeresse é tomada como
axiomática na atual literatura sobre ética empresarial.
1. Michalos, Alex. The Society for Business Ethics Newsletter. (1994). Maio, p. 6.
2. Quinn, Dennis P. and Thomas M. Jones. “An Agent Morality View of Business Policy.” Academy of
Management Review 20:1 (1995), 22-42; p. 22.
3. Sen, Amartya. On Ethics and Economics. New York: Basil Blackwell, 1987; p. 15.
4. Gini, Al. “Speaking With ... Al Gini.” Prentice-Hall Publishing, 1995-1996.
Os principais autores da literatura empresarial dividem-se, portanto, em dois
grupos:
 Aqueles que pensam que a moralidade e o autointeresse estão em
categorias diferentes — mas não acham que existe um antagonismo geral
entre os dois.
 Aqueles que pensam que a moralidade e o autointeresse estão em
categorias diferentes — e que existe um antagonismo geral entre os dois.
Membros do primeiro grupo defendem que os resultados de considerações do
autointeresse e da moralidade são, às vezes, conflitantes e, noutras,
coincidentes. O propósito geral da ética empresarial, então, é fazer com que os
negócios sempre considerem suas ações de um ponto de vista moral e do
autointeresse, e se surgir algum conflito, que estejam dispostos a sacrificar o
autointeresse.
Membros do segundo grupo argumentam que a moralidade se opõe ao
autointeresse. Por exemplo, o filósofo Norman Bowie escreve: “A busca
consciente do autointeresse por todos os membros da sociedade gera o
resultado coletivo do enfraquecimento do interesse de todos.”5 O eticista
empresarial Oliver Williams relata a conclusão de uma conferência sobre ética
empresarial: “... não há solução fácil para o conflito entre os valores de uma
sociedade justa e os valores diametralmente opostos das corporações bemsucedidas.”6
William Shaw e Vincent Barry, autores de um livro-texto muito utilizado sobre
ética empresarial, escrevem: “[A] moralidade serve para restringir nossos
desejos puramente ligados ao autointeresse de forma que possamos viver em
sociedade.”7 Nos dois casos, o autointeresse é o inimigo — da justiça, da
moralidade e do interesse coletivo. Novamente, a lista de citações poderia ser
ampliada indefinidamente.
Assim, para os membros do segundo grupo, o propósito geral da ética
empresarial é diferente: i) opor-se às práticas do autointeresse nos negócios em
nome da moralidade, ii) forçar os negócios, de modo geral, a limitarem seus
lucros, iii) fazer com que os negócios distribuam quaisquer lucros de forma
mais altruísta e, por fim, iv) fortalecer outras instituições sociais capazes de se
oporem ao avanço dos interesses dos negócios.
5. Bowie, Norman. “Challenging the Egoistic Paradigm.” Business Ethics Quarterly 1:1 (1991),1-21;
pp. 11-12.
6. Williams, Oliver F., Frank K. Reilly, & John W. Houck, eds. 1989. Ethics & the Investment Industry.
Rowman & Littlefield; p. 9.
7. Shaw, William and Vincent Barry. Moral Issues in Business. 5th ed. Wadsworth, 1994; p. 16.
Ética empresarial no contexto da história da ética
No contexto da história da ética, isso nada tem de extraordinário. A ética
empresarial é uma disciplina aplicada e, portanto, espera-se que aplique as
teorias éticas dominantes.
Em Platão, e em menor escala em Aristóteles, lemos que as preocupações
práticas são vulgares e insignificantes. Segue-se que os negócios, como
iniciativas inerentemente práticas, são dificilmente merecedoras de respeito.
Dado o lugar ocupado por Platão e Aristóteles no cenário intelectual, temos
uma justificativa parcial para o desdenho que os membros da elite cultural
sempre mostraram com relação aos negócios.
Em Immanuel Kant, observamos que existe uma dualidade absoluta entre a
motivação moral (dever) e a motivação interessada (inclinação): qualquer
indicação de interesse destrói o valor moral da ação.8 Mas como os negócios são
impulsionados por interesses, segue-se que os negócios são inerentemente
amorais.
Em John Stuart Mill, verificamos que o autosacrifício altruísta em prol do
coletivo é o padrão de moralidade e que não existe nada pior do que alguém
interessado primariamente em sua própria “individualidade miserável.”9 Mas,
obviamente, os negócios são impulsionados pelo autointeresse ao invés do
altruísmo, individualismo ao invés do coletivismo, a busca do lucro ao invés do
autosacrifício; por isso, os negócios são amorais ou imorais.
No Cristianismo e no Marxismo, vemos os mesmos temas morais: coletivismo e
sacrifício humano. A parábola central do Cristianismo é a crucificação
voluntária de Jesus, de forma a nos purificar dos pecados. A parábola ilustra (1)
a necessidade do sacrifício humano: Jesus é forte e íntegro enquanto os outros
são fracos e imorais, e resolvemos os problemas dos fracos e imorais
sacrificando os fortes e íntegros; e (2) coletivismo: todos os humanos recebem
uma parcela do sacrifício de Jesus merecendo-a por seus esforços ou não (o
mesmo tema do coletivismo é ilustrado na doutrina do pecado original: a
responsabilidade não é individual; em vez disso, todos os humanos assumem a
responsabilidade pelas ações de Adam e Eva).
8.
9.
Kant, Immanuel. Groundwork of the Metaphysic of Morals. Translated by H. J. Paton. Harper
Torchbooks, 1964; 397-398.
Mill, John Stuart. Utilitarianism. Hackett Publishing; p. 14. Veja também as pág. 11 e pág. 14-16
onde Mill enfatiza repetidamente que o padrão utilitarista não é o autointeresse, mas o interesse
coletivo, pelo qual o indivíduo deveria estar disposto a sacrificar sua vida e felicidade.
O slogan central do Marxismo é “de cada um, de acordo com a sua capacidade;
a cada um, de acordo com as suas necessidades.”10 O slogan ilustra (1) a
necessidade do sacrifício humano: alguns humanos são fortes e capazes,
enquanto outros são fracos e necessitados, e nós resolvemos os problemas dos
fracos e necessitados sacrificando os fortes e os capazes; e (2) coletivismo: cada
individuo é visto como um bem coletivo, e suas posses são redistribuídas a
todos, independentemente se as obtiveram ou não através do seu trabalho.
Tanto no Cristianismo como no Marxismo, o autointeresse e a moralidade são
opostos.
Então, não nos causa surpresa que a disciplina da ética empresarial atualmente
se resuma à aplicação aos negócios do que foi dito pelas vozes dominantes na
história da ética por milhares de anos.
Isso, por sua vez, explica porque os eticistas empresariais não se acanham em
demandar que os negócios sacrifiquem seus lucros e porque a maioria dos
executivos sente-se desconfortável no que tange à questão da ética empresarial.
Os executivos estão preocupados com seu autointeresse, com o lucro, e estão
bem cientes de que a maioria dos eticistas empresariais, carregando o manto da
autoridade moral, ou condenam tais coisas ou as colocam na categoria de
prioridades secundárias.
