violência doméstica novo olhar sobre o problema

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violência doméstica novo olhar sobre o problema
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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: NOVO OLHAR SOBRE O PROBLEMA
Kátia Paula Rodrigues1
Miriam Aparecida Mendes2
RESUMO
Esse artigo relata a experiência de execução de medidas judiciais voltadas para homens que
cometem delitos relacionados à violência de gênero na cidade de Belo Horizonte/MG. O
estudo relatado tem como objetivo discutir e apresentar o Projeto Temático sobre Violência
Doméstica, que consiste na participação dos homens agressores em grupos reflexivos e
educativos, tendo como perspectiva a temática de gênero. Nesse contexto buscou-se
também a compreensão da atuação do profissional de Serviço Social.
Palavras-chave: Violência de Gênero. Lei Maria da Penha. Reflexão/Educação. Serviço Social.
Prevenção Social.
______________
1
Assistente Social e integrante do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), da Prefeitura de Belo
Horizonte/MG.
2
Assistente Social, Coordenadora do Espaço BH – Cidadania/CRAS, da Prefeitura de Belo Horizonte/MG e
Técnica Social do Programa CEAPA de 2005 a 2011.
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1 INTRODUÇÃO
Esse artigo pretende divulgar, e ao mesmo tempo relatar a experiência de execução
de medida judicial com foco reflexivo e educativo, voltadas para homens que cometeram
delitos relacionados à violência de gênero. Nesse espaço busca-se a compreensão de que a
aplicação de uma medida judicial deve, sobretudo, estabelecer um novo paradigma de
intervenção junto ao indivíduo infrator, onde o objetivo central consiste em promover um
espaço reflexivo/responsabilizante, no qual o homem autor de violência doméstica possa ter
a experiência de refletir criticamente sobre suas práticas violentas no interior de suas
relações. Nesse contexto, busca-se também compreender o papel do profissional de Serviço
Social, suas potencialidades de atuação e analisar as perspectivas e os desafios colocados
para o fazer profissional.
A relação contraditória e violenta entre homens e mulheres, que é fruto de uma
construção social que demarca espaços de poder, privilegiando homens, faz com que a
violência contra mulheres seja o tipo criminal mais comum, ou seja, um dos que mais recebe
denúncia por parte do Judiciário. Nesse contexto, foi urgente pensar e elaborar uma Lei
voltada para essa temática, rompendo definitivamente com a possibilidade de se por fim a
um processo judicial de violência doméstica com o mero pagamento de cesta básica por
parte do infrator. Isto porque, nos termos da Lei 9.099/95 (Lei que dispõe sobre os Juizados
Especiais Cíveis e Criminais), esses delitos eram considerados como de menor potencial
ofensivo. O Brasil promulgou em 07 de agosto 2006 uma lei específica para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher: a Lei nº 11.340, conhecida como “Lei Maria da Penha”.
Com a referida Lei, os crimes descritos antes passaram a ser de competência dos Juizados
Especializados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e o rito processual
respectivo deixou de ser o estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo.
A Lei 11.340/06, em seu art. 35, inciso V, estabelece que a União, o Distrito Federal,
os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas
competências, Centros de educação e de reabilitação para os agressores. Nesse sentido, a
Central de Acompanhamento de Penas/Medidas Alternativas (CEAPA)1, parte integrante da
Coordenadoria Especial de Prevenção à Criminalidade (CPEC) da Secretaria de Estado de
Defesa Social (SEDS), que tem como objetivo o acompanhamento de pessoas em situação de
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cumprimento de penas e medidas alternativas, se apresenta como parceiro do Poder
Judiciário para a execução de grupos reflexivos e educativos, cujo público alvo são homens
agressores de mulheres. Estes grupos visam a possibilitar uma maior qualidade e efetividade
na execução da determinação judicial, contribuindo para uma cultura de paz e para a
diminuição da violência, através da intervenção em fatores de risco social e da promoção do
sentido educativo da pena.
