Parte 2 - Revista Principios
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Parte 2 - Revista Principios
1 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 2 Editorial América Latina: integração regional com soberania e desenvolvimento A s duas imagens que ilustram este editorial são altamente simbólicas não só pelos personagens presentes em cada uma delas, mas porque sintetizam diferentes períodos de uma mesma luta: a dos povos latino-americanos contra a dominação imperialista europeia e estadunidense. Na ilustração figuram revolucionários históricos como Che Guevara, Emiliano Zapata, Simón Bolívar, José Martí, Tupac Amaru e vários outros. Na foto, tirada durante a 3ª Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e do Caribe (Celac), estão os presidentes do bloco, juntamente com o presidente da China. Guardadas todas as devidas diferenças políticas e os condicionantes históricos, as duas imagens sintetizam a opção patriótica desses povos pela paz, pelo desenvolvimento, pela integração, a cooperação, a solidariedade, a autodeterminação, a soberania, a independência, a identidade e pelo direito de escolher os próprios caminhos para soerguerem sua vida política e social. Ao longo de dois séculos, o ideal do libertador Simón Bolívar de criar a “grande Pátria Americana” inspirou inúmeros combates e batalhas pela independência. Neste início de século 21, o sonho da integração regional e a busca soberana pela autodeterminação dos povos e Nações do continente prossegue em outros termos, mas com igual tenacidade, através do estreitamento de laços políticos, econômicos, sociais e culturais entre os países que lograram constituir importantes instrumentos de integração e cooperação como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), o Mercado Comum do Sul (Mercosul), a Aliança Bolivariana para as Américas (Alba), a Celac e o Foro de São Paulo. A última Cúpula das Américas (abril de 2015, Panamá) foi palco de uma cena importante deste épico longa-metragem latino-americano. Pela primeira vez a socialista Cuba participou do encontro continental. Em seu pronunciamento – cujos principais trechos reproduzimos nesta edição de Princípios – o presidente cubano Raúl Castro ressaltou “o direito inalienável de todos os Estados de escolherem seu sistema político, econômico, social e cultural, como condição essencial para garantir a coexistência pacífica entre as nações”. As palavras de Castro são oportunas para o momento político que vive a região, sobretudo a América do Sul. Nas duas últimas décadas, após longo período de dominação da direita pró-imperialista, diversos países lograram eleger governos progressistas, defensores (alguns mais, outros menos) de bandeiras históricas da esquerda e que apostam em um novo caminho de desenvolvimento, distinto do modelo neoliberal. Não foi fácil vencer as duras batalhas eleitorais. Também não está sendo fácil resistir aos ataques sucessivos que as oligarquias desalojadas do poder promovem rotineiramente contra esses governos. Ataques que muitas vezes flertam com o golpismo. As sucessivas crises políticas na Venezuela são um retrato claro desse ambiente de tensão permanente. Nesta edição de Princípios temos artigos e pronunciamentos de diversas lideranças de esquerda. Mesmo sendo de países e partidos diferentes, são unânimes na avaliação de que os governos progressistas da região inspiram esperança em todo o mundo, o qual, infelizmente, vive um contexto marcado politicamente pela ascensão do conservadorismo. Por isso, integrar, desenvolver e resistir são palavras de ordem imprescindíveis para a luta dos povos de toda a América Latina. Adalberto Monteiro Editor 3 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Editorial América Latina: integração regional com soberania e desenvolvimento ................................ 1 Capa 11 Álvaro Linera: “Até aqui avançamos” Trechos do discurso no 20o Foro de São Paulo 4 ....................................................................................... Cuba fala na Cúpula das Américas: resgate histórico Trechos do discurso do presidente Raúl Castro 11 .................................................................................... 18 Venezuela enfrenta tentativas golpistas da oposição sem titubear 18 Max Altman................................................................. Argentina: apenas novas mudanças podem proteger o que já foi conquistado 23 Jorge Alberto Kreyness............................................... 23 A economia no projeto kirchnerista 27 Juan Santiago Fraschina............................................. O Brasil deve dar início a um novo ciclo de política externa altiva e ativa 32 Ricardo Alemão Abreu e Rubens Diniz........................ 32 A Bolívia pós-eleições: erigir o Estado Plurinacional 40 Ignacio Mendoza Pizarro............................................ Lula: ser contra a integração sul-americana é atraso político 43 Cláudio Gonzalez........................................................ 40 4 Sumário Teoria Pós-modernidade, globalização e crise dos partidos políticos – Parte 2 47 Antônio Levino............................................................ História A guerra de libertação da Coreia: 1950-1953 – Parte 2 52 60 Raul Carrion............................................................... 70 anos da vitória dos povos contra o nazismo 60 Socorro Gomes........................................................... Pequena história de um século da Grande Revolução de Outubro – Texto 3 66 Bernardo Joffily.......................................................... A atualidade do legado de Lênin 66 72 Marly de A. G. Vianna................................................. 80 Economia Governo Dilma: breve balanço de sua política econômica e a necessidade do ajuste fiscal 80 Lecio Morais................................................................ Brasil TERCEIRIZAÇÃO: um velho fantasma 86 Tamara Naiz Silva........................................................ REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL: Falsa solução no combate à violência 93 93 Alice Portugal............................................................ Homenagem Eduardo Galeano e as mãos da memória 96 José Carlos Ruy.......................................................... 96 5 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Álvaro Linera: “Até aqui avançamos” Em discurso proferido na inauguração do 20º Encontro do Foro de São Paulo, em La Paz, em agosto de 2014, o vicepresidente da Bolívia, Álvaro García Linera, fez uma importante exposição sobre o processo de transformação política, econômica e social em evolução na Bolívia e no continente, bem como sobre os desafios para aprofundá-lo, construindo de forma democrática e participativa a hegemonia dos governos de esquerda na região N o discurso, Linera elenca cinco conquistas dos últimos anos e indica cinco tarefas para que os países da América Latina superem obstáculos históricos em seu desenvolvimento e integração regionais. Ao abordar a luta anti-imperialista no continente, o vice-presidente boliviano faz um desabafo: “O anti-imperialismo não deve ser entendido como um rechaço ao povo norte-americano. Nunca se rechaçam os povos. Falamos do anti-imperialismo entendido como rechaço e resistência às estruturas de dominação de outros países – EUA e da Europa – com relação a nossas decisões. A América Latina é para nós; nós saberemos o que fazer com o nosso continente e não precisa vir ninguém nos dizer ou nos dar lições de como produzir melhor ou pensar melhor.” No campo das conquistas, Linera destaca que a fundação da Alba (Aliança Bolivariana para as Américas) , da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) são construções inéditas 6 no nosso continente. “Há 20 anos, há 30 anos, há 50 anos, criavam-se estruturas continentais, mas todas eram dirigidas, financiadas e administradas pelos EUA. Essas novas estruturas constituem aquelas nas quais nós, latino-americanos, decidimos como começar a construir a nossa unidade. Não precisamos dos EUA para termos uma economia sólida, para sermos democráticos, para melhorarmos as condições de vida.” No final de seu discurso, ao tratar de tarefas e desafios, o dirigente boliviano alerta que estamos falhando na integração econômica, e essa é a base material de qualquer integração. “Se demorarmos ou tivermos dificuldades na integração econômica, a integração continental mostrará limitações”, afirmou. Para ele, o principal desafio dos povos e governos da região é passar da integração política, ideológica, cultural a processos de integração econômica, material, tecnológica. “Temos que fazer isso, pois nossa vida está em jogo nessa questão: nenhuma revolução, nenhum país da América Latina vai sair adiante sozinho. Ou saímos todos juntos, ou ninguém sai.” Capa 20º Encontro do Foro de São Paulo, no Centro de Convenções Campo Ferial de La Paz, Bolívia, em 28 de agosto de 2014 Confira a seguir os principais trechos do discurso: Há 24 anos, quando nasceu o Foro de São Paulo, o mundo em que vivíamos era outro. Diante de nossos olhos foi derrubada a União Soviética, impunham-se e consolidavam-se um império e uma estrutura imperial unipolar sustentada pelo poderio econômico, ideológico e militar dos Estados Unidos. Eram os tempos de Reagan e Thatcher no mundo. Pelos meios de comunicação, pelas universidades, mesmo pelos meios sindicais, difundia-se uma ideologia planetária, um modelo planetário chamado neoliberalismo, que começava a cavalgar pelo continente e pelo mundo de maneira aparentemente triunfal. Falava-se então do chamado fim da história, a história aparentemente estava acabando, não havia mais nada a fazer, tínhamos que apagar as luzes e nos resignarmos ao império unipolar, ao neoliberalismo, às privatizações, ao consenso de Washington. Na nossa América, as coisas também não estavam fáceis: Cuba, heroica, resistente, isolada e suportando o bloqueio criminoso mais terrível da história da humanidade. Na Nicarágua perdíamos as eleições, chorávamos pela derrota. Em El Salvador entrávamos nos processos de paz e de acordos. No restante dos países da América Latina, desde Rio Bravo até a Patagônia, impunha-se o chamado modelo neoliberal, privatizavam-se empresas, entregavam-se recursos públicos acumulados durante décadas a investidores privados estrangeiros que chegavam em nossos países e desembarcavam como nos tempos de Colombo para se apropriarem de tudo. Passaram-se 24 anos e não resta dúvida de que hoje o mundo é muito diferente daquele que deu luz ao Foro de São Paulo. Mudou. As coisas e a estrutura, as deliberações e as lutas que desde então foram impulsionadas, deliberadas, propostas, não foram em vão. Hoje estamos assistindo – há 24 anos do nascimento do Foro – a uma lenta mas irreversível decadência da “supremacia norte-americana”. Os Estados Unidos já não são a potência imperial dirigente do mundo. Continuam dominando, mas precisam fazê-lo usando suas canhoneiras, suas tropas especiais, seu intervencionismo brutal em cada uma das regiões. 7 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 (....) (...) Hoje podemos dizer que surgiu de maneira geEssa é a primeira lição: a democracia como métonérica na América Latina um modelo pós-neolibedo revolucionário, não simplesmente como etapa da ral. Falar de neoliberalismo na América Latina cada revolução. vez se assemelha mais a um arcaísmo – quase como Uma segunda conquista desses 10 anos, desses falar do parque jurássico. Há 15 anos, o neolibera14, 15 anos de luta revolucionária, é a concepção da lismo era a bíblia, hoje é um arcaísmo que estamos governabilidade e da legitimidade a partir de um conjogando na lixeira da história, de onde nunca deveteúdo dual. Hoje as sociedades latino-americanas e os ria ter saído. governos revolucionários conseguiram sua estabilidaO mundo é outro, a história continua, a ideolode e sua governabilidade não se apegando unicamengia e o falso macro relato do fim da te aos mecanismos da vitória eleitohistória foram derrubados diante da ral e dos mecanismos institucionais emergência de lutas, de projetos, de do Parlamento e do Executivo. Mas Se demorarmos insurgências que se expandiram ao o outro componente fundamental da ou tivermos longo de todo o continente. governabilidade revolucionária, da Quero mencionar, a propósito legitimidade revolucionária, é a predificuldades desses acontecimentos, cinco consença popular e a mobilização social na integração quistas e cinco tarefas para presernas ruas. econômica, var, para aprofundar os processos Não me engano ao dizer que as revolucionários, não só no contivitórias da esquerda latino-americaa integração nente latino-americano, mas tamna são fruto de processos de mobicontinental bém na Europa, Ásia, África, no lização no âmbito cultural e ideolómundo todo. gico, mas também no âmbito social mostrará A primeira lição e a primeira e organizativo. O caso da Bolívia é limitações conquista que eu gostaria de menisso, não se poderia entender a vitócionar desta insurgência latino-aria de nosso presidente Evo sem as mericana: A democracia como mélutas, sem a guerra da água, sem a todo revolucionário. Até algum tempo tínhamos guerra da coca, sem a guerra do gás, sem as mobilizaassumido a democracia como uma etapa suspeita, ções populares, que foram criando um tecido denso prévia à revolução e tínhamos nos preparado para de participação, de mobilização social, que garantiu isso. As circunstâncias de ditadura e de dominação não apenas a vitória eleitoral mas também a estabilicolonial haviam criado as condições para essa condade do governo revolucionário e a capacidade social cepção da democracia meramente como uma etapa para enfrentar as intentonas golpistas, as conspiraprévia de um processo superior chamado revolução. ções de direita que foram se sucedendo ao longo dos O que a América Latina mostrou nesses 15 anos, últimos anos. nesses últimos 10 anos, é algo diferente: a democraConsideramos, então, que a conquista do poder cia está se transformando e é possível transformá-la em nossos países pode ser vista como uma prolonno meio e no espaço cultural da própria revolução, o gação eleitoral da capacidade de mobilização e de reque na Bolívia chamamos de revolução democrática. sistência coletiva. A legitimidade de nossos governos Trata-se da transformação das faculdades de vem então pela vitória eleitoral, mas também pela cidadania, dos direitos de pensamento, de associamobilização permanente e ação coletiva dos diferenção, de organização, de mobilização, numa textura tes movimentos sociais. Assim dizemos na Bolívia e e numa rede que têm permitido que a totalidade dos isso se traduziu na existência de um governo de mogovernos revolucionários e progressistas da Amérivimentos sociais. ca Latina chegue ao poder. Mas esta transformação Hoje, na Bolívia, são mais do que um partido, mais da democracia em método revolucionário não chedo que o MAS. E aqui quero citar a linda frase do gou como uma mera apropriação do olhar mutilado, companheiro Damián Condori, da Confederação Sinfragmentado, da democracia dos governos conserdical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívadores e neoliberais. O que ocorreu na América via (CSUTCB): “Nós, como confederação camponesa, Latina foi uma apropriação social da democracia, não somos do MAS, o MAS é nossa criatura, é nosso como espaço propício para a hegemonia, a hegemofilho”. E nesse sentido eles controlam a direção, o conia entendida no sentido gramsciano de liderança mando e as linhas estratégicas do partido. intelectual, de liderança ideológica, de liderança poEsta é uma contribuição continental, a organizalítica. ção social, as estruturas sociais diversas como força 8 Capa e como bloco de poder que se traduz eleitoralmente em partidos políticos, em organizações políticas que alcançam a vitória nas eleições. O terceiro ganho desses 14 anos é o “desmonte” do neoliberalismo. Até vemos com pena como nos países da Europa ainda prevalecem essa ideologia e esse mecanismo de sucção das capacidades humanas para depositá-las num punhado de mãos privadas. E quando vemos as decisões que são tomadas na Grécia, na Itália, na Espanha, na França, já conhecemos o roteiro, porque o vivemos aqui há dez ou vinte anos: empobrecimento dos trabalhadores, enfraquecimento do Estado; enriquecimento de umas poucas empresas; perda de direitos. Tudo isso que ainda não acabou em alguns países e em algumas regiões do mundo, na América Latina nós estamos desmontando. O que significa “desmontar” o modelo neoliberal e entrar no que se denominou pós-neoliberalismo? Em primeiro lugar, a recuperação de empresas estratégicas, aquelas empresas do Estado nas quais se gera o excedente econômico, porque se uma revolução não tiver excedente econômico, como vai poder consolidar sua liderança? A estabilidade não se mantém em meio à carência. É imprescindível um processo revolucionário contar com um excedente econômico capaz de gerar processos de distribuição. O “desmonte” do neoliberalismo na Bolívia e na América Latina significou a recuperação de empresas estratégicas para que o Estado as controle. Em segundo lugar, a ampliação dos bens comuns, a ampliação dos recursos que pertencem a todos e não a uns poucos. Em terceiro lugar, a contínua redistribuição da riqueza: se o Estado há de concentrar os excedentes fundamentais da riqueza de um país não é para criar um novo empresariado, e sim para redistribuí-los entre o conjunto dos setores mais excluídos. Reconstituição e ampliação dos direitos trabalhistas, desconhecidos em tempos neoliberais. Os processos pós-neoliberais na América Latina não significaram processos de autarquia e afastamento dos circuitos da economia mundial; a diferença é que agora a inserção na economia regional e mundial se faz de maneira seletiva e em função das necessidades de cada país, e não das necessidades de uma empresa, como aconteceu durante o período neoliberal. Um quarto componente histórico conquistado nesses 14 anos é a construção, difícil mas ascendente, de um novo corpo de ideias, de um novo senso comum mobilizador. Não esqueçamos, companheiros, que a política é fundamentalmente a luta pela direção das ideias dirigentes, das ideias mobilizadoras de uma sociedade. Todo revolucionário luta pelo poder do Estado, que é metade matéria e metade ideia. Todo Estado, o conservador e o revolucionário, o que está ÁLVARO LINERA: “A política é fundamentalmente a luta pela direção das ideias dirigentes, mobilizadoras de uma sociedade” estabelecido e o que está em transição, é matéria, é instituição, é organização, é correlação de forças, mas também é ideia, é senso comum, é força mobilizadora no âmbito da ideologia. Os povos não lutam só porque sofrem, os povos lutam e estão dispostos a entregar a vida porque sabem e porque acreditam que há uma esperança de acabar com o sofrimento. E quando a esquerda, nesses 14 anos, foi capaz de criar uma esperança, uma possibilidade de vitória, uma possibilidade de transformação da vida cotidiana, e conseguiu fazê-lo na mente e no coração, a partir desse momento, transformou essa força da ideia em força eleitoral, a força eleitoral em força estatal, a força estatal em força econômica. Quais os componentes dessas ideias-força que estão se reconstruindo e expandindo no continente de uma forma renovada nesta última década? Primeiro, a pluralidade de identidades. Aprendemos a compreender que as identidades coletivas não são rígidas, tendem a ser mais flexíveis. Há um novo movimento de trabalhadores que não é mais o movimento de trabalhadores que os nossos pais ou avós conheceram, de grande fábrica, de grande indústria, do sindicalizado e a hierarquia estabelecida. Surgiu um novo movimento de trabalhadores, fragmentado, disperso, majoritário e jovem, mas que tem uma estrutura mais difusa e a habilidade dos partidos deve ser a de ampliar, gerar espaços de articulação desse novo movimento de trabalhadores, mais fragmentado materialmente, porém mais forte, mais numeroso que antes. O surgimento da identidade indígena-camponesa como força transformadora de nossos países. Na Bolívia, o movimento indígena-camponês é o eixo articulador do popular. Foi em torno da questão indígena-camponesa que os meios sindical, fabril, vicinal, 9 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 estudantil, os intelectuais, os profissionais, encontrananceiras e tecnológicas que permitam passar da uniram o centro para articular expectativas, demandas ficação político-ideológica para a integração econômie criar uma frente única contra a direita e os setores ca, material e tecnológica, é o grande desafio que nós, neoliberais. latino-americanos, temos neste século XXI. A juventude e as formas complexas de organizaEstas são as cinco conquistas, mas agora restam ção urbana, citadina, diante das quais os partidos de cinco tarefas. Avançamos bastante até aqui, o mundo esquerda devem ter a abertura e a habilidade de somudou, a América Latina mudou, mas nem o mundo mar forças, de compreender suas necessidades e criar nem a América Latina mudaram o suficiente, e o obespaços de libertação, de participação jetivo é que ambos se transformem e de mobilização, ao redor dos eixos de maneira mais radical. A partir da centrais do movimento sindical e innossa experiência na Bolívia, consiNenhuma dígena-camponês. deramos que nós, revolucionários, revolução, Um segundo elemento dessas organizadores sociais, sindicatos, conovas ideias-força é, não restam munidades, governos progressistas, nenhum país da dúvidas, o anti-imperialismo e o governos revolucionários, temos ao América Latina anticolonialismo. O anti-imperialismenos cinco metas pela frente. mo entendido não como um rechaA primeira é defender e ampliar vai sair adiante ço ao povo norte-americano, nunca as conquistas alcançadas até hoje. sozinho. Ou se rechaçam aos povos. Falamos do Não é possível, e seria terrível para os saímos todos anti-imperialismo entendido como processos de emancipação revoluciorechaço e resistência às estruturas nária que houvesse um retrocesso. É juntos, ou de dominação de outros países – dos dever de cada revolucionário, de cada ninguém sai EUA ou da Europa – com relação a pessoa que pensa no seu país, na sua nossas decisões. A América Latina é pátria, nos pobres, nos humildes, na para nós; nós saberemos o que fazer unidade latino-americana, defender com o nosso continente e ninguém tem que vir nos o alcançado até aqui. É insuficiente? Claro que é indizer ou nos dar lições de como produzir melhor ou suficiente! Mas não se conquista mais retrocedendo pensar melhor. para as garras do neoliberalismo e da chantagem. (...) Se quisermos avançar devemos proteger o que foi Também nesses últimos 15 anos surgiu o pluralisconquistado. Se uma revolução para, ela retrocede. mo socialista, em alguns partidos e países com maior Uma revolução, para se consolidar, deve obrigatoriaintensidade, em outros com menor intensidade; e camente se aprofundar. Para que isso aconteça, é preciso da um entendendo-o a seu modo. Há uma reflexão ampliar – de acordo com as necessidades e possibilicoletiva do que significa o socialismo e de como ele dades de cada país, de cada governo, de cada Estado deve ser; existe um pensamento socialista renovado – os bens comuns, distribuir mais riqueza, expandir e, no caso da Bolívia, é comunitarista, no que se rea soberania e, acima de tudo, irradiar essa força, essa fere à construção de uma sociedade que vá além não ideologia, essa experiência para outros países do conapenas do neoliberalismo, mas também do próprio tinente que ainda estão, infelizmente, sob as garras capitalismo. da intervenção imperial e sob a ideologia dos modelos Por último, a quinta conquista é a renovação do neoliberais. internacionalismo e da expectativa de integração Uma segunda necessidade: ampliarmos as conregional. A fundação da Alba, da Unasul, da Celac quistas econômicas e estabilizar o modelo de desenvolsão construções inéditas no nosso continente. Há 20 vimento até aqui construído. Antes de ser governo, o anos, há 30 anos, há 50 anos, criavam-se estruturas fundamental era ter projeto e capacidade de mobilizacontinentais, mas todas eram dirigidas, financiadas ção, quando se está no governo, o decisivo é melhorar a e administradas pelos EUA. Essas novas estruturas economia, manter e aprofundar o projeto e garantir caconstituem as estruturas nas quais nós, latino-amepacidade de mobilização. As condições de luta de antes ricanos, decidimos como começar a construir a nossa de ser governo em parte se modificam quando se chega unidade. Não precisamos dos EUA para termos uma no governo, a mobilização deve ser permanente – essa economia sólida, para sermos democráticos, para meé a garantia de qualquer resistência, vitória ou defesa lhorarmos as condições de vida. A Celac é isso. frente à direita ou às forças conservadoras. A autorreflexão da América Latina, da necessidaO projeto deve se retroalimentar constantemende de unificar suas forças para construir um Estado te, deve se enriquecer constantemente. Uma revolucontinental que seja plurinacional, com estruturas fição é sempre um porvir. Sempre deve haver perante 10 Capa a sociedade, e com a sociedade, novos horizontes nismos sociais, potencializa-se a tendência socialista que mobilizem a alma, o espírito, a inteligência, o sapós-capitalista. Igualmente, à medida que avançamos crifício. Mas em governo soma-se uma terceira tare– e isso é a coisa mais difícil do mundo – em direção fa: garantir o crescimento econômico, que é garantir a projetos, a estruturas produtivas nas quais as pesmelhoria econômica, garantir aumento da felicidade soas produzam em comum e decidam sobre os lucros de cada uma das pessoas, especialmente dos mais comuns, para o comum da sociedade, estamos consfracos, dos mais necessitados, dos mais oprimidos, truindo o socialismo. dos mais abandonados. À medida que começamos a fazer prevalecer a neToda revolução no mundo, desde os tempos de cessidade sobre o lucro, e à medida que mais pessoas Marx, sempre apresentou uma qualidade, sempre participam da construção de redes produtivas, tecnolóvem por ondas, nunca é um processo ininterrupto gicas, associativas, não apenas para a política e para a de ascensão social. Vem por ondas, demanda, mas também para a produvai e vem, vai e vem, vai e vem. Na ção de riqueza material, estamos poBolívia foi assim: em 2000 tivemos a tencializando a tendência socialista e primeira onda, que foi a guerra pela comunitarista. No fundo, o destino da É dever de todos água; nova onda em 2003, a guerra América Latina e do mundo se decide os que pensam no do gás; refluxo; nova onda em 2005, nesse âmbito: participação, produção. seu país, na sua vitória eleitoral; refluxo; nova onda Participação cada vez mais democráem 2008, Assembleia Constituinte tica nas decisões estatais, na construpátria, nos pobres, e derrota política e militar da direição mais comunitária dos bens matenos humildes, ta golpista. Toda revolução sempre riais, na produção a serviço de todos. acontece por ondas: o momento de Acho que aí se resume o conceito de na unidade ascensão social é o momento da coEstado integral, com o qual Gramsci latino-americana, munidade heroica, o momento do definia a construção do socialismo e sacrifício pleno, o momento de recuo do comunismo para o futuro. defender o e leve descenso social, o momento da Nossa quarta tarefa como revoalcançado até aqui. satisfação das necessidades. lucionários é a de desenvolver a caÉ insuficiente? (...) pacidade de superar as tensões que A terceira tarefa que temos pela emergem de um tipo de revolução Claro que é frente é a de reforçar as tendências originária de processos democráticos. insuficiente! Mas comunitárias e socialistas da expeEsse tipo de problema não poderia se riência cotidiana. Hoje vivemos um apresentar no caso da revolução chinão se conquista período de transição, que chamanesa ou da revolução bolchevique, mais retrocedendo mos de pós-neoliberalismo, mas ele porque estas emergiram de guerras para as garras do por sua vez tem duas opções: a de revolucionárias. Quando uma revose tornar difusamente em um capilução triunfa a partir de processos neoliberalismo e talismo mais humano, mais social, democráticos, a coisa é mais difícil, da chantagem mais participativo, porém capitalismais dura, mais complicada, mas é mo afinal; ou a de ser o pós-neolibepreciso enfrentar o que vier. Uma das ralismo, a ponte para uma sociedade tensões que temos que saber transpor pós-capitalista. Não será fácil nem é a de como se constrói hegemonia. se decidirá de um dia para o outro ou em uma lição; Hegemonia no sentido “gramsciano” não é abuso, leva décadas para este pós-neoliberalismo se definir é liderança, é direção moral, direção política, cultural, por um ou outro caminho. espiritual, sobre o resto das forças sociais. Uma Nós, revolucionários, estamos aqui não para adrevolução deve se ampliar permanentemente, irradiar ministrar um bom capitalismo, mas sim para transpara outros setores. Mas se irradiar demais enfrapor o capitalismo na transformação e negação rumo a quece o seu núcleo e perde a sua essência; e se, pelo uma sociedade socialista, comunitária. contrário, concentra-se no seu núcleo termina isolada São dois os elementos-chave para esta potenciae então ao seu redor podem surgir outras lideranças lização das tendências socialistas e comunitaristas. que atraiam as classes sociais em contraposição à reO primeiro é ampliar a participação da sociedade na volução. Por isso, temos que saber, o tempo todo, avatomada de decisões. À medida que se amplia a parliar entre consolidar o núcleo fundamental – operário, ticipação da sociedade, a partir de mecanismos inscamponês, indígena, popular – e saber irradiar para os titucionais, de mecanismos organizativos e de mecaoutros setores. 11 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Não se esqueçam, sempre devemos somar Lênin Há pessoas que querem que nós, latino-americacom Gramsci: o adversário deve ser derrotado, isnos, vivamos como há 300 anos, enquanto eles têm so é Lênin; o adversário deve ser incorporado, isso é carros, televisão, refrigeradores, internet, não lhes falGramsci. Mas não se incorpora o adversário quando ta comida. Querem que um punhado de índios – coorganizado, a não ser quando derrotado. É derrotar e mo eles dizem – protejam as florestas para eles. Não, incorporar, derrotar e incorporar.Uma segunda tensão senhores! Nós vamos proteger as florestas, sim, mas própria de um processo revolucionário – Estado e mopara nós, não para eles, não para suas empresas! vimentos sociais – é a que todo Estado tende a ser uma Essa é uma tensão complicada, própria do proconcentração de decisões, por isso é Estado. É preciso cesso revolucionário latino-americano, e que, pouco tomar decisões, executar. E todo movimento social é a pouco, entra na agenda de outros processos revodescentralização e democratização lucionários no mundo. das decisões. Se eu me concentro Para terminar, a quinta tarefa é Há 15 anos, o só no Estado já não sou um Estado avançar em processos de integração revolucionário, sou eficiente, mas já técnica produtiva. Existe vontade neoliberalismo não haverá democracia participativa política: nós presidentes nos reuniera a bíblia, hoje é ou comunitária. Se eu só me concenmos, e os parlamentares, as organitro na participação e na deliberação, zações sociais do continente estamos um arcaísmo que e perco a capacidade executiva, então aqui presentes! Os sindicatos se reuestamos jogando esse governo não terá resultados, e a niram antes. Entre os governos, nós na lixeira da nossa própria gente, com o tempo, nos ajudamos política e ideologicademandará resultados, e a direita pomente. A Bolívia derrotou um golpe história, de onde de aparecer aí como aquela que sim fascista contra o presidente Evo com nunca deveria ter oferece resultados com eficiência e a colaboração da Unasul e da Alba, consegue dar uma guinada ideológique deteve a intentona golpista. saído ca na sociedade. Mas estamos falhando na inteUm governo revolucionário tem gração econômica, e essa é a base que transpor as duas coisas. Tem que transpor a material de qualquer integração. Enquanto nos atraampliação de deliberação, de participação, do mosarmos e tivermos dificuldades na integração econôvimento social e, ao mesmo tempo, ter capacidade mica, a integração continental mostrará limitações. E executiva para tomar decisões e capacidade deliberaesse é o desafio: passar da integração política, ideotiva para democratizar as decisões. Aí ficam expostos lógica, cultural a processos de integração econômica, sua condição e seu destino revolucionários. material, tecnológica. Temos que fazer isso. Aí estaPor último, a terceira tensão revolucionária destes mos arriscando a vida. Nenhuma revolução, e netempos é a que aparentemente confronta desenvolvinhum país da América Latina, vai seguir adiante sozimento e defesa da Mãe Terra. É a nossa experiência nho. Ou saímos todos juntos, ou ninguém sai. na Bolívia. A partir da força “identitária” cultural do Meus irmãos e minhas irmãs, esta é nossa simples movimento indígena, é preciso gerar riqueza, satisfaexperiência, nossa experiência de um processo revozer necessidades. E para fazer isso é preciso produzir, lucionário dirigido por nosso presidente Evo e pelos extrair gás e minérios, criar indústrias e, ao fazermos movimentos sociais. Até aqui avançamos. Comparisso, afetamos a Mãe Terra. tilhamos esta experiência e estas preocupações com Porém, se não afetamos a Mãe Terra e só nos fixao restante das organizações sociais irmãs, do contimos em preservar a Mãe Terra, como vamos satisfazer nente e do mundo. E também viemos aqui para ouas necessidades? Com que dinheiro vamos construir vir, aprender com suas experiências, porque juntos os hospitais, melhorar as escolas, melhorar a renda teremos a capacidade de construir um novo mundo dos trabalhadores? É uma tensão. E a habilidade de comunitário e socialista. um governo revolucionário, e onde se define como reMuitíssimo obrigado.” volucionário, está na sua capacidade de articular um e outro: produzir, mas ao mesmo tempo não afetar A íntegra do discurso de Álvaro Linera a estrutura do meio ambiente, nem depredá-la, preno Foro de S. Paulo está disponível em: servar a natureza, mas gerar espaços tecnológicos e http://forodesaopaulo.org administrativos para preservar a riqueza. Há países que querem que a América Latina se transforme num parque nacional da Europa ou dos Da redação, Cláudio Gonzalez Estados Unidos. Isso nós não vamos permitir! 