A dualidade do autointeresse e da moralidade é considerada uma tese filosófica
geral e fundamental na ética empresarial atual, e é como uma tese filosófica
geral que deveria ser tratada e, a meu ver, rejeitada. Os defensores dos negócios
podem e têm investido muita energia expondo que práticas empresariais
particulares baseadas no autointeresse são produtivas e de ganho mútuo — a
formação de sociedades anônimas, a introdução de mercados futuros, de títulos
de alto risco (junk bonds), e assim por diante. Contudo, essas demonstrações
particulares tiveram pouco impacto na diminuição da suspeita geral sobre os
negócios.
Uma analogia a algumas crenças ambientalistas é útil nesse momento. Para
alguns ambientalistas, a crença no esgotamento dos recursos naturais e no
envenenamento geral causado pelos resíduos industriais funciona, do ponto de
vista psicológico, como verdade geral e axiomática. Cientistas e outros
especialistas podem refutar um medo particular — por exemplo, mostrando
que existem muitas reservas de petróleo e que a daminozida (uma molécula de
herbicida) é benigna — mas a tese geral não é mencionada: o ambientalista está
10. Marx, Karl. Critique of the Gotha Program. 1875.
predisposto a esperar o pior, e continuará a esperar o pior mesmo se a próxima
dezena de medos seja provada infundada.
Da mesma forma, a tese geral de que o autointeresse é exterior à moralidade
leva à suspeita geral do autointeresse nos negócios. Explicar, por exemplo, que
alguns tipos de informações privilegiadas (insider trading) não são tão negativos
de modo geral, não irá mudar a mente de alguém sobre o status moral dos
negócios: a maioria dos eticistas ainda estará predisposta a esperar o pior da
próxima manifestação de autointeresse. É a tese geral sobre o autointeresse que
deve ser tratada.
Então, por que os filósofos tradicionalmente colocam a moralidade e o
autointeresse em categorias distintas?
Autointeresse como amoral / imoral
Argumenta-se que o autointeresse é um problema nos negócios de duas formas.
Primeiro, a busca do lucro pode levar um individuo a prejudicar outro — isto é,
o autointeresse leva aos pecados de comissão. Por exemplo, um argumento
comum sobre o insider trading (informação privilegiada) é que o insider está em
uma posição propicia para tirar vantagem do outsider, e seu autointeresse o leva
a fazer isso. Segundo, a busca do lucro pode levar os indivíduos a não ajudarem
os desafortunados — isto é, o autointeresse leva aos pecados de omissão. Por
exemplo, o argumento padrão contra a realocação de uma fábrica não é que a
empresa está prejudicando o direito dos trabalhadores; uma empresa moral
estaria disposta a desistir das oportunidades de lucro que a realocação
ofereceria.
A preocupação com os pecados de comissão é que o autointeresse coloca os
indivíduos em conflito com sua obrigação de não prejudicar os interesses dos
outros, e a preocupação com os pecados de omissão é que o autointeresse coloca
os indivíduos em conflito com sua obrigação de ser altruísta. Em ambos os
casos, a moralidade é vista como algo que demanda o autosacrifício. Para evitar
os pecados de comissão, tenho que sacrificar uma oportunidade de lucro, e para
evitar os pecados de omissão, tenho que sacrificar um bem. Em ambos os casos,
os conflitos de interesse entre os indivíduos são considerados como
fundamentais. Vamos avaliar os dois tipos de pecados do autointeresse,
separadamente.
Autointeresse e os pecados de comissão
Em detalhe, o argumento dos pecados de comissão diz o seguinte: começamos
por notar conflitos — negócios vs consumidores (propaganda fraudulenta,
preço monopolístico); empresas vs. empregados (contratação por raça / sexo,
realocações de plantas); empresas vs. outras empresas (guerra de preços, insider
trading).
Perguntamos: o que gera esses conflitos? (a) autointeresse: para lucrar, os
negócios estão dispostos a enganar seus consumidores, explorar seus
empregados, prejudicar seus concorrentes e poluir o meio ambiente. (b)
fraquezas relativas: consumidores, trabalhadores, alguns concorrentes e o meio
ambiente não estão em boa posição para se defenderem.
Depois, perguntamos: quais são as consequências de tais conflitos? A parte mais
forte prevalece, e a parte mais fraca, perde.
Nós então generalizamos o problema: o autointeresse / a busca do lucro e a
existência de desigualdades de habilidade e poder geram conflitos de interesse,
consequentemente levando à forte lucratividade à custa dos mais fracos.
Posteriormente, oferecemos duas soluções: (a) ética: obrigamos os negócios a
limitarem seu autointeresse — por exemplo, renunciar às oportunidades de
lucro; (b) política: pedimos ao governo que regule ou imponha restrições aos
negócios; e pedimos ao governo que conceda direitos especiais às partes mais
fracas e/ou limites aos direitos das partes mais fortes.
Dessa forma, obtemos a solução negativa: a ética empresarial diz respeito,
primeiramente, à restrição do autointeresse e da busca do lucro.
O ponto de partida dessa análise é que também existem conflitos fundamentais
de interesse entre negócios, consumidores e empregados, e entre os próprios
negócios. Uma vez que os conflitos são considerados como fundamentais, o
individuo deve fazer uma escolha de princípios: ele é pró-negócios (e, portanto,
anticonsumidor e antitrabalho) ou pró-consumidor e pró-trabalho (e, portanto,
antinegócios)?
Aqui, a questão mais importante é: por que deveríamos tomar os conflitos de
interesse como fundamentais? Qual é a origem dessa premissa? Se dissermos
que uma verdade geral e fundamental sobre a moralidade é que o autointeresse
deveria ser sacrificado ou deixado de lado, então, devemos ter como premissa
que, como verdade geral e fundamental, interesses sempre estão em conflito.
Então, a questão é: por que esses são geralmente vistos como conflitos de
interesse?
Duas considerações globais sobre a condição humana têm sido
tradicionalmente usadas para mostrar que os conflitos de interesse são
fundamentais para a condição humana: de um lado, a premissa psicológica e
biológica; do outro, a premissa econômica.
Recursos escassos
Em primeiro lugar, trataremos da premissa econômica: a alegação de que
vivemos em um mundo de recursos escassos. O conceito de escassez é usado de
diversas formas. Uma forma bastante neutra é dizer que os humanos sempre
querem mais do que têm. Não é dessa forma que é usada para atacar o
autointeresse. Se o problema é simplesmente o ‘querer mais’, podemos dizer
que a solução é produzir mais. Contudo, na ética tradicional, acabar com a
escassez por meio da produção não é uma opção. A escassez é usada no sentido
malthusiano de soma zero: não há quantidade suficiente para satisfazer a todos.
Isso nos coloca em uma situação de conflito com os outros: sua necessidade de
alimento, por exemplo, e minha necessidade de alimento não podem ser ambas
satisfeitas, então, um de nós terá que se sacrificar ou ser sacrificado: o problema,
então, é decidir quem será.
Essa é a razão da popularidade do dilema do bote salva-vidas, o qual ilustra o
que é frequentemente visto como o fato econômico fundamental contra o qual a
moralidade deve reagir: que o seu autointeresse e o meu autointeresse estão em
conflito fundamental por causa da escassez econômica.
