Amigo Secreto 2007

Transcrição

Amigo Secreto 2007
O MERCENÁRIO E O ABISMO
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Editor
JOSHUA FALKEN
[email protected]
Aqueles que não deixam
marcas na neve
Aguinaldo Peres
Coordenador
CHARLES DIAS
[email protected]
Revisão
BIA NUNES DE SOUSA
[email protected]
cascodatartaruga.blogspot.com
Editoração
CARLOS RELVA
[email protected]
www.carlosrelva.com
Para contatar os autores
Aguinaldo Peres
[email protected]
Ana Cristina Rodrigues
[email protected]
Carlos Relva
[email protected]
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A roseira de Isabel
Ana Cristina Rodrigues
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Estranhos acontecimentos na
casa 22
Carlos Relva
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O caminho para o inferno está
pavimentado com boas
intenções
Charles Dias
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Corações de ferro
Ernesto Nakamura
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Esperando o cavaleiro negro
no cavalo branco
Fernando Trevisan
36
Charles Dias
[email protected]
Ernesto Nakamura
A Relatividade e o Engenheiro
Joshua Falken
40
[email protected]
Fernando Trevisan
[email protected]
Joshua Falken
[email protected]
Leonardo Carrion
[email protected]
Marcelo Galvão
[email protected]
Jesus, aprendendo a pedir
Leo Carrion
Sonho ruim
Marcelo Galvão
50
Olhos azuis, manto rubro
Renato Arfelli
Renato Arfelli
Amargura
[email protected]
Roderico Reis
Roderico Reis
44
[email protected]
O sonho
Rose Santos
Rose Santos
58
62
64
[email protected]
Ubiratan Peleteiro
[email protected]
Idéias de dragão
Ubiratan Peleteiro
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EDITORIAIS
F
inalmente, aqui está o PDF do Projeto Amigo Secreto da Fábrica
dos Sonhos, com os contos escritos pelos participantes do projeto!
O projeto começou no ultimo trimestre de 2007, quando cada participante enviou uma imagem para servir de inspiração para um
conto. As imagens foram sorteadas entre os participantes, que teriam que escrever um conto de pelo menos 1000 palavras para
quem indicou a imagem. Depois, esses contos seriam reunidos
num PDF a ser postado para a lista. Embora o prazo de entrega
fosse no final de 2007, uma série de imprevistos forçou o adiamento... isto é, até agora!
Espero que os membros da lista se divirtam e que os participantes
do projeto gostem de seus presentes!
Joshua Falken
[email protected]
Diretor do Projeto Amigo Secreto
Literário de Natal
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E
screver por encomenda é uma das tarefas mais difíceis para
um escritor em início de carreira. E ter que fazê-lo a pedido de
outros escritores só faz com que o trabalho se torne trabalho digno
de um Hércules, já que esse tipo de leitor costuma ser muito exigente – e bem mais crítico.
Os operários da Fábrica dos Sonhos mostraram ser corajosos e
toparam esse desafio: a partir de imagens escolhidas por seus
companheiros, tinham que escrever um conto com até mil palavras
sobre o que viam em cada figura. Depois que as imagens foram
sorteadas e distribuídas, cada autor recebeu a incumbência de escrever um conto para outro escritor, como um ‘amigo oculto’ literário, pois só agora descobriremos quem escreveu o que e para quem.
O resultado está aqui: um apanhado da diversidade das pessoas
envolvidas nesse processo, que é também um interessante panorama da produção da própria Fábrica e, porque não, da ficção
especulativa brasileira que atualmente se renova.
A Fábrica dos Sonhos é um coletivo de autores brasileiros de Ficção Científica e Fantasia que, cansados de remar contra a maré do
desinteresse das editoras e de escritores sisudos demais, decidiram unir forças e distribuir apoio mútuo entre si. Na Fábrica, a produção e o debate de textos cria amizades, acende discussões e, o
mais importante, alimenta a imaginação e a criatividade dos envolvidos. Os inúmeros projetos agradam desde os fãs de microcontos
até quem adoraria escrever um romance em um grande universo
ficcional. Na rede desde 2004, a Fábrica tem-se tornado aos poucos um dos mais importantes pólos produtores da ficção
especulativa independente no Brasil, lançado novos nomes e agitando discussões no fandom.
Ana Cristina Rodrigues
[email protected]
Diretora da Fábrica dos Sonho
(http://br.groups.yahoo.com/group/fabrica_dos_sonhos/)
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AQUELES QUE NÃO
DEIXAM MARCAS
NA NEVE
Extasiada, apreciei pela escotilha o turbilhão de neve gerado pela passagem do
transporte orbital. Após um mês de viagem, observando as estáticas e longínquas estrelas, a dança caótica dos cristais de gelo era uma fascinante visão. Como seria agradável estar novamente ao ar livre, e não enclausurada em paredes de aço; poder sentir
o vento e o sol; ouvir a música de um planeta vivo, mesmo que o planeta em questão
vivesse sob um eterno inverno.
Afastei os olhos da neve e examinei meus companheiros de jornada: o jovem
casal de engenheiros trocando carícias no banco mais distante, os quatro operários
envolvidos em algum tipo de jogo de cartas estranho e barulhento, o geólogo perdido
num torpor químico para suportar o medo de voar, e o misterioso senhor X, na verdade
o empresário Elieser G. Siva, que nunca se separava de sua mochila em forma de um
longo cilindro. As mesmas faces, os mesmos gestos, os mesmos pensamentos: a pior
parte de qualquer jornada espacial sempre é o tédio.
Uma breve sacudida, quando os amortecedores inerciais foram desligados, deume uma nova esperança: havíamos aterrissado. Meu ouvido estalou com a mudança de
pressão e apressei-me para ser a primeira a atravessar a escotilha aberta por um dos
tripulantes. Que decepção! Haviam estendido um túnel de polititânio entre a nave e o
monotrilho que nos levaria à cúpula da mineradora. Um homem alto, vestindo um sobretudo com o logotipo do IIMPD, estendeu-me outro igual:
– Bem-vinda a Becrux-7, doutora Rachelle Haney. Sou o supervisor Todoske, do
Instituto Imperial de Mineração. Uma pediatra com o seu currículo é uma antiga reivindicação nossa. Por favor, vista esse casaco, a temperatura fora do domo está abaixo
dos dez graus centígrados.
Enquanto agradecia as boas-vindas e vestia o casacão, pensei em esclarecer ao
supervisor que minha formação era em clínica geral, mas desisti. Afinal, tinha sido
exatamente esse pequeno conhecimento de pediatria, que constava do currículo, que
me garantiu a residência. E eu precisava do salário, que viria acrescido do adicional por
planeta não colonizado. De qualquer forma, havia aproximadamente trinta crianças e
adolescentes, entre os quinhentos seres humanos vivendo no domo, portanto não esAQUELES QUE NÃO DEIXAM MARCAS NA NEVE
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perava grandes dificuldades. Não pensei mais no assunto, atravessei o túnel e senteime perto da janela no monotrilho. A neve continuava caindo suavemente de um céu
cinza claro sobre uma paisagem imaculadamente branca.
Com a passagem dos dias, percebi que não seria tão fácil deixar o domo. Por
causa da temperatura externa, que variavam entre os -15ºC e 10ºC durante o dia, as
saídas eram evitadas por todos. O máximo que consegui foi ser conduzida até um dos
pontos de observação, uma grande sala com a parede externa de vidro blindado. A
paisagem era grandiosa e, devo confessar, monótona: campos cobertos por neve e
grandes florestas de árvores finas como flechas, aos pés de montanhas brancas. Essa
era a paisagem padrão nos 573 dias que o gelado planeta Becrux-7 demorava para dar
uma volta em torno de Mimosa, seu sol.
Outro fato importante: Becrux-7 era uma reserva ecológica possuidora de um complexo ecossistema formado por vida animal e vegetal bem evoluída. Sua colonização
era proibida e as saídas, controladas. Por isso, a única instalação permitida pelo Império Solariano no planeta era o domo Robert Peary, do Instituto Imperial de Mineração
em Planetas Distantes, responsável pela extração e pelo refino automatizados de quinhentas milhões de toneladas, por ano solar, de minério de ferro, bauxita e níquel.
Felizmente, o IIMPD mantém um grupo de pesquisadores - geólogos, biólogos,
meteorologistas, entre outros; a maioria, homens.
Escolhemos um dia sem nuvens. Uma área de alta pressão atmosférica mantinha
nos céus um azul esbranquiçado. Éramos seis no grande veículo movido a células de
hidrogênio que funcionava como estação cientifica autônoma. Suas lagartas amassavam a neve enquanto se movia silenciosamente em direção à floresta mais próxima.
Era um dia quente e ensolarado para os padrões de Becrux-7. Vestíamos macacões
térmicos com capuz e usávamos óculos escuros, luvas e botas de cano alto. Nem
mesmo a presença do carrancudo senhor X e de dois oficiais de segurança me perturbava. Sentia-me feliz por estar novamente ao ar livre depois de tanto tempo.
Paramos à borda da floresta, e ajudei a descarregar os equipamentos de pesquisa
pela grande porta dupla traseira do veículo. No ar frio, nossa respiração se condensava em
pequenas nuvens diante do rosto, enquanto as pernas afundavam até as canelas na neve
acumulada. Parei um momento para observar as grandes árvores semelhantes a pinheiros.
– A flora e fauna daqui são um bom exemplo de convergência biológica – explicou
a botânica Izabela, a outra mulher do grupo. – A neve e o frio forçaram as árvores a se
desenvolver de forma similar ao pinheiro terrestre: casca grossa, folhas em forma de
agulha, poucos galhos com pequenas ramificações. Mas a semelhança termina na aparência; biologicamente, elas são bem diferentes. Por exemplo, elas produzem uma substância anticongelante que impede que se congelem à noite, quando a temperatura cai,
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AGUINALDO PERES
em casos extremos, a menos 20 ou 25 graus centígrados.
Roger, que gentilmente havia me convidado para participar daquela breve expedição científica, me passou o binóculo: – Essa substancia é absorvida pelos animais, que
assim adquirem mais resistência contra o frio. – Após algumas tentativas, seguindo a
orientação do biólogo, consegui ver um pequeno animal de pelagem marrom, correndo
pelo tronco escamoso de uma árvore. – É a versão local dos esquilos. Cuidado porque
eles são ariscos.
Estava tão absorvida, tentando acompanhar a movimentação do 'esquilo', que
tomei um susto ao ouvir a voz forte de Elieser:
– Eles chegaram, vamos! – Elieser seguiu para a floresta acompanhado pelos
dois brutamontes da segurança. Ainda demorei alguns instantes para identificar o estranho objeto que ele retirava de sua mochila cilíndrica: um rifle.
Eu e Izabela olhamos interrogativamente para Roger que meio sem jeito tentou
explicar:
– O Instituto Solariano de Preservação nos autorizou a capturar um lupus betacrusis
e nos enviou um caçador profissional.
– Um caçador!? Aquilo não me pareceu um rifle tranqüilizante; afinal, vocês querem um espécime vivo ou empalhado? – Izabela estava possessa.
– O rifle é apenas para proteção – gaguejou o biólogo. – Ele instalou armadilhas
há uma semana e vai acioná-las agora.
A botânica pareceu se acalmar um pouco, mas então colocou o dedo sob o nariz
de Roger. – Isso não acaba aqui; irei enviar um relatório para o Conselho Imperial de
Ciências. – Disse isso e partiu atrás do caçador. Eu a segui, ainda confusa com a
situação, mas disposta a apoiar a botânica contra o senhor X.
Encontramos Elieser e seus companheiros ocultos atrás de um tronco caído. Daquele local, podíamos avistar um lago parcialmente congelado, de onde um grupo de
aproximadamente trinta animais, adultos e filhotes, se preparava para beber. Eram animais enormes, com pelagem branca acinzentada, semelhantes a lobos.
Tudo parecia calmo, até que um dos lobos, que vigiava da margem do lago a
alcatéia, foi envolvido numa nuvem de neve e ficou imobilizado por uma corda vermelha
que se enroscou nele. No mesmo instante, os demais se agacharam, invisíveis na neve,
e assim permaneceram até se ouvir um latido baixo. Então, os animais fugiram para a
floresta em pequenos grupos enquanto outros dois se aproximaram do lobo caído.
– Ok, é hora da diversão. – Elieser armou o rifle com um estalo.
Izabela avançou contra o caçador e iniciou-se uma discussão. Roger procurou acalmar
a botânica, porém ambos acabaram no chão após um safanão. Tentei segurar a arma
de Elieser. Foi tudo tão rápido; levei uma coronhada e desmaiei.
AQUELES QUE NÃO DEIXAM MARCAS NA NEVE
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Minha cabeça latejava. Abri lentamente os olhos. Deitada na neve, o céu azul parecia tão alto... Toquei suavemente a testa; estava inchada e dolorida, mas não havia sangue. Maldito senhor X, ele iria me pagar. Com algum esforço, sentei-me e usei a mão para
proteger os olhos da luz refletida no gelo. Estava à beira do lago, cercada pelos lobos.
Meu coração vacilou e um rosnado o pôs a palpitar rapidamente. Virei o rosto para
o animal que rosnara. Grande como um cavalo, o focinho e o peito empapados de
sangue, lábios recolhidos, deixando à mostra presas e gengivas num esgar feroz.
Cobri a boca para abafar o grito. Olhei em torno, desesperada, procurando pelos
meus companheiros. Havia apenas lobos e neve branca. Teriam fugido? Não, bastava
olhar para a fera coberta de sangue para compreender o destino dos outros e o meu.
Não queria morrer!
Fechei os olhos e comecei a engatinhar pela neve. Não me importava em qual direção,
somente queria me distanciar daquele monstro, queria viver. Mal me afastei e minha cabeça foi pressionada contra a neve. Comecei a chorar, as lágrimas quentes se misturavam à
neve, balbuciava palavras desconexas enquanto rezava, suplicando por ajuda e perdão.
Quando finalmente as lágrimas pararam de escorrer, levando consigo o desespero e trazendo uma calma desesperançada, percebi que ainda estava viva, que havia
esperança. Ergui o rosto. Apenas quatro lobos permaneciam comigo à beira do lago. O
mais próximo, que me vigiava com a cabeça meio tombada para o lado, se aproximou.
Encolhi-me, preparando-me para o pior, porém o lobo abocanhou somente a parte de
trás do meu capuz e me arrastou até o lobo que permanecia no chão, preso pela corda.
Fiquei lá, de joelhos, olhando para o lobo encolhido em posição fetal, até compreender o motivo de estar viva. Por mais incrível que parecesse, naquele momento, eles queriam que eu soltasse o companheiro. Minhas mãos seguraram a corda e puxaram-na,
sem sucesso. A corda possuía propriedades elásticas, dava varias voltas em seu corpo.
Estava tão apertada que era impossível soltá-la. Lembrei-me de uma brincadeira estúpida dos meninos da escola: eles enrolavam um elástico até não poder mais e então o
soltavam no cabelo de alguma garota; quando o elástico tentava voltar ao estado natural,
enrolava-se de tal forma nos cabelos que era necessário uma tesoura para tirá-lo.
Precisava fazer algo, era minha última esperança. Com o coração batendo acelerado, me pus de pé. - Preciso de uma faca. – Falei para o vazio, escolhi uma direção
aleatória e comecei a caminhar, o corpo rígido. As botas afundavam na neve fofa quando um enorme corpo peludo bloqueou meu caminho. Meu Deus! Como eles eram enormes. Fiquei parada, tremendo. Houve uma troca de latidos entre eles, e então o lobo
mais próximo começou a me empurrar com o focinho em direção à floresta.
À frente, reconheci o tronco caído que usáramos como local de observação. Acelerei o passo num misto de esperança e receio pelo que encontraria. Para a minha
surpresa, contrariando meus devaneios e, quem sabe por isso mesmo, foi mais surpreendente, a neve estava imaculada. Procurei avidamente por pegadas, objetos ou qualquer outro sinal que indicasse que eu e meus companheiros lá estivéramos, sem nada
encontrar. Cheguei mesmo a pensar que errara de local, porém as manchas de sangue
ainda frescas nas árvores próximas não deixavam dúvidas. Minha imaginação cobriu
as lacunas do período que passara inconsciente. A discussão acalorada deve ter conti10
AGUINALDO PERES
nuado; provavelmente Izabela amparara meu corpo inconsciente, Roger protestara e
ameaçara; e então o ataque dos lobos, rápido, silencioso e mortal, suas mandíbulas e
presas partindo a carne e esmagando os ossos.
