as mulheres e o conflito - CAVR Timor
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AS MULHERES E O CONFLITO Audiência Pública Nacional, 28 e 29 de Abril de 2003 PUBLICAÇÕES DA CAVR Cadernos Temáticos sobre as Audiências Públicas: PRISÃO POR MOTIVOS POLÍTICOS AS MULHERES E O CONFLITO DESLOCAÇÃO FORÇADA E FOME MASSACRES CONFLITO POLÍTICO INTERNO 1974-1976 AUTODETERMINAÇÃO E A COMUNIDADE INTERNACIONAL AS CRIANÇAS E O CONFLITO Outras publicações: RONA AMI NIA LIAN (“OUÇAM AS NOSSAS VOZES”) COMARCA RELATÓRIO FINAL DA CAVR RELATÓRIO FINAL DA CAVR, Resumo Executivo AGRADECIMENTOS A presente publicação foi preparada pela Equipa de Produção Editorial e a Unidade de Tradução com o apoio dos seguintes funcionários das Secções de Arquivo, Editorial e Jurídica (por ordem alfabética): Afonso Aleixo, Aventino de Jesus Baptista Ximenes, Bernadete Jong dos Santos, Celina Martins Fernandes, Darmawan Zaini, Dwi Anggorowati Indrasari, Eleanor Taylor-Nicholson, Emily Chew, Eurico Celestina dos Reis Araújo, Firman Maulana, Fulgêncio Aquino Vieira, Germano Boavida da Costa, Gunardi Handoko, Ian White, Istutiah Gunawan-Mitchell, Julião da Costa Cristovão Caetano, Julien Poulson, Kieran Dwyer, Kurnia Joedawinata, Lakota Moira, Leyla Safira Assegaf, Luciana Ferrero Megan Hirst, Melanie Lotfali, Meta Mendonça, Miki Salman, Nugroho Katjasungkana, Phyllis Ferguson, Riamirta Dwiandini, Steve Malloch, Suryono, Titi Irawati, Toby Gibson, Valentina Vincentia, Yulita Dyah Utari. A CAVR deseja expressar o seu agradecimento aos fotógrafos e a todos que contribuíram com as fotografias que integram a presente publicação: Hélio Freitas, Ian White, arquivo fotográfico da OIM/Nelson Gonçalves (Guido Sam Martins e Joerg Meier), Poriaman Sitanggang. Fotografias relativas às Audiências: António Gonçalves, Galuh Wandita e Steve Malloch. A CAVR agradece ainda a assistência financeira prestada pelos doadores: Governos de Austrália, Canadá, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Japão, Nova Zelândia, Noruega, Portugal, Suécia, Reino Unido, Estados Unidos de América; e, Comissão Europeia, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Instituto para a Paz dos Estados Unidos da América (USIP), Fundo Fiduciário para Timor-Leste (TFET, Programa de Desenvolvimento de Capacidades Comunitárias e Governação Local, administrado pelo Banco Mundial), Serviço Católico de Assistência/CRS (Kupang). A CAVR recebeu o apoio material e em forma de equipamentos das seguintes organizações: ICTJ (Centro Internacional para a Justiça em Contexto de Transição), PNUD Timor-Leste, ACNUR, USAID, Unidade de Direitos Humanos da UNMISET, Australian Youth Ambassadors for Development e Australian Volunteers International. © CAVR, 2005. Reservados todos os direitos. www.cavr-timorleste.org As Mulheres e o Conflito Índice Prefácio Audiências Públicas da CAVR 4 Introdução A Audiência sobre as Mulheres e o Conflito 5 Direitos Humanos e Direito Internacional 6 Sessão Inaugural Alocução de Aniceto Guterres Lopes, Presidente da CAVR 8 Depoimentos de Sobreviventes Victoria Henrique Rita da Silva Maria Antónia Santos Sousa Maria Cardoso Olga da Silva Amaral Beatriz Miranda Guterres Fernanda Soares Leonia Amaral Soares Natália dos Santos Olga Corte Real Feliciana Cardoso Inês da Conceição Lemos Fernanda dos Reis Araújo Domingas Ulan Mensagem à Nação 13 14 16 18 20 21 24 27 30 32 33 35 37 39 40 44 Depoimentos de Peritos Mário Viegas Carrascalão 45 John Fernandes Documentos disponibilizados à CAVR Documento disponibilizado por um Grupo de Activistas Timorenses Documento disponibilizado pela Comissão Nacional Indonésia sobre a Violência contra as Mulheres (Komnas Perempuan) Documento disponibilizado pela Equipa de Assistência Humanitária em Timor Ocidental (Tim Kemanusiaan Timor Barat) 46 49 51 52 55 57 Conclusão Reflexão Final Maria Olandina Isabel Caeiro Alves, Comissária Nacional da CAVR Alocução de Encerramento, Maria Domingas Alves, Assessora do Primeiro-ministro para a Promoção da Igualdade 59 61 Glossário 63 60 Prefácio Audiências Públicas da CAVR A s Audiências Públicas foram uma das características principais do programa elaborado pela CAVR com o objectivo de cumprir o nosso mandato, em conformidade com o Regulamento nº 10/2001. Os objectivos das diferentes audiências incluíam apurar a verdade relativa às violações de direitos humanos cometidas no passado, apoiar a reinserção das pessoas que lesaram as suas comunidades através da realização de audiências de reconciliação comunitária e auxiliar a restaurar a dignidade das vítimas daquelas violações. Uma vez constituída a CAVR, os sete Comissários Nacionais definiram um princípio claro: tentar atingir a maior abertura e participação possíveis. Em consequência, a CAVR definiu um programa que incluía a constituição de equipas para trabalhar ao nível dos sucos, em todo o país, numa tentativa constante de envolver a comunidade de uma forma culturalmente adequada. Alguns dos elementos determinantes desse trabalho foram a facilitação de encontros entre as comunidades e a realização do debate sobre o passado em condições pacíficas e reconciliatórias. Ao nível nacional, a transmissão das audiências nacionais através da televisão e da rádio promoveu um sentimento generalizado de participação no diálogo nacional sobre as violações cometidas no passado e na construção de um futuro baseado no respeito pelos direitos humanos. Este conjunto de sete cadernos apresenta o retrato das Audiências Públicas Nacionais temáticas organizadas pela CAVR. Estas audiências decorreram na ex-prisão de Balide, cujas instalações foram restauradas de modo a serem transformadas na sede da CAVR, e incidiram sobre os seguintes temas: Prisão por Motivos Políticos (Fevereiro de 2003), As Mulheres e o Conflito (Abril de 2003), Deslocação Forçada e a Fome (Julho de 2003), Massacres (Novembro de 2003), O Conflito Interno de 1974/1976 (Dezembro de 2003), Autodeterminação e a Comunidade Internacional (Março de 2004) e As Crianças e o Conflito (Março de 2004). A anteceder estas audiências, a CAVR realizou, em Novembro de 2002, uma Audiência Nacional das Vítimas nas instalações do complexo que sediou a UNAMET e o CNRT, em Balide. As equipas distritais da CAVR também organizaram e facilitaram um conjunto alargado de audiências públicas. As equipas distritais dividiram o seu trabalho em períodos temporais de três meses por subdistrito. Após a recolha de testemunhos relativas às violações cometidas, a organização dos processos de reconciliação comunitária e a realização de seminários comunitários, a equipa orientava a audiência subdistrital das vítimas enquanto acto de encerramento do período de permanência nesse subdistrito. Perante a Comissão e a comunidade reunidas, os membros da comunidade que haviam anteriormente prestado os seus testemunhos à Comissão relatavam as experiências vividas. A CAVR organizou sessenta e cinco Audiências subdistritais de Vítimas. As Audiências de reconciliação comunitária foram uma componente fundamental do programa da CAVR. Em conformidade com o mandato conferido à CAVR, o objectivo destas audiências visava apoiar a reinserção de ex-infractores nas respectivas comunidades. Regra geral, ainda que com algumas excepções, as infracções incidiam sobre actos perpetrados pelas milícias no decurso da violência ocorrida durante 1999. As audiências foram realizadas em sucos de todos os distritos de Timor-Leste. Por via da acção facilitadora da CAVR e de forma inovadora, este processo aliou os métodos tradicionais de resolução de conflitos aos métodos judiciais formais. A CAVR organizou audiências a 1404 perpetradores, num total de 217 audiências que contaram com uma participação estimada em mais de 40 mil membros da comunidade. Verificou-se uma resposta impressionante às audiências públicas da CAVR. Temos a esperança de que através da publicação deste conjunto de cadernos temáticos seja possível partilhar, com um maior número de pessoas, a experiência vivida com a realização das audiências nacionais temáticas. 4 AS MULHERES E O CONFLITO Prefácio Audiências Públicas da CAVR¶ As Audiências Públicas foram uma das características principais do programa elaborado pela CAVR com o objectivo de cumprir do seu mandato em conformidade com o Regulamento nº 10/2001. Os objectivos das diferentes audiências incluíam apurar a verdade relativa às violações de direitos humanos cometidas no passado, apoiar a reinserção das pessoas que lesaram as suas comunidades através da realização de audiências de reconciliação comunitária e auxiliar as vítimas das violações a restaurar a sua dignidade. ¶ ¶ Uma vez constituída a CAVR, os sete Comissários Nacionais definiram claramente um princípio: tentar atingir a maior abertura e participação possíveis. Em consequência, a CAVR definiu um programa que envolveu a constituição de equipas para trabalhar ao nível dos sucos, em todo o país, numa tentativa constante de envolver a comunidade de uma forma culturalmente adequada. Alguns elementos determinantes desse trabalho foram facilitar os encontros entre as comunidades e a realização do debate sobre o passado em condições pacíficas e reconciliatórias. Ao nível nacional, a transmissão das audiências nacionais através da televisão e da rádio promoveu um sentimento generalizado de participação no diálogo nacional sobre as violações cometidas no passado e na construção de um futuro baseado no respeito pelos direitos humanos. ¶ ¶ Este conjunto de sete cadernos apresenta o retrato das Audiências Públicas Nacionais temáticas organizadas pela CAVR. Estas audiências decorreram na ex-prisão de Balide, cujas instalações foram restauradas de modo a serem transformadas na sede da CAVR, e incidiram sobre os seguintes temas: Prisão por Motivos Políticos (Fevereiro de 2003), Mulheres e Conflito (Abril de 2003), Deslocamento Forçado e a Fome (Julho de 2003), Massacres (Novembro de 2003), O Conflito Interno de Introdução A Audiência sobre as Mulheres e o Conflito A audiência pública nacional sobre as Mulheres e o Conflito foi um passo importante no trabalho desenvolvido pela CAVR no sentido de melhor compreender a experiência vivida pelas mulheres durante os 24 anos correspondente ao período do mandato. A audiência enquadra-se no processo mais global de pesquisa detalhada e de recolha de testemunhos entre a comunidade, de entrevistas com legisladores e com activistas e da análise de documentos. Este processo envolveu o trabalho conjunto com organizações em Timor-Leste e na Indonésia. A CAVR presta homenagem às mulheres que sofreram violações concretas dos seus direitos humanos e que estiveram particularmente vulneráveis durante o período do conflito. A CAVR deseja salientar que a experiência, o conhecimento e a compreensão do papel das mulheres no processo de construção da paz é frequentemente ignorado ou considerado de importância menor. A CAVR atribui prioridade ao trabalho de pesquisa relativa à experiência vivida pelas mulheres durante o conflito. A equipa de pesquisa e investigação da CAVR que se dedicou ao trabalho sobre as Mulheres e o Conflito foi constituído por elementos da CAVR e da Fokupers. A equipa era constituída por: Felismina da Conceição, Elsa do Rosário Viegas da Costa, Alexandrina dos Santos, Joana Villanova, Noémia Gomes Ferreira e Karen Campbell-Nelson. A CAVR deseja reconhecer publicamente o enorme esforço exercido pela ONG timorense Fokupers desde a sua fundação em 1997 na defesa dos direitos humanos das mulheres e o valioso papel que tem desempenhado neste trabalho de pesquisa e noutras acções em conjunto com a CAVR. A equipa de investigação optou por uma abordagem qualitativa da sua pesquisa, realizada através de entrevistas directas e da análise de fontes documentais. A equipa deslocou-se a todos os distritos de TimorLeste para reunir com mulheres, em grupo e individualmente. O trabalho que a equipa desenvolveu foi particularmente sensível dado ter sido a primeira ocasião em que muitas destas mulheres falaram sobre experiências profundamente dolorosas. As 13 mulheres seleccionadas para deporem nesta audiência relataram violações perpetradas em 11 distritos. Foram seleccionadas de forma a reflectirem a realidade histórica e geográfica, a representarem vítimas de violações cometidas por diversos tipos de perpetradores e a ilustrar a tipologia de violações sofridas pelas mulheres no decurso do período de 25 anos. O desejo de depor publicamente e o sentimento de que essa experiência poderia ser benéfica para a depoente foram critérios decisivos de selecção. Para além de ouvir directamente as vítimas das violações de direitos humanos, a CAVR ouviu o depoimento do ex-governador de Timor Leste, Mário Carrascalão, da Comissão Nacional Indonésia sobre a Violência contra as Mulheres (Komnas Perempuan), da Equipa de Assistência Humanitária em Timor Ocidental, um grupo de funcionárias de ONG a trabalhar com mulheres e um antigo funcionário público indonésio que geriu o programa de planeamento familiar em Timor Leste. A audiência foi um acontecimento impressionante com momentos de lágrimas, momentos de riso, abraços e expressões de solidariedade. O relato de cada história individual foi uma experiência dolorosa e difícil para as depoentes mas todas expressaram o sentimento de que chegara o momento para as suas histórias serem contadas e conhecidas. A CAVR expressa-lhes a sua gratidão e aplaude a sua coragem. A CAVR mantém a esperança de que este processo tenha contribuído, por pouco que seja, para sarar as feridas de cada uma destas mulheres e que tenha atingido inúmeras outras mulheres e jovens em todo o país que também sofreram a violência. Temos a esperança de que esta audiência e este caderno temático contribuam para a aquisição de um conhecimento mais profundo e completo da experiência vivida pelas mulheres timorenses ao longo de 25 anos de conflito e, desta forma, desempenhem um papel no assegurar que os direitos das mulheres serão respeitados e protegidos no futuro, em Timor-Leste. AUDIÊNCIA PÚBLICA NACIONAL DA CAVR / 28-29 ABRIL 2003 5 foi de Direitos Humanos e Direito Internacional D ireitos humanos são os direitos consagrados a todo o indivíduo, independentemente de raça, idade, religião ou género, a partir do momento em que nasce até ao momento da sua morte. Estes direitos não estão sujeitos a doação, venda ou anulação pela força. Todo o indivíduo goza de direitos humanos idênticos pela razão simples de que é um ser humano. A noção de que toda a pessoa detém direitos básicos é antiga e existente em diferentes comunidades por todo o mundo. No entanto, a doutrina de direitos humanos que vigora actualmente só foi formulada após a II Guerra Mundial. Recordando as atrocidades terríveis cometidas durante a guerra, governos de todo o mundo decidiram, através das Nações Unidas, que mais nenhum ser humano deveria voltar a sofrer daquela forma e, a 10 de Dezembro de 1948, aprovaram a Declaração Universal de Direitos Humanos que define todos os direitos básicos do ser humano. Desde então, estes direitos foram aprofundados e aperfeiçoados através de milhares de documentos internacionais e hoje existem normas jurídicas rigorosas sobre a forma como os governos devem interagir com os cidadãos. A história de Timor-Leste compreendida entre 1974 e 1999 encontra-se, lamentavelmente, repleta de violações de direitos humanos cometidas por todas as partes envolvidas nos conflitos. Os homens, as mulheres e as crianças sofreram muitíssimo. Nesta audiência ouvimos falar da dor, da perda e do sofrimento sentidos pelas mulheres durante este período e que revelaram e enormidade e tipologia das violações de direitos humanos cometidas contra elas. Algumas violações em particular causaram um impacto devastador sobre as mulheres. Frequentemente, uma violação cometida contra uma mulher afecta de igual modo os seus filhos e outras pessoas próximas. Ao ler os depoimentos destas mulheres, dever-se-á ter em consideração alguns dos direitos das mulheres, nomeadamente: Direito à vida É o mais importante de todos os direitos humanos. Ninguém pode ser privado da vida excepto nos termos definidos pela lei. Consequentemente, os governos devem respeitar a legislação que previne e pune as mortes ilícitas e administrar formação às forças militares e de segurança na área do respeito pela vida dos civis e de outros que não desempenham qualquer papel na guerra. Direito de não ser submetido à tortura A tortura é um crime muito grave que causa dor e sofrimento, mental e físico, causado a uma pessoa com o fim de, nomeadamente, obter informação ou extrair uma confissão, ou punição ou forçar alguém a cometer um acto. São equiparáveis a tortura, a violação sexual e outros actos graves de violência sexual exercidos com fins semelhantes. Direito de permanecer livre de escravidão Nenhuma pessoa pode declarar-se “proprietária” de outrem. Está-se perante escravidão quando uma pessoa age como tendo direitos de “propriedade” sobre outrem, por exemplo, através da compra ou venda de alguém, através do controlo total de outrem, incluindo sobre a sua liberdade de circulação, ou ao forçar alguém a trabalhar em condições terríveis por um salário baixo ou sem salário. A escravidão também pode assumir a forma de escravidão sexual, isto é, quando alguém exerce poderes equiparáveis a detenção de propriedade sobre outrem, através da violação sexual ou outros actos de natureza sexual. Ouvimos inúmeras histórias de mulheres forçadas a tornarem-se “mulheres” de membros das forças militares ou das milícias, ou forçadas a prestar serviços sexuais aos militares em geral. Isto constitui uma forma de escravidão sexual. Direito à segurança pessoal Toda a pessoa tem o direito de viver livre de medo pela sua segurança pessoal. Consequentemente, toda a pessoa tem o direito de não ser presa ou detida excepto pelos motivos fixados pela lei, de não ser espancada, maltratada ou lesada fisicamente por qualquer outra forma, incluindo a violação ou outra forma de abuso sexual. Quando presas, as mulheres devem ser mantidas separadas dos homens de forma a protegê-las do abuso sexual. Direitos civis e políticos As mulheres têm direitos civis e políticos iguais aos dos homens o que significa que são detentoras do direito a envolverem-se no processo de tomada de decisão no seu país, de se expressarem em liberdade e de realizarem as suas opções nas áreas da religião e da política. Direitos económicos e sociais Toda a pessoa tem o direito a um nível de vida suficiente, à habitação, a alimentação suficiente, a assistência médica e à educação. Estes direitos são de importância particular para as mulheres que, tão frequentemente, carregam a responsabilidade de manter a família e sofrem, de forma desproporcionada, os efeitos da pobreza e da falta de instrução. Direito à reprodução A mulher tem o direito de controlo sobre o seu próprio corpo e de decisão sobre se tem, ou não, filhos. Faz parte do direito à sua segurança pessoal. A mulher não pode ser forçada a ter filhos sem o seu consentimento, nem pode ser impedida pela força – através da esterilização, contracepção ou prática de aborto - de ter filhos se o desejar. Direito à vida em família O direito internacional reconhece a importância da família e estipula que os governos devem tomar as medidas adequadas para assegurar a protecção e a assistência à unidade que constitui a família. Nesta audiência ouvimos falar de famílias que foram dilaceradas pela guerra, de crianças que foram separadas dos seus pais e de como isso impediu o direito das pessoas à vida em família. Direitos em situação de conflito Desde que uma mulher não participe no conflito, detém todos os direitos acima referidos acrescidos da prestação de cuidados especiais e da protecção contra maus-tratos. Mesmo quando as mulheres participam num conflito e são capturadas, existem normas que regem a forma como devem ser tratadas. As suas necessidades específicas enquanto mulheres devem ser protegidas. Sessão Inaugural, 28 de Abril de 2003 Alocução de Aniceto Guterres Lopes, Presidente da CAVR E sta audiência especial da CAVR visa facilitar a criação de um espaço onde as mulheres possam partilhar a experiência e conhecimentos respectivos e melhor compreender o sofrimento terrível vivido pelas mulheres em Timor-Leste entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Outubro de 1999. O trabalho preparatório desta audiência foi desenvolvido pela CAVR em parceria com a organização