Tal situação nos oferece uma escolha difícil. A escolha está entre agir de forma
egoísta ou altruísta. Se eu colocar meu autointeresse em primeiro lugar, tomarei
todas as ações necessárias para assegurar que eu receba comida e bebida
suficientes, assegurando desse modo a morte do outro. Eu ganho à custa do
outro. Se eu colocar o interesse dos outros em primeiro lugar, eu,
voluntariamente, me sacrifico pelo bem dos outros. Outra pessoa ganha à
minha custa. Por um lado, se todo mundo ou alguém colocar seu autointeresse
em primeiro lugar, estabelecer-se-á uma situação de cada um por si, pondo em
risco a segurança do barco. Por outro lado, um altruísmo acrítico pode fazer
com que a única pessoa com habilidades de navegação se atire ao mar,
arriscando a segurança do barco. Consequentemente, o argumento segue: a
atitude racional a ser tomada é adotar um ponto de vista coletivista —
deveríamos colocar todos nossos autointeresses de lado e pensar no que é
melhor para o barco como um todo: quem tem as maiores necessidades? Quem
tem mais a contribuir para a sobrevivência do barco?
O que isso sugere para a filosofia moral é que o autointeresse é perigoso. Em
um mundo de recursos escassos, o autointeresse leva à competição brutal, à
exploração dos fracos pelos fortes, e ameaça à sobrevivência da sociedade como
um todo. O que isso implica para os negócios é que os lucros devem ser obtidos
à custa dos outros. Em um mundo de recursos escassos, os negócios são
fundamentalmente um jogo de soma zero: a busca do lucro leva à competição
brutal, à exploração dos fracos pelos fortes, e ao empobrecimento da sociedade
como um todo.
De acordo com esse argumento, então, os conflitos de interesse são necessários
por causa de uma verdade econômica fundamental: recursos escassos.
Gyges / Pecado Original / o Id
O outro grande argumento para os conflitos fundamentais de interesse baseiase em afirmações sobre a biologia e a psicologia humanas. Considere as
seguintes citações:
Segue Brian Medlin, autor de uma crítica amplamente citada ao egoísmo ético:
“[O egoísta] não pode nem mesmo defender que ele deveria cuidar de si e
somente isso. Quando ele tenta me convencer de que ele deveria cuidar de si,
ele está tentando me convencer de que devo aprovar quando ele bebe minha
cerveja e rouba a mulher do Tom.”11 Charles Sykes, um intelectual conservador:
“A essência do egoísmo puro é impor o que gosta e o que não gosta, além de
preconceitos sutis e lamentações pessoais aos outros. A sociedade existe para
colocar limites ao desejo do ego tornar-se o centro do universo.”12 Aqui segue
uma citação de Anthony Burgess, um conhecido romancista inglês
contemporâneo:
Que o impulso sadomasoquista está em todos nós, já não resta dúvida.
Existe alguma ligação neural obscura no cérebro entre o desejo sexual e a
vontade de dominação — e a última frase deixei propositalmente
ambígua.
Nós
temos,
corretamente,
medo
de
deixar
nosso
sadomasoquista sair do controle: é muito fácil. Nós somos muito maus
por dentro; é o que fizemos no exterior que conta.13
O que temos aqui são alegações do que se pensa ser a matéria-prima, a natureza
humana básica, com a qual a ética deve lidar. Nós somos, por natureza, seres
que querem roubar uns dos outros. Queremos meter chifres uns nos outros.
Nós somos preconceituosos, lamurientos e autoritários. E, se formos honestos,
admitiremos a obtenção de prazer sexual por meio da violência e da
humilhação alheia.
11. Medlin, Brian. “Ultimate Principles and Ethical Egoism.” Australasian Journal of Philosophy 35:2
(1957), 111-118.
12. Sykes, Charles. “The Ideology of Sensitivity.” Imprimis 21 (July 1992), p. 4.
13. Burgess, Anthony. “Our Bedfellow, the Marquis de Sade.” In The Norton Reader, 6th ed., p. 510.
Esse tem sido o tema dominante na história dos argumentos a favor ou contra o
autointeresse. A maioria dos principais oponentes intelectuais do autointeresse
também tem defendido um retrato soturno da natureza humana. O argumento
de Platão sobre a moral do Mito de Gyges é que todas as pessoas possuem
desejos internos vulgares e desregrados que somente alguns, depois de muito
esforço, serão capazes de subjugar. A tese básica do Cristianismo é o pecado
original: todos nós nascemos com um instinto destrutivo e rebelde, tendo em
nós a marca de Cain, o assassino. O conceito de id de Sigmund Freud é um
conjunto de instintos irracionais e quase incontroláveis que nos levam a querer
aproveitar-se do próximo — ou, em suas próprias palavras, “explorar sua
capacidade de trabalho sem compensação, usa-lo sexualmente sem
consentimento, tomar suas posses, humilhá-lo, fazê-lo sofrer, torturar e ceifar
sua vida. Homo homini lupus.”14
Afirmações como essas vão ao âmago do plano da ética. Se essas alegações
sobre a natureza humana são verdadeiras, então cada indivíduo está
fundamentalmente em conflito com o outro. Nós temos, portanto, somente duas
escolhas. Podemos adotar uma conduta autointeressada, deixando nossa índole
animal assumir o controle. Se o fizermos, obviamente, a vida será desagradável,
solitária, brutal e curta, e a sociedade civil entrará em colapso. A alternativa é
tentar tornar a sociedade civil possível. Esse projeto demandará uma força
antiautointeresse — a saber, um código moral que conceda prioridade ao
controle do ego, fazendo com que o ego suprima todos os seus interesses
naturais. Como a natureza humana não muda com o tempo, esse projeto terá de
ser contínuo: a ética sempre terá que buscar a resolução de conflitos de interesse,
e sua solução sempre será o sacrifício ou a restrição do autointeresse.
Aplicado aos negócios, obtemos o princípio de que o antagonismo e a
dominância, em vez da cooperação e do benefício mutuo, são mais naturais aos
indivíduos. Desejos de curto prazo — lucro rápido ou expressões de poder —
serão tentações constantes. Temos, por exemplo, a visão dos negócios defendida
pelo profissional de marketing Roger Dawson: “Quando destruímos o cara do
outro lado da mesa, isso é negociação. Quando você faz com que ele o agradeça,
isso é poder.” 15
Para que a cooperação e as relações de longo prazo possam existir, a tese
fundamental da ética empresarial será a supressão do autointeresse. A ética
empresarial terá de ser eternamente vigilante na sua busca por maneiras
eficientes de restrição dos desejos indisciplinados do autointeresse.
14. Freud, Sigmund. Civilization and Its Discontents. W. W. Norton & Co., 1961; p. 58.
15. Dawson, Roger. From promotional materials for Nightingale-Conant Corporation, 1994.
Temos agora dois argumentos que apoiam a conclusão de que os conflitos de
interesse são fundamentais. O argumento sobre os recursos escassos é utilizado
com maior frequência por esquerdistas, na manutenção de sua ênfase na
supremacia dos fatores adquiridos sobre os naturais, enquanto que o
argumento da natureza humana destrutiva é proposto, com maior frequência,
pelos conservadores, na manutenção de sua ênfase tradicional dos fatores
naturais sobre os adquiridos. Comum a ambos, todavia, é a conclusão de que o
conflito de interesse é fundamental e precisa ser restrito e que a ética é uma
ferramenta de restrição. Para ambos, em outras palavras, a moralidade e o
autointeresse estão em categorias fundamentalmente diferentes e opostas.