Teria ficado lá, paralisada, se não fosse pelo focinho duro me impelindo a continuar. Atravessei a floresta meio entorpecida. A visão do veículo de neve foi um raio de
esperança, breve, porém, pois um lobo deitado sobre o teto espreitava, como uma
sentinela de posto avançado. Abri as portas duplas e entrei, seguida pela minha sombra de quatro patas. Procurei na caixa de ferramentas por uma faca e achei algo melhor, um alicate de corte para cabos de aço. Ergui a ferramenta como um troféu, e o lobo
me olhou com a cabeça meio de lado.
Pela primeira vez, pensei no absurdo da minha situação. Meus companheiros mortos
por lobos, e eu estava sendo manipulada por um deles. Seriam eles tão inteligentes a
ponto de relacionarem o destino do companheiro com a nossa presença no local? De
reconhecer a minha inteligência e pensar em utilizá-la para seu próprio benefício? Se
esse fosse o caso, não precisávamos de biólogos, e sim de antropólogos. Segurei a
ferramenta de encontro ao peito e me encolhi para passar entre as poltronas e o lobo.
Seu pêlo era macio, lanoso e quente.
Do lado de fora, senti-me um pouco perdida. Não havia marcas de meus passos
na neve. Olhei, sem compreender, para o céu que permanecia límpido. O lobo me empurrou com o focinho e segui na direção indicada. Observei meus pés afundarem na
neve; em seguida, vinham as marcas das patas largas, e então tudo desaparecia quando a grande cauda felpuda espalhava neve sobre as pegadas. Com um calafrio, percebi
que, se uma equipe de resgate viesse, nunca me encontraria.
Rapidamente, atravessamos a floresta e descemos para o lago. Ajoelhei-me ao
lado do lobo preso. – Calma. Calma. Não vou machucá-lo! – Tentava acalmar a mim
mesma. Não conseguia evitar pensar em meu destino. Até o momento, estava viva
graças à boa vontade do meu guardião, como um rato sendo bolinado pelo gato. E o
que faria meu 'gato' quando a 'brincadeira' acabasse? Deixar-me-ia livre ou eu me
juntaria aos colegas mortos?
Posicionei a corda dentro do bico do alicate e pressionei os cabos. A corda se
partiu e saltou com um estalo. O lobo se pôs em pé com um ganido dolorido e foi
cercado pelos três companheiros, que latiam e o lambiam.
Fiquei olhando para aqueles alvos monstros agindo como cãezinhos. Era minha
última chance, deixei o alicate na neve e corri. Corri por uns trinta metros até ser derrubada por uma patada, cai de bruços com a cara na neve úmida. Zangada e frustrada,
sentei-me e atirei neve no focinho da fera, o mesmo que eu libertara. O lobo saltou
sobre mim, sua pata pesada pressionando meu peito no chão. Gritei, esmurrei, xinguei
e chutei. Sua cabeçorra se aproximou. Um rosnado me fez ficar quieta. Fechei os olhos
e senti no rosto seu bafo quente e a língua molhada.
Quando abri os olhos, estava sozinha, deitada na neve fria, o céu de um azul
esbranquiçado, longínquo. Cambaleei de volta para o veículo e entre soluços pedi ajuda
pelo rádio. Sentei-me, encolhida num canto do veículo e esperei. Esperava retornar
para o domo e para a segurança de suas paredes de aço.
.
PS: Nenhum animal natural de Becrux-7 foi molestado durante a produção deste conto
AQUELES QUE NÃO DEIXAM MARCAS NA NEVE
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A ROSEIRA
DE ISABEL
Todos ignoravam Isabel. Não quero dizer com isso que fosse proposital ou por
maldade. Só que, às vezes, o mundo anda depressa demais e pequenos detalhes
acabam sendo deixados de lado ou esquecidos.
E na vida das pessoas ao seu redor, Isabel era um pequeno detalhe. Os pais
tinham se separado quando a menina mal sabia falar. O resultado fora que a mãe trabalhava demais para manter a casa e o pai, mal e mal, a via nos fins de semana em que
estivesse na cidade, já que trabalhava como piloto de avião. A empregada cuidava da
casa, e Isabel entrava nesse ‘da casa’, como se fosse uma das mobílias. Os avós
moravam longe, na cidade onde seus pais nasceram e na qual seus tios e tias ainda
viviam. No Natal, mandavam um presente para a menina, mas, na amargura dos seus
oito anos, desconfiava de que não se lembrassem do seu nome.
Mesmo na escola, chamava pouca atenção. Não era extremamente inteligente,
porém também não tinha problemas de aprendizado. Pouco falava com os demais alunos, não procurava os professores que, atarefados com crianças hiperativas e pais
neuróticos, nem se lembravam da existência da menina.
Isabel se importava com isso, claro, no entanto de algum jeito sabia que só lhe
restava viver da melhor forma possível. Ficava no quintal, sem fazer barulho, com seus
brinquedos e a gatinha siamesa – talvez a única criatura que realmente se desse conta
da existência física e real da menina. Também não era criativa em excesso, então reproduzia com suas bonecas o cotidiano que a cercava.
Se isso fosse tudo o que tivéssemos a dizer sobre Isabel e sua vida, poderíamos
parar por aqui. Afinal, nos quintais de muitas casas e nos pátios de muitos prédios,
existem muitas crianças como Isabel, que passam em branco. Talvez, na adolescência,
com a perturbação que é costumeira nessa fase, consigam chamar atenção para si – e
geralmente de maneira errada.
Porém, algo extraordinário aconteceu na vida da pequena Isabel.
No último pacote de Natal que chegara de seus avós, Isabel notara um embrulho
estranho. Era um pote plástico com um anel para fazer bolhas de sabão. O presente
simplesmente provava para Isabel que a família distante não lembrava sua idade, sequer se era uma menina ou um menino.
O pote ficara jogado de lado durante meses. Isabel preferira brincar com suas
bonecas no quintal, até que em um dia de primavera, uma brisa fresca soprava, levando
A ROSEIRA DE ISABEL
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as roupinhas para longe. Decidida a brincar com algo novo, Isabel se lembrou do presente guardado há tanto tempo e foi buscá-lo.
Passou um tempo soprando e olhando as bolhas subirem. Nenhuma ia muito alto,
estouravam antes de atingirem sequer o beiral da casa. Para a menina, não havia problema. Gostava da sensação de criar algo novo, mesmo que tão breve. A brisa trouxera
pequenas nuvens ao céu, o sol parecia brincar de se esconder, revelando-se em um
momento e sumindo em outro. Os raios faziam efeitos curiosos nas bolhas, como arcoíris condensados.
Em um momento, pensou ter visto algo diferente dentro de uma das bolhas. Um
rosto vago, muito espantado, olhando-a. Mas piscou os olhos e a impressão passou.
Continuou a soprar as bolhas, ressabiada, tentando perceber algo mais.
Nada mais de anormal aconteceu e Isabel voltou a se distrair com as bolhas. Elas
subiam sem pressa, agora que a brisa amainara. Foi quando Isabel notou que as bolhas seguiam um padrão e estavam todas indo para o mesmo lugar, como se seguissem um caminho. Podiam rodopiar, girar, desviar-se um pouco, mas estouravam na
ponta de uma roseira bem grande.
Claro que a menina ficou curiosa e se dirigiu até aquele canteiro, com cuidado. À
primeira vista, nada de anormal. As folhas balançavam de leve no vento fraco que corria
e as duas flores que já despontavam em botão acompanhavam o ritmo. Estava pensando se não teria sido apenas impressão quando dois olhinhos piscaram, observando-a
detrás de uma rosa.
Isabel pulou, bastante espantada.
– Olá, menina Isabel. Não queria assustá-la.
– Quem é você?
O homenzinho saiu devagar de onde estava e se inclinou para cumprimentá-la:
– Meu nome é Joaquim e sou a fada responsável por esta roseira.
– Como você pode ser uma fada? Você é...
Ela não terminou a frase, pois Joaquim a interrompeu:
– Além de homem, sou negro, né? Se eu dissesse que sou um saci, você entenderia melhor?
Isabel assentiu com a cabeça. Afinal, fadas eram moças ruivas, pequeninas e com
asas que moravam em lugares frios, não homenzinhos negros, de boina vermelha e um
charuto no canto da boca.
– Mas você tem as duas pernas...
– É porque eu não sou um saci, menina, foi só um exemplo. Digamos assim: eu
sou uma fada porque sou parente das que aparecem nos livros e nos desenhos animados. Somos todos fadas, só que a nossa aparência depende do lugar onde moramos.
Não é assim como as pessoas também?
Lembrando-se do que via nos filmes e na TV, Isabel concordou. Ela, mesmo, não
era ruiva, tinha cabelos pretos escorridos que a mãe dizia vir de uma avó índia muito
distante no tempo.
14
ANA CRISTINA RODRIGUES
– Mas o que você está fazendo aqui, no meu quintal?
– Já não falei, menina Isabel? Cuidando da roseira. Ela estava muito triste e solitária, eu estava passando e ouviu seu choro. Como não tinha mesmo um lugar certo para
ir, resolvi ficar aqui por uns tempos até que ela pudesse se recuperar.
Isabel não sabia que flores podiam ficar tristes ou mesmo sentir solidão. Ficou
muito admirada com isso.
– E você vai ficar muito tempo por aqui?
Joaquim balançou a cabeça, parecendo triste.
– Na verdade, menina Isabel, vou ter que ir embora logo, logo, pois me chamaram
em outro lugar... Foi por isso que pedi ao vento para trazer as suas bolhas de sabão até
aqui. Precisava pedir um grande favor a alguém de bom coração.
Isabel não entendeu que ele se referia a ela e esperou que o homem-fada continuasse. O vento continuava a soprar e a roseira prosseguia na sua dança.
– A roseira ainda está triste... precisa de companhia para se fortalecer e continuar
viva. Você não quer fazer isto no meu lugar, menina Isabel?
O vento parou de repente e ela reparou que o dia estava muito quente. A roseira,
coitada, ao contrário de Isabel, não estava incluída na noção de ‘da casa’ que a empregada tinha e estava descuidada, entregue ao abandono. Formigas cortavam suas folhas, a terra estava seca, alguns galhos estavam quebrados...
Isabel aceitou a missão e Joaquim desapareceu no mesmo instante. Por anos a
fio, a menina cuidou da roseira. Fez mais, até: plantou todo um jardim naquele canto do
quintal e nunca mais a planta ficou sozinha. Quando Isabel cresceu, continuou a morar
ali, naquela mesma casa, cuidando da roseira e do jardim, quando não estava trabalhando nos jardins da cidade.
E num dia de primavera, a filhinha de Isabel, Beatriz, soprou bolhas de sabão.
Sorrindo, a jardineira percebeu que o vento ainda as levava para o mesmo lugar, perto
da velha roseira
.
A ROSEIRA DE ISABEL
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16
ESTRANHOS
ACONTECIMENTOS
NA CASA 22
Era mesmo o espírito de Natal que impregnara a casa dos Grenier...
Afinal, Juliet desejava intensamente se apaixonar, esse era seu desejo natalino. A
garota – se é que podemos definir assim o que ela realmente era – confabulara durante
dias sobre uma forma de tornar o espírito de Natal significativo também para a sua
família. E a solução – infelizmente parcial por enquanto, pois não dizia respeito aos
seus pais – era conhecer o amor e todos os significados que isso representava.
E por que esse era um pedido tão difícil para Juliet? Ora, ela era a primeira de sua
espécie, assim como seus pais também o foram em uma outra ocasião... Aliás, essa
não seria uma definição precisa do que Juliet e seus pais representavam. Mas dizer
que eram a evolução da humanidade também não seria o correto. Eles eram outra
coisa, algo além...
Juliet nascera da união de seus pais, mas não de uma união amorosa. Amor, os
dois tiveram quando se conheceram, há muitos anos. Quando ainda eram humanos, e
não os “marcianos” de hoje. Marcianos, que fique bem claro, nascidos na Terra e ainda
vivendo aqui. Marcianos por sua estranheza.
Foi difícil para Juliet entender essa idéia. Assim como foi difícil compreender o
humor por trás de tal definição. Até hoje, tem dúvidas se entendeu corretamente a
piada criada por seus pais.
O que tinha certeza é de que queria se apaixonar.
Seus pais não gostaram da idéia, isso já havia sido tentado e sem êxito. Mas eles
sentiam que a necessidade de Juliet era autêntica desta vez, e não induzida, como da
outra. Uma necessidade intensa e radiante! E radiante não é uma forma figurativa de
dizer, a garota realmente brilhava! Como uma jovem estrela! Pelo menos resplandecia
com tamanha intensidade que poderia ser captada no “plano” em que viviam seus pais.
O brilho chegava a ofuscar a visão. Ela brilhava de amor! Brilhava como uma natalina
estrela de Belém!
O amor que Juliet buscava era uma cura para a sua solidão. Esse sim, um sentimento humano que ela podia entender muito bem! A solidão era um espaço escuro,
mais denso que o abismo que separa estrelas ou galáxias. Um assustador fosso, onde
ficavam escondidos os irmãos que nunca tivera e que, maldosamente, brincavam de
trancá-la no grande guarda roupa do quarto inexistente de seus pais. Um fosso escuro,
longe de seu alcance, de onde roubava as flores que nunca nasceram nos jardins dos
ESTRANHOS ACONTECIMENTOS NA CASA 22
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vizinhos que nunca conhecera. Uma solidão que se misturava com promessas que
nunca se cumpririam, de uma vida que nunca seria sua.
Essa era sua solidão.
Era a mesma solidão que Sebastian sentira por toda a vida.
No modesto hotel onde estava hospedado, ele podia ouvir os sinos que tocavam
na igreja a algumas quadras dali. Era o templo chamando seus fiéis. Era o som da
comunhão.
Nesta época do ano, o espírito de união era mais vívido. Sebastian sabia bem
disso. Entretanto, não podia vivenciá-lo ou compreendê-lo verdadeiramente. A confraternização que as pessoas buscavam, nas festas e nas reuniões familiares de fim de
ano, era algo estranho para ele.
Seus poucos amigos, alguns de forma mais direta que outros, diziam que sua
alma era fria. Fria como a noite de inverno em que ele veio ao mundo, há pouco mais de
duas décadas. Aliás, sua sórdida mãe sempre fez questão de lembrá-lo disso. De lembrálo de que não tinha coração.
Mas Sebastian tinha, sim, um coração apesar de tudo. Só não sabia dividi-lo com
mais ninguém. Isso lhe trazia tristeza e outros sentimentos que comprovavam que,
afinal, era um ser humano. Mas sentia que sua vida não era a vida que merecia, que
não fazia parte deste mundo. Essa sensação de ser tão diferente trazia dor e solidão a
ele.
Para ocupar seus dias em um mundo que não parecia seu, Sebastian dedicava-se
com grande afinco aos estudos, sempre tentando ignorar o que essa ávida busca de
conhecimentos significava na verdade. Ele agora se dedicava à fotografia.
Enquanto guardava sua máquina digital e apetrechos na mochila, preparando-se
para uma visita às instalações reais da “Stahl house” de Julius Shulman, Sebastian,
deu uma olhada pela janela para ver como estava o tempo. Um sol tímido tentava vencer o frio inverno, e pessoas bem agasalhadas caminhavam de um lado para o outro,
apressadas. Ele sentia falta da neve. De uma neve sobre Los Angeles.
Enquanto trancava o apartamento, já com a mochila às costas, deu uma rápida
olhada no número 22 em metal, pregado na porta de madeira.
Era o mesmo número do “case study house 22”, o icônico projeto do arquiteto
Pierre Koenig. A residência do famoso ensaio fotográfico de Julius Shulman.
Romeo sorvia lentamente o chá, enquanto observava a cidade através de um dos
inúmeros painéis de vidro de sua residência. Essa época do ano era como qualquer
outra para ele. Como não tinha família, não sentia a obrigação de comemorar o Natal.