12 Capa Cuba fala na Cúpula das Américas: resgate histórico Twitter@CumbrePanama Raúl Castro foi ovacionado ao discursar na abertura da 7ª Cúpula das Américas O presidente de Cuba, Raúl Castro, marcou em grande estilo a estreia de seu país em uma Cúpula das Américas. Na sétima edição do encontro, realizada em abril, no Panamá, Castro falou durante cinquenta minutos (muito além dos demais presidentes) para compensar o silêncio nas seis cúpulas anteriores. Era a primeira vez que um líder cubano discursava na conferência hemisférica, realizada a cada três anos, desde 1994, e ele aproveitou para dirigir ao presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, algumas mensagens de paz e diálogo, mas também de reafirmação dos princípios revolucionários e socialistas da ilha caribenha 13 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 O primeiro discurso do presidente de Cuba, Raúl Castro, em uma Cúpula das Américas provocou uma ovação na sala que recebeu a reunião hemisférica, e atraiu a atenção da imprensa internacional. Venezuela e Estados Unidos Durante sua fala, o presidente cubano expressou seu “apoio de maneira resoluta e real à irmã república da Venezuela e ao governo legítimo de Nicolás Maduro”. “A Venezuela não é e nem pode ser uma ameaça para a segurança nacional de uma superpotência co- 14 Confira a seguir alguns trechos do discurso de Raúl Castro: Estudio Revolución “Já era hora que eu falasse aqui em nome de Cuba”, disse o líder cubano, que protagonizou, junto ao presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, um momento histórico quando se cumprimentaram durante a abertura da 7ª Cúpula das Américas, ocorrida nos dia 10 e 11 de abril na capital do Panamá. O anúncio do governante anfitrião, Juan Carlos Varela, do discurso de Castro, imediatamente depois das palavras do presidente dos Estados Unidos, arrancou um sonoro e longo aplauso dos chefes de Estado e das delegações oficiais. O dirigente comunista sintetizou seu discurso como uma mensagem de que “Cuba continuará defendendo as ideias pelas quais nosso povo tem assumido os maiores sacrifícios e riscos”. Castro fez um breve relato da história cubana e do avanço da revolução socialista na ilha caribenha e depois focou seu discurso na defesa do diálogo, do respeito e da paz entre as nações. Neste sentido, afirmou que deve ser respeitado – como diz o Proclama da América Latina e do Caribe como Zona de Paz, assinado por todos os Chefes de Estado e de Governo da América – “o direito inalienável de todos os Estados de escolherem seu sistema político, econômico, social e cultural, como condição essencial para garantir a coexistência pacífica entre as nações”. Varela agradeceu a Castro por suas palavras, surgidas “do coração”, e justificou que, por “razões de justiça histórica”, mereceu falar quase seis vezes mais do que o estipulado pela organização. “Histórico” também foi o adjetivo usado pelo secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), José Miguel Insulza, ao qualificar o encontro. “Esta Cúpula do Panamá tem um conteúdo especial (...), é a primeira vez na história das Américas que se reúnem na mesma mesa os 35 chefes de Estado e de Governo”, afirmou Insulza em seu discurso. mo os Estados Unidos. E é positivo que o presidente americano, Barack Obama, tenha reconhecido isso”, disse. Castro também elogiou os passos dados pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, para tirar a ilha de sua lista de países patrocinadores do terrorismo. “Aprecio como um passo positivo sua recente declaração de que decidirá rapidamente sobre a presença de Cuba em uma lista de países patrocinadores do terrorismo, na qual nunca deveria ter estado”, disse Castro em seu discurso na VII Cúpula das Américas, da qual seu país participa pela primeira vez. O líder cubano reiterou a Obama a disposição de Cuba ao “diálogo respeitoso e à convivência civilizada” com os Estados Unidos “dentro de nossas profundas diferenças”. “Era hora de eu falar aqui em nome de Cuba. Foi-me dito, no início, que poderia proferir um discurso de oito minutos. Embora tenha feito um grande esforço, junto com meu chanceler, para reduzi-lo para oito minutos, e como me devem minha participação em seis cúpulas anteriores, das quais fomos excluídos, então 6 por 8 é 48, pedi permissão ao presidente Varela, alguns momentos antes de entrar neste magnífico salão, para me ceder alguns minutos mais, especialmente depois de tantos discursos interessantes que estamos escutando. E não me refiro apenas ao do presidente Obama, mas também o do presidente do Equador, Rafael Correa, e ao da presidente Dilma Rousseff e de outros. (...) Eu trago um fraternal abraço ao povo panamenho e ao de todas as demais nações aqui representadas. Quando, em 2 e 3 de dezembro de 2011, foi criada em Caracas a Comunidade dos Estados Lati- Capa no-Americanos e Caribenhos (Celac), foi inaugurada uma nova etapa na história da Nossa América – o que tornou patente o seu bem ganho direito de viver em paz e de se desenvolver como livremente determinarem seus povos – e se traçou para o futuro um caminho de desenvolvimento e integração, baseado na cooperação, na solidariedade e na vontade comum de preservar a independência, a soberania e a identidade. O ideal de Simón Bolívar de criar uma “grande Pátria Americana” inspirou verdadeiras epopeias independentistas. Em 1800, pensou-se em adicionar Cuba à União do Norte, como o limite sul do vasto império. No século XIX, surgiram a doutrina do Destino Manifesto, com o fim de dominar as Américas e o mundo, bem como a ideia de Fruta Madura para a gravitação inevitável de Cuba em direção à União Americana, que desprezava o nascimento e o desenvolvimento de um pensamento próprio e emancipatório. Depois, através de guerras, conquistas e intervenções, essa força expansionista e hegemônica despojou a Nossa América de vastos territórios e se estendeu até o Rio Grande. Depois de longas lutas que foram frustradas, José Martí organizou a “guerra necessária” de 1895 — a Grande Guerra, como também foi chamada, começou em 1868 — e criou o Partido Revolucionário Cubano para liderar essa contenda e depois fundar uma República “com todos e para o bem comum”, que se propunha atingir “a dignidade plena do homem”. Ao definir com certeza e antecipação os traços de seu tempo, José Martí se consagrou ao dever “de impedir a tempo, com a independência de Cuba, que os Estados Unidos se espalhassem pelas Antilhas e caíssem com força sobre nossas terras da América” – essas foram suas palavras exatas. Nossa América é para ele a do nativo, do índio, do negro e do mulato, a América mestiça e trabalhadora que tinha de unir os seus interesses aos dos oprimidos e saqueados. Agora, mais além da geografia, este é um ideal que começa a se tornar realidade. Há 117 anos, em 11 de abril de 1898, o então presidente do Congresso dos Estados Unidos solicitou autorização para intervir militarmente na guerra de independência que, por quase 30 anos, Cuba vinha travando, já ganha praticamente ao preço de rios de sangue cubano, e aquele — o Congresso norte-americano — emitiu sua Resolução Conjunta enganosa, que reconhecia a independência da Ilha “de fato e de direito”. Vieram como aliados e se apoderaram do país como ocupantes. (...) Memorial em homenagem a José Martí em Havana Para a América Latina prevaleceu a “política das canhoneiras” e, a seguir, a do “Bom Vizinho”. Sucessivas intervenções derrubaram governos democráticos e instalaram ditaduras terríveis em 20 países – 12 delas simultaneamente. Quem entre nós não se lembra dessa fase bastante recente de ditaduras em todos os lugares, principalmente na América do Sul, onde milhares de pessoas foram assassinadas? O presidente Salvador Allende nos deu um exemplo imorredouro. (...) Após a Aliança para o Progresso e de termos pago várias vezes a dívida externa, sem impedir que essa dívida continuasse se multiplicando, nos impuseram um neoliberalismo selvagem e globalizado, como expressão do imperialismo nesta época, que deixou uma década perdida na região. A proposta então de uma parceria hemisférica madura foi 15 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 a tentativa de impor-nos a Área de Livre Comércio causando danos e carências às pessoas, e é o princidas Américas (ALCA), associada com o surgimento pal obstáculo para o desenvolvimento da nossa ecodestas Cúpulas, que teria destruído a economia, a nomia. soberania e o destino comum de nossas nações se Consiste numa violação do Direito Internacional não a tivéssemos feito naufragar em 2005, em Mar e seu alcance extraterritorial afeta os interesses de del Plata, sob a liderança dos presidentes Chávez, todos os Estados. Kirchner e Lula. Não é por acaso o voto quase unânime, menos Um ano antes, Chávez e Fidel tinham feito naso de Israel e dos próprios Estados Unidos, na ONU, cer a Alternativa Bolivariana, hoje Aliança Bolivadurante muitos anos a fio. E enquanto existir o bloriana para os Povos de Nossa América. Excelências: queio – que não é da responsabilidade do presidente, Eu expressei — e o reitero agora —, ao presidente e que devido a acordos e leis posteriores se codificou Barack Obama, a nossa disposição ao diálogo rescom uma lei no Congresso que o presidente não popeitoso e à convivência civilizada entre os dois Esde alterar – devemos continuar lutando e apoiando tados, dentro de nossas difereno presidente Obama em suas inças profundas. tenções de liquidar o bloqueio. Eu aprecio como um passo Uma questão é estabelecer “Nós expressamos positivo sua declaração recente relações diplomáticas e outra é o de que determinará rapidamenbloqueio. Por isso, peço a todos publicamente ao te sobre a presença de Cuba em vocês, e também a vida nos obripresidente Obama, que uma lista de países que patrociga, a continuar apoiando a luta também nasceu no nam o terrorismo, na qual nuncontra o bloqueio. Excelências: ca devia ter estado; imposta peNós expressamos publicamente âmbito da política de la administração do presidente ao presidente Obama, que tambloqueio contra Cuba, Reagan. bém nasceu no âmbito da poAcaso nós somos um país lítica de bloqueio contra Cuba, nosso reconhecimento terrorista?! Sim, fizemos alguns nosso reconhecimento por sua por sua corajosa atos de solidariedade com outros corajosa decisão de se envolver decisão de se envolver povos que podem ser consideraem um debate com o Congresso dos terroristas, quando estávados Estados Unidos para pôr fim em um debate com o mos encurralados, cercados e asao bloqueio. Congresso dos Estados sediados até o infinito, e só havia Este e outros elementos deuma escolha: render-se ou lutar. vem ser resolvidos no procesUnidos para pôr fim ao Vocês sabem qual nós escolheso rumo à futura normalização bloqueio” mos, apoiados por nosso povo. das relações bilaterais. De nossa Acaso alguém pode pensar parte, continuaremos empenhaque vamos obrigar todo um povo dos no processo de atualização a fazer o sacrifício feito pelo povo cubano para sodo modelo econômico cubano, a fim de aperfeiçoar breviver, para ajudar outras nações? Mas “a ditadura nosso socialismo, avançar rumo ao desenvolvimendos Castro” os obrigou a votar pelo socialismo, com to e consolidar as conquistas de uma Revolução que 97,5% de apoio da população. se propôs “conquistar toda a justiça” para nosso Reitero que aprecio como um passo positivo a povo. recente declaração do presidente Obama acerca de O que faremos está em um programa desde o ano determinar rapidamente sobre a presença de Cuba 2011, aprovado no Congresso do Partido. No próxina lista de Estados patrocinadores do terrorismo, mo Congresso, que é no próximo ano, vamos estenna qual nunca devia ter estado, dizia-lhes, porque dê-lo, vamos analisar o que temos feito e o quanto quando nos impuseram essa lista ocorre que os terainda falta para cumprirmos o desafio. roristas éramos os que púnhamos os mortos — não (...) tenho em mente o dado exato —, só por terrorismo Devo reafirmar nosso apoio, de maneira resoluta dentro de Cuba e em alguns casos de diplomatas e leal, à irmã República Bolivariana da Venezuela, cubanos em outras partes do mundo que foram ao governo legítimo e à aliança civil-militar lideraassassinados. da pelo presidente Nicolás Maduro, ao povo boli(...) variano e chavista que luta para seguir seu próprio Até hoje, o bloqueio econômico, comercial e ficaminho e enfrenta tentativas de desestabilização e nanceiro aplica-se com pleno vigor contra a Ilha, sanções unilaterais, as quais pedimos que sejam re- 16 Capa movidas, que a Ordem Executiva seja revogada, embora seja difícil de acordo com a lei – o que seria apreciado por nossa Comunidade como uma contribuição para o diálogo e o entendimento hemisférico. (...) Vamos manter nosso encorajamento aos esforços da Argentina para recuperar as Ilhas Malvinas, as Geórgias do Sul e as Sandwich do Sul, e continuar apoiando sua legítima luta em defePresidente cubano manifestou apoio à Venezuela em seu discurso sa da soberania financeira. Continuaremos apoiando as ações da República do Equador contra as empresas A especulação financeira, os privilégios de Brettransnacionais que causam danos ecológicos a seu ton Woods e a remoção unilateral da convertibilidaterritório e procuram impor condições injustas. de do dólar em ouro são cada vez mais sufocantes. Eu gostaria de agradecer ao Brasil por sua contriNós exigimos um sistema financeiro transparenbuição, e da presidente Dilma Rousseff, ao fortalecite e equitativo. É inaceitável que menos de uma dúmento da integração regional e do desenvolvimento zia de mercados, principalmente norte-americanos de políticas sociais que trouxeram progresso e bene— quatro ou cinco de sete ou oito —, determinem o fícios para amplos setores – políticas essas que, denque as pessoas podem ler, ver ou escutar no planeta. tro da ofensiva contra vários governos de esquerda A internet deve ter uma governança internacioda região, pretendem reverter. nal, democrática e participativa, especialmente na Será invariável nosso apoio ao povo latino-amegeração de conteúdos. ricano e caribenho de Porto Rico, em seus esforços É inaceitável a militarização do ciberespaço e o para alcançar a autodeterminação e a independênemprego encoberto e ilegal de sistemas informáticos cia, como já declarou dezenas de vezes o Comitê de para agredir outros Estados. Nós não nos vamos Descolonização das Nações Unidas. Continuaremos deixar deslumbrar ou colonizar novamente. Acertambém contribuindo para o processo de paz na Coca da internet, que é uma invenção fabulosa, uma lômbia, até sua conclusão bem sucedida. das maiores nos últimos anos, bem poderíamos diDevemos nós todos multiplicarmos o auxílio ao zer, recordando o exemplo do idioma nas fábulas Haiti, não apenas através de ajuda humanitária, mas de Esopo, que a Internet serve para o melhor, e é também com recursos que permitam seu desenvolmuito útil, mas, ao mesmo tempo, também serve vimento, e apoiar que os países do Caribe recebam para o pior. tratamento justo e diferenciado em suas relações Senhor presidente, na minha opinião, as relações econômicas e reparações pelos danos causados pela hemisféricas mudaram profundamente, em particuescravidão e o colonialismo. Vivemos sob a ameaça lar nos domínios político, econômico e cultural, de de enormes arsenais nucleares, que devem ser elimimodo que, com base no Direito Internacional e no nados, e da mudança climática que nos deixa sem exercício da autodeterminação e da igualdade sobetempo. rana, estejam concentradas no desenvolvimento de (...) relações mutuamente benéficas e na cooperação paCuba continuará defendendo as ideias pelas ra servir aos interesses de todas as nossas nações e quais nosso povo assumiu os maiores sacrifícios e aos objetivos que apregoam. riscos e lutou ao lado dos pobres, dos doentes sem A aprovação, em janeiro de 2014 – na Segunassistência médica, dos desempregados, das crianças da Cúpula da Celac, em Havana –, do Proclama da abandonadas a sua sorte ou forçadas à prostituição, América Latina e do Caribe como Zona de Paz, foi dos que têm fome, dos discriminados, dos oprimidos uma importante contribuição para este fim, mare dos explorados que constituem a grande maioria cado pela unidade da América Latina e do Caribe da população mundial. em sua diversidade. Isso se torna evidente no fato 17 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 de que avançamos rumo a processos de integração genuinamente latino-americanos e caribenhos – através da Celac, União de Nações Sul-Americanas (Unasul), Comunidade e Mercado Comum do Caribe (Caricom), o Mercado Comum do Sul (Mercosul), a ALBA, Sistema de Integração da América Central (SICA) e a Associação dos Estados do Caribe –, que ressaltam a crescente conscientização da necessidade de nos unirmos para garantir nosso desenvolvimento. Este Proclama nos compromete a que “as diferenças entre as nações sejam resolvidas pacificamente, através do diálogo e da negociação e outras formas de solução, e em plena conformidade com o direito internacional”. Viver em paz, cooperando uns com os outros para enfrentar os desafios e resolver os problemas – que, afinal, afetam e afetarão a todos nós – hoje é um imperativo. Deve ser respeitado, como diz o Proclama da América Latina e do Caribe como Zona de Paz, assinado por todos os Chefes de Estado e de Governo da Nossa América, “o direito inalienável de todos os Estados de escolherem seu sistema político, econômico, social e cultural, como condição essencial para garantir a coexistência pacífica entre as nações”. Com ele, nos comprometemos a cumprir nosso “dever de não intervir direta ou indiretamente nos assuntos internos de qualquer outro Estado e observar os princípios da soberania nacional, a igualdade de direitos e a livre determinação dos povos” e respeitar “os princípios e normas do Direito Internacional (...) e os princípios e propósitos da Carta das Nações Unidas”. Esse documento histórico exorta “todos os Estados membros da comunidade internacional a respeitarem plenamente esta declaração em suas relações com os Estados membros da Celac”. Agora, temos a oportunidade para que todos os que estamos aqui aprendamos, tal como expressa o Proclama, “a praticar a tolerância e viver em paz como bons vizinhos”. (...) Cuba, país pequeno e desprovido de recursos naturais, que se tem desenvolvido em um contexto sumamente hostil, conseguiu atingir a plena participação de seus cidadãos na vida política e social da nação: uma cobertura de educação e saúde universais, de forma gratuita; um sistema de segurança social que garante que nenhum cubano fique desamparado; significativos progressos rumo à igualdade de oportunidades e no enfrentamento a toda forma de discriminação; o pleno exercício dos direitos da infância e da mulher; o acesso ao deporte e à cultura; o direito à vida e à segurança dos cidadãos. 18 Obama e Castro: diálogo entre os países consolida nova fase de abertura nas relações diplomáticas Apesar das carências e dificuldades, cumprimos o lema de compartilhar o que temos. Atualmente, 65 mil colaboradores cubanos trabalham em 89 países, sobretudo nas esferas da medicina e educação. Em nossa Ilha formaram-se 68 mil profissionais e técnicos, dos quais 30 mil da saúde, de 157 países. Se com muito escassos recursos, Cuba pôde, o que não poderia fazer o hemisfério com a vontade política de juntar esforços para contribuir com os países mais necessitados? Graças a Fidel é ao heroico povo cubano, viemos a esta Cúpula para cumprir o mandato de José Martí da liberdade conquistada com nossas próprias mãos, “orgulhosos de nossa América, para servi-la e honrá-la (...) com a determinação e a capacidade de contribuir para que seja estimada por seus méritos, e seja respeitada por seus sacrifícios”, como disse José Martí. Senhor presidente, perdão, a vocês todos, pelo tempo ocupado. Muito obrigado a todos.” A íntegra do discurso pode ser conferida em: http://pt.granma.cu/ Da redação, Cláudio Gonzalez Capa 19 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Venezuela enfrenta tentativas golpistas sem titubear Max Altman* A tarefa dos governos de esquerda ou progressistas na América Latina nunca foi fácil. Os Estados Unidos não se mostram dispostos a perder a hegemonia que sempre detiveram sobre a região e as oligarquias e a direita locais querem retomar a seu favor o controle político de seus países. No caso venezuelano, contrapor-se a interesses e à cultura de classe provocou reação violenta, marcada por tentativas golpistas da direita e dos conservadores inconformados em perder parte de seus privilégios e em ver a ascensão social e política das camadas populares Apoio popular à revolução bolivariana tem conseguido, até agora, conter os ataques golpistas da direita 20 Capa À s vésperas da VII Cúpula das Américas tas era de se esperar uma contraofensiva da direita e que teve lugar no Panamá em 10 e dos setores oligárquicos, apoiados politicamente pe11 de abril passados, o presidente los seus porta-vozes da “grande mídia” local e interdos Estados Unidos, Barack Obama, nacional e coordenados estratégica e logisticamente decretou a aplicação de sanções a 7 por Washington. funcionários do governo da Venezuela, acusando-os A partir da ascensão de Hugo Chávez ao governo de violação dos direitos humanos e corrupção e, mais da Venezuela em duas sucessivas eleições presidengrave, decretou “emergência nacional nos Estados ciais de 1998 e 2000, a maioria dos países da região Unidos devido ao extraordinário risco à segurança passou a ter no comando governos eleitos democratiamericana representado pela situação na Venezuela”. camente, dedicados a pôr em marcha políticas públiEra o sinal claro de que toda a violenta campanha micas voltadas às camadas pobres da sociedade, a execudiática internacional contra a Revolução Bolivariana tar planos de fortalecimento da economia afastados e as tentativas de desestabilização e golpe tinham as do modelo neoliberal e modernização da infraestruimpressões digitais da Casa Branca. tura, ao mesmo tempo em que marcavam sua posição Aparentemente, Washington idealizou um plano internacional de soberania, independência e integrano qual ao mesmo tempo em que acenava com meção de povos e países do continente. Presidentes com didas de afrouxamento de um bloqueio político, dieste perfil foram eleitos e reeleitos no Brasil, Argenplomático, financeiro, comercial contra Cuba de mais tina, Bolívia, Equador, Venezuela, Nicarágua. O mesde 56 anos – relações dimo ocorreu em países cuja plomáticas, retirada da Constituição não permite lista de países apoiadores reeleição como Uruguai, do terrorismo, acordos Chile, Peru, Paraguai, El migratórios etc. –, e com Salvador. Alguns desses isso atrair a simpatia dos governos eleitos pelas forpaíses latino-americanos ças democrático-populae do Caribe, buscava isolar res cederam à pressão da a Venezuela que, para a direita, foram derrubados Casa Branca, é o principal por golpes ou derrotados entrave aos seus objetivos eleitoralmente. estratégicos no continenOs governos desses te. É lícito imaginar que países, porém, impediram a atual e mais aguda fase a Área de Livre Comércio Mulher passa diante de grafite em muro de Caracas da política de confrontadas Américas (Alca) e ção direta contra uma revolução bolivariana pacífica, constituíram organismos próprios de integração, sodemocrática, com um governo presidido por Nicolás beranos e independentes, como a União de Nações Maduro disposto a dialogar com base na igualdade Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade de Estae respeito mútuo, visava a atemorizar as instituições dos Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), não venezuelanas ao mesmo tempo em que emitia sinais mais dispostos a ser meramente o pátio traseiro dos claros de apoio político e logístico aos setores golpistas Estados Unidos nem estar submetidos às decisões e violentos da oposição. da Organização dos Estados Americanos (OEA), que Contudo, o tiro saiu pela culatra. Internamente, marcou sua história como verdadeiro ministério das foram colhidas cerca de 12 milhões de assinaturas exicolônias do governo norte-americano. gindo a revogação do decreto de Obama – a Venezuela A tarefa dos governos de esquerda ou progressisconta hoje com população total de 30 milhões de hatas nunca foi fácil. Contrapor-se a interesses e cultura bitantes – e no seio da Cúpula das Américas o repúdio de classe provocou reação das mais variadas da direita à medida da Casa Branca foi quase unânime. Ouvie dos conservadores inconformados em perder parte ram-se vigorosos pronunciamentos contra a ingerênde seus privilégios e em ver a ascensão social e política cia dos Estados Unidos em assuntos internos de países das camadas populares. soberanos e contra sua insistente política imperialista, Os Estados Unidos não se mostram dispostos a percomo o de Cristina Kirchner da Argentina, Rafael Corder a hegemonia que sempre detiveram sobre a região rea do Equador, Raúl Castro de Cuba, Evo Morales da e as oligarquias e a direita locais querem retomar a seu Bolívia, entrecortados pelos aplausos do plenário. favor o controle político de seus países. Diante da con Depois de década e meia de sucessivas vitórias juntura desfavorável, que se estendia no tempo e se de candidatos e partidos de esquerda e progressisaprofundava, aquelas forças resolveram desencadear, 21 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 nacional para se eleger os decoordenadamente, a contraofensiva putados constituintes. O procuja estratégia assume características jeto de Constituição elaborado diversas segundo as condições locais, por Chávez e seus assessores mas sempre tendentes a derrocar os foi amplamente discutido ainda atuais governantes e assumir eles durante a campanha pela Consmesmos o poder absoluto. Há presentituinte. Amparados pelo prestítemente uma brutal ofensiva simulgio do presidente eleito, foi eleita tânea contra três países essenciais uma grande maioria de deputaao processo de integração: Brasil, dos, distribuída pelos estados, favoráVenezuela e Argentina. vel ao projeto. Vamos nos cingir à VenezueDiscutida em plenário da Constituinte la que é hoje o alvo central das por cerca de seis meses, a nova Constituição maquinações do Departamento da República Bolivariana da Vede Estado, apoiadas por uma fenezuela foi finalmente aprovada e roz e continuada campanha dos A Venezuela é hoje decretada. Antes porém de entrar meios de comunicação e que reem vigor, por iniciativa do presicebem o respaldo de algumas fio alvo central das dente Chávez e com o respaldo guras de ex-presidentes de países maquinações do da Constituinte, a Constituição de nossa região, derrotados pelo foi submetida a referendo popuavanço das forças progressistas. E Departamento de lar. Amplamente aprovada, dizia abordar aspectos importantes de Estado, apoiadas por em seu preâmbulo: “refundar sua história, não uma história de uma feroz e continuada a República para estabelecer séculos, mas de parcos 15 anos, uma sociedade democrática, para poder entender melhor a campanha dos meios participativa e protagônica, mulevolução dos acontecimentos e o de comunicação e que tiétnica e pluricultural num Esque agora se passa. tado de justiça, federal e descenHugo Chávez é eleito presirecebem o respaldo tralizado que consolide os valores dente em 1998. Era uma figura de algumas figuras da liberdade, da independência, conhecida. Chefe de uma fracasda paz, da solidariedade, do bem sada insurreição militar em 1992, de ex-presidentes de comum, da integridade territorial foi preso, no entanto, publicapaíses de nossa região, (...) assegure o direito à vida, ao mente, prometeu voltar e encaderrotados pelo avanço trabalho, à cultura, à educação, à beçar um processo de mudanças. justiça social e à igualdade, sem À época da eleição, os partidos das forças progressistas discriminação ou subordinação tradicionais estavam totalmente alguma; promova a cooperação desmoralizados, a economia em pacífica entre as nações e impulsione e consolide a infrangalhos e a miséria disseminada. tegração latino-americana de acordo com o princípio Chávez tinha débil apoio de forças políticas organide não intervenção e autodeterminação dos povos, a zadas. Os tempos de cadeia, as posteriores viagens pegarantia universal e indivisível dos direitos humanos, lo país, o contato com destacadas lideranças internaa democratização da sociedade internacional, o decionais e a leitura atenta dos acontecimentos políticos sarmamento nuclear, o equilíbrio ecológico e os bens vividos pelos países latino-americanos levaram-no a jurídicos ambientais como patrimônio comum e irreengendrar um plano, que a história se encarregou de nunciável da humanidade”. Como inovação, criou, mostrá-lo genial. As transformações profundas devealém dos poderes tradicionais – executivo, legislativo, riam estar alicerçadas numa nova Constituição, projudiciário –, o Poder Cidadão e o Poder Eleitoral. gressista, avançada, e toda uma teia de instituições Não bastasse os passos democráticos tomados, o novas, mais as instituições tradicionais a serviço da presidente Chávez solicita ao novel Poder Eleitoral nova Constituição. A essência de sua primeira campaque convoque novas eleições presidenciais, agora sob nha presidencial consistiu em alimentar esperanças, a égide da nova Constituição. Chávez é uma vez mais centrando-as numa nova Constituição. eleito presidente em 1999. O mesmo ocorreu com a Eleito presidente, insistiu na convocação de uma Assembleia Nacional da recém-fundada República Assembleia Constituinte, argumentando que deveBolivariana da Venezuela, composta majoritariamenria ser convocada por plebiscito, ouvindo-se a voz do te de partidários do presidente Chávez. povo. O povo disse sim. Chamou-se então um pleito 22 Capa Nos primeiros dois anos, Chávez preocupou-se politicamente em fortalecer as novas instituições, de acordo com a Constituição, deixando em segundo plano eventuais reformas econômicas. Na verdade, a economia se manteve praticamente intocada até finais de 2001, quando o presidente, autorizado pela Assembleia Nacional, recebe “poderes habilitantes” para tocar em alguns aspectos centrais da economia, em especial o que se relacionava com a Petróleos da Venezuela (Pdvsa). Foi o suficiente para despertar a ira das Nicolás Maduro denuncia violência patrocinada pelos oposicionistas forças da reação que se mobilizaram e trataram de desestabilizar o regime. A oligarquia veneEm 2004, a oposição valeu-se de uma cláusula zuelana, ligada à riqueza do petróleo, imaginou poder altamente democrática da Constituição Bolivariana, pressionar, controlar, manipular e submeter o presisegundo a qual todos os cargos de eleição popular são dente, como sempre acontecera na história do país. revogáveis, transcorrida a metade do período para o Ocorreu o golpe militar clássico em abril de 2002, qual um cidadão foi eleito e um número não menor apoiado expressamente pela mídia, pela burguesia de 20% do eleitorado do país, ou do estado ou do muoligárquica, por amplos segmentos da classe média, nicípio solicitar a convocação de um referendo para por certas lideranças do movimento sindical e até revogar seu mandato, para convocar um referendo por grupamentos de ultraesquerda como o Bandera revogatório do mandato de Chávez. Foi novamente Roja. Chávez não tinha tido tempo de limpar as forderrotada, como havia sido e continuou sendo em ças armadas de oficiais dispostos a tirar a castanha quase duas dezenas de pleitos eleitorais livres, limpos do fogo em favor das classes dominantes. O golpe foi e democráticos. Não se conformaram com o resultado derrotado quando as massas saíram às ruas e, coad– 60% aproximadamente contra a revogação do manjuvadas por parte das forças armadas, trouxeram em dato de Chávez –, alegaram fraude – o que foi reper60 horas o presidente Chávez de volta ao Palácio Micutido escandalosamente pela mídia internacional – e raflores. Chávez estendeu de imediato a mão aos seaté hoje não apresentaram um fiapo de prova. tores empresariais e à oposição, propondo um pacto Nos anos seguintes com o aprofundamento do para o avanço da economia e a estabilização política. processo revolucionário – apoiado pela maioria do Em vão. povo venezuelano, em especial pelos trabalhadores e Vencidos, os golpistas não ensarilharam armas. camadas populares, e com o nítido avanço dos proEm dezembro do mesmo ano, ainda controlando a gramas sociais –, Chávez passou a defender e criar as Petróleos de Venezuela, desencadearam o “locaute” condições para a instalação na Venezuela de um regipetroleiro também com o objetivo de derrocar o goverme socialista de feição própria e a combater duramenno. A tática foi diversa e o roteiro parecia seguir o do te o capitalismo. Isto acendeu a ira de Washington e Chile de Salvador Allende: suspender o fornecimendos setores internos de oposição de direita. to de combustível, paralisar o transporte de pessoas Com a morte de Hugo Chávez em março de 2013, e mercadorias, criar o desabastecimento, provocar a a direita viu surgir uma oportunidade de derrotar a angústia popular, desestabilizar o regime para finalrevolução bolivariana pela via eleitoral. O candidato mente assaltar o poder. Os trabalhadores petroleiros de oposição à presidência, Henrique Capriles, contou resistiram, quebraram o bloqueio em alguns pontos com recursos extraordinários para desenvolver sua e em diversos momentos, o governo se manteve fircampanha e com a unificação de suas forças. O reme, recebeu apoio de poucos governos amigos e ao sultado foi uma estreita vitória de Nicolás Maduro, cabo de 63 dias os golpistas foram novamente derroungido pelo próprio Chávez como seu sucessor na litados. As lutas travadas naqueles meses de 2002 e coderança da revolução. A oposição não acatou a defimeço de 2003 foram moldando a consciência política nição das urnas, alegou uma vez mais fraude e tratou dos trabalhadores e do povo venezuelano e levaram Maduro como presidente ilegítimo. Convocou grupos o governo a dar início a um processo revolucionário violentos às ruas de que resultou várias vítimas fatais bolivariano. A PDVSA, espinha dorsal da economia, e atentados a sedes do Partido Socialista Unificado foi totalmente saneada e reestruturada para servir de da Venezuela (PSUV) e de clínicas onde trabalhavam alavanca para uma série de políticas sociais. médicos cubanos. 23 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 O ano todo de 2013, a oposição de direita se negou pista era a publicação de um certo Manifesto de Trana reconhecer o governo Maduro. Dedicou-se a sabotar sição de autoria das lideranças da extrema-direita. O a economia, a açambarcar produtos, a contrabandear plano foi desbaratado, os oficiais da operação presos, para o exterior produtos essenciais que o governo e o líder visível do plano golpista, Antonio Ledezma, vendia à população com preços subsidiados, com isto também detido por ordem da Justiça. Tudo amplaalimentando a inflação, provocando o desabastecimente documentado e comunicado à população pelo mento, criando intranquilidade, a sabotar o sistema presidente Maduro, pelo presidente da Assembleia elétrico, criando desestabilização, Nacional, Diosdado Cabello, e oucaos, guerra psicológica. Tratou tras autoridades. de converter as eleições municiA Venezuela vive uma situação pais de dezembro de 2013 em pleeconômica delicada. É uma ecobiscito. E o que ocorreu? O amplo nomia ainda rentista decorrente triunfo eleitoral da Revolução da “maldição do petróleo”. O setor Socialista Bolivariana nestas eleiempresarial não investe, vive de ções derrotou os planos golpistas renda. Somam-se a isto a sabotada direita. gem econômica, a alta inflação, o A Venezuela vive uma Em fevereiro de 2014, a extredesabastecimento, agora um tanma-direita, liderada por Leopoldo to atenuado. No plano social, persituação econômica Lopez, Maria Corina Machado siste a alta taxa de criminalidade. delicada. É uma e Antonio Ledezma, iracunda e O objetivo central do governo desesperada, lança o plano “La Maduro nesta etapa da Revolueconomia ainda salida”, ou seja, um golpe para a ção é mudar o modelo econômico rentista decorrente da derrubada do presidente Maduro, dependente do petróleo por um “maldição do petróleo”. estimulando que bandos saíssem modelo produtivo que desenvolva às ruas e praticassem toda sorte outras áreas. O objetivo central do de violência e crimes, de que reNo entanto, mesmo diante de governo Maduro nesta sultou a morte de 43 cidadãos, tamanhas dificuldades, Maduro a grande maioria cometida por consegue manter uma forte base etapa da Revolução essas milícias fascistas. Apesar social, em especial entre os trabaé mudar o modelo do alto preço em vidas, foi novalhadores e as camadas pobres, pereconômico dependente mente derrotada. À essa altura, manentemente mobilizada, e, em instados e com a intermediação especial, a unidade cívico-militar. do petróleo por um da Unasul, governo e oposição Ademais, conta com maioria na modelo produtivo que sentaram-se a uma mesa de diáAssembleia Nacional, com um Pologo, que foi transmitida abertader Judiciário disposto a defender desenvolva outras áreas mente durante mais de 10 horas intransigentemente a Constituipor uma rede de televisão e rádio, ção e dispõe de meios de comuniem que os líderes da oposição pucação popular para travar a bataderam expor livremente seus pontos de vista. O diálha de ideias. Porém, mais importante, Maduro, bem logo, que visava a encontrar caminhos para a superacomo ministros do governo e dirigentes do PSUV, vão à ção dos entraves econômicos e políticos, não avançou televisão, vão ao encontro dos movimentos populares, uma vez que a oposição apresentou condições inaceivalem-se de cerimônias públicas para defender enfátáveis para o seu prosseguimento e setores radicais de tica e corajosamente a revolução, rebatendo sem titudireita desta oposição sabotaram qualquer tentativa bear as investidas golpistas e caluniosas dos opositores. de entendimento. Estão programadas para o final deste ano eleições Já em fevereiro de 2015, a extrema-direita parte para a Assembleia Nacional. Será mais um teste paabertamente para o golpe. A inteligência das Forças ra a Revolução Bolivariana. Maduro sente, em suas Armadas Bolivarianas consegue detectar o plano e incansáveis andanças pelo país, que o povo apoia a prender os seus executores: um pequeno grupo de ofiRevolução acima das reais dificuldades pelas quais ciais da Força Aérea, que a bordo de um avião tucano vem passando. de registro não venezuelano, atacaria o palácio presi*Max Altman é jornalista, membro da secretaria dencial, tendo como alvo o presidente Maduro, a sede de Relações Internacionais do Partido dos da Telesur, do Conselho Nacional Eleitoral e algumas Trabalhadores outras instituições. O sinal para o início da ação gol- 24 Capa Nestor e Cristina Kirchner Doze anos de gestão kirchnerista na Argentina repararam alguns dos danos causados por décadas de neoliberalismo Argentina: apenas novas mudanças podem proteger o que já foi conquistado Jorge Alberto Kreyness* A poucos meses do fim do mandato presidencial na Argentina, chegamos aos doze anos de gestão (três mandatos) dos Kirchner. Muitos falam de “fim de ciclo”, pretendendo com isso colocar fim, na verdade, a um período singular, no qual uma corrente de um partido tradicional executou políticas externas autônomas em favor da integração regional e reparou alguns dos danos causados por décadas de neoliberalismo com suas ditaduras ou governos constitucionais. Nós, os comunistas, consideramos que não podemos nos resignar a isso 25 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 A tendência mundial rumo a um munNa verdade, o imperialismo continua sendo o podo multipolar e policêntrico, a partir der dominante, embora encontre cada vez mais difido ponto de articulação entre o século culdades para o exercício dessa dominação. anterior e o atual, tem a América LaPor isso, desenvolveram uma sistemática intertina como importante protagonista. vencionista que é constantemente modernizada e A irrupção da Revolução Bolivariana atualizada, com o propósito de fazer retroagir nos– de conteúdo anti-imperialista – impulsionou em sos processos políticos ao velho esquema no qual nossos países o surgiprepondera a chamada mento de inúmeros pro“iniciativa privada”, cessos que escaparam bem como de colocar ao controle político que outra vez o Estado toos Estados Unidos vitalmente a serviço das nham mantendo. corporações. Com uma diversidaVários movimentos de própria ao seu desengolpistas que seguiram volvimento desigual, em nessa direção fracassacada uma de nossas naram, como na Venezueções, os povos travaram la, na Bolívia e no Equabatalhas contra o modor. Outros alcançaram delo neoliberal do Conseus objetivos, como senso de Washington, em Honduras e no Paconseguindo sintetizar raguai. Mas, em todos essas lutas no surgios nossos países, contimento de novas liderannuam se desenvolvendo O imperialismo ças e de novas forças políticas. ações – ora desestabilizadoras, Nessas inovadoras articulaora golpistas – com o objetivo de desenvolveu ções se unem na diversidade, conservar e/ou recuperar o conuma sistemática e de diferentes modos, tanto trole sobre as formações econôintervencionista, correntes revolucionárias e somico-sociais e sobre o Estado. cialistas como reformistas ou Seus centros de elaboração e com o propósito de populistas. De acordo com a cordesenvolvimento de estratégias fazer retroagir nossos relação de forças e os fenômenos para tanto – como o denominado histórico-culturais de cada país, Albert Einstein Instituto, presiprocessos políticos ao depois de alcançar o governo nos dido pelo Sr. Gene Sharp – provelho esquema no qual marcos legais do sistema instijetaram verdadeiros manuais de tucional preexistente, elas prodesestabilização, cuja aplicação prepondera a chamada duziram mudanças em benefício se encontra hoje na ordem do dia. “iniciativa privada”, dos trabalhadores e dos setores Eles se especializaram em enconbem como de colocar humildes – os quais a ortodoxia trar os pontos fracos dos govereconômica havia deixado à marnos progressistas para explorar outra vez o Estado gem dos limites do sistema. ao máximo suas deficiências e, totalmente a serviço Em seu tempo, combinando a partir daí, promoverem ações uma atitude defensiva e uma desgastantes com o fim último de das corporações motivação em favor da soberarestaurar o neoliberalismo. nia, avançaram na unidade poAlém disso, realizam tentalítica da região e conceberam o tivas de combater a integração processo de integração regional, cujas principais exregional mediante construções como a Aliança do pressões são hoje a União de Nações Sul-Americanas Pacífico, na qual tratam de potencializar os governos (Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americom os quais têm afinidade. cano e Caribenhos (Celac), dentre outras novas orPorém, temas como o fim do bloqueio a Cuba ganizações regionais de caráter supranacional. ou a necessidade de revogação da ordem executiva Tal processo se realizou contra a vontade dos Escontra a Venezuela têm encontrado a Nossa América tados Unidos, que continuam nos considerando o unida – conforme ficou evidenciado na recente Cúseu “quintal dos fundos”. pula no Panamá. 26 Capa Ao analisar a política de Washington não se pode deixar de lado o grau de bifurcação que foi produzido, aqui e agora, no âmbito da tomada de decisões, depois que os republicanos ganharam ambas as câmaras do Congresso. Mas o certo é que os planos desestabilizadores estão em pleno curso e que a Venezuela, o Brasil e a Argentina, sem esquecer outros países, encontramse no centro da tormenta. Na Argentina, o governo de Néstor Kirchner assumiu em meio à implosão do modelo neoliberal – havia ocorrido a crise orgânica de 2001 e cinco presidentes tinham se sucedido em poucas semanas. Após o fracasso da tentativa de instalação de um Estado policial, diante da continuidade e do revigoramento crescente das lutas populares, realizaramse as eleições, vencidas pelo peronismo – Kirchner obteve 22% dos votos, num contexto de 24% de desempregados. O governo instituído em 2003 iniciou um processo de estabilização do regime institucional e de recuperação do consenso, colocando fim à impunidade das violações aos direitos humanos e reparando – fundamentalmente com políticas de ampliação do mercado interno – a perda de conquistas que grandes faixas de trabalhadores e de setores populares mais humildes haviam sofrido com a aplicação da ortodoxia econômica. O kirchnerismo – uma força de hegemonia burguesa-reformista – encontrou rapidamente forte apoio social, que foi incrementado em torno de 2005, quando junto com Hugo Chávez e Lula, em Mar del Plata, confrontaram-se com George W. Bush e impediram a articulação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), dando origem ao processo de formação de novas organizações de integração regional, como a Unasul e a Celac, além da incorporação da Venezuela, e em breve da Bolívia, ao Mercado Comum do Sul (Mercosul). Era evidente que nesse momento se iniciaria uma nova etapa, mais intensa e constante, das conspirações contra o governo, que desde então não deixaram de crescer. Os centralizados meios de comunicação jogaram um papel de primeira linha para potencializar ao máximo os problemas da falta de segurança e da inflação. Os setores agroexportadores, especialmente os de soja e girassol, conseguiram agrupar e mobilizar todos os setores agrários, inclusive pequenos e médios, contra as retenções (impostos) às vendas ao exterior, a partir de erros do governo em matéria de gestão. O velho e aristocratizante Poder Judiciário, mediante artifícios legais ou processuais, atuou como O velho e aristocratizante Poder Judiciário atuou como freio na aplicação de leis progressistas e antimonopolistas freio na aplicação de leis progressistas e antimonopolistas – como a de Serviços de Comunicação Audiovisual e outras –, tornando-se inclusive ator central de grandes causas abertas contra o governo e/ou seus funcionários, de forte repercussão midiática e cujo saldo foi a deterioração da ação governamental. Além disso, a partir das estruturas do velho Estado, setores das polícias provinciais, da Gendarmería (gendarmaria) e da Prefectura Naval (espécie de guarda costeira) realizaram aquartelamentos e outras ações que desestabilizaram o país. A crise de representação dos partidos, especialmente os de direita, foi suprida por esses fatores do poder real, que cumpriram também o papel de oposição política na polêmica ideológica – na confrontação de rua inclusive –, bem como numa sofisticada promoção de figuras que, no fundo, expressam programas de restauração do poder ilimitado dos monopólios. O recente caso do promotor Nisman foi paradigmático para mostrar o papel dos velhos serviços de inteligência, também dentro das dobras do Estado. O mesmo promotor que travou e adiar por vinte anos as investigações sobre o caso do atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia) – incluindo o período do seu antecessor –, surgiu denunciando a presidenta e o chanceler por encobrimento do mesmo crime, desfigurando para tanto os conteúdos do Memorando de Entendimento com a República Islâmica do Irã. Isso causou grande alvoroço nacional e internacional e, com o tempo, as águas foram clareando e o balão midiático desinflando, embora restem ainda resquícios desse problema. Tornou-se evidente neste caso a ingerência dos Estados Unidos e de Israel em nossos assuntos internos, por meio de seus respectivos órgãos de inteligência – CIA e Mossad –, além de sua influência e presença ilegal na política nacional. 