Autointeresse e os pecados de omissão
Encontramos a mesma conclusão de conflito de interesse quando consideramos
o argumento dos pecados de omissão contra o autointeresse. O argumento é o
seguinte:
 Em vida, alguns indivíduos são capazes de se sustentarem, enquanto
outros não.
 Se os capazes não fizerem caridade aos incapazes, os incapazes sofrerão
ou morrerão.
 No entanto, o autointeresse dos capazes não é de se sacrificar pelas
necessidades dos incapazes.
 Portanto, os interesses dos capazes estão em conflito com os interesses
dos incapazes.
 A premissa do altruísmo: os interesses dos incapazes são mais
importantes do que os interesses dos capazes.
 Portanto, os capazes deveriam sacrificar o que for necessário para
satisfazer as necessidades dos incapazes.
 Como consequência, o autointeresse é imoral (6ª e 3ª linhas do
argumento).
O ponto de partida dessa análise é que os interesses dos incapazes colocam-nos
em conflito com os interesses dos capazes. Se pensarmos nesse conflito como
fundamental, então temos que fazer uma escolha de princípios: dado que
somente um conjunto de interesses pode ser satisfeito, temos que decidir, em
geral, ou sacrificar os interesses dos capazes (como os altruístas fazem) ou
aquele dos incapazes (como, por exemplo, faz Friedrich Nietzsche e os
darwinistas sociais). Demandar o sacrifício dos capazes para ajudar os
incapazes é desagradável, mas não tão duro quanto não demandar tal sacrifício
parece. Por fim, chegamos à conclusão altruísta: as necessidades dos incapazes
deveriam ser precedentes, e como o autointeresse dos capazes é oposto a isso, o
autointeresse deverá ser sacrificado.
Novamente, é uma premissa sobre os conflitos de interesse que é crucial aqui,
dessa vez por considerar a inabilidade humana como fundamental para a ética.
Se considerarmos a necessidade e a inabilidade como fundamentais para a ética,
então os conflitos de interesse são inevitáveis e alguém deverá ser sacrificado. O
altruísmo alinha-se com aqueles em grande necessidade e assim rejeita o
autointeresse dos capazes.
Aplicada à ética empresarial, chegamos à conclusão geral de que a ética
empresarial trata, em parte, do sacrifício do autointeresse dos negócios em prol
dos interesses dos menos capazes. Tal altruísmo leva a (a) exortar os negócios a
redistribuírem seus lucros às partes com maior necessidade e (b) apoiar a
redistribuição governamental de riqueza (por exemplo, tributação, controle de
aluguéis e salário mínimo).
Resumo: por que conflitos de interesse?
Três considerações, então, levam à conclusão de que os conflitos de interesse
são fundamentais. Em cada caso, o sacrifício do autointeresse é considerado
como um fundamento da ética: ou se obriga que o ego seja restrito ou que abra
mão de alguns de suas posses.
Se tomarmos essas teses de plano de fundo da teoria ética como verdades
universais, nós nos voltaremos ao campo aplicado da ética empresarial com
duas hipóteses:
1. Os negócios preocupam-se com o lucro. Contudo, suspeitamos
antecipadamente de que os lucros sejam obtidos à custa dos outros: os
negócios estabelecem uma relação ganho/perda. Então, os negócios são
imorais na medida em que são lucrativos.
2. Os negócios não são intencionalmente altruístas, isto é, os negócios não
estabelecem uma relação ganho/perda. Mas sabemos de antemão que um
indivíduo é supostamente altruísta ou que, pelo menos, recebe crédito
moral somente por atos altruístas. Então, os negócios são amorais ou
imorais.
Consequências do dualismo: combate às desigualdades
Em quase todas as teorias éticas tradicionais, o autointeresse é alvo da
moralidade, mas é o autointeresse dos mais abastados, mais fortes, mais
capazes, mais ricos que é especialmente visado. Os mais fortes estão em melhor
posição para tirar proveito dos mais fracos, então é o autointeresse dos mais
fortes que é foco especial de restrição. É o autointeresse dos mais fortes que
deveria ser sacrificado em prol dos mais fracos, assim, é o autointeresse dos
mais fortes que deve ser superado. Em ambos os casos, as desigualdades de
poder, habilidade e riqueza passam a ter enorme significância moral, e grandes
desigualdades polarizam as obrigações e reinvindicações morais dos fortes e
dos fracos. Aqueles que são mais fortes têm necessidades especiais de restrição,
e têm maiores obrigações de redistribuição de seus recursos aos mais fracos. Por
outro lado, os mais fracos são vistos como merecedores específicos de direitos
extras contra danos pelos mais fortes, e quanto maior seu grau de fraqueza,
maior suas reivindicações contra os fortes.
Consequentemente, na ética empresarial atual, a análise dos negócios toma
como ponto de partida os níveis relativos de força das partes envolvidas. Para
ilustrar meu argumento, considere os seguintes exemplos de supostos pecados
de omissão:
 Grandes corporações, que buscam aumentar seus lucros, realocarão
suas fábricas, deixando muitos indivíduos desempregados. Análise: a
corporação é “forte” e muitos empregados individuais são “fracos”.
Solução: a corporação não deveria ser realocada, mas sim sacrificar suas
oportunidades de lucro em prol dos empregados.
 Bancos, agindo no seu autointeresse, não fazem empréstimos para
indivíduos carentes nos centros urbanos, e dão continuidade à ação de
despejo em hipotecas não pagas de, por exemplo, indivíduos
desempregados. Análise: os bancos são ricos; os residentes dos centros
urbanos e os desempregados são pobres. Solução: os bancos deveriam
se sacrificar em prol dos pobres, concedendo-os empréstimos de alto
risco.
 O autointeresse leva algumas empresas a não pagar a mão-de-obra
não qualificada mais que o salário de subsistência. Análise: os donos
das empresas são financeiramente mais fortes que seus empregados
não qualificados. Solução: os donos deveriam sacrificar parte do lucro
em prol dos empregados.
 Licença maternidade: as corporações serão negligentes perante as
necessidades de suas funcionárias grávidas. Análise: as corporações são
mais fortes; mulheres grávidas possuem necessidades especiais.
Solução: às mulheres grávidas deveria ser dada a garantia do cargo
após o término da licença maternidade.
 Em cada caso, a análise identifica uma parte forte e outra fraca e
então demanda um sacrifício da parte forte em benefício da parte fraca.
O mesmo procedimento é seguido para supostos pecados de comissão:
 As ondas de rádio e a “doutrina da justiça”, criada pela Comissão
de Comunicação Federal, FCC em inglês, do governo norte: se não
reguladas, as grandes corporações de rádio (fortes) manipularão as
visões políticas do público (fraco) apresentando uma cobertura
tendenciosa. Solução: a FCC deveria regular o conteúdo da
radiodifusão para assegurar uma cobertura equilibrada.