18
CARLOS RELVA
Ele aguardava a chegada de um estudante de fotografia, que faria um ensaio em
sua casa, ao estilo Shulman. Não seria o primeiro. Aliás, não era nada original a idéia de
reproduzir o trabalho do famoso fotógrafo. Mas o velho, um solteirão endinheirado, que
costumava cobrar pelas fotografias realizadas em sua casa, aceitou deixar desta vez
um fotógrafo fazer seus cliques de graça. E o engraçado é que o garoto nem teve que
insistir muito!
Na verdade, Romeo não sabia dizer se foi o tom monótono, frio e um pouco arrogante da voz do jovem fotógrafo, que lembrava muito a sua própria voz há anos, que o
convencera a abrir seu lar para as fotografias, ou se fôra o inusitado pedido de fotografar sua residência na véspera de Natal.
“Será que ele não tem mais nada para fazer neste dia?”, pensou. “Será que essa
generosidade é um sentimento natalino que se apossou deste velho rabugento?”
E enquanto apreciava o restante do chá, a idéia o fez rir. Mas, em seguida, o pensamento divertido foi tomado por outro e sua fisionomia ficou contemplativa, soturna.
“Será que é ele, afinal?” O pensamento lhe deu um leve calafrio.
O mesmo calafrio sentiu Sebastian ao sair do táxi, em frente à casa 22. Afinal, a
noite prometia ser muito fria.
Frio também foi o cumprimento entre Sebastian e Romeo. O anfitrião achou o
fotografo tão antipático que quase mudou de idéia e cobrou pela seção de fotos.
“Esse pobre rapaz não imagina o que essa casa representa de verdade”, pensou
Romeo. “Claro que não, ao olhar estas estruturas deve só ver chapas de aço e painéis
de vidro que substituem paredes. E a composição fotográfica de Shulman, apenas um
ícone da modernidade!”
Romeo tinha certeza de que Sebastian não tinha a mínima noção das sutis informações que se escondiam por trás da estrutura arquitetônica da “Stahl house”. Não via
a real grandiosidade do projeto desenvolvido nos anos 60. A casa era só a ponta de um
grande iceberg! Um detalhe de um trabalho científico experimental que aguardava ser
retomado. Aguardava a chegada de um elemento fundamental.
Um dia, Romeo achou que era esse “elemento”. Mas estava errado. E sabia que
Sebastian também não estava apto para preencher a vaga.
Após ouvir enfadonhas reclamações do jovem sobre as dificuldades para conseguir investimentos para projetos fotográficos “mais ousados”, Romeo deixou-o próximo
a piscina. Bem em cima do marco comemorativo que indicava o ponto exato onde
Shulman havia colocado o tripé de sua máquina e tirado a tão famosa foto.
Romeo então voltou aos seus afazeres rotineiros e comuns.
ESTRANHOS ACONTECIMENTOS NA CASA 22
19
Mas não eram comuns os sentimentos que Sebastian experimentara algum tempo
depois de Romeo o deixar...
Sensações estranhas tomaram conta de seu ser. Ele sentia como se estivesse
sendo observado e chamado. Mas para onde? Quem? Entretanto, Sebastian não estava assustado. A sensação era de um doce e leve delírio.
A câmara digital estava a postos, o cenário montado há muito tempo. Mas o jovem
fotógrafo não conseguia tirar uma única foto. Turbilhões de emoções novas tomavam
conta de sua mente. Agora, ele sabia o que seus amigos queriam dizer sobre sua frieza.
Agora entendia sua mãe.
Sebastian era uma nova pessoa. E nunca mais as coisas seriam como antes!
Mas, algo mais estava por vir.
Quando Romeo voltou à sala principal, encontrou Sebastian completamente nu e
perplexo. Seu corpo era etéreo e emanava uma sutil luminosidade. Romeo poderia
confundi-lo com um fantasma, se acreditasse em um.
– Ela me ama, Romeo. Juliet me ama! – disse a nova forma existencial de Sebastian.
– E eu a amo também!
E então Sebastian desapareceu completamente.
Lágrimas correram dos olhos de Romeo e uma grande alegria se apossou de seu
ser. Ele esperava ver Juliet uma última vez, mas ela não apareceu. Sentiria saudade da
bela e especial jovem. Sentiria saudade de seus corajosos e obstinados pais, os cientistas envolvidos em um projeto extraordinário e que se tornaram seus grandes amigos.
Agora, Romeo se encontrava no mesmo lugar de uma das modelos na foto inesquecível de Julius Shulman. Os móveis eram outros, mas a vista noturna de Los Angeles,
um tapete de estrelas sob um céu escuro, possuía agradável semelhança.
E a construção de Pierre Koenig parecia avançar para a cidade e para a eternidade como nunca. O projeto reiniciara e as esperanças da humanidade se renovavam.
“Feliz Natal, Sebastian e Juliet!”, pensou Romeo, esperando que o casal pudesse
ouvi-lo.
.
E para o velho proprietário da casa 22, os maravilhosos acontecimentos daquela
noite representavam o mais belo espírito de Natal que já havia presenciado
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CARLOS RELVA
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22
O CAMINHO PARA O INFERNO
É PAVIMENTADO COM BOAS
INTENÇÕES
Muitas pessoas gostam de colecionar coisas, das mais comuns às mais exóticas.
Eu gosto de colecionar ditos populares. Por muitos anos, anotei-os em diários de capa
de couro, que guardava com cuidado em uma estante na biblioteca. O advento da
informática facilitou minha vida e hoje os armazeno virtualmente. Há também pessoas
que gostam de colecionar artefatos malditos. São poucos os que se dedicam a esse
tipo de coleção, gente discreta que não hesitaria em assassinar uma criancinha com as
próprias mãos para se apossar de um deles.
Sou um caçador de artefatos malditos a serviço da santa madre Igreja Católica
Apostólica Romana. Meu trabalho é rastrear artefatos que estejam prestes a trocar de
mãos e tomar posse deles, usando qualquer meio que julgar necessário. Alguns acham
que um trabalho assim é emocionante, como um filme de Hollywood. Não vou dizer o
contrário; é realmente emocionante, mas também é muito perigoso. Já testemunhei
coisas arrepiantes e fiz coisas que poucas pessoas teriam estômago de fazer. Se não
trabalhasse sob as ordens da Igreja, diriam que sou um monstro assassino; como trabalho, sou então um anjo vingador.
Uma vez perguntaram-me o que havia me marcado mais nesse trabalho. Por um
segundo, pensei em dar uma resposta qualquer, mas decidi que, somente encarando
meus fantasmas, poderia dominá-los e não deixar que fossem usados contra mim, o
que poderia ser fatal.
Há muitos anos, apaixonei-me por uma jovem rastreadora que eu treinava. Ela era
linda, tinha cabelos pretos compridos que sempre usava num rabo de cavalo, tinha
personalidade e bom humor. Um dia, durante um trabalho especialmente perigoso, ela
desapareceu. Quem não pensaria que ela havia sido levada à força pelos seguidores
do mal? Uma consulta rápida a uma bruxa – sim, elas existem e cobram muito caro por
seus serviços – e fiquei sabendo que ela estava viva, imersa em sombras malignas.
Por muitos anos não soube dela. Tentei em vão descobrir seu paradeiro, o que se
revelou muito mais difícil do que rastrear os mais poderosos artefatos malditos. O tempo passou. Finalmente, um dia, recebi o telefonema por que esperara por muitos anos.
– Tenho algo que você perdeu há muito tempo. Você tem interesse em fazer
uma troca?
– Se você realmente a tiver, poderemos conversar.
– Não esperava que fosse diferente. Você terá um minuto para matar a saudade.
Então ouvi sua voz, doce como me lembrava que era. Para ela o tempo parecia
O CAMINHO PARA O INFERNO É PAVIMENTADO COM BOAS INTENÇÕES
23
não ter passado e somente naquele momento soube que havia sido tomada como
refém. Desculpou-se e pediu para não abandoná-la.
– Está satisfeito?
– O que você quer para libertá-la?
– Algo que será mais fácil para você conseguir do que encontrá-la por conta própria.
Artefatos malditos são cercados por uma aura de mistério para a maioria das
pessoas. Esse mistério nasce da falta de conhecimento sobre sua natureza. Praticamente qualquer coisa inanimada pode se tornar ou ser transformado em um artefato
maldito. Isso pode acontecer de três formas. O mais comum é os objetos serem amaldiçoados por gente conhecedora, ou não, das artes das trevas. Há também os objetos
que são amaldiçoados por terem feito parte de algum acontecimento maligno. Os mais
perigosos, porém, são aqueles tocados pelo próprio Satanás.
Era, exatamente, com um desses objetos, que se tornaram malignos com o toque
do anjo caído, que pagaria a libertação daquela por quem um dia me apaixonei. Um
artefato que eu vinha rastreando por longos anos e que, finalmente, estava próximo de
interceptar.
Alguns dias depois, quando cheguei ao quarto do hotel onde estava hospedado,
encontrei um envelope que havia sido jogado por sob a porta. Dentro, uma foto mostrando a rua lateral de uma igreja numa tarde de sol e junto da calçada, de costas,
estava ela. No verso da foto havia um impresso. “Igreja de S. Gerônimo. Viseu. 24/12.
15:05hrs”.
Durante os três meses que me separavam daquela data, dediquei-me como nunca
a rastrear aquele artefato. Por se tratar de algo realmente valioso e disputado, não foi
nada fácil chegar até ele. É incrível o que alguns colecionadores são capazes de fazer
para não perder artefatos como aquele.
Artefatos malditos requerem cuidado, muito cuidado no seu manuseio. Por falta de
cuidado, muitos colecionadores, rastreadores e desavisados sentiram na carne seu poder maldito. Por isso mesmo, assim que retomava um artefato, devia fazer imediatamente
meu caminho para Roma e entregá-lo aos cuidados dos santos padres que tinham a
responsabilidade de fazer com que nunca mais tivessem seu destino conhecido por ouvidos humanos ou demoníacos. Daquela vez não fui para Roma, mas para Viseu.
Quando almoçava em um restaurante simpático não muito longe da igreja da foto,
meu telefone celular tocou e soube imediatamente quem ligava.
– Vejo que está mesmo disposto a fazer a troca.
– Você duvidava da minha disposição?
– Para ser sincero, duvidava, sim. Mas o que importa é que você está aqui, acredito que com o artefato do meu interesse, e que logo mais faremos a troca.
Hordas de turistas vagueavam pela cidade mesmo sob o sol quente de verão,
apontando suas câmeras fotográficas para todos os lados. Eu caminhava incógnito
entre eles, sem prestar atenção às belezas arquitetônicas da cidade antiga enfeitada
para o natal. Assim que entrei na ruazinha ao lado da igreja, senti um silêncio opressor
que não era natural. Então a vi, exatamente como na foto, só que dessa vez olhava em
24
CHARLES DIAS
minha direção com um sorriso nos lábios.
– Não consigo evitar o sentimento de remorso pelo que fiz, santo padre.
– Isso é natural, meu filho.
– Ela confiava em mim.
– Certas coisas são mais importantes que outras, essa é a triste verdade. Quando
ela se tornou uma rastreadora, o fez sabendo dos riscos que corria. Algumas vezes a
vontade fazer o bem pode ser um atalho para fazer o mal. É como diz um dos ditos que
você tanto gosta. O caminho do inferno está pavimentado com boas intenções
.
O CAMINHO PARA O INFERNO É PAVIMENTADO COM BOAS INTENÇÕES
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CORAÇÕES
DE FERRO
Agosto, 1947.
Seis máquinas de guerra, de forma vagamente humanóide, com cinco metros de
altura, caminham em direção à cidade de Mar del Plata.
– Ogum Primo! Responda!
– Ok, Changô, Miro Montenegro respondendo.
– Miro, Mechs inimigos não identificados avistados em 27.32.45.
– Ok, Changô, vou investigar.
– Lembrem-se: identifiquem, mas não se envolvam!
– Entendido, Changô. Oxossi, siga-me 100 metros na retaguarda.
– Ok, Ogum. Boa sorte, Miro!
Os mech brasileiros avançavam com cautela, até avistarem as máquinas inimigas.
– Changô! Reconhecemos os modelos! São oito Gundam, repito, oito Gundam e
seis Panzer. Pelotão! Recuar! Recuar!
– Mas...
– Eu mandei recuar, Grig!
O mech de artilharia, Oxossi, não se mexeu. Parecia estar se preparando para atirar.
– Grigory Zacharov! – gritou Montenegro – Eu sei que podemos acertá-los daqui,
mas hoje não. Eles não podem saber do que somos capazes, não ainda! Você ainda
terá sua vingança, eu prometo! Espere por um peixe maior!
– Sim... senhor. Eu entendo. Recuar! Vamos fugir como somente nós, brasileiros,
sabemos fugir!
Guernica, Espanha, 1937.
Capitão Montenegro, veterano da Revolução Tenentista de 1930, agora voluntário
e observador militar brasileiro na Guerra Civil Espanhola, subia as colinas que rodeavam Guernica, onde os republicanos espanhois se refugiavam dos nacionalistas.
– Doutor Touring! Como vai?
– Eu vou bem, Capitão, mas não é por meu belo corpo que o senhor veio aqui,
suponho.
– Não, quero saber de seus aparelhos.
– Todos tinindo, diriam vocês. Asseguro que pelo céu, os boches não nos atacam.
CORAÇÕES DE FERRO
27
Contemplavam o sistema de artilharia automática com mira de computador, desenvolvida pelo cientista inglês Doutor Touring, que tornavam os famigerados bombardeiros alemães bem menos eficientes. Era tarde demais para os republicanos espanhois,
mas Adolf teria que repensar sua estratégia, pois não poderia contar mais com seus
queridos “stuka”.
– O senhor parece preocupado, Doutor.
– Miro, que sabe sobre os Mech?
– Ah, a lendária Infantaria Mecânica dos alemães. Homens mecânicos gigantes,
tirados diretamente daquelas revistas pulp. A turma da propaganda nazista definitivamente está delirando.
– Miro, você é engenheiro, e admiro sua capacidade de inovação. Escute, quais
são os impedimentos tecnológicos para a fabricação de tais Mech?
– Preço, complexidade; seriam pouco práticos e, principalmente, necessitariam de
sistemas de computação extremamente rápidos e robustos, como... Meu Deus!
– Como os sistemas de computação que desenvolvi. Sim, Miro, se eu posso, os
alemães também podem, pois possuem muitos cientistas, tão competentes ou melhores do que eu. E um governo, que à diferença do meu, aceita investir em tecnologias
inovadoras. Bolas, vocês brasileiros é que pagaram por minha tecnologia!
– Ainda assim, isso nos levaria a sistemas de computação, controle e criptografia
melhores, mas não necessariamente a “homens de aço”. Afinal, eles seriam pouco
práticos em combate. Um grupo de soldados seria mais barato e mais flexível.
– E o aspecto psicológico? Os nazi são muito bons em propaganda. Estas máquinas, saídas dos pulp, teriam um apelo enorme entre os sugestionáveis. Além disso,
estas máquinas causariam terror nos inimigos por serem exatamente os “gigantes” e
“ogros” de seus contos de fantasia. Garanto que se um grupo de Mech avançasse
sobre os republicanos, por exemplo, eles fugiriam em pânico.
– Acho que o senhor exagera. Soldados treinados, veteranos, não entram em
pânico tão fácil.
– Quer apostar, capitão? Que tal um beijo na boca? – Touring piscou para
Montenegro.
– Até dois, doutor.
– Se o capitão não ficasse preocupado em dar as costas para mim, teria reparado
que eu já ganhei...
– Como? – Miro virou-se para olhar em direção à ponte que conduzia à vila. Um
grupo de oito soldados avançava... Olhando melhor, corrigindo o senso de perspectiva,
Miro compreendeu que seriam coisas humanóides, com seis metros de altura, ameaçadores, como gigantes... E os soldados republicanos abandonavam seus postos, e fugiam em pânico.
– Mech!
– Impressionantes, não?
– Vamos sair daqui, imediatamente!
28
ERNESTO NAKAMURA
– Ora, o senhor também?
– Não, o doutor não entendeu? Eles caminham para cá, para destruirem os antiaéreos, e depois, bombardearão a cidade!
– Ah, compreendo. Vamos fugir, então...