27 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 A estratégia empresarial de aumentar os preços e culpar o governo pela inflação, além do mais, surge como uma constante. Assim como o governo, em alguns casos e temas, pôde responder com inteligência e resolver as conspirações, em outros não soube ou não pôde fazê-lo. O momento político é de fim da possibilidade de reeleição de Cristina Fernández de Kirchner. Seus dois mandatos constitucioReunião do PCA: comunistas argentinos defendem frente comum para defender nais terminam em dezembro do conquistas alcançadas mediante o avanço no rumo de novas transformações corrente ano de 2015 e as características de sua sucessão se convertem num problema político central. A poucos meses do fim do mandato presidencial, Por isso, a direita já não parece se centrar no golchegamos aos doze anos de gestão (três mandatos) pismo ou na destituição, tratando sim, em primeiro dos Kirchner. Muitos falam de “fim de ciclo”, prelugar, de deteriorar sua figura e a de seu setor intendendo com isso colocar fim, na verdade, a um peterno do peronismo para que – qualquer que seja o ríodo singular, no qual uma corrente de um partido resultado eleitoral de outubro próximo – eles fiquem tradicional executou políticas externas autônomas com a menor capacidade de influência possível no em favor da integração regional e reparou alguns dos futuro. Os principais presidenciáveis, pelo menos até danos causados por décadas de neoliberalismo com agora, são figuras de perfil conservador e de boas resuas ditaduras ou governos constitucionais. lações com os Estados Unidos, sejam estes oficialisNós, os comunistas, consideramos que não podetas ou opositores. mos nos resignar a isso. Lamentavelmente, o kirchnerismo não soube, não Consideramos ser necessário unir e organizar toquis ou não pôde contribuir com a conformação de dos aqueles que aspiram a travar a fundo uma luta uma força política frentista, capaz de unir todos os por mudanças, numa perspectiva popular, democrápartidários, de avançar rumo a novas mudanças e de tica e libertadora. fazê-lo com maior profundidade. Por isso, na maioQue é necessário unir as forças dos trabalhadoria das ocasiões – e muito especialmente nos mores e do povo, das camadas médias da cidade e do mentos eleitorais – ele se apoiou sobre as antigas escampo, em uma frente comum para defender as truturas do Partido Justicialista, de seus governantes conquistas alcançadas, algo que somente pode ser e intendentes (chefes dos governos municipais), que conquistado mediante o avanço no rumo de novas por sua composição histórica concreta representam transformações, num sentido popular e antimonohoje um fator de retrocesso. polista. De fato, a Lei dos Meios de Comunicação não pôConsideramos que no seio de nosso povo há cade ser aplicada no fundamental. pacidade de luta e disposição combativa; e que aí se Não foi possível a imposição das retenções móencontra a força capaz de continuar a batalha contra veis (impostos) à exportação de soja e girassol. o imperialismo e seus aliados locais, nas condições E, do mesmo modo, não foram modificadas as que se colocam para 2016. leis tributárias, para fazer com que paguem mais Por isso, convocamos o Congresso de nosso Paraqueles que tenham maiores ganhos e lucros; nem tido para novembro ou dezembro deste ano de 2015, foi adiante a lei de serviços financeiros, para estabeonde analisaremos o contexto que se apresenta aos lecer um limite à ação depredadora dos bancos, em comunistas, ao conjunto das forças populares e antiespecial os transnacionais. -imperialistas e ao povo argentino, no marco de uma A produção industrial continua com um alto grau contenda que, sabemos, é de caráter regional, latinode estrangeirização, o que submete o país a uma forte -americana e caribenha. dependência e a uma alta demanda pelo dólar. Este é outro dos fatores utilizados para dificultar a ação *Jorge Alberto Kreyness é membro da Comissão do governo, quando este pretende regular, ainda que Política do Comitê Central, secretário de Relações timidamente, o mercado de câmbio. Internacionais do Partido Comunista da Argentina 28 Capa A economia no projeto kirchnerista Juan Santiago Fraschina* Cristina Kirchner em inauguração da nova fábrica da Yamaha na Argentina (Buenos Aires, julho de 2014) Ao longo da última década, contrariamente à cantilena neoliberal, a Argentina pôde realizar uma importante redução no nível de desigualdade e, simultaneamente, apresentar altas taxas de crescimento econômico. Isso foi possível já que o estímulo à demanda a partir de investimento social (denominado gasto para os liberais) não apenas melhora a qualidade de vida da população e garante o pleno exercício dos direitos sociais como também gera efeitos multiplicadores positivos na economia 29 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Efeitos sociais e econômicos da crise da convertibilidade taxa de desemprego, na média, permaneceu durante toda a década acima de 15% enquanto a pobreza, no final de 1999, acima de 25%. Com relação ao desenvolvimento da indústria eno final do ano 2001, o modelo ecotre 1996 e 2002, 9140 empresas foram fechadas, das nômico neoliberal entrou numa criquais 60% pequenas e médias empresas (PYMES, se terminal, depois de muitos anos em espanhol). Mesmo assim o modelo de desindusde agonia, onde, juntos, a atividade trialização livre levou a uma perda de 167 mil postos econômica e os indicadores de emde trabalho nesse mesmo período. Um dado interesprego e pobreza pioravam. Em dezembro desse ano, sante de se ressaltar é que, apesar desse aparente dia restrição à retirada de dinheiro em espécie, contasnamismo do setor financeiro através do produtivo – correntes e poupança (o chamado “corralito”) pode embora durante os primeiros anos o setor tenha tido ser considerada como o detonador da crise financeium alto crescimento –, a crise de ra, econômica e política que atra2001 o teve como um dos prinvessava o país, depois de mais de cipais setores prejudicados. O uma década de políticas neolibeA crise de hegemonia sistema bancário-financeiro, no rais sem quartel. do modelo neoliberal início de 2002, apresentava, denUm dos pilares do modelo tre outras coisas, um enfraqueneoliberal argentino foi a polítiimputou uma crise cimento do sistema pagos, um ca monetária de convertibilidade de legitimação da mercado de capitais paralisado e (currency board) que fixava a equiuma ascendente desintermediavalência da moeda argentina em política, entendida ção financeira. Dentre os problerelação à norte-americana: “Um como uma ferramenta mas mais espinhosos observados peso, um dólar”. Essa medida no setor financeiro e bancário se de transformação trouxe como consequência a imdestacam: uma elevada ausênpossibilidade de se realizar uma da realidade. Após cia de prazos e de moedas; um política monetária de maneira a renúncia do então elevado “spread” bancário; altas autônoma, dado que a quantidataxas de inadimplência e perdas; de de reservas do banco central presidente Fernando uma importante concentração e devia ser o equivalente à base de la Rúa, o país teve estrangeirização. O corralito deu monetária. Na prática, o esqueo golpe final no sistema bancáma de convertibilidade permitiu cinco presidentes em rio, demonstrando que o setor que fosse gerado um modelo de dez dias financeiro precisa de outras políacumulação financeira – distante ticas macroeconômicas para um das necessidades produtivas do crescimento sustentável. país. Em relação à crise democráCom efeito, durante o regime tica e de representação, a crise de hegemonia do de convertibilidade o sistema bancário e financeiro modelo neoliberal imputou uma crise de legitimaposicionou-se como um dos setores econômicos de ção da política, entendida como uma ferramenta de maior protagonismo: foi o ramo com maior crescitransformação da realidade. Após a renúncia do enmento médio de toda a economia ao longo de 1991 tão presidente Fernando de la Rúa, o país teve cinco a 2001 (12,6%), superior aos setores produtores de presidentes em dez dias. bens, serviços e ainda maior que o do Produto Interno Bruto (PIB) geral (3%, 3,7% e 3,4%, respectivaA recuperação econômica kirchnerista mente). Esse forte crescimento, junto com a privatie a construção de um projeto de país zação do sistema de previsão social, que ficou sob a órbita das Administradoras de Fundos de AposentaCrescimento com inclusão social dorias e Pensões (AFJP, sigla em espanhol), posicionou o setor como um dos mais firmes defensores e Podemos considerar o dia 25 de maio de 2003, campeões do modelo (NORIEGA, 2003). com a assunção do presidente Néstor Kirchner, coEnquanto uma parte do setor financeiro vincumo a pedra angular do projeto político kirchnerista lado ao negócio da dívida (na convertibilidade da que pressupôs uma transformação da política ecodívida externa em dólares aumentou quase US$ 30 nômica, com o objetivo de garantir a coesão social e bilhões) se enriquecia o conjunto do povo argentino restituir os direitos sociais aniquilados pelo modelo continuava submetido à pobreza e ao desemprego. A N 30 Capa neoliberal e pela lógica anárquica do mercado. O kirchnerismo permitiu uma nova articulação entre as facções do capital vinculadas com o tecido produtivo e os trabalhadores a partir de uma participação ativa e transformadora do Estado. Os determinantes níveis de pobreza, a perda de empregos, produto do fechamento de inúmeras pequenas e médias empresas, e de comércios, necessitavam de uma mudança substancial nas medidas da economia. Nesse sentido, um Em 2001, argentinos saíram às ruas contra o chamado “corralito”, que restringia saques dos pilares do modelo econôbancários. Episódio ficou marcado como símbolo da falência do modelo neoliberal mico kirchnerista (e que marca uma diferença em relação ao esquema neoliberal) responde à necessidade da pregados (AUH) e políticas ativas para redução da distribuição do acesso, e da inclusão social como informalidade e incentivo da demanda de trabalho condição necessária para o crescimento e (funda(os Programas PROGRESSO, PRÓ-EMPREGO, REmentalmente) e o desenvolvimento de uma nação. PRODUÇÃO PRODUTIVA). Por sua vez, a partir das Com efeito, é muito comum no pensamento políticas de acesso, também estão incluídos os bens liberal estabelecer uma sequência temporal que exculturais e sociais que o Estado concede à população põe a necessidade de se produzir (crescer) primeiro e que atuam à maneira de um salário indireto: edupara em seguida distribuir. A partir desse enfoque cação pública, teatros e espaços culturais gratuitos, as políticas de acesso que os governos levam adianprovimento de serviço público e infraestrutura, tarite, como no caso argentino, o aumento anual do safas dos serviços públicos. lário-mínimo vital e variável (SMVM, na sigla em Ao longo da última década, contrariamente à espanhol), as paritárias, a Concessão Universal por cantilena neoliberal, a Argentina pôde realizar uma Filho (AUH, em espanhol), a mobilidade da previimportante redução no nível de desigualdade e, sidência social, dentre outras medidas redistributivas, multaneamente, apresentar altas taxas de crescinão teriam um impacto no nível de crescimento, a mento econômico. Isso foi possível já que o estímulo não ser que, ao incrementar o gasto público, tornaà demanda a partir de investimento social (denomiriam mais agudos os problemas fiscais dos países. nado gasto para os liberais) não apenas melhora a É a partir daí que as políticas públicas sugeridas qualidade de vida população e garante o pleno exerpor essa corrente sejam o ajuste fiscal (redução do cício dos direitos sociais como também gera efeitos gasto público) e a “melhora do clima de negócios”, multiplicadores positivos na economia. O Estado, ao que levariam a um aumento do investimento e, com aumentar o acesso disponível estimula a demanda ele, da produção. Isso produziria um crescimento e o consumo – o que se converte em maiores veneconômico que, em segunda instância, melhoraria das das indústrias incrementando o emprego, fortao acesso dos setores mais vulneráveis. Comumente lecendo o desenvolvimento industrial e o mercado conhecida como teoria do derrame, essa sequência interno e externo. temporal entre a produção e a distribuição não foi Distante dos cantos de sereia neoliberais, ao respaldada pela evidência empírica, mas sim que as longo da última década consolidou-se o modelo de receitas neoliberais aprofundaram as desigualdades crescimento com inclusão social, onde não há tensociais. são entre a esfera da produção e a de distribuição, O projeto kirchnerista compreende as Polítimas que, por meio de políticas públicas ativas, se cas de Acesso a partir de um sentido amplo onde consegue articular uma estrutura social mais hose incluem as ações tendentes a: melhorar o salámogênea com um maior nível de crescimento em rio dos trabalhadores formais (paritárias anuais), busca de objetivos de desenvolvimento econômico transferências de acessos aos informais e deseme social. 31 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 O processo de reindustrialização: Recuperando a matriz produtiva O investimento e o financiamento para o desenvolvimento A recuperação da matriz industrial (destruída deContrariamente ao que prega a teoria liberal – sepois de 30 anos de políticas neoliberais), junto com a gundo a qual a única forma de se obter financiamento reativação das economias regionais, é reflexo da ime ampliar os investimentos é a partir do estabelecimenportância que obtém, dentro do projeto kirchnerista, to de um “clima de negócios” amigável com o capital a indústria como motor de desenvolvimento e ferraprivado –, durante a última década a Argentina aprementa fundamental para a geração de emprego. Forsentou bons indicadores de investimento em relação talecer e desenvolver os encadeamentos produtivos à etapa de convertibilidade. Com efeito, tanto o conque permitam um maior desenvolvimento industrial sumo privado quanto o investimento foram duas das em todas as suas etapas é um objetivo permanenvariáveis mais dinâmicas, graças às políticas de acesso, te do projeto kirchnerista – assim como a melhoria à criação de emprego e ao processo de industrialização. da competitividade sistêmica das Em números, se durante o período economias regionais. 1993-2002 o consumo privado e o A partir de 2003, o cresciinvestimento tiveram uma queda O kirchnerismo mento econômico foi explicado de -0,6% e -5,7% respectivamente estabelece formas principalmente pela dinâmica da (variação anual acumulativa), no de financiamento do atividade industrial. Em apenas período 2003-2014 ambas as vauma década o nível de atividade riáveis aumentaram 6,6% e 11,2% Estado por meio de industrial, mensurado por meio respectivamente. acordos e convênios da Estimativa Mensal da IndúsSe então para se consolidar tria (EMI), foi incrementado um processo de desenvolvimento bilaterais que reforçam em 70%. Já a utilização da casão necessárias maiores taxas de o eixo Sul-Sul. Mesmo pacidade instalada da indústria investimento, se se realiza uma assim, por ter como aumentou por volta de 8 pontos comparação em nível regional a percentuais. As consequências taxa de investimento argentina objetivo a substituição imediatas do projeto kirchneris(18% do PIB) supera a brasileira de importações, se ta foram um notável aumento na em um ponto percentual. produção de bens, acompanhada Em relação ao papel da dívireforça a capacidade por uma intensa geração de noda e de seu vínculo com o crescide pagamento do vos postos de trabalho e melhomento econômico, a política de ria nos indicadores de qualidade desendividamento e a busca de país, diminuindo a do emprego, e a modernização e alternativas de financiamento que dependência externa ampliação da capacidade produgarantem a soberania argentina tiva nacional. foram fundamentais. O kirchneNo que se refere ao emprego rismo estabelece formas de finanindustrial, de 769.649 trabalhadores registrados no ciamento do Estado por meio de acordos e convênios primeiro semestre de 2003, se passou para 1.287.909 bilaterais que reforçam o eixo Sul-Sul. Mesmo assim, no primeiro trimestre de 2013 (67% de aumento), por ter como objetivo a substituição de importações, se fato que demonstra a grande capacidade de absorção reforça a capacidade de pagamento do país, diminuinde mão de obra que expandiu o setor industrial dudo a dependência externa. A melhoria nos indicadores rante o renascimento da ênfase sobre os setores com de sustentabilidade do sistema bancário e financeiro, maior agregação de valor. bem como os esforços tanto estatais quanto do setor Esse processo virtuoso de industrialização e geprivado para fortalecer o crédito produtivo são o reflexo ração de emprego possibilitou uma revitalização de que é possível gerar um sistema financeiro distante das negociações coletivas de trabalho. Durante a da valorização e da especulação financeira, e o serviço convertibilidade as mesmas exibiam um comporda matriz produtiva argentina. tamento defensivo, onde os sindicatos tentaram Desendividamento e Fundos Buitres ceder o mínimo possível frente à “flexibilização tra(abutres) balhista”. Enquanto nos anos 1990 houve uma média de 178 acordos trabalhistas, em 2014 se chegou Tendo-se claro que a disponibilidade de divisas à cifra de 348 acordos que abrangem 4.300 milhões permite um crescimento ao tecido industrial, uma de trabalhadores. 32 Capa estratégicos (como o da energia) que permitem o refinanciamento da mesma. Conclusões A perda de hegemonia do projeto neoliberal, cristalizada na crise socioeconômica de 2001, permitiu o surgimento de alternativas de crescimento que tornam viável o desenvolvimento soberano do país. Os dramáticos resultados em termos de coesão social do liberalismo e suas receitas econômicas racharam as capacidades de dominação que até o momento haviam conseguido as alianças políticas e sociais que susMovimento La Campóra mobiliza militância em defesa do projeto kirchnerista tentaram as políticas neoliberais. Diante das vozes que pediam o desmantelamento do Estado de Bem-Estar, o granpolítica central para garantia dessa disponibilidade é de dinamismo na criação de postos de trabalho, o desendividamento. Um país superendividado deve consequência da instauração de um novo padrão destinar a maior parte dos seus recursos à anulação de crescimento baseado na distribuição de acesso, de seus compromissos. Por isso, um dos principais o estímulo à demanda e da satisfação de direitos êxitos desta última década foi o notável desendivisociais permitiram que a Argentina retomasse o damento. A dívida pública total (incluindo a dívida caminho do desenvolvimento. interna do setor público) chega a US$ 202 bilhões. A industrialização demanda um mercado interno Enquanto a dívida pública no ano de 2004 represene regional vigoroso e uma integração maior das ecotava 106% do PIB, hoje é de 39,5% reproduzindo clanomias regionais em esquemas que garantam relaramente o efetivo das políticas de desendividamenções simétricas e não de dominação. Nesse sentido, to. Se se desconta, além disso, a dívida pública nas a consolidação da Pátria Grande precisa de mercados mãos do próprio setor público passa a representar regionais nos quais o crescimento de um país facilite 102,7% do PIB em 2004 e 18,1% em 2014. o de seus vizinhos numa relação de complementariA modificação tanto quantitativa quanto qualidade produtiva. tativa da dívida pública permitiu que cada vez mais Os países centrais pretendem transferir os cussejam destinados menos recursos públicos para o tos da crise financeira internacional para os países pagamento da mesma. Em 2009 19,7% dos recursos em desenvolvimento, isso torna necessária uma eram destinados ao pagamento da dívida (incluindo articulação regional mais ampla. Diante de um vencimentos de capitais e interesses) e em 2014 apecontexto internacional adverso, no qual o comérnas 7,4% foram destinados. cio mundial se deprime, o dólar se supervaloriza e Esse processo de desendividamento ampliou as o preço das matérias-primas se reduz, as “políticas margens das políticas sociais reorientando os recurde ajuste” voltam a dominar o cenário midiático. sos do Estado para políticas de incremento de deLembrar a experiência do passado e evitar políticas manda que geram externalidades positivas para a que desmantelem o processo de industrialização, economia em seu conjunto. de geração de emprego e inclusão social se transAssim sendo, se durante a última década não forma numa condição para a garantia do desenvolhouve endividamento privado com organismos fivimento da região. nanceiros internacionais propenso às políticas neoliberais, como foi financiado o crescimento econômi*Juan Santiago Fraschina é coordenador nacional co? Por meio de um incremento de crédito privado de Formação da La Campóra e de canais de financiamento alternativos bilaterais. Dessa maneira se garante que a tomada da dívida Tradução de Maria Lucilia Ruy. corresponda ao projeto de infraestrutura em setores 33 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 O Brasil deve dar início a um novo ciclo de política externa altiva e ativa Ricardo Alemão Abreu* e Rubens Diniz** Atualizar e relançar a política externa altiva e ativa é contribuir com o desenvolvimento do projeto nacional, e isto é necessário mesmo neste contexto de dificuldades nos âmbitos nacional e mundial, inclusive para a superação dessas dificuldades Encontro em Fortaleza com presidentes dos países do Brics e da Unasul: contraponto à velha hegemonia EUA-Europa N a campanha eleitoral de 2014 confrontaram-se dois projetos políticos que expressavam visões antagônicas do papel e do lugar do Brasil no mundo, e do seu projeto nacional de desenvolvimento. O projeto liderado pela presidenta Dilma Rousseff, que busca aprofundar o ciclo de políticas desenvolvidas na última década, foi o grande vitorioso. 34 No entanto, no início do segundo mandato, aproveitando-se de um cenário internacional adverso e de pressões externas, forças à direita do espectro político buscam reorientar a política externa para uma ação subordinada às políticas das potências imperialistas. Neste contexto, impõe-se retomar a iniciativa política, a partir da atualização e relançamento da política externa altiva e ativa que caracteriza o atual ciclo político, para as novas condições do mundo e do Brasil. Capa O atual contexto internacional a forte influência de fatores externos. Em suma, a tentativa de desestabilização do governo Dilma, embora siga uma dinâmica muito própria da luta política no Brasil, é parte dessa investida das direitas do continente e do imperialismo estadunidense para tentar derrotar o ciclo progressista já em vigor há mais de 16 anos na América no Sul. Diante da crise capitalista mundial e dessas ameaças, é necessário ampliar e consolidar as relações Sul-Sul, e aprofundar e acelerar o processo de integração solidária da América Latina e Caribe. Também é necessário impulsionar a unidade das forças populares e as ações de solidariedade internacional para dar suporte político-social à política externa do Brasil e dos países sul e latino-americanos e caribenhos. A luta política em curso no Brasil deve ser entendida situando o Brasil, a América Latina, e mesmo os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), no contexto de um mundo regido por uma crise estrutural e sistêmica do capitalismo que se estende para seu oitavo ano, denominada a “grande recessão”. Pelo mundo todo há uma crescente resistência dos trabalhadores e dos povos à dominação da oligarquia financeira e das forças pró-imperialistas. O mundo também está envolvido em uma luta que abrange países e blocos de países da qual resultará o desfecho da atual transição nas relações de poder em curso no mundo. O imperialismo estadunidense manobra no sentido de reverter A ofensiva liberal seu declínio relativo e busca relanconservadora contra a çar sua hegemonia. Nesse sentido, atual política externa ganha destaque na situação interbrasileira nacional uma ação das potências imperialistas, lideradas pelos EUA, A escalada conservadora tem na para conter e agredir qualquer país crítica à política externa brasileira que contrarie seus interesses. (2003-2015) um de seus alvos preOs países que persistem em diletos. Sob os argumentos de que projetos nacionais soberanos e têm a política externa se partidarizou e política externa autônoma são alvo A tentativa de de que Brasil tem se “isolado” do dessa “contenção”, como a Chicomércio mundial, por estar preso desestabilização na, a Rússia, o Irã, além de vários à Argentina e à Venezuela, é que o países da América Latina e Caribe. do governo Dilma é senador José Serra, em sua saga liEm nossa região, há uma escalaparte da investida das beral, afirma que nesta legislatura da de direita que utiliza variados fará o que for preciso para revogar meios como a guerra midiática, a direitas do continente a união aduaneira, o coração do guerra econômica, a judicialização e do imperialismo Mercado Comum do Sul (Mercoda política, os intentos de golpe de sul). O que busca a direita brasileiestadunidense para Estado, as ameaças de agressão ra é quebrar a regra que obriga os militar, o apoio e o financiamento tentar derrotar o ciclo países a negociarem conjuntamenexterno da oposição, dentre ouprogressista em vigor te, para com isto levar o Brasil a astros, para tentar lograr as “musinar acordos bilaterais de livre codanças de regime” que almeja, ou há mais de 16 anos na mércio, visando a “reativar a Área seja, a derrubada dos governos de América no Sul de Livre Comércio das Américas esquerda e progressistas na região. (Alca)” (1). Em essência, o objetiTais governos latino-americanos e vo da oposição é retomar a agenda caribenhos inspiram esperança em neoliberal da década de 1990. todo o mundo, que infelizmente vive um contexto Além do ataque ao Mercosul, a agenda consermarcado politicamente pelo crescimento de forças vadora da oposição liberal se concentra em defende direita e até neofascistas. der a participação em acordos de livre comércio com Dos principais países da América do Sul, Argentios países desenvolvidos, a participação do Brasil na na, Brasil e Venezuela passam por situações políticas Aliança do Pacífico, e a adesão do país às chamadas críticas e são alvos dessa investida neste momento. cadeias globais de valor. Além disso, ataca as polítiCada um com singularidades, mas tendo em comum 35 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 sistema multilateral de relações incas de cooperação regional como a ternacionais. que proporcionou a construção do Para aumentar o debate e a dePorto de Mariel, em Cuba. fesa de uma política externa ativa A oposição liberal ignora ou e altiva, é importante a criação de esconde que em 2002 o Brasil exum Conselho Nacional de Política portou US$ 4,1 bilhões para o MerExterna, como defende o Grupo cosul, e já em 2011 as nossas exde Reflexão sobre Relações Interportações para o bloco atingiram a nacionais (GR-RI). cifra de US$ 32,4 bilhões, ou seja um crescimento de 690%. Dessas As relações Sul-Sul e a exportações brasileiras para o Merluta por uma nova ordem cosul, 90% dos produtos são mainternacional nufaturados e com alto valor agregado, e esse comércio representou Contribuir para a construção um superávit ao Brasil de 72 US$ de uma nova ordem mundial funbilhões. dada na paz, na soberania de toOs adeptos das políticas neolibedos os países, na cooperação e no rais que levaram a América Latina Além do ataque ao desenvolvimento, reforçando a à situação de tragédia econômica tendência à multipolaridade, tem e social no final do século passado Mercosul, a agenda sido uma das prioridades da polícompram o discurso da Aliança do conservadora da tica externa dos últimos 12 anos, Pacífico, mesmo sabendo que ela que deve ser aprofundada neste não representa nenhum acréscimo oposição liberal segundo mandato da presidente ao comércio brasileiro, pois a maior ataca as políticas Dilma. parte das barreiras tarifárias enEntre as distintas iniciativas de cooperação tre esses países e o Mercosul já foi destaca-se a contribuição brasileieliminada via acordos conduzidos regional como a ra para a consolidação dos BRICS, pelo próprio Mercosul. Ignoram da que proporcionou a um dos legados mais importantes mesma forma (ou escondem) que da política externa de Lula e Dila maior dificuldade para se firmar construção do Porto ma. O segundo ciclo de encontros um acordo equilibrado do Mercosul de Mariel, em Cuba dos países BRICS, iniciado com a com a União Europeia está nas pocúpula de Fortaleza (novembro, líticas do velho continente, que não 2014), deixou como resultado abre mão de seu protecionismo e de a constituição do Novo Banco de Desenvolvimenseus subsídios agrícolas. to (NDB) e do Arranjo Contingente de Reservas Longe de ser partidarizada, a política externa alti(CRA), iniciativas de significado histórico, que forva e ativa dos governos Lula e Dilma é um resgate e talecem a autonomia dos países e contribuem na uma atualização da tradição de “autonomia” e de deformatação de um novo quadro internacional. Ainfesa dos interesses e da soberania nacionais que tem da em fase de implementação, o novo banco terá origem em San Tiago Dantas e na Política Externa Incerca de US$ 100 bilhões para financiar projetos de dependente (PEI). No entanto, o que a oposição quer infraestrutura, ao tempo em que o Arranjo estará esconder por trás de um suposto “interesse nacional” destinado a contribuir com a estabilidade financeié uma visão (neo)liberal para nossa política externa. ra, garantindo liquidez para seus membros. O Novo A forma de responder a esta disputa de opiniões Banco de Desenvolvimento poderá ser um impore ideias, é avançando na reformulação e no relançatante instrumento para o financiamento de projemento do atual ciclo de política externa que vem destos de integração em infraestrutura na América do de 2003, repactuando temas, agendas e prioridades. sul, dando resposta a um dos principais obstáculos A nosso ver, a política externa do segundo manpara o avanço dessa agenda. dato da presidenta Dilma deve construir uma agenda A próxima cúpula dos BRICS será na Rússia, na prioritária que tenha, dentre outros elementos, as secidade de Ufa, nos dias 8 e 9 de julho deste ano. Ainguintes agendas e prioridades: contribuir para uma da sem uma agenda exata, é certo que alguns temas nova ordem mundial e para o incremento das relaestarão no debate, dentre eles os desdobramentos ções Sul-Sul; estabelecer uma prioridade renovada à das resoluções adotadas em Fortaleza e a condenaintegração regional; e reforçar a atuação do Brasil no 36 Capa ção às severas sanções que as potências “ocidentais” têm implementado contra a Rússia. Temas adicionais podem surgir, como uma cooperação maior em matéria de energia e segurança internacional. Adicionalmente, o debate sobre “governança da internet” pode aparecer com o intuito de restringir seu uso para fins bélicos, como ataques cibernéticos, a partir do estabelecimento de um acordo internacional de segurança da informação. Além da participação nos BRICS, o Brasil deve continuar desenvolvendo iniciativas de “alianças de geometria variável”, ou seja, acordos e parcerias entre distintos países e blocos regionais em torno de temas específicos. Entre as iniciativas tomadas no âmbito dos espaços regionais, destacam-se os encontros da Cúpula América do Sul – Países Árabes (CASA), Cúpula América do Sul – África (ASA), Cúpula da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), BRICS, e o Fórum China – Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), realizado em janeiro de 2015, primeiro espaço de concertação extrarregional do organismo latino-americano. A importância dessas alianças está na diversificação de parceiros econômicos e políticos, como também na construção de acordos e ações que visem à desconcentração de poder, seja ele econômico, político ou militar. A cooperação internacional também é um importante instrumento da política externa brasileira, que deve ser fortalecido neste novo período. Faz-se necessário um relançamento da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), órgão responsável pela cooperação técnica e vinculado ao Ministério de Relações Exteriores (MRE). Dentro deste contexto de fortalecer a cooperação, é preciso que o Brasil compartilhe com outros países seus casos de sucesso em políticas públicas. Da mesma forma, é necessário que o Brasil volte a abrir escritórios internacionais de suas agências especializadas, como o IPEA, a Embrapa, e a Fiocruz. Entre as regiões do mundo a ser priorizada está o continente africano, com o qual devemos, o Brasil e a Unasul, dar seguimento e efetividade aos acordos da Cúpula América do Sul – África (ASA). Um novo entendimento estratégico em torno dos objetivos da integração sul e latino-americana A integração visa ao desenvolvimento econômico, social, político e cultural de todos os países envolvidos, deve atender aos interesses nacionais de cada um dos países, a partir da convergência de objetivos estratégicos. Partindo de raízes históricas e de muitas experiências na segunda metade do século 20, houve uma iniciativa fundamental que ocorreu há exatos 30 anos, com a assinatura da Declaração de Iguaçu. Em 1985 foi iniciado o processo que levou à formação do Mercosul em 1991, e que ajudou a criar as condições para a criação posterior da Unasul e da Celac. No entanto, ainda estamos no começo. Para a integração avançar é necessário um entendimento estratégico e coesão de objetivos. Em nosso modo de ver, é preciso renovar os objetivos estratégicos, a partir de um processo similar ao que ocorreu em 2003, quando Lula e Kirchner lançaram o “Consenso de Buenos Aires”, iniciativa que proporcionou o avanço de grande parte das ações de integração adotadas nesta última década. O papel dos chefes de Estado, fazendo uso da diplomacia presidencial, é essencial para o sucesso desta iniciativa. No plano interno de cada país é necessário construir novos consensos, envolvendo os vários setores da sociedade, em torno da agenda comum e prioritária de integração. A Unasul, o Mercosul e a Celac são instrumentos que se complementam. Dentro de uma lógica de convergência, cada um possui sua agenda própria, mas devem assumir a agenda prioritária, que precisa ser unificada e tornar-se transversal em todas as organizações. Em março de 2016 o Mercosul completará 25 anos. É preciso fortalecer o bloco como núcleo dinamizador da integração regional a partir de uma agenda orientada ao desenvolvimento. Isto se expressa na constituição de políticas orientadas pela formação de cadeias produtivas regionais, pela ampliação do combate às assimetrias econômicas e sociais, e no aperfeiçoamento dos instrumentos de proteção das indústrias nacionais, como o Mecanismo de Adaptação Competitiva (MAC). Da mesma maneira, deve-se dar celeridade à negociação para a adesão ao bloco de Bolívia, Equador, Guiana e Suriname. Cabe uma atenção especial ao caso do Equador, que permitirá consolidar o acesso do Mercosul ao Pacífico, ampliando sua dimensão estratégica ao estabelecer acesso aos dois oceanos. É necessário fortalecer as instituições do Mercosul, dotando sua secretaria e seus institutos de instru- 37 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 mentos materiais e autoridade política para o cumdestaque a atuação da Celac como grupo no âmbito primento de suas tarefas. Neste quesito o parlamento da reunião de revisão do Tratado de Não Proliferação brasileiro deve definir critérios para a eleição, por voto de armas nucleares (TNP), realizada nos meses de direto, dos representantes brasileiros ao Parlamento abril e maio deste ano na sede da ONU. do Mercosul (Parlasul). A Unasul nos últimos anos constituiu-se uma Agendas prioritárias para a integração nova arquitetura de “governança” regional, com regional: infraestrutura, cadeias uma ampla agenda, estabelecendo vários objetivos. produtivas e combate às assimetrias Acreditamos ser conveniente priorizar esforços em três dimensões: concertacão política, coordenação A capacidade indutora de desenvolvimento dos de projetos de infraestrutura, e política de defesa sulprojetos de infraestrutura pode contribuir com a re-americana. A concertação política possui uma didução de assimetrias intrarregionais, fortalecendo o mensão interna, busca realizar esforços de mediação dinamismo econômico de regiões menos desenvolvidiante de conflitos e tensões internas, como foram das da América do Sul. O grande desafio é garantir os casos da Bolívia, Colômbia, Paraguai e mais reo financiamento dos projetos prioritários identificados centemente da Venezuela. No que se refere à dimenpela Unasul. Para tal, deve-se promover uma coordesão extrarregional, a Unasul se consolida como um nação maior entre os instrumentos financeiros regiointerlocutor global, valorizando o nais já existentes (CAF, FONPLATA protagonismo do continente no e CCR). Há outras possibilidades cocenário internacional, em torno de mo a busca de financiamento interÉ preciso fortalecer uma agenda marcada por temas de nacional, a partir de parcerias com o Mercosul como cooperação e dialogo político. o Novo Banco de Desenvolvimento dinamizador da Com uma decisão justa, e ao (NDB) dos BRICS, e como a expemesmo tempo ampla e radical, riência que está em curso envolvenintegração regional, a Unasul criou a Zona de Paz da do China, Peru e Brasil, para a conspela formação de América do Sul, uma medida de trução de ferrovia transoceânica. cooperação intrarregional em maOutro desafio é a instituição de cadeias produtivas, téria de segurança internacional, e cadeias produtivas regionais. Sem pelo combate também uma união contra ameaelas, as iniciativas de integração ecoàs assimetrias nômica podem, a qualquer momenças extrarregionais. Na mesma lito, produzir refluxos importantes, nha, de criar uma doutrina e mecaeconômicas e sociais, além de haver o risco de serem amnismos sul-americanos de defesa e o aperfeiçoamento pliadas, ao invés de diminuídas, as comuns, uma das grandes inovaassimetrias já existentes. Uma das ções foi a constituição do Conselho da proteção das alternativas seria industrializar os de Defesa Sul-Americano (CDS), e indústrias nacionais vastos recursos naturais da região e mais recentemente a constituição fazer uso dos potenciais energéticos. da Escola Sul-Americana de DefeAssim como devem ser promovidas, sa (ESCUDE), um feito histórico, a partir de uma política industrial e tecnológica copara a formação de civis e militares dos diferentes mum, as melhores capacidades industriais dos países países em torno de uma visão própria e compartisul-americanos, por exemplo no caso das experiências lhada do mundo contemporâneo e de sua dinâmica existentes como é o caso da EMBRAER brasileira e da internacional. ENAER chilena, na fabricação de jatos regionais, e a Além da Zona de Paz na América do Sul, o Brasil cooperação entre Brasil, Chile, Argentina e Colômbia também participa da Zona de Paz e Cooperação do no projeto do avião militar KC-390. Outra oportunidaAtlântico Sul, com a presença de muitos países afride para a América do Sul são os empreendimentos na canos, e