 Drogas medicinais experimentais (por exemplo, Laetrile): para
lucrar, as companhias farmacêuticas (fortes) explorarão os medos e o
desespero de pacientes terminais (fracos). Solução: a Comissão Federal
de Comércio e/ou a Administração de Alimentos e Drogas (FDA),
ambas do governo americano, deveriam controlar o mercado de drogas
experimentais.
 Fórmulas infantis: grandes corporações ocidentais (fortes)
aproveitam-se das pobres, analfabetas mães do terceiro mundo (fracas).
Solução: pressionar as companhias a limitarem suas vendas, não fazer
propagandas, etc.
 Anúncio de produtos perigosos (por exemplo, tabaco e álcool):
grandes companhias (fortes) manipularão os valores e gostos dos
consumidores (fracos) por meio da publicidade. Soluções: regular ou
eliminar tais formas de publicidade; ou usar a propriedade das
empresas contra sua vontade para a vinculação de mensagens de
interesse público (por exemplo, pacotes de cigarro canadenses).
 Aluguéis de apartamentos: proprietários ricos (fortes) extorquirão
inquilinos (fracos); solução: impor controle de aluguéis para ajudar os
inquilinos necessitados à custa dos ricos proprietários.
 Insider trading: investidores de Wall Street (forte) aproveitar-se-ão
do pequeno investidor de Main Street (fraco). Solução: restringir o
insider trading; ajudar o investidor pequeno pela redistribuição da
informação dos grandes investidores (por exemplo, leis de divulgação
financeira).
 Salários: empregadores (forte) explorarão os empregados (fracos),
pagando somente salários de subsistência. Solução: estabelecer um
salário mínimo para ajudar o empregado carente à custa do
empregador rico.
 Políticas de contratação: os negócios (fortes) agirão como racistas e
como um ser independente com respeito a empregados potenciais
(fracos). Solução: o estabelecimento de ações afirmativas ajuda os
membros de grupos menos favorecidos à custa de membros de grupos
favorecidos.
 Segurança de produtos: a corporação McDonald´s venderá
imprudentemente café quente para senhoras em carros que nem
possuem locais específicos
responsabilidade objetiva.16
para
os
copos.
Solução:
impor
Em cada caso, identificamos uma parte fraca e uma parte forte. Consideramos
que os interesses das duas partes estão em conflito fundamental. Então
propomos soluções que, pelo menos, restringem o autointeresse da parte mais
forte em nome da proteção da parte mais fraca e, em alguns casos, ativamente
sacrificam os interesses da parte mais forte em benefício da mais fraca. Já que,
em relação aos consumidores, os negócios são percebidos como a parte mais
forte, a ética empresarial hoje foca em conceder aos consumidores proteções
extras e limitar o poder dos negócios. Visto que, em relação aos empregados, o
empregador é considerado a parte mais forte, a ética empresarial hoje foca em
conceder aos empregados proteções especiais e limitar o poder dos
empregadores. Uma vez que, em relação aos pequenos negócios, os grandes
negócios são considerados como mais fortes, a ética empresarial foca em
conceder um impulso aos pequenos negócios e domar as malignas corporações
multinacionais.
Temos, assim, uma ética empresarial que parece o seguinte: a grande
corporação moral doará grande parte do seu lucro à caridade; restringirá suas
oportunidades de lucro em países pobres de terceiro mundo; quando fizer
propaganda, será menos persuasiva em respeito pelo pobre consumidor; para
dar maiores chances de competição às pequenas empresas, não usará sua
vantagem de tamanho; quando empregar, sacrificará algum lucro se os seus
empregados precisarem. E se os negócios não sacrificarem seus interesses de
forma voluntária, então pediremos ao governo que os forcem a fazê-lo. O
governo verá como seu trabalho o auxílio aos fracos contra os fortes, dando-lhes
direitos extras, limitando os direitos dos fortes ou transferindo riqueza dos
fortes aos fracos.
A ética empresarial então se baseia e fomenta uma cultura geral de litígios:
negócios vs consumidor, empregador vs. empregado, grandes negócios vs.
pequenos negócios, e negócios vs. governo.
Os defensores do livre mercado argumentam contra esse tipo de ética. Em
linhas gerais, todavia, não o têm feito através de ataques diretos à ética, mas sim
mostrando as consequências politicas e econômicas negativas da interferência
no livre mercado.
16. Em 1992, uma senhora comprou café em um drive-through do McDonald’s. Ela então colocou o
copo de café quente entre suas pernas e tentou abrir a tampa. Resultado: café quente na sua perna e
queimaduras. Ela processou o McDonald’s por não havê-la avisado que o café estava quente. Esse
caso foi destaque nacional porque ela obteve um acordo multimilionário de parte do McDonald’s.
Libertários e alguns conservadores argumentam, muito frequentemente, que as
soluções propostas nos casos supracitados reduzem os incentivos, violam as
liberdades e os direitos de propriedade individuais, os princípios dos direitos
iguais e assim por diante. Isso, no entanto, tem tido pouco efeito sobre a
oposição moral ao livre mercado — dado que grande parte dos preocupados
com a ética tem dito que as preocupações práticas são menos relevantes que as
preocupações morais, que o interesse do indivíduo em sua propriedade e seu
incentivo a adquirir mais são meramente autointeresses, e que tais
preocupações egoístas, podem e devem ser limitadas, restringidas e ignoradas.
Na medida em que o autointeresse é visto como amoral ou imoral, o argumento
da viabilidade da busca do lucro e dos direitos de propriedade terá sucesso
limitado. Os seus oponentes podem concordar que o livre mercado é eficiente,
mas ainda estarão dispostos a sacrificar as liberdades individuais e os lucros —
já que são meramente considerações egoístas — em nome de considerações
mais nobres, providas de moral.
O que é necessário, então, é a defesa do individualismo e do autointeresse no
campo moral. Até termos tal defesa, apelos por autosacrifício — voluntários ou
forçados politicamente — serão a norma na ética empresarial e na política
regulatória.
Argumentei que a oposição ao autointeresse advém da consideração dos
conflitos de interesse como sendo fundamentais à ética, e que isso advém de
premissas econômicas, psicológicas e biológicas pessimistas. Essas premissas
fazem com que o autointeresse pareça incompatível com a sobrevivência
humana de longo prazo. Dessas teorias econômicas e psicológicas que temos
que tratar.
Nesse momento, eu recorro à alternativa de Ayn Rand. Rand não tem
frequentemente obtido uma recepção positiva da comunidade da ética por
inúmeras razões. A principal razão é que ela defendeu o autointeresse em alto e
bom som. Para uma comunidade ética comprometida com a visão de que a
moralidade significa restrição e sacrifício do autointeresse, isso poderia
significar só uma coisa: Rand concede seu aval aos fortes, para que façam o que
quiserem com os mais fracos. Essa visão, dada a longa historia da ética, poderia
simplesmente ser rejeitada como absurda.
Mas tal rejeição avalia a defesa do autointeresse de Rand de dentro de um
conjunto de premissas sobre a economia e a natureza humana que ela rejeita.
