A construção da identidade nacional na diáspora iraniana no Brasil

Transcrição

A construção da identidade nacional na diáspora iraniana no Brasil
A construção da identidade nacional na diáspora iraniana no Brasil:
conclusões iniciais
Ana Maria Gomes Raietparvar
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Universidade Federal Fluminense
 Introdução
Este texto busca pensar questões referentes às dinâmicas identitárias dos iranianos
residentes no Brasil, pensando as relações entre as identidades religiosas afirmadas e sua
tensão com relação à identidade nacional. A partir de um trabalho de campo realizado em
2013 com iranianos residentes na cidade do Rio de Janeiro e na região Metropolitana de São
Paulo e na região metropolitana de Campinas foi observada a dinâmica entre as identidades
utilizadas por estes sujeitos para se definirem. Assim, observa-se o uso de determinadas
identidades de acordo com as determinadas circunstâncias nas quais se apresentam.
A partir da Revolução Islâmica em 1979, estima-se que mais de um milhão de
iranianos tenham saído do Irã “em resposta às lutas políticas que levaram à instalação da
República Islâmica e às medidas repressivas utilizadas para doutrinar e implantar o discurso
revolucionário” (SPELLMAN, 2006, p. 17). Estes iranianos tiveram como destino sobretudo
os Estados Unidos e a Europa, mas também se estabeleceram em outros países como
Austrália e Japão. O Brasil aparece a partir do estabelecimento de redes pessoais, ou pela
impossibilidade de visto para países mais centrais. De acordo com Vahabi (2012) no “Atlas
de la diaspora iranienne”, a América Latina aparece como o 7º polo de atração dos migrantes
iranianos, depois dos país fronteiriços e golfo pérsico (1º polo), América do Norte – EUA e
Canadá (2º polo), Europa (3º polo), Oriente Médio (4º polo), Ásia (5º polo) e Oceania (6º
polo). Depois da América Latina, aparece somente a África como 8º polo de atração
(VAHABI, 2012).
Assim, o Brasil torna-se um destino, em muitos casos, após a passagem por alguns
destes locais anteriormente, sobretudo Estados Unidos, Europa ou Japão. Por estas
características, a trajetória da maioria destes iranianos é marcadamente transnacional. Até o
momento, foi encontrada uma enorme dificuldade em precisar a quantidade de iranianos que
1
passaram pelo Brasil (muitas vezes com passagem nos EUA ou Canadá), e mais dificuldade
ainda em precisar quantos aqui residem.
Segundo Vahabi (2012), haveriam passado 30.000 iranianos pelo Brasil, número
bastante discrepante das informações adquiridas por outros documentos. 1 De acordo com
Fernando Basto (2000) no “Movimento das Correntes Migratórias no Brasil”, de 1922 a 2001,
teriam entrado 1.404 iranianos no Brasil sem necessariamente terem permanecido. Segundo
dados da Embaixada do Irã, mencionado durante entrevista com o diretor do Centro Islâmico
do Brasil, há uma estimativa de 2.000 iranianos no país, considerando aqueles que têm algum
contato com a Embaixada, em busca de documentos, vistos, etc. Destes, 1.200
aproximadamente seriam bahá’is, maior minoria religiosa do Irã, perseguidos após a
Revolução Islâmica. Um informante da Assembléia Bahá’i Local de São Paulo me afirmou
acreditar que estes números estariam superestimados, e que seriam provavelmente relativos a
todos iranianos que passaram pelo Brasil, e não os que permaneceram. De acordo com a
informação apresentada pela Assembléia Espiritual Nacional Bahá’i, situada em Brasília,
atualmente residem 226 bahá’is de nacionalidade iraniana no Brasil em diversas partes do
território. Ao longo da pesquisa, não pude confirmar a quantidade de iranianos presentes, por
falta de melhores dados oficiais e sobretudo pela característica de dispersão destes iranianos
pelo território.