Anos depois, o massacre de Guernica seria imortalizado por um artista espanhol
exilado. O horror de ser esmagado por uma imensa bota de aço tornou-se o símbolo da
opressão nazista, para o mundo livre.
Após algumas semanas, Miro Montenegro e Touring chegaram ao Brasil, relativamente sãos e salvos, após várias peripécias. Miro foi chamado para uma reunião com o
secretário especial Brigadeiro Eduardo Gomes.
– Então, Miro, como foram tuas férias na Espanha?
– Ah, sol, praia, mulheres bonitas, boa comida e bebida... Ah, chefe, foi um horror!
Aqueles alemães...
– Fale-me mais sobre os Mech.
– Não tenho muito mais a dizer, pois agora todos os países estão desenvolvendo
Mechs.
– E nós também deveríamos.
– Tá brincando, Dudu? Nós nem conseguimos fabricar aviões. Aliás, não produzimos nem um fuzil de assalto decente. Em termos militares e materiais, estamos em
1910, ou menos.
– E por isso, pergunto: Miro, se hoje resolvermos construir Mech, quando eles
estariam prontos?
– Entre 1945 e 1947, Dudu. Estamos atrasados, mesmo.
– Tudo isso? Mas eu quero um!
– Calma, chefe! Acho que todos querem, agora... Se quer tanto um Mech, porque
não nos aliamos aos nazi?
– Nem brinque com isso! E aquele seu amigo inglês de gosto exótico? Conversei
com ele, e me assegurou que, se lhe dermos verbas, pessoal e tempo, ele nos dará as
tecnologias básicas para fabricarmos nossos próprios Mech.
– Ele não mente, Dudu; ele pode nos fazer um ou dois, mas o fato é que precisamos de muito mais doutores, engenheiros e técnicos para termos montes deles. E base
industrial, infraestrutura. Basicamente, precisaríamos transformar o Brasil um país industrial, não somente exportador de café e carne seca.
– Ai, acho que isso demora uns... 30 anos, não é mesmo?
– Não necessariamente, chefe; pelo que percebi na Europa, se nossas embaixadas anunciassem que aceitamos imigrantes, sem questionar religião, raça ou ideologia,
teríamos milhares de pessoas qualificadas imigrando para cá. Isso adiantaria muito
nosso desenvolvimento.
– Misturadas em milhões de desqualificados, retirantes e exilados, não é mesmo?
– Sim, este seria o preço.
CORAÇÕES DE FERRO
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– Vou conversar com Vargas...
Agosto, 1938
“Senhores ouvintes da Radio Nacional, é com imenso pesar que comunicamos o
falecimento de nosso presidente, Getúlio Vargas, assassinado covardemente por agitadores fascistas. O grupo denominado “integralistas” foi preso, aparentemente agindo
com apoio alemão e italiano, numa tentativa de golpe de estado, que fracassou graças
à presteza e união de nosso exército (...) mas nada disso diminui nosso ultraje nacional
diante de tamanha atrocidade (...) Eleições gerais marcadas para ...”
Janeiro, 1939.
Presidente Eduardo Gomes, recém eleito, em sua primeira reunião ministerial.
– Primeira decisão: assinaremos acordos de proteção mútua, troca tecnológica e
aliança militar com a Inglaterra e França, os chamados “Aliados”.
– Será sábio, senhor presidente? – argumentou Dutra, ministro da defesa. – Até os
Estados Unidos declararam-se neutros e querem evitar envolvimento com a diplomacia
européia.
– Mas esta é nossa oportunidade. Sem apoio norte-americano, os aliados precisam de todos os amigos que puderem contra o valentão da Alemanha. Vejam o caso da
Venezuela; por apoio militar, ganharam as Guianas Inglesas.
– Em troca de petróleo – completou Dutra. – E o que nós temos a oferecer aos
Aliados?
– “Terra, Paz e Liberdade”. – Os ministros se calaram, para não contrariar o chefe.
– Sério, pessoal. Segundo nossos diplomatas, milhares de pessoas estão fazendo
filas por toda a Europa, implorando para imigrarem para cá, pois calculam que Inglaterra e França estão perto demais dos “Ogros Germanos”.
– E este pessoal pode contribuir para o nosso esforço de industrialização. – completou Miro Montenegro, secretário especial do presidente.
– E quanto a um envolvimento militar sério? – questionou Dutra.
– Sejamos realistas, senhores. Não temos base industrial para sustentar milhões
de soldados ou milhares de tanques e aviões, por enquanto. O que temos é café, açúcar, carne seca e tabaco para os soldados, e, segundo os ingleses, eles aceitariam até
nossa farinha de mandioca socada com peixe e banana secos, como rações de emergência.
– Como alguém pode gostar disso? – comentou Miro.
– Alguns brasileiros gostam – cortou Dutra.
– Opa, desculpa, General...
Nos anos seguintes, o mundo ardeu. Em 1939, a Alemanha invadiu a Polônia,
Holanda, Belgica, Escandinávia e França, e venceu todos. Graças à força aérea e aos
sistemas de radar e artilharia antiaérea, a Inglaterra sobreviveu, no limite de seus re30
ERNESTO NAKAMURA
cursos. Em 1941, a Alemanha atacou a União Soviética, aliada do Japão, o que envolveu finalmente os EUA no confronto, que estava focado na defesa do Pacífico, ou seja,
em bater primeiro o Japão. A Inglaterra conseguiu manter o Atlântico Norte relativamente seguro, e recebeu suprimentos de seus aliados do outro lado do mar. Por três
Natais, a ceia britânica foi colorida com parcas frutas tropicais secas e rapadura do
Brasil. A última coisa doce que lhes restava.
Março, 1944.
– Boa tarde, senhor presidente
– Oi, Miro. Então, conseguimos?
– Sim, conseguimos. – Entraram em um galpão, nos arredores de São José dos
Campos, onde Miro Montenegro construíra fábricas de artilharia, armamentos, máquinas e ferramentas; resumindo, um parque industrial militar. E também centros de pesquisa e desenvolvimento, onde se falava quase todas as línguas, até português. Os
cientistas, engenheiros e pilotos estavam perfilados, esperando o presidente e sua comitiva.
– Estes são os doutores Touring, Merkatz e Radaticz, que o senhor já conhece.
Aquele ao fundo é o pessoal da Holanda e da Bélgica, recém-chegados. Depois, nos
apresentaremos formalmente. E adiante, o que o senhor quer ver mesmo, não é? Nossos Mech.
Ao fundo, cinco máquinas humanóides idênticas, robustas e obviamente construídas
para combate, se revelaram.
– Propomos chamar de Ogum, o guerreiro. Mechs de linha de frente, altamente
blindados, com armamento pesado. E aquele atrás é Changô, o rei.
– Desculpe?
– Abriga os sistemas de comando, controle e comunicação. Possui radar, artilharia
antiaérea e os computadores mais avançados.
– Ah, entendo. É um “rei” da guerra.
– Exatamente. Mas temos mais um. Este ainda é protótipo, portanto está naquele
galpão separado. É segredo absoluto.
– Vejamos.
Entraram em outra divisão do galpão. Viram um Mech menos humanóide, pois
possuia canhões mais longos, artilharia antiaérea e, principalmente, casulos de foguete, para centenas de tiros. E um homem barbudo, com aspecto de mecânico de tratores, suado e sujo. Estava tão ocupado que nem percebeu a chegada dos visitantes.
– E este é nosso herói, engenheiro Grigory Zacharov.
– Russo? – perguntou Gomes.
– Ucraniano – respondeu, num português bem eslavônico, ao notar o presidente.
– Bem, perdão. O que está construindo, senhor Zacharov?
– Matador de Mech, senhor.
CORAÇÕES DE FERRO
31
– Foguetes especiais antiblindagem– completou Miro. – Propomos chamá-los
Oxossi, o caçador.
Foi então que Gomes percebeu o motivo do segredo abosluto. Esta arma não
existia no arsenal alemão. Um veículo específico para anular Mechs.
– Entendo. Continue seu trabalho, com nosso apoio, Zacharov. Vamos precisar
destas unidades.
– Vão mesmo, senhores. E muito.
Após três anos de carnificina, a União Soviética se rendeu. Logo depois, Espanha
e Portugal embarcaram no trem vitorioso do nazifascismo. Em março de 1946, a Argentina sofreu um golpe de Estado e o novo governo declarou-se aliado do Eixo, atacou e
anexou Paraguai e Uruguai. Não invadiram o Brasil por pouco, graças à resistência
inesperada das tropas estacionadas no sul do país e no Mato Grosso. Em abril, ocorreu
um golpe fascista na Bolívia, que, com o apoio argentino e do Eixo, avançou sobre o
território brasileiro pelo Norte. Tropas alemãs, tanques e Mech, italianos e espanhóis, e
depois japoneses desembarcaram na Argentina para apoiar seu novo aliado. A guerra
chegara ao território americano.
A Bolivia, com o reforço das tropas recém-chegadas, marchou sobre as áreas que
reclamava como suas, e avançou pelo Amazonas, até que venezuelanos os detiveram
em Manaus. Os soldados da Venezuela, armados com equipamento superior fornecido
pelas indústrias brasileiras, surpreenderam os argentinos e bolivianos, e ainda mais os
italianos e germanos. Em quatro meses de guerra em florestas e montanhas, a Bolivia
caiu, quando Mechs brasileiros marcharam sobre La Paz. A partir do Norte, iniciou-se a
invasão da Argentina, lenta, dramática e metódica.
Novembro, 1947. Após a queda de de Buenos Aires.
John Ford, documentarista, conversava com Capitão Heinlein.
– Saudações, Capitão! O que o trouxe aqui?
– O mesmo que o senhor,diretor!
– Mechs!
– Sim, Mechs. Testemunhamos um confronto histórico: pela primeira vez, Mech
aliados enfrentam seus equivalentes alemães e japoneses, numa batalha que entrará
para a história. Garanto que será um dos melhores filmes de todos os tempos! E a
oportunidade! Nós vencemos! Derrotamos os nazi em seu próprio jogo!
– Nós, não exatamente; os brasileiros é que os venceram.
– Mas não somos todos americanos? E nós americanos, vencemos!
– Ai, isso doeu, diretor!
– Sei que é hipócrita, mas o povo, os povos das nações aliadas, precisa de imagens de vitória, ainda mais agora que o resto da guerra parece estar empatado. E,
garanto, estas imagens trarão muita esperança e aumentarão a moral de nossos países. Se até brasileiros podem vencer os nazi, que se dirá de nós, americanos? E isso
não é hipocrisia.
32
ERNESTO NAKAMURA
– Propaganda, mas concordo. Está mais do que na hora de termos vergonha na
cara e lutarmos para salvar o mundo.
– Antes que os brasileiros o façam.
Capitão Heinlein foi conduzido por oficiais brasileiros, até um depósito no porto de
Bahia Blanca.
Era um submarino de transporte alemão, pego de surpresa pelo batalhão de artilharia
de Grigory Zacharov, quando desembarcavam secretamente sua carga.
Capitão Heinlein foi convidado a inspecionar o material apreendido.
– Saudações, Capitão Montenegro. Saudações, senhor... Presidente Comandante
Gomes.
– Saudações, Capitão Heinlein. O senhor é da Inteligência americana, não?
– Bem... sou, sim, mas isso é segredo.
– Certo. E convidamos o senhor a testemunhar o que encontramos. Seus superiores precisam saber imediatamente.
– O que é que temos?
– Veja por si mesmo, e confirmaremos as conclusões.
– Então vejamos a carga. – Entraram num galpão improvisado.
Heinlein declarou para um público imaginário:
– Cinco Mech alemães, nomeados “Valkrye” no casco. Material: alumínio e aço.
Sem blindagem. Armamentos: canhão de 80 mm e baterias de mísseis.
– Observe os motores, por favor.
– Turbina a jato, um em cada “perna” e um principal, no tronco. Vários exaustores e...
Heinlein parou para realizar alguns cálculos. Finalmente compreendeu.
– Isto... esta máquina...
– Ela voa, capitão Heinlein. Os nazi desenvolveram um Mech voador.
– Mas para quê?
– Propaganda. “A prova da superioridade da tecnologia alemã”. Para neutralizar
nossos Mech de artilharia. Por isso, chamamos os senhores. Seu departamento de
contrainformação precisa saber e se preparar.
– Podemos levar um deles conosco?
– Levem dois, mas ficaremos com o resto, para análise e engenharia reversa.
– Claro, claro. Partiremos imediatamente. Muito obrigado pela cooperação, senhores.
Após a saída do oficial norte-americano, Miro e Gomes se entreolharam.
– São três Mech...
– E precisamos de dois, para engenharia reversa.
– E o último...
– Eu pilotarei! – disse Gomes.
CORAÇÕES DE FERRO
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– Não deve, senhor. Afinal o senhor é presidente da República, não deve correr
estes riscos.
– Eu renuncio! Nomeio um substituto. Mas eu piloto esta coisa!
– Ai, meu deus... Certo, vamos fazer os arranjos. Mas temos de dar um nome
correto, afinal não podemos chama-lo Valquiria. É nome de mulher-à-toa.
– Certo, pela seqüência dos deuses africanos, que tal Oxumarê, a serpente voadora?
– Pelo menos, não o chamaremos “pomba-gira”...
Fevereiro, 1954. Rio de Janeiro. Sede das Nações Unidas
O presidente do Brasil, Oswaldo Aranha, inicia a primeira sessão das Nações
Unidas, após a vitória aliada contra os regimes totalitários.
– Graças a Deus, acabou
34
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ERNESTO NAKAMURA
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36
ESPERANDO O CAVALEIRO
NEGRO NO CAVALO BRANCO
– Então estás aí, minha querida? Vês, estou pronta para receber teu príncipe
encantado, teu cavaleiro negro no cavalo branco... Vês minha meia-calça? Pensei em
uma cinta-liga, mas ele decerto consideraria vulgar, o tolo apaixonado...
– Vadia...!
– Ora, vamos, que tais palavras não cabem bem... na tua boca, tão santa, tão
pura... Ainda não sei se vou me controlar esta noite. Talvez me deixe levar, ser cavalgada por aquele potranco... dizem maravilhas dos negros na cama!
– Me recuso a ver, presenciar isso...
E o silêncio, que minha nova dona saboreia, é doce a vingança em seus lábios
sorridentes. Ela sabe que a outra não tem escolha a não ser ver. Você deve se perguntar quem sou eu, pois bem: eu sou o negro. Não, não o príncipe que se deliciará com
minha nova dona, mas o gato.
E que cena, não? Uma mulher cheia de desejo, a ponto de aprisionar sua metade,
apenas por lascívia e luxúria. Apenas? Não é isso que move o mundo? “Crescei e
multiplicai-vos”, já ouvi minha antiga dona, pura e imaculada, orar. E eu. O gato, negro.
Que vê, pensa e relata o que aconteceu naquela noite fatídica.
Eu acompanho minha dona, a real, há apenas alguns anos. Foi vê-la e saber que
ali estava minha oportunidade. Santa e imaculada por fora, uma mulher normal por
dentro. Não, não se engane, ela era realmente imaculada e pura até então. Ela apenas... reprimia seu outro lado. Com asco, quando via qualquer homem, reprimia e resfriava o estremecimento, as borbulhas no estômago. Ignorava que o balé que dançava era
visto por centenas de homens com uma lascívia praticamente pedófila. Mas não ignorava as visitas que eles faziam a seu pai apenas para contemplá-la, desejá-la e, claro,
cortejá-la. Usava como um meio de exercitar seu distanciamento relativo aos homens.
Agora, seu pai estava morrendo e ela precisava se casar.
Quando ela o viu pela primeira vez, nem todas as suas forças foram suficientes
para evitar a tremedeira. O chá se derramou e seu pai ralhou, apenas com os olhos,
aquela demonstração de desejo e fraqueza. Porém, o visitante sequer notou. Respeitoso, encarava o pai nos olhos, sem desviar jamais para apreciá-la. Foi tomada por um
sentimento que jamais teve: raiva. Imensa, por ele não prestar atenção nos seios, na
pele branca, nos cabelos sedosos. Quem pensava que era?
Porém, se controlou. A raiva foi a força necessária para acabar com o estremecimento. Pensou em como se render ao desejo a tinha levado à raiva, ao ciúme, à inveja.