não governamental timorense Fokupers, que opera na área dos direitos humanos das mulheres. Estamos gratos à Fokupers e orgulhamo-nos do trabalho realizado em conjunto. Desejo expressar um agradecimento especial aos membros da equipa conjunta: Felismina de Conceição, Elsa do Rosário Viegas da Costa, Alexandrina dos Santos, Joana Villanova, Noémia Gomes Ferreira e Karen Campbell-Nelson. Esta equipa trabalha desde Janeiro e continuará o seu trabalho após a audiência. A equipa tem-se deslocado aos diferentes distritos de Timor-Leste para escutar os relatos de violência perpetrada contra as mulheres no decurso dos 25 anos. Trata-se de um trabalho difícil que requer sensibilidade, paciência, coragem e amor. As mulheres que fazem parte desta equipa foram incansáveis e desejamos expressar o nosso agradecimento público pelo trabalho realizado. organizações É importante a CAVR realizar uma audiência específica sobre as Mulheres e o Conflito em Timor-Leste. Como é do conhecimento geral, as mulheres constituem mais de metade da população de Timor-Leste. São, e sempre foram, a espinha dorsal da nossa sociedade. A CAVR tomará todas as medidas possíveis para assegurar que as mulheres sintam que podem participar em todas as actividades que realizamos. Ao analisarmos ao longo da história as situações de conflito no mundo verificamos que, em situações de guerra e de conflito, as mulheres estiveram sempre vulneráveis a uma tipologia específica de violações devido ao papel e estatuto que detêm no seio da sociedade. Proporcionalmente, em sociedades profundamente militarizadas, os actos de violência são sempre maioritariamente dirigidos contra as mulheres. Foi este o contexto em que as mulheres timorenses viveram durante quase 25 anos. Nesta audiência, teremos a oportunidade de ouvir o depoimento de peritos e de representantes de organizações que nos ajudarão a compreender o contexto, as políticas e as instituições responsáveis pela violência perpetrada contra as mulheres. Nos dois próximos dias, as palavras individualmente proferidas pelas mulheres ilustrarão o verdadeiro sofrimento que viveram. Foram muitas as mulheres que não sobreviveram para relatar as suas histórias. Ao homenagearmos as mulheres que vieram depor à CAVR, também homenageamos as mulheres que sofreram em todo o Timor-Leste. Prestamos homenagem e recordamos as nossas irmãs, as nossas mães, as nossas esposas e as nossas filhas que já não se encontram entre nós. , Por todo o mundo, as mulheres são, frequentemente, construtoras da paz. Também o são em Timor-Leste. Através do trabalho de pesquisa realizado e ao escutar as mulheres em todo o país, também desejamos reconhecer as diferentes formas que as mulheres adoptaram para construir a paz no nosso país. Com os homens frequentemente envolvidos no conflito, foram as mulheres que, vezes sem conta, tiveram de manter as famílias unidas. Assim, as mulheres sofreram frequentemente, a violação dos seus direitos económicos e sociais – o direito de viver em paz, com alimentação suficiente, alojamento e com meios adequados de vida. Muitas mulheres enviuvaram e ficaram sós com a responsabilidade pela família. Sabemos que hoje é esta a realidade de muitas famílias timorenses. Distinguimos as mulheres que, desta forma, mantêm as respectivas famílias e a nossa nação unidas. Desejo boas-vindas, de forma particularmente calorosa, a todas as mulheres que hoje compareceram para depor. A vossa coragem em participar e em relatar as vossas histórias à CAVR, e ao país, revela a dor mas também o enorme coração das mulheres timorenses. Desejo ainda agradecer às restantes testemunhas que irão depor. Dirijo especiais boas-vindas aos nossos amigos da Comissão Nacional Indonésia sobre a Violência contra as Mulheres (Komnas Perempuan) que se deslocaram de Jacarta para deporem. Apresento igualmente as boas-vindas aos membros da Equipa de Assistência Humanitária em Timor Ocidental (TKTB) e, de modo especial, ao grupo de ONG de mulheres timorenses. do Grupo de ONG Em particular, agradeço às mulheres que irão depor nesta audiência perante a CAVR e a nação sobre a experiência que viveram de violações dos direitos humanos. Durante os trabalhos preparatórios desta audiência, tive a oportunidade de conhecer algumas de vós. Quero dizer-vos que é uma honra para a CAVR ouvir as vossas palavras e de estar convosco durante estes dias preparatórios e de audiência. A vossa coragem e determinação inspiram-nos. Estou consciente de que uma audiência como esta não anula toda a vossa dor e sofrimento. Mas tenho a esperança que possam sentir o nosso apoio e o nosso amor e, no mínimo, ajudar-vos a sarar a dor. Ao contarem as vossas histórias pessoais, ao partilhá-las connosco e com a nação, estão a contribuir para criar uma cultura de paz no nosso novo país, para que a violência nunca mais se repita. É este o objectivo da CAVR – contribuir para que todos os timorenses caminhem juntos pela estrada que nos conduzirá a uma paz duradoura. Quando ouvirmos as palavras das nossas irmãs, poderemos questionarmo-nos se não é demasiado difícil reflectir sobre a dor vivida no passado. Sei que, por vezes, poderá parecer que estamos a abrir feridas antigas. Acreditamos que é necessário para garantir uma paz duradoura no país. Queremos contribuir para ajudar as nossas irmãs, e outros que sofreram violações de direitos humanos no nosso país, a depurar essas feridas do passado. Queremos ajudar todos os timorenses a enfrentar a dor do passado, a apoiar quem necessita de apoio e, desta forma, libertar-vos da dor. Juntos, enquanto nação, enfrentaremos a situação e construiremos novas fundações sobre as quais se construirá o compromisso nacional pela paz e pelos direitos humanos para todos. E, com esta palavras, declaro aberta a Audiência Pública Nacional sobre As Mulheres e o Conflito. Esta é uma versão adaptada, para efeitos de publicação, do discurso original proferido na sessão inaugural da audiência. os relatos irá Foto, p. 10: 1999, foto de arquivo. Foto, p. 11: Proporcionalmente, em sociedades profundamente militarizadas, os actos de violência são sempre maioritariamente dirigidos contra as mulheres. Foi este o contexto em que as mulheres timorenses viveram durante quase 25 anos. 1999, foto de arquivo. proporcionalmente em sociedades profundamente militarizadas Introdução A ordem de apresentação dos depoimentos abaixo reproduzidos corresponde à ordem da sua prestação durante a audiência. No decurso dos dois dias de Audiência, estes depoimentos foram intercalados com os depoimentos prestados por peritos que são reproduzidos em capítulo separado neste caderno temático. A maioria das testemunhas fez a sua apresentação em Tétum, uma das línguas oficiais de Timor-Leste. As versões deste caderno em inglês, malaio-indonésio e português visam a reprodução o mais fiel possível dos depoimentos prestados. Os parágrafos introdutórios em itálico contextualizam sinteticamente o depoimento, após os que se segue uma versão do depoimento, corrigida nalguns aspectos formais, com base no testemunho e linguagem originais – não se trata de uma síntese do testemunho mas de uma selecção das palavras proferidas no depoimento de cada testemunha adaptadas às necessidades de tradução. Nota sobre a retenção dos nomes dos perpetradores No momento da preparação do presente caderno temático, ainda decorria o debate entre os Comissários Nacionais da CAVR sobre a política a adoptar no Relatório Final da CAVR relativamente à nomeação de alegados perpetradores. Durante a audiência, as testemunhas foram informadas sobre o seu direito a nomear alegados perpetradores se assim o desejassem e sobre as consequências legais da nomeação. De uma forma geral as testemunhas não nomearam os alegados perpetradores durante as audiências nacionais da CAVR. Para efeitos de publicação dos cadernos temáticos, optou-se por retirar o nome do alegado perpetrador e referenciá-lo por uma letra (por exemplo, a letra ‘A’). No caso de nomeação múltipla de perpetradores num mesmo depoimento, optou-se pela sua listagem recorrendo à sequência alfabética (por exemplo, a ‘B’, ‘C’, etc.). Foto, p. 12: Da esquerda para a direita: Isabel Guterres, Comissária da CAVR, Rita da Silva e Maria Cardoso. etc Depoimentos de Sobreviventes Victória Henrique Distrito de Liquiça, 1975 Victória Henrique era professora no distrito de Liquiça quando, em Agosto de 1975, o partido UDT tomou o poder por um breve período. Explicou porque, em 1974, “o meu marido e eu aderimos a partidos diferentes para nos salvarmos. Ele era membro da Apodeti e eu era membro da Fretilin”. Falou dos abusos sofridos às mãos de membros da UDT e de quando levaram o seu marido para Aileu como prisioneiro e o mataram, apesar de desconhecer quem foi o autor. difrentes N a tarde do dia 20 de Agosto estava a conversar com algumas amigas à sombra de uma árvore e, ao olharmos para o fundo da estrada, avistámos alguns membros da UDT a aproximarem-se. Aplaudiam e agitavam bandeiras da UDT enquanto gritavam “De Leste a Oeste, todos terão de ser da UDT”. Senti-me chocada. Vieram direitos a nós e, porque eu era professora, levaram-me com eles. Levaram-me para a sua sede. Durante a viagem insultaram-me e bateram-me, cuspiram-me na cara e disseram ‘ A Fretilin não serve para nada. Nem sabem fazer uma caixa de fósforos, mas querem a independência.’No caminho insultaram-me, bateram-me e cuspiram-me na cara afirmando: “A Fretilin nada sabe”. Ataram-me as mãos atrás das costas, amordaçaram-me com um pedaço de tecido, vendaram-me e amarraram-me as pernas. Depois pegaram em mim e atiraram-me para dentro do carro, amarrada como se fosse um porco. De seguida, bateram-me, deram-me pontapés e queimaram-me os joelhos e as coxas com pontas de cigarro e fizeram-me cortes nas coxas com lâminas de barbear. Quando chegámos perto de uma ribeira, um dos homens disse aos outros, “Vamos violá-la antes de a levarmos ao comandante.” Deitaramme junto à ribeira e um dos homens segurou-me de maneira a eu ficar deitada de costas, depois senti um homem a violar-me. Quando eles acabaram eu sentia tonturas e estava imóvel. Quando me viram assim, esbofetearam-me. Pensavam que eu tinha desmaiado e que não sentia nada, mas nessa altura eu ainda estava consciente. Levantaram-me e colocaram-me dentro do carro. Levaram-me até Maubara. presta bocado presa ainda me Quando, finalmente, chegámos e levaram-me perante o seu comandante, já me tinham desatado e mandaram-me sentar. Começaram o interrogatório. Não conseguia responder às perguntas por me sentir ainda muito atordoada. O comandante perguntou porque não respondi às suas perguntas. Permaneci em silêncio. Ficaram muito zangados, começaram a bater-me de novo e atiraram água a ferver sobre as minhas coxas e pernas. Obrigaram-me a ingerir pão embebido em parafina, ao que obedeci; não obstante, queimaram-me as pernas e as coxas com pontas de cigarro. Limitei-me a suportar tudo. Após quatro dias de detenção ouvi dizerem que a Fretilin se preparava para os atacar. Foram a Liquiça e trouxeram com eles, de Maubara, a minha irmã mais nova. Ela tinha apenas três anos de idade. Deram-lhe de comer mas gozaram com ela e ameaçaram matá-la caso chorasse ou chamasse por mim. Nessa tarde, chegou um espião da UDT, um homem idoso, com a notícia de que a Fretilin iria atacar nessa noite. Disse perante todos: “Têm de fugir já; se não o fizerem serão todos mortos”. Os homens da UDT entregaram-lhe a minha irmã e ele trouxe-a à minha cela. Depois disse: “Irmãzinha, têm de fugir”. Pegaram em mim e atiraram-me para dentro do carro, amarrada como se fosse um porco. Bateram-me, deram-me pontapés e queimaram-me os joelhos e as coxas com pontas de cigarro presa ¶ e fizeram-me cortes nas coxas com lâminas de barbear. Havia uns pedaços de madeira e cascas de coco na minha cela. Peguei nas cascas e coloquei-as na cama para simular uma cabeça. Usei dois pedaços de madeira para simular os braços e mais dois para as pernas. Fiz com que parecesse uma pessoa a dormir. Depois, fugi. Não me viram porque estavam demasiado ocupados depois de ouvirem a informação sobre o ataque. Fugi porque sabia que, se a Fretilin atacasse, eu seria morta pela UDT. Escondi-me numa gruta de pedra com a minha irmã e um senhor idoso. Sentimos fome mas não tínhamos nada para beber nem para comer, não tínhamos roupas e as nossas estavam rasgadas. Olhámos uns para os outros e chorámos. Os meus joelhos estavam inchados das queimaduras das pontas dos cigarros e não conseguia andar. A minha irmã disse: “Mana, se não te levantares e andares, vamos morrer de fome...tens de te levantar e ser forte. Podemos andar devagar pelas montanhas até Díli e ir para junto da nossa família”. Consegui levantar-me, deixámos o esconderijo e começámos a andar até Díli. Pouco depois, alguns membros da Fretilin juntaram-se a nós. Caminhámos três dias e três noites. Apenas bebemos água lamacenta e comemos as folhas que os animais habitualmente comem. Pouco depois, a Fretilin atacou Maubara, queimou casas e matou membros da UDT. ainda me Rita da Silva Maubisse e Monte Kablaki, distrito de Ainaro, Setembro de 1975-Janeiro de 1976 Rita da Silva tinha 11 anos em 1975 e vivia com a família nas montanhas de Maubisse, na região central de Timor-Leste. Falou da violência entre a Fretilin e a UDT, dirigida contra membros de ambos os partidos e respectivos familiares. A sua mãe, a cunhada e dois irmãos foram assassinados à sua frente. Contou que a Fretilin atacou a sua casa num acto de vingança pela morte de um dos seus membros. A sua família não conseguira escapar porque a sua mãe e a cunhada estavam na fase final de gravidez. A o chegarem a nossa casa, cercaram-na. Estavam armados com armas brancas, tipo keris e catanas, para além de armas de fogo. Chamaram pelo meu pai: “Victor, sai já”. O meu pai saiu e disse-lhes: “Por favor, não nos matem porque a minha esposa e a minha nora estão grávidas. Faltam-lhes apenas alguns dias para dar à luz. Dou-vos tudo o que tenho mas não nos matem”. Mas eles responderam: “Não queremos os teus bens apenas as vossas vidas”. Depois, dispararam sobre o meu pai atingindo-o no ombro; ele caiu e partiu o pulso mas conseguiu rolar o corpo até à plantação de café, junto da nossa casa. Depois dispararam sobre o meu irmão mais velho, Mário da Silva. Ele sabia que ia morrer e, por isso, antes da chegada deles, disse-me e à minha irmã: “Nós vamos morrer. Rita, por favor cuida da Elsa e do Marcos. Vai chamar o Marcos que está nos campos e mantenham-se juntos”. Respondi-lhe: “Está bem. Jamais esquecerei o que me disseste”. Entregou-me então a sua filha, Elsa, mesmo antes de ser morto a tiro. A minha mãe, Ermelinda da Silva Pacheco, caminhou para junto dele. Ajoelhou-se e, agarrada à sua barriga grávida, implorou: “Por favor não me matem e à minha nora porque nos faltam apenas alguns dias para dar à luz”. Mas eles ignoraram-na e golpearam-lhe as costas por quatro vezes. A minha mãe caiu inconsciente mas não morreu de imediato, pelo que a decapitaram com um só golpe. O bebé dentro dela ainda se mexia e, ao ver isso, a minha cunhada, a mulher do Mário, tentou fugir e salvar-se. Ainda mal se mexera quando dispararam e a atingiram nas costas; a bala saiu pelo peito. Ela caiu e o bebé que tinha dentro de si, morreu. Vi tudo isto com os meus próprios olhos. Ainda éramos crianças. Eu tinha onze anos, a minha irmã Silvina tinha seis anos e a Elsa dois anos. Apenas conseguíamos chorar, não conseguimos fazer nada para os ajudar. Os membros das Falintil levaram-nos aos três para o posto das Falintil próximo de nossa casa e aí pernoitámos. Fomos levados de manhã para Ailulimau onde ficámos com a tia Floriana durante três dias. Enquanto aí estivemos, o meu irmão José da Silva, veio ver-nos. Mas, nessa noite, apareceram dois membros da Fretilin e chamaram o meu irmão, fingindo pedir tabaco. Já haviam planeado matá-lo e quando o meu irmão saiu da casa com o tabaco, eles desferiram a catana sobre o seu ombro e ele morreu de imediato. Depois, fugiram. Não queremos os teus bens apenas as vossas vidas. Não havia mais ninguém senão eu e a minha tia para enterrar o corpo do José e o buraco que escavámos era pouco fundo. Depois de o enterrarmos, mudámos novamente de local; formos para um sítio chamado Hahi-Meta. Em Hahi-Meta, tínhamos de ir buscar água a um poço e, um dia, ao ir buscar água, ouvi alguém chamar-me: “Rita, Rita! Estou aqui!” Pensámos que era o fantasma do meu pai e fugimos. Mas isto aconteceu três vezes, até que, finalmente, o meu pai apareceu. Abraçou-se a nós e disse: “Não tenham medo. Não morri”. Permanecemos juntos em Hahi-Meta durante três meses até o meu tio nos ir buscar e levar para Aitutu Rina. Em Janeiro de 1976 fugimos para o mato, para o Monte Kablaki, mas a vida no mato era muito difícil. Não havia comida ou medicamentos para tratar os ferimentos causados ao meu pai quando foi atingido a tiro pela Fretilin. Por isso, acabámos por nos render às ABRI. Os militares indonésios levaram-nos de regresso a Maubisse onde nos libertaram para podermos regressar a casa. Vivemos durante vários anos com o nosso pai apesar de já não termos connosco a nossa querida mãe e os nossos dois irmãos. Mas esta felicidade não durou muito pois a 31 de Março de 1990, o meu querido pai faleceu devido à infecção dos ferimentos provocados pelo tiro dado pela Fretilin. Desferiram a catana sobre o seu ombro e ele morreu de imediato. ABRI Maria Antónia Santos Sousa Lacló, distrito de Manatuto, 1977/1978 Maria Antónia Santos Sousa prestou um depoimento devastador sobre os abusos cometidos pela Fretilin após a invasão indonésia em 1975. Contou que o seu pai fora membro da UDT e foi feito prisioneiro pela Fretilin e detido em Aileu em 1975. Na altura da invasão indonésia, fugiu e rendeu-se aos indonésios. Maria Antónia afirmou que “por essa razão, toda a minha família foi considerada traidora”. Maria Antónia contou que a família foi capturada pela Fretilin nas montanhas de Lacló, Manatuto, em 1977. Durante dois anos sofreram tortura e abusos sistemáticos. Contou que morreram muitas pessoas detidas. Em 1979, conseguiu render-se às forças invasoras indonésias. A Fretilin interrogou-me inicialmente sobre uma carta, escrita por eles próprios, onde se afirmava que eu e o meu primo MF estivéramos em contacto com o meu pai. Espancaram-me com um ramo de tamarindo e bateram-me na cabeça com um pedaço de madeira deixando-me inconsciente. Ainda hoje sofro os efeitos dessa pancada. Depois de vários dias, acabei por admitir ter contactado o meu pai só para não me matarem. Depois, interrogaram os meus tios enquanto lhes batiam e queimavam com ferros em brasa. Quando os meus tios gritavam, enchiam-lhes a boca com fibra da casca do coco. Nessa noite, os meus tios e todos os presos do sexo masculino foram atados a árvores, de mãos e pés atados, dois por cada árvore. Não consegui dormir nessa noite porque eles gritavam com fome e dor. Sempre que alguém gritava, homem ou mulher, eles voltavam a espancá-los. Após duas semanas em Welihumeta, Lacló, fomos transferidos para outra prisão, em Roluli. No caminho, o meu primo P pediu-me que tratasse das suas feridas causadas pelos espancamentos. Gritou de dor quando esfreguei folhas de tabaco sobre os ferimentos. As feridas estavam infestadas de larvas, o tipo de larva encontrada nos búfalos e nas cabras. Custava-me ver o estado em que ele estava. Fora espancado até lhe saltar o globo ocular, e tínhamos de ajudar e orientá-lo ao caminhar. Quando o globo ocular se soltava tínhamos de o recolocar no sítio. A caminho de Roluli, ataram-nos pela cintura, a um cavalo. Montaram o cavalo e nós tínhamos de o puxar. Quando chegámos, as seis mulheres foram colocadas numa pequena barraca. Fui interrogada por A (nome retido) sobre a carta falsa, onde se afirmava que o meu primo e eu estivéramos em contacto com o meu pai. Admiti tudo porque já testemunhara a forma como trataram os meus primos MF e P, que deram respostas que não agradaram à Fretilin. Enquanto estivemos em Roluli, senti-me chocada ao ver chegar membros da Fretilin, incluindo B (nome retido) e os seus seguidores e uma professora. Ataram-nos e atiraram-nos para um buraco juntamente connosco e dispararam sobre eles, mesmo à nossa afrente, apenas a dois metros de nós. Depois mandaram-nos sair do buraco e enterraram os seus corpos. Diariamente, vi ratos a comerem a cara e os corpos dos que já haviam morrido. Depois de Roluli, as seis mulheres