O conceito de diáspora trabalhado por Martin Slama e Johann Heiss (2011) ao pensar
a comparação entre diásporas árabes é a de diáspora como dispersão, espalhamento,
abrangência. Deste modo, pensar os indivíduos em termos de diáspora é pensá-los fora de seu
território de origem, com o qual se identificam, mas no qual não se localizam mais. O que
deverá ser pensado é a relação entre os indivíduos de origem iraniana que moram no Brasil
com sua identidade nacional iraniana e a forma como esta se expressa a partir de suas
vivências no Brasil e na trajetória entre o Irã e aqui.
Encontra-se, entre os iranianos que moram no Brasil, diferentes identidades religiosas,
étnicas e
políticas, estas últimas fruto do processo político do país. A este panorama
acrescenta-se ainda um caráter geracional, a depender do momento político que deixaram o
país. Houve um grande movimento migratório na época da Revolução, mas também no
trabalho de campo pude perceber um novo movimento migratório nos últimos cinco anos,
1
A fonte de onde Vahabi afirma ter extraído estes números é do site :
iraneconomics.net/fa/articles.asp?id=1483&magno=81, no qual foi possível o acesso na data de 01/10/2013.
2
momento de chegada de muitos de meus interlocutores. Esta nova onda pode ser reflexo da
retomada do conservadorismo na política iraniana sob a figura do presidente Mahmood
Ahmadinejad, eleito pela primeira vez em 2005 e reeleito em 2009, sob uma onda de
protestos acusando a eleição de fraudulenta.
Cronologicamente, há primeiro a chegada dos seguidores da Fé Bahá’i, que vieram ao
Brasil como pioneiros, como forma de espalhar a religião pelo mundo. Em 1979, também
iniciaram um processo de saída do país com a instauração da República Islâmica e a
perseguição que passaram a sofrer. Apresentando uma prática religiosa distinta, construída
bastante em oposição e a partir do islamismo xiita, desde seu surgimento em 1844, os
praticantes desta religião são perseguidos pelo regime islâmico instaurado em 1979. Como
justificativa para tal perseguição, são acusados de “inimigos da pátria”, espiões de Israel 2 e da
Inglaterra3, entre outros adjetivos. Suas casas são derrubadas, estão proibidos de frequentar a
Universidade e nove líderes religiosos estão presos por tentarem organizar sua comunidade.
Em função disso, organizam sua comunidade religiosa ao redor do mundo (incluindo
iranianos e convertidos) em campanhas em prol de divulgar a situação dos bahá’is no Irã.
Uma nova onda de migração surge a partir da década de 80, fruto do processo
revolucionário de 1979. Assim, encontrei entre meus interlocutores, no Rio de Janeiro e em
São Paulo, aqueles que vieram ao Brasil na época da revolução ou logo depois, em
decorrência desse processo. Aí encontramos ex-militantes ou simpatizantes de diferentes
organizações e movimentos políticos que lutaram contra o regime do Xá, mas não se
identificaram com o rumo tomado pela Revolução. Estes vieram ao Brasil há cerca de 25 e 30
anos, onde já construíram redes de sociabilidade com forte presença de brasileiros. Estes se
consolidaram no Brasil como comerciantes, professores acadêmicos ou profissionais liberais.
Por fim, também se encontra no Brasil muçulmanos xiitas praticantes da religião ou
membros do clero, com o objetivo de afirmarem ou reproduzirem o Islã no Brasil, sob uma
óptica xiita “oficial” alinhada com o governo iraniano. Neste sentido, se organizam em torno
de uma comunidade religiosa islâmica, com próximas relações com a Embaixada iraniana e
2
O principal santuário e local de peregrinação bahá’i é o túmulo localizado em Haifa, Israel, onde
também funciona a Casa Universal de Justiça, conselho supremo da religião. Segundo Sina, brasileiro filho de
iranianos bahá’is “a acusação de serem espiões de Israel provém do fato que bahá’is do mundo todo enviavam
dinheiro para Israel para a construção do templo”.
