6.Continuidade e descontinuidade da construção imagética do
Transcrição
6.Continuidade e descontinuidade da construção imagética do
6. Continuidade e descontinuidade na construção imagética do herói nas histórias em quadrinhos Felipe Mussarelli Valdemir Miotello Continuidade e descontinuidade são termos que aparecem com frequência nas histórias em quadrinhos. Geralmente estão relacionados a eventos de longa duração. Nos quadrinhos norte-americanos de super-heróis esses termos são imanentes ao discurso. Alguns títulos de quadrinhos estão no mercado há décadas, sendo apenas revitalizados de tempos em tempos para acompanharem as mudanças nos discursos. O Super-Homem, por exemplo, foi publicado, [...] pela primeira vez, há setenta anos. Criado por Jerry Siegel e Joe Shuster, dois amigos judeus de Ohio, o Super-Homem surgiu pela primeira vez, de uniforme azul e capa vermelha, a erguer um carro, na edição de Junho, de 1938, da “Action Comics”, tornando-se no primeiro super-herói de sucesso da banda desenhada norte-americana. (LIBÉRIO, 2008). Tendo sua estréia pela primeira vez a mais de 70 anos, o maior super-heróis de todos os tempos (como é conhecido entre os leitores) continua sendo um dos líderes de vendas da editora DC Comics, tendo passado por um número relativamente pequeno de reformulações, tanto na construção imagética como em sua construção pessoal. Os quadrinhos norte-americanos de super-heróis, por serem publicações longas, recebem contribuições de autores diferentes (roteiristas, desenhistas, arte finalistas etc.) em inúmeros momentos, o que contribui para manter a personagem viva e atualizá-la aos discursos contemporâneos. Esse pequeno ensaio buscará nos preceitos bakhtinianos da análise do discurso mostrar alguns aspectos da continuidade e descontinuidade na construção imagética dos heróis nas histórias em quadrinhos. Para isso, faz-se necessário uma pequena contextualização sobre as diferenças entre alguns dos principais tipos de publicações quadrinísticas. a ) Considerações sobre os formatos de publicações quadrinísticas. As histórias em quadrinhos de super-heróis podem ser encontradas das seguintes formas, simplificadamente: um título onde há uma personagem principal (Capitão América, Homem Aranha, Batman, X-men) e crossovers ou grandes eventos (Vingadores, Liga da Justiça, O Cerco, Guerra Civil, Crise Nas Infinitas Terras), onde vários heróis de outros títulos participam de um arco de estórias central sem uma personagem principal efetivamente. Em seu trabalho sobre a cronologia nas histórias em quadrinhos, FIGUEIRA explica como os grandes eventos estão intimamente ligados às histórias de personagens. Quando criaram super-heróis da editora Marvel Comics no começo dos anos 60, o roteirista Stan Lee e o desenhista Jack Kirby já perceberam que além de fazer dos gibis uma novela para garotos, seria uma boa idéia fazer com que estes personagens, mesmo de revistas diferentes, convivessem num mesmo cenário mais complexo e dinâmico. Assim os leitores ficariam ainda mais ligados nas revistas da editora e histórias ainda mais grandiosas poderiam ser contadas a partir dos encontros entre heróis. A quantidade de revistas oferecidas aos leitores tornou-se muito maior com o passar do tempo, pois alem de uma série mensal sem fim previsto pela frente, também as outras revistas daquela editora num mesmo mês, também infinitas, poderiam ser lidas como outra peça de um mesmo grande cenário onde uma outra história ainda maior estava sendo contada. (2008, pag. 399). Os grandes eventos estão ligados a uma cronologia, ou a uma continuidade. Quando uma termina outra se inicia de onde aquela parou, até que haja uma descontinuidade e tudo comece novamente Além dos tradicionais quadrinhos de super-heróis, encontramos hoje um semnúmero de novas publicações nas bancas, dentre elas, uma em especial, que vem ganhando cada vez mais espaço entre os leitores de todas as idades... o mangá. Mangá é um termo usado para designar as histórias em quadrinhos de origem japonesa. Diferentemente dos quadrinhos de super-heróis, o mangás, que em meados da década de 50, no pós-guerra, constrói-se numa única linha narrativa, com começo, meio e fim pré-determinados, e com autores fixos. O mangá pode ter uma publicação longa, como foi o caso de Dragon Ball, de Akira Toryama, cuja publicação no Japão foi de 1984 até 1995, ou Berserk