Ela rejeita a crença de que a ética começa por considerar os conflitos de
interesse como fundamentais. Ela rejeita a visão de que a ética começa como
reação à realidade de recursos escassos; ela rejeita a visão de que a ética começa
pela reação às coisas terríveis que algumas pessoas querem fazer com os outros;
e ela rejeita a visão de que a ética começa pelo questionamento do que fazer
com os pobres e incapazes.
O que realmente importa são as premissas de um filósofo. Quais são as de
Rand?
A ética de Ayn Rand
De acordo com Rand, a ética é baseada nos requisitos da vida. Aquilo que torna
a vida possível estabelece o padrão de bom; aquilo que prejudica ou destrói a
vida é ruim. Assim, a ética é fundamentada na biologia: o fato de que a vida é
condicional. Os bens necessários à vida não são alcançados automaticamente, e
como não são automaticamente alcançáveis, cada ser humano encara uma
alternativa fundamental: alcançar ou não os bens necessários à vida. Alcançar
os bens viabiliza a vida do indivíduo; não fazê-lo, leva ao óbito. Contudo, o
alcance dos bens têm precondições. Cada um de nós precisa aprender quais
bens são necessários à vida e quais ações são necessárias para alcançá-los, e
então escolher consistentemente tomar a iniciativa. Contudo, o aprendizado
dessas coisas depende de uma escolha pessoal de pensar17.
Em suma, os pontos importantes são:
 A vida requer o uso de bens e serviços.
 Os bens a serem consumidos devem ser produzidos.
 A produção desses bens requer ações específicas
 Agir especificamente requer que tenhamos o conhecimento de quais bens
necessitamos consumir e quais ações necessárias para a sua produção.
 Ter o conhecimento requer raciocínio e aprendizado.
Ou, em resumo:
 A vida depende de bens.
 Bens dependem da produção.
 Produção depende do conhecimento.
 Conhecimento depende do pensamento18.
Rand, Ayn. “The Objectivist Ethics.” In The Virtue of Selfishness. New York: New American Library,
1964; pp.15-23.
18
“A mente do homem é sua ferramenta básica de sobrevivência. A vida é dada a ele; a sobrevivência,
não. Seu corpo é dado a ele; seu sustento, não. Sua mente é dada a ele; seu conteúdo, não. Para
sobreviver, ele deve agir, e antes que possa agir, ele deve conhecer a natureza e o propósito de sua ação.
Ele não pode obter alimento sem o conhecimento do alimento e da maneira como obtê-lo. Ele não pode
construir um fosso – ou um cíclotron – sem o conhecimento do objetivo e os meios para construí-lo. Para
permanecer vive, ele deve pensar”. Rand, Ayn. A Revolta de Atlas. Rio de Janeiro: Sextante, 2010. Pg.
200.
17
A questão chave sobre cada um desses pontos é que são e podem ser
executados somente pelos indivíduos. O individualismo compõe a natureza da
vida humana.
Comece pela exigência do raciocínio. Somente uma mente individual pode
pensar, e somente um indivíduo pode iniciar o processo de raciocínio. Outras
pessoas podem nos ajudar enormemente no processo de raciocínio ao nos
fornecerem informação, guiando-nos passo a passo, indicando armadilhas —
todavia, podem somente nos ajudar. Por mais que nos ajudem, cada um de nós
é o único que pode pensar por si próprio. Pensar é um processo individual.
O resultado de um bom raciocínio — conhecimento — reside nas mentes
individuais, e pode ser empregado de forma produtiva somente pela iniciativa
de um indivíduo. Somente os indivíduos sabem coisas, e somente os indivíduos
podem colocar seu conhecimento em prática. Muitos indivíduos podem ter o
mesmo fragmento de conhecimento em suas mentes, ou muitos indivíduos
podem decidir trabalhar de forma cooperativa em um projeto que utiliza seus
diferentes fragmentos de conhecimento. Contudo, o início do projeto em grupo
requer uma iniciativa (ação) sustentada por diferentes fragmentos de
conhecimento, cada qual de posse de um indivíduo. Grupos não fazem coisas;
indivíduos de um grupo fazem.
O resultado de uma ação produtiva é algum valor (bem) a ser consumido,
usado, disfrutado. Aqui, novamente, o individuo é a unidade de realidade.
Somente os indivíduos são consumidores. Somente indivíduos podem comer
salada, disfrutar de uma amizade ou experimentar a arte. Dois indivíduos
podem compartilhar uma salada ou uma amizade, mas os benefícios são
sentidos individualmente. Mil indivíduos podem ouvir a mesma apresentação
de uma sinfonia, mas são milhares de experiências individuais.
Em resumo, o caso em favor do individualismo é que somente indivíduos
raciocinam, somente indivíduos têm conhecimento, somente indivíduos agem,
e somente indivíduos podem consumir o produto de suas ações. Em outras
palavras, a vida humana é individual. Os indivíduos são tanto produtores de
bens quanto consumidores de valores. Indivíduos são tantos meios de busca de
valor e o fim dessa busca de valor. Outros podem ajudar ou interferir no
processo, mas não podem viver a sua vida no seu lugar.
O egoísmo depende dessas premissas. A ética do autointeresse é baseada no
fato de que a vida humana é um fenômeno individual, que sua manutenção é
uma responsabilidade individual, de três formas fundamentais: os indivíduos
devem pensar, devem aplicar os resultados de seus pensamentos de forma
produtiva, e devem consumir os resultados de suas ações produtivas. São,
portanto, as necessidades do individuo racional e produtivo que são
fundamentais na ética randiana.
Elementos dessa visão têm sido notados por outros filósofos, economistas e
biólogos. Mas nunca foram reconhecidos como fundamentalmente
significativos para a ética. Isso ocorre porque outros fatos (ou supostos fatos)
têm recebido prioridade, colocando as exigências do produtor racional, egoísta
em segundo plano. Aqueles supostos fatos foram a conclusão de que os
conflitos de interesse são fundamentais, que os recursos são escassos, que a
natureza humana é destrutiva, e que as necessidades dos incapazes são
prioridade.
Vamos ver como as alegações de Rand se comparam a essas outras alegações.
Respondendo a recursos escassos
Considere o problema dos recursos escassos ou da economia do bote salvavidas. A economia de soma zero é um problema de produção. Se subsistíssemos
como outros animais, como caçadores e coletores de uma oferta limitada, então
nossa condição econômica seria necessariamente de soma zero.
Contudo, pela aplicação da razão, os seres humanos são capazes de aumentar a
produção líquida. Como raciocinamos, a ciência se torna possível, e com ela a
engenharia e a tecnologia. Em outras palavras, a razão torna possível a
produção — e não somente a caça e a coleta. E se a produção é possível, então a
economia não é uma ciência de vida em um bote salva-vidas.
Portanto, tomar os recursos escassos como um fato fundamental da vida
humana é simplesmente falso. Os recursos não são limitados no sentido
necessário para geração de conflitos de autointeresse. Eu não estou em conflito
com você por uma oferta limitada de bens, pois, ao raciocinar e produzir, eu
posso aumentar a oferta de bens. O aumento não é obtido à custa de outrem. Se
eu sou um cientista que cria um novo híbrido de milho, eu aumento o estoque
líquido desse alimento. Se eu sou um inventor que aumenta a eficiência de um
tear, eu aumento o estoque líquido de tecido. Seja qual for minha profissão, está
no meu autointeresse pensar e produzir, como é o autointeresse de todas as
pessoas do mundo. Neste cenário existe uma harmonia fundamental de
autointeresse, em vez de conflito — o raciocínio e a produção aumentam a
oferta de bens, assim como a minha oferta, tornando possível para nós
comercializarmos em benefício mútuo19.