3
Segundo o diretor do Centro Islâmico no Brasil “quando houve a colonização britânica na região, os
britânicos criaram seitas islâmicas para tentar dominar através da religião. No Irã se teria se dado através do
fomento ao fortalecimento da Fé Bahá’i”.
3
com o regime iraniano. Suas redes de contato de iranianos no Brasil se dão em torno
sobretudo de comerciantes e professores universitários que frequentam as comunidades
religiosas islâmicas ou estabelecem relações comerciais com a Embaixada. Entre estes
muçulmanos, sobretudo aqueles mais ligados ao clero e à Embaixada do Irã, há um interesse
em fortalecer as ligações entre Brasil e Irã. Isto se daria pelo fortalecimento de instituições
islâmicas religiosas no Brasil tentando fortalecer a influência xiita em mesquitas como a
Mesquita do Brás e a Mesquita de Curitiba (PINTO, 2005). Em outras esferas, foi também
organizada a Câmara de Comércio Brasil-Irã e a Associação de Amizade Irã-Brasil, cujo
representante no Brasil é o próprio diretor do Centro Islâmico xiita e cujos objetivos, segundo
ele, são: “aproximar os povos, mas também visitar feiras de negócios e estabelecer acordos
comerciais”.
Percebi um intervalo de tempo de aproximadamente 30 anos, quando começaram a vir
jovens que nasceram depois da revolução, mas que, segundo eles mesmos, optaram por sair
em busca de liberdades individuais, como namorar em público, ingerir álcool, sair em bares,
ou minimamente não querer estar em contato com a religião islâmica. De fato, por
pertencermos a mesma faixa etária, a maioria dos encontros comigo são marcados, por
sugestão deles, em bares que costumam frequentar no Rio de Janeiro (na Lapa, Tijuca ou
Botafogo, a depender de onde residem na cidade). Somado a isso, como profissionais
graduados, muitos pós-graduandos, também buscam o Brasil em função de uma suposta
prosperidade econômica que o país está passando. O principal grupo com quem mantive
contato até agora são jovens acadêmicos entre 25 e 35 anos, professores, doutorandos ou pósdoutorandos. A vinda de um possibilitou a vinda de outros iranianos, formando um grupo
conhecido no meio acadêmico na área. Na década de 2000, também foi facilitada a emissão de
passaportes para os iranianos o que facilitou sua saída do país.
 A Formação das Diferentes Identidades dos Iranianos no Brasil
O Irã é um país de maioria muçulmana xiita, com 90% da população, elemento
importante em sua identidade nacional. Para entender o xiismo como identidade religiosa e
nacional, faz-se necessário entender sua história. A principal diferenciação sectária dentro do
islamismo é a divisão entre xiitas e sunitas, decorrente de uma crise pela sucessão política do
profeta, transformando-se em tradições distintas com diferentes verdades religiosas (PINTO,
2010b).
4
No século XVI a dinastia Safávida transforma o xiismo na religião oficial do Irã,
dando à futura nação iraniana a identificação com o xiismo como parte de sua identidade
nacional, o que gera conflitos com religiões discrepantes, como é o caso da Fé Bahá’i ainda
hoje. Este advento atingiu uma escalada grande com a instauração da República Islâmica após
o movimento revolucionário de 1979.
O movimento de 1979 nasceu da junção de diversas forças divergentes que
disputavam o cenário político da época. A união se dava em torno da discordância ao reinado
do Xá Mohammed Reza Pahlevi, entre outros motivos, pelas alianças políticas com os
Estados Unidos iniciadas com seu pai o Xá Reza Pahlevi. Em 1953, o primeiro-ministro
democraticamente eleito Mohammed Mossadeq foi derrubado em um golpe com a ajuda da
CIA, retomando o poder para Mohammed Reza Pahlevi.