de Kentaro Miura, que se iniciou em 1989 e ainda está em publicação, mas é certo que sua narrativa terá um fim e será, do começo ao fim, escrita e desenhada pelos mesmos autores. Apesar de diferenciarem-se quanto ao formato narrativo no que diz respeito a continuidade ou não da narrativa, ambas permitem uma evolução ou apenas reconstrução imagética de seus heróis, uma mudança que não ocorre devido apenas a trocar de autores. b) O signo para Bakhtin e sua relação com a construção imagética do herói. Todo signo, para Bakhtin (2006, pág. 42), resulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação. Razão pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece. Uma modificação destas formas ocasiona uma modificação do signo. O signo representado pelo herói nas histórias em quadrinhos é não somente seu nome, mas também a sua construção imagética e todo contexto histórico-social em que está inserido. O signo Super-Homem nos faz remeter a imagem de um homem forte, capaz de voar e trajando o uniforme clássico azul com capa vermelha. Este conjunto todo representa o signo Super-Homem. Todavia, quem tem controle sobre a construção imagética do herói são os autores (no caso das histórias em quadrinhos, quem tem o direito sob a imagem do herói) que, ao perceberem o desgaste da imagem transmitida, optam pela descontinuidade, inserindo ao mesmo, uma imagem mais atualizada, de acordo com o novo contexto em que aquele está imerso, desconstruindo ou reconstruindo o signo que o herói representa. O autor-criador, para Bakhtin, possui o que ele chamará de excedente de visão e conhecimento, que por sua vez, permite àquele o princípio de acabamento ao objeto estético. “Ele é responsável por dar acabamento à imagem externa de sua personagem, é o ponto de vista do outro, do autor-criador, que dá acabamento ao que é inacessível à própria personagem.” (CAVALHEIRO, 2008, pág. 73). Portanto, a continuidade ou descontinuidade da construção imagética do herói, tal qual o signo que ela representa, vem de fora, do embate entre duas consciências, da relação do autor-criador com sua personagem, que resulta em novas identidades visuais ao herói. Abaixo veremos um recorte de alguns exemplos de continuidade ou descontinuidade na imagem do herói retirado de alguns títulos populares entre os leitores e também conhecidos pelos não leitores. c) (Des)continuidade do herói nas histórias em quadrinhos. Como todo signo, o herói, ao longo de sua jornada passa por renovações, para manter seus ideais vivos ou ainda para atualizá-los. Tal como um signo o heróis evolui, muda, adéqua-se ao contexto social em que está inserido. Nas próximas páginas mostraremos alguns heróis clássicos dos quadrinhos e com sua imagem foi continuada e descontinuada ao longo de sua existência. O Super-Homem, apesar de sua idade de publicação avançada teve sua construção imagética poucas vezes descontinuada de forma significativa. Figura 1 - Super-Homem uniforme clássico Figura 2 - Super-Homem uniforme negro Nas figuras acima podemos ver o uniforme clássico do Super-Homem (figura 1)1, que ao longo dos anos sofreu variações pouco significativas, como em sua versão original, cujo símbolo central em seu peito era menos detalhado, ou na obra O Reino de Amanhã, de autores, onde seu uniforme perde os detalhes em amarelo. O uniforme negro (figura 2) foi usado na saga A morte do Super-Homem. O uniforme negro foi pouco usado, entre o momento em que o Super-Homem renasce até o momento em que consegue seus poderes novamente. O uniforme negro pode representar o luto de sua própria morte, mesmo que por um período insignificante. Figura 3 - Novo uniforme origem Figura 4 - Novo uniforme pós-origem Após um longo período sem alterações no uniforme, a editora detentora dos direitos do Super-Homem, a DC Comics, resolveu descontinuar todos os seus principais títulos. Com isso, não só o maior super-heróis de todos os tempos, como todos os outros grandes como Lanterna Verde, Batman e Mulher Maravilha, foram descontinuados, ganhado novos uniformes e novas aventuras, ou aventuras antigas revisitadas. Na figura 3, podemos ver o uniforme que será usado pelo Super-Homem e sua nova origem, um uniforme mais casual, com calça jeans e camiseta com o tradicional símbolo do “S”. Já na figura 4 encontra-se o uniforme que será usado após a transformação do herói (após a curta jornada de