Ripe 38 - Instituição Toledo de Ensino

Transcrição

Ripe 38 - Instituição Toledo de Ensino
ISSN 1413-7100
38
setembro a dezembro de 2003
REVISTA DO INSTITUTO
DE PESQUISAS E ESTUDOS
Divisão Jurídica
Esta edição contém produções científicas desenvolvidas
no Centro de Pós-Graduação da ITE - Bauru.
REVISTA DO INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS (DIVISÃO JURÍDICA)
Faculdade de Direito de Bauru,
Mantida pela Instituição Toledo de Ensino (ITE).
Edição - Nº 38 – setembro a dezembro de 2003
EDITE EDITORA DA ITE
Praça 9 de Julho, 1-51 - Vila Falcão - 17050-790 - Bauru - SP - Tel. (14) 3108-5000
CONSELHO EDITORIAL
Carlos Maria Cárcova, Cláudia Aparecida de Toledo Soares Cintra, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka,
Iara de Toledo Fernandes, José Roberto Martins Segalla, Jussara Susi Assis Borges Nasser Ferreira, Luiz Alberto
David Araujo, Luiz Antônio Rizzato Nunes, Lydia Neves Bastos Telles Nunes, Maria Isabel Jesus Costa Canellas,
Maria Luiza Siqueira De Pretto, Pedro Waltter De Pretto, Pietro de Jesús Lora Alarcón, Roberto Francisco Daniel,
Rogelio Barba Alvarez, Thomas Bohrmann.
SUPERVISÃO EDITORIAL
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
COORDENAÇÃO
Bento Barbosa Cintra Neto
Solicita-se permuta
Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos : Divisão Jurídica.
Instituição Toledo de Ensino de Bauru. -- n. 1 (1966) - . Bauru
(SP) : a Instituição, 1966 v.
Quadrimestral
ISSN 1413-7100
1. Direito - periódico I. Instituto de Pesquisas e Estudos.
II. Instituição Toledo de Ensino de Bauru
CDD 340
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos
n. 38 p. 1-628
2003
ÍNDICE
Apresentação
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
9
COLABORAÇÃO DE AUTORES ESTRANGEIROS
El problema de la efectividad normativa en el marco del constitucionalismo latino
americano: algunos elementos de análisis
Pietro de Jesús Lora Alarcón
13
Notas para una biografía intelectual de Hans Kelsen
Carlos María Cárcova
29
La víctima y los delitos relativos a la prostitución (El caso de España)
Rogelio Barba Álvarez
39
DOUTRINA
A distinção entre ilícito e dano na perspectiva da atividade jurisdicional
Flávio Luís de Oliveira
63
Os direitos fundamentais na ordem constitucional
Alvacir Alfredo Nicz
75
A convenção n. 132 da OIT e a falta de seu manejo pelos aplicadores do direito
Olga Aida Joaquim Gomieri
83
Vigia & Vigilante - Elementos caracterizadores no direito do trabalho
Mauro Cesar Martins de Souza
91
Os tratados internacionais de direitos humanos como fonte do sistema constitucional de proteção de direitos
101
Valério de Oliveira Mazzuoli
A função hermenêutica do princípio da proporcionalidade: superação de uma
perspectiva lógico-formal
Ricardo Galvão de Melo
113
Os caminhos da justiça agrária no Brasil – Um caso de engenharia políticoconstitucional
Marcílio Toscano Franca Filho
129
Alimentos transgênicos: solução ou problema?
Luís Paulo Sirvinskas
149
Interpretação do ISSQN à luz da Constituição Federal, em detrimento à jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça
Eduardo Amorim de Lima
153
Taxas de fiscalização ambiental. Uma análise comparativa entre a taxa de fiscalização ambiental – TFA -, instituída pela Lei nº 9.960, de 28 de janeiro de 2000, e a
taxa de controle e fiscalização ambiental – TCFA -, regulada pela Lei nº 10.165, de
27 de dezembro de 2000. Aferição de sua constitucionalidade
163
Trícia de Oliveira Lima
A tributação das operações realizadas por meio eletrônico
Ivan Lira de Carvalho
207
A problemática na aplicação da informatização do judiciário, no que diz respeito à
penhora em dinheiro junto às agências bancárias. Penhora – “On Line”
223
Paulo Cesar Gonçalves Valle
Pagamento da dívida judicial pela Fazenda Pública Federal
Roberto Luis Luchi Demo
235
Devido processo legal: direito do autor e do réu
Cristian de Sales Von Rondow
239
Execução das contribuições sociais. Enfoques processuais
Francisco Antonio de Oliveira
265
Medida liminar em tutela antecipatória
Reis Friede
275
A sustação do protesto cambial através de tutela antecipada e a duplicata
sem aceite
291
Freddy Gonçalves Silva & Gabriel Gonçalves Silva
A impossibilidade da cobrança do título de crédito prescrito via procedimento
monitório
297
José Arnaldo Vitagliano
Validade do julgamento de mérito sem a citação do réu
Gelson Amaro de Souza
317
A nova lei de tóxicos – aspectos processuais
Rômulo de Andrade Moreira
329
Ainda e sempre o direito natural
Emerson Ike Coan
383
Antecedentes históricos da fundamentação das decisões judiciais no Brasil
Rogério Bellentani Zavarize
411
INCLUSÃO SOCIAL
DIREITO DAS MINORIAS
Pessoa portadora de deficiência e o dilema do estado moderno: participação
ou exclusão
423
Lafayette Pozzoli & Olney Queiroz Assis
Trabalho forçado ou compulsório: a quase-escravidão
Mário Gonçalves Júnior
437
ASSUNTO ESPECIAL
“Novo código civil brasileiro”
PARECER
Regime transitório sobre redução de prazo prescricional de obrigações no Código
Civil – convivência de normas gerais e especiais - Parecer
447
Ives Gandra da Silva Martins
NÚCLEO DE PESQUISA DOCENTE
Do ato de liberalidade entre cônjuges: breve histórico e a ótica do Código Reale
467
Lydia Neves Bastos Telles Nunes
DOUTRINA
Direito de visitas – dos avós aos netos
Euclides de Oliveira
477
As deliberações sociais das sociedades por quotas de responsabilidade limitada no
novo Código Civil brasileiro
Sergio Pereira Cavalheiro & Claudia Baccarelli D’Elia
485
ESTUDOS JURÍDICOS
1. O impacto do novo Código Civil nas relações virtuais
2. A autenticação de documento no novo Código Civil
Mário Antônio Lobato de Paiva
495
DECISÃO DE RELEVO
APELAÇÃO CÍVEL Nº 282.984.5/6-00 – COMARCA DE PENÁPOLIS. AÇÃO CIVIL
PÚBLICA. Apelantes: Ministério Público e outros. Apelados: Fernando Barbosa e
outros.
503
Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser (Promotora de Justiça – Convocada)
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO
Resumos de dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Direito (Área de Concentração: Sistema Constitucional de Garantia
de Direitos), em nível de Mestrado, Instituição Toledo de Ensino
Poderes de investigação do legislativo: limites e efetividade
Bazilio de Alvarenga Coutinho Junior
521
Direito à saúde: eficácia e efetividade
Meire Cristiane Bortolato
523
Proteção constitucional do relacionamento homossexual
Ruy Gorayb Junior
525
Agências reguladoras: independência e função normativa
Claudia Fernanda de Aguiar Pereira
527
A responsabilidade civil pela violação ao direito à imagem
Yuji Uchiyama
531
Do foro de eleição no Código de Processo Civil Brasileiro
Mario Ramos dos Santos
533
A flexibilização da coisa julgada
José Renato Rodrigues
537
A redução dos riscos inerentes ao trabalho do ocupante de cargo público por
meio de normas de saúde, higiene e segurança: aspectos da atividade do policial
civil do Estado de São Paulo
Carlos Alberto Abrantes
539
A tutela jurisdicional específica no mandado de segurança (artigo 461 do Código
de Processo Civil)
Vanderlei Ferreira de Lima
541
O município e o meio ambiente
Vagner Bertoli
545
Os princípios constitucionais implícitos
Fabio Gabos Alvares
547
Fundamentos constitucionais da livre concorrência
Ari Boemer Antunes da Costa
549
A proteção constitucional do advogado
Alvani Filomena Teixeira Magri
551
CONTRIBUIÇÃO ACADÊMICA
A constitucionalidade da taxa de juros segundo o sistema especial de liquidação e
custódia – SELIC – em matéria tributária
Gustavo Marcondes Cesar Affonso
555
Internet
Layla Christiane Nunes Rocha
571
DOCUMENTOS
Relatório do XXVII Simpósio Nacional de Direito Tributário do Centro de Extensão Universitária
Texto enviado por Ives Gandra da Silva Martins
597
Prof. D’Urso torna-se Doutor pela USP
Texto enviado por Ivani Santiago
605
Umberto D’Urso é o novo presidente do Conselho Penitenciário de São Paulo
Texto enviado por Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas
607
Nota Oficial de Repúdio
Texto enviado por Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas
609
O Juiz sem Rosto
Luiz Flávio Borges D’Urso
611
ATUALIZAÇÃO PENAL
Juizados Especiais Criminais – A Revolução Copérnica do Sistema Penal Vigente
Mário Antônio Lobato de Paiva
615
Cela Prisional Mista – O descalabro aconteceu
Luíz Flávio Borges D’Urso
621
O Estatuto da Criança e do Adolescente
Umberto Luiz Borges D’Urso
623
INFORMAÇÕES AOS COLABORADORES
627
APRESENTAÇão
“CONTINUAR a primeira palavra escrita,
Continuar a frase, não resigná-la
A temor, imperfeição, náusea
Continuar com imenso trabalho
(Irreconhecível bosque do abstrato),
Doam os músculos e os cães ofeguem,
Continuar através do fogo e da água,
Em nome do fogo e da água
..................................................................
Continuar porque não se pode senão continuar,
... Porque, se parássemos, ouviríamos um estrondo
E depois, perturbados, o silêncio do que somos”.
(Paulo Mendes Campos, Hino à vida, in: Testamento do Brasil e O
Domingo Azul do Mar)
Reverberando, ainda, a satisfação pela remodelação editorial da RIPE – chega
a lume o volume nº 38, agora enriquecido com a internacionalização de seu Conselho Editorial.
Somam-se à nova versão, a colaboração de autores estrangeiros e nacionais no
exterior, a integração efetiva da atuação discente, que consagram, com enfoque especial, o caráter social do conteúdo e dos objetivos perquiridos por nossa Revista
desde a sua criação: repensar o Direito. Mais do que isso, é imperioso incentivar e
desenvolver, em nível nacional e internacional, a produção e a circulação de conhecimento, por meio da pesquisa e maior divulgação do trabalho científico de nossa
Faculdade de Direito de Bauru.
É admirável a velocidade com que se operam as transformações sociais e estruturais que afetam o Direito no mundo globalizado, a exigir uma nova postura dos
operadores de Direito. Assim, a ampliação das seções da Revista, a melhor adequação de sua estrutura às regras editoriais e o fomento ao intercâmbio cultural com estudiosos de outros países, constituem-se em alterações de relevo, justificativas de
melhor qualidade perante essa nova realidade do Direito.
No ano em que a Constituição Federal comemora 15 (quinze) anos de sua
promulgação, levada a efeito em outubro de 1988, entra em vigor desde janeiro de
2003, o novo Código Civil brasileiro, a Constituição do homem comum, nas palavras
10
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de Miguel Reale; o mais importante Código depois da Carta Magna, segundo Paulo
Lins e Silva: o primeiro Código do terceiro milênio.
Há, sem dúvida, o reconhecimento geral pelo Código Civil de 1916 como uma
obra prima da literatura jurídica nacional. No entanto, inspirado por uma sociedade
patriarcalista do século XIX, refletia o Código revogado os contornos de sua geração, marcada pelo liberalismo na Filosofia, o capitalismo na Economia e o individualismo no Direito, tendências que não mais se ajustam ao século XXI. Daí, a necessidade de sua reformulação e da aprovação de um novo Estatuto.
Na esteira das disposições constitucionais, valorizando a pessoa humana
como centro e medida do universo e a observância dos direitos inalienáveis do ser
humano, trouxe o Estatuto civilista de 2002 novos valores que visam à realização integral da pessoa, e têm como objetivo o afeto, a solidariedade e o amor. Na verdade, a mais profunda simbiose do princípio da dignidade da pessoa humana e da
igualdade de direitos no novo Diploma legal, assenta-se, sob qualquer ângulo que
se analise, justamente no personalismo ético da época contemporânea, isto é, o respeito à pessoa, ao ser humano, e a proibição à imposição de condições sub-humanas de vida.
O que se almeja e quer se ver concretizado nesta nova versão da Revista do
Instituto de Pesquisas e Estudos – Divisão Jurídica é a idéia de uma entidade educacional, atuante e flexível, em benefício de constante renovação, a qual sem negligenciar a função tradicional e clássica da instituição universitária, deseja contribuir,
de modo direto e positivo, para a solução dos grandes problemas do meio em que
atua, relacionados com o seu desenvolvimento cultural, econômico e social, de
modo a continuar servindo como importante fonte de pesquisa aos vocacionados
necessários na realização da Justiça.
Setembro de 2003
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
Colaboração de
Autores Estrangeiros
EL PROBLEMA DE LA EFECTIVIDAD NORMATIVA EN EL
MARCO DEL CONSTITUCIONALISMO LATINOAMERICANO:
ALGUNOS ELEMENTOS DE ANÁLISIS
Pietro de Jesús Lora Alarcón
Abogado egresado de la Universidad Libre de Colombia
Doctor en Derecho Constitucional por la Pontificia Universidad Católica de San Pablo-Brasil
INTRODUCCIÓN
El presente artículo pretende servir de punto de apoyo para iniciar una discusión sobre la efectividad del conjunto normativo establecido en las constituciones de América Latina, adoptando como puntos de referencia los modelos constitucionales y la realidad económica, política, social y cultural de este sector del
mundo.
Nuestro objetivo consiste en detectar algunos elementos que ocasionan la ausencia de la efectividad normativa y observar los intentos realizados en el marco del
constitucionalismo de la región para superar el problema. Asi, finalmente, será posible sugerir iniciativas de corte jurídico-político que pueden ser debatidas en el ancho campo del derecho
No resulta interesante en este desafío hacer generalizaciones absurdas en
torno a las figuras constitucionales de los países de América Latina, pero tampoco
nos cautiva caer en un enfoque estrictamente particular, toda vez que este impediría evaluar los puntos en común que hay en las diversas realidades factuales y
constitucionales de los Estados del área. La verdad sea dicha, cualquiera de los extremos obstaculizaría promover un interesante juego de opiniones jurídicas sobre
el tema.
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También, hay que reconocer que este es apenas un intento por apuntar fenómenos que, por cierto, aguardan un análisis metódico y prudente, sin duda un esfuerzo mayor que el que modestamente ofrecemos en el presente.
La situación que nos ocupa es bastante delicada, puesto que, desafortunadamente, se volvió frecuente escuchar que las constituciones de América Latina son un
recetario de buenas intenciones que carecen de efectividad, y se expresa que, entre
otras razones, la malformada estructura económica y política no permite la verificación social de la norma. Padecemos, así, de eficacia social normativa, lo que sugiere, por lo menos, un problema de legitimidad constitucional. Por eso, comúnmente
se habla de la distinción entre una constitución jurídica o formal, existente en el papel, y la constitución real, o material, que niega la primera.
A pesar de siempre existir, en nuestro medio, voces que resaltaban el fenómeno de la inefectividad constitucional, ese carácter reiterativo del tema corrió parejo
a un criterio unilateral cuanto a la forma de observarlo. Con efecto, los estudios sobre el particular quedaron presos a un sentido sociológico, que aspiraba a desvincular dos mundos, el del ser y el del deber ser, como naturalmente autónomos, sin
puntos de intersección.
Felizmente, los estudios emprendidos en el campo de la efectividad tanto en
la doctrina europea como en la de América Latina, perfilaron una unidad temática
que sin desconocer la existencia de los dos campos – campo del ser y del deber ser
– asignó un alto grado científico al tema, problematizandolo y extrayendo valiosas
conclusiones.
De tal manera, comenzó a desarrollarse el estudio sobre la efectividad de la
constitución como una categoría pedagógica propia, lo que rápidamente generó el
reconocimiento de que sus normas, que consagran, en trayectoria lógica, los derechos inalienables del ser humano y la intimidad de la organización del Estado, deben ser sometidas al severo e irrecusable juicio de la doctrina para indicar si regulan aquello que aspiran regular, si esta regulación jurídica del primer estatuto de la
nación es la más adecuada, o si, lamentablemente, a norma no tiene ningún tipo de
asidero en la realidad, y entonces, como hacer para regular tales situaciones, cuidando de prestigiar, en todo, los derechos del ser humano.
1.
EL PROBLEMA DE LA EFECTIVIDAD
Como relata Esguerra Portocarrero, durante los primeros tiempos del estado de derecho, se creyó que bastaba con la sola incorporación a la carta política
para garantizarse la efectividad de las libertades públicas, 1en especial por la fuerza que cobraba la vinculación entre derechos, separación de poderes y constitu1 Juan Carlos Esguerra Portocarrero. De la Proclamación de los Derechos a la Protección de los Derechos in Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano. Bogotá. CEDLA. P. 11
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ción, enunciada por la Declaración Universal de los Derechos del Hombre y del
Ciudadano.2
Al paso de la enunciación de las libertades públicas prosiguió el intento de definirlas e infundirles la fuerza jurídica que les permitiese convertirse en realidad plena, al amparo de la ley. Aunque, sobre el asunto no es posible olvidar que la experiencia inglesa tiene su propio derrotero, una formulación no positivada, anclada en
la costumbre, en la perseverancia por otorgar vida al contenido del derecho, antes
que a una formulación teórica.3
Es indudable que la validez de los derechos inalienables del ser humano reposa no en su mera declaración sino en su efectividad plena. Esto fue claramente detectado, de manera que de la lucha por el reconocimiento de los mismos se pasó a
la lucha por su tutela efectiva.
En América, la reflexión constitucional realizada en los Estados Unidos, sobre
la base de la epopeya inglesa que se remonta a 1215, contribuye a la interpretación
del constitucionalismo aportando, desde el advenimiento de las constituciones escritas, la conocida dogmática constitucional.
Sin embargo, la aparición del constitucionalismo escrito, como recuerda Tamayo y Salmorán, no significa que la descripción de la constitución agote el sentido
de la dogmática. La reducción de que el derecho constitucional es la constitución,
ha provocado serias inconsistencias en la dogmática constitucional. Con efecto, algunos autores expresan que lo que excede a la constitución escrita ocurre “de hecho”, o sea, está mas allá de la experiencia jurídica. No se entiende, entonces, que
la dicotomía “constitución jurídica-constitución social” es algo incomprensible, porque los hechos condicionan la constitución, es decir, crean, modifican y derogan el
derecho constitucional. 4
Aunque si existía una preocupación permanente por efectivar las normas de
los primeros diplomas constitucionales, particularmente de la Carta Magna Inglesa
y de otros valiosos textos, entre ellos los Bill of Rigths y el Habeas Corpus Act, así
como de la Declaración Francesa, al parecer la cuestión de la efectividad de las normas constitucionales, como problema jurídico, es estremecida en su relevante y
singular desarrollo a partir de la obra de Ferdinad Lasalle, en abril de 1862, cuando
delante de una agrupación ciudadana de Berlin, pronuncia su célebre conferencia
“Que es una Constitución?” en la cual trata de la correspondencia entre la consti2 Artículo 16 de la Declaración: “Toda sociedad en la que no esté asegurada la garantía de los derechos, ni establecida la separación de los poderes, carece de Constitución”.
3 En la opinión de Geoffrey Marshall: “Los prejuicios de los juristas del Common Law y las proclividades empíricas de los teóricos políticos parecen haberse combinado para crear un clima de opinión hostil a la formulación
de unos derechos de los individuos en fórmulas abstractas”. Teoría Constitucional. Espasa-Calpe. Madrid. 1982,
p. 165.
4 La Dogmática Constitucional in Constitución y Democracia en el Nuevo Mundo. Universidad Externado de Colombia. Bogotá. 1988, p. 181.
16
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tución que llama de “hoja de papel” y la constitución creada y recreada por los denominados factores reales de poder. Adicionalmente, es justo destacar, para efectos del presente trabajo, una segunda conferencia, dictada en noviembre del mismo año intitulada “Y Ahora? Segunda conferencia sobre problemas constitucionales”, donde el autor alemán se refiere a las violaciones de la constitución y la práctica del derecho constitucional en el marco de las difíciles relaciones entre el ejecutivo y el parlamento.5
El tema de la efectividad es a tal punto recurrente que la discusión fue sostenida por Konrad Hesse en su obra “La Fuerza Normativa de la Constitución”, en la
cual manifiesta, con claridad meridiana, que a pesar de la constitución jurídica ser
condicionada por la realidad histórica y no poder ser separada de la realidad concreta de su tiempo, es gracias al elemento normativo que ella ordena y conforma la realidad política y social. De manera que, las posibilidades y los límites de la Constitución jurídica resultan de la compatibilidad entre el ser y el deber ser jurídico.6
Párrafos atrás opinamos que en América Latina, sin pecar haciendo generalizaciones absurdas, es muy común encontrar la ausencia de correspondencia entre
ser y deber ser. La verdad es que el proceso de elaboración de los documentos constitucionales guarda consigo la preocupación por crear las mejores condiciones para
el refugio y protección de las libertades públicas. Al fin y al cabo el constitucionalismo, como movimiento político, sólo se justifica en virtud de su capacidad para colocar límites al poder del Estado, en favor de la libertad con responsabilidad de los
miembros de la colectividad. Lógicamente que, para tal fin, procura una estructura
institucional adecuada. Surge así el problema de crear la fórmula que permita un
ejercicio racional del poder, un régimen político también adecuado.
No es ninguna novedad decir que en todo debate constitucional subyace la
discusión entre libertad y poder, y que los temas constitucionales son temas políticos. Precisamente por eso, es menester analizar los factores que, interfiriendo, no
permiten, muchas veces, la efectividad plena de los derechos fundamentales y del
propio régimen político.
Hay, por ejemplo, elementos infraestructurales, o sea, localizados en la base
económica de nuestras sociedades, que condicionan el paso efectivo de las normas
constitucionales, originando para algunos una realidad patética, dándonos habitualmente la impresión de estar delante de una constitución académica, teórica y sin soporte concreto.
Las más variadas opiniones son emitidas para superar la ausencia de efectividad. Por ejemplo: crear nuevas fórmulas normativas; acelerar el proceso legislativo;
dotar al estado de instrumentos de mayor represión; desde otros ángulos, por el
5 “Que es una Constitución?”. Ed. Temis. Santa Fe de Bogotá.1997.
6 Consúltese la obra “Die Norma Tive Kraft Der Verfassung” traducida al portugués por la Editora Sergio Antonio
Fabris. Porto Alegre. 1991.
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contrario, se piensa en recortar sensiblemente los poderes del Estado; extender las
libertades públicas; importar instrumentos de protección novedosos; fortalecer el
órgano jurisdiccional. En fin, un conjunto de propuestas en varios terrenos que se
dirigen, por lo menos teoricamente, a anunciar la efectividad normativa.
Así, podemos identificar algunas corrientes teóricas entre aquellos que se ocupan del tema de la efectividad, que vale la pena distinguir.
2.
LA OBSERVACIÓN DE LA INEFECTIVIDAD NORMATIVA
El análisis de la efectividad, como trasparece, supone descubrir la situación real
del fenómeno económico, político, social y cultural del contexto que se ausculta.
Evidentemente que cuando se trata de realizar una interpretación del contenido de la relación norma-realidad en América Latina, hay que partir del concepto
de algo que es innegable e inocultable, esto es, el subdesarrollo, que no puede ser
asumido como apenas un grado dentro del conjunto del processo económico social
de esta parte del mundo. Por el contrario, es, según Díaz Arenas, un estado de “patología social”7, o sea, algo más permanente, si llevamos en cuenta los fracasos de
los más recientes modelos que fueron incorporados con el afán se superar el problema, incluyendo el neoliberal, que, sin embargo, produjo una serie de modificaciones constitucionales en países como Colombia, Méjico, Brasil y Argentina.
Definir como observar el constitucionalismo latinoamericano y su relación
con el subdesarrollo, en una perspectiva que favorezca comprender los motivos que
pueden conducir a la ausencia de efectividad de las normas, es tarea emprendida
por un amplio sector de la doctrina constitucional. Pedagógicamente, según Diaz
Arenas se refiere a dos grupos de autores.
En primer lugar, los llamados tradicionalistas, para quienes las limitaciones y
posibilidades del orden constitucional en América Latina son apenas superficiales y
temporales, con tal de que exista respeto por valores fundamentales, como la libertad, entendida como la posibilidad de hacer o no hacer algo teniendo en cuenta el
contenido de la ley; la igualdad, en sus vertientes material y formal, y, finalmente, la
propiedad privada sobre los medios de producción. La observación tradicional va
acompañada del examen de funcionamiento del régimen político adoptado en el
continente, un régimen de democracia representativa importado del modelo emanado de la Revolución Francesa, acompañado de algunos elementos del constitucionalismo de los Estados Unidos y de tímidas modalidades de participación popular
directa en las decisiones más o menos importantes para la vida del estado. El objetivo de esta corriente consiste en crear las condiciones para la efectividad, sin que
exista una ruptura del sistema político.
7 Pedro Agustín Diaz Arenas. Estado y Tercer Mundo. Bogotá. Temis. 1997. P.427
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De otro lado, tenemos los llamados deterministas, para quienes el grado de
atraso histórico en el ámbito económico desembocará, inevitablemente, a una ruptura del modelo empleado hasta el momento. Acontecerá, entonces, la expresión de
un nuevo tipo de poder constituyente, el poder constituyente revolucionario, que
tomará las riendas de la soberanía y forjará un nuevo modelo económico y político.
En verdad, si de lo que se trata es de sentar las bases estructurales de un nuevo constitucionalismo, surgido de un poder constituyente popular, hay que tener en
cuenta las reglas del juego impuestas por el sistema que hoy impera, o sea, los parámetros de la igualdad, el ejercicio de la libertad y las relaciones de producción.
Pero, sin duda que, tal análisis será pautado por la necesidad de modificar, de crear
nuevos institutos en el marco de necesidades concretas y claramente definidas en
los ámbitos económico, político, social y cultural que orienten la legitimidad del
nuevo estatuto constitucional.
Por lo tanto, no se trata de abogar, obviamente, por la abrupta imposición de
rupturas, lo que generaría una artificialidad constitucional propia de los estados de
hecho. Es claro que una institucionalidad en perspectiva a la efectividad de las normas supone la existencia de un conjunto de elementos básicos, continuidad de lo
mejor que ha dado el constitucionalismo. Esos elementos otorgan legitimidad al sistema y dan la tónica para la efectividad. Algunos necesitan de un repensar constitucional y otros de un vigor social mayor, el que cotidianamente, algunos le han negado para proteger sus intereses particulares..
A continuación vamos a tratar de algunos de estos elementos.
3.
LOS ELEMENTOS QUE DEBEN SER FORTALECIDOS PARA AVANZAR
EN LA EFECTIVIDAD DE LAS NORMAS CONSTITUCIONALES
3.1 Soberania e democracia
Los filósofos iluministas formularon las ideas del individualismo que nutrieron
los procesos revolucionarios en el siglo XIX, encabezados por la burgueseía como
clase ascendente delante de un modelo absolutista de dirección estatal. Tal individualismo se materializó en las ideas de libertad, igualdad y tolerancia. La burguesía
adoptó el formalismo legal y se planteó como objetivo el enriquecimiento.8 Este fue,
entonces, el marco ideológico y fundamento material del proceso de constitucionalización de los pueblos europeos.
A pesar de ese fenómeno conducir a un desarrollo político importante a los
pueblos de Europa, en Latinoamérica, en función de la existencia de sociedades organizadas en medio de un elevado grado de desigualdades, y de un proceso de descomposición, pugnas, rivalidades y caudillismos, (antevisto por el genio de Bolívar,
8 Pedro Diaz Arenas. Ob. Cit. P. 428
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digamos de paso) después de las luchas de independencia en América Latina, el modelo europeo de organización política resultó siendo impuesto.