Durante o período revolucionário, diversas forças disputavam um projeto político para
o país, entre as quais figuravam posições seculares e posições religiosas inspiradas em um
projeto islâmico para a sociedade, com muitas divergências políticas e ideológicas em cada
campo.
Alguns de meus interlocutores pertencem a uma geração que viveu o Irã préRevolução e cresceram sob um estado fortemente secular, com uma pretensão modernizante e
“ocidentalizante” sob o Xá. A vinda destes iranianos ao Brasil na época da Revolução é
fortemente marcada por uma posição política de discordância do regime islâmico. Esta
“oposição” é bastante heterogênea; temos quatro indivíduos com quatro posições políticas
distintas: pró-xá, comunista, socialista muçulmano e uma posição secular. Todos, sem
exceção, fortemente seculares. Com exceção da pessoa que se colocou fortemente antireligião, todos os outros se reconhecem como bahá’is ou muçulmanos e praticam, à sua
maneira, sua religião na esfera privada.
Após a Revolução Islâmica, com uma nova reaproximação do estado com a religião, e
a oficialização do xiismo como a religião nacional, a fé bahá’i foi considerada herética e seus
seguidores passaram a ser perseguidos, presos, impedidos de se organizarem e de cursar o
ensino superior. A luta para poderem estudar e pela libertação dos bahá’is presos, resulta em
uma grande campanha internacional dos praticantes da fé bahá’i, iranianos e convertidos.
Essa é a principal contradição encontrada aqui em meu campo, que pretendo analisar.
Ainda que se identifiquem como iranianos, e mobilizem símbolos semelhantes, concernentes
ao Irã como uma “comunidade imaginada”, que ora aproximam estes indivíduos em oposição
aos brasileiros, existe outras identidades e fatores que afastam e opõem estes indivíduos.
5
Deste modo, as trajetórias religiosas e políticas destes grupos nos ajudam a entender melhor
seus conflitos e como se espelham em suas interações e não interações no Brasil. Os iranianos
no Brasil se constroem a partir de uma identidade nacional iraniana, a qual se fragmenta em
múltiplas outras identidades, étnicas e religiosas. Estas identidades, por sua vez se
demonstram conflitantes e circunstanciais, uma vez que elas se alteram, se combinam e se
sobrepõem a partir de diferentes concepções políticas e religiosas. A diferença se dá
basicamente entre aqueles apoiadores do regime islâmico e os que se opõem ao governo. Essa
contradição é fundamental para que este grupo não se organize sob uma identidade nacional, e
que, ao contrário, se evitem, ignorem ou até, como é o caso de alguns opositores políticos,
fujam.
A partir desta sobreposição de identidades, nota-se como característica da diáspora
iraniana uma aproximação e um distanciamento com a sua identidade nacional. Estes
imigrantes não se organizam numa “comunidade iraniana”, mas estabelecem diversas redes
separadas e fragmentadas, estabelecidas pelas diferentes identidades destes atores. Assim,
dentro da identidade nacional iraniana, existem diversas identidades, étnicas e religiosas, que
a dividem e sobrepõem. As comunidades são pensadas como um agrupamento social, ligadas
a um determinado território, supostamente fixo, que constituem uma referência entre os
indivíduos que chegam e que aqui se instalam, e estariam ligadas neste caso a uma identidade
nacional. Já as redes, estariam dispersas, num fluxo constante, indicando menor fixidez e
maior mobilidade, apresentando a relação entre os indivíduos a partir de pontos de contato
que os une, tanto pela identidade nacional, no caso, quanto por outras relações identitárias,
como local de trabalho, religião, posição política, etc.
Deste modo, como nos mostrou Barth (2005), podemos perceber que a identidade não
é estanque e é negociada constantemente. Em determinados momentos, são acentuadas as
características religiosas, e se sobrepõe a identidade bahá’i que delimita uma comunidade
desterritorializada e transnacional. Em outros, as características étnicas, de uma origem
comum, são acentuadas, de modo que meus interlocutores se identificavam mais comigo, a
quem nunca haviam visto antes, do que com seus companheiros de religião. Esta identificação
nacional me parece não só conflitante para os bahá’is dentro de sua comunidade religiosa,
mas também na posição deles com o restante dos iranianos que estão no Brasil, sobretudo os
de origem muçulmana.
