Parte 2 - Revista Principios

Transcrição

Parte 2 - Revista Principios
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Ed. 136 – Maio/Junho 2015
2
Editorial
América Latina: integração regional
com soberania e desenvolvimento
A
s duas imagens que ilustram este editorial são
altamente simbólicas não só pelos personagens presentes em cada uma delas, mas porque sintetizam diferentes períodos de uma mesma luta: a dos povos latino-americanos contra a dominação
imperialista europeia e estadunidense.
Na ilustração figuram revolucionários históricos como Che Guevara, Emiliano Zapata, Simón Bolívar, José
Martí, Tupac Amaru e vários outros. Na foto, tirada durante a 3ª Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e do Caribe (Celac), estão os presidentes
do bloco, juntamente com o presidente da China.
Guardadas todas as devidas diferenças políticas e os
condicionantes históricos, as duas imagens sintetizam a
opção patriótica desses povos pela paz, pelo desenvolvimento, pela integração, a cooperação, a solidariedade, a
autodeterminação, a soberania, a independência, a identidade e pelo direito de escolher os próprios caminhos
para soerguerem sua vida política e social.
Ao longo de dois séculos, o ideal do libertador Simón Bolívar de criar a “grande Pátria Americana”
inspirou inúmeros combates e batalhas pela independência. Neste início de século 21, o sonho da integração regional e a busca soberana pela autodeterminação
dos povos e Nações do continente prossegue em outros
termos, mas com igual tenacidade, através do estreitamento de laços políticos, econômicos, sociais e culturais
entre os países que lograram constituir importantes
instrumentos de integração e cooperação como a União
de Nações Sul-Americanas (Unasul), o Mercado Comum do Sul (Mercosul), a Aliança Bolivariana para as
Américas (Alba), a Celac e o Foro de São Paulo.
A última Cúpula das Américas (abril de 2015, Panamá) foi palco de uma cena importante deste épico
longa-metragem latino-americano. Pela primeira vez
a socialista Cuba participou do encontro continental.
Em seu pronunciamento – cujos principais trechos reproduzimos nesta edição de Princípios – o presidente
cubano Raúl Castro ressaltou “o direito inalienável de
todos os Estados de escolherem seu sistema político,
econômico, social e cultural, como condição essencial
para garantir a coexistência pacífica entre as nações”.
As palavras de Castro são oportunas para o momento político que vive a região, sobretudo a América
do Sul. Nas duas últimas décadas, após longo período
de dominação da direita pró-imperialista, diversos países lograram eleger governos progressistas, defensores
(alguns mais, outros menos) de bandeiras históricas
da esquerda e que apostam em um novo caminho de
desenvolvimento, distinto do modelo neoliberal. Não
foi fácil vencer as duras batalhas eleitorais. Também
não está sendo fácil resistir aos ataques sucessivos que
as oligarquias desalojadas do poder promovem rotineiramente contra esses governos. Ataques que muitas vezes flertam com o golpismo. As sucessivas crises
políticas na Venezuela são um retrato claro desse ambiente de tensão permanente.
Nesta edição de Princípios temos artigos e pronunciamentos de diversas lideranças de esquerda. Mesmo
sendo de países e partidos diferentes, são unânimes na
avaliação de que os governos progressistas da região
inspiram esperança em todo o mundo, o qual, infelizmente, vive um contexto marcado politicamente pela
ascensão do conservadorismo. Por isso, integrar, desenvolver e resistir são palavras de ordem imprescindíveis para a luta dos povos de toda a América Latina.
Adalberto Monteiro
Editor
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Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Editorial
América Latina: integração regional com
soberania e desenvolvimento ................................
1
Capa
11
Álvaro Linera: “Até aqui avançamos”
Trechos do discurso no 20o Foro de São Paulo
4
.......................................................................................
Cuba fala na Cúpula das Américas: resgate histórico
Trechos do discurso do presidente Raúl Castro
11
....................................................................................
18
Venezuela enfrenta tentativas golpistas da
oposição sem titubear
18
Max Altman.................................................................
Argentina: apenas novas mudanças podem
proteger o que já foi conquistado
23
Jorge Alberto Kreyness...............................................
23
A economia no projeto kirchnerista
27
Juan Santiago Fraschina.............................................
O Brasil deve dar início a um novo ciclo
de política externa altiva e ativa
32
Ricardo Alemão Abreu e Rubens Diniz........................
32
A Bolívia pós-eleições: erigir o Estado
Plurinacional
40
Ignacio Mendoza Pizarro............................................
Lula: ser contra a integração sul-americana
é atraso político
43
Cláudio Gonzalez........................................................
40
4
Sumário
Teoria
Pós-modernidade, globalização e crise
dos partidos políticos – Parte 2
47
Antônio Levino............................................................
História
A guerra de libertação da Coreia: 1950-1953 –
Parte 2
52
60
Raul Carrion...............................................................
70 anos da vitória dos povos contra o nazismo
60
Socorro Gomes...........................................................
Pequena história de um século da Grande
Revolução de Outubro – Texto 3
66
Bernardo Joffily..........................................................
A atualidade do legado de Lênin
66
72
Marly de A. G. Vianna.................................................
80
Economia
Governo Dilma: breve balanço de sua política
econômica e a necessidade do ajuste fiscal
80
Lecio Morais................................................................
Brasil
TERCEIRIZAÇÃO: um velho fantasma
86
Tamara Naiz Silva........................................................
REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL:
Falsa solução no combate à violência
93
93
Alice Portugal............................................................
Homenagem
Eduardo Galeano e as mãos da memória
96
José Carlos Ruy..........................................................
96
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Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Álvaro Linera:
“Até aqui avançamos”
Em discurso proferido na inauguração do
20º Encontro do Foro de São Paulo, em
La Paz, em agosto de 2014, o vicepresidente da Bolívia, Álvaro García
Linera, fez uma importante exposição
sobre o processo de transformação
política, econômica e social em evolução
na Bolívia e no continente, bem como
sobre os desafios para aprofundá-lo,
construindo de forma democrática e
participativa a hegemonia dos governos
de esquerda na região
N
o discurso, Linera elenca cinco conquistas dos últimos anos e indica
cinco tarefas para que os países da
América Latina superem obstáculos
históricos em seu desenvolvimento e
integração regionais.
Ao abordar a luta anti-imperialista no continente, o vice-presidente boliviano faz um desabafo: “O
anti-imperialismo não deve ser entendido como um
rechaço ao povo norte-americano. Nunca se rechaçam os povos. Falamos do anti-imperialismo entendido como rechaço e resistência às estruturas de dominação de outros países – EUA e da Europa – com
relação a nossas decisões. A América Latina é para
nós; nós saberemos o que fazer com o nosso continente e não precisa vir ninguém nos dizer ou nos dar
lições de como produzir melhor ou pensar melhor.”
No campo das conquistas, Linera destaca que a
fundação da Alba (Aliança Bolivariana para as Américas) , da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) são construções inéditas
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no nosso continente. “Há 20 anos, há 30 anos, há 50
anos, criavam-se estruturas continentais, mas todas
eram dirigidas, financiadas e administradas pelos
EUA. Essas novas estruturas constituem aquelas nas
quais nós, latino-americanos, decidimos como começar a construir a nossa unidade. Não precisamos
dos EUA para termos uma economia sólida, para
sermos democráticos, para melhorarmos as condições de vida.”
No final de seu discurso, ao tratar de tarefas e
desafios, o dirigente boliviano alerta que estamos falhando na integração econômica, e essa é a base material de qualquer integração. “Se demorarmos ou
tivermos dificuldades na integração econômica, a integração continental mostrará limitações”, afirmou.
Para ele, o principal desafio dos povos e governos
da região é passar da integração política, ideológica,
cultural a processos de integração econômica, material, tecnológica. “Temos que fazer isso, pois nossa
vida está em jogo nessa questão: nenhuma revolução, nenhum país da América Latina vai sair adiante
sozinho. Ou saímos todos juntos, ou ninguém sai.”
Capa
20º Encontro do Foro de São Paulo, no Centro
de Convenções Campo Ferial de La Paz,
Bolívia, em 28 de agosto de 2014
Confira a seguir os principais trechos do
discurso:
Há 24 anos, quando nasceu o Foro de São Paulo, o
mundo em que vivíamos era outro. Diante de nossos
olhos foi derrubada a União Soviética, impunham-se e consolidavam-se um império e uma estrutura
imperial unipolar sustentada pelo poderio econômico, ideológico e militar dos Estados Unidos. Eram os
tempos de Reagan e Thatcher no mundo. Pelos meios
de comunicação, pelas universidades, mesmo pelos
meios sindicais, difundia-se uma ideologia planetária, um modelo planetário chamado neoliberalismo,
que começava a cavalgar pelo continente e pelo mundo de maneira aparentemente triunfal.
Falava-se então do chamado fim da história, a história aparentemente estava acabando, não havia mais
nada a fazer, tínhamos que apagar as luzes e nos resignarmos ao império unipolar, ao neoliberalismo, às
privatizações, ao consenso de Washington. Na nossa
América, as coisas também não estavam fáceis: Cuba,
heroica, resistente, isolada e suportando o bloqueio
criminoso mais terrível da história da humanidade.
Na Nicarágua perdíamos as eleições, chorávamos pela
derrota. Em El Salvador entrávamos nos processos de
paz e de acordos. No restante dos países da América
Latina, desde Rio Bravo até a Patagônia, impunha-se o
chamado modelo neoliberal, privatizavam-se empresas, entregavam-se recursos públicos acumulados durante décadas a investidores privados estrangeiros que
chegavam em nossos países e desembarcavam como
nos tempos de Colombo para se apropriarem de tudo.
Passaram-se 24 anos e não resta dúvida de que hoje o mundo é muito diferente daquele que deu luz ao
Foro de São Paulo. Mudou. As coisas e a estrutura, as
deliberações e as lutas que desde então foram impulsionadas, deliberadas, propostas, não foram em vão.
Hoje estamos assistindo – há 24 anos do nascimento
do Foro – a uma lenta mas irreversível decadência da
“supremacia norte-americana”. Os Estados Unidos
já não são a potência imperial dirigente do mundo.
Continuam dominando, mas precisam fazê-lo usando
suas canhoneiras, suas tropas especiais, seu intervencionismo brutal em cada uma das regiões.
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Ed. 136 – Maio/Junho 2015
(....)
(...)
Hoje podemos dizer que surgiu de maneira geEssa é a primeira lição: a democracia como métonérica na América Latina um modelo pós-neolibedo revolucionário, não simplesmente como etapa da
ral. Falar de neoliberalismo na América Latina cada
revolução.
vez se assemelha mais a um arcaísmo – quase como
Uma segunda conquista desses 10 anos, desses
falar do parque jurássico. Há 15 anos, o neolibera14, 15 anos de luta revolucionária, é a concepção da
lismo era a bíblia, hoje é um arcaísmo que estamos
governabilidade e da legitimidade a partir de um conjogando na lixeira da história, de onde nunca deveteúdo dual. Hoje as sociedades latino-americanas e os
ria ter saído.
governos revolucionários conseguiram sua estabilidaO mundo é outro, a história continua, a ideolode e sua governabilidade não se apegando unicamengia e o falso macro relato do fim da
te aos mecanismos da vitória eleitohistória foram derrubados diante da
ral e dos mecanismos institucionais
emergência de lutas, de projetos, de
do Parlamento e do Executivo. Mas
Se demorarmos
insurgências que se expandiram ao
o outro componente fundamental da
ou tivermos
longo de todo o continente.
governabilidade revolucionária, da
Quero mencionar, a propósito
legitimidade revolucionária, é a predificuldades
desses acontecimentos, cinco consença popular e a mobilização social
na integração
quistas e cinco tarefas para presernas ruas.
econômica,
var, para aprofundar os processos
Não me engano ao dizer que as
revolucionários, não só no contivitórias
da esquerda latino-americaa integração
nente latino-americano, mas tamna são fruto de processos de mobicontinental
bém na Europa, Ásia, África, no
lização no âmbito cultural e ideolómundo todo.
gico, mas também no âmbito social
mostrará
A primeira lição e a primeira
e organizativo. O caso da Bolívia é
limitações
conquista que eu gostaria de menisso, não se poderia entender a vitócionar desta insurgência latino-aria de nosso presidente Evo sem as
mericana: A democracia como mélutas, sem a guerra da água, sem a
todo revolucionário. Até algum tempo tínhamos
guerra da coca, sem a guerra do gás, sem as mobilizaassumido a democracia como uma etapa suspeita,
ções populares, que foram criando um tecido denso
prévia à revolução e tínhamos nos preparado para
de participação, de mobilização social, que garantiu
isso. As circunstâncias de ditadura e de dominação
não apenas a vitória eleitoral mas também a estabilicolonial haviam criado as condições para essa condade do governo revolucionário e a capacidade social
cepção da democracia meramente como uma etapa
para enfrentar as intentonas golpistas, as conspiraprévia de um processo superior chamado revolução.
ções de direita que foram se sucedendo ao longo dos
O que a América Latina mostrou nesses 15 anos,
últimos anos.
nesses últimos 10 anos, é algo diferente: a democraConsideramos, então, que a conquista do poder
cia está se transformando e é possível transformá-la
em nossos países pode ser vista como uma prolonno meio e no espaço cultural da própria revolução, o
gação eleitoral da capacidade de mobilização e de reque na Bolívia chamamos de revolução democrática.
sistência coletiva. A legitimidade de nossos governos
Trata-se da transformação das faculdades de
vem então pela vitória eleitoral, mas também pela
cidadania, dos direitos de pensamento, de associamobilização permanente e ação coletiva dos diferenção, de organização, de mobilização, numa textura
tes movimentos sociais. Assim dizemos na Bolívia e
e numa rede que têm permitido que a totalidade dos
isso se traduziu na existência de um governo de mogovernos revolucionários e progressistas da Amérivimentos sociais.
ca Latina chegue ao poder. Mas esta transformação
Hoje, na Bolívia, são mais do que um partido, mais
da democracia em método revolucionário não chedo que o MAS. E aqui quero citar a linda frase do
gou como uma mera apropriação do olhar mutilado,
companheiro Damián Condori, da Confederação Sinfragmentado, da democracia dos governos conserdical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívadores e neoliberais. O que ocorreu na América
via (CSUTCB): “Nós, como confederação camponesa,
Latina foi uma apropriação social da democracia,
não somos do MAS, o MAS é nossa criatura, é nosso
como espaço propício para a hegemonia, a hegemofilho”. E nesse sentido eles controlam a direção, o conia entendida no sentido gramsciano de liderança
mando e as linhas estratégicas do partido.
intelectual, de liderança ideológica, de liderança poEsta é uma contribuição continental, a organizalítica.
ção social, as estruturas sociais diversas como força
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Capa
e como bloco de poder que se traduz eleitoralmente
em partidos políticos, em organizações políticas que
alcançam a vitória nas eleições.
O terceiro ganho desses 14 anos é o “desmonte”
do neoliberalismo. Até vemos com pena como nos
países da Europa ainda prevalecem essa ideologia e
esse mecanismo de sucção das capacidades humanas
para depositá-las num punhado de mãos privadas. E
quando vemos as decisões que são tomadas na Grécia, na Itália, na Espanha, na França, já conhecemos
o roteiro, porque o vivemos aqui há dez ou vinte anos:
empobrecimento dos trabalhadores, enfraquecimento do Estado; enriquecimento de umas poucas empresas; perda de direitos. Tudo isso que ainda não acabou
em alguns países e em algumas regiões do mundo, na
América Latina nós estamos desmontando.
O que significa “desmontar” o modelo neoliberal e
entrar no que se denominou pós-neoliberalismo? Em
primeiro lugar, a recuperação de empresas estratégicas, aquelas empresas do Estado nas quais se gera o
excedente econômico, porque se uma revolução não
tiver excedente econômico, como vai poder consolidar sua liderança? A estabilidade não se mantém em
meio à carência. É imprescindível um processo revolucionário contar com um excedente econômico capaz de gerar processos de distribuição.
O “desmonte” do neoliberalismo na Bolívia e na
América Latina significou a recuperação de empresas
estratégicas para que o Estado as controle. Em segundo lugar, a ampliação dos bens comuns, a ampliação
dos recursos que pertencem a todos e não a uns poucos. Em terceiro lugar, a contínua redistribuição da
riqueza: se o Estado há de concentrar os excedentes
fundamentais da riqueza de um país não é para criar
um novo empresariado, e sim para redistribuí-los entre o conjunto dos setores mais excluídos.
Reconstituição e ampliação dos direitos trabalhistas, desconhecidos em tempos neoliberais. Os
processos pós-neoliberais na América Latina não significaram processos de autarquia e afastamento dos
circuitos da economia mundial; a diferença é que agora a inserção na economia regional e mundial se faz
de maneira seletiva e em função das necessidades de
cada país, e não das necessidades de uma empresa,
como aconteceu durante o período neoliberal.
Um quarto componente histórico conquistado
nesses 14 anos é a construção, difícil mas ascendente,
de um novo corpo de ideias, de um novo senso comum mobilizador. Não esqueçamos, companheiros,
que a política é fundamentalmente a luta pela direção das ideias dirigentes, das ideias mobilizadoras de
uma sociedade. Todo revolucionário luta pelo poder
do Estado, que é metade matéria e metade ideia. Todo
Estado, o conservador e o revolucionário, o que está
ÁLVARO LINERA: “A política é fundamentalmente a luta pela
direção das ideias dirigentes, mobilizadoras de uma sociedade”
estabelecido e o que está em transição, é matéria, é
instituição, é organização, é correlação de forças, mas
também é ideia, é senso comum, é força mobilizadora
no âmbito da ideologia.
Os povos não lutam só porque sofrem, os povos lutam e estão dispostos a entregar a vida porque sabem
e porque acreditam que há uma esperança de acabar
com o sofrimento. E quando a esquerda, nesses 14
anos, foi capaz de criar uma esperança, uma possibilidade de vitória, uma possibilidade de transformação
da vida cotidiana, e conseguiu fazê-lo na mente e no
coração, a partir desse momento, transformou essa
força da ideia em força eleitoral, a força eleitoral em
força estatal, a força estatal em força econômica.
Quais os componentes dessas ideias-força que estão se reconstruindo e expandindo no continente de
uma forma renovada nesta última década? Primeiro,
a pluralidade de identidades. Aprendemos a compreender que as identidades coletivas não são rígidas,
tendem a ser mais flexíveis. Há um novo movimento
de trabalhadores que não é mais o movimento de trabalhadores que os nossos pais ou avós conheceram,
de grande fábrica, de grande indústria, do sindicalizado e a hierarquia estabelecida. Surgiu um novo
movimento de trabalhadores, fragmentado, disperso,
majoritário e jovem, mas que tem uma estrutura mais
difusa e a habilidade dos partidos deve ser a de ampliar, gerar espaços de articulação desse novo movimento de trabalhadores, mais fragmentado materialmente, porém mais forte, mais numeroso que antes.
O surgimento da identidade indígena-camponesa como força transformadora de nossos países. Na
Bolívia, o movimento indígena-camponês é o eixo
articulador do popular. Foi em torno da questão indígena-camponesa que os meios sindical, fabril, vicinal,
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estudantil, os intelectuais, os profissionais, encontrananceiras e tecnológicas que permitam passar da uniram o centro para articular expectativas, demandas
ficação político-ideológica para a integração econômie criar uma frente única contra a direita e os setores
ca, material e tecnológica, é o grande desafio que nós,
neoliberais.
latino-americanos, temos neste século XXI.
A juventude e as formas complexas de organizaEstas são as cinco conquistas, mas agora restam
ção urbana, citadina, diante das quais os partidos de
cinco tarefas. Avançamos bastante até aqui, o mundo
esquerda devem ter a abertura e a habilidade de somudou, a América Latina mudou, mas nem o mundo
mar forças, de compreender suas necessidades e criar
nem a América Latina mudaram o suficiente, e o obespaços de libertação, de participação
jetivo é que ambos se transformem
e de mobilização, ao redor dos eixos
de maneira mais radical. A partir da
centrais do movimento sindical e innossa experiência na Bolívia, consiNenhuma
dígena-camponês.
deramos que nós, revolucionários,
revolução,
Um segundo elemento dessas
organizadores sociais, sindicatos, conovas ideias-força é, não restam
munidades, governos progressistas,
nenhum país da
dúvidas, o anti-imperialismo e o
governos revolucionários, temos ao
América Latina
anticolonialismo. O anti-imperialismenos cinco metas pela frente.
mo entendido não como um rechaA primeira é defender e ampliar
vai sair adiante
ço ao povo norte-americano, nunca
as conquistas alcançadas até hoje.
sozinho. Ou
se rechaçam aos povos. Falamos do
Não é possível, e seria terrível para os
saímos todos
anti-imperialismo entendido como
processos de emancipação revoluciorechaço e resistência às estruturas
nária que houvesse um retrocesso. É
juntos, ou
de dominação de outros países – dos
dever de cada revolucionário, de cada
ninguém sai
EUA ou da Europa – com relação a
pessoa que pensa no seu país, na sua
nossas decisões. A América Latina é
pátria, nos pobres, nos humildes, na
para nós; nós saberemos o que fazer
unidade latino-americana, defender
com o nosso continente e ninguém tem que vir nos
o alcançado até aqui. É insuficiente? Claro que é indizer ou nos dar lições de como produzir melhor ou
suficiente! Mas não se conquista mais retrocedendo
pensar melhor.
para as garras do neoliberalismo e da chantagem.
(...)
Se quisermos avançar devemos proteger o que foi
Também nesses últimos 15 anos surgiu o pluralisconquistado. Se uma revolução para, ela retrocede.
mo socialista, em alguns partidos e países com maior
Uma revolução, para se consolidar, deve obrigatoriaintensidade, em outros com menor intensidade; e camente se aprofundar. Para que isso aconteça, é preciso
da um entendendo-o a seu modo. Há uma reflexão
ampliar – de acordo com as necessidades e possibilicoletiva do que significa o socialismo e de como ele
dades de cada país, de cada governo, de cada Estado
deve ser; existe um pensamento socialista renovado
– os bens comuns, distribuir mais riqueza, expandir
e, no caso da Bolívia, é comunitarista, no que se rea soberania e, acima de tudo, irradiar essa força, essa
fere à construção de uma sociedade que vá além não
ideologia, essa experiência para outros países do conapenas do neoliberalismo, mas também do próprio
tinente que ainda estão, infelizmente, sob as garras
capitalismo.
da intervenção imperial e sob a ideologia dos modelos
Por último, a quinta conquista é a renovação do
neoliberais.
internacionalismo e da expectativa de integração
Uma segunda necessidade: ampliarmos as conregional. A fundação da Alba, da Unasul, da Celac
quistas econômicas e estabilizar o modelo de desenvolsão construções inéditas no nosso continente. Há 20
vimento até aqui construído. Antes de ser governo, o
anos, há 30 anos, há 50 anos, criavam-se estruturas
fundamental era ter projeto e capacidade de mobilizacontinentais, mas todas eram dirigidas, financiadas
ção, quando se está no governo, o decisivo é melhorar a
e administradas pelos EUA. Essas novas estruturas
economia, manter e aprofundar o projeto e garantir caconstituem as estruturas nas quais nós, latino-amepacidade de mobilização. As condições de luta de antes
ricanos, decidimos como começar a construir a nossa
de ser governo em parte se modificam quando se chega
unidade. Não precisamos dos EUA para termos uma
no governo, a mobilização deve ser permanente – essa
economia sólida, para sermos democráticos, para meé a garantia de qualquer resistência, vitória ou defesa
lhorarmos as condições de vida. A Celac é isso.
frente à direita ou às forças conservadoras.
A autorreflexão da América Latina, da necessidaO projeto deve se retroalimentar constantemende de unificar suas forças para construir um Estado
te, deve se enriquecer constantemente. Uma revolucontinental que seja plurinacional, com estruturas fição é sempre um porvir. Sempre deve haver perante
10
Capa
a sociedade, e com a sociedade, novos horizontes
nismos sociais, potencializa-se a tendência socialista
que mobilizem a alma, o espírito, a inteligência, o sapós-capitalista. Igualmente, à medida que avançamos
crifício. Mas em governo soma-se uma terceira tare– e isso é a coisa mais difícil do mundo – em direção
fa: garantir o crescimento econômico, que é garantir
a projetos, a estruturas produtivas nas quais as pesmelhoria econômica, garantir aumento da felicidade
soas produzam em comum e decidam sobre os lucros
de cada uma das pessoas, especialmente dos mais
comuns, para o comum da sociedade, estamos consfracos, dos mais necessitados, dos mais oprimidos,
truindo o socialismo.
dos mais abandonados.
À medida que começamos a fazer prevalecer a neToda revolução no mundo, desde os tempos de
cessidade sobre o lucro, e à medida que mais pessoas
Marx, sempre apresentou uma qualidade, sempre
participam da construção de redes produtivas, tecnolóvem por ondas, nunca é um processo ininterrupto
gicas, associativas, não apenas para a política e para a
de ascensão social. Vem por ondas,
demanda, mas também para a produvai e vem, vai e vem, vai e vem. Na
ção de riqueza material, estamos poBolívia foi assim: em 2000 tivemos a
tencializando a tendência socialista e
primeira onda, que foi a guerra pela
comunitarista. No fundo, o destino da
É dever de todos
água; nova onda em 2003, a guerra
América Latina e do mundo se decide
os que pensam no
do gás; refluxo; nova onda em 2005,
nesse âmbito: participação, produção.
seu país, na sua
vitória eleitoral; refluxo; nova onda
Participação cada vez mais democráem 2008, Assembleia Constituinte
tica nas decisões estatais, na construpátria, nos pobres,
e derrota política e militar da direição mais comunitária dos bens matenos humildes,
ta golpista. Toda revolução sempre
riais, na produção a serviço de todos.
acontece por ondas: o momento de
Acho que aí se resume o conceito de
na unidade
ascensão social é o momento da coEstado integral, com o qual Gramsci
latino-americana,
munidade heroica, o momento do
definia a construção do socialismo e
sacrifício pleno, o momento de recuo
do comunismo para o futuro.
defender o
e leve descenso social, o momento da
Nossa quarta tarefa como revoalcançado até aqui.
satisfação das necessidades.
lucionários é a de desenvolver a caÉ insuficiente?
(...)
pacidade de superar as tensões que
A terceira tarefa que temos pela
emergem de um tipo de revolução
Claro que é
frente é a de reforçar as tendências
originária de processos democráticos.
insuficiente! Mas
comunitárias e socialistas da expeEsse tipo de problema não poderia se
riência cotidiana. Hoje vivemos um
apresentar no caso da revolução chinão se conquista
período de transição, que chamanesa ou da revolução bolchevique,
mais retrocedendo
mos de pós-neoliberalismo, mas ele
porque estas emergiram de guerras
para as garras do
por sua vez tem duas opções: a de
revolucionárias. Quando uma revose tornar difusamente em um capilução triunfa a partir de processos
neoliberalismo e
talismo mais humano, mais social,
democráticos, a coisa é mais difícil,
da chantagem
mais participativo, porém capitalismais dura, mais complicada, mas é
mo afinal; ou a de ser o pós-neolibepreciso enfrentar o que vier. Uma das
ralismo, a ponte para uma sociedade
tensões que temos que saber transpor
pós-capitalista. Não será fácil nem
é a de como se constrói hegemonia.
se decidirá de um dia para o outro ou em uma lição;
Hegemonia no sentido “gramsciano” não é abuso,
leva décadas para este pós-neoliberalismo se definir
é liderança, é direção moral, direção política, cultural,
por um ou outro caminho.
espiritual, sobre o resto das forças sociais. Uma
Nós, revolucionários, estamos aqui não para adrevolução deve se ampliar permanentemente, irradiar
ministrar um bom capitalismo, mas sim para transpara outros setores. Mas se irradiar demais enfrapor o capitalismo na transformação e negação rumo a
quece o seu núcleo e perde a sua essência; e se, pelo
uma sociedade socialista, comunitária.
contrário, concentra-se no seu núcleo termina isolada
São dois os elementos-chave para esta potenciae então ao seu redor podem surgir outras lideranças
lização das tendências socialistas e comunitaristas.
que atraiam as classes sociais em contraposição à reO primeiro é ampliar a participação da sociedade na
volução. Por isso, temos que saber, o tempo todo, avatomada de decisões. À medida que se amplia a parliar entre consolidar o núcleo fundamental – operário,
ticipação da sociedade, a partir de mecanismos inscamponês, indígena, popular – e saber irradiar para os
titucionais, de mecanismos organizativos e de mecaoutros setores.
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Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Não se esqueçam, sempre devemos somar Lênin
Há pessoas que querem que nós, latino-americacom Gramsci: o adversário deve ser derrotado, isnos, vivamos como há 300 anos, enquanto eles têm
so é Lênin; o adversário deve ser incorporado, isso é
carros, televisão, refrigeradores, internet, não lhes falGramsci. Mas não se incorpora o adversário quando
ta comida. Querem que um punhado de índios – coorganizado, a não ser quando derrotado. É derrotar e
mo eles dizem – protejam as florestas para eles. Não,
incorporar, derrotar e incorporar.Uma segunda tensão
senhores! Nós vamos proteger as florestas, sim, mas
própria de um processo revolucionário – Estado e mopara nós, não para eles, não para suas empresas!
vimentos sociais – é a que todo Estado tende a ser uma
Essa é uma tensão complicada, própria do proconcentração de decisões, por isso é Estado. É preciso
cesso revolucionário latino-americano, e que, pouco
tomar decisões, executar. E todo movimento social é
a pouco, entra na agenda de outros processos revodescentralização e democratização
lucionários no mundo.
das decisões. Se eu me concentro
Para terminar, a quinta tarefa é
Há 15 anos, o
só no Estado já não sou um Estado
avançar em processos de integração
revolucionário, sou eficiente, mas já
técnica produtiva. Existe vontade
neoliberalismo
não haverá democracia participativa
política: nós presidentes nos reuniera a bíblia, hoje é
ou comunitária. Se eu só me concenmos, e os parlamentares, as organitro na participação e na deliberação,
zações sociais do continente estamos
um arcaísmo que
e perco a capacidade executiva, então
aqui presentes! Os sindicatos se reuestamos jogando
esse governo não terá resultados, e a
niram antes. Entre os governos, nós
na lixeira da
nossa própria gente, com o tempo,
nos ajudamos política e ideologicademandará resultados, e a direita pomente. A Bolívia derrotou um golpe
história, de onde
de aparecer aí como aquela que sim
fascista contra o presidente Evo com
nunca deveria ter
oferece resultados com eficiência e
a colaboração da Unasul e da Alba,
consegue dar uma guinada ideológique deteve a intentona golpista.
saído
ca na sociedade.
Mas estamos falhando na inteUm governo revolucionário tem
gração econômica, e essa é a base
que transpor as duas coisas. Tem que transpor a
material de qualquer integração. Enquanto nos atraampliação de deliberação, de participação, do mosarmos e tivermos dificuldades na integração econôvimento social e, ao mesmo tempo, ter capacidade
mica, a integração continental mostrará limitações. E
executiva para tomar decisões e capacidade deliberaesse é o desafio: passar da integração política, ideotiva para democratizar as decisões. Aí ficam expostos
lógica, cultural a processos de integração econômica,
sua condição e seu destino revolucionários.
material, tecnológica. Temos que fazer isso. Aí estaPor último, a terceira tensão revolucionária destes
mos arriscando a vida. Nenhuma revolução, e netempos é a que aparentemente confronta desenvolvinhum país da América Latina, vai seguir adiante sozimento e defesa da Mãe Terra. É a nossa experiência
nho. Ou saímos todos juntos, ou ninguém sai.
na Bolívia. A partir da força “identitária” cultural do
Meus irmãos e minhas irmãs, esta é nossa simples
movimento indígena, é preciso gerar riqueza, satisfaexperiência, nossa experiência de um processo revozer necessidades. E para fazer isso é preciso produzir,
lucionário dirigido por nosso presidente Evo e pelos
extrair gás e minérios, criar indústrias e, ao fazermos
movimentos sociais. Até aqui avançamos. Comparisso, afetamos a Mãe Terra.
tilhamos esta experiência e estas preocupações com
Porém, se não afetamos a Mãe Terra e só nos fixao restante das organizações sociais irmãs, do contimos em preservar a Mãe Terra, como vamos satisfazer
nente e do mundo. E também viemos aqui para ouas necessidades? Com que dinheiro vamos construir
vir, aprender com suas experiências, porque juntos
os hospitais, melhorar as escolas, melhorar a renda
teremos a capacidade de construir um novo mundo
dos trabalhadores? É uma tensão. E a habilidade de
comunitário e socialista.
um governo revolucionário, e onde se define como reMuitíssimo obrigado.”
volucionário, está na sua capacidade de articular um
e outro: produzir, mas ao mesmo tempo não afetar
A íntegra do discurso de Álvaro Linera
a estrutura do meio ambiente, nem depredá-la, preno Foro de S. Paulo está disponível em:
servar a natureza, mas gerar espaços tecnológicos e
http://forodesaopaulo.org
administrativos para preservar a riqueza.
Há países que querem que a América Latina se
transforme num parque nacional da Europa ou dos
Da redação, Cláudio Gonzalez
Estados Unidos. Isso nós não vamos permitir!
12
Capa
Cuba fala na Cúpula das
Américas: resgate histórico
Twitter@CumbrePanama
Raúl Castro foi ovacionado ao discursar na abertura da 7ª Cúpula das Américas
O presidente de Cuba, Raúl Castro, marcou em grande estilo
a estreia de seu país em uma Cúpula das Américas. Na sétima
edição do encontro, realizada em abril, no Panamá, Castro
falou durante cinquenta minutos (muito além dos demais
presidentes) para compensar o silêncio nas seis cúpulas
anteriores. Era a primeira vez que um líder cubano discursava
na conferência hemisférica, realizada a cada três anos, desde
1994, e ele aproveitou para dirigir ao presidente dos Estados
Unidos, Barack Obama, algumas mensagens de paz e diálogo,
mas também de reafirmação dos princípios revolucionários e
socialistas da ilha caribenha
13
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
O
primeiro discurso do presidente de
Cuba, Raúl Castro, em uma Cúpula
das Américas provocou uma ovação
na sala que recebeu a reunião hemisférica, e atraiu a atenção da imprensa
internacional.
Venezuela e Estados Unidos
Durante sua fala, o presidente cubano expressou
seu “apoio de maneira resoluta e real à irmã república da Venezuela e ao governo legítimo de Nicolás
Maduro”.
“A Venezuela não é e nem pode ser uma ameaça
para a segurança nacional de uma superpotência co-
14
Confira a seguir alguns trechos do discurso
de Raúl Castro:
Estudio Revolución
“Já era hora que eu falasse aqui em nome de
Cuba”, disse o líder cubano, que protagonizou,
junto ao presidente dos Estados Unidos, Barack
Obama, um momento histórico quando se cumprimentaram durante a abertura da 7ª Cúpula das
Américas, ocorrida nos dia 10 e 11 de abril na capital do Panamá.
O anúncio do governante anfitrião, Juan Carlos Varela, do discurso de Castro, imediatamente depois das palavras do presidente dos Estados
Unidos, arrancou um sonoro e longo aplauso dos
chefes de Estado e das delegações oficiais.
O dirigente comunista sintetizou seu discurso
como uma mensagem de que “Cuba continuará
defendendo as ideias pelas quais nosso povo tem
assumido os maiores sacrifícios e riscos”.
Castro fez um breve relato da história cubana e
do avanço da revolução socialista na ilha caribenha
e depois focou seu discurso na defesa do diálogo,
do respeito e da paz entre as nações. Neste sentido,
afirmou que deve ser respeitado – como diz o Proclama da América Latina e do Caribe como Zona
de Paz, assinado por todos os Chefes de Estado e
de Governo da América – “o direito inalienável de
todos os Estados de escolherem seu sistema político, econômico, social e cultural, como condição
essencial para garantir a coexistência pacífica entre as nações”.
Varela agradeceu a Castro por suas palavras, surgidas “do coração”, e justificou que, por “razões de
justiça histórica”, mereceu falar quase seis vezes
mais do que o estipulado pela organização.
“Histórico” também foi o adjetivo usado pelo secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), José Miguel Insulza, ao qualificar o encontro. “Esta Cúpula do Panamá tem um conteúdo
especial (...), é a primeira vez na história das Américas
que se reúnem na mesma mesa os 35 chefes de Estado e de Governo”, afirmou Insulza em seu discurso.
mo os Estados Unidos. E é positivo que o presidente
americano, Barack Obama, tenha reconhecido isso”,
disse.
Castro também elogiou os passos dados pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, para
tirar a ilha de sua lista de países patrocinadores do
terrorismo.
“Aprecio como um passo positivo sua recente declaração de que decidirá rapidamente sobre a presença de Cuba em uma lista de países patrocinadores do
terrorismo, na qual nunca deveria ter estado”, disse
Castro em seu discurso na VII Cúpula das Américas,
da qual seu país participa pela primeira vez.
O líder cubano reiterou a Obama a disposição de
Cuba ao “diálogo respeitoso e à convivência civilizada” com os Estados Unidos “dentro de nossas profundas diferenças”.
“Era hora de eu falar aqui em nome de Cuba.
Foi-me dito, no início, que poderia proferir um
discurso de oito minutos. Embora tenha feito um
grande esforço, junto com meu chanceler, para reduzi-lo para oito minutos, e como me devem minha
participação em seis cúpulas anteriores, das quais
fomos excluídos, então 6 por 8 é 48, pedi permissão ao presidente Varela, alguns momentos antes de
entrar neste magnífico salão, para me ceder alguns
minutos mais, especialmente depois de tantos discursos interessantes que estamos escutando. E não
me refiro apenas ao do presidente Obama, mas também o do presidente do Equador, Rafael Correa, e ao
da presidente Dilma Rousseff e de outros.
(...)
Eu trago um fraternal abraço ao povo panamenho e ao de todas as demais nações aqui representadas. Quando, em 2 e 3 de dezembro de 2011, foi
criada em Caracas a Comunidade dos Estados Lati-
Capa
no-Americanos e Caribenhos (Celac), foi inaugurada uma nova etapa na história da Nossa América – o
que tornou patente o seu bem ganho direito de viver
em paz e de se desenvolver como livremente determinarem seus povos – e se traçou para o futuro um
caminho de desenvolvimento e integração, baseado
na cooperação, na solidariedade e na vontade
comum de preservar a independência, a soberania
e a identidade.
O ideal de Simón Bolívar de criar uma “grande
Pátria Americana” inspirou verdadeiras epopeias independentistas.
Em 1800, pensou-se em adicionar Cuba à União
do Norte, como o limite sul do vasto império. No século XIX, surgiram a doutrina do Destino Manifesto, com o fim de dominar as Américas e o mundo,
bem como a ideia de Fruta Madura para a gravitação
inevitável de Cuba em direção à União Americana,
que desprezava o nascimento e o desenvolvimento
de um pensamento próprio e emancipatório. Depois,
através de guerras, conquistas e intervenções, essa
força expansionista e hegemônica despojou a Nossa
América de vastos territórios e se estendeu até o Rio
Grande.
Depois de longas lutas que foram frustradas, José
Martí organizou a “guerra necessária” de 1895 — a
Grande Guerra, como também foi chamada, começou em 1868 — e criou o Partido Revolucionário
Cubano para liderar essa contenda e depois fundar
uma República “com todos e para o bem comum”,
que se propunha atingir “a dignidade plena do homem”.
Ao definir com certeza e antecipação os traços de
seu tempo, José Martí se consagrou ao dever “de impedir a tempo, com a independência de Cuba, que
os Estados Unidos se espalhassem pelas Antilhas e
caíssem com força sobre nossas terras da América” –
essas foram suas palavras exatas.