da Zona de Paz da América Latina e Caribe, região brasileira do pré-sal, que podem orientar suas criada pela Celac em sua reunião anual em Havana, atividades dentro de uma lógica que estimule a formaCuba, em 2014. ção de uma cadeia regional, na área da indústria naA Celac tem concentrado sua agenda em temas val e em outros setores que envolvam fornecedores de de desenvolvimento sustentável e combate à pobreequipamentos, componentes e serviços. za, e de segurança internacional. Após sua primeira O combate às assimetrias econômicas e sociais decúpula o fórum regional tem se dedicado à realizave ser uma prioridade no processo de integração. É ção de reuniões especializadas e encontros extrarnecessário aperfeiçoar os instrumentos de combate a regionais como foi o Fórum Celac – China. Merece 38 tais assimetrias, proporcionando um desenvolvimento harmonioso com benefícios mais equitativos para todos os países-membros. O Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem) tem o propósito de “financiar programas para promover a convergência estrutural, desenvolver a competitividade e promover a coesão social, em particular das economias menores e regiões menos desenvolvidas”. O fundo adota uma política de aporte de recursos, na qual os países relativamente mais desenvolvidos aportam mais e utilizam menos (o Brasil aporta 70% e utiliza 10%). Contudo, o montante de recursos de que o Focem dispõe para sua carteira de projetos é ainda pequeno, se comparado com as necessidades existentes. É preciso multiplicar os recursos do Focem, que é um instrumento fundamental do Mercosul. A América Latina também pode se beneficiar de relações com outros países e blocos, como a China. As relações entre a China e os países da região tem se ampliado de forma expressiva nos últimos anos. Na atualidade, o país asiático se tornou o principal parceiro comercial de todos os países do Mercosul. Entre as iniciativas que estão em curso destaca-se o já mencionado Fórum Celac – China, realizado no mês de janeiro de 2015, e que busca ser um “inovador instrumento de cooperação”. Durante a abertura do evento o presidente chinês, Xi Jinping, anunciou investimentos de US$ 250 bilhões para os próximos dez anos na América Latina e no Caribe. O Fórum aprovou ainda o Plano de Cooperação Celac – China 2015-2019. Vista por muitos analistas com preocupação, a relação com a China pode e deve ser construída na base de interesses e benefícios mútuos, em prol da integração regional de nossa Pátria Grande. No caso particular do Mercosul, torna-se necessário estabelecer um acordo macro, em torno de objetivos e visões comuns da parceria com a China. A atuação do Brasil no âmbito dos organismos multilaterais O Brasil, como um dos estados fundadores da Organização das Nações Unidas, tem por tradição diplomática valorizar os espaços multilaterais de participação e “governança”. Nos últimos anos, o Brasil tem contribuído presidindo importantes organizações internacionais, como é o caso da FAO e da Organização Mundial do Comércio (OMC), onde dois experientes quadros brasileiros têm dado contribuições para os temas internacionais. Neste último período destacam-se três iniciativas importantes adotadas pelo Brasil. A primeira relacionada com o uso da força em nome dos direitos humanos, tema para o qual o Brasil apresentou a pro- posta de Responsabilidade ao Proteger, uma resposta alternativa à formulação da “responsabilidade de proteger”, que em essência quer legalizar o uso abusivo e inadequado da força militar em nome dos direitos humanos e sem considerar a soberania dos países, na prática legalizando as guerras de agressão promovidas pelas potências imperialistas. A segunda iniciativa recente e importante do Brasil foi a realização da Rio+20 e a ação protagonista nas negociações sobre o clima, onde o Brasil adota uma postura que defende as responsabilidades comuns entre os países, mas com diferenciação entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento. O Brasil se prepara agora para a realização da Conferência do Clima COP 21, que será em dezembro de 2015, e irá debater um tratado que substituirá o Protocolo de Kyoto. Por último, e como consequência da proposta brasileira de formação de um “governo mundial” da internet, no âmbito da ONU, foi sediado no Brasil o Encontro Multissetorial Global Sobre o futuro da Governança da Internet (NetMundial), evento que debateu princípios e propostas para a futura “governança” multilateral da internet. Ainda no âmbito multilateral, o Brasil continua com a agenda da reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que será uma importante contribuição para a democratização dos órgãos decisórios da ONU, no sentido de fortalecer a luta dos povos pela paz e por uma nova ordem mundial. Política externa, comércio internacional e desenvolvimento Desde a conferência da Organização Mundial do Comercio de Cancun, em 2003, e graças ao movimento coordenado por países como o Brasil, as regras de 39 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 para os temas mundiais devem ser encontradas não em tratados de “livre comércio” assimétricos, mas sim em negociações multilaterais, nas quais os países em desenvolvimento, hoje, têm melhores condições de se articular para defender seus interesses. Presidenta Dilma discursa e recebe apoio da plateia ao propor a formação de um “governo mundial” da internet, no âmbito da ONU, durante o NetMundial, sediado no Brasil negociação na OMC mudaram definitivamente, colocando os países em desenvolvimento em novas e melhores condições de negociação. No entanto, hoje a OMC vive seus momentos de impasse. Mesmo com o esforço do embaixador brasileiro Roberto Azevedo, as condições para destravar a rodada de Doha, chamada de rodada mundial do desenvolvimento, são difíceis. Neste contexto, surgem as iniciativas dos mega-acordos de comércio e investimento promovidos pelos EUA, por fora do sistema multilateral da OMC. Nas duas inciativas dos EUA, o acordo transpacífico e o acordo transatlântico, o risco é a ampliação de normas não negociadas de forma multilateral, e que podem restringir produtos dos países em desenvolvimento discriminando produtos com financiamento de bancos públicos, criando novos tipos de barreiras fitossanitárias, entre outros tipos de cerceamento. Porém, os EUA têm tido dificuldades com seus parceiros em fazer avançar as negociações da Parceria Transpacífica (TPP) e da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), que tem sido questionada por autoridades da União Europeia, por considerarem que ela abre brechas para a privatização de serviços públicos como saúde (2). A União Europeia, por sua vez, questionou o Brasil na OMC em torno das políticas nacionais de incentivo à produção, como o Programa InovarAuto, que beneficiam empresas que tenham conteúdo local – de 8 a 14 etapas produtivas –, desenvolvendo engenharia brasileira e o setor energético na produção de combustíveis alternativos (biocombustíveis, híbridos, elétricos, células de combustível). O Brasil deve continuar dando prioridade às negociações no âmbito multilateral, dado que as saídas 40 Política externa e projeto nacional A política externa é um componente central para a realização dos objetivos e aspirações nacionais do Brasil, contribuindo para a integração solidária da América do Sul e da América Latina e Caribe, e para a construção das demais condições externas para a execução de um projeto nacional. Para isso, é preciso que os interesses nacionais sejam cada vez mais identificados com os interesses populares, da imensa maioria do povo brasileiro. Nesse sentido, atualizar e relançar a política externa altiva e ativa é contribuir com o desenvolvimento do projeto nacional, e isto é necessário mesmo neste contexto de dificuldades nos âmbitos nacional e mundial, inclusive para a superação dessas dificuldades. Os desafios para o Brasil neste segundo governo de Dilma Rousseff são grandes, assim como também é grande a necessidade de se contar com a política externa avançada e pró-ativa como um instrumento do desenvolvimento nacional. * Ricardo Alemão Abreu é secretário de Relações Internacionais do PCdoB e pós-graduando em Integração da América Latina na USP ** Rubens Diniz é pós-graduando em Integração da América Latina e membro da Comissão de Relações Internacionais do PCdoB Notas (1) BACHA, Edmar & FISHLOW, Albert. “Momento de reativar a Alca”. O Globo, 04-04-2015, http://oglobo.globo.com/opiniao/ momento-de-reativar-alca-15768406 (2) Valor Econômico, 29-05-2015, p. A11. Economia 41 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 A Bolívia pós-eleições: erigir o Estado Plurinacional Ignacio Mendoza Pizarro* Estaria fora de contexto resumir em poucas páginas a caracterização da conjuntura boliviana, mas o fundamental se expressa na determinação de aglutinar as forças populares, fortalecer a organização e mobilização emancipatória sem minimizar o necessário debate para reparar erros e projetar o poder revolucionário Central Operária Boliviana (COB) integra a aliança operário-camponesa (de origem indígena) A pós as eleições gerais de outubro do ano passado, depois da posse do presidente, do vice-presidente, e dos novos senadores e deputados – num total de 166 –, que compõem a Assembleia Legislativa, ocorreram comícios departamentais e municipais na Bolívia, para o segundo turno para governador nos Departamentos de Beni e Tarija. Desse modo, a continuidade do processo de mudança foi assegurada, mas se aguçaram os tumultos cujas sequelas custam a se dissipar. 42 A proposta programática “Juntos vamos bem para viver bem” do Movimento para o Socialismo (MAS) para o quinquênio 2015-2020 sintetizou-se em doze pontos: 1. Tudo pela erradicação da extrema pobreza. 2. Atendimentos básicos para todos. 3. Juntos por uma vida digna. 4. Revolução e independência tecnológica e científica. 5. Por um país produtivo, industrializado e com emprego. Capa 6. Produção de nossos alimentos. A Agenda Patriótica do Bicentenário marca um 7. Água para a vida e respeito à Mãe Terra. roteiro definido em relação a pleitear a participação 8. Integração de nossa Bolívia. das massas e a orientar como se deve arraigar o pro9. Cuidado com o nosso presente para assegurar o cesso de transformações estruturais, especialmente nosso futuro. naqueles pilares em que estão assentadas as bases da 10. Juntos por um país soberano e seguro. soberania do Estado, em nível científico e tecnológico, 11. Revolução na justiça com a participação do pocomunitário financeiro, produtivo, sobre os recursos vo e transparência. naturais, alimentar e ambiental, na gestão pública 12. Todos por uma ordem mundial pela vida e a e marítima. Deve-se acrescentar que o Programa de humanidade para Viver Bem. Governo, na proposta de exercíAo surgirem reivindicações e cio pleno da soberania, propõe às direitos da população, que estão Forças Armadas uma nova arquise empenhando para o seu cumtetura doutrinária e normativa, o primento em correspondência efetivo controle territorial, transcom a Constituição Política do formação educacional e sua total Estado, o governo de Evo Morales participação no desenvolvimento. já havia definido o rumo do país No contexto eleitoral, à maraté 2025, em comemoração ao gem da crise orgânica e política bicentenário da independência das instituições de direita e de sua boliviana, com a Agenda Patriófalta de abordagens alternativas, Em consonância com tica – hoje uma política de Estao ambiente sociopolítico produa Constituição Política do. Ela abrange políticas para esziu muita tensão não tanto pela tabelecimento das bases de uma reeleição de Evo Morales e Álvaro do Estado, o governo soberania do Estado-Governo García Linera – que tiveram uma de Evo Morales já diante do império, desenvolvendo vitória vantajosa (61,4%) –, mas capacidades governamentais papelos conflitos por liderança denhavia definido o rumo ra sua intervenção na economia, tro do MAS governante, diante de do país até 2025, em especial nas áreas estratégidemandas por cargos de represencas, de acordo com a perspectiva tação pública. A estrutura daquela em comemoração constitucional. Estimulando a coletividade não corresponde ao ao bicentenário indústria agropecuária comunimodelo clássico de partido, mas da independência tária como parte dos quatro tipos sim a uma articulação intersetorial da economia estabelecida pela Lei de raiz sindical, gremial, vicinal, boliviana, com a Fundamental (estatal, privada, corporativa e de raiz indígena, com Agenda Patriótica – social-cooperativa e comunal). E o nome genérico de movimentos também o desenvolvimento em sociais. Na verdade, se constituiu hoje uma política de harmonia com a Mãe Terra, para uma Coordenadoria Nacional Estado deixar um futuro às próximas gepela Mudança (Conalcam, na sirações. Com essa abordagem, ao gla em espanhol) de funcionamenfortalecer as modalidades de participação na econoto periódico, não institucionalizada como direção polímia, as forças produtivas, no final, criarão as bases tica do processo. E em cada Departamento a instância materiais para a revolução. respectiva deveria selecionar as candidaturas buscanÉ preciso ressaltar, dentre outros temas, a manido harmonia e consensos na diversidade representafestação de solidariedade internacional entre os povos tiva, como regra geral, sob a hegemonia camponesa. que lutam contra o imperialismo, o reconhecimento Com maior visibilidade surgiram problemas em de uma nova concepção do significado de servidor púnível municipal e nas províncias, sobretudo pelos blico, com princípios e moral, apontando para uma convites feitos pelo presidente a personalidade regioluta frontal e sem quartel contra a corrupção, pelo nais e locais – em particular no âmbito urbano – que respeito às cultural e o retorno ao oceano Pacífico, supostamente poderiam contribuir para a vitória nas dada a condição mediterrânea desde a Guerra com urnas. Não poucos dirigentes massistas se sentiram o Chile, em 1879, cuja demanda é debatida na Corte deslocados (“ressentidos”, pela linguagem popular) e Internacional de Justiça (CIJ), em Haia, despertando isso se traduziu em dissidências de candidaturas menos movimentos sociais a unidade nacional e o comdiante siglas emprestadas de organizações cidadãs, e promisso militante. no voto cruzado, faltando apoio ao bloco governante. 43 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Autocriticamente, o presidente Morales referiu-se, em um balanço pós-eleitoral, ao voto castigo contra administrações corruptas que desgastaram a imagem oficial, especialmente as denúncias de mau uso econômico no Fundo Indígena e na Prefeitura de El Alto. Hoje – a partir dos resultados eleitorais nas “subnacionais” de março e dos dois segundo-turnos de 3 de maio passado – deve ser reconhecido o seguinte quadro: Consolidação de uma sólida maioria obtida nos Conselhos municipais e nas Assembleias regionais, ainda que em três Departamentos (La Paz, Santa Cruz e Tarija) as províncias estarão em poder da oposição – sendo muito preocupante o descenso no epicentro político de La Paz. No entanto, em Beni o segundo turno ratificou um significativo triunfo sobre a direita reacionária, de base ruralista, de donos de gado e latifundiários, incluindo pré-capitalistas. No plano municipal, de capitais departamentais, na cidade de La Paz, sede governamental, houve perdas em El Alto, Cochabamba e Cobija (além da consolidação anti-Evo Morales em Santa Cruz e Trinidad), e prefeituras semiopositoras em Oruro e Tarija. E isso seria compensado relativamente com as vitórias em Sucre, capital estatal, e Potosí – antes não situacionistas. Tudo isso acarreta um saldo de uma correlação de forças diferente, que demanda maior organização e iniciativa política depois de nove anos de governo. A respeito disso, é pertinente refletir sobre o fato de o vice-presidente García Linera, em seu ponto de vista proto-gramsciano, ter denominado a isso de “irradiação territorial hegemônica”, analisando o campo político boliviano. Dessa forma, passam a primeiro plano a necessidade de formação de quadros e a promoção de novas lideranças nas camadas médias urbanas em nível local e regional. Nesse sentido, os comunistas bolivianos defendemos que as demandas justas devem ser reunidas e propostas como bandeiras na luta por sua conquista através do poder popular. É por isso que apoiamos firmemente o acordo estratégico estabelecido entre a Central Operária Boliviana (COB), entidade matriz dos trabalhadores, e os operadores da mudança, desde novembro de 2013 – um coerente passo adiante rumo à aliança operário-camponesa (de origem indígena). Para os revolucionários e as forças de esquerda e progressistas torna-se fundamental aprofundar esse processo de mudança por meio da verdadeira implementação de medidas de impacto social e popular, porque, após a conclusão destas, se poderá iniciar a outra fase da Revolução Popular Democrática Anti-imperialista e Antioligárquica. Estabelecemos que “há um caminho preliminar a ser percorrido, etapas necessárias de transição ao objetivo estratégico. Romper a dependência, abrir caminho para o desenvolvimento 44 As recentes eleições municipais na Bolívia produziram uma nova correlação de forças, que demanda maior organização e iniciativa política depois de nove anos de governo econômico soberano e para a evolução social, com as massas como protagonistas da mudança, é uma condição objetiva para o avanço nessa perspectiva”. Em sua Tese Política, o Partido Comunista da Bolívia (PCB) assinala: “No caminho para a formação do instrumento frentista são possíveis formas de aproximação, acordos para ações coordenadas, aglutinações políticas em torno de tarefas conjunturais e objetivos comuns parciais, que vão preparando o terreno para a aliança mais avançada que desemboque na unidade estratégica”. Sob esses critérios orientadores, embora não tenha sido assinado um documento, ou convênio, de vínculo com o governo de Evo Morales ou com o MAS-IPSP, o partido “se orienta fundamentalmente pelas atitudes concretas assumidas pelos partidos, leva em conta os interesses de classe históricos e conjunturais, priorizando, naturalmente, a ação conjunta e os acordos com aqueles que tiverem demonstrado maior consequência e coerência na defesa dos interesses populares, nacionais, e na luta contra a oligarquia e o imperialismo”. Tudo isso supõe priorizar, no futuro em curto e médio prazo, maior disposição na construção do Estado Plurinacional, rumo ao socialismo. É uma tarefa unitária e libertadora que o povo boliviano executa e se envolve com dignidade e maturidade no período histórico pelo qual passa hoje. * Ignacio Mendoza Pizarro é primeiro secretário do Partido Comunista da Bolívia (PCB). Sociólogo e advogado, foi senador pelo Departamento de Chuquisaca na Assembleia Legislativa Plurinacional boliviana, e primeiro secretário da Assembleia Constituinte da Bolívia. Capa Lula: ser contra a integração sul-americana é atraso político Ricardo Stuckert/Instituto Lula Cláudio Gonzalez* Seminário em São Paulo reuniu o ex-presidente Lula e o secratário-geral da Unasul, Ernesto Samper Em seminário realizado pelo Instituto Lula em parceria com a Unasul, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou a importância estratégica do bloco e fez uma defesa enfática da integração sul-americana, não só do ponto de vista político, mas também econômico, social e cultural e criticou o “atraso político” daqueles que rechaçam este caminho. A defesa da integração regional foi reforçada pelo secretário-geral da Unasul, Ernesto Samper, que também participou do seminário 45 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 O Instituto Lula, em parceria com a Pessoas que se apresentam ao mundo como pessoas União das Nações Sul-americanas avançadas dizem que financiar o porto de Mariel ou (Unasul), realizou no último dia 13 o Metrô de Caracas é dar dinheiro aos outros. É atrade maio, na sede do Instituto, em so político, a submissão ao que tem de mais atrasado São Paulo, o seminário A integração no mundo”, ponderou. das cadeias produtivas na América do O porto de Mariel, em Havana (Cuba), e o Metrô Sul. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o exde Caracas (Venezuela) recebem financiamentos fei-presidente da Colômbia e atual secretário-geral da tos pelo BNDES (Banco Nacional de DesenvolvimenUnasul, Ernesto Samper, abriram o to Econômico e Social). A oposição colóquio, que contou também com de direita no Brasil tenta, há anos, Lula: “Pessoas que a participação de outras autoridacriar uma CPI no Congresso Nase apresentam ao des e dezenas de especialistas em cional para investigar repasses do América Latina. banco estatal. Para Lula, as críticas mundo como pessoas O objetivo do evento foi discutir dirigidas a investimentos do banco avançadas dizem que com representantes do parlamenem países estrangeiros partem de financiar o porto de to, da sociedade civil e das universetores “conservadores” que histosidades a política da Unasul para a ricamente renegaram a integração Mariel ou o Metrô integração produtiva da América regional e o protagonismo brasileide Caracas é dar do Sul e debater concretamente as ro na economia mundial. chamadas cadeias de valor, que são O ex-presidente Lula foi ainda dinheiro aos outros. fundamentais para o avanço da inmais enfático ao criticar o que chaÉ atraso político, a tegração econômica na região. mou de “complexo de vira-lata” de Lula fez sua fala inicial ressalparte da classe política, que prefere submissão ao que tando os desafios políticos de se privilegiar acordos comerciais com tem de mais atrasado realizar a integração econômica e os Estados Unidos em detrimento no mundo” criticando o “atraso” daqueles que de outros países das Américas e da se opõem a este caminho. “Tem África. “Ainda prevalece no Brasil gente no Brasil que critica que emum complexo de vira-latas de uma presas estão indo produzir no Paraguai ao invés de parte das forças políticas brasileiras, que teima em produzir aqui. Nós enfrentamos adversidade polítidizer que não vale a pena a relação com o Mercosul, ca quando esse pessoal deveria estar mais maduro. que não vale a pena a Unasul, que não tem que acreditar na América Latina, que não tem que acreditar na África. E que temos que ter uma ‘aliança’ estratégica com os EUA. São os mesmos que queriam que tivesse vingado a Alca tal como os americanos desejavam”, afirmou Lula. Lula citou alguns números para mostrar que “valeu a pena a opção que fizemos em 2003 para fortalecer o Mercosul e para criar a Unasul”. Segundo ele, “antes, tínhamos no Mercosul um comércio total de 15 bilhões de dólares, e hoje, com a entrada da Venezuela no bloco comercial, temos uma moviPorto de Mariel, em Cuba: preconceito ideológico misturado com “complexo de vira-lata” impede a direita brasileira de enxergar a importância estratégica dos investimentos no exterior mentação de mais de 66 46 Capa Ricardo Stuckert/Instituto Lula bilhões de dólares, ou seja, crescemos mais de quatro vezes o comércio entre os países do Mercosul”. O ex-presidente citou também que entre os doze países da Unasul, os números são ainda maiores: passamos de um comércio de 35 bilhões de dólares em 2003 para 120 bilhões hoje. Entre os setores que Lula destacou como estratégicos para a integração, estão alimentos, indústria naval e de aviação. “É preciso criar grupos de trabalho permanentes na Unasul para discutir a integração produtiva”, defendeu. Para Lula, é necessário “transformar a nossa retórica integracionista em ações práticas”. Samper: “somos todos Unasul” Na mesa de abertura do seminário, o secretáriogeral da Unasul, Ernesto Samper, falou sobre o papel da entidade em aprofundar a integração em torno de três eixos: manutenção da paz, da democracia e dos direitos humanos. “Agora, queremos que esse conceito de direitos humanos inclua os direitos econômicos e sociais. Entre os fatores que levaram à criação da Unasul estava a esperança de que, depois da ofensiva neoliberal dos anos 1990, que criou 180 milhões de pobres, um novo caminho se iniciaria, com a decisão de redirecionar o Estado a favor de mais atuação social. Se não somos a região mais pobre, somos a mais desigual do planeta. Por isso, o desafio da Unasul nos próximos 20 anos é melhorar as condições de desigualdade que temos”, disse. “Nosso grande desafio é agregar valor ao que temos”, concluiu, em crítica ao modelo de exportações de matérias-primas. Dias antes do seminário, Samper se reuniu com ministros e representantes de organismos brasileiros para tratar de assuntos nas áreas de educação, saúde e integração produtiva. Samper adiantou que foram discutidas formas para tirar do papel sete projetos regionais prioritários, como a Ferrovia Interoceânica, entre Paranaguá, no Paraná, e Antofagasta, na Argentina. “Concordamos com as autoridades econômicas brasileiras que não faz sentido uma região não estudar estratégias de financiamento e de integração física”, destacou Samper. “Esses projetos precisam de US$ 30 bilhões de financiamento, mas a região não tem esses recursos. A perspectiva é conseguir o dinheiro por meio de bancos dos BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul] e da China. Enfim, estamos estudando as possibilidades. Para isso, precisamos de uma boa macroeconomia. Essa é outra estratégia financeira que também estivemos estudando”, disse o secretário. Ernesto Samper: “Nosso grande desafio é agregar valor ao que temos” Ernesto Samper também cogitou o Banco del Sur como potencial financiador dos projetos. Em entrevista ao Instituto Lula, Samper avaliou que “o Brasil pode contribuir muito em matéria de infraestrutura, desenvolvimento produtivo e alianças estratégicas internacionais produtivas. Também pode, através de esforços de solidariedade compartilhada com outros países da região, ajudar a reduzir as assimetrias que caracterizam social, geográfica e produtivamente nossos países. Algo parecido aos fundos de coesão europeia que ‘nivelaram’ o campo da integração, mas que em nosso caso deveriam ser considerados como ‘fundos de inclusão’ para reduzir também as brechas que nos caracterizam como uma das regiões mais desiguais do planeta.” Ainda segundo ele, o presidente Lula é um símbolo regional em muitos dos campos nos quais temos que nos unir para levar o projeto da Unasul adiante. “Suas propostas de sucesso em matéria social, seu sentido de cooperação hemisférica e sua visão de futuro em temas como o das cadeias de valor são provas de que ele é uma grande referência na tarefa na qual estamos empenhados para avançar no desenvolvimento de um novo cidadão sul-americano, mais solidário, mais social, mais produtivo na economia, mais participativo na política e mais 47 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Projetos celebrados O seminário partiu da concepção de que a região só terá uma verdadeira integração se houver planejamento na hora de produzir e se cada país se concentrar no que faz melhor. Dessa maneira, o continente poderia agir como um só bloco, oferecendo uma diversidade maior de produtos para exportação e consumo interno. Além de Lula e Samper, diversos palestrantes convidados também falaram sobre estes desafios da integração regional. O panorama apresentado pelos palestrantes mostra que a integração produtiva é um grande potencial e também uma necessidade para Luiz Dulci, diretor do Instituto Lula e coordenador da Iniciativa se enfrentar a nova fase de desenvolvimento econôAmérica Latina mico. “Não vivemos uma época de mudanças e sim uma mudança de época. Os desafios não podem avançar mais foi uma opinião constante. “Noventa ser superados sem integração”, por cento da produção industrial afirmou Antonio Prado, secretádo mundo ainda estão concenPara Samper, engajarrio executivo adjunto da Comissão trados em 25 países. Precisamos Econômica para a América do Sul se com a Unasul investir em indústrias regionais”, e o Caribe (CEPAL). Ele ressaltou a afirmou Fernando Sarti, diretor dever ser tratado velocidade das inovações tecnolódo Instituto de Economia da Unicomo uma questão gicas e os efeitos delas nas cadeias camp. produtivas. O papel central do Estado em de Estado, e não de Neste sentido, o ex-presidente fomentar a integração foi resgoverno, pois do da Agência Brasileira de Desenvolsaltado por Esther Bermerguy, vimento Industrial (ABDI), Regicontrário o bloco ex-secretária de Planejamento e naldo Arcuri, apresentou experiênInvestimentos Estratégicos do Mificará à mercê do cias exitosas de integração na área nistério do Planejamento, e por industrial. Juan Salazar, assessor grupo político que Victor Rico, diretor-representante econômico da Unasul, também do Banco de Desenvolvimento da detém o poder em apresentou projetos concretos de América Latina (CAF) no Brasil. cada um dos paísesintegração de infraestrutura, neste “Temos muitos exemplos de como caso do Conselho Sul-Americano -membros é possível fazer inovação quando de Infraestrutura e Planejamento se tem as condições e o ambiente (Cosiplan). O órgão foi criado peinstitucional adequado”, afirmou. la Unasul e cuida das áreas de transporte, energia e comunicação. Muitos expositores ressaltaram os grandes avan*Da redação, com informações do Instituto Lula e ços feitos nos últimos anos, mas a necessidade de agências 48 Ricardo Stuckert/Instituto Lula comprometido com a defesa de seu meio ambiente”, afirmou. Para Samper, engajar-se com o bloco dever ser tratado como uma questão de Estado, e não de governo, pois do contrário a Unasul ficará à mercê do grupo político que detém o poder em cada um dos países-membros. “Alguns dos grupos que fazem oposição hoje [pela América do Sul] precisam entender que a Unasul não é um sindicato de governos, é — como seu nome indica — a união de nações. E nações somos todos nós”, afirmou. Teoria Pós-modernidade, globalização e crise dos partidos políticos Parte 2 Antônio Levino* Princípios publica a segunda parte do artigo de Antônio Levino, que discute o polêmico tema da crise de representação partidária. Na primeira parte do texto, publicada na edição 135 (março/abril de 2015), o autor analisa o tema a partir de conceitos como pós-modernidade, marxismo e revolução. Nesta segunda parte do artigo, Levino reflete sobre a natureza da crise de representação, relata o que são, como surgem e para que servem os diferentes tipos de partidos políticos, e aborda de forma específica a experiência do Partido Comunista do Brasil, “que se reinventa para enfrentar a crise e manter a utopia revolucionária” Seria possível recuperar a pauta revolucionária diante da contradição pós-moderna entre partidos e sociedade civil? 1 3 Origem e superação da crise dos partidos políticos M uito se discute sobre as formas tradicionais de organização terem perdido a capacidade de representar os questionamentos e defender os interesses coletivos da sociedade. Os partidos políticos teriam se tornado obsoletos e os Novos Movimentos Sociais que se expressam por meio das ONGs estariam ocupando seus espaços de modo acelerado. Pelo menos a baixa credibilidade dos políticos e a indisposição popular manifestada contra eles parecem confirmar essa crença. Ou seja, as evidências falam a favor de uma crise de representatividade, entretanto, para quem atua na esfera partidária e necessita encarar o desafio de superá-la não basta admitir sua existência. Antes de tudo é preciso estudar a natureza da tal crise: Trata-se de um fenômeno conjuntural ou atinge a própria estrutura das organizações, se é generalizada ou afeta um tipo específico de partido. Comecemos 49 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 então respondendo o que são, como surgem e para parlamentar preparava programas, escolhia líderes e que servem os partidos políticos. exercia o seu mandato livremente. Este tipo de partiNa definição de Max Weber, o partido é uma asdo nasce com a revolução burguesa, quando a Inglasociação que visa a um fim deliberado, seja ele “obterra adota o Reform act em 1832 que amplia o sufrájetivo”, como a realização de um plano com intuitos gio permitindo que camadas industriais e comerciais materiais ou ideias, seja “pessoal”, isto é, destinado do país participassem juntamente com a aristocracia a obter benefícios, poder e, consequentemente, glóna gestão dos negócios públicos. Eles prevaleceram ria para os chefes e sequazes, ou então, voltados para durante todo o século XIX e marcaram a difusão das todos os objetivos conjuntamente. Weber afirma taminstituições parlamentares. bém que o surgimento dos partidos O partido de organização de ocorre quando o sistema político almassas, também conhecido como de cança um certo grau de autonomia aparelho ou de organização de masestrutural, de complexidade interna sas, tinham suas características relae de divisão do trabalho que permicionadas aos objetivos políticos que tem, por um lado, um processo de defende (luta por um novo modelo tomada de decisões em que partie sistema político) e às condições cipem diversas partes do sistema e, econômicas e sociais das massas a por outro, que entre essas partes inque se dirigiam. Eles surgiram no cluam, por princípio, ou de fato, os fim do século XIX com o desenvolrepresentantes daqueles a quem as vimento do movimento operário. A decisões políticas se referem. industrialização gerou transformaSendo assim, o nascimento e o ções econômicas e sociais que prodesenvolvimento dos partidos estão vocaram movimentos espontâneos ligados ao problema da participação, que levaram à formação dos partiMax Weber ou seja, ao progressivo aumento da dos de trabalhadores. São partidos demanda por participação no prosocialistas com séquito de massas Na concepção cesso de formação das decisões poe organização difusa e estável. Posweberiana, haveria líticas, por parte de classes e estrasuem corpo de funcionários pagos tos diversos da sociedade. Quanto especialmente para desenvolver um três tipos básicos à função dos partidos, esta consiste programa sistemático, têm ação de partidos: Partido em: transmitir os questionamentos contínua e desenvolvem atividade políticos, viabilizar a participação de educação e propaganda integrais. de notáveis, partido das massas no processo de formaSão mantidos por contribuições dos de organização de ção das decisões políticas, realizar membros (sem recursos dos notámassas e partido atividades que visam a fazer com veis) e adotam uma estrutura pique no nível de decisão sejam conramidal (uniões locais, círculos ou eleitoral de massas sideradas as necessidades da sociesessões, direções) com abrangência dade e, por último, garantir a partiterritorial ou eleitoral. Neles, as dicipação na organização das eleições, reções eleitas são responsáveis por nas nomeações de pessoal para cargos políticos e na programa e escolha dos candidatos e o mandato parlacompetição eleitoral propriamente dita. Na concepção mentar está sujeito à disciplina. Pugnam pelo fortaleweberiana, haveria três tipos básicos de partidos: Parcimento das organizações de trabalhadores, pela mobitido de notáveis, partido de organização de massas e lização permanente e conquista de espaço sendo que a partido eleitoral de massas. Eles têm origem e tempos ação parlamentar é secundarizada. de existência diferentes, respondem a propósitos disO partido eleitoral de massas surgiu quando o sutintos e vivem suas crises de modo próprio. frágio universal se tornou muito difundido e em deO partido de notáveis surgiu liderado por notácorrência da expansão dos partidos operários que se veis, aristocratas e burgueses da alta sociedade que institucionalizaram para participar da disputa eleitoral. buscavam prover a escolha dos candidatos e finanÉ uma reação dos notáveis aos partidos operários. Prociar as campanhas eleitorais. Suas organizações lomove a mobilização de eleitores mais do que associacais tinham funcionamento quase exclusivamente dos e sua organização equivale à dos partidos operários nos períodos eleitorais, seus círculos não possuíam com: seções, federações, direção centralizada e quadros vínculo organizativo vertical ou horizontal e a idenpolíticos de tempo integral. Tem pretensão supraclastidade partidária só se dava no parlamento. O grupo sista, plataformas amplas e flexíveis, não propõe gestão 50 Teoria Ilustração retrata a disputa política em torno do “Reform Act”, adotado na Inglaterra em 1832 que decorre da modernização da sociedade brasileira e sua repercussão no mecanismo de participação democrática, que obriga uma adaptação de papéis, da estrutura organizativa e dos métodos de atuação de todos os partidos. São quatro os tipos básicos de organização partidária de esquerda em atividade no Brasil: o primeiro tipo corresponde às organizações tradicionais, como o PSTU, que mantém uma intervenção limitada aos movimentos sociais organizados sem priorizar a atuação parlamentar. Sua participação eleitoral é restrita a um proselitismo revolucionário propalado em fraseologia desconexa e anacrônica. O segundo tipo são as organizações de esquerda, como o PCdoB, que, além dos movimentos sociais, procura ampliar sua intervenção para a esfera institucional, ocupando espaços na estrutura de poder que advém do processo de democratização e investindo na potencialidade das reformas como um meio para atingir objetivos estratégicos. Esses partidos tentam transmutar a estrutura de quadros numa organização eleitoral de massas sem perder o conteúdo revolucionário. O terceiro tipo equivale ao PT que surge durante o processo de redemocratização do país, com o fim do regime militar de 1964, formado basicamente por quadros oriundos da esquerda tradicional que tentaram estabelecer uma modalidade de partido eleitoral de massas com base de atuação popular. Por conta disso vive uma tensão permanente entre os objetivos revolucionários que inspiram a intervenção nos movimentos sociais e uma ação institucional reformista de caráter finalístico pela qual faz opção prioritária. O quarto e último tipo de agremiação partidária de esquerda seriam os partidos como o PSB, que apesar de uma plataforma progressista surgiram como um partido de notáveis e preservam as suas características tentando se adaptar às condições de um partido eleitoral de massas. diferente da sociedade ou do poder e seus objetivos são essencialmente eleitorais. A participação dos inscritos na linha programática é formal, a escolha de candidatos se dá com base na potencialidade eleitoral e o papel dos notáveis é relevante na conquista de espaços que reforçam a máquina partidária. Essa classificação corresponde a tipos ideais que sintetizam características partidárias de diferentes épocas e lugares, mas podemos considerar que todos os partidos existentes no Brasil reproduzem de algum modo esses modelos. A começar pelos grandes partidos conservadores (PSDB, DEM, PTB) surgidos no decorrer século passado, que sofreram mutações e se adaptaram às regras eleitorais vigentes para continuar expressando os interesses das classes dominantes. Eles profissionalizaram as suas estruturas, se afastando aos poucos do modelo de “partido de notáveis” para se aproximarem do modelo de “partido eleitoral de massas”. Apesar de manterem atuação exclusivamente eleitoral, suas instâncias têm funcionamento regular e permanente para dar conta do calendário que determina um novo pleito a cada dois anos. Eventualmente um ou outro partido desses desenvolve algum tipo de intervenção nos movimentos sociais organizados, mas sua vocação principal é de fato para a disputa eleitoral. A participação dos filiados no processo de decisão interna também pode ganhar contornos mais ou menos democráticos, entretanto, vigoram as regras estatutárias que resguardam o poder absoluto às suas direções que, invariavelmente, são vinculadas aos interesses dos “notáveis”. A outra categoria de partido existente em nosso país são as “organizações de massas” de matriz revolucionária que respondem pela tradição do pensamento marxista. Estes pasO PT vive uma tensão permanente entre os objetivos revolucionários que sam de fato por um processo de crise de ideninspiram a intervenção nos movimentos sociais e uma ação institucional tidade, de propósitos e de representatividade reformista de caráter finalístico pela qual faz opção prioritária 51 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 52 José Cordeiro A crise dos partidos pode então significar um fenômeno de magnitudes e dimensões diversas, dependendo do que se concebe como crise e de qual o partido ou tipo de partido que se está analisando. Como nos