Diferentemente do caso das comunidades árabes no Brasil, em que mesmo com as
diferenças e disputas internas, houve uma organização em torno de clubes e associações, os
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iranianos no Brasil mantiveram-se dispersos, afiliando-se no máximo a comunidades
religiosas heterogêneas (PINTO, 2010a). Segundo o diretor do Centro Islâmico xiita:
“a comunidade iraniana é muito desorganizada, a iraquiana , a libanesa são
mais organizadas. Houve uma tentativa de se reunir para começar uma
associação, mas não foi pra frente. Só se encontram em festividades, como o
Now-ruz [celebração do ano novo iraniano, em 21 de março] e a festa do
equinócio de inverno [no Irã]. O Centro Islâmico, junto com a Embaixada
organizaram um jantar de Now-ruz, mas não tem previsão de organizar
novamente”.
A construção do imaginário e da identidade iraniana em território brasileiro se dá pela
influência de múltiplos fatores. A identidade não é construída somente pelo território de
origem, ou trajetória individual, mas pela construção coletiva desta identidade, e, além disso,
pela forma como os outros grupos te identificam. Como reflete Barth (2000) acerca da
identidade étnica como modo de organização social, estas são maneiras de se organizar as
diferenças entre os grupos. E as diferenças são acentuadas como modo de afirmar as
diferentes identidades étnicas contrastantes entre si. Assim, não é toda diferença
comportamental que é afirmada, se não aquelas consideradas socialmente relevantes pelo
grupo em questão; aquelas que são escolhidas como suporte para atestar sua diferenciação em
relação a outro grupo. Não é, então, a diferença cultural o primeiro fator para o pertencimento
a um grupo, se não a identidade e escolha de pertencimento. Desse modo, um indivíduo
pertencente a determinado grupo não tem que seguir necessariamente todos os
comportamentos culturais esperados, e seguir este comportamento é uma negociação de
acordo com o que lhe é esperado tanto pelo seu próprio grupo quanto por outros grupos
(BARTH, 2000).
Ainda que fosse bem sucedida a tentativa de organização de uma associação, essa
possivelmente se restringiria aos praticantes de uma determinada identidade religiosa, não
abarcando a pluralidade de iranianos no Brasil em nome de uma identidade nacional. O
Noruz4 organizado pelo Centro Islâmico foi frequentado por iranianos ligados a esta
comunidade, assim como os bahá’is realizam o Noruz anualmente para os membros de sua
comunidade (incluindo brasileiros) e alguns iranianos não ligados a estas comunidades
organizam suas próprias festas, muitas vezes convidando outros iranianos via redes sociais.
4
O noruz é o ano novo iraniano celebrado no primeiro dia da primavera do hemisfério norte (21 de
março). A data é baseada no calendário persa pré-zoroastriano, e é reconhecido por iranianos de todas origens.
(SPELLMAN, 2006, p. 47)
7
Assim, nesta dispersão por redes é importante entender como a identidade nacional se
mantém, mas é vivenciada e trabalhada similarmente por diferentes grupos.

A Superação Das Diferenças A Partir Da Identidade Nacional
Para Anderson (2008, p. 32) “no mundo moderno, todos podem, devem e hão de ‘ter’
uma nacionalidade, assim como ‘têm’ este ou aquele sexo” e a ideia de nação é a de uma
“comunidade política imaginada - e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao
mesmo tempo, soberana. Ela é imaginada porque mesmo os membros da mais minúscula das
nações jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus
companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre todos
eles”. Para Smith (1991) a maneira como esta comunidade se imagina conjuntamente é
através de uma continuidade mítica com este território, mobilizando símbolos, heróis do
passado que deem um sentimento de fraternidade e ancestralidade comum.