Nossa América é para ele a do nativo, do índio, do
negro e do mulato, a América mestiça e trabalhadora
que tinha de unir os seus interesses aos dos oprimidos e saqueados. Agora, mais além da geografia,
este é um ideal que começa a se tornar realidade.
Há 117 anos, em 11 de abril de 1898, o então presidente do Congresso dos Estados Unidos solicitou
autorização para intervir militarmente na guerra de
independência que, por quase 30 anos, Cuba vinha
travando, já ganha praticamente ao preço de rios de
sangue cubano, e aquele — o Congresso norte-americano — emitiu sua Resolução Conjunta enganosa,
que reconhecia a independência da Ilha “de fato e
de direito”. Vieram como aliados e se apoderaram do
país como ocupantes.
(...)
Memorial em homenagem a José Martí em Havana
Para a América Latina prevaleceu a “política das
canhoneiras” e, a seguir, a do “Bom Vizinho”. Sucessivas intervenções derrubaram governos democráticos e instalaram ditaduras terríveis em 20 países
– 12 delas simultaneamente.
Quem entre nós não se lembra dessa fase bastante recente de ditaduras em todos os lugares, principalmente na América do Sul, onde milhares de
pessoas foram assassinadas? O presidente Salvador
Allende nos deu um exemplo imorredouro.
(...)
Após a Aliança para o Progresso e de termos pago
várias vezes a dívida externa, sem impedir que essa dívida continuasse se multiplicando, nos impuseram um neoliberalismo selvagem e globalizado,
como expressão do imperialismo nesta época, que
deixou uma década perdida na região. A proposta então de uma parceria hemisférica madura foi
15
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
a tentativa de impor-nos a Área de Livre Comércio
causando danos e carências às pessoas, e é o princidas Américas (ALCA), associada com o surgimento
pal obstáculo para o desenvolvimento da nossa ecodestas Cúpulas, que teria destruído a economia, a
nomia.
soberania e o destino comum de nossas nações se
Consiste numa violação do Direito Internacional
não a tivéssemos feito naufragar em 2005, em Mar
e seu alcance extraterritorial afeta os interesses de
del Plata, sob a liderança dos presidentes Chávez,
todos os Estados.
Kirchner e Lula.
Não é por acaso o voto quase unânime, menos
Um ano antes, Chávez e Fidel tinham feito naso de Israel e dos próprios Estados Unidos, na ONU,
cer a Alternativa Bolivariana, hoje Aliança Bolivadurante muitos anos a fio. E enquanto existir o bloriana para os Povos de Nossa América. Excelências:
queio – que não é da responsabilidade do presidente,
Eu expressei — e o reitero agora —, ao presidente
e que devido a acordos e leis posteriores se codificou
Barack Obama, a nossa disposição ao diálogo rescom uma lei no Congresso que o presidente não popeitoso e à convivência civilizada entre os dois Esde alterar – devemos continuar lutando e apoiando
tados, dentro de nossas difereno presidente Obama em suas inças profundas.
tenções de liquidar o bloqueio.
Eu aprecio como um passo
Uma questão é estabelecer
“Nós expressamos
positivo sua declaração recente
relações diplomáticas e outra é o
de que determinará rapidamenbloqueio. Por isso, peço a todos
publicamente ao
te sobre a presença de Cuba em
vocês, e também a vida nos obripresidente Obama, que
uma lista de países que patrociga, a continuar apoiando a luta
também nasceu no
nam o terrorismo, na qual nuncontra o bloqueio. Excelências:
ca devia ter estado; imposta peNós expressamos publicamente
âmbito da política de
la administração do presidente
ao presidente Obama, que tambloqueio contra Cuba,
Reagan.
bém nasceu no âmbito da poAcaso nós somos um país
lítica de bloqueio contra Cuba,
nosso reconhecimento
terrorista?! Sim, fizemos alguns
nosso reconhecimento por sua
por sua corajosa
atos de solidariedade com outros
corajosa decisão de se envolver
decisão de se envolver
povos que podem ser consideraem um debate com o Congresso
dos terroristas, quando estávados Estados Unidos para pôr fim
em um debate com o
mos encurralados, cercados e asao bloqueio.
Congresso dos Estados
sediados até o infinito, e só havia
Este e outros elementos deuma escolha: render-se ou lutar.
vem
ser resolvidos no procesUnidos para pôr fim ao
Vocês sabem qual nós escolheso rumo à futura normalização
bloqueio”
mos, apoiados por nosso povo.
das relações bilaterais. De nossa
Acaso alguém pode pensar
parte, continuaremos empenhaque vamos obrigar todo um povo
dos no processo de atualização
a fazer o sacrifício feito pelo povo cubano para sodo modelo econômico cubano, a fim de aperfeiçoar
breviver, para ajudar outras nações? Mas “a ditadura
nosso socialismo, avançar rumo ao desenvolvimendos Castro” os obrigou a votar pelo socialismo, com
to e consolidar as conquistas de uma Revolução que
97,5% de apoio da população.
se propôs “conquistar toda a justiça” para nosso
Reitero que aprecio como um passo positivo a
povo.
recente declaração do presidente Obama acerca de
O que faremos está em um programa desde o ano
determinar rapidamente sobre a presença de Cuba
2011, aprovado no Congresso do Partido. No próxina lista de Estados patrocinadores do terrorismo,
mo Congresso, que é no próximo ano, vamos estenna qual nunca devia ter estado, dizia-lhes, porque
dê-lo, vamos analisar o que temos feito e o quanto
quando nos impuseram essa lista ocorre que os terainda falta para cumprirmos o desafio.
roristas éramos os que púnhamos os mortos — não
(...)
tenho em mente o dado exato —, só por terrorismo
Devo reafirmar nosso apoio, de maneira resoluta
dentro de Cuba e em alguns casos de diplomatas
e leal, à irmã República Bolivariana da Venezuela,
cubanos em outras partes do mundo que foram
ao governo legítimo e à aliança civil-militar lideraassassinados.
da pelo presidente Nicolás Maduro, ao povo boli(...)
variano e chavista que luta para seguir seu próprio
Até hoje, o bloqueio econômico, comercial e ficaminho e enfrenta tentativas de desestabilização e
nanceiro aplica-se com pleno vigor contra a Ilha,
sanções unilaterais, as quais pedimos que sejam re-
16
Capa
movidas, que a Ordem Executiva seja revogada, embora seja difícil de acordo com
a lei – o que seria apreciado
por nossa Comunidade como uma contribuição para
o diálogo e o entendimento
hemisférico.
(...)
Vamos manter nosso encorajamento aos esforços da
Argentina para recuperar as
Ilhas Malvinas, as Geórgias
do Sul e as Sandwich do
Sul, e continuar apoiando
sua legítima luta em defePresidente cubano manifestou apoio à Venezuela em seu discurso
sa da soberania financeira.
Continuaremos apoiando as
ações da República do Equador contra as empresas
A especulação financeira, os privilégios de Brettransnacionais que causam danos ecológicos a seu
ton Woods e a remoção unilateral da convertibilidaterritório e procuram impor condições injustas.
de do dólar em ouro são cada vez mais sufocantes.
Eu gostaria de agradecer ao Brasil por sua contriNós exigimos um sistema financeiro transparenbuição, e da presidente Dilma Rousseff, ao fortalecite e equitativo. É inaceitável que menos de uma dúmento da integração regional e do desenvolvimento
zia de mercados, principalmente norte-americanos
de políticas sociais que trouxeram progresso e bene— quatro ou cinco de sete ou oito —, determinem o
fícios para amplos setores – políticas essas que, denque as pessoas podem ler, ver ou escutar no planeta.
tro da ofensiva contra vários governos de esquerda
A internet deve ter uma governança internacioda região, pretendem reverter.
nal, democrática e participativa, especialmente na
Será invariável nosso apoio ao povo latino-amegeração de conteúdos.
ricano e caribenho de Porto Rico, em seus esforços
É inaceitável a militarização do ciberespaço e o
para alcançar a autodeterminação e a independênemprego encoberto e ilegal de sistemas informáticos
cia, como já declarou dezenas de vezes o Comitê de
para agredir outros Estados. Nós não nos vamos
Descolonização das Nações Unidas. Continuaremos
deixar deslumbrar ou colonizar novamente. Acertambém contribuindo para o processo de paz na Coca da internet, que é uma invenção fabulosa, uma
lômbia, até sua conclusão bem sucedida.
das maiores nos últimos anos, bem poderíamos diDevemos nós todos multiplicarmos o auxílio ao
zer, recordando o exemplo do idioma nas fábulas
Haiti, não apenas através de ajuda humanitária, mas
de Esopo, que a Internet serve para o melhor, e é
também com recursos que permitam seu desenvolmuito útil, mas, ao mesmo tempo, também serve
vimento, e apoiar que os países do Caribe recebam
para o pior.
tratamento justo e diferenciado em suas relações
Senhor presidente, na minha opinião, as relações
econômicas e reparações pelos danos causados pela
hemisféricas mudaram profundamente, em particuescravidão e o colonialismo. Vivemos sob a ameaça
lar nos domínios político, econômico e cultural, de
de enormes arsenais nucleares, que devem ser elimimodo que, com base no Direito Internacional e no
nados, e da mudança climática que nos deixa sem
exercício da autodeterminação e da igualdade sobetempo.
rana, estejam concentradas no desenvolvimento de
(...)
relações mutuamente benéficas e na cooperação paCuba continuará defendendo as ideias pelas
ra servir aos interesses de todas as nossas nações e
quais nosso povo assumiu os maiores sacrifícios e
aos objetivos que apregoam.
riscos e lutou ao lado dos pobres, dos doentes sem
A aprovação, em janeiro de 2014 – na Segunassistência médica, dos desempregados, das crianças
da Cúpula da Celac, em Havana –, do Proclama da
abandonadas a sua sorte ou forçadas à prostituição,
América Latina e do Caribe como Zona de Paz, foi
dos que têm fome, dos discriminados, dos oprimidos
uma importante contribuição para este fim, mare dos explorados que constituem a grande maioria
cado pela unidade da América Latina e do Caribe
da população mundial.
em sua diversidade. Isso se torna evidente no fato
17
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
de que avançamos rumo a processos de integração
genuinamente latino-americanos e caribenhos –
através da Celac, União de Nações Sul-Americanas
(Unasul), Comunidade e Mercado Comum do Caribe (Caricom), o Mercado Comum do Sul (Mercosul),
a ALBA, Sistema de Integração da América Central
(SICA) e a Associação dos Estados do Caribe –, que
ressaltam a crescente conscientização da necessidade de nos unirmos para garantir nosso desenvolvimento. Este Proclama nos compromete a que “as
diferenças entre as nações sejam resolvidas pacificamente, através do diálogo e da negociação e outras
formas de solução, e em plena conformidade com o
direito internacional”.
Viver em paz, cooperando uns com os outros para
enfrentar os desafios e resolver os problemas – que,
afinal, afetam e afetarão a todos nós – hoje é um
imperativo.
Deve ser respeitado, como diz o Proclama da
América Latina e do Caribe como Zona de Paz, assinado por todos os Chefes de Estado e de Governo
da Nossa América, “o direito inalienável de todos os
Estados de escolherem seu sistema político, econômico, social e cultural, como condição essencial para
garantir a coexistência pacífica entre as nações”.
Com ele, nos comprometemos a cumprir nosso
“dever de não intervir direta ou indiretamente nos
assuntos internos de qualquer outro Estado e observar os princípios da soberania nacional, a igualdade de direitos e a livre determinação dos povos” e
respeitar “os princípios e normas do Direito Internacional (...) e os princípios e propósitos da Carta das
Nações Unidas”.
Esse documento histórico exorta “todos os Estados membros da comunidade internacional a respeitarem plenamente esta declaração em suas relações
com os Estados membros da Celac”. Agora, temos
a oportunidade para que todos os que estamos aqui
aprendamos, tal como expressa o Proclama, “a praticar a tolerância e viver em paz como bons vizinhos”.
(...)
Cuba, país pequeno e desprovido de recursos
naturais, que se tem desenvolvido em um contexto
sumamente hostil, conseguiu atingir a plena participação de seus cidadãos na vida política e social da nação: uma cobertura de educação e saúde
universais, de forma gratuita; um sistema de segurança social que garante que nenhum cubano
fique desamparado; significativos progressos rumo
à igualdade de oportunidades e no enfrentamento
a toda forma de discriminação; o pleno exercício
dos direitos da infância e da mulher; o acesso ao
deporte e à cultura; o direito à vida e à segurança
dos cidadãos.
18
Obama e Castro: diálogo entre os países consolida nova fase
de abertura nas relações diplomáticas
Apesar das carências e dificuldades, cumprimos
o lema de compartilhar o que temos. Atualmente, 65
mil colaboradores cubanos trabalham em 89 países,
sobretudo nas esferas da medicina e educação. Em
nossa Ilha formaram-se 68 mil profissionais e técnicos, dos quais 30 mil da saúde, de 157 países.
Se com muito escassos recursos, Cuba pôde, o
que não poderia fazer o hemisfério com a vontade
política de juntar esforços para contribuir com os
países mais necessitados? Graças a Fidel é ao heroico povo cubano, viemos a esta Cúpula para cumprir
o mandato de José Martí da liberdade conquistada
com nossas próprias mãos, “orgulhosos de nossa
América, para servi-la e honrá-la (...) com a determinação e a capacidade de contribuir para que seja
estimada por seus méritos, e seja respeitada por seus
sacrifícios”, como disse José Martí. Senhor presidente, perdão, a vocês todos, pelo tempo ocupado.
Muito obrigado a todos.”
A íntegra do discurso pode ser
conferida em: http://pt.granma.cu/
Da redação, Cláudio Gonzalez
Capa
19
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Venezuela enfrenta tentativas
golpistas sem titubear
Max Altman*
A tarefa dos governos de esquerda ou progressistas na
América Latina nunca foi fácil. Os Estados Unidos não se
mostram dispostos a perder a hegemonia que sempre
detiveram sobre a região e as oligarquias e a direita locais
querem retomar a seu favor o controle político de seus
países. No caso venezuelano, contrapor-se a interesses
e à cultura de classe provocou reação violenta, marcada
por tentativas golpistas da direita e dos conservadores
inconformados em perder parte de seus privilégios e em
ver a ascensão social e política das camadas populares
Apoio popular à revolução bolivariana tem conseguido, até agora, conter os ataques golpistas da direita
20
Capa
À
s vésperas da VII Cúpula das Américas
tas era de se esperar uma contraofensiva da direita e
que teve lugar no Panamá em 10 e
dos setores oligárquicos, apoiados politicamente pe11 de abril passados, o presidente
los seus porta-vozes da “grande mídia” local e interdos Estados Unidos, Barack Obama,
nacional e coordenados estratégica e logisticamente
decretou a aplicação de sanções a 7
por Washington.
funcionários do governo da Venezuela, acusando-os
A partir da ascensão de Hugo Chávez ao governo
de violação dos direitos humanos e corrupção e, mais
da Venezuela em duas sucessivas eleições presidengrave, decretou “emergência nacional nos Estados
ciais de 1998 e 2000, a maioria dos países da região
Unidos devido ao extraordinário risco à segurança
passou a ter no comando governos eleitos democratiamericana representado pela situação na Venezuela”.
camente, dedicados a pôr em marcha políticas públiEra o sinal claro de que toda a violenta campanha micas voltadas às camadas pobres da sociedade, a execudiática internacional contra a Revolução Bolivariana
tar planos de fortalecimento da economia afastados
e as tentativas de desestabilização e golpe tinham as
do modelo neoliberal e modernização da infraestruimpressões digitais da Casa Branca.
tura, ao mesmo tempo em que marcavam sua posição
Aparentemente, Washington idealizou um plano
internacional de soberania, independência e integrano qual ao mesmo tempo em que acenava com meção de povos e países do continente. Presidentes com
didas de afrouxamento de um bloqueio político, dieste perfil foram eleitos e reeleitos no Brasil, Argenplomático, financeiro, comercial contra Cuba de mais
tina, Bolívia, Equador, Venezuela, Nicarágua. O mesde 56 anos – relações dimo ocorreu em países cuja
plomáticas, retirada da
Constituição não permite
lista de países apoiadores
reeleição como Uruguai,
do terrorismo, acordos
Chile, Peru, Paraguai, El
migratórios etc. –, e com
Salvador. Alguns desses
isso atrair a simpatia dos
governos eleitos pelas forpaíses latino-americanos
ças democrático-populae do Caribe, buscava isolar
res cederam à pressão da
a Venezuela que, para a
direita, foram derrubados
Casa Branca, é o principal
por golpes ou derrotados
entrave aos seus objetivos
eleitoralmente.
estratégicos no continenOs governos desses
te. É lícito imaginar que
países, porém, impediram
a atual e mais aguda fase
a Área de Livre Comércio
Mulher passa diante de grafite em muro de Caracas
da política de confrontadas Américas (Alca) e
ção direta contra uma revolução bolivariana pacífica,
constituíram organismos próprios de integração, sodemocrática, com um governo presidido por Nicolás
beranos e independentes, como a União de Nações
Maduro disposto a dialogar com base na igualdade
Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade de Estae respeito mútuo, visava a atemorizar as instituições
dos Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), não
venezuelanas ao mesmo tempo em que emitia sinais
mais dispostos a ser meramente o pátio traseiro dos
claros de apoio político e logístico aos setores golpistas
Estados Unidos nem estar submetidos às decisões
e violentos da oposição.
da Organização dos Estados Americanos (OEA), que
Contudo, o tiro saiu pela culatra. Internamente,
marcou sua história como verdadeiro ministério das
foram colhidas cerca de 12 milhões de assinaturas exicolônias do governo norte-americano.
gindo a revogação do decreto de Obama – a Venezuela
A tarefa dos governos de esquerda ou progressisconta hoje com população total de 30 milhões de hatas nunca foi fácil. Contrapor-se a interesses e cultura
bitantes – e no seio da Cúpula das Américas o repúdio
de classe provocou reação das mais variadas da direita
à medida da Casa Branca foi quase unânime. Ouvie dos conservadores inconformados em perder parte
ram-se vigorosos pronunciamentos contra a ingerênde seus privilégios e em ver a ascensão social e política
cia dos Estados Unidos em assuntos internos de países
das camadas populares.
soberanos e contra sua insistente política imperialista,
Os Estados Unidos não se mostram dispostos a percomo o de Cristina Kirchner da Argentina, Rafael Corder a hegemonia que sempre detiveram sobre a região
rea do Equador, Raúl Castro de Cuba, Evo Morales da
e as oligarquias e a direita locais querem retomar a seu
Bolívia, entrecortados pelos aplausos do plenário.
favor o controle político de seus países. Diante da con Depois de década e meia de sucessivas vitórias
juntura desfavorável, que se estendia no tempo e se
de candidatos e partidos de esquerda e progressisaprofundava, aquelas forças resolveram desencadear,
21
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
nacional para se eleger os decoordenadamente, a contraofensiva
putados constituintes. O procuja estratégia assume características
jeto de Constituição elaborado
diversas segundo as condições locais,
por Chávez e seus assessores
mas sempre tendentes a derrocar os
foi amplamente discutido ainda
atuais governantes e assumir eles
durante a campanha pela Consmesmos o poder absoluto. Há presentituinte. Amparados pelo prestítemente uma brutal ofensiva simulgio do presidente eleito, foi eleita
tânea contra três países essenciais
uma grande maioria de deputaao processo de integração: Brasil,
dos, distribuída pelos estados, favoráVenezuela e Argentina.
vel ao projeto.
Vamos nos cingir à VenezueDiscutida em plenário da Constituinte
la que é hoje o alvo central das
por cerca de seis meses, a nova Constituição
maquinações do Departamento
da República Bolivariana da Vede Estado, apoiadas por uma fenezuela foi finalmente aprovada e
roz e continuada campanha dos
A Venezuela é hoje
decretada. Antes porém de entrar
meios de comunicação e que reem vigor, por iniciativa do presicebem o respaldo de algumas fio alvo central das
dente Chávez e com o respaldo
guras de ex-presidentes de países
maquinações do
da Constituinte, a Constituição
de nossa região, derrotados pelo
foi submetida a referendo popuavanço das forças progressistas. E
Departamento de
lar. Amplamente aprovada, dizia
abordar aspectos importantes de
Estado, apoiadas por
em seu preâmbulo: “refundar
sua história, não uma história de
uma feroz e continuada
a República para estabelecer
séculos, mas de parcos 15 anos,
uma sociedade democrática,
para poder entender melhor a
campanha dos meios
participativa e protagônica, mulevolução dos acontecimentos e o
de comunicação e que
tiétnica e pluricultural num Esque agora se passa.
tado de justiça, federal e descenHugo Chávez é eleito presirecebem o respaldo
tralizado que consolide os valores
dente em 1998. Era uma figura
de algumas figuras
da liberdade, da independência,
conhecida. Chefe de uma fracasda paz, da solidariedade, do bem
sada insurreição militar em 1992,
de ex-presidentes de
comum, da integridade territorial
foi preso, no entanto, publicapaíses de nossa região,
(...) assegure o direito à vida, ao
mente, prometeu voltar e encaderrotados pelo avanço
trabalho, à cultura, à educação, à
beçar um processo de mudanças.
justiça social e à igualdade, sem
À época da eleição, os partidos
das forças progressistas
discriminação ou subordinação
tradicionais estavam totalmente
alguma; promova a cooperação
desmoralizados, a economia em
pacífica entre as nações e impulsione e consolide a infrangalhos e a miséria disseminada.
tegração latino-americana de acordo com o princípio
Chávez tinha débil apoio de forças políticas organide não intervenção e autodeterminação dos povos, a
zadas. Os tempos de cadeia, as posteriores viagens pegarantia universal e indivisível dos direitos humanos,
lo país, o contato com destacadas lideranças internaa democratização da sociedade internacional, o decionais e a leitura atenta dos acontecimentos políticos
sarmamento nuclear, o equilíbrio ecológico e os bens
vividos pelos países latino-americanos levaram-no a
jurídicos ambientais como patrimônio comum e irreengendrar um plano, que a história se encarregou de
nunciável da humanidade”. Como inovação, criou,
mostrá-lo genial. As transformações profundas devealém dos poderes tradicionais – executivo, legislativo,
riam estar alicerçadas numa nova Constituição, projudiciário –, o Poder Cidadão e o Poder Eleitoral.
gressista, avançada, e toda uma teia de instituições
Não bastasse os passos democráticos tomados, o
novas, mais as instituições tradicionais a serviço da
presidente Chávez solicita ao novel Poder Eleitoral
nova Constituição. A essência de sua primeira campaque convoque novas eleições presidenciais, agora sob
nha presidencial consistiu em alimentar esperanças,
a égide da nova Constituição. Chávez é uma vez mais
centrando-as numa nova Constituição.
eleito presidente em 1999. O mesmo ocorreu com a
Eleito presidente, insistiu na convocação de uma
Assembleia Nacional da recém-fundada República
Assembleia Constituinte, argumentando que deveBolivariana da Venezuela, composta majoritariamenria ser convocada por plebiscito, ouvindo-se a voz do
te de partidários do presidente Chávez.
povo. O povo disse sim. Chamou-se então um pleito
22
Capa
Nos primeiros dois anos, Chávez preocupou-se politicamente em fortalecer as novas
instituições, de acordo com a Constituição,
deixando em segundo plano eventuais reformas econômicas. Na verdade, a economia se manteve praticamente intocada até
finais de 2001, quando o presidente, autorizado pela Assembleia Nacional, recebe “poderes habilitantes” para tocar em alguns
aspectos centrais da economia, em especial
o que se relacionava com a Petróleos da Venezuela (Pdvsa).
Foi o suficiente para despertar a ira das
Nicolás Maduro denuncia violência patrocinada pelos oposicionistas
forças da reação que se mobilizaram e trataram de desestabilizar o regime. A oligarquia veneEm 2004, a oposição valeu-se de uma cláusula
zuelana, ligada à riqueza do petróleo, imaginou poder
altamente democrática da Constituição Bolivariana,
pressionar, controlar, manipular e submeter o presisegundo a qual todos os cargos de eleição popular são
dente, como sempre acontecera na história do país.
revogáveis, transcorrida a metade do período para o
Ocorreu o golpe militar clássico em abril de 2002,
qual um cidadão foi eleito e um número não menor
apoiado expressamente pela mídia, pela burguesia
de 20% do eleitorado do país, ou do estado ou do muoligárquica, por amplos segmentos da classe média,
nicípio solicitar a convocação de um referendo para
por certas lideranças do movimento sindical e até
revogar seu mandato, para convocar um referendo
por grupamentos de ultraesquerda como o Bandera
revogatório do mandato de Chávez. Foi novamente
Roja. Chávez não tinha tido tempo de limpar as forderrotada, como havia sido e continuou sendo em
ças armadas de oficiais dispostos a tirar a castanha
quase duas dezenas de pleitos eleitorais livres, limpos
do fogo em favor das classes dominantes. O golpe foi
e democráticos. Não se conformaram com o resultado
derrotado quando as massas saíram às ruas e, coad– 60% aproximadamente contra a revogação do manjuvadas por parte das forças armadas, trouxeram em
dato de Chávez –, alegaram fraude – o que foi reper60 horas o presidente Chávez de volta ao Palácio Micutido escandalosamente pela mídia internacional – e
raflores. Chávez estendeu de imediato a mão aos seaté hoje não apresentaram um fiapo de prova.
tores empresariais e à oposição, propondo um pacto
Nos anos seguintes com o aprofundamento do
para o avanço da economia e a estabilização política.
processo revolucionário – apoiado pela maioria do
Em vão.
povo venezuelano, em especial pelos trabalhadores e
Vencidos, os golpistas não ensarilharam armas.
camadas populares, e com o nítido avanço dos proEm dezembro do mesmo ano, ainda controlando a
gramas sociais –, Chávez passou a defender e criar as
Petróleos de Venezuela, desencadearam o “locaute”
condições para a instalação na Venezuela de um regipetroleiro também com o objetivo de derrocar o goverme socialista de feição própria e a combater duramenno. A tática foi diversa e o roteiro parecia seguir o do
te o capitalismo. Isto acendeu a ira de Washington e
Chile de Salvador Allende: suspender o fornecimendos setores internos de oposição de direita.
to de combustível, paralisar o transporte de pessoas
Com a morte de Hugo Chávez em março de 2013,
e mercadorias, criar o desabastecimento, provocar a
a direita viu surgir uma oportunidade de derrotar a
angústia popular, desestabilizar o regime para finalrevolução bolivariana pela via eleitoral. O candidato
mente assaltar o poder. Os trabalhadores petroleiros
de oposição à presidência, Henrique Capriles, contou
resistiram, quebraram o bloqueio em alguns pontos
com recursos extraordinários para desenvolver sua
e em diversos momentos, o governo se manteve fircampanha e com a unificação de suas forças. O reme, recebeu apoio de poucos governos amigos e ao
sultado foi uma estreita vitória de Nicolás Maduro,
cabo de 63 dias os golpistas foram novamente derroungido pelo próprio Chávez como seu sucessor na litados. As lutas travadas naqueles meses de 2002 e coderança da revolução. A oposição não acatou a defimeço de 2003 foram moldando a consciência política
nição das urnas, alegou uma vez mais fraude e tratou
dos trabalhadores e do povo venezuelano e levaram
Maduro como presidente ilegítimo. Convocou grupos
o governo a dar início a um processo revolucionário
violentos às ruas de que resultou várias vítimas fatais
bolivariano. A PDVSA, espinha dorsal da economia,
e atentados a sedes do Partido Socialista Unificado
foi totalmente saneada e reestruturada para servir de
da Venezuela (PSUV) e de clínicas onde trabalhavam
alavanca para uma série de políticas sociais.
médicos cubanos.
23
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
O ano todo de 2013, a oposição de direita se negou
pista era a publicação de um certo Manifesto de Trana reconhecer o governo Maduro. Dedicou-se a sabotar
sição de autoria das lideranças da extrema-direita. O
a economia, a açambarcar produtos, a contrabandear
plano foi desbaratado, os oficiais da operação presos,
para o exterior produtos essenciais que o governo
e o líder visível do plano golpista, Antonio Ledezma,
vendia à população com preços subsidiados, com isto
também detido por ordem da Justiça. Tudo amplaalimentando a inflação, provocando o desabastecimente documentado e comunicado à população pelo
mento, criando intranquilidade, a sabotar o sistema
presidente Maduro, pelo presidente da Assembleia
elétrico, criando desestabilização,
Nacional, Diosdado Cabello, e oucaos, guerra psicológica. Tratou
tras autoridades.
de converter as eleições municiA Venezuela vive uma situação
pais de dezembro de 2013 em pleeconômica delicada. É uma ecobiscito. E o que ocorreu? O amplo
nomia ainda rentista decorrente
triunfo eleitoral da Revolução
da “maldição do petróleo”. O setor
Socialista Bolivariana nestas eleiempresarial não investe, vive de
ções derrotou os planos golpistas
renda. Somam-se a isto a sabotada direita.
gem econômica, a alta inflação, o
A Venezuela vive uma
Em fevereiro de 2014, a extredesabastecimento, agora um tanma-direita, liderada por Leopoldo
to atenuado. No plano social, persituação econômica
Lopez, Maria Corina Machado
siste a alta taxa de criminalidade.
delicada. É uma
e Antonio Ledezma, iracunda e
O objetivo central do governo
desesperada, lança o plano “La
Maduro nesta etapa da Revolueconomia ainda
salida”, ou seja, um golpe para a
ção é mudar o modelo econômico
rentista decorrente da
derrubada do presidente Maduro,
dependente do petróleo por um
“maldição do petróleo”.
estimulando que bandos saíssem
modelo produtivo que desenvolva
às ruas e praticassem toda sorte
outras áreas.
O objetivo central do
de violência e crimes, de que reNo entanto, mesmo diante de
governo Maduro nesta
sultou a morte de 43 cidadãos,
tamanhas dificuldades, Maduro
a grande maioria cometida por
consegue manter uma forte base
etapa da Revolução
essas milícias fascistas. Apesar
social, em especial entre os trabaé mudar o modelo
do alto preço em vidas, foi novalhadores e as camadas pobres, pereconômico dependente
mente derrotada. À essa altura,
manentemente mobilizada, e, em
instados e com a intermediação
especial, a unidade cívico-militar.
do petróleo por um
da Unasul, governo e oposição
Ademais, conta com maioria na
modelo produtivo que
sentaram-se a uma mesa de diáAssembleia Nacional, com um Pologo, que foi transmitida abertader Judiciário disposto a defender
desenvolva outras áreas
mente durante mais de 10 horas
intransigentemente a Constituipor uma rede de televisão e rádio,
ção e dispõe de meios de comuniem que os líderes da oposição pucação popular para travar a bataderam expor livremente seus pontos de vista. O diálha de ideias. Porém, mais importante, Maduro, bem
logo, que visava a encontrar caminhos para a superacomo ministros do governo e dirigentes do PSUV, vão à
ção dos entraves econômicos e políticos, não avançou
televisão, vão ao encontro dos movimentos populares,
uma vez que a oposição apresentou condições inaceivalem-se de cerimônias públicas para defender enfátáveis para o seu prosseguimento e setores radicais de
tica e corajosamente a revolução, rebatendo sem titudireita desta oposição sabotaram qualquer tentativa
bear as investidas golpistas e caluniosas dos opositores.
de entendimento.
Estão programadas para o final deste ano eleições
Já em fevereiro de 2015, a extrema-direita parte
para a Assembleia Nacional. Será mais um teste paabertamente para o golpe. A inteligência das Forças
ra a Revolução Bolivariana. Maduro sente, em suas
Armadas Bolivarianas consegue detectar o plano e
incansáveis andanças pelo país, que o povo apoia a
prender os seus executores: um pequeno grupo de ofiRevolução acima das reais dificuldades pelas quais
ciais da Força Aérea, que a bordo de um avião tucano
vem passando.
de registro não venezuelano, atacaria o palácio presi*Max Altman é jornalista, membro da secretaria
dencial, tendo como alvo o presidente Maduro, a sede
de Relações Internacionais do Partido dos
da Telesur, do Conselho Nacional Eleitoral e algumas
Trabalhadores
outras instituições. O sinal para o início da ação gol-
24
Capa
Nestor e Cristina Kirchner
Doze anos de gestão kirchnerista na Argentina repararam alguns dos danos causados por décadas de neoliberalismo
Argentina: apenas novas
mudanças podem proteger
o que já foi conquistado
Jorge Alberto Kreyness*
A poucos meses do fim do mandato presidencial na Argentina,
chegamos aos doze anos de gestão (três mandatos) dos Kirchner.
Muitos falam de “fim de ciclo”, pretendendo com isso colocar
fim, na verdade, a um período singular, no qual uma corrente de
um partido tradicional executou políticas externas autônomas
em favor da integração regional e reparou alguns dos danos
causados por décadas de neoliberalismo com suas ditaduras ou
governos constitucionais. Nós, os comunistas, consideramos que
não podemos nos resignar a isso
25
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
A
tendência mundial rumo a um munNa verdade, o imperialismo continua sendo o podo multipolar e policêntrico, a partir
der dominante, embora encontre cada vez mais difido ponto de articulação entre o século
culdades para o exercício dessa dominação.
anterior e o atual, tem a América LaPor isso, desenvolveram uma sistemática intertina como importante protagonista.
vencionista que é constantemente modernizada e
A irrupção da Revolução Bolivariana
atualizada, com o propósito de fazer retroagir nos– de conteúdo anti-imperialista – impulsionou em
sos processos políticos ao velho esquema no qual
nossos países o surgiprepondera a chamada
mento de inúmeros pro“iniciativa
privada”,
cessos que escaparam
bem como de colocar
ao controle político que
outra vez o Estado toos Estados Unidos vitalmente a serviço das
nham mantendo.
corporações.
Com uma diversidaVários movimentos
de própria ao seu desengolpistas que seguiram
volvimento desigual, em
nessa direção fracassacada uma de nossas naram, como na Venezueções, os povos travaram
la, na Bolívia e no Equabatalhas contra o modor. Outros alcançaram
delo neoliberal do Conseus objetivos, como
senso de Washington,
em Honduras e no Paconseguindo sintetizar
raguai. Mas, em todos
essas lutas no surgios nossos países, contimento de novas liderannuam se desenvolvendo
O imperialismo
ças e de novas forças políticas.
ações – ora desestabilizadoras,
Nessas inovadoras articulaora golpistas – com o objetivo de
desenvolveu
ções se unem na diversidade,
conservar e/ou recuperar o conuma sistemática
e de diferentes modos, tanto
trole sobre as formações econôintervencionista,
correntes revolucionárias e somico-sociais e sobre o Estado.
cialistas como reformistas ou
Seus centros de elaboração e
com o propósito de
populistas. De acordo com a cordesenvolvimento de estratégias
fazer retroagir nossos
relação de forças e os fenômenos
para tanto – como o denominado
histórico-culturais de cada país,
Albert Einstein Instituto, presiprocessos políticos ao
depois de alcançar o governo nos
dido pelo Sr. Gene Sharp – provelho esquema no qual
marcos legais do sistema instijetaram verdadeiros manuais de
tucional preexistente, elas prodesestabilização, cuja aplicação
prepondera a chamada
duziram mudanças em benefício
se encontra hoje na ordem do dia.
“iniciativa privada”,
dos trabalhadores e dos setores
Eles se especializaram em enconbem como de colocar
humildes – os quais a ortodoxia
trar os pontos fracos dos govereconômica havia deixado à marnos
progressistas para explorar
outra vez o Estado
gem dos limites do sistema.
ao máximo suas deficiências e,
totalmente a serviço
Em seu tempo, combinando
a partir daí, promoverem ações
uma atitude defensiva e uma
desgastantes com o fim último de
das corporações
motivação em favor da soberarestaurar o neoliberalismo.
nia, avançaram na unidade poAlém disso, realizam tentalítica da região e conceberam o
tivas de combater a integração
processo de integração regional, cujas principais exregional mediante construções como a Aliança do
pressões são hoje a União de Nações Sul-Americanas
Pacífico, na qual tratam de potencializar os governos
(Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americom os quais têm afinidade.
cano e Caribenhos (Celac), dentre outras novas orPorém, temas como o fim do bloqueio a Cuba
ganizações regionais de caráter supranacional.
ou a necessidade de revogação da ordem executiva
Tal processo se realizou contra a vontade dos Escontra a Venezuela têm encontrado a Nossa América
tados Unidos, que continuam nos considerando o
unida – conforme ficou evidenciado na recente Cúseu “quintal dos fundos”.
pula no Panamá.
26
Capa
Ao analisar a política de Washington não se pode
deixar de lado o grau de bifurcação que foi produzido, aqui e agora, no âmbito da tomada de decisões,
depois que os republicanos ganharam ambas as câmaras do Congresso.
Mas o certo é que os planos desestabilizadores
estão em pleno curso e que a Venezuela, o Brasil e a
Argentina, sem esquecer outros países, encontramse no centro da tormenta.
Na Argentina, o governo de Néstor Kirchner assumiu em meio à implosão do modelo neoliberal –
havia ocorrido a crise orgânica de 2001 e cinco presidentes tinham se sucedido em poucas semanas.
Após o fracasso da tentativa de instalação de um
Estado policial, diante da continuidade e do revigoramento crescente das lutas populares, realizaramse as eleições, vencidas pelo peronismo – Kirchner
obteve 22% dos votos, num contexto de 24% de desempregados.
O governo instituído em 2003 iniciou um processo de estabilização do regime institucional e de recuperação do consenso, colocando fim à impunidade das violações aos direitos humanos e reparando
– fundamentalmente com políticas de ampliação do
mercado interno – a perda de conquistas que grandes faixas de trabalhadores e de setores populares
mais humildes haviam sofrido com a aplicação da
ortodoxia econômica.
O kirchnerismo – uma força de hegemonia burguesa-reformista – encontrou rapidamente forte
apoio social, que foi incrementado em torno de 2005,
quando junto com Hugo Chávez e Lula, em Mar del
Plata, confrontaram-se com George W. Bush e impediram a articulação da Área de Livre Comércio das
Américas (Alca), dando origem ao processo de formação de novas organizações de integração regional,
como a Unasul e a Celac, além da incorporação da
Venezuela, e em breve da Bolívia, ao Mercado Comum do Sul (Mercosul).
Era evidente que nesse momento se iniciaria
uma nova etapa, mais intensa e constante, das conspirações contra o governo, que desde então não deixaram de crescer.
Os centralizados meios de comunicação jogaram um papel de primeira linha para potencializar
ao máximo os problemas da falta de segurança e da
inflação.
Os setores agroexportadores, especialmente os de
soja e girassol, conseguiram agrupar e mobilizar todos os setores agrários, inclusive pequenos e médios,
contra as retenções (impostos) às vendas ao exterior,
a partir de erros do governo em matéria de gestão.
O velho e aristocratizante Poder Judiciário, mediante artifícios legais ou processuais, atuou como
O velho e aristocratizante Poder Judiciário atuou como freio na
aplicação de leis progressistas e antimonopolistas
freio na aplicação de leis progressistas e antimonopolistas – como a de Serviços de Comunicação Audiovisual e outras –, tornando-se inclusive ator central de grandes causas abertas contra o governo e/ou
seus funcionários, de forte repercussão midiática e
cujo saldo foi a deterioração da ação governamental.
Além disso, a partir das estruturas do velho Estado, setores das polícias provinciais, da Gendarmería
(gendarmaria) e da Prefectura Naval (espécie de guarda costeira) realizaram aquartelamentos e outras
ações que desestabilizaram o país.