foram separadas dos homens e levadas para uma pensão em Aileu. Inicialmente, colocaram-nos num buraco cheio de pulgas, ratos e cobras. O buraco estava tapado com pranchas de madeira e os homens foram colocados sobre a madeira. Sofremos com as picadas das pulgas e com a urina dos homens que estavam acima de nós. Três dias depois, fomos colocadas numa ‘cabana de reabilitação’ onde já não voltámos a ser espancadas. havia do Morreram quase todos os que estiveram presos connosco, incluindo as minhas tias e a minha avó. Morreram de fome. Diariamente, vi ratos a comerem a cara e os corpos dos que já haviam morrido. Mais tarde, ajudei a tomar conta de mais de 100 crianças que estavam na creche, mas morreram quase todas de malnutrição, falta de higiene e falta de amor e carinho dos pais. A 19 de Janeiro de 1979, rendemo-nos, incluindo o comandante Montalvão, em Metinaro. Fomos levados pelos militares até Díli onde as nossas famílias nos foram buscar. Uma semana mais tarde, o meu pai veio buscar-me e levou-me para casa, para Lacló. Morreram quase todos os que estiveram presos connosco, incluindo as minhas tias e a minha avó. Morreram de fome. Foto, p. 19: Durante a audiência, num momento de espontaneidade, Vitória interrompeu o depoimento de Maria Antónia para a abraçar e, declarou em voz alta: “Antes, os meus colegas eram da Fretilin, e causaram o teu sofrimento...mas ambas sofremos, ambas nos entregámos pela independência...e, por isso, agora pedimos aos partidos que se reconciliem, tal como nós nos abraçamos aqui”. Maria Cardoso Mauulo, distrito de Ainaro, 1975, 1977, 1979, 1982, 1999 Maria Cardoso depôs sobre os abusos cometidos ao longo dos 25 anos do período do mandato a CAVR, desde o conflito interno até à violência perpetrada pelo TNI e as milícias em 1999. Maria Cardoso, hoje uma senhora esguia de 50 anos de idade, descreveu os anos em que lutou para manter a família junta enquanto o seu marido viveu períodos alternados sob custódia dos militares indonésios, até que, em 1982, desapareceu no Monte Kablaki, na região montanhosa central. Maria Cardoso viu, por três vezes, a sua casa ser queimada ao longo dos 25 anos: em 1975, membros timorenses da UDT levaram-lhe todos os seus bens e queimaram-lhe a casa; no final da década de 70, os militares indonésios queimaram-lhe a casa. Em 1999, a milícia Mahidi queimou-lhe a casa. TNI Mahidi Maria Cardoso relatou um episódio arrepiante sobre a sua detenção pelos militares indonésios após o desaparecimento do seu marido, em 1982. Simulando a forma como dez soldados a levaram a marchar até à ribeira para ser executada, repetiu as palavras que os “soldados estrangeiros” vociferaram ao ordenarem que se deitasse e se preparasse para morrer. D ez armas a forçarem-me a deitar, dez armas a cercarem-me, dez armas apontadas a mim... mas conseguiu dizer-lhes “Não me matem ainda. Dêem-me tempo para rezar”. Peguei num pouco de terra que esfreguei na testa, benzi-me e orei: “Deus, o meu marido lutou por esta terra. Se me desejais levar agora, por favor; mas se Sois de facto Todo o Poderoso, fazei com que estas armas não disparem”. Depois da oração, premiram os gatilhos por três vezes mas as armas não emitiram qualquer som. Levaram-me de regresso a casa. Em 1999, a milícia Mahidi iniciou a sua acção e atacaram a minha casa. Incendiaram-na e levaram tudo o que tinha e fiquei sem nada. Nessa altura, as crianças e eu fugimos para o mato. Só regressamos depois de a milícia ter fugido para Atambua. Todas as experiências que vivemos provocaram sofrimento. Hoje, é difícil enfrentar o custo de vida. Ganho o que posso vendendo pequenas coisas. Mas, com esse rendimento, tenho conseguido pagar a educação dos meus filhos até à universidade para que possam ser inteligentes e úteis à construção do nosso país, a nação livre de Timor-Leste. Depois da oração, premiram os gatilhos por três vezes mas as armas não emitiram qualquer som. Mahidi da Olga da Silva Amaral Mauchiga, Dare, distrito de Ainaro, 1976/1979, 1982 A história de Olga da Silva Amaral suscitou lágrimas entre a assistência ao relatar os abusos terríveis cometidos no seu suco. Afirmou que estas experiências foram vividas por muitas outras mulheres na mesma região. Foi presa após quatro anos de vida no mato, na região montanhosa central. Olga frequentou a escola católica em Ainaro. Quando casou, em 1982, mudou-se para a residência do marido, em Mauchiga. Descreveu o pesadelo que viveu com outras mulheres na sequência da retaliação lançada após o levantamento falhado contra os militares indonésios. E m 1976, quando tinha 16 anos, a minha família fugiu para o mato, para o Monte Kablaki. Em 1979, as ABRI e a Hansip iniciaram operações no Monte Kablaki. Na véspera do domingo de Páscoa, detiveram 70 pessoas, incluindo a minha família. Os meus pais foram levados para Dare, em Ainaro, e eu e o meu irmão fomos levados para Maubisse. Fomos levados perante SDR, que estava de serviço e, na realidade, salvounos de outros ABRI que nos queriam torturar. Ele disse-lhes: “Não podem fazer isso. Ainda são crianças e nada sabem. Deixem-nos regressar para junto das famílias em Maubisse”, e deixaram-nos partir. Comecei a frequentar a escola preparatória católica de Ainaro, mas por pouco tempo. Os meus pais viviam aterrorizados pelos ABRI que me procuravam e, por isso, decidiram que seria melhor deixar a escola e casarem-me. Após o casamento, mudei-me para a casa do meu marido, em Mauchiga. ABRI Hansip ABRI ABRI Em 1981, juntei-me a outros jovens na recolha de alimentos para as Falintil. Em 1981/1982, as ABRI descobriram que ajudávamos as Falintil na nossa região e as coisas tornaram-se bastante mais perigosas. Mas continuámos a fazê-lo e a conseguir porque a nossa comunidade era muito coesa. Trabalhávamos essencialmente de noite porque era a altura em que as ABRI não se movimentavam. ABRI No entanto, a 11 de Julho de 1982, as ABRI e a Hansip começaram a prender pessoas que tinham participado numa reunião das Falintil alguns dias antes. O meu marido foi um dos capturados. Foi pontapeado e sovaram-no com uma espingarda, após o que o levaram para o posto das ABRI em Aitutu e, mais tarde, para Hatu-Builico durante uma semana. Por fim, foi exilado para Ataúro. Sofreu muito durante dois anos. ABRI A 20 de Agosto de 1982, na sequência do ataque das Falintil ao posto do Koramil em Dare, as ABRI lançaram uma grande operação militar nas regiões de Dare e de Mauchiga. Incendiaram casas, incluindo a minha, e atacaram a escola primária. Capturaram mais homens que enviaram para Ataúro. Ajudei um membro das Falintil que participou no ataque pelo que começaram a suspeitar de mim. Nessa noite fui presa em minha casa e levada para Dare. Koramil Na altura, estavam apenas mulheres detidas no posto do Koramil em Dare. As ABRI e a Hansip começaram a torturar cada uma de nós. Antes de me violarem, agrediram-me na cabeça com uma cadeira de madeira até sangrar. Espancaram-me na região das costelas com uma espingarda e pontapearam-me na região lombar com botas militares até ficar incapaz de andar. Mas eles continuaram. Electrocutaram-me nos ouvidos, nas mãos e nos pés. O meu corpo saltava de um lado para o outro até que senti que o sangue já não fluía dentro do meu corpo e já não tinha mais força dentro de mim. Depois, começaram a violar-me. Quando terminaram, queimaram-me o rosto e os braços com pontas de cigarro. Torturaram-me assim durante um mês. Também me usaram como escrava. Todos os dias tinha de lavar roupa, cozinhar e fazer outras coisas. Koramil Electrocutaram-me nos ouvidos, nas mãos e nos pés... O meu corpo saltava de um lado para o outro até que senti ABRI Hansip ABRI ABRI ABRI Hansip corria que o sangue já não fluía dentro do meu corpo e já não tinha mais força dentro de mim... Depois, começaram a violar-me. corria Nessa altura as ABRI utilizavam as instalações da escola, atrás do posto, como uma espécie de dormitório onde detinham as pessoas que tinham trazido de Mauchiga. Na realidade, era um local onde mantinham as mulheres para viverem com eles. Era ali que eu vivia. Interrogavam-me diariamente sobre dados inventados sobre mim por um Hansip timorense. Se eu não respondesse de acordo com a informação falsa desse Hansip, seria torturada ou violada. Eu não fui a única a ser violada. Até as mulheres grávidas e as mães que ainda estavam a amamentar foram violadas. As crianças choravam mas os ABRI limitam-se a ignorá-las, tudo o que queriam era satisfazer a sua luxúria. ABRI Também testemunhei a forma sádica como trataram dois homens. Prenderam o marido de uma das mulheres detidas. Eles amarraram-lhe as duas mãos atrás das costas e arrastaram-no ao longo de Dare preso a um camião Hino. Enquanto era arrastado, as ABRI e a Hansip, alinhados ao longo da estrada, bateram-lhe com bastões de madeira sempre que ele passava por eles, até que o corpo dele ficou desfeito e o branco dos ossos se tornou visível. Apenas o seu rosto parecia intacto. Um outro homem jovem foi metido dentro de um saco plástico de açúcar, de 50 quilos. Não foi o saco propriamente dito que eles usaram, mas o seu forro de plástico. Eles amarraram o saco de plástico à volta dele, verteram querosene por cima e queimaram o jovem vivo. Por muito estranho que pareça, quando ele já estava morto – o seu corpo estava completamente queimado – mas continuava ajoelhado e com a mão direita erguida. Por fim, senti que não aguentava mais e inventei uma desculpa para ir até ao dormitório das Irmãs, em Ainaro. Fugi e regressei à escola para me manter longe das ameaças. Mas foi por pouco tempo. Prepararam uma declaração falsa que afirmava que eu mantinha contacto com as Falintil e enviaram-na ao director da escola, padre Yohanes. Em Setembro de 1982 fui detida novamente na escola e levada para o Kodim, em Ainaro. Tive de esperar até cerca das duas da tarde, pela chegada do chefe dos serviços de informação. Ele perguntou de imediato aos seus homens, “É esta a Olga? Espera, primeiro vou tomar um banho”. Depois de tomar banho chamou-me, não para a sala de interrogatório mas para o seu quarto, para ser violada. Depois disso, os outros agentes dos serviços de informação interrogaram-me formulando várias alegações: “Tu forneceste comida às Falintil, não foi? A tua casa não foi usada para reuniões das Falintil?” Eu neguei tudo e foi aí que me começaram a torturar. Primeiro, troçaram de mim, tocando-me da cabeça aos pés. Depois, bateram-me na cabeça com uma cadeira de madeira. O sangue escorria-me pela face e a minha camisa ficou encharcada em sangue. Colocaram-me cabos eléctricos nos ouvidos para me electrocutarem e também me electrocutaram as mãos e os pés. De cada vez que me bombardeavam com uma pergunta, queimavam-me com pontas de cigarro ou electrocutavam-me. Quando cai, violaram-me. Por fim, levaram-me para uma casa de banho onde me mantiveram durante três meses. Quando utilizavam a casa de banho, eu saia. Nunca puxavam o autoclismo. Foi ali dormi e comi. Davam-me comida uma vez por dia, numa pequena lata de leite condensado. Durante três meses nunca mudei de roupa ou tomei banho. Agrediram-me na cabeça com uma cadeira de madeira até sangrar. Espancaram-me na região das costelas com uma espingarda e pontapearam-me na região lombar Hansip Hansip ABRI ABRI Hansip Kodim com botas militares até ficar incapaz de andar. Mas eles continuaram. Mais uma vez fui enganada por um Hansip timorense que tentou, sem êxito, violar-me quando todo o pessoal das ABRI foi a Díli participar num evento. Quando regressaram, desiludido, relatou-lhes o acontecido, afirmando: “A Olga acaba de me dizer que continua a pensar no seu marido das Falintil que continua no mato” apesar de eu nunca ter feito tal afirmação. Nessa noite, as ABRI levaram sete homens e duas mulheres detidas (eu própria incluída) para nos atirar de Builico [uma ravina muito profunda, também conhecida como Jacarta II]. Quando chegámos, os homens foram obrigados a ficar de pé, na borda da ravina e depois foram empurrados para a sua morte. Quando nos tentaram empurrar a nós, mulheres, agarrámo-nos às suas pernas para que, se caíssemos, também os soldados caíssem connosco. O comandante disse: “Então, vamos matá-las ou levamo-las de volta?” Outro ABRI respondeu: “Vamos leválas de volta, de qualquer forma, os outros já morreram”. Quando regressámos, formos novamente torturadas e violadas. Não se passava um dia sem que fossemos violadas. Um dia, uma das detidas foi convocada para o gabinete do chefe de secção dos serviços de informação. Ela era tratada da mesma forma que eu própria mas estava detida no Kodim. Ao chegar ao gabinete, viume na casa de banho e murmurou através de um pequeno buraco na parede: “O melhor é confessares tudo o que eles queiram... diz-lhes que eu era a tua comandante”. Foi o que fiz. Depois de obterem a confirmação dessa mulher, mudaram-me para uma cela comum. Três meses mais tarde, em Abril de 1983, fui libertada. Hansip ABRI ABRI ABRI Kodim Pouco tempo depois de regressar a Dare, o meu marido foi libertado de Ataúro. As nossas duas famílias juntaram-se para discutir todos os problemas que enfrentei enquanto estive nas mãos dos militares indonésios. O meu marido e eu fomos aconselhados por um padre. Decidi contar tudo ao meu marido porque o que tinha vivido foi-me imposto contra vontade. O padre perguntou ao meu marido se me aceitava de volta como sua esposa ao que ele respondeu afirmativamente. Regressámos a Mauchiga para formar uma família feliz. Antes de tudo isto acontecer, não tínhamos tido filhos pelo que estávamos ansiosos por ter filhos. Tentei, durante dez anos, até que consultei um médico para ser examinada. Ele disse que talvez não pudesse engravidar porque possivelmente a tortura e as violações haviam danificado os meus órgãos reprodutores. Fui então a uma curandeira tradicional para receber uma massagem e ela deu-me medicamentos tradicionais. Por fim, engravidei. Quando dei à luz, tive dores insuportáveis. Dei à luz quarto filhos mas estive perto da morte durante o último parto. Não se passava um dia sem que fossemos violadas. deu Deu Beatriz Miranda Guterres Lalerek Mutin, distrito de Viqueque, 1983/1985, 1988, 1991 e 1993 Beatriz Miranda Guterres é uma sobrevivente do Massacre de Kraras perpetrado em 1983, em Viqueque. Estava grávida de dois meses quando tentava fugir com o marido para o mato e se rendeu aos militares indonésios. O marido, André Alves, conseguiu fugir. No entanto, alguns dias depois de dar à luz, ela rendeu-se e eles conseguiram permanecer juntos durante um mês. Mais tarde, depois de ser chamado pelos militares indonésios para com eles trabalhar, ele desapareceu misteriosamente. O bebé morreu aos 14 meses devido à falta de medicamentos. Após estes acontecimentos dolorosos, foi forçada a três “casamentos” com soldados indonésios. A sua história salienta a situação terrível em que as mulheres timorenses eram frequentemente colocadas - incluindo a pressão social de se sacrificarem para protegerem os membros das suas famílias, ou a própria comunidade, dos militares indonésios - e a luta para conquistarem o respeito da sociedade. F ABRI Numa noite, as ABRI realizaram uma festa em Lalerek Mutin. Já tinha ouvido falar que estas festas eram organizadas para aliciar a saída de membros das Falintil do mato ao dançarem com as viúvas do suco. Não queria ir à festa porque ainda estava de luto pela morte do meu bebé. Por isso, quando A (nome retido), soldado da Kopassus, me chamou para ir à festa, inventei todas as desculpas possíveis para não ir. Mas os homens que ele enviou para me virem buscar avisaram-me que não deveria desobedecer à sua vontade sob pena de ser torturada. Com medo de que me magoassem, acabei por decidir ir. Não me vesti de acordo com a ocasião e limitei-me a pegar numa lipa e a enrola-la à volta do corpo. Ao aproximar-me do local vi A (nome retido) à distância, de arma em punho, à minha espera frente ao gabinete da administração do suco. Dirigiu-se a mim e perguntou-me o que estivera a fazer em casa e, depois, amedrontou-me questionando: “Talvez exista um GPK em tua casa?” ao que eu neguei. ABRI omos forçados pelas ABRI a juntarmo-nos às tropas que avançavam sobre Lalerek Mutin. Todas as noites, eu e outras mulheres amigas éramos obrigadas a patrulhar a zona para evitar ataques da Fretilin. As mulheres eram na sua maioria viúvas dos homens que haviam sido mortos no Massacre de Kraras. Todas as noites, ao fazermos a ronda, éramos ameaçadas e assediadas, mas nunca cai nas mãos deles. Se não cumpríssemos os deveres de patrulha, éramos espancadas, torturadas e até submersas num tanque de água. Kopassus Anui ao seu convite para dançar apesar de sentir uma enorme tristeza ao recordar o meu filho. Tinha muito medo mas mantive-me em silêncio. Dançámos toda a noite. De manhã, disse-me que fosse para casa e que ele iria lá ter. Uma vez que a manhã já despontara, ao chegar a casa peguei nalguma comida e dirigime para os arrozais com o meu primo. Comemos alguma da comida e, depois, adormeci e o meu primo ficou a cuidar dos arrozais. Pouco tempo depois, A (nome retido) veio procurar-me. Vinha acompanhado de um Hansip e de alguns homens timorenses. Subitamente, os homens começaram a correr. A (nome retido) acordou-me e perguntou-me se eu vira alguns homens a correr. Respondi não ter visto ninguém o que o deve ter irado pois esbofeteou-me e eu caí. Ao tentar levantar-me, ele encostou o pé contra o meu peito e eu caí de costas. Começou a espancar-me com um ramo de mandioca até o partir em pedaços. Fugi para casa mas eles seguiram-me. Antes de entrar em casa, a minha cunhada já tinha informado o chefe de bairro (RK), o chefe de suco (RT) e um vizinho. Vieram ver-me mas ficaram em pé em silêncio. A (nome retido) chegou a minha casa pouco tempo depois. Se resistires, morreremos todos. É melhor venderes a tua alma para salvar as nossas cabeças. Hansip RK RT Em tétum, pediu à minha sogra uma panela para ferver água. Aparentemente, tencionava preparar algumas compressas para colocar-me nas feridas. Ao observarem o que acontecia, a minha sogra, o RK e o RT disseram-me: “Não faz mal. Aceita-o. Ninguém te ridicularizará se te casares com ele. Não é o teu desejo, mas todos sabemos que isso acontecerá porque estás a ser forçada. Se resistires, morreremos todos. É melhor venderes a tua alma para salvar as nossas cabeças”. Ao que respondi:”Vocês falam isso, mas o que acontecerá se a situação voltar ao normal? Os meus pais chegarão e o que é que lhes vão dizer?” Eles responderam: “ Se no futuro formos questionados, encontraremos as palavras para explicar-lhes o que aconteceu porque numa situação como esta nada podemos fazer”. , em tétum, RK RT Quando a água ferveu, começaram a aplicar-me as compressas. Alguns punham as compressas na minha face, outros nas mãos e nas pernas até eu me sentir melhor e o inchaço abrandar. Depois, foram todos para casa à excepção de A (nome retido). Ele ficou e, a partir desse momento, vivemos como marido e mulher durante um ano após o que regressou à Indonésia. Estava grávida do seu filho mas, três meses mais tarde tive um aborto espontâneo. Em 1991, chegou a Lalerek Mutin um novo soldado da Kopassus. Chamava-se B (nome retido). Um dia, ele seguiu-nos quando fui para os campos com três amigas. Começou a gritar, chamando-nos e, com medo, corremos para casa. As minhas amigas começaram a pressionar-me para me tornar mulher de B, de modo a salvar-me. Tive tanta vergonha. Levantei-me e disse: “Está bem! Dividir-me-ei em duas. A parte inferior ser-lhe-á entregue mas a parte superior pertence ao meu país, a Timor”. Kopassus Elas disseram-me: “Não tenhas medo, não fujas. Talvez tenhas de sofrer porque o teu marido foi morto e tu continuas viva. Não faz mal. Estamos todos a viver o mesmo”. O B começou então a passear comigo e conforme caminhávamos ele dirigia-me perguntas que eu respondia apenas com “Sim”. Ao chegar a casa, já não sentia a ira. Estava resignada com o meu destino. Vivemos como marido e mulher e tive um filho dele, ZBJ. Em 1993, chegou o batalhão 408. Um dia, quando colhíamos o arroz, aproximou-se de nós um soldado chamado C (nome retido) e o seu comandante. Começaram a lutar por causa de mim. Até dispararam um contra o outro mas não se feriram. O RT e o RK levaram-nos para o gabinete da administração do suco e aí continuaram a lutar, mesmo no gabinete da administração. RT RK Levantei-me e disse: “Está bem! Dividir-me-ei em duas. A parte inferior