Rejeitou tudo e, como a boa dama que era, serviu o chá e se retirou. Porém, ao servi-lo,
notou que o homem prestava reverência ao pai, como um capitão prestaria ao seu
velho general. Ficou triste com o pesar nos olhos daquele homem, que apenas com a
expressão em seu rosto conseguia demonstrar amor e lealdade incondicionais ao pai.
ESPERANDO O CAVALEIRO NEGRO NO CAVALO BRANCO
37
Ela não sabia, mas estava apaixonada.
O que ela também não sabia é que aquele momento de fraqueza foi o que eu
precisava – e aguardava – para começar meu trabalho.
Com a aprovação do pai, o homem começou a freqüentar a casa. Porém, para
surpresa de minha dona, não era por ela, era a pedido do pai. Ele não demonstrava
interesse em conhecê-la. Nos poucos momentos em que se encontravam a sós, ele apenas a cumprimentava ou se despedia. Porém, ela passou a reparar mais no objeto de sua
paixão, no porte que ele possuía, como de um príncipe, apesar dos modos meio rudes de
quem não fora educado na nobreza. Parecia ser inteligente, mas não particularmente
educado. E acendia os desejos dela como jamais ela pensou que fosse possível.
Começou a sublimar o desejo que sentia, o estremecimento, tentando convencer
a si mesma de que não era luxúria, mas, sim, amor. Que era isso o que as mulheres
santas, devotadas aos maridos, deviam sentir no íntimo. Mal sabia ela que estava se
fracionando, dividindo-se em duas personalidades, a cada dia mais. E eu, de minha
prisão, incentivava. Afinal, eu era só o gato... Podia sempre estar por perto. O que um
mero gato poderia fazer de errado? O que um gato poderia causar de ruim?
Talvez você se questione como eu pude esperar tanto tempo. Os meses e meses
de aproximação, de sedução à distância, de libertação da minha nova dona e aprisionamento da antiga, o que só foi possível pela minha presença e pela recusa do pai em
morrer. O tempo passava, os curandeiros pregavam a morte próxima, rápida, “em breve”, eles diziam, mas o velho continuava ali. Talvez eu tenha influenciado isso, também,
não sei dizer. Mas imaginava que, sem o consentimento silencioso do velho, ela poderia
recuar, virar freira, algo assim.
Mas eu já estava presa naquele gato. Eu já era o gato... há tanto tempo... que
aguardar mais alguns meses, ou mesmo anos, não seria um sacrifício. Analisando hoje,
enquanto vejo minha filha correr pelo pátio e enfeitiçar pequenos insetos por diversão,
não poderia ter sido diferente. O velho morreu quando o romance dos dois precisava
apenas de um empurrão para acontecer. O velório e o choro inconsolável acabou com
as forças da puritana, deixando a sua outra face assumir. O feitiço foi simples e, claro,
foi meu, ainda que eu tenha penado nos anos em que estou... estava... presa para
aprender a manipular a natureza com um corpo tão limitado.
Eu ainda não tinha força para deixar o gato e tomar o corpo daquela criança, tão
dividida quanto confusa sobre a vida. Criada apenas pelo pai, ela não poderia saber
que o desejo é a força mas também a fraqueza de uma mulher. Não tinha como entender que ela tinha que conciliar essas forças, aparentemente impossíveis de serem conciliadas, com seus interesses, com sua pureza aparente. Ela tinha tudo para ser perfeita
aos olhos de todos, e é. Ou melhor, sou.
Hoje, as duas me contemplam lamurientas de seu espelho-prisão. É claro que
apenas eu posso vê-las e ouvi-las. São burras, as pobres... ficam ali se perguntando
“Por que?” e querendo a liberdade. Não que eu vá explicar algum dia. Enquanto aquele
espelho estiver inteiro, eu estarei viva e plena em meus poderes, com meu marido
humilde, obediente e quente para me divertir. E então, um dia, minha tão aguardada
vingança terá lugar...
.
38
FERNANDO TREVISAN
39
40
A RELATIVIDADE
E O ENGENHEIRO
(ou o Enfeite da Terra e a Árvore de Natal)
O engenheiro de propulsão caminhava silenciosamente pelo corredor externo da
espaçonave, o rosto tristemente resignado. De um lado do corredor utilitário, a parede
transparente – de plástico de altíssima resistência mecânica – voltada para a escuridão
do espaço profundo, que era quebrada, de vez em quando, pelo brilho fraco de uma
estrela ou pelo brilho mais forte de um sistema binário. Do outro, a parede interna, com
decorações natalinas cuidadosamente espaçadas. Ele sempre se surpreendia com a
precisão com que os robôs controlados por Valentina, a inteligência artificial que comandava a nave, conseguiam arrumá-los. Podia jurar que os enfeites estavam exatamente à mesma distância uns dos outros. Nem poderia ser diferente.
“Não há espaço para falhas no Espaço”, lembrou da frase favorita do seu instrutor
com um sorriso irônico.
Mas, no momento, o que o surpreendia era a calma no corredor. Mesmo em uma
área de acesso restrito apenas a pessoas da engenharia de manutenção, sempre havia
movimento, pessoas indo e vindo, técnicos e robôs verificando e consertando coisas.
Mas, hoje....
Talvez fosse por causa da data.
O engenheiro nem precisava olhar para o comunicador de pulso ou acessar a
intranet da nave. Sabia a data local perfeitamente: 24 de dezembro de 2098, sendo
“data local” a expressão-chave para seu temperamento naquela hora.
“Será que essa data realmente quer dizer algo?”, pensava.
Sua linha de raciocínio foi interrompida por um som. Levantou os olhos e viu um
vagão com um homem, correndo pelo trilho magnético ao centro do corredor.
– Olá, Carlos! – O homem do vagão o cumprimentou.
– Ah, oi, David! – O engenheiro reconheceu o colega de trabalho: dividiam o mesmo turno no controle do motor nuclear.
– Tudo bem? A Denise está preocupada, pediu para que eu te encontrasse!
– Desculpe-me. Fiquei andando para espairecer um pouco e perdi a noção do
tempo...
Os olhos azul-escuro de David mostravam que Denise não era a única pessoa
preocupada com seu bem-estar.
– Você está mesmo bem, Carlos? Não quer que eu te dê uma carona?
A RELATIVIDADE E O ENGENHEIRO
41
– Não é necessário. Já vou para a cidade. – Carlos indicou uma escotilha mais a
frente, com uma luminária acesa com a mensagem: “Para a cidade”.
– Então, está certo. Você vai para a festa, não é?
– Claro, pode ficar tranqüilo. Tenho que entregar o presente para minha afilhada,
não é? – O engenheiro forçou um sorriso.
David riu.
– É, a Cristine está doidinha pelo seu presente. Bom, tenho que checar os
biopurificadores no nível 7 antes de ir para casa. Até mais, e Feliz Natal, Carlos!
– Feliz Natal, David. – O engenheiro se despediu.
Três minutos depois subia o corredor de acesso e abria a escotilha sobre sua
cabeça, que dava para a cidade. A visão era de uma cidade normal de médio porte,
para quinze mil pessoas. A diferença é que esta cidade se enrolava sobre si mesma,
construída sobre a superfície interna de um cilindro de trinta e cinco quilômetros de
diâmetro e cem quilômetros de comprimento. A gravidade era gerada pela rotação
desse cilindro sobre seu próprio eixo, permitindo uma vida normal para a população
colonizadora.
“Mas, quão normal?” Carlos pensou, caminhando pelas ruas da cidade, estas sim
cheias de luzes, enfeites e gente, seja pessoas correndo para conseguir os presentes
de última hora, seja apenas aqueles andando juntos com seus familiares e amigos.
O engenheiro parou em frente da vitrine de uma loja de doces, cego para a tentação das guloseimas. Viu o reflexo de um homem de 41 anos, começando a ficar calvo e
olhos tristes. Bem diferente do começo.
Ele se lembrava de seu embarque na Esperança, a espaçonave em que estava agora.
Tinha dez anos de idade quando seu pai o acordou no meio da noite e ordenou
gentilmente que arrumasse suas coisas. Sem dizer palavra, começou a colocar suas
coisas na mochila. Imaginava se estariam fugindo, novamente, dos agentes da “Nova
Moralidade”, o movimento fundamentalista antitrans-humanismo que controlava o governo terrestre. Carlos e seu pai eram considerados traidores da humanidade por terem
recebido uma melhoria genética em seus sistemas imunológicos. Ele ainda se lembrava dos nomes falsos que usaram, da subida no Elevador Espacial, da visão da brilhante
safira azul que era seu planeta de origem, da incrível viagem até Marte, sem saber que
embarcaria numa jornada ainda mais surpreendente.
Mesmo hoje, trinta “anos” depois, Carlos e a maioria de sua geração não sabiam
como seus pais tinham forjado suas identidades e todos os dados necessários para
que os “inimigos da humanidade” passassem por “colonizadores” ao embarcar na Esperança. A nave foi projetada para uma viagem para Payne 45b, o único planeta detectado com grande possibilidade de suporte à vida terrestre. E não sabia como tinham
conseguido o impossível: roubar a nave para fugir do Sistema Solar que os rejeitava.
Quando a “Nova Moralidade” percebeu o acontecido, já era tarde demais.
42
JOSHUA FALKEN
Eles já tinham atingindo a velocidade de escape. Ali começou seu trajeto de quarenta anos, relativamente falando.
Carlos caminhava pelas ruas lotadas para o apartamento do amigo David.
E “relativamente” era outra palavra-chave, que ele só entendeu quando começou
a estudar para assumir um posto na engenharia de manutenção no mundo artificial em
que tinha vivido praticamente por toda a vida
Em 1905, um jovem físico, que trabalhava num escritório de patentes, chamado
Albert Einstein descobriu um fenômeno chamado de “dilatação do tempo”. A idéia era
simples: quanto mais rápido um objeto se move, mais lentamente o tempo passaria para
aquele objeto em relação a um observador estacionário. O que pode parecer algo curioso, mas um tanto esotérico: e afinal, o que isso importava para eles, na Esperança?
Simples: na velocidade gerada pelo gigantesco motor nuclear da nave, enquanto
trinta anos se passavam em seu interior, quinhentos anos se passavam na Terra.
Meio milênio.
Carlos nem poderia imaginar o que isso poderia significar, mas ao mesmo tempo
não podia deixar de tentar. Que mudanças teriam ocorrido em seu planeta? Será que a
“Nova Moralidade” tinha caído no ano seguinte a sua fuga? Ou ainda governava a Terra?
Que tipo de mundo a Terra seria agora?
Será que ela ainda existia, afinal de contas?
Eram perguntas que nenhum dos habitantes da nave saberia responder.
Carlos chegou e foi logo abraçado por Cristine, a filha de David, sua afilhada.
– Padrinho!
Com um sorriso um pouco menos triste, o engenheiro entregou o presente, que a
garota desembrulhou imediatamente. Ela olhava maravilhada para a pequena Terra que
segurava, o planeta que só conhecia dos registros da intranet da nave e das histórias
dos adultos.
“Mas será que você, ou qualquer um de nós, reconheceria nosso planeta natal se
fosse até lá?”, pensou.
Cristine colocou o enfeite num lugar de destaque na árvore de Natal no canto da
sala, junto com outros enfeites que representavam os outros planetas do Sistema
Solar original.
A menina era de uma geração que nasceu no mundo da nave, sem conhecer a
superfície de um planeta, um ecossistema sem controles artificiais. Será que ela suportaria a transição quando chegassem em Payne 45b em dez anos? E será que ela teria
a chance de voltar ao planeta natal de seus pais?
.
Ou a relatividade seria a barreira que deixaria a Terra para sempre como um simples enfeite de Natal?
A RELATIVIDADE E O ENGENHEIRO
43
44
JESUS, APRENDENDO
A PEDIR
Eons atrás – ou talvez Eons no futuro... –, havia Alvorada, cidade entre os rios
gêmeos Tiaros e Bícaro.
Construída praticamente com material reaproveitado da cidade dos Ancestrais,
poderosa civilização desaparecida, Alvorada era a mais importante cidade humana de
que se tinha notícia, exceto por lendas e estórias perdidas no tempo.
Mesmo no verão, a sombra do maior palácio de Alvorada não era suficiente sequer para
atingir toda a extensão do portal do menor dos prédios dos Ancestrais. Negros e
imperturbáveis, os gigantescos edifícios desabitados dos Ancestrais eram assombrados por perigos desconhecidos. Em seus telhados, monumentais figuras de esqueletos, como gárgulas, pareciam observar com desdém a insignificante cidade nascida de
seus restos.
Das riquezas deixadas pelos Ancestrais em seus edifícios, quase nada se sabia,
já que poucos foram os afortunados que retornaram com vida das incursões feitas
anualmente.
No segundo Palácio mais alto em Alvorada, apenas uma janela brilhava, iluminada
na noite.
– Jeeesus! Jesus! Jeeeeeessuuuuuuuusss!!! – Em um quarto escuro, rompendo o
silêncio da madrugada, a bela mulher ofegava em êxtase – Ahhhhhhhhhhhhhhhh! –
gritou finalmente antes de cair quase desacordada, braços estirados ao longo do corpo
sem roupas.
Ao seu lado, na cama, Jesus se preparava para acender um cigarro, enquanto
tentava se livrar da camisinha feita de intestino de peixe, cuidando para não se confundir na execução de ambas atividades.
O “Esperto Jesus”, como era conhecido na cidade, era um jovem de boa estatura.
Tinha compleição longilínea, cabelos negros e lisos sobre os ombros, pequenos olhos
verdes e nariz grande e fino. Suas pernas longas faziam dele um excelente corredor e
incansável caminhante. Conjugadas estas características com uma mente ágil e inquieta, resultava-se que o Esperto Jesus era mais inclinado à aventura do que a se estabelecer definitivamente em local ou ofício. “Nenhum lugar é melhor para O Esperto
Jesus do que na próxima aventura”, costumava dizer, quando perguntado.
O caro cigarro de erva-doce, obtido em uma “revista” no gabinete do marido da
garota ao seu lado, foi finalmente acendido.
Após algumas tragadas, Jesus o colocou de lado e tocou mais uma vez no
homúnculo verde que trazia amarrado em uma tira de couro ao redor do pescoço. Quem
olhasse distraidamente, julgaria que o objeto era apenas um pingente de gosto duvidoso: Uma pequena figura humana de metal ordinário verde-sujo, com aproximadamente
JESUS, APRENDENDO A PEDIR
45
dois centímetros de comprimento. Na verdade, tratava-se da mais importante posse
que Jesus já tivera. Um dos lendários homúnculos, com grandes poderes!
O problema é que o Esperto Jesus, até o momento, não conseguira fazer o
homúnculo confessar quais eram exatamente estes poderes e, muito menos, utilizá-los
totalmente em seu benefício.
Sentado na cama, ouvindo a mulher ao seu lado ressonar no conforto preguiçoso
da satisfação sexual, ele pensava no episódio de duas noites atrás.
Logo após ter obtido o homúnculo, Jesus aprendera um pouco sobre ele. Sem
dúvida, tinha que ser cuidadoso com seus pedidos, se não quisesse sair machucado:
– Eu quero todo a riqueza do mundo – tinha dito Jesus para o homúnculo, logo que
o vínculo entre eles se estabeleceu; o humano com o domínio sobre o multidimensional.
Ambos estavam em um acampamento improvisado montado pelo homem, próximo
dos frios charcos ao sul de Alvorada. Era uma zona pestilenta e parcamente habitada. O
homúnculo repousava sobre uma pedra do tamanho de um crânio, parcialmente enterrada na lama, enquanto que Jesus encolhia-se diante de uma incipiente e insuficiente fogueira, vestido apenas com um chapéu e torcendo para que as roupas secassem logo.
– Eu gostosamente forneceria toda a riqueza do mundo para você, ó abominável,
mas não posso fazê-lo sem prejudicar grandemente meus interesses – respondeu a
criatura, sem fazer qualquer movimento aparente.
Jesus acocorou-se melhor e retirou da cabeça o chapéu negro de aba mole, adornado com penas de pavão, fingindo examinar seu interior enquanto pensava sobre a
resposta do homúnculo.
– Você diz que gostaria de me dar toda a riqueza do mundo? Examinemos esta
assertiva, escravo. Por que você gostaria de me dar toda a riqueza do mundo? – perguntou Jesus, limpando alguma lama das penas de pavão.