A crise de representação dos partidos, especialmente os de direita, foi suprida por esses fatores do
poder real, que cumpriram também o papel de oposição política na polêmica ideológica – na confrontação de rua inclusive –, bem como numa sofisticada
promoção de figuras que, no fundo, expressam programas de restauração do poder ilimitado dos monopólios.
O recente caso do promotor Nisman foi paradigmático para mostrar o papel dos velhos serviços de
inteligência, também dentro das dobras do Estado.
O mesmo promotor que travou e adiar por vinte
anos as investigações sobre o caso do atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia)
– incluindo o período do seu antecessor –, surgiu
denunciando a presidenta e o chanceler por encobrimento do mesmo crime, desfigurando para tanto
os conteúdos do Memorando de Entendimento com
a República Islâmica do Irã. Isso causou grande alvoroço nacional e internacional e, com o tempo, as
águas foram clareando e o balão midiático desinflando, embora restem ainda resquícios desse problema. Tornou-se evidente neste caso a ingerência
dos Estados Unidos e de Israel em nossos assuntos
internos, por meio de seus respectivos órgãos de inteligência – CIA e Mossad –, além de sua influência
e presença ilegal na política nacional.
27
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
A estratégia empresarial de
aumentar os preços e culpar o governo pela inflação, além do mais,
surge como uma constante.
Assim como o governo, em alguns casos e temas, pôde responder com inteligência e resolver as
conspirações, em outros não soube
ou não pôde fazê-lo.
O momento político é de fim
da possibilidade de reeleição de
Cristina Fernández de Kirchner.
Seus dois mandatos constitucioReunião do PCA: comunistas argentinos defendem frente comum para defender
nais terminam em dezembro do
conquistas alcançadas mediante o avanço no rumo de novas transformações
corrente ano de 2015 e as características de sua sucessão se convertem num problema político central.
A poucos meses do fim do mandato presidencial,
Por isso, a direita já não parece se centrar no golchegamos aos doze anos de gestão (três mandatos)
pismo ou na destituição, tratando sim, em primeiro
dos Kirchner. Muitos falam de “fim de ciclo”, prelugar, de deteriorar sua figura e a de seu setor intendendo com isso colocar fim, na verdade, a um peterno do peronismo para que – qualquer que seja o
ríodo singular, no qual uma corrente de um partido
resultado eleitoral de outubro próximo – eles fiquem
tradicional executou políticas externas autônomas
com a menor capacidade de influência possível no
em favor da integração regional e reparou alguns dos
futuro. Os principais presidenciáveis, pelo menos até
danos causados por décadas de neoliberalismo com
agora, são figuras de perfil conservador e de boas resuas ditaduras ou governos constitucionais.
lações com os Estados Unidos, sejam estes oficialisNós, os comunistas, consideramos que não podetas ou opositores.
mos nos resignar a isso.
Lamentavelmente, o kirchnerismo não soube, não
Consideramos ser necessário unir e organizar toquis ou não pôde contribuir com a conformação de
dos aqueles que aspiram a travar a fundo uma luta
uma força política frentista, capaz de unir todos os
por mudanças, numa perspectiva popular, democrápartidários, de avançar rumo a novas mudanças e de
tica e libertadora.
fazê-lo com maior profundidade. Por isso, na maioQue é necessário unir as forças dos trabalhadoria das ocasiões – e muito especialmente nos mores e do povo, das camadas médias da cidade e do
mentos eleitorais – ele se apoiou sobre as antigas escampo, em uma frente comum para defender as
truturas do Partido Justicialista, de seus governantes
conquistas alcançadas, algo que somente pode ser
e intendentes (chefes dos governos municipais), que
conquistado mediante o avanço no rumo de novas
por sua composição histórica concreta representam
transformações, num sentido popular e antimonohoje um fator de retrocesso.
polista.
De fato, a Lei dos Meios de Comunicação não pôConsideramos que no seio de nosso povo há cade ser aplicada no fundamental.
pacidade de luta e disposição combativa; e que aí se
Não foi possível a imposição das retenções móencontra a força capaz de continuar a batalha contra
veis (impostos) à exportação de soja e girassol.
o imperialismo e seus aliados locais, nas condições
E, do mesmo modo, não foram modificadas as
que se colocam para 2016.
leis tributárias, para fazer com que paguem mais
Por isso, convocamos o Congresso de nosso Paraqueles que tenham maiores ganhos e lucros; nem
tido para novembro ou dezembro deste ano de 2015,
foi adiante a lei de serviços financeiros, para estabeonde analisaremos o contexto que se apresenta aos
lecer um limite à ação depredadora dos bancos, em
comunistas, ao conjunto das forças populares e antiespecial os transnacionais.
-imperialistas e ao povo argentino, no marco de uma
A produção industrial continua com um alto grau
contenda que, sabemos, é de caráter regional, latinode estrangeirização, o que submete o país a uma forte
-americana e caribenha.
dependência e a uma alta demanda pelo dólar. Este
é outro dos fatores utilizados para dificultar a ação
*Jorge Alberto Kreyness é membro da Comissão
do governo, quando este pretende regular, ainda que
Política do Comitê Central, secretário de Relações
timidamente, o mercado de câmbio.
Internacionais do Partido Comunista da Argentina
28
Capa
A economia no projeto
kirchnerista
Juan Santiago Fraschina*
Cristina Kirchner em inauguração da nova fábrica da Yamaha na Argentina (Buenos Aires, julho de 2014)
Ao longo da última década, contrariamente à cantilena neoliberal,
a Argentina pôde realizar uma importante redução no nível de
desigualdade e, simultaneamente, apresentar altas taxas de
crescimento econômico. Isso foi possível já que o estímulo à
demanda a partir de investimento social (denominado gasto
para os liberais) não apenas melhora a qualidade de vida da
população e garante o pleno exercício dos direitos sociais como
também gera efeitos multiplicadores positivos na economia
29
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Efeitos sociais e econômicos da crise
da convertibilidade
taxa de desemprego, na média, permaneceu durante
toda a década acima de 15% enquanto a pobreza, no
final de 1999, acima de 25%.
Com relação ao desenvolvimento da indústria eno final do ano 2001, o modelo ecotre 1996 e 2002, 9140 empresas foram fechadas, das
nômico neoliberal entrou numa criquais 60% pequenas e médias empresas (PYMES,
se terminal, depois de muitos anos
em espanhol). Mesmo assim o modelo de desindusde agonia, onde, juntos, a atividade
trialização livre levou a uma perda de 167 mil postos
econômica e os indicadores de emde trabalho nesse mesmo período. Um dado interesprego e pobreza pioravam. Em dezembro desse ano,
sante de se ressaltar é que, apesar desse aparente dia restrição à retirada de dinheiro em espécie, contasnamismo do setor financeiro através do produtivo –
correntes e poupança (o chamado “corralito”) pode
embora durante os primeiros anos o setor tenha tido
ser considerada como o detonador da crise financeium alto crescimento –, a crise de
ra, econômica e política que atra2001 o teve como um dos prinvessava o país, depois de mais de
cipais setores prejudicados. O
uma década de políticas neolibeA crise de hegemonia
sistema bancário-financeiro, no
rais sem quartel.
do modelo neoliberal
início de 2002, apresentava, denUm dos pilares do modelo
tre outras coisas, um enfraqueneoliberal argentino foi a polítiimputou uma crise
cimento do sistema pagos, um
ca monetária de convertibilidade
de legitimação da
mercado de capitais paralisado e
(currency board) que fixava a equiuma ascendente desintermediavalência da moeda argentina em
política, entendida
ção financeira. Dentre os problerelação à norte-americana: “Um
como uma ferramenta
mas mais espinhosos observados
peso, um dólar”. Essa medida
no setor financeiro e bancário se
de transformação
trouxe como consequência a imdestacam: uma elevada ausênpossibilidade de se realizar uma
da realidade. Após
cia de prazos e de moedas; um
política monetária de maneira
a renúncia do então
elevado “spread” bancário; altas
autônoma, dado que a quantidataxas de inadimplência e perdas;
de de reservas do banco central
presidente Fernando
uma importante concentração e
devia ser o equivalente à base
de la Rúa, o país teve
estrangeirização. O corralito deu
monetária. Na prática, o esqueo golpe final no sistema bancáma de convertibilidade permitiu
cinco presidentes em
rio, demonstrando que o setor
que fosse gerado um modelo de
dez dias
financeiro precisa de outras políacumulação financeira – distante
ticas macroeconômicas para um
das necessidades produtivas do
crescimento sustentável.
país.
Em relação à crise democráCom efeito, durante o regime
tica e de representação, a crise de hegemonia do
de convertibilidade o sistema bancário e financeiro
modelo neoliberal imputou uma crise de legitimaposicionou-se como um dos setores econômicos de
ção da política, entendida como uma ferramenta de
maior protagonismo: foi o ramo com maior crescitransformação da realidade. Após a renúncia do enmento médio de toda a economia ao longo de 1991
tão presidente Fernando de la Rúa, o país teve cinco
a 2001 (12,6%), superior aos setores produtores de
presidentes em dez dias.
bens, serviços e ainda maior que o do Produto Interno Bruto (PIB) geral (3%, 3,7% e 3,4%, respectivaA recuperação econômica kirchnerista
mente). Esse forte crescimento, junto com a privatie a construção de um projeto de país
zação do sistema de previsão social, que ficou sob a
órbita das Administradoras de Fundos de AposentaCrescimento com inclusão social
dorias e Pensões (AFJP, sigla em espanhol), posicionou o setor como um dos mais firmes defensores e
Podemos considerar o dia 25 de maio de 2003,
campeões do modelo (NORIEGA, 2003).
com a assunção do presidente Néstor Kirchner, coEnquanto uma parte do setor financeiro vincumo a pedra angular do projeto político kirchnerista
lado ao negócio da dívida (na convertibilidade da
que pressupôs uma transformação da política ecodívida externa em dólares aumentou quase US$ 30
nômica, com o objetivo de garantir a coesão social e
bilhões) se enriquecia o conjunto do povo argentino
restituir os direitos sociais aniquilados pelo modelo
continuava submetido à pobreza e ao desemprego. A
N
30
Capa
neoliberal e pela lógica anárquica do mercado. O kirchnerismo permitiu uma nova
articulação entre as facções do
capital vinculadas com o tecido produtivo e os trabalhadores a partir de uma participação ativa e transformadora do
Estado.
Os determinantes níveis de
pobreza, a perda de empregos,
produto do fechamento de
inúmeras pequenas e médias
empresas, e de comércios, necessitavam de uma mudança
substancial nas medidas da
economia. Nesse sentido, um
Em 2001, argentinos saíram às ruas contra o chamado “corralito”, que restringia saques
dos pilares do modelo econôbancários. Episódio ficou marcado como símbolo da falência do modelo neoliberal
mico kirchnerista (e que marca uma diferença em relação
ao esquema neoliberal) responde à necessidade da
pregados (AUH) e políticas ativas para redução da
distribuição do acesso, e da inclusão social como
informalidade e incentivo da demanda de trabalho
condição necessária para o crescimento e (funda(os Programas PROGRESSO, PRÓ-EMPREGO, REmentalmente) e o desenvolvimento de uma nação.
PRODUÇÃO PRODUTIVA). Por sua vez, a partir das
Com efeito, é muito comum no pensamento
políticas de acesso, também estão incluídos os bens
liberal estabelecer uma sequência temporal que exculturais e sociais que o Estado concede à população
põe a necessidade de se produzir (crescer) primeiro
e que atuam à maneira de um salário indireto: edupara em seguida distribuir. A partir desse enfoque
cação pública, teatros e espaços culturais gratuitos,
as políticas de acesso que os governos levam adianprovimento de serviço público e infraestrutura, tarite, como no caso argentino, o aumento anual do safas dos serviços públicos.
lário-mínimo vital e variável (SMVM, na sigla em
Ao longo da última década, contrariamente à
espanhol), as paritárias, a Concessão Universal por
cantilena neoliberal, a Argentina pôde realizar uma
Filho (AUH, em espanhol), a mobilidade da previimportante redução no nível de desigualdade e, sidência social, dentre outras medidas redistributivas,
multaneamente, apresentar altas taxas de crescinão teriam um impacto no nível de crescimento, a
mento econômico. Isso foi possível já que o estímulo
não ser que, ao incrementar o gasto público, tornaà demanda a partir de investimento social (denomiriam mais agudos os problemas fiscais dos países.
nado gasto para os liberais) não apenas melhora a
É a partir daí que as políticas públicas sugeridas
qualidade de vida população e garante o pleno exerpor essa corrente sejam o ajuste fiscal (redução do
cício dos direitos sociais como também gera efeitos
gasto público) e a “melhora do clima de negócios”,
multiplicadores positivos na economia. O Estado, ao
que levariam a um aumento do investimento e, com
aumentar o acesso disponível estimula a demanda
ele, da produção. Isso produziria um crescimento
e o consumo – o que se converte em maiores veneconômico que, em segunda instância, melhoraria
das das indústrias incrementando o emprego, fortao acesso dos setores mais vulneráveis. Comumente
lecendo o desenvolvimento industrial e o mercado
conhecida como teoria do derrame, essa sequência
interno e externo.
temporal entre a produção e a distribuição não foi
Distante dos cantos de sereia neoliberais, ao
respaldada pela evidência empírica, mas sim que as
longo da última década consolidou-se o modelo de
receitas neoliberais aprofundaram as desigualdades
crescimento com inclusão social, onde não há tensociais.
são entre a esfera da produção e a de distribuição,
O projeto kirchnerista compreende as Polítimas que, por meio de políticas públicas ativas, se
cas de Acesso a partir de um sentido amplo onde
consegue articular uma estrutura social mais hose incluem as ações tendentes a: melhorar o salámogênea com um maior nível de crescimento em
rio dos trabalhadores formais (paritárias anuais),
busca de objetivos de desenvolvimento econômico
transferências de acessos aos informais e deseme social.
31
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
O processo de reindustrialização:
Recuperando a matriz produtiva
O investimento e o financiamento
para o desenvolvimento
A recuperação da matriz industrial (destruída deContrariamente ao que prega a teoria liberal – sepois de 30 anos de políticas neoliberais), junto com a
gundo a qual a única forma de se obter financiamento
reativação das economias regionais, é reflexo da ime ampliar os investimentos é a partir do estabelecimenportância que obtém, dentro do projeto kirchnerista,
to de um “clima de negócios” amigável com o capital
a indústria como motor de desenvolvimento e ferraprivado –, durante a última década a Argentina aprementa fundamental para a geração de emprego. Forsentou bons indicadores de investimento em relação
talecer e desenvolver os encadeamentos produtivos
à etapa de convertibilidade. Com efeito, tanto o conque permitam um maior desenvolvimento industrial
sumo privado quanto o investimento foram duas das
em todas as suas etapas é um objetivo permanenvariáveis mais dinâmicas, graças às políticas de acesso,
te do projeto kirchnerista – assim como a melhoria
à criação de emprego e ao processo de industrialização.
da competitividade sistêmica das
Em números, se durante o período
economias regionais.
1993-2002 o consumo privado e o
A partir de 2003, o cresciinvestimento tiveram uma queda
O kirchnerismo
mento econômico foi explicado
de -0,6% e -5,7% respectivamente
estabelece formas
principalmente pela dinâmica da
(variação anual acumulativa), no
de financiamento do
atividade industrial. Em apenas
período 2003-2014 ambas as vauma década o nível de atividade
riáveis aumentaram 6,6% e 11,2%
Estado por meio de
industrial, mensurado por meio
respectivamente.
acordos e convênios
da Estimativa Mensal da IndúsSe então para se consolidar
tria (EMI), foi incrementado
um
processo de desenvolvimento
bilaterais que reforçam
em 70%. Já a utilização da casão necessárias maiores taxas de
o eixo Sul-Sul. Mesmo
pacidade instalada da indústria
investimento, se se realiza uma
assim, por ter como
aumentou por volta de 8 pontos
comparação em nível regional a
percentuais. As consequências
taxa de investimento argentina
objetivo a substituição
imediatas do projeto kirchneris(18% do PIB) supera a brasileira
de importações, se
ta foram um notável aumento na
em um ponto percentual.
produção de bens, acompanhada
Em relação ao papel da dívireforça a capacidade
por uma intensa geração de noda e de seu vínculo com o crescide pagamento do
vos postos de trabalho e melhomento econômico, a política de
ria nos indicadores de qualidade
desendividamento e a busca de
país, diminuindo a
do emprego, e a modernização e
alternativas de financiamento que
dependência externa
ampliação da capacidade produgarantem a soberania argentina
tiva nacional.
foram fundamentais. O kirchneNo que se refere ao emprego
rismo estabelece formas de finanindustrial, de 769.649 trabalhadores registrados no
ciamento do Estado por meio de acordos e convênios
primeiro semestre de 2003, se passou para 1.287.909
bilaterais que reforçam o eixo Sul-Sul. Mesmo assim,
no primeiro trimestre de 2013 (67% de aumento),
por ter como objetivo a substituição de importações, se
fato que demonstra a grande capacidade de absorção
reforça a capacidade de pagamento do país, diminuinde mão de obra que expandiu o setor industrial dudo a dependência externa. A melhoria nos indicadores
rante o renascimento da ênfase sobre os setores com
de sustentabilidade do sistema bancário e financeiro,
maior agregação de valor.
bem como os esforços tanto estatais quanto do setor
Esse processo virtuoso de industrialização e geprivado para fortalecer o crédito produtivo são o reflexo
ração de emprego possibilitou uma revitalização
de que é possível gerar um sistema financeiro distante
das negociações coletivas de trabalho. Durante a
da valorização e da especulação financeira, e o serviço
convertibilidade as mesmas exibiam um comporda matriz produtiva argentina.
tamento defensivo, onde os sindicatos tentaram
Desendividamento e Fundos Buitres
ceder o mínimo possível frente à “flexibilização tra(abutres)
balhista”. Enquanto nos anos 1990 houve uma média de 178 acordos trabalhistas, em 2014 se chegou
Tendo-se claro que a disponibilidade de divisas
à cifra de 348 acordos que abrangem 4.300 milhões
permite um crescimento ao tecido industrial, uma
de trabalhadores.
32
Capa
estratégicos (como o da energia)
que permitem o refinanciamento
da mesma.
Conclusões
A perda de hegemonia do projeto neoliberal, cristalizada na crise
socioeconômica de 2001, permitiu o
surgimento de alternativas de crescimento que tornam viável o desenvolvimento soberano do país. Os
dramáticos resultados em termos de
coesão social do liberalismo e suas
receitas econômicas racharam as
capacidades de dominação que até
o momento haviam conseguido as
alianças políticas e sociais que susMovimento La Campóra mobiliza militância em defesa do projeto kirchnerista
tentaram as políticas neoliberais.
Diante das vozes que pediam o
desmantelamento do Estado de Bem-Estar, o granpolítica central para garantia dessa disponibilidade é
de dinamismo na criação de postos de trabalho,
o desendividamento. Um país superendividado deve
consequência da instauração de um novo padrão
destinar a maior parte dos seus recursos à anulação
de crescimento baseado na distribuição de acesso,
de seus compromissos. Por isso, um dos principais
o estímulo à demanda e da satisfação de direitos
êxitos desta última década foi o notável desendivisociais permitiram que a Argentina retomasse o
damento. A dívida pública total (incluindo a dívida
caminho do desenvolvimento.
interna do setor público) chega a US$ 202 bilhões.
A industrialização demanda um mercado interno
Enquanto a dívida pública no ano de 2004 represene regional vigoroso e uma integração maior das ecotava 106% do PIB, hoje é de 39,5% reproduzindo clanomias regionais em esquemas que garantam relaramente o efetivo das políticas de desendividamenções simétricas e não de dominação. Nesse sentido,
to. Se se desconta, além disso, a dívida pública nas
a consolidação da Pátria Grande precisa de mercados
mãos do próprio setor público passa a representar
regionais nos quais o crescimento de um país facilite
102,7% do PIB em 2004 e 18,1% em 2014.
o de seus vizinhos numa relação de complementariA modificação tanto quantitativa quanto qualidade produtiva.
tativa da dívida pública permitiu que cada vez mais
Os países centrais pretendem transferir os cussejam destinados menos recursos públicos para o
tos da crise financeira internacional para os países
pagamento da mesma. Em 2009 19,7% dos recursos
em desenvolvimento, isso torna necessária uma
eram destinados ao pagamento da dívida (incluindo
articulação regional mais ampla. Diante de um
vencimentos de capitais e interesses) e em 2014 apecontexto internacional adverso, no qual o comérnas 7,4% foram destinados.
cio mundial se deprime, o dólar se supervaloriza e
Esse processo de desendividamento ampliou as
o preço das matérias-primas se reduz, as “políticas
margens das políticas sociais reorientando os recurde ajuste” voltam a dominar o cenário midiático.
sos do Estado para políticas de incremento de deLembrar a experiência do passado e evitar políticas
manda que geram externalidades positivas para a
que desmantelem o processo de industrialização,
economia em seu conjunto.
de geração de emprego e inclusão social se transAssim sendo, se durante a última década não
forma numa condição para a garantia do desenvolhouve endividamento privado com organismos fivimento da região.
nanceiros internacionais propenso às políticas neoliberais, como foi financiado o crescimento econômi*Juan Santiago Fraschina é coordenador nacional
co? Por meio de um incremento de crédito privado
de Formação da La Campóra
e de canais de financiamento alternativos bilaterais.
Dessa maneira se garante que a tomada da dívida
Tradução de Maria Lucilia Ruy.
corresponda ao projeto de infraestrutura em setores
33
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
O Brasil deve dar início a
um novo ciclo de política
externa altiva e ativa
Ricardo Alemão Abreu* e Rubens Diniz**
Atualizar e relançar a política externa altiva e ativa é contribuir
com o desenvolvimento do projeto nacional, e isto é necessário
mesmo neste contexto de dificuldades nos âmbitos nacional e
mundial, inclusive para a superação dessas dificuldades
Encontro em Fortaleza com presidentes dos países do Brics e da Unasul: contraponto à velha hegemonia EUA-Europa
N
a campanha eleitoral de 2014 confrontaram-se dois projetos políticos que expressavam visões antagônicas do papel e do lugar do
Brasil no mundo, e do seu projeto
nacional de desenvolvimento. O projeto liderado
pela presidenta Dilma Rousseff, que busca aprofundar o ciclo de políticas desenvolvidas na última
década, foi o grande vitorioso.
34
No entanto, no início do segundo mandato, aproveitando-se de um cenário internacional adverso e de
pressões externas, forças à direita do espectro político
buscam reorientar a política externa para uma ação subordinada às políticas das potências imperialistas.
Neste contexto, impõe-se retomar a iniciativa política, a partir da atualização e relançamento da política
externa altiva e ativa que caracteriza o atual ciclo político, para as novas condições do mundo e do Brasil.
Capa
O atual contexto internacional
a forte influência de fatores externos. Em suma, a
tentativa de desestabilização do governo Dilma, embora siga uma dinâmica muito própria da luta política no Brasil, é parte dessa investida das direitas
do continente e do imperialismo estadunidense para
tentar derrotar o ciclo progressista já em vigor há
mais de 16 anos na América no Sul.
Diante da crise capitalista mundial e dessas ameaças, é necessário ampliar e consolidar as relações Sul-Sul, e aprofundar e acelerar o processo de
integração solidária da América Latina e Caribe. Também é necessário
impulsionar a unidade das forças
populares e as ações de solidariedade internacional para dar suporte
político-social à política externa do
Brasil e dos países sul e latino-americanos e caribenhos.
A luta política em curso no Brasil deve ser entendida situando o Brasil, a América Latina, e mesmo os
BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul),
no contexto de um mundo regido por uma crise estrutural e sistêmica do capitalismo que se estende
para seu oitavo ano, denominada
a “grande recessão”. Pelo mundo
todo há uma crescente resistência
dos trabalhadores e dos povos à
dominação da oligarquia financeira e das forças pró-imperialistas.
O mundo também está envolvido
em uma luta que abrange países e
blocos de países da qual resultará o
desfecho da atual transição nas relações de poder em curso no mundo. O imperialismo estadunidense
manobra no sentido de reverter
A ofensiva liberal
seu declínio relativo e busca relanconservadora contra a
çar sua hegemonia. Nesse sentido,
atual política externa
ganha destaque na situação interbrasileira
nacional uma ação das potências
imperialistas, lideradas pelos EUA,
A escalada conservadora tem na
para conter e agredir qualquer país
crítica à política externa brasileira
que contrarie seus interesses.
(2003-2015) um de seus alvos preOs países que persistem em
diletos. Sob os argumentos de que
projetos nacionais soberanos e têm
a política externa se partidarizou e
política externa autônoma são alvo
A tentativa de
de que Brasil tem se “isolado” do
dessa “contenção”, como a Chicomércio mundial, por estar preso
desestabilização
na, a Rússia, o Irã, além de vários
à Argentina e à Venezuela, é que o
países da América Latina e Caribe.
do governo Dilma é
senador José Serra, em sua saga liEm nossa região, há uma escalaparte da investida das
beral, afirma que nesta legislatura
da de direita que utiliza variados
fará o que for preciso para revogar
meios como a guerra midiática, a
direitas do continente
a união aduaneira, o coração do
guerra econômica, a judicialização
e do imperialismo
Mercado Comum do Sul (Mercoda política, os intentos de golpe de
sul). O que busca a direita brasileiestadunidense para
Estado, as ameaças de agressão
ra é quebrar a regra que obriga os
militar, o apoio e o financiamento
tentar derrotar o ciclo
países a negociarem conjuntamenexterno da oposição, dentre ouprogressista em vigor
te, para com isto levar o Brasil a astros, para tentar lograr as “musinar acordos bilaterais de livre codanças de regime” que almeja, ou
há mais de 16 anos na
mércio, visando a “reativar a Área
seja, a derrubada dos governos de
América no Sul
de Livre Comércio das Américas
esquerda e progressistas na região.
(Alca)” (1). Em essência, o objetiTais governos latino-americanos e
vo da oposição é retomar a agenda
caribenhos inspiram esperança em
neoliberal da década de 1990.
todo o mundo, que infelizmente vive um contexto
Além do ataque ao Mercosul, a agenda consermarcado politicamente pelo crescimento de forças
vadora da oposição liberal se concentra em defende direita e até neofascistas.
der a participação em acordos de livre comércio com
Dos principais países da América do Sul, Argentios países desenvolvidos, a participação do Brasil na
na, Brasil e Venezuela passam por situações políticas
Aliança do Pacífico, e a adesão do país às chamadas
críticas e são alvos dessa investida neste momento.
cadeias globais de valor. Além disso, ataca as polítiCada um com singularidades, mas tendo em comum
35
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
sistema multilateral de relações incas de cooperação regional como a
ternacionais.
que proporcionou a construção do
Para aumentar o debate e a dePorto de Mariel, em Cuba.
fesa de uma política externa ativa
A oposição liberal ignora ou
e altiva, é importante a criação de
esconde que em 2002 o Brasil exum Conselho Nacional de Política
portou US$ 4,1 bilhões para o MerExterna, como defende o Grupo
cosul, e já em 2011 as nossas exde Reflexão sobre Relações Interportações para o bloco atingiram a
nacionais (GR-RI).
cifra de US$ 32,4 bilhões, ou seja
um crescimento de 690%. Dessas
As relações Sul-Sul e a
exportações brasileiras para o Merluta por uma nova ordem
cosul, 90% dos produtos são mainternacional
nufaturados e com alto valor agregado, e esse comércio representou
Contribuir para a construção
um superávit ao Brasil de 72 US$
de uma nova ordem mundial funbilhões.
dada na paz, na soberania de toOs adeptos das políticas neolibedos os países, na cooperação e no
rais que levaram a América Latina
Além do ataque ao
desenvolvimento, reforçando a
à situação de tragédia econômica
tendência à multipolaridade, tem
e social no final do século passado
Mercosul, a agenda
sido uma das prioridades da polícompram o discurso da Aliança do
conservadora da
tica externa dos últimos 12 anos,
Pacífico, mesmo sabendo que ela
que deve ser aprofundada neste
não representa nenhum acréscimo
oposição liberal
segundo mandato da presidente
ao comércio brasileiro, pois a maior
ataca as políticas
Dilma.
parte das barreiras tarifárias enEntre as distintas iniciativas
de cooperação
tre esses países e o Mercosul já foi
destaca-se a contribuição brasileieliminada via acordos conduzidos
regional como a
ra para a consolidação dos BRICS,
pelo próprio Mercosul. Ignoram da
que proporcionou a
um dos legados mais importantes
mesma forma (ou escondem) que
da política externa de Lula e Dila maior dificuldade para se firmar
construção do Porto
ma. O segundo ciclo de encontros
um acordo equilibrado do Mercosul
de Mariel, em Cuba
dos países BRICS, iniciado com a
com a União Europeia está nas pocúpula de Fortaleza (novembro,
líticas do velho continente, que não
2014), deixou como resultado
abre mão de seu protecionismo e de
a constituição do Novo Banco de Desenvolvimenseus subsídios agrícolas.
to (NDB) e do Arranjo Contingente de Reservas
Longe de ser partidarizada, a política externa alti(CRA), iniciativas de significado histórico, que forva e ativa dos governos Lula e Dilma é um resgate e
talecem a autonomia dos países e contribuem na
uma atualização da tradição de “autonomia” e de deformatação de um novo quadro internacional. Ainfesa dos interesses e da soberania nacionais que tem
da em fase de implementação, o novo banco terá
origem em San Tiago Dantas e na Política Externa Incerca de US$ 100 bilhões para financiar projetos de
dependente (PEI). No entanto, o que a oposição quer
infraestrutura, ao tempo em que o Arranjo estará
esconder por trás de um suposto “interesse nacional”
destinado a contribuir com a estabilidade financeié uma visão (neo)liberal para nossa política externa.
ra, garantindo liquidez para seus membros. O Novo
A forma de responder a esta disputa de opiniões
Banco de Desenvolvimento poderá ser um impore ideias, é avançando na reformulação e no relançatante instrumento para o financiamento de projemento do atual ciclo de política externa que vem destos de integração em infraestrutura na América do
de 2003, repactuando temas, agendas e prioridades.
sul, dando resposta a um dos principais obstáculos
A nosso ver, a política externa do segundo manpara o avanço dessa agenda.
dato da presidenta Dilma deve construir uma agenda
A próxima cúpula dos BRICS será na Rússia, na
prioritária que tenha, dentre outros elementos, as secidade de Ufa, nos dias 8 e 9 de julho deste ano. Ainguintes agendas e prioridades: contribuir para uma
da sem uma agenda exata, é certo que alguns temas
nova ordem mundial e para o incremento das relaestarão no debate, dentre eles os desdobramentos
ções Sul-Sul; estabelecer uma prioridade renovada à
das resoluções adotadas em Fortaleza e a condenaintegração regional; e reforçar a atuação do Brasil no
36
Capa
ção às severas sanções que as potências “ocidentais”
têm implementado contra a Rússia. Temas adicionais podem surgir, como uma cooperação maior em
matéria de energia e segurança internacional. Adicionalmente, o debate sobre “governança da internet” pode aparecer com o intuito de restringir seu
uso para fins bélicos, como ataques cibernéticos, a
partir do estabelecimento de um acordo internacional de segurança da informação.
Além da participação nos BRICS, o Brasil deve
continuar desenvolvendo iniciativas de “alianças de
geometria variável”, ou seja, acordos e parcerias entre
distintos países e blocos regionais em torno de temas
específicos. Entre as iniciativas tomadas no âmbito
dos espaços regionais, destacam-se os encontros da
Cúpula América do Sul – Países Árabes (CASA), Cúpula América do Sul – África (ASA), Cúpula da União
de Nações Sul-Americanas (Unasul), BRICS, e o Fórum China – Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), realizado em janeiro de
2015, primeiro espaço de concertação extrarregional
do organismo latino-americano.
A importância dessas alianças está na diversificação de parceiros econômicos e políticos, como também na construção de acordos e ações que visem à
desconcentração de poder, seja ele econômico, político
ou militar.
A cooperação internacional também é um importante instrumento da política externa brasileira,
que deve ser fortalecido neste novo período. Faz-se
necessário um relançamento da Agência Brasileira
de Cooperação (ABC), órgão responsável pela cooperação técnica e vinculado ao Ministério de Relações
Exteriores (MRE). Dentro deste contexto de fortalecer a cooperação, é preciso que o Brasil compartilhe
com outros países seus casos de sucesso em políticas
públicas. Da mesma forma, é necessário que o Brasil
volte a abrir escritórios internacionais de suas agências especializadas, como o IPEA, a Embrapa, e a Fiocruz. Entre as regiões do mundo a ser priorizada está
o continente africano, com o qual devemos, o Brasil
e a Unasul, dar seguimento e efetividade aos acordos
da Cúpula América do Sul – África (ASA).
Um novo entendimento estratégico em
torno dos objetivos da integração sul e
latino-americana
A integração visa ao desenvolvimento econômico,
social, político e cultural de todos os países envolvidos, deve atender aos interesses nacionais de cada
um dos países, a partir da convergência de objetivos
estratégicos. Partindo de raízes históricas e de muitas
experiências na segunda metade do século 20, houve
uma iniciativa fundamental que ocorreu há exatos 30
anos, com a assinatura da Declaração de Iguaçu. Em
1985 foi iniciado o processo que levou à formação do
Mercosul em 1991, e que ajudou a criar as condições
para a criação posterior da Unasul e da Celac.
No entanto, ainda estamos no começo. Para a integração avançar é necessário um entendimento estratégico e coesão de objetivos. Em nosso modo de ver,
é preciso renovar os objetivos estratégicos, a partir de
um processo similar ao que ocorreu em 2003, quando
Lula e Kirchner lançaram o “Consenso de Buenos Aires”, iniciativa que proporcionou o avanço de grande
parte das ações de integração adotadas nesta última
década. O papel dos chefes de Estado, fazendo uso
da diplomacia presidencial, é essencial para o sucesso
desta iniciativa. No plano interno de cada país é necessário construir novos consensos, envolvendo os vários setores da sociedade, em torno da agenda comum
e prioritária de integração.
A Unasul, o Mercosul e a Celac são instrumentos
que se complementam. Dentro de uma lógica de convergência, cada um possui sua agenda própria, mas
devem assumir a agenda prioritária, que precisa ser
unificada e tornar-se transversal em todas as organizações.
Em março de 2016 o Mercosul completará 25
anos. É preciso fortalecer o bloco como núcleo dinamizador da integração regional a partir de uma
agenda orientada ao desenvolvimento. Isto se expressa na constituição de políticas orientadas pela formação de cadeias produtivas regionais, pela
ampliação do combate às assimetrias econômicas e
sociais, e no aperfeiçoamento dos instrumentos de
proteção das indústrias nacionais, como o Mecanismo de Adaptação Competitiva (MAC). Da mesma
maneira, deve-se dar celeridade à negociação para a
adesão ao bloco de Bolívia, Equador, Guiana e Suriname. Cabe uma atenção especial ao caso do Equador, que permitirá consolidar o acesso do Mercosul
ao Pacífico, ampliando sua dimensão estratégica ao
estabelecer acesso aos dois oceanos.
É necessário fortalecer as instituições do Mercosul, dotando sua secretaria e seus institutos de instru-
37
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
mentos materiais e autoridade política para o cumdestaque a atuação da Celac como grupo no âmbito
primento de suas tarefas. Neste quesito o parlamento
da reunião de revisão do Tratado de Não Proliferação
brasileiro deve definir critérios para a eleição, por voto
de armas nucleares (TNP), realizada nos meses de
direto, dos representantes brasileiros ao Parlamento
abril e maio deste ano na sede da ONU.
do Mercosul (Parlasul).
A Unasul nos últimos anos constituiu-se uma
Agendas prioritárias para a integração
nova arquitetura de “governança” regional, com
regional: infraestrutura, cadeias
uma ampla agenda, estabelecendo vários objetivos.
produtivas e combate às assimetrias
Acreditamos ser conveniente priorizar esforços em
três dimensões: concertacão política, coordenação
A capacidade indutora de desenvolvimento dos
de projetos de infraestrutura, e política de defesa sulprojetos de infraestrutura pode contribuir com a re-americana. A concertação política possui uma didução de assimetrias intrarregionais, fortalecendo o
mensão interna, busca realizar esforços de mediação
dinamismo econômico de regiões menos desenvolvidiante de conflitos e tensões internas, como foram
das da América do Sul. O grande desafio é garantir
os casos da Bolívia, Colômbia, Paraguai e mais reo financiamento dos projetos prioritários identificados
centemente da Venezuela. No que se refere à dimenpela Unasul. Para tal, deve-se promover uma coordesão extrarregional, a Unasul se consolida como um
nação maior entre os instrumentos financeiros regiointerlocutor global, valorizando o
nais já existentes (CAF, FONPLATA
protagonismo do continente no
e CCR). Há outras possibilidades cocenário internacional, em torno de
mo a busca de financiamento interÉ preciso fortalecer
uma agenda marcada por temas de
nacional, a partir de parcerias com
o Mercosul como
cooperação e dialogo político.
o Novo Banco de Desenvolvimento
dinamizador da
Com uma decisão justa, e ao
(NDB) dos BRICS, e como a expemesmo tempo ampla e radical,
riência que está em curso envolvenintegração regional,
a Unasul criou a Zona de Paz da
do China, Peru e Brasil, para a conspela formação de
América do Sul, uma medida de
trução de ferrovia transoceânica.
cooperação intrarregional em maOutro desafio é a instituição de
cadeias produtivas,
téria de segurança internacional, e
cadeias produtivas regionais. Sem
pelo combate
também uma união contra ameaelas, as iniciativas de integração ecoàs assimetrias
nômica podem, a qualquer momenças extrarregionais. Na mesma lito, produzir refluxos importantes,
nha, de criar uma doutrina e mecaeconômicas e sociais,
além de haver o risco de serem amnismos sul-americanos de defesa
e o aperfeiçoamento
pliadas, ao invés de diminuídas, as
comuns, uma das grandes inovaassimetrias já existentes. Uma das
ções foi a constituição do Conselho
da proteção das
alternativas seria industrializar os
de Defesa Sul-Americano (CDS), e
indústrias nacionais
vastos recursos naturais da região e
mais recentemente a constituição
fazer uso dos potenciais energéticos.
da Escola Sul-Americana de DefeAssim como devem ser promovidas,
sa (ESCUDE), um feito histórico,
a partir de uma política industrial e tecnológica copara a formação de civis e militares dos diferentes
mum, as melhores capacidades industriais dos países
países em torno de uma visão própria e compartisul-americanos, por exemplo no caso das experiências
lhada do mundo contemporâneo e de sua dinâmica
existentes como é o caso da EMBRAER brasileira e da
internacional.
ENAER chilena, na fabricação de jatos regionais, e a
Além da Zona de Paz na América do Sul, o Brasil
cooperação entre Brasil, Chile, Argentina e Colômbia
também participa da Zona de Paz e Cooperação do
no projeto do avião militar KC-390. Outra oportunidaAtlântico Sul, com a presença de muitos países afride para a América do Sul são os empreendimentos na
canos, e da Zona de Paz da América Latina e Caribe,
região brasileira do pré-sal, que podem orientar suas
criada pela Celac em sua reunião anual em Havana,
atividades dentro de uma lógica que estimule a formaCuba, em 2014.