ser-lhe-á entregue mas a parte superior pertence ao meu país, a Timor”. O chefe de suco, D (nome retido) afirmou irritado: “Agora matam-se por tua causa. E a vida aqui é difícil para nós. Se quiseres, fica com um que chega; não fiques com ambos”. Ao que respondi: “Senhor, não fui lá para brincar. Todos vós sabeis como vivo. Estava apenas no campo a colher arroz. Estes homens apareceram subitamente e começaram a lutar”. O RT, o RK e o chefe de suco continuaram a insultar-me. Permaneci em silêncio sem revelar qualquer reacção. Depois disto, o comandante não regressou mas o C (nome retido) apareceu e ficou em minha casa. Dessa relação nasceu a minha filha, ZBSA. O C (nome retido) partiu quando ela tinha apenas alguns meses de idade. Desde então, fiquei a viver com os meus dois filhos. As pessoas suspeitavam de mim, pensando que eu era uma bihu (espia) porque eu era uma “esposa de guerra”. As pessoas falavam sobre mim e diziam que não prestava porque tinha vivido com três homens. Por vezes, zangava-me. Se ouvisse as pessoas a comentarem, dizia-lhes: “Se dizem que sou uma bihu não é porque o meu marido foi morto por roubar ou por se apropriar das mulheres dos outros. Sim, é verdade que sou uma “esposa de guerra”, mas nenhum de vós sabeis o que eu penso”. Depois disto nunca mais voltaram a falar de mim. Ao tentar levantar-me, ele encostou o pé RT RK contra o meu peito e eu caí de costas. Começou a espancar-me com um ramo de mandioca até o partir em pedaços. Foto, p. 26: Membros do público choram ao escutar o depoimento de Olga da Silva Amaral; por diversas vezes, no decurso dos dois dias de audiência, o público comoveu-se e chorou ao escutar a experiência traumática relatada pelas sobreviventes. Fernanda Soares Distritos de Liquiça e Díli, 1976/1999 Fernanda Soares falou do trabalho que desenvolveu no âmbito da Organização Popular da Mulher Timorense durante 1976/1978, incluindo no mato a organizar as mulheres no apoio à Fretilin. Parte do trabalho também incluiu a recolha de informação sobre as mulheres que eram capturadas, torturadas e violadas nos distritos de Liquiça e Bobonaro. Falou da sua participação activa no movimento clandestino a partir de 1980, incluindo o transporte de alimentos e medicamentos para as Falintil nas montanhas. Falou igualmente do terror que se viveu em Díli em 1999 antes da chegada da UNAMET, da captura e tortura do seu filho pela milícia Besi Merah Putih e da sua própria detenção e do interrogatório pelo TNI. Quando a UNAMET chegou, procurou a sua protecção mas foi entregue à polícia indonésia para que a protegessem, onde, mais uma vez, foi espancada e interrogada. Dili Besi Merah Putih TNI A sua casa foi incendiada após a Consulta Popular. E m 1981 casei-me com Jorge da Costa numa igreja e o nosso casamento foi abençoado com dois filhos. Mas a nossa vida era difícil porque o meu marido, um ex-preso político, esteve sempre sob intensa vigilância das ABRI. Em Junho de 1982, o meu marido voltou a ser preso após novo ataque das Falintil às ABRI, em Díli. Foi levado para o Koramil de Díli ocidental para ser interrogado e aí o mantiveram durante dois meses com mais quatro pessoas. Após a sua libertação, todos faleceram devido às lesões causadas durante o período de detenção. ABRI ABRI Koramil O meu marido foi espancado e pontapeado até lhe partirem todas as costelas. Queixou-se de dores no peito até ao momento da sua morte em 1992. Quanto ao meu trabalho, permaneci activa na clandestina até 1980. Também dei assistência no planeamento do envio de bens básicos para as Falintil, como alimentos e medicamentos. Em 1981, estive envolvida no ataque ao quartel do batalhão 744 em Taibessi, no qual um dos comandantes das ABRI foi capturado e morto pelas Falintil e o seu corpo foi queimado ali mesmo nas instalações das ABRI. ABRI ABRI Em 1989, também estive envolvida na preparação de panos e de uma bandeira da RDTL para a celebração a 12 de Outubro, em Tacitolu, durante a visita do Papa João Paulo II a Timor Leste. A minha tarefa incluía reunir os materiais necessários, nomeadamente, o tecido e as linhas e, com uma amiga, cozermos a bandeira e os panos. Provavelmente, alguém do bairro deu informações sobre o trabalho que eu estava a fazer, porque fui presa uma semana depois de a bandeira e os panos estarem prontos. Fui levada para a esquadra da polícia de Díli. Interrogaram-me sobre o que estivera a fazer em casa e quem eram as pessoas que me visitavam regularmente. Respondi que o homem era um familiar do meu marido, de Ainaro mas, na realidade, ele era um dos nossos contactos com as Falintil no mato. Disse-lhes que a mulher era uma amiga e que planeávamos abrir um quiosque em conjunto quando, na realidade, ela visitava-me para planearmos o encontro com alguns comandantes das Falintil. Fui libertada duas semanas mais tarde porque não conseguiram obter a informação que procuravam. Testemunhei com os meus próprios olhos como [os membros da milícia BMP] espancaram o meu filho e outros jovens...até sangrarem e as suas caras ficarem numa massa de sangue. Alguns foram esfaqueados. BMP Em 1996, o comandante Tuloda confiou-me a tarefa de trabalhar com rede da OPMT de Díli e organizar a actividade clandestina na zona de Vera Cruz. Em 1998, em conjunto com o Conselho de Solidariedade Estudantil, realizámos manifestações frente ao Conselho Representativo Popular e ao gabinete do governador. Cozinhei para os estudantes que participaram nas manifestações. Os serviços de informação do exército suspeitavam que em minha casa funcionava uma sede do CNRT; por essa razão, uma manhã, após as manifestações, cercaram a minha casa e levaram o meu filho C. A ABRI deteve-o e espancou-o durante dois ou três dias após o que o libertaram para, mais tarde o voltarem a deter. Detinham-no e espancavam-no quase que semanalmente até que não aguentei mais e fugi com os meus filhos para casa de um amigo da rede clandestina. Em Abril de 1999, as milícias Aitarak e Besi Merah Putih (BMP) montaram um posto em Caicoli. A 6 de Abril de 1999 as milícias atacaram a comunidade pró-independência em Liquiça e o TNI ordenou aos serviços de informação que realizassem uma rusga a minha casa (em Caicoli) porque sabiam que estava envolvida na rede clandestina e que era pró-independência. Capturaram o meu filho C e detiveram-no durante dois dias e duas noites na sede da polícia, em Díli. Informei a Cruz Vermelha. Com a ajuda do bispo Belo, conseguimos tirar o meu filho da prisão. Durante quase um mês, fui ficando com os meus filhos e várias pessoas da igreja e da rede clandestina, avançando para um local diferente sempre que ouvíamos falar de novo ataque. Acabámos por regressar a Caicoli quando um vizinho nos disse que seria seguro fazê-lo mas a Intel e as milícias continuaram a controlar-nos. Depois do ataque da milícia BMP à casa de Manuel Carrascalão, no dia 25 de Abril de 1999, vieram a minha casa e acusaram o meu filho, C, de ter armas. Mais tarde, à noite, vieram prendê-lo. Fomos ambos levados para a sede do suco de Caicoli. Testemunhei com os meus próprios olhos como espancaram o meu filho e outros jovens, capturados no RT I de Caicoli, até sangrarem e as suas caras ficarem numa massa de sangue. Alguns foram esfaqueados. Alguns estavam em tal dor que gritavam preferir morrer a continuarem a ser torturados. Estava perturbada e gritava-lhes para que os matassem em vez de os continuarem a torturar. Nessa tarde, eu e o meu filho fomos libertados mas alguns ainda lá ficaram. Por volta de Maio, fui novamente detida quando o TNI encontrou um apelo (um cartão para a contribuição de donativos às Falintil no mato) em casa da minha amiga A (nome retido). Perguntaram a A quem lhe tinha dado o cartão ao que respondeu que eu lho dera. Por isso o TNI veio a minha casa prender-me e levar-me ao babinsa do suco de Caicoli. Os agentes troçaram de mim e diziam que o lugar da mulher não é na política e que seria impossível uma pessoa como eu ser líder neste país, e que só poderia ser criada das Falintil no mato. Por outras palavras, que só servia para ser concubina das Falintil. Mantive-me calada. Acabaram por me deixar partir. O TNI veio novamente a minha casa e eu fugi para a sede do CNRT… Representantes do CNRT contactaram a UNAMET que me vieram buscar e me levaram para a sua sede, em Balide. Em Junho de 1999, após a chegada da UNAMET a Díli, o TNI veio novamente a minha casa e eu fugi para a sede do CNRT em Audian. Alguns dos representantes do CNRT contactaram a UNAMET; alguns funcionários vieram buscar-me e levaram-me para a sua sede, em Balide. Contudo, mal chegámos, entregaram-me à polícia argumentando que não dispunham de mandato para proteger pessoas próindependência ou pró-autonomia e que tinham de se manter independentes e imparciais. Deixaram-me na sede da polícia e, logo, um oficial do TNI agarrou-me pelo cabelo e atirou a minha cabeça contra a parede enquanto berrava. Meteram-me numa cela e detiveram-me durante 24 horas para ser interrogada. ABRI Besi Merah Putih BMP TNI BMP RT TNI TNI TNITNI TNI ! "#$ %& %& %& ! "#$ %& %& %& ! "#$ %& %& %& came¶ again to my house¶ and I ran away to the¶ CNRT office...¶ C ! "#$ %& %& %& * ) % NRT called¶ ' ( TNI enviou TNI & Perguntaram-me se conhecia o paradeiro dos GPK, ou Falintil, ao que retorqui: “Sei onde estão as Falintil, estão no gabinete do comandante do TNI”. Ficaram verdadeiramente zangados e queriam electrocutar-me mas, felizmente, estava presente um oficial da polícia, das Flores ou de Atambua, que me defendeu e disse ao TNI: “Não faça isso. Tenha piedade, ela é uma mulher e você interrogou-a durante muito tempo; é cansativo. É natural que ela esteja tão incomodada”. Mantiveram-me em detenção até às onze da noite e depois levaram-me para casa de um dos polícias. Disseram-lhe que cuidasse de mim e que seria responsável se algo me viesse a acontecer. Permaneci com o polícia e a sua família durante três meses. Fugi para o mato imediatamente depois de ouvir os resultados da consulta popular. O TNI e a milícia BMP não me conseguiram encontrar mas incendiaram-me a casa. Mas, [representantes da UNAMET] entregaram-me à polícia argumentando que não dispunham de mandato para proteger pessoas... Deixaram-me na sede da polícia e, logo, um oficial do TNI agarrou-me pelo cabelo e atirou a minha cabeça contra a parede. Foto, p. 29: Da esquerda para a direita: Olga Corte Real, Celina Martins Fernandes, membro da equipa da CAVR de Apoio à Vítima, Fernanda Soares. TNI TNI TNI BMP TNI Leonia Amaral Soares Distritos de Manatuto e Viqueque, 1979, 1983, 1996/1997 Leonia Amaral Soares passou quatro anos, entre 1975 e 1979, nas florestas de Manatuto e Viqueque com as Falintil. Falou da deterioração das condições de vida, do perigo e da falta de comida e de medicamentos. Viu pessoas a morrerem a serem deixadas à beira da estrada quando as pessoas fugiam dos ataques dos militares indonésios. Em 1979, rendeu-se às forças indonésias em Rai Hun, Viqueque. A sua história relata a recorrência de detenções ilícitas pelos militares indonésios, tortura e abuso sexual. Falou sobre o que é viver sob medo constante até 1999. Falou ainda da difícil posição social e cultural das mulheres detidas por militares e da estigmatização pela sua família e pela comunidade, o que ampliou o sofrimento em que vivia. R endemo-nos ao batalhão 721 em Rai Hun, Viqueque, em Março de 1979. Regressámos a Buikarin. Todas as noites, o comandante L forçava-nos a cantar e a dançar na parte de trás de um camião estacionado entre Buikarin e Viqueque. Uma semana mais tarde, fui libertada mas poucos dias depois, os subordinados do comandante L voltaram a deter-me. Mantiveram-me presa num galinheiro até Julho de 1979. Quando tinha a menstruação, a minha família trazia-me uma muda de roupa. Fui libertada seis meses mais tarde mas pouco depois fui capturada novamente, desta vez, com duas amigas, A e TP. Éramos chamadas diariamente para ir dar uma massagem ao Kasi I, na sua sala. Mantínhamo-nos de mãos dadas porque tínhamos medo de ser violadas e quando entrávamos ele estava deitado nu sobre a cama. Não nos queríamos aproximar e por isso ele aproximou-se de nós, agarrando e esfregando o seu pénis nos nossos corpos. Todas as noites chorávamos ao pensar na forma como nos tratavam como animais. Em 1980, o padre D chegou a Viqueque. Ele era conhecido como padre que mantinha contacto com as Falintil no mato. O padre D pediu aos seus ex-alunos, incluindo eu própria, para dar aulas na escola primária Luca Wetudo. Em 1983, mudámo-nos para a escola primária católica de Viqueque. O Massacre de Kraras foi em Agosto desse ano e tirou tantas vidas a homens, mulheres e crianças. Éramos vigiados de perto porque participávamos nas acções da igreja. Num fim de tarde de Novembro de 1983, fui levada por um Nanggala, o administrador subdistrital B (nome retido), o meu primeiro marido e cinco Hansip para casa do Nanggala em Boromata, Viqueque. Nessa noite, fui espancada, pontapeada, empurraram-me com uma espingarda e pisaram-me com botas militares. Colocaram as minhas mãos sobre uma mesa e bateram-me com uma vara. Vim a descobrir que fui presa porque alguém me viu a caminhar com o padre D e o bispo Belo que estavam em contacto com os combatentes da resistência no mato. Quando a situação relaxou um pouco na prisão, aproveitei a oportunidade para ver as minhas amigas nas outras celas. Quando a minha família me trazia arroz ou sopa, partilhava com as restantes prisioneiras. As minhas amigas foram violentamente espancadas. Algumas tinham as pernas partidas, outras tinham as mãos, as costas ou as coxas lesionadas. Algumas morreram. Outras desapareceram e até hoje não foram encontradas. Na altura, o administrador subdistrital B (nome retido) tinha bastante influência no comando militar em Viqueque. Pisou-me com as botas militares e esmurrou-me a face. Também me esbofeteou e disse às ABRI que me sovassem com as espingardas da meia-noite até ao amanhecer. Quero depor aqui nesta audiência pública porque sou uma mulher que viveu a violência e o meu nome foi manchado em todo o lado porque fui capturada pelas ABRI tantas vezes. Nanggala Hansip Nanggala ABRI ABRI Tinha problemas com o meu ex-marido. Após o divórcio, queria ficar com a nossa filha. Quando recusei deixá-lo ficar com ela, ele denunciou-me às ABRI e disse-lhes que eu estava envolvida na actividade clandestina. Mas, ao ver a minha filha crescer, ele e a sua família pediram-me que voltássemos para ele. Respondi: “Costumavas obrigar-me a carregar a minha filha, andar por aqui e ali para ser avaliada por todos onde quer que fosse”. Ninguém me defendeu, nem a polícia nem o gabinete da administração subdistrital. Todos tomaram o partido do meu ex-marido porque eu era uma mulher envolvida na política. De 1983 a 1987 não tive paz na minha vida. Estava sempre sob suspeição de envolvimento em actividades clandestinas, que realizava. Em 1996/1997 mudei-me para Dilor, para a área de transmigração SP-2, em Sungai Welolo, Luca, Viqueque. Mesmo aí, a minha vida não era segura. Todas as noites as ABRI espiavam-me. Eles dormiam à volta da minha casa e eu sabia que eles estavam lá porque conseguia vê-los a acender os cigarros. Por vezes não dormia em casa e ia dormir para o mato ou para o caniçal. Por vezes, no caminho, era abordada pelos militares que ameaçam matar-me. Dou graças por ainda estar viva. Em 1998 e 1999 não era seguro ir para onde quer que fosse. Muitos morreram e os seus corpos foram eliminados secretamente. Em 1999, a minha família estava disposta a matar-me por causa de todos os problemas com o meu ex-marido. Todos sabem que, em 1999, fomos separados por causa das milícias indonésias. Quero depor aqui nesta audiência pública porque sou uma mulher que viveu a violência e o meu nome foi manchado em todo o lado porque fui capturada pelas ABRI tantas vezes. Apesar de nunca ter sido violada, serei sempre conhecida por “aquela que cheira mal” devido às detenções. Todas as noites as ABRI espiavam-me. Eles dormiam à volta da minha casa e eu sabia que eles estavam lá porque conseguia vê-los a acender os cigarros. Por vezes não dormia em casa e ia dormir para o mato ou para o caniçal. ABRI ABRI ABRI ABRI Natália dos Santos Distritos de Baucau, Lautém e Liquiça, 1979, 1982, 1987 Natália dos Santos depôs sobre a sua experiência de ser forçada a participar no programa estatal indonésio de planeamento familiar (KB). Enquanto esposa de um soldado timorense das forças armadas indonésias era-lhe exigida a participação no programa ainda que desejasse ter filhos. Desde o seu casamento em 1979 até Setembro de 1999 foi pressionada a utilizar diversos métodos de contracepção sob a ameaça de que o seu marido seria punido se ela não cooperasse. Durante este período sofreu a perda de dois filhos que nunca chegaram a nascer. D e cada vez que o médico me dizia para mudar de um método de KB para outro eu sentia-me deprimida porque estava a ser tratada como uma cobaia para assegurar o êxito do KB. Mas não podia fazer nada por causa do estatuto do meu marido e tinha de permitir que os médicos das ABRI fizessem o que quisessem comigo. Sinto uma grande tristeza por nunca ter tido filhos. Os efeitos dos diferentes métodos de planeamento familiar que usei incluem prurido na vagina que não pode ser tratado e continuo a perder peso. Tinha de permitir que os médicos das ABRI fizessem o que quisessem comigo. Sinto uma grande tristeza por nunca ter tido filhos. Foto, p. 32: Da esquerda para a direita: Os Comissários Olandina Caeiro, Aniceto Guterres Lopes, Isabel Guterres; e as testemunhas Olga Corte Real, Fernanda Soares, e Olga da Silva Amaral ABRI ABRI Olga Corte Real Datina, Same, distrito de Manufahi; 1975-1978, 1980, 1992-1994 Olga Corte Real falou do seu pai, um comandante da região do Monte Kablaki e da fuga da família e posterior dispersão em consequência do ataque militar indonésio em 1977. Os seus pai, mãe e irmão mais novo foram mortos pelos militares indonésios e o seu filho de seis meses desapareceu. De acordo com as suas palavras, em 1980, o seu irmão mais novo morreu após ter sido espancado enquanto preso. A família ficou reduzida a quatro irmãs. Falou do seu trabalho na rede clandestina a partir de 1982 e de como levava medicamentos aos soldados das Falintil nas montanhas, de como foi recorrentemente capturada, interrogada e torturada pelos soldados indonésios por causa do trabalho que realizava. E m 1990, quando comecei a trabalhar como enfermeira no centro de saúde comunitário de Datina, Manufahi, tive a oportunidade de levar para casa medicamentos necessários às Falintil no mato. Em Outubro de 1991, a minha prima, o seu marido, chefe do suco de Datina, e eu própria, reunimos no mato com Konis Santana, comandante da Região IV, e o seu grupo. Falámos da falta que tinham de medicamentos e de alimentos e eu dei-lhe os medicamentos que tinha comigo. Em Julho de 1992, encontrei-me com Xanana em Datina depois de ele ter estado a trabalhar com Konis Santana durante um mês. Também entreguei medicamentos a Xanana, a Mau Hunu e a Riak Leman e a outros que os acompanhavam. É provável que houvesse um espião militar que tenha relatado a minha actividade porque, no início de Novembro de 1992, fui presa por um polícia timorense, militares indonésios do Koramil de Manufahi e outras três pessoas. O comandante militar distrital levou-me para a base em Same. Perguntou-me se eu tinha entregado medicamentos a Xanana. Respondi que não entreguei medicamentos directamente a Xanana mas que os enviara através de um estafeta. Ele ameaçou-me para que eu revelasse os nomes de outras mulheres que trabalhavam comigo. Respondi que as únicas envolvidas na actividade clandestina eram a minha prima e a minha irmã mais nova e eu, ainda que houvesse outras mulheres que também trabalhavam connosco. Ele disse que se viesse a saber de outras mulheres que trabalhassem comigo que se encarregaria pessoalmente de me cortar a cabeça. Koramil havia entregue havia -os Subitamente surgiu um membro da Nanggala que me levou para outra casa onde fui interrogada por um membro dos serviços de informação. Estava lá um outro polícia que afirmou que eu andava a dormir com Xanana. Depois, foi ordenado a duas pessoas, incluindo o marido da minha prima, que se revezassem a sentar numa cadeira para me esmagarem os dedos dos pés até que estes ficassem negros. Nanggala A 19 de Novembro de 1992, o comandante distrital do TNI acompanhado pelos