Durante o reinado do Xá Mohammed Reza Pahlevi (1941-1979) os símbolos da
identidade persa foram continuamente resgatados. Em outubro de 1971, o Xá promoveu uma
festa de 2.500 anos da civilização persa e de fundação da monarquia por Ciro, o Grande. A
festividade ocorreu nas ruínas de Persépolis, antiga capital do Império. Foram convidados
chefes de estado de todo mundo, e os gastos estrondosos da festa foram mais de uma vez
relembrados por meus interlocutores, sendo um símbolo da revolta do povo iraniano com o
monarca, que resultou na Revolução de 1979.
Entre os iranianos residentes no Brasil de origem persa, é comum a menção aos 2.500
anos de história “Civilização Persa”. Sobretudo entre os imigrantes chegados na década de 70,
cuja geração viveu sob o regime do Xá, o enaltecimento da “cultura persa” é bastante comum.
Como filha de iraniano, fui alertada por mais de um interlocutor, de diferentes religiões e
posições políticas (pró ou anti-xá), sobre a importância de eu conhecer a (minha) história e a
“gloriosa cultura” do povo persa. Deste modo, nota-se os conflitos entre essa memória
imaginada sobre as glórias do Império Persa, como símbolos da identidade nacional e a
relação com as diferentes identidades religiosas e políticas que fragmentam tal identidade.
Concomitantemente à afirmação de uma identidades religiosa que se contrapõe à
identidade religiosa oficial xiita, há a manutenção de diversos símbolos e referências
8
nacionais de sua origem pelos bahá’is iranianos. Na casa de um casal bahá’i iraniano em
Aracaju, Sergipe, em uma reunião de oração com iranianos e maioria de convertidos, a
decoração era toda iraniana, assim como a música e parte do jantar que foi servido ao final.
Além disso, em conversa com o anfitrião, iraniano, este se mostrou contrariado por eu não
dominar o idioma persa5, e mencionou com orgulho que seus filhos e sua nora falavam persa
fluentemente, além de terem todos nomes persas. Tal fato também pode ser visto pela
apresentação de Monireh, bahá’i, brasileira filha de iranianos, em mensagem de texto como
modo que eu pudesse reconhecê-la quando nos encontramos: “(...) Sou persa, com cara de
persa, e com vestido e botas de cano alto (...)”.
De maneira semelhante aos Bahá’is, os outros grupos que foram por mim
circunscritos, também apresentam fortemente elementos que remetam à sua identidade
nacional. Interessante notar que, com todas suas diferenças afirmadas, são mobilizados
elementos parecidos. Assim, um fator constante é a decoração em suas casas com artesanatos,
utensílios (sobretudo para tomar chá) e tapetes persas. Há uma constância em questionar-me
porque não falo a língua, e uma reprovação, afirmando que seus filhos falam ou falariam
persa6.
Outro elemento que unifica são as comidas iranianas que cada grupo realiza com
maior ou menor frequência. Em muitas das visitas que eu fiz às casas de iranianos, em sua
maioria me foi servido chá preto, proveniente diretamente do Irã, ou de lugares com maior
concentração de iranianos na diáspora – como os Estados Unidos. A importância da
manutenção da culinária para a identidade nacional faz com que os iranianos em diáspora se
organizem para a aquisição de ingredientes e condimentos que não são encontrados no Brasil.
Desta forma, é comum que sempre que alguém vá para o Irã ou para os Estados Unidos, traga
ingredientes como chá, arroz basmati, açafrão, ervas para Ghormeh Sabzi, burberry para
Zereshk Polo, entre outros. Desta forma, foi possível que muitos iranianos me recebessem não
5
Sou brasileira filha de pai iraniano e mãe brasileira, o que me localiza em campo enquanto iraniana de
segunda geração. Deste modo, há uma constante classificação por parte de meus interlocutores na tentativa de
me encaixar em algum dos grupos citados, além de uma cobrança sobre minha identidade nacional, como
“brasileira ou iraniana”.