ção de uma cadeia regional, na área da indústria naA Celac tem concentrado sua agenda em temas
val e em outros setores que envolvam fornecedores de
de desenvolvimento sustentável e combate à pobreequipamentos, componentes e serviços.
za, e de segurança internacional. Após sua primeira
O combate às assimetrias econômicas e sociais decúpula o fórum regional tem se dedicado à realizave ser uma prioridade no processo de integração. É
ção de reuniões especializadas e encontros extrarnecessário aperfeiçoar os instrumentos de combate a
regionais como foi o Fórum Celac – China. Merece
38
tais assimetrias, proporcionando um desenvolvimento harmonioso com benefícios mais equitativos para
todos os países-membros. O Fundo de Convergência
Estrutural do Mercosul (Focem) tem o propósito de
“financiar programas para promover a convergência
estrutural, desenvolver a competitividade e promover
a coesão social, em particular das economias menores
e regiões menos desenvolvidas”. O fundo adota uma
política de aporte de recursos, na qual os países relativamente mais desenvolvidos aportam mais e utilizam
menos (o Brasil aporta 70% e utiliza 10%). Contudo, o
montante de recursos de que o Focem dispõe para sua
carteira de projetos é ainda pequeno, se comparado
com as necessidades existentes. É preciso multiplicar
os recursos do Focem, que é um instrumento fundamental do Mercosul.
A América Latina também pode se beneficiar de
relações com outros países e blocos, como a China.
As relações entre a China e os países da região tem se
ampliado de forma expressiva nos últimos anos. Na
atualidade, o país asiático se tornou o principal parceiro comercial de todos os países do Mercosul. Entre as
iniciativas que estão em curso destaca-se o já mencionado Fórum Celac – China, realizado no mês de janeiro
de 2015, e que busca ser um “inovador instrumento
de cooperação”. Durante a abertura do evento o presidente chinês, Xi Jinping, anunciou investimentos de
US$ 250 bilhões para os próximos dez anos na América
Latina e no Caribe. O Fórum aprovou ainda o Plano de
Cooperação Celac – China 2015-2019.
Vista por muitos analistas com preocupação, a relação com a China pode e deve ser construída na base
de interesses e benefícios mútuos, em prol da integração regional de nossa Pátria Grande. No caso particular do Mercosul, torna-se necessário estabelecer um
acordo macro, em torno de objetivos e visões comuns
da parceria com a China.
A atuação do Brasil no âmbito dos
organismos multilaterais
O Brasil, como um dos estados fundadores da Organização das Nações Unidas, tem por tradição diplomática valorizar os espaços multilaterais de participação e “governança”. Nos últimos anos, o Brasil tem
contribuído presidindo importantes organizações internacionais, como é o caso da FAO e da Organização
Mundial do Comércio (OMC), onde dois experientes
quadros brasileiros têm dado contribuições para os temas internacionais.
Neste último período destacam-se três iniciativas
importantes adotadas pelo Brasil. A primeira relacionada com o uso da força em nome dos direitos humanos, tema para o qual o Brasil apresentou a pro-
posta de Responsabilidade ao Proteger, uma resposta
alternativa à formulação da “responsabilidade de proteger”, que em essência quer legalizar o uso abusivo
e inadequado da força militar em nome dos direitos
humanos e sem considerar a soberania dos países, na
prática legalizando as guerras de agressão promovidas pelas potências imperialistas.
A segunda iniciativa recente e importante do Brasil
foi a realização da Rio+20 e a ação protagonista nas
negociações sobre o clima, onde o Brasil adota uma
postura que defende as responsabilidades comuns entre os países, mas com diferenciação entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento. O Brasil
se prepara agora para a realização da Conferência do
Clima COP 21, que será em dezembro de 2015, e irá debater um tratado que substituirá o Protocolo de Kyoto.
Por último, e como consequência da proposta
brasileira de formação de um “governo mundial” da
internet, no âmbito da ONU, foi sediado no Brasil o
Encontro Multissetorial Global Sobre o futuro da Governança da Internet (NetMundial), evento que debateu princípios e propostas para a futura “governança” multilateral da internet.
Ainda no âmbito multilateral, o Brasil continua
com a agenda da reforma do Conselho de Segurança
das Nações Unidas, que será uma importante contribuição para a democratização dos órgãos decisórios
da ONU, no sentido de fortalecer a luta dos povos pela
paz e por uma nova ordem mundial.
Política externa, comércio
internacional e desenvolvimento
Desde a conferência da Organização Mundial do
Comercio de Cancun, em 2003, e graças ao movimento coordenado por países como o Brasil, as regras de
39
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
para os temas mundiais devem ser encontradas não em tratados
de “livre comércio” assimétricos, mas sim em
negociações multilaterais, nas quais os países
em desenvolvimento,
hoje, têm melhores
condições de se articular para defender seus
interesses.
Presidenta Dilma discursa e recebe apoio da plateia ao propor a formação de um “governo
mundial” da internet, no âmbito da ONU, durante o NetMundial, sediado no Brasil
negociação na OMC mudaram definitivamente, colocando os países em desenvolvimento em novas e melhores condições de negociação. No entanto, hoje a
OMC vive seus momentos de impasse. Mesmo com o
esforço do embaixador brasileiro Roberto Azevedo, as
condições para destravar a rodada de Doha, chamada
de rodada mundial do desenvolvimento, são difíceis.
Neste contexto, surgem as iniciativas dos mega-acordos de comércio e investimento promovidos pelos
EUA, por fora do sistema multilateral da OMC. Nas
duas inciativas dos EUA, o acordo transpacífico e o
acordo transatlântico, o risco é a ampliação de normas não negociadas de forma multilateral, e que
podem restringir produtos dos países em desenvolvimento discriminando produtos com financiamento
de bancos públicos, criando novos tipos de barreiras
fitossanitárias, entre outros tipos de cerceamento.
Porém, os EUA têm tido dificuldades com seus
parceiros em fazer avançar as negociações da Parceria Transpacífica (TPP) e da Parceria Transatlântica de
Comércio e Investimento (TTIP), que tem sido questionada por autoridades da União Europeia, por considerarem que ela abre brechas para a privatização de
serviços públicos como saúde (2).
A União Europeia, por sua vez, questionou o Brasil
na OMC em torno das políticas nacionais de incentivo
à produção, como o Programa InovarAuto, que beneficiam empresas que tenham conteúdo local – de 8
a 14 etapas produtivas –, desenvolvendo engenharia
brasileira e o setor energético na produção de combustíveis alternativos (biocombustíveis, híbridos, elétricos, células de combustível).
O Brasil deve continuar dando prioridade às negociações no âmbito multilateral, dado que as saídas
40
Política externa
e projeto
nacional
A política externa é
um componente central para a realização dos objetivos e aspirações nacionais do Brasil, contribuindo para a integração solidária da América do Sul e da América Latina e Caribe, e
para a construção das demais condições externas para
a execução de um projeto nacional. Para isso, é preciso que os interesses nacionais sejam cada vez mais
identificados com os interesses populares, da imensa
maioria do povo brasileiro.
Nesse sentido, atualizar e relançar a política externa altiva e ativa é contribuir com o desenvolvimento
do projeto nacional, e isto é necessário mesmo neste contexto de dificuldades nos âmbitos nacional e
mundial, inclusive para a superação dessas dificuldades. Os desafios para o Brasil neste segundo governo
de Dilma Rousseff são grandes, assim como também
é grande a necessidade de se contar com a política
externa avançada e pró-ativa como um instrumento
do desenvolvimento nacional.
* Ricardo Alemão Abreu é secretário de Relações
Internacionais do PCdoB e pós-graduando em
Integração da América Latina na USP
** Rubens Diniz é pós-graduando em Integração
da América Latina e membro da Comissão de
Relações Internacionais do PCdoB
Notas
(1) BACHA, Edmar & FISHLOW, Albert. “Momento de reativar a
Alca”. O Globo, 04-04-2015, http://oglobo.globo.com/opiniao/
momento-de-reativar-alca-15768406
(2) Valor Econômico, 29-05-2015, p. A11.
Economia
41
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
A Bolívia pós-eleições: erigir
o Estado Plurinacional
Ignacio Mendoza Pizarro*
Estaria fora de contexto resumir em poucas páginas a
caracterização da conjuntura boliviana, mas o fundamental
se expressa na determinação de aglutinar as forças
populares, fortalecer a organização e mobilização
emancipatória sem minimizar o necessário debate para
reparar erros e projetar o poder revolucionário
Central Operária Boliviana (COB) integra a aliança operário-camponesa (de origem indígena)
A
pós as eleições gerais de outubro
do ano passado, depois da posse
do presidente, do vice-presidente, e
dos novos senadores e deputados –
num total de 166 –, que compõem
a Assembleia Legislativa, ocorreram comícios departamentais e municipais na Bolívia, para o segundo
turno para governador nos Departamentos de Beni
e Tarija. Desse modo, a continuidade do processo de
mudança foi assegurada, mas se aguçaram os tumultos cujas sequelas custam a se dissipar.
42
A proposta programática “Juntos vamos bem
para viver bem” do Movimento para o Socialismo
(MAS) para o quinquênio 2015-2020 sintetizou-se
em doze pontos:
1. Tudo pela erradicação da extrema pobreza.
2. Atendimentos básicos para todos.
3. Juntos por uma vida digna.
4. Revolução e independência tecnológica e científica.
5. Por um país produtivo, industrializado e com
emprego.
Capa
6. Produção de nossos alimentos.
A Agenda Patriótica do Bicentenário marca um
7. Água para a vida e respeito à Mãe Terra.
roteiro definido em relação a pleitear a participação
8. Integração de nossa Bolívia.
das massas e a orientar como se deve arraigar o pro9. Cuidado com o nosso presente para assegurar o
cesso de transformações estruturais, especialmente
nosso futuro.
naqueles pilares em que estão assentadas as bases da
10. Juntos por um país soberano e seguro.
soberania do Estado, em nível científico e tecnológico,
11. Revolução na justiça com a participação do pocomunitário financeiro, produtivo, sobre os recursos
vo e transparência.
naturais, alimentar e ambiental, na gestão pública
12. Todos por uma ordem mundial pela vida e a
e marítima. Deve-se acrescentar que o Programa de
humanidade para Viver Bem.
Governo, na proposta de exercíAo surgirem reivindicações e
cio pleno da soberania, propõe às
direitos da população, que estão
Forças Armadas uma nova arquise empenhando para o seu cumtetura doutrinária e normativa, o
primento em correspondência
efetivo controle territorial, transcom a Constituição Política do
formação educacional e sua total
Estado, o governo de Evo Morales
participação no desenvolvimento.
já havia definido o rumo do país
No contexto eleitoral, à maraté 2025, em comemoração ao
gem da crise orgânica e política
bicentenário da independência
das instituições de direita e de sua
boliviana, com a Agenda Patriófalta de abordagens alternativas,
Em consonância com
tica – hoje uma política de Estao ambiente sociopolítico produa Constituição Política
do. Ela abrange políticas para esziu muita tensão não tanto pela
tabelecimento das bases de uma
reeleição de Evo Morales e Álvaro
do Estado, o governo
soberania do Estado-Governo
García Linera – que tiveram uma
de Evo Morales já
diante do império, desenvolvendo
vitória vantajosa (61,4%) –, mas
capacidades governamentais papelos conflitos por liderança denhavia definido o rumo
ra sua intervenção na economia,
tro do MAS governante, diante de
do país até 2025,
em especial nas áreas estratégidemandas por cargos de represencas, de acordo com a perspectiva
tação pública. A estrutura daquela
em comemoração
constitucional. Estimulando a
coletividade não corresponde ao
ao bicentenário
indústria agropecuária comunimodelo clássico de partido, mas
da independência
tária como parte dos quatro tipos
sim a uma articulação intersetorial
da economia estabelecida pela Lei
de raiz sindical, gremial, vicinal,
boliviana, com a
Fundamental (estatal, privada,
corporativa e de raiz indígena, com
Agenda Patriótica –
social-cooperativa e comunal). E
o nome genérico de movimentos
também o desenvolvimento em
sociais. Na verdade, se constituiu
hoje uma política de
harmonia com a Mãe Terra, para
uma Coordenadoria Nacional
Estado
deixar um futuro às próximas gepela Mudança (Conalcam, na sirações. Com essa abordagem, ao
gla em espanhol) de funcionamenfortalecer as modalidades de participação na econoto periódico, não institucionalizada como direção polímia, as forças produtivas, no final, criarão as bases
tica do processo. E em cada Departamento a instância
materiais para a revolução.
respectiva deveria selecionar as candidaturas buscanÉ preciso ressaltar, dentre outros temas, a manido harmonia e consensos na diversidade representafestação de solidariedade internacional entre os povos
tiva, como regra geral, sob a hegemonia camponesa.
que lutam contra o imperialismo, o reconhecimento
Com maior visibilidade surgiram problemas em
de uma nova concepção do significado de servidor púnível municipal e nas províncias, sobretudo pelos
blico, com princípios e moral, apontando para uma
convites feitos pelo presidente a personalidade regioluta frontal e sem quartel contra a corrupção, pelo
nais e locais – em particular no âmbito urbano – que
respeito às cultural e o retorno ao oceano Pacífico,
supostamente poderiam contribuir para a vitória nas
dada a condição mediterrânea desde a Guerra com
urnas. Não poucos dirigentes massistas se sentiram
o Chile, em 1879, cuja demanda é debatida na Corte
deslocados (“ressentidos”, pela linguagem popular) e
Internacional de Justiça (CIJ), em Haia, despertando
isso se traduziu em dissidências de candidaturas menos movimentos sociais a unidade nacional e o comdiante siglas emprestadas de organizações cidadãs, e
promisso militante.
no voto cruzado, faltando apoio ao bloco governante.
43
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Autocriticamente, o presidente Morales referiu-se,
em um balanço pós-eleitoral, ao voto castigo contra
administrações corruptas que desgastaram a imagem
oficial, especialmente as denúncias de mau uso econômico no Fundo Indígena e na Prefeitura de El Alto.
Hoje – a partir dos resultados eleitorais nas “subnacionais” de março e dos dois segundo-turnos de 3
de maio passado – deve ser reconhecido o seguinte
quadro: Consolidação de uma sólida maioria obtida
nos Conselhos municipais e nas Assembleias regionais, ainda que em três Departamentos (La Paz, Santa Cruz e Tarija) as províncias estarão em poder da
oposição – sendo muito preocupante o descenso no
epicentro político de La Paz. No entanto, em Beni o
segundo turno ratificou um significativo triunfo sobre
a direita reacionária, de base ruralista, de donos de
gado e latifundiários, incluindo pré-capitalistas. No
plano municipal, de capitais departamentais, na cidade de La Paz, sede governamental, houve perdas em
El Alto, Cochabamba e Cobija (além da consolidação
anti-Evo Morales em Santa Cruz e Trinidad), e prefeituras semiopositoras em Oruro e Tarija. E isso seria
compensado relativamente com as vitórias em Sucre,
capital estatal, e Potosí – antes não situacionistas.
Tudo isso acarreta um saldo de uma correlação de
forças diferente, que demanda maior organização e
iniciativa política depois de nove anos de governo. A
respeito disso, é pertinente refletir sobre o fato de o
vice-presidente García Linera, em seu ponto de vista
proto-gramsciano, ter denominado a isso de “irradiação territorial hegemônica”, analisando o campo político boliviano. Dessa forma, passam a primeiro plano
a necessidade de formação de quadros e a promoção
de novas lideranças nas camadas médias urbanas em
nível local e regional. Nesse sentido, os comunistas
bolivianos defendemos que as demandas justas devem ser reunidas e propostas como bandeiras na luta
por sua conquista através do poder popular. É por isso
que apoiamos firmemente o acordo estratégico estabelecido entre a Central Operária Boliviana (COB),
entidade matriz dos trabalhadores, e os operadores
da mudança, desde novembro de 2013 – um coerente
passo adiante rumo à aliança operário-camponesa
(de origem indígena).
Para os revolucionários e as forças de esquerda e
progressistas torna-se fundamental aprofundar esse
processo de mudança por meio da verdadeira implementação de medidas de impacto social e popular, porque, após a conclusão destas, se poderá iniciar a outra
fase da Revolução Popular Democrática Anti-imperialista e Antioligárquica. Estabelecemos que “há
um caminho preliminar a ser percorrido, etapas necessárias de transição ao objetivo estratégico. Romper a
dependência, abrir caminho para o desenvolvimento
44
As recentes eleições municipais na Bolívia produziram uma
nova correlação de forças, que demanda maior organização e
iniciativa política depois de nove anos de governo
econômico soberano e para a evolução social, com as
massas como protagonistas da mudança, é uma condição objetiva para o avanço nessa perspectiva”.
Em sua Tese Política, o Partido Comunista da
Bolívia (PCB) assinala: “No caminho para a formação do instrumento frentista são possíveis formas de
aproximação, acordos para ações coordenadas, aglutinações políticas em torno de tarefas conjunturais
e objetivos comuns parciais, que vão preparando o
terreno para a aliança mais avançada que desemboque na unidade estratégica”. Sob esses critérios orientadores, embora não tenha sido assinado
um documento, ou convênio, de vínculo com o governo de Evo Morales ou com o MAS-IPSP, o partido “se
orienta fundamentalmente pelas atitudes concretas
assumidas pelos partidos, leva em conta os interesses de classe históricos e conjunturais, priorizando,
naturalmente, a ação conjunta e os acordos com
aqueles que tiverem demonstrado maior consequência e coerência na defesa dos interesses populares, nacionais, e na luta contra a oligarquia e o
imperialismo”.
Tudo isso supõe priorizar, no futuro em curto e
médio prazo, maior disposição na construção do Estado Plurinacional, rumo ao socialismo. É uma tarefa
unitária e libertadora que o povo boliviano executa e
se envolve com dignidade e maturidade no período
histórico pelo qual passa hoje.
* Ignacio Mendoza Pizarro é primeiro secretário
do Partido Comunista da Bolívia (PCB). Sociólogo
e advogado, foi senador pelo Departamento
de Chuquisaca na Assembleia Legislativa
Plurinacional boliviana, e primeiro secretário da
Assembleia Constituinte da Bolívia.
Capa
Lula: ser contra a
integração sul-americana
é atraso político
Ricardo Stuckert/Instituto Lula
Cláudio Gonzalez*
Seminário em São Paulo reuniu o ex-presidente Lula e o secratário-geral da Unasul, Ernesto Samper
Em seminário realizado pelo Instituto Lula em parceria com
a Unasul, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou
a importância estratégica do bloco e fez uma defesa
enfática da integração sul-americana, não só do ponto de
vista político, mas também econômico, social e cultural e
criticou o “atraso político” daqueles que rechaçam este
caminho. A defesa da integração regional foi reforçada pelo
secretário-geral da Unasul, Ernesto Samper, que também
participou do seminário
45
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
O
Instituto Lula, em parceria com a
Pessoas que se apresentam ao mundo como pessoas
União das Nações Sul-americanas
avançadas dizem que financiar o porto de Mariel ou
(Unasul), realizou no último dia 13
o Metrô de Caracas é dar dinheiro aos outros. É atrade maio, na sede do Instituto, em
so político, a submissão ao que tem de mais atrasado
São Paulo, o seminário A integração
no mundo”, ponderou.
das cadeias produtivas na América do
O porto de Mariel, em Havana (Cuba), e o Metrô
Sul. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o exde Caracas (Venezuela) recebem financiamentos fei-presidente da Colômbia e atual secretário-geral da
tos pelo BNDES (Banco Nacional de DesenvolvimenUnasul, Ernesto Samper, abriram o
to Econômico e Social). A oposição
colóquio, que contou também com
de direita no Brasil tenta, há anos,
Lula: “Pessoas que
a participação de outras autoridacriar uma CPI no Congresso Nase apresentam ao
des e dezenas de especialistas em
cional para investigar repasses do
América Latina.
banco estatal. Para Lula, as críticas
mundo como pessoas
O objetivo do evento foi discutir
dirigidas a investimentos do banco
avançadas dizem que
com representantes do parlamenem países estrangeiros partem de
financiar o porto de
to, da sociedade civil e das universetores “conservadores” que histosidades a política da Unasul para a
ricamente renegaram a integração
Mariel ou o Metrô
integração produtiva da América
regional e o protagonismo brasileide Caracas é dar
do Sul e debater concretamente as
ro na economia mundial.
chamadas cadeias de valor, que são
O ex-presidente Lula foi ainda
dinheiro aos outros.
fundamentais para o avanço da inmais enfático ao criticar o que chaÉ atraso político, a
tegração econômica na região.
mou de “complexo de vira-lata” de
Lula fez sua fala inicial ressalparte da classe política, que prefere
submissão ao que
tando os desafios políticos de se
privilegiar acordos comerciais com
tem de mais atrasado
realizar a integração econômica e
os Estados Unidos em detrimento
no mundo”
criticando o “atraso” daqueles que
de outros países das Américas e da
se opõem a este caminho. “Tem
África. “Ainda prevalece no Brasil
gente no Brasil que critica que emum complexo de vira-latas de uma
presas estão indo produzir no Paraguai ao invés de
parte das forças políticas brasileiras, que teima em
produzir aqui. Nós enfrentamos adversidade polítidizer que não vale a pena a relação com o Mercosul,
ca quando esse pessoal deveria estar mais maduro.
que não vale a pena a Unasul, que não tem que acreditar na América Latina,
que não tem que acreditar na África. E que temos que ter uma ‘aliança’
estratégica com os EUA.
São os mesmos que queriam que tivesse vingado
a Alca tal como os americanos desejavam”, afirmou Lula.
Lula citou alguns números para mostrar que
“valeu a pena a opção que
fizemos em 2003 para fortalecer o Mercosul e para
criar a Unasul”. Segundo
ele, “antes, tínhamos no
Mercosul um comércio total de 15 bilhões de dólares, e hoje, com a entrada
da Venezuela no bloco comercial, temos uma moviPorto de Mariel, em Cuba: preconceito ideológico misturado com “complexo de vira-lata”
impede a direita brasileira de enxergar a importância estratégica dos investimentos no exterior
mentação de mais de 66
46
Capa
Ricardo Stuckert/Instituto Lula
bilhões de dólares, ou seja, crescemos mais de quatro
vezes o comércio entre os países do Mercosul”.
O ex-presidente citou também que entre os doze países da Unasul, os números são ainda maiores:
passamos de um comércio de 35 bilhões de dólares
em 2003 para 120 bilhões hoje.
Entre os setores que Lula destacou como estratégicos para a integração, estão alimentos, indústria naval
e de aviação. “É preciso criar grupos de trabalho permanentes na Unasul para discutir a integração produtiva”, defendeu. Para Lula, é necessário “transformar a
nossa retórica integracionista em ações práticas”.
Samper: “somos todos Unasul”
Na mesa de abertura do seminário, o secretáriogeral da Unasul, Ernesto Samper, falou sobre o papel
da entidade em aprofundar a integração em torno
de três eixos: manutenção da paz, da democracia
e dos direitos humanos. “Agora, queremos que esse conceito de direitos humanos inclua os direitos
econômicos e sociais. Entre os fatores que levaram à
criação da Unasul estava a esperança de que, depois
da ofensiva neoliberal dos anos 1990, que criou 180
milhões de pobres, um novo caminho se iniciaria,
com a decisão de redirecionar o Estado a favor de
mais atuação social. Se não somos a região mais pobre, somos a mais desigual do planeta. Por isso, o
desafio da Unasul nos próximos 20 anos é melhorar as condições de desigualdade que temos”, disse. “Nosso grande desafio é agregar valor ao que temos”, concluiu, em crítica ao modelo de exportações
de matérias-primas.
Dias antes do seminário, Samper se reuniu com
ministros e representantes de organismos brasileiros
para tratar de assuntos nas áreas de educação, saúde
e integração produtiva. Samper adiantou que foram
discutidas formas para tirar do papel sete projetos
regionais prioritários, como a Ferrovia Interoceânica, entre Paranaguá, no Paraná, e Antofagasta, na
Argentina.
“Concordamos com as autoridades econômicas
brasileiras que não faz sentido uma região não estudar estratégias de financiamento e de integração
física”, destacou Samper.
“Esses projetos precisam de US$ 30 bilhões
de financiamento, mas a região não tem esses recursos. A perspectiva é conseguir o dinheiro por
meio de bancos dos BRICS [Brasil, Rússia, Índia,
China e África do Sul] e da China. Enfim, estamos
estudando as possibilidades. Para isso, precisamos
de uma boa macroeconomia. Essa é outra estratégia
financeira que também estivemos estudando”, disse
o secretário.
Ernesto Samper: “Nosso grande desafio é agregar valor ao que
temos”
Ernesto Samper também cogitou o Banco del Sur
como potencial financiador dos projetos.
Em entrevista ao Instituto Lula, Samper avaliou
que “o Brasil pode contribuir muito em matéria de
infraestrutura, desenvolvimento produtivo e alianças estratégicas internacionais produtivas. Também
pode, através de esforços de solidariedade compartilhada com outros países da região, ajudar a reduzir
as assimetrias que caracterizam social, geográfica
e produtivamente nossos países. Algo parecido aos
fundos de coesão europeia que ‘nivelaram’ o campo
da integração, mas que em nosso caso deveriam ser
considerados como ‘fundos de inclusão’ para reduzir
também as brechas que nos caracterizam como uma
das regiões mais desiguais do planeta.”
Ainda segundo ele, o presidente Lula é um símbolo regional em muitos dos campos nos quais temos que nos unir para levar o projeto da Unasul
adiante. “Suas propostas de sucesso em matéria
social, seu sentido de cooperação hemisférica e sua
visão de futuro em temas como o das cadeias de valor são provas de que ele é uma grande referência
na tarefa na qual estamos empenhados para avançar
no desenvolvimento de um novo cidadão sul-americano, mais solidário, mais social, mais produtivo
na economia, mais participativo na política e mais
47
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Projetos celebrados
O seminário partiu da concepção de que a região só terá uma verdadeira integração se houver
planejamento na hora de produzir e se cada país se
concentrar no que faz melhor. Dessa maneira, o continente poderia agir como um só bloco, oferecendo
uma diversidade maior de produtos para exportação
e consumo interno.
Além de Lula e Samper, diversos palestrantes
convidados também falaram sobre estes desafios da
integração regional. O panorama apresentado pelos
palestrantes mostra que a integração produtiva é um
grande potencial e também uma necessidade para
Luiz Dulci, diretor do Instituto Lula e coordenador da Iniciativa
se enfrentar a nova fase de desenvolvimento econôAmérica Latina
mico.
“Não vivemos uma época de mudanças e sim
uma mudança de época. Os desafios não podem
avançar mais foi uma opinião constante. “Noventa
ser superados sem integração”,
por cento da produção industrial
afirmou Antonio Prado, secretádo mundo ainda estão concenPara Samper, engajarrio executivo adjunto da Comissão
trados em 25 países. Precisamos
Econômica para a América do Sul
se com a Unasul
investir em indústrias regionais”,
e o Caribe (CEPAL). Ele ressaltou a
afirmou Fernando Sarti, diretor
dever
ser
tratado
velocidade das inovações tecnolódo Instituto de Economia da Unicomo uma questão
gicas e os efeitos delas nas cadeias
camp.
produtivas.
O papel central do Estado em
de Estado, e não de
Neste sentido, o ex-presidente
fomentar a integração foi resgoverno, pois do
da Agência Brasileira de Desenvolsaltado por Esther Bermerguy,
vimento Industrial (ABDI), Regicontrário o bloco
ex-secretária de Planejamento e
naldo Arcuri, apresentou experiênInvestimentos Estratégicos do Mificará à mercê do
cias exitosas de integração na área
nistério do Planejamento, e por
industrial. Juan Salazar, assessor
grupo político que
Victor Rico, diretor-representante
econômico da Unasul, também
do Banco de Desenvolvimento da
detém
o
poder
em
apresentou projetos concretos de
América Latina (CAF) no Brasil.
cada um dos paísesintegração de infraestrutura, neste
“Temos muitos exemplos de como
caso do Conselho Sul-Americano
-membros
é possível fazer inovação quando
de Infraestrutura e Planejamento
se tem as condições e o ambiente
(Cosiplan). O órgão foi criado peinstitucional adequado”, afirmou.
la Unasul e cuida das áreas de transporte, energia e
comunicação.
Muitos expositores ressaltaram os grandes avan*Da redação, com informações do Instituto Lula e
ços feitos nos últimos anos, mas a necessidade de
agências
48
Ricardo Stuckert/Instituto Lula
comprometido com a defesa de seu meio ambiente”,
afirmou.
Para Samper, engajar-se com o bloco dever ser
tratado como uma questão de Estado, e não de governo, pois do contrário a Unasul ficará à mercê do
grupo político que detém o poder em cada um dos
países-membros. “Alguns dos grupos que fazem
oposição hoje [pela América do Sul] precisam entender que a Unasul não é um sindicato de governos,
é — como seu nome indica — a união de nações. E
nações somos todos nós”, afirmou.
Teoria
Pós-modernidade,
globalização e crise dos
partidos políticos
Parte 2
Antônio Levino*
Princípios publica a segunda parte do artigo de Antônio
Levino, que discute o polêmico tema da crise de
representação partidária. Na primeira parte do texto,
publicada na edição 135 (março/abril de 2015), o
autor analisa o tema a partir de conceitos como pós-modernidade, marxismo e revolução. Nesta segunda
parte do artigo, Levino reflete sobre a natureza da crise
de representação, relata o que são, como surgem e para
que servem os diferentes tipos de partidos políticos,
e aborda de forma específica a experiência do Partido
Comunista do Brasil, “que se reinventa para enfrentar a
crise e manter a utopia revolucionária”
Seria possível recuperar a pauta revolucionária diante da
contradição pós-moderna entre partidos e sociedade civil?
1
3 Origem e superação da crise dos
partidos políticos
M
uito se discute sobre as formas tradicionais de organização terem perdido a capacidade de representar os
questionamentos e defender os interesses coletivos da sociedade. Os
partidos políticos teriam se tornado
obsoletos e os Novos Movimentos Sociais que se
expressam por meio das ONGs estariam ocupando
seus espaços de modo acelerado. Pelo menos a baixa credibilidade dos políticos e a indisposição popular manifestada contra eles parecem confirmar essa
crença. Ou seja, as evidências falam a favor de uma
crise de representatividade, entretanto, para quem
atua na esfera partidária e necessita encarar o desafio de superá-la não basta admitir sua existência.
Antes de tudo é preciso estudar a natureza da tal crise: Trata-se de um fenômeno conjuntural ou atinge a
própria estrutura das organizações, se é generalizada
ou afeta um tipo específico de partido. Comecemos
49
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
então respondendo o que são, como surgem e para
parlamentar preparava programas, escolhia líderes e
que servem os partidos políticos.
exercia o seu mandato livremente. Este tipo de partiNa definição de Max Weber, o partido é uma asdo nasce com a revolução burguesa, quando a Inglasociação que visa a um fim deliberado, seja ele “obterra adota o Reform act em 1832 que amplia o sufrájetivo”, como a realização de um plano com intuitos
gio permitindo que camadas industriais e comerciais
materiais ou ideias, seja “pessoal”, isto é, destinado
do país participassem juntamente com a aristocracia
a obter benefícios, poder e, consequentemente, glóna gestão dos negócios públicos. Eles prevaleceram
ria para os chefes e sequazes, ou então, voltados para
durante todo o século XIX e marcaram a difusão das
todos os objetivos conjuntamente. Weber afirma taminstituições parlamentares.
bém que o surgimento dos partidos
O partido de organização de
ocorre quando o sistema político almassas, também conhecido como de
cança um certo grau de autonomia
aparelho ou de organização de masestrutural, de complexidade interna
sas, tinham suas características relae de divisão do trabalho que permicionadas aos objetivos políticos que
tem, por um lado, um processo de
defende (luta por um novo modelo
tomada de decisões em que partie sistema político) e às condições
cipem diversas partes do sistema e,
econômicas e sociais das massas a
por outro, que entre essas partes inque se dirigiam. Eles surgiram no
cluam, por princípio, ou de fato, os
fim do século XIX com o desenvolrepresentantes daqueles a quem as
vimento do movimento operário. A
decisões políticas se referem.
industrialização gerou transformaSendo assim, o nascimento e o
ções econômicas e sociais que prodesenvolvimento dos partidos estão
vocaram movimentos espontâneos
ligados ao problema da participação,
que levaram à formação dos partiMax Weber
ou seja, ao progressivo aumento da
dos de trabalhadores. São partidos
demanda por participação no prosocialistas com séquito de massas
Na concepção
cesso de formação das decisões poe organização difusa e estável. Posweberiana, haveria
líticas, por parte de classes e estrasuem corpo de funcionários pagos
tos diversos da sociedade. Quanto
especialmente para desenvolver um
três tipos básicos
à função dos partidos, esta consiste
programa sistemático, têm ação
de partidos: Partido
em: transmitir os questionamentos
contínua e desenvolvem atividade
políticos, viabilizar a participação
de educação e propaganda integrais.
de notáveis, partido
das massas no processo de formaSão mantidos por contribuições dos
de organização de
ção das decisões políticas, realizar
membros (sem recursos dos notámassas e partido
atividades que visam a fazer com
veis) e adotam uma estrutura pique no nível de decisão sejam conramidal (uniões locais, círculos ou
eleitoral de massas
sideradas as necessidades da sociesessões, direções) com abrangência
dade e, por último, garantir a partiterritorial ou eleitoral. Neles, as dicipação na organização das eleições,
reções eleitas são responsáveis por
nas nomeações de pessoal para cargos políticos e na
programa e escolha dos candidatos e o mandato parlacompetição eleitoral propriamente dita. Na concepção
mentar está sujeito à disciplina. Pugnam pelo fortaleweberiana, haveria três tipos básicos de partidos: Parcimento das organizações de trabalhadores, pela mobitido de notáveis, partido de organização de massas e
lização permanente e conquista de espaço sendo que a
partido eleitoral de massas. Eles têm origem e tempos
ação parlamentar é secundarizada.
de existência diferentes, respondem a propósitos disO partido eleitoral de massas surgiu quando o sutintos e vivem suas crises de modo próprio.
frágio universal se tornou muito difundido e em deO partido de notáveis surgiu liderado por notácorrência da expansão dos partidos operários que se
veis, aristocratas e burgueses da alta sociedade que
institucionalizaram para participar da disputa eleitoral.
buscavam prover a escolha dos candidatos e finanÉ uma reação dos notáveis aos partidos operários. Prociar as campanhas eleitorais. Suas organizações lomove a mobilização de eleitores mais do que associacais tinham funcionamento quase exclusivamente
dos e sua organização equivale à dos partidos operários
nos períodos eleitorais, seus círculos não possuíam
com: seções, federações, direção centralizada e quadros
vínculo organizativo vertical ou horizontal e a idenpolíticos de tempo integral. Tem pretensão supraclastidade partidária só se dava no parlamento. O grupo
sista, plataformas amplas e flexíveis, não propõe gestão
50
Teoria
Ilustração retrata a disputa política em torno do “Reform Act”,
adotado na Inglaterra em 1832
que decorre da modernização da sociedade brasileira
e sua repercussão no mecanismo de participação democrática, que obriga uma adaptação de papéis, da
estrutura organizativa e dos métodos de atuação de
todos os partidos.
São quatro os tipos básicos de organização partidária de esquerda em atividade no Brasil: o primeiro
tipo corresponde às organizações tradicionais, como o PSTU, que mantém uma intervenção limitada
aos movimentos sociais organizados sem priorizar
a atuação parlamentar. Sua participação eleitoral é
restrita a um proselitismo revolucionário propalado
em fraseologia desconexa e anacrônica. O segundo
tipo são as organizações de esquerda, como o PCdoB,
que, além dos movimentos sociais, procura ampliar
sua intervenção para a esfera institucional, ocupando
espaços na estrutura de poder que advém do processo de democratização e investindo na potencialidade das reformas como um meio para atingir objetivos estratégicos. Esses partidos tentam transmutar
a estrutura de quadros numa organização eleitoral
de massas sem perder o conteúdo revolucionário.
O terceiro tipo equivale ao PT que surge durante o
processo de redemocratização do país, com o fim do
regime militar de 1964, formado basicamente por
quadros oriundos da esquerda tradicional que tentaram estabelecer uma modalidade de partido eleitoral
de massas com base de atuação popular. Por conta
disso vive uma tensão permanente entre os objetivos
revolucionários que inspiram a intervenção nos movimentos sociais e uma ação institucional reformista
de caráter finalístico pela qual faz opção prioritária.
O quarto e último tipo de agremiação partidária de
esquerda seriam os partidos como o PSB, que apesar
de uma plataforma progressista surgiram como um
partido de notáveis e preservam as suas características tentando se adaptar às condições de um partido
eleitoral de massas.
diferente da sociedade ou do poder e seus objetivos são
essencialmente eleitorais. A participação dos inscritos
na linha programática é formal, a escolha de candidatos se dá com base na potencialidade eleitoral e o papel
dos notáveis é relevante na conquista de espaços que
reforçam a máquina partidária.
Essa classificação corresponde a tipos ideais que
sintetizam características partidárias de diferentes
épocas e lugares, mas podemos considerar que todos
os partidos existentes no Brasil reproduzem de algum
modo esses modelos. A começar pelos grandes partidos
conservadores (PSDB, DEM, PTB) surgidos no decorrer
século passado, que sofreram mutações e se adaptaram
às regras eleitorais vigentes para continuar expressando os interesses das classes dominantes. Eles profissionalizaram as suas estruturas, se afastando aos poucos
do modelo de “partido de notáveis” para se aproximarem do modelo de “partido eleitoral de massas”. Apesar de manterem atuação exclusivamente eleitoral,
suas instâncias têm funcionamento regular e permanente para dar conta do calendário que determina um
novo pleito a cada dois anos. Eventualmente um ou
outro partido desses desenvolve algum tipo de
intervenção nos movimentos sociais organizados, mas sua vocação principal é de fato para a
disputa eleitoral. A participação dos filiados no
processo de decisão interna também pode ganhar contornos mais ou menos democráticos,
entretanto, vigoram as regras estatutárias que
resguardam o poder absoluto às suas direções
que, invariavelmente, são vinculadas aos interesses dos “notáveis”.