Se perdió la oportunidad de construir fórmulas inéditas de organización estatal, con soporte material nas necesidades auténticas del pueblo de estos Estados. Rápidamente, pequeños grupos nacionales se encargaron de ocupar los lugares más
importantes de la nueva estructura estatal.
El constitucionalismo de América Latina, surge, de esta forma, acoplando figuras importadas de Europa o de los Estados Unidos. Sin embargo, hay que destacar
el pensamiento bolivariano. Al héroe militar, hay que adicionar la audacia política, la
agudeza del visionario y el patriotismo del hombre que procura permanente la identidad del proceso constituyente.
En el Congreso de Angostura, en 1819, Bolívar plantea su propuesta de constitución, donde se destacan, entre otros puntos: la necesidad de otorgar la libertad
cuanto antes a todos los esclavos; la de crear un Senado hereditario y neutro, que
haría las veces de árbitro entre gobernantes y gobernados y que, al igual que el Senado de Roma y el Parlamento inglés, conservaría la seguridad y las garantías políticas y sociales; por último, la creación de un areópago, un cuarto poder eminentemente ético, que tuviese jurisdicción respecto de la educación de la niñez y la instrucción nacional, y pudiese conceptuar en tratándose de penas y castigos.9
Pero, volviendo a Europa, es importante recordar que los procesos revolucionarios de Europa se forjaron teniendo como telón de fondo la idea de soberanía nacional, que inspira el Estado nacional y el Estado de derecho.
Es teniendo en cuenta la idea de soberanía nacional que se definen dos cuestiones importantes: en primer lugar, se otorga, desde el punto de visto externo, legitimidad a las nuevas instituciones, que comienzan a firmar en la práctica el concepto de “interés nacional”, que repercutirá en el desarrollo de una política de relaciones exteriores pautada por la diplomacia o la guerra, teniendo en cuenta las necesidades de cada
Estado. De otro lado, internamente, la soberanía adjetivada “nacional”, desembocó en
la instauración del régimen político de democracia representativa, utilizada como alternativa teniendo en cuenta el crecimiento cuantitativo del pueblo.
La autenticidad del proceso de elaboración del régimen político, el grado de
compromiso con las figuras democráticas de la representación, los resultados de la
correlación de fuerzas sociales, regularon una situación en la cual se ofrecieron las
condiciones históricas para una organización jurídico y política en Europa y en los
Estados Unidos, que hizo madurar el concepto de derechos del hombre y el poder
limitado del Estado, distribuido y controlado.
En América Latina, el constitucionalismo escrito fue traicionado desde sus orígenes. La soberania, en función de la dependencia financiera externa, fue compro9 Javier Henao Hidrón. Panorama del Derecho Constitucional Colombiano. Santa Fé de Bogotá. Temis. 1996. P.
11.
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metiendose, al tiempo que nuestro interese nacional pasó a ser definido por el interese de grupos y familias que se apoderaron del poder del Estado.
De los Estados Unidos, como afirma G. Bidart Campos, se importó la democracia con el apellido de “occidental”. Pero, el propio autor argentino se preguntaba:
“esta democracia occidental, liberal y occidental, que repensamos
en nuevo mundo al cumplirse el bicentenario de la Constitución
de Estados Unidos, nos interesa sólo o preponderantemente en
cuanto las constituciones escritas de nuestros estados puedan acogerla; o nos incita más y fundamentalmente a que cobre encarnadura y vigencia sociológica en la realidad de nuestros regímenes
políticos? Seguramente, las experiencias latinoamericanas a partir
de la independencia nos permite responder que nos preocupa más
lo segundo, porque en general nuestro mundo nuevo no ha engendrado, por obra mágica de las constituciones escritas, democracias sólidas y duraderas. En todo caso, sólo por períodos, y aún así,
con múltiples déficits”.10
En el presente, la idea de soberanía en el contexto del constitucionalismo latinoamericano pasa por un contenido formalístico, aquel que le dio origen, que en
función de las propias condiciones del desarrollo económico y social de cada Estado y de la dependencia arrastrada desde el propio proceso de liberación del siglo
XIX, generó una ausencia de efectividad real. Sin pretender ingresar en el mérito de
la sutil diferencia entre interdependencia y autodeterminación, si es necesario reafirmar el contenido vacío de la soberanía sin las condiciones materiales que permitan un proceso de decisión libre de la intromisión externa.
Así, es necesario pasar de la soberanía conceptual a la soberanía real, fundada
en modelo infraestructural económico sólido, una identidad cultural definida y un
fortalecimiento de la democracia como régimen político. De esta manera, podremos
aspirar a una mayor efectividad de las libertades públicas y del control del Estado.
Mas, la cuestión no es simple. Humildemente podemos decir que el fortalecimiento de la democracia corre junto a la noción de participación. Esta expresión viene de “tomar parte”, un “tomar parte activo”. No es un “tomar parte” inerte ni un
“tomar parte” obligado.11 Supone una democracia que perfecciona el modelo representativo, pero también reasume el modelo de decisiones directas. La llamada “participación electoral” no agota el modelo democrático. El pueblo con bastante frecuencia vota, pero votar no lo hace “tomar parte activa” de la vida del Estado.
10 “Constitución y Democracia en el Nuevo Mundo”. Santa Fé de Bogotá. Universidad Externado de Colombia. P.
20.
11 Giovanni Sartori. Que es la Democracia?”. Bogotá. Altamir Ediciones. 1994. P. 76
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La participación necesita del concurso anímico y material del pueblo soberano, que con la práctica de mecanismos constitucionales comience a sentir que
aquello que defiende con su acción es su país, sus instituciones y directamente,
sus vida.
Como realza Díaz Arenas: “La marginalización, no participación o ‘cultura
del silencio’, siendo el resultado de relaciones estructurales en las sociedades del
Tercer Mundo, demanda una apertura hacia la participación real (no formal) y
global, (económica, política y cultural).”12
Una nueva democracia, más audaz y efectiva, implica reconocer instrumentos
cada vez más amplios de participación. Así, se supera la democracia formal, y se
avanza a la democracia real.
En conclusión, hay que buscar con mayor énfasis los instrumentos que permitan decidir soberana y antetodo, efectivamente, al pueblo.
3.2 La libertad y la igualdad
La revalidación del contenido de los postulados del liberalismo del siglo XIX,
se justifica en el marco de los problemas de efectividad plena del grueso de libertades públicas en el concierto de los países latinoamericanos.
Obsérvese como la contradicción entre la libertad individual y el individualismo se tornó en extremo crítica en los países donde la ideología burguesa tuvo un
carácter artificial y limitado.13 En otros países, donde la ideología tuvo condiciones
de madurar y proyectarse como interese nacional, la libertad de expresión, comercio y empresa comenzó a desarrollarse, aunque también en el marco de la desigualdad entre los hombres, matizada solamente por los denodados esfuerzos de la jurisprudencia, por concretizar un enfoque proporcional e razonable del ejercicio de tales libertades. Hay que rescatar en este contexto, el desarrollo del aspecto substancial de la cláusula del debido proceso en el derecho norteamericano. En todo caso,
las libertades posibilitaron un marco de desigualdades de donde surgieron, en estadios futuros, las grandes concentraciones industriales y el sistema financiero internacional.
No está de más recordar que, en sus primeros momentos, el constitucionalismo surgido de las revoluciones liberales vio la necesidad de prevenir los abusos que
podrían ser ocasionados por el propio sistema, por ello declaró el derecho de rebelarse delante de las opresiones.
Así, por ejemplo, la Declaración de los Estados Unidos de 1776, declaró que
“cuandoquiera que una forma de gobierno se haga destructiva de estos principios,
el pueblo tiene derecho a reformarla, abolirla e instituir un nuevo gobierno”.
12 Obra citada. P. 427 e siguientes.
13 Idem. P. 429
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También, la Declaración de Derechos del Hombre y del Ciudadano de Francia, de 1793, concluía afirmando en el artículo 35 que, “cuando el gobierno viola
los derechos del pueblo la insurrección es para el pueblo y para cada porción del
pueblo, el más sagrado de los derechos y el más indispensable de los deberes”.
A primera vista, el derecho de rebelión o de desobediencia delante de las
opresiones tendría una efectividad plena. Sin embargo, resulta desconcertante pensar que un Estado podría otorgar semejante prerrogativa a uma colectividad. Difícilmente un Estado, ni siqueira el Estado hindú, nacido de la desobediencia civil, reconoce constitucionalmente el derecho de resistencia.
Apenas, como cita Díaz Arenas, encontramos algunas normas en constituciones de América Latina que implementan mecanismos más o menos de control. Por
ejemplo, la norma del artículo 12 de la Constitución de Costa Rica que “proscribe el
ejército como institución permanente”.
Por otra parte, una noción instantánea y equivocada de la igualdad como principio del constitucionalismo dio margen a una grave distorsión, al no llevarse en
cuenta las condiciones que, de hecho, determinan los parámetros de aplicación del
propio principio.
La ley se encargó de promover desigualdades que provenían de tais circunstancias. Asi, por ejemplo, durante muchos años, la esclavitud fue amparada por la
ley, el sufragio era restricto a un grupo selecto de ciudadanos, la ley prohibía la creación de sindicatos, que únicamente fueron reconocidos en América Latina a comienzos del siglo XX.
Conviene afirmar que dos factores fueron fundamentales para la superación
de una aplicación apenas formal de la igualdad: en primer lugar, el valiente trabajo
de las cortes de América, – en particular de la Suprema Corte de los Estados Unidos, que modeló decisiones sin par –, que en reiteradas oportunidades, delante de
hechos concretos, decidieron, superando las condiciones extrajurídicas, a través de
sus sentencias, que, teniendo en cuenta la situación particular, la ley debería ser aplicada de común acuerdo con las condiciones materiales expuestas.
El entendimiento de varias “igualdades”, en lugar de una “igualdad”, que partía de los tribunales, fué complementando la idea de justicia, que fue retomada de
Aristóteles.
Como ilustra G. Sartori, “El problema de la igualdad es un problema de justicia. Aquí, igual entra en la misma definición de aquello que es justo. Aristóteles
lo notaba con lúcida concisión: ‘injusticia es desigualdad, justicia es igualdad’
(Ética Nicomaquea, 1131 a).”14
De las Cortes se pasó a la ley, porque la idea-protesta supone reconocer el
mundo como desigual, estructurado “naturalmente” en desigualdades. Y, entonces,
14 Giovanni Sartori. Que es la Democracia? Bogotá. Altamir Ediciones. 1994. P. 176.
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después de Aristóteles, Rousseau se convierte en el paradigma teórico para resolver
el punto. Puesto que en el Contrato Social, el pensador francés ya anotaba que “Es,
precisamente, porque la fuerza de las cosas tiende siempre a destruir la igualdad,
por lo que la fuerza de la legislación debe tender siempre a mantenerla”.15
De esta forma, la igualdad como idea-protesta fue entendida como igualdad
idea-propuesta, que se genera, proporcionalmente, teniendo en cuenta el valor justicia, también en los legislativos del mundo.
Así, el segundo factor determinante lo constituye el hecho de robustecer el
principio de la igualdad en el cuerpo constitucional normativo,16 una consecuencia,
en el campo positivo, del desarrollo de este principio.
3.3 La solidaridad y los fines del Estado
En buena medida, las finalidades del Estado nación que aparecen sistematizadas a principios del siglo XX, y que hoy son universalmente admitidas como elemento de primer orden de todos los Estados del mundo, traspasaron el individualismo
pregonado durante el proceso revolucionario del siglo XIX. Es oportuno mencionar
que ligados a la idea, en el ámbito interno de los Estados, de superación de las desigualdades sociales como factor de unidad nacional, fue yendo paralelo un sentido
nuevo de solidaridad que exigió una imposición de efectividad a las normas constitucionales que consagran derechos universales, inalienables e necesarios para mantener viva la llama de la dignidad humana.
Por otra parte, en el ancho campo internacional, la solidaridad y los fines del
estado se complementan, abriendo camino a los procesos de integración sobre la
base de un cambio comercial más o menos equivalente (en dependencia de condiciones particulares) y del respeto a la autodeterminación de los pueblos.
De esa manera, la libertad, la igualdad y la solidaridad, debidamente armonizadas, se contraponen en la esfera constitucional a cualquier reducción del sentido
auténticamente democrático que pueda tener el régimen político.
Esto porque la democracia supone condiciones mínimas que tienen raíces en
la efectividad de estos tres pilares que fundamentan una política interna e internacional de paz, basada en la tolerancia, en contraposición a una de guerra; un protagonismo autónomo y participativo de la sociedad civil, en contraposición a la exclusión; por fin, una aceptación de creencias y valores plurales, en contraposición a una
singularidad artificial y políticamente egoísta.
15 Contrato Social. Barranquilla. Norte. 1980. P. 55.
16 Algunas constituciones, como por ejemplo, la de Argelia, consagra en el artículo 41: “El Estado asegura la igualdad de todos los ciudadanos suprimiendo los obstáculos de orden económico, social y cultural que limitan de
hecho la igualdad entre los ciudadanos, entraban el desarrollo de la persona humana e impiden la participación efectiva de todos los ciudadanos en la organización política, económica y cultural”
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En la armonía de esos tres factores y la efectividad de estas condiciones se encuentra la base de la felicidad de los seres humanos. Y a eso, nuestros pueblos no
pueden renunciar en su camino por la senda del constitucionalismo.
3.4 El elemento material
El elemento de orden material, en nuestra exposición, consiste en las condiciones infraestructurales que sirven de soporte al desarrollo de la libertad, la igualdad y la solidaridad y de las cuales depende, en gran proporción, la efectividad de
estes factores
La pregunta que más atormenta en este acápite puede sintetizarse en si es
posible hacer depender la infraestructura económica, esto es, el modo de producción de los Estados, y recordemos que estamos en América Latina, tratando
de Estados que arrastran consigo la marca del subdesarrollo, al elemento normativo constitucional. En otras palabras, a un contenido económico expuesto en la
constitución escrita.
La tesis de que la economía subordina la efectividad de la Constitución, puede ser contestada diciendo que a un momento anterior de la Constitución, hubo
una modificación política, fruto en la mayor parte de los casos, de un momento económico singular. Después, la Constitución determina la economía. Al fin y al cabo,
las constituciones regulan la forma de propiedad y con ello interfieren directamente en la determinación del modo de producción
No es posible decir que la Constitución regule a tal punto la economia que
inhiba el desarrollo de las fuerzas productivas de un Estado, pero tampoco hay
como sostener un planteamiento económico sin respetar las reglas del juego constitucionalmente expresas por el poder constituyente.
Los grados de concentración del capital en los diversos estados de América Latina fueron, de alguna manera, atenuados por el constitucionalismo, aunque, la verdad sea dicha, la forma de producción estipulada en la constitución, esté desvirtuada por los hechos más recientes.
El esquema llamado a cumplir una función dinámica que conduzca al progreso social y que se aspira materializar combina un sector público desarrollado, que
tiene como fundamentos el control popular sobre la gerencia de los recursos públicos y la propiedad pública; la tutela estatal de las cooperativas y el estímulo al sector privado para que, regulado constitucionalmente, juegue un papel positivo en la
economía nacional.
Infelizmente, a la globalización de estilo neoliberal parece solo interesarle el
lucro obtenido en función de la reproducción del capital especulativo, lo que impide un margen de inversiones mayor en el sector productivo de los Estados del área
latinoamericana. La manera de regular la inversión extranjera es asunto prioritario
para el constitucionalismo de América Latina de comienzos del siglo XXI.
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La superación del desempleo y el subempleo, la creación de espacios para una
participación de los hombres y mujeres, en igualdad de condiciones, en el terreno
económico, es tarea sin la cual no es posible hablar hoy de efectividad constitucional en este sector del planeta.
3.5 El elemento orgánico
En el plano de la estructura estatal, los estados de América Latina presentan
una tradición republicana cuanto a la forma de ejercicio del poder, lo que conlleva
a una práctica de control de la gestión de los recursos públicos que merece una prudente evaluación, que no es posible realizar por el momento. Nos basta, por ahora,
por señalar la existencia de mecanismos de control, como los Tribunales de Cuentas en Brasil y las Contralorías Generales de la República, en Colombia.
Lo que, a nuestro juicio, merece ser destacado, es que en lugar de una mero
control numérico-legal, hoy el control es de gestión y de resultados, de manera que
se evalúan la eficiencia, la equidad, la economía y los costos en el trabajo del administrador público. Esto es, sin duda, un avance sobre el contenido del control.
Sin menoscabar un análisis precioso sobre el ejecutivo y el legislativo de los
Estados de América Latina, solicitamos a los lectores el permiso para ingresar donde creemos puede estar concentrado uno de los problemas más agudos de nuestra
organicidad democrática. Nos referimos al problema de competencias cuanto a la jurisdicción constitucional.
En estados como Colombia, desde 1910, la Corte Suprema de Justicia mantenía una función trascendental: la de ser guardiana de la Constitución Política. Declaraba, entonces exequibles o inexequibles las leyes o decretos acusados, en virtud de
una acción pública, de contradecir la Constitución.
Con la aparición de la jurisdicción contencioso-administrativa, hoy integrada
por el Consejo de Estado y los tribunales administrativos departamentales (Art. 237,
núm. 1 y C.C.A., Art.82), se adscribió a esta el control de legalidad de los actos administrativos.
Mas, la Constitución Política de Colombia en 1991, consagró la figura de la
Corte Constitucional.
Según Henao Hidrón, las razones que respaldaron la decisión de crear este
mecanismo fueron, entre otras, las siguientes:
“El ejercicio de la función de control jurisdiccional de la Carta Política debe tener en consideración no solamente los aspectos jurídicos sino también políticos, si desea ser verdaderamente integral
e interpretar los altos intereses del Estado y de la sociedad. Por consiguiente, los magistrados encargados de esta tarea deben ser fruto de la participación equilibrada de las tres ramas del poder pú-
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blico y no del sistema de ‘cooptación’, implantado en Colombia
por el plebiscito de 1957 para las corporaciones judiciales del
orden nacional, además con el complemento de la vitalicidad
en el ejercicio de los cargos; dicho control debe estar a cargo de
especialistas de derecho público“.
Así, la Corte Constitucional de Colombia está integrada por nueve magistrados, conforme la ley 5a de 1992, arts, 317 a 319, electos por el Senado de la
República para un periodo de ocho años, de sendas ternas que le presentan el
Presidente de la República, la Corte Suprema de Justicia y el Consejo de Estado.
En otros Estados de América se continúa discutiendo la posibilidad de
creación de la Corte Constitucional. En la República Federativa de Brasil, por
ejemplo, el proceso constituyente de 1988 arrojó como resultado el fortalecimiento del Supremo Tribunal Federal, que concentra las competencias de un
control directo con acciones propias y como la última instancia de un control
posterior que puede ser provocado por cualquier ciudadano en el curso de cualquier proceso.
Los modelos de control de la constitucionalidad de normas que deben respeto a la ley suprema pueden y deben ser discutidos a la luz de las experiencias
y tradiciones constitucionales de cada pueblo. Esto implica recoger con dedicación y respeto el patrimonio que en materia de decisiones se forja día a día por
nuestros jueces y tribunales e un ejercicio que aun está por ser realizado en
América Latina.
Tenemos la seguridad de que un estudio de tal magnitud puede traernos
lecciones de valores incalculables en materia de efectividad de los derechos fundamentales consignados en los diplomas constitucionales.
CONCLUSIÓN
Sin duda que después de estas líneas queda la impresión de que muchas cosas pueden todavía ser dichas sobre tema tan complejo e importante para el fortalecimiento de los estados de derecho de Latinoamérica.
Como previamente aclaramos, nuestra intención consiste, apenas, en abrir el
debate sobre el ser y el deber ser constitucional en este sector del mundo. Acontece que la tarea implica analizar pedagógicamente varios tipos de elementos, además
del desafío de sintetizar experiencias de diversos pueblos.
Hay una necesidad de fortalecer el contenido social de las normas constitucionales en el debate jurídico. Hay que redimensionar el papel protagónico del sujeto
constitucional, del elemento del pueblo que debe comenzar a “tomar parte” de la
dirección de su polis. Hay que redefinir nuestra posibilidad económica y trabajar por
el perfeccionamiento del sistema político.
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Cada una de esas necesidades constituye un desafío. Colocamos, apenas, los
puntos que creemos merecen una discusión mayor y tan solo esperamos haber motivado al lector a intentar acompañarnos en esta caminata por un constitucionalismo cada vez más auténtico, renovado y especialmente vivo.
Pietro Lora Alarcón
Mayo de 2003
Notas para una biografía intelectual
de Hans Kelsen
Carlos María Cárcova
Prof. Titular Ordinario de Filosofía del Derecho da Universidad de Buenos Aires
Febrero de 2003
1.
EL JURISTA DEL SIGLO XX
Leandro Konder1, el inteligente cientista político brasileño, sostiene la tesis de
que Marx es un pensador de entresiglos, porque algunas de sus ideas han quedado
ancladas en el siglo XIX; por ejemplo, las referidas a futuras transformaciones revolucionarias que preveía sucederían en términos de días y semanas. Claramente, era
esa la visión de una sociedad más simple, más antigua, más elemental en la estructura de las relaciones socio-políticas y económicas que la constituían. Algunas otras
de sus ideas, en cambio, marcaron todo el derrotero del siglo XX, influyeron -bien
o mal- en la concreción del socialismo realmente existente y burilaron, críticamente, las transformaciones fundamentales del capitalismo maduro. Otras, finalmente,
han pasado a ser parte inescindible de la cultura occidental y fundamentan aspiraciones emancipatorias, presentes en el siglo XXI.
Un razonamiento homólogo, podría intentarse respecto de Kelsen y de sus
ideas fundamentales. La longevidad de aquél y la vigencia a lo largo de todo el siglo
XX de estas últimas, han transformado parte de sus aportaciones, en adquisiciones
de la teoría jurídica virtualmente definitivas. Otras, a la inversa, no han soportado el
1 Konder L. “O futuro da filosofía da filosofía da práxis”. Ed. Paz y Terra, Sao Paulo, 1992.
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transcurso del tiempo, las modificaciones radicales de los paradigmas científicos y
de los escenarios en donde se discuten hoy racionalidad, fundamentación, legitimidad, etc. Sin embargo, dos cuestiones deben ser tenidas necesariamente en cuenta,
al tiempo del balance. En primer término, que el siglo XX, como nunca antes en la
historia de la humanidad, registró y condensó las mayores transformaciones, las más
grandes innovaciones científico-tecnológicas, los más variados y repentinos cambios
epocales, las gestas luminosas de los hombres para construir sociedades mejores y,
al mismo tiempo, las más crueles atrocidades. De todo ello, Kelsen fue lúcido testigo y honesto protagonista. En segundo término que, si es posible pensar en la actualidad el derecho, sea como práctica social estilizada o como conocimiento acerca de esa práctica, desde una perspectiva distinta y superadora de la tradición por él
forjada, ello se debe a que esa tradición ha abierto el camino, elucidando problemas
seculares y construyendo categorías de análisis insustituibles
Como dice Juan Ramón Capella: “...basta mirar el estado de la ciencia jurídica anterior para comprender que era un gigante.” El jusfilósofo catalán culmina
con palabras no menos elocuentes el brillante ensayo crítico que diera contenido a
su conferencia en la Univ. Autónoma de Barcelona, en la sesión académica en homenaje a Kelsen, organizada con motivo del fallecimiento de este último: “...Y si los juristas del siglo XX pueden ver más lejos que él, es, como diría Bernardo de Chartres, porque están montados sobre sus hombros.”2
Conviene este explícito reconocimiento, para evitar las confusiones a que
frecuentemente da lugar cualquier consideración crítica respecto del gran jurista
de Praga. Tanto la teoría, como la actitud de su autor, son profundamente antiescolásticas, sin embargo, proliferan por aquí y por allá, panegiristas y detractores,
parejamente incapaces de un juicio objetivo que, atento el tiempo transcurrido
desde el momento en que los núcleos conceptuales de su teoría pura del derecho
fueron expuestos, no puede ser hoy, sino, un juicio crítico. Un juicio que se haga
cargo, a un tiempo, de los originales aportes, de los esclarecimientos y rupturas
que el pensamiento de Kelsen ha implicado, cuanto de las novedades, de los desarrollos y de las problemáticas alternativas, propuestas por la filosofía social y jurídica, la teoría del conocimiento, la filosofía de las ciencias, la epistemología, etc.
que, actualmente, lo exorbitan. Incluida la propia filosofía del Círculo de Viena,
que Kelsen conoció y frecuentó, ya como intelectual maduro, y que no influyó de
manera significativa en su pensamiento, el que permaneció, substancialmente, ligado al kantismo y al neokantismo.3
Nuestro personal punto de vista se ha autonomizado progresiva y críticamente del suyo. A pesar de ello, hace más de treinta años que venimos estudiando y en2 V. “Materiales para la crítica de la filosofía del Estado”, Ed. Fontanella, Barcelona, 1976
3 conf. Warat, Luis, “Los presupuestos kantianos y neokantianos de la TPD”, en “El Neokantismo en la filosofía del Derecho”, Rev. de la Univ. de Valparaíso, Nº 20, Chile, 1982.
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señando a Kelsen, porque nos ha parecido y nos sigue pareciendo imposible, hacer
inteligible el rol del derecho en la modernidad y el de la teoría que lo expresa, sin
una seria información acerca de sus ideas. De todas sus ideas, y no solo de las que
habitualmente se estandarizan a partir de unos pocos textos canónicos, en una operación que es a veces pereza y a veces manipulación.4 Porque Kelsen vivió muchos
años, noventa y dos para ser exactos y, más allá de conservar siempre una enorme
coherencia, no se negó a sí mismo la posibilidad de cambiar. La suya fue una teoría
viva, en permanente y polémica reformulación. Rearticulando el argumento, para
ampliarlo o restringirlo, criticarlo o superarlo. Como prueba de ello, conviene recordar que, a los 80 años, fue capaz de modificar radicalmente su concepción acerca de
la naturaleza epistemológica de la Norma Fundamental, que constituyó uno de los
núcleos fundamentales de su teoría. Volveremos más adelante sobre esta cuestión.
Si él fue implacablemente crítico, aún consigo mismo, cabe hacerle el homenaje de la crítica. Algunas de sus ideas que la justifican, serán objeto de consideración en los párrafos que siguen. Antes, detengámonos brevemente en los datos biográficos.
2.
VIDA Y OBRA.
Hans Kelsen nació en Praga, en 1881. Estudió en Heidelberg y más tarde en Berlín, alcanzando sus grados académicos en Viena, con una tesis cuyo tema fue la teoría
del Estado en Dante Aligieri. En 1910, cuando contaba 28 años de edad, escribió el trabajo que constituyó el cimiento de la teoría que desarrollaría durante el resto de su existencia, los famosos “Hauptproblem der Staatsrechtslehere” (Problemas capitales de la
teoría del derecho público). Entre 1911 y 1930 enseñó en la Univ. de Viena, derecho público y filosofía del derecho. En 1920, el gobierno le encomienda la redacción del proyecto de Constitución de la República de Austria y desde ese año hasta 1929, integra el
Tribunal Supremo Constitucional. Su formación filosófica inicial abreva de manera fundamental en el kantismo y el neokantismo de la Escuela de Marburgo pero, en los años
antes indicados, vive con intensidad el clima de época de la primera postguerra, signado por la emergencia de un pensamiento filosófico y científico brillante y original, cuyo
epítome sería el famoso Círculo de Viena, presidido por Moritz Schlik y en donde se cruzaría con intelectuales de la talla de O. Neurath, R. Carnap, K. Gödel, Ph. Frank, F. Wais4 Aparte de los textos jurídicos centrales, como las dos versiones de “La Teoría Pura del Derecho”, 1934/1960, “La
Teoría Gral. del Derecho y del Estado”, “La Teoría Gral. de la Normas”, “Esencia y valor de la democracia”, “Qué
es la Justicia?” y otros, es interesante conocer obras como “Sociedad y Naturaleza”, “La Teoría política del socialismo”, o “El problema del parlamentarismo”. Otros ensayos, aun más heterogéneos como “Dios y el Estado”, “El
Alma y el derecho” o “El concepto de Estado y la psicología social”, pueden encontrarse en un excelente volumen
denominado “EL OTRO KELSEN”, (1989) UNAM, México, cuya compilación estuvo a cargo de Oscar Correas. Figura allí, además, una completa bibliografía kelseniana, preparada por el Director del Instituto “Hans Kelsen”, de
Viena, Dr. Robert Walters.