marcos do sistema político-econômico vigentes não se vislumbra a adoção de métodos de participação direta que substituam a democracia representativa, as instituições devem continuar sujeitas à influência dos partidos políticos que são a única forma de organização estruturada historicamente Plenária do 13o Congresso Nacional do PCdoB (São Paulo, novembro de 2013) para dar conta do poder, seja para preservá-lo a serviço do status quo, seja para mudar o comando e instituir uma nova ordem. progressistas, sinaliza que podemos ter superado Frente à modernização democrática, como se viu, a fase mais crítica da expansão do neoliberalismo, os partidos de notáveis conseguem se reformular preque provocou a perda de direitos, o refluxo dos moservando seu espaço nas refregas eleitorais. Por outro vimentos sociais e a adoção de uma tática defensiva lado, diante da necessidade de ampliar sua atuação e por parte das forças de esquerda ao longo de mais de ocupar novos espaços que permitam avançar no ruduas décadas. O novo quadro que se descortina é de mo de seus objetivos estratégicos, os partidos revoretomada da perspectiva revolucionária, com batalhas lucionários que fazem opção pela ação institucional decisivas que demandam um partido grande, forte e tendem a viver uma crise de adaptação na sua estrucoeso que esteja à altura dos desafios de nossa época. tura. Trata-se de uma transição que não é simples e O partido que se busca construir não é mais aquea ela nenhuma organização de esquerda sobreviveu la organização fechada que doutrinava os seus memincólume, mas que também representa um percurso bros na cultura da decisão pela maioria e na prática inexorável para aqueles que buscam a construção de do centralismo democrático, antes o principal instruuma nova sociedade no tempo presente. mento de construção da unidade de pensamento e A verdadeira crise atinge de fato as agremiações ação. Para politizar o povo e ver suas ideias permeadas de esquerda que não absorvem a necessidade de inno senso comum, o PCdoB deve encarar o desafio de corporar novas instâncias e novos métodos de interse abrir e tornar uma organização de massas capaz venção. Atinge, também, partidos como o PT que adode desenvolver mecanismos de decisão baseados na tam a luta pelo poder, nos limites do sistema atual, construção de consensos. como um fim e não mais como um meio. Aos poucos Organizar um partido que seja reconhecido pelas esse que se tornou um imenso partido eleitoral de amplas massas, como intérprete fiel de seus anseios massas com origem no campo de esquerda, se vê na e capaz de dirigi-la, não de tutelá-la e nem de falar necessidade de expurgar todo o seu resquício de bapor elas, eis o desafio. Esse partido não é aquele que se popular organizada para simplesmente preservar o apenas incorpora os elementos mais destacados do poder já conquistado, o que o converte em mais um movimento social, mas sim aquele que se insere de simples partido de notáveis renovado. tal maneira no meio do povo que consegue estabelecer níveis variados de interação entre as massas e o 4. O PCdoB se reinventa para partido, tirando consequências práticas para o avanço enfrentar a crise e manter a utopia concreto das lutas do povo. Para cada nível de interarevolucionária ção, um grau de exigência distinto, um compromisso específico e uma expectativa de resposta adequada. Em linha geral se persegue a construção de um partido de Trata-se de ampliar o espectro de possibilidades de massas e de quadros, capaz de assumir o protagonismo político ligação entre o partido e as massas sem fazer concese se colocar como alternativa de poder no campo de esquerda. são de princípios, levando em conta que a construção partidária se dá no plano político, ideológico e orgaA crise econômica global que abateu as principais nizativo, mas é a política que deve estar no comando. economias da Europa e da América do Norte, aliada O PCdoB já abraçou o propósito de se transformar à resistência persistente de países autodenominados numa organização revolucionária de massas. Procura socialistas e vitórias eleitorais de correntes políticas agora enfrentar as consequências dessa opção. Num Teoria primeiro plano deve estar apto a realizar ações polítidireção formal que aos poucos deixa de ser exercida cas amplas que resultem de fato na sua inserção entre hierarquicamente, no sentido tradicional da forma de as amplas massas. Num segundo plano, deve assiuma pirâmide, como sugerem as relações estabelecimilar que o crescimento extensivo das entre as instâncias constituídas gera problemas novos e ainda sem e as bases. O programa respostas, dos quais infelizmente Todos esses temas permeiam as não podemos fugir. Diante disso porelações partidárias da atualidade de formação e de-se até estimular um crescimento e geralmente aparecem na forma capacitação dos intensivo e dirigido para determide uma tensão entre as medidas nadas áreas prioritárias, mas o que voltadas ao crescimento e incorquadros é a única está na ordem do dia é a abertura poração massiva de lideranças e a arma capaz de do partido para as amplas massas. preocupação com a preservação dos viabilizar a transição Sabemos que atualmente o Parprincípios, devido ao risco real de tido cresce principalmente porque degeneração. Como se num dilema de um partido de se transformou, aos olhos do povo, insolúvel a escolha estivesse entre quadros para um numa organização capaz de prodegenerar ou fenecer. Ainda bem mover a ascensão política e social que, felizmente, crescer é inexorápartido de massas e de seus membros. Como essa persvel tanto quanto arriscado. Por isso, de quadros pectiva anima as disputas internas, haveremos de crescer aumentando alimenta o oportunismo e estimula o número de quadros, desenvolveno carreirismo, o Partido deve estar do ação de massas, intervindo instipreparado para incorporar os seus filiados e formar os tucionalmente, sendo protagonistas das lutas do povo seus militantes de modo que venham a se tornar quae ganhando a sua confiança para debater a construdros orgânicos, capazes de garantir a sustentabilidade ção do socialismo desde já. ao processo de crescimento. O programa de formação e capacitação dos quadros é, sem dúvida, a única ar* Antônio Levino é doutor em Saúde Pública, ma capaz de viabilizar a transição de um partido de médico, professor da Universidade Federal quadros para um partido de massas e de quadros, sem do Amazonas (Ufam), pesquisador da Fiocruz, se degenerar como ocorreu com a maioria das organimembro do Comitê Central e presidente zações do contexto partidário atual, no mundo todo. Municipal do PCdoB em Manaus/AM São muitas as contradições antigas ou novas que se precisa aprender a tratar nesta realidade sob pena de fracassar. A contradição entre o velho partido e o novo partido; entre o partido grande e o partido peNota queno; entre o partido de quadros e o partido de massas; entre o partido existente no interior do estado; (1) Os subtítulos 1 e 2 foram publicados na primeira parte do artigo, na edição 135 de Princípios, e correspondem, entre o partido eleitoral, ideológico e o partido de ação respectivamente, aos temas: 1-) Pós-modernidade e política ampla; entre o trabalho partidário assalariado crise de representação partidária e 2-) Pós-modernidade, e o trabalho voluntário; entre a direção e as bases parmarxismo e revolução. tidárias, entre as relações partidárias internas e externas. O mesmo partido que soube preservar as regras Bibliografia consultada e os princípios organizativos do tipo leninista deve continuar fazendo o mesmo, porém, desta feita com a Na construção deste texto fez-se uso livre das ideias finalidade de realizar a ação política ampla. contidas no artigo “Em defesa da história: o marxismo e a agenda pós-moderna”. Tradução de João Roberto Martins Quanto ao trabalho de dirigir a vasta inserção de Filho. In: Revista Crítica Marxista, vol. 1, nº 3, 1996. Os massas que devemos construir, a tendência aponta conceitos sobre partidos políticos foram consultados para a mudança na cadeia de comandos que deve em BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, passar a reconhecer a reciprocidade como uma nova Gianfranco. Dicionário de Política. 5ª ed. Brasília: Editora qualidade a ser cultivada, dado que o poder se torUniversidade de Brasília, 1993. na mais horizontal quando a autoridade da direção partidária formal passa a ser compartilhada com as Errata: Junto à primeira parte deste artigo, publicada estruturas de governo e instituições que passamos a na edição 135 de Princípios, foi colocada no final do dirigir. Sendo assim, o mais adequado é incorporar a texto uma coluna de notas que não têm relação com o noção de rede nas relações entre essas estruturas e a conteúdo deste artigo. 53 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 A guerra de libertação da Coreia: 1950-1953 Parte 2 Monumento à vitoriosa libertação da pátria em Pyongyang – Coreia do Norte Raul Carrion* O primeiro artigo mostrou como a Coreia lutou e derrotou o poderoso e cruel imperialismo japonês, apoiado pelo aliado norte-americano. Ao final da Segunda Guerra Mundial, o Japão esgotado é expulso por Kim Il Sung e a URSS, mas os EUA decidem ocupar o vácuo colonial abrindo uma nova disputa, agora ideológica. Há 65 anos, os EUA partiam para sua primeira grande derrota imperialista, descrita neste segundo artigo sobre este período de profundas definições geopolíticas na Ásia 54 História As sucessivas provocações armadas sul-coreanas sucedeu o governo de ocupação dos EUA na Coreia – afirmou aos comandantes sul-coreanos Chae Pyong Doc e Kim Sok Won que “a presente invasão do Norte servirá de bom terreno de experimentação para urante todo o ano de 1949, as incura guerra civil iminente; o combate permitirá adquirir sões de tropas sul-coreanas ao terriconhecimentos vivos através de um contato direto com o tório do Norte – que já ocorriam desinimigo.” (1). de 1947 – recrudesceram, deixando E Kim Sok-Won, comandante das tropas sul-coclaro que o Sul buscava a guerra. reanas no Paralelo 38, afirmou à CONUC que a peEm Kaesong, no dia 4 de maio, um ataque de nínsula vivia um estado de guerra tropas do Sul durou quatro dias, e que “devemos contar com um procausando a morte de 400 soldados grama para recuperar nosso território norte-coreanos e 22 sul-coreanos, O historiador perdido, a Coreia do Norte, atravessanalém de mais de 100 civis, segunnorte--americano do a fronteira do Paralelo 38, fixada em do dados oficiais estadunidenses e 1945”. E o historiador norte-amesul-coreanos. Entre 21 de maio e 7 Bruce Cumings ricano Bruce Cumings reconhece de junho, efetivos da 1ª Divisão do reconhece “A razão que “a guerra que eclodiu em junho de Exército sul-coreano, com apoio 1950 produziu-se depois de uma guerra aéreo, atacaram os montes Kuksa, pela qual a guerra de guerrilhas e nove meses de combate Unpha, Kachi e Pidulgi, ocupannão eclodiu em ao longo do Paralelo 38, durante 1949. do-os por algum tempo, mas logo (...) A razão pela qual a guerra não 1949 (...): o Sul foram expulsos. Em fins de junho, eclodiu em 1949 (...): o Sul queria uma atacaram o monte Unpha, tomanqueria uma guerra, guerra, mas o Norte não” (2). do-o e ali se encastelando. No dia mas o Norte não” Em 4 de agosto de 1949, diante da 6 de julho, atacaram o monte Koocupação do Monte Unpha por trosan, mas sem conseguir tomá-lo. pas sul-coreanas, o Exército Popular Em 25 de julho, atacaram e ocuda Coreia contra-atacou, aniquilando-as por completo. param o monte Song-Ak, mas foram expulsos. Diante desse desastre, diversos comandantes militares Em julho de 1949, o general W. L. Roberts, chefe do Sul propuseram um ataque geral contra o Norte, o do Grupo Assessor Militar da Coreia (GAMC) – que D Caminhões militares cruzando o Paralelo 38 que divide as Coreias depois da Segunda Guerra Mundial 55 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 que acabou não ocorrendo. Em 23 de agosto, diversos quear qualquer possibilidade de reunificação pacífica barcos da Marinha do Sul invadiram o Rio Taedong – da Coreia e incentivavam o confronto. na Coreia do Norte – e afundaram quatro embarcações No mês de junho, três emissários enviados penorte-coreanas de 35 a 45 toneladas. Em 18 de agosto, lo Norte para tratar da reunificação foram sumariauma frota naval sul-coreana bommente fuzilados. Em 18 de junho, bardeou Monggumpho, na províno republicano John Foster Dulles – Apesar de cia de Hwanghae, no Norte, litoral defensor de um confronto prevenconstantemente Oeste da Coreia. tivo com a URSS, antes que esta alEm setembro de 1949, Egon cançasse a paridade nuclear com os agredida, a Coreia Ranshofen-Wertheimer, membro EUA – iniciou uma visita à Coreia, do Norte respondia da CONUC, informou que “a tentaque teve a característica de uma ção de Rhee por invadir o Norte e a pres“revista às tropas” e de uma verificom uma ampla são exercida sobre ele para fazê-lo pode, cação sobre seus preparativos guercampanha pela assim, tornar-se incontrolável. As autoreiros no Paralelo 38. Nesse mesmo ridades militares mais altas da Repúblidia o secretário da Defesa Louis reunificação pacífica, ca (...) estão exercendo uma pressão perJohnson e o general Bradley chesem ingerências manente sobre Rhee para que ele tome a garam a Tóquio para conferenciar estrangeiras. Para iniciativa e cruze o paralelo.” (3). com o general MacArthur. Segundo Em outubro de 1949, Syngman informaram, para se inteirarem de bloquear essa Rhee discursou a bordo de um navio fatos “que afetam a segurança dos Escampanha – que de guerra dos EUA, ancorado em Intados Unidos e a paz do mundo” (7). chon, dizendo que o Sul podia tomar Destaque-se, ainda, que em 30 contava com Pyongyang em três dias, queixandode maio havia ocorrido eleições pacrescente simpatia se de que só não fazia isso porque ra a Assembleia Nacional Coreana, da população do Sul os Estados Unidos temiam que isso nas quais Syngman Rhee sofrera precipitasse a terceira guerra munimportante derrota, tendo a oposi–, o Congresso dos dial. E o ministro da Defesa, em enção eleito 128 das 210 vagas no parEUA aprovou a Lei trevista coletiva realizada em 31 de lamento. Politicamente acuados, outubro, declarou que suas tropas Rhee e os norte-americanos comede Ajuda à Coreia, estavam preparadas para avançar çaram a ver na guerra com o Norte que procurava sobre a Coreia do Norte: “Se pudésuma saída para a sua crise política. semos manejar-nos por conta própria, já bloquear qualquer A eclosão da Guerra da (...) teríamos começado (...) Temos força reunificação Coreia suficiente para avançar e tomar Pyongpacífica da Coreia yang em uns poucos dias.” (4). No dia 25 de junho de 1950, pela Em janeiro de 1950, Preston e incentivava o manhã teve início a “Guerra da CoGoodfellow, assessor de Syngman confronto reia”, que durante três anos manteRhee, informou ao Embaixador de ve o mundo à beira de uma Terceira Taiwan nos Estados Unidos, WelGuerra Mundial e causou sofrimentos indescritíveis lington Koo, que “eram os sul-coreanos que estavam anao povo coreano. Até hoje se discute quem deu o “prisiosos por penetrar na Coreia do Norte, devido ao fato de já meiro tiro”. O fundamental, porém, é identificar quem se sentirem prontos, com seu exército de 100.000 homens impôs a divisão artificial da Coreia, quem bloqueou e bem treinados.” (5). bloqueia até hoje a reunificação pacífica do país e quem Apesar de constantemente agredida, a RPDC resmultiplicou entre 1947 e 1950 as provocações armadas. pondia com uma ampla campanha pela reunificação Em 23 de junho, às 22h, as forças sul-coreanas pacífica da Coreia, sem ingerências estrangeiras. Para iniciaram um ataque ao Monte Unpha – palco de bloquear essa campanha – que contava com crescente agressão semelhante em fins de junho de 1949 –, simpatia da população do Sul –, o Congresso dos EUA que prosseguiu até 4h da manhã do dia 25. E, nas aprovou em fevereiro de 1950 a Lei de Ajuda à Coreia, primeiras horas do dia 25 de junho, o 17º Regimento que estabelecia que essa ajuda fosse suspensa “caso da Coreia do Sul atacou os norte-coreanos que defenseja formado na República da Coreia um governo de coalizão diam o Monte Turak, em Onjin. Às 11h da manhã, que inclua um ou mais membros do Partido Comunista ou os sul-coreanos divulgaram que seu 17º Regimento do partido que atualmente controla o governo da Coreia do havia tomado a cidade de Haeju, na Coreia do Norte. Norte.” (6). Através dessa lei os EUA procuravam blo- 56 História Bombardeios preventivos de aldeias por tropas da ONU tornaram-se rotina para evitar o avanço comunista Referindo-se a essa ocupação de Haeju (8) – da qual a Coreia do Sul se vangloriou publicamente –, o historiador norte-americano Bruce Cumings afirma que “este livro não pode excluir a possibilidade de que tenha sido o Sul que tenha iniciado os combates em Ongjin, diante da perspectiva da tomada imediata de Haeju.” (9). Corroborando isso, John Gunther, biógrafo de Mac Arthur, relata em The Ridle of MacArthur, p. 165, que “dois importantes membros das forças de ocupação realizaram a excursão a Nikko e (...) um deles ‘foi inesperadamente chamado ao telefone’. Ao regressar, disse em voz baixa: ‘acaba de se iniciar uma grande confusão. Os coreanos do Sul atacaram a Coreia do Norte’” (10). Posteriormente, Gunther, sem convencer ninguém, sustentaria que esta informação era equivocada, baseada numa versão da Coreia do Norte. Em resposta ao ataque sul-coreano, o Exército Popular da Coreia iniciou uma grande contraofensiva, que em poucos dias levaria à tomada de Seul. ONU empresta sua bandeira à agressão norte-americana à Coreia Com uma rapidez que desperta suspeitas, às três horas da manhã do dia 25 de junho, tão logo tiveram início os combates, os EUA telefonaram para o secretário-geral da ONU, Trygve Lie, e dele exigiram a convocação do Conselho de Segurança da ONU que – com as ausências da China Continental, excluída do Conselho de Segurança, e da URSS, que poderia vetar qualquer deliberação – reuniu-se na manhã do próprio dia 25. Baseado unicamente em informações dos EUA e da Coreia do Sul e totalmente manipulado pelos Estados Unidos, o Conselho decidiu responsabilizar a Coreia do Norte pelo ataque e exigiu que ela suspendesse os combates. Sem autorização do Congresso, o presidente Truman determinou a intervenção militar norte-americana (caracterizada como “ação policial”, para driblar a exigência constitucional), o bloqueio naval e o bombardeio da Coreia do Norte. Além disso, aproveitou o pretexto para postar uma poderosa frota naval entre a China Continental e Formosa (Taiwan), em apoio a Chiang Kai Check. No dia 27, o Conselho de Segurança – em vez de tentar mediar o conflito – aprovou resolução dando cobertura legal ao ataque norte-americano e conclamando todos os membros das Nações Unidas a se somarem às forças intervencionistas. E o que é pior, entregou o comando das “tropas da ONU” ao general MacArthur, sem estabe- 57 Ed.Ed. 136133 – Maio/Junho – Nov/Dez 2014 2015 lecer qualquer supervisão da ONU sobre suas ações. A partir daí, os Estados Unidos, a Coreia do Sul e mais 15 nações – Inglaterra, França, Canadá, Itália, Bélgica, Holanda, Austrália, Nova Zelândia, Irlanda, Dinamarca, Grécia, Turquia, África do Sul, Filipinas e Colômbia – uniram-se na agressão à Coreia do Norte, contribuindo com tropas, armas, mantimentos e apoio logístico. O Brasil, fortemente pressionado para engajar-se na Guerra da Coreia, negou-se a fazê-lo, por conta da Elisa Branco em meio a criancas coreanas ao receber o Prêmio Lenin da Paz forte campanha contrária, liderada pelo ricanos até o perímetro de Pusan, libertando mais Partido Comunista do Brasil. de 90% do território e 92% da população da Coreia. Nos territórios libeO avanço avassalador rados foram reconstruídos os Comitês Derrotado em todas das tropas da Coreia do Populares que haviam sido liquidados Norte as frentes e cercado pelos norte-americanos e foram disno perímetro de tribuídas aos camponeses pobres as Apesar da sua inferioridade terras dos latifundiários: 43,3% das em número, em armamento e Pusan, “MacArthur terras cultiváveis na zona liberada em apoio aéreo e naval, as tropas enviou uma foram confiscadas e distribuídas granorte-coreanas – demonstrando tuitamente a um milhão e 267 mil grande capacidade estratégica mensagem urgente famílias camponesas. e tática e alta combatividade – (...), em que solicitava No dia 9 de julho, derrotado em avançaram rapidamente, pondo (...) ‘que considerasse todas as frentes e cercado no períem fuga tanto as tropas sulmetro de Pusan, “MacArthur enviou -coreanas (consideradas pelos se as bombas uma mensagem urgente a Matthew RidEUA como “o melhor exército Atômicas iam estar gway, em que solicitava ao Estado-Maior da Ásia”), quanto os até agora Conjunto ‘que considerasse se as bombas “invencíveis” norte-americanos. ou não à disposição’; Atômicas iam estar ou não à disposição Nesse avanço, contaram com o Não obstante, do general MacArthur’. Foi solicitado apoio de forças guerrilheiras do então ao general Charles Bolte, chefe de o Estado-Maior Sul da Coreia. Em três dias tomaoperações, que falasse com MacArthur ram Seul. Logo após uma pausa Conjunto rechaçou o acerca do uso de bombas atômicas ‘em para consolidarem o seu avanço, uso da bomba” apoio direto aos combates terrestres’; poprosseguiram no dia 5 de julho deriam ser disponibilizadas entre 10 e em direção ao Sul, tomando Tae20 bombas (...) não obstante, o Estadojon. Em fins de agosto, haviam -Maior Conjunto rechaçou o uso da bomba.” (11). empurrado os exércitos sul-coreanos e norte-ame- 58 História Marylin vai a Ásia – com o apoio de Hollywood a invasão dos EUA à Coreia se tornou ainda mais constrangedora a derrota Em sua desabalada retirada, as tropas estadunidenses e sul-coreanas realizaram todo tipo de massacres de civis suspeitos de serem comunistas ou de colaborarem com os norte-coreanos. Em agosto, Alan Winnington publicou no Daily Worker de Londres que “a polícia sul-coreana, sob a supervisão dos assessores do GMAC, havia massacrado 7.000 pessoas na aldeia de Yangwol, perto de Taejon, entre 2 e 6 de julho. (...) chegaram caminhões da polícia na região e fizeram com que fossem cavados seis poços, a duzentos metros um do outro. Dois dias depois, foram conduzidos ao lugar uma série de prisioneiros políticos, sendo executados (tanto através de um balaço na nuca como pela decapitação) e atirados nas fossas uns sobre os outros, ‘como sardinhas’. (...) As fontes sul-coreanas inicialmente falaram em 4.000 mortos (logo mudaram essa cifra para 7.000, alguns meses depois)” (12). Os EUA adotaram uma política de terra arrasada e de bombardeio indiscriminado das populações civis: “As forças estadunidenses começaram a queimar as aldeias suspeitas de abrigar guerrilheiros e, em alguns casos, simplesmente as queimaram para negar às guerrilhas um possível lugar onde esconder-se.” Segundo o correspondente britânico Reginald Thompson, “o imenso poder das armas modernas foi desafiado por um punhado de camponeses providos de uns poucos rifles e carabinas e de uma coragem desesperada (...) sofrendo sobre si e sobre o resto dos habitantes o espantoso horror das bombas in- cendiárias (...). Cada povo e aldeia no caminho da guerra eram borrados do mapa (...) eliminando cegamente gente remota e desconhecida, gerando holocaustos de morte, uma verdadeira produção em massa da morte, espalhando uma desolação abismal sobre comunidades inteiras.” (13). EUA rejeitam proposta da URSS de um acordo de paz e eleições gerais Quando, em inícios de julho, o indiano Nehru se propôs realizar uma mediação, o Departamento de Estado dos EUA respondeu que “o cessar-fogo e o retorno dos coreanos do Norte ao Paralelo 38 eram condições mínimas e irredutíveis” para a paz. Mas quando, em fins de julho, a URSS somou-se a essa iniciativa e propôs um acordo de paz e eleições gerais “tanto no Norte como no Sul, para eleger um só governo de toda a península”, os EUA se opuseram com veemência, mostrando toda a sua hipocrisia. O correspondente chefe do New York Times nas Nações Unidas deixou claras as razões disso: “A dificuldade consiste em que há muita probabilidade de que os comunistas obtenham uma grande maioria se as eleições se celebram antes que se tenha derrotado e desfeito a comunização da Coreia do Norte, e antes que o programa de reconstrução da ONU haja amortecido o ressentimento do Norte e do Sul, causado pela destruição de lares feita no 59 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Antes da entrada da China a correlação de 5 soldados da ONU para um coreano levou MacArthur a ousar avançar sobre o Norte em vez de apenas expulsar os comunistas do Sul curso da liberação pelas forças da ONU. Nesse caso, o comunismo viria a ganhar, mediante eleições, o que não pode obter com a invasão.” (14). Ou seja, as eleições só eram bem-vindas se houvesse a certeza da vitória de Syngman Rhee, aliado dos Estados Unidos. E quando, em 28 de setembro, Inglaterra, Austrália, Canadá, Noruega e Filipinas apresentaram uma resolução prevendo eleições em ambas as zonas, um dos delegados que a elaborou afirmou que “era possível que sob esse plano se criasse uma Coreia unificada comunista, em quatro ou cinco anos. As esperanças de uma vitória democrática aumentarão, se acredita, se as eleições forem adiadas até que um programa 60 Quando a URSS somou-se à iniciativa pelo cessar-fogo e propôs um acordo de paz e eleições gerais “tanto no Norte como no Sul, para eleger um só governo de toda a península”, os EUA se opuseram com veemência, mostrando toda a sua hipocrisia de ajuda das Nações Unidas comece a reparar a destruição causada pela guerra e se possa fazer um esforço para enfrentar a influência comunista na Coreia do Norte.” (15). Não pode haver uma confissão mais clara de que o regime do Norte contava com amplo apoio popular tanto no Norte como no Sul. Aos poucos, a máquina de guerra norte-americana, apoiada por 15 nações, começou a pesar na balança: “no dia 29 [de agosto] quase 2.000 homens pertencentes à 27ª Brigada de Infantaria Inglesa chegaram a Pusan, vindos de Hong Kong. Cinco batalhões de blindados, com cerca de 69 tanques cada um, também chegaram em agosto, e no fim do mês a ONU já tinha muito mais de 500 tanques no perímetro (...). História Esse número dava à ONU uma superioridade de quase 5:1 naquela área. Assim, com a superioridade no ar já garantida, a ONU estava agora em boas condições para manter suas linhas e atacar quando chegasse a hora.” (16). O desembarque dos EUA em Inchon e a retirada norte-coreana Em 15 de setembro, enquanto a situação mantinha-se crítica em Pusan, os Estados Unidos realizaram o desembarque de 83 mil soldados estadunidenses, mais 57 mil sul-coreanos e britânicos, em Inchon, na retaguarda das tropas norte-coreanas – utilizando 261 navios e o apoio de mais de mil aviões. Isto criou um perigo mortal para as tropas norte-coreanas, que tiveram que levantar o cerco a Pusan e realizar uma rápida retirada em direção às regiões montanhosas do Norte, visando a preservar suas forças. Sua retirada foi facilitada pela renhida batalha pela retomada de Seul, que manteve ocupadas as tropas norte-americanas e aliadas até o final de setembro, causando-lhes enormes baixas. À medida que se retiravam, as tropas norte-coreanas semeavam inúmeros grupos guerrilheiros no caminho, que passaram a fustigar as tropas estadunidenses e foram decisivos no contra-ataque posterior. Em Seul, a vingança dos novos senhores da capital foi terrível: “Idosos, gestantes e crianças cavaram valas, para nelas serem amontoados uma hora depois. (...) As mulheres correspondiam a um terço dos quatro mil camaradas. Centenas delas, comunistas e colaboracionistas, foram deixadas em bordéis, para serem violentadas por coreanos e soldados da ONU. Os carrascos da polícia de Syngman Rhee (...) se encarregaram da matança dos que pertenciam aos comitês populares por estes criados, aí se incluindo os dirigentes e os familiares dos dirigentes. Um levantamento oficial realizado na Coreia do Norte apontou 29 mil vítimas da vingança sulista.” (17). Nesse momento, colocou-se uma nova questão para os Estados Unidos: o seu avanço devia deter-se no Paralelo 38 ou devia continuar em direção ao Norte? Apesar das advertências transmitidas por Nehru de que os chineses não tolerariam o avanço das tropas norte-americanas além do Paralelo 38, Truman – incitado por MacArthur, que tudo fazia para transformar a Guerra da Coreia em uma cruzada contra o comunismo mundial, ainda que à custa de uma conflagração nuclear – decidiu fazê-lo. Isso apesar de o mandato da ONU não autorizá-lo a tanto. Ambos interpretaram a retirada norte-coreana como a ruína total do exército norte-coreano e avaliaram a ameaça chinesa como um blefe. Do alto da sua prepotência, MacArthur afirmou que os comunistas chineses “não dispõem de cobertura aérea; se tentarem a travessia com tropas terrestres vai ser a maior das carnificinas. Serão aniquilados.” (18). Assim, os mesmos que “indignados” haviam acusado a Coreia do Norte de ter cruzado o Paralelo 38 – fazendo com que o Conselho de Segurança da ONU a condenasse por isso – agora afirmavam que o Paralelo 38 era uma “mera linha imaginária” e que o objetivo da ONU era a reunificação da Coreia sob o governo de Syngman Rhee. “Em outras palavras, o paralelo que cortava em duas a Coreia era um limite internacionalmente reconhecido se os cruzassem os coreanos, mas não o era se o cruzassem os estadunidenses.” (19). Para a sua expedição ao Norte, MacArthur reuniu um corpo expedicionário de mais de 300 mil norte-americanos armados até os dentes, aos quais se somavam centenas de milhares de sul-coreanos e soldados de outros 15 países aliados. Em 2 de outubro, MacArthur apresentou um ultimato à Coreia do Norte: sua única alternativa era a capitulação incondicional. O que, evidentemente, não foi aceito pelos norte-coreanos. Iniciava-se uma nova etapa da Guerra de Libertação da Coreia. *Raul Carrion é historiador e presidente da seção gaúcha da Fundação Maurício Grabois. No PCdoB desde 1969, foi vereador de Porto Alegre por dois mandatos e eleito duas vezes deputado estadual. Notas (1) Compilação de provas documentais da provocação pelos imperialistas americanos da Guerra Civil da Coreia. Pyongyang, p.115. (2) CUMINGS, idem, p. 276-278. (3) New York Herald Tribune, 30 de outubro de 1949. (4) Idem, 1º de novembro de 1949. (5) CUMINGS, idem, p. 284. (6) New York Times, 20 de junho de 1950. (7) Daily Mail, Londres, 19-06-1950, edição parisiense. (8) O New York Times, o New York Herald-Tribune e o Washington Post informaram que em 25 de junho duas companhias do 17º Regimento haviam ocupado Haeju. O delegado militar do Reino Unido em Tóquio telegrafou em 27 de junho, avisando que dois batalhões do 17º Regimento tinham ocupado Haeju (FO317, fragmento nº 84057, Gascoigne a FO, 27 de junho de 1950). (9) CUMINGS, idem, p. 293. (10) STONE, Irving F. La historia oculta de La Guerra de Corea. Cuba, 1952, p. 62. (11) CUMINGS, idem, p. 304. (12) Idem, p. 305. (13) Idem, p. 300; 303-304. (14) New York Times, 24-08-1950 (15) New York Times, 29-09-1950 (16) HEIFERMAN, R.; SHERMER, D. & MAYER, S. L. Guerras do Século 20. Rio de Janeiro, 1975, p. 463. (17) FRIEDRICH, idem, p. 243. (18) FRIEDRICH, idem, p. 259. (19) CUMINGS, idem, p. 309. 61 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 70 anos da vitória dos povos contra o nazismo Socorro Gomes* Soldados do Exército Vermelho comemoram vitória erguendo bandeira da União Soviética sobre as ruínas do Reichtag A presidenta do Conselho Mundial da Paz e do Centro Brasileiro pela Paz e Solidariedade entre os Povos (Cebrapaz), Socorro Gomes, participou, em Moscou, no último dia 7 de maio, do Encontro entre Organizações Internacionais Democráticas, organizado pela bancada parlamentar do Partido Comunista da Federação Russa. O evento fez parte das celebrações do 70º aniversário da vitória dos povos contra o nazi-fascismo e Socorro Gomes integrou a mesa-redonda 1945-2015: Anos de Luta, Novos Desafios. Em sua fala, sublinhou a disseminação da resistência popular contra o retrocesso civilizacional imposto pelas forças alemãs, italianas e japonesas e o decisivo e heroico protagonismo do Exército Vermelho soviético no combate ao nazi-fascismo 62 História Leia a íntegra do discurso de Socorro Gomes na Rússia: A vitória sobre o nazi-fascismo: glorioso acontecimento na história da humanidade. O Conselho Mundial da Paz sente-se honrado de participar deste evento para celebrar o 70º aniversário de um dos acontecimentos mais gloriosos da história da humanidade: a vitória dos povos sobre o nazi-fascismo, uma conquista das forças da paz, da democracia, da solidariedade e do progresso social. A Segunda Guerra Mundial foi uma tragédia que custou a vida a mais de 50 milhões de pessoas e devastou principalmente a Europa, causando a destruição da infraestrutura e dos lares e impondo horrendas consequências à população. Inclinamos nossas bandeiras ante o sacrifício dos povos, aos mártires civis e militares que perderam suas vidas, muitos deles vítimas de inomináveis crimes, na luta para libertar a humanidade do nazi-fascismo, defender as liberdades democráticas, os direitos sociais, a soberania nacional e reconquistar a paz. Os povos da União Soviética pagaram um terrível preço, com a vida de 27 milhões de pessoas e a insólita destruição de milhares de cidades, povoados, lares e fábricas. As vitórias do Exército Vermelho nas históricas batalhas de Moscou, Stalingrado, Kursk e Berlim permanecerão indelevelmente marcadas na memória da humanidade, como o tributo dos povos soviéticos para a causa da libertação. A vitória sobre o nazi-fascismo foi fruto das heroicas ações nos campos de batalha e da união dos povos e das forças democráticas no âmbito de cada país, além da ação de uma grande aliança internacional, de que fizeram parte a União Soviética, o Reino Unido e os Estados Unidos. Um poderoso fator para a vitória foi o combate dos povos dos países ocupados pelo fascismo, que organizaram a luta guerrilheira e a resistência entre as amplas camadas da população, organizações sociais e partidos políticos. No continente europeu, as resistências populares italiana, francesa, albanesa, belga, grega, holandesa, húngara, norueguesa, iugoslava, romena, polonesa, dinamarquesa, austríaca, tcheco-eslovaca, britânica e mais de uma dezena de movimentos alemães antinazistas foram resolutas no enfrentamento às invasões e às ocupações dos seus países. No restante do mundo, os povos também se levantaram contra a brutal ofensiva alemã, italiana e No palanque e na marcha, a presidenta do CMP e do Cebrapaz, Socorro Gomes japonesa. Foi o caso dos movimentos de resistência na Ásia – na China, Índia, Coreia, Malásia, Tailândia, Vietnã, Cingapura, Filipinas –, e dos movimentos japoneses de oposição à guerra. Entre os latino-americanos, foi intensa a luta antifascista e a mobilização de forças para se incorporarem ao esforço de guerra dos aliados alcançou êxito em diferentes países. A vitória foi, assim, a expressão e o resultado da fraternidade internacionalista entre os povos, na busca pela liberdade, a democracia, a independência e a justiça. A Segunda Guerra Mundial eclodiu como um confronto entre as grandes potências capitalistas, tendo sido provocada pelos países mais agressivos – a Alemanha nazista, a Itália fascista e o Japão. O grande conflito foi o resultado do desenvolvimento desigual no mundo capitalista. A luta por mercados e fontes de matérias-primas era o pano de fundo que empurrava as potências capitalistas à guerra por uma nova divisão do mundo por meio da violência. Tendo sua origem nas contradições entre países imperialistas, a Segunda Guerra Mundial foi gradualmente mudando de caráter. Os povos dos países ocupados, principalmente a partir da agressão nazista à União Soviética, ergueram-se na resistência popular-nacional antifascista, passando a realizar uma justa luta democrática e de libertação nacional. 