A outra categoria de partido existente em
nosso país são as “organizações de massas”
de matriz revolucionária que respondem pela
tradição do pensamento marxista. Estes pasO PT vive uma tensão permanente entre os objetivos revolucionários que
sam de fato por um processo de crise de ideninspiram a intervenção nos movimentos sociais e uma ação institucional
tidade, de propósitos e de representatividade
reformista de caráter finalístico pela qual faz opção prioritária
51
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
52
José Cordeiro
A crise dos partidos pode então significar um fenômeno de magnitudes e
dimensões diversas, dependendo do que
se concebe como crise e de qual o partido ou tipo de partido que se está analisando. Como nos marcos do sistema
político-econômico vigentes não se vislumbra a adoção de métodos de participação direta que substituam a democracia representativa, as instituições devem
continuar sujeitas à influência dos partidos políticos que são a única forma de
organização estruturada historicamente
Plenária do 13o Congresso Nacional do PCdoB (São Paulo, novembro de 2013)
para dar conta do poder, seja para preservá-lo a serviço do status quo, seja para
mudar o comando e instituir uma nova ordem.
progressistas, sinaliza que podemos ter superado
Frente à modernização democrática, como se viu,
a fase mais crítica da expansão do neoliberalismo,
os partidos de notáveis conseguem se reformular preque provocou a perda de direitos, o refluxo dos moservando seu espaço nas refregas eleitorais. Por outro
vimentos sociais e a adoção de uma tática defensiva
lado, diante da necessidade de ampliar sua atuação e
por parte das forças de esquerda ao longo de mais de
ocupar novos espaços que permitam avançar no ruduas décadas. O novo quadro que se descortina é de
mo de seus objetivos estratégicos, os partidos revoretomada da perspectiva revolucionária, com batalhas
lucionários que fazem opção pela ação institucional
decisivas que demandam um partido grande, forte e
tendem a viver uma crise de adaptação na sua estrucoeso que esteja à altura dos desafios de nossa época.
tura. Trata-se de uma transição que não é simples e
O partido que se busca construir não é mais aquea ela nenhuma organização de esquerda sobreviveu
la organização fechada que doutrinava os seus memincólume, mas que também representa um percurso
bros na cultura da decisão pela maioria e na prática
inexorável para aqueles que buscam a construção de
do centralismo democrático, antes o principal instruuma nova sociedade no tempo presente.
mento de construção da unidade de pensamento e
A verdadeira crise atinge de fato as agremiações
ação. Para politizar o povo e ver suas ideias permeadas
de esquerda que não absorvem a necessidade de inno senso comum, o PCdoB deve encarar o desafio de
corporar novas instâncias e novos métodos de interse abrir e tornar uma organização de massas capaz
venção. Atinge, também, partidos como o PT que adode desenvolver mecanismos de decisão baseados na
tam a luta pelo poder, nos limites do sistema atual,
construção de consensos.
como um fim e não mais como um meio. Aos poucos
Organizar um partido que seja reconhecido pelas
esse que se tornou um imenso partido eleitoral de
amplas massas, como intérprete fiel de seus anseios
massas com origem no campo de esquerda, se vê na
e capaz de dirigi-la, não de tutelá-la e nem de falar
necessidade de expurgar todo o seu resquício de bapor elas, eis o desafio. Esse partido não é aquele que
se popular organizada para simplesmente preservar o
apenas incorpora os elementos mais destacados do
poder já conquistado, o que o converte em mais um
movimento social, mas sim aquele que se insere de
simples partido de notáveis renovado.
tal maneira no meio do povo que consegue estabelecer níveis variados de interação entre as massas e o
4. O PCdoB se reinventa para
partido, tirando consequências práticas para o avanço
enfrentar a crise e manter a utopia
concreto das lutas do povo. Para cada nível de interarevolucionária
ção, um grau de exigência distinto, um compromisso
específico e uma expectativa de resposta adequada.
Em linha geral se persegue a construção de um partido de
Trata-se de ampliar o espectro de possibilidades de
massas e de quadros, capaz de assumir o protagonismo político
ligação entre o partido e as massas sem fazer concese se colocar como alternativa de poder no campo de esquerda.
são de princípios, levando em conta que a construção
partidária se dá no plano político, ideológico e orgaA crise econômica global que abateu as principais
nizativo, mas é a política que deve estar no comando.
economias da Europa e da América do Norte, aliada
O PCdoB já abraçou o propósito de se transformar
à resistência persistente de países autodenominados
numa organização revolucionária de massas. Procura
socialistas e vitórias eleitorais de correntes políticas
agora enfrentar as consequências dessa opção. Num
Teoria
primeiro plano deve estar apto a realizar ações polítidireção formal que aos poucos deixa de ser exercida
cas amplas que resultem de fato na sua inserção entre
hierarquicamente, no sentido tradicional da forma de
as amplas massas. Num segundo plano, deve assiuma pirâmide, como sugerem as relações estabelecimilar que o crescimento extensivo
das entre as instâncias constituídas
gera problemas novos e ainda sem
e as bases.
O programa
respostas, dos quais infelizmente
Todos esses temas permeiam as
não podemos fugir. Diante disso porelações partidárias da atualidade
de formação e
de-se até estimular um crescimento
e geralmente aparecem na forma
capacitação dos
intensivo e dirigido para determide uma tensão entre as medidas
nadas áreas prioritárias, mas o que
voltadas ao crescimento e incorquadros é a única
está na ordem do dia é a abertura
poração massiva de lideranças e a
arma capaz de
do partido para as amplas massas.
preocupação com a preservação dos
viabilizar a transição
Sabemos que atualmente o Parprincípios, devido ao risco real de
tido cresce principalmente porque
degeneração. Como se num dilema
de um partido de
se transformou, aos olhos do povo,
insolúvel a escolha estivesse entre
quadros para um
numa organização capaz de prodegenerar ou fenecer. Ainda bem
mover a ascensão política e social
que, felizmente, crescer é inexorápartido de massas e
de seus membros. Como essa persvel tanto quanto arriscado. Por isso,
de quadros
pectiva anima as disputas internas,
haveremos de crescer aumentando
alimenta o oportunismo e estimula
o número de quadros, desenvolveno carreirismo, o Partido deve estar
do ação de massas, intervindo instipreparado para incorporar os seus filiados e formar os
tucionalmente, sendo protagonistas das lutas do povo
seus militantes de modo que venham a se tornar quae ganhando a sua confiança para debater a construdros orgânicos, capazes de garantir a sustentabilidade
ção do socialismo desde já.
ao processo de crescimento. O programa de formação
e capacitação dos quadros é, sem dúvida, a única ar* Antônio Levino é doutor em Saúde Pública,
ma capaz de viabilizar a transição de um partido de
médico, professor da Universidade Federal
quadros para um partido de massas e de quadros, sem
do Amazonas (Ufam), pesquisador da Fiocruz,
se degenerar como ocorreu com a maioria das organimembro do Comitê Central e presidente
zações do contexto partidário atual, no mundo todo.
Municipal do PCdoB em Manaus/AM
São muitas as contradições antigas ou novas que
se precisa aprender a tratar nesta realidade sob pena
de fracassar. A contradição entre o velho partido e o
novo partido; entre o partido grande e o partido peNota
queno; entre o partido de quadros e o partido de massas; entre o partido existente no interior do estado;
(1) Os subtítulos 1 e 2 foram publicados na primeira parte
do artigo, na edição 135 de Princípios, e correspondem,
entre o partido eleitoral, ideológico e o partido de ação
respectivamente, aos temas: 1-) Pós-modernidade e
política ampla; entre o trabalho partidário assalariado
crise de representação partidária e 2-) Pós-modernidade,
e o trabalho voluntário; entre a direção e as bases parmarxismo e revolução.
tidárias, entre as relações partidárias internas e externas. O mesmo partido que soube preservar as regras
Bibliografia consultada
e os princípios organizativos do tipo leninista deve
continuar fazendo o mesmo, porém, desta feita com a
Na construção deste texto fez-se uso livre das ideias
finalidade de realizar a ação política ampla.
contidas no artigo “Em defesa da história: o marxismo e a
agenda pós-moderna”. Tradução de João Roberto Martins
Quanto ao trabalho de dirigir a vasta inserção de
Filho. In: Revista Crítica Marxista, vol. 1, nº 3, 1996. Os
massas que devemos construir, a tendência aponta
conceitos sobre partidos políticos foram consultados
para a mudança na cadeia de comandos que deve
em BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO,
passar a reconhecer a reciprocidade como uma nova
Gianfranco. Dicionário de Política. 5ª ed. Brasília: Editora
qualidade a ser cultivada, dado que o poder se torUniversidade de Brasília, 1993.
na mais horizontal quando a autoridade da direção
partidária formal passa a ser compartilhada com as
Errata: Junto à primeira parte deste artigo, publicada
estruturas de governo e instituições que passamos a
na edição 135 de Princípios, foi colocada no final do
dirigir. Sendo assim, o mais adequado é incorporar a
texto uma coluna de notas que não têm relação com o
noção de rede nas relações entre essas estruturas e a
conteúdo deste artigo.
53
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
A guerra de libertação da
Coreia: 1950-1953
Parte 2
Monumento à vitoriosa
libertação da pátria em
Pyongyang – Coreia do Norte
Raul Carrion*
O primeiro artigo mostrou como a Coreia lutou e derrotou
o poderoso e cruel imperialismo japonês, apoiado pelo
aliado norte-americano. Ao final da Segunda Guerra
Mundial, o Japão esgotado é expulso por Kim Il Sung e
a URSS, mas os EUA decidem ocupar o vácuo colonial
abrindo uma nova disputa, agora ideológica. Há 65
anos, os EUA partiam para sua primeira grande derrota
imperialista, descrita neste segundo artigo sobre este
período de profundas definições geopolíticas na Ásia
54
História
As sucessivas provocações armadas
sul-coreanas
sucedeu o governo de ocupação dos EUA na Coreia – afirmou aos comandantes sul-coreanos Chae
Pyong Doc e Kim Sok Won que “a presente invasão
do Norte servirá de bom terreno de experimentação para
urante todo o ano de 1949, as incura guerra civil iminente; o combate permitirá adquirir
sões de tropas sul-coreanas ao terriconhecimentos vivos através de um contato direto com o
tório do Norte – que já ocorriam desinimigo.” (1).
de 1947 – recrudesceram, deixando
E Kim Sok-Won, comandante das tropas sul-coclaro que o Sul buscava a guerra.
reanas no Paralelo 38, afirmou à CONUC que a peEm Kaesong, no dia 4 de maio, um ataque de
nínsula vivia um estado de guerra
tropas do Sul durou quatro dias,
e que “devemos contar com um procausando a morte de 400 soldados
grama para recuperar nosso território
norte-coreanos e 22 sul-coreanos,
O historiador
perdido, a Coreia do Norte, atravessanalém de mais de 100 civis, segunnorte--americano
do a fronteira do Paralelo 38, fixada em
do dados oficiais estadunidenses e
1945”. E o historiador norte-amesul-coreanos. Entre 21 de maio e 7
Bruce Cumings
ricano Bruce Cumings reconhece
de junho, efetivos da 1ª Divisão do
reconhece “A razão
que “a guerra que eclodiu em junho de
Exército sul-coreano, com apoio
1950 produziu-se depois de uma guerra
aéreo, atacaram os montes Kuksa,
pela qual a guerra
de guerrilhas e nove meses de combate
Unpha, Kachi e Pidulgi, ocupannão eclodiu em
ao longo do Paralelo 38, durante 1949.
do-os por algum tempo, mas logo
(...) A razão pela qual a guerra não
1949 (...): o Sul
foram expulsos. Em fins de junho,
eclodiu em 1949 (...): o Sul queria uma
atacaram o monte Unpha, tomanqueria uma guerra,
guerra, mas o Norte não” (2).
do-o e ali se encastelando. No dia
mas o Norte não”
Em 4 de agosto de 1949, diante da
6 de julho, atacaram o monte Koocupação do Monte Unpha por trosan, mas sem conseguir tomá-lo.
pas sul-coreanas, o Exército Popular
Em 25 de julho, atacaram e ocuda Coreia contra-atacou, aniquilando-as por completo.
param o monte Song-Ak, mas foram expulsos.
Diante desse desastre, diversos comandantes militares
Em julho de 1949, o general W. L. Roberts, chefe
do Sul propuseram um ataque geral contra o Norte, o
do Grupo Assessor Militar da Coreia (GAMC) – que
D
Caminhões militares
cruzando o Paralelo 38
que divide as Coreias
depois da Segunda
Guerra Mundial
55
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
que acabou não ocorrendo. Em 23 de agosto, diversos
quear qualquer possibilidade de reunificação pacífica
barcos da Marinha do Sul invadiram o Rio Taedong –
da Coreia e incentivavam o confronto.
na Coreia do Norte – e afundaram quatro embarcações
No mês de junho, três emissários enviados penorte-coreanas de 35 a 45 toneladas. Em 18 de agosto,
lo Norte para tratar da reunificação foram sumariauma frota naval sul-coreana bommente fuzilados. Em 18 de junho,
bardeou Monggumpho, na províno republicano John Foster Dulles –
Apesar de
cia de Hwanghae, no Norte, litoral
defensor de um confronto prevenconstantemente
Oeste da Coreia.
tivo com a URSS, antes que esta alEm setembro de 1949, Egon
cançasse a paridade nuclear com os
agredida, a Coreia
Ranshofen-Wertheimer, membro
EUA – iniciou uma visita à Coreia,
do Norte respondia
da CONUC, informou que “a tentaque teve a característica de uma
ção de Rhee por invadir o Norte e a pres“revista às tropas” e de uma verificom uma ampla
são exercida sobre ele para fazê-lo pode,
cação sobre seus preparativos guercampanha pela
assim, tornar-se incontrolável. As autoreiros no Paralelo 38. Nesse mesmo
ridades militares mais altas da Repúblidia o secretário da Defesa Louis
reunificação pacífica,
ca (...) estão exercendo uma pressão perJohnson e o general Bradley chesem ingerências
manente sobre Rhee para que ele tome a
garam a Tóquio para conferenciar
estrangeiras. Para
iniciativa e cruze o paralelo.” (3).
com o general MacArthur. Segundo
Em outubro de 1949, Syngman
informaram, para se inteirarem de
bloquear essa
Rhee discursou a bordo de um navio
fatos “que afetam a segurança dos Escampanha – que
de guerra dos EUA, ancorado em Intados Unidos e a paz do mundo” (7).
chon, dizendo que o Sul podia tomar
Destaque-se, ainda, que em 30
contava com
Pyongyang em três dias, queixandode maio havia ocorrido eleições pacrescente simpatia
se de que só não fazia isso porque
ra a Assembleia Nacional Coreana,
da população do Sul
os Estados Unidos temiam que isso
nas quais Syngman Rhee sofrera
precipitasse a terceira guerra munimportante derrota, tendo a oposi–, o Congresso dos
dial. E o ministro da Defesa, em enção eleito 128 das 210 vagas no parEUA aprovou a Lei
trevista coletiva realizada em 31 de
lamento. Politicamente acuados,
outubro, declarou que suas tropas
Rhee e os norte-americanos comede Ajuda à Coreia,
estavam preparadas para avançar
çaram a ver na guerra com o Norte
que procurava
sobre a Coreia do Norte: “Se pudésuma saída para a sua crise política.
semos manejar-nos por conta própria, já
bloquear qualquer
A eclosão da Guerra da
(...) teríamos começado (...) Temos força
reunificação
Coreia
suficiente para avançar e tomar Pyongpacífica da Coreia
yang em uns poucos dias.” (4).
No dia 25 de junho de 1950, pela
Em janeiro de 1950, Preston
e incentivava o
manhã teve início a “Guerra da CoGoodfellow, assessor de Syngman
confronto
reia”, que durante três anos manteRhee, informou ao Embaixador de
ve o mundo à beira de uma Terceira
Taiwan nos Estados Unidos, WelGuerra Mundial e causou sofrimentos indescritíveis
lington Koo, que “eram os sul-coreanos que estavam anao povo coreano. Até hoje se discute quem deu o “prisiosos por penetrar na Coreia do Norte, devido ao fato de já
meiro tiro”. O fundamental, porém, é identificar quem
se sentirem prontos, com seu exército de 100.000 homens
impôs a divisão artificial da Coreia, quem bloqueou e
bem treinados.” (5).
bloqueia até hoje a reunificação pacífica do país e quem
Apesar de constantemente agredida, a RPDC resmultiplicou entre 1947 e 1950 as provocações armadas.
pondia com uma ampla campanha pela reunificação
Em 23 de junho, às 22h, as forças sul-coreanas
pacífica da Coreia, sem ingerências estrangeiras. Para
iniciaram um ataque ao Monte Unpha – palco de
bloquear essa campanha – que contava com crescente
agressão semelhante em fins de junho de 1949 –,
simpatia da população do Sul –, o Congresso dos EUA
que prosseguiu até 4h da manhã do dia 25. E, nas
aprovou em fevereiro de 1950 a Lei de Ajuda à Coreia,
primeiras horas do dia 25 de junho, o 17º Regimento
que estabelecia que essa ajuda fosse suspensa “caso
da Coreia do Sul atacou os norte-coreanos que defenseja formado na República da Coreia um governo de coalizão
diam o Monte Turak, em Onjin. Às 11h da manhã,
que inclua um ou mais membros do Partido Comunista ou
os sul-coreanos divulgaram que seu 17º Regimento
do partido que atualmente controla o governo da Coreia do
havia tomado a cidade de Haeju, na Coreia do Norte.
Norte.” (6). Através dessa lei os EUA procuravam blo-
56
História
Bombardeios preventivos de aldeias por tropas da ONU tornaram-se rotina para evitar o avanço comunista
Referindo-se a essa ocupação de Haeju (8) – da qual
a Coreia do Sul se vangloriou publicamente –, o historiador norte-americano Bruce Cumings afirma que
“este livro não pode excluir a possibilidade de que tenha sido
o Sul que tenha iniciado os combates em Ongjin, diante da
perspectiva da tomada imediata de Haeju.” (9).
Corroborando isso, John Gunther, biógrafo de
Mac Arthur, relata em The Ridle of MacArthur, p. 165,
que “dois importantes membros das forças de ocupação
realizaram a excursão a Nikko e (...) um deles ‘foi inesperadamente chamado ao telefone’. Ao regressar, disse em
voz baixa: ‘acaba de se iniciar uma grande confusão. Os
coreanos do Sul atacaram a Coreia do Norte’” (10). Posteriormente, Gunther, sem convencer ninguém, sustentaria que esta informação era equivocada, baseada numa versão da Coreia do Norte.
Em resposta ao ataque sul-coreano, o Exército
Popular da Coreia iniciou uma grande contraofensiva, que em poucos dias levaria à tomada de Seul.
ONU empresta sua bandeira à
agressão norte-americana à Coreia
Com uma rapidez que desperta suspeitas, às três
horas da manhã do dia 25 de junho, tão logo tiveram
início os combates, os EUA telefonaram para o secretário-geral da ONU, Trygve Lie, e dele exigiram a
convocação do Conselho de Segurança da ONU que
– com as ausências da China Continental, excluída
do Conselho de Segurança, e da URSS, que poderia
vetar qualquer deliberação – reuniu-se na manhã do
próprio dia 25. Baseado unicamente em informações
dos EUA e da Coreia do Sul e totalmente manipulado pelos Estados Unidos, o Conselho decidiu responsabilizar a Coreia do Norte pelo ataque e exigiu que
ela suspendesse os combates.
Sem autorização do Congresso, o presidente Truman determinou a intervenção militar norte-americana (caracterizada como “ação policial”, para driblar a exigência constitucional), o bloqueio naval e o
bombardeio da Coreia do Norte. Além disso, aproveitou o pretexto para postar uma poderosa frota naval
entre a China Continental e Formosa (Taiwan), em
apoio a Chiang Kai Check. No dia 27, o Conselho de
Segurança – em vez de tentar mediar o conflito –
aprovou resolução dando cobertura legal ao ataque
norte-americano e conclamando todos os membros
das Nações Unidas a se somarem às forças intervencionistas. E o que é pior, entregou o comando das
“tropas da ONU” ao general MacArthur, sem estabe-
57
Ed.Ed.
136133
– Maio/Junho
– Nov/Dez 2014
2015
lecer qualquer supervisão da ONU sobre
suas ações.
A partir daí, os
Estados Unidos, a
Coreia do Sul e mais
15 nações – Inglaterra, França, Canadá,
Itália, Bélgica, Holanda, Austrália, Nova Zelândia, Irlanda,
Dinamarca, Grécia,
Turquia, África do
Sul, Filipinas e Colômbia – uniram-se
na agressão à Coreia
do Norte, contribuindo com tropas,
armas, mantimentos
e apoio logístico. O
Brasil,
fortemente
pressionado para engajar-se na Guerra da
Coreia, negou-se a
fazê-lo, por conta da
Elisa Branco em meio a criancas coreanas ao receber o Prêmio Lenin da Paz
forte campanha contrária, liderada pelo
ricanos até o perímetro de Pusan, libertando mais
Partido Comunista do Brasil.
de 90% do território e 92% da população da Coreia. Nos territórios libeO avanço avassalador
rados foram reconstruídos os Comitês
Derrotado em todas
das tropas da Coreia do
Populares que haviam sido liquidados
Norte
as frentes e cercado
pelos norte-americanos e foram disno perímetro de
tribuídas aos camponeses pobres as
Apesar da sua inferioridade
terras dos latifundiários: 43,3% das
em número, em armamento e
Pusan, “MacArthur
terras cultiváveis na zona liberada
em apoio aéreo e naval, as tropas
enviou uma
foram confiscadas e distribuídas granorte-coreanas – demonstrando
tuitamente a um milhão e 267 mil
grande capacidade estratégica
mensagem urgente
famílias camponesas.
e tática e alta combatividade –
(...), em que solicitava
No dia 9 de julho, derrotado em
avançaram rapidamente, pondo
(...) ‘que considerasse
todas as frentes e cercado no períem fuga tanto as tropas sulmetro de Pusan, “MacArthur enviou
-coreanas (consideradas pelos
se as bombas
uma mensagem urgente a Matthew RidEUA como “o melhor exército
Atômicas iam estar
gway, em que solicitava ao Estado-Maior
da Ásia”), quanto os até agora
Conjunto ‘que considerasse se as bombas
“invencíveis” norte-americanos.
ou não à disposição’;
Atômicas iam estar ou não à disposição
Nesse avanço, contaram com o
Não obstante,
do general MacArthur’. Foi solicitado
apoio de forças guerrilheiras do
então ao general Charles Bolte, chefe de
o Estado-Maior
Sul da Coreia. Em três dias tomaoperações, que falasse com MacArthur
ram Seul. Logo após uma pausa
Conjunto rechaçou o
acerca do uso de bombas atômicas ‘em
para consolidarem o seu avanço,
uso da bomba”
apoio direto aos combates terrestres’; poprosseguiram no dia 5 de julho
deriam ser disponibilizadas entre 10 e
em direção ao Sul, tomando Tae20 bombas (...) não obstante, o Estadojon. Em fins de agosto, haviam
-Maior Conjunto rechaçou o uso da bomba.” (11).
empurrado os exércitos sul-coreanos e norte-ame-
58
História
Marylin vai a Ásia – com o apoio de Hollywood a invasão dos EUA à Coreia se tornou ainda mais constrangedora a derrota
Em sua desabalada retirada, as tropas estadunidenses e sul-coreanas realizaram todo tipo de massacres de civis suspeitos de serem comunistas ou
de colaborarem com os norte-coreanos. Em agosto,
Alan Winnington publicou no Daily Worker de Londres que “a polícia sul-coreana, sob a supervisão dos assessores do GMAC, havia massacrado 7.000 pessoas na aldeia
de Yangwol, perto de Taejon, entre 2 e 6 de julho. (...) chegaram caminhões da polícia na região e fizeram com que
fossem cavados seis poços, a duzentos metros um do outro.
Dois dias depois, foram conduzidos ao lugar uma série de
prisioneiros políticos, sendo executados (tanto através de um
balaço na nuca como pela decapitação) e atirados nas fossas uns sobre os outros, ‘como sardinhas’. (...) As fontes
sul-coreanas inicialmente falaram em 4.000 mortos (logo
mudaram essa cifra para 7.000, alguns meses depois)” (12).
Os EUA adotaram uma política de terra arrasada e de bombardeio indiscriminado das populações
civis: “As forças estadunidenses começaram a queimar as
aldeias suspeitas de abrigar guerrilheiros e, em alguns casos, simplesmente as queimaram para negar às guerrilhas
um possível lugar onde esconder-se.” Segundo o correspondente britânico Reginald Thompson, “o imenso
poder das armas modernas foi desafiado por um punhado
de camponeses providos de uns poucos rifles e carabinas e
de uma coragem desesperada (...) sofrendo sobre si e sobre
o resto dos habitantes o espantoso horror das bombas in-
cendiárias (...). Cada povo e aldeia no caminho da guerra
eram borrados do mapa (...) eliminando cegamente gente
remota e desconhecida, gerando holocaustos de morte, uma
verdadeira produção em massa da morte, espalhando uma
desolação abismal sobre comunidades inteiras.” (13).
EUA rejeitam proposta da URSS de
um acordo de paz e eleições gerais
Quando, em inícios de julho, o indiano Nehru
se propôs realizar uma mediação, o Departamento
de Estado dos EUA respondeu que “o cessar-fogo e o
retorno dos coreanos do Norte ao Paralelo 38 eram condições mínimas e irredutíveis” para a paz. Mas quando,
em fins de julho, a URSS somou-se a essa iniciativa
e propôs um acordo de paz e eleições gerais “tanto
no Norte como no Sul, para eleger um só governo de toda
a península”, os EUA se opuseram com veemência,
mostrando toda a sua hipocrisia.
O correspondente chefe do New York Times nas
Nações Unidas deixou claras as razões disso: “A dificuldade consiste em que há muita probabilidade de que
os comunistas obtenham uma grande maioria se as eleições se celebram antes que se tenha derrotado e desfeito a
comunização da Coreia do Norte, e antes que o programa
de reconstrução da ONU haja amortecido o ressentimento
do Norte e do Sul, causado pela destruição de lares feita no
59
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Antes da entrada da China a correlação de 5 soldados da ONU para um coreano levou MacArthur a ousar avançar sobre o Norte em
vez de apenas expulsar os comunistas do Sul
curso da liberação pelas forças da ONU.
Nesse caso, o comunismo viria a ganhar, mediante eleições, o que não pode
obter com a invasão.” (14). Ou seja,
as eleições só eram bem-vindas se
houvesse a certeza da vitória de
Syngman Rhee, aliado dos Estados
Unidos.
E quando, em 28 de setembro,
Inglaterra, Austrália, Canadá, Noruega e Filipinas apresentaram
uma resolução prevendo eleições
em ambas as zonas, um dos delegados que a elaborou afirmou
que “era possível que sob esse plano se
criasse uma Coreia unificada comunista, em quatro ou cinco anos. As esperanças de uma vitória democrática
aumentarão, se acredita, se as eleições
forem adiadas até que um programa
60
Quando a URSS
somou-se à iniciativa
pelo cessar-fogo e
propôs um acordo de
paz e eleições gerais
“tanto no Norte como
no Sul, para eleger
um só governo de
toda a península”,
os EUA se opuseram
com veemência,
mostrando toda a sua
hipocrisia
de ajuda das Nações Unidas comece
a reparar a destruição causada pela
guerra e se possa fazer um esforço para enfrentar a influência comunista
na Coreia do Norte.” (15). Não pode
haver uma confissão mais clara
de que o regime do Norte contava
com amplo apoio popular tanto no
Norte como no Sul.
Aos poucos, a máquina de guerra norte-americana, apoiada por 15
nações, começou a pesar na balança: “no dia 29 [de agosto] quase 2.000
homens pertencentes à 27ª Brigada de
Infantaria Inglesa chegaram a Pusan,
vindos de Hong Kong. Cinco batalhões
de blindados, com cerca de 69 tanques
cada um, também chegaram em agosto,
e no fim do mês a ONU já tinha muito
mais de 500 tanques no perímetro (...).
História
Esse número dava à ONU uma superioridade de quase 5:1
naquela área. Assim, com a superioridade no ar já garantida,
a ONU estava agora em boas condições para manter suas
linhas e atacar quando chegasse a hora.” (16).
O desembarque dos EUA em Inchon e
a retirada norte-coreana
Em 15 de setembro, enquanto a situação mantinha-se crítica em Pusan, os Estados Unidos realizaram o desembarque de 83 mil soldados estadunidenses, mais 57 mil sul-coreanos e britânicos, em
Inchon, na retaguarda das tropas norte-coreanas
– utilizando 261 navios e o apoio de mais de mil
aviões. Isto criou um perigo mortal para as tropas
norte-coreanas, que tiveram que levantar o cerco a
Pusan e realizar uma rápida retirada em direção às
regiões montanhosas do Norte, visando a preservar
suas forças. Sua retirada foi facilitada pela renhida
batalha pela retomada de Seul, que manteve ocupadas as tropas norte-americanas e aliadas até o final
de setembro, causando-lhes enormes baixas. À medida que se retiravam, as tropas norte-coreanas semeavam inúmeros grupos guerrilheiros no caminho,
que passaram a fustigar as tropas estadunidenses e
foram decisivos no contra-ataque posterior.
Em Seul, a vingança dos novos senhores da capital foi terrível: “Idosos, gestantes e crianças cavaram valas, para nelas serem amontoados uma hora depois. (...) As
mulheres correspondiam a um terço dos quatro mil camaradas. Centenas delas, comunistas e colaboracionistas, foram deixadas em bordéis, para serem violentadas por coreanos e soldados da ONU. Os carrascos da polícia de Syngman
Rhee (...) se encarregaram da matança dos que pertenciam
aos comitês populares por estes criados, aí se incluindo os
dirigentes e os familiares dos dirigentes. Um levantamento
oficial realizado na Coreia do Norte apontou 29 mil vítimas
da vingança sulista.” (17).
Nesse momento, colocou-se uma nova questão
para os Estados Unidos: o seu avanço devia deter-se
no Paralelo 38 ou devia continuar em direção ao Norte? Apesar das advertências transmitidas por Nehru
de que os chineses não tolerariam o avanço das tropas norte-americanas além do Paralelo 38, Truman
– incitado por MacArthur, que tudo fazia para transformar a Guerra da Coreia em uma cruzada contra o
comunismo mundial, ainda que à custa de uma conflagração nuclear – decidiu fazê-lo. Isso apesar de o
mandato da ONU não autorizá-lo a tanto. Ambos
interpretaram a retirada norte-coreana como a ruína
total do exército norte-coreano e avaliaram a ameaça chinesa como um blefe. Do alto da sua prepotência, MacArthur afirmou que os comunistas chineses
“não dispõem de cobertura aérea; se tentarem a travessia
com tropas terrestres vai ser a maior das carnificinas. Serão
aniquilados.” (18).
Assim, os mesmos que “indignados” haviam
acusado a Coreia do Norte de ter cruzado o Paralelo
38 – fazendo com que o Conselho de Segurança da
ONU a condenasse por isso – agora afirmavam que o
Paralelo 38 era uma “mera linha imaginária” e que
o objetivo da ONU era a reunificação da Coreia sob
o governo de Syngman Rhee. “Em outras palavras, o
paralelo que cortava em duas a Coreia era um limite internacionalmente reconhecido se os cruzassem os coreanos,
mas não o era se o cruzassem os estadunidenses.” (19).
Para a sua expedição ao Norte, MacArthur reuniu
um corpo expedicionário de mais de 300 mil norte-americanos armados até os dentes, aos quais se somavam centenas de milhares de sul-coreanos e soldados de
outros 15 países aliados. Em 2 de outubro, MacArthur
apresentou um ultimato à Coreia do Norte: sua única
alternativa era a capitulação incondicional. O que, evidentemente, não foi aceito pelos norte-coreanos.
Iniciava-se uma nova etapa da Guerra de Libertação da Coreia.
*Raul Carrion é historiador e presidente da seção
gaúcha da Fundação Maurício Grabois. No PCdoB
desde 1969, foi vereador de Porto Alegre por dois
mandatos e eleito duas vezes deputado estadual.
Notas
(1) Compilação de provas documentais da provocação pelos imperialistas americanos da Guerra Civil da Coreia. Pyongyang, p.115.
(2) CUMINGS, idem, p. 276-278.
(3) New York Herald Tribune, 30 de outubro de 1949.
(4) Idem, 1º de novembro de 1949.
(5) CUMINGS, idem, p. 284.
(6) New York Times, 20 de junho de 1950.
(7) Daily Mail, Londres, 19-06-1950, edição parisiense.
(8) O New York Times, o New York Herald-Tribune e o Washington
Post informaram que em 25 de junho duas companhias do 17º
Regimento haviam ocupado Haeju. O delegado militar do Reino
Unido em Tóquio telegrafou em 27 de junho, avisando que dois
batalhões do 17º Regimento tinham ocupado Haeju (FO317, fragmento nº 84057, Gascoigne a FO, 27 de junho de 1950).
(9) CUMINGS, idem, p. 293.
(10) STONE, Irving F. La historia oculta de La Guerra de Corea. Cuba,
1952, p. 62.
(11) CUMINGS, idem, p. 304.
(12) Idem, p. 305.
(13) Idem, p. 300; 303-304.
(14) New York Times, 24-08-1950
(15) New York Times, 29-09-1950
(16) HEIFERMAN, R.; SHERMER, D. & MAYER, S. L. Guerras do Século
20. Rio de Janeiro, 1975, p. 463.
(17) FRIEDRICH, idem, p. 243.
(18) FRIEDRICH, idem, p. 259.
(19) CUMINGS, idem, p. 309.
61
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
70 anos da vitória dos
povos contra o nazismo
Socorro Gomes*
Soldados do Exército Vermelho
comemoram vitória erguendo
bandeira da União Soviética
sobre as ruínas do Reichtag
A presidenta do Conselho Mundial da Paz e do Centro Brasileiro
pela Paz e Solidariedade entre os Povos (Cebrapaz), Socorro
Gomes, participou, em Moscou, no último dia 7 de maio, do
Encontro entre Organizações Internacionais Democráticas,
organizado pela bancada parlamentar do Partido Comunista da
Federação Russa. O evento fez parte das celebrações do 70º
aniversário da vitória dos povos contra o nazi-fascismo e Socorro
Gomes integrou a mesa-redonda 1945-2015: Anos de Luta, Novos
Desafios. Em sua fala, sublinhou a disseminação da resistência
popular contra o retrocesso civilizacional imposto pelas forças
alemãs, italianas e japonesas e o decisivo e heroico protagonismo
do Exército Vermelho soviético no combate ao nazi-fascismo
62
História
Leia a íntegra do discurso de Socorro Gomes na Rússia:
A vitória sobre o nazi-fascismo:
glorioso acontecimento na história da
humanidade.
O
Conselho Mundial da Paz sente-se
honrado de participar deste evento
para celebrar o 70º aniversário de
um dos acontecimentos mais gloriosos da história da humanidade:
a vitória dos povos sobre o nazi-fascismo, uma conquista das forças da paz, da democracia, da solidariedade e do progresso social.
A Segunda Guerra Mundial foi uma tragédia
que custou a vida a mais de 50 milhões de pessoas e
devastou principalmente a Europa, causando a destruição da infraestrutura e dos lares e impondo horrendas consequências à população.
Inclinamos nossas bandeiras ante o sacrifício dos
povos, aos mártires civis e militares que perderam
suas vidas, muitos deles vítimas de inomináveis crimes, na luta para libertar a humanidade do nazi-fascismo, defender as liberdades democráticas, os direitos sociais, a soberania nacional e reconquistar a paz.
Os povos da União Soviética pagaram um terrível
preço, com a vida de 27 milhões de pessoas e a insólita destruição de milhares de cidades, povoados,
lares e fábricas.
As vitórias do Exército Vermelho nas históricas
batalhas de Moscou, Stalingrado, Kursk e Berlim
permanecerão indelevelmente marcadas na memória da humanidade, como o tributo dos povos soviéticos para a causa da libertação.
A vitória sobre o nazi-fascismo foi fruto das heroicas ações nos campos de batalha e da união dos
povos e das forças democráticas no âmbito de cada
país, além da ação de uma grande aliança internacional, de que fizeram parte a União Soviética, o Reino Unido e os Estados Unidos.
Um poderoso fator para a vitória foi o combate
dos povos dos países ocupados pelo fascismo, que organizaram a luta guerrilheira e a resistência entre as
amplas camadas da população, organizações sociais
e partidos políticos. No continente europeu, as resistências populares italiana, francesa, albanesa, belga,
grega, holandesa, húngara, norueguesa, iugoslava,
romena, polonesa, dinamarquesa, austríaca, tcheco-eslovaca, britânica e mais de uma dezena de movimentos alemães antinazistas foram resolutas no
enfrentamento às invasões e às ocupações dos seus
países.
No restante do mundo, os povos também se levantaram contra a brutal ofensiva alemã, italiana e
No palanque e na marcha, a presidenta do CMP e do Cebrapaz,
Socorro Gomes
japonesa. Foi o caso dos movimentos de resistência
na Ásia – na China, Índia, Coreia, Malásia, Tailândia,
Vietnã, Cingapura, Filipinas –, e dos movimentos japoneses de oposição à guerra. Entre os latino-americanos, foi intensa a luta antifascista e a mobilização
de forças para se incorporarem ao esforço de guerra
dos aliados alcançou êxito em diferentes países.
A vitória foi, assim, a expressão e o resultado da
fraternidade internacionalista entre os povos, na
busca pela liberdade, a democracia, a independência
e a justiça.
A Segunda Guerra Mundial eclodiu como um
confronto entre as grandes potências capitalistas,
tendo sido provocada pelos países mais agressivos –
a Alemanha nazista, a Itália fascista e o Japão.
O grande conflito foi o resultado do desenvolvimento desigual no mundo capitalista. A luta por
mercados e fontes de matérias-primas era o pano
de fundo que empurrava as potências capitalistas à
guerra por uma nova divisão do mundo por meio da
violência.
Tendo sua origem nas contradições entre países
imperialistas, a Segunda Guerra Mundial foi gradualmente mudando de caráter. Os povos dos países
ocupados, principalmente a partir da agressão nazista à União Soviética, ergueram-se na resistência
popular-nacional antifascista, passando a realizar
uma justa luta democrática e de libertação nacional.
63
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Os próprios Estados capitalistas, a partir do dedos os continentes, saqueou as riquezas nacionais
sencadeamento da guerra, viram-se confrontados
dos povos, impôs seu modelo econômico e políticas
com uma ameaça à sua própria soberania nacional,
escravizadoras e neocolonialistas. Organizou sua poo que criou condições para a formação de um amplo
lítica externa com o objetivo de desestabilizar os paíe poderoso movimento patriótico e antifascista.
ses socialistas e anti-imperialistas, concentrou suas
Revoluções democráticas, populares e de libertaenergias no cerco e destruição da União Soviética
ção nacional foram vitoriosas. O caráter libertador da
durante o período da chamada Guerra Fria.
luta antifascista dos povos, o papel decisivo da União
Um dos principais aspectos da ação imperialista é
Soviética e das massas trabalhadoras e populares na
a militarização, que cobrou impulso a partir da criavitória e a derrocada do fascismo deram impulso aos
ção da Organização do Tratado do Atlântico Norte
movimentos democráticos e socialistas em todo o
(Otan), em abril de 1949, originalmente com a parmundo. Debilitou-se o sistema colonialista. Tudo isticipação dos Estados Unidos, Reino Unido, França,
so acarretou uma nova correlação
Bélgica, Holanda, Luxemburgo,
de forças favorável ao avanço das
Portugal, Dinamarca, Noruega, Islutas pela paz. As forças da demolândia e Itália, ampliando-se logo
No momento em
cracia, da paz e do progresso social
em seguida, em 1952, com a preque comemoramos
saíram fortalecidas, acarretando
sença da Turquia, Grécia e Repúblio 70º aniversário
importantes transformações geoca Federal da Alemanha.
políticas.