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mann y el joven Wittgenstein. Era el ambiente donde nacía el psicoanálisis, con la obra
de S. Freud, que Kelsen conoció y sobre la que escribió (v. “El concepto de Estado y la
psicología social, con referencia a la teoría de las masas de Freud” en “El otro Kelsen”, ref. nota 1) y con cuyo autor mantuvo cordiales relaciones. Como se ha sostenido
antes, las influencias filosóficas del Círculo de Viena y del positivismo lógico, no tuvieron
gran relevancia en su pensamiento. Recién en la segunda versión de su Teoría Pura del
Derecho, publicada en 1960, se aprecia el tratamiento y consideración de algunos temas
propios de esa corriente. En su obra póstuma, “Teoría de las normas”, publicada en
19795, sobre la base de la ordenación de sus últimos trabajos realizada por su amigo, discípulo y albacea intelectual Rudolf Metall y supervisada por los directores del Instituto
H. Kelsen de Viena, Profs. K. Ringhofer y R. Walter, salda cuentas con el postivismo lógico y con las corrientes analíticas. Sostiene la inviabilidad de una lógica de las normas, sobre las que no es posible predicar verdad o falsedad, dado que ellas expresan jucios del
deber ser y no juicios del ser. Una lógica jurídica, afirma, solo puede asociarse a las proposiciones normativas, esto es, enunciados descriptivos acerca de las normas, denominados en la primera versión de la teoría pura como “reglas de derecho”.
Los primeros años de la trayectoria académica de Kelsen son muy duros; se
hallan signados por un clima de discriminación racial del que era víctima en su
condición de judío y por penurias económicas y familiares. Pero, a principios de
los años 20, su posición universitaria se ha consolidado y comienza a hablarse en
el mundo de la Escuela Jurídica de Viena que él encabeza, con discípulos como
Alfred Verdroos y Félix Kaufmann. Ese movimiento atrae a estudiantes extranjeros interesados en aprender del “hacedor de constituciones”, entre otros, Alf
Ross, Julius Kraft, Luis Legaz y Lacambra y Luis Recaséns Siches. En ese año de
1920, el maestro publica “Esencia y valor de la democracia”, obra que amplía en
1929. También en 1920, da a conocer “Socialismo y Estado” y en 1925, la “Teoría
General del Estado”. A finales de la década que venimos mencionando, el clima
político se había ensombrecido nuevamente y Kelsen decide alejarse aceptando
una cátedra en la ciudad de Colonia, desde donde realiza periódicas incursiones
docentes a Ginebra y La Haya, para enseñar derecho internacional. En 1933, debe
exiliarse de Alemania pero, movido por su deseo de permanecer en Europa, acepta en 1936 una cátedra en Praga. Antes, en 1934 ha dado a conocer su obra capital “La teoría Pura del Derecho. Introducción a la problemática científica del
derecho”, en cuya denominación queda esbozado el programa teórico que alienta, construir una ciencia del derecho capaz de alcanzar una autonomía disciplinar
que expulse de su objeto propio los lastres de la metafísica, la axiología y la ideología.
5 Dicha obra ha sido tardíamente traducida al castellano, recién en 1994, por Edit. Trillas, México. Curiosamente,
tampoco ha sido divulgada, ni especialmente estudiada en nuestro medio.
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Cuando en 1939 se inicia la segunda Guerra Mundial, opta por emigrar a EEUU,
aceptando así, antiguas y reiteradas invitaciones. Enseña primero en la New School for
Social Research; luego, en 1941, ingresa como Profesor visitante en Harvard, con el apoyo de Roscoe Pound. Este último, más tarde, le sugiere trasladarse a California para enseñar en la prestigiosa Univ. de Berkeley, donde en 1945 consigue una plaza definitiva y
obtiene la ciudadanía norteamericana.
Pese a sus vicisitudes Kelsen sigue produciendo de manera infatigable. En 1943
publica “Sociedad y Naturaleza”, una obra de enorme importancia, en la que explora
los fundamentos antropológicos de la organización social. En 1945, da a conocer su “Teoría General del Derecho y del Estado”, que resulta un gran compendio de la obra jurídico-política desarrollada hasta entonces y en la que hace más explícitos y más didácticos, los contenidos medulares de su concepción. Al mismo tiempo, polemista inveterado, contesta buena parte de las críticas que distintos autores han realizado de su obra,
en el transcurso de los pasados 20 años. Como se ha mencionado antes, en 1960, a la
edad de 80 años, rescribe su “Teoría Pura del Derecho”. En el prólogo consigna que esa
nueva edición “...presenta una reelaboración completa de los temas tratados en la primera y una significativa ampliación de su campo de estudio.” Y poniendo de manifiesto su lozanía intelectual, párrafos adelante agrega:
“...Tampoco esta segunda edición de la TPD ha de ser considerada
una exposición de resultados definitivos, sino una empresa que ha
menester de ser llevada adelante, mediante complementos y otras
mejoras. Habrá logrado su propósito si es considerada digna de
continuación, por otros, que no por su autor, que se encuentra ya
al fin de sus días” (de la edic. en español de la UNAM. Traducción
de R. J. Vernengo, 1979)
El propio Kelsen prueba su aserto al reformular sus ideas respecto de la Norma Fundamental, pocos años más tarde, como más arriba se ha señalado.
Viviría doce años más y tendría tiempo para escribir otros ensayos y dejar preparados los materiales correspondientes a su obra póstuma, ya mencionada, “La teoría general de las normas”.
A los 92 años fallece, en Berkeley, el día 19 de abril de 1973.6
6 Se han mencionado en el texto las obras más importantes, en tanto piezas constitutivas de la concepción general del
autor, respecto de los problemas del derecho y del estado. Debe recordarse, sin embargo, que sus publicaciones son
más de seiscientas, traducidas a más de veinticuatro lenguas. No pueden dejar de evocarse, además, su “Teoría Comunista del Derecho y del Estado”, en la que discute con el marxismo soviético; sus escritos sobre la democracia y el socialismo, en los que discute con los socialdemócratas alemanes; sus ensayos sobre la obra de Platón reunidos en “La ilusión de la Justicia”; sus obras sobre derecho internacional, etc. Cuando visitó la Argentina en 1949, Ernesto Hermida y
Hugo Caminos prepararon en su homenaje, una completa bibliografía que conoció una edición de TEA, ya inhallable.
Como se señala en nota anterior, existe en castellano, una bibliografía completa elaborada por Robert Walter.
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3.
LAS GRANDES CONTRIBUCIONES.
Ha sido dicho ya y vale la pena reafirmarlo, que hay una historia del conocimiento jurídico que es anterior a Kelsen y una historia nueva y distinta, a partir de
su obra. Que ella constituye una ruptura epistemológica, como diría Bachelard, o
una revolución científica, como diría Kuhn, respecto de las concepciones que la precedieron. (v. Prólogo de Carlos Cossio a la primera traducción al castellano de “La
TeoríaPura del Derecho”, traducida por Jorge Tejerina y editada por Ed. Losada
S.,A., BsAs., 1941). Pretende fundar una ciencia del derecho autónoma, aun cuando
su objeto carezca de idéntica autonomía. El primer paso consiste en un recorte metódico: solo las normas jurídicas, enunciados de naturaleza coactiva a través de los
cuales se amenaza con una sanción la conducta que se quiere evitar, constituyen ese
objeto. Se aísla así al conocimiento jurídico de valoraciones éticas o políticas. El segundo paso, siguiendo a Hume y a Kant, implica considerar a las normas no ya como
hechos sociales, sino como juicios del “deber ser”, distintos y distantes de los juicios
del “ser”. De este modo las normas no valen por su existencia, en principio, sino por
su significación. La validez es su peculiar forma de existir y la validez general del conjunto de normas radica, no en un hecho, sino en una norma que no es norma positiva, sino presupuesta. Premisa, punto de partida, axioma o hipótesis fundamental,
como el autor la denomina. Creación del científico, que necesita presuponerla para
dar unidad y fundamentación al ordenamiento jurídico en su conjunto. Sobre estas
bases Kelsen produce una reconstrucción general del modo de operar del derecho.
Análisis estático en la descripción de la norma y sus categorías fundamentales: sanción, antijuridicidad, deber jurídico, responsabilidad; análisis dinámico, respecto de
las relaciones entre normas. El modo en que ha tratado los conceptos centrales de
una teoría general del derecho, no se discuten ya. Su esfuerzo por destruir lo que
llamó los falsos dualismos, implicados en distinciones tradicionales entre derecho
natural y derecho positivo, derecho y estado, derecho público y privado, derecho
objetivo y subjetivo, fue eficaz y contundente. El esclarecimiento de la noción de
personalidad jurídica y la crítica a las visiones antropomórficas; la interpretación del
derecho como actividad constitutiva de sentido por parte de los jueces, constituyen
todos, aportes singularísimos y en buena medida, adquisiciones no revisadas hasta
el presente.
4.
ALGUNAS APORÍAS.
Este pensamiento crítico y reconstructivo abrió camino a una excepcional
producción jusfilosófica que, algunas veces recorría un sendero similar aportando
nuevos elementos o ensanchando horizontes (Ross, Hart, Raz, entre muchos más);
otras veces, afinando o haciendo más profundo y riguroso el argumento contradictorio (jusnaturalistas modernos, neocontractualistas, comunitaristas, críticos, etc.)
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La naturaleza de este texto, impide un desarrollo medianamente razonable de
las críticas que hoy pueden formularse a algunas de las ideas de Kelsen. Me limitaré, entonces, a breves referencias respecto de cuestiones centrales.
Al concebir al derecho como un fenómeno de substrato puramente normativo y al conocimiento que de él se ocupa, como conjunto de enunciados del deber
ser, Kelsen se desembaraza no solo de la metafísica, sino también de las dimensiones históricas, sociales, éticas y políticas del derecho, incurriendo en un improductivo reduccionismo. El radical deslinde que propone entre facticidad y validez, le exige, a fin de preservar coherencia, desplegar argumentaciones forzadas que, más que
conseguir el propósito que las anima, consiguen poner en evidencia su propia debilidad. Esto ocurre cuando funda la validez de la sentencia contra legem en lo que
llama la norma alternativa. Sostiene que toda norma tiene un contenido disyuntivo,
dice: “debe ser x o lo que resuelva el juez”, solo que el segundo término de este disyunto, está implícito. No menos curiosa es su explicación del valor negativo de la
costumbre. Es claro que muchas veces una norma pierde eficacia por falta de aplicación (vg. el duelo caballeresco como delito, al menos en nuestro país); en esos casos, una costumbre negativa, esto es, contraria al contenido de la norma, deja a ésta
sin efecto, la deroga. Kelsen, no puede admitir la relación entre hecho y norma de
modo que sostiene que la costumbre, en tales casos, crea una norma consuetudinaria de contenido derogatorio (desuetud), forzando una vez más por un prurito formal, una explicación que solo puede ser elucidatoria si da cuenta del aspecto sociológico implicado en la cuestión. Es que la facticidad, la realidad del comportamiento humano y su histórica materialidad, acecha permanentemente y se cuela, se infiltra al interior de la majestuosa abstracción construida por Kelsen, a pesar de sus
muy denodados esfuerzos por evitarlo. Otro ejemplo de ello lo constituye su teoría
de la interpretación, en la que la voluntad del juez que elige una de las múltiples opciones que la norma le brinda, en tanto “marco abierto de posibilidades”, y que es
un fenómeno ciertamente factual, aparece poseyendo un carácter constitutivo en el
proceso de producción de normas individuales. Otros muchos ejemplos podrían
considerarse, pero el que resulta de mayor interés por las consecuencias teóricas
que posee, aun inexploradas, y por que revela una vez más, la honestidad intelectual de nuestro autor, es el de la Norma Fundamental o Norma Básica, según distintas traducciones. Como se ha dicho antes, Kelsen concibió la idea de que el fundamento de validez y el principio de unidad de un orden jurídico nacional radicaba en
una “norma”, que no era histórica ni positiva, que no era puesta, como todas las restantes que de ella recibían validez, sino supuesta. Supuesta por el científico del derecho, a la manera de una categoría cognitiva, que él denominó en la primera versión de su teoría “hipótesis gnoseológico trascendental” y en obras posteriores “hipótesis básica”. Se trataba, sostenía, de una norma, porque solo una norma podía
constituir el fundamento de validez de otra norma. Su contenido material decía:
“debe ser lo ordenado por el legislador originario”. Subsistente la férrea distinción
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faculdade de direito de bauru
entre el mundo del ser y el mundo del deber ser, resultaba incoherente, en efecto
atribuir al hecho de la fuerza, de la victoria militar o de la ocupación, un carácter jurígeno. En 1960, en su segunda versión de la teoría pura, Kelsen había afirmado con
referencia a la Norma Fundamental, “...es absolutamente preciso que esta hipótesis
sea una norma.” Sin embargo, cuatro años más tarde, escribe un ensayo que denomina “La Función de la Constitución” 7, en el cual corrige su concepción de toda la
vida. Si la norma debe considerarse como el sentido objetivo de un acto de voluntad, vendrá a decir ahora, el enunciado que otorga validez a la primera norma producida por el legislador originario no puede, ella misma, ser una norma. En tal caso,
debería, ser el sentido objetivo del acto de voluntad de alguien distinto del legislador originario. Pero, entonces, el considerado no sería el primer legislador. Ese
enunciado es pues una ficción, un enunciado falso y contradictorio, en el sentido de
H. Vahinger (El Tratado del ´como sí´). Dice Kelsen (op. cit.):
“En contra de la suposición de una norma establecida no por un
acto real de voluntad sino presupuesta solamente en el pensamiento jurídico, se puede hacer valer, que una norma puede constituir
únicamente el sentido de un acto de voluntad, no de un acto de
pensamiento. Que existe una correlación esencial entre deber (sollen) y querer (wollen). Se puede hacer frente a esta objeción solamente reconociendo que junto a la norma básica pensada, también debe ser pensada una autoridad imaginaria, cuyo acto de voluntad -fingido- encuentra su sentido en la norma básica. (...) Según Vahinger una ficción es un recurso del que se vale el pensamiento cuando no logra alcanzar su objetivo con el material
dado. El objetivo del pensamiento en el caso de la norma básica es
fundamentar la validez de normas que configuran un orden moral o legal positivo, o sea interpretar el sentido subjetivo de los actos que establecen estas normas, como su sentido objetivo. Pero esto
no significa, interpretarlas como normas válidas y a los actos
como normativos. Esta meta se alcanza únicamente por medio de
una ficción. Nótese, por lo tanto, que la norma básica en el sentido de la filosofía del como si vahingeriana, no constituye una hipótesis -como yo mismo la he caracterizado algunas veces- sino
una ficción, que se diferencia de una hipótesis por el hecho de que
la acompaña o debería acompañarla, la conciencia de que no
responde a la realidad” (p. 86).
7 Publicado originariamente en Forum, año XI, 1964, pag.583 y ss. Fue traducido al castellano e incluido en la antología “Derecho y Psicoanálisis”, E. Marí et.al., Edit. Hachette, BsAs., 1987.
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Esta novedad conceptual dice mucho de las calidades del pensador austríaco,
de su vitalidad, de su capacidad autocrítica, de su honestidad intelectual. Pero, al
mismo tiempo, abre un muy interesante espacio de reflexión y de reformulación de
la teoría, que aun no ha sido explorado. Baste señalar que, si el fundamento del orden es una ficción, la tesis de que el ejercicio del poder se legitima en la sociedad
occidental mediante la movilización del imaginario social, esto es, mediante la operatividad del discurso de la ideología, retoma la importancia crítica que muchos pensadores le han atribuido.
Sería necesario poner en crisis otras ideas fundamentales de la teoría kelseniana, pero me temo que en tal caso estas notas no sean publicadas por violentar los
parámetros
habituales y preestablecidos de la publicación. Me limitaré a mencionarlos y
remitir al lector interesado a los materiales pertinentes. Kelsen sostiene una posición emotivista respecto de la cuestión de la justicia y de los valores, que rechaza
cualquier posibilidad de diálogo racional acerca de esos temas. Dicha posición está
fundada en una concepción muy estrecha y reductiva del concepto de ciencia y del
concepto de racionalidad. En el prólogo a la edición de “¿Que es justicia”? de Planeta-Agostini (1993) Albert Calsamiglia elaboró un exhaustivo estudio preliminar sobre
ese tópico, al que remito al lector interesado. En relación con su relativismo ético y
su idea de democracia contrapuesta a la de J. Schumpeter, así como sus polémicas
con el marxismo, existe un interesante –y también muy polémico - trabajo de Juan
Ruiz Manero, en una publicación de Ed. Debate, con textos clásicos de Kelsen, denominada “Escritos sobre la democracia y el socialismo”, Madrid, 1988.
Por último, nuestro autor ha sido de los pocos juristas que ha empleado el
concepto de ideología, al que atribuyó singular importancia y usó profusamente. En
el desarrollo de su obra, polemizó durante largas cuatro décadas con el marxismo;
con el de Marx y Engels, pero más decididamente con el de los juristas soviéticos
como Pashukanis o Stuchka, o con el del austriaco Karl Renner. De esas discusiones,
resulta que conocía perfectamente las filigranas tejidas alrededor del tema de la
ideología, encontrándose en sus trabajos, en especial “La Teoría Comunista del Derecho y del Estado” (1957), citas de autores especializados, como Manheim o Barth.
Sin embargo, la idea que él mismo tiene del tema, es notoriamente insuficiente y reductiva.
Porqué esa idea es insuficiente y reductiva? La respuesta es que Kelsen identifica el concepto de ideología, con el de mentira consciente, con el de engaño premeditado, perdiendo así de vista sus usos más grávidos y significativos. Se trata para
él, de una descripción no objetiva de la realidad, o del objeto de conocimiento, influida por juicios de valor subjetivos, con la intención de ocultar ese objeto, de transfigurarlo o de desfigurarlo (v. 1960, pag. 64) “Todas las ideologías -dice- emanan de
la voluntad, no del conocimiento. Su existencia está ligada a ciertos intereses o
más exactamente a intereses diversos al de la verdad, cualesquiera sean, por otra
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parte, su importancia o su valor. Pero el conocimiento concluirá siempre por desgarrar los velos con los cuales la voluntad envuelve las cosas.” (ibídem). Es decir,
los velos que la ideología tiende son siempre deliberados. Al contrario, la problemática filosófica de la ideología de Marx a Manheim y más modernamente, Althusser,
Thompson, Schaff, Eagleton, Zizëk y cientos más, resaltan su carácter inconsciente,
el tenor de relación imaginaria del sujeto con las condiciones materiales de su existencia, generada en los procesos de socialización propios de sociedades históricamente escindidas.8
Para cerrar estas notas conviene mencionar que Hans Kelsen, tuvo tantos críticos cuanto gravitantes fueron sus ideas durante todo el siglo XX. Como él afirmaba, para argumentar acerca de la objetividad de las misma, recibió ataques a derechas e izquierdas. A éstas les dedicó más estudios y mayor aspereza. Atendió menos
las críticas de la derecha, producidas, por lo general, por un pensamiento ultramontano y sectario que conocía poco y mal su obra. Un ejemplo, casi paródico, es el de
los juicios que le dedica F.A. Hayek, a quien Roberto J. Vernengo ha refutado de manera contundente.9
Es cierto que la teoría kelseniana, al excluir todo juicio de valor, aun el que
pueda construirse comunicativamente en un proceso de intercambio dialógico, parece fincar la viabilidad social de un orden dado, exclusivamente en su eficacia, lo
que conlleva el riesgo de que cualquier forma de ejercicio del poder social resulte
legitimada. No es menos cierto, que la formulación de la teoría y la rigurosidad de
su autor, constituyeron un ariete para desmoronar mitos y esencialismos, funcionales para encubrir despotismos, que sus ideas de libertad y tolerancia democrática,
siempre repudiaron.
8 He tratado la cuestión en un trabajo juvenil “La idea de ideología en la Teoría Pura del Derecho” (Ed. Cooperadarora, BsAs., 1973) y mucho más exhaustivamente en “La Opacidad del Derecho”, Cap. 3, Ed. Trotta, Madrid, 1998.
9 V. “La crítica del neoliberalismo al positivismo jurídico kelseniano” en “El neokantismo en la filosofía del derecho” Rev. de la Universidad de Valparaíso, Chile, Nº 20, 1982.
La víctima y los delitos relativos a la
prostitución (El caso de España)*
Rogelio Barba Álvarez
Doctor en Derecho y Especialista en Criminología por la
Universidad Complutense de Madrid
I.
LA VÍCTIMA.
Se debe tener en consideración que las definiciones que de víctima otorgan
tanto la ciencia jurídico-penal como la victimología son distintas, por lo cual se
puede originar diferente interpretación al momento de definir las consecuencias
jurídicas del delito, y al elaborar una política criminal al caso concreto, lo que nos
conduciría a graves confusiones. También a la hora de definir el bien jurídico protegido, pues la norma penal sólo podrá tutelar bienes de carácter imprescindibles
y necesarios para la absoluta y adecuada convivencia en sociedad, bienes jurídicos que la victimología no tiene en cuenta en el momento de definir su objeto de
estudio.
* Quiero agradecer, la valiosa cooperación y amabilidad que nos brindó el Cuerpo Nacional de policía, por las entrevistas concedidas y llevadas acabo al personal de la Comisaría General de Extranjería y a la Comisaría General de
Policía Judicial, en especial a D. SANTIAGO SÁNCHEZ CASILLAS, Inspector jefe del Cuerpo Nacional De Policía. Así
mismo agradecer a la Fundación Proyecto Esperanza, en especial a Aurelia Agredano Peréz, por las mismas atenciones, así mismo la inestimable colaboración y camadería que pase durante mi estancia en el Departamento de Derecho Penal de la Universidad Complutense de Madrid y del Instituto Universitario de Criminología, con mis colegas:
Roberto Ochoa, Nacho Santamaría, Virio Guido, Carlos Cálix, Orlando Gómez, Luiz Otavio Oliveira, Manuel Álvarez,
Carmen Bercedo, Benito, y un profundo agradecimiento a mis maestros: Dr. Manuel Quintanar y Dr. Manuel Cobo
Del Rosal.
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Para la ciencia penal la víctima viene a ser el sujeto pasivo del delito siendo titular del bien jurídico protegido1, la palabra sujeto pasivo utilizado por la doctrina a encontrado otros sinónimos que han intentado suplir a éste pues es muy común utilizar
el término víctima para hacer referencia al sujeto pasivo del delito, así lo consideran
COBO/VIVES, cuando mencionan que es preciso distinguir entre sujeto pasivo del delito y sujeto pasivo de la acción aunque puedan normalmente coincidir ambos2, opinión aceptada por la doctrina al estimar que la víctima se encuentra en la Ley penal y
se puede desglosar como sujeto pasivo del delito y titular del bien jurídico vulnerado3
identificado por una conducta típica, antijurídica y culpable4, el Código Penal de 1995
utiliza la palabra víctima en los artículos 21.5, 22.4, 22.5, 114, 143.4, 148.3 165, 177,
180.3, 182.2, 181.3, 184, 191.1, 195.3, 197.5, 235.4, 242.2, 250.6. y 7, 263, entre otros,
hace mención indistintamente de otros vocablos que intentan sustituir al sujeto pasivo
del delito así pues tenemos al ofendido, agraviado y perjudicado5.
La palabra perjudicado se usa normalmente en las leyes penales para designar
a todos aquellos que han sufrido personalmente las consecuencias del delito, lo cual
surtirá efectos estrictamente en lo relativo a la responsabilidad civil ex delito6, en
este sentido MIR PUIG, considera más amplio el concepto de perjudicado, ya que
abarca no sólo al titular del interés lesionado de modo central, por el delito, sino a
todos los que soportan consecuencias perjudiciales más o menos directas, así en el
homicidio la víctima es el sujeto pasivo y sus familiares, los perjudicados7. Así pues
el concepto de perjudicado posee trascendencia a efectos de responsabilidad civil,
que tiene efectos frente a todo aquel que tenga ese carácter.
Para MUÑOZ CONDE y GARCIA ARAN, el concepto de perjudicado es el que
más se aproxima al concepto de víctima que utiliza la victimología, éstos separan del
concepto jurídico penal de víctima como sinónimo de sujeto pasivo y lo utilizan en
un sentido más cercano al de la victimología, asimilándolo como el de perjudicado,
como aquel sobre quien recae los efectos negativos del delito8.
1 COBO DEL ROSAL, M.; VIVES ANTON T. S., op. cit. 331; LUZÓN CUESTA, J. M., Compendio de derecho penal parte general, Duodécima edición, Madrid, 2001, p. 65; CEREZO MIR, J., Curso..., op. cit. p. 74 y ss. CALDERÓN A.,
CHOCLAN J. A., Derecho penal parte general, op. cit. p. 108.
2 COBO DEL ROSAL, M., VIVES ANTON T. S., Derecho penal..., op. cit. p 331, los autores otorgan la definición del
sujeto pasivo del delito como el titular del bien jurídico protegido por la norma en concreto o bien desde otro punto de vista, es el titular del bien jurídico lesionado o puesto en peligro por el delito.
3 HERRERO MORENO, M., La hora de la víctima, Madrid, 1996, p. 332, quien además afirma que la víctima se erige en sujeto pasivo del delito; CANCIO MELIA, M., Conducta de la víctima e imputación objetiva en Derecho penal, Barcelona 1998, p. 220.
4 RODRIGUEZ MANZANERA, L., Victimología estudio de la víctima, México, p. 57.
5 Artículos sobre ofendido ver; 139.3, 155, 191.2, 201.3, 214, 215.3, 639, por agraviado o persona agravada ver; 191,
23, 201.1, 620.3, 621.6, 639. 3era. Y perjudicado ver; 264.5, 109.2
6 TAMARIT SUMALLA, J. M., La víctima..., op. cit. p. 150.
7 MIR PUIG, S., Derecho penal..., op. cit. p. 214.
8 MUÑOZ CONDE F., GARCIA ARAN, M., Derecho penal parte general, Valencia, 1988, p, 280.
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Para ABRAMSHEN, la victimología comprendería el estudio científico de la
personalidad y otorgaría atención especial a los factores pertinentes al desarrollo
emocional y social de la persona o del grupo que resulta víctima de un crimen9.
Para MENDELSHON, víctima es la personalidad del individuo o de la colectividad en la medida en que esta afectada por las consecuencias sociales de un sufrimiento determinado por factores de origen muy diverso, físico, síquico, económico,
político o social, así como el ambiente natural o técnico10. Esta definición que presenta uno de los pioneros de la victimología ha sido acogida por diversos tratadistas
en victimología quien además entiende a la víctima como al sujeto que padece un
daño por culpa propia, ajena o por causa fortuita11.
Las Naciones Unidas, en su declaración sobre principios fundamentales de
justicia para las víctimas de delitos y del abuso de poder, de 29 de noviembre de
198512, llega a la conclusión de dividir en dos grupos, a las víctimas de delitos y a las
víctimas de abuso poder, las primeras que son las que nos interesan se encuentran
en el artículo 1, donde se entenderá por víctimas las personas que, individual o colectivamente, hayan sufrido daños, incluidos lesiones físicas o mentales, sufrimiento emocional, pérdida financiera o menoscabo sustancial de sus derechos fundamentales, como consecuencia de acciones u omisiones que violen la legislación penal vigente en los Estados Miembros, incluida la que proscribe el abuso de poder. En
el número 2 incluye la palabra víctima, a las personas o familiares a cargo que tengan relación inmediata con la víctima en peligro o para prevenir la victimización.