63 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Os próprios Estados capitalistas, a partir do dedos os continentes, saqueou as riquezas nacionais sencadeamento da guerra, viram-se confrontados dos povos, impôs seu modelo econômico e políticas com uma ameaça à sua própria soberania nacional, escravizadoras e neocolonialistas. Organizou sua poo que criou condições para a formação de um amplo lítica externa com o objetivo de desestabilizar os paíe poderoso movimento patriótico e antifascista. ses socialistas e anti-imperialistas, concentrou suas Revoluções democráticas, populares e de libertaenergias no cerco e destruição da União Soviética ção nacional foram vitoriosas. O caráter libertador da durante o período da chamada Guerra Fria. luta antifascista dos povos, o papel decisivo da União Um dos principais aspectos da ação imperialista é Soviética e das massas trabalhadoras e populares na a militarização, que cobrou impulso a partir da criavitória e a derrocada do fascismo deram impulso aos ção da Organização do Tratado do Atlântico Norte movimentos democráticos e socialistas em todo o (Otan), em abril de 1949, originalmente com a parmundo. Debilitou-se o sistema colonialista. Tudo isticipação dos Estados Unidos, Reino Unido, França, so acarretou uma nova correlação Bélgica, Holanda, Luxemburgo, de forças favorável ao avanço das Portugal, Dinamarca, Noruega, Islutas pela paz. As forças da demolândia e Itália, ampliando-se logo No momento em cracia, da paz e do progresso social em seguida, em 1952, com a preque comemoramos saíram fortalecidas, acarretando sença da Turquia, Grécia e Repúblio 70º aniversário importantes transformações geoca Federal da Alemanha. políticas. A organização tem hoje 28 Estada vitória sobre o Neste quadro, o imperialismo dos membros, da América do Norte nazi-fascismo, o estadunidense inicia uma cone da Europa. E outros 22 países estraofensiva para assegurar positão engajados no chamado Consemundo enfrenta ções hegemônicas e ordenar o sislho de Parceria Euro-Atlântico. Ao novos perigos, tema internacional segundo seus seu lado, outros 19 países estão lipróprios interesses. O lançamento gados à Otan através de programas as intervenções das bombas atômicas sobre Hicomo o Diálogo do Mediterrâneo, a militares se repetem, roshima e Nagasaki pela aviação Iniciativa de Cooperação de Istama paz é ameaçada, estadunidense foi o ato inaugubul ou a Parceria para a Paz. ral da nova ordem que os Estados Desde 1991, a Otan expandiu o e o fascismo volta Unidos pretendiam impor. quadro de membros e o teatro de a se apresentar Desde o final da Segunda operações, o que por si só revela o Guerra Mundial até os nossos seu objetivo fundamental de ser com novas e velhas dias, o imperialismo estadunidenuma ferramenta primordial na doroupagens se seguiu uma política e praticou minação imperialista ocidental soações contrárias aos interesses dos bre o planeta, uma inimiga da paz, povos, da democracia, da indepencomprometida com as doutrinas dência nacional e da paz mundial. Foi esse imperiado primeiro ataque e dos ataques preventivos. Colismo que desencadeou as agressões contra a Coreia, mo uma aliança militar ofensiva, a Otan está sempre o Vietnã e demais países da Indochina, no Oriente pronta para intervir antes mesmo de a diplomacia Médio, na África, e fomentou golpes militares na ter sua chance, caso ela seja de interesse das potênAmérica Latina. Foi também esse imperialismo que cias imperialistas. O agigantamento da Otan, que a mais tarde, a partir do final do século 20 e início do torna mais poderosa, agressiva e intervencionista – século 21, agrediu e destruiu a Iugoslávia, fez duas como a atual crise na Ucrânia demonstra –, constitui guerras contra o Iraque, invadiu o Afeganistão, desum fator ponderável para aumentar a instabilidade, truiu a Líbia e confirmou sua condição de potência as turbulências e o perigo de guerra. corresponsável pelo martírio do povo palestino ao No momento em que comemoramos o 70º aniapoiar a ocupação sionista israelense. versário da vitória sobre o nazi-fascismo, o mundo Desde o fim do conflito, o imperialismo estaduenfrenta novos perigos, as intervenções militares se nidense fomentou a corrida armamentista, intensirepetem, a paz é ameaçada, e o fascismo volta a se ficou a produção de armas nucleares, espalhou bases apresentar com novas e velhas roupagens. Mais do militares em todos os continentes, promoveu interque nunca, impõe-se extrair as lições da experiênvenções de diferentes tipos, numa constante ameaça cia histórica e adquirir elementos de convicção para à paz mundial e à segurança internacional. unir as forças democráticas e progressistas a fim de Este imperialismo cravou as suas garras em toimpedir que ocorram novas tragédias. Os fatos evi- 64 História Dmitry Lovetsky/AP Photo Cidadãos russos carregam retratos de participantes na Segunda Guerra Mundial em São Petersburgo , Rússia, sábado, 9 de maio, 2015 denciam o caráter desestabilizador e potencialmente destrutivo das políticas agressivas dos EUA e seus aliados na Otan. Tendo fracassado na criação de um ambiente de hostilidade no passado recente, como foi o caso do conflito na Geórgia, os EUA coordenam agora as forças reacionárias e fascistas para tentar cercar a Rússia, a exemplo da crise instalada na Ucrânia. Mais uma vez, os povos pagam o preço: o sofrimento infringido aos civis ainda é inestimável e a turbulência no Leste Europeu traz grande retrocesso à construção da paz na região, com a reinstalação das forças fascistas, a soldo do imperialismo. O mundo de hoje é cenário de uma situação instável e crítica. As grandes conquistas democráticas do período do imediato pós-guerra, a independência nacional, os valores civilizacionais sofreram brutal retrocesso a partir da década de 1990 do século passado, quando o traço principal da situação passou a ser uma intensa e abrangente ofensiva do imperialismo estadunidense e seus aliados para assegurar posições de domínio no mundo. Para além das políticas intervencionistas e militaristas, fazem parte dessa ofensiva o ataque aos direitos dos trabalhadores e povos como “saída” da crise do capitalismo, os golpes na democracia, o racismo, a xenofobia, a falsificação da história. Num quadro internacional em mutação, está em jogo uma nova divisão do mundo, o saque das riquezas nacionais, a ocupação de territórios, a implantação de uma ordem imperial que além de ter globalizado a economia e padronizado os comportamentos, pretende uniformizar os regimes políticos, a vida cultural, a ideologia reacionária como pensamento único. Malgrado a retirada das tropas estadunidenses e da Otan do Iraque e outras recentes flexões táticas na política externa norte-americana, a humanidade continua confrontada por uma feroz investida do imperialismo estadunidense para impor sua vontade no mundo, o que faz crescer o intervencionismo, as ameaças e as agressões. O direito internacional e as instituições criadas para assegurar o exercício de relações internacio- 65 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 nais equilibradas não subsistem como tais, em decorrência da instrumentalização pelos interesses de potências hegemônicas. A Organização das Nações Unidas, criada para promover a coexistência pacífica entre nações soberanas, assegurar o equilíbrio no mundo, garantir a aplicação das normas do Direito Internacional, dirimir os conflitos internacionais e promover a paz mundial, atua sob pressão das potências imperialistas que cada vez mais impõem o seu ditame no mundo pela força. A política hegemonista do imperialismo destrói países, devasta nações antes prósperas, derruba governos legítimos, assassina presidentes eleitos, substitui o diálogo pela força implantando o terror, sob o pretexto de combater o terrorismo, com a finalidade de garantir seus desígnios de domínio e saque. Esta política é a principal ameaça à paz e é o principal fator da instabilidade, dos desequilíbrios e das crises políticas, diplomáticas e militares no mundo. Por outro lado, é preciso reconhecer importantes transformações na situação internacional, em que se fortalecem profundas demandas emancipatórias que colocam em questão a política dominante e a desigual distribuição do poder. Embora os EUA ainda detenham a maior força econômica e militar, assim como a maior influência política, há elementos na situação que fazem crer que se trata de uma potência em declínio, que já não pode fazer o que quer, pois se confronta com a resistência dos povos e de nações que defendem a paz. Também notamos o surgimento de novos polos de poder político, econômico e militar, cuja expressão maior é a ascensão vertiginosa da China, o fortalecimento do poder nacional da Rússia, depois de um momento de desagregação e de crise econômico-financeira, e a emergência de uma América Latina fortalecida por posições democráticas e independentistas. No processo emancipatório, verificamos o agravamento dos conflitos sociais, das contradições entre os países da África, Ásia e América Latina e a dominação imperialista. Estão em curso lutas de variados tipos e intensidades, nos mais diversificados cenários, revelando as potencialidades dos povos e das forças da paz, que se insurgem contra a opressão, o intervencionismo, o militarismo e o belicismo. No curso dessas lutas, emergem e se fortalecem a solidariedade internacional e a unidade em torno de reivindicações de interesse comum pelo fim das bases militares estrangeiras em países soberanos, pela abolição das armas de destruição em massa, pela dissolução da Otan, pela democratização das relações internacionais com o resgate dos preceitos da carta da ONU, pela autodeterminação dos povos e a solução pacífica dos conflitos internacionais, pelo fim das políticas intervencionistas e das guerras de agressão. 66 A humanidade continua confrontada por uma feroz investida do imperialismo estadunidense para impor sua vontade no mundo, o que faz crescer o intervencionismo, as ameaças e as agressões O Conselho Mundial da Paz, fundado no imediato pós-guerra para conjurar o perigo de nova catástrofe de proporções ainda maiores, com a ameaça do conflito nuclear, ao fazer essas reflexões sobre o passado e o presente, invoca o heroísmo dos povos e da resistência antifascista nas suas lutas atuais e na renovação do seu compromisso pela paz a libertação da humanidade. * Socorro Gomes é presidenta do Conselho Mundial da Paz (CMP) e do Centro Brasileiro pela Paz e Solidariedade entre os Povos (Cebrapaz) Fonte: Portal Vermelho (www.vermelho.org.br) PCdoB 67 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Pequena história de um século da Grande Revolução de Outubro Bernardo Joffily* Princípios publica nesta edição o terceiro artigo da série de textos sobre a Revolução Russa, que completará 100 anos em 2017. Escrita pelo jornalista Bernardo Joffily, a série de textos procura contribuir com o debate sobre o significado e as lições deste que foi um dos principais acontecimentos da história contemporânea. No artigo desta edição, Joffily relata o triunfo do movimento revolucionário com a tomada do Palácio de Inverno e as primeiras medidas revolucionárias da Rússia bolchevique A Terceira Revolução, “Paz, Pão e Terra”, combates, transformações, o lugar de Outubro na história A o assumir a direção dos poderosos Sovietes de Petrogrado e Moscou, e de um enxame de organizações soviéticas nas províncias, o Partido Bolchevique passou a preparar a tomada revolucionária do poder. A decisão, do Comitê Central do Partido, foi tomada em 28 de setembro (10 de outubro). “A maioria do povo está conosco”, avaliou Lênin, que deixou o refúgio clandestino na Finlândia para assumir o comando da ofensiva, e auscultava cada pulsar do estado de espírito das classes trabalhadoras. “A insurreição armada é inevitável e se acha plenamente madura”, concluía. Os bolcheviques tinham logrado traduzir todos os compêndios da teoria marxista e análises da realidade 68 russa em três palavras que sintetizavam as aspirações mais sentidas das massas: “Paz, Pão e Terra”. Últimos preparativos – “Dez dias que abalaram o mundo” O Partido enviou dirigentes às províncias para preparar a insurreição. O Soviete de Petrogrado criou um “Comitê Militar Revolucionário”, destinado a cumprir o papel de Estado-Maior do levante. A principal força revolucionária era a classe operária, concentrada em Petrogrado e Moscou, que rapidamente abandonava os mencheviques e se alinhava com os bolcheviques. Secundava-a uma massiva sublevação camponesa nas províncias. E a massa de soldados, da armada recrutada pelo czar para morrer nas trincheiras da Grande Guerra, também aderia História rapidamente à proposta se tornou um clássico do bolchevique, inclusive o livro-reportagem: apaixogrosso da tropa acantonadamente engajado sem nada em Petrogrado. Os perder a ternura, realismo, Sovietes de Deputados argúcia e honestidade. Operários, Camponeses e Soldados eram a forA tomada do ma de organização rePalácio de Inverno volucionária. O QG bolchevique Em 24 de outubro (6 era o Instituto Smolny, de novembro), o diário antiga escola feminina bolchevique Rabochi Put para filhas da nobreza (O Caminho Operário, que czarista, um elegante substituía o Pravda, proibipalácio neoclássico cerdo pelas autoridades) escado por jardins, no centampou um chamamento tro histórico de Petroà derrubada do Governo grado, que a revolução Provisório. Este enviou convertera em sede do carros blindados à oficiComitê Central do Partina do jornal, mas guardo Bolchevique. Naquedas vermelhos e soldados les dias agitados, Lênin revolucionários os expulmorou no Smolny. saram. Durante a noite, O lado contrário outros destacamentos retambém tratou de se volucionários reforçaram a preparar para o confronguarda do Smolny, tomato que todos julgavam ram as estações ferroviáinelutável. A oficialidarias, as centrais de correios de do exército, descone telégrafos, os ministérios e o Banco do Estado. fiada de que sua tropa O papel de estopim estava infestada pelo Lênin em frente ao Instituto Smolny, em tela de Isaak oficial da Terceira Revolubolchevismo, criou 43 Brodskyi (1884-1939) ção – após a de 1905 e a de unidades de combate Fevereiro – coube à guarformadas apenas por nição do Cruzador Aurora, um bastião bolchevique, oficiais, por meio da “Liga dos Oficiais”. O governo sob controle de um comitê revolucionário e de um coprovisório de Kerensky tirou tropas do front da guerra mandante eleito pela marujada, Aleksandr Belyshev, para reforçar suas posições na capital, enquanto exaum operário têxtil convocado pela Marinha, 24 anos. minava a conveniência de retirar-se para Moscou. Após deslocar-se pelo rio até defronte ao Palácio de O centro nervoso da contrarrevolução ficava no Inverno, o Aurora fez, às 21h45 de 25 de outubro (7 Palácio de Inverno. O gigantesco edifício em estilo de novembro), os disparos de seu canhão de proa rococó, à margem do Rio Neva, possuía 1.500 apo(de 152 mm) contra o Palácio, assinalando simbolisentos e 117 escadas, tendo como anexo o imenso camente o início da insurreição. Em seguida, operámuseu de arte do Hermitage, e no subsolo a maior e rios, soldados e marinheiros de Kronstadt investiram melhor adega de vinhos do mundo. Ainda no início contra o edifício por terra. Eisenstein reproduziu o do ano servia – há quase dois séculos – como resiataque em outro filme clássico, Outubro (1927). dência oficial dos czares. Depois de Fevereiro, pasA Tomada do Palácio de Inverno encontrou cersara a ser usado como sede do Governo Provisório. ta resistência mas foi rápida: às 2h10 da madrugaA todo momento, patrulhas da “Guarda Vermeda seguinte, os revolucionários controlavam todo o lha” revolucionária, ou da “Liga dos Oficiais” conprédio. Os ministros do Governo Provisório foram trarrevolucionária, cruzavam as amplas avenidas presos, enquanto Kerensky logrou fugir, vestido de de Petrogrado em automóveis. Esse ambiente febril freira, conforme uma versão que ele negou até a é retratado com maestria em Dez dias que abalaram o morte no exílio. Em Moscou os combates de rua se mundo (1920), obra de uma testemunha ocular, o jorprolongaram por seis dias, de 28 de outubro a 2 de nalista norte-americano John Reed (1887-1920), que 69 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Guardas vermelhos patrulham a Avenida Nevsky, artéria central de Petrogrado, às vésperas da Revolução novembro (10 a 15 de novembro). Até fevereiro a Revolução triunfou em toda a Rússia, ao custo de em torno de 2 mil mortes, entre militares e civis. Muito já se escreveu, de ambos os lados, sobre as causas de uma vitória tão rápida e incruenta – em termos relativos – de uma transformação políticosocial das proporções históricas da Revolução de Outubro. A partir da obra de Lênin, pode-se destacar, entre outros motivos, que: 1) A Revolução enfrentou um adversário relativamente débil, a burguesia russa, recém-chegada ao poder após a derrubada do czar, mal organizada, economicamente frágil, inexperiente em política, covarde a ponto de não ousar diferenciar-se do czarismo em questões tão decisivas como a da guerra. 2) Teve à frente uma classe revolucionária como a classe operária da Rússia, temperada por duas revoluções anteriores e com prestígio entre o povo. 3) Possuiu um aliado de massas também com experiência revolucionária recente como o campesinato russo, os camponeses pobres e por fim também os médios, ansiosos por se libertarem do fardo da guerra. 4) Contou com a direção de uma organização como o Partido Bolchevique de Lênin, escolado no combate ao oportunismo, consciente, disciplinado, fiel à revolução, mas também capaz de 70 se fundir com as massas trabalhadoras, aplicando uma linha política justa, na estratégia e na tática. As primeiras medidas revolucionárias da Rússia bolchevique Ainda se combatia no Palácio de Inverno, na noite da Revolução, quando se abriu no Smolni o 2º Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia. Os 390 delegados bolcheviques formavam uma confortável maioria (60% do total; no 1º Congresso, apenas quatro meses antes, a bancada bolchevique não passava de 13%). E ainda tinham como aliados os social-revolucionários de esquerda (cerca de 100 delegados), que também apoiaram a insurreição. Os mencheviques (72 delegados) e social-revolucionários de direita (cerca de 60 delegados) abandonaram o Salão da Assembleia do Smolni em protesto. O 2º Congresso dos Sovietes aprovou o Decreto sobre a Paz, propondo um armistício imediato entre os países beligerantes. E o Decreto sobre a Terra, declarando “imediatamente abolida, sem nenhum gênero de indenização, a propriedade dos latifundiários sobre a terra”. No decisivo terreno da política, o Congresso consagrou a vitória da Revolução: assu- A Tomada do Palácio de Inverno, reconstituída pelo cineasta Eisenstein em Outubro miu “todo o poder” e indicou Lênin para chefiar o primeiro governo soviético. Não era uma mera mudança governamental. Era um novo tipo de poder estatal que nascia, o Estado socialista soviético, sem precedentes na história, exceto a heroica, porém efêmera, experiência dos 72 dias da Comuna de Paris em 1871. Lênin o definia assim: “O regime soviético significa o máximo de democracia para os operários e os camponeses e, ao mesmo tempo, a ruptura com a democracia burguesa e o aparecimento de um novo tipo de democracia de importância histórica mundial: a democracia proletária ou ditadura do proletariado” (O esquerdismo, http://www.vermelho.org.br/biblioteca.php?pagina=doenca.htm). Graças a esta natureza o recém-nascido Estado dos Sovietes varreu as teias de aranha medievais da velha Rússia com decisão, rapidez, audácia, amplitude e profundidade... e êxito. Os partidos que compunham o Governo Provisório – social-revolucionários, mencheviques e cadetes – em dez meses não haviam se atrevido sequer a abolir formalmente a monarquia czarista. O poder dos Sovietes em dez semanas proclamou a República, mudou a capital para Moscou, extirpou até os menores restos da servidão feudal-latifundiária, garantiu a mais ampla liberdade e a plena igualdade de direitos para todas as nacionalidades do ex-império, assim como a igualdade de direitos para as mulheres – a Rússia bolchevique foi a primeira grande nação a estabelecer o voto feminino, precedida apenas por Nova Zelândia, Austrália e alguns dos países escandinavos. Ao lado destas medidas, de caráter democrático-burguês, embora radical, o novo poder lançou as bases do novo sistema, socialista. Foram nacionalizados os bancos, as estradas de ferro, o comércio exterior, a marinha mercante e toda a grande indústria A dissolução da Assembleia Constituinte Em 6 (19) de janeiro de 1918 Lênin, enquanto chefe do governo soviético, ordenou a dissolução da Assembleia Constituinte de toda a Rússia, convocada pelo Governo Provisório. O Partido Bolchevique apoiara a convocação e participara da eleição dos deputados, considerando que esta teve extraordinário valor educativo para os trabalhadores. No entanto, enquanto o processo eleitoral se atrasava e se arrastava, deu-se nada menos que a 71 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 deixar de reconhecer que os parlamentos Revolução de Outubro. E, na visão bolchevique, uma burgueses são órgãos duma ou doutra classe. república burguesa com Constituinte era preferível Mas agora (para o sujo objetivo de renunciar à mesma república sem Constituinte, mas que uma à revolução), Kautsky precisou esquecer o república operário-camponesa, soviética, seria memarxismo, e Kautsky não coloca a questão de lhor que qualquer república democrático-burguesa. saber de que classe era órgão a Assembleia A eleição transcorrera fundamentalmente antes Constituinte na Rússia.” (https://www.marda Revolução. Nas urnas o Partido Bolchevique ainxists.org/portugues/lenin/1918/renegado/ da figurava como a segunda força, embora com uma cap05.htm) respeitável bancada de um quarto dos 703 deputados. A maior bancaA Paz de Brest-Litovsk da era a dos social-revolucionários, Nos primeiros dias que tinham pouco mais da metade Nos primeiros dias de 1918, resdas cadeiras – ainda que a eleição de 1918, restava tava ainda por resolver a questão não refletisse a cisão entre SR de ainda por resolver de tirar a Rússia da Grande Guerra. direita e SR de esquerda, estes úla questão de tirar Não era um problema qualquer: era timos aliados dos bolcheviques e a pedra de toque, a questão de vida participantes da Revolução. a Rússia da Grande ou morte para milhões de campoA Assembleia reuniu-se uma Guerra. Não era neses, a promessa que decidira, em única vez, em 5 (18) de janeiro. primeiro lugar, o povo russo em faEsta única sessão elegeu como seu um problema vor da Revolução. presidente o líder social-revoluqualquer: era a Assim que assumiu, o governo cionário de direita Victor Chernov, soviético propôs “a todos os países vencendo a SR de esquerda Maria pedra de toque, a beligerantes e seus governos entaSpiridonova. E recusou-se a acatar questão de vida ou bular negociações imediatas para as decisões do Congresso dos Somorte para milhões uma paz justa e democrática”, mas vietes sobre o novo poder nascido os “aliados”, Inglaterra e Franda Revolução, a paz e a terra. Ao de camponeses, ça, discordaram. A Rússia decidiu se divorciar do poder soviético, a a promessa que então negociar a paz em separado Constituinte condenava-se inapecom a Alemanha e a Áustria. As lavelmente à morte política. Dito decidira, em negociações começaram a 3 de e feito: Lênin dissolveu-a 13 horas primeiro lugar, o dezembro, na Fortaleza de Bresapós sua instalação. povo russo em favor t-Litovsk (nos arredores da cidade A dissolução provocou uma bielo-russa de Brest, na parte do onda de críticas sobre os supostos da Revolução ex-império russo ocupada pela Aleinstintos antidemocráticos que manha). Trotsky, comissário do povo norteariam os bolcheviques. O lí(cargo equiparável ao de ministro) der socialdemocrata alemão Karl de Relações Exteriores, assumiu pouco depois a cheKautsky disparou contra ela no panfleto A ditadura fia da delegação soviética. do proletariado. Lênin contestou-o em A revolução proleEm dois dias chegou-se a um cessar-fogo. As contária e o renegado Kautsky (1919), numa apaixonada e dições da Alemanha para fazer a paz definitiva, poindignada defesa da linha bolchevique à luz do marrém, eram duríssimas: incluíam a passagem da Poxismo revolucionário: lônia, da Ucrânia e dos Países Bálticos para a esfera germânica. Lênin, já em janeiro, defendia que fos“Kautsky adopta na questão da Assembleia sem aceitas as imposições, ainda que bandidescas. Constituinte um ponto de vista formal. Trotsky, porém, relutava e em 10 de fevereiro interNas minhas teses disse claramente e reperompeu as conversações. Dia 18 a Alemanha rompeu ti muitas vezes que os interesses da revoa trégua e arremeteu na direção de Petrogrado. lução estão acima dos direitos formais da Os frangalhos do velho exército czarista logo Assembleia Constituinte. O ponto de vista se mostraram incapazes de conter o bem armado democrático formal é precisamente o ponto avanço alemão. No entanto, ao grito de “A Pátria de vista do democrata burguês, que não reSocialista em perigo!”, a Rússia revolucionária forconhece que os interesses do proletariado mou novas unidades militares, com voluntários, que e da luta proletária de classe são superioconseguiram rechaçar a arremetida germânica em res. Como historiador, Kautsky não poderia 72 História O cruzador Aurora, iniciador da Revolução, fundeado no Rio Neva, em foto atual Narva, a apenas 150 quilômetros de Petrogrado, a 23 de fevereiro. Esta data assinala o nascimento do Exército Vermelho, força armada regular do poder soviético, que substituiu a Guarda Vermelha. No mesmo dia, porém, a posição de Lênin se impôs no Comitê Central Bolchevique – vencendo em um robusto debate a oposição de Bukharin e a relutância de Trotsky – e a Rússia anunciou que aceitava a proposta alemã. Em 3 de maço foi assinado o Tratado de Brest-Litovsk. Três dias mais tarde o 7º Congresso do Partido Bolchevique – o primeiro após a tomada do poder – analisou a paz em separado. Lênin nunca ocultou que aquela era “uma paz desgraçada” — como dizia o título de um artigo seu publicado no dia seguinte ao 7º Congresso. Era um altíssimo preço para honrar a promessa de tirar a Rússia da guerra. Porém Lênin defendia a “paz desgraçada” usando uma parábola como argumento: “Imagine que o automóvel em que você está é assaltado por bandidos armados. Você lhes dá o dinheiro, a carteira, o revólver e o carro; mas, em troca, escapa. Trata-se, evidentemente, de um compromisso. Do ut des (‘dou’ meu dinheiro, minhas armas e meu automóvel, ‘para que me dês’ a chance de seguir em paz). Dificilmente, porém, se encontraria um homem sensato capaz de declarar que esse compromisso é “inadmissível do ponto de vista dos princípios”, ou de denunciar quem o assumiu como cúmplice dos bandidos. Nosso compromisso com os bandidos do imperialismo alemão foi semelhante.” (O esquerdismo). A paz, porém, ainda tardaria. Antes mesmo de conseguir libertar-se da Grande Guerra, a Rússia soviética mergulharia por mais quatro anos na igualmente mortífera Guerra Civil. * Bernardo Joffily é jornalista, tradutor, colaborador de Princípios e autor do Atlas Histórico IstoÉ Brasil 500 anos 73 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 A atualidade do legado de Lênin Marly de A. G. Vianna* “ “ Como uma ponta de cigarro mastigada, cuspimos fora a dinastia deles. (Maiakovski) Estátua de Lênin sendo protegida por populares na Crimeia Lênin conseguiu interpretar seu mundo corretamente e, a partir disso, transformá-lo. Esse seu maior legado: a partir de uma teoria revolucionária interpretar a realidade concreta e a partir daí mudá-la revolucionariamente O maior legado de Lênin foi a Revolução Russa, para a qual contribuiu decisivamente. A Revolução Socialista de Outubro de 1917 foi o mais importante acontecimento do século XX: pela primeira vez na história da humanidade, os operários chegaram ao poder. Apesar de muito citados, a maioria das vezes Lênin e leninismo aparecem como sinônimos de violência e sectarismo. Afirma-se que a Revolução So- 74 cialista foi violenta – o que não é verdade – e que a visão sectária leninista de partido teria possibilitado o stalinismo – o que também não me parece correto. São frequentes também colocações que “aceitam” marxismo, mas não o leninismo, e muitas dessas posições exaltam Antônio Gramsci sem se dar conta de que Gramsci era um leninista convicto. Considera-se que a teoria pode passar enquanto permanecer apenas como teoria, mas não a práxis revolucionária que realizou a Revolução. Rejeitar Lênin é rejeitar a História Revolução Socialista de 1917, o grande fantasma que ainda ronda o mundo: se foi possível que os operários chegassem ao poder, é possível que possam chegar ao poder. Da teoria da revolução leninista na Rússia czarista fazem parte a visão do que deveria ser o partido comunista, a teoria sobre o Estado, a política agrária, a crítica ao imperialismo, a relação entre revolução nacional e internacionalismo proletário, a relação entre revolução nacional anti-imperialista e revolução socialista, em fim, todas as inúmeras e complexas questões teóricas e práticas da revolução socialista enfrentadas pela primeira vez na história. Uma das questões mais criticadas em Lênin foi sua concepção de partido, considerada sectária, autoritária e, de certa forma, elitista, uma vez que considerava o partido como essencialmente um partido de quadros. A partir dessa crítica, extrapola-se, para desqualificá-la, afirmando que toda a falta da democracia partidária, que ocorreu depois de sua morte, a substituição do proletariado pelo partido comunista e deste por sua direção já vinham embutidas no modelo leninista de partido. No entanto, o mais importante na discussão sobre a concepção de Lênin em relação ao que deveria ser o partido comunista não é, de maneira alguma, discutir se o partido deveria ser de quadros ou de massas, mas sim que tipo de partido seria mais consequentemente capaz de, nas condições da Rússia czarista do início do século XX, adotar uma teoria e uma organização para a ação revolucionária. Dito de outra forma, o mais importante, ao se discutir o legado leninista em relação ao partido, é acompanhar sua práxis que, a partir da teoria revolucionária marxista, forjou uma organização partidária revolucionária. Não faz sentido discutir, fora da realidade concreta, se o “ideal” deve ser um partido de massas ou de quadros, ou se o partido deve trabalhar na legalidade ou na clandestinidade. Essas não são escolhas aleatórias, mas devem ser decorrentes de uma situação concreta. Por outro lado, como veremos adiante, jamais Lênin tentou substituir as massas pelo partido, ou fazer a revolução no lugar delas. Para Lênin, o partido seria o organizador e o dirigente da vontade revolucionária demonstrada pelo povo – operários, camponeses, soldados e marinheiros interessados em levar adiante a revolução. A Rússia czarista A dinastia dos Romanov tinha 300 anos e, em pleno início do século XX, Nicolau II (que subira ao trono em 1897) dizia-se soberano por direito divino. A Rússia era um imenso território com inúmeras etnias e quase 80% de sua população ligados ao campo e pouco alfabetizados, população que o czar dominava com extrema brutalidade. O Estado absolutista e repressor comportava situações como a do prestígio dado ao famoso embusteiro Grigori Rasputin, que caíra nas boas graças da czarina e chegava a destituir e nomear ministros. Nesse quadro, a incompetência também grassava além de o Estado russo ser a negação da democracia (HILL: 1967:20). No início de 1905, ocorreu o que foi chamado por Lênin de ensaio geral para a revolução. No domingo 9 de janeiro, o czar mandou disparar contra o povo que saíra em passeata ao Palácio de Inverno, pedindo ajuda ao “paizinho”, como era chamado o czar, para melhorar sua situação de miséria. Eram homens, mulheres e crianças, em seus melhores trajes, que pacificamente queriam dirigir-se ao czar. Foram massacrados, no que ficou conhecido como “Domingo Sangrento”. Rebeliões se espalharam pelo país e durante as inúmeras greves surgiram os primeiros sovietes, conselhos de operários que organizaram as paralisações e que tornaram-se dirigentes do movimento revolucionário. Apesar da derrota do movimento o czar, assustado com a revolta, prometeu respeitar as opiniões da Duma (o Parlamento), promessa que não foi respeitada e nem diminuiu a repressão. Durante algum tempo a classe operária parecia hibernar. A guerra de 1914, com seu cortejo de barbárie, contribuiu para reorganizar o descontentamento popular. Já em julho, pouco antes do início da guerra (1º-08-1914), as greves em São Petersburgo, capital do império, levaram às barricadas, na luta dos operários contra a polícia czarista. Com o conflito mundial, a situação piorou muito, a miséria e a fome se agravavam, milhões de trabalhadores – em especial camponeses – foram mobilizados. A situação dos soldados no front era trágica e calcula-se que em 1916 já havia registro de mais de um milhão de desertores (HILL: 1967:33). Em fevereiro de 1917 a dinastia dos Romanov foi derrubada, assumindo o poder um Governo Provisório – composto de liberais e conservadores de oposição que tinham a maioria na Duma. Ainda segundo Christopher Hill, o movimento que derrubou o czarismo foi “um movimento de massas quase espontâneo, de operários e soldados em Petrogrado, movimento que ninguém jamais reivindicou o mérito de tê-lo organizado” (HILL: 1967:33). O tempo decorrido entre fevereiro e a revolução socialista de outubro daquele ano é um período importante para entendermos o pensamento e a ação revolucionária de Lênin. 75 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Vladimir Ilitch Ulianov se com a revolucionária Nadiejda Krupuskaia. Em meados de 1900, terminado o exílio, viajaram à Suíça. A atuação política de Lênin era constante, proLênin nasceu a 10 de abril de 1870, na cidade de curando a melhor forma de organizar o proletariaSimbirsk (atual Ulianovsk, no Volga). Nasceu num do russo para a revolução. Para Lênin, um jornal ambiente cultural elevado e politicamente liberal: desempenharia imprescindível papel organizativo seu pai, professor de física, pertencia à pequena noe na Alemanha, no final de 1900, juntamente com breza e chegou a Diretor de Ensino da região e sua Julius Martov (Yuli Osipovitch Tsederbaum), lançou mãe era professora, ambos com visões de mundo o jornal Iskra (A Centelha). O jornal tinha como epíbastante avançadas. Todos os cinco irmãos de Lênin grafe! “Da centelha saltará a chama!” e dizia em seu tornaram-se revolucionários, sendo que o mais veprimeiro editorial: “Sem um partido forte lho, Alexandre, foi enforcado aos 19 anos e organizado o proletariado russo japor participar da tentativa de assasmais conseguirá realizar a grande sinato de Alexandre III. A região tarefa histórica que lhe cabe: tinha também tradição revolulibertar a si próprio e a todo o cionária: muitos dos que parpovo russo de sua escravidão ticiparam da grande rebelião política e econômica” (Cf. popular chefiada por YemeBOLSANELLO: 2000:40). lian Ivanovitch Pugachov, A luta de Lênin pelo parum século antes, eram de lá. tido “de novo tipo” deu-se em Lênin formou-se em direiduas frentes: na luta teórica, deto e por algum tempo trabalhou fendendo suas posições em livros, em sua região, defendendo camartigos e discursos, e na luta política, poneses pobres. Em 1893 foi para Em 1902, Lênin nos congressos do partido. Quando, Moscou e de lá para São Petersno final de 1900, Lênin escreveu A burgo, onde travou conhecimento argumentou sobre a que herança renunciamos, já delineou a com marxistas. Em 1894 escreveu necessidade de uma separação que existia entre a concepQuem são os amigos do povo e como luforte organização ção marxista e as ideias populistas. tam contra os socialdemocratas, uma Uma questão que deve ser destacacrítica aos populistas e lutou pela partidária em Que da como mais um legado do revoformação de um partido operário fazer? Ele atualizava lucionário russo é que, no intenso e socialdemocrata russo. Criou-se permanente debate por suas ideias, na ocasião, e com sua participação, as ideias de Marx Lênin jamais deixou de dar respostas uma União de Luta pela Emanciàs condições da bem fundamentadas às críticas que pação da Classe Operária, em São sofriam os defensores de Marx. Os Petersburgo. Rússia e defendia populistas, por exemplo, acusavam Lênin passou boa parte do ano a organização de os marxistas de terem renunciado à de 1895 no exterior. Em Genebra um partido de novo herança revolucionária russa e Lênin encontrou-se com Gueorgui Vamostrou que, ao contrário, eram os lentinovitch Plekanov, do grupo tipo que pudesse marxistas os verdadeiros herdeiros Emancipação e Trabalho. Viajando enfrentar com dessas tradições. Para chegar a esta depois a Paris conheceu Paul Lafarconclusão argumentou detalhadague – genro de Marx – e aproveitou sucesso a repressão mente, mostrando que conhecia a para estudar a história da Comuna czarista fundo os democratas revolucionáde Paris, o que teve importância derios russos da década de 1860, em cisiva em sua futura ação política. especial Nikolai Chernishevski, a que Karl Marx tamSeguindo para Berlin, Lênin entrou em contato com bém citava com admiração. a socialdemocracia alemã, através de Wilhelm LiebkCada um dos escritos de Lênin correspondeu à necht. Além de estudar muito, pôde conhecer líderes necessidade de dar respostas teóricas que fundado movimento operário revolucionário europeu. mentassem uma atitude prática. Em 1902 argumenDe volta à Rússia, em setembro daquele ano, Lêtou sobre a necessidade de uma forte organização nin foi preso e condenado a três anos de exílio na Sipartidária em Que fazer? – título que copiou de uma béria, em Chechenskoie, uma província de Yenissei. obra de Chernishevski. Lênin atualizava as ideias de Foi lá que, em 1898, escreveu o notável livro O desenMarx às condições da Rússia czarista e defendia a volvimento do capitalismo na Rússia. Lá também casou- 76 História Lênin fala aos delegados do 3º Congresso do KOMSOMOL em 1920. Pintura de Boris Ioganson, 1950. organização de um partido de novo tipo que pudesse enfrentar com sucesso a repressão czarista. Seria preciso organizar uma força revolucionária que dirigisse o movimento operário. No combate aos partidários de Martov, chamados “economicistas” e que defendiam uma posição ideológica eclética, em nome da liberdade de crítica, Lênin dizia que tudo que fizesse concessões à ideologia burguesa abastardaria a ideologia socialista e defendeu com vigor a importância de uma sólida teoria revolucionária para a ação revolucionária: “Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário”, destacava – um legado que não pode ser esquecido. Lênin se opunha aos “economicistas” dizendo que eles defendiam um caminho semelhante ao do trade-unionismo, tanto na organização quanto na política: A luta política da socialdemocracia é muito mais ampla e mais complexa do que a luta econômica dos operários contra os patrões e o governo. Do mesmo modo (e em consequência disso) a organização de um partido socialdemocrata revolucionário deve ser, inevitavelmente, de um gênero distinto da organização dos operários para a luta econômica. A organização dos operários deve ser, em primeiro lugar, sindical; em segundo lugar, deve ser a mais extensa possível; em terceiro lugar, a menos clandes- tina possível (e nesse ponto, e no que se segue, é claro que me refiro exclusivamente à Rússia autocrática). Ao contrário, a organização dos revolucionários deve englobar, antes de mais nada, e sobretudo àqueles cuja profissão seja a atividade revolucionária (por isso falo de uma organização de revolucionários, tendo em conta os socialdemocratas). (...) Essa organização, necessariamente, não deve ser muito extensa e é preciso que seja a mais clandestina possível (Tomo 1, p. 210-211). E continuava, justificando detalhadamente essa concepção de partido, e principalmente mostrando sua necessidade e salientando a grande diferença da Rússia em relação aos “países que gozam de liberdade política”. A luta contra os “economicistas” foi muito acirrada no II Congresso do Partido Operário Socialdemocrata Russo (POSDR) como era chamado o partido dos revolucionários russos antes da Revolução. O primeiro congresso realizara-se em março de 1898, em Minsk, com nove delegados presentes. Lênin ainda estava em seu exílio na Sibéria. O II Congresso do POSDR ocorreu em 1903, com 43 delegados. Iniciou-se em Bruxelas, mas a repressão belga obrigou a que os congressistas terminassem seus trabalhos em Londres. Lênin foi o redator do Programa e dos Estatutos do 77 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 partido que chamava “de novo tipo”. Os partidários uma força invencível, sempre e quando sua de Martov defendiam não serem necessárias maiores união ideológica por meio dos princípios exigências para a filiação ao partido, enquanto os de do marxismo seja afiançada pela unidade Lênin exigiam que os filiados contribuíssem finanmaterial da organização que coesiona ceiramente para sua manutenção e participassem de milhares de trabalhadores no exército da uma organização partidária. Depois de muitas discusclasse operária (IDEM, p. 465). sões e votações, as posições de Lênin foram aprovadas e a partir daí seus partidários passaram a ser chamaNotável definição da práxis dos “bolcheviques” e os de Martov “mencheviques” revolucionária (bolche quer dizer grande, mais e menche pequeno, menos, aqui no As rebeliões populares que se sentido de maioria e minoria). seguiram ao massacre do “domingo Em 1904, Lênin O programa traçado nesse mosangrento”, em 1905, foram derroescreveu Um passo mento para as tarefas da revolução tadas e seguiu-se a elas uma bárbaera um programa que propunha ra repressão. Os anos seguintes, até adiante, dois atrás, palavras de ordem da revolução 1912, foram de aparente calmaria e como preparação burguesa – “substituição da MoLênin, no exílio, aprofundou seus para o III Congresso narquia czarista por uma Repúbliestudos teóricos, ao mesmo tempo ca democrática; liberdade total de em que acompanhava a situação do Partido Operário consciência, palavra e reunião, supolítica na Rússia e enviava direSocialdemocrata frágio universal e secreto para totrizes para o país. Nesse período dos” (BOLSONELLO: 2000:44) etc. desenvolveu estudos de Filosofia e Russo (POSDR), Apesar do entendimento de estaEconomia política, escrevendo em do qual os rem na ordem do dia tarefas de uma alemão, em 1916, O imperialismo, mencheviques não revolução burguesa, Lênin teve a fase superior do capitalismo. clareza de ver que, para cumpri-las, Às vésperas da Primeira Guerquiseram participar. seria preciso a organização de um ra Mundial o movimento operário No texto, mais uma partido revolucionário e da união voltou a manifestar-se e desenvolda classe operária ao campesinato. veu-se no país uma situação revovez Lênin mostrou lucionária. Lênin não tardou em Somente o proletariado seria capaz a importância dar a diretiva de transformação da de realizar as tarefas de uma revoluguerra imperialista em guerra civil ção burguesa. Reconhecendo a neda organização revolucionária. Ao mesmo tempo, cessidade do cumprimento destas operária para a combateu a atitude pusilânime tarefas, não as via como uma etapa revolução dos líderes da II Internacional e separada da revolução socialista. de muitos partidos socialdemocraEra preciso que o proletariado tas que deram apoio às burguesias cumprisse esta etapa para seguir belicosas de seus respectivos países, dando início à adiante, rumo ao socialismo. Essas ideias foram degrande separação histórica entre reformistas e revosenvolvidas em Duas táticas da social democracia na revolucionários. lução russa, escrito em 1905. Em 1904 escreveu Um passo adiante, dois atrás As teses de abril (uma crise em nosso partido), como preparação para o III Congresso do Partido Operário Socialdemocrata Em fevereiro de 1917 uma revolução popular derRusso (POSDR), do qual os mencheviques não quirubou o czarismo. Desde janeiro, aniversário do Doseram participar. Mais uma vez Lênin mostrou a immingo Sangrento, o povo voltara às ruas e o partido portância da organização operária para a revolução: bolchevique saíra da clandestinidade a que se vira submetido. O czar foi obrigado a abdicar. OrganizaO proletariado não dispõe, em sua luta pelo ram-se sovietes de operário e soldados por toda a Rúspoder, de outra arma que não seja a orgasia, mas o poder da nova República ficou nas mãos da nização. O proletariado, desunido pelo imburguesia, tanto liberal quanto conservadora. pério da anárquica concorrência dentro do Em abril Lênin retornou a Petrogrado e apresentou mundo burguês, esmagado pelos trabalhos As tarefas do proletariado na presente revolução, as famosas forçados a serviço do capital (...), só pode Teses de abril. Nelas, Lênin resume as tarefas primortornar-se – e inevitavelmente se tornará – 78 História Fundado em 1912, o Pravda (verdade, em russo) era o jornal do Partido Bolchevique diais do momento. Em primeiro lugar contra a guerra imperialista, pela confraternização no front e pela paz; em segundo lugar, era preciso dar continuidade à revolução de fevereiro, transformando-a em socialista. “Isso exige de nós habilidade para nos adaptarmos às circunstâncias especiais do trabalho do partido entre as massas inusitadamente amplas do proletariado, que acabam de despertar para a vida política”. Como terceiro ponto Lênin levantou uma questão bastante atual. Alertava para que não se fizessem ilusões com o Governo Provisório que não deveria ser apoiado; era preciso “desmascarar este governo, que é um governo de capitalistas, e não propor a inadmissível e ilusória ‘exigência’ de que deixe de ser imperialista”. Na quarta tese Lênin diz ser necessário reconhecer que os bolcheviques eram ainda minoria nos sovietes e que, enquanto isso ocorresse, o único possível era explicar aos membros dos sovietes no que estavam errados e tentar convencê-los da justeza das posições bolcheviques. Um trabalho de crítica e esclarecimento. Quer dizer, enquanto não conquistassem a maioria numérica e a hegemonia nos sovietes, nada mais poderiam fazer do que lutar por suas ideias – nenhuma diretiva de tomada do poder por cima das massas. Quinta tese – era necessário lutar por uma República de Sovietes e não por uma República parlamentar. Voltar a ela depois dos sovietes seria um retrocesso. Em sexto lugar, sobre o programa agrário: organizar os sovietes de camponeses e lutar pelo confisco das terras dos latifundiários. Sétima tese: Fusão imediata de todos os bancos do país num banco nacional único, sob o controle dos sovietes. Oitava tese: embora a “implantação” do socialismo não fosse uma tarefa imediata, dever-se-ia passar imediatamente ao controle da produção e da distribuição social pelos sovietes de deputados operários. A nona tese era sobre as tarefas do partido: convocação de um congresso para discutir sobre o imperialismo, a guerra imperialista e a posição em relação ao Estado – a reivindicação bolchevique de um “Estado Comuna”. Dever-se-ia rediscutir o Programa do partido, que se tornara antiquado. Finalmente, a décima tese era sobre a renovação da Internacional. Depois da traição dos líderes da II Internacional, por ocasião da Grande Guerra, era indispensável organizar uma nova internacional- comunista (LÊNIN: 1961, T.2:36). 