A organização tem hoje 28 Estada vitória sobre o
Neste quadro, o imperialismo
dos membros, da América do Norte
nazi-fascismo, o
estadunidense inicia uma cone da Europa. E outros 22 países estraofensiva para assegurar positão engajados no chamado Consemundo enfrenta
ções hegemônicas e ordenar o sislho de Parceria Euro-Atlântico. Ao
novos perigos,
tema internacional segundo seus
seu lado, outros 19 países estão lipróprios interesses. O lançamento
gados à Otan através de programas
as intervenções
das bombas atômicas sobre Hicomo o Diálogo do Mediterrâneo, a
militares se repetem,
roshima e Nagasaki pela aviação
Iniciativa de Cooperação de Istama paz é ameaçada,
estadunidense foi o ato inaugubul ou a Parceria para a Paz.
ral da nova ordem que os Estados
Desde 1991, a Otan expandiu o
e o fascismo volta
Unidos pretendiam impor.
quadro de membros e o teatro de
a se apresentar
Desde o final da Segunda
operações, o que por si só revela o
Guerra Mundial até os nossos
seu objetivo fundamental de ser
com novas e velhas
dias, o imperialismo estadunidenuma ferramenta primordial na doroupagens
se seguiu uma política e praticou
minação imperialista ocidental soações contrárias aos interesses dos
bre o planeta, uma inimiga da paz,
povos, da democracia, da indepencomprometida com as doutrinas
dência nacional e da paz mundial. Foi esse imperiado primeiro ataque e dos ataques preventivos. Colismo que desencadeou as agressões contra a Coreia,
mo uma aliança militar ofensiva, a Otan está sempre
o Vietnã e demais países da Indochina, no Oriente
pronta para intervir antes mesmo de a diplomacia
Médio, na África, e fomentou golpes militares na
ter sua chance, caso ela seja de interesse das potênAmérica Latina. Foi também esse imperialismo que
cias imperialistas. O agigantamento da Otan, que a
mais tarde, a partir do final do século 20 e início do
torna mais poderosa, agressiva e intervencionista –
século 21, agrediu e destruiu a Iugoslávia, fez duas
como a atual crise na Ucrânia demonstra –, constitui
guerras contra o Iraque, invadiu o Afeganistão, desum fator ponderável para aumentar a instabilidade,
truiu a Líbia e confirmou sua condição de potência
as turbulências e o perigo de guerra.
corresponsável pelo martírio do povo palestino ao
No momento em que comemoramos o 70º aniapoiar a ocupação sionista israelense.
versário da vitória sobre o nazi-fascismo, o mundo
Desde o fim do conflito, o imperialismo estaduenfrenta novos perigos, as intervenções militares se
nidense fomentou a corrida armamentista, intensirepetem, a paz é ameaçada, e o fascismo volta a se
ficou a produção de armas nucleares, espalhou bases
apresentar com novas e velhas roupagens. Mais do
militares em todos os continentes, promoveu interque nunca, impõe-se extrair as lições da experiênvenções de diferentes tipos, numa constante ameaça
cia histórica e adquirir elementos de convicção para
à paz mundial e à segurança internacional.
unir as forças democráticas e progressistas a fim de
Este imperialismo cravou as suas garras em toimpedir que ocorram novas tragédias. Os fatos evi-
64
História
Dmitry Lovetsky/AP Photo
Cidadãos russos carregam retratos de participantes na Segunda Guerra Mundial em São Petersburgo , Rússia, sábado, 9 de maio, 2015
denciam o caráter desestabilizador e potencialmente
destrutivo das políticas agressivas dos EUA e seus
aliados na Otan. Tendo fracassado na criação de um
ambiente de hostilidade no passado recente, como
foi o caso do conflito na Geórgia, os EUA coordenam
agora as forças reacionárias e fascistas para tentar
cercar a Rússia, a exemplo da crise instalada na
Ucrânia. Mais uma vez, os povos pagam o preço: o
sofrimento infringido aos civis ainda é inestimável e
a turbulência no Leste Europeu traz grande retrocesso à construção da paz na região, com a reinstalação
das forças fascistas, a soldo do imperialismo.
O mundo de hoje é cenário de uma situação instável e crítica. As grandes conquistas democráticas
do período do imediato pós-guerra, a independência
nacional, os valores civilizacionais sofreram brutal
retrocesso a partir da década de 1990 do século passado, quando o traço principal da situação passou a
ser uma intensa e abrangente ofensiva do imperialismo estadunidense e seus aliados para assegurar
posições de domínio no mundo.
Para além das políticas intervencionistas e militaristas, fazem parte dessa ofensiva o ataque aos
direitos dos trabalhadores e povos como “saída” da
crise do capitalismo, os golpes na democracia, o racismo, a xenofobia, a falsificação da história.
Num quadro internacional em mutação, está em
jogo uma nova divisão do mundo, o saque das riquezas nacionais, a ocupação de territórios, a implantação
de uma ordem imperial que além de ter globalizado a
economia e padronizado os comportamentos, pretende uniformizar os regimes políticos, a vida cultural, a
ideologia reacionária como pensamento único.
Malgrado a retirada das tropas estadunidenses e
da Otan do Iraque e outras recentes flexões táticas
na política externa norte-americana, a humanidade
continua confrontada por uma feroz investida do
imperialismo estadunidense para impor sua vontade
no mundo, o que faz crescer o intervencionismo, as
ameaças e as agressões.
O direito internacional e as instituições criadas
para assegurar o exercício de relações internacio-
65
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
nais equilibradas não subsistem como tais, em decorrência da instrumentalização pelos interesses de
potências hegemônicas. A Organização das Nações
Unidas, criada para promover a coexistência pacífica entre nações soberanas, assegurar o equilíbrio no
mundo, garantir a aplicação das normas do Direito
Internacional, dirimir os conflitos internacionais e
promover a paz mundial, atua sob pressão das potências imperialistas que cada vez mais impõem o
seu ditame no mundo pela força.
A política hegemonista do imperialismo destrói
países, devasta nações antes prósperas, derruba governos legítimos, assassina presidentes eleitos, substitui o diálogo pela força implantando o terror, sob o
pretexto de combater o terrorismo, com a finalidade
de garantir seus desígnios de domínio e saque. Esta
política é a principal ameaça à paz e é o principal fator
da instabilidade, dos desequilíbrios e das crises políticas, diplomáticas e militares no mundo.
Por outro lado, é preciso reconhecer importantes
transformações na situação internacional, em que se
fortalecem profundas demandas emancipatórias que
colocam em questão a política dominante e a desigual
distribuição do poder. Embora os EUA ainda detenham
a maior força econômica e militar, assim como a maior
influência política, há elementos na situação que fazem crer que se trata de uma potência em declínio, que
já não pode fazer o que quer, pois se confronta com a
resistência dos povos e de nações que defendem a paz.
Também notamos o surgimento de novos polos
de poder político, econômico e militar, cuja expressão
maior é a ascensão vertiginosa da China, o fortalecimento do poder nacional da Rússia, depois de um momento de desagregação e de crise econômico-financeira, e a emergência de uma América Latina fortalecida
por posições democráticas e independentistas.
No processo emancipatório, verificamos o agravamento dos conflitos sociais, das contradições entre os
países da África, Ásia e América Latina e a dominação
imperialista. Estão em curso lutas de variados tipos
e intensidades, nos mais diversificados cenários, revelando as potencialidades dos povos e das forças da
paz, que se insurgem contra a opressão, o intervencionismo, o militarismo e o belicismo.
No curso dessas lutas, emergem e se fortalecem
a solidariedade internacional e a unidade em torno
de reivindicações de interesse comum pelo fim das
bases militares estrangeiras em países soberanos, pela abolição das armas de destruição em massa, pela
dissolução da Otan, pela democratização das relações
internacionais com o resgate dos preceitos da carta
da ONU, pela autodeterminação dos povos e a solução pacífica dos conflitos internacionais, pelo fim das
políticas intervencionistas e das guerras de agressão.
66
A humanidade continua confrontada por uma feroz
investida do imperialismo estadunidense para impor sua
vontade no mundo, o que faz crescer o intervencionismo,
as ameaças e as agressões
O Conselho Mundial da Paz, fundado no imediato
pós-guerra para conjurar o perigo de nova catástrofe
de proporções ainda maiores, com a ameaça do conflito nuclear, ao fazer essas reflexões sobre o passado
e o presente, invoca o heroísmo dos povos e da resistência antifascista nas suas lutas atuais e na renovação do seu compromisso pela paz a libertação da
humanidade.
* Socorro Gomes é presidenta do Conselho Mundial
da Paz (CMP) e do Centro Brasileiro pela Paz e
Solidariedade entre os Povos (Cebrapaz)
Fonte: Portal Vermelho (www.vermelho.org.br)
PCdoB
67
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Pequena história de
um século da Grande
Revolução de Outubro
Bernardo Joffily*
Princípios publica nesta edição o terceiro artigo da série
de textos sobre a Revolução Russa, que completará 100
anos em 2017. Escrita pelo jornalista Bernardo Joffily,
a série de textos procura contribuir com o debate sobre
o significado e as lições deste que foi um dos principais
acontecimentos da história contemporânea. No artigo
desta edição, Joffily relata o triunfo do movimento
revolucionário com a tomada do Palácio de Inverno e as
primeiras medidas revolucionárias da Rússia bolchevique
A Terceira Revolução, “Paz, Pão e Terra”, combates,
transformações, o lugar de Outubro na história
A
o assumir a direção dos poderosos
Sovietes de Petrogrado e Moscou,
e de um enxame de organizações
soviéticas nas províncias, o Partido
Bolchevique passou a preparar a tomada revolucionária do poder. A decisão, do Comitê
Central do Partido, foi tomada em 28 de setembro
(10 de outubro). “A maioria do povo está conosco”,
avaliou Lênin, que deixou o refúgio clandestino na
Finlândia para assumir o comando da ofensiva,
e auscultava cada pulsar do estado de espírito das
classes trabalhadoras. “A insurreição armada é inevitável e se acha plenamente madura”, concluía. Os
bolcheviques tinham logrado traduzir todos os compêndios da teoria marxista e análises da realidade
68
russa em três palavras que sintetizavam as aspirações mais sentidas das massas: “Paz, Pão e Terra”.
Últimos preparativos – “Dez dias que abalaram
o mundo”
O Partido enviou dirigentes às províncias para
preparar a insurreição. O Soviete de Petrogrado criou
um “Comitê Militar Revolucionário”, destinado a
cumprir o papel de Estado-Maior do levante.
A principal força revolucionária era a classe operária, concentrada em Petrogrado e Moscou, que rapidamente abandonava os mencheviques e se alinhava com os bolcheviques. Secundava-a uma massiva
sublevação camponesa nas províncias. E a massa de
soldados, da armada recrutada pelo czar para morrer
nas trincheiras da Grande Guerra, também aderia
História
rapidamente à proposta
se tornou um clássico do
bolchevique, inclusive o
livro-reportagem: apaixogrosso da tropa acantonadamente engajado sem
nada em Petrogrado. Os
perder a ternura, realismo,
Sovietes de Deputados
argúcia e honestidade.
Operários, Camponeses
e Soldados eram a forA tomada do
ma de organização rePalácio de Inverno
volucionária.
O QG bolchevique
Em 24 de outubro (6
era o Instituto Smolny,
de novembro), o diário
antiga escola feminina
bolchevique Rabochi Put
para filhas da nobreza
(O Caminho Operário, que
czarista, um elegante
substituía o Pravda, proibipalácio neoclássico cerdo pelas autoridades) escado por jardins, no centampou um chamamento
tro histórico de Petroà derrubada do Governo
grado, que a revolução
Provisório. Este enviou
convertera em sede do
carros blindados à oficiComitê Central do Partina do jornal, mas guardo Bolchevique. Naquedas vermelhos e soldados
les dias agitados, Lênin
revolucionários os expulmorou no Smolny.
saram. Durante a noite,
O lado contrário
outros destacamentos retambém tratou de se
volucionários reforçaram a
preparar para o confronguarda do Smolny, tomato que todos julgavam
ram as estações ferroviáinelutável. A oficialidarias, as centrais de correios
de do exército, descone telégrafos, os ministérios
e o Banco do Estado.
fiada de que sua tropa
O papel de estopim
estava infestada pelo
Lênin em frente ao Instituto Smolny, em tela de Isaak
oficial da Terceira Revolubolchevismo, criou 43
Brodskyi (1884-1939)
ção – após a de 1905 e a de
unidades de combate
Fevereiro – coube à guarformadas apenas por
nição do Cruzador Aurora, um bastião bolchevique,
oficiais, por meio da “Liga dos Oficiais”. O governo
sob controle de um comitê revolucionário e de um coprovisório de Kerensky tirou tropas do front da guerra
mandante eleito pela marujada, Aleksandr Belyshev,
para reforçar suas posições na capital, enquanto exaum operário têxtil convocado pela Marinha, 24 anos.
minava a conveniência de retirar-se para Moscou.
Após deslocar-se pelo rio até defronte ao Palácio de
O centro nervoso da contrarrevolução ficava no
Inverno, o Aurora fez, às 21h45 de 25 de outubro (7
Palácio de Inverno. O gigantesco edifício em estilo
de novembro), os disparos de seu canhão de proa
rococó, à margem do Rio Neva, possuía 1.500 apo(de 152 mm) contra o Palácio, assinalando simbolisentos e 117 escadas, tendo como anexo o imenso
camente o início da insurreição. Em seguida, operámuseu de arte do Hermitage, e no subsolo a maior e
rios, soldados e marinheiros de Kronstadt investiram
melhor adega de vinhos do mundo. Ainda no início
contra o edifício por terra. Eisenstein reproduziu o
do ano servia – há quase dois séculos – como resiataque em outro filme clássico, Outubro (1927).
dência oficial dos czares. Depois de Fevereiro, pasA Tomada do Palácio de Inverno encontrou cersara a ser usado como sede do Governo Provisório.
ta resistência mas foi rápida: às 2h10 da madrugaA todo momento, patrulhas da “Guarda Vermeda seguinte, os revolucionários controlavam todo o
lha” revolucionária, ou da “Liga dos Oficiais” conprédio. Os ministros do Governo Provisório foram
trarrevolucionária, cruzavam as amplas avenidas
presos, enquanto Kerensky logrou fugir, vestido de
de Petrogrado em automóveis. Esse ambiente febril
freira, conforme uma versão que ele negou até a
é retratado com maestria em Dez dias que abalaram o
morte no exílio. Em Moscou os combates de rua se
mundo (1920), obra de uma testemunha ocular, o jorprolongaram por seis dias, de 28 de outubro a 2 de
nalista norte-americano John Reed (1887-1920), que
69
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Guardas vermelhos patrulham a Avenida
Nevsky, artéria central de Petrogrado, às
vésperas da Revolução
novembro (10 a 15 de novembro). Até fevereiro a
Revolução triunfou em toda a Rússia, ao custo de em
torno de 2 mil mortes, entre militares e civis.
Muito já se escreveu, de ambos os lados, sobre as
causas de uma vitória tão rápida e incruenta – em
termos relativos – de uma transformação políticosocial das proporções históricas da Revolução de Outubro. A partir da obra de Lênin, pode-se destacar,
entre outros motivos, que: 1) A Revolução enfrentou um adversário relativamente débil, a burguesia
russa, recém-chegada ao poder após a derrubada do
czar, mal organizada, economicamente frágil, inexperiente em política, covarde a ponto de não ousar
diferenciar-se do czarismo em questões tão decisivas
como a da guerra. 2) Teve à frente uma classe revolucionária como a classe operária da Rússia, temperada por duas revoluções anteriores e com prestígio
entre o povo. 3) Possuiu um aliado de massas também com experiência revolucionária recente como o
campesinato russo, os camponeses pobres e por fim
também os médios, ansiosos por se libertarem do
fardo da guerra. 4) Contou com a direção de uma
organização como o Partido Bolchevique de Lênin,
escolado no combate ao oportunismo, consciente,
disciplinado, fiel à revolução, mas também capaz de
70
se fundir com as massas trabalhadoras, aplicando
uma linha política justa, na estratégia e na tática.
As primeiras medidas revolucionárias
da Rússia bolchevique
Ainda se combatia no Palácio de Inverno, na
noite da Revolução, quando se abriu no Smolni o
2º Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia. Os 390
delegados bolcheviques formavam uma confortável
maioria (60% do total; no 1º Congresso, apenas quatro meses antes, a bancada bolchevique não passava
de 13%). E ainda tinham como aliados os social-revolucionários de esquerda (cerca de 100 delegados),
que também apoiaram a insurreição. Os mencheviques (72 delegados) e social-revolucionários de direita (cerca de 60 delegados) abandonaram o Salão
da Assembleia do Smolni em protesto.
O 2º Congresso dos Sovietes aprovou o Decreto
sobre a Paz, propondo um armistício imediato entre os países beligerantes. E o Decreto sobre a Terra,
declarando “imediatamente abolida, sem nenhum
gênero de indenização, a propriedade dos latifundiários sobre a terra”. No decisivo terreno da política, o
Congresso consagrou a vitória da Revolução: assu-
A Tomada do Palácio de Inverno,
reconstituída pelo cineasta Eisenstein
em Outubro
miu “todo o poder” e indicou Lênin para chefiar o
primeiro governo soviético.
Não era uma mera mudança governamental. Era
um novo tipo de poder estatal que nascia, o Estado
socialista soviético, sem precedentes na história, exceto a heroica, porém efêmera, experiência dos 72
dias da Comuna de Paris em 1871. Lênin o definia
assim: “O regime soviético significa o máximo de
democracia para os operários e os camponeses e, ao
mesmo tempo, a ruptura com a democracia burguesa
e o aparecimento de um novo tipo de democracia de
importância histórica mundial: a democracia proletária ou ditadura do proletariado” (O esquerdismo, http://www.vermelho.org.br/biblioteca.php?pagina=doenca.htm).
Graças a esta natureza o recém-nascido Estado dos Sovietes varreu as teias de aranha medievais da velha Rússia com decisão, rapidez, audácia,
amplitude e profundidade... e êxito. Os partidos que
compunham o Governo Provisório – social-revolucionários, mencheviques e cadetes – em dez meses não
haviam se atrevido sequer a abolir formalmente a
monarquia czarista. O poder dos Sovietes em dez semanas proclamou a República, mudou a capital para
Moscou, extirpou até os menores restos da servidão
feudal-latifundiária, garantiu a mais ampla liberdade e a plena igualdade de direitos para todas as nacionalidades do ex-império, assim como a igualdade
de direitos para as mulheres – a Rússia bolchevique
foi a primeira grande nação a estabelecer o voto
feminino, precedida apenas por Nova Zelândia, Austrália e alguns dos países escandinavos.
Ao lado destas medidas, de caráter democrático-burguês, embora radical, o novo poder lançou as
bases do novo sistema, socialista. Foram nacionalizados os bancos, as estradas de ferro, o comércio exterior, a marinha mercante e toda a grande indústria
A dissolução da Assembleia
Constituinte
Em 6 (19) de janeiro de 1918 Lênin, enquanto
chefe do governo soviético, ordenou a dissolução da
Assembleia Constituinte de toda a Rússia, convocada pelo Governo Provisório. O Partido Bolchevique
apoiara a convocação e participara da eleição dos deputados, considerando que esta teve extraordinário
valor educativo para os trabalhadores.
No entanto, enquanto o processo eleitoral se
atrasava e se arrastava, deu-se nada menos que a
71
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
deixar de reconhecer que os parlamentos
Revolução de Outubro. E, na visão bolchevique, uma
burgueses são órgãos duma ou doutra classe.
república burguesa com Constituinte era preferível
Mas agora (para o sujo objetivo de renunciar
à mesma república sem Constituinte, mas que uma
à revolução), Kautsky precisou esquecer o
república operário-camponesa, soviética, seria memarxismo, e Kautsky não coloca a questão de
lhor que qualquer república democrático-burguesa.
saber de que classe era órgão a Assembleia
A eleição transcorrera fundamentalmente antes
Constituinte na Rússia.” (https://www.marda Revolução. Nas urnas o Partido Bolchevique ainxists.org/portugues/lenin/1918/renegado/
da figurava como a segunda força, embora com uma
cap05.htm)
respeitável bancada de um quarto
dos 703 deputados. A maior bancaA Paz de Brest-Litovsk
da era a dos social-revolucionários,
Nos primeiros dias
que tinham pouco mais da metade
Nos primeiros dias de 1918, resdas cadeiras – ainda que a eleição
de 1918, restava
tava ainda por resolver a questão
não refletisse a cisão entre SR de
ainda por resolver
de tirar a Rússia da Grande Guerra.
direita e SR de esquerda, estes úla questão de tirar
Não era um problema qualquer: era
timos aliados dos bolcheviques e
a pedra de toque, a questão de vida
participantes da Revolução.
a Rússia da Grande
ou morte para milhões de campoA Assembleia reuniu-se uma
Guerra. Não era
neses, a promessa que decidira, em
única vez, em 5 (18) de janeiro.
primeiro lugar, o povo russo em faEsta única sessão elegeu como seu
um problema
vor da Revolução.
presidente o líder social-revoluqualquer: era a
Assim que assumiu, o governo
cionário de direita Victor Chernov,
soviético propôs “a todos os países
vencendo a SR de esquerda Maria
pedra de toque, a
beligerantes e seus governos entaSpiridonova. E recusou-se a acatar
questão de vida ou
bular negociações imediatas para
as decisões do Congresso dos Somorte para milhões
uma paz justa e democrática”, mas
vietes sobre o novo poder nascido
os “aliados”, Inglaterra e Franda Revolução, a paz e a terra. Ao
de camponeses,
ça, discordaram. A Rússia decidiu
se divorciar do poder soviético, a
a promessa que
então negociar a paz em separado
Constituinte condenava-se inapecom a Alemanha e a Áustria. As
lavelmente à morte política. Dito
decidira, em
negociações começaram a 3 de
e feito: Lênin dissolveu-a 13 horas
primeiro lugar, o
dezembro, na Fortaleza de Bresapós sua instalação.
povo russo em favor
t-Litovsk (nos arredores da cidade
A dissolução provocou uma
bielo-russa de Brest, na parte do
onda de críticas sobre os supostos
da Revolução
ex-império russo ocupada pela Aleinstintos antidemocráticos que
manha). Trotsky, comissário do povo
norteariam os bolcheviques. O lí(cargo equiparável ao de ministro)
der socialdemocrata alemão Karl
de Relações Exteriores, assumiu pouco depois a cheKautsky disparou contra ela no panfleto A ditadura
fia da delegação soviética.
do proletariado. Lênin contestou-o em A revolução proleEm dois dias chegou-se a um cessar-fogo. As contária e o renegado Kautsky (1919), numa apaixonada e
dições da Alemanha para fazer a paz definitiva, poindignada defesa da linha bolchevique à luz do marrém, eram duríssimas: incluíam a passagem da Poxismo revolucionário:
lônia, da Ucrânia e dos Países Bálticos para a esfera
germânica. Lênin, já em janeiro, defendia que fos“Kautsky adopta na questão da Assembleia
sem aceitas as imposições, ainda que bandidescas.
Constituinte um ponto de vista formal.
Trotsky, porém, relutava e em 10 de fevereiro interNas minhas teses disse claramente e reperompeu as conversações. Dia 18 a Alemanha rompeu
ti muitas vezes que os interesses da revoa trégua e arremeteu na direção de Petrogrado.
lução estão acima dos direitos formais da
Os frangalhos do velho exército czarista logo
Assembleia Constituinte. O ponto de vista
se mostraram incapazes de conter o bem armado
democrático formal é precisamente o ponto
avanço alemão. No entanto, ao grito de “A Pátria
de vista do democrata burguês, que não reSocialista em perigo!”, a Rússia revolucionária forconhece que os interesses do proletariado
mou novas unidades militares, com voluntários, que
e da luta proletária de classe são superioconseguiram rechaçar a arremetida germânica em
res. Como historiador, Kautsky não poderia
72
História
O cruzador Aurora, iniciador da
Revolução, fundeado no Rio Neva,
em foto atual
Narva, a apenas 150 quilômetros de Petrogrado, a
23 de fevereiro. Esta data assinala o nascimento do
Exército Vermelho, força armada regular do poder
soviético, que substituiu a Guarda Vermelha.
No mesmo dia, porém, a posição de Lênin se impôs no Comitê Central Bolchevique – vencendo em
um robusto debate a oposição de Bukharin e a relutância de Trotsky – e a Rússia anunciou que aceitava a proposta alemã. Em 3 de maço foi assinado o
Tratado de Brest-Litovsk. Três dias mais tarde o 7º
Congresso do Partido Bolchevique – o primeiro após
a tomada do poder – analisou a paz em separado.
Lênin nunca ocultou que aquela era “uma paz
desgraçada” — como dizia o título de um artigo
seu publicado no dia seguinte ao 7º Congresso. Era
um altíssimo preço para honrar a promessa de tirar
a Rússia da guerra. Porém Lênin defendia a “paz
desgraçada” usando uma parábola como argumento:
“Imagine que o automóvel em que você
está é assaltado por bandidos armados.
Você lhes dá o dinheiro, a carteira,
o revólver e o carro; mas, em troca,
escapa. Trata-se, evidentemente, de
um compromisso. Do ut des (‘dou’ meu
dinheiro, minhas armas e meu automóvel,
‘para que me dês’ a chance de seguir em
paz). Dificilmente, porém, se encontraria
um homem sensato capaz de declarar
que esse compromisso é “inadmissível
do ponto de vista dos princípios”, ou de
denunciar quem o assumiu como cúmplice
dos bandidos. Nosso compromisso com
os bandidos do imperialismo alemão foi
semelhante.” (O esquerdismo).
A paz, porém, ainda tardaria. Antes mesmo de
conseguir libertar-se da Grande Guerra, a Rússia
soviética mergulharia por mais quatro anos na
igualmente mortífera Guerra Civil.
* Bernardo Joffily é jornalista, tradutor,
colaborador de Princípios e autor do Atlas
Histórico IstoÉ Brasil 500 anos
73
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
A atualidade do legado
de Lênin
Marly de A. G. Vianna*
“
“
Como uma ponta de cigarro mastigada,
cuspimos fora a dinastia deles.
(Maiakovski)
Estátua de Lênin
sendo protegida
por populares na
Crimeia
Lênin conseguiu interpretar seu mundo corretamente e, a
partir disso, transformá-lo. Esse seu maior legado: a partir de
uma teoria revolucionária interpretar a realidade concreta e a
partir daí mudá-la revolucionariamente
O
maior legado de Lênin foi a Revolução Russa, para a qual contribuiu
decisivamente. A Revolução Socialista de Outubro de 1917 foi o mais
importante acontecimento do século XX: pela primeira vez na história da humanidade,
os operários chegaram ao poder.
Apesar de muito citados, a maioria das vezes Lênin e leninismo aparecem como sinônimos de violência e sectarismo. Afirma-se que a Revolução So-
74
cialista foi violenta – o que não é verdade – e que a
visão sectária leninista de partido teria possibilitado
o stalinismo – o que também não me parece correto.
São frequentes também colocações que “aceitam”
marxismo, mas não o leninismo, e muitas dessas
posições exaltam Antônio Gramsci sem se dar conta
de que Gramsci era um leninista convicto. Considera-se que a teoria pode passar enquanto permanecer
apenas como teoria, mas não a práxis revolucionária
que realizou a Revolução. Rejeitar Lênin é rejeitar a
História
Revolução Socialista de 1917, o grande fantasma que
ainda ronda o mundo: se foi possível que os operários chegassem ao poder, é possível que possam chegar ao poder.
Da teoria da revolução leninista na Rússia czarista fazem parte a visão do que deveria ser o partido comunista, a teoria sobre o Estado, a política
agrária, a crítica ao imperialismo, a relação entre
revolução nacional e internacionalismo proletário,
a relação entre revolução nacional anti-imperialista e revolução socialista, em fim, todas as inúmeras e complexas questões teóricas e práticas da
revolução socialista enfrentadas pela primeira vez
na história.
Uma das questões mais criticadas em Lênin foi
sua concepção de partido, considerada sectária,
autoritária e, de certa forma, elitista, uma vez que
considerava o partido como essencialmente um partido de quadros. A partir dessa crítica, extrapola-se,
para desqualificá-la, afirmando que toda a falta da
democracia partidária, que ocorreu depois de sua
morte, a substituição do proletariado pelo partido
comunista e deste por sua direção já vinham embutidas no modelo leninista de partido. No entanto, o
mais importante na discussão sobre a concepção de
Lênin em relação ao que deveria ser o partido comunista não é, de maneira alguma, discutir se o partido
deveria ser de quadros ou de massas, mas sim que
tipo de partido seria mais consequentemente capaz
de, nas condições da Rússia czarista do início do século XX, adotar uma teoria e uma organização para
a ação revolucionária. Dito de outra forma, o mais
importante, ao se discutir o legado leninista em relação ao partido, é acompanhar sua práxis que, a
partir da teoria revolucionária marxista, forjou uma
organização partidária revolucionária. Não faz sentido discutir, fora da realidade concreta, se o “ideal”
deve ser um partido de massas ou de quadros, ou se
o partido deve trabalhar na legalidade ou na clandestinidade. Essas não são escolhas aleatórias, mas
devem ser decorrentes de uma situação concreta.
Por outro lado, como veremos adiante, jamais Lênin
tentou substituir as massas pelo partido, ou fazer a
revolução no lugar delas. Para Lênin, o partido seria
o organizador e o dirigente da vontade revolucionária demonstrada pelo povo – operários, camponeses, soldados e marinheiros interessados em levar
adiante a revolução.
A Rússia czarista
A dinastia dos Romanov tinha 300 anos e, em
pleno início do século XX, Nicolau II (que subira ao
trono em 1897) dizia-se soberano por direito divino.
A Rússia era um imenso território com inúmeras etnias e quase 80% de sua população ligados ao campo
e pouco alfabetizados, população que o czar dominava com extrema brutalidade. O Estado absolutista e
repressor comportava situações como a do prestígio
dado ao famoso embusteiro Grigori Rasputin, que
caíra nas boas graças da czarina e chegava a destituir
e nomear ministros. Nesse quadro, a incompetência
também grassava além de o Estado russo ser a negação da democracia (HILL: 1967:20).
No início de 1905, ocorreu o que foi chamado por
Lênin de ensaio geral para a revolução. No domingo
9 de janeiro, o czar mandou disparar contra o povo
que saíra em passeata ao Palácio de Inverno, pedindo ajuda ao “paizinho”, como era chamado o czar,
para melhorar sua situação de miséria. Eram homens, mulheres e crianças, em seus melhores trajes,
que pacificamente queriam dirigir-se ao czar. Foram
massacrados, no que ficou conhecido como “Domingo Sangrento”. Rebeliões se espalharam pelo país e
durante as inúmeras greves surgiram os primeiros
sovietes, conselhos de operários que organizaram as
paralisações e que tornaram-se dirigentes do movimento revolucionário.
Apesar da derrota do movimento o czar, assustado com a revolta, prometeu respeitar as opiniões
da Duma (o Parlamento), promessa que não foi respeitada e nem diminuiu a repressão. Durante algum
tempo a classe operária parecia hibernar.
A guerra de 1914, com seu cortejo de barbárie,
contribuiu para reorganizar o descontentamento popular. Já em julho, pouco antes do início da guerra
(1º-08-1914), as greves em São Petersburgo, capital
do império, levaram às barricadas, na luta dos operários contra a polícia czarista. Com o conflito mundial, a situação piorou muito, a miséria e a fome se
agravavam, milhões de trabalhadores – em especial
camponeses – foram mobilizados. A situação dos
soldados no front era trágica e calcula-se que em
1916 já havia registro de mais de um milhão de desertores (HILL: 1967:33).
Em fevereiro de 1917 a dinastia dos Romanov foi
derrubada, assumindo o poder um Governo Provisório – composto de liberais e conservadores de oposição que tinham a maioria na Duma. Ainda segundo
Christopher Hill, o movimento que derrubou o czarismo foi “um movimento de massas quase espontâneo, de operários e soldados em Petrogrado, movimento que ninguém jamais reivindicou o mérito de
tê-lo organizado” (HILL: 1967:33).
O tempo decorrido entre fevereiro e a revolução
socialista de outubro daquele ano é um período importante para entendermos o pensamento e a ação
revolucionária de Lênin.
75
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Vladimir Ilitch Ulianov
se com a revolucionária Nadiejda Krupuskaia. Em
meados de 1900, terminado o exílio, viajaram à Suíça.
A atuação política de Lênin era constante, proLênin nasceu a 10 de abril de 1870, na cidade de
curando a melhor forma de organizar o proletariaSimbirsk (atual Ulianovsk, no Volga). Nasceu num
do russo para a revolução. Para Lênin, um jornal
ambiente cultural elevado e politicamente liberal:
desempenharia imprescindível papel organizativo
seu pai, professor de física, pertencia à pequena noe na Alemanha, no final de 1900, juntamente com
breza e chegou a Diretor de Ensino da região e sua
Julius Martov (Yuli Osipovitch Tsederbaum), lançou
mãe era professora, ambos com visões de mundo
o jornal Iskra (A Centelha). O jornal tinha como epíbastante avançadas. Todos os cinco irmãos de Lênin
grafe! “Da centelha saltará a chama!” e dizia em seu
tornaram-se revolucionários, sendo que o mais veprimeiro editorial: “Sem um partido forte
lho, Alexandre, foi enforcado aos 19 anos
e organizado o proletariado russo japor participar da tentativa de assasmais conseguirá realizar a grande
sinato de Alexandre III. A região
tarefa histórica que lhe cabe:
tinha também tradição revolulibertar a si próprio e a todo o
cionária: muitos dos que parpovo russo de sua escravidão
ticiparam da grande rebelião
política e econômica” (Cf.
popular chefiada por YemeBOLSANELLO: 2000:40).
lian Ivanovitch Pugachov,
A luta de Lênin pelo parum século antes, eram de lá.
tido “de novo tipo” deu-se em
Lênin formou-se em direiduas frentes: na luta teórica, deto e por algum tempo trabalhou
fendendo suas posições em livros,
em sua região, defendendo camartigos e discursos, e na luta política,
poneses pobres. Em 1893 foi para
Em 1902, Lênin
nos congressos do partido. Quando,
Moscou e de lá para São Petersno final de 1900, Lênin escreveu A
burgo, onde travou conhecimento
argumentou sobre a
que herança renunciamos, já delineou a
com marxistas. Em 1894 escreveu
necessidade de uma
separação que existia entre a concepQuem são os amigos do povo e como luforte organização
ção marxista e as ideias populistas.
tam contra os socialdemocratas, uma
Uma questão que deve ser destacacrítica aos populistas e lutou pela
partidária em Que
da como mais um legado do revoformação de um partido operário
fazer? Ele atualizava
lucionário russo é que, no intenso e
socialdemocrata russo. Criou-se
permanente debate por suas ideias,
na ocasião, e com sua participação,
as ideias de Marx
Lênin jamais deixou de dar respostas
uma União de Luta pela Emanciàs condições da
bem fundamentadas às críticas que
pação da Classe Operária, em São
sofriam os defensores de Marx. Os
Petersburgo.
Rússia e defendia
populistas, por exemplo, acusavam
Lênin passou boa parte do ano
a organização de
os marxistas de terem renunciado à
de 1895 no exterior. Em Genebra
um partido de novo
herança revolucionária russa e Lênin
encontrou-se com Gueorgui Vamostrou que, ao contrário, eram os
lentinovitch Plekanov, do grupo
tipo que pudesse
marxistas os verdadeiros herdeiros
Emancipação e Trabalho. Viajando
enfrentar com
dessas tradições. Para chegar a esta
depois a Paris conheceu Paul Lafarconclusão argumentou detalhadague – genro de Marx – e aproveitou
sucesso a repressão
mente, mostrando que conhecia a
para estudar a história da Comuna
czarista
fundo os democratas revolucionáde Paris, o que teve importância derios russos da década de 1860, em
cisiva em sua futura ação política.
especial Nikolai Chernishevski, a que Karl Marx tamSeguindo para Berlin, Lênin entrou em contato com
bém citava com admiração.
a socialdemocracia alemã, através de Wilhelm LiebkCada um dos escritos de Lênin correspondeu à
necht. Além de estudar muito, pôde conhecer líderes
necessidade de dar respostas teóricas que fundado movimento operário revolucionário europeu.
mentassem uma atitude prática. Em 1902 argumenDe volta à Rússia, em setembro daquele ano, Lêtou sobre a necessidade de uma forte organização
nin foi preso e condenado a três anos de exílio na Sipartidária em Que fazer? – título que copiou de uma
béria, em Chechenskoie, uma província de Yenissei.
obra de Chernishevski. Lênin atualizava as ideias de
Foi lá que, em 1898, escreveu o notável livro O desenMarx às condições da Rússia czarista e defendia a
volvimento do capitalismo na Rússia. Lá também casou-
76
História
Lênin fala aos delegados do
3º Congresso do KOMSOMOL em 1920.
Pintura de Boris Ioganson, 1950.
organização de um partido de novo tipo que pudesse enfrentar com sucesso a repressão czarista. Seria
preciso organizar uma força revolucionária que dirigisse o movimento operário. No combate aos partidários de Martov, chamados “economicistas” e que
defendiam uma posição ideológica eclética, em nome da liberdade de crítica, Lênin dizia que tudo que
fizesse concessões à ideologia burguesa abastardaria
a ideologia socialista e defendeu com vigor a importância de uma sólida teoria revolucionária para a
ação revolucionária: “Sem teoria revolucionária não
pode haver movimento revolucionário”, destacava –
um legado que não pode ser esquecido.
Lênin se opunha aos “economicistas” dizendo que
eles defendiam um caminho semelhante ao do trade-unionismo, tanto na organização quanto na política:
A luta política da socialdemocracia é muito mais ampla e mais complexa do que a luta
econômica dos operários contra os patrões e o
governo. Do mesmo modo (e em consequência
disso) a organização de um partido socialdemocrata revolucionário deve ser, inevitavelmente, de um gênero distinto da organização dos
operários para a luta econômica. A organização
dos operários deve ser, em primeiro lugar, sindical; em segundo lugar, deve ser a mais extensa possível; em terceiro lugar, a menos clandes-
tina possível (e nesse ponto, e no que se segue,
é claro que me refiro exclusivamente à Rússia
autocrática). Ao contrário, a organização dos
revolucionários deve englobar, antes de mais
nada, e sobretudo àqueles cuja profissão seja a
atividade revolucionária (por isso falo de uma
organização de revolucionários, tendo em conta
os socialdemocratas). (...) Essa organização,
necessariamente, não deve ser muito extensa
e é preciso que seja a mais clandestina possível
(Tomo 1, p. 210-211).
E continuava, justificando detalhadamente essa
concepção de partido, e principalmente mostrando
sua necessidade e salientando a grande diferença da
Rússia em relação aos “países que gozam de liberdade
política”.
A luta contra os “economicistas” foi muito acirrada
no II Congresso do Partido Operário Socialdemocrata
Russo (POSDR) como era chamado o partido dos revolucionários russos antes da Revolução. O primeiro
congresso realizara-se em março de 1898, em Minsk,
com nove delegados presentes. Lênin ainda estava
em seu exílio na Sibéria. O II Congresso do POSDR
ocorreu em 1903, com 43 delegados. Iniciou-se em
Bruxelas, mas a repressão belga obrigou a que os congressistas terminassem seus trabalhos em Londres.