2 CONTEXTUALIZANDO O PROBLEMA PÚBLICO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Apesar do avanço resultante da promulgação da “Lei Maria da Penha”, em 2006,
ainda há um grande número de mulheres que sofrem agressões. Vive-se hoje numa
sociedade que ainda apresenta uma cultura pautada em um modelo autoritário, de
dominação e de sistema patriarcal. Isso faz com que a violência seja tomada com um fato
social natural. Para Chauí (1980:60), a violência constitui-se “como um conjunto de
mecanismos visíveis e invisíveis que vem do alto para baixo da sociedade, unificando-a
verticalmente e espalhando-se pelo interior das relações sociais”.
A violência doméstica configura um problema público grave que assombra a
sociedade pelos números de mortes que proporciona e, ao mesmo tempo, está incorporada
ao cotidiano das pessoas, como uma realidade de difícil solução. Segundo Heise (1994),
citado por Tavares (2000:34), o Banco Mundial diagnosticou, em 1993, que a prática de
estupro e de violência doméstica é causa significativa de incapacidade e morte de mulheres
na idade produtiva e reprodutiva, tanto nos países desenvolvidos quanto nos países em
desenvolvimento. Ainda, segundo Laboissière (2011), a Organização das Nações Unidas
(ONU) afirmou que a forma mais comum de violência experimentada pelas mulheres em
todo o mundo é a violência física, praticada por um parceiro íntimo, onde elas são surradas,
forçadas a manter relações sexuais ou abusadas de outro modo. As mulheres de 15 a 44
anos correm mais risco de sofrer estupro e violência doméstica do que câncer, acidente de
carro, guerra e malária, de acordo com dados do Banco Mundial.
No Brasil, de 1980 a 2010 foram assassinadas perto de 91 mil mulheres, sendo 43,5
mil só na última década. O número de mortes nesses 30 anos passou de 1.353 para 4.297, o
que representa um aumento de 217,6%, mais que triplicando os quantitativos de mulheres
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vítimas de assassinato. Destaca-se que entre os casos de violência doméstica detectados, os
crimes de natureza sexual aumentaram 194% (WAISELFISZ, 2012:5).
Segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo, uma em cada cinco mulheres diz ter
sofrido algum tipo de violência doméstica; a cada 15 segundos uma mulher é espancada e
em 70% das ocorrências de violência contra a mulher o agressor é o marido ou o
companheiro. A violência doméstica é a principal causa de lesões em mulheres entre 15 e 44
anos; quatro em cada cinco faltas ao trabalho das mulheres é motivada pela violência
doméstica. Os maridos são responsáveis por mais de 50% dos assassinatos de mulheres e em
80% dos casos o assassino alega defesa da honra. São registradas por ano 300 mil denúncias
de violência doméstica (FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, 2010).
Conforme se depreende de estatística elaborada pelo Instituto Sangare, até abril de
2012 seis em cada dez mulheres foram vítimas de violência e 15% das mulheres foram
obrigadas a fazer sexo; 31% da violência sofrida pelas mulheres foram devido ao alcoolismo
dos companheiros ou maridos; 46% da violência decorreram do machismo dos homens e
62% das mulheres sofreram agressões psicológicas. Outro dado relevante é que 1,9% do
Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro são consumidos no tratamento de vítimas da violência
doméstica (WAISELFISZ, 2012).
Descrever essa realidade é dizer a importância de se construir políticas públicas
inovadoras no combate à violência doméstica, pois somente compreendendo a gravidade do
problema é que será possível discutir soluções alternativas e eficazes.
3 LEI MARIA DA PENHA
No Brasil, sobretudo, os movimentos feministas questionavam a aplicação de medida
alternativa para os casos de violência de gênero, onde o conflito era resolvido com o
pagamento de doação de cestas básicas pelo autor para instituições sociais. Essa pressão dos
movimentos de defesa dos direitos das mulheres foi decisiva para que no ano de 2006 fosse
promulgada a Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, que “Cria mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher”. Esta Lei foi “batizada” como “Lei Maria da
Penha”, em homenagem a uma vítima real dessa violência, a biofarmacêutica cearense
Maria da Penha Maia Fernandes.