Veja também Ludwig von Mises: “A escassez natural dos meios de subsistência faz com que cada ser
vivo considere todos os outros seres vivos como inimigos mortais na luta pela sobrevivência, e gera uma
19
(É um fato histórico importante que a maioria das filosofias éticas formou-se
antes do surgimento da ciência e antes da revolução industrial transformar a
habilidade produtiva humana. Dessa maneira, houve uma menor influência do
poder da razão e das possibilidades de produção. Na medida em que a
produção não era vista como uma opção, o foco mudou para o jogo de soma
zero da distribuição).
Respondendo o Gyges/pecado original/Id
Agora, focamos na afirmação tradicional de que conflitos de interesses são
fundamentais porque nascemos com outros desejos destrutivos. Essa afirmação
depende da alegação de que nossos desejos são primários, que nossos caráteres
são formados por forças majoritariamente fora de nosso controle, que a razão
não tem papel fundamental na determinação de nossos valores e, portanto,
nossas emoções. Se for verdade que a emoção é anterior e mais poderosa do que
a razão, então os conflitos entre indivíduos são necessários e a autorestrição é
necessária. Se, por outro lado, as emoções são consequentes à razão, então o
conflito não é necessário.
Rand argumenta que os indivíduos nascem cognitiva, emocional e moralmente
tabula rasa, que a razão é de importância primária na formação dos valores de
um indivíduo, e que as emoções são consequências das escolhas de valores de
um indivíduo. Isso significa que um indivíduo não é nascido com valores
destrutivos predefinidos, o que significa que é possível moldar o sistema de
valores e caráter de um indivíduo. Isso, por sua vez, significa que alcançar um
grande caráter, em vez de suprimir um mau caráter, é nosso projeto ético
fundamental: a ética diz respeito ao autodesenvolvimento em vez da
autorestrição. Se assim for, nesse sentido, não existem conflitos inerentes entre
os homens. O autointeresse não é o inimigo da ética se os indivíduos são
capazes de dirigir suas vidas com vistas aos seus interesses racionais de longo
prazo.
Nós temos aqui somente dois conjuntos opostos de afirmações — dos
tradicionalistas e dos objetivistas — e um grande conjunto de questões
impiedosa competição biológica. Mas, para o homem, esses insuperáveis conflitos de interesses
desaparecem quando, e na medida em que, a divisão de trabalho substitua a economia autárquica de
indivíduos, famílias, tribos e nações. Numa sociedade, não há conflito de interesse enquanto o tamanho
ótimo da população não for atingido. Enquanto o emprego de braços adicionais resultar num aumento
mais que proporcional dos rendimentos, a harmonia de interesses substitui o conflito. As pessoas deixam
de ser rivais na luta pela alocação de parcelas de uma quantidade de bens estritamente limitada.
Transformam-se em colaboradores na busca de objetivos comuns a todos. Um aumento da população não
diminui – ao contrário, aumenta – a parcela de cada indivíduo.” Mises, Ludwig von. Ação Humana, 3ª
Edição, p. 760.
nativistas e tabula rasa que têm de ser tratadas antes de se decidir entre uma e
outra. Deixe-me focar somente em uma questão mais limitada. Se as emoções
são adquiridas ou intrínsecas, é da mesma forma verdade que muitos
indivíduos têm outros impulsos destrutivos e o hábito do pensamento de curto
prazo. Mesmo se você concordar que no longo prazo um compromisso com a
racionalidade e a produtividade é um padrão benéfico, oportunidades se
apresentam, nas quais alguém pode ter um ganho de curto prazo à custa de
outrem e sair impune.
Por exemplo, suponha que você é um individuo produtivo normal, mas você
tem uma oportunidade de roubar 1 milhão e fugir com o valor. Por que não?
A solução geral de Rand é clara: o fundamento ético é que a vida requer
produção. E assim, um compromisso de princípio à produção é o cerne da
moral. A produção requer conhecimento, encarar os fatos, integridade. No
contexto social, a produção e o comércio requerem cooperação, a qual requer
honestidade, justiça, respeito pelos direitos de propriedade, cumprimento dos
contratos e assim por diante. Ladrões são parasitas nesse processo: eles não
produzem, nem ajudam o processo de produção. Eles não comercializam,
tampouco facilitam o comércio. Os ladrões prejudicam o sistema de produção e
o comércio: eles prejudicam aqueles que tornam a produção e o comércio
possíveis. Portanto, o roubo é excluído em princípio.
Mas a questão particular retorna: por que aceitar o compromisso de longo prazo
à produção se o compromisso de curto prazo ao roubo trará maior retorno?
A questão é ser capaz de separar o parasitismo de curto prazo do resto da vida
da pessoa. A vida de um indivíduo é um compromisso de longo prazo, e requer
um conjunto de princípios de longo prazo para guia-la e dá-la significado.
Quem alguém é e o que alcança depende dos compromissos de longo prazo que
possui. Um ladrão, pelo contrário, pensa no curto prazo: eu posso sair ileso.
Talvez sim, talvez não. Essa não é a questão principal.
Considere uma analogia ao casamento. Um casamento é bem sucedido se
ambas as partes partilham de uma profunda reciprocidade de interesses e
ambos estão comprometidos com o desenvolvimento de longo prazo desses
interesses. Suponha que o marido em tal relação está em uma viagem de
negócios e lhe é oferecida uma prostituta. Ele sabe que sua esposa
provavelmente não descobrirá e ele pode praticar sexo seguro. Logo, não há
muita chance de se contaminar com sífilis. É de seu interesse aceitar a oferta? Se
ele estiver comprometido com o casamento, obviamente, não: dormir com uma
prostituta destrói a integridade do casamento. Mas se ele não está
comprometido com o casamento, então ele perderá tudo o que esse tipo de
relação pode oferecer. Em ambos os casos, seus interesses de longo prazo não
são alcançados.
Retornando à tentação do roubo. A vida do indivíduo e seu significado são
mais profundos e de maior duração que o casamento. Assim como os princípios
que constituem o casamento, os princípios da vida devem ser defendidos.
Introduzir o parasitismo na vida do individuo é como introduzir uma prostituta
no casamento de um indivíduo.
A solução ao problema das tentações de curto prazo é promover o longo prazo.
Isso requer a identificação moral dos interesses individuais de longo prazo e os
princípios de ação necessários para alcança-los. É sobre isso que a ética deveria
tratar.
Isso não é o que o conflito de modelo de moralidade oferece como solução para
o problema dos ladrões. Ladrões são motivados pelo desejo por ganho, então, a
moralidade tradicional condena o desejo por ganho. Ao aceitar a visão de que
os indivíduos focam no curto prazo e são movidos por paixões, a única solução
possível para isso é ensinar o indivíduo a se controlar. Em vez de dizer que o
desejo por ganho é saudável e moral, mas que existem formas próprias e
improprias de ganho, a moral condena a única coisa que torna a vida possível.