Así mismo esta Organización llego a la conclusión donde se planteó que el término víctima puede manifestar que la persona ha sufrido una perdida daño o lesión,
sea en su persona propiamente dicha, su propiedad o sus derechos, como resultado de la conducta que:
a) Constituya una violación a la legislación penal nacional.
b) Constituya un delito bajo el derecho internacional que constituya una violación a los principios sobre derechos humanos reconocidos internacionalmente.
c) Que de alguna forma implique un abuso de poder por parte de personas
que ocupen posiciones de autoridad política o económica.
La definición de víctima que utiliza la victimología viene siendo más amplia del
que maneja la doctrina jurídico penal, pues esta incluye tanto a los sujetos pasivos
del delito esto es ofendidos y agraviados13, y damnificados14.
9 ABRAHAMSEN, D., La mente asesina, México, 1975, p. 11.
10 MENDELSHON B., La victimología y las necesidades de la sociedad contemporánea, México, 1974, pp. 75 y ss.
11 RODRIGUEZ MANZANERA, L., Victimología..., op. cit. p. 56.
12 Vid. Informe final, A/Conf. 121/22, pfo. 223, p. 159.
13 TAMARIT SUMALLA, J.M., La víctima..., op. cit.
14 SILVA SANCHÉZ, J.M., Innovaciones teórico prácticas de la victimología. VIII cursos de verano en San Sebastián, Universidad del País Vasco, San Sebastián, 1990, p. 77.
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La Ley de ayudas y asistencia a las víctimas de delitos violentos y contra la libertad sexual, Ley 35/1995 de 11 de diciembre, no ha sido ajena a este tipo de conceptos, pues ésta hace mención de dos tipos de víctimas, que son las directas y las
indirectas, las primeras son las que por consecuencia directa de delito llegan ha ser
afectadas por lesiones corporales graves o daños graves a su salud física o mental
(artículo 2), y las víctimas indirectas, entiende esta Ley, al cónyuge del fallecido, a
sus hijos y a los padres del occiso, lo que limita con gran severidad a estas víctimas
como lo pueden ser a los demás parientes cercanos, claro esta que la Ley hace referencia a efectos indemnizatorios, mas que de otro tipo de circunstancia.
Por todo esto llegamos a coincidir en la definición dogmática penal que hace
HERRERA MORENO, al decir que la víctima viene a ser el sujeto paciente del injusto
típico, es decir, las personas que sufren merma de sus derechos, en el más amplio
sentido de la palabra, como resultado de una acción típicamente antijurídica, sin
que sea necesario que el victimario haya actuado culpablemente15. Las víctimas son,
por lo tanto, titulares legitimas del bien jurídico vulnerado, cabe hacer la siguiente
reflexión que puntualmente hace BERISTAIN16, al decir que todo sujeto pasivo es víctima, pero no toda víctima es sujeto pasivo de un delito.
Así llegamos a la conclusión de que víctima y sujeto pasivo, sólo podrán coincidir si la persona que sufre la consecuencia del delito es la titular del bien jurídico
protegido en los delitos relativos a la prostitución del artículo 188 del Código Penal
de 1995. Por todo esto en el presente trabajo consideramos a la persona mayor, menor de edad e incapaz como víctimas y titulares del bien jurídico, del artículo 188,
ésta puede serlo genéricamente cualquier persona, puesto que no se exigen cualidades que especifique al garante del bien jurídico protegido por la norma, que sigue siendo la libertad e indemnidad sexuales, siempre y cuando se cumplan los requisitos exigidos en el tipo.
Para los artículos 187 y 188.4. se exige que la persona sea menor de edad,
esto es menor de 18 años (art. 19 Código Penal establece la minoría de edad), resultando irrelevante que la víctima se encuentre emancipada por razón de matrimonio17, o incapaz, que a su vez se entiende esta cualidad la referida por el artículo 25 del Código Penal que considera a toda persona, haya sido o no declarada
su incapacitación, “que padezca una enfermedad de carácter persistente que le
impida gobernar su persona o bienes por sí misma”, siendo titulares del bien jurídico, indemnidad sexual.
Ahora bien dadas las características del sujeto pasivo en los delitos relativos a
la prostitución nos encontramos con persona mayor y persona menor e incapaz,
15 HERRERA MORENO, M., op. cit. p. 332.
16 BERISTAIN, A., El Código Penal desde la victimología, Madrid, 1997.
17 ALONSO PERÉZ, F., Delitos contra la libertad..., op. cit. p. 116. El autor cita la STS de 6 de abril de 1987, para
afirmar este enunciado.
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para conocer el delito que recae en estas personalidades y desde una perspectiva más real, tendremos que auxiliarnos de la ciencia criminológica apoyados en
la victimología, a la que algunos niegan su carácter de ciencia autónoma18, que
más bien responde a una rama de la criminología a la que estamos de acuerdo,
pues uno de los objetos de estudio de esta ciencia es la víctima y aunque ésta
haya sido olvidada no sólo por la criminología, sino por el derecho penal, hoy
en día se orientan diversas investigaciones jurídico-criminológicas a partir de la
participación de la víctima en el delito, esto es la victimodogmática19.
La victimología forma parte de la criminología pues ésta se ocupa de la víctima como afectada de un delito y su estudio comprende el conjunto de conocimientos desde el punto de vista bio-psico-social y criminológico, relativo a la
víctima, las características personales de ésta, tanto interiores (endógenas)
como exteriores, (exógenas), su conducta y la relación con el sujeto activo, pueden ser en su momento trascendental desde la perspectiva de la criminología y
del derecho penal, pues en la relación víctima-victimario surgirá la configuración
del tipo, el nacimiento del delito, la agravación o atenuación de la pena o la impunidad del delito pues de esta relación depende no tanto el comportamiento
del autor para llevar a cabo el delito, sino de esas características, actitudes y
comportamientos de la víctima.
Reconocer el estudio de la víctima por medio de la criminología es importante para este trabajo pues la criminología como ciencia interdisciplinaria, incardina a la victimología para dar a conocer la naturaleza del delito, que por supuesto la víctima no es ajena, ya que forma un papel relevante en le génesis del
mismo.
La victimología como estudio de la víctima, en los delitos relativos a la
prostitución, se encargara de dar una explicación del fenómeno victimal desde
una perspectiva integral pasando por las tipologías en las que se pueda situarse,
así como los diferentes pasos victimológicos, por los que atraviesa ésta clase de
víctimas, esto es la victimización primaria, secundaria y terciaria, para determinar los programas victimológicos a los que se pueden ajustar las víctimas de los
delitos relativos a la prostitución.
18 TAMARIT SUMALLA J.M., La víctima en derecho penal, Elcano, 1998, pp. 149 y ss.
19 En este sentido se han publicado las obras sobre este tema; TAMARIT SUMALLA, J. M. La víctima en Derecho
Penal, obra citada, SOLÉ RIERA, La tutela de la víctima en el proceso penal, Barcelona, 1997, CANCIO MELIA, M.,
Conducta de la víctima e imputación objetiva en Derecho penal, Barcelona 1998, obra citada, y SILVA SANCHÉZ,
J. M. La consideración del comportamiento de la víctima en la teoría jurídica del delito. Observaciones doctrinales y jurisprudenciales sobre la victimo-dogmática, en La victimología, Madrid, 1993.
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II.
ESPECIALES REFERENCIAS A LAS VÍCTIMAS EN LOS DELITOS RELATIVOS A LA PROSTITUCIÓN, LA NECESIDAD Y VULNERABILIDAD
El artículo 188.1 del Código Penal, introduce características que deben de asistir en el momento del delito y que son esenciales para la existencia del delito y de
las penas, este artículo hace mención de la necesidad o vulnerabilidad de la víctima.
La necesidad de la víctima puede ser definida como el impulso irresistible, o
carencia de las cosas que son menesteres para la vida, como pueden ser comer, vestirse, y donde vivir.
La vulnerabilidad de la víctima puede presentar las siguientes connotaciones20:
- Defendibilidad.- fortaleza o inconsciencia de las barreras opositivas frente
al delito.
- Deseabilidad.- grado de atractivo como blanco de victimización.
- Accesibilidad.- grado de exposición al delito.
- Susceptibilidad.- probabilidad de ser víctimizado.
- Precipitación.- aptitud de la víctima para incrementar por imprudencia
su riesgo.
Y capacidad recuperativa.- aptitud adaptativa a las consecuencias del delito.
Ahora bien, cuando la víctima padece más de uno de estas características, esta
persona se presenta con mayor vulnerabilidad frente al delito, esto es llega a un estado de indefensión. Si por el contrario, la víctima resulta ser menos vulnerable podrá controlar la agresión del hecho delictivo con mayor intensidad, lo que provocaría medios subjetivos para afrontar el delito o disuadirlo de una manera más eficaz.
Un delito con sujeto pasivo vulnerable identifica una especial dinámica comisiva en la cual, es frecuente que el victimario se oriente maliciosamente a satisfacer
un exteriorizado instinto de superioridad del autor sobre la víctima, en el que marcándose las diferencias de los planos situacionales entre ambos, aquél se prevale de
una posición inhibitoria de la reacción de ésta a la que, con frecuencia, viene a colocar en una situación de cobardía e indefensión21
III. TIPOLOGÍA VÍCTIMAL EN LOS DELITOS RELATIVOS A LA PROSTITUCIÓN
Las primeras tipologías victimales fueron elaboradas por VON HETING y MENDELSHON fundadores de la victimología, a raíz de éstas, los tratadistas que les si20 GARCIA-PABLOS, A., Manual de criminología, op. cit. pp. 89-93, HERRERA MORENO, M., La hora de la víctima, op. cit. p. 337.
21 POLAINO NAVARRETE, M., Victimología y criminalidad violenta en España, en Estudios Penales en memoria
del Pofr. Dr. Agustín Fernández Albor, Santiago de Compostela, 1989, p. 574.
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guieron han tenido como referencia obligada sus modelos. Se puede decir que todo
tratadista en esta materia tiene su propia tipología, lo que conlleva a su especial y
propia justificación al elaborar su listado.
Algunas de ellas incluso llegan a despegarse de la referencia de los delitos convencionales, dado su carácter de alejarse del derecho penal y hasta de cualquier acto
criminal, para comprender en sus espacios a víctimas desprovistas de status jurídico alguno, en clara conexión con la problemática de las victimizaciones estructurales o socioeconómicas22.
Los victimológos con el afán de abarcar toda clase de víctimas producen una
excesiva categorización extensiva de tipologías, que más bien debe de ser atendida
con mayor incisión y profundidad abarcando todos los delitos. Para SCHAFFER, el
error en el momento de elaborar las tipologías radica en la falta de una teoría general de la víctima para insertar las clasificaciones23.
Por ello propone que las tipologías deben ser explicativas más que descriptivas, reales con modelos concretos y con conclusiones en el plano operativo bien sea
dogmática-penal, política-criminal, o socio-criminal24. Por estas razones abordaremos la tipología que se ajusta a estas características, pues creemos acertadas estas
opiniones ya que se apega a los fines y objetivos de la criminología para la explicación del delito.
Las tipologías victimales, suponen un apartado de la victimología para el estudio de la pareja criminal delincuente-victima, algunos tratadistas de la victimología
veían en la víctima la contribución a la génesis del delito, esto es la víctima formaba
parte del elemento activo del delito, por lo que el Derecho Penal no debía limitarse
a cuidar los derechos y garantías del criminal sino también de la víctima del delito25
Con estas observaciones se ha tratado de dar una respuesta al delito, hacien22 HERRERA MORENO, M., La hora de la víctima..., op. Cit. P. 138.
23 Pues para este autor existe poca importancia en las tipologías con un vacío doctrinal en forma de adivinanzas especulativas o impresiones triviales, en HERRERA MORENO, M., La hora de la víctima, op. cit. p. 138, en este sentido dentro de las tipologías existe una obra literaria sobre la clasificación de las prostitutas elaborada por CAMILO
JOSÉ CELA, en su obra Izas, rabizas y colipoterras,, Lumen, Barcelona, 1964, pp. 14 y ss. realiza una excelente clasificación de la prostitución con su particular sentido literario que le caracteriza cuando se refiere a estos temas, para
él Iza; que es la ramera prostituta, mujer pública, “Las izas, sin ser la flor temprana, gallarda y saludable (la procesión va por dentro) del oficio, están todavía de buen ver y aún de mejor imaginar”, las rabizas, de rabo. Prostituta, “La rabiza es la iza lo que el brigada al número, en el cuerpo de carabineros”. Cuatro conforman estas rabizas, a saber; Burracas, lumias, cisnes y capulinas; las colipoterras, son aquéllas que tienen algún defecto físico, bien
por su estatura, o por su complexión, así las clasifica en la zorra flaca, la zorrastrona cumplido, y la vulpeja enana.
Además de estas tres clasificaciones hay que añadir a las Hurgamanderas y putaranzas. El autor basándose en las definiciones de la Real Academía de la Lengua Española (de la que era miembro desde el año de 1957), interpreta ha
la prostitución bien como comercio sexual remunerado, o del trato carnal remunerado.
24 HERRERA MORENO, M., La hora de la víctima, op. cit. p. 138.
25 NEUMAN E., Victimología, el rol de las víctimas en los delitos convencionales y no convencionales, Buenos Aires, 1984. 23.
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do responsable a la víctima de ciertos delitos donde esta participa o incita a que se
produzca el delito, esto es la interacción víctima- delincuente. Que sin su rol activo
no se produciría su propia victimización26.
Dentro de las tipologías elaboradas por los estudiosos en victimología podemos
encontrar a las víctimas del tráfico para explotación sexual, como víctimas especialmente vulnerables. Se les denomina así porque ofrecen una predisposición a ser victimizada, en esta misma tipología se encuentran aquellas víctimas de cualquier abuso sexual27.
El menor de edad e incapaz presenta las características vulnerables de las víctimas, pues en el caso del menor de edad, el escaso desarrollo intelectual y físico
ante el tipo de agresiones antes referidos, hacen que su victimización sea aprovechada por el victimario, lo mismo pasa con los incapaces, al no tener alternativa de respuesta, es objeto de ser victimizado en este delito, en cuanto a las personas mayores de edad, las situaciones que la orillan a emigrar, a otros países bien por las situaciones políticas y económicas provoca que se muestren especialmente vulnerables
a este tipo de situaciones que tienen como respuesta el delito.
IV. PROCESO DE VICTIMIZACIÓN EN LOS DELITOS RELATIVOS A LA
PROSTITUCIÓN, VICTIMIZACIÓN PRIMARIA, SECUNDARIA Y TERCIARIA
El proceso de victimización se representa en las víctimas directas que han sufrido un delito, pues son éstas a las que va dirigida la agresión inmediata, mientras
que las víctimas indirectas son aquellas afectadas de la consecuencia mediata de la
agresión, repercutiendo en su entorno bien sea familiar, social o afectivo, pues existe una estrecha relación con la víctima directa28.
Así tenemos el caso que nos ocupa de las víctimas de prostitución ajena y explotación sexual, las víctimas directas son las que sufren de estos abusos, mientras
que las víctimas indirectas son sus familiares, amigos o aquellas personas que tienen
una relación de afectividad con la víctima directa.
IV.1. Victimización primaria
La victimización primaria es entendida como la experiencia personal del deli26 La hipótesis de base, es que hay una correlación inversa entre la culpabilidad agresor-ofendido, a mayor culpabilidad de uno menor culpabilidad de otro, es decir que si uno tiene el 100% de culpa, el otro tendrá el 0%, frente
a una víctima totalmente inocente debemos encontrar un criminal absolutamente culpable, Vid. RODRIGUEZ MANZANERA, L., la victimología, op. cit. p. 82.
27 ROMERO COLOMA, A. M., La víctima, op. cit. p. 128.
28 RODRIGUEZ MANZANERA, L., Victimología, op. cit, p. 73.
29 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, A., El redescubrimiento de la víctima: victimización secundaria y programas
de reparación del daño. La denominada victimización terciaria, en Rev. del C. G. P. J. Nº XV, Madrid 1993, pp.
287 y ss.
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to en el sujeto pasivo29, este término puede ser ampliado como las consecuencias directas, bien físicas, psíquicas, económicas, y sociales experimentada por una o varias
personas como resultado de la comisión de un hecho calificado como antisocial
bien sea tipificado o no como delito30.
Antes hacíamos referencia al modus operandi del trafico de personas mayores, menores e incapaces para su explotación sexual, pues bien esta victimización
comienza a experimentarse en el momento que la o las personas arriban al aeropuerto donde se les retira su documentación y se les notifica que han contraído una
deuda y que la única forma de pagarla, será prostituyéndose, la mujer se siente impotente e incapaz de resolver su situación pues se encuentra en otro país sin conocer a nadie, empieza a sentir miedo31.
Una vez en el club o lugar de prostitución (bar de carretera, club de alterne,
pisos, o en la misma calle), comienza la segunda consecuencia que son las vejaciones, violaciones y maltratos de las que son objeto32, pues de esa manera sus explotadores imponen sus exigencias con ayuda de la violencia corporal y psicológica que
las doblegarán a prostituirse y las acostumbrarán a las medidas necesarias como castigo y sometimiento, con la finalidad de no oponer resistencia a sus reclamos y a las
posibles denuncias ante las autoridades.
Muchas de estas mujeres son forzadas a permanecer encerradas en los burdeles cuando su jornada de trabajo no alcanza la cuota mínima exigida, esto es de 10
a 15 servicios, lo que provoca el llamado “dolor pélvico crónico” y la enfermedad in30 En este sentido están de acuerdo con esta definición, BERISTAIN A., El Código Penal..., op. cit. p. 2, LANDROVE DÍAZ, G., La victimización del delincuente en victimología, VIII Cursos de verano en San Sebastián, 1990, pp.
183 y ss., DÜNKEL F., Fundamentos victimológicos generales de la relación entre víctima y autor en derecho penal en victimología VIII cursos de verano en San Sebastián..., op. cit. p 159-182, YEBRA NUÑEZ R., victimización
secundaria, Tesina para obtener el titulo de magister en el Instituto Universitario de Criminología de la Universidad Complutense de Madrid, 1999, pp. 183 y ss.
31 Sobre las primeras reacciones que han padecido mujeres que han sido traficadas para su explotación sexual, ver
Informe Regional de América Latina y El Caribe sobre Tráfico de mujeres y trabajo forzado de 1997, donde se presentan varios testimonios de mujeres víctimas del tráfico sexual, sobre el concepto médico-psicológico de miedo,
tipos de miedo y las reacciones ante el miedo, ver la excelente obra de MANUEL QUINTANAR DIEZ, La eximente
de miedo insuperable, Madrid, 1998, pp. 39-55.
32 Vid. STSS de 2 de junio de 1999, y 3 de febrero de 1999, Y 28 de diciembre de 1999, donde obligaban a las
personas a prostituirse bajo palizas, ABC de 9 de diciembre de 1999, ABC de 14 marzo de 2000, y ABC de 26 de
enero de 2000, Informe de América Latina ya citado y Comunicados de prensa de la Guardia Civil de 12 de agosto, de 11 de octubre, 21 de mayo, y 29 de septiembre de 2001, además del País de 4 de marzo de 1998, Simposio Internacional sobre Prostitución y tráfico de mujeres con fines de explotación sexual, organizado por la Comunidad de Madrid, en el año 2000, reflejaron datos de los cuales el 90% de las mujeres que se prostituyen han
sido golpeadas por sus proxenetas, en el mismo sentido AA. VV. Guía de Buenas Prácticas para periodistas y
comunicadoras, prostitución y tráfico de mujeres con fines de explotación sexual en los medios de comunicación, Madrid, 2000, p. 35, esta guía menciona que las mujeres prostituidas viven a menudo en condiciones
antihigiénicas, son encerradas y en algunos casos torturadas con, brasa de cigarrillos o shock eléctrico (fuente
Human, Rights Watch, ONU).
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flamatoria pélvica, originada de la continuada estimulación del aparato genital en los
continuos coitos que deben realizar estas mujeres33, además de esto produce el
aumento de su deuda y hace que su explotación se perpetúe por mas tiempo34
además de estar expuestas a contraer enfermedades venéreas, pues muchos
clientes se niegan a usar preservativos, lo que potencia las probabilidades de adquirir el SIDA35.
Estas víctimas se ven coartadas de su libertad sujetas a un secuestro de sus
derechos, además de los abusos físicos y psicológicos por la negativa a prostituirse lo que da lugar a un cuadro psicológico a corto plazo del síndrome de estrés postraumático de intensidad variable y cuadro depresivos que pueden oscilar de leves a severos36. Este síndrome se produce por la experimentación de
sensaciones de angustia terror, ira humillación, e impotencia que vive la víctima
de explotación sexual.
En este tipo de agresiones se producen dos hechos fundamentales37:
1. Perdida de la integridad física y psíquica de la víctima.
2. La víctima pone en marcha una serie de mecanismos psicológicos de
protección frente a la agresión sufrida.
En cuanto a la primera, las amenazas y las lesiones físicas que se producen
debido a la resistencia, dan lugar a:
Una perdida de confianza en la gente que le rodea y a una perdida de control del sentimiento y de identidad sexual, con un pensamiento depresivo del que piensa que es un objeto sexual en contra de su voluntad
33 ORENGO F., Efectos físicos y Síquicos de la prostitución sobre las mujeres que la ejercen, en Simposio Internacional..., op. cit., p. 6.
34 Se han descubierto casos en los que las mujeres cuando no trabajaban su jornada a éstas no les daban de comer,
pues no generaban dinero para solventar estas necesidades Vid. ABC de 23 de noviembre de 1999 y comunicados
de prensa de la Guardia Civil del primero de octubre de 2001, en el mismo sentido Simposio Internacional sobre
Prostitución y tráfico de mujeres con fines de explotación sexual, organizados por la Comunidad de Madrid el año
2000.
35 Vid. Voces y Acciones de mujeres, Revista Bimestral Latinoamericana, año I, Nº5 Noviembre de 1993, Revista
Tiempo de España, del 29 de agosto de 2000, en la cual se ofrece el testimonio de una chica colombiana que fue
prostituida en España, por el multicitado método, terminando en un hospital por las graves infecciones que le transmitieron sus clientes en casa de campo, dadas sus largas horas de trabajo empezando a las 10 a.m. y terminando
hasta las 4 de la madrugada, sin denunciar los hechos a la policía, por miedo a represalias.
36 CARRASCO M. J., y GARCÍA MINA, A., Mujeres ayudando a mujeres, Universidad Pontificia, Madrid, 1997, p. 67,
GARCÍA ANDRADE A., Psiquiatría criminal y forense..., op. cit. pp. 139 y 140, ORENGO, F., Efectos físicos y Síquicos de la prostitución sobre las mujeres que la ejercen, en Simposio Internacional..., op. cit. este experto en psiquiatría legal, presento un estudio sobre las consecuencias psíquicas que sufren estas víctimas donde el 67% de ellas padece de este estrés post-traumático, sobre detenciones ilegales y prostitución, Vid STSS de 26 de enero de
1998, y 28 de diciembre de 1999.
37 ROMERO COLOMA, A. M., La víctima frente al sistema jurídico-penal. Análisis y valoración, Barcelona, 1994,
pp. 174 y ss, ORENGO, F., Efectos físicos y Síquicos de la prostitución sobre las mujeres que la ejercen, en Simposio Internacional..., op. cit. p. 6.
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por desconocidos.
El miedo a ser maltratada por sus explotadores lleva a las mujeres a este
síndrome de estrés postraumático que además se manifiesta en38:
Ideas referidas al suceso. Estas ideas producirán una alteración en la memoria, esto es en la concentración y atención, de cualquier tema, lo que merma de
manera importante el desarrollo productivo intelectual, lo que ocasiona un bajo rendimiento en el proceso de la información.
Ansiedad modificando su conducta. Pues el recuerdo que se tiene latente de las amenazas vejaciones y violaciones constantes, llega a convertirse en un estímulo que evoca los mecanismos del miedo y de la ansiedad, mediante ésta las víctimas tratarán de evitar situaciones asociadas a las experiencias vividas, lo que provoca un cambio de comportamiento. Estas respuestas de miedo y ansiedad se irán
extendiendo a otros estímulos, por lo que el número de situaciones que provoca
este cambio de conducta que es múltiple y diversa.
Alteración de la capacidad de respuesta. La capacidad de respuesta se ve
seriamente dañada cuando se involucra en la vida normal, no desempeñando sus labores cotidianas con confianza la que responderá de manera lenta y desinteresada,
no tendrá capacidad de disfrutar de su entorno, pues lo asocia con una sensación
de incredulidad.
Conductas de evitación. De Personas, lugares o actividades que podrían revivir el trauma. En este apartado se pueden encontrar un sinnúmero de fobias.
Depresión. Está causada por los siguientes motivos:
Sentimientos de indefensión y vulnerabilidad. La víctima esta expuesta
a una situación adversa en la que su conducta por más que haga se ve impotente a
repelar las agresiones tanto sexuales como físicas.
Baja autoestima. Está asociada al revivir cada momento del hacinamiento
del que se encuentra, y de recuerdos de autoinculpación, desde el desarrollo del
proceso en el que se vio envuelta desde el inicio de la supuesta contratación en el
extranjero hasta en el lugar en el que se encuentra. Lo que provoca unos sentimientos negativos hacia su persona. Esto tiende a agravarse por los mensajes de crítica
emitidos de las personas cercanas a la víctima como por las personas relacionadas
con las instituciones de control formal.
Preservación del síndrome de estrés postraumático. Lo que provoca un
sufrimiento que produce un fuerte desgaste de la energía vital. Por otro lado se
suma de forma profunda la disminución del funcionamiento social debido a los
comportamientos de evitación, lo que provoca irritabilidad, hostilidad, recelo, y sentimientos de aislamiento y extrañeza de la gente de su entorno. Dentro de este apar38 CARRASCO M. J., y GARCÍA MINA, A., Mujeres ayudando..., op. cit. pp. 67 y 68, GARCÍA ANDRADE A., Psiquiatría criminal y forense..., op. cit. p. 139 y 140, ROMERO COLOMA, A. M., La víctima frente al sistema jurídico-penal..., op. cit. p. 174 y ss.
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tado también se encuentran los trastornos del sueño, como lo es el insomnio.
Todas estas características que sufre la víctima en la primera fase del proceso
de victimización, se agravan cuando se trata de personas menores o incapaces, que
tendrán que ser atendidas de una manera muy especial por los interesados en este
sector, como lo son trabajadoras sociales, psicólogas, la familia y el entorno de la víctima una vez recuperado su libertad pues los efectos psicológicos de la prostitución
infantil perpetúa la victimización del menor explotado comercialmente, y solventes
estudios en esta materia ponen de manifiesto cómo dicha explotación comercial
produce efectos sobre la personalidad mucho más devastadora que el puntual abuso del que el menor pudo haber sido víctima en algún momento de su vida39, los que
sobreviven padecen generalmente una mezcla de depresión, ansiedad y trastornos
disociativos. Lesiones cerebrales, psicosis y suicidios son muy comunes40
IV.2. Victimización secundaria
La victimización secundaria se entiende como el proceso negativo que experimenta la víctima primaria que acude a las instancias estatales (que conforman el aparato de control social formal) para poner en marcha el mecanismo de acción procesal para
la aclaración del delito41, esta segunda fase de victimización es experimentada por la víctima con mayor fuerza y rigor pues se intensifica el hecho delictivo, reviviendo constantemente ante las instancias formales, cada vez que sea requerida su declaración, una y
otra vez tendrá que explicar los momentos angustiosos del hecho delictivo.
GARCIA-PABLOS, pone de manifiesto los efectos negativos que padece la víctima en la actuación de las instancias del control penal formal esto es policía y jue39 MORALES PRATS, F., Comentarios a la parte especial..., op. cit. pp. 287 y ss.