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A Lei Maria da Penha criou os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher e, dentre outras medidas, estabeleceu Medidas Protetivas de Urgência para as
vítimas. A referida Lei acabou com as penas pecuniárias, onde o réu era condenado a pagar
apenas cestas básicas ou multas. Dentre as medidas protetivas citadas antes, a Lei nº
11.340/06 prevê a saída do agressor de casa, a proteção dos filhos e o direito da mulher
reaver seus bens e cancelar procurações feitas em nome do agressor. A violência psicológica
passou a ser caracterizada também como violência doméstica. Alterou-se, também, a Lei de
Execuções Penais para permitir que o juiz determine o comparecimento obrigatório do
agressor a programas de recuperação e reeducação.
Com esse entendimento sobre a determinação judicial de comparecimento do
agressor a programas educativos, foi criado em Belo Horizonte/MG o Projeto Temático
Reflexivo sobre Violência Doméstica e Intrafamiliar, que consiste na participação de homens
em situação de violência doméstica e intrafamiliar em grupos reflexivos. Para a realização
deste trabalho, o Estado e o Poder Judiciário contam, desde 2006, com a parceria do Instituo
Albam (Instituto Mineiro de Saúde Mental e Social), organização não governamental sem
fins lucrativos, fundada em l998 e considerada instituição de interesse público pelo
Município de Belo Horizonte/MG. Existe ainda a possibilidade da realização de atendimentos
individuais e familiares paralelos ao processo grupal, caso haja necessidade.
Importante ressaltar que essa pena, ou seja, a participação dos homens agressores
em grupos reflexivos, encontra legalidade no Código Penal Brasileiro (CPB), na parte que
dispõe sobre as penas alternativas ou penas substitutivas. Com o advento da Lei nº 9.714, de
25 de novembro de 1998, que introduziu modificações no CPB, ampliou-se o rol de aplicação
das penas alternativas e que substituem as penas privativas de liberdade. Com a
mencionada Lei, a pena alternativa, no entanto, converte-se em privativa de liberdade
quando ocorrer o descumprimento injustificado da restrição imposta. Ainda, de acordo com
essa Lei, a pena alternativa deve ser aplicada somente em caso de crime culposo, cuja
condenação não seja superior a quatro anos de privação de liberdade e que não tenha sido
cometido com violência ou grave ameaça. Esses são os requisitos chamados ‘objetivos’. No
entanto, de acordo com Biscaia e Souza (2005), existem os requisitos ‘subjetivos’, pois o
magistrado deve observar a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a
personalidade do condenado, bem como se os motivos e as circunstâncias indicam que a
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aplicação da pena alternativa é medida suficiente como resposta penal ao ato ilícito
praticado. Em todos os casos de aplicação das penas alternativas o agente perde a
primariedade e passa a possuir antecedentes criminais.
Nesse contexto, “Despenalizar, significa adotar processos ou medidas substitutivas
ou alternativas, de natureza penal ou processual, que visam, sem rejeitar o caráter ilícito da
conduta, dificultar, evitar ou restringir a aplicação da pena de prisão ou sua execução ou,
ainda, pelo menos, sua redução” (GOMES, 2000:72). Sendo assim, a despenalização está
ligada a ideia de diminuir a pena de um delito sem descriminalizá-lo; é a possibilidade legal
de que o processo penal seja suspenso em certo momento e a solução do conflito seja
alcançada mediante aplicação de penas alternativas.
A participação dos homens nos grupos é obrigatória, equivalendo à medida protetiva,
caso esta seja concedida pelo juiz.
4 A POLÍTICA DE PREVENÇÃO NA SECRETARIA DE DEFESA SOCIAL DE MINAS GERAIS
A Secretaria de Estado da Defesa Social de Minas Gerais (SEDS), através da
Superintendência de Prevenção a Criminalidade/programa CEAPA, é o local em que há o
acompanhamento das penas alternativas. A Superintendência de Prevenção a Criminalidade
trabalha a prevenção por meio de três abordagens: as prevenções primárias, secundárias e
terciárias. O Programa CEAPA se insere na Prevenção Secundária. Nessa abordagem, há
atuação no controle social com indivíduos que já cometeram delitos. Trata-se de uma
política pública e social que busca criar condições para o acompanhamento e aplicação de
penas alternativas ao sistema prisional. Para isso, conta com a interação entre diversos
órgãos do sistema de justiça, tais como: Tribunal de Justiça, Ministério Público, Defensoria
Pública e também a Sociedade Civil Organizada.