Considere o ensino da ética às crianças. Suponha que seu filho roube, chore
para fazer o que quiser, ou bata em outra criança para conseguir algo. A criança
é “egoísta”: ela acredita que roubar, fazer manha e agredir são meios práticos
para os seus fins. O modelo tradicional de restrição ensina: sim, aqueles são
meios práticos para seus fins, mas você deve ou renunciar seus fins ou meios
para o bem dos outros. Por outro lado, o modelo egoísta racional ensina: não,
aqueles não são meios práticos para seus fins; em vez disso, a produtividade, a
amizade e a cooperação são meios práticos para os seus fins.
A diferença é crucial. É a diferença entre ensinar a criança que a autorrealização
é imoral porque significa pisar nos outros e ensiná-la que a autorrealização é
um objetivo válido e existe uma forma racional, não conflitiva de alcançá-lo.
Respondendo às necessidades dos incapazes
A solução dos problemas dos incapazes é a que recebe menos atenção na atual
literatura empresarial sobre ética. A ênfase recente está mais na prevenção de
pecados de comissão que na promoção da caridade. Quando a promoção da
caridade ou da redistribuição compulsória aparece na literatura, o argumento é
que (a) as necessidades dos incapazes são mais importantes que a dos aptos, (b)
que a responsabilidade pela resolução dos problemas dos incapazes compete
primariamente aos aptos (c) doar à caridade é um sacrifício do autointeresse,
mas (d) que os aptos deveriam ver suas posses como pertencentes a todos que
delas necessitarem.
Pelo que foi dito acima, está claro que a ética objetivista rejeita todas as
anteriores. Ela rejeita a premissa coletivista: em primeiro lugar, os indivíduos
são não meios para os fins dos outros. Além disso, como os incapazes
dependem dos capazes, as necessidades dos capazes têm preferência: as
necessidades de produção têm preferência sobre as necessidades de
distribuição. E a caridade para os que estão temporariamente em dificuldades
não é necessariamente contra o autointeresse de uma pessoa. Se minha caridade
pode ajudar alguém a dar a volta por cima e se tornar autossuficiente, eu me
beneficio: quanto mais produtores racionais existirem no mundo, melhor
estarei. A maioria dos indivíduos é capaz de exercer a autorresponsabilidade,
sustentando-se. A caridade torna-se uma questão menor na ética: torna-se uma
questão de boa vontade ao invés de dever — uma questão de indivíduos que
podem ajudar aqueles que merecem sair de uma situação difícil 20.
O problema dos incapazes somente gera um conflito fundamental com os
interesses dos capazes se não existe uma solução de longo prazo para o
problema dos incapazes. Mas para a maioria das razões pelas quais os
indivíduos se tornam incapazes de prover para si, as soluções de longo prazo
são possíveis. Se o problema são recursos escassos, ciência e produção são as
soluções. Desastres naturais tais como terremotos e inundações podem ser
resolvidos e deles se pode recuperar rapidamente. A pobreza causada por um
regime autoritário pode ser solucionada politicamente: a má política não é a lei
da natureza. Incapacidade gerada pela preguiça ou por mau julgamento é
corrigível. Isso deixa uma pequena minoria de indivíduos que é severamente
deficiente física ou mentalmente: para esses indivíduos, a única opção é a
caridade dos capazes. Mas novamente, os capazes não existem para servir os
incapazes: a caridade é um ato de boa vontade, não de dever21.
Conclusão
O núcleo da estratégia de Rand é tornar fundamental a função da razão na vida
humana. A razão torna possível a ciência e a produção, o planejamento de
longo prazo e a vida por principio. São esses pontos que fazem os indivíduos
Rand, Ayn. “The Ethics of Emergencies.” The Virtue of Selfishness. New York: New American
Library, 1964.
21
Além disso, se um indivíduo realmente deseja ajudar os pobres, ele será defensor ferrenho do único
sistema econômico que se provou capaz de gerar a riqueza econômica adicional das quais os pobres
dependem.
20
prosperarem, e são eles que eliminam a ideia de que existem conflitos
fundamentais de interesse entre os indivíduos.
O negócio é então um requerimento. Nos negócios, o individuo moral é o
produtor: o individuo que é um fim em si mesmo, independente em
pensamento e ação. As relações sociais morais são interações voluntárias com
benefício mútuo por indivíduos produtivos. Os negócios e os consumidores,
empregadores e empregados são autorresponsáveis, fins em si mesmos, que
comercializam com vistas ao benefício mútuo. Nenhum está fundamentalmente
em conflito com outro, e nenhum precisa ser sacrificado pelo outro. Dados esses
amplos princípios não conflitivos, diferenças nos detalhes são resolvidas pela
negociação. Os governos fortalecem os princípios não conflitivos e protegem os
contratos estabelecidos.
Os objetivistas que defendem os negócios afirmam três coisas:
 Que o padrão de valor é o autointeresse do indivíduo.
 Que o objetivo dos negócios é a busca do lucro.
 Que o objetivo do governo é proteger os direitos dos indivíduos à vida, à
liberdade e à propriedade.
Não, não são, dizem seus críticos. Quando escrevem sobre a ética, dizem que o
autointeresse é perigoso para os outros — e, além disso, que os indivíduos
deveriam servir altruisticamente os interesses dos outros. Quando escrevem
sobre os negócios, dizem que a busca do lucro é outra força perigosa - e, além
disso, que os negócios deveriam ver-se como servos da sociedade como um
todo. Quando escrevem sobre política, dizem que a política laissez faire deixa os
indivíduos com muita liberdade para prejudicar uns aos outros– e, além disso,
que o objetivo do governo é redistribuir as riquezas da sociedade em prol do
interesse coletivo.
É a ética contra o autointeresse que tem sido a fonte principal de oposição aos
negócios e à sociedade livre. Isso, acredito, explica o sucesso bastante limitado
da estratégica de explicar pacientemente como os mercados livres e a busca do
lucro levam ao sucesso prático e como o socialismo leva ao fracasso prático.
Tudo isso foi demonstrado na teoria e na prática por 200 anos, mas teve pouco
efeito na oposição: apontar os sucessos práticos do autointeresse e da busca do
lucro não afetaram aqueles que colocam a moralidade em uma categoria
diferente, mais importante.
Somente a defesa moral do autointeresse, combinada com o entendimento da
economia de livre mercado e da política clássico-liberal avançará a sociedade
livre e os negócios, responsáveis pelo progresso humano.
Alguns libertários e conservadores tiveram um bom desempenho na promoção
da economia e da política. Mas precisamos de Ayn Rand na questão ética.
***
Publicado pela primeira vez em Inglês: Journal of Accounting, Ethics & Public Policy,
Volume 3, Número 1 (Inverno 2003), pp. 1-26.
Stephen Hicks é professor de Filosofia na Rockford University em Illinois. Ele é o autor
de Explaining Postmodernism: Skepticism and Socialism from Rousseau to Foucault
(Scholargy Publishing) e Nietzsche and the Nazis (Ockham’s Razor Publishing).

Documentos relacionados