– Porque “o mundo”, como você chama, é um planeta muito maior do que você
poderia percorrer com suas pernas em centenas de anos. Evidentemente, este conceito simples de “planeta” está além da sua compreensão. Mas tomando seu pedido como
feito, eu teria que preencher o espaço acima do solo de Alvorada até que tocasse a lua.
Isso se eu escolhesse apenas os bens mais comuns como ouro, pedras preciosas,
metais preciosos, artefatos de valor econômico apreciável.
– Hummm... Deixe-me ver se compreendi. Você está dizendo que poderia “enterrar” tudo isso aqui debaixo de toneladas de ouro e pedras preciosas?
– Evidentemente, ó execrável.
– Mas você não poderia ter o bom senso de examinar meu pedido sob uma ótica
mais favorável? Afinal, de que me serviriam riquezas se eu estivesse morto, enterrado
sob toneladas de ouro?
– Sim, eu compreendo e poderia ter esta espécie de bom senso. Isto é, claro, se
eu não estivesse em uma posição na qual não me sinto inclinado a conceder favores a
você, meu captor, a quem estou ligado contra a vontade.
– Certo, compreendi. Potencialmente, então, qualquer pedido que eu fizer poderá
ter conseqüências muito diferentes das que eu tenho em mente, perigosas e letais.
46
LEO CARRION
– Exatamente, ó pérfido.
Jesus abaixou-se e tentou acelerar a fogueira assoprando. Isto foi o suficiente
para que ela apagasse definitivamente, deixando os dois seres sob a luz das estrelas e
da lua minguante.
O homem dedicou-se a pensar no que tinha sido falado pelo homúnculo, além de
espirrar de tempos em tempos.
Estes pensamentos foram interrompidos pela pequena explosão ocorrida onde
antes se encontrava a extinta fogueira. Em segundos, uma chama azulada cresceu
poucos centímetros e firmou-se tremulamente. Jesus olhou para o homúnculo, que não
demonstrava qualquer alteração.
– Vejamos então, verdinho. Você disse que me daria toda aquela riqueza mortal e
inútil, mas isto contrariaria seus objetivos. Explique-me esta segunda parte, a questão
dos seus objetivos.
O homúnculo fez um de seus raríssimos movimentos e sentou-se na pedra. Desde
que ambos estavam juntos, poucas horas, era a terceira vez que o homem via a criatura
mudar a posição ou forma.
– Uma vez que me encontro preso a você até que resolva me libertar do encargo,
tenho que mantê-lo em condições de dizer a fórmula da libertação.
– Ahá! Entendi! Então, precisa que eu permaneça vivo para que um dia eu te
liberte! Isso faz de mim, na prática, imortal?
– Evidentemente, meus poderes não são ilimitados, ó paspalho. E quão limitados
eles são é uma informação que prefiro guardar. Há pouco, por exemplo, reacendi o fogo
para que você não tivesse risco de contrair uma doença fatal, prendendo-me neste
mundo desprezível por toda a eternidade.
Jesus olhou para a minguada chama que, no momento, produzia mais fumaça do
que calor. O lado bom é que espantava parte dos insetos.
– Percebi que reativou o fogo, mas com baixa intensidade. Isto é uma amostra do
que me espera no futuro? Sua “boa-vontade” para comigo se limita a manter-me com
vida, dentro de seus poderes, mas sem garantia de qualquer prazer, luxo ou conforto?
– Eu mesmo não teria colocado de melhor maneira, “meu senhor” – disse o
homúnculo, usando de uma inflexão irônica bastante perceptível.
– E porque, seu pequeno bastardo, não manda uma praga de mosquitos ou me
arranca as pernas até que eu aceite dispensá-lo, para depois me matar com satisfação?
– Infelizmente, estas ótimas idéias são impraticáveis para mim. – respondeu o ser.
– Pela natureza de nossa ligação, posso apenas agir quando você me pede alguma
coisa ou quando você demonstre evidente interesse, como no caso da fogueira. E matálo depois da minha libertação também me é impossível. Uma vez liberto, desaparecerei
imediatamente desta dimensão.
O aroma perfumado do fumo de erva-doce preenchia o quarto, enquanto o Esperto Jesus desfrutava o calor da mulher deitado de barriga para cima, olhando para a
figura em sua mão. Quantas maravilhas como estas estariam ao seu alcance? Bastava
fazer os pedidos bem detalhados e com extremo cuidado, convencendo a criatura de
JESUS, APRENDENDO A PEDIR
47
que seus interesses estariam em jogo. E nisto, Jesus tinha se revelado um mestre!
Após muitas horas de indagações cuidadosas, Jesus construiu um pedido que
detalhava tudo que pudesse acontecer, não dando espaço para que o homúnculo “criasse” situações embaraçosas.
Como “teste” de seus novos horizontes, requisitou fazer amor com a mais desejada mulher de Alvorada, chamada Flor de Têmeris, além de utilizar os luxos do palácio
de seu marido.
Por horas, Jesus aproveitou todas as delícias da mais jovem esposa de Cratus de
Têmeris, prefeito da cidade e homem só menos importante que o próprio Kais, soberano de toda a região.
Jesus tomou o cuidado de requerer especificamente que não poderia ficar impotente, que a mulher deveria desfrutar e apaixonar-se e, mais importante, não serem
interrompidos por homem algum. Mais ainda, que homem algum estivesse presente no
palácio de Têmeris durante um dia inteiro, exceto o próprio Jesus.
Justamente por ter tido todos estes cuidados, o homem foi surpreendido quando a
porta do quarto, onde estava deitado com Flor, foi arrombada repentinamente deixando
entrar diversas figuras de larga estatura e armadas com afiadas espadas.
Durante as horas seguintes, Jesus foi metodicamente espancado por um grupo de
violentas mulheres. A cada golpe, Jesus maldizia o homúnculo pendurado em seu pescoço.
Quando voltou a si, descobriu-se totalmente nu, exceto pelo homúnculo preso ao
redor de seu pescoço. Encontrava-se preso pelos pulsos em uma viga de madeira de
algum subterrâneo do palácio. Tinha lesões por toda parte, mas nada aparentemente
quebrado.
Logo, percebeu que o fato de não poder falar devido aos seus machucados não o
impedia de se comunicar com o homúnculo. Após um bom tempo em que apenas conseguiu articular ofensas, Jesus resolveu questionar seriamente o ser mágico:
– Quando eu falei que não queria ser interrompido por homens, você entendeu
que eu poderia ser surrado por mulheres incrivelmente fortes?
– Achei que você precisava de uma demonstração mais ilustrativa de nossa relação – respondeu o homúnculo.
– Suponho que não vou ser morto pelo prefeito, porque isso contraria seus interesses, não é?
– Sim. Acredito que contraria nosso mútuo interesse, na realidade. Se observar
seu punho direito verá que os nós soltar-se-ão assim que puxados. As portas também
revelar-se-ão destrancadas em seu caminho até a rua.
– Não é capaz sequer de desatar todos os nós, desgraçado? Sabe que, mesmo
que eu escape com vida deste palácio, isto não significa que terei chance de sobreviver
na região de Alvorada. Parece-me relativamente claro que me equivoquei no pedido.
Deveria ter começado com um teste menos perigoso potencialmente.
– Se lhe serve de consolo, testes mais simplórios não garantiriam nada, ó “mestre”. Eu poderia deixar que ganhasse confiança com coisas menores até escolher algo
como esta situação para aplicar-lhe um corretivo. A mim, parece que o arranjo foi perfei48
LEO CARRION
to. Mas não tema. Tratando de nossos interesses em comum, ninguém será capaz de
lembrar-se de suas feições e associá-lo ao episódio.
Enquanto dialogava com o homúnculo, Jesus se liberara de todas cordas e permanecia parado no meio da sala.
– Não sairei sem roupas, não importa o quanto isso seja comprometedor para os
nossos interesses – disse, sublinhando a palavra “nossos” com ênfase.
Como resultado, surgiram roupas em seu corpo. Não as roupas que tinha escolhido dentre as melhores que pudera encontrar no palácio antes de seu intercurso com
Flor, mas as suas habituais, remendadas, gastas e ainda cheirando a charcos.
– Desgraçado, filho de uma rã caolha! – disse Jesus, ao sair pela porta.
Fora do palácio, Alvorada torrava ao sol de verão. Uma cidade de construções
baixas onde a palavra tecnologia não significava outra coisa que não “magia”.
Mancando rua abaixo, em direção ao bairro das tabernas mais ordinárias, seguia
o Esperto Jesus com uma tira de couro enrolada na mão, de onde um enfeite despretensioso e verde balançava.
– Você está enganado se acha que vai se livrar de mim assim fácil, verdinho –
disse para o homúnculo. – Tenho aqui alguns recursos e idéias que você vai achar
surpreendentes, meu caro, para um ser humano que julga tão inferior. Acho que vou
conseguir surpreendê-lo no futuro, escravo.
– Para mim, o tempo tem um correr diferente, ó pestilento. Aguardo com curiosidade suas tentativas de fazer-me surpreso. O mais provável, no entanto, é que apesar dos
meus esforços você acabe morto em algum rincão solitário, deixando-me preso eternamente nesta realidade desprezada pelos Deuses
.
JESUS, APRENDENDO A PEDIR
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50
SONHO
RUIM
Sob o sol inclemente do verão de 1970, o pequeno caixão branco brilhava, enquanto o choro de uma mãe desconsolada quebrava o silêncio respeitoso do cortejo fúnebre.
Da porta da sua clínica, Marcus Kendall observava a procissão de imigrantes
haitianos, todos habitantes de Red Creek, Flórida. Com 30 anos, o médico parecia
naquele momento ter uma década a mais.
– Já é a quarta criança, só neste mês – murmurou para si mesmo, enquanto
passava a mão pelos cabelos ruivos. – O que está acontecendo nessa cidade?
– A culpa não é sua – disse Laura Powers, a enfermeira que o auxiliava no consultório de Petit Haïti, um labirinto formado por vielas, becos e casas de madeira e que
constituía o bairro mais miserável do município. – Todos sabem que você está fazendo
o melhor por aqui.
O médico meneou a cabeça, tentando acreditar no que a enfermeira dizia. A cidade,
habitada por pouco mais de 2 mil pessoas, tinha alguns dos piores índices sociais dos EUA;
a região do condado de Red Creek era considerada uma vergonha regional e, se continuasse naquele ritmo, nacional também. Petit Haïti era praticamente uma sucursal do Terceiro
Mundo encravada no Primeiro. Kendall sabia, ao aceitar aquele emprego público e mudarse do Norte rico para o Sul pobre, que tinha um desafio enorme pela frente.
Mesmo assim, cada morte infantil o desanimava, ainda mais quando os óbitos não
tinham uma explicação.
Era o caso de Henri Lambert, que agora seguia para seu descanso final. O cemitério tinha sido erguido pelos primeiros haitianos que chegaram na região, no início dos
anos 60, fugindo da ditadura instalada na ilha caribenha por François “Papa Doc” Duvalier.
Os Lambert haviam procurado Kendall na tarde do dia anterior, trazendo o bebê de
meio ano de vida com febre alta e um quadro de fraqueza geral.
O médico detectara mais do que isso. Havia um odor diferente acompanhando a
criança, o mesmo que havia percebido em outros pacientes que procuravam a clínica;
sua origem eram as loções feitas de ervas que, Kendall aprendera, eram usadas por
muitos curandeiros adeptos do vodu em suas tentativas de cura. Não era mistério
para o jovem médico que aqueles imigrantes, formados em quase sua totalidade por
pessoas de baixa instrução e extremamente supersticiosas do interior do Haiti, sempre procuravam os sacerdotes voduístas em caso de doença; a medicina era sempre
o último recurso.
Mas mesmo a ciência não conseguira ajudar Henri. Ainda que tivesse apresentado uma pequena melhora algumas horas após dar entrada, e tivesse ficado em observação durante a noite, a criança falecera pela manhã.
Sem qualquer explicação possível.
SONHO RUIM
51
Marcus soltou um longo suspiro, o ar escapando do corpo fatigado. Sentiu um
calafrio percorrer-lhe o corpo; em um primeiro instante, pensou que fosse uma gripe,
após semanas de trabalho incessante.
Foi quando viu pelo canto dos olhos a mulher do outro lado da rua.
Era uma senhora franzina de pele escura, umas duas décadas mais velha do que
o médico. Vestia um vestido de algodão azul e corte simples; na cabeça, levava um
lenço vermelho amarrado. Seus olhos negros, semicerrados, encaravam com firmeza o
casal na porta do consultório.
O calafrio mais uma vez atingiu Marcus.
Não era a primeira vez que ele via aquela mulher. Na ocasião da morte de JeanPierre, a terceira criança a falecer, dez dias antes, Madame Solange posicionara-se
durante cinco minutos ininterruptos na calçada, observando com atenção a clínica. Ela
era, conforme Laura explicara, uma mambo, o nome dado pelo culto vodu às sacerdotisas e curandeiras. Solange era umas das mais conceituadas mambos de Red Creek.
Naquele dia, o médico abrira a porta e, no mesmo instante, ela partiu. Marcus não
entendeu aquela reação, mas Laura comentou que as curandeiras preferiam confiar em
seus espíritos protetores, conhecidos como lwas, e diversas simpatias. A Marcus restou encolher os ombros, pensando que gostaria de ter conversado sobre as técnicas
que ela usava em seus “pacientes”.
E agora lá estava a mulher mais uma vez, observando a clínica, sem piscar. O
cortejo já havia dobrado a esquina, deixando a viela deserta. A temperatura estava perto
dos 40 graus, mas Kendall sentia frio. A presença de Madame Solange o incomodava.
Precisava descobrir o que ela queria.
– Onde vai? – Laura perguntou, os olhos azuis arregalados, ao ver Marcus
abrir a porta.
Mas o médico já atravessava a rua, na direção da mambo, que permaneceu parada. Antes que pudesse abrir a boca para perguntar o que ela fazia ali, a mulher começou a falar em creole, a língua oficial do Haiti.
– Sinto muito, mas eu não estou entendendo – Marcus começou a dizer, numa
tentativa de interromper o monólogo. Madame Solange, no entanto, continuava a falar,
com uma palavra sendo repetida enfaticamente.
E então ela girou nos calcanhares e foi embora, deixando Marcus atordoado
e sozinho.
– Doutor, o que ela tanto disse? – Laura observava o médico, que agora voltava
para o consultório com o cenho franzido.
– Meu creole não é lá essas coisas, devo reconhecer, mas parecia que ela repetiu
várias vezes a palavra... – Marcus parou, sobrancelhas arqueadas, verificando mentalmente se havia ouvido direito a palavra – “canguru”.
52
MARCELO GALVÃO
– Nós estamos bem distante da Austrália para isso fazer algum sentido. – Laura
bebericava, na cozinha da clínica, o café recém-coado. No cômodo, além de Marcus,
estava presente também Charlotte Leclerc, a jovem faxineira responsável por cuidar do
local e que naquele momento lavava a louça.
– Sei disso. Mas foi o que escutei, ou pelo menos o que pensei escutar. “Canguru”,
“aguru” ou talvez “ogaru”...
O barulho de uma louça se espatifando interrompeu Marcus.
– Desculpe-me, doutor – Charlotte balbuciou, enquanto recolhia os cacos da xícara que deixara cair.
– Sem problema. – Marcus sorriu, para logo em seguida bocejar – Melhor eu ir
para casa e descansar. Essa foi uma noite longa.
– Mande lembranças para Claire. – Laura disse, referindo-se a esposa do médico.
– E pode deixar que tomo conta de tudo por aqui.
Com um aceno da mão, Marcus seguiu para o carro, esperando que o telefone da
sua casa não tocasse até a manhã seguinte.
O casal Kendall morava num bairro considerado de classe média em Red Creek. O
sobrado tinha um amplo gramado, assim como um quintal onde Marcus esperava que
seus filhos pudessem brincar com tranqüilidade e segurança. A vizinhança, composta
exclusivamente por brancos, em nada lembrava Petit Haïti.
A casa estava vazia. Um recado pregado na geladeira avisava que Claire fora ao
supermercado, para o desgosto de Marcus: na opinião dele, a esposa, grávida de 7
meses, não deveria sair de casa sem necessidade.