Lênin foi o redator do Programa e dos Estatutos do
77
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
partido que chamava “de novo tipo”. Os partidários
uma força invencível, sempre e quando sua
de Martov defendiam não serem necessárias maiores
união ideológica por meio dos princípios
exigências para a filiação ao partido, enquanto os de
do marxismo seja afiançada pela unidade
Lênin exigiam que os filiados contribuíssem finanmaterial da organização que coesiona
ceiramente para sua manutenção e participassem de
milhares de trabalhadores no exército da
uma organização partidária. Depois de muitas discusclasse operária (IDEM, p. 465).
sões e votações, as posições de Lênin foram aprovadas
e a partir daí seus partidários passaram a ser chamaNotável definição da práxis
dos “bolcheviques” e os de Martov “mencheviques”
revolucionária
(bolche quer dizer grande, mais e
menche pequeno, menos, aqui no
As rebeliões populares que se
sentido de maioria e minoria).
seguiram
ao massacre do “domingo
Em 1904, Lênin
O programa traçado nesse mosangrento”, em 1905, foram derroescreveu Um passo
mento para as tarefas da revolução
tadas e seguiu-se a elas uma bárbaera um programa que propunha
ra repressão. Os anos seguintes, até
adiante, dois atrás,
palavras de ordem da revolução
1912, foram de aparente calmaria e
como preparação
burguesa – “substituição da MoLênin, no exílio, aprofundou seus
para o III Congresso
narquia czarista por uma Repúbliestudos teóricos, ao mesmo tempo
ca democrática; liberdade total de
em que acompanhava a situação
do Partido Operário
consciência, palavra e reunião, supolítica na Rússia e enviava direSocialdemocrata
frágio universal e secreto para totrizes para o país. Nesse período
dos” (BOLSONELLO: 2000:44) etc.
desenvolveu estudos de Filosofia e
Russo (POSDR),
Apesar do entendimento de estaEconomia política, escrevendo em
do qual os
rem na ordem do dia tarefas de uma
alemão, em 1916, O imperialismo,
mencheviques não
revolução burguesa, Lênin teve a
fase superior do capitalismo.
clareza de ver que, para cumpri-las,
Às vésperas da Primeira Guerquiseram participar.
seria preciso a organização de um
ra Mundial o movimento operário
No texto, mais uma
partido revolucionário e da união
voltou a manifestar-se e desenvolda classe operária ao campesinato.
veu-se no país uma situação revovez Lênin mostrou
lucionária. Lênin não tardou em
Somente o proletariado seria capaz
a importância
dar a diretiva de transformação da
de realizar as tarefas de uma revoluguerra imperialista em guerra civil
ção burguesa. Reconhecendo a neda organização
revolucionária. Ao mesmo tempo,
cessidade do cumprimento destas
operária para a
combateu a atitude pusilânime
tarefas, não as via como uma etapa
revolução
dos líderes da II Internacional e
separada da revolução socialista.
de muitos partidos socialdemocraEra preciso que o proletariado
tas que deram apoio às burguesias
cumprisse esta etapa para seguir
belicosas de seus respectivos países, dando início à
adiante, rumo ao socialismo. Essas ideias foram degrande separação histórica entre reformistas e revosenvolvidas em Duas táticas da social democracia na revolucionários.
lução russa, escrito em 1905.
Em 1904 escreveu Um passo adiante, dois atrás
As teses de abril
(uma crise em nosso partido), como preparação para o
III Congresso do Partido Operário Socialdemocrata
Em fevereiro de 1917 uma revolução popular derRusso (POSDR), do qual os mencheviques não quirubou o czarismo. Desde janeiro, aniversário do Doseram participar. Mais uma vez Lênin mostrou a immingo Sangrento, o povo voltara às ruas e o partido
portância da organização operária para a revolução:
bolchevique saíra da clandestinidade a que se vira
submetido. O czar foi obrigado a abdicar. OrganizaO proletariado não dispõe, em sua luta pelo
ram-se sovietes de operário e soldados por toda a Rúspoder, de outra arma que não seja a orgasia, mas o poder da nova República ficou nas mãos da
nização. O proletariado, desunido pelo imburguesia, tanto liberal quanto conservadora.
pério da anárquica concorrência dentro do
Em abril Lênin retornou a Petrogrado e apresentou
mundo burguês, esmagado pelos trabalhos
As tarefas do proletariado na presente revolução, as famosas
forçados a serviço do capital (...), só pode
Teses de abril. Nelas, Lênin resume as tarefas primortornar-se – e inevitavelmente se tornará –
78
História
Fundado em 1912, o Pravda (verdade, em
russo) era o jornal do Partido Bolchevique
diais do momento. Em primeiro lugar contra a guerra imperialista, pela confraternização no front e pela
paz; em segundo lugar, era preciso dar continuidade à
revolução de fevereiro, transformando-a em socialista. “Isso exige de nós habilidade para nos adaptarmos
às circunstâncias especiais do trabalho do partido entre
as massas inusitadamente amplas do proletariado,
que acabam de despertar para a vida política”. Como
terceiro ponto Lênin levantou uma questão bastante
atual. Alertava para que não se fizessem ilusões com
o Governo Provisório que não deveria ser apoiado; era
preciso “desmascarar este governo, que é um governo
de capitalistas, e não propor a inadmissível e ilusória ‘exigência’ de que deixe de ser imperialista”. Na
quarta tese Lênin diz ser necessário reconhecer que os
bolcheviques eram ainda minoria nos sovietes e que,
enquanto isso ocorresse, o único possível era explicar
aos membros dos sovietes no que estavam errados e
tentar convencê-los da justeza das posições bolcheviques. Um trabalho de crítica e esclarecimento. Quer
dizer, enquanto não conquistassem a maioria numérica e a hegemonia nos sovietes, nada mais poderiam fazer do que lutar por suas ideias – nenhuma
diretiva de tomada do poder por cima das massas.
Quinta tese – era necessário lutar por uma República de Sovietes e não por uma República parlamentar.
Voltar a ela depois dos sovietes seria um retrocesso.
Em sexto lugar, sobre o programa agrário: organizar
os sovietes de camponeses e lutar pelo confisco das
terras dos latifundiários. Sétima tese: Fusão imediata
de todos os bancos do país num banco nacional único, sob o controle dos sovietes. Oitava tese: embora
a “implantação” do socialismo não fosse uma tarefa
imediata, dever-se-ia passar imediatamente ao controle da produção e da distribuição social pelos sovietes de deputados operários. A nona tese era sobre as
tarefas do partido: convocação de um congresso para
discutir sobre o imperialismo, a guerra imperialista
e a posição em relação ao Estado – a reivindicação
bolchevique de um “Estado Comuna”. Dever-se-ia
rediscutir o Programa do partido, que se tornara antiquado. Finalmente, a décima tese era sobre a renovação da Internacional. Depois da traição dos líderes
da II Internacional, por ocasião da Grande Guerra, era
indispensável organizar uma nova internacional- comunista (LÊNIN: 1961, T.2:36).
79
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Impressiona acompanhar a acuidade de Lênin
Pela primeira vez na história do mundo ocorria
sobre a situação política da Rússia e as tarefas do
uma revolução socialista e se colocava a questão do
partido, situação de grandes e rápidas transformaEstado. Lênin estava de acordo com Marx de que o
ções que exigiam uma resposta política adequada.
Estado é a repressão organizada contra uma classe.
Hoje, sabendo-se dos acontecimentos, parece fácil
A tarefa agora, da classe operária recém-chegada
que Lênin tivesse quase que previsto os aconteciao poder, seria a de destruir o Estado capitalista e
mentos. No entanto, essa análise da situação política
criar um Estado operário de transição ao socialisdo momento foi possível a partir da teoria revoluciomo que desmantelasse o Estado burguês, cujo menária que estudou a fundo e dominava, além de um
canismo deveria ser varrido da face da terra e criar
profundo talento: a política como ciência e arte, arte
um novo tipo de Estado de transição: a ditadura do
somente possível através do conheproletariado. Lênin chegara a tal
cimento. Este outro grande legado
conclusão estudando a experiência
atual de Lênin.
da Comuna de Paris e as opiniões
Lênin estudou
O período que se seguiu até a
de Marx sobre ela. A ditadura do
e dominava a
Revolução Socialista foi de incrível
proletariado, dizia Lênin, era “a orfundo a teoria
riqueza política. O governo proviganização da vanguarda dos oprisório, sentindo-se mais seguro no
midos em classe dominante, para
revolucionária.
poder, virou-se contra os operáesmagar os opressores” (LÊNIN:
Graças a isso,
rios e contra os bolcheviques, que
1961: T2:364). Seria uma situação
foram colocados fora da lei, mostransitória:
foi capaz de dar
trando quanta razão tinha Lênin
A ditadura do proletariado, o perespostas políticas
de alertar para que não se confiasse
ríodo de transição ao comunismo,
no Governo.
trará, pela primeira vez, a demoadequadas para a
Em agosto, o golpe do general
cracia para o povo, para a maioria,
situação política
ultrarreacionário Lavr Georgievita par com a necessária repressão
da Rússia e as
ch Kornilov obrigou o governo a
da minoria, dos exploradores. Só
apelar aos operários que quisera
o comunismo poderá proporcionar
tarefas do partido,
desarmar – e aos bolcheviques.
uma democracia verdadeiramente
mesmo diante de
Nesse momento, o Exército já se
completa; e quanto mais completa
desintegrava no front a as deserções
seja (a ditadura do proletariado –
grandes e rápidas
contavam-se aos milhões. Com
MV) deixará de ser necessária e se
transformações
sua política acertada, mais um
extinguirá por si mesma (IDEM).
exemplo da política como ciência e
Novas tarefas estavam colocaarte, Lênin e os bolcheviques idendas diante dos revolucionários e
tificaram corretamente o sentido comum das masLênin teve que realizá-las dentro das condições consas, traduzindo as teses intelectuais de abril numa
cretas que se apresentavam. Cumpriu todo o progralinguagem popular: Paz, Terra e Pão. Com isso conma proposto antes da revolução. Seu primeiro deseguiram a maioria nos sovietes e entre oficiais e
creto foi o da paz, que pelo tratado de Brest-Litovsk
praças do Exército.
(março de 1918) custou muito ao Estado soviético.
Ao contrário do apregoado, por ignorância ou má
Foi preciso fazer muitas concessões para assegufé, pelos inimigos do socialismo, a Revolução Sociarar a revolução, esperando que o território perdido
lista de Outubro de 1917 (7 de novembro pelo novo
acabasse por ser reconquistado – o que ocorreu. As
calendário) foi absolutamente pacífica. Os sovietes
terras foram distribuídas aos camponeses como proassumiram o poder sem resistência. “Às 7:25 da noipriedade (não nacionalizadas) e as indústrias nate de 7 de novembro, telegrafava o correspondente
cionalizadas, sendo que a capital foi transferida de
da Reuter: ‘Até o momento registraram-se apenas
Petrogrado para Moscou.
duas baixas’. Na revolução de fevereiro houve 1.400
Se a tomada do poder foi pacífica, logo em semortos e feridos!” (HILL:1967:98).
guida ao final da guerra 14 países se uniram numa
A capacidade de trabalho de Lênin e sua preocuentente para atacar a jovem República Soviética,
pação com a teoria revolucionária eram impressiodando início a uma guerra civil e obrigando ao chanantes. Em meio a toda efervescência política, escremado comunismo de guerra – requisição de alimenveu, em agosto-setembro de 1917, a maior parte de
to aos camponeses – para sustentar os combatentes.
seu livro O Estado e a Revolução, em que expõe a teoria
A guerra civil matou milhões de pessoas, principaldo Estado e o papel dos sovietes na revolução.
mente uma importante vanguarda bolchevique.
80
História
No final da guerra civil, em 1921, o país estava devastado. Lênin propôs – e foi adotada – uma Nova Política Econômica (a NEP). Seria preciso dar um passo
atrás para manter a revolução. A política do comunismo de guerra foi substituída por imposto em espécie e pela permissão do comércio privado, o que fez
aumentar a oferta de alimentos e deu novo fôlego à
aliança operário-camponesa e à reconstrução do país.
Mais uma vez, antes de adotar medidas que pareciam confrontar o socialismo, Lênin preparou uma
exposição para defendê-las, escrevendo, em 1920, O
Esquerdismo, doença infantil do comunismo.
A 30 de agosto de 1918 Lênin sofreu um atentado
que quase o matou. Foram dois tiros que o atingiram,
um dos quais perfurou-lhe um pulmão, enfraquecendo muito seu organismo já bastante debilitado pelas
dificuldades materiais por que passava e pelo intenso
trabalho que desenvolvia. Em maio de 1922, Lênin
sofreu um primeiro derrame, do qual conseguiu se
recuperar. Em dezembro, outro derrame abalou
decisivamente sua precária saúde e um terceiro, a
21 de janeiro de 1924, matou-o. Lênin conseguiu
interpretar seu mundo corretamente e, a partir disso, transformá-lo. Esse seu maior legado: a partir
de uma teoria revolucionária interpretar a realidade
concreta e a partir daí mudá-la revolucionariamente.
Em março de 1919, por iniciativa sua e com ativa participação de Leon Trotski, foi criada a III Internacional, a Internacional Comunista. Em seu IV
Congresso, em novembro de 1922 – o último de que
participou –, Lênin terminou seu discurso falando
da importância de se estudar, estudar sempre. Dirigindo-se aos delegados estrangeiros, alertou-os
sobre a necessidade de entender a situação russa
em que se deu e se desenvolvia a revolução e não
“colocá-la num canto e rezar diante dela” (LÊNIN:
1961: T.2:746).
Depois da morte de Lênin seguiu-se o período do
chamado stalinismo, que também precisa de uma
análise histórica para ser entendido. De qualquer forma, foi um período de abastardamento do marxismo
e de destruição física dos quadros partidários bolcheviques que fizeram a Revolução. Trata-se de um
outro assunto e o objetivo aqui é ressaltar o legado
de Lênin. Como escreveu Michael Löwy: “O capítulo
‘stalinismo’ está se fechando. Já era tempo. Isso cria
a possibilidade – não para as próximas semanas, mas
para o século XXI – de agrupar novamente gerações
de revolucionários ao redor da bandeira vermelha de
Outubro de 1917 – não como modelo único, mas como herança preciosa e insubstituível da tradição dos
oprimidos. Isso não é uma certeza, mas uma possibilidade histórica, uma chance que nos é dada. A nós
cabe apanhá-la” (LÖWY: 2000:159).
*Marly de A. G. Vianna é historiadora, doutora em
História Social pela Universidade de São Paulo
(1990). Professora aposentada pela Universidade
Federal de São Carlos, atualmente é professora
de pós-graduação da Universidade Salgado
de Oliveira. É membro e colaboradora do IAP Instituto Astrojildo Pereira; do NEE - Núcleo de
Estudos Estratégicos da UNICAMP/Campinas; líder
do Grupo de Pesquisa Discurso, representações e
práticas sociais, da UNIVERSO
Bibliografia consultada
BOLSANELLO, Elio. Lênin, biografia ilustrada. Rio de
Janeiro: Inverta, 2000.
COUTINHO, Ronaldo, “Lênin: a dimensão teórica e prática
do compromisso político revolucionário”. Introdução ao
livro Esquerdismo: doença infantil do comunismo. São
Paulo: Expressão Popular, 2014.
HILL, Christopher, Lênin e a Revolução Russa. Rio de
Janeiro: Zahar, 1967.
LÊNIN, Vladimir Ilitch. A que herencia renunciamos? In:
Obras Escogidas, Tomo 1, Moscou: Progresso, 1961.
Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismoleninismo do CC do PCUS.
____________. Que hacer? In: Obras Escogidas, Tomo 1,
Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do
Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS.
____________. Un paso adelante, dos pasos atrás (una
crisis em nuestro partido). In: Obras Escogidas, Tomo 1,
Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do
Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS.
____________. Dos tácticas de la socialdemocracia en
la revolución democrática. In: Obras Escogidas, Tomo 1,
Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do
Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS.
____________. Las tareas del proletariado en nuestra
revolución. (Tesis de Abril). In: Obras Escogidas, Tomo 2,
Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do
Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS.
____________. O Estado e a Revolução. In: Obras Escogidas,
Tomo 2, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS.
____________. La enfermidad infantil del “izquierdismo
en El comunismo. In: Obras Escogidas, Tomo 3, Moscou:
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de Marxismo-leninismo do CC do PCUS.
____________. IV Congresso de la Internacional Comunista,
de 13 de noviembre de 1922. In: Obras Escogidas, Tomo 3,
Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do
Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS.
LÈNINE, V. Sur da démocratie socialiste. Moscou: Agence
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LÖWY, Michael & BENSAID, Daniel. Marxismo,
modernidade, utopia. Tradução de Alessandra Ceregatti,
Elisabete Burigo e João Machado. São Paulo: Xamã, 2000.
81
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Governo Dilma: breve
balanço de sua política
econômica e a necessidade
do ajuste fiscal
Lecio Morais*
Ministros
Joaquim Levy
(Fazenda) e
Nelson Barbosa
(Planejamento)
O artigo analisa a adoção do ajuste fiscal a partir de um
balanço das ações do primeiro governo Dilma no sentido de
resolver o problema da perda de competitividade externa
em meio à crise internacional. O fracasso das medidas
desembocou na atual situação em que se exige um ajuste
fiscal. O ajuste é analisado do ponto de vista da correlação de
forças em um momento de quebra do equilíbrio social que
veio dando sustentação ao governo desde Lula
82
O
debate que se dá sobre a adoção do
ajuste fiscal como centro da política
do novo governo Dilma é alimentado pela preocupação com as consequências de sua aplicação sobre
a vida do povo. Porém, parte dessa discussão está
eivada, por um lado, de argumentos principalistas sobre política econômica e, por outro, de argumentos
que distorcem a dinâmica capitalista, tal como entendida pelo marxismo, e ignoram a natureza cíclica
e inescapável das suas crises periódicas. Os termos
dessa discussão – que desconhecem a realidade do
capitalismo e relevam a correlação de forças políticas
– terminam por turvar o entendimento do cenário
econômico que enfrentamos no momento e as opções concretas e disponíveis ao governo Dilma para
enfrentar a crise.
Minha contribuição aqui está voltada para o entendimento da ação do governo Dilma na tentativa
de reverter nosso principal problema diante da crise
internacional: a continuidade da perda de competitividade industrial externa. Para tanto, apresento
um resumido balanço dessas medidas, o porquê de
seus fracassos e o papel do grande capital nessa derrota. Abordo, ainda, como a estratégia “neodesenvolvimentista” de Lula, após a continuidade da crise
internacional, tornou-se contraproducente, por não
incorporar medidas defensivas contra a crise internacional desde seu início, em especial após 2008.
1. A estratégia de desenvolvimento:
seu sucesso e as consequências
indesejadas
Pode-se dizer que a estratégia de desenvolvimento do governo Lula, em resumo, era formada por três
políticas: o aumento da produção nacional centrada
no mercado interno; a redução da desigualdade social; e o fortalecimento de relações externas Sul-Sul,
tendo como instrumento para essa última política
o nosso “soft power”. Essa estratégia – geralmente
associada ao neodesenvolvimentismo – foi implementada sem alteração do chamado “tripé” de políticas macroeconômicas: a livre flutuação cambial;
uma política monetária conservadora, que utiliza
a taxa de juros como único instrumento de ação; e
uma política fiscal restritiva de obter superávits para
sustentar a dívida pública. Desse modo, a estratégia
permitia atender a reivindicações tanto do capital
como do trabalho, com o Estado fazendo concessões
que traziam sustentação e estabilidade ao governo,
desde que houvesse crescimento do “bolo”.
Essa estratégia, mesmo com a manutenção do
“tripé”, obteve um sucesso extraordinário, até 2010-
Economia
2011, tendo inclusive, a partir da grande crise internacional, sido capaz de sustentar uma forte política
anticíclica, inicialmente bem sucedida.
O sucesso inicial da estratégia deveu-se a duas
causas fundamentais. A primeira, a boa condução
política por parte do governo. E a segunda, a conjuntura internacional favorável, iniciada em 2003, de
grande liquidez externa (dólar abundante e a baixa
taxa de juros), associada a uma inversão nos termos
de troca no comércio internacional, baseada na forte
expansão de consumo conjunto dos EUA, União Europeia e China, que se estendeu até a eclosão da crise
internacional de 2007-2008.
A inversão dos termos de troca favoreceu o comércio externo do Brasil, bem como o de toda a periferia, em especial no período pré-crise. Houve também uma entrada de investimento externo, gerando
uma entrada recorde de divisas. Isso aconteceu mesmo com a desvalorização do dólar, tal era a força da
demanda mundial. Após 2008, com essa demanda
caindo e uma desvalorização mais forte do dólar, os
termos de troca voltaram a ser desfavoráveis à periferia, retomando sua condição secular. No Brasil, a
acumulação de superávits comerciais no período foi
transformada em uma grande reserva internacional
de dólares, formando um colchão de liquidez e uma
barreira contra ataques especulativos, protegendo o
país de uma futura escassez de divisas que levaria
ao colapso cambial, como vem acontecendo sucessivamente após as fases de prosperidade da economia
nacional desde o século 19. Logrou-se com isso um
sucesso inédito, pois as reservas internacionais suspenderam a restrição externa, característica fundamental das economias dependentes.
O sucesso também nas contas externas, apesar
do dólar fraco, abasteceu largamente o mercado interno, somando-se ao aumento da produção local. O
que proporcionou, sem maiores obstáculos, uma re-
83
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
distribuição significativa de renda, a elevação
da produção nacional,
baixa inflação e bons
resultados fiscais.
2. A crise e
a perda de
competitividade:
a inversão das
expectativas
Como se sabe, a
fase de prosperidade
internacional anterior
a 2008 escondia a gestação do colapso do sistema capitalista internacional, invertendo a
situação favorável. Os
preços internacionais
caíram, tanto para bens primários como para bens
industriais. Essa queda revelou a desagradável realidade de que tínhamos perdido competitividade
externa da indústria durante a bonança, mantendo,
embora de forma mais desacelerada, a tendência do
mais longo prazo, sempre desvantajosa para a periferia. Esse declínio de competitividade atingiu tanto
as exportações como a concorrência no mercado interno. O que é bem ilustrado pela participação relativa da indústria na formação do Produto Interno
Bruto (PIB) e na pauta de exportação (Gráfico 1).
A competitividade é determinada por variáveis
econômicas e institucionais, dentre as quais se destacam: a produtividade do capital e do trabalho, os
custos de infraestrutura, em especial de energia e
transporte, e as políticas macroeconômicas, em especial a política cambial.
Quanto à produtividade, houve uma queda relativa frente aos parceiros comerciais, devido tanto ao
capital industrial por não ter evoluído o suficiente
para ganhar mais produtividade do trabalho, quanto
ao enfrentamento de uma rápida evolução do salário
real desde 2005 – pelo menos para a camada inferior
dos salários. Os gargalos da infraestrutura de transporte e de energia, fruto de décadas de sucateamento e de má regulamentação, foram outras fontes de
elevação de custo. Em especial, porque a burocracia
estatal torna muito lentas as obras de retomada da
ampliação dessa infraestrutura.
A continuidade das políticas macroeconômicas
que privilegiam a acumulação financeira – com a
manutenção de altas taxas reais de juro – e mantêm
a flutuação cambial foi o mais importante fator na
84
elevação dos custos industriais. A política de flutuação cambial, em particular, que permite uma tendência permanente de valorização do real, tornou-se
a causa principal da desvantagem de nossa indústria. A característica da variação cambial, de agir no
curto prazo e com grandes margens de flutuação das
taxas, pode desfazer em um mês ou menos ganhos
de produtividade e de custos de infraestrutura acumulados em anos.
3. O comportamento do capital
industrial frente à crise
Mesmo com esse conjunto de fatores adversos, a
fase de prosperidade deteve a queda da participação
da indústria no PIB, que vinha se acentuando desde
a década de 1990 (ver Gráfico 1). Assim, o crescimento mais acelerado da economia concentrou-se
nos setores primário e de serviços. O enfraquecimento relativo da indústria continuou pela perda de
mercados externos e pela abertura de espaço para o
avanço da importação, que inundou de manufaturas
o mercado nacional.
Mesmo nos anos de crescimento acelerado,
parte da produção industrial nacional já começava
a migrar. Insumos começaram crescentemente a
ser importados de países rivais, transferindo crescentemente a produção para o exterior. Um movimento que vem encurtando a cadeia de produção
interna e a agregação de valor. Em vários casos a
indústria limitou-se apenas a montar no país seus
produtos finais ou transformou-se em empresa
importadora.
Economia
Tabela 1 - Exportações e importações de bens
industriais entre Brasil e países industrializados
em crise (EUA, Europa Oc., Japão) - US$ milhões
Exportações
Importações
Déficit BR
Crescimento 2001-02
(recessão)
0%
-13%
-61%
2001
24.656
41.098
-16.442,5
2002
26.074
34.211
-8.137,2
Crescimento 2003-06
(crescimento)
84%
48%
-66%
2003
29.619
32.838
-3.219,4
2004
37.641
39.812
-2.170,9
2005
42.317
45.471
-3.153,8
2006
47.860
50.629
-2.769,3
Crescimento 2007-13
(crise)
4%
143%
+2.638%
2007
53.965
65.493
-11.527,2
2008
58.148
89.692
-31.544,4
2009
37.769
71.789
-34.020,7
2010
45.467
95.304
-49.837,1
2011
54.625
114.500
-59.875,6
2012
52.783
114.797
-62.013,6
2013
49.930
122.993
-73.063,9
Fonte: Comex, MDIC
A situação agravou-se rapidamente após a inversão dos termos de troca e à medida que o grande
capital, pondo em dúvida a viabilidade da estratégia
“neodesenvolvimentista” frente à continuidade da
crise internacional, reduziu seu investimento e mais
ainda a participação de capital próprio no financia-
mento do investimento. Como se vê na Tabela 1, o
grande déficit explodiu no período da crise (2007 em
diante), quando os grandes países industriais com
seus custos de trabalho deprimidos pelos cortes de
direitos trabalhistas e pelo desemprego aproveitaram a chance de invadir um dos únicos mercados
internos do mundo que mantiveram sua expansão e
permaneceram abertos à importação.
Em termos políticos, esse novo posicionamento
do grande capital, em especial a partir de 2012, levou
à quebra do equilíbrio na base social que sustentava
o governo, permitindo o avanço das oposições.
4. A continuidade do esforço do
crescimento num mundo hostil
e a divergência com as classes
dominantes
Mesmo tendo o mundo mudado após 2008, o
governo Dilma persistiu na estratégia “neodesenvolvimentista”. Diante da situação cada vez mais
premente da perda de competitividade, seu governo
adotou várias iniciativas para recuperar a competitividade, ao tempo em que mantinha a política distribuidora de renda via benefícios sociais e os ganhos
reais do salário-mínimo.
Sua primeira iniciativa, no entanto, inovou a estratégia com uma mudança na política de juros com
o objetivo de desestimular a entrada de dólares especulativos no país e, assim, reduzir a valorização
do real, principal problema a afetar nossa competitividade. Por iniciativa do Banco Central, em agosto
de 2011, houve uma mudança radical na política de
juros altos com a rápida e progressiva redução da taxa
básica. A inédita iniciativa, que mexia na política monetária, também trazia
ganhos para a economia
e o fisco: reduzia o custo do crédito doméstico
e aliviava o aumento
do custo fiscal do subsídio à crescente carteira de financiamento do
BNDES. Como se vê no
Gráfico 2, a redução na
taxa de juros real atingiu valores inferiores
a 2% ao ano em 2013.
Entretanto, a redução
não teve nenhuma ação
sobre o câmbio, que
continuou a se valorizar.
Além disso, a partir de
2012, ocorreu uma ines-
85
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
perada elevação da taxa de inflação que, depois, se
mostrou persistente. Esses resultados adversos fizeram com que a política perdesse sustentação ao longo
de 2012, e o BC abandonasse a iniciativa, em meados
de 2013, retomando a elevação dos juros(Gráfico 02).
A derrota deveu-se à inesperada ação do FED
(Federal Reserve) em retomar sua política de “afrouxamento quantitativo” (quantitative easy) de 20082010, emitindo, no período 2011-2013, um trilhão e
meio de dólares, 10% do PIB dos EUA, com o objetivo de desvalorizar o dólar (Tabela 2). Uma iniciativa
que logo foi seguida pela ação defensiva dos maiores
bancos centrais do mundo em defesa de suas moedas, fazendo emissões que, no seu total, atingiram
alguns trilhões de dólares. Com a desvalorização
do dólar frente às demais moedas, essa verdadeira
“guerra cambial” neutralizou a política brasileira
desde seu início, fazendo o real não só manter sua
valorização como aumentá-la.
Tabela 2 - Emissão monetária dos principais bancos
centrais pós-crise – Valor de ativos em carteira dos
bancos centrais, em % do PIB de cada país
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
B. Inglaterra
5
18
15
18
20
27
27
BCE
15
21
20
21
25
32
23
FED
5
12
20
21
28
31
22
B. Japão
24
27
28
28
30
33
21
Fonte: FMI
Sem conseguir resolver o principal problema que
afetava a competitividade, o governo voltou-se para
outras soluções. Empenhou-se então em um grande
esforço para reduzir o custo do investimento privado
e reduzir os custos de infraestrutura.
Para financiar o investimento, o BNDES ampliou
ainda mais sua carteira de empréstimo, a juros subsidiado. Lançou-se mão também de isenções tributárias, dirigidas tanto à produção interna como à
exportação. Mas a contrário senso, os investimentos
privados continuaram seu recuo, iniciado em 2010,
com o capital mantendo-se em defensiva, e passando a pleitear um ajuste fiscal frente ao retorno da
inflação e ao enfraquecimento fiscal do governo.
Mesmo diante da mudança de posição do capital
frente ao investimento, os recursos baratos e abundantes de financiamento continuaram a jorrar. Mas,
em vez de se somarem aos recursos privados, o financiamento apenas substituiu os recursos privados (Tabela 3). Como resultado, a expansão do financiamento fez com que, na prática, o BNDES e outros bancos
públicos se tornassem os principais financiadores de
todo o investimento privado, além de financiar a forte
86
expansão das empresas estatais. Na prática, o financiamento do investimento de capital foi estatizado.
Tabela 3 - Fonte de financiamento do
investimento privado em % do total
Média
2006-08
2009-13
Fontes públicas
47,7
60,0
Fontes privadas
52,3
40,0
Fontes: Ministério da Fazenda; Ministério do Planejamento;
Banco Central.
Elaboração própria.
Essa “estatização” do financiamento, juntamente
com a expansão das estatais, criou ainda maior desconfiança no capital, mesmo que dela se beneficiando.
Em outra frente de ataque, o governo voltou-se
para a redução dos custos internos, via incentivos
fiscais e redução de tarifas de infraestrutura, trazidas por novas regulamentações em dois importantes
setores: o da energia elétrica e o dos portos. Ações
que também teriam efeitos sobre a taxa de inflação,
reduzindo a pressão sobre os preços.
As isenções fiscais se sucederam sempre de forma pontual destinando benefícios para segmentos
específicos ou tipo de produtos a este ou àquele setor, numa enxurrada. Elevando sobremaneira o custo fiscal, sem contrapartida visível nos preços.
Já as iniciativas de regulamentação da energia
elétrica e dos portos – embora corretas – terminaram
por prejudicar ainda mais a relação do governo com
os grandes capitais.
Embora a reforma das tarifas de energia tenha
gerado de imediato uma redução expressiva dos
custos industriais, causou forte perda de caixa para
as operadoras do sistema e gigantescos prejuízos a
fundos de investimento em ações e deprimiu a bolsa de valores, gerando hostilidade das operadoras e
de todo o mercado financeiro. Por outro lado, a crise
hídrica de 2013-2014 terminou por elevar as tarifas
acima dos valores anteriores, anulando de imediato
o ganho obtido e ainda obrigando o governo a socorrer as distribuidoras de energia, criando outro passivo para o Estado. Já a reforma da regulamentação do
setor portuário, apesar de trazer mudanças reclamadas por um setor de novos investidores, desagradou
fortemente o grupo de antigos operadores concentrados nos grandes portos (Santos, Paranaguá, Rio
de Janeiro etc.). E como os efeitos positivos de novos
portos levarão anos para aparecer, restou, de imediato, o confronto político com esse setor do capital.
Essas ações também fracassaram. Não geraram,
de imediato, nenhum efeito sobre a competitividade
e nem mesmo sobre a taxa de inflação, que manteve
Economia
sua tendência de alta. Por outro lado, trouxeram uma
hostilidade generalizada dos grandes capitais financeiros e produtivos contra o governo, e que ainda permaneceram frustrados pela não adoção de um ajuste
fiscal que trouxessem medidas anti-inflacionárias,
reduzindo a demanda e afetando a renda dos trabalhadores. Colocado contra a parede, o governo Dilma
fez a opção por manter os ganhos do trabalho e a elevação dos gastos públicos, na tentativa de manter a
demanda e proteger o nível de vida do povo. Embora o
nível de consumo do povo tenha se mantido, o estado
da economia só piorou, juntamente com a competitividade externa. Pela primeira vez, a economia ia mal,
enquanto o povo continuava bem. Mas a situação tornou-se insustentável, gerando uma crise de confiança.
5. As consequências indesejadas da
estratégia no sistema internacional
em crise
Dessa forma, com a persistência da crise internacional, a continuidade da estratégia de elevação da
renda interna das camadas mais baixas (por benefícios previdenciários e assistenciais e pela valorização
do salário mínimo) acabou por agravar o conjunto
dos problemas.
Por um lado, com a continuidade da política distributiva a demanda continuou a subir, mas por outro lado, graças à reação defensiva do capital, não
houve contrapartida na produção. O que aumentou
a oportunidade de exportação para o Brasil por parte
de países industriais em crise e para a China. Viabilizando a sobrevivência de capitais que não mais
contavam com seus mercados internos em forte
recessão. Ao contrário do pretendido, em vez de o
mercado interno fazer crescer os capitais internos,
ampliando seus investimentos, ajudou a acumulação de capitais nos países industriais.
A estratégia “neodesenvolvimentista”, com o
“tripé” macroeconômico, passou a ser contraproducente com o crescimento, a expansão do capital nacional e uma melhora sustentada das condições de
vida do povo. Não por ser uma estratégia equivocada
desde o princípio, mas por não ter sido adaptada a
uma situação de crise internacional sistêmica, que
gerou medidas agressivas dos EUA e do centro capitalista, criando um ambiente hostil ao crescimento
da periferia. E o problema central, mas não único,
foi o não rompimento com o “tripé” de políticas macroeconômicas, especialmente coma livre flutuação
cambial. Isso talvez pudesse ser feito nas condições
políticas de 2010 e 2011, mas essas condições se perderam daí em diante, coma inversão da correlação
de forças com o conservadorismo.
6. A imposição do ajuste fiscal
Por essa situação insustentável e pela inversão da
correlação de forças, a proposta do capital do ajuste
fiscal acabou por se transformar em uma opção inelutável.
O que falta é investimento e produção e, mas a
realidade é que o grande capital não se dispõe a fazê-lo enquanto a inflação não seja debelada, o setor
estatal volte a se ajustar e o Estado retorne a sua condição de produzir superávit para dar sustentação ao
valor da dívida. O que só se pode alcançar com o ajuste fiscal. Para o capital são essas as únicas condições
que trarão de volta a competitividade e o crescimento.
A teoria ortodoxa, mesmo não sendo correta, é aquela
em que o capital acredita, o que faz com que ela possa
mudar as expectativas em uma situação crítica.
Medidas que mantenham a demanda e a elevação
da renda do trabalho, na atual situação, resultarão
apenas em um desastre de inflação alta, déficit fiscal,
crise nas contas externas e perda de divisas, forçando um ajuste fiscal ainda mais radical e draconiano.
Mesmo que o ajuste fiscal não traga garantia de uma
breve retomada do crescimento, ele tornou-se, infelizmente, na única opção politicamente disponível.
É útil relembrar que, enquanto vivermos no capitalismo, a variável principal da economia é a acumulação do capital. E, a contrário senso, o que move a
acumulação é a expectativa de maior taxa de lucro e
o baixo risco, não apenas a demanda. São as limitações próprias do capitalismo e de suas crises.
Desse modo, concluo que o ajuste fiscal na situação da política atual deve ser considerado seriamente. Não para substituir a estratégia do “neodesenvolvimentismo”, mas como instrumento emergencial
à manutenção dessa estratégia em longo prazo. A
estratégia dos governos Lula não se mostrou errada;
o problema, a meu ver, foi não ter havido sua adaptação às condições da crise, introduzindo medidas
defensivas, como fizeram outros países, em defesa
da economia nacional.
Embora sejam claros os limites da atual correlação de forças, não é possível ser favorável a qualquer
medida adotada pelo ajuste fiscal. É necessário manter a defesa dos direitos dos trabalhadores e de suas
conquistas sociais. Os ajustes devem ser efetivos para que haja uma reversão das expectativas, devendo surtir efeitos ainda em 2015, mas não podem ser
centrados na redução da proteção do emprego, da
renda do trabalho e dos direitos conquistados.
* Lecio Morais é economista, mestre em Ciência
Política e assessor parlamentar na Câmara dos
Deputados
87
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Terceirização:
um velho fantasma
(1)
Tamara Naiz Silva*
Movimento sindical luta há mais de uma década contra o projeto que pode representar um retrocesso histórico poara os trabalhadores
Historicamente, o capital sempre buscou se
valorizar a partir da desnutrição dos direitos dos
trabalhadores. A volta à tona do fantasma da
terceirização é mais um capítulo dessa disputa.
O PL 4330 de 2004 é nocivo aos trabalhadores e
à sociedade, de modo que não podemos permitir
que se efetive como lei
88
Brasil
A
partir do final da década de 1970
Na dimensão do mercado de trabalho, a busca da
houve uma forte reorganização
flexibilidade exige a “livre contratação” entre capital
produtiva que impôs sérias consee trabalho, sem nenhum tipo de restrição; exige a
quências econômicas e sociais aos
“livre negociação” sem intervenção e regulamentatrabalhadores ao redor do mundo.
ção por parte do Estado. A finalidade é flexibilizar
Ela se manifestou de distintas fora jornada de trabalho, a remuneração e os direitos
mas nos espaços nacionais, mas, como tendência
sociais existentes. Na mesma direção, merecem ser
geral, induziu as empresas (as grandes corporadestacados os novos tipos de relacionamento entre
ções) a adotarem mudanças organizacionais, toras empresas, através das diversas formas de subconnando-se mais enxutas, flexíveis e descentralizadas,
tratação, em especial a terceirização; todas com o
tanto nos processos de produção como nos de disobjetivo de diminuir custos e de reduzir o efetivo de
tribuição. Em outras palavras, as grandes e médias
mão de obra ao mínimo possível. O movimento parte
empresas repassam atividades e
das empresas maiores, detentoras
funções para outras, através da
de mais poder, transferindo resterceirização, da subcontratação,
ponsabilidades e riscos para as meA partir do final da
da organização dos condomínios
nores (FILGUEIRAS, 2012).
década de 1970,
industriais e do consórcio moNo período aqui citado, a partir
a desregulação
dular. Assim, em termos gerais,
do final da década de 1970, a desocorre uma concentração e cenregulação econômica se deu sob o
econômica se deu
tralização de capital com descondomínio do capital financeiro, sensob o domínio do
centração da produção e aumendo a partir dela edificados diferento da flexibilidade organizacional
tes tipos de flexibilidade, entre os
capital financeiro,
(KREIN, 2001; SILVA, 2013).
quais:
sendo a partir
Em linhas gerais, podem ser
citadas importantes mudanças no
“A Flexibilidade produtiva ou
dela edificados
mercado de trabalho a partir de
organizacional: quando as emdiferentes tipos de
tais premissas e que afetaram o
presas, dada a crescente instabiliflexibilidade
sindicalismo e as relações de tradade e insegurança com a globalibalho, sendo que as principais muzação financeira, reestruturam-se
danças vieram já durante a década
para se tornarem mais integradas e
de 1980 e na primeira metade da
flexíveis, através da adoção de uma
década de 1990, em boa parte dos países europeus.
série de novos métodos organizacionais (como kanban, just in time, trabalho em grupo, células de produEssas mudanças foram, conforme Krein (2001, p.
ção, condomínio industrial, consórcio modular etc.),
25-26), de dois tipos: 1) as que proporcionam um deou a implementação de novas estratégias por parte
sequilíbrio contra os trabalhadores, com o aumento
das empresas (como descentralização, focalização na
do desemprego, a diminuição dos servidores do seatividade fim, terceirização etc.). Trata-se, em síntetor industrial, o aumento dos trabalhadores do setor
se, da flexibilidade introduzida pela reestruturação
de serviços e a perda de dinâmica do setor público
da empresa, de forma a possibilitar o ajuste do uso
em gerar novos empregos; 2) as que introduzem noda força de trabalho, o que pode ocorrer de forma
vas formas de uso do trabalho, tais como o aumenparalela e independente da alteração via negociação
to das ocupações precárias nas pequenas empresas
coletiva ou lei. Todo esse processo redefine a forma
e na economia informal, principalmente através da
da relação capital e trabalho e do envolvimento do
reestruturação produtiva (terceirização); o aumento
trabalhador na empresa. Com as pessoas que sobredo trabalho clandestino não registrado (estrangeiro
vivem ao processo de reestruturação, as empresas
e trabalho em casa) e o crescimento do trabalho atíprocuram ajustar a organização do trabalho, mepico (trabalho em tempo parcial, contratos por prazo
xendo na forma de estruturar as funções (adoção
definido, contratos de formação profissional).
da polivalência) dos trabalhadores e em disposições
Essas formas diferentes do uso do trabalho foram
que permitem uma mobilidade interna maior. Enjustificadas pela necessidade de flexibilizar e reduzir o
fim, buscam internalizar a determinação do uso do
custo do trabalho. Sob o impacto dessas transformatrabalho. (...)