40 HOTALING, N., Los programas de prevención y tratamiento facilitado por las prostitutas sobrevivientes, en
Simposio Internacional..., op. cit., p 7, estima esta ponente que esto culmina con alteraciones graves tanto físicas
como psíquicas, en el menor lo que provoca que se acorten las posibilidades de vida de estas víctimas.
41 GARCIA- PABLOS, A., El redescubrimiento de la víctima..., op. cit. p. 313, SCHNEIDER H., J., La posición jurídica de la víctima del delito en el Derecho y en el proceso penal, Cuadernos de Política criminal Nº 35, Madrid, 1988,
pp. 357 y 364, este autor sostiene que los niños víctimas o víctimas infantiles de delitos sexuales sufren más daños
por el proceso penal que por el hecho en sí mismo, en parecido sentido DRAPKIN I., El derecho de las víctimas,
Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Tomo XXXIII, Madrid, 1990, pp. 382 y ss., HERRERA MORENO, M., La
hora de la víctima, op. cit. pp. 191 y ss.
42 GARCÍA-PABLOS, A., Manual de criminología..., op. cit. p. 92, estos perjuicios pueden ser desde psicológicos,
físicos y sociales, pues la víctima tiende a ser perjudicada por el delito psicológicamente con reacciones que modificarán su modo de conducta, así como su estado de salud y el aislamiento social de la que es sujeta por ser “la perdedora o tocada”, el perjuicio social de la víctima considerado por MENDELSHON puede ser importante para la asistencia de la víctima distinguiéndolo como 1.- Lo que provoca el sufrimiento, la víctima sufre tanto física como psíquicamente a consecuencia de una agresión. 2.- El carácter social del sufrimiento de la víctima: la víctima sufre pero
está consciente del aspecto social de su sufrimiento. 3.- La víctima atribuye su situación a la culpabilidad de otra persona, citado por HILDA MARCHORI, en Criminología la víctima del delito, México, 1998, p. 4.
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ces, además de multiplicar y agravar el mal que ha ocasionado el delito mismo42, por
todo esto, la victimización secundaria se considera aún más dañina que la victimización primaria.
La victimización secundaria es aquella que esta representada por las instancias
de control formal penal, así pues se representa en victimización policial, victimización judicial, y victimización en el proceso.
A) Víctimas de la policía. La policía es un órgano de control social formal,
cuyo objetivo es la protección de la sociedad y de sus ciudadanos43, en este concepto no se hace mención de cómo se debe de proteger a los ciudadanos, se entiende que debe de ir apegada al Estado de Derecho, pero no siempre se cumple este cometido porque dependerá, de la formación que se le de a la policía y
en que Estado se de, pues como es sabido no todos los países ejercen un protección de la sociedad basada en los principios constitucionales que rige todo
Estado de Derecho.
Por ello la victimización policial tiene su origen con las denuncias a la policía por parte de estas víctimas objeto de trafico y explotación sexual en vez de
esclarecer el delito se iniciaba el tramite de deportación de éstas, a su país de
origen y en muchos casos no se les permitía ni dar testimonio, ni mucho menos
asesoría jurídica.
Pero este tramite ha salido muy caro paras el sistema financiero de los países
afectados, puesto que son ellos los que tienen que pagar el transporte de vuelta de
estas personas. A raíz de estas costosas deportaciones se opto por un método mucho más sencillo y más barato, la expulsión, en este sentido la mujer afectada no
puede entrar en el país que la expulsa durante los próximos cinco años y el ingreso
a su país de origen o a cualquier otro resulta más difícil44.
Con estas expulsiones lo que se generaba era el comercio de tráfico de
personas para su explotación sexual además de la impunidad, puesto que las víctimas de estos delitos, no podían seguir en el proceso contra sus agresores, por
lo que el nuevo abastecimiento de mujeres, ligado a la necesidad que obliga a
emigrar, y por la creciente demanda de extranjeras, hacía, de éste negocio una
actividad rentable para las organizaciones criminales dedicadas a ello45.
Por todo esto las víctimas de estos delitos no denuncian los hechos a la policía lo que pone de manifiesto las reticencias de las víctimas a denunciar el delito, ha habido encuestas de victimización donde las tasas de delitos no denunciados a la policía eran mucho más elevadas a las denunciadas46.
B) Victimización judicial. El proceso judicial inicia en el momento de la denun43 SORIA VERDE M. A., La víctima entre la justicia y la delincuencia, Barcelona, 1993, p. 73.
44 Vid. Voces y acciones de mujeres...., op. cit. p. 31
45 Voces y acciones de mujeres...., op. cit. p. 31
46 SANGRADOR J. L., La victimología..., op. cit. p. 68.
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cia, pues esta viene determinada por las personas que dan conocimiento de los hechos
delictivos ocurridos, así pues el 85% y el 100% de los procedimientos judiciales
se inician con la denuncia ante la policía por parte de la víctima47.
En este tipo de delitos donde la víctima goza de un lugar privilegiado en
el esclarecimiento de los delitos relativos a la prostitución, cuyas experiencias, y
vivencias de la que ha sido objeto de delito, aportan una información valiosa
pera el esclarecimiento de delito, y con ello al mejor funcionamiento del control
social penal, baste recordar un dato: de los estudios que se han realizado sobre
victimización se ha expuesto que los delitos denunciados, son los que únicamente se persiguen.
Así pues la víctima tiene en sus manos la llave del contacto para la puesta
en marcha del sistema legal, la activación del sistema punitivo48.
Pero son muchas las reticencias por parte de las víctimas de tráfico y explotación sexual y la cifra negra en estos delitos es demasiado alta, en comparación con otros delitos de delincuencia común49.
Así pues la condición de ser una persona que ha entrado a un país como
ilegal presenta dificultades para poder denunciar el delito pues el miedo a la expulsión y las represalias las inhibe de denunciar a sus explotadores, la víctima
por su situación de ilegalidad está sola y marginada, en ocasiones no conoce el
idioma donde se ha cometido el delito y tendrá que acudir a denunciarlo y en
ocasiones no hay traductores50. Y las amenazas a sus familiares, desde su país de
origen. Jóvenes africanas de Sierra Leona y Nigeria no denuncian los hechos porque prefieren vivir así en España que volver a sus países donde abunda la miseria y la inestabilidad política51.
C) Victimización en el proceso. La falta de preparación de los encargados
de impartir justicia hace mas daño a la víctima cuando esta es interrogada, o citada para tomarle declaración, en ocasiones la víctima tiene que esperar largas
horas para ser atendida, lo que provoca un desistimiento por parte de la víctima,
pues cree perder el tiempo, y dinero pues los traslados y las ausencias en el tra47 SORIA VERDE M. A., La víctima..., op. cit. p. 89.
48 GARCÍA-PABLOS, A., El redescubrimiento..., op. cit. p. 308, según los datos de la Policía Nacional recogidos en
Internet, en el año de 1998, se desarticularon unas 60 organizaciones criminales dedicadas al trafico y explotación
de mujeres, en 1997, se detuvieron a mas de 300 personas dedicadas a este comercio, así mismo los comunicados
de prensa de la Guardia Civil donde se han desarticulado este tipo de organizaciones y de los cuales hemos hecho
referencia, son debido a las denuncias de mujeres que han sufrido este tráfico, así lo reafirma el Informe anual criminológico sobre delitos contra la libertad sexual de la Guardia Civil.
49 Así lo manifiesta el Informe Anual Criminológico sobre delitos contra la libertad sexual de la Guardia Civil de
1999.
50 STS de 3 de febrero de 1999, donde se menciona a una víctima con un total desconocimiento del idioma español.
51 ABC de 9 de diciembre de 1999.
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bajo por lo que decrece el salario.
IV.2.1 Legislación nacional e internacional para disminuir la victimización secundaria.
Las legislaciones internacionales y nacionales se han preocupado por este tipo
de victimización, que es originada por los organismos estatales, que se estaban convirtiendo en una segunda parte de la criminalización de la víctima, pero en esta ocasión institucional, por ello se han tomado medidas para disminuir esta victimización.
La Organización de las Naciones Unidas, elaboró el Código de Conducta para
funcionarios y encargados de hacer cumplir la Ley, aprobado en el V congreso sobre
Prevención del Delito y Tratamiento del Delincuente en Ginebra en 1975, declarando la protección y la dignidad humana y la defensa de los derechos humanos por
parte de los funcionarios encargados de hacer cumplir las leyes52.
Los Simposios de victimología han tenido en cuenta las graves repercusiones
que produce la victimización secundaria en el seno de las instituciones públicas encargadas de impartir justicia, así el tercer simposio celebrado en Westfalia Alemania,
en 1979, se trato por primera vez el tema de la víctima en el sistema de justicia, pero
no fue hasta el V Simposio de victimología, donde se logra de manera parcial el tratamiento de la victimización secundaria en la Declaración Sobre Principios Fundamentales de Justicia para las Víctimas de Delitos y Abuso de Poder, respaldado por
Naciones Unidas53.
El Consejo de Europa ha elaborado una serie de resoluciones y recomendaciones para el mejoramiento de los derechos de las víctimas de delitos contenidas en:
• Resolución 690/79 relativa a la Declaración sobre la Policía aprobada en
1979.
• La convención Europea para la indemnización de las víctimas de delitos violentos aprobada en 1983.
• La Recomendación para el mejoramiento de la situación jurídica de las víc52 Resolución 34/169 de 17 de 12 de 1979, Art.1º Los funcionarios encargados de hacer cumplir la Ley, cumplirán
en todo momento los deberes que les impone la Ley, sirviendo a su comunidad y protegiendo a las personas contra actos ilegales, en consonancia con el alto grado de responsabilidad exigido por su profesión.
Art. 2º En el desempeño de sus tareas, los funcionarios encargados de hacer cumplir la Ley respetarán y protegerán la dignidad humana y mantendrán y defenderán los derechos humanos de todas las personas.
53 Este Documento fue aprobado por el VII Congreso de Naciones Unidas Sobre Prevención del Delito y Tratamiento del Delincuente, organizado en Milán, en 1985, donde destaca la protección de la dignidad de la persona en el
artículo 4º cuando menciona que las Víctimas serán tratadas con compasión y respeto por su dignidad. Tendrán derecho al acceso de los mecanismos de justicia y a una pronta reparación del daño que hayan sufrido según lo dispuesto en la legislación nacional, destaca también el artículo 16 que esta orientado a la asistencia de las víctimas
pues se proporcionará al personal de policía, de justicia, de salud, de servicios sociales y demás personal interesado capacitación que lo haga receptivo de las necesidades de las víctimas y directrices que garanticen una ayuda
apropiada y rápida.
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timas en el Derecho Penal y en el proceso penal, aprobada el 28 de junio de 1985.
La Recomendación R (85)11, del Comité de Ministros del Consejo de Europa,
intenta minimizar la problemática existente entre la víctima y los órganos judiciales
que provocan la victimización secundaria por lo que recomienda; en el ámbito policial, la capacitación de los funcionarios públicos a efecto de brindar un trato adecuado a las víctimas; y sobre el interrogatorio, se recomienda su ejecución respetando
los derechos fundamentales de las víctimas54.
En el ámbito nacional. España al consagrarse como un Estado Social y Democrático de Derecho, siempre ha tratado de llevar a cabo reflexiones en sus leyes nacionales para proteger este principio apegado a las recomendaciones de los organismos internacionales en los cuales a estado presente y ratificado su compromiso, con
la finalidad de proteger los derechos fundamentales de los ciudadanos.
La Ley Orgánica 2/1986, de 13 de marzo, de Fuerzas y Cuerpos de Seguridad del
Estado, ha establecido las recomendaciones tanto del Consejo de Europa como de las
Naciones Unidas, de acuerdo al Código de conducta para Funcionarios Encargados de
Hacer Cumplir la Ley, estableciendo un Código Deontológico, así mismo para disminuir la victimización secundaria se establece el artículo 5.2 b) y c) donde determina las
relaciones entre las Fuerzas y Cuerpos de Seguridad del Estado y la ciudadanía55.
La Ley Orgánica 19/1994 de 23 de diciembre de Protección de Testigos y Peritos en Causas criminales, no hace mención alguna sobre la víctima lo que nos hace
suponer que el testigo protegido tiene esta calidad. Esta Ley fue elaborada para proteger a las personas que han estado presentes en un acto delictivo como testigos o
víctimas, con la finalidad de colaborar con en el proceso, sólo será aplicada cuando
la autoridad judicial aprecie un peligro grave para la persona, su libertad o bienes,
de quien recurra a ella para esta protección, extendiéndose a su cónyuge y a personas ligadas a la víctima o personas que de manera afectiva tengan relación con ésta
como sus ascendientes o descendientes (Artículo 2) para proteger la identidad de
estos testigos, se eximen los datos personales en las diligencias, que puedan ser objeto de reconocimiento, bien de carácter personal, como en el ámbito domiciliar.
La Ley Orgánica 35/1995 de 11 de diciembre, de ayudas y asistencia a las víctimas
de delitos violentos y contra la libertad sexual, en su Capítulo II, sobre asistencia a las víctimas (artículo 15.3) hace mención al respeto de los derechos y dignidad de la víctima,
54 Art. 8º de esta recomendación, menciona que en todas las fases del procedimiento el interrogatorio deberá hacerse con respeto a su situación personal, a sus derechos y a su dignidad, en la medida de los posible y en los casos apropiados, los niños y los enfermos o minusválidos mentales deberán ser interrogados en presencia de sus padres o del tutor o de cualquier persona cualificada para asistirlos.
55 5.2. b), Observando en todo momento un trato correcto y esmerado en sus relaciones con los ciudadanos a quienes procurarán auxiliar y proteger siempre que las circunstancias lo aconsejen o fueren requeridos para ello. c) En
el ejercicio de sus funciones deberán actuar con decisión necesaria, sin demora cuando de ello dependa evitar un
daño grave, inmediato e irreparable; rigiéndose al hacerlo por los principios de congruencia oportunidad y proporcionalidad en la utilización de los medios a su alcance.
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en el interrogatorio, así en el artículo 15.5, se protege su vida privada y dignidad mediante la celebración del proceso a puerta cerrada con lo previsto en la legislación procesal.
IV.3. Victimización terciaria.
La victimización terciaria en su sentido amplio no estricto56, es considerada
como las secuelas provocadas a la víctima que ha pasado por las dos victimizaciones
anteriores, dejando una estigmatización o etiquetamiento por parte de la sociedad
que le rodea. Para DÜNKEL57, esta victimización se deduce de la imagen de sí mismo como objeto desamparado de un ambiente social, como el objetivo de un complot, y se caracteriza por el hecho de que la autodefinición como víctima se convierte en un elemento central de su personalidad.
Este tipo de victimización deja marcada a las víctimas, de comercio sexual
pues serán señaladas por sus parientes, amigos o vecinos como la traficada, la violada, la engañada, la golpeada; esta estigmatización que sufren las mujeres, es por el
contrario el resultado de representaciones socio-culturales, fuertemente enraizadas
que se pueden encontrar en ciertas leyes nacionales contra el ejercicio de la prostitución o referidas a las buenas costumbres58.
Para este tipo de victimización será necesario la ayuda de ese mismo entorno
para que pueda olvidar los sucesos que la llevaron a pasar el calvario de las dos victimizaciones antes precedidas, y para proteger la imagen de la víctima, mas aún en
los menores que han sido víctimas de estos delitos cometidos a su persona59.
V.
PROGRAMAS DE REPARACIÓN PARA LAS VÍCTIMAS DE LOS DELITOS RELATIVOS A LA PROSTITUCIÓN
La reparación del daño ocasionado por los delitos ha tenido una preferencia
primordial en la mayoría de las reuniones de victimólogos, en los Simposios soste56 GARCIA PABLOS, A., entiende la victimización terciaria en sentido estricto a la victimización que es sufrida por
el victimario, esto es a la victimización por el sistema legal del delincuente o a situaciones patológicas del control
social formal, concepción que para este trabajo no lo consideramos oportuno, en el Redescubrimiento de la víctima..., op. cit. p. 313.
57 DÜNKEL, F., Fundamentos victimológicos generales de la relación entre víctima y autor en Derecho Penal, en
Victimología, VIII Cursos de verano, op. cit. p. 159-182.
58 AA. VV. Guía de buenas prácticas para periodistas y comunicadoras, prostitución y tráfico de mujeres con fines
de explotación sexual en los medios de comunicación, edita Red Europea de mujeres periodistas, Madrid, 2000,
p. 7, esta guía trata de sensibilizar a los trabajadores de los medios de comunicación con la finalidad de no herir y
tratar a los protagonistas como personas y no sólo como noticias.
59 POLAINA MOLINA, F., Tráfico Internacional de mujeres: nuevas alternativas frente a un antiguo problema,
OFRIM suplementos, diciembre de 1997, Dirección General de Servicios Sociales de la Comunidad de Madrid, p.
146, la autora ofrece testimonios por los que mujeres que habían sido prostituidas no querían regresar a su país Colombia, por miedo a ser reprochadas por la sociedad.
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nidos, la creación de un conjunto de programas y mecanismos de asistencia y compensación a la víctima fue uno de objetivos de estas reuniones60.
Estos mecanismos de asistencia, reparación, compensación y tratamiento
de las víctimas nacieron en la década de los sesenta, en países anglosajones como
Nueva Zelanda, e Inglaterra, se ha introducido el programa de víctima testigo, y
el de prestaciones a favor de la víctima como parte de la condena impuesta al infractor, como ejemplo de la diversidad de programas que existen en la actualidad,
pues sólo en Estados Unidos existen 500 programas para la atención de las víctimas de delitos61, según sea la clase de víctimas a tratar, de los servicios ofertados,
o fines perseguidos.
Naciones Unidas en su Declaración sobre las Directrices para la adopción de
Medidas en Beneficio de las Víctimas de delitos y abuso de poder62, hace mención
sobre el derecho a la reparación del delito en su artículo 4º estimando que las víctimas serán tratadas con compasión y respeto por su dignidad. Además tendrán derecho a los mecanismos de la justicia y a una pronta reparación del daño que hayan
sufrido, según lo dispuesto en la legislación nacional.
Por todo esto en este apartado esta reservado para realizar un análisis de los
programas de reparación del daño en España y sus diversas manifestaciones para lograr esta reparación, bien a cargo del Estado como programas de instituciones no
Gubernamentales.
V.1. Programas de servicios de asistencia inmediata.
Donde ofrecen servicios relacionados con las necesidades perentorias de la
víctima, bien puede ser atención médica, y psicológica, estos servicios se dirigen a
las víctimas del caso que nos ocupa.
V.2. Programas de atención víctima-testigo.
Estos programas suelen ofrecer algunos de los siguientes servicios63.
• Orientación de las víctimas-testigo en el sistema, ayudándoles a entender lo
que está pasando en cada momento.
• Avisarles por escrito o por teléfono explicándoles la necesidad de acudir al
juzgado y cómo ir allí.
60 SANGRADOR J. L., Victimología..., op. cit. p. 84, en el mismo sentido RODRIGUEZ
MANZANERA, L., Victimología..., op. cit. p. 339.
61 Cfr. SANGRADOR, J. L., La victimología y sistema penal..., op. cit. p.84.
62 Documento E/AC.57/1984/14.
63 SCHNEIDER H. J., La posición de la víctima..., op. cit. p. 355 y ss.
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• Sistema de alerta telefónica, por el que el testigo es llamado sólo cuando se
determina definitivamente que su testimonio será necesario.
• Servicios diversos, desde cuidado de niños, facilidades de aparcamiento, salas de espera adecuadas, etc.
• Contacto con el lugar de trabajo del testigo, a fin de solucionar los problemas eventuales que pudieran impedir al testigo abandonarlo para ir a declarar.
V.3. Programas de compensación.
La Ley Orgánica 4/2000 de 11 de enero sobre Derechos y Libertades de los Extranjeros en España y su integración social, en su artículo 59, ofrece a los extranjeros que hayan sido objeto de tráfico para su explotación sexual, y que se encuentren
de manera irregular en territorio español, podrán quedar exentas de responsabilidad administrativa eximiendo su posible expulsión, si se presta a colaborar con las
autoridades competentes, denunciando a los autores y redes organizadas dedicadas
a estos fines.
Las víctimas que deseen colaborar se les ofrece diversas propuestas, desde la
anulación del proceso de expulsión, el retorno a su país de origen, estancia y residencia en España, así como permiso de trabajo, además de ofrecer facilidades para
su integración social, como enseñarles el idioma español, por ejemplo, en este último punto, la Comisaría General de Extranjería, cuenta con un servicio especializado llamado; Servicio de Atención al Ciudadano Extranjero (S. A. C. E.)64, es un servicio personalizado para atender a las víctimas de origen extranjero, canalizando las
vías de solución adecuados para restablecer los derechos de estas víctimas además
de orientarlos en los distintos trámites documentales que sean necesarios para su
posible regularización en España65.
Este Grupo tiene además contactos con ONG´s, principalmente con Proyecto Esperanza, de la que hablaremos más adelante, las cuales se hacen cargo de su integración social.
Este tipo de exigencias que se les pide a las víctimas para colaborar con la justicia, viene a ser una prueba diabólica que impone esta Ley, dadas las características
que envuelve la delincuencia organizada en el trafico de personas para su explotación sexual como lo hemos venido señalando en paginas anteriores, por lo que resulta muy difícil que los procesos contra miembros de estas organizaciones prosperen y se les pueda procesar por estos delitos.
64 Entrevista llevado a cabo a los encargados de la Comisaría General de Extranjería y Documentación y Grupo
SACE en España, Juan José Sánchez y José Martín Calvo, Inspector jefe del grupo SACE a nivel nacional.
65 Según la circular 39529 de 9 de agosto de 1999, donde se pone en funcionamiento el SACE, en la Comisaría General de Extranjería y Documentación
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V.4. Casas de acogida
Donde se ofrece vivienda a las víctimas mientras que consiguen un trabajo digno, bien por cuenta del Estado o por otras subvenciones, y si la víctima tiene hijos existen guarderías, para cuidar de sus hijos mientras que, éstas se encuentran sirviendo al sistema formal penal a esclarecer los hechos delictivos66,
una de las organizaciones que más trabaja en estos temas y que tiene mucha relación con el Grupo SACE de la Comisaría General de Extranjería y Documentación es el Proyecto Esperanza Contra el tráfico de mujeres.
Es una organización que tiene como filosofía combatir el tráfico de mujeres desde la perspectiva de la protección de los derechos humanos de las víctimas. El núcleo central de esta organización es la acogida de las mujeres que han
sido víctimas del tráfico para su explotación sexual, ofrece alojamiento, asistencia psicológica, médica, jurídica y apoyan a las víctimas en su integración social,
así como su posible retorno a países de origen67.
Al igual que esta organización se encuentra la Asociación Para la Prevención y Reinserción de la Mujer Prostituta (APRAMP), tiene un “Centro de Día”, el
cual permanece abierto desde las 10 de la mañana hasta las diez de la noche y
cuenta con tres personas contratadas a tiempo completo: la asistente social que
también es la directora del centro, una psicóloga que es la encargada de los cursos y talleres y la secretaria que también es asistente social, cuentan también con
otras personas colaboradoras a tiempo parcial, como son dos abogados para
como asesores jurídicos, una asistenta social y varios monitores que auxilian en
los talleres.
Una de las principales tareas de esta organización es la formación profesional de personas como una alternativa para que dejen la prostitución, pues generaría recursos personales y económicos, además de la formación se les apoya
psicológicamente elevando su autoestima para que se valoren más como personas, (gráfico 7).
66 ABC de 14 de marzo de 2000, y ABC de 23 11 de 1999.
67 Entrevista con Aurelia Agredano, responsable del Proyecto Esperanza.
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PERFIL DE LAS PROSTITUTAS ATENDIDAS EN EL CENTRO DE DÍA.
EDADES ENTRE:
ESTADO CIVIL:
HIJOS:
RÉGIMEN DE:
VIVIENDA:
Los 18-70 AÑOS
Solteras en su mayoría
Separadas en segundo lugar.
Viudas.
Casadas
Solteras (tres esperan un hijo)
“
Números de hijos
Casadas “
“
Separadas “
“
Viudas
“
“
En pensiones
Piso propio
Piso de alquiler
35
15
41
20
32
8
15
SITUACIÓN DE LOS HIJOS MENORES DE EDAD
Vive con ellas y están escolarizados en colegios públicos:
24
Internados en colegios de acogida de la C. de Madrid:
27
Viven con otros familiares:
19
Dados en adopción:
2
Otras instituciones dedicadas a dar este tipo de servicios en España están entre otras:
- Institución Oblatas.
- ACSUR Las Segovias.
- Residencia Integrada para mujeres inmigrantes.
Todas estas organizaciones tienen por objetivo primordial proteger los derechos de las víctimas, y sobretodo una vez que han recuperado su libertad tratan de
alejarlas de las actividades relacionadas con la prostitución orientando sus capacidades hacia otras actividades productivas al nivel profesional.
VI. Nota conclusiva
Indudablemente la víctima, como en muchos otros casos, constituye el elemento
perdido en el camino procesal persecutorio de este tipo de delitos, sobre todo cuando
el animus del legislador, se corresponde con el mero interés de desarticular bandas organizadas dedicadas al tráfico de personas con fines de explotación sexual. La persecución de la criminalidad organizada en estos casos, supera el lado humano y el importantísimo bien jurídico que se tutela en los tipos penales creados para tal efecto.
Sin embargo, también en relación con el sujeto pasivo de los delitos de prostitución (generalmente coincidente con quien ha sido víctima del delito de tráfico
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de personas para su explotación sexual, de acuerdo a las diversas tendencias que en
el cuerpo del presente trabajo se han expuesto), no podemos dejar de advertir que
el artículo 59 de la Ley de Extranjería, considera también a las víctimas, como no podía ser de otra manera, parte en el proceso, no obstante, la Ley marca una clara dicotomía pues las instrumentaliza, en calidad de medio de investigación o testigos y,
al mismo tiempo, las considera como parte afectada, es decir, como parte perjudicada o agraviada.
Finalmente, y en el mismo orden de ideas, hay que decir que el artículo citado reconoce un bien jurídico inherente a la víctima, y reconoce también, naturalmente, el bien jurídico personal del sujeto afectado, esto es, la libertad o indemnidad sexual según sea el caso, pero a cambio de este reconocimiento legal, se le exige a la víctima una colaboración que se traduce, en la mayoría de las ocasiones, en
una prueba diabólica para desarticular una red organizada de tráfico de personas
para su explotación sexual, de ahí la problemática existente para denunciar y, consecuentemente, perseguir este tipo de delitos, en atención también a la afectación
subjetiva que sufren estas personas (como se ha comentado en los procesos de victimización), en calidad de testigos.
doutrina
A DISTINÇÃO ENTRE ILÍCITO E DANO
NA PERSPECTIVA DA ATIVIDADE JURISDICIONAL
Flávio Luís de Oliveira
Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor da Graduação e
Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Instituição Toledo de Ensino – Bauru – SP.
Advogado.
1.
INTRODUÇÃO
No âmbito do direito processual constitucional, a tutela constitucional do processo (assentada em dois pilares estruturais: o acesso à justiça e o devido processo
legal) tem por fim assegurar a conformação dos institutos processuais aos valores
constitucionais.
Assim, a tutela estatal deve realizar os direitos dos cidadãos e o princípio do
acesso à justiça, insculpido no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, constitui a principal garantia da satisfação destes direitos visando à realização dos fins do
Estado.
Logo, essa realidade normativa impõe a construção de procedimentos adequados às peculiaridades do direito material, bem como a materialização de
ações fáticas no sentido de se observar o fundamento da República, qual seja, a
dignidade da pessoa humana, nos exatos termos do artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.
Nesta linha, no âmbito da atuação do Poder jurisdicional, a consagração
deste fundamento enseja a releitura de vários conceitos tidos como estanques a
fim de ensejar a inclusão social com base nos valores do Estado Democrático de
Direito.
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Com efeito, “não raras vezes, as codificações se apresentam desvinculadas da
realidade social, ocasionando uma ‘ditadura normativa’ assistemática, incompatível
com a teoria do ordenamento jurídico1.”