6
Esse discurso, embora seja parecido tanto para os bahá’is quanto para os acadêmicos e os comerciantes
muçulmanos, demonstra-se muito diferente na prática pela diferença de abertura dos membros de cada grupo em
relação ao Brasil. Enquanto os bahá’is e os acadêmicos interagem entre os iranianos mas também fortemente
com brasileiros e membros de outras nacionalidades, alguns comerciantes fecham-se mais em suas famílias,
mantém uma forte relação com o Irã, com constantes viagens e são casados com iranianas, o que permite uma
maior manutenção da identidade nacional e do uso do idioma em casa.
9
com um café, mas com o tradicional chá, que é constantemente reabastecido pelas redes de
contatos transnacionais que estabelecem.
Outra forma de preservação da identidade nacional é a realização das festividades do
Noruz, o ano novo iraniano. Há a organização do Noruz pelos diferentes grupos, não realizado
necessariamente todos os anos. O único grupo que realiza todo ano são os bahá’is, uma vez
que o noruz é na mesma data de seu ano novo religioso 7. A Embaixada do Irã organizou
alguns anos essa festividade, na qual participam os comerciantes com os quais estabelecem
relações diretas. O grupo de iranianos acadêmicos no Rj realizam alguns anos a festividade
para a rede de iranianos que estuda no Brasil, em uma comemoração completa: organizaram
uma mesa do Haft Sinn8, comidas iranianas, músicas, apresentação de um músico iraniano
tocador de Târ (instrumento persa), manutenção da tradição de pular fogueira 9.
Em função disso, do mesmo modo em que em certos momentos, e sobretudo na
vivência mais cotidiana, haja uma certa separação em grupos, ou ainda, em diferentes redes,
em alguns momentos essa divisão é superada a partir de uma identificação nacional. Na
inserção no campo nota-se que existem alguns pontos de contato entre estes grupos, com
contatos, amizades pontuais e solidariedade num país novo. Conforme afirmava Barth (2000),
a identidade se dá pela semelhança e pela diferença, e, se a identidade religiosa e política os
separa entre si, a identidade nacional os unifica perante os brasileiros estando no Brasil.
Deste modo, é fundamental pensar como essa identidade iraniana é construída a partir
não só de elementos de exaltação desta identidade com o país de origem (que pode combinar
elementos que tenham mais importância à distância do que em seu cotidiano no Irã), mas
também pelo modo como o iraniano é visto no Brasil, a partir dos indivíduos com quem se
relacionam. Também é importante pensar como a visão sobre o iraniano entre os brasileiros
pode se transformar e modificar a partir do contato e da relação mais direta com estes. Assim,
se a visão comum sobre os iranianos nos meios de comunicação é a de “terroristas”,
“fundamentalistas islâmicos”, “mulheres oprimidas”, em torno da polêmica figura do ex7
O ano bahá’i é constituído por 19 meses de 19 dias, e seu ano novo (chamado Now-Ruz) é no início da
primavera (EPPRECHT, 2008, p. 17).
8
O Haft Sinn (Sete S) é a preparação de uma mesa com 7 itens iniciados com a letra S (Sinn) do idioma
persa. Estão incluídos: Sabzi (brotos), samanu (um tipo de doce), seeb (maçã), senjed (um tipo de fruta seca), sir
(alho), somâq (um tipo de condimento) e serkeh (vinagre). Outros itens também estão dispostos na mesa como:
moedas, ovos, um peixe dourado, água de rosas, um livro (Alcorão ou poemas de Hafez ou um espelho.
(SPELLMAN, 2006, p. 47)
9
De acordo com um de meus informantes, o ato de pular a fogueira durante as festividades do ano novo
é limpar as coisas ruins para o próximo ano.