79 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Impressiona acompanhar a acuidade de Lênin Pela primeira vez na história do mundo ocorria sobre a situação política da Rússia e as tarefas do uma revolução socialista e se colocava a questão do partido, situação de grandes e rápidas transformaEstado. Lênin estava de acordo com Marx de que o ções que exigiam uma resposta política adequada. Estado é a repressão organizada contra uma classe. Hoje, sabendo-se dos acontecimentos, parece fácil A tarefa agora, da classe operária recém-chegada que Lênin tivesse quase que previsto os aconteciao poder, seria a de destruir o Estado capitalista e mentos. No entanto, essa análise da situação política criar um Estado operário de transição ao socialisdo momento foi possível a partir da teoria revoluciomo que desmantelasse o Estado burguês, cujo menária que estudou a fundo e dominava, além de um canismo deveria ser varrido da face da terra e criar profundo talento: a política como ciência e arte, arte um novo tipo de Estado de transição: a ditadura do somente possível através do conheproletariado. Lênin chegara a tal cimento. Este outro grande legado conclusão estudando a experiência atual de Lênin. da Comuna de Paris e as opiniões Lênin estudou O período que se seguiu até a de Marx sobre ela. A ditadura do e dominava a Revolução Socialista foi de incrível proletariado, dizia Lênin, era “a orfundo a teoria riqueza política. O governo proviganização da vanguarda dos oprisório, sentindo-se mais seguro no midos em classe dominante, para revolucionária. poder, virou-se contra os operáesmagar os opressores” (LÊNIN: Graças a isso, rios e contra os bolcheviques, que 1961: T2:364). Seria uma situação foram colocados fora da lei, mostransitória: foi capaz de dar trando quanta razão tinha Lênin A ditadura do proletariado, o perespostas políticas de alertar para que não se confiasse ríodo de transição ao comunismo, no Governo. trará, pela primeira vez, a demoadequadas para a Em agosto, o golpe do general cracia para o povo, para a maioria, situação política ultrarreacionário Lavr Georgievita par com a necessária repressão da Rússia e as ch Kornilov obrigou o governo a da minoria, dos exploradores. Só apelar aos operários que quisera o comunismo poderá proporcionar tarefas do partido, desarmar – e aos bolcheviques. uma democracia verdadeiramente mesmo diante de Nesse momento, o Exército já se completa; e quanto mais completa desintegrava no front a as deserções seja (a ditadura do proletariado – grandes e rápidas contavam-se aos milhões. Com MV) deixará de ser necessária e se transformações sua política acertada, mais um extinguirá por si mesma (IDEM). exemplo da política como ciência e Novas tarefas estavam colocaarte, Lênin e os bolcheviques idendas diante dos revolucionários e tificaram corretamente o sentido comum das masLênin teve que realizá-las dentro das condições consas, traduzindo as teses intelectuais de abril numa cretas que se apresentavam. Cumpriu todo o progralinguagem popular: Paz, Terra e Pão. Com isso conma proposto antes da revolução. Seu primeiro deseguiram a maioria nos sovietes e entre oficiais e creto foi o da paz, que pelo tratado de Brest-Litovsk praças do Exército. (março de 1918) custou muito ao Estado soviético. Ao contrário do apregoado, por ignorância ou má Foi preciso fazer muitas concessões para assegufé, pelos inimigos do socialismo, a Revolução Sociarar a revolução, esperando que o território perdido lista de Outubro de 1917 (7 de novembro pelo novo acabasse por ser reconquistado – o que ocorreu. As calendário) foi absolutamente pacífica. Os sovietes terras foram distribuídas aos camponeses como proassumiram o poder sem resistência. “Às 7:25 da noipriedade (não nacionalizadas) e as indústrias nate de 7 de novembro, telegrafava o correspondente cionalizadas, sendo que a capital foi transferida de da Reuter: ‘Até o momento registraram-se apenas Petrogrado para Moscou. duas baixas’. Na revolução de fevereiro houve 1.400 Se a tomada do poder foi pacífica, logo em semortos e feridos!” (HILL:1967:98). guida ao final da guerra 14 países se uniram numa A capacidade de trabalho de Lênin e sua preocuentente para atacar a jovem República Soviética, pação com a teoria revolucionária eram impressiodando início a uma guerra civil e obrigando ao chanantes. Em meio a toda efervescência política, escremado comunismo de guerra – requisição de alimenveu, em agosto-setembro de 1917, a maior parte de to aos camponeses – para sustentar os combatentes. seu livro O Estado e a Revolução, em que expõe a teoria A guerra civil matou milhões de pessoas, principaldo Estado e o papel dos sovietes na revolução. mente uma importante vanguarda bolchevique. 80 História No final da guerra civil, em 1921, o país estava devastado. Lênin propôs – e foi adotada – uma Nova Política Econômica (a NEP). Seria preciso dar um passo atrás para manter a revolução. A política do comunismo de guerra foi substituída por imposto em espécie e pela permissão do comércio privado, o que fez aumentar a oferta de alimentos e deu novo fôlego à aliança operário-camponesa e à reconstrução do país. Mais uma vez, antes de adotar medidas que pareciam confrontar o socialismo, Lênin preparou uma exposição para defendê-las, escrevendo, em 1920, O Esquerdismo, doença infantil do comunismo. A 30 de agosto de 1918 Lênin sofreu um atentado que quase o matou. Foram dois tiros que o atingiram, um dos quais perfurou-lhe um pulmão, enfraquecendo muito seu organismo já bastante debilitado pelas dificuldades materiais por que passava e pelo intenso trabalho que desenvolvia. Em maio de 1922, Lênin sofreu um primeiro derrame, do qual conseguiu se recuperar. Em dezembro, outro derrame abalou decisivamente sua precária saúde e um terceiro, a 21 de janeiro de 1924, matou-o. Lênin conseguiu interpretar seu mundo corretamente e, a partir disso, transformá-lo. Esse seu maior legado: a partir de uma teoria revolucionária interpretar a realidade concreta e a partir daí mudá-la revolucionariamente. Em março de 1919, por iniciativa sua e com ativa participação de Leon Trotski, foi criada a III Internacional, a Internacional Comunista. Em seu IV Congresso, em novembro de 1922 – o último de que participou –, Lênin terminou seu discurso falando da importância de se estudar, estudar sempre. Dirigindo-se aos delegados estrangeiros, alertou-os sobre a necessidade de entender a situação russa em que se deu e se desenvolvia a revolução e não “colocá-la num canto e rezar diante dela” (LÊNIN: 1961: T.2:746). Depois da morte de Lênin seguiu-se o período do chamado stalinismo, que também precisa de uma análise histórica para ser entendido. De qualquer forma, foi um período de abastardamento do marxismo e de destruição física dos quadros partidários bolcheviques que fizeram a Revolução. Trata-se de um outro assunto e o objetivo aqui é ressaltar o legado de Lênin. Como escreveu Michael Löwy: “O capítulo ‘stalinismo’ está se fechando. Já era tempo. Isso cria a possibilidade – não para as próximas semanas, mas para o século XXI – de agrupar novamente gerações de revolucionários ao redor da bandeira vermelha de Outubro de 1917 – não como modelo único, mas como herança preciosa e insubstituível da tradição dos oprimidos. Isso não é uma certeza, mas uma possibilidade histórica, uma chance que nos é dada. A nós cabe apanhá-la” (LÖWY: 2000:159). *Marly de A. G. Vianna é historiadora, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (1990). Professora aposentada pela Universidade Federal de São Carlos, atualmente é professora de pós-graduação da Universidade Salgado de Oliveira. É membro e colaboradora do IAP Instituto Astrojildo Pereira; do NEE - Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP/Campinas; líder do Grupo de Pesquisa Discurso, representações e práticas sociais, da UNIVERSO Bibliografia consultada BOLSANELLO, Elio. Lênin, biografia ilustrada. Rio de Janeiro: Inverta, 2000. COUTINHO, Ronaldo, “Lênin: a dimensão teórica e prática do compromisso político revolucionário”. Introdução ao livro Esquerdismo: doença infantil do comunismo. São Paulo: Expressão Popular, 2014. HILL, Christopher, Lênin e a Revolução Russa. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. LÊNIN, Vladimir Ilitch. A que herencia renunciamos? In: Obras Escogidas, Tomo 1, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismoleninismo do CC do PCUS. ____________. Que hacer? In: Obras Escogidas, Tomo 1, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS. ____________. Un paso adelante, dos pasos atrás (una crisis em nuestro partido). In: Obras Escogidas, Tomo 1, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS. ____________. Dos tácticas de la socialdemocracia en la revolución democrática. In: Obras Escogidas, Tomo 1, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS. ____________. Las tareas del proletariado en nuestra revolución. (Tesis de Abril). In: Obras Escogidas, Tomo 2, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS. ____________. O Estado e a Revolução. In: Obras Escogidas, Tomo 2, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS. ____________. La enfermidad infantil del “izquierdismo en El comunismo. In: Obras Escogidas, Tomo 3, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS. ____________. IV Congresso de la Internacional Comunista, de 13 de noviembre de 1922. In: Obras Escogidas, Tomo 3, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS. LÈNINE, V. Sur da démocratie socialiste. Moscou: Agence de press Novosti, 1978. LÖWY, Michael & BENSAID, Daniel. Marxismo, modernidade, utopia. Tradução de Alessandra Ceregatti, Elisabete Burigo e João Machado. São Paulo: Xamã, 2000. 81 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Governo Dilma: breve balanço de sua política econômica e a necessidade do ajuste fiscal Lecio Morais* Ministros Joaquim Levy (Fazenda) e Nelson Barbosa (Planejamento) O artigo analisa a adoção do ajuste fiscal a partir de um balanço das ações do primeiro governo Dilma no sentido de resolver o problema da perda de competitividade externa em meio à crise internacional. O fracasso das medidas desembocou na atual situação em que se exige um ajuste fiscal. O ajuste é analisado do ponto de vista da correlação de forças em um momento de quebra do equilíbrio social que veio dando sustentação ao governo desde Lula 82 O debate que se dá sobre a adoção do ajuste fiscal como centro da política do novo governo Dilma é alimentado pela preocupação com as consequências de sua aplicação sobre a vida do povo. Porém, parte dessa discussão está eivada, por um lado, de argumentos principalistas sobre política econômica e, por outro, de argumentos que distorcem a dinâmica capitalista, tal como entendida pelo marxismo, e ignoram a natureza cíclica e inescapável das suas crises periódicas. Os termos dessa discussão – que desconhecem a realidade do capitalismo e relevam a correlação de forças políticas – terminam por turvar o entendimento do cenário econômico que enfrentamos no momento e as opções concretas e disponíveis ao governo Dilma para enfrentar a crise. Minha contribuição aqui está voltada para o entendimento da ação do governo Dilma na tentativa de reverter nosso principal problema diante da crise internacional: a continuidade da perda de competitividade industrial externa. Para tanto, apresento um resumido balanço dessas medidas, o porquê de seus fracassos e o papel do grande capital nessa derrota. Abordo, ainda, como a estratégia “neodesenvolvimentista” de Lula, após a continuidade da crise internacional, tornou-se contraproducente, por não incorporar medidas defensivas contra a crise internacional desde seu início, em especial após 2008. 1. A estratégia de desenvolvimento: seu sucesso e as consequências indesejadas Pode-se dizer que a estratégia de desenvolvimento do governo Lula, em resumo, era formada por três políticas: o aumento da produção nacional centrada no mercado interno; a redução da desigualdade social; e o fortalecimento de relações externas Sul-Sul, tendo como instrumento para essa última política o nosso “soft power”. Essa estratégia – geralmente associada ao neodesenvolvimentismo – foi implementada sem alteração do chamado “tripé” de políticas macroeconômicas: a livre flutuação cambial; uma política monetária conservadora, que utiliza a taxa de juros como único instrumento de ação; e uma política fiscal restritiva de obter superávits para sustentar a dívida pública. Desse modo, a estratégia permitia atender a reivindicações tanto do capital como do trabalho, com o Estado fazendo concessões que traziam sustentação e estabilidade ao governo, desde que houvesse crescimento do “bolo”. Essa estratégia, mesmo com a manutenção do “tripé”, obteve um sucesso extraordinário, até 2010- Economia 2011, tendo inclusive, a partir da grande crise internacional, sido capaz de sustentar uma forte política anticíclica, inicialmente bem sucedida. O sucesso inicial da estratégia deveu-se a duas causas fundamentais. A primeira, a boa condução política por parte do governo. E a segunda, a conjuntura internacional favorável, iniciada em 2003, de grande liquidez externa (dólar abundante e a baixa taxa de juros), associada a uma inversão nos termos de troca no comércio internacional, baseada na forte expansão de consumo conjunto dos EUA, União Europeia e China, que se estendeu até a eclosão da crise internacional de 2007-2008. A inversão dos termos de troca favoreceu o comércio externo do Brasil, bem como o de toda a periferia, em especial no período pré-crise. Houve também uma entrada de investimento externo, gerando uma entrada recorde de divisas. Isso aconteceu mesmo com a desvalorização do dólar, tal era a força da demanda mundial. Após 2008, com essa demanda caindo e uma desvalorização mais forte do dólar, os termos de troca voltaram a ser desfavoráveis à periferia, retomando sua condição secular. No Brasil, a acumulação de superávits comerciais no período foi transformada em uma grande reserva internacional de dólares, formando um colchão de liquidez e uma barreira contra ataques especulativos, protegendo o país de uma futura escassez de divisas que levaria ao colapso cambial, como vem acontecendo sucessivamente após as fases de prosperidade da economia nacional desde o século 19. Logrou-se com isso um sucesso inédito, pois as reservas internacionais suspenderam a restrição externa, característica fundamental das economias dependentes. O sucesso também nas contas externas, apesar do dólar fraco, abasteceu largamente o mercado interno, somando-se ao aumento da produção local. O que proporcionou, sem maiores obstáculos, uma re- 83 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 distribuição significativa de renda, a elevação da produção nacional, baixa inflação e bons resultados fiscais. 2. A crise e a perda de competitividade: a inversão das expectativas Como se sabe, a fase de prosperidade internacional anterior a 2008 escondia a gestação do colapso do sistema capitalista internacional, invertendo a situação favorável. Os preços internacionais caíram, tanto para bens primários como para bens industriais. Essa queda revelou a desagradável realidade de que tínhamos perdido competitividade externa da indústria durante a bonança, mantendo, embora de forma mais desacelerada, a tendência do mais longo prazo, sempre desvantajosa para a periferia. Esse declínio de competitividade atingiu tanto as exportações como a concorrência no mercado interno. O que é bem ilustrado pela participação relativa da indústria na formação do Produto Interno Bruto (PIB) e na pauta de exportação (Gráfico 1). A competitividade é determinada por variáveis econômicas e institucionais, dentre as quais se destacam: a produtividade do capital e do trabalho, os custos de infraestrutura, em especial de energia e transporte, e as políticas macroeconômicas, em especial a política cambial. Quanto à produtividade, houve uma queda relativa frente aos parceiros comerciais, devido tanto ao capital industrial por não ter evoluído o suficiente para ganhar mais produtividade do trabalho, quanto ao enfrentamento de uma rápida evolução do salário real desde 2005 – pelo menos para a camada inferior dos salários. Os gargalos da infraestrutura de transporte e de energia, fruto de décadas de sucateamento e de má regulamentação, foram outras fontes de elevação de custo. Em especial, porque a burocracia estatal torna muito lentas as obras de retomada da ampliação dessa infraestrutura. A continuidade das políticas macroeconômicas que privilegiam a acumulação financeira – com a manutenção de altas taxas reais de juro – e mantêm a flutuação cambial foi o mais importante fator na 84 elevação dos custos industriais. A política de flutuação cambial, em particular, que permite uma tendência permanente de valorização do real, tornou-se a causa principal da desvantagem de nossa indústria. A característica da variação cambial, de agir no curto prazo e com grandes margens de flutuação das taxas, pode desfazer em um mês ou menos ganhos de produtividade e de custos de infraestrutura acumulados em anos. 3. O comportamento do capital industrial frente à crise Mesmo com esse conjunto de fatores adversos, a fase de prosperidade deteve a queda da participação da indústria no PIB, que vinha se acentuando desde a década de 1990 (ver Gráfico 1). Assim, o crescimento mais acelerado da economia concentrou-se nos setores primário e de serviços. O enfraquecimento relativo da indústria continuou pela perda de mercados externos e pela abertura de espaço para o avanço da importação, que inundou de manufaturas o mercado nacional. Mesmo nos anos de crescimento acelerado, parte da produção industrial nacional já começava a migrar. Insumos começaram crescentemente a ser importados de países rivais, transferindo crescentemente a produção para o exterior. Um movimento que vem encurtando a cadeia de produção interna e a agregação de valor. Em vários casos a indústria limitou-se apenas a montar no país seus produtos finais ou transformou-se em empresa importadora. Economia Tabela 1 - Exportações e importações de bens industriais entre Brasil e países industrializados em crise (EUA, Europa Oc., Japão) - US$ milhões Exportações Importações Déficit BR Crescimento 2001-02 (recessão) 0% -13% -61% 2001 24.656 41.098 -16.442,5 2002 26.074 34.211 -8.137,2 Crescimento 2003-06 (crescimento) 84% 48% -66% 2003 29.619 32.838 -3.219,4 2004 37.641 39.812 -2.170,9 2005 42.317 45.471 -3.153,8 2006 47.860 50.629 -2.769,3 Crescimento 2007-13 (crise) 4% 143% +2.638% 2007 53.965 65.493 -11.527,2 2008 58.148 89.692 -31.544,4 2009 37.769 71.789 -34.020,7 2010 45.467 95.304 -49.837,1 2011 54.625 114.500 -59.875,6 2012 52.783 114.797 -62.013,6 2013 49.930 122.993 -73.063,9 Fonte: Comex, MDIC A situação agravou-se rapidamente após a inversão dos termos de troca e à medida que o grande capital, pondo em dúvida a viabilidade da estratégia “neodesenvolvimentista” frente à continuidade da crise internacional, reduziu seu investimento e mais ainda a participação de capital próprio no financia- mento do investimento. Como se vê na Tabela 1, o grande déficit explodiu no período da crise (2007 em diante), quando os grandes países industriais com seus custos de trabalho deprimidos pelos cortes de direitos trabalhistas e pelo desemprego aproveitaram a chance de invadir um dos únicos mercados internos do mundo que mantiveram sua expansão e permaneceram abertos à importação. Em termos políticos, esse novo posicionamento do grande capital, em especial a partir de 2012, levou à quebra do equilíbrio na base social que sustentava o governo, permitindo o avanço das oposições. 4. A continuidade do esforço do crescimento num mundo hostil e a divergência com as classes dominantes Mesmo tendo o mundo mudado após 2008, o governo Dilma persistiu na estratégia “neodesenvolvimentista”. Diante da situação cada vez mais premente da perda de competitividade, seu governo adotou várias iniciativas para recuperar a competitividade, ao tempo em que mantinha a política distribuidora de renda via benefícios sociais e os ganhos reais do salário-mínimo. Sua primeira iniciativa, no entanto, inovou a estratégia com uma mudança na política de juros com o objetivo de desestimular a entrada de dólares especulativos no país e, assim, reduzir a valorização do real, principal problema a afetar nossa competitividade. Por iniciativa do Banco Central, em agosto de 2011, houve uma mudança radical na política de juros altos com a rápida e progressiva redução da taxa básica. A inédita iniciativa, que mexia na política monetária, também trazia ganhos para a economia e o fisco: reduzia o custo do crédito doméstico e aliviava o aumento do custo fiscal do subsídio à crescente carteira de financiamento do BNDES. Como se vê no Gráfico 2, a redução na taxa de juros real atingiu valores inferiores a 2% ao ano em 2013. Entretanto, a redução não teve nenhuma ação sobre o câmbio, que continuou a se valorizar. Além disso, a partir de 2012, ocorreu uma ines- 85 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 perada elevação da taxa de inflação que, depois, se mostrou persistente. Esses resultados adversos fizeram com que a política perdesse sustentação ao longo de 2012, e o BC abandonasse a iniciativa, em meados de 2013, retomando a elevação dos juros(Gráfico 02). A derrota deveu-se à inesperada ação do FED (Federal Reserve) em retomar sua política de “afrouxamento quantitativo” (quantitative easy) de 20082010, emitindo, no período 2011-2013, um trilhão e meio de dólares, 10% do PIB dos EUA, com o objetivo de desvalorizar o dólar (Tabela 2). Uma iniciativa que logo foi seguida pela ação defensiva dos maiores bancos centrais do mundo em defesa de suas moedas, fazendo emissões que, no seu total, atingiram alguns trilhões de dólares. Com a desvalorização do dólar frente às demais moedas, essa verdadeira “guerra cambial” neutralizou a política brasileira desde seu início, fazendo o real não só manter sua valorização como aumentá-la. Tabela 2 - Emissão monetária dos principais bancos centrais pós-crise – Valor de ativos em carteira dos bancos centrais, em % do PIB de cada país 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 B. Inglaterra 5 18 15 18 20 27 27 BCE 15 21 20 21 25 32 23 FED 5 12 20 21 28 31 22 B. Japão 24 27 28 28 30 33 21 Fonte: FMI Sem conseguir resolver o principal problema que afetava a competitividade, o governo voltou-se para outras soluções. Empenhou-se então em um grande esforço para reduzir o custo do investimento privado e reduzir os custos de infraestrutura. Para financiar o investimento, o BNDES ampliou ainda mais sua carteira de empréstimo, a juros subsidiado. Lançou-se mão também de isenções tributárias, dirigidas tanto à produção interna como à exportação. Mas a contrário senso, os investimentos privados continuaram seu recuo, iniciado em 2010, com o capital mantendo-se em defensiva, e passando a pleitear um ajuste fiscal frente ao retorno da inflação e ao enfraquecimento fiscal do governo. Mesmo diante da mudança de posição do capital frente ao investimento, os recursos baratos e abundantes de financiamento continuaram a jorrar. Mas, em vez de se somarem aos recursos privados, o financiamento apenas substituiu os recursos privados (Tabela 3). Como resultado, a expansão do financiamento fez com que, na prática, o BNDES e outros bancos públicos se tornassem os principais financiadores de todo o investimento privado, além de financiar a forte 86 expansão das empresas estatais. Na prática, o financiamento do investimento de capital foi estatizado. Tabela 3 - Fonte de financiamento do investimento privado em % do total Média 2006-08 2009-13 Fontes públicas 47,7 60,0 Fontes privadas 52,3 40,0 Fontes: Ministério da Fazenda; Ministério do Planejamento; Banco Central. Elaboração própria. Essa “estatização” do financiamento, juntamente com a expansão das estatais, criou ainda maior desconfiança no capital, mesmo que dela se beneficiando. Em outra frente de ataque, o governo voltou-se para a redução dos custos internos, via incentivos fiscais e redução de tarifas de infraestrutura, trazidas por novas regulamentações em dois importantes setores: o da energia elétrica e o dos portos. Ações que também teriam efeitos sobre a taxa de inflação, reduzindo a pressão sobre os preços. As isenções fiscais se sucederam sempre de forma pontual destinando benefícios para segmentos específicos ou tipo de produtos a este ou àquele setor, numa enxurrada. Elevando sobremaneira o custo fiscal, sem contrapartida visível nos preços. Já as iniciativas de regulamentação da energia elétrica e dos portos – embora corretas – terminaram por prejudicar ainda mais a relação do governo com os grandes capitais. Embora a reforma das tarifas de energia tenha gerado de imediato uma redução expressiva dos custos industriais, causou forte perda de caixa para as operadoras do sistema e gigantescos prejuízos a fundos de investimento em ações e deprimiu a bolsa de valores, gerando hostilidade das operadoras e de todo o mercado financeiro. Por outro lado, a crise hídrica de 2013-2014 terminou por elevar as tarifas acima dos valores anteriores, anulando de imediato o ganho obtido e ainda obrigando o governo a socorrer as distribuidoras de energia, criando outro passivo para o Estado. Já a reforma da regulamentação do setor portuário, apesar de trazer mudanças reclamadas por um setor de novos investidores, desagradou fortemente o grupo de antigos operadores concentrados nos grandes portos (Santos, Paranaguá, Rio de Janeiro etc.). E como os efeitos positivos de novos portos levarão anos para aparecer, restou, de imediato, o confronto político com esse setor do capital. Essas ações também fracassaram. Não geraram, de imediato, nenhum efeito sobre a competitividade e nem mesmo sobre a taxa de inflação, que manteve Economia sua tendência de alta. Por outro lado, trouxeram uma hostilidade generalizada dos grandes capitais financeiros e produtivos contra o governo, e que ainda permaneceram frustrados pela não adoção de um ajuste fiscal que trouxessem medidas anti-inflacionárias, reduzindo a demanda e afetando a renda dos trabalhadores. Colocado contra a parede, o governo Dilma fez a opção por manter os ganhos do trabalho e a elevação dos gastos públicos, na tentativa de manter a demanda e proteger o nível de vida do povo. Embora o nível de consumo do povo tenha se mantido, o estado da economia só piorou, juntamente com a competitividade externa. Pela primeira vez, a economia ia mal, enquanto o povo continuava bem. Mas a situação tornou-se insustentável, gerando uma crise de confiança. 5. As consequências indesejadas da estratégia no sistema internacional em crise Dessa forma, com a persistência da crise internacional, a continuidade da estratégia de elevação da renda interna das camadas mais baixas (por benefícios previdenciários e assistenciais e pela valorização do salário mínimo) acabou por agravar o conjunto dos problemas. Por um lado, com a continuidade da política distributiva a demanda continuou a subir, mas por outro lado, graças à reação defensiva do capital, não houve contrapartida na produção. O que aumentou a oportunidade de exportação para o Brasil por parte de países industriais em crise e para a China. Viabilizando a sobrevivência de capitais que não mais contavam com seus mercados internos em forte recessão. Ao contrário do pretendido, em vez de o mercado interno fazer crescer os capitais internos, ampliando seus investimentos, ajudou a acumulação de capitais nos países industriais. A estratégia “neodesenvolvimentista”, com o “tripé” macroeconômico, passou a ser contraproducente com o crescimento, a expansão do capital nacional e uma melhora sustentada das condições de vida do povo. Não por ser uma estratégia equivocada desde o princípio, mas por não ter sido adaptada a uma situação de crise internacional sistêmica, que gerou medidas agressivas dos EUA e do centro capitalista, criando um ambiente hostil ao crescimento da periferia. E o problema central, mas não único, foi o não rompimento com o “tripé” de políticas macroeconômicas, especialmente coma livre flutuação cambial. Isso talvez pudesse ser feito nas condições políticas de 2010 e 2011, mas essas condições se perderam daí em diante, coma inversão da correlação de forças com o conservadorismo. 6. A imposição do ajuste fiscal Por essa situação insustentável e pela inversão da correlação de forças, a proposta do capital do ajuste fiscal acabou por se transformar em uma opção inelutável. O que falta é investimento e produção e, mas a realidade é que o grande capital não se dispõe a fazê-lo enquanto a inflação não seja debelada, o setor estatal volte a se ajustar e o Estado retorne a sua condição de produzir superávit para dar sustentação ao valor da dívida. O que só se pode alcançar com o ajuste fiscal. Para o capital são essas as únicas condições que trarão de volta a competitividade e o crescimento. A teoria ortodoxa, mesmo não sendo correta, é aquela em que o capital acredita, o que faz com que ela possa mudar as expectativas em uma situação crítica. Medidas que mantenham a demanda e a elevação da renda do trabalho, na atual situação, resultarão apenas em um desastre de inflação alta, déficit fiscal, crise nas contas externas e perda de divisas, forçando um ajuste fiscal ainda mais radical e draconiano. Mesmo que o ajuste fiscal não traga garantia de uma breve retomada do crescimento, ele tornou-se, infelizmente, na única opção politicamente disponível. É útil relembrar que, enquanto vivermos no capitalismo, a variável principal da economia é a acumulação do capital. E, a contrário senso, o que move a acumulação é a expectativa de maior taxa de lucro e o baixo risco, não apenas a demanda. São as limitações próprias do capitalismo e de suas crises. Desse modo, concluo que o ajuste fiscal na situação da política atual deve ser considerado seriamente. Não para substituir a estratégia do “neodesenvolvimentismo”, mas como instrumento emergencial à manutenção dessa estratégia em longo prazo. A estratégia dos governos Lula não se mostrou errada; o problema, a meu ver, foi não ter havido sua adaptação às condições da crise, introduzindo medidas defensivas, como fizeram outros países, em defesa da economia nacional. Embora sejam claros os limites da atual correlação de forças, não é possível ser favorável a qualquer medida adotada pelo ajuste fiscal. É necessário manter a defesa dos direitos dos trabalhadores e de suas conquistas sociais. Os ajustes devem ser efetivos para que haja uma reversão das expectativas, devendo surtir efeitos ainda em 2015, mas não podem ser centrados na redução da proteção do emprego, da renda do trabalho e dos direitos conquistados. * Lecio Morais é economista, mestre em Ciência Política e assessor parlamentar na Câmara dos Deputados 87 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Terceirização: um velho fantasma (1) Tamara Naiz Silva* Movimento sindical luta há mais de uma década contra o projeto que pode representar um retrocesso histórico poara os trabalhadores Historicamente, o capital sempre buscou se valorizar a partir da desnutrição dos direitos dos trabalhadores. A volta à tona do fantasma da terceirização é mais um capítulo dessa disputa. O PL 4330 de 2004 é nocivo aos trabalhadores e à sociedade, de modo que não podemos permitir que se efetive como lei 88 Brasil A partir do final da década de 1970 Na dimensão do mercado de trabalho, a busca da houve uma forte reorganização flexibilidade exige a “livre contratação” entre capital produtiva que impôs sérias consee trabalho, sem nenhum tipo de restrição; exige a quências econômicas e sociais aos “livre negociação” sem intervenção e regulamentatrabalhadores ao redor do mundo. ção por parte do Estado. A finalidade é flexibilizar Ela se manifestou de distintas fora jornada de trabalho, a remuneração e os direitos mas nos espaços nacionais, mas, como tendência sociais existentes. Na mesma direção, merecem ser geral, induziu as empresas (as grandes corporadestacados os novos tipos de relacionamento entre ções) a adotarem mudanças organizacionais, toras empresas, através das diversas formas de subconnando-se mais enxutas, flexíveis e descentralizadas, tratação, em especial a terceirização; todas com o tanto nos processos de produção como nos de disobjetivo de diminuir custos e de reduzir o efetivo de tribuição. Em outras palavras, as grandes e médias mão de obra ao mínimo possível. O movimento parte empresas repassam atividades e das empresas maiores, detentoras funções para outras, através da de mais poder, transferindo resterceirização, da subcontratação, ponsabilidades e riscos para as meA partir do final da da organização dos condomínios nores (FILGUEIRAS, 2012). década de 1970, industriais e do consórcio moNo período aqui citado, a partir a desregulação dular. Assim, em termos gerais, do final da década de 1970, a desocorre uma concentração e cenregulação econômica se deu sob o econômica se deu tralização de capital com descondomínio do capital financeiro, sensob o domínio do centração da produção e aumendo a partir dela edificados diferento da flexibilidade organizacional tes tipos de flexibilidade, entre os capital financeiro, (KREIN, 2001; SILVA, 2013). quais: sendo a partir Em linhas gerais, podem ser citadas importantes mudanças no “A Flexibilidade produtiva ou dela edificados mercado de trabalho a partir de organizacional: quando as emdiferentes tipos de tais premissas e que afetaram o presas, dada a crescente instabiliflexibilidade sindicalismo e as relações de tradade e insegurança com a globalibalho, sendo que as principais muzação financeira, reestruturam-se danças vieram já durante a década para se tornarem mais integradas e de 1980 e na primeira metade da flexíveis, através da adoção de uma década de 1990, em boa parte dos países europeus. série de novos métodos organizacionais (como kanban, just in time, trabalho em grupo, células de produEssas mudanças foram, conforme Krein (2001, p. ção, condomínio industrial, consórcio modular etc.), 25-26), de dois tipos: 1) as que proporcionam um deou a implementação de novas estratégias por parte sequilíbrio contra os trabalhadores, com o aumento das empresas (como descentralização, focalização na do desemprego, a diminuição dos servidores do seatividade fim, terceirização etc.). Trata-se, em síntetor industrial, o aumento dos trabalhadores do setor se, da flexibilidade introduzida pela reestruturação de serviços e a perda de dinâmica do setor público da empresa, de forma a possibilitar o ajuste do uso em gerar novos empregos; 2) as que introduzem noda força de trabalho, o que pode ocorrer de forma vas formas de uso do trabalho, tais como o aumenparalela e independente da alteração via negociação to das ocupações precárias nas pequenas empresas coletiva ou lei. Todo esse processo redefine a forma e na economia informal, principalmente através da da relação capital e trabalho e do envolvimento do reestruturação produtiva (terceirização); o aumento trabalhador na empresa. Com as pessoas que sobredo trabalho clandestino não registrado (estrangeiro vivem ao processo de reestruturação, as empresas e trabalho em casa) e o crescimento do trabalho atíprocuram ajustar a organização do trabalho, mepico (trabalho em tempo parcial, contratos por prazo xendo na forma de estruturar as funções (adoção definido, contratos de formação profissional). da polivalência) dos trabalhadores e em disposições Essas formas diferentes do uso do trabalho foram que permitem uma mobilidade interna maior. Enjustificadas pela necessidade de flexibilizar e reduzir o fim, buscam internalizar a determinação do uso do custo do trabalho. Sob o impacto dessas transformatrabalho. (...) ções o movimento sindical passou a vivenciar, sobreA Flexibilidade quantitativa ou numérica: amtudo a partir dos anos 1980, crescentes dificuldades de plia a liberdade das empresas para empregar e demiatuação e queda da taxa de sindicalizados (2) (tanto tir de acordo com as necessidades da produção, atrana indústria, como no mercado de trabalho em geral). 