O fluxo do trabalho se inicia com o Poder Judiciário, que por meio das audiências
aplica a pena alternativa. Em seguida, encaminha-se o usuário para o CEAPA, que tem a
responsabilidade de monitorar o cumprimento da pena alternativa. Por ser um órgão ligado
à reintegração social, o CEAPA, por meio de seus técnicos sociais, além do monitoramento
das penas alternativas, realiza intervenções sociais junto aos usuários.
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A execução dos Grupos Temáticos Reflexivos Sobre Violência Doméstica e
Intrafamiliar deve ser realizada por instituições especialistas na temática, através de equipes
constituídas e capacitadas para tais fins. A equipe técnica que conduz os grupos deve ter
formação superior, experiência na condução de grupos e, preferencialmente, ter alguma
especialidade na temática da Violência de Gênero. A metodologia dos Grupos deve estar
condizente com os princípios e diretrizes da Política Nacional para Mulheres. A proposta dos
Grupos deve ser encaminhada para os representantes do Poder Judiciário e Ministério
Público, uma vez que a realização dos Grupos possui desdobramento na esfera processual
penal.
5 ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO DO PROBLEMA
O aporte central utilizado no Projeto em foco é a perspectiva de gênero,
considerando-se a violência de homens contra as mulheres como uma construção social e
histórica e que, acima de tudo, pode ser modificada de acordo com novas construções que
sejam equitativas. Para promoção de um novo paradigma faz-se necessário a construção de
uma nova relação interpessoal mais democrática. É preciso se criar oportunidades de
repensar os atos agressivos para se abrir novas possibilidades, de forma que o agressor
possa agir consigo mesmo e interagir com os outros. O objetivo central deve ser a
desconstrução e a desnaturalização dos padrões de gênero ainda tão presentes na
sociedade. Importa destacar, neste contexto, que a prática da violência ainda está
relacionada com a construção da identidade dos homens e com as crenças sociais que eles
aprenderam sobre sua masculinidade, bem como com os padrões relacionais que estes
desenvolveram durante a vida. Para tal, serão trabalhados temas como: comunicação,
relações entre homens e mulheres (relações de gênero), poder, papéis sociais, afetividade e
relacionamentos interpessoais.
O Projeto temático de violência doméstica proposto pela CEAPA, em parceria com o
Instituto Alban, tem como escopo fundamental trabalhar com os participantes aspectos
subjetivos relacionados a mudanças de comportamentos, valores e cidadania. Para obter
uma resposta positiva dos seus participantes o programa é focado em 04 componentes:
cognitivos, educativos, emocionais e comportamentais. O programa visa a promover um
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espaço para se questionar as ideias sexistas e os estereótipos, buscando informar sobre a
natureza da violência, o seu significado como opção de comportamento de gênero e como
forma de poder. Dessa forma, pretende-se fazer do referido espaço um lugar para se
expressar os sentimentos, objetivando-se que o homem seja capaz de resolver seus conflitos
de outras formas que não as violentas. Ressalte-se também a importância de se propiciar
aos homens o subsistema mais complexo dessa problemática, o paradigma da retificação
subjetiva.
Segundo Quinet (2000), retificação subjetiva significa mudar a ordem e valor das
situações pelo sujeito e promover a sua responsabilização. Para o autor, retificação subjetiva
consiste em perguntar qual é a participação de determinada pessoa na desordem social e
pessoal. Dessa maneira, implica o sujeito, fazendo-o passar da posição de vítima à de agente
transformador da situação de conflito social e de violência.
Contribuindo com esse debate, sobre a importância da mudança de paradigma dos
homens, Brandler e Grinder (1986) chamam atenção também para o sentido do termo
ressignificação, que para eles possui o significado de que todo acontecimento depende do
“molde” (modo), pelo qual se vê o mundo. Quando se muda o molde, muda-se o significado;
isto é ressignificar, pois quando os significados se modificam, as respostas e comportamento
também se modificam. A ressignificação é elemento chave para o processo criativo de
transformação, pois faz o homem pensar de outro modo sobre as coisas, ver novos pontos
de vista e levar outros fatores em consideração, fatores esses que poderão contribuir para a
solidariedade e o respeito na sociedade como um todo.