aprendizado por qual todo herói passa) em Super1 No fim deste artigo há uma lista com o link para as imagens em versão colorida. Homem, com linhas mais futuristas e traços mais atualizados. Nota-se também o desaparecimento da tradicional sunga sob o uniforme. Sobre o “não-uniforme”, calça jeans, camiseta e uma capa do tamanho de uma toalha de rosto, como está sendo chamado o uniforme da figura 3, os autores Grant Morrison e Rags Morales declaram ao jornal New York Post que [...] era hora de fazer as grandes aventuras de um Paul Bunyan2 do século XXI, que luta pelos fracos e oprimidos contra bullies de todos os tipos, desde invasores robôs até reis do crime e funcionários públicos corruptos. O novo visual reflete o status de Super-Homem como defensor do homem e da mulher comum, nas ruas. (GREGORIAN, 2008). A descontinuidade na narrativa e na construção imagética nesse caso, foi decidida e implementada por uma nova equipe de autores, buscando uma revitalização da personagem. O mesmo ocorreu com Batman, que após o conturbado arco de história Batman – Descanse em paz, desapareceu por um tempo (tido como morto), retornando com um novo uniforme (Figura 5) seguindo as linhas do novo uniforme do Super-Homem (Figura 4). Anterior a essa mudança, Batman caminhava a muitos anos com o mesmo uniforme (Figura 6), variando nos tons dos detalhes, variando entre azul e negro. Figura 5 – Uniforme Batman versão 2011 2 Figura 6 – Uniforme Batman tradicional Paul Bunyan é um lendário lenhador gigantesco que aparece em alguns relatos tradicionais do folclore dos Estados Unidos. Foi criado pelo jornalista americano James MacGillivray. Está relacionado aos estados de Michigan, Wisconsin e Minnesota, onde goza de grande popularidade. (Wikipedia) Certa vez, semelhante ao que aconteceu na conclusão do arco Descanse em Paz, a trajetória de Bruce Wayne como Batman foi descontinuada momentaneamente, devido a um forte trauma na coluna causado por um duelo contra o vilão Bane, dando lugar a um novo alter ego para o Morcego. O novo herói ficou conhecido como Azrael (Figura 7). Este usava um uniforme mais tecnológico e passava uma imagem mais violenta do Batman. Contudo, Bruce Wayne logo voltaria assumir o manto de Batman e novamente o uniforme tradicional voltaria às páginas dos quadrinhos. Figura 7 - Batman Azrael Outro conhecido herói que já teve sua construção imagética descontinuada foi o Homem Aranha. Por muito tempo não houve mudanças em seu uniforme clássico (Figura 8), entretanto, durante a publicação do crossover Guerras Secretas, o heróis ganhou um novo uniforme, negro ou azul escuro com detalhes em branco (Figura 9). Pouco tempo depois ele voltaria a seu uniforme clássico. Recentemente, durante a saga Guerra Civil, seu uniforme clássico foi novamente descontinuado, dando lugar a um uniforme mais tecnológico de cores vermelho e dourado (Figura 10), que também teve pouca duração. Em diversos outros momentos o aracnídeos teve sua construção imagética descontinuada (podemos citar Homem Aranha 2099, Aranha Escarlate, Ben Reilly e Homem Aranha Noir), contudo, sempre de pouco duração, retornando ao uniforme clássico. Figura 8 - Homem Aranha clássico Figura 9 - Homem Aranha guerras secretas Figura 10 - Homem Aranha guerra civil Diferente das histórias em quadrinhos do gênero de super-heróis os mangás mantêm uma linha narrativa continua até o seu fim, mas isso não significa, pois, que seus heróis também não passarão por uma construção imagética ao longo da narrativa. Podemos ver um exemplo no já citado Dragon Ball. O personagem de nome Vegetar sofreu durante a série regular (Dragon Ball e Dragon Ball Z) três descontinuações imagéticas. Em sua primeira aparição, a personagem surge com uma armadura cobrindo quase todo o corpo, luvas e botas de cor branca (Figura 11). No segundo arco de estórias o mesmo retorna sem as ombreiras e o cinturão (Figura 12) e ao fim do mangá o personagem retorna trajando apenas as luvas e botas, deixando toda a armadura de lado (Figura 13). Figura 11 - Vegeta com armadura completa Figura 12 - Vegeta com parte da armadura Figura 13 - Vegeta sem armadura O mesmo ocorre em outro mangá conhecido no Brasil graças a sua versão animada. Em Cavaleiros do Zodíaco, criado por Masami Kurumada e publicado no Brasil pela editora Conrad, os cinco personagens principais têm suas armaduras modificadas ao longo da