Dentre os vários obstáculos ao acesso à justiça, ostenta relevância a confusão
entre as categorias da ilicitude e do ressarcimento e sua projeção sobre a efetividade da tutela dos direitos, impondo, no âmbito das ações fáticas dos operadores do
direito, a necessidade de se isolar uma tutela em face do ilícito, independentemente da ocorrência de dano.
2.
A DISTINÇÃO ENTRE ILÍCITO E DANO E SEUS REFLEXOS EM
RELAÇÃO À TUTELA JURISDICIONAL
“Nel linguaggio comune la parola illecito viene usata principalmente como aggettivo, per qualificare una azione o una situazione, per dire cioè che esse non sono consentite dalla norma morale
o da leggi civili o religiose: in questo senso si parla di acquisti, affari, guadagni ileciti, di commercio illecito, di atti illeciti, di relazione illecita. Nell’ambito del diritto tuttavia tale indicazione è
soggetta a varie distinzioni, la più importante delle quali è quella
che viene fatta in relazione alla diversa natura della norma giuridica che viene violata. Si distingue così un illecito penale da un
illecito civile e da un illecito amministrativo. È tuttavia difuso il
pensiero che i tre tipi di illecito, penale, civile e ammnistrativo,
pure essendo previsti e disciplinati da regole particolari a ognuno
di essi, partecipino di una stessa natura sostanziale e trovino una
disciplina fondamentale comune. E ciò anche se vengono rivelate
delle differenze non marginali, come quella per cui l’illecito ammnistrativo, al pari dell’illecito penale, consiste essenzialmente nella violazione di norme o di doveri posti dalla legge e trova sanzioni consistenti prevalentemente in una pena, mentre l’illecito civile
corrisponde, nell’aspetto suo tradizionale, alla causazione di un
danno e trova la sua sanzione essenzialmente nel risarcimento.”2
Por esta razão, dentre outras, a maioria dos civilistas3 sempre sustentou que o
ato ilícito só interessa ao direito sob a ótica do dano, portanto, da reparação.
1 OLIVEIRA, Flávio Luís de. As tutelas diferenciadas e o sistema de produção capitalista. Revista da faculdade de direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, n.º 29, p. 73-87. 1998.
2 PIETROBON, Vittorino. Illecito e fatto illecito. Inibitoria e risarcimento. Padova: Cedam, 1998. p. 3-4.
3 “Todo ato ilícito é danoso e cria para o agente a obrigação de reparar o dano causado.” (BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil comentado. v. 5. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1947. p. 290). “Poder-se-ia dizer que o ato ilícito é aquele praticado com infração a um dever e do qual resulta dano para outrem. O ato ilícito só repercute na órbita do di-
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65
De fato, da análise perfunctória do artigo 159 do antigo Código Civil, era possível depreender, de forma equivocada, a existência de uma equiparação, no que
concerne à responsabilidade civil, entre ilícito e dano.4
Nesta linha, de acordo com o conteúdo do mencionado dispositivo, a reparação
do dano deveria ocorrer quando, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, houvesse violação a direito ou prejuízo a outrem. Note-se que devido ao emprego da conjunção ou, a reparação do dano dependia da ocorrência de uma das alternativas, importa dizer, violação a direito ou prejuízo a outrem. Logo, para efeito de responsabilidade civil, as categorias do ilícito e do dano foram equiparadas, partindo-se da premissa que a tutela de reparação do dano é a única forma de tutela contra o ilícito.5
Entretanto, imaginar que não há ilícito que não cause dano, ou que não importa,
em termos de tutela civil, um ato contrário ao direito que não cause dano é um grande
equívoco, pois é possível ocorrer a violação a direito, notadamente àqueles de conteúdo
não patrimonial, que não comportam reparação mediante o equivalente monetário.6
reito civil se causar prejuízo a alguém.” (RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. v. 4. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 19). “Enquanto no ilícito civil a regra transgredida é inerente à convivência e compatibilidade das atividades dos particulares entre si, no ilícito penal o que está em causa é a conduta a ser observada pelos indivíduos em relação ao todo
social. No crime, a figura do criminoso é apreciada como um ente anti-social, ao passo que no Direito Civil o que
se tem em vista é o prejuízo patrimonial. Tal a razão pela qual o Direito Civil só se movimenta em defesa do aspecto patrimonial.” (LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. v. 1. 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1996. p. 419-420). “Para o direito penal, o delito é um fator de desequilíbrio social, que justifica a repressão como
meio de restabelecimento; para o direito civil o ilícito é um atentado contra o interesse privado de outrem, e a reparação do dano sofrido é a forma indireta de restauração do equilíbrio rompido.” (PEREIRA, Caio Mário da Silva.
Instituições de Direito Civil. v. 1. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 416). Por sua vez, Maria Helena Diniz sustenta que o “ato ilícito é praticado em desacordo com a ordem jurídica, violando direito subjetivo individual. Causa dano à outrem, criando o dever de repará-lo.” (DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. São Paulo: Saraiva,
1998. p. 169). “A consequência da prática do ato ilícito, devidamente caracterizado, é a obrigação de reparar o dano.”
(FRANÇA, R. Limongi. Instituições de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 132.).
4 A redação era a seguinte: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.” (BRASIL. Lei n. 3071, de 1º de janeiro de 1916. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 05 jan. 1916).
5 Logo, “não interessa ao Direito Civil a atividade ilícita de que não resulte prejuízo. Por isso, o dano integra-se na
própria estrutura do ilícito civil. Não é de boa lógica, seguramente, introduzir a função no conceito. Talvez fosse preferível dizer que a produção do dano é, antes, um requisito da responsabilidade, do que do ato ilícito. Seria este
simplesmente a conduta contra jus, numa palavra, a injúria, fosse qual a fosse a consequência. Mas, em verdade, o
Direito perderia seu sentido prático se tivesse de ater-se a conceitos puros. O ilícito civil só adquire substantividade se é fato danoso.” (GOMES, Orlando. Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 313-314). Note-se que esta
concepção não é encontrada apenas na doutrina nacional. Com efeito, Guido Alpa sustenta que o “atto illecito, in
senso tecnico, è appunto l’atto che provoca danni a terzi, e che crea una obbligazione di risarcimento.” (ALPA, Guido. Istituzioni di diritto privato. Torino: Utet, 1994. p. 1098).
6 “Há hipóteses em que a violação da norma, ainda que não produtora de dano, deve ser sancionada através da adequada tutela jurisdicional. Assim, por exemplo, a hipótese de exposição à venda de produto nocivo à saúde do consumidor. Neste caso, a simples exposição à venda constitui ato ilícito, suscetível de repressão através da devida tutela jurisdicional. O exemplo demonstra, com clareza, que o ilícito não se confunde com o dano, e, mais do que
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66
Com efeito, trata-se de institutos jurídicos independentes, em relação aos
quais é perfeitamente possível identificar modalidades autônomas de tutela.7 Destarte, a sanção privada sempre se restringiu ao ressarcimento pela responsabilidade
civil. Essa, porém, não é uma tutela inerente aos direitos da personalidade, tampouco se revela adequada a propiciar-lhes a devida garantia.8
Portanto, diante das peculiaridades dos direitos extrapatrimoniais que, por
sua natureza, não têm equivalente em pecúnia, não há como olvidar a impossibilidade de serem tutelados através da técnica ressarcitória pelo equivalente monetário, evidenciando-se, por conseqüência, que o mais importante que reparar o dano
é evitar ou eliminar o ilícito que pode provocá-lo.9
Frise-se, por conseqüência, a necessidade de se reconhecer tutelas específicas
aderentes às diversas situações de direito material, pois, a reparação visa a restaurar
a situação patrimonial anterior do prejudicado sem levar em consideração a natureza do direito violado, privilegiando a técnica ressarcitória pelo equivalente, cuja sentença atua voltada ao passado.
3.
PERFIS DA TUTELA ESPECÍFICA
A tutela que se preocupa com a recomposição do bem jurídico ofendido não
é tutela do equivalente patrimonial monetário; ao contrário, caracteriza-se como
uma tutela que visa ao bem na forma específica e não um quantum aferido a título
de perdas e danos.
isto, que, em determinados casos, há a necessidade de uma tutela autônoma que não é dirigida a evitar o ilícito –
já que o ilícito já foi praticado -, mas que também não se volta contra o dano, que pode ou não ter ocorrido, mas
que sempre será objeto de uma tutela diferente e própria, a tutela ressarcitória.” (MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela específica... p. 22-23).
7 “A falta de tal sistemática deve-se a deficiência de base em lógica contemporânea, no que essa alcançou de estudo da estrutura dos sistemas lógicos, por parte dos juristas, quase sempre de cultura formada em filosofias e lógicas superadas e deficitárias.” (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. tomo 9. Rio
de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 21-22).
8 “Tem-se descurado o estudo dos deveres das pessoas em geral. Falando-se de reparação, por exemplo, e de outras espécies de responsabilidade, toma-se o suporte fático e a regra jurídica, para se apontar o fato ilícito, sem se
remontar ao passado. Essa atitude, só no presente, cinde a realidade e corta, temporalmente, o mundo jurídico, impedindo a visão do que estava antes do que se reputou suporte fático. E é dela que deriva o não se haver explorado o campo, v.g., dos direitos da personalidade. A reparação do dano e as sanções penais, caducificantes, estão ao
lado da reintegração, como os modos mais adequados à realização do direito objetivo (isto é, à atividade do Estado, para que a aplicação, ou atendimento, seja igual à incidência).” (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. tomo 5. Campinas: Bookseller, 2000. p. 482-486).
9 È necessario altresí denunziare, sul terreno delle scelte di metodo, l’accentuato formalismo com cui la dottrina
processualistica tradizionale, classificando le tutele in base a criteri esclusivamente inerenti al processo, ha finito per
elevare a sistema il primato della tecnica risarcitoria tra i rimedi contro l’atto illecito.” (RAPISARDA, Cristina. Profili
della tutela civile inibitoria. Padova: Cedam, 1987. p. 12).
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Logo, como a tutela específica não se confunde com a tutela ressarcitória pelo
equivalente monetário, esta não é o meio hábil a recompor o bem jurídico ofendido, a não ser que seja prestada na forma específica.
Assim,
“quando se diz que não há ilícito sem dano, identifica-se o ato
contra ius com aquela que é a sua normal consequência e isso
ocorre apenas porque o dano é o sintoma sensível da violação da
norma. A confusão entre o ilícito e dano seria o reflexo do fato de
que o dano é a prova da violação e, ainda, do aspecto de que entre o ilícito e o dano subsiste freqüentemente uma contextualidade
cronológica que torna difícil a distinção dos fenômenos, ainda
que no plano lógico.”10
Nesta linha, no direito argentino, “ya se ha dicho: no hay responsabilidad jurídica (civil), si no hay daño. Y es por ello que el art. 1067 del Cód. Civil enfatiza:
‘No habrá acto ilícito punible para los efectos de este Código, si no
hubiese daño causado, u otro acto exterior que lo pueda causar.’
Ello no significa que la antijuridicidad dependa o se califique en
razón del daño producido. O, en otras palabras, que el juicio de
antijuridicidad se base exclusivamente en el resultado (el daño)”.11
A verdade, em síntese, é que o dano constitui elemento da responsabilidade
civil distinto do ato ilícito e, por esta razão, é possível que um ato ilícito não cause
dano algum.
Com efeito, o ilícito civil não está necessariamente associado à produção de
danos. O ilícito civil surge e tem consequência, mesmo que porventura nenhum
dano haja a reparar.12
10 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela específica... p. 25.
11 ZANNONI, Eduardo A. El daño en la responsabilidad civil. Buenos Aires: Astrea. 1993. p. 02. “La antijuridicidad
significa un juicio de menosprecio hacia el ordenamiento jurídico por parte de una determinada conducta. Pero
esse juicio de menosprecio puede hacerse no sólo por el resultado de la acción, sino por la acción misma. La acción, en efecto, puede apreciarse en ambos aspectos: “uno, según su resultado causal, és decir, según se haya conducido respecto de los interesses desconocidos por el ordenamiento jurídico o los bienes jurídicos a los que haya
lesionado o simplemente arriesgado, y outro, según que la acción como tal se haya conducido en relación com el
mandato o prohibición (contraria a las normas o conforme a ellas). Podemos distinguir, por lo tanto, entre juicio de
menosprecio del resultado y juicio de menosprecio de la acción.” (SANTOS BRIZ, Jaime. Derecho de daños. Madrid: Montecorvo, 1963. p. 26).
12 “El acto es ilícito cuando es contrario a las normas de los derechos público y privado. Los efectos de derecho privado de los actos ilícitos son muchos y diversos, pero en todo caso perjudiciales para quien los comete. Pueden
68
faculdade de direito de bauru
Todavia, segundo o artigo 186 do Código Civil brasileiro, “aquele que, por
ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano
a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” Como se vê, constata-se que o legislador, ao evitar o emprego da expressão “violar direito ou causar
prejuízo”, objetivou evitar a equiparação das categorias do ilícito e do dano.
Entretanto, ao estabelecer que comete ato ilícito àquele que, por ação ou
omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, o legislador insistiu no equívoco, pois, nestes termos, somente haverá ato ilícito se a violação do direito causar dano. Importa
dizer, o ato somente será tido como ilícito quando causar dano. Portanto, houve um
visível excesso na definição de ato ilícito que, indubitavelmente, não comporta a figura do dano; requisito, sim, da obrigação de reparar. Outrossim, dizer que o agente que viola direito, causando dano, comete ato ilícito, será o mesmo que dizer:
aquele que comete ato ilícito danoso comete ato ilícito.13
Por outro lado, o ato ilícito danoso não esgota as causas de responsabilidade
civil. Há casos em que ela se impõe, não obstante ser lícito o ato do qual resulta o
dano, como nos casos de estado de necessidade e legítima defesa, quando, para a
eficiência desta, se faz necessário danificar alguma coisa, nos termos do artigo 188
do Código Civil brasileiro.
Contudo, Zannoni, por não observar esta hipótese, comum ao direito argentino, aduz que “la antijuridicidad es un presupuesto de la responsabilidade.”14 Notese, por oportuno,
“che l’obligazione di risarcimento, che costituisce la conseguenza
della responsabilità civile, no deriva dall’illecito, ma dal fatto dannoso. Per l’ordinamento italiano il carattere dell’illiceità è estraneo al fatto dannoso.”15
consistir: en la obligación de reparar el daño o de prestar garantía; en la caducidad de los derechos pertenecientes
al autor del acto ilícito o en el nacimiento de derechos para el perjudicado (ejemplos: resolución del contrato, facultad de defensa y justicia personales, acción por abstención, derecho de divorcio, etc.)”. (TUHR, Andreas Von. Derecho Civil. Traducción por Tito Ravà. Buenos Aires: Depalma, 1947. p. 136-137).
13 Frise-se, por oportuno, que a redação do artigo 927 do Código Civil (“aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187),
causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”) não retira a deficiência conceitual do mencionado dispositivo.
14 ZANNONI, Eduardo A. El daño... p. 03.
15 CARBONNE, V. Il fatto dannoso nella responsabilità civile. Napoli: Jovene, 1969, p. 123. Frise-se que “el Código civil español, a diferencia de lo que ocurre en otros ordenamientos, no recoge el término antijurídico, injusto o
ilícito, para la responsabilidad civil en el art. 1902, pues se limita a establecer en éste que ‘el que por acción u omisión causa dano a outro, interviniendo culpa o negligencia, está obligado a reparar el daño causado.’ Resulta palmario, por lo tanto, que en esta materia se mantiene fiel ao Código Civil francés cuyo art. 1832 dispone que “Tout fait
quelconque de l’homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé, à le réparer.”
(SUERIO, Maria E. Rovira. La responsabilidad civil derivada de los daños ocasionados ao derecho al honor, a la
intimidad personal y familiar y a la propia imagen. Barcelona: Cedecs, 1999. p. 31-32).
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Destarte, “há mais atos ilícitos ou contrários a direito que os atos ilícitos de
que provém obrigação de indenizar. Por outro lado, há obrigação de indenizar sem
ilicitude do ato ou de conduta.”16
Nestes termos, como existem danos que não são ocasionados por atos ilícitos,
mas sim por atos lícitos, não é o ato ilícito, eventual causador do dano, que explica
e justifica a reparação.
Sendo assim, quando se imagina que não há ilícito sem dano, ou que não importa, em termos de tutela civil, um ato contrário ao direito que não provoque dano,
parte-se da premissa de que não há ato contrário ao direito que, não provocando
dano, deva ser sancionado civilmente.
Portanto, a tutela estatal que se preocupa somente com o dano, além de ficar
restrita à tutela ressarcitória, não se apresenta adequada às reais necessidades no
plano do direito material, pois, nas hipóteses de ilícito sem dano a tutela ressarcitória seria ineficaz e, portanto, imprestável.
Outrossim, nos casos em que o ilícito eventualmente venha a produzir dano,
a tutela ressarcitória removeria, quando muito, o dano, mas não seria hábil a remover o ilícito. Portanto, a tutela ressarcitória somente seria adequada, no seu todo, nas
hipóteses de dano causado por atos lícitos (estado de necessidade e legítima defesa), pois, nesses casos, não haveria necessidade de remoção do ato ilícito, já que seria tido como lícito.17
Frise-se que Limongi França já alertara acerca da importância da tutela específica liminar para a efetividade da tutela dos direitos de cunho não patrimonial, notadamente os direitos da personalidade.18
Com efeito,
“o uso do interdito proibitório para a tutela dos direitos de marca,
de invento, etc. deixava visível a inexistência de tutela adequada
16 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de... tomo 2. p. 241.
17 Por que, então, não aceitar que, para a tutela de direitos não patrimoniais, mais relevantes que os patrimoniais,
quais os ligados aos direitos da coletividade, à qualidade de vida ou aos direitos absolutos da personalidade (como
os direitos à vida, à saúde, à integridade física e psíquica, à liberdade, ao nome, à intimidade, etc.), possa o sistema
possuir provimentos que concedam tutela específica eficaz às obrigações de fazer e não fazer? ( WATANABE, Kazuo.
Tutela antecipatória e tutela específica das obrigações de fazer e não-fazer. In: Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1.996. p. 43-47).
18 “A necessidade da proteção liminar dos direitos pessoais demonstrou a impropriedade, para esse fim, do uso dos
interditos possessórios, bem como do mandado de segurança. A mesma impropriedade concerne às atuais medidas cautelares, mesmo em face das distorções que se lhes têm querido emprestar com a definição das assim chamadas ‘medidas satisfativas’ e outras. Na verdade, por mais que se tenham esforçado os doutos em preencher lacunas por essa via, o fato é que, se, de um lado, medidas cautelares são, em princípio, preparatórias e acessórias de
ações principais, do outro, dada a sua utilização delimitada, não são de molde a atender à vasta necessidade de proteção liminar dos Direitos da Personalidade.” (FRANÇA, Limongi R. Direitos da personalidade – coordenadas fundamentais. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 567, p. 09-16, jan. 1983).
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aos direitos da personalidade, ou ainda fazia ver que o Código de
Processo Civil somente podia responder em parte ao direito à tutela preventiva, o que apenas reafirmava a tendência nitidamente
patrimonialista do sistema de tutela dos direitos e, mais do que
isso, a própria ideologia que o inspirava.”19
Outrossim, no campo do Direito Penal, resta evidente a preocupação em se
tutelar adequadamente os ilícitos, ainda que não causem dano. Note-se que “nos crimes de mera conduta (ou de simples atividade), a lei não exige qualquer resultado
naturalístico, contentando-se com a ação ou omissão do agente.”20
Logo, a conduta do agente é considerada suficiente para configurar a ofensa
ao direito tutelado ou para constituir a violação da norma. A conduta, e tão-somente a conduta, perfaz o elemento material do crime.
Neste ponto, reside o aspecto fundamental da confusão que resultou da equiparação entre tutela repressiva21 e tutela ressarcitória, pois se imaginou que o ilícito
civil pudesse ser punido com o ressarcimento, sem levar em consideração que a
pena (sanção/repressão), sobretudo nos casos de crime de mera conduta, evidencia-se independentemente do resultado (dano).22
Destarte, como dito, a tutela ressarcitória é apenas uma espécie da tutela repressiva (sancionatória), limitando-se às hipóteses de ocorrência de dano.
Sendo assim, o sistema processual clássico, ao mostrar-se incapaz de permitir
uma tutela que previna o ilícito (preventiva) ou que o remova (repressiva na espécie reintegratória), limitando-se a reparar o dano (repressiva na forma ressarcitória),
refletia a vetusta ideologia de que a única forma de tutela contra o ilícito consistia
na reparação do dano, o que significava dizer que o ilícito não podia ser evitado ou
removido independentemente da ocorrência de dano.
19 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 247.
20 MIRABETE. Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. v.1. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1991. p. 127.
21 Também designada sancionatória, pois pressupõe violação ocorrida, subdividindo-se em tutela reintegratória (remoção do ilícito) e tutela ressarcitória (reparação do dano). Logo, não se confunde com a tutela preventiva que se
subdivide em satisfativa (em relação ao direito material) e cautelar (em relação ao direito processual). (. Cf. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tutela sancionatória e tutela preventiva. In: Temas de direito processual. Segunda série.
São Paulo: Saraiva, 1980. p. 21-29.
22 Quando la prima preoccupazione di un ordinamento è quella di colpire i fatti che si ritengono pregiudizievoli
della convivenza, è facile che la responsabilità per danni trovi un fondamento penale, nella previsione cioè di un fatto come reato e si identifichi, o si confonda, com una pena a carico del reo e a favore della persona danneggiata.
Nella celeberrima elencazione delle fonti delle obbligazioni contenuta nelle Istituzioni di Giustiniano, l’illecito civile è indicato come maleficio e se un dubbio può esservi intorno alla natura penale che gli viene attribuita, il Digesto stesso lo toglie, configurando un titolo denominato appunto De privatis delictis.” (PIETROBON, Vittorino. Illecito... p. 40).
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A IMPORTÂNCIA DA TUTELA ESPECÍFICA DIANTE DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
Logo, a tutela do ser humano não se satisfaz com a tutela ressarcitória, exigindo, ao contrário, uma tutela eminentemente preventiva, de forma a ser instrumentalizada diante da ameaça de ofensa aos direitos fundamentais dos cidadãos, ou uma
tutela reintegratória que permita a remoção do ilícito, sobretudo no que tange aos
direitos de conteúdo não patrimonial, à luz da dignidade da pessoa humana.
Gustavo Tepedino observa que o debate em torno do objeto dos direitos da
personalidade
“ressente-se da preocupação exasperada da doutrina em buscar
um objeto de direito que fosse externo ao sujeito, tendo em conta a
dogmática construída para os direitos patrimoniais.
Em outras palavras, a própria validade da categoria parecia depender da individuação de um bem jurídico – elemento objetivo
da relação jurídica – que não se confundisse com a pessoa humana – elemento subjetivo da relação jurídica -, já que as utilidades
sobre as quais incidem os interesses patrimoniais do indivíduo, em
particular no direito dominial, lhe são sempre exteriores.
Assim é que, no caso brasileiro, em respeito ao texto constitucional,
parece lícito considerar a personalidade não como um novo reduto de poder do indivíduo, no âmbito do qual seria exercida a sua
titularidade, mas como valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada, capaz de submeter toda atividade econômica a novos critérios de validade.”23
Paralelamente, a evolução da ciência processual, sobretudo no que tange
à instrumentalidade do processo, através da predisposição de procedimentos
aptos a veicular tutelas elaboradas à luz das necessidades das diversas situações
de direito material, traduz a incessante busca da efetividade e utilidade das decisões judiciais.
Com efeito, a notável valorização que se deu à busca da tutela específica está
demonstrada, sobretudo, nos dispositivos que conferiram ao juiz uma espécie de
poder executório genérico, habilitando-o a utilizar, inclusive de ofício, além dos mecanismos nominados no artigo 461, parágrafos 4º e 5º, do Código de Processo Civil,
outros mecanismos de coerção ou de sub-rogação inominados que sejam aptos a in-
23 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 23-54.
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duzir ou a produzir a entrega in natura da prestação devida ou o resultado prático
equivalente.24
5.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta linha, é inolvidável que o mecanismo da tutela específica, à luz da distinção entre ilícito e dano, permite a construção de procedimentos adequados às
peculiaridades do direito material.
Demonstra, outrossim, a atenção dos juristas inconformados com as lacunas
de uma visão puramente economicística do intercâmbio humano.
Logo, há necessidade de analisarmos as mutações do ordenamento jurídico
através do método interdisciplinar, tarefa que não se revela fácil, mas que traduz o
caminho a ser palmilhado pelo jurista preocupado com o confinamento teórico e
científico do Direito.
Trata-se de uma visão do processo como instrumento de garantia dos direitos
fundamentais à luz do dever de proteção do Estado, cuja exigência de procedimentos adequados à tutela dos direitos traduz o reflexo da tomada de consciência de
que os direitos precisam ser tutelados na forma específica, pois a Constituição Federal, fundada na dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), não só garante uma
série de direitos não patrimoniais, como afirma, expressamente, o direito ao acesso
à justiça (artigo 5º, XXXV ).
Enfim, aspira-se a uma realidade normativa permeada de ações fáticas que traduzam um processo voltado mais para o ‘ser’ que para o ‘ter’. Tais ações somente
serão materializadas após uma profunda reforma ideológica dos operadores do direito que caracterizará a quarta onda renovatória da fase instrumentalista da ciência
processual.
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24 ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela e obrigações de fazer e de não fazer. In: Aspectos polêmicos da
antecipação da tutela. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1997. p. 462-482.
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OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA
ORDEM CONSTITUCIONAL
Alvacir Alfredo Nicz
Professor de Direito Constitucional nos cursos
de graduação e pós-graduação da UFPR e PUCPR.
Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP).
“O problema fundamental em
relação aos direitos do homem,
hoje, não é tanto o de
justificá-los, mas o de protegê-los”
(NORBERTO BOBBIO).
A utilização da expressão “direitos fundamentais” é bastante recente. Por muitos anos, as expressões predominantes foram “direitos do homem”, “direitos naturais”ou até “direitos inatos”ou também “direitos originários”.
Das revoluções americana e francesa até o início do século XX, quando do surgimento do Estado Social, também chamado de Estado Bem-Estar, Estado Intervencionista ou, como preferem alguns, Estado Providência, isto é, quando surgem as
Constituições chamadas sociais da 1ª Grande Guerra Mundial, a linguagem corrente dentre os doutrinadores, bem como, no texto das Constituições da época, era a
usual utilização das expressões direitos do homem, direitos naturais ou direitos inatos. Estes direitos eram os que o homem tinha por força da própria natureza, daqueles que se opunham ao Estado, daqueles que quanto menos o Estado interviesse
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faculdade de direito de bauru
mais respeitados seriam. Eram direitos decorrentes do próprio direito natural, produtos da razão, que a sua inclusão em textos legais ou mesmo nas Constituições limitar-se-iam a reconhecer e garantir.
A partir da 1ª Guerra Mundial, de 1914 a 1918, as Constituições elaboradas sob
uma nova concepção estatal, as Constituições denominadas sociais, como a do México de 1917, a alemã de Weimar de 1919, a da Espanha de 1931, a de Portugal de
1933, a nossa de 1934 e após a 2ª Guerra Mundial com as Constituições da Itália de
1947, da Alemanha Ocidental de 1949, a da Venezuela de 1961 e outras como as mais
recentes de Portugal de 1976, a da Espanha de 1978, passaram a utilizar a expressão
“direitos fundamentais”. É esta a expressão que foi adotada pelo constituinte quando da elaboração do nosso texto vigente de 1988.