6 PROJETO TEMÁTICO PARA HOMENS AGRESORES DE MULHERES
O Projeto temático de violência doméstica visa a intervir em fatores diversos,
minimizando a incidência dos delitos relacionados à violência de gênero em Belo
Horizonte/MG. Diante da gravidade do problema, pressupõe-se que a maioria das respostas
dadas pelo Estado deve ser focada nas mudanças de comportamento.
Os grupos são um programa de intervenção psicossocial/jurídico, formatado para
homens que foram denunciados nas instâncias judiciais por violência doméstica contra a
mulher. Este programa de intervenção é denominado, Andros: homens gestando
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alternativas para o fim da violência. Os grupos são um conjunto de 16 encontros, sendo um
encontro por semana, realizados em grupos (em torno de 16 homens), com homens autores
de violência doméstica e intrafamiliar contra a mulher. Cada encontro tem a duração de 02
horas e é conduzido por profissionais da área psicossocial. Os participantes do programa
Andros são encaminhados pelo aparato judicial (Varas Criminais de Violência Doméstica,
Promotoria de Justiça Especializada em Combate à Violência Doméstica e Familiar contra as
Mulheres e Tribunal de Justiça) para participar do grupo, seguindo proposições previstas em
lei.
Como a participação no Projeto é condição do cumprimento de uma medida judicial,
é necessário comprovar o cumprimento da carga horária de cada usuário. Para tanto, existe
o monitoramento da execução desses grupos através de folhas de ponto, contendo a
assinatura, horário e datas de comparecimentos do participante. Após o encerramento das
atividades, com a participação em todos os encontros, é considerada cumprida a condição
da medida alternativa. As folhas de ponto são encaminhadas pelo Programa CEAPA, que
relata ao Poder Judiciário a finalização da medida. Para os casos onde as faltas são
justificadas, os usuários participam de até duas atividades de reposição.
O objetivo central do Projeto em debate é o de contribuir para a maior
responsabilização e reflexão dos referidos sujeitos em relação à violência, buscando
mudanças de atitude e de comportamento, aumentando a segurança e qualidade de vida
das mulheres. Com esta responsabilização, busca-se uma implicação desses homens com
relação aos modos variados com que a violência é exercida (física, psicológica, sexual,
patrimonial e moral). Espera-se também estimular com tais reflexões, maneiras menos
rígidas e violentas de se exercer a masculinidade, contribuindo para uma melhoria da
qualidade de vida também dos homens.
6.1 Objetivos específicos do Projeto
Os objetivos específicos do Projeto em debate são os seguintes:
• Desnaturalizar a violência contra a mulher e a desigualdade nas relações entre
homens e mulheres;
• Ampliar a percepção com relação às questões de gênero e violências;
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• Responsabilizar os participantes e implicá-los no processo de mudança;
• Aumentar o nível de consciência das consequências da violência, tanto para o
autor quanto para a vítima;
• Promover reflexão e conhecimento sobre as medidas protetivas de urgência
concedidas à mulher e a necessidade de implicação do homem na busca de mudança;
• Promover o estabelecimento de relações equitativas/igualitárias, pautadas no
diálogo, possibilitando o reconhecimento das vantagens destas para homens e mulheres;
• Propiciar reflexão sobre diferentes formas de exercer a masculinidade,
diferentes dos estereótipos de rigidez, violência e poder presentes em nossa cultura, e
• Estimular mudanças cognitivas e de atitudes em relação à violência.
6.2 Projeto Temático de Gênero: alguns resultados
Sobre o alcance do Projeto Temático, no ano de 2010 foram realizados quinze
grupos, com a participação de 279 pessoas; em 2011 foram realizados vinte e um grupos,
com a participação de 265 pessoas e no ano de 2012 foram realizados doze grupos, com a
participação de 264 pessoas. Segundo pesquisa sobre reincidência realizada pela Instituição
CP22 em Janeiro de 2011, dos usuários que passaram pelo Programa e cumpriram pena
pelos delitos relacionados à violência doméstica e/ou intrafamiliar, 83,6% não reentraram no
sistema de Justiça. Segundo dados do Programa, em 2012 o índice de cumprimento integral
do Projeto foi da ordem de 87,88%.