seus homens que enchiam um carro, dirigiu-se a casa dos meus sogros em Datina, onde eu vivia. Forçou-me a falar-lhe de uns documentos e de uma bandeira da Fretilin que diziam que o meu cunhado havia escondido. Disse-lhes que não sabia de quaisquer documentos ou da bandeira da Fretilin. Obrigaram-me a desfazer o altar para procurarem os documentos e a bandeira enquanto me iam empurrando com as suas espingardas. Disseram que se encontrassem os documentos e a bandeira eu seria imediatamente morta. Na realidade, não sabia mesmo nada e o meu coração batia forte na esperança de que não encontrassem aqueles objectos sob o altar. Procuraram durante todo o dia mas nada encontraram pelo que regressaram à base ao fim da tarde. TNI De Julho de 1997 até hoje, não voltei a encontrar-me com Konis Santana. Alguns dizem que ele já morreu, mas ainda não obtive uma certeza. No dia seguinte, fui salva por dois médicos indonésios. Sabendo que eu poderia ser torturada ou mesmo morta, levaram-me para Same para trabalhar como recepcionista no Hospital Público de Same. Contudo, nesse meu novo emprego, havia colegas de trabalho que não gostavam de mim porque sabiam que eu havia trabalhado com as Falintil no mato. Troçavam frequentemente de mim e perguntavam por que razão o fazia. Dizia-lhes que a nossa tarefa ao trabalhar na recepção era prestar assistência. Não ligava muito porque se os contradissesse poderia ser transferida para outro departamento. Tinha de ser forte porque podia fazer uso do meu trabalho na recepção para obter medicamentos para as Falintil. ¶ Entre Dezembro de 1992 e Janeiro de 1993, fui interrogada diversas vezes pelas ABRI, Em Março de 1993, o comandante Konis Santana enviou-me uma carta através de um estafeta que a entregou a um Nanggala. Depois de a ler, ordenaram ao estafeta que a entregasse ao chefe de suco de Datina, o marido da minha prima. Uma semana mais tarde, o Nanggala retirou novamente a carta ao chefe de suco e procurou-me. O Nanggala leu-me em voz alta a carta que Konis Santana me escrevera onde pedia que eu comprasse uma máquina fotográfica...forçaram-me a escrever uma carta a Konis Santana, em resposta apesar de eu não o querer fazer. Não estavam satisfeitos pelo que me levaram, e ao marido da minha prima, para o posto da Nanggala em Same onde me forçaram de novo a responder à carta de Konis Santana. Mas eu continuei a recusar. O marido da minha prima disse-me que escrevesse para que não fosse torturada. Acabei por aceder. Escrevi duas cartas mas não gostaram do que escrevi e acabaram por escrever a carta em indonésio e obrigaram-me a traduzi-la para tétum. Na carta, eu apelava a Konis Santana que se rendesse. O Nanggala colocou 10.000 rupias dentro do envelope com a carta e entregou-a ao estafeta para a ir entregar. ABRI Entre 1 de Janeiro de 1993 e Abril de 1994 fui obrigada a participar na assembleia matinal no centro de comando militar em Same. Apesar de ser obrigada a participar na assembleia, até 1995, continuei a fazer o trabalho clandestino e a trabalhar com as Falintil no mato. Havia pessoas, até entre os meus familiares, que se distanciavam de mim porque eu ajudava no trabalho clandestino. Não obstante, mantive a força e continuei a luta do meu pai para alcançar a vitória desta nação, que já estava tão repleta de sangue e de lágrimas. De Julho de 1997 até hoje, não voltei a encontrar-me com Konis Santana. Alguns dizem que ele já morreu, mas ainda não obtive uma certeza. Disseram que me matavam logo ali. No dia seguinte, fui salva por dois médicos indonésios. Sabendo que eu poderia ser torturada ou mesmo morta, levaram-me para Same para trabalhar no Hospital Público. Nanggala Nanggala Nanggala Nanggala Nanggala Feliciana Cardoso Suai, distrito de Covalima, 6 e 14 de Setembro de 1999 Feliciana Cardoso falou do Massacre da Igreja de Suai perpetrado em Setembro de 1999 pelas milícias Laksaur e Mahidi e pelo TNI. Foi testemunha do assassinato do padre Francisco e do seu próprio marido. Falou da detenção das mulheres na esquadra da polícia e da sua sobrinha que foi levada e violada. Feliciana Cardoso contou que foi levada pelas milícias para Betun, em Timor Ocidental, e que eram diariamente aterrorizadas pelas milícias até conseguirem escapar e regressar a Timor-Leste, o que fizeram em Novembro de 1999. Laksaur Mahidi TNI D epois de participar no referendo de 30 de Agosto de 1999, a minha família refugiou-se de imediato na igreja porque a cidade estava sob o controlo de um grupo conjunto das milícias Laksaur e Mahidi, do TNI e o contingente Lorosa’e da Polícia. A situação era de grande perigo e pensámos que a única forma de nos mantermos em segurança seria na igreja. Na tarde do dia 6 de Setembro, exactamente às três da tarde, a milícia conjunta começou a reagir aos resultados do referendo disparando aleatoriamente. Disparavam contra todos os que se haviam escondido na escola secundária e, depois, a milícia Laksaur dirigiu-se à igreja. Partiram todas as janelas, arrombaram as portas e invadiram a igreja. Mandaram as pessoas sair e render-se. Algumas pessoas permaneceram na igreja, entre elas eu e os meus três filhos. Outras saíram, entre elas o meu marido. A milícia começou então a disparar contra as pessoas que se encontravam no exterior. Não sei como, mas o meu marido conseguiu escapar e correr para a sala do padre Hilário mas todos os outros foram mortos. O meu marido, os meus filhos e eu, bem como algumas outras pessoas, estávamos escondidos na sala do padre Hilário quando eles incendiaram a igreja. O fogo obrigou-nos a fugir da sala e a dirigirmo-nos para a residência contígua à igreja. Foi então que deixei então de ver o meu marido. No exterior da residência vi o padre Francisco erguer as duas mãos e dizer às milícias Laksaur e Mahidi: “Basta. Não disparem. Somos todos timorenses. Parem com isso”. Ele gritava ao ver tantas vítimas que jaziam no chão, mas os Laksaur/Mahidi ignoraram-no. Seguidamente, um membro da milícia, (nome retido), do suco de Raimea aproximou-se do padre Francisco. Fingiu que o abraçava e escoltou-o da residência até à gruta com a imagem de Nossa Senhora, após o que o conduziu de novo até à residência. Aí, disparou contra o padre Francisco mas ele não morreu de imediato e, por isso, pegou numa espada e trespassou-lhe o peito. Então o padre Francisco morreu. O meu marido correu para o exterior ao ouvir os disparos do membro da milícia (nome retido) contra o padre Francisco. Ficou muito emocionado ao ver que o padre Francisco fora morto a tiro. Havia um grupo de membros das milícias Laksaur e Mahidi no exterior da igreja, nomeadamente (nomes retidos). Trajavam roupas civis mas empunhavam armas de fogo - AR-16, SKS - e uma espada. Começaram a atirar na direcção do meu marido, mas as armas não disparavam. Um dos membros da milícia perguntou ao meu marido: “Porque não foges?” E o meu marido respondeu-lhe: “Sou um homem. Prefiro ser morto a tiro e morrer na minha própria terra! Viva Xanana Gusmão! Viva Timor-Leste!” Então, o milícia A (nome retido) pegou na espada, trespassou o meu marido junto à anca esquerda e a espada saiu pela anca direita. Continuou a trespassar a espada no corpo do meu marido e, às quatro da tarde, o meu marido deu o seu último suspiro. O milícia... pegou na espada, trespassou o meu marido junto à anca esquerda e a espada saiu pela anca direita. Continuou a trespassar a espada Laksaur Mahidi TNI Laksaur Laksaur Mahidi Laksaur Mahidi Laksaur Mahidi no corpo do meu marido e, às quatro da tarde, o meu marido deu o seu último suspiro. Aos sobreviventes foi ordenado que saíssem para o exterior. Fomos empurrados, pontapeados com botas militares, espezinhados e espancados. Percorremos todo o caminho desde a igreja até ao posto do Kodim de Suai com armas e catanas apontados na nossa direcção. Vimos muitas pessoas no Kodim, entre elas Domingas, mulher do chefe de zona do [CNRT] no subdistrito de Zumalai, com as suas filhas. Enquanto permanecemos no Kodim, fomos repetidamente objecto de abusos verbais. Éramos alimentadas com restos de comida mas não comemos com medo que nos envenenassem. No dia 13 de Setembro de 1999, o Kasdim ordenou a nossa transferência para Betun. Partimos em quatro camiões mas ao chegarmos ao cruzamento de Camenasa fomos deixadas à beira da estrada. Na noite do dia seguinte, um membro da milícia Laksaur (nome retido), levou consigo num carro, a minha sobrinha, Agustinha, que estava comigo na altura. Nessa mesma noite, duas mulheres do nosso grupo, Lourdes Noronha e Domingas, foram pedir ajuda a um membro da milícia Mahidi que reconheceram. Ele levou o nosso grupo até Betun a pé sob escolta de dois polícias de motorizada. Demorámos oito horas a caminhar da fronteira de Camenasa até Betun. Chegámos a Betun no dia 15 de Setembro e às dez horas dessa manhã, a minha sobrinha Agustinha foi trazida de volta pelo membro da milícia Laksaur (nome retido), num motociclo. Ao descer da moto, não conseguia andar e vimos que ela fora violada. Tinha o corpo coberto de feridas e sangue nos órgãos genitais. Tive de ser eu própria a tratá-la com folhas de bétele fervidas em água. Vivemos durante dois meses na esquadra de polícia de Betun mas nunca nos sentimos em segurança porque éramos aterrorizadas dia e noite pela milícia. Já não aguentávamos mais e quando ouvimos que alguns refugiados já haviam regressado a Suai, fugimos discretamente. Regressámos a Suai no dia 11 de Novembro de 1999. Aos sobreviventes foi ordenado que saíssem para o exterior. Fomos empurrados, pontapeados com botas militares, espezinhados e espancados. Kodim Kodim Kodim Laksaur Mahidi Laksaur Inês da Conceição Lemos ¶ ¶ Distrito de Ermera, 1999 Inês da Conceição Lemos é mãe de Ana Lemos, funcionária da UNAMET, de Ermera. O seu depoimento angustiante incidiu sobre os últimos dias da vida da sua filha. Ana foi violada e torturada no jardim dos seus vizinhos pela milícia local, Darah Merah, e o TNI, antes de ser levada e assassinada. A TNI minha filha Ana casou-se com (nome retido) em 1988. Era agente da polícia indonésia (Polri). Tinham duas filhas, FDELX nascida em 1989 e RGLX, em 1993. Divorciaram-se em 1994 devido a diferenças políticas irreconciliáveis. Ana, funcionária pública, era uma apoiante determinada pró-independência o que contrariava a posição pró-autonomia do marido. Ana ficou com a custódia das filhas. Em 1999, Ana trabalhou na UNAMET em Ermera, na organização da consulta popular. Simultaneamente, visitava frequentemente os presos políticos pró-independência de diversos distritos, detidos na prisão de Gleno, a quem levada comida. A SGI (Unidade Conjunta dos Serviços de Informação) e a milícia Darah Merah (Sangue Vermelho) vigiavam todos os seus passos. A 28 de Agosto de 1999, Ana pediu-me para cuidar das suas filhas porque estava muito ocupada com o trabalho na UNAMET. Mas também me disse que sentia que algo iria acontecer-lhe. Após o referendo, na tarde de 30 de Agosto, o TNI fez uma rusga a casa de Ana. Capturaram-na e torturaram-na bem como a duas outras mulheres, estudantes da UNTIM que viviam com ela. Felizmente, foi salva por um capitão da Brimob, de Irian Jaya, que as levou a um funcionário político da UNAMET para protecção. Nessa noite, Ana e as amigas dormiram na sede da UNAMET em Ermera. A 31 de Agosto de 1999, após a consulta popular, a mesa de voto onde Ana estava a prestar serviço foi cercada pela milícia, a polícia e o TNI. Quando foram finalmente autorizados a partir e enquanto saiam do local de voto, Ana fingiu ser a “namorada” de um dos observadores internacionais. Tinha um chapéu sobre a cabeça e colocara óculos escuros, e no carro, encostou-se no ombro do seu “namorado” ocidental. A milícia revistava todos os carros que saíam, na busca de timorenses pró-independência para os prender. Quando a milícia se aproximou do seu carro, o polícia de Irian Jaya aproximou-se rapidamente e fingiu inspeccionar os passageiros no interior do veículo. Quando a milícia avançou para o carro seguinte, o polícia exclamou: “Graças a Deus” e eles prosseguiram para Díli, em segurança. Os planos para levar a Ana para a Austrália falharam por ela estar sob a vigilância constante dos serviços militares de informação. Ela cruzou-se com o ex-marido que estava na sede da polícia na altura e a confrontou: “Como é que podes fugir para a Austrália e deixar as nossas filhas aqui?” Acabou por regressar a Gleno no dia 4 de Setembro. Mas, no caminho, foi apanhada pela polícia, que passava de carro, e foi escoltada até ao Kodim de Gleno. De acordo com testemunhas, ela foi torturada e possivelmente violada ali. Conseguíamos vê-la e ouvíamos os seus gritos mas não podíamos fazer nada para a ajudar. No dia 11 de Setembro de 1999, por volta das cinco e meia da tarde, a Ana conseguiu encontrar-me e às suas duas filhas. Estava acompanhada por A (nome retido) e os seus homens. Como a nossa casa em Ermera havia sido incendiada, estávamos em casa dos nossos vizinhos, AC e a esposa, AG. A Ana ficou connosco e A (nome retido) e os seus homens regressaram ao Kodim de carro. Regressaram nessa noite por volta das oito horas. Ele sentou-se na sala e chamou pela Ana. À nossa frente, puxou-a para ele e começou a abraçá-la e a beijá-la. A (nome retido) disse-me: “Ela já é a minha segunda mulher. Vocês, mulheres velhas e jovens raparigas, preparem-se; em breve, cada uma de vós irá confessar-me os pecados”, o que significava que iria violar todas as mulheres presentes. O meu coração doía por vê-la a ser tratada daquela forma e tive de sair da sala. Então, AG levou as filhas de Ana para dentro para que não vissem o que estava a ser feito à sua mãe. TNI TNI Kodim We ! "#$ %& %& %& ! "#$ %& %& %& ! "#$ %& %& %& ! "#$ %& %& %& could see¶ her and we could¶ hear her screams, but¶ we couldn’t do¶ anything to help her. Kodim A (nome retido) arrastou a Ana para a frente da casa, para a varanda junto às escadas e violou-a ali mesmo. Nós conseguíamos vê-la e ouvíamos os seus gritos mas não podíamos fazer nada para a ajudar. Antes de se ir embora, ele bateu à porta e disse: “Tu, abre a porta e chama a tua filha para dentro”. A Ana entrou a chorar: “Sinto-me envergonhada por ter sido tratada como um animal. Ouviram-me a ser violada ao pé das escadas?” Não conseguia comer, apenas pediu um copo de água. Pediu-me e a AC que fossemos para dentro e, aí, tirou a roupa e, enquanto chorava, mostrou-nos o corpo: “O meu corpo está arruinado. Todos eles me violaram.” Vi com os meus próprios olhos que todo o seu corpo, do peito aos órgãos genitais, estava cobertos de nódoas negras e partes da pele em carne viva. Na manhã seguinte, cerca das sete horas, vieram buscá-la novamente. A Ana limitou-se a acompanhá-los mas antes de sair deu-nos 200.000 rupias e disse-nos: “Encomendem uma missa por mim agora”. Levaram-na e nós fizemos o que ela pediu. Pedimos ao padre Inácio para celebrar uma missa e pedir a protecção da Ana. Ao regressarmos da missa, Ana e A (nome retido) também regressavam, mas fomos forçados a entrar para o carro e fomos levados para casa de um líder da milícia Darah Merah, em Gleno. A (nome retido) andou então a exibir a Ana, de moto, frente à população de Gleno. A 13 de Setembro de 1999, o comandante B (nome retido), da milícia Darah Merah, chegou para levar a Ana. Sabia que a iam levar e tentei ir com ela mas não me deixaram. Antes de partir, a Ana murmurou: “Mamã, o B (nome retido) veio buscar-me. Eu sei que me vão matar”. Esperei todo o dia por ela mas nunca voltou. Cerca das cinco da tarde, apareceu C (nome retido), membro da milícia, e disse-me “Mamã, não esperes muito tempo porque ela já está morta”. Não quis acreditar e respondi: “Mostrem-me o corpo”. Ele respondeu apenas: “É a primeira vez que vejo pessoas de Ermera a matarem uma mulher”. Houve testemunhas que me disseram que ela foi violada antes de ser assassinada. Uma outra pessoa, que estava com as pessoas que levaram a Ana nesse dia, disse-me que foi B (nome retido) e o seu irmão mais novo, D (nome retido), que a mataram. Fomos todos obrigados a ir para Atambua mas, uns dias depois do nosso regresso, a 5 de Novembro, um dos meus filhos, I, comandante das Falintil, veio trazer-nos a roupa da Ana. A roupa foi encontrada numa campa, sem qualquer identificação, na floresta de Ermera. Fernanda dos Reis Araújo Vila Verde, distrito de Díli, 1999 Fernanda dos Reis falou da sua vivência durante Setembro de 1999, após a chegada da Interfet. A sua família estava identificada como sendo apoiante da autonomia e ela contou como foi ameaçada por jovens pró-independência que exigiam que ela entregasse a casa às suas famílias. Apesar de ter informado a Interfet desta situação, contou que os seus bens foram destruídos e roubados. Q uando a Interfet chegou a 20 de Setembro de 1999 e os apoiantes da independência regressaram das montanhas, começaram a apedrejar a minha casa todas as noites até de madrugada para não me deixarem dormir. O meu filho e a restante família já se tinham refugiado em Atambua pelo que eu vivia sozinha em casa, numa tentativa de a manter intacta e poder cuidar dela. Os jovens pró-independência apedrejavam a casa para forçar a minha saída e ocuparem-na. De 25 a 27 de Setembro de 1999, fui assediada por estes jovens pró-independência. Primeiro, um homem chamado A (nome retido), chefe da Unidade de Vizinhança Familiar de Vila Verde (Rukun Keluarga), disseme: “A autonomia perdeu por isso têm de partir agora, acompanhe os seus amigos para casa em Kupang. Tem de abdicar da sua casa e da terra para nós vivermos porque as nossas casas foram queimadas pelos seus amigos”. Respondi: “Esta terra e esta casa não fazem política, as pessoas fazem política. Se quer encontrar uma casa, procure edifícios estatais vazios, mas eu não abdico da minha casa”. Depois, insultaram-me com a palavra ‘caralho’. tem No dia seguinte, encontrava-me frente à casa quando chegou novamente A (nome retido) que exigiu que lhe desse a casa argumentando que fora construída com dinheiro proveniente de extorsão. Disse-lhe que fora o meu avô que a construíra e que iria apresentar queixa à Interfet. Ele respondeu que me mataria se informasse a Interfet. Mesmo assim fui à Interfet mas não tive a oportunidade de relatar o acontecido pelo que regressei a casa. No caminho de regresso, A (nome retido) e um amigo seu, passaram por mim de moto e gritaram: “Hei, se contaste o que aconteceu aos estrangeiros da Interfet não será muito difícil matarmos-te já”. No dia seguinte, fui atacada por B (nome retido), filho de A (nome retido), e os seus amigos que entraram em minha casa sem que eu o soubesse. Tentaram obrigar-me a sair: “Sai daqui. Não digas nada. Se não saíres, despimos-te e atiramos-te ao fogo”. Como a situação estava a ficar séria, relatei este incidente à Interfet. Contei que havia pessoas que ameaçavam matar-me e destruir a minha casa. Foi então que apareceram um capitão da Interfet acompanhado por quatro homens fortemente armados e permaneceram frente à minha casa. Antes da partida dos soldados da Interfet, eles disseram-me: “Minha senhora, se voltarem a atacar, relate imediatamente o acontecido à minha base”. Mas, depois da sua partida, a minha casa foi desfeita; todos os meus pratos e copos foram partidos e a mobília, como os armários e guarda-fatos, foram levados mas não sei para quem. Deixei que levassem porque estas são as consequências da guerra. A minha casa foi desfeita; todos os meus pratos e copos foram partidos e a mobília, como os armários e guarda-fatos, foram levados. com , vieram Domingas Ulan Lela Ufe, Nitibe, Distrito de Oecusse, 21 de Setembro de 1999 Domingas Ulan depôs sobre a violência perpetrada pelas milícias e o TNI em Oecusse após a votação de 30 de Agosto de 1999 e a sua violação por um membro da milícia pertencente à sua própria comunidade. Falou da dor que sentiu ao saber que essa pessoa vive livremente em Díli hoje como se nada tivesse acontecido. Ao ser questionada pelos Comissários sobre o que necessitaria para viver em paz, Domingas Ulan disse necessitar apenas da justiça de acordo com a tradição da sua aldeia e da justiça de acordo com a lei. O TNI meu marido, JN, e o nosso vizinho, PT, eram membros do CNRT. Porque éramos conhecidos por termos estado envolvidos em actividades clandestinas no passado, a milícia manteve-nos sob vigilância. À medida que se intensificavam os rumores sobre a independência de Timor-Leste, a milícia e o TNI começavam a reagir, pelo que o meu marido e o seu