ções o movimento sindical passou a vivenciar, sobreA Flexibilidade quantitativa ou numérica: amtudo a partir dos anos 1980, crescentes dificuldades de
plia a liberdade das empresas para empregar e demiatuação e queda da taxa de sindicalizados (2) (tanto
tir de acordo com as necessidades da produção, atrana indústria, como no mercado de trabalho em geral).
89
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
vés de uma estratégia de diminuição de custos. Ela
as implicações dessa reestruturação produtiva nas
pode acontecer tanto para trabalhadores já emprerelações de trabalho podemos citar: A) Ela tem cogados, com a terceirização e subcontratação, como
mo consequência o estabelecimento de negociações
para trabalhadores novos, através de contratos “atídescentralizadas, já que os interesses entre os trabapicos” (trabalho temporário, parcial, autoemprego,
lhadores terceirizados e os da empresa-mãe tornam-se
consultoria, a domicílio, teletrabalho) e ilegais (sem
cada vez mais diluídos; B) os processos de descenregistro em carteira), ou pelo aumento do trabalho
tralização, terceirização e deslocamento para outra
clandestino não registrado (trabalho estrangeiro, esregião são utilizados para diminuir o poder sindicravo e em casa). Consiste, então, nas iniciativas que
cal; como disse Krein, “ajustar” os instrumentos
facilitam o ajuste da força de trabalho à demanda da
normativos e pressionar no sentido do aumento da
empresa, podendo ser implemenprodutividade, como também para
tada como:
reduzir o número de trabalhadores
presentes nas categorias organiza• Flexibilidade de demissão
A terceirização
das. Desse modo, essas novas esdos trabalhadores, quando se
tratégias proporcionam, um nível
ampliam as causas que justificam
e a polivalência,
maior de flexibilidade organizaa demissão ou diminuem o monpraticadas sob a
cional as empresas (KREIN, 2001).
tante da indenização na rescisão do
navalha da ameaça
Desse modo, o processo de mucontrato. São as iniciativas de redanças
vivenciado impacta profundução de custos da rescisão e/ou a
recorrente do
damente nas relações entre capital
eliminação de mecanismos de iniprogresso técnico
e trabalho. Para a grande maioria
bição da dispensa imotivada.
das populações, ao provocar o sur• Flexibilidade na contratasobre a condição de
gimento do desemprego estrutural
ção, quando se flexibilizam as foremprego, deram às
e das mais variadas formas de premas de ingresso dos trabalhadores
carização do trabalho, esse procesna empresa, adotando incentivos de
empresas um poder
so atinge o item fundamental que
entrada, como contratação por temimportante de gestão
estrutura a vida das pessoas, qual
po determinado, jornada parcial,
da mobilidade do
seja, o próprio trabalho. Essa precontratos de experiência, contratos
carização atinge ainda a própria
temporários, estágios etc.” (KREIN,
trabalho segundo
identidade e representação dos
2001, p. 30-31, grifos no original).
seus interesses
trabalhadores, por meio do recurso
de destruição e segmentação dos
Essas alterações na produção,
coletivos e classes de trabalho, propossibilitadas pelas inovações técmovidos pelas práticas de subconnicas e organizacionais, foram protratação e de terceirização, que desvinculam parcelas
gressivamente corroendo a densidade do contrato de
crescentes dos trabalhadores das grandes empresas e
trabalho por tempo indeterminado, instabilizando o
agravam a crise dos sindicatos.
trabalho assalariado. Ao mesmo tempo a terceirização
Aterrissando na especificidade do caso brasileiro,
e a polivalência, praticadas sob a navalha da ameaça
já nos anos 1990, enquanto o governo buscou privirecorrente do progresso técnico sobre a condição de
legiar a atuação dos agentes privados, com suas deemprego, deram às empresas um poder importante
cisões de curto prazo, a abertura comercial expôs o
de gestão da mobilidade do trabalho segundo seus insetor produtivo nacional, sobretudo a indústria, a
teresses. Na perspectiva dos trabalhadores, passou a
uma concorrência destruidora, que levou à desnacioser fundamental defender a simples situação de emnalização ou ao fechamento de parte de seu aparelho.
prego, perdendo espaço para as demandas relativas
Essa nova realidade econômica impôs às emàs condições de trabalho (DEDECCA, 2010; BRAGA,
presas que se mantiveram instaladas no Brasil um
1997; KREIN, 2001; SILVA, 2013).
rearranjo, a partir de um forte processo de reestruSão bastante distintas as estratégias adotadas peturação produtiva. As empresas promoveram signilas empresas, mesmo assim é possível perceber que
ficativos cortes de pessoal, se desverticalizaram (3),
todas elas implicam uma reorganização produtiva,
centraram o foco de suas atividades em segmentos
alterando os processos de trabalho e, em decorrênde mercado nos quais possuíam maior capacidade de
cia, as relações de trabalho, sobretudo nos setores
competição, redefiniram produtos e processos, adoeconômicos mais dinâmicos. A empresa organiza-se
taram técnicas de produção flexíveis, poupadoras
de maneira mais flexível e, portanto, procura obter
de mão de obra, e pressionaram pela flexibilização
relações de trabalho, também, mais flexíveis. Entre
90
Brasil
Gustavo Lima/Agência Câmara
Deputados erguem cópias ampliadas de carteiras de trabalho em sinal de protesto contra a aprovação do PL 4330 na Câmara
das relações com seus trabalhadores. Souza (2007)
aponta ainda que colocaram em prática, também,
um acentuado processo de descentralização produtiva, que transferiu plantas industriais para espaços
geográficos caracterizados por níveis mais baixos
de organização e remuneração da força de trabalho e maiores incentivos fiscais. Nesse contexto, essas novas ocupações, ainda que ligadas à atividade
industrial, são cada vez mais instáveis e precárias.
Segundo dados da Pnad, o grau de formalização da
indústria de transformação caiu de 72,5%, em 1989,
para 62,9%, em 1999.
A literatura sobre o tema demonstra que as
inovações mais comuns nas empresas são os “novos métodos de organização” da produção e do
trabalho e da gestão do trabalho e da produção,
devido, entre outros fatores, ao ambiente de incerteza econômica que o país viveu nos anos 1990.
Novos equipamentos são caros e o investimento,
no momento de incerteza, tende a cair. A esse respeito Mattoso e Pochmann, no artigo “Mudanças
estruturais e o trabalho no Brasil nos anos 90”,
destacam que:
“(...) diante da permanência de um cenário econômico desfavorável nos anos 90, com dificuldades
de introdução da inovação tecnológica, algumas empresas estariam utilizando apenas parcialmente a
tecnologia de produto e processo, enquanto a maioria delas estaria obtendo ganhos de produtividades
a partir de algumas transformações na natureza do
trabalho, das qualificações e do processo de trabalho” (MATTOSO; POCHMANN, 1998, p 20).
Embora sejam as mudanças organizacionais as
mais comuns, elas ocorrem de forma bastante desigual, considerando o conjunto da estrutura produtiva. Observa Krein (2001, p 90) que, em grande
parte das empresas “ainda predomina o uso do padrão predatório da força de trabalho”. Apesar disso,
a reestruturação está presente nos setores onde há
maior tradição de negociação coletiva no Brasil. Por
isso, mesmo que ela apareça de forma desigual,
faz-se necessário discutir suas principais características. Entre elas, destacam-se:
• A relação entre as empresas (desverticalização,
focalização, terceirização, parcerias e incorporação,
consórcio modular e condomínio industrial);
• a organização geral da empresa (desdepartamentalização, criação de unidades de negócios, minifábricas, novos critérios de contabilidade de custos etc.)
• a organização da produção (produção enxuta,
just in time/Kanban e manufatura celular);
• a organização do processo de trabalho (controle
estatístico de processos, trabalho polivalente e trabalho em grupos);
• a gestão do trabalho e da empresa (programas
de qualidade total, redução dos níveis hierárquicos,
“gestão ou sistemas participativos”, Círculos de Controle de Qualidade, participação nos lucros ou resultados/remuneração variável, bancos de horas/ modulação da jornada e outros) (KREIN, 2001, p. 90-91).
91
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Nova forma de organização do trabalho procura conquistar a
confiança dos trabalhadores com o discurso de participação,
promovendo entre eles uma competição
De forma generalista, são mudanças que
pretendem, do ponto de vista da empresa, um
movimento de racionalização da produção e dos
custos, uma tentativa de melhorar o controle da
empresa sobre o processo de trabalho e produção e
uma tentativa de mudar a atitude do trabalhador
perante a empresa – de uma atitude de “trabalhador”
para uma de “colaborador ou parceiro”. Trata-se de
um processo cuja justificativa está na preparação da
empresa, a partir de uma flexibilidade maior e integração, para as novas condições de competitividade, procurando fazer com que o trabalhador seja seu
“parceiro” nesta empreitada.
É notável que tenha havido, nos anos 1990, no
Brasil, um processo de reestruturação produtiva alicerçada mais nas inovações organizacionais do que
nas tecnológicas. Além disso, a reestruturação foi
favorecida também pela “estratégia de desenvolvimento”, que privilegia a busca da “microeficiência”
(eficiência das empresas e não do conjunto da economia). Isto é, o governo brasileiro apostou num
modelo de desenvolvimento que seria a partir da
maior capacidade de competitividade das empresas
aqui instaladas, desse modo desenvolveu uma política que tentava propiciar um ambiente econômico
de favorecimento das empresas para que adquiram
competitividade (DEDECCA, 2003). Enfim, cria-se
um ambiente institucional, político e econômico em
que a “salvação nacional” parece passar pela competitividade das empresas (BRASIL, 1998).
92
Para enfrentar essa nova realidade, as empresas
estabelecem novas estratégias, com implicações no
mercado e nas relações de trabalho. Estratégias que
são bastante distintas, como: 1) Organização da empresa em rede (4); 2) fusões, associações, parcerias,
aquisições, incorporações (5); 3) combinação de unidades produtivas mais descentralizadas com uma diversificação (6); 4) descentralização combinada com
terceirização (7); 5) deslocamento de empresas (8).
Ao que parece esta nova lógica da organização da
produção é, do ponto de vista do proletário, contraditória, pois, ao mesmo tempo em que obriga os trabalhadores a uma nova forma de organização do trabalho e da produção (como as formas acima citadas:
terceirização, trabalho polivalente, programas de qualidade total, etc.) também quer, por meio das novas
formas de gestão do trabalho, conquistar a confiança dos trabalhadores com o discurso de participação,
com isso promovendo entre eles uma competição.
Assim, o processo de mudanças iniciado em âmbito mundial impactou de forma profunda nas relações entre capital e trabalho, acarretando variadas
formas de precarização do trabalho. Precarização
que alcançou até mesmo a identidade e representação de classe dos trabalhadores, por meio do recurso
de destruição e segmentação dos coletivos e classes
de trabalho, promovidos pelas práticas de subcontratação e de terceirização, que desvinculam parcelas
crescentes dos trabalhadores das grandes empresas
e agravam a crise dos sindicatos.
Brasil
O PL 4330/2004: A terceirização volta a
assombrar, agora com maior força
Logo ao iniciar o novo mandato presidencial e parlamentar, no ano de 2015, o fantasma da terceirização
volta a rondar com maior força que nunca o cotidiano dos trabalhadores brasileiros, isto porque o setor
empresarial tem se articulado e cobrado pelo avanço
da flexibilização das relações e direitos trabalhistas,
amplamente difundida no país nos anos 1990.
Neste início de legislatura, voltou à cena um Projeto de Lei (4330/2004), que dispõe sobre o contrato
de prestação de serviço a terceiros e as relações de
Acidentes de trabalho acontecem com muito mais frequência
entre trabalhadores terceirizados
trabalho dele decorrentes. Partindo da premissa de
que há necessidade de uma contínua regulação do
mundo do trabalho, esse projeto não pareceria ruim,
Ainda segundo diversos dados que vêm a conhemas em seu conteúdo são ressuscitados questões e
cimento público recentemente (9), torna-se transpaataques a direitos, trazidos à tona desde o início da
rente o fato de que o trabalho terceirizado tem uma
ofensiva neoliberal mundo afora. Dedico-me a aprequalidade menor em face aos postos de trabalho diresentar algumas dessas questões.
tos. Alguns desses dados escancaram a questão: para
Regular os contratos em regime de terceirizase ter ideia, pelos dados do Departamento (DIEESE),
ção é uma necessidade dada, mas
o salário de trabalhadores terceiesta lei, ao invés de avançar nesrizados é 24% menor do que o dos
Com a nova lei,
te ponto, garantindo mais direiempregados formais (DIEESE); tertos aos trabalhadores em regime
ceirizados trabalham, em média, 3
ficará mais difícil
terceirizado, retrocede no sentido
horas a mais por semana do que os
responsabilizar
de ampliar as possibilidades da
contratados diretamente (DIEESE);
terceirização, já em crescimento
terceirizados são os empregados que
empregadores
vertiginoso no país, para todas as
mais sofrem acidentes (DIEESE); a
que desrespeitam
áreas e os setores da economia. Em
maior ocorrência de denúncias de
os direitos
seu parágrafo segundo, do artigo
discriminação está em setores onde
4º, estabelece que: “O contrato de
há mais terceirizados (CUT); terceitrabalhistas porque
prestação de serviços pode versar
rizados que trabalham em um mesa relação entre a
sobre o desenvolvimento de atimo local têm patrões diferentes e
vidades inerentes, acessórias ou
são representados por sindicatos de
empresa principal
complementares à atividade ecosetores distintos. Essa divisão afeta
e o funcionário
nômica da contratante.”. Já em
a capacidade de eles pressionarem
seu artigo 5º o PL apresenta que
por benefícios. Isolados, terão mais
terceirizado fica mais
“São permitidas sucessivas condificuldades de negociar de forma
distante e difícil de
tratações do trabalhador por diconjunta ou de fazer ações como
ser comprovada
ferentes empresas prestadoras de
greves; a mão de obra terceirizada
serviços a terceiros, que prestem
é usada para se tentar fugir das resserviços à mesma contratante de
ponsabilidades trabalhistas. Entre
forma consecutiva”.
2010 e 2014, cerca de 90% dos traColocado dessa forma, o PL permite a terceiribalhadores resgatados nos dez maiores flagrantes de
zação mesmo nas atividades principais da empretrabalho escravo contemporâneo eram terceirizados
sa, também conhecidas como atividades-fim, coisa
(MTE). Com a nova lei, ficará mais difícil responsabique a legislação brasileira não permite atualmente.
lizar empregadores que desrespeitam os direitos trabaAlém disso, o artigo quinto deixa livres as subconlhistas porque a relação entre a empresa principal e o
tratações de forma ilimitada. E o trabalhador sairá
funcionário terceirizado fica mais distante e difícil de
fortemente prejudicado, pois a cada subcontratação
ser comprovada (TST). Como o trabalho terceirizado
seu salário será reduzido, de modo a garantir os lutransfere funcionários para empresas menores, isso dicros das empresas.
minuiria a arrecadação do Estado (TST).
93
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Uma pequena reflexão
A partir do retrospecto levantado, se torna aparente o modo pelo qual o capital busca se valorizar a
partir da desnutrição dos direitos dos trabalhadores.
A volta à tona do fantasma da terceirização é mais
um capítulo dessa disputa. O PL 4330 de 2004 é nocivo aos trabalhadores e à sociedade, de modo que
não podemos permitir que se efetive enquanto lei.
* Tamara Naiz Silva é doutoranda em História pela
Universidade Federal de Goiás e presidenta da
Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG).
Referências bibliográficas
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global – o padrão sistêmico de riqueza do capitalismo
contemporâneo”. In: TAVARES, Maria da Conceição & FIORI,
José Luis (org.). Poder e dinheiro: uma economia política da
globalização. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 195-242.
CARDOSO JR, José Celso. “Crise e desregulação do
trabalho no Brasil. Tempo Social”. In: Revista de Sociologia
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94
Notas
(1) Este artigo em parte se refere aos estudos, análises e resultados obtidos na pesquisa da dissertação de mestrado Financeirização econômica e mercado de trabalho no Brasil, defendida no
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
de Goiás, sob orientação do professor Dr. David Maciel.
(2) Mattos (2009) apresenta dados da OCDE (1991) que apontam
que a sindicalização na indústria de transformação, entre 1980 e
1988, baixou nos EUA, na Itália, na Inglaterra e no Japão, respectivamente de 35% para 22%, de 57% para 47%, de 64% para 41%
e de 35% para 32% do conjunto da força de trabalho empregada.
(3) A literatura sobre o tema apresenta que o movimento de desverticalização das grandes empresas foi amplamente marcado
pela terceirização de diversas atividades e pela recorrente utilização da subcontratação em substituição à contratação direta
da mão de obra. Dessa forma, as grandes empresas conseguiram
flexibilizar o uso da força de trabalho e aumentar a produtividade, transferindo custos e responsabilidades trabalhistas para as
subcontratadas (na maioria das vezes, conta própria ou pequenos
empregadores).
(4) Presente somente nas grandes corporações transnacionais, que
adotam o princípio da complementaridade das unidades produtivas.
(5) Processo mais comum também nas grandes empresas e nos setores mais dinâmicos da economia, como metalúrgicos, bancários,
farmacêuticos, energéticos e supermercados. Ao mesmo tempo,
porém, há um processo de desmembramento de empresas. Este
foi o caso de algumas grandes empresas estatais durante o processo de privatização; por exemplo, o setor energético de São Paulo
(KREIN, 2001).
(6) Diversificação de investimentos ou negócios. Mas, em outros
setores, ocorre o contrário, com a especialização produtiva ou de
prestação de serviços. Neste aspecto, a estratégia depende muito
da localização da empresa no mercado (KREIN, 2001).
(7) A terceirização aparece em todos os setores da economia, Ela
pode ser efetivada de diversas formas, desde o sofisticado condomínio industrial ou consórcio modular, até a informalidade, nos casos mais precários (exemplo: trabalho em casa, “parceria familiar”)
ou das “Cooperativas profissionais”. A terceirização, assim como a
parceria, a desregulação e a subcontratação, permite ao empresário fazer frente, sem qualquer ônus, às oscilações da demanda por
seus produtos/serviços. Em outros tempos, esse risco era parte do
negócio capitalista; agora, o ônus recai sobre o trabalhador. Trata-se de mais um mecanismo de socialização dos riscos do empreendimento, mantendo-se, no entanto, a apropriação individualizada
dos resultados.
(8) As empresas vão para regiões que apresentam vantagens comparativas, como incentivos fiscais e um preço mais baixo da força
de trabalho (devido ao grande excedente de trabalhadores(as) e à
frágil presença sindical).
(9) Os dados aqui apresentados têm como fontes: Relatórios e pareceres da Procuradoria-Geral da República (PGR), da Central
Única dos Trabalhadores (CUT), do Departamento Intersindical
de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e de juízes
do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Entrevistas com o auditor-fiscal Renato Bignami e o procurador do trabalho Rafael
Gomes. De forma mais completa, podem ser acessados no compilado feito pela revista Forum: www.revistaforum.com.br em
matéria de 08 de abril de 2015 intitulada “Nove motivos para
você se preocupar com a nova lei da terceirização”.
Brasil
REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL
Falsa solução no combate
à violência
Alice Portugal*
A injustiça social no Brasil
tem sentenciado por séculos,
com abandono e a falta de
oportunidades, os pobres, as
mulheres, os negros. Nestes
universos os mais jovens são
as vítimas preferenciais. Não
permitamos que uma suposta
maioria parlamentar, forjada pelo
financiamento privado indutor
desta pauta regressiva, violenta e
fundamentalista, apague lampejos
de esperança nestes jovens. É preciso
dizer NÃO à PEC 171/1993,
que propõe a redução da maioridade penal
P
aira sobre o país uma nuvem de retrocesso político, mesmo após um
processo democrático que legitimou o
governo popular da presidenta Dilma
e apontou caminhos para a mudança.
Em desatino por terem sofrido a quarta derrota
consecutiva, as elites econômicas, nacionais e estrangeiras, e seus partidos marionetes formam um consórcio oposicionista, com o amparo luxuoso da mídia
corporativa. Põem uma lupa na crise econômica mundial e tentam atribuir todas, mas todas as “culpas”,
ao governo, ao PT e à esquerda no Brasil. Entenda-se
por “culpas” os rigores pelos quais todo o mundo se
amarga com a disfunção do sistema do lucro.
E nesta ambiência desfavorável às forças democráticas, ressurge no Congresso Nacional uma pauta
regressiva, tentando descontinuar doze anos de incontestáveis avanços sociais.
95
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Bem ao contrário, os dados revelam que a redução da maioridade penal representaria um verdadeiro retrocesso quanto aos direitos adquiridos com a
aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Isto somado aos esforços de aprovação e efetivação
de inéditas políticas para a juventude. Estas passaram pela expansão da inclusão no ensino em todos os
níveis, incluindo a adoção de cotas sociais e étnicas,
soluções técnicas para quem está fora do binômio série/idade como o Pronatec, até a recente aprovação
do Plano Nacional de Educação (PNE) que, se posto
em ação, mudará o cenário educacional em dez anos.
Somos todos contra a violência
Deputada Alice Portugal (PCdoB-BA) é uma das poucas
vozes no Congresso Nacional que reverbera a posição de
movimentos contrários à redução da maioridade
A pauta é regressiva na política: segue a ameaça de
pedido de impeachment da presidenta, golpes e que tais.
Regressiva nos direitos: com a aprovação na Câmara dos Deputados do PL 4.330, que generaliza os
contratos terceirizados, rasgando a CLT, levando a
justos protestos a magistratura do trabalho e os trabalhadores.
Regressiva nos costumes: com tentativas de imposições nos códigos legais de conceitos religiosos, comportamentais e nos pactos de vivência consolidados
como cláusulas pétreas da nossa Constituição Federal.
Este é o caso da Proposta de Emenda à Constituição 171/1993, que trata da redução da maioridade
penal de 18 para 16 anos, que teve a sua admissibilidade aprovada, no fatídico dia 31 de março, na Comissão de Constituição de Justiça e Cidadania, por
42 votos favoráveis contra 17. A partir daí foi instalada, pela presidência da Câmara dos Deputados, uma
comissão especial para discutir o mérito do projeto.
Há méritos neste projeto?
Na compreensão de dezenas de especialistas em
direito criminal, de centenas deles na temática da
criança e do adolescente, e de milhares de militantes,
entre os quais me incluo, que lutam pela ampliação
de direitos para esta faixa da população, NÃO HÁ
QUALQUER MÉRITO NA PEC 171/93.
96
A violência é uma realidade a ser enfrentada nesta
sociedade de “massas”, elevada a uma potência desesperadora pelo fenômeno do tráfico de drogas e do
crime organizado no Brasil e em boa parte do mundo. Os crimes hediondos nos aterrorizam. As famílias
destroçadas merecem nosso apoio, solidariedade e
busca por justiça.
Porém, a mudança de um código legal não pode
ser movida pelo sentimento de vingança. O Parlamento não pode, não deve e não está autorizado pelo povo
a comportar-se como um colegiado de justiceiros.
O debate racional, com base em dados científicos
e da realidade concreta, deve balizar a decisão a ser
tomada pelo Congresso Nacional. E neste terreno, os
dados têm desmentido os argumentos dos que querem “dar uma resposta” à sociedade contra a violência, reduzindo a maioridade penal.
Vamos aos dados: O jovem brasileiro, especialmente o negro e pobre, é antes de tudo vítima frequente a ilustrar os mapas da violência. Dados do
Mapa da Violência de 2014 apontam que, das 56.337
pessoas vítimas de homicídio no país em 2012,
30.072 eram jovens de 15 a 29 anos e, desse total,
23.160 (77%) eram negros (considerada a soma de
pretos e pardos). E são dados da Unicef que comprovam que, dos 21 milhões de adolescentes que vivem
hoje no Brasil, apenas 0,013% cometeu um ato com
a intenção de tirar a vida de outra pessoa. Ou seja,
dados exibidos por organismos insuspeitos estão aí
para nos demonstrar que o jovem brasileiro, em sua
esmagadora maioria, não é violento, não comete crimes e é, ao contrário, a principal vítima dos homicídios registrados no país.
É absolutamente falso o argumento de que jovens infratores ficam impunes.
O ECA prevê seis medidas educativas: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. Recomenda que a medida seja
Brasil
aplicada de acordo com a capacidaComo atuar
de de cumpri-la, as circunstâncias
para impedir
do fato e a gravidade da infração.
esta falsa
Ou seja, as crianças e adolescentes
saída contra a
de baixa renda – os reais atingidos
violência?
por medidas repressivas – já são, na
prática, criminalizados pelo EstatuPortanto,
está
to da Criança e do Adolescente.
chegada a hora de
Hoje sofrem medidas de recluas organizações de
são por até três anos e não têm gadefesa dos direitos
rantias processuais penais, como
humanos, da criança
remissão da pena pelo trabalho,
e do adolescente, da
sursis ou modificação do regime
União Brasileira dos
de cumprimento simplesmente
Estudantes (UNE),
O debate racional,
porque, por um jogo retórico, a
da União Brasileira dos Estudantes
“medida socioeducativa” de interSecundaristas (Ubes) – que sempre
com base em
nação não é considerada juridicaestiveram na linha de frente em dedados científicos
mente uma penalidade, embora o
fesa da juventude – contarem com
seja na prática.
e da realidade
todos os brasileiros e brasileiras de
Os dados incontestes estão aí
bom senso na luta contra a PEC
concreta, deve
para mostrar que o jovem brasilei171/2003.
balizar a decisão
ro, especialmente o pobre e negro,
A juventude brasileira não preé vítima e não criminoso. Os homicisa
de mais cadeia. Precisa de mais
a ser tomada
cídios de crianças e adolescentes
escola, mais emprego, mais saúde,
pelo Congresso
brasileiros cresceram vertiginosamais oportunidade.
mente nas últimas décadas: 346%
Nacional. E neste
A verdade é que o maior infrator
entre 1980 e 2010. De 1981 a 2010,
é
o
ESTADO que, ao não cumprir a
terreno, os dados
mais de 176 mil foram mortos e só
lei que vige, vulnerabiliza mais aintêm desmentido
em 2010, o número foi de 8.686
da o vulnerável.
crianças e adolescentes assassinaReafirmo a atualidade do ECA,
os argumentos dos
dos, ou seja, 24 por dia!
que ao mesmo tempo em que proque querem “dar
A Organização Mundial de Saútege pune com restrição de liberdade diz que o Brasil ocupa a 4ª poside o menor em conflito com a lei.
uma resposta” à
ção, dentre os 92 países do mundo
Cumpri-lo e até especializá-lo
sociedade contra a
analisados em pesquisa. Aqui são
é primordial para evitarmos o co13 homicídios para cada 100 mil
violência, reduzindo
metimento do erro da redução da
crianças e adolescentes; número de
maioridade penal, que já está sena maioridade penal
50 a 150 vezes maior que o de paído revogada em muitos países que
ses como Inglaterra, Portugal, Esa adotaram.
panha, Irlanda, Itália, Egito cujas
A injustiça social no Brasil tem
taxas mal chegam a 0,2 homicídios para a mesma
sentenciado por séculos, com abandono e a falta de
quantidade de crianças e adolescentes.
oportunidades, os pobres, as mulheres, os negros.
Por outro lado, de acordo com números do MiNestes universos os mais jovens são as vítimas prefenistério da Justiça, a reincidência nas penitenciárias
renciais. Não permitamos que uma suposta maioria
para adultos é de 70% a 85%, enquanto no sistema
parlamentar, forjada pelo financiamento privado insocioeducativo, segundo o Conselho Nacional de
dutor desta pauta regressiva, violenta e fundamenJustiça (CNJ), é de 43%. Os números atestam que
talista, apague lampejos de esperança nestes jovens.
a inserção dos menores nas penitenciárias aumenEntremos nesta luta em nome de uma sociedade
tará em quase duas vezes a possibilidade de o jovem
menos armada, que desenvolva uma cultura de vareincidir, ao passo que no sistema socioeducativo
lorização humana, de paz e gentileza.
sua possibilidade de recuperação é infinitamente superior, malgrado as péssimas condições, com raras
* Alice Portugal é deputada federal pelo
exceções, de nossos estabelecimentos destinados a
PCdoB/BA e exerce seu quarto mandato na
abrigar menores.
Câmara dos Deputados
97
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Eduardo
Galeano e
as mãos da
memória
José Carlos Ruy*
Galeano sai da vida e fica na
memória, na memória material
e tangível formada pelos livros
que escreveu, que continuarão
a despertar consciências
democráticas e avançadas
O
crítico Ronald Wright, do suplemento literário The Times, de Londres,
disse certa vez ser “impossível” definir o estilo de Eduardo Galeano.
Poderia ter ido mais adiante e indagado: quem foi Eduardo Galeano?
Jornalista? Filósofo? Historiador?
Galeano foi um autor que, mestre das palavras,
criou uma forma de definir os latino-americanos. Ele
não concordaria com o uso da palavra “criou”; na verdade, dizia ter sido nas ruas e nos cafés de Montevidéu que aprendeu o jeito de contar histórias que o
consagrou. Pode ser. Foi o estilo que o ajudou a definir
a América Latina e os latino-americanos. Não é exagero dizer que somente um escritor
uruguaio poderia fazê-lo. O Uruguai é uma espécie
de esquina da América do Sul, traço de união entre
os povos hermanos de tradição espanhola e aqueles,
do outro lado do Chuí, herdeiros do legado português. Tudo isso misturado com as heranças africana
e indígena, sobretudo o guarani. 98
Galeano unificou todos eles em seus escritos – os
“latino-americanos” da tradição espanhola e também aqueles da herança portuguesa, os brasileiros.
Somos todos latino-americanos, sentiu e ensinou.
Quem o conheceu não esquece a fineza no trato, a atenção e a gentileza que caracterizaram este
homem de letras que se sentia em casa nas cidades
de nossa terra. Um homem que sonhou com a liberdade, a igualdade, a solidariedade entre os povos do
mundo e, em seus escritos, foi uma voz sensível e
poderosa da gente que vive aqui. Enfrentou a ditadura, as ameaças dos esquadrões
da morte dos fascistas uruguaios, o exílio na Argentina e na Espanha (entre 1973 e 1985). Ele fez da memória sua ferramenta constante.
“A memória tem mãos”, disse em uma entrevista
ao jornal Brasil de Fato no ano passado. Em outra
ocasião, assegurou que a “memória guardará o que
valer a pena”. Foi com as mãos da memória que escreveu os
quase quarenta livros que publicou desde 1963. En-
Homenagem
tre eles, o clássico de nossa esquerda, As Veias Abertas
da América Latina (1971), que ajudou a despertar a
consciência política da resistência e marcou a luta
contra as ditaduras e o imperialismo dos EUA. Ou
outro clássico, a trilogia Memórias de Fogo (1982).
Livros indispensáveis que tiveram na memória a
matéria-prima fundamental para a tomada de consciência libertária, socialista, solidária.
Um câncer levou Eduardo Galeano em 13 de abril
de 2015, em Montevidéu. Ele tinha 74 anos de idade:
sai da vida e fica na memória, na memória material e
tangível formada pelos livros que escreveu, que continuarão a despertar consciências democráticas e avançadas. No futuro, quando as injustiças e contradições
contra as quais ele lutou estiverem superadas, permanecerão como testemunhos de dignidade e resistência.
Galeano se foi, mas sua memória permanece!
*José Carlos Ruy é jornalista. Texto publicado
originalmente no Vermelho (vermelho.org.br)
99
Ed. 136 – Maio/Junho 2015
Cinco livros essenciais para se
entender a obra de Galeano
Vanessa Martina*
1
As Veias Abertas da América
Latina (1971)
“Nós nos negamos a escutar as vozes que nos advertem: os sonhos do mercado mundial são os pesadelos dos
países que se submetem aos seus caprichos. Continuamos
aplaudindo o sequestro de bens naturais com que Deus, ou
o Diabo, nos distinguiu, e assim trabalhamos para a nossa
perdição e contribuímos para o extermínio da escassa natureza que nos resta”. O trecho consta no prefácio de Galeano
à edição do livro As Veias Abertas da América Latina (L&PM,
2010, 397 páginas, R$44).
Publicado pela primeira vez em 1971, o autor passou a
vida lamentando a atualidade da obra que, pela transcendência, marcou a esquerda latino-americana e chegou a ser
proibida na Argentina, no
Chile, Brasil e no Uruguai,
durante as ditaduras militares nesses países.
Do período colonial
até a contemporaneidade, passando pelas
ditaduras do subcontinente, a obra questiona:
“o subdesenvolvimento
é uma etapa no caminho
do desenvolvimento ou
é consequência do desenvolvimento alheio?”
e analisa a exploração
econômica e a dominação política na América Latina.
A obra ganhou ainda mais notoriedade quando em
2009, o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez o deu de
presente ao mandatário norte-americano, Barack Obama,
durante a 5ª Cúpula das Américas. Mas Galeano considerou, no final da vida, a obra ultrapassada. Em declarações
a jornalistas durante a 2ª Bienal do Livro de Brasília no
ano passado, o autor afirmou: “eu não seria capaz de ler de
novo. Cairia desmaiado. Para mim, essa prosa da esquerda
tradicional é chatíssima. Meu físico não aguentaria. Seria
internado no pronto-socorro”.
100
2
Memória do fogo
(1982-1986)
Publicado em forma de trilogia, o livro, premiado pelo Ministério da Cultura do
Uruguai e com o American
Book Award, distinção fornecida pela Universidade
de Washington, combina
elementos de poesia, história
e conto. É composto pelos livros Os Nascimentos (1982), As
Caras e as Máscaras (1984) e O
Século do Vento (1986) (L&PM,
2010, 1584 páginas, R$69).
Os livros trazem poemas,
transcrição de documentos,
descrição dos fatos e interpretação de movimentos sociais e
culturais, que compõem uma cronologia de acontecimentos, proporcionando uma visão de conjunto sobre a identidade latino-americana.
Como em As Veias Abertas, o livro propõe-se a ser
uma revisão da história da região, desde o descobrimento até nossos dias, para enfrentar a “usurpação da memória” da história oficial. Com textos independentes
que se encaixam e se articulam entre si, traz um quadro
completo dos últimos 500 anos. Apesar de manter a cronologia das histórias, o autor ignora a geografia para dar,
assim, uma melhor ideia da unidade da história americana, para além das fronteiras fixadas “em função de interesses alheios às realidades nacionais”, como definiu.
3
Dias e Noites de Amor e Guerra
(1975)
Vencedor do
Prêmio Casa das Américas de 1978, Dias e Noites de Amor
e de Guerra (L&PM, 2001, 200 páginas, R$ 19,90) é uma
crônica novelada das ditaduras de Argentina e Uruguai, um
relato autobiográfico, uma memória íntima, convertida em
memória coletiva.
Junto ao horror dos amigos que desapareceram, Galeano traz o amor, os amigos, os filhos, a paisagem, tudo aquilo
Homenagem
que ainda na escuridão de
uma guerra suja e desapiedada contra os mais fracos
segue sendo motivo para
viver, para defender as
ideias e para alçar a voz
contra os que atuavam impunemente para implantar
o medo e a conseguinte
paralisação. “Às vezes, sinto que a
alegria é um delito de alta
traição, que sou culpado
do privilégio de seguir
vivo e livre. Então me faz
bem lembrar o que disse o cacique Huillca, no Peru, falando
diante das ruínas: ‘aqui chegaram. Quebraram até as pedras. Queriam nos fazer desaparecer. Mas não conseguiram,
porque estamos vivos’. E penso que Huillca tinha razão. Estar vivos: uma pequena vitória. Estar vivos, ou seja: capazes
de alegria, apesar dos adeuses e os crimes”, como consta na
contracapa do livro.
4
Os filhos dos dias
(2012)
Os Filhos dos Dias (L&PM, 2012, 432 páginas, R$ 49) se
inspira na sabedoria maia e traz 366 relatos que compõem
a história, desde a Antiguidade até o presente. É baseado
em uma versão do Gênesis que Galeano escutou em uma
comunidade maia da Guatemala. “Se somos filhos dos dias,
nada tem de estranho que cada dia tenha uma história para oferecer”. Assim, o livro, escrito em forma de calendário,
traz episódios que ocorreram no México de 1585, no Brasil
de 1808, na Alemanha de
1933 e em outras épocas
e outros países.
A obra, que não pode
ser definida em nenhum
gênero por ser, ao mesmo
tempo, todos (jornalismo,
literatura, música e poesia), foi trabalhada ao longo de quatro anos. Teve
11 versões antes de ser
publicada. “Sou um perfeccionista insuportável”,
reconheceu Galeano. “É
um livro que dói, mas também faz rir”, disse.
A mulher, o poder, os maias, as culturas originárias, o homem, a legalização das drogas são temas presentes. Com um
olho no microscópio e outro no telescópio, Galeano forma
um mosaico que permite contemplar o micromundo, de onde
acredita que sai a grandeza do universo. “O prazer de encontrar essas histórias é descobrir o que não foi contado, ou que
foi mentido pelas vozes do poder: essas contravozes que o
poder oculta porque não convém a eles que saibamos”.
Em entrevista ao site mexicano La Jornada, disse: “Vivemos presos em uma cultura universal que confunde a grandeza com o grandinho. Creio que a grandeza alenta, escondida, nas coisas pequeninas, as pequenas histórias da vida
cotidiana que vão formando o colorido mosaico da história
grande. Não é fácil escutar esses sussurros quando vivemos
mal a vida convertida no espetáculo grande e gigantesco”.
5
Mulheres
(1997)
Mulheres (L&PM, 1998, 176 páginas, R$ 18) é uma
coletânea de textos publicados nos livros Vagamundo e outros contos, Dias e Noites de Amor e de Guerra, Memória do
Fogo (trilogia), O Livro dos Abraços e As Palavras Andantes.
De forma lírica e poética, o autor traz relatos de mulheres célebres, anônimas que, com sua
vivência,
deixaram
marcas no dia a dia
das pessoas com as
quais conviveram e,
por isso, devem ser
lembradas
O livro traz histórias de Charlotte
Perkins Gilman (18601935), escritora norte-americana,
cuja
produção literária enfoca as relações entre
mulher e homem e a
opressão da sociedade
em que viveu; da escrava Jacinta de Siqueira, “africana do
Brasil, fundadora da Vila do Príncipe e das minas de ouro dos
barrancos de Quatro Vinténs”; de Xica da Silva, escrava que
virou rainha no século 18; da revolucionária Manuela Saénz,
que junto a Simón Bolívar, seu amante, lutou pela independência das colônias sul-americanas; da compositora e cantora Violeta Parra, considerada a mais importante folclorista
do Chile e ainda de Frida Khalo, Tina Modotti, Evita, Carmem
Miranda, Isadora Duncan.
*Vanessa Martina, repórter especial
do site Opera Mundi, onde este texto
foi publicado originalmente
101
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