É importante salientar que a alteração ocorrida já àquela época se produziu
por duas razões. A primeira, face à modificação nas concepções filosóficas e ideológicas a respeito dos direitos do homem. As concepções jusnaturalistas que antes se
ligavam aos direitos do homem deixaram de ser aceitas com passividade, bem como,
outras surgiram. A segunda, por decorrência de que desde o início da século XX passou-se a visualizar e a tomar consciência que ao lado destes direitos provenientes da
própria natureza, outros direitos havia decorrentes da vida em sociedade, da vida
cultural, da vida econômica, etc. e que sobre eles se projetavam certas condicionantes do próprio país. Verificou-se, ainda, conscientemente, que era necessário, muitas vezes, os préstimos do Estado para que interviesse e agisse de forma positiva de
modo a atender aos anseios e desejos da sociedade na busca de melhor proporcionar o bem-estar social. Não bastava pedir ao Estado que nada fizesse, muitas vezes
era necessário pedir ao Estado que muito fizesse, mesmo no domínio da liberdade.
Além do mais, os documentos da época do Estado Liberal, como as Constituições e as Declarações de Direitos limitavam-se a enumerar um elenco pequeno de
direitos, como a mais conhecida delas, a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, da França de 1789, que continha somente 17 artigos, enumerando em regra apenas a liberdade, a segurança e a propriedade. As Constituições posteriores,
as do século XX, muitas delas vigentes ainda nos dias de hoje, trazem uma lista de
direitos extraordinariamente extensa que, em paralelo, aumenta também o número
de artigos que tratam de tais matérias.
No século XIX, os direitos do homem eram, por definição, os direitos do homem individual. Já no século XX e também, neste primeiro início de século, os direitos fundamentais, agora sob esta nova denominação, não são apenas direitos individuais mas também direitos de grupos, de sindicatos, de instituições, dos consumidores, etc., enfim direitos da coletividade.
Desta forma, a expressão “direitos fundamentais” que hoje é acolhida pela
doutrina substituindo a expressão “direitos do homem”, não se coloca apenas diante dos princípios do direito natural, mas alarga, amplia o seu acolhimento de modo
a agasalhar as exigências dos homens atuais individualmente e dos grupos, ou seja,
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da sociedade no seu todo perante o Estado e, por que não dizer, perante a própria
sociedade civil ou ainda a comunidade internacional.
Os direitos fundamentais correspondem hoje aos direitos da tradição liberal
clássica acrescidos dos novos direitos, os econômicos, os sociais, os culturais, etc.
Estes são direitos fundamentais por constarem na Constituição, na Lei Magna de um
país. São fundamentais por terem uma relação direta com a Constituição, por gozarem de uma supremacia constitucional que decorre do fato de se encontrarem estabelecidas no âmbito do próprio texto da Lei Maior. São direitos fundamentais por
estarem constitucionalmente consagrados dentre os direitos dos membros da comunidade política frente ao Estado. São direitos que se contrapõe entre a pessoa, o
indivíduo e o grupo de um lado e o Estado do outro.
Tais direitos fundamentais somente existem quando há distinção entre a pessoa, individual ou institucionalmente, e o Estado. Para que existam estes direitos necessita-se que ocorra uma margem de autonomia tanto da pessoa quanto da sociedade civil perante o Estado. Se não há, portanto, autonomia nem da pessoa e nem
da sociedade civil perante o Estado, ou ainda se a liberdade se confundir com a autoridade seja sob qualquer argumentação de ordem filosófica, ideológica ou qualquer outra não haverá direitos fundamentais.
Assim, não haverá direitos fundamentais em regimes absolutista ou totalitário,
onde a pessoa humana não é o ponto capital de atenção da entidade estatal.
Os direitos fundamentais do século XIX significavam os direitos do homem,
ou mais propriamente, estes últimos traduziam os direitos de liberdade, como elementos de relação contra o Estado absoluto, contra as formas corporativas que perduraram até a Revolução Francesa, contra enfim aos interesses que serviam a classe
burguesa. Estes direitos de liberdade (liberdade de imprensa, de reunião, de expressão e outras) que serviam à classe burguesa têm sido tentados pelos autores marxistas e também pelos não marxistas a associar os direitos constitucionalmente declarados no século XIX com direitos ligados a determinada classe. Esses direitos de liberdade correspondentes aos interesses da burguesia se contrapunham a situação
vivida à época de exploração e de opressão em que viviam os trabalhadores.
A verdade é que se tais direitos apareceram conexos com os interesses de
certa classe dominante, uma vez declarados, garantidos, eles adquiriram autonomia, vieram pois, servir não apenas aos interesses daquela classe, como em especial a todas as classes. A liberdade de associação não serviu apenas a burguesia, mas também aos interesses da classe operária. Outras liberdades como a liberdade de expressão, direito ao sufrágio, não eram somente direitos particulares ou de determinada classe, mas eram verdadeiros direitos universais possíveis
de serem invocados por todos os homens, independente da classe a que pertencessem.
As Constituições têm concebido quer os direitos de liberdade, os sociais, econômicos, culturais, como direitos de todos os homens, que interessam a todos os
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membros da sociedade e não apenas como direitos de classes ou ligados a determinada classe.
Também no plano internacional com o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais e o Pacto de Direitos Civis e Políticos, estes são concebidos como direitos de todos os homens e não só a certa categoria ou classe de pessoas.
Os direitos fundamentais são colocados em um dualismo, de um lado os direitos da liberdade e de outro os direitos econômicos, sociais e culturais. Todavia, se
estamos diante de direitos de todos os homens, com certeza seria melhor pensarmos em uma só categoria, que interligasse os direitos de liberdade aos direitos sociais ou os direitos sociais aos direitos de liberdade.
Nestes últimos 200 anos o Estado se concebe em três tipos conhecidos: Estado Liberal, Estado Marxista e Estado Social.
No primeiro, no Estado Liberal, os direitos chamados sociais não existem ou
quando muito a sua existência se reconduz a direitos de liberdade. No Estado Marxista, ao contrário, os direitos de liberdade não existem ou são reconduzidos a direitos sociais. Estes últimos Estados, nos marxista-leninistas, o ponto fundamental circula em torno do primado da economia; afirmam-se ainda o direito ao trabalho, à
educação ou à proteção da saúde e outros; as liberdades, quando aparecem são
sempre condicionadas à realização dos objetivos do socialismo e do comunismo.
No Estado Social, como o previsto na Constituição alemã de Weimar, de 1919
e nas demais mais modernas (a da Itália, da Alemanha, da Espanha, de Portugal, da
Venezuela, do Peru, a nossa vigente ou as nossas a partir de 1934) é insuprimível o
contraste entre direitos sociais e liberdade. Ambos são direitos fundamentais.
No tipo constitucional de Estado Social de Direito, direitos de liberdade e direitos sociais são direitos fundamentais, pois constando da Constituição, não ficam
mais à mera vontade do legislador ordinário. Entretanto, são direitos de estrutura diversa e de eficácia bem diferentes. Os direitos de liberdade são direitos negativos,
mas não são puros direitos negativos, uma vez que em relação a muitos desses direitos de liberdade há consciência de que não basta ao Estado respeitar ou abster-se
ao não fazer para que a liberdade possa ser exercida ou garantida. O Estado tem uma
obrigação de manutenção de ordem pública, de dar segurança à sociedade. Esta é
uma obrigação positiva do poder público. Quando o Estado afirma que garante direitos de liberdade deve o mesmo garantir condições de segurança para que a liberdade seja exercida.
Em alguns dos direitos de liberdade, o Estado tem obrigações específicas de
caráter positivo.
Quanto à liberdade de religião, por exemplo, não basta o Estado respeitar
a liberdade de culto. Deve ainda assegurar àqueles que pretendem utilizar-se de
tal direito.
Quanto à liberdade de manifestação, o Estado não deve apenas assegurar a
possibilidade dela ser exercida juridicamente mas deve, isto sim, garantir positiva-
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mente a manifestação, de modo a impedir fatos que não permitam a livre manifestação.
À liberdade de comunicação, é outro dos direitos que o Estado assume a responsabilidade pelo asseguramento das condições necessárias para a seu pleno exercício.
Os direitos econômicos, sociais e culturais são, em contrapartida, muitas vezes direitos positivos. Positivos no sentido de que exigem do Estado posições ativas
de agir, de prestar serviços, enfim comportamentos positivos. De certa forma esta
contraposição, entre direitos positivos e direitos negativos pode ser aceita. Ora, se
os direitos de liberdade nem sempre são, exclusivamente, direitos negativos, também os direitos sociais não são sempre, exclusivamente, direitos positivos. Não são
pura e simplesmente direitos positivos porque não dependem apenas do comportamento paternalista que o Estado possa vir a assumir.
Assim, por exemplo, os direitos à saúde, à educação, ao trabalho, etc. inseremse no campo da competência atribuída ao Estado de fazer, todavia, não deve ele assumir sozinho tal tarefa. É importante e também necessária nestas matérias, a presença da participação dos particulares; entretanto, o fazer destes não deve ser de tal
porte a ponto de comprometer a liberdade dos cidadãos.
O Estado não é o único destinatário das normas sobre direitos fundamentais,
inclusive sobre direitos sociais, uma vez que também a sociedade, os grupos, as associações, etc., tem força e poder, bem como responsabilidade, preponderante no
alcance e promoção de tais direitos.
Os direitos sociais não se esgotam na mera relação entre pessoas e Estado.
Eles devem vir com as pessoas, com a sociedade civil e o Estado. Alguns para designar o papel que o Estado deve ter na realidade dos direitos sociais mencionam a
existência do “princípio da subsidiariedade”. Parece que a expressão utilizada pode
não ser das mais felizes, porquanto o Estado poderá ter uma retração na sua atuação levando-o a uma presença que não seja a esperada. O mais perfeito talvez seja a
utilização da expressão “princípio da solidariedade”, onde a ação deva ser solidária
entre a sociedade civil e o Estado na concretização desses direitos.
De nada ou pouco adianta dizer que o Estado não é o único titular, o único
destinatário das normas sobre direitos sociais. É importante a participação ativa da
sociedade civil também neste processo, bem como a participação de todos os interessados.
O princípio do Estado Social com o comando democrático em sua gestão, deve
ser na medida do possível com a participação dos próprios interessados na busca da
concretização dos seus direitos. Assim, o Estado, em vez de ter apenas uma posição oficial na concretização dos direitos fundamentais, deve ainda, promover abertura à sociedade civil para que esta possa ter um espaço de efetiva e real participação.
Liberdade e direitos sociais tem estruturas diferentes. Os direitos de liberdade são de aplicabilidade imediata, constam de normas preceptivas. A sua eficácia in-
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depende de quaisquer condições econômicas, sociais e culturais. São normas aplicáveis independentemente da lei. O princípio básico no domínio das liberdades é
que a lei é que tem de se conformar com as liberdades. A lei é que se move no âmbito das liberdades e não as liberdades no âmbito da lei. Quanto ao domínio do direito das liberdades constantes da Constituição a perfeição será tanto maior quanto
menos precisar de lei para tornar-se obrigatória e eficaz.
Muitas vezes, a exigência da lei é mais por razões de segurança e certeza jurídica do que propriamente por complementação necessária. Se assim o é quanto aos
direitos de liberdade, ao contrário pode ocorrer quanto aos direitos sociais, isto é,
os denominados direitos fundamentais prestacionais que exigem uma conduta positiva do destinatário.
Gomes Canotilho esclarece que
“os direitos a prestações significam, em sentido estrito, direito do
particular a obter algo através do Estado (saúde, educação, segurança social). É claro que se o particular tiver meios financeiros
suficientes e houver resposta satisfatória do mercado à procura
destes bens sociais, ele pode obter a satisfação das suas “pretensões
prestacionais”através do comércio privado (cuidados de saúde
privados, seguros privados, ensino privado)”.
Estes direitos sociais prestacionais que são de cunho programático, não gozam da máxima efetividade, sujeitando-se, portanto, ao limite da reserva do possível, uma vez que só podem ser concretizados através de condições econômicas, sociais e culturais que fogem a alçada do constituinte e, também do legislador ordinário. Muitas vezes necessitam, inclusive, também da presença do Executivo para sua
efetividade, em especial, indicando as fontes de recursos que irão fazer frente às
despesas decorrentes da execução de tal programa.
Assim, de nada adianta apenas haver uma lei ou uma norma constitucional
que pretenda declarar o direito ao trabalho, à educação, para que todos possam alcançar tais direitos, para que todos possam ter trabalho, escola, emprego. Os direitos econômicos, sociais e culturais dependem de uma realidade.
Enquanto os direitos de liberdade são direitos incondicionados, os direitos sociais são direitos condicionados. Os direitos sociais são de conteúdo incompleto necessitando pois de ser preenchido pelo legislador ordinário, enquanto que os direitos de liberdade já estão definidos em sua essência desde
logo na Constituição.
Entre os direitos no Estado Social, o primeiro é o valor liberdade. Neste Estado ambos são direitos fundamentais, apenas que em primeiro lugar estão os direitos de liberdade. Não admite o sacrifício da liberdade em prol dos direitos sociais. É
o inverso do que ocorre com os Estados marxistas.
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No Estado Social, o legislador não deve ser livre na confirmação dos direitos
de liberdade. Sua função é apenas regulamentadora, quando não ampliativa. Só
pode ser restrita nos termos previstos expressamente na Constituição e de acordo
com o princípio da proporcionalidade. O legislador, assim, não é livre no domínio
da liberdade.
Quantos aos direitos sociais, o legislador tem uma margem de liberdade. Não
tem o legislador o poder de inverter na prática o direito constitucionalmente assegurado, mas deve ser ele o concretizador do conteúdo de cada direito social.
Os direitos sociais estão intimamente conjugados com a organização econômica. O constituinte não pode criar uma rigidez tal quanto aos direitos sociais que
impeça o legislador ordinário de concretizar cada um desses direitos de diferentes
formas. O excesso de rigidez posto pelo constituinte sobre o legislador ordinário
quanto aos direitos sociais retira a opção de liberdade de ação, bem como cerceia
também a liberdade do próprio povo, uma vez que este é que legitima politicamente o legislador. Desta forma, portanto, as normas de direitos sociais não devem ser
de tal sorte vagas que não tenham nenhum sentido, mas também não devem ser
normas excessivamente detalhadas, minuciosas, que cortem qualquer possibilidade
de escolha por parte do legislador.
Assim, enquanto em matéria de liberdade o ideal é a precisão; em matéria de
direitos sociais é necessária a abertura, a liberdade de conformação no quadro dos
valores básicos da ordem constitucional.
A CONVENÇÃO Nº 132 DA OIT E A FALTA DE SEU
MANEJO PELOS APLICADORES DO DIREITO*
Olga Aida Joaquim Gomieri
Juíza Togada do E. Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região.
Obedecidas as formalidades legais, após publicação pela imprensa oficial do
Decreto nº 3.197/991, em 05.10.1999, a Convenção nº 132, da Organização
Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil, incorporou-se ao ordenamento
jurídico nacional, trazendo modificações legislativas pequenas mas, em determinados pontos, expressivas, no capítulo celetário destinado às férias anuais.
Com relação à duração das férias, nenhum reparo significativo se perpetrou, haja
vista o caráter mais benéfico da legislação vigente: cuidou a Convenção de estabelecer,
em seu artigo 3º, item III2, que a duração das férias anuais deveria observar o prazo mín* Este artigo foi publicado na Revista LT’r nº 02 de fevereiro de 2003.
1 DECRETO 3.197, DE 05/10/99 (D.O.U. 06/10/99) “O PRESIDENTE DA REPÚBLICA. no usa da atribuição que
lhe confere o art. 84, inciso VIII, da Constituição, Considerando que a Convenção 132 da Organização Internacional
do Trabalho - OIT sobre Férias Anuais Remuneradas (revista em 1970) foi concluída em Genebra, em 24/06/70;
Considerando que o Congresso Nacional aprovou o Ato multilateral em epígrafe por meio do Decreto Legislativo
47, de 23/09/81; Considerando que o Ato em tela entrou em vigor internacional em 30/06/73; Considerando que o
Governo brasileiro depositou o Instrumento de Ratificação da referida Convenção em 23/09/98, passando a mesma
a vigorar, para o Brasil, em 23/09/99; DECRETA:
Artigo 1º - A Convenção 132 da Organização Internacional do Trabalho - OIT, sobre Férias Anuais Remuneradas
(revista em 1970), concluída em Genebra, em 24/06/70, apensa por cópia a este Decreto, deverá ser executada e
cumprida tão inteiramente como nela se contém.
Artigo 2º - Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 05/10/99. Fernando Henrique Cardoso
2 Artigo 3º - Convenção 132 da OIT - (...); 3. A duração das férias não deverá em caso algum ser inferior a 3
(três) semanas de trabalho, por 1 (um) ano de serviço;.
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faculdade de direito de bauru
imo de três semanas, lapso temporal inferior àquele já estabelecido pelo artigo 1303, da
Consolidação.
Tal caráter benéfico, por óbvio, inviabiliza a aplicação da norma internacional
no que pertine à exclusão dos feriados existentes no curso das férias (item I, do artigo 6º4, da Convenção), uma vez que, para que se atingisse o período de 30 dias corridos, seria necessária a ocorrência de nove feriados durante a fruição, hipótese
ainda inexistente no calendário nacional.
Nestes termos, a única inovação relativa à duração das férias teria consistido
na unificação do período mínimo de trinta dias para todas as categorias profissionais (exceção aos marítimos, por força do artigo 2º5, da Convenção), o que significou
tratamento igualitário também para os domésticos, com a conseqüente desconsideração dos termos do artigo 3º6, da Lei nº 5.859/72.
Tampouco quanto à prática de faltas injustificadas se pode conceber a existência de inovação ou conflito, por haver sintonia entre o mencionado artigo 130, da
CLT, que reduz proporcionalmente a duração das férias em função das ausências
injustificadas do trabalhador, e os artigos 4º7 e 5º8, da Convenção nº 132, da OIT.
3 Artigo 130 - CLT - Após cada período de 12 (doze) meses de vigência do contrato de trabalho, o empregado terá
direito a férias, na seguinte proporção:
I - 30 (trinta) dias corridos, quando não houver faltado ao serviço mais de 5 (cinco) vezes;
II - 24 (vinte e quatro) dias corridos, quando houver tido de 6 (seis) a 14 (quatorze) faltas;
III - 18 (dezoito) dias corridos, quando houver tido de 15 (quinze) a 23 (vinte e três) faltas;
IV - 12 (doze) dias corridos, quando houver tido de 24 (vinte e quatro) a 32 (trinta e duas) faltas.
§ 1º. É vedado descontar, do período de férias, as faltas do empregado ao serviço.
§ 2º. O período das férias será computado, para todos os efeitos, como tempo de serviço.
4 Artigo 6º - Convenção 132 da OIT - 1. Os dias feriados oficiais ou costumeiros, quer se situem ou não dentro
do período de férias anuais, não serão computados como parte do período mínimo de férias anuais remuneradas
previsto no parágrafo 3 do Artigo 3 acima;
5 Artigo 2º - Convenção 132 da OIT - 1. A presente Convenção aplicar-se-á a todas as pessoas empregadas, à
exceção dos marítimos;
6 Artigo 3º - Lei nº 5.859/72 - O empregado doméstico terá direito a férias anuais remuneradas de 20 (vinte) dias
úteis, após cada período de 12 (doze) meses de trabalho, prestado à mesma pessoa ou família.
7 Artigo 4º - Convenção 132 da OIT - 1. Toda pessoa que tenha completado, no curso de 1 (um) ano determinado, um período de serviço de duração inferior ao período necessário à obtenção de direito à totalidade das férias
prescritas no Artigo terceiro acima terá direito, nesse ano, a férias de duração proporcionalmente reduzidas; 2. Para
os fins deste Artigo o termo «ano» significa ano civil ou qualquer outro período de igual duração fixado pela autoridade ou órgão apropriado do país interessado.
8 Artigo 5º - Convenção 132 da OIT - 1. Um período mínimo de serviço poderá ser exigido para a obtenção de direito a um período de férias remuneradas anuais; 2. Cabe à autoridade competente e ao órgão apropriado do país interessado fixar a duração mínima de tal período de serviço, que não deverá em caso algum ultrapassar 6 (seis) meses; 3.
O modo de calcular o período de serviço para determinar o direito a férias será fixado pela autoridade competente ou
pelo órgão apropriado de cada país; 4. Nas condições a serem determinadas pela autoridade competente ou pelo órgão
apropriado de cada país, as faltas ao trabalho por motivos independentes da vontade individual da pessoa empregada
interessada tais como faltas devidas a doenças, a acidente, ou a licença para gestante, não poderão ser computadas
como parte das férias remuneradas anuais mínimas previstas no parágrafo 3 do Artigo 3 da presente Convenção.
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Nesse sentido, a concessão do período mínimo (no caso brasileiro, de trinta
dias) faz-se obrigatória apenas para o trabalhador que efetivamente cumpriu suas
obrigações durante o ano (não seria razoável dispensar tratamento equivalente ao
empregado assíduo e ao empregado desidioso).
Quanto ao direito do trabalhador contratado sob o regime de tempo parcial, nenhuma alteração se perpetrou, seja porque compatíveis os dispositivos
(considerando-se que o direito à totalidade das férias se encontra vinculado ao
cumprimento de um período mínimo, completamente harmônicos os artigos 4º
e 5º, da Convenção e o artigo 130-A9, da CLT), seja porque o artigo 130-A foi
acrescentado à CLT pela Medida Provisória nº 2.164-41, de 24.08.2001 (posteriormente à publicação do decreto presidencial, portanto, o que provocaria, de
qualquer forma, a derrogação do dispositivo internacional - critério da cronologia).
Quanto ao fracionamento das férias, previsto pelo artigo 8º10, da Convenção
nº 132, da OIT, estabeleceu-se que um dos períodos, salvo acordo individual ou
coletivo, deverá contar com no mínimo duas semanas ininterruptas, alterando-se,
desta maneira, o lapso temporal previsto no § 1º, do artigo 13411, da CLT. E, por inexistir estipulação quanto ao número de frações para o descanso em férias, subsiste a
limitação a dois períodos (§ 1º, do artigo 134, da CLT).
Além disso, quanto ao segundo período de fruição, elasteceu-se o prazo do
artigo 134, da CLT, devendo este ser concedido no prazo de 18 meses subseqüentes
à data em que o empregado houver adquirido o direito; ou seja, se o período ininterrupto de duas semanas deve ser concedido nos doze meses subseqüentes ao
9 Artigo 130-A - CLT - Na modalidade do regime de tempo parcial, após cada período de doze meses de vigência
do contrato de trabalho, o empregado terá direito a férias, na seguinte proporção:
I - dezoito dias, para a duração do trabalho semanal superior a vinte e duas horas, até vinte e cinco horas;
II - dezesseis dias, para a duração do trabalho semanal superior a vinte horas, até vinte e duas horas;
III - quatorze dias, para a duração do trabalho semanal superior a quinze horas, até vinte horas;
IV - doze dias, para a duração do trabalho semanal superior a dez horas, até quinze horas;
V - dez dias, para a duração do trabalho semanal superior a cinco horas, até dez horas;
VI - oito dias, para a duração do trabalho semanal igual ou inferior a cinco horas.
Parágrafo único. O empregado contratado sob o regime de tempo parcial que tiver mais de sete faltas injustificadas
ao longo do período aquisitivo terá o seu período de férias reduzido à metade.
10 Artigo 8º - Convenção 132, da OIT - 1. O fracionamento do período de férias anuais remuneradas pode ser
autorizado pela autoridade competente ou pelo órgão apropriado de cada país; 2. Salvo estipulação em contrário
contida em acordo que vincule o empregador e a pessoa empregada em questão, e desde que a duração do serviço
desta pessoa lhe dê direito a tal período de férias, uma das frações do referido período deverá corresponder pelo
menos a duas semanas de trabalho ininterruptos.
11 Artigo 134 - CLT -. As férias serão concedidas por ato do empregador, em um só período, nos 12 (doze) meses
subsequentes à data em que o empregado tiver adquirido o direito.
§ 1º. Somente em casos excepcionais serão as férias concedidas em dois períodos, um dos quais não poderá ser
inferior a 10 (dez) dias corridos.
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período aquisitivo (item I, do artigo 9º12, da Convenção), o restante da fração poderá
ser concedido até seis meses depois do término deste.
Ressalve-se, por importante que, segundo o item II de referido dispositivo,
poderá a outorga do segundo período, se excedente a 14 dias, ser postergada,
extrapolando tal prazo, sempre que tal adiamento conte com o consentimento do
empregado. Redefinem-se, assim, os prazos cujo descumprimento autoriza a
imposição da multa prevista pelo artigo 13713, da CLT, apenamento que fica abolido
na hipótese de haver interesse do empregado em postergar o segundo período
superior a duas semanas.
Parece-me, outrossim, que essa condescendência de tratamento quanto ao
segundo período pode levar a jurisprudência a padronizar essa liberalidade, estendendo-a também ao primeiro período, sempre que restar provado que tal elastecimento tenha ocorrido por inequívoco interesse do empregado.
Outro ponto a salientar é a subsistência dos dispositivos tendentes a orientar o
empregador na concessão das férias (parágrafos do artigo 13614, da CLT): considera-se
inadequado o posicionamento segundo o qual a norma internacional teria transformado o poder potestativo do empregador de estabelecer o período de concessão de férias
(caput de referido artigo), em ato negocial, uma vez que o artigo 1015 da Convenção
resguardou a determinação do empregador, limitando-se a instituir a necessidade de
consulta, o que faz prevalecer, ainda, as necessidades da empresa sobre a possibilidade
de repouso e diversão do empregado. Sem esquecer que o tratamento ideal será sempre aquele que consiga conciliar os interesses de ambas as partes.
Quanto ao período aquisitivo, não representou o novo ordenamento jurídico
qualquer avanço, uma vez que a legislação nacional já reconhecia a aquisição do
12 Artigo 9º - Convenção 132 da OIT - 1. A parte ininterrupta do período de férias anuais remuneradas mencionada no parágrafo 2 do Artigo 8 da presente Convenção deverá ser outorgada e gozada dentro de no máximo 1
(um) ano, e o resto do período de férias anuais remuneradas dentro dos próximos 18 (dezoito) meses, no máximo,
a contar do término do ano em que foi adquirido o direito de gozo de férias; 2. Qualquer parte do período de férias
anuais que exceder o mínimo previsto poderá ser postergada com o consentimento da pessoa empregada em
questão, por um período limitado além daquele fixado no parágrafo 1 deste Artigo;
13 Artigo 137 - CLT - Sempre que as férias forem concedidas após o prazo de que trata o artigo 134, o empregador
pagará em dobro a respectiva remuneração.
14 Artigo 136 - CLT - A época da concessão das férias será a que melhor consulte os interesses do empregador.
§ 1º. Os membros de uma família, que trabalharem no mesmo estabelecimento ou empresa, terão direito a gozar
férias no mesmo período, se assim o desejarem e se disto não resultar prejuízo para o serviço.
§ 2º. O empregado estudante menor de 18 (dezoito) anos terá direito a fazer coincidir suas férias com as férias escolares.
15 Artigo 10 - Convenção 132 da OIT - 1. A ocasião em que as férias serão gozadas será determinada pelo empregador, após consulta à pessoa empregada interessada em questão ou seus representantes, a menos que seja fixada
por regulamento, acordo coletivo, sentença arbitral ou qualquer outra maneira conforme à prática nacional; 2. Para
fixar a ocasião do período de gozo das férias serão levadas em conta as necessidades do trabalho e as possibilidades
de repouso e diversão ao alcance da pessoa empregada.
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direito às férias desde o primeiro mês do contrato laboral (a partir do 15º dia trabalhado).
Importância especial há de ser atribuída à ligação existente entre as férias proporcionais e o motivo da rescisão contratual havida antes do cumprimento de
um ano de prestação de serviços.
Em que pesem respeitáveis posicionamentos no sentido de que teria ocorrido unificação de tratamento16, garantindo-se o direito à proporcionalidade para o
empregado dispensado por justa causa e para o demissionário, compactuo da tese
defendida pelo Excelentíssimo Juiz Manoel Carlos Toledo Filho, que em seu artigo
“O direito a férias e as Convenções 132 e 146 da OIT”, publicado pela Revista Síntese
Trabalhista nº 150, em dezembro de 2001, aduz que a remuneração reduzida do
período de férias não é devida ao empregado dispensado por justa causa, uma vez
que “a ninguém é dado tirar proveito de sua própria torpeza”.