amigo fugiram para a floresta onde permaneciam durante o dia para evitar serem atacados. À noite regressavam a casa. e TNI O dia vinte e um de Setembro foi dos dias mais violentos porque o poder estava nas mãos da milícia Sakunar. A (nome retido) era o comandante da milícia Sakunar em Lela Ufe e o seu irmão mais novo, B (nome retido) era membro da milícia e vivia na mesma aldeia que nós. Eles transmitiram informação falsa ao meu marido e ao seu amigo PT para que eles se inscrevessem para irem para Oelbinose, um suco na fronteira entre Timor Central Norte (Timor Ocidental) e Ambeno. Ameaçaram-nos, afirmando: “Destruiremos as casas de todos os que não forem (para Oelbinose)”. Após a partida do meu marido e do seu amigo PT, esses dois homens vieram a minha casa. A (nome retido) bateu à porta e disse: “Mana, por favor abra a porta”. Como estava com medo, abri a porta e deixei-o entrar. Logo que entrei, acusou-me de ser a pessoa que cozinhava para JP, membro da clandestina, actualmente o Nurep de Nitibe-Lela Ufe. Sem pronunciar mais uma única palavra, arrastou-me para o exterior. B (nome retido) permaneceu dentro da casa com os meus cinco filhos, que tinham idades entre os 4 e os 17 anos. As crianças choravam descontroladamente, mas A (nome retido) continuava a arrastar-me em direcção à casa tradicional de Lela Ufe. Sentia medo e chorei porque não estava ninguém na casa tradicional para além de nós os dois; por isso, implorei: “Por favor, não me faça isso, eu sou casada”. Mas, A (nome retido) puxou de uma faca e encostou-a ao meu peito. Senti tanto medo que urinei e molhei a minha lipa. A tremer, voltei a implorar: “Se quer algo, por favor, leve as cabras que estão no palheiro”. Mas ele ignorou as minhas palavras e disse: “Quero ter sexo contigo”. Ao ouvi-lo, o meu coração desfez-se. A (nome retido) apertou-me tanto que não conseguia mexer-me. Empurrou-me até me encostar à parede, puxou a minha lipa para cima e, depois, puxou a sua lipa para cima. A seguir, violou-me. Antes de me deixar na casa tradicional, A (nome retido) avisou-me que não falasse deste incidente a ninguém. Depois partiu chamando o B (nome retido). Os dois dirigiram-se a casa da minha vizinha para lhe fazerem o mesmo, mas ela não abriu a porta. A (nome retido) voltou à casa tradicional mas não encontrou ninguém. Por fim, acabaram por ir para casa. Três dias mais tarde, a nossa família - o meu marido, os nossos filhos e eu – procurámos refúgio em Oelbinose. A (nome retido) ignorou-me totalmente, como se nada tivesse acontecido entre nós. Disse ao meu marido que devíamos dar continuidade à questão no campo de refugiados, mas tínhamos medo porque A (nome retido) agia como se fosse o “rei” do campo. Podia assassinar quem quisesse. Eu queria falar mas era como se os meus lábios estivessem colados um ao outro. Perguntei-me porque teria de carregar este fardo na minha vida. A minha família nunca lhe roubou nada nem procurou caridade. Não sei como foi capaz de me fazer o que me fez. Eu queria falar mas era como se os meus lábios estivessem colados um ao outro. abri , Perguntei-me porque teria de carregar este fardo na minha vida. Agora que Timor-Leste é um novo país, desejo expressar o que me dita a consciência sobre esta questão para que A (nome retido), que agora vive em Díli, venha depor sobre o que me fez. Sinto-me doente e o meu coração está desfeito. Não quero que ele conte histórias, hoje ou depois, sobre o que me fez. Ainda que o meu marido me continue a aceitar como sua esposa, enquanto homem, ele deve sentir-se desiludido e zangado. A (nome retido) deve regressar a Oecusse e assumir a responsabilidade pelas suas acções para que possamos viver em paz. Ele deve regressar a Oecusse e assumir a responsabilidade pelas suas acções para que possamos viver em paz. Foto, p. 42: 1999, fotos de arquivo. Foto, p. 43: Março de 2004, seminário de restabelecimento para as sobreviventes de violência, organizado pela CAVR. Mensagem à Nação D epois de cada mulher terminar o respectivo depoimento, os Comissários Nacionais perguntavam a cada depoente se desejava dirigir uma mensagem aos dirigentes nacionais, aos membros do governo e à nação como um todo. Algo de notável acontecia sempre que uma destas mulheres pausava para organizar os seus pensamentos e pronunciar a mensagem. Depois de deporem sobre experiências profundamente traumáticas, as mulheres compunham-se e pediam aos dirigentes nacionais que pensassem nas mulheres de todo o país que haviam sofrido como elas sofreram. As palavras proferidas por Vitória Henrique, de Liquiça, representam o espírito que esteve presente na maioria das mensagens proferidas: “Não se limitem a andar por aí nos vossos novos carros, ou a voar de um lado para o outro do mundo. Existem tantas viúvas e órfãos em todos os 13 distritos. Peço que façam algo para ajudá-los no seu dia-a-dia”. Estas palavras foram transmitidas por todo o país e constituíram uma mensagem directa e pessoal de mulheres que tantas vezes lutaram nas suas aldeias para serem ouvidas nas reuniões da comunidade. De uma forma muito simples, a audiência encorajou este espírito democrático. Depoimentos de Peritos Para além dos depoimentos prestados pela voz das mulheres sobreviventes, a CAVR ouviu o depoimento de peritos e recebeu contribuições de dois indivíduos, de duas organizações e de um grupo de mulheres timorenses ao longo dos dois dias de audiência pública nacional sobre as Mulheres e o Conflito. O depoimento de Mário Viegas Carrascalão, um ex-governador durante o regime indonésio, abrangeu este período de uma forma geral. John Fernandes depôs sobre a execução do Programa Nacional Indonésio de Planeamento Familiar ao nível distrital. Também foram apresentadas contribuições pelas delegações da Comissão Nacional Indonésia sobre a Violência contra as Mulheres (Komnas Perempuan), da Equipa de Assistência Humanitária em Timor Ocidental (Tim Kemanusiaan Timor Barat) e por um grupo de mulheres activistas timorenses. Mário Viegas Carrascalão O ex-governador Mário Viegas Carrascalão depôs durante mais de duas horas, tendo sido a primeira vez que a CAVR teve a oportunidade de ouvir um membro dos escalões superiores do regime indonésio em Timor Leste. Mário Carrascalão leu o seu depoimento escrito em português e elaborou comentários em tétum. Inspirado, falou directamente sobre a sua experiência enquanto timorense a trabalhar dentro do sistema indonésio. O texto seguinte é uma síntese do depoimento de Mário Carrascalão. Uma terra isolada do mundo e sob controlo militar M ário Carrascalão prestou um depoimento geral, salientando os inúmeros casos de abuso de mulheres ao longo da ocupação indonésia e o conhecimento que detém do Programa de Planeamento Familiar. Afirmou que, até 1989, Timor Leste esteve sob administração militar. Mário Carrascalão salientou que, até 1989, a administração civil de Timor Leste tinha um poder muito limitado e que não era possível chamar os militares, ou o seu aparelho, à responsabilidade pelos abusos que cometiam. Falou ainda de como Timor Leste se encontrava totalmente isolado da comunidade internacional. “Timor Leste era uma terra fechada...um local de mentiras e falsidades...as pessoas que cá vinham, nada podiam fazer. Era um segredo”. Abuso sexual Mário Carrascalão afirmou que o abuso de mulheres pelos militares indonésios era organizado e sistemático. Apresentou inúmeros exemplos da acção dos militares em diversos distritos. Contou que pessoal militar das patentes inferiores tentavam avançar nas suas carreiras através da disponibilização de jovens mulheres timorenses aos militares de patente superior. “Os funcionários superiores recebiam mulheres como se elas fossem bens”. Falou de uma prática habitual dos militares indonésios, a organização das festas, onde as jovens mulheres timorenses eram forçadas a acompanhar e entreter os soldados. Estas mulheres encontravam-se vulneráveis a abusos sexuais. Afirmou que existia um tipo determinado de mulher que constituía alvo do abuso: as esposas e filhas de combatentes da Resistência ou de ex-presos políticos, as mulheres que eram presas políticas ou que residiam nas aldeias-modelo que foram construídas. As filhas de famílias mistas timorenses e portuguesas também eram alvo. Em alguns casos, as raparigas timorenses eram entregues aos militares pelas suas próprias famílias em troca de algum benefício. Mário Carrascalão também apresentou exemplos de como os administradores distritais e outros membros da administração civil estiveram envolvidos no abuso sexual de mulheres. Falou de um administrador que foi pai de crianças nascidas de um grande número de jovens com apenas 14 e 15 anos de idade. Neste caso, foram enviadas fotos das jovens com os seus bebés ao ministro do interior indonésio, em Jacarta, mas não foi tomada qualquer medida para remediar a situação ou responsabilizar o perpetrador. Contou que os professores trazidos da Indonésia estiveram envolvidos no abuso sexual de estudantes timorenses. Citou um exemplo de Baucau em que um professor foi considerado culpado da violação de 22 das suas alunas tendo sido condenado a apenas dois anos e meio de prisão; regressou a casa antes de cumprir a totalidade da pena. Foto, p. 47: Mário Viegas Carrascalão enquanto governador O Massacre de Kraras: a aldeia das viúvas Mário Carrascalão falou ainda do Massacre de Kraras, um suco do distrito de Viqueque, a leste de Díli. Dizse que foram mortos centenas de homens neste suco, deixando vivos apenas as esposas e os filhos. Afirmou que “agora designamos esta aldeia por aldeia das viúvas”. Mário Carrascalão descreveu a luta pelo poder entre os escalões militares indonésios superiores na fase que antecedeu o massacre e nomeou Prabowo, genro do então presidente Suharto, como a personalidade central por detrás do massacre. Programa Indonésio de Planeamento Familiar Quando falou do Programa governamental indonésio de Planeamento Familiar (KB), sublinhou não se tratar de um programa de execução exclusiva a Timor Leste, mas antes, de um programa indonésio nacional. Afirmou que, em princípio, o programa em Timor Leste partilhava dos mesmos objectivos das províncias indonésias. No entanto, era impossível executá-lo adequadamente em Timor Leste devido à situação de guerra e elevado nível de militarização. Referiu ainda existir uma grande resistência por parte da comunidade porque as pessoas procuravam a orientação da igreja católica e o controlo da natalidade colidia com os ensinamentos da igreja. Para além disso, milhares de crianças haviam morrido durante a guerra e a população timorense questionava porque era impedida de ter filhos quando não timorenses eram trazidos para Timor no âmbito do programa indonésio de transmigração. Acrescentou que, em consequência desta resistência, o organismo nacional de execução do planeamento familiar adoptou meios mais subtis de persuasão, por exemplo, a oferta de recompensas e o envolvimento de militares na promoção do KB. Falou ainda das injecções administradas às jovens estudantes sem o consentimento dos pais e da suspeita que continham um agente de esterilização. Referiu ainda que um dos problemas do Programa de Planeamento Familiar em Timor Leste era o secretismo em torno do programa. Disse que as pessoas não compreendiam e não davam o seu consentimento genuíno à participação no programa. Era isto que o diferenciava de outras partes da Indonésia. Quantos mortos? Ao longo desta contribuição, Mário Carrascalão apresentou números preocupantes. Afirmou que, enquanto governador, em 1985, realizou um levantamento em Timor Leste e concluiu que existiam 40.000 órfãos. Acrescentou que só conseguiu reunir apoio do governo central para 5.000 órfãos. Apresentou ainda dados sobre a população relativos aos primeiros anos da guerra e comparou-os com os dados do recenseamento da igreja, de 1974. Afirmou que, em 1974, a igreja católica de Timor-Leste apresentara uma estimativa de 640.000 habitantes e que, em 1980, a população fora estimada em 500.000 habitantes. Timor-Leste era uma terra fechada...um local de mentiras e falsidades. As pessoas que cá vinham, nada podiam fazer. Era um segredo. Perguntas e Síntese Ao elaborar a síntese, o presidente da CAVR perguntou a Mário Carrascalão se sentia remorsos por ter sido governador de Timor Leste. “Enquanto fui governador de Timor Leste nunca infringi a lei indonésia. Tentei utilizar a lei para melhorar a vida da população”. Recebeu o aplauso do numeroso público que assistia, ao afirmar: “Chorei pela primeira vez quando se deu o massacre de 12 de Novembro (1992)…demiti-me do cargo de governador em 1992…” Ao ser questionado pelo presidente da CAVR sobre o que pensava ser o objectivo da violência contra as mulheres, respondeu: “O objectivo dessa violência contra as mulheres era o de reduzir o poder da resistência”. Recomendações Mário Carrascalão terminou o seu depoimento com a apresentação de cinco recomendações: 1. Redobrar a atenção prestada às necessidades educacionais dos órfãos, que estima atingirem um número superior aos 40.000 estimados em 1985, para que possam iniciar a vida com as mesmas oportunidades das restantes crianças e jovens. 2. Criar o Ministério para as Mulheres, para lidar com todas as questões relativas à mulher em Timor-Leste, incluindo as questões ligadas ao sarar das feridas do passado e à oportunidade de construir uma vida mais feliz. 3. Tomar todas as medidas possíveis, a curto prazo, para prestar assistência às mulheres que sofreram violações de direitos humanos durante a guerra de forma a poderem construir uma nova vida e recuperar a dignidade. 4. Disponibilizar um rendimento mínimo às famílias pobres para que as filhas destas famílias possam dispor de meios para resistir a qualquer repetição do que aconteceu às mulheres no passado. 5. Incluir nos curricula escolares uma componente de educação sexual onde sejam ensinados os métodos de contracepção. Foto, p. 48: Mário Carrascalão apresenta o seu depoimento na Audiência Pública Nacional da CAVR, em Abril de 2003. À esquerda, a Comissária Nacional Isabel Guterres. John Fernandes Ao depoimento de Mário Carrascalão seguiu-se o depoimento de John Fernandes, o funcionário público indonésio que promoveu o Programa Nacional de Planeamento Familiar (KB) no distrito de Manufahi, na costa sul de Timor-leste, entre 1983 e 1999. No seu depoimento, afirmou que o KB foi executado ao nível de suco pelos militares, em conjunto com os funcionários civis, e que houve um programa em particular que foi “desenvolvido directamente pelos comandantes militares” e executado “continuadamente, ano após ano”. Depôs ainda sobre aquilo que considera serem os objectivos do Programa KB. O Programa Indonésio de Planeamento Familiar nos Distritos “N KB a minha opinião, o Programa KB era uma estratégia política utilizada indirectamente pelo governo indonésio para trazer mais indonésios. Este programa visava ainda o assassínio indirecto da população indígena de Timor-Leste. Faço esta afirmação porque, para tratar os efeitos secundários provocados pelos métodos de planeamento familiar (tais como a pílula anticoncepcional, injecções, DIU), o governo central disponibilizava um determinado tipo de medicamento que os enfermeiros e funcionários hospitalares receitavam de forma discriminatória. Era apenas administrado às esposas de indonésios enquanto as mulheres timorenses eram abandonadas ao sofrimento. “Na comunidade, era exigida a participação no programa às mulheres de funcionários públicos e às pessoas que residiam nas áreas de transmigração porque tratava-se de uma ordem superior. Independentemente da vontade de participar, eram obrigadas a fazê-lo. O governo e as ABRI também obrigavam a participação das pessoas que viviam em locais remotos com o argumento que iria melhorar a qualidade da educação e reduzir as taxas de mortalidade materna e infantil. Mas, na realidade, morreram mais mães e bebés depois de a comunidade ter iniciado o programa do que anteriormente”. enquanto que ABRI John Fernandes referiu que quando as mulheres que haviam participado no Programa KB engravidavam sofriam habitualmente de complicações pouco invulgares durante a gravidez e que os seus filhos sofriam de defeitos à nascença. Falou ainda do programa “Sustentado de Planeamento Familiar” no qual as mulheres permaneciam no programa durante cinco, dez ou até 15 anos, sem qualquer pausa na utilização de diversos métodos de controlo de natalidade. KB John Fernandes afirmou que o envolvimento dos militares indonésios na promoção do Programa KB era óbvio e que, durante as visitas aos sucos, trajavam a farda militar completa. Os oficias ao nível de aldeia (babinsa) e os oficias da polícia (Binpolda) também davam assistência ao programa. KB “O Programa de Planeamento Familiar pode ser descrito como tendo sido ‘forçado’ porque era regulado pelo governo”. Este programa visava o assassínio indirecto da população indígena de Timor-Leste. (página em branco) 50 WOMEN AND THE CONFLICT Documentos Documento Disponibilizado por um Grupo de Mulheres Activistas Timorenses Sinopse N o primeiro dia da audiência, a CAVR ouviu o contributo de um grupo de mulheres activistas timorenses defensoras dos direitos humanos. Este grupo não representa qualquer ONG mas apenas um grupo de mulheres timorenses que há vários anos trabalham na área dos direitos humanos das mulheres e que desejam partilhar a sua experiência e as suas ideias com a CAVR nesta audiência. Ivete Oliveira apresentou o contributo em nome do grupo. Nesta contribuição, o grupo apresentou um vasto relato sobre a violência perpetrada contra as mulheres timorenses pelas diversas partes envolvidas nos conflitos ocorridos durante o período de 25 anos correspondente ao mandato da CAVR. A contribuição apresentada refere-se à violência física, psicológica e institucional perpetrada contra as mulheres, fala da tortura, da violação sexual, do assassinato, da detenção e prisão arbitrárias. Apresenta exemplos concretos de mulheres que sofreram essas violações. A contribuição apresentada analisa a experiência vivida pelas mulheres no decurso do conflito entre os partidos políticos timorenses em 1975, da invasão militar indonésia em 1975, do período da resistência nas montanhas e da ocupação indonésia até ao período da consulta popular organizada pelas Nações Unidas em 1999. O grupo sublinhou que a relação desequilibrada de poder entre homens e mulheres existente em TimorLeste antes do conflito perdurou durante o conflito. Os valores culturais que vincavam a submissão da mulher e a sua dependência do homem – a percepção da mulher enquanto propriedade do marido e da família – tornaram as mulheres mais vulneráveis à violência no decurso dos anos de conflito. Na sua contribuição, o grupo descreve a forma como a utilização de mulheres enquanto escravas sexuais foi prática quer durante o período colonial português quer durante o período de ocupação javanesa. As mulheres foram forçadas à prostituição e concentradas em centros de sexo criados nas principais bases militares. Essas mulheres tinham pouco controlo sobre a sua capacidade reprodutora e era comum gerarem filhos dos soldados portugueses sendo, posteriormente, abandonadas quando os soldados regressavam a Portugal na sequência da rotação das tropas. As dificuldades enfrentadas por estas mulheres eram ampliadas pela atitude das suas comunidades que, frequentemente, as votavam ao isolamento, bem como aos seus filhos. Na sua opinião, estes factos revelam que a violência denota aspectos interpessoais, sociais, políticos e económicos. Violência física Relativamente à violência física perpetrada directamente contra as mulheres, o grupo considerou que a violência sexual, em particular a violência cometida contra mulheres muito jovens, era uma táctica central dos militares indonésios para quebrar o espírito de resistência da nação. As esposas e os membros femininos das famílias de dirigentes políticos timorenses na montanha eram frequentemente alvo de violência política. Foto, p. 52: Betty Oliveira faz o seu juramento antes de apresentar a contribuição em nome do grupo de Mulheres Activistas Timorenses. A violação da esposa ou de uma familiar não era percepcionada como uma agressão à mulher mas sim uma agressão ao seu marido. Nas palavras do grupo, as mulheres envolvidas no movimento pela independência também constituíam alvos sistemáticos dos militares indonésios. As mulheres encontravamse