publicação. Veremos abaixo (Figuras 14 e 15) a primeira e ultima, respectivamente, armaduras usadas pelo personagem Shiryu, o cavaleiro de bronze da constelação de dragão. Na narrativa, toda vez que a armadura era ressuscitada através do sangue de um cavaleiro ela tornava-se mais forte. No caso, a última armadura foi banhada com sangue da deusa Atena, tornando-se uma armadura divina. Figura 14 - Primeira armadura Figura 15 - Armadura divina Escolhemos alguns poucos exemplos de continuidade ou descontinuidade na construção imagética dos heróis nos quadrinhos. Certamente pode-se encontrar inúmeros outros exemplos de heróis cujo uniforme passou por transformações, ou mesmo o nome por trás do herói mudou graças a algum evento maior. Tal qual o signo, o herói está carregado de elementos sociais ligados ao contexto em que está inserido, e se esse momento muda, muda também a construção imagética do herói, adaptando e evoluindo. d) Concluindo... A continuidade e descontinuidade da construção imagética do herói é extremamente comum tanto nas histórias em quadrinhos norte-americanas como no mangás e fizemos aqui um breve recorte de alguns personagens conhecidos, tentando exemplificar de forma simples como a jornada do herói ao longo dos anos exige que o mesmo sofra mudanças em sua construção imagética. Talvez, pela longa estrada já percorrida por alguns títulos clássicos e o fato de seus autores originais já não trabalharem mais com suas criações, abram-se brechas para que outros, em conversa com o herói, descontinuem a imagem do mesmo. Para alguns autores, ficaria fora de cogitação continuar (que certamente levaria a algumas descontinuidades) algo que para ele já estaria acabado. Ao exemplo do autor Alan Moore, que se recusa a revisitar obras suas de sucesso como Watchmen, já finalizadas. A descontinuidade está fortemente ligada à atualização do signo do herói em relação ao contexto que o mesmo está inserido, não apenas contexto externo a narrativa, mas também no contexto interno a ela, sendo, portanto, fortemente vinculado a momentos marcantes em que a quebra de paradigmas está presente, sendo algo continuo e muitas vezes bem vindo, garantindo que heróis clássicos criados a mais de 70 anos estejam vivos entre nós, como se tivessem nascido ontem. Referências BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 12 ed. São Paulo: Hucitec, 2006. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. CAVALHEIRO, J. . A concepção de autor em Bakhtin, Barthes e Foucaut. Signum. Estudos de Linguagem, v. 11/2, p. 67-81, 2008. FIGUEIRA, D. A. A. G. A cronologia nas histórias em quadrinhos. In: GEGE - Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso. (Org.). Arenas de Bakhtin. 1a ed. São Carlos: , 2008, p. 397 a 404. GREGORIAN, D. Bird? Plane? Superdude!. In: New York Post. 2011. Acesso em: 26 de jun. de 2011. Disponível em: http://www.nypost.com/p/news/national/bird_plane_superdude_jlvtSBaBiVw7cCUANv ajFL LIBÉRIO, J. Super-homem surgiu há 70 anos. In: Liberio's Leisures, 2008. Acesso em: 26 de jun. de 2011. Disponível em: http://liberiosleisures.blogspot.com/2008/06/superhomem-surgiu-h-70-anos.html Referência das imagens: Figura 01 http://007blog.net/fotos/2009/07/desenho-do-super-homem.jpg Figura 02 http://comicbookjesus.files.wordpress.com/2009/09/sup081s.jpg Figura 03 http://www.omelete.com.br/static/uploads/conteudo/fotos/superman-action-comics1.jpg Figura 04 http://3.bp.blogspot.com/80oZfydpUEE/Thitcrf2_MI/AAAAAAAAASY/lCBGGuvnSgY/s1600 /jla-real.jpg Figura 05 http://www.omelete.com.br/images/galerias/batmaninc//Batman_Inc_03.jpg Figura 06 http://galaxianerd.files.wordpress.com/2011/01/jim-lee1.jpg Figura 07 http://www.multiversodc.com/v2/wp-content/uploads/2010/06/batman-azrael.jpg Figura 08 http://redlightnaps.files.wordpress.com/2007/05/spiderman.jpg Figura 09 http://blogdogibi.zip.net/images/secret_wars_008.jpg Figura 10 http://www.jollygoodshow.net/wordpress/wp-content/uploads/2010/05/ironspidey.jpg Figura 11 http://preypacer.virtue.nu/vegeta_rest/image/vegeta/mveg1.JPG Figura 12 http://lounge.moviecodec.com/images/attachment/ussj-vegeta-runs-a-gauntlet-8201.jpg Figura 13 http://i88.photobucket.com/albums/k171/fallchildren0138/Majin_Vegeta-manga.jpg Figura 14 http://ssperfil.files.wordpress.com/2010/12/07-shiryu2.jpg Figura 15 http://ssperfil.files.wordpress.com/2010/12/esquema_shiryu_divina.jpg