Marcus, porém, bem sabia que seria impossível fazê-la mudar de idéia. Claire era
uma mulher agitada e independente, que jamais ficava parada por muito tempo. O rapaz
às vezes se pegava pensando em como era sortudo em ter encontrado uma companheira compreensível, que resolvera seguir o marido quando este decidiu encarar um novo
desafio e mudar-se para a Flórida. O salário pago pelo município também era bom.
Se quisesse, Claire poderia ter exigido que ficassem em Boston. Mas, mesmo
grávida do primeiro filho, ela decidira que valia pena seguir o sonho do marido de se
estabelecer como médico de uma cidade do interior.
E agora lá estava Marcus Kendall, enfrentando a maior dificuldade da sua ainda
curta carreira médica, vendo sua confiança ser abalada pelas mortes infantis. A imagem de Madame Solange surgiu na sua mente e mais uma vez ele ficou intrigado. O
que diabos a mulher queria dizer?
Ele precisava saber e, para isso, teria que visitá-la. Mas antes precisava de uma
boa ducha e algumas horas de descanso.
A casa de Solange localizava-se em um lugar ermo de Red Creek, próximo de um
riacho. Nos fundos da propriedade, ficava o oufò, o templo vodu onde ela realizava as
SONHO RUIM
53
cerimônias. A noite começava a surgir quando Marcus atravessou o portão de madeira
que dava acesso ao quintal. Após caminhar alguns metros, encontrou o oufò, que não
passava de um barracão de paredes de madeira e telhado de zinco, com uma decoração composta por bandeirolas vermelhas e verdes. No centro, erguia-se um poste de
quase dois metros, com um arco-íris e uma serpente. Representavam, como Marcus
lembrou do “curso básico” sobre voduísmo que Laura ministrara quando ele chegou na
clínica, os lwas principais: Dambala e Ayida Wèdo. O poste era chamado de poteaumitan e servia como uma espécie de ponte pela qual os espíritos chegavam para possuir seus adoradores.
O vodu era uma religião em que a magia estava presente no dia-a-dia, Laura
dissera. Ela havia comprovado aquilo em primeira mão, durante os três meses em que
vivera no Haiti, um ano antes. Na ocasião, como enfermeira de uma organização de
ajuda humanitária, ela presenciara pessoas que acreditavam em feitiçaria, mau-olhado
e, é claro, zumbis.
A decoração colorida do oufò desaparecia conforme as sombras da noite avançavam pelo lugar. O lugar parecia deserto; pelo o que Laura lhe havia informado, hoje não
era dia de culto. Da entrada do barracão, Marcus chamou por Madame Solange.
Nenhuma resposta.
Marcus avançou mais alguns passos. De algum lugar do fundo do templo, agora
na escuridão, veio um ruído.
– Tem alguém aí? – Marcus fez a pergunta em voz alta.
A resposta foi o ruído e que agora pareceu aos ouvidos do rapaz um gemido.
Alguém estava machucado e precisando de ajuda médica. Marcus lembrou-se de
ter visto um interruptor de luz perto da entrada do oufò.
Uma única lâmpada incandescente se acendeu para mostrar Madame Solange
em meio a uma poça de sangue.
O rapaz correu em direção da mambo; palavras em creole eram debilmente sussurradas por ela.
– Acalme-se, por favor – Marcus disse, vendo que a mulher entrava em estado de
choque, seu corpo coberto de lacerações. Mas Solange continuou a balbuciar:
– L-loo...gar...garoo...
Era a mesma palavra, Marcus percebeu, que ela repetira enfaticamente naquela
manhã. E então, revirando os olhos, Madame Solange soltou seu último suspiro.
– Loogaroo – disse uma voz atrás do médico. Marcus voltou-se e viu Charlotte,
parada no centro do templo. – Era o que ela tentava avisar para o senhor.
– O que você está fazendo aqui?
A moça, usando um vestido branco, aproximou-se, mãos cruzadas na altura do colo.
– Sou uma das ajudantes da mambo. – Olhou para a mulher estendida no solo
sagrado. – Desde o dia em que a terceira criança morreu, Madame Solange suspeitou
da presença de um loogaroo em Petit Haïti.
54
MARCELO GALVÃO
Ante a perplexidade estampada no rosto de Marcus, a moça explicou:
– Loogaroo é uma mulher ou um homem que fez um pacto com um lwa maligno em
troca de favores mágicos. Noutras vezes, é um alvo da maldição de um bòkò, um feiticeiro que trabalha com magia negra. De qualquer maneira, a criatura precisa se alimentar de crianças para sobreviver.
Marcus balançou a cabeça de um lado para o outro.
– Charlotte, eu não quero ser desrespeitoso com suas crenças, mas...
– De dia, o monstro anda, bebe e come feito gente, como eu e você. Mas quando
chega a noite, ele esfrega uma poção feita de ervas pelo corpo, até sua pele sair.
Depois de guardá-la num lugar fresco, está pronto para caçar, sua verdadeira carne
exposta, usando suas garras afiadas como foices para escalar os telhados das casas,
procurando por um bebê ou uma criança. Ela bebe o sangue dos pequeninos aos poucos, que acordam pela manhã pensando que foi tudo um sonho ruim.
A moça ajoelhou-se perto da sacerdotisa falecida:
– Madame Solange pediu que eu a ajudasse a fazer um amuleto contra o monstro.
– De um bolso da saia, ela retirou uma pequena bola de pano multicolorida. Marcus
havia visto aquele objeto antes pelo bairro: era um wanga, o tal talismã que protegia
contra o mal, cujo conteúdo era feito de ervas, terra e, alguns diziam, restos de cadáveres. – Loogaroo foi mais rápido.
Ela voltou-se para o médico:
– Sei que é difícil para você acreditar nisso, doutor. É por isso que peço que volte
para a clínica. A senhorita Laura estava tentando contatá-lo quando eu saí de lá. Uma
outra criança foi internada nesta tarde.
Charlotte levantou-se e colocou a wanga nas mãos de Marcus:
– Não deixe que ela morra.
Adele Brun dormia tranqüila em um leito da clínica. Numa cadeira ao lado, Marcus
a vigiava.
Duas horas antes, ele chegara correndo para atender a garota de dois anos, que
havia dado entrada com os mesmos sintomas dos pacientes anteriores. Após aplicar o
tratamento inicial, o médico recomendou aos pais de Adele que ela ficasse em observação na clínica durante a noite, para garantir que os remédios seriam devidamente
ministrados.
Marcus sabia que essa não era a única razão para manter a criança por perto. De
alguma forma, aquelas últimas palavras de Charlotte ainda ecoavam em sua mente,
por mais que não acreditasse em superstições.
Depois de dispensar Laura e telefonar para Claire, informando que passaria a
noite em Petit Haïti, ele resolveu ficar junto da criança. Pegou uma revista na sala de
espera para manter-se acordado, sentou numa desconfortável cadeira de metal e ligou
SONHO RUIM
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o abajur do criado-mudo. O artigo escolhido relatava a viagem à Lua no ano anterior e
não demorou muito para que as pálpebras de Marcus ficassem pesadas.
Um ruído o despertou.
Marcus levantou-se, piscando várias vezes, o coração acelerado. Na cama de
metal branco, Adele continuava a ressonar, o soro preso ao braço magro e frágil. Nenhum barulho anormal no quarto.
Ele ficou mais cinco minutos em pé, esperando notar algo diferente. Convencido
de que tudo estava bem, verificou que era hora do medicamento da garota e caminhou
até a cozinha para pegar um copo d’água.
Um cheiro estranho atingiu suas narinas assim que cruzou o umbral; era o mesmo
que sentira antes nas crianças, inclusive em Adele, e que atribuíra às loções de ervas
dos sacerdotes voduístas. Na cozinha, o odor não só era mais forte como também
sufocante.
O médico concentrou-se, tentando identificar a fonte do cheiro. Avançando pelo
cômodo, percebeu que a origem era a geladeira que usava para proteger vacinas e
medicamentos do clima da Flórida.
Marcus abriu a porta da geladeira. Uma nuvem branca e refrescante o recepcionou,
junto com o odor estranho. Estreitando os olhos, viu uma caixa de papelão nos fundos,
por trás das embalagens dos remédios. Afastou com cuidado os medicamentos e trouxe a caixa para perto.
Não havia dúvida de que aquela era a fonte do cheiro repugnante. Ao colocá-la
sobre a mesa, Marcus calculou que a caixa, de tamanho médio e sem qualquer tipo de
identificação, pesava cerca de quatro quilos. Não existia qualquer tipo de lacre nas
abas dela.
Prendendo a respiração para evitar o cheiro, ele abriu a caixa. Um grito agudo
soou no quarto de Adele. Marcus disparou em direção do cômodo e empurrou a porta.
A primeira coisa que notou foi a abertura no teto, as telhas afastadas permitindo a
entrada de alguém no quarto. Ou naquele caso, de algo.
A criatura parada ao lado do cama de Adele não era humana, ainda que parecesse o rascunho de uma. A iluminação precária do quarto mostrava uma figura feminina,
com músculos viscosos e vermelhos que lembraram por um instante os modelos de
anatomia que Marcus estudara na faculdade.
A semelhança acabava por aí. Dez garras afiadas se estendiam das mãos delgadas, enquanto uma língua comprida se projetava da boca entulhada de dentes triangulares. Era uma loogaroo, com um filete de saliva escorrendo pelo queixo e caindo sobre
a pequena e assustada Adele.
Pelo visto, a criatura não gostava de ser interrompido em suas refeições, pois
saltou de imediato sobre Marcus. O rapaz jogou-se no chão, mas ainda assim sentiu as
garras rasgarem a pele na altura da cintura, o sangue empapando calça e camisa.
Urrando de dor, Marcus levantou-se e viu o monstro com as pernas arqueadas, como
se preparando para um novo bote.
E então a loogaroo estancou, seus olhos azuis fixos em algo no chão. Marcus
56
MARCELO GALVÃO
seguiu o olhar e viu a wanga, que havia caído do seu bolso rasgado. Pelo jeito que o
monstro tremia, o amuleto funcionava.
O médico sabia que não teria outra chance para salvar Adele. A única arma que
tinha por perto era a cadeira de metal, e foi com ela que Marcus atacou a criatura,
batendo repetidamente no tronco e na cabeça. A loogaroo retrocedeu, tanto pelos golpes quanto pela wanga, até encurralar-se no canto do quarto.
– Não me mate – as palavras saíram debilmente da boca sem lábios da criatura.
Marcus, segurando a cadeira, agora toda deformada pelos impactos, mirou os olhos
suplicantes da loogaroo. As imagens de Adele, Henri, Jean-Pierre, Françoise e Daniel
sucederam-se rapidamente em sua mente.
A cadeira de metal desceu uma última vez na direção do monstro.
Um sonho ruim. Foi essa a explicação que Marcus deu para Adele, antes de aplicar-lhe um sedativo, desejando que ele próprio pudesse acreditar naquela explicação.
Mas o corpo inerte no canto demonstrava o contrário. Aproximando-se, Marcus
notou um estado de putrefação avançado, exalando um forte fedor de podridão. Um
outro cheiro chegava ao seu nariz, vindo da cozinha. Marcus lembrou da caixa de papelão; com as mãos trêmulas, afastou as abas.
O rosto de Laura Powers repousava dentro da caixa, junto com o resto da sua pele
que, com uma aparência pegajosa, fora devidamente dobrada como uma peça de roupa.
Durante as três semanas seguintes, Marcus não conseguiu dormir direito pensando no que havia acontecido. E, principalmente, no que ocorrera com Laura.
Na quarta semana, ele decidiu viajar para o Haiti, contrariando o desejo de Claire,
já que faltava apenas um mês para o nascimento do filho. Hospedou-se na capital Porto
Príncipe e tentou refazer o passos que a enfermeira fizera um ano antes. Após uma
semana e vários dólares, ele acreditou ter descoberto uma pista.
No ano anterior, trabalhando como voluntária, Laura socorrera uma criança durante uma colisão de veículos, levando-a para o hospital mais próximo. O pai dela, no
entanto, queria que a filha fosse tratada por curandeiros locais. Após uma grande discussão, a garota ficou no hospital, apenas para morrer dias depois.
O pai nunca perdoou Laura; o boato era de que ele havia pago uma grande quantia para que um bòkò lançasse uma maldição sobre a moça, transformando-a em um
monstro.
Foi tudo isso que Marcus conseguiu em sua estadia no Haiti.
.
Ele chegou em Red Creek no dia em que seu filho nasceu. Na manhã seguinte, os
Kendall mudaram-se de cidade, sem deixar endereço
SONHO RUIM
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58
OLHOS AZUIS,
MANTO RUBRO
Quadros. Pinturas, fotografias. Centenas. Diversos estilos. Todas representando a
mesma pessoa, a misteriosa mulher que transformou a sua vida para sempre. Algumas,
ele mesmo pintou, tendo se dedicado ao aprendizado desta arte apenas para este fim.
A maioria, eram de artistas renomados que ele foi contratando através das décadas. As
fotografias, todas de lindas modelos que tinham alguma semelhança com ela. Porém,
nada até agora, nem lente nem pincel, conseguiu representá-la a contento.
Seu olhar se demora sobre uma das imagens. Uma fotografia que ele mesmo
produziu e tirou no início dos anos oitenta. Já se passaram quase trinta anos. Ontem. A
modelo, a mais parecida com sua musa, provavelmente já deve estar beirando a casa
dos cinqüenta. Impressionar-se-ia em vê-lo com exatamente o mesmo aspecto de outrora? No quadro, ele pode observar com atenção todos aqueles intrigantes símbolos
azuis pintados em seu busto. Lembra-se exatamente deles. Em detalhes. De seu brilho,
que até hoje se reflete em seus olhos. Foi como tudo começou. Ele se lembra. Inclusive
daquilo que não presenciou. Foi há muito tempo...
Uma noite a cada ano, ela visitava outro mundo. Diferente do seu. Um mundo onde
a magia se escondia sob lagoas, atrás de espelhos, e além das trevas. A maior parte do
povo deste mundo não acreditava mais em mágica, mas, às vezes, sob especiais circunstâncias, ou em determinadas datas, era capaz de sentir os seus efeitos. Era um
local estranho para ela, considerando-se que era feita de pura energia mística. Este era
o seu mistério.
Uma noite a cada lua, ele saía para caçar. Séculos de vida, força e velocidade
sobrenaturais. Belo e poderoso. Imortal. Mas possuía duas grandes fraquezas. A luz do
sol o feria gravemente, podendo até mesmo matá-lo. E ele precisava beber sangue
humano regularmente para preservar a sua longa existência. Ah, a fome! Esta era a sua
maldição.
Ela tinha por missão tocar a vida de alguém. Seu instinto a fazia descobrir quem
ajudaria, sempre no momento exato. Devia trazer um pouco de magia. Manter a chama
acessa. Mudar um destino. Isto garantia que ambos os mundos continuassem interligados, e que o seu não cessasse definitivamente de existir. Encanto para este mundo,
vida para o dela. O portal sempre era aberto perto de uma antiga floresta. Florestas
eram lugares mágicos.
OLHOS AZUIS, MANTO RUBRO
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Já perdera a conta de quantas décadas faziam desde que se transformara naquele ser de pesadelo. Sanguessuga. Vampiro. Demônio. Não era exatamente o que ele
imaginava, mas foi precisamente aquilo que ele pediu. Era capaz de sentir a vida pulsando nas veias de suas vítimas a metros de distância. Seu território de caça era a área
de uma velha floresta nas proximidades de sua vila. Florestas eram lugares sombrios.
Vagava tranqüila, após sua viagem interdimensional, enquanto ia tentando descobrir exatamente o que faria desta vez. Já transformara um escravo num rei e ajudara um
jovem a conquistar a sua amada. Já dera a dica da música perfeita para um harpista e
encantara um cego para que voltasse a enxergar. Já levara uma dama ao baile mais
importante de sua vida e auxiliara um garoto a fugir das garras assassinas de seu
padrasto. Gostava do que fazia. E isto a fazia feliz. Até que pôde sentir uma alma negra
e atormentada se aproximando, sorrateiramente.