particularmente vulneráveis a este tipo de violência porque os homens deslocavam-se frequentemente para o mato para assumir a luta armada ou partiam para outros locais. Em geral, eram as mulheres que ficavam para trás a cuidar das crianças e da casa. Por esta razão, tornavam-se alvos fáceis para os militares indonésios. O grupo sublinhou que a violência contra as mulheres não foi exercida exclusivamente pelos militares indonésios, particularmente durante o período do conflito interno de 1974/1975. Afirmou que durante o período em que a Fretilin tinha o poder no mato, as mulheres foram detidas e torturadas. Nos massacres de membros da UDT perpetrados pela Fretilin em Aileu e em Same, após a invasão indonésia, as mulheres também foram vítimas e, frequentemente, sujeitas a formas particularmente sádicas de abuso, especialmente escravidão sexual, enquanto estavam detidas. Falta de reconhecimento O grupo afirmou ainda que dentro das próprias Falintil, as mulheres não só pagaram o preço habitual de uma guerra como também não viram reconhecido o seu contributo para a luta pela independência. Os homens dominaram todas as posições de topo nas Falintil e na política. Valores da igreja e valores culturais O grupo sublinhou o trauma psicológico infligido não apenas pelo inimigo mas também pelas próprias comunidades. Muitas das mulheres foram obrigadas pelos militares indonésios a tornarem-se escravas sexuais - frequentemente para protegerem as suas famílias – e, posteriormente, foram marginalizadas pelas suas famílias e comunidades. As viúvas e as mães solteiras foram igualmente estigmatizadas pela sociedade. O grupo considerou que os valores da igreja católica e as crenças religiosas tradicionais apoiavam este ponto de vista. Frequentemente, a igreja impedia a comunhão a mulheres que haviam sido violadas sexualmente o que acrescia ao seu trauma psicológico e ao isolamento. O grupo sublinhou que os valores tradicionais do lulik sagrado timorense também contribuíam para esta experiência de isolamento e de sofrimento das mulheres que foram violadas. Programa Indonésio de Planeamento Familiar O grupo referiu-se ao Programa indonésio de Planeamento Familiar implementado em Timor-Leste que, no seu ponto de vista, provocou doenças às mulheres e, nalguns casos, resultou na sua morte. À mulher não era concedida a opção de participar no programa e, consequentemente, perdia o direito de dispor do seu próprio corpo. O grupo concluiu que as mulheres foram utilizadas pelo governo com o objectivo de limitar a população timorense. O grupo sublinhou que a violência contra as mulheres não foi exercida exclusivamente pelos militares indonésios, particularmente durante o período do conflito interno de 1974/1975. Elementos sociais O grupo elaborou alguns comentários sobre diversos elementos sociais que acompanharam e agravaram o efeito da violação de direitos humanos. Um dos resultados da violência sexual generalizada perpetrada contra as mulheres pelos militares indonésios foi a antecipação da idade de casamento das jovens timorenses durante a década de 80, na esperança de que o matrimónio lhe concedesse alguma protecção. Por outro lado, para muitas jovens órfãs ou abandonadas durante a guerra, o casamento era uma oportunidade de melhorar a sua condição económica. Ao regressarem às vilas, muitas mulheres foram rejeitadas pelos “maridos” com quem se “casaram” na montanha o que redobrava as dificuldades que enfrentavam. Por fim, o grupo fez ainda referência às dificuldades enfrentadas pelas mulheres que saíram de Timor-Leste para a Austrália, Portugal ou Indonésia. Enquanto refugiada, era frequente a mulher ter de sustentar toda a sua família. Muitas mulheres foram alvo de discriminação com base na raça, género, classe, grau de instrução e o facto de serem timorenses, o que acrescia às circunstâncias habitualmente traumáticas das suas fugas. Recomendações A contribuição apresentada incluía seis recomendações: 1. Reconhecimento de todas as violações de direitos humanos perpetradas contra as mulheres e dos padrões de violência que desumanizaram as mulheres. Criação de um museu para consciencializar a comunidade de que a paz e a unidade podem ser uma via de prestar esse reconhecimento. 2. Adopção de uma abordagem integrada e estruturada para enfrentar os danos causados às mulheres pela violência durante a guerra em Timor-Leste. Uma vez que um elevado número de mulheres sofreram danos físicos e psicológicos, incluindo as mulheres vítimas da ocupação japonesa durante a II Guerra Mundial, as organizações de veteranos e a Secretaria de Estado do Trabalho e Solidariedade devem adoptar uma abordagem unificada. 3. Intensificação da educação de direitos humanos - centrada no equilíbrio entre géneros, nos estereótipos e no desenvolvimento de curricula tendo por base a não discriminação - e realização da reforma legislativa. 4. Toda a legislação deve ser orientada para assegurar a igualdade e o equilíbrio entre géneros. 5. Intensificação da educação cívica de modo a desenvolver um respeito mais profundo pelas mulheres que foram objecto de violência no passado, em particular para que se compreenda que essa violência foi uma consequência da luta. Não se trata de algo que as mulheres tenham desejado ou aceite. Trata-se de parte de um processo de reabilitação das vítimas da violência. 6. Agir judicialmente nos tribunais contra aqueles que perpetraram actos de violência contra mulheres. Frequentemente, a igreja impedia a comunhão a mulheres que haviam sido violadas sexualmente o que acrescia ao seu trauma psicológico e ao isolamento. Documento Disponibilizado pela Comissão Nacional Indonésia sobre a Violência contra as Mulheres (Komnas Perempuan) Antecedentes A concluir o primeiro dia da audiência, a CAVR ouviu o contributo da Comissão Nacional Indonésia sobre a Violência contra as Mulheres (Komnas Perempuan). A Komnas Perempuan foi criada em 1998 na sequência da violência chocante perpetrada contra mulheres chinesas no período da queda do presidente Suharto e tinha por objectivo trabalhar com vista à eliminação da violência contra as mulheres e à promoção dos direitos das mulheres. A delegação da Komnas Perempuan incluiu membros provenientes de Aceh e da Papua Ocidental que foram calorosamente recebidas pelo público presente. Solidariedade entre Mulheres Activistas Ita Fatia Nadia falou da luta dos activistas indonésios pelos direitos humanos e do trabalho conjunto com os timorenses na defesa dos direitos humanos. Em 1990, criaram a Comissão Conjunta para a Defesa dos Timorenses. Ade Rostina Sitompul foi uma das personalidades fundamentais deste movimento. Em 1993, as mulheres indonésias activistas dos direitos humanos centraram a sua acção no sofrimento das mulheres timorenses, documentaram casos de violações sexuais em vários distritos de Timor-Leste. Em 1995, a lista foi entregue ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos em Genebra, onde estas mulheres também realizaram uma exposição fotográfica demonstrativa da violência contra as mulheres timorenses. Quando foi criada em 1998, a Comissão Conjunta trabalhou com a Yayasan Hak (Associação HAK) e com a Fokupers (Fórum para a Comunicação entre as Mulheres). De forma entrosada, a Comissão Conjunta trabalhava com vista à mudança na Indonésia e no apoio à luta pelos direitos humanos e à mudança em Timor-Leste. Este trabalho incluía a organização de petições, a realização de manifestações e no envio, em 1998, de casos de violações perpetradas contra mulheres à Relatora Especial das Nações Unidas Sobre a Violência Contra as Mulheres, Dr.ª Radhika Coomaraswamy do Sri Lanka, o que redundou na sua visita à Indonésia e a Timor-Leste. Padrões Comuns de Violência Na sua contribuição, os membros da delegação elaboraram sobre a semelhança dos padrões de violência utilizada contra as mulheres em Timor-Leste e os padrões ainda verificados contra as mulheres em Aceh e em Papua Ocidental. O seu depoimento levantou a questão da urgência em realizar uma audiência sobre as mulheres que ainda sofrem abusos em algumas regiões da Indonésia. A Comissária Samsidar, da Komnas Perempuan, originária de Aceh, referiu-se às operações militares em Aceh entre 1994 e 1998, em que as mulheres sofreram enormemente. “Refiro-me a uma casa em Aceh que é uma casa de violações. Nessa casa, as mulheres são violadas diariamente, os seus corpos são violados. São forçadas a cozinhar e a realizar as tarefas de limpeza para os soldados, enquanto nos quartos da casa, a qualquer hora do dia, continuam as violações...estamos perante uma situação em que a violação é aceite pelas forças armadas que, supostamente, são responsáveis pela protecção da população... Foto, p. 55: Ita Fatia Nadia fala em nome da Comissão Nacional Indonésia sobre a Violência contra as Mulheres (Komnas Perempuan). “Ao executar estes planos, incluindo as operações militares, a Nova Ordem utilizava as mulheres como utilizava a terra. Porque é que faço esta afirmação? Porque elas eram como que um campo onde podiam decorrer as violações. Nesta situação, as mulheres sentem que deixaram de fazer parte da Humanidade. Aquilo que é violado é o seu sentido de ser humano e a possibilidade de viverem sem medo. Estas violações são essencialmente perpetradas nas zonas onde são desenvolvidas operações militares especiais como Aceh, Papua e Timor-Leste... “Sempre que decorre um conflito, em Timor-Leste, em Aceh, na Papua, em todos estes locais – as mulheres são exploradas”. A senhora Samsidar também referiu as consequências sociais e culturais gerais das violações contra as mulheres: “Segundo as nossas culturas, as mulheres são responsáveis pela vida da família. Quando as mulheres são violadas, a violação recai sobre a família. As mulheres são um símbolo da moral da comunidade e quando são violadas, a violação recai sobre a base moral da comunidade”. Responsabilidade Institucional e Justiça Aniceto Guterres Lopes, presidente da CAVR, perguntou à delegação como é que a CAVR deveria agir para determinar a responsabilidade institucional das violações perpetradas. Kamala Chandrakirana respondeu: “Os esforços para determinar a responsabilidade institucional são recentes. Na Indonésia existe uma impunidade na prática, não só devido à falta de vontade política mas também porque o sistema judicial é subdesenvolvido. Por exemplo, é quase impossível reunir provas num caso de violação. “Trabalhamos ainda com funcionários líderes nas aldeias, em todas as regiões, para iniciar um diálogo sobre a forma como lidar com a violência contra as mulheres. “Na Indonésia ainda vivemos um ciclo de impunidade. Estamos a trabalhar com casos em Aceh e na Papua com o objectivo de tratar desses casos judicialmente, mas perante as limitações do sistema judicial, também fazemos trabalho ao nível cultural e político”. Ita Fatia Nadia falou da necessidade de trabalhar com instituições locais e nacionais para assegurar que as mulheres vítimas de violência são incluídas na sociedade: “A Justiça advém da voz das vítimas. Num novo país, só poderemos desenvolver uma comunidade se as vítimas forem incluídas como parte das fundações dessa nova sociedade”. Também salientou a necessidade de ter uma base comum a todas as instituições nacionais, na legislação e nas políticas públicas, de forma a fazer a prevenção da violência contra as mulheres e referiu como “as mãos e os corações” da Komnas Perempuan “estão abertos à solidariedade para com as mulheres vítimas de Timor-Leste e para trabalhar pela paz e pela justiça”. As vossas lágrimas são as minhas lágrimas O vosso grito é o meu grito O vosso sofrimento é o meu sofrimento E a vossa luta é a minha luta Estamos juntas como uma só porque somos mulheres Poema de Ita Fatia Nadia, declamado no início da sua contribuição. Documento Disponibilizado pela Equipa Assistência Humanitária em Timor Ocidental (Tim Kemanusiaan Timor Barat) pelo pelo Este grupo O Sinopse O formado TNI último depoimento dos dois dias de audiência foi prestado através da contribuição apresentada pela Equipa de Assistência Humanitária em Timor Ocidental (Tim Kemanusiaan Timor Barat), criado no ano 2000 com o objectivo de avaliar a situação nos campos de refugiados em Timor Ocidental. Esta equipa fezse representar na CAVR pela Irmã Eustokia, a Madre Sisillia SSpS, Maria Feliana Tahu e Herry Maboui. A TKTB era formada por 45 pessoas que desenvolveram trabalho de pesquisa em 74 campos de refugiados em Timor Ocidental durante três meses. O grupo publicou um livro baseado na pesquisa realizada: Perempuan dibawa/h Laki-laki yang Kalah: Kekerasan Terhadap Perempuan Timor Timur dalam Kamp Pengungsian di Timor Barat (As Mulheres Levadas e Subjugadas pelos Homens que Perderam: A Violência Contra as Mulheres de Timor-Leste nos Campos de Refugiados em Timor Ocidental). Os Campos O grupo falou da tensão sentida nos campos e dos desafios que enfrentaram ao tentar recolher os dados para a sua pesquisa e à saída desses dados para o exterior. Referiu que, para as mulheres, as condições nos campos eram a continuidade da violência que muitas haviam sofrido em Timor-Leste. O grupo falou da organização social nos campos numa estrutura de círculos concêntricos. No círculo exterior, o controlo era totalmente detido pelos militares indonésios. No círculo seguinte encontravam-se as milícias, seguidas pelos funcionários públicos e, no círculo interior, a população. O grupo afirmou que os líderes dos campos eram controlados pelas milícias com o apoio do TNI, na retaguarda. De acordo com o grupo, o maior desafio era conseguir acesso ao círculo interior e reunir com os refugiados. Foto, p.57: Membros do Grupo de Assistência Humanitária em Timor Ocidental. Da esquerda para a direita: Madre Sisilia SSpS, Herry Maboui, Maria Feliana Tahu, Madre Eustokia. Ciclo de Violência A Equipa afirmou que as pessoas viviam um ciclo de violência, iniciado no momento da sua entrada nos campos. Eram frequentes os incidentes de violência doméstica, bem como o jogo, o alcoolismo e o stress resultante de campos sobrelotados. Foram inúmeros os casos de violação e de assédio. O grupo acrescentou que existia um elevado nível de agressividade no comportamento de indivíduos recrutados por grupos de milícias nos campos. Aparentemente, a descarga das frustrações políticas de muitos homens assumia a forma de violência contra as mulheres e as crianças. A TKTB considerou que se tornava claro que os membros das milícias reproduziam muitas das formas de violência utilizadas pelos militares indonésios. A contribuição apresentada informava ainda que a TKTB tentou falar abertamente sobre a violência sexual perpetrada pelo TNI contra as mulheres o que resultou numa acção judicial contra a Equipa. O grupo nos campos com a sua O $ $ + , - The team said that people living in the camps had been living in a cycle of violence from the time they entered the camps. There were frequent incidents of domestic violence, as well as gambling, alcoholism and stress from the overcrowding in the camps. Several families shared each tent and there was no separation between adults and children. There were numerous cases of rape and molestation. They also said that there was a high degree of aggressive behaviour from individuals recruited into militia groups in the camps. It seemed that many men were taking out their , . ara TNI e , este facto, ara ¶ Continuidade da vulnerabilidade das mulheres em Timor Ocidental A contribuição apresentada pela TKTB referia ainda que a Equipa trabalhou com inúmeras mulheres traumatizadas que, caso lhes fosse dado o direito de opção, teriam regressado a Timor-Leste. A intimidação era a razão por que permaneciam em Timor Ocidental. As mulheres continuavam a ser retidas contra a sua vontade. Segundo as próprias, as mulheres nos campos tinham uma posição fraca do ponto * ) The ongoing vulnerability of women in porque residia na % de vista cultural, económico, jurídico e físico. Este facto tornava as mulheres e as crianças particularmente vulneráveis perante a violência reinante. As pessoas viviam um ciclo de violência, iniciado no momento da sua entrada nos campos. , The TKTB submission spoke of how they worked with many traumatised women, who if they were able to choose themselves would have returned to Timor-Leste. Because of intimidation they remained in West Timor. Women continued to be held against their will. The position of women in the camps was weak, they said, culturally, economically, legally and physically. This made them and their children especially vulnerable to ongoing violence.¶ People ! "#$ %& %& %& ! "#$ %& %& %& ! "#$ %& %& %& ! "#$ %& %& %& ! "#$ %& %& %& living in¶ the camps had been¶ living in a cycle of¶ violence from the¶ time they entered¶ the camps. Conclusão In Closing Reflexão Final Maria Olandina Isabel Caeiro Alves, Comissária Nacional da CAVR C losing Reflection National Commissioner As reflexões abaixo transcritas são excertos da alocução final apresentada pela Comissária Nacional Olandina Isabel Caeiro Alves. F oi para mim uma honra, enquanto timorense e mulher, estar aqui presente, ser testemunha deste acontecimento extraordinário ao longo dos últimos dois dias. Ao abrirem-nos os seus corações, as nossas irmãs levaram-nos numa viagem através de uma escuridão que podemos apenas imaginar, mas também nos mostraram a luz através da sua força, da sua personalidade e da solidariedade no seu sofrimento e na sua sobrevivência. elaborada The following extracts are taken from a final reflection by National Commissioner Cada uma das mulheres que compareceu perante nós revelou uma enorme coragem ao falar-nos não apenas de si própria mas enquanto representante de centenas, na realidade milhares, de mulheres que viveram a experiência do terror e da violação, quer das mulheres que ainda estão vivas, quer das que não sobreviveram. Timor-Leste, a Indonésia e o mundo devem conhecer o que ocorreu em Timor-Leste para que nunca mais se repita aqui ou em qualquer outro local. It Uma das questões que é frequentemente colocada hoje em Timor-Leste refere-se a quem merece os benefícios da independência. Lutámos e sofremos pela nossa liberdade, mas no debate desta questão nunca é dado à mulher o lugar que merece. Quem são os proprietários da nossa independência? A resposta a esta pergunta deve incluir um lugar central para as mulheres, e não nos devemos esquecer disso. com toda a clareza, Os últimos dois dias foram uma experiência dolorosa para muitos. No entanto, é necessário viver esta dor para aprendermos a ultrapassar o nosso passado e construir o nosso futuro. As pessoas que falaram nesta audiência pediram claramente à nossa comunidade, aos políticos e aos líderes religiosos, para lidar, em unidade com o povo de Timor-Leste, com a violência contra as mulheres, para aprender com essa experiência para podermos ter um futuro de paz, sem medo, para termos uma vida melhor e livre de conflito. Para alcançarmos estes objectivos temos de alterar os valores que permitem que a violência contra as mulheres seja tolerada. Vivemos um passado severo. Plantemos agora as flores sobre a lama do nosso passado de dor. Foto, p. 60: A Comissária Olandina Caeiro encerra a audiência. À sua direita, o Comissário Reverendo Agustinho Vasconselos. , e has been an honour for me as a Timorese person and as a woman to be present here, witnessing this extraordinary event over the past two days. By opening their hearts to us, our sisters have taken us on a journey through darkness we can only imagine, but they have also shown us light through their strength, character, and solidarity in their suffering, and in their survival.