7 ATUAÇÃO DO PROFISSIONAL DE SERVIÇO SOCIAL
A equipe técnica do programa CEAPA é multidisciplinar contando com profissionais
da área do Direto, da Psicologia e do Serviço Social e com estagiários das respectivas áreas,
aqui vamos nos ater a atuação do Serviço Social. Embora o Profissional de Serviço Social não
atue diretamente na execução dos grupos, atua como suporte nos encaminhamentos das
demandas sociais percebidas no decorrer dos mesmos.
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Para intervenções junto ao Poder Judiciário também é importante a articulação do
Serviço Social, notadamente no trato com usuários com comprometimento de saúde mental,
com dependência química e outros, diante da necessidade de acompanhamento médico e
internações para tratamento de viciados em álcool e outras drogas. O profissional de Serviço
Social, na leitura desse contexto, propõe junto ao agressor, em consonância com o
Judiciário, intervenções que não se esgotam somente com o cumprimento da pena. Ele
intervém para que se tornem visíveis situações de fragilidades apresentadas pelos
envolvidos, muitas vezes desconhecidas.
O Profissional de Serviço Social também tem intervenção e participação nos estudos
de casos, para o entendimento da frequência e intensidade da violência doméstica, onde o
que é feito através de planejamento da equipe, enfatizando-se as intervenções mais
adequadas a serem realizadas no acompanhamento do agressor, além de encaminhamentos
para família. Nos atendimentos individuais, realizados também por Assistentes Sociais, são
identificados fatores de risco e vulnerabilidades, buscando-se, assim, possíveis
encaminhamentos para a rede de proteção social. A visita domiciliar sempre que necessário
é uma constante prática para compreensão de cada caso e para a identificação do tipo de
intervenção mais efetivo a ser adotado.
Para além da intervenção judicial com os homens agressores, realiza-se
acompanhamento intrafamiliar com base nos estudos de casos e com mulheres em situação
de violência, realiza-se trabalho de aproximação com as famílias que sofrem em seu
cotidiano experiências de práticas violentas. O profissional aciona a rede de proteção social,
a saber: saúde, educação, assistência social, inclusão produtiva, inserção de crianças e
adolescentes em programas de socialização, inserção das mulheres nas oficinas de reflexão e
convivência familiar oferecidas pelo Centro de Referência da Assistência Social (CRAS). Busca
superar-se, assim, o contraponto vítima/autor. Trabalha-se pela responsabilização do
agressor diante do ato cometido e pela busca da construção da autonomia/cidadania das
mulheres e suas famílias. Ao mesmo tempo, busca-se a minimização dos fatores de risco,
com a finalidade de se prevenir novos delitos.
Paralelo ao trabalho com as famílias, o Profissional desempenha importante papel no
fortalecimento da rede de enfrentamento a violência de gênero, mediante realização de
visitas institucionais e discussão de caso com as instituições, no sentido de acolherem e
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acompanharem essas mulheres e suas respectivas famílias. Tudo isto é feito por
compreender-se que esse trabalho em conjunto é fundamental para que haja um
rompimento no ciclo da violência.
O Assistente Social atua também na coleta de dados com o intuito da construção do
perfil socioeconômico das famílias envolvidas em situação de violência doméstica, tais como:
renda, idade, escolaridade, situação de trabalho, formas de ocupação da moradia, cor
declarada e ainda levantamento do histórico de conflito familiar. Importante ressaltar que o
objetivo não é simplesmente coletar dados para pesquisas, mas também colaborar no
entendimento desse fenômeno complexo, problematizar e envolver a sociedade nesse
debate, de forma a se elaborar políticas públicas mais dinâmicas e eficazes.