89 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 vés de uma estratégia de diminuição de custos. Ela as implicações dessa reestruturação produtiva nas pode acontecer tanto para trabalhadores já emprerelações de trabalho podemos citar: A) Ela tem cogados, com a terceirização e subcontratação, como mo consequência o estabelecimento de negociações para trabalhadores novos, através de contratos “atídescentralizadas, já que os interesses entre os trabapicos” (trabalho temporário, parcial, autoemprego, lhadores terceirizados e os da empresa-mãe tornam-se consultoria, a domicílio, teletrabalho) e ilegais (sem cada vez mais diluídos; B) os processos de descenregistro em carteira), ou pelo aumento do trabalho tralização, terceirização e deslocamento para outra clandestino não registrado (trabalho estrangeiro, esregião são utilizados para diminuir o poder sindicravo e em casa). Consiste, então, nas iniciativas que cal; como disse Krein, “ajustar” os instrumentos facilitam o ajuste da força de trabalho à demanda da normativos e pressionar no sentido do aumento da empresa, podendo ser implemenprodutividade, como também para tada como: reduzir o número de trabalhadores presentes nas categorias organiza• Flexibilidade de demissão A terceirização das. Desse modo, essas novas esdos trabalhadores, quando se tratégias proporcionam, um nível ampliam as causas que justificam e a polivalência, maior de flexibilidade organizaa demissão ou diminuem o monpraticadas sob a cional as empresas (KREIN, 2001). tante da indenização na rescisão do navalha da ameaça Desse modo, o processo de mucontrato. São as iniciativas de redanças vivenciado impacta profundução de custos da rescisão e/ou a recorrente do damente nas relações entre capital eliminação de mecanismos de iniprogresso técnico e trabalho. Para a grande maioria bição da dispensa imotivada. das populações, ao provocar o sur• Flexibilidade na contratasobre a condição de gimento do desemprego estrutural ção, quando se flexibilizam as foremprego, deram às e das mais variadas formas de premas de ingresso dos trabalhadores carização do trabalho, esse procesna empresa, adotando incentivos de empresas um poder so atinge o item fundamental que entrada, como contratação por temimportante de gestão estrutura a vida das pessoas, qual po determinado, jornada parcial, da mobilidade do seja, o próprio trabalho. Essa precontratos de experiência, contratos carização atinge ainda a própria temporários, estágios etc.” (KREIN, trabalho segundo identidade e representação dos 2001, p. 30-31, grifos no original). seus interesses trabalhadores, por meio do recurso de destruição e segmentação dos Essas alterações na produção, coletivos e classes de trabalho, propossibilitadas pelas inovações técmovidos pelas práticas de subconnicas e organizacionais, foram protratação e de terceirização, que desvinculam parcelas gressivamente corroendo a densidade do contrato de crescentes dos trabalhadores das grandes empresas e trabalho por tempo indeterminado, instabilizando o agravam a crise dos sindicatos. trabalho assalariado. Ao mesmo tempo a terceirização Aterrissando na especificidade do caso brasileiro, e a polivalência, praticadas sob a navalha da ameaça já nos anos 1990, enquanto o governo buscou privirecorrente do progresso técnico sobre a condição de legiar a atuação dos agentes privados, com suas deemprego, deram às empresas um poder importante cisões de curto prazo, a abertura comercial expôs o de gestão da mobilidade do trabalho segundo seus insetor produtivo nacional, sobretudo a indústria, a teresses. Na perspectiva dos trabalhadores, passou a uma concorrência destruidora, que levou à desnacioser fundamental defender a simples situação de emnalização ou ao fechamento de parte de seu aparelho. prego, perdendo espaço para as demandas relativas Essa nova realidade econômica impôs às emàs condições de trabalho (DEDECCA, 2010; BRAGA, presas que se mantiveram instaladas no Brasil um 1997; KREIN, 2001; SILVA, 2013). rearranjo, a partir de um forte processo de reestruSão bastante distintas as estratégias adotadas peturação produtiva. As empresas promoveram signilas empresas, mesmo assim é possível perceber que ficativos cortes de pessoal, se desverticalizaram (3), todas elas implicam uma reorganização produtiva, centraram o foco de suas atividades em segmentos alterando os processos de trabalho e, em decorrênde mercado nos quais possuíam maior capacidade de cia, as relações de trabalho, sobretudo nos setores competição, redefiniram produtos e processos, adoeconômicos mais dinâmicos. A empresa organiza-se taram técnicas de produção flexíveis, poupadoras de maneira mais flexível e, portanto, procura obter de mão de obra, e pressionaram pela flexibilização relações de trabalho, também, mais flexíveis. Entre 90 Brasil Gustavo Lima/Agência Câmara Deputados erguem cópias ampliadas de carteiras de trabalho em sinal de protesto contra a aprovação do PL 4330 na Câmara das relações com seus trabalhadores. Souza (2007) aponta ainda que colocaram em prática, também, um acentuado processo de descentralização produtiva, que transferiu plantas industriais para espaços geográficos caracterizados por níveis mais baixos de organização e remuneração da força de trabalho e maiores incentivos fiscais. Nesse contexto, essas novas ocupações, ainda que ligadas à atividade industrial, são cada vez mais instáveis e precárias. Segundo dados da Pnad, o grau de formalização da indústria de transformação caiu de 72,5%, em 1989, para 62,9%, em 1999. A literatura sobre o tema demonstra que as inovações mais comuns nas empresas são os “novos métodos de organização” da produção e do trabalho e da gestão do trabalho e da produção, devido, entre outros fatores, ao ambiente de incerteza econômica que o país viveu nos anos 1990. Novos equipamentos são caros e o investimento, no momento de incerteza, tende a cair. A esse respeito Mattoso e Pochmann, no artigo “Mudanças estruturais e o trabalho no Brasil nos anos 90”, destacam que: “(...) diante da permanência de um cenário econômico desfavorável nos anos 90, com dificuldades de introdução da inovação tecnológica, algumas empresas estariam utilizando apenas parcialmente a tecnologia de produto e processo, enquanto a maioria delas estaria obtendo ganhos de produtividades a partir de algumas transformações na natureza do trabalho, das qualificações e do processo de trabalho” (MATTOSO; POCHMANN, 1998, p 20). Embora sejam as mudanças organizacionais as mais comuns, elas ocorrem de forma bastante desigual, considerando o conjunto da estrutura produtiva. Observa Krein (2001, p 90) que, em grande parte das empresas “ainda predomina o uso do padrão predatório da força de trabalho”. Apesar disso, a reestruturação está presente nos setores onde há maior tradição de negociação coletiva no Brasil. Por isso, mesmo que ela apareça de forma desigual, faz-se necessário discutir suas principais características. Entre elas, destacam-se: • A relação entre as empresas (desverticalização, focalização, terceirização, parcerias e incorporação, consórcio modular e condomínio industrial); • a organização geral da empresa (desdepartamentalização, criação de unidades de negócios, minifábricas, novos critérios de contabilidade de custos etc.) • a organização da produção (produção enxuta, just in time/Kanban e manufatura celular); • a organização do processo de trabalho (controle estatístico de processos, trabalho polivalente e trabalho em grupos); • a gestão do trabalho e da empresa (programas de qualidade total, redução dos níveis hierárquicos, “gestão ou sistemas participativos”, Círculos de Controle de Qualidade, participação nos lucros ou resultados/remuneração variável, bancos de horas/ modulação da jornada e outros) (KREIN, 2001, p. 90-91). 91 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Nova forma de organização do trabalho procura conquistar a confiança dos trabalhadores com o discurso de participação, promovendo entre eles uma competição De forma generalista, são mudanças que pretendem, do ponto de vista da empresa, um movimento de racionalização da produção e dos custos, uma tentativa de melhorar o controle da empresa sobre o processo de trabalho e produção e uma tentativa de mudar a atitude do trabalhador perante a empresa – de uma atitude de “trabalhador” para uma de “colaborador ou parceiro”. Trata-se de um processo cuja justificativa está na preparação da empresa, a partir de uma flexibilidade maior e integração, para as novas condições de competitividade, procurando fazer com que o trabalhador seja seu “parceiro” nesta empreitada. É notável que tenha havido, nos anos 1990, no Brasil, um processo de reestruturação produtiva alicerçada mais nas inovações organizacionais do que nas tecnológicas. Além disso, a reestruturação foi favorecida também pela “estratégia de desenvolvimento”, que privilegia a busca da “microeficiência” (eficiência das empresas e não do conjunto da economia). Isto é, o governo brasileiro apostou num modelo de desenvolvimento que seria a partir da maior capacidade de competitividade das empresas aqui instaladas, desse modo desenvolveu uma política que tentava propiciar um ambiente econômico de favorecimento das empresas para que adquiram competitividade (DEDECCA, 2003). Enfim, cria-se um ambiente institucional, político e econômico em que a “salvação nacional” parece passar pela competitividade das empresas (BRASIL, 1998). 92 Para enfrentar essa nova realidade, as empresas estabelecem novas estratégias, com implicações no mercado e nas relações de trabalho. Estratégias que são bastante distintas, como: 1) Organização da empresa em rede (4); 2) fusões, associações, parcerias, aquisições, incorporações (5); 3) combinação de unidades produtivas mais descentralizadas com uma diversificação (6); 4) descentralização combinada com terceirização (7); 5) deslocamento de empresas (8). Ao que parece esta nova lógica da organização da produção é, do ponto de vista do proletário, contraditória, pois, ao mesmo tempo em que obriga os trabalhadores a uma nova forma de organização do trabalho e da produção (como as formas acima citadas: terceirização, trabalho polivalente, programas de qualidade total, etc.) também quer, por meio das novas formas de gestão do trabalho, conquistar a confiança dos trabalhadores com o discurso de participação, com isso promovendo entre eles uma competição. Assim, o processo de mudanças iniciado em âmbito mundial impactou de forma profunda nas relações entre capital e trabalho, acarretando variadas formas de precarização do trabalho. Precarização que alcançou até mesmo a identidade e representação de classe dos trabalhadores, por meio do recurso de destruição e segmentação dos coletivos e classes de trabalho, promovidos pelas práticas de subcontratação e de terceirização, que desvinculam parcelas crescentes dos trabalhadores das grandes empresas e agravam a crise dos sindicatos. Brasil O PL 4330/2004: A terceirização volta a assombrar, agora com maior força Logo ao iniciar o novo mandato presidencial e parlamentar, no ano de 2015, o fantasma da terceirização volta a rondar com maior força que nunca o cotidiano dos trabalhadores brasileiros, isto porque o setor empresarial tem se articulado e cobrado pelo avanço da flexibilização das relações e direitos trabalhistas, amplamente difundida no país nos anos 1990. Neste início de legislatura, voltou à cena um Projeto de Lei (4330/2004), que dispõe sobre o contrato de prestação de serviço a terceiros e as relações de Acidentes de trabalho acontecem com muito mais frequência entre trabalhadores terceirizados trabalho dele decorrentes. Partindo da premissa de que há necessidade de uma contínua regulação do mundo do trabalho, esse projeto não pareceria ruim, Ainda segundo diversos dados que vêm a conhemas em seu conteúdo são ressuscitados questões e cimento público recentemente (9), torna-se transpaataques a direitos, trazidos à tona desde o início da rente o fato de que o trabalho terceirizado tem uma ofensiva neoliberal mundo afora. Dedico-me a aprequalidade menor em face aos postos de trabalho diresentar algumas dessas questões. tos. Alguns desses dados escancaram a questão: para Regular os contratos em regime de terceirizase ter ideia, pelos dados do Departamento (DIEESE), ção é uma necessidade dada, mas o salário de trabalhadores terceiesta lei, ao invés de avançar nesrizados é 24% menor do que o dos Com a nova lei, te ponto, garantindo mais direiempregados formais (DIEESE); tertos aos trabalhadores em regime ceirizados trabalham, em média, 3 ficará mais difícil terceirizado, retrocede no sentido horas a mais por semana do que os responsabilizar de ampliar as possibilidades da contratados diretamente (DIEESE); terceirização, já em crescimento terceirizados são os empregados que empregadores vertiginoso no país, para todas as mais sofrem acidentes (DIEESE); a que desrespeitam áreas e os setores da economia. Em maior ocorrência de denúncias de os direitos seu parágrafo segundo, do artigo discriminação está em setores onde 4º, estabelece que: “O contrato de há mais terceirizados (CUT); terceitrabalhistas porque prestação de serviços pode versar rizados que trabalham em um mesa relação entre a sobre o desenvolvimento de atimo local têm patrões diferentes e vidades inerentes, acessórias ou são representados por sindicatos de empresa principal complementares à atividade ecosetores distintos. Essa divisão afeta e o funcionário nômica da contratante.”. Já em a capacidade de eles pressionarem seu artigo 5º o PL apresenta que por benefícios. Isolados, terão mais terceirizado fica mais “São permitidas sucessivas condificuldades de negociar de forma distante e difícil de tratações do trabalhador por diconjunta ou de fazer ações como ser comprovada ferentes empresas prestadoras de greves; a mão de obra terceirizada serviços a terceiros, que prestem é usada para se tentar fugir das resserviços à mesma contratante de ponsabilidades trabalhistas. Entre forma consecutiva”. 2010 e 2014, cerca de 90% dos traColocado dessa forma, o PL permite a terceiribalhadores resgatados nos dez maiores flagrantes de zação mesmo nas atividades principais da empretrabalho escravo contemporâneo eram terceirizados sa, também conhecidas como atividades-fim, coisa (MTE). Com a nova lei, ficará mais difícil responsabique a legislação brasileira não permite atualmente. lizar empregadores que desrespeitam os direitos trabaAlém disso, o artigo quinto deixa livres as subconlhistas porque a relação entre a empresa principal e o tratações de forma ilimitada. E o trabalhador sairá funcionário terceirizado fica mais distante e difícil de fortemente prejudicado, pois a cada subcontratação ser comprovada (TST). Como o trabalho terceirizado seu salário será reduzido, de modo a garantir os lutransfere funcionários para empresas menores, isso dicros das empresas. minuiria a arrecadação do Estado (TST). 93 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Uma pequena reflexão A partir do retrospecto levantado, se torna aparente o modo pelo qual o capital busca se valorizar a partir da desnutrição dos direitos dos trabalhadores. A volta à tona do fantasma da terceirização é mais um capítulo dessa disputa. O PL 4330 de 2004 é nocivo aos trabalhadores e à sociedade, de modo que não podemos permitir que se efetive enquanto lei. * Tamara Naiz Silva é doutoranda em História pela Universidade Federal de Goiás e presidenta da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG). Referências bibliográficas BRAGA, José Carlos de Souza. “Financeirização global – o padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo”. In: TAVARES, Maria da Conceição & FIORI, José Luis (org.). Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 195-242. CARDOSO JR, José Celso. “Crise e desregulação do trabalho no Brasil. Tempo Social”. In: Revista de Sociologia da USP 13 (2): 31-59, Dossiê trabalho e modernidade, novembro de 2001, p.35-59. DEDECCA, Claudio Salvadori. Anos 90: a estabilidade com desigualdade. Trabalho, Mercado e Sociedade. São Paulo: Editora Unesp; Campinas (SP): Instituto de Economia UNICAMP, 2003, p.71-106. DEDECCA, Claudio Salvadori. “Trabalho, financeirização e desigualdade”. In: Texto para discussão n° 174, Campinas (SP): IE/Unicamp, 2010. FILGUEIRAS, Luiz. História do Plano Real. São Paulo: Boitempo, 2012. GALVÃO, Andreia. Neoliberalismo e reforma trabalhista no Brasil. Rio de Janeiro: Revan/ Fapesp, 2007. KREIN, José Dari. O aprofundamento da flexibilização das relações de trabalho no Brasil nos anos 1990. São Paulo: Unicamp, 2001 (Dissertação de Mestrado). LOCATELLI, Piero. Nove motivos para você se preocupar com a terceirização. Disponível me: Portal Fórum: http:// www.revistaforum.com.br/.../nove-motivos-para-vocese-preocupar-com-a-nova-lei-da-terceirizacao/?hc_ locarion=ufi MACIEL, David. Notas preliminares sobre os governos Collor e Itamar Franco (1990-1994), Goiânia: Manuscrito, 2012. MATTOSO, Jorge & POCHMANN, Marcio. “Mudanças estruturais e o trabalho no Brasil nos anos 1990”. In: Revista economia e sociedade: Unicamp, n°10, 1998, p. 213-243. SILVA, Tamara Naiz. Financeirização econômica e mercado de trabalho no Brasil. Goiânia: UFG, 2013 (Dissertação de mestrado). SOUZA, Marcelo Galiza Pereira de. Transformações no capitalismo contemporâneo e políticas públicas de auto ocupação. Campinas (SP): Unicamp, 2007 (Dissertação de mestrado). 94 Notas (1) Este artigo em parte se refere aos estudos, análises e resultados obtidos na pesquisa da dissertação de mestrado Financeirização econômica e mercado de trabalho no Brasil, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, sob orientação do professor Dr. David Maciel. (2) Mattos (2009) apresenta dados da OCDE (1991) que apontam que a sindicalização na indústria de transformação, entre 1980 e 1988, baixou nos EUA, na Itália, na Inglaterra e no Japão, respectivamente de 35% para 22%, de 57% para 47%, de 64% para 41% e de 35% para 32% do conjunto da força de trabalho empregada. (3) A literatura sobre o tema apresenta que o movimento de desverticalização das grandes empresas foi amplamente marcado pela terceirização de diversas atividades e pela recorrente utilização da subcontratação em substituição à contratação direta da mão de obra. Dessa forma, as grandes empresas conseguiram flexibilizar o uso da força de trabalho e aumentar a produtividade, transferindo custos e responsabilidades trabalhistas para as subcontratadas (na maioria das vezes, conta própria ou pequenos empregadores). (4) Presente somente nas grandes corporações transnacionais, que adotam o princípio da complementaridade das unidades produtivas. (5) Processo mais comum também nas grandes empresas e nos setores mais dinâmicos da economia, como metalúrgicos, bancários, farmacêuticos, energéticos e supermercados. Ao mesmo tempo, porém, há um processo de desmembramento de empresas. Este foi o caso de algumas grandes empresas estatais durante o processo de privatização; por exemplo, o setor energético de São Paulo (KREIN, 2001). (6) Diversificação de investimentos ou negócios. Mas, em outros setores, ocorre o contrário, com a especialização produtiva ou de prestação de serviços. Neste aspecto, a estratégia depende muito da localização da empresa no mercado (KREIN, 2001). (7) A terceirização aparece em todos os setores da economia, Ela pode ser efetivada de diversas formas, desde o sofisticado condomínio industrial ou consórcio modular, até a informalidade, nos casos mais precários (exemplo: trabalho em casa, “parceria familiar”) ou das “Cooperativas profissionais”. A terceirização, assim como a parceria, a desregulação e a subcontratação, permite ao empresário fazer frente, sem qualquer ônus, às oscilações da demanda por seus produtos/serviços. Em outros tempos, esse risco era parte do negócio capitalista; agora, o ônus recai sobre o trabalhador. Trata-se de mais um mecanismo de socialização dos riscos do empreendimento, mantendo-se, no entanto, a apropriação individualizada dos resultados. (8) As empresas vão para regiões que apresentam vantagens comparativas, como incentivos fiscais e um preço mais baixo da força de trabalho (devido ao grande excedente de trabalhadores(as) e à frágil presença sindical). (9) Os dados aqui apresentados têm como fontes: Relatórios e pareceres da Procuradoria-Geral da República (PGR), da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e de juízes do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Entrevistas com o auditor-fiscal Renato Bignami e o procurador do trabalho Rafael Gomes. De forma mais completa, podem ser acessados no compilado feito pela revista Forum: www.revistaforum.com.br em matéria de 08 de abril de 2015 intitulada “Nove motivos para você se preocupar com a nova lei da terceirização”. Brasil REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL Falsa solução no combate à violência Alice Portugal* A injustiça social no Brasil tem sentenciado por séculos, com abandono e a falta de oportunidades, os pobres, as mulheres, os negros. Nestes universos os mais jovens são as vítimas preferenciais. Não permitamos que uma suposta maioria parlamentar, forjada pelo financiamento privado indutor desta pauta regressiva, violenta e fundamentalista, apague lampejos de esperança nestes jovens. É preciso dizer NÃO à PEC 171/1993, que propõe a redução da maioridade penal P aira sobre o país uma nuvem de retrocesso político, mesmo após um processo democrático que legitimou o governo popular da presidenta Dilma e apontou caminhos para a mudança. Em desatino por terem sofrido a quarta derrota consecutiva, as elites econômicas, nacionais e estrangeiras, e seus partidos marionetes formam um consórcio oposicionista, com o amparo luxuoso da mídia corporativa. Põem uma lupa na crise econômica mundial e tentam atribuir todas, mas todas as “culpas”, ao governo, ao PT e à esquerda no Brasil. Entenda-se por “culpas” os rigores pelos quais todo o mundo se amarga com a disfunção do sistema do lucro. E nesta ambiência desfavorável às forças democráticas, ressurge no Congresso Nacional uma pauta regressiva, tentando descontinuar doze anos de incontestáveis avanços sociais. 95 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Bem ao contrário, os dados revelam que a redução da maioridade penal representaria um verdadeiro retrocesso quanto aos direitos adquiridos com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Isto somado aos esforços de aprovação e efetivação de inéditas políticas para a juventude. Estas passaram pela expansão da inclusão no ensino em todos os níveis, incluindo a adoção de cotas sociais e étnicas, soluções técnicas para quem está fora do binômio série/idade como o Pronatec, até a recente aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE) que, se posto em ação, mudará o cenário educacional em dez anos. Somos todos contra a violência Deputada Alice Portugal (PCdoB-BA) é uma das poucas vozes no Congresso Nacional que reverbera a posição de movimentos contrários à redução da maioridade A pauta é regressiva na política: segue a ameaça de pedido de impeachment da presidenta, golpes e que tais. Regressiva nos direitos: com a aprovação na Câmara dos Deputados do PL 4.330, que generaliza os contratos terceirizados, rasgando a CLT, levando a justos protestos a magistratura do trabalho e os trabalhadores. Regressiva nos costumes: com tentativas de imposições nos códigos legais de conceitos religiosos, comportamentais e nos pactos de vivência consolidados como cláusulas pétreas da nossa Constituição Federal. Este é o caso da Proposta de Emenda à Constituição 171/1993, que trata da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, que teve a sua admissibilidade aprovada, no fatídico dia 31 de março, na Comissão de Constituição de Justiça e Cidadania, por 42 votos favoráveis contra 17. A partir daí foi instalada, pela presidência da Câmara dos Deputados, uma comissão especial para discutir o mérito do projeto. Há méritos neste projeto? Na compreensão de dezenas de especialistas em direito criminal, de centenas deles na temática da criança e do adolescente, e de milhares de militantes, entre os quais me incluo, que lutam pela ampliação de direitos para esta faixa da população, NÃO HÁ QUALQUER MÉRITO NA PEC 171/93. 96 A violência é uma realidade a ser enfrentada nesta sociedade de “massas”, elevada a uma potência desesperadora pelo fenômeno do tráfico de drogas e do crime organizado no Brasil e em boa parte do mundo. Os crimes hediondos nos aterrorizam. As famílias destroçadas merecem nosso apoio, solidariedade e busca por justiça. Porém, a mudança de um código legal não pode ser movida pelo sentimento de vingança. O Parlamento não pode, não deve e não está autorizado pelo povo a comportar-se como um colegiado de justiceiros. O debate racional, com base em dados científicos e da realidade concreta, deve balizar a decisão a ser tomada pelo Congresso Nacional. E neste terreno, os dados têm desmentido os argumentos dos que querem “dar uma resposta” à sociedade contra a violência, reduzindo a maioridade penal. Vamos aos dados: O jovem brasileiro, especialmente o negro e pobre, é antes de tudo vítima frequente a ilustrar os mapas da violência. Dados do Mapa da Violência de 2014 apontam que, das 56.337 pessoas vítimas de homicídio no país em 2012, 30.072 eram jovens de 15 a 29 anos e, desse total, 23.160 (77%) eram negros (considerada a soma de pretos e pardos). E são dados da Unicef que comprovam que, dos 21 milhões de adolescentes que vivem hoje no Brasil, apenas 0,013% cometeu um ato com a intenção de tirar a vida de outra pessoa. Ou seja, dados exibidos por organismos insuspeitos estão aí para nos demonstrar que o jovem brasileiro, em sua esmagadora maioria, não é violento, não comete crimes e é, ao contrário, a principal vítima dos homicídios registrados no país. É absolutamente falso o argumento de que jovens infratores ficam impunes. O ECA prevê seis medidas educativas: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. Recomenda que a medida seja Brasil aplicada de acordo com a capacidaComo atuar de de cumpri-la, as circunstâncias para impedir do fato e a gravidade da infração. esta falsa Ou seja, as crianças e adolescentes saída contra a de baixa renda – os reais atingidos violência? por medidas repressivas – já são, na prática, criminalizados pelo EstatuPortanto, está to da Criança e do Adolescente. chegada a hora de Hoje sofrem medidas de recluas organizações de são por até três anos e não têm gadefesa dos direitos rantias processuais penais, como humanos, da criança remissão da pena pelo trabalho, e do adolescente, da sursis ou modificação do regime União Brasileira dos de cumprimento simplesmente Estudantes (UNE), O debate racional, porque, por um jogo retórico, a da União Brasileira dos Estudantes “medida socioeducativa” de interSecundaristas (Ubes) – que sempre com base em nação não é considerada juridicaestiveram na linha de frente em dedados científicos mente uma penalidade, embora o fesa da juventude – contarem com seja na prática. e da realidade todos os brasileiros e brasileiras de Os dados incontestes estão aí bom senso na luta contra a PEC concreta, deve para mostrar que o jovem brasilei171/2003. balizar a decisão ro, especialmente o pobre e negro, A juventude brasileira não preé vítima e não criminoso. Os homicisa de mais cadeia. Precisa de mais a ser tomada cídios de crianças e adolescentes escola, mais emprego, mais saúde, pelo Congresso brasileiros cresceram vertiginosamais oportunidade. mente nas últimas décadas: 346% Nacional. E neste A verdade é que o maior infrator entre 1980 e 2010. De 1981 a 2010, é o ESTADO que, ao não cumprir a terreno, os dados mais de 176 mil foram mortos e só lei que vige, vulnerabiliza mais aintêm desmentido em 2010, o número foi de 8.686 da o vulnerável. crianças e adolescentes assassinaReafirmo a atualidade do ECA, os argumentos dos dos, ou seja, 24 por dia! que ao mesmo tempo em que proque querem “dar A Organização Mundial de Saútege pune com restrição de liberdade diz que o Brasil ocupa a 4ª poside o menor em conflito com a lei. uma resposta” à ção, dentre os 92 países do mundo Cumpri-lo e até especializá-lo sociedade contra a analisados em pesquisa. Aqui são é primordial para evitarmos o co13 homicídios para cada 100 mil violência, reduzindo metimento do erro da redução da crianças e adolescentes; número de maioridade penal, que já está sena maioridade penal 50 a 150 vezes maior que o de paído revogada em muitos países que ses como Inglaterra, Portugal, Esa adotaram. panha, Irlanda, Itália, Egito cujas A injustiça social no Brasil tem taxas mal chegam a 0,2 homicídios para a mesma sentenciado por séculos, com abandono e a falta de quantidade de crianças e adolescentes. oportunidades, os pobres, as mulheres, os negros. Por outro lado, de acordo com números do MiNestes universos os mais jovens são as vítimas prefenistério da Justiça, a reincidência nas penitenciárias renciais. Não permitamos que uma suposta maioria para adultos é de 70% a 85%, enquanto no sistema parlamentar, forjada pelo financiamento privado insocioeducativo, segundo o Conselho Nacional de dutor desta pauta regressiva, violenta e fundamenJustiça (CNJ), é de 43%. Os números atestam que talista, apague lampejos de esperança nestes jovens. a inserção dos menores nas penitenciárias aumenEntremos nesta luta em nome de uma sociedade tará em quase duas vezes a possibilidade de o jovem menos armada, que desenvolva uma cultura de vareincidir, ao passo que no sistema socioeducativo lorização humana, de paz e gentileza. sua possibilidade de recuperação é infinitamente superior, malgrado as péssimas condições, com raras * Alice Portugal é deputada federal pelo exceções, de nossos estabelecimentos destinados a PCdoB/BA e exerce seu quarto mandato na abrigar menores. Câmara dos Deputados 97 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Eduardo Galeano e as mãos da memória José Carlos Ruy* Galeano sai da vida e fica na memória, na memória material e tangível formada pelos livros que escreveu, que continuarão a despertar consciências democráticas e avançadas O crítico Ronald Wright, do suplemento literário The Times, de Londres, disse certa vez ser “impossível” definir o estilo de Eduardo Galeano. Poderia ter ido mais adiante e indagado: quem foi Eduardo Galeano? Jornalista? Filósofo? Historiador? Galeano foi um autor que, mestre das palavras, criou uma forma de definir os latino-americanos. Ele não concordaria com o uso da palavra “criou”; na verdade, dizia ter sido nas ruas e nos cafés de Montevidéu que aprendeu o jeito de contar histórias que o consagrou. Pode ser. Foi o estilo que o ajudou a definir a América Latina e os latino-americanos. Não é exagero dizer que somente um escritor uruguaio poderia fazê-lo. O Uruguai é uma espécie de esquina da América do Sul, traço de união entre os povos hermanos de tradição espanhola e aqueles, do outro lado do Chuí, herdeiros do legado português. Tudo isso misturado com as heranças africana e indígena, sobretudo o guarani. 98 Galeano unificou todos eles em seus escritos – os “latino-americanos” da tradição espanhola e também aqueles da herança portuguesa, os brasileiros. Somos todos latino-americanos, sentiu e ensinou. Quem o conheceu não esquece a fineza no trato, a atenção e a gentileza que caracterizaram este homem de letras que se sentia em casa nas cidades de nossa terra. Um homem que sonhou com a liberdade, a igualdade, a solidariedade entre os povos do mundo e, em seus escritos, foi uma voz sensível e poderosa da gente que vive aqui. Enfrentou a ditadura, as ameaças dos esquadrões da morte dos fascistas uruguaios, o exílio na Argentina e na Espanha (entre 1973 e 1985). Ele fez da memória sua ferramenta constante. “A memória tem mãos”, disse em uma entrevista ao jornal Brasil de Fato no ano passado. Em outra ocasião, assegurou que a “memória guardará o que valer a pena”. Foi com as mãos da memória que escreveu os quase quarenta livros que publicou desde 1963. En- Homenagem tre eles, o clássico de nossa esquerda, As Veias Abertas da América Latina (1971), que ajudou a despertar a consciência política da resistência e marcou a luta contra as ditaduras e o imperialismo dos EUA. Ou outro clássico, a trilogia Memórias de Fogo (1982). Livros indispensáveis que tiveram na memória a matéria-prima fundamental para a tomada de consciência libertária, socialista, solidária. Um câncer levou Eduardo Galeano em 13 de abril de 2015, em Montevidéu. Ele tinha 74 anos de idade: sai da vida e fica na memória, na memória material e tangível formada pelos livros que escreveu, que continuarão a despertar consciências democráticas e avançadas. No futuro, quando as injustiças e contradições contra as quais ele lutou estiverem superadas, permanecerão como testemunhos de dignidade e resistência. Galeano se foi, mas sua memória permanece! *José Carlos Ruy é jornalista. Texto publicado originalmente no Vermelho (vermelho.org.br) 99 Ed. 136 – Maio/Junho 2015 Cinco livros essenciais para se entender a obra de Galeano Vanessa Martina* 1 As Veias Abertas da América Latina (1971) “Nós nos negamos a escutar as vozes que nos advertem: os sonhos do mercado mundial são os pesadelos dos países que se submetem aos seus caprichos. Continuamos aplaudindo o sequestro de bens naturais com que Deus, ou o Diabo, nos distinguiu, e assim trabalhamos para a nossa perdição e contribuímos para o extermínio da escassa natureza que nos resta”. O trecho consta no prefácio de Galeano à edição do livro As Veias Abertas da América Latina (L&PM, 2010, 397 páginas, R$44). Publicado pela primeira vez em 1971, o autor passou a vida lamentando a atualidade da obra que, pela transcendência, marcou a esquerda latino-americana e chegou a ser proibida na Argentina, no Chile, Brasil e no Uruguai, durante as ditaduras militares nesses países. Do período colonial até a contemporaneidade, passando pelas ditaduras do subcontinente, a obra questiona: “o subdesenvolvimento é uma etapa no caminho do desenvolvimento ou é consequência do desenvolvimento alheio?” e analisa a exploração econômica e a dominação política na América Latina. A obra ganhou ainda mais notoriedade quando em 2009, o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez o deu de presente ao mandatário norte-americano, Barack Obama, durante a 5ª Cúpula das Américas. Mas Galeano considerou, no final da vida, a obra ultrapassada. Em declarações a jornalistas durante a 2ª Bienal do Livro de Brasília no ano passado, o autor afirmou: “eu não seria capaz de ler de novo. Cairia desmaiado. Para mim, essa prosa da esquerda tradicional é chatíssima. Meu físico não aguentaria. Seria internado no pronto-socorro”. 100 2 Memória do fogo (1982-1986) Publicado em forma de trilogia, o livro, premiado pelo Ministério da Cultura do Uruguai e com o American Book Award, distinção fornecida pela Universidade de Washington, combina elementos de poesia, história e conto. É composto pelos livros Os Nascimentos (1982), As Caras e as Máscaras (1984) e O Século do Vento (1986) (L&PM, 2010, 1584 páginas, R$69). Os livros trazem poemas, transcrição de documentos, descrição dos fatos e interpretação de movimentos sociais e culturais, que compõem uma cronologia de acontecimentos, proporcionando uma visão de conjunto sobre a identidade latino-americana. Como em As Veias Abertas, o livro propõe-se a ser uma revisão da história da região, desde o descobrimento até nossos dias, para enfrentar a “usurpação da memória” da história oficial. Com textos independentes que se encaixam e se articulam entre si, traz um quadro completo dos últimos 500 anos. Apesar de manter a cronologia das histórias, o autor ignora a geografia para dar, assim, uma melhor ideia da unidade da história americana, para além das fronteiras fixadas “em função de interesses alheios às realidades nacionais”, como definiu. 3 Dias e Noites de Amor e Guerra (1975) Vencedor do Prêmio Casa das Américas de 1978, Dias e Noites de Amor e de Guerra (L&PM, 2001, 200 páginas, R$ 19,90) é uma crônica novelada das ditaduras de Argentina e Uruguai, um relato autobiográfico, uma memória íntima, convertida em memória coletiva. Junto ao horror dos amigos que desapareceram, Galeano traz o amor, os amigos, os filhos, a paisagem, tudo aquilo Homenagem que ainda na escuridão de uma guerra suja e desapiedada contra os mais fracos segue sendo motivo para viver, para defender as ideias e para alçar a voz contra os que atuavam impunemente para implantar o medo e a conseguinte paralisação. “Às vezes, sinto que a alegria é um delito de alta traição, que sou culpado do privilégio de seguir vivo e livre. Então me faz bem lembrar o que disse o cacique Huillca, no Peru, falando diante das ruínas: ‘aqui chegaram. Quebraram até as pedras. Queriam nos fazer desaparecer. Mas não conseguiram, porque estamos vivos’. E penso que Huillca tinha razão. Estar vivos: uma pequena vitória. Estar vivos, ou seja: capazes de alegria, apesar dos adeuses e os crimes”, como consta na contracapa do livro. 4 Os filhos dos dias (2012) Os Filhos dos Dias (L&PM, 2012, 432 páginas, R$ 49) se inspira na sabedoria maia e traz 366 relatos que compõem a história, desde a Antiguidade até o presente. É baseado em uma versão do Gênesis que Galeano escutou em uma comunidade maia da Guatemala. “Se somos filhos dos dias, nada tem de estranho que cada dia tenha uma história para oferecer”. Assim, o livro, escrito em forma de calendário, traz episódios que ocorreram no México de 1585, no Brasil de 1808, na Alemanha de 1933 e em outras épocas e outros países. A obra, que não pode ser definida em nenhum gênero por ser, ao mesmo tempo, todos (jornalismo, literatura, música e poesia), foi trabalhada ao longo de quatro anos. Teve 11 versões antes de ser publicada. “Sou um perfeccionista insuportável”, reconheceu Galeano. “É um livro que dói, mas também faz rir”, disse. A mulher, o poder, os maias, as culturas originárias, o homem, a legalização das drogas são temas presentes. Com um olho no microscópio e outro no telescópio, Galeano forma um mosaico que permite contemplar o micromundo, de onde acredita que sai a grandeza do universo. “O prazer de encontrar essas histórias é descobrir o que não foi contado, ou que foi mentido pelas vozes do poder: essas contravozes que o poder oculta porque não convém a eles que saibamos”. Em entrevista ao site mexicano La Jornada, disse: “Vivemos presos em uma cultura universal que confunde a grandeza com o grandinho. Creio que a grandeza alenta, escondida, nas coisas pequeninas, as pequenas histórias da vida cotidiana que vão formando o colorido mosaico da história grande. Não é fácil escutar esses sussurros quando vivemos mal a vida convertida no espetáculo grande e gigantesco”. 5 Mulheres (1997) Mulheres (L&PM, 1998, 176 páginas, R$ 18) é uma coletânea de textos publicados nos livros Vagamundo e outros contos, Dias e Noites de Amor e de Guerra, Memória do Fogo (trilogia), O Livro dos Abraços e As Palavras Andantes. De forma lírica e poética, o autor traz relatos de mulheres célebres, anônimas que, com sua vivência, deixaram marcas no dia a dia das pessoas com as quais conviveram e, por isso, devem ser lembradas O livro traz histórias de Charlotte Perkins Gilman (18601935), escritora norte-americana, cuja produção literária enfoca as relações entre mulher e homem e a opressão da sociedade em que viveu; da escrava Jacinta de Siqueira, “africana do Brasil, fundadora da Vila do Príncipe e das minas de ouro dos barrancos de Quatro Vinténs”; de Xica da Silva, escrava que virou rainha no século 18; da revolucionária Manuela Saénz, que junto a Simón Bolívar, seu amante, lutou pela independência das colônias sul-americanas; da compositora e cantora Violeta Parra, considerada a mais importante folclorista do Chile e ainda de Frida Khalo, Tina Modotti, Evita, Carmem Miranda, Isadora Duncan. *Vanessa Martina, repórter especial do site Opera Mundi, onde este texto foi publicado originalmente 101 www.revistaprincipios.com.br Princípios é uma publicação bimestral da Editora e Livraria Anita Ltda. CNPJ: 96.337.019/0001-05 Registrada no ISSN sob o nº 1415788-8 Fundador: João Amazonas (1912–2002) Editor: Adalberto Monteiro Editor executivo: Cláudio Gonzalez (MTb 28961/SP) Assine Princípios, uma revista que pensa a realidade brasileira Comissão Editorial: Adalberto Monteiro, Aloísio Sérgio Barroso, Augusto César Buonicore, Cláudio Gonzalez, Fábio Palácio de Azevedo, José Carlos Ruy, Osvaldo Bertolino e Pedro de Oliveira. CUPOM DE ASSINATURA - REVISTA PRINCÍPIOS Nome completo: ___________________________________________________ _____________________________ Data nascto.: ______ / ______ / ______ CPF: ___________________________ RG:___________________________ Endereço: _______________________________________________________ Bairro: _____________________________ Cidade: _____________________ UF: _____CEP: ___________-_____ Telefone: ( ____) ___________________ Profissão: ______________ E-mail: __________________________________ ( ) Assinatura anual (6 edições) – R$ 70,00* ( ) Assinatura bianual (12 edições) – R$ 120,00** ( ) Assinatura trianual (18 edições) – R$ 170,00** *pagamento à vista ** duas vezes no cartão de crédito ) Depósito em C/C - Banco Itaú, Agência 0251, Conta nº 48.678-3 (enviar cópia ) Cartão de crédito: [ ] MASTERCARD, [ ] DINERS ou [ Jornalista responsável: Pedro de Oliveira (MTb 9813/30/69/SP) Capa: Pintura em mural na comuna de San Miguel, Santiago, Chile. Título: Latinoamérica. Autores: La Mano (Jano y Basti) Revisão: Maria Lucília Ruy do comprovante) ( Correio eletrônico: [email protected] Diagramação: Laércio D’ Angelo Ribeiro Formas de pagamento: ( Conselho Editorial: Adalberto Monteiro, Aldo Arantes, Aldo Rebelo, Altamiro Borges, Ana Maria Rocha, Bernardo Joffily, Carlos Pompe, Carolina Maria Ruy, Carolus Wimmer, Elias Jabbour, Haroldo Lima, Jô Morais, José Carlos Ruy, José Reinaldo Carvalho, Domenico Losurdo, Luis Fernandes, Luiz Manfredini, Madalena Guasco, Nereide Saviani, Nguyen Viet Thao, Olival Freire Jr., Olívia Rangel, Pedro de Oliveira, Raul Carrion, Sílvio Costa, Umberto Martins e Walter Sorrentino ] VISA. Diretora comercial: Zandra de Fátima Baptista Diretor: Divo Guisoni Observação: não aceitamos cartão de débito. 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