¶ Each of the women who has come forward with great courage to speak to us speaks not only for herself, but stands before us as a representative of hundreds, in fact thousands of women who have experienced terror and violation, both those who now live with the weight of those memories, and those who did ' The past two days have been a painful experience ( Commissioner draws proceedings to a close. To her right is & Encerramento Maria Domingas Alves, Assessora do Primeiro-Ministro para a Promoção da Igualdade As reflexões abaixo transcritas são excertos da alocução proferida por Maria Domingas Alves na sessão de encerramento da audiência pública sobre Mulheres e o Conflito. E ¶ ¶ ¶ ¶ Closing Addres s Adviser on Equality to the Prime Minister¶ xcelências, encontro-me hoje convosco, a convite da CAVR e por delegação do primeiro-ministro, para proferir a alocução de encerramento desta audiência pública sobre as Mulheres e o Conflito. Seria preferível poder contar com a presença do primeiro-ministro. No entanto, uma vez que decorre hoje uma sessão do programa de governo aberto, no distrito de Manufahi, estou aqui em sua representação. Serei breve. Desejo elogiar a coragem das testemunhas e prestar homenagem às mulheres que apresentaram depoimentos ao longo destes dois dias. Sinto-me humilde perante os vossos depoimentos. Temos de nos ajudar mutuamente de modo a reconstruir e restaurar a vida de todas as mulheres timorenses. Ouvimos as nossas irmãs pronunciarem com coragem palavras de determinação e falarem das suas responsabilidades enquanto mães, garante do sustento da família, esposas e filhas. Através do seu longo sofrimento ajudaram-nos a olhar as nossas próprias vidas e o destino após anos que sobrevivemos com determinação. Creio que revelaram os vossos princípios nacionalistas ao longo destes dois dias. Algumas pessoas afirmam que as mulheres não têm esses princípios, que as mulheres receiam falar. Contudo, ao longo de dois dias de audiência pública, vós mostrastes que os têm ao falarem e afirmarem que “Sofri por esta bandeira, pela independência”. Ao pronunciar estas palavras estamos a enveredar pela recuperação porque conhecemos o significado do nosso sofrimento. Não necessitamos que outros nos digam qual é o significado do nosso sofrimento. Desejo abordar de uma forma sintética aquilo que o governo pode fazer para ajudar as nossas irmãs que sentem terem sido abandonadas, que sentem não ter o apoio de ninguém. Emergimos de um longo processo em que todos estivemos envolvidos na luta, ainda que desempenhando papéis diferenciados durante a luta. Nesse processo ganhámos consciência da nossa responsabilidade e da necessidade de responder às diferentes situações que enfrentávamos. Ao falarmos de vítimas podemos afirmar que todos somos vítimas. Mas a luta pela independência não terminou só porque temos um governo e um hino nacional. Só terminará quando vivermos em prosperidade, quando todos assumirmos a responsabilidade de sermos timorenses, mulheres e homens, apoiando-se mutuamente para que todos possamos contribuir para esta nova visão. Ainda não dispomos dos nossos próprios fundos e mantemos a dependência económica. Ainda dependemos dos países doadores. Por esta razão, ainda não dispomos dos meios financeiros para apoiar as vítimas. Creio que ainda necessitamos de muito tempo até ser possível garantir um rendimento mínimo a todas as pessoas. Esta questão do rendimento mínimo é da responsabilidade de todos, mas cabe ao governo preparar as condições. Foto, p. 61: Maria Domingas Alves, Assessora do Primeiro-Ministro para a Promoção da Igualdade profere a alocução de encerramento da audiência. Antes de encerrar esta audiência, gostaria de partilhar alguma informação convosco. Recentemente, o governo criou um novo programa, designado RESPECT. Foi-lhe atribuída prioridade com o objectivo de garantir a estabilidade. O governo dispõe de um programa de desenvolvimento a longo prazo, a ser executado num período de 20 anos, e um plano a médio prazo, para os próximos cinco anos. Não obstante, para nos ajudar a responder aos problemas imediatos e contribuir para a estabilidade social, o governo japonês, através da JICA, disponibilizou o montante de 3,9 milhões USD. Estes fundos serão destinados a apoiar a constituição de negócios de pequena escala e o auto-emprego. The following are extracts from the official closing address of the public hearing on Women and the Conflict by Sra Maria Domingas Alves.¶ ¶ lencies, I am here because I received an invitation from the CAVR, and also because the Prime Minister delegated me to give the closing address to this public hearing on Women in Conflict. I would prefer it if the Prime Minister could be here. However as the Government is conducting an open governance programme in Manufahi district today, I am , & & Adviser to the Prime Minister on Equality delivers *. the contribuiu com Como é do vosso conhecimento, trabalho como Assessora do Primeiro-Ministro para a Promoção da Igualdade. O governo defende a integração de políticas que visem a promoção de homens e de mulheres em todos os ministérios. O objectivo é assegurar oportunidades iguais para homens e mulheres em todos os ministérios. Esta política foi iniciada durante o governo de transição em reconhecimento da luta de todas as mulheres timorenses (tal como afirmada no seu congresso), e foi transposta na prática através da adopção do princípio da adjudicação de 30 por cento das posições na administração às mulheres. O governo tem vindo a respeitar esta decisão política. O orçamento do programa RESPECT já foi distribuído aos distritos. Temos de trabalhar com os meios de que dispomos e as organizações de mulheres devem trabalhar no sentido de identificar os grupos de viúvas e informar os chefes de suco para que a informação chegue aos administradores subdistritais e as mulheres possam beneficiar dos fundos atribuídos. Desejo ainda informar que recebemos fundos do Programa de Desenvolvimento de Capacidades Comunitárias e Governação Local (CEP), no valor de 950.000 USD, destinados aos grupos vulneráveis, em particular às viúvas. Até à data foram despendidos 600.000 USD, o que revela que ainda não consolidamos a nossa capacidade de completar o trabalho e que devemos desenvolver a capacidade dos grupos de mulheres e do seu trabalho nos sucos. Ao encerrar o processo de dois dias de audiência pública, desejo agradecer às nossas amigas da Komnas Perempuan, de Jacarta, Aceh, Papua e Timor Ocidental, que se deslocaram até nós para partilhar a sua experiência connosco. Mostraram-nos que não são só as mulheres timorenses que sofrem, que as mulheres sofrem particularmente devido ao seu sexo e que as mulheres encontram-se mais vulneráveis a um determinado tipo de sofrimento do que os homens. O governo pode preparar as condições, implementar reformas legislativas e políticas e tomar outras medidas para melhorar a situação mas, se queremos alterar a nossa mentalidade, a boa vontade tem de partir de todos nós. Tornou-se visível nestes dois últimos dias de audiência pública que é necessário alterar a nossa mentalidade. A mentalidade prevalecente está enraizada e necessitamos de tempo para a alterar. Devemos agir para provar ao mundo que sofremos tantas violações de direitos humanos no passado mas não queremos sofrer violações idênticas na nossa nova nação. Com estas palavras, encerro oficialmente esta audiência pública. Obrigada. , A ao er , revel a ão os fundos recebidos , , , , a , , , , para ¶ I would like to share with you a little information before we close this hearing. The Government has recently developed a new programme called RESPECT. It is a priority aimed at helping to build stability. The Government has a long term development programme for 20 years, and a medium term plan for the next five years. However, to help us repond to the immediate problems the Japanese Government has helped us through JICA with US$3.9 million to help build social stability. This includes helping foster small-scale business and self-employment.¶ ¶ As you know my job in the Government is as Adviser to the Prime Minister for the Promotion of Gender Equality. The policy of the Government* is hank you. Glossário ¶ ¶ ¶ ¶ ¶ ¶ ¶ ¶ ! !"""# $ % & ( ( ' ) ( ' ¶ '&# ' ) *+ # * ( ' ( & & , -( - 1 1 ' %- %( % . % 2 % /0 # - , ( & % 1 % 3 . % $ '4 ( 4 ' % 5 + 1 -( - 2 & $ '( ' & # % , ( ( 2 / 6/ / 6/ 7 8 ( 1 / - % , ) , 6/ 9(7 9 7 ; ( ) 6 / ( ( 3 % 3 + + 8' $ + # '+ 6 + 6/ !""" ' , ', : 1, 0 % <= 3 # ; 6 ,# >1 > 16 5 7 7 7 7 7 7 7 7 7 3 2 1 1% + + ( > , ? ' ( 7% 1 1 - 7 5 - 1 7 $ !"@A 7 ' # 7 7 %( % / / - % - ; -& 3 . 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Os objectivos das diferentes audiências incluíam apurar a verdade relativa às violações de direitos humanos cometidas no passado, apoiar a reinserção das pessoas que lesaram as suas comunidades através da realização de audiências de reconciliação comunitária e auxiliar as vítimas das violações a restaurar a sua dignidade. Uma vez constituída a CAVR, os sete Comissários Nacionais definiram claramente um princípio: tentar atingir a maior abertura e participação possíveis. Em consequência, a CAVR definiu um programa que envolveu a constituição de equipas para trabalhar ao nível dos sucos, em todo o país, numa tentativa constante de envolver a comunidade de uma forma culturalmente adequada. Alguns elementos determinantes desse trabalho foram facilitar os encontros entre as comunidades e a realização do debate sobre o passado em condições pacíficas e reconciliatórias. Ao nível nacional, a transmissão das audiências nacionais através da televisão e da rádio promoveu um sentimento generalizado de participação no diálogo nacional sobre as violações cometidas no passado e na construção de um futuro baseado no respeito pelos direitos humanos. Este conjunto de sete cadernos apresenta o retrato das Audiências Públicas Nacionais temáticas organizadas pela CAVR. Estas audiências decorreram na ex-prisão de Balide, cujas instalações foram restauradas de modo a serem transformadas na sede da CAVR, e incidiram sobre os seguintes temas: Prisão por Motivos Políticos (Fevereiro de 2003), Mulheres e Conflito (Abril de 2003), Deslocamento Forçado e a Fome (Julho de 2003), Massacres (Novembro de 2003), O Conflito Interno de 1974/1976 (Dezembro de 2003), Autodeterminação e a Comunidade Internacional (Março de 2004) e Crianças e Conflito (Março de 2004). A anteceder estas audiências, a CAVR realizou, em Novembro de 2002, uma Audiência Nacional das Vítimas nas instalações do complexo que sediou a UNAMET e o CNRT, em Balide. As equipas distritais da CAVR também organizaram e facilitaram um conjunto alargado de audiências públicas. As equipas distritais dividiram o seu trabalho em períodos temporais de três meses por subdistrito. Após a recolha de testemunhos relativas às violações cometidas, a organização dos processos de reconciliação comunitária e a realização de seminários comunitários, a equipa orientava a audiência subdistrital das vítimas como acto de encerramento do período de permanência nesse subdistrito. Perante a Comissão e a comunidade reunidas, os membros da comunidade que haviam anteriormente prestado os seus testemunhos à Comissão relatavam as experiências vividas. A CAVR organizou sessenta e cinco Audiências subdistritais de Vítimas. As Audiências de reconciliação comunitária foram uma componente fundamental do programa da CAVR. Em conformidade com o mandato conferido à CAVR, o objectivo destas audiências visava apoiar a reinserção de ex-infractores nas respectivas comunidades. Regra geral, ainda que com algumas excepções, as infracções incidiam sobre actos perpetrados pelas milícias no decurso da violência ocorrida durante 1999. As audiências foram realizadas em sucos de todos os distritos de Timor-Leste. Por via da acção facilitadora da CAVR e de forma inovadora, este processo aliou os métodos tradicionais de resolução de conflitos aos métodos judiciais formais. A CAVR organizou audiências a 1404 perpetradores, num total de 217 audiências que contaram com uma participação estimada em mais de 40 mil membros da comunidade. Verificou-se uma resposta impressionante às audiências públicas da CAVR. Temos a esperança de que através da publicação deste conjunto de cadernos seja possível partilhar com um maior número de pessoas a experiência vivida com a realização das audiências nacionais temáticas. Font: (Default) MinionPro-It, 15 pt, Italic, Font color: Custom Color(RGB(148,148,148)) Font: (Default) MinionPro-It, 15 pt, Italic, Font color: Custom Color(RGB(148,148,148)) Font: (Default) MinionPro-It, 15 pt, Italic, Font color: Custom Color(RGB(148,148,148)) Font: (Default) MinionPro-It, 15 pt, Italic, Font color: Custom Color(RGB(148,148,148)) NRT called UNAMET who picked me up and took me to their office in Balide. Portuguese (Portugal) enviou representantes que levaram The team said that people living in the camps had been living in a cycle of violence from the time they entered the camps. There were frequent incidents of domestic violence, as well as gambling, alcoholism and stress from the overcrowding in the camps. Several families shared each tent and there was no separation between adults and children. There were numerous cases of rape and molestation. They also said that there was a high degree of aggressive behaviour from individuals recruited into militia groups in the camps. It seemed that many men were taking out their political frustrations through violence against women and children. The TKTB said that it was clear that militia members mimicked many forms of violence used by the Indonesian military. Portuguese (Portugal) The submission told of how the TKTB had tried to speak openly of the TNI’s sexual violence against women, and for this they were taken to court. Portuguese (Portugal) Portuguese (Portugal) The ongoing vulnerability of women in West Timor residia na intimidação Each of the women who has come forward with great courage to speak to us speaks not only for herself, but stands before us as a representative of hundreds, in fact thousands of women who have experienced terror and violation, both those who now live with the weight of those memories, and those who did not make it through. Timor-Leste, Indonesia and the world should know what has happened in Timor-Leste so that it may never happen again, here or in other places. A question which often arises in Timor-Leste today is who deserves the benefits of independence? We fought and suffered for our freedom, but in this discussion women are never given the place they deserve. Who owns our independence? The answer to this includes a major place for women, and we must not forget this. The past two days have been a painful experience for many. Yet we must go through this pain so that we can learn to overcome our past and to build our future. Those who have spoken here have been clear in one thing—they have asked our community, political, and religious leaders to unite with the people of Timor-Leste to deal with the violence towards women, to learn from those experiences so that our future will be one of peace, without fear so that we can live a better life free from conflict. In order to achieve this we need to change the values which allow violence against women to be tolerated. Those involved in violence against women, whether physical or mental, must be prosecuted. Victims must be given the highest place of honour and must never, never be blamed in any way for the terrible acts of such perpetrators. Our past has indeed been heavy. Let us now grow flowers from the mud of our painful past. draws proceedings to a close. To her right is Commissioner Reverend Agustinho Vasconselos. I am here because I received an invitation from the CAVR, and also because the Prime Minister delegated me to give the closing address to this public hearing on Women in Conflict. I would prefer it if the Prime Minister could be here. However as the Government is conducting an open governance programme in Manufahi district today, I am here to represent it. I will be brief. I would like to commend the witnesses on their courage, and acknowledge and honour the women who gave their testimony over these two days. I feel humbled by your testimony. We need to help each other in order to reconstruct and restore the lives of all of Timorese women. We have heard the courage of our sisters who have spoken out with determination and of their responsibilities as mothers, as breadwinners, as wives and as children. Through their long-suffering, they have helped us see our own lives and the fate of the many years we came through with determination. I believe you have shown in these two days your nationalist principles. Some people have said that women do not have these principles, that women do not dare to speak up. But you showed here over these two days, in this public hearing, when you spoke up saying “I suffered because of this flag, because of independence.” By speaking up like this we restore ourselves, because we know the meaning of our suffering. We do not need other people to tell us the meaning of our suffering. I want to speak briefly about what the Government can do to help our sisters who have felt that they have been abandoned, that no-one is assisting them. We have emerged from a great process where we were all involved in the struggle, the process meant although we took on different roles in this struggle. In this process we also became aware of our responsibilities, and of the need to respond to various situations in which we found ourselves. When we speak of victims, we can say we are all victims. But the struggle for independence is not finished just because we have a government or a national anthem. It is finished when we can all live in prosperity, where we all take responsibility as East Timorese people, women and men assisting each other so that we can all contribute to a new perspective. But with economic dependence we do not yet have our own funds. We still rely on donor countries. That is why there is no money to provide for victims. I do not think we will achieve a minimum income for all people for quite a long time to come. This issue of a minimum income is everyone’s responsibility, but it is up to the Government to prepare the conditions. Adviser to the Prime Minister on Equality delivers the address that closes the hearing. I would like to share with you a little information before we close this hearing. The Government has recently developed a new programme called RESPECT. It is a priority aimed at helping to build stability. The Government has a long term development programme for 20 years, and a medium term plan for the next five years. However, to help us repond to the immediate problems the Japanese Government has helped us through JICA with US$3.9 million to help build social stability. This includes helping foster small-scale business and self-employment. As you know my job in the Government is as Adviser to the Prime Minister for the Promotion of Gender Equality. The policy of the Government is to integrate policies promoting men and women in all Ministries. This is to ensure that there are opportunities for women and men in all Ministries. This policy was developed by the Transitional Administration which recognised the struggle of all East Timorese women, as expressed in their Congress, with an affirmative action policy reserving 30 percent of government positions for women. This Government strongly upholds this policy. The budget for the RESPECT programme has been allocated to the districts. We must work with the means we have, and women’s organisations should work hard together to identify widows’ groups and inform village chiefs to forward this information to sub-district administrators so that women will benefit from the money allocated. I would also like to inform you that the money we received from the Community Empowerment and Local Governance Project (CEP) for vulnerable groups, especially for widows, was US$950,000. We have only spent US$600,000 so far, which shows that our capacity to complete work is not strong enough yet, and that we need to develop the capacity of women’s groups to be able to work in the villages. As the process of the last two days’ public hearing ends, I want to thank our friends from Komnas Perempuan Jakarta, from Aceh, Papua and West Timor who came here to share their experience with us. You have shown us that not only Timorese women suffer, and that women suffer especially due to their sex, and that they are more vulnerable to some kinds of suffering than men. The Government may prepare the conditions, reform policy and legislation and other things to improve the situation, but goodwill must come from us all if we are to change our mentality. From the last two days’ public hearing we can see that we must change our mentality. This mentality is very strong, and it takes time to change. We must begin to take action to demonstrate to the world that in the past we suffered so many human rights violations but that we do not want to suffer the same violations in our new nation. With these words, I officially close this public hearing. T