10
presidente Mahmud Ahmadinejad, e outros estereótipos comuns ao Islã e a países do Oriente
Médio, como reagem os iranianos a esta visão? Como a relação com brasileiros e indivíduos
de outras nacionalidades se dá a partir desse estereótipo e como a identidade diaspórica é
criada em relação ou em reação a esta visão estereotipada?
Outro fator que contribui para a formação da identidade dos iranianos que vieram para
o Brasil são as trajetórias transnacionais de suas vidas. Conforme atesta Mehdi Bozorgmehr
pensando a diáspora iraniana nos Estados Unidos, faz-se necessário sair de uma dicotomia
país de residência – lugar de origem e pensar por uma ótica transnacional, correspondendo às
diversas influências que agem sobre suas trajetórias. (ELAHI & KARIM, 2011).
Essa discussão se mostra particularmente importante no estudo dos iranianos que
residem no Brasil em função das trajetórias de muitos dos que aqui estão. Aqueles que vieram
ao Brasil com o desejo de saírem do Irã muitas vezes não tinham o Brasil como primeiro
destino. Desde o Irã, seus desejos estavam voltados à saída do país, normalmente para países
como Europa, Estados Unidos ou Austrália. Em muitos casos, houve uma prévia passagem
por alguns destes locais, nos quais estabeleceram novas redes de contatos que levaram ao
Brasil como destino. Ainda, o Brasil pode ser considerado um destino final ou não, podendo
ser apenas um local de transitoriedade para uma nova migração. Importante também para essa
questão é como o imaginário sobre o Brasil era construído e como as condições em que
chegaram e as redes de contato que estabeleceram contribuíram para a formação de sua
identidade diaspórica e de sua visão sobre o país.
 Conclusão
Deste modo, notamos a afirmação das identidades de forma circunstancial para os
sujeitos envolvidos na pesquisa. Se por um lado, as condições em que se encontravam no Irã
os levaram a sair do país e agruparem-se de acordo com diferentes identidades nos seus países
destinos, incluindo o Brasil, por outro, a contraposição às identidades nativas no país receptor
os fazem agrupar-se novamente com antigas identidades conflitantes. Retomando a ideia de
Barth (2000) de que as identidades não são estanques, mas negociadas constantemente,
observamos isso no caso dos iranianos residentes no Brasil.
Por um lado, as diferentes práticas religiosas se sobrepuseram à identidade nacional no
momento de vivenciarem um cotidiano no Brasil. A afirmação da diferença de religião ou de
diferentes concepções dentro de uma mesma religião (caso da divergência de interpretação
11
entre os de origem muçulmana xiita) para a formação de redes sobrepôs-se à identidade
nacional no momento de construírem suas vivências no Brasil. Há uma separação entre
aqueles que professam a Fé Bahá’i, os de origem muçulmana secularizados que se posicionam
contra o governo islâmico, e aqueles muçulmanos que mantém constante contato com o
governo iraniano. Os conflitos iniciados no Irã atravessaram fronteiras transnacionais e
influenciam a vivência destes para fora de seu país de origem.
No entanto, essa separação não é estanque. Não raro encontram-se pontos de contato
entre indivíduos que vivenciam redes separadas, em nome de uma identidade nacional. Ao
deparar-se em outro país e ao reafirmarem sua identidade e origem nacional em contraposição
à identidade nacional brasileira ou às diferentes nacionalidades com quem convivem
cotidianamente (como os estudantes acadêmicos que convivem com outros estudantes de
intercâmbio latino-americanos, ou ainda com os comerciantes da Rua 25 de março em São
Paulo que fazem comércio com árabes e chineses), as identidades religiosas tomam uma
proporção menor em nome da afirmação da nacionalidade iraniana. Essa identidade nacional
reivindicada vem através da mobilização de símbolos semelhantes que remetem a um passado
persa e uma origem comum imaginada que ultrapassa e engloba estes conflitos existentes na
sociedade iraniana contemporânea.
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