Espreitava, silencioso, esperando por alguém que pudesse lhe ser fonte da vital
bebida. Não importava sexo ou idade, tampouco classe social. Quando a fome vinha,
imperativa, só lhe restava obedecer. A sensação de prazer era indescritível. Por milésimos de segundo, era como se o seu coração voltasse a bater. Vida. Até que pôde sentila. Nenhum ser humano tinha um aroma tão forte e agradável. Estonteante. Vários metros
de distância ainda os separavam, mas era como se a noite inteira tivesse se iluminado,
como num passe de mágica. Seguiu em direção à luz.
Num instante, ela teve certeza de que a sua busca terminara. Era ele. Seu objetivo.
Já sabia exatamente o que fazer, tal era a sua natureza. No momento certo, ela sempre
sabia. Só faltava deixá-lo se aproximar, todo confiante, com seus céleres passos e suas
presas protuberantes. Sim, à sua maneira, ele era extremamente elegante e altivo. Ela
estremeceu. Num átimo, sentiu o toque de sua pele, tão gelada. A última coisa que viu
foi o intenso negror dos seus olhos transformando-se em surpresa.
Sua pele era tão alva quanto a dele. Mas quente, deliciosamente. O luar era refletido nos inúmeros cristais que adornavam seu vestido, tornando-o multicolorido. Em
seus braços, e em seu busto entrevisto através do decote, era possível ver pintados
diversos símbolos azuis. Era ilusão, ou eles realmente brilhavam em sua pele? Quando
ele surgiu em sua frente e a abraçou, ela não esboçou reação alguma. Como se o
esperasse. A pele frágil do pescoço se rendeu ao fio de seus dentes, e ele pôde saciar
a sua fome cruel. Definitivamente.
Tenta conter a torrente de lembranças. Afinal, é esta a noite, e ele tem muito o que
fazer. Uma noite a cada ano. Assim como ela. A noite dela. Levanta-se de sua poltrona
e sai a verificar se os animais estão prontos. Sua missão é grandiosa, mas não impossível. Não para alguém que tem a eternidade ao seu favor. Ele acredita nisso.
Pois quando o sangue dela entrou em seu corpo, ele pôde sentir a magia fazer
efeito. Transmutação. Ela o surpreendera, e não o contrário. Misteriosamente, seus olhos
se tornaram profundamente azuis, e ele quase pôde resgatar dentro de si o significado
perdido dos símbolos que ela tinha pelo corpo. Muito mais do que a mera lembrança de
sua beleza sobrevivera dentro dele. Ele sabia. E ele ia se redimir.
60
RENATO ARFELLI
Hoje, ele tem certeza de que tudo aquilo teve a sua razão de ser. Intuitivamente,
ele sabe o que tem de ser feito. Sempre. Fazer as pessoas acreditarem. Impedir o fim de
um mundo, que, ele sente, também é seu. Nunca mais precisou se esconder da luz do
sol, e muito menos tirar outra vida. Como se a fonte de sua vida eterna escoasse de
outro local, antigo, nobre.
Sentir o calor em sua própria pele sempre o anima, e ele parte empolgado para
levar sorrisos e sonhos por onde passar. Em apenas uma noite, ele precisa estar ao
lado de todas as pessoas do mundo. Ou pelo menos, de todas as crianças. Quando
conseguir, os dois mundos se tornarão um só novamente. E ele voa rapidamente pelo
globo, e sabe que, ano a ano, está mais próximo de conseguir. No fundo, ele próprio é
apenas mais uma criança, e esta constatação basta para fazer com que sua risada de
puro entusiasmo possa ser ouvida ecoando pela noite. Ho, ho, ho!
.
OLHOS AZUIS, MANTO RUBRO
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AMARGURA
Nos primórdios, era mais fácil. Lembro-me bem dessa época. Para cada humano,
um anjo. Cada criança, ao nascer, recebia o seu protetor. Na verdade, nós escolhíamos
as nossas crianças, de acordo com a nossa vontade e afinidade. A dedicação era exclusiva. Criávamos intimidade com nossos protegidos. Tínhamos tempo para descobrir
seus medos e anseios, suas vontades e provações. Podíamos orientá-los e salvá-los.
Bons tempos...
Mas os seres humanos se espalharam e se multiplicaram, como Ele ordenou. Nós,
não. Hoje, cada anjo vigia dezenas de pessoas. Foi necessário nos adaptarmos. Como
os humanos se adaptaram. Copiamos seu modo de vida pois somente assim conseguiríamos cumprir a função que nos foi delegada.
Hoje, usamos computadores de mão para controlar nossas atividades, esta máquina infernal...
Desculpe... é que... é tão difícil...
Bem... arcanjos tornaram-se gerentes para vigiar nossa produtividade. Temos reuniões semanais e metas a cumprir. Eu tenho uma cota de atender 65% das orações e
pedidos em um prazo máximo de 72 horas.
Blackberries nos avisam com SMS quando algo de ruim está para acontecer. Mas,
apesar de os humanos terem se multiplicado e nós nos adaptado, o tempo continua o
mesmo. Mesmo viajando nas asas de aviões, não é sempre que chegamos a tempo de
evitar desgraças.
E desgraças acontecem. Como acontecem! Terremotos, guerras, fome... eu sei,
estas estão no cronograma, mas como entender crianças sendo molestadas por adultos inconseqüentes e adolescentes assassinando colegas em shoppings e cinemas?
Isto é... insano...
Doutor, sinto como se minhas asas pesassem toneladas... perdi totalmente a vontade de sorrir.
Só consigo pensar em prazos, metas... e nas pessoas sob minha responsabilidade... nas minhas falhas...
Tudo minha culpa...
.
Doutor, o que faço? Existe remédio para isto?
Será que Ele planejou assim?
AMARGURA - RODERICO REIS
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O SONHO
Celeste acordou com os raios do sol rasgando a cortina florida do seu quarto
escuro. Assustada, olhou rapidamente em volta querendo proteger-se de algo. Então,
lembrou-se de que havia tido um sonho esquisito na noite anterior. Do nada, havia se
tornado um brinquedo vivo que divertia mulheres loucas, no grande casarão onde havia
assistido uma peça de teatro chamada “Histeria”.
Em meios a risos soltos, largas gargalhadas e choros compulsivos, Celeste ia
sendo apertada por loucas mãos. Sentindo-se uma marionete indefesa, gritava, mas
era sufocada pelas mãos frias e grandes daquelas mulheres.
Elas pareciam querer descobrir porque Celeste havia virado aquele brinquedo
estranho e de cor esquisita.
Assim passou a noite toda, sem direito a pedir para que parassem. Ficou inerte na
mão de uma moça loura que soltava soluços baixinhos e a olhava insistentemente.
Aproveitou para descansar. A moça olhava o palpitante e assustado suposto brinquedo
que não lhe divertia. Delicadamente passou o indicador no coração de Celeste querendo acalmá-la: “Não fique assim, não. Vai passar, agora está protegida”. Sorriu.
Foi passeando com seu dedo frio pelas marcas do brinquedo indefeso. Apertou
vagarosamente suas orelhas longas, parecendo divertir-se com aquele movimento. Foi
apertando ao longo do corpinho de Celeste até chegar nas suas extremidades.
Massageou, tirou o laço que amarrava seu cabelo, partiu em duas partes, sorriu e
amarrou-o no pescoço de Celeste. “Agora pode ir. Já está salva”.
Celeste finalmente pareceu despertar e caminhou até a sala, aconchegando-se
no sofá lilás. Iria escrever um conto sobre a moça loira de olhos doces que a havia
salvado, às vésperas das festas chatas de final de ano
.
O SONHO - ROSE SANTOS
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IDÉIAS
DE DRAGÃO
O pacote era bem mais pesado do que aparentava. Quando o carteiro o pôs em
suas mãos, Marina quase o deixou cair.
– Quer ajuda, moça? – perguntou o carteiro.
– Não, obrigada. Já segurei.
Enquanto levava o pacote para a sala, viu a postagem internacional. “Só pode ser
coisa do tio Augusto”, pensou. Ele viajava muito e nunca deixava de lhe trazer um
presente. Mas por que será que desta vez enviou pelo correio? Começou a desembrulhar o pacote.
Logo ao destampar a caixa, um postal. Lia-se: “Querida, não agüentei esperar.
Este presente é muito a sua cara! Mandei logo pelo correio mesmo. Além do mais, com
certeza ia dar excesso de bagagem! Eu comprei de um artesão aqui da Bulgária que
adapta peças antigas, dando uma apresentação mais moderna. Portanto, minha querida, você tem aí uma quase antiguidade. Vai servir bem para te fazer companhia nas
longas horas que você passa em frente à telinha. Um grande beijo, do seu padrinho,
que te adora!”
Dentro da caixa, um pesado objeto estava embrulhado em papel celofane. Retirou-o e acabou de desembrulhá-lo. Sorriu ao ver o que era: a estátua de um dragão que,
sentado sobre a própria cauda, operava um computador. Era de um metal dourado,
provavelmente bronze bem polido, e os olhos da fera eram vermelhos, feitos de algum
cristal ou pedra que imitava o rubi. Uma das mãos estava sobre o teclado e a outra
apoiava o queixo, como se a criatura buscasse inspiração.
A princípio, gostou muito do presente. Ficou admirando-o por um tempo. Mas depois veio-lhe uma certa tristeza. O tio a conhecia bem. Conhecia seu hobby: escrever.
Até já lera alguns dos seus contos. Tinha gostado muito, assim como outros parentes e
amigos. Marina havia ficado feliz, sonhou até em se tornar escritora. Mas, quando resolveu mostrar os textos para estranhos, pessoas que entendiam mais de literatura, tudo
desabou. Recebera pouca ou nenhuma crítica favorável. Fora uma grande decepção. O
tio não sabia disso mas, naquele momento, ela escrevia bem menos que antes.
Enquanto olhava a estátua, lembrava-se dos textos que escrevera ou que apenas
começara a escrever. Muitos jaziam inacabados no computador. De repente, fitando os
brilhantes olhos do dragão, algo lhe ocorreu. Uma idéia para um texto. Veio concomitante
a um frio na barriga. A idéia pareceu ótima, mas logo Marina refreou seus sentimentos.
Era apenas mais uma que também ia dar em nada. Logo ia morrer, mal ela tivesse
escrito a primeira página. Porém, a idéia pareceu-lhe irresistível demais para que pudesse evitá-la. Além disso, escrever ainda era, ao menos, um hobby.
Pôs a estátua ao lado do computador e abriu o arquivo. Era o seu pretenso primeiro romance, estagnado no terceiro capítulo. Toda vez que Marina o relia, sentia inconIDÉIAS DE DRAGÃO
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sistências que não conseguia identificar com precisão. Algo no texto não fazia sentido,
mas Marina não sabia o que era, logo não podia reescrever. Ler aquelas palavras era
como ouvir uma criança mentir.
Resolveu então reescrever tudo, usando a idéia do dragão. Começou, as palavras
fluíam bem, tudo parecia estar dando certo. Mas ao terminar a primeira página, como
havia previsto, travou. “É claro, Marina!”, pensou, “Você esperava o quê? Um milagre?
Agora vamos lutar mais um pouco com as palavras e depois deixar tudo pra um outro dia.”
Antes de fazer isso, olhou novamente para o dragão. Outra idéia surgiu. Não acreditou como era simples, como era fácil a solução. Encheu a segunda página, e depois
mais uma. Ao olhar para a estátua, era como se retomasse o fôlego. Aquilo a assustou,
mas não quis parar, não quis pensar nisso, temendo arriscar-se a perder aquela enxurrada de palavras que fluíam da sua mente para a tela do computador. Achou inacreditável
a velocidade com a qual acabou o primeiro capítulo. Só então fez uma pausa.
“Faz tempo que ela não me responde”, pensou Marina, “será que eu devo enviar
este capítulo pra ela?”. Marina havia ido ao lançamento de um livro onde conhecera a
autora, uma escritora profissional que escrevia no gênero preferido de Marina: fantasia.
Ela gostou bastante de Marina, achou-a simpática e criativa, além de muito motivada
para escrever. Concordara em avaliar alguns dos textos de Marina. Ela enviou, mas as
críticas feitas foram desanimadoras. Ela tentou seguir seus conselhos e se esforçou
bastante, mas os textos retornaram com novas críticas, cada vez piores, para novos e
antigos erros. Até que a escritora passou a dizer que estava com pouco tempo e, por
fim, não mais respondeu.
“Bom”, pensou Marina, “será apenas mais um e-mail sem resposta”. E enviou o texto.
Prosseguiu para o segundo capítulo. O ritmo pareceu aumentar ainda mais. Nem
olhava mais para a estátua. Apenas sua presença ali já parecia nutrir-lhe a mente com
a matéria-prima da criação. Marina sentia a alegria controlar seus atos, ordenando-lhe:
escreva, escreva, escreva.
De uma hora pra outra, um tom escarlate passou a incidir sobre tudo aquilo que
seu olhar tocava. Era com se luzes vermelhas emanassem de sua visão. Teve medo,
mas, sem saber por quê, se viu forçada a continuar a escrever. Sentia-se inebriada. A
tela do computador dominava e atraía sua visão.
E passou o primeiro dia e a primeira noite. Ela não teve fome, não teve sede, não
teve sono. Só escrevia. Sete capítulos. Naquele momento, chegou uma nova mensagem. Ela vinha ignorando todas enquanto escrevia, porém aquela era a resposta da
escritora. Ela dizia: “Sensacional, Marina! Ter colocado o dragão para narrar a história
em primeira pessoa ficou muito melhor que o narrador onisciente e imparcial em terceira pessoa. E o seu estilo, sua precisão, a clareza e originalidade das idéias, tudo melhorou muito. Você deve estar trabalhando bastante. Depois eu te mando uma crítica mais
detalhada do texto. Assim que você tiver mais, mande pra mim!”
Era isso. Mas àquela altura, Marina já sabia que seria assim. Não restava mais
dúvida alguma. Suspirou profundamente e teve de dissipar a fumaça de sua frente
para poder voltar a ver a tela. Mandou os outros capítulos para a escritora e retomou a escrita.
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UBIRATAN PELETEIRO
Passou o segundo dia e a segunda noite. Ainda bem que ela conseguia digitar
sem olhar o teclado, pois as letras já haviam desaparecido das teclas, desbastadas por
suas garras. Chegou uma nova mensagem da escritora. Dizia: “Impressionante, Marina!
Não podia imaginar que você já havia escrito tanto assim. Está tudo ótimo, não tenho o
que criticar, apenas elogiar. Gostei tanto que até enviei, com recomendações, para meu
editor. Acho que você não vai se importar. Ele está procurando novos autores e, se o
meio e o final do seu livro forem tão bom quanto o início, tenho certeza de que ele vai te
publicar.”
“É claro que vai”, pensou Marina. E ela atravessou o terceiro dia e a terceira noite.
Terminou o livro. Não havia nada a revisar, tudo estava como deveria estar. De repente,
o encosto da cadeira não suportou mais a pressão de sua cauda e quebrou. Também o
assento não suportou o peso e se partiu. No mesmo instante, chegou nova mensagem
da escritora: “Parabéns, Marina! Meu editor também gostou e vai querer ver os originais
quando você terminar. Faço questão de ir com você!”
“Não é necessário”, pensou Marina, “eu levarei até ele, agora.” Ela mandou imprimir e, enquanto aguardava, passou suas garras carinhosamente sobre a estátua de
bronze. A figura humana, de uma mulher, parecia extremamente insegura a operar o
computador.
– Obrigado – disse Marina, e sua voz estrondeou na casa feito um trovão.
Pegou os originais. Destruiu quase todos os móveis da sala ao passar em direção
à varanda. Arrebentou o parapeito de vidro temperado, que se estilhaçou num estouro
surdo e se derramou na rua, feito uma chuva de cristal. Mas nada disso importava mais.
Sentiu o sol incidir nas escamas. Como se fossem feitas de metal, elas drenavam o
agradável calor para o interior de seu corpo.
.
Então se lançou no ar, abriu as imensas asas e alçou vôo
IDÉIAS DE DRAGÃO
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Então, membro da Fábrica dos Sonhos, envie um e-mail para
[email protected] com o assunto “Amigo Secreto 2008”
até 1º de setembro. Você receberá todas as informações para
participar do exercício literário.
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