A incorporação das perspectivas de promoção da igualdade de gênero e respeito aos
direitos humanos deve ser instrumento contínuo de trabalho dos Assistentes Sociais, com
vistas à diminuição de todas as formas de violência de gênero. Fundamentado no Código de
Ética (1993), o profissional tem como princípio fundamental a opção por um projeto
vinculado
ao
processo
de
construção
de
uma
nova
ordem
societária,
sem
dominação/exploração de classe, etnia e gênero. Nesse sentido, a formação ético política
permite um olhar crítico sobre a dinâmica da realidade social, evidenciando-se que é preciso
construir propostas que apontem para a busca da paz social e o fim da violência contra
mulheres.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O propósito deste artigo foi o de divulgar, e ao mesmo tempo relatar, a experiência
do Projeto Temático Reflexivo com Homens Agressores de Mulheres em Belo Horizonte/MG,
apontando em que medida esse Projeto educativo contribui com a construção de uma nova
cultura nas relações entre homens e mulheres. Para tanto, buscou-se compreender a
adequação dessa nova modalidade de pena alternativa proposta para delitos relacionados à
violência de gênero.
O Projeto foca com menor intensidade os aspectos relacionados à execução penal e
dá maior atenção aos aspectos do comportamento dos autores, pois compreende-se ser
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este o subsistema mais complexo dessa problemática que envolve a violência doméstica e
intrafamiliar. Nesse sentido, o comportamento humano se apresenta como o fator com
maior probabilidade de desorganizar o sistema social como um todo.
Partindo-se da constatação de que a reflexão é um fator que pode contribuir com a
redução da violência doméstica, entende-se que as penas alternativas temáticas
estabelecem um novo paradigma de intervenção junto ao indivíduo infrator. É nesse
contexto que se retoma à finalidade preventiva da pena para destacar que o rigor punitivo
não pode sobrepor-se à missão social de educar, que é o esforço da pena alternativa –
considerada uma medida essencialmente restauradora. Nesse horizonte, tem-se que a
execução penal não se esgota na perspectiva punitiva, pois há a preocupação com o sujeito
que cometeu o ato delituoso e o propósito de fazê-lo refletir sobre sua conduta.
Devido à complexidade da violência contra a mulher, entende-se ser um equívoco
pensar o seu combate apenas com o fortalecimento do aparato policial e/ou mesmo
prisional. Assim, é fundamental que se construam alternativas de prevenção que possam
reeducar o infrator e o estimular a não reincidência. É essencial despertar o infrator para sua
responsabilidade para com uma sociedade mais segura e mais humana.
Importa destacar, ainda, que é importante realizar pesquisas periódicas para se
medir a eficácia do Projeto quanto à sua contribuição para a redução da violência doméstica.
O dado quantitativo de que 84% dos homens que passaram pelo Projeto não tiveram
reentrada no sistema de justiça é relevante, mas é preciso também avaliar a mudança
qualitativa, subjetiva e social que o Projeto denominado Homens Gestando Alternativas para
o Fim da Violência (ANDROS), contribuiu de fato na redução da violência doméstica.
É nesse cenário com grandes desafios que se inserem as propostas de trabalho do
Serviço Social. Os Assistentes Sociais com seus fundamentos teóricos, metodológicos e éticopolítico, por meio de sua intervenção, devem buscar, sobretudo, construir propostas que
apontem para autonomia e cidadania das famílias envolvidas em práticas de violência
doméstica. Por conseguinte, o profissional, nesse espaço, deve buscar a construção de
interface entre os direitos sociais e o direito penal.
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setembro de 2012.
Notas explicativas:
1
CEAPA – Central de Acompanhamento de Penas/Medidas Alternativas, implantada em Belo
Horizonte em Março de 2006. Órgão ligado a Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS), através
da Superintendência de Prevenção Criminal.
2
CP2 Consultoria Pesquisa e Planejamento Ltda: fundada em 1987, a CP2 – Consultoria, Pesquisa e
Planejamento Ltda. firmou-se no mercado mineiro alicerçada na qualidade de seu atendimento e
precisão no oferecimento de respostas a seus clientes. A CP2 é associada ao Conselho Regional de
Estatística (CONRE) e à Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP) (Cf. informação
disponível em: <http://www.cp2.com.br/empresa.php>. Acesso em: 20 de novembro de 2012).

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