Não se olvide a reiterada jurisprudência no sentido de que a justa causa
somente pode ser aplicada em casos extremos, o que reforça a necessidade de subsistência de mecanismos de retaliação do direito contra o empregado faltoso.
Nestes termos, nenhuma modificação se perpetrou quanto aos artigos 14617 e
18
147 , da CLT.
Tampouco se pode falar em alterações quanto à remuneração do período de
férias, uma vez que a legislação brasileira é mais favorável que o dispositivo internacional. Desse modo, quanto ao pagamento antecipado, como já existente norma de
ordem pública prevista pelo artigo 14519, da CLT, tal afasta a possibilidade de acordo
16 Cite-se o brilhante artigo do Excelentíssimo Juiz Homero Batista Mateus, “A discreta vigência da Convenção 132 da
OIT sobre férias anuais remuneradas”, publicado pela Revista LTr, Suplemento Trabalhista 111/01, no qual aduz “A novidade legislativa consiste em unificar o tratamento: todos os empregados farão jus às férias proporcionais quando da cessação do contrato de trabalho, a partir da vigência da Convenção 132 da Organização Internacional do Trabalho.
Desnecessário grande esforço para se concluir que o ato faltoso nada tem a ver com as férias: enquanto o primeiro tolhe
o direito a indenizações legais pela rescisão contratual, as segundas representam mera compensação pelo esforço físico continuado ao longo de alguns meses, sendo altamente salutar, para a produtividade e para a higidez física, que o
empregado recobre suas energias e libere suas toxinas, ainda que não se trate exatamente de um operário padrão.
Busca-se evitar a associação entre o direito às férias e o caráter punitivo do poder diretivo patronal”.
17 Artigo 146 - CLT - Na cessação do contrato de trabalho, qualquer que seja a sua causa, será devida ao empregado a remuneração simples ou em dobro, conforme o caso, correspondente ao período de férias cujo direito tenha
adquirido.
Parágrafo único. Na cessação do contrato de trabalho, após 12 (doze) meses de serviço, o empregado, desde que não
haja sido demitido por justa causa, terá direito à remuneração relativa ao período incompleto de férias, de acordo com
o artigo 130, na proporção de 1/12 (um doze avos) por mês de serviço ou fração superior a 14 (quatorze) dias.
18 Artigo 147 - CLT - O empregado que for despedido sem justa causa, ou cujo contrato de trabalho se extinguir
em prazo predeterminado, antes de completar 12 (doze) meses de serviço, terá direito à remuneração relativa ao
período incompleto de férias, de conformidade com o disposto no artigo anterior.
19 Artigo 145 - CLT - O pagamento da remuneração das férias e, se for o caso, o abono referido no artigo 143 serão
efetuados até 2 (dois) dias antes do início do respectivo período.
Parágrafo único. O empregado dará quitação do pagamento, com indicação do início e do término das férias.
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entre patrão e empregado para que tal pagamento possa ser feito após a concessão
de férias, como mencionado no item 2, do artigo 7º20, da Convenção.
Indispensável mencionar, por fim, que a Convenção nº 132, da OIT, no item II do
artigo 6º21, inova ao estabelecer que não serão computados no período de férias os dias
de incapacidade para o trabalho resultantes de doença ou de acidentes.
Desse inciso pode-se extrair duas ilações:
1. se o empregado for acometido por doença ou se sofrer acidente durante
a fruição das férias, o período de licença médica será excluído de seu
cômputo e não poderá ser considerado como parte do período mínimo de
férias anuais remuneradas;
2. se sofrer doença ou acidente fora do período de fruição de férias, o interregno de afastamento não será computado para diminuir ou cancelar parte
do período mínimo mencionado. Mas veja-se que existe determinação de
que tal condição seja prevista pela autoridade competente ou órgão apropriado. Carece, pois, de regulamentação em cada país.
NOSSAS CONCLUSÕES
1. O prazo de trinta dias corridos para a duração das férias, mais favorável,
inviabiliza a aplicação da norma internacional no que pertine à exclusão
dos feriados existentes no curso das férias;
2. Ocorre a unificação do período mínimo de trinta dias para todas as
categorias profissionais (exceção aos marítimos, por força do artigo 2º da
Convenção), com a conseqüente desconsideração dos termos do artigo 3º,
da Lei nº 5.859/72.
3. O período mínimo sofre redução proporcional nas hipóteses de prática de
faltas injustificadas e de contrato sob o regime de tempo parcial.
4. Subsiste a possibilidade de fracionamento das férias, ressalvando-se a
impossibilidade de que um dos períodos seja inferior a duas semanas ininterruptas.
20 Artigo 7º - Convenção 132 da OIT - 1. Qualquer pessoa que entre em gozo do período de férias previsto na
presente Convenção deverá receber, em relação ao período global, pelo menos a sua remuneração média ou normal (incluindo-se a quantia equivalente a qualquer parte dessa remuneração em espécie, e que não seja de natureza
permanente, ou seja concedida quer o indivíduo esteja em gozo de férias ou não), calculada de acordo com a forma
a ser determinada pela autoridade competente ou órgão responsável de cada país; 2. As quantias devidas em decorrência do parágrafo 1 acima deverão ser pagas à pessoa em questão antes do período de férias, salvo estipulação
em contrário contida em acordo que vincule a referida pessoa e seu empregador.
21 Artigo 6º - Convenção 132 da OIT - (...) 2. Em condições a serem determinadas pela autoridade competente
ou pelo órgão apropriado de cada país, os períodos de incapacidade para o trabalho resultantes de doença ou de
acidentes não poderão ser computados como parte do período mínimo de férias anuais remuneradas previsto no
parágrafo 3, do Artigo 3 da presente Convenção.
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5. A concessão de férias deve ocorrer até 12 meses contados a partir da
aquisição do direito para o primeiro período, e até 18 meses para o
restante da fração.
6. Se superior a 14 dias o segundo período, há possibilidade de que sua concessão seja postergada mediante consentimento do empregado.
7. Redefinem-se os prazos cujo descumprimento autoriza a imposição da
multa prevista pelo artigo 137, da CLT, apenamento que fica abolido na
hipótese de haver interesse do empregado em postergar o segundo
período superior a duas semanas.
8. O estabelecimento do período de concessão de férias, consideradas as
necessidades da empresa, as possibilidades de repouso e diversão e a consulta ao empregado, continua a se inserir dentre os poderes potestativos
do empregador.
9. Permanece a vinculação entre o direito às férias proporcionais e o motivo
da rescisão contratual havida antes do cumprimento de um ano de
prestação de serviços.
10. A inovação quanto ao não-cômputo, para efeitos de fruição nos períodos
de férias, dos dias de incapacidade para o trabalho resultantes de doença
ou de acidente, carece de regulamentação pela autoridade competente.
Finalizando, não há como deixar de observar que, mesmo passados quase
três anos da data de entrada em vigor, no Brasil, da Convenção nº 132, da OIT,
ainda não se tem notícia, em sede de recurso em nossos Tribunais, de qualquer
apelo referente às férias, que faça menção expressa a essa Convenção.
O que se percebe é que, tanto os apelos como as respectivas decisões, continuam a se pautar pelas normas celetistas que antes regiam a matéria, sem qualquer
alusão ao novo ordenamento.
É que a Convenção nº 132, da OIT, talvez por ter sido acolhida no Brasil após
decorridos quase 30 (trinta) anos de sua conclusão em Genebra, nos chegando com
bastante atraso e quando nosso país já possuía legislação bem formulada a respeito
de férias, a qual, em sua maior parte, é mais benéfica ao trabalhador do que a norma
internacional, não causou qualquer impacto, gerando, até, uma certa estranheza.
Isso explicaria, a meu ver, o fato incontestável de ser ela mais uma daquelas
leis que não “emplacaram”, permanecendo no olvido dos aplicadores do Direito22.
22 Nesse mesmo sentido, as opiniões dos ilustres juristas José Luiz Ferreira Prunes e Estevão Mallet, que proferiram
palestras no II Congresso de Direito Material e Processual do Trabalho, em junho/2001, em Campinas, SP, tendo
esta articulista atuado como Coordenadora desse Painel, que se intitulou Alterações no capítulo das férias, da CLT,
pela Convenção nº 132 da OIT.
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faculdade de direito de bauru
BIBLIOGRAFIA
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Síntese Trabalhista, nº 146, Agosto/2001, p. 139/151.
NICÁCIO, Antonio. CONVENÇÃO N. 132 DA OIT, in Revista LTr, Suplemento Trabalhista
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Trabalhista 178/99, p. 931/934.
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VALÉRIO, João Norberto Vargas. FÉRIAS ANUAIS REMUNERADAS E A CONVENÇÃO Nº 132
DA OIT, in Revista LTr, Doutrina, setembro de 2001, p. 1051/1055
VIGIA & VIGILANTE
ELEMENTOS CARACTERIZADORES
NO DIREITO DO TRABALHO
Mauro Cesar Martins de Souza
www.maurocesar.com - [email protected]
Advogado licenciado
Professor Assistente de Direito na UNESP
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Presidente Prudente/SP
Mestre em Direito Civil pela UEL/PR - Doutorando em Direito do Trabalho pela PUC/SP
Juiz do TRT da 15a Região - Juiz Convocado do TST de 17/08/1999 a 09/12/1999
Autor do livro “Responsabilidade civil decorrente do acidente do trabalho” (Ed. Agá Juris)
No Brasil de hoje, em que se depara com uma forte crise, seja reflexo de ordem (ou, mais apropriado seria dizer, desordem) econômica, social e política, interna ou externa, vemos o setor da segurança pública quase que atingindo o colapso,
trazendo à tona a desorganização policial, o que leva muitos particulares e empresas privadas a contratarem mão-de-obra própria, na tentativa de protegerem seu patrimônio contra aqueles que não respeitam a coisa alheia. E, com a criminalidade em
ascensão, cresce praticamente na mesma proporção o número de trabalhadores ligados à atividade de vigilância. O presente estudo centra-se exatamente na questão
da classificação desta mão-de-obra, os chamados vigias e vigilantes.
Ab initio, necessário tecer conceitos básicos acerca dos vocábulos “vigia” e “vigilante”.
Segundo os lexicólogos, vigia significa ato ou efeito de vigiar, estado de quem
vigia, pessoa que vigia; guarda, sentinela, e vigilante significa ato de quem vigia ou
vigila; vigiante, vígil. Como se nota, quase inexistente diferença semântica entre os
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vocábulos, podendo o primeiro ser considerado o profissional que tem o dever de
guarda e cuidado sobre pessoas e coisas, enquanto o vocábulo vigilante pode ser
conceituado como a pessoa incumbida de realizar a vigilância de outras pessoas e
coisas, porém, sem deter a responsabilidade típica do trabalhador profissional da
área.
Entretanto, sob o aspecto legal, ou melhor, na linguagem técnico-jurídica, os
conceitos são distintos. O trabalhador vigia não está agasalhado por norma específica, como ocorre com o vigilante, que possui regramento próprio, consubstanciado
na Lei no 7.102, de 20/06/1983, com as alterações dadas pelas Leis no 8.863, de
28/03/1994 e a de no 9.017, de 30/03/1995, com a regulamentação contida no Decreto no 89.056, de 24/11/1983.
O conceito de vigilante é encontrado no art. 15 da Lei no 7.102/1983. De conformidade com a redação original do referido dispositivo, o vigilante era apenas “o
empregado contratado por estabelecimentos financeiros ou por empresas especializadas em prestação de serviços de vigilância ou de transporte de valores, para impedir ou inibir ação criminosa”. A Lei no 8.863/1994 veio trazer substancial modificação ao conceito, que passou a ser “o empregado contratado para a execução das atividades definidas nos incisos I e II do caput e §§ 2o, 3o e 4o do art. 10”.
Preleciona o citado art. 10 da Lei no 7.102/1983, já com a nova redação, in verbis:
“Art. 10. São consideradas como segurança privada as atividades
desenvolvidas em prestação de serviços com a finalidade de:
I- proceder à vigilância patrimonial das instituições financeiras e
de outros estabelecimentos, públicos ou privados, bem como a segurança de pessoas físicas;
II- realizar o transporte de valores ou garantir o transporte de
qualquer outro tipo de carga.
§ 1o. (omissis)
§ 2º. As empresas especializadas em prestação de serviços de segurança, vigilância e transporte de valores, constituídas sob a forma
de empresas privadas, além das hipóteses previstas nos incisos do
caput deste artigo, poderão se prestar ao exercício das atividades
de segurança privada a pessoas; a estabelecimentos comerciais,
industriais, de prestação de serviços e residenciais; a entidades
sem fins lucrativos; e órgãos e empresas públicas.
§ 3º. Serão regidas por esta lei, pelos regulamentos dela decorrentes e
pelas disposições da legislação civil, comercial, trabalhista, previdenciária e penal, as empresas definidas no parágrafo anterior.
§ 4º. As empresas que tenham objeto econômico diverso da vigilância ostensiva e do transporte de valores, que utilizem pessoal de
quadro funcional próprio, para execução dessas atividades, ficam
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obrigadas ao cumprimento do disposto nesta lei e demais legislações pertinentes”.
Infere-se que o conceito de vigilante foi alterado e ampliado, passando a ser
considerado como tal o empregado contratado tanto por empresas que tenham objeto econômico específico voltado à segurança, vigilância e transporte de valores,
como por outras, com objetivos sociais distintos.
De qualquer maneira, não foram excluídos do ordenamento legal os requisitos mínimos indispensáveis para o exercício da profissão, quais sejam, aqueles inseridos no art. 16 da no 7.102/1983: ser brasileiro; ter idade mínima de 21 anos; ter instrução correspondente à 4a série do 1o grau; ter sido aprovado em curso de formação de vigilante, realizado em estabelecimento com funcionamento autorizado; ter
sido aprovado em exame de saúde física, mental e psicotécnico; não ter antecedentes criminais registrados; e estar quite com as obrigações eleitorais e militares.
Também como condição para que determinado empregado seja considerado
vigilante, estipula o mesmo diploma legal, em seu art. 17 que “o exercício da profissão de vigilante requer prévio registro na Delegacia Regional do Ministério do Trabalho, que se fará após a apresentação dos documentos comprobatórios das situações enumeradas no artigo anterior”.
Estabelecem os artigos 18 e 19, ainda, o uso de uniforme e o porte de arma
quando o vigilante estiver em serviço.
Desta feita, sob a ótica legal, para que fique caracterizada a condição de vigilante, imprescindível à qualificação e treinamento específicos, decorrentes principalmente da formação em curso de vigilância que o habilite a combater a ação de
criminosos que intentem contra a integridade física e patrimonial das pessoas ou
coisas colocadas sob sua proteção.
Já o empregado contratado como vigia, embora também preste serviços de vigilância e segurança patrimonial, prescinde de melhor qualificação profissional, pois
a função tem apenas caráter preventivo, cabendo-lhe tão-somente fazer rondas internas e/ou externas nos estabelecimentos ou residências e, na hipótese de observar eventual irregularidade, compete-lhe apenas noticiar os fatos a quem de direito,
não integrando seu mister a obrigação de agir repressivamente.
Deste modo, ainda que tenham as alterações introduzidas pela Lei no
8.863/1994 sido de grande monta, não implicaram desaparecimento da diferenciação entre as atividades de vigia e vigilante.
Neste sentido, trilha o entendimento doutrinário, sendo elucidativa a lição de
Gonçalves1 ao comentar que a verdadeira distinção, conforme tem sido ressaltado
pela jurisprudência, reside na diversidade das funções que exercem, e não na forma
1 GONÇALVES, Emílio. Vigias e vigilantes no Direito do Trabalho, 2ª ed., São Paulo: LTr, p. 15-16.
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de contratação. O vigia é simplesmente um guarda de bens, enquanto o vigilante
exerce funções assemelhadas às de policiamento, de natureza parapolicial. Não há
como confundir as atribuições do vigia com as do vigilante, pois diferem quanto a
conteúdo e extensão. A diferenciação básica entre as funções de vigilante ou guarda
de segurança e as de vigia repousa na diversidade de conteúdo ocupacional: os vigias têm como incumbência circular no estabelecimento do empregador, por meio
de ronda diurna ou noturna, observando os fatos, não estando obrigados à prestação de outros serviços, ao passo que os vigilantes ou guardas de segurança, além das
funções de guarda propriamente dita, têm a seu cargo a defesa policial, para impedir ação criminosa contra os bens, exercendo, pois, funções mais complexas que o
vigia, em razão do maior âmbito das respectivas funções, das responsabilidades e do
preparo a que se submetem.
Existe distinção entre as atividades de vigia e vigilante, como já explanado, todavia não se pode perder de vista a previsão legal (após o advento da Lei no
8.863/1994) de as empresas que não têm objeto econômico de vigilância ostensiva
e transporte de valores poderem utilizar de quadro pessoal próprio para execução
dessas atividades, desde que cumpram as determinações especificadas na Lei no
7.102/1983 (art. 10, § 4o). Quer dizer, se houver comprovação de maneira a demonstrar que o empregado preenche os requisitos previstos nos artigos 16 e seguintes da
Lei no 7.102/1983, indispensáveis para o exercício da profissão, inclusive com curso
de formação que o capacite para a guarda e defesa policial, tem o direito de ser funcionalmente enquadrado como vigilante.
Tem-se pleno conhecimento da existência de serviços de vigilância exercidos
no âmbito residencial em que uma ou mais pessoas de determinada rua contratam
os serviços de guarda e policiamento do local. Referidos serviços podem ostentar
natureza autônoma ou subordinada.
Será considerada prestação de serviços autônomos se a contratação for realizada diretamente pelos proprietários das residências com o guarda. Neste caso,
a regra é não se falar em subordinação. Entretanto, como é cediço, toda regra
comporta exceção, e nessa situação não é diferente, tendo-se notícia de reclamações trabalhistas ajuizadas com intuito de reconhecimento de vínculo de emprego, inclusive com o pedido de enquadramento como trabalhador doméstico, senão vejamos:
“VIGIA OU VIGILANTE. SERVIÇOS NOTURNOS PARA RESIDÊNCIAS
FAMILIARES. Aquele trabalhador que presta serviços noturnos, pessoalmente, sem intermediação de empresas especializadas, vigiando casas residenciais, não é vigilante, mas doméstico, especialmente quando não demonstrado o preenchimento do requisito do
art. 16 da Lei n° 7.102/93 para o exercício profissional. Aplicação
da Lei n° 5.859/72 e não da Lei n° 7.102/93, esta com as alterações
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decorrentes da Lei n° 8.863/94.” (TRT 9ª Reg., RO nº 13.190/1998, ac
da 2ª T. nº 7.323/1999, rel. Juiz Luiz Eduardo Gunther, in DJ-PR de
16/04/1999);
“AÇÃO. DESISTÊNCIA. VIGIA. DOMÉSTICO. RECURSO. ADEQUAÇÃO
JURÍDICA. 1. A capacidade postulatória da parte é considerada
com restrições, quando há advogado constituído e não há revogação do mandato. É ineficaz a desistência pura e simples formulada pessoalmente quando o processo está em Segunda Instância. 2.
O vigilante contratado por um grupo de moradores ou por sociedade de amigos de bairro, sem fins lucrativos, para atuar em ruas
de residências é empregado doméstico, na forma da Lei nº
5.859/72, se presentes as condições usuais na prestação de serviço.
3. Não há ofensa ao princípio tantum devolutum quando o decreto é reformado para adequar corretamente o pedido aos termos legais. A pretensão do recorrente está implícita e circunscrita ao pedido de reforma total.” (TRT 2ª Reg., ac. nº 02960462119 da 6ª T.,
rel. Juiz Carlos Francisco Berardo, in DOE-SP de 25/09/1996).
No trabalho subordinado às situações características que melhor ilustram o
caso ocorrem quando o vigilante é contratado diretamente pela instituição financeira e, ainda, por empresa especializada em serviços de vigilância, tendo esta última a
finalidade de oferecer a prestação destes serviços a clientes, os chamados tomadores de serviços. Entre o vigilante e a empresa interposta, ou entre o vigilante e o estabelecimento financeiro que o contratou sem intermediação, a relação é de emprego, regido pelas normas consolidadas e especiais da categoria.
Neste particular, ressalte-se que, havendo contratação dos serviços com a intermediação de empresa especializada, não se cogita na caracterização de vínculo
empregatício entre o vigilante e o tomador dos serviços, entendimento este já sedimentado pelo C. TST, através do enunciado da Súmula no 331. Eventual responsabilidade, passível de ser configurada, é matéria que refoge ao presente estudo.
Feitas estas considerações, vem a dúvida quanto ao enquadramento funcional
e sindical, à possibilidade (ou não) dos vigias e vigilantes pertencerem a categorias
profissionais diferenciadas.
Para que o empregado seja beneficiado pela previsão legal, deve preencher os
requisitos na Lei no 7.102/1983, com a redação dada pela Lei no 8.863/1994, norma
legal esta que equipara os trabalhadores que efetuam guarda de estabelecimento
público ou privado aos vigilantes.
Assim, por existirem pressupostos inerentes ao cargo que, necessariamente,
devem ser preenchidos, em face da maior complexidade da atividade desenvolvida
que se assemelha ao exercício de policiamento, a solução da controvérsia, quando
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faculdade de direito de bauru
o vigia contratado por empresa que tem objeto econômico diverso da vigilância ostensiva e do transporte de valores pretende ser enquadrado na categoria de vigilante, reside na comprovação do atendimento das exigências legais. Restando comprovados os já citados pressupostos, pode o Poder Judiciário determinar a retificação
da CTPS do obreiro, enquadrando-o na função de vigilante.
No entanto, o regramento especial, quando disciplina a função dos vigilantes
contratados diretamente por empresas industriais e comerciais com objeto econômico diverso da prestação de serviços de segurança e vigilância, não cuida de determinadas vantagens decorrentes do contrato de trabalho, como o estabelecimento
de um piso salarial.
Nestes casos, podem ou não ser aplicados os benefícios previstos em dissídios
ou convenções coletivas de trabalho para a categoria dos vigilantes? Deve ou não o
empregador ser considerado representado pelas entidades sindicais que integram a
categoria econômica das empresas de vigilância e transporte de valores?
Na doutrina, o entendimento pende a responder negativamente a tal indagação.
Lemos2 afirma que os estabelecimentos industriais e comerciais, com objeto
econômico diverso da prestação de serviços de segurança e vigilância, não podem
ser presumidamente representados por outras entidades sindicais. Apenas os entes
sindicais de suas atividades econômicas estão aptos para representá-los em dissídios
ou convenções coletivas. Empresas comerciais e industriais só se submetem a instrumentos coletivos desde que deles sejam signatárias, ou ainda, que sua entidade
sindical representativa tenha participado da relação coletiva negocial ou processual
que ensejou o instrumento. Saliente-se, ainda, que o enquadramento sindical do
empregado é determinado pela atividade preponderante do empregador. Exceção
apenas para as categorias diferenciadas fixadas em lei. Porém, o Quadro de Atividades e Profissões, fixado na CLT, não inclui entre as categorias diferenciadas a dos vigilantes. Assim, o trabalhador que tem como atividade o zelo pela segurança, e que
seja empregado de uma empresa cujo objeto econômico é diverso da prestação de
serviços de segurança e vigilância, está sujeito ao mesmo enquadramento sindical
dos demais empregados que nela trabalham. Ampliar-se o conceito de vigilante, para
impor a todos os empregados que exercem a função, ainda que em empresas comerciais e industriais, os salários previstos em instrumentos coletivos firmados entre sindicatos de empresas de segurança e vigilância e sindicatos de empregados em
empresas de seguranças afrontam os artigos 511, 577 e 611 da CLT. Impossível, portanto, presumir-se o piso salarial dos vigilantes não empregados de empresas de segurança e vigilância sob o argumento de que, por força da Lei nº 8.863/1994, as empresas comerciais e industriais se fazem representar pelo Sindicato das Empresas de
Segurança e Vigilância.
2 LEMOS, Sérgio Murilo Rodrigues. Da Impossibilidade de Presumir Piso Salarial de Vigilantes, Jornal Trabalhista,
nº 681, 20/10/1997, p. 1087.
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Passos3 apregoa que, embora se possa afirmar serem extensíveis erga omnes
os efeitos das normas coletivas laborais, porquanto estas encerram meios de produção de institutos trabalhistas, tal extensão, todavia, só deve atingir aqueles interlocutores que dela participaram – e mais, ainda: aos que, embora não hajam participado no processo formal da norma, ao tempo de sua efetivação já se enquadrassem
como integrantes das respectivas categorias. Em outras palavras, os efeitos das normas coletivas (= convenções e sentenças normativas), malgrado se estendam aos
integrantes de categorias econômicas e profissionais envolvidas, não possuem o
condão de antever situações futuras, tais como reenquadramento, mudança de categoria, etc.
Também na jurisprudência, há julgados que fortalecem o entendimento da
doutrina contrária ao enquadramento sindical, litteris:
“VIGIA. DIFERENÇAS SALARIAIS. EQUIPARAÇÃO COM VIGILANTE. O
vigia, contratado por empresa que tem objeto econômico diverso
da vigilância ostensiva e do transporte de valores, e que não faz
prova do implemento dos requisitos previstos no art. 16 da Lei nº
8.863/94 para o exercício da função de vigilante, não faz jus ao
piso salarial estipulado em normas coletivas desta categoria,
quando mais que a empregadora não foi suscitada naquelas.”
(TRT 4ª Reg., RO nº 00722.771/1999-1, ac. da 4ª T., rel. Juíza Teresinha M. D. S. Correia, julgado em 31/01/2001);
“REPRESENTAÇÃO SINDICAL. DIREITOS DECORRENTES DE CONVENÇÕES COLETIVAS. VIGIA E VIGILANTE. A Lei nº 7.102/83, com a
redação dada pela Lei nº 8.863/94, estabelece, em seu art. 16, os requisitos indispensáveis para o exercício da profissão de vigilante.
Hipótese em que o autor não provou que, mesmo enquadrado
como vigia, exercesse atividades típicas de vigilante e preenchesse
os requisitos para o desempenho desta atividade. Recurso provido,
para absolver o reclamado da condenação imposta.” (TRT 4ª Reg.,
RO nº 00147.017/1997-1, ac. da 3ª T., rel. Juiz Sebastião Alves de
Messias, julgado em 11/10/2000);
“ENQUADRAMENTO SINDICAL. CATEGORIA PROFISSIONAL DOS VIGILANTES. Via de regra o enquadramento sindical é fixado pela
atividade preponderante da empresa. Outrossim, o vigia ou zelador não se confunde com o vigilante. No caso em apreço não dili-
3 PASSOS, Nicanor Sena. Reenquadramento Sindical – Vigilante, Jornal Trabalhista, nº 682, 27/10/1997, p. 1100.
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genciou o reclamante nas imprescindíveis provas do exercício da
função cujo reconhecimento busca. Não é, pois, beneficiário das
vantagens previstas nas normas coletivas adunadas aos autos.”
(TRT 4ª Reg., RO nº 01286.261/1997-0, ac. da 6ª T., rel. Juíza Beatriz
Zoratto Sanvicente, julgado em 21/09/2000);
“EMPRESA DE RADIODIFUSÃO. VIGILANTE. CATEGORIA DIFERENCIADA. Trabalhador que presta serviço como vigia à empresa de
Radiodifusão, Televisão e Publicidade não integra categoria diferenciada, não havendo como aplicar-lhe as disposições de instrumentos normativos específicos de Empresa de Vigilância. A condição de vigilante exige o preenchimento dos requisitos do art. 1º da
Lei 8.863/94.” (TRT 21ª Reg., RO nº 27-00400-1997-3, rel. Juiz Waldeci Gomes Confessor, in DOE-RN de 05/05/1999).
Em que pese a adoção de posicionamento doutrinário e jurisprudencial regional mencionado alhures, assim como o entendimento do C. Tribunal Superior do
Trabalho, que agasalha a Orientação Jurisprudencial no 55 da SBDI 1, segundo a qual
o “empregado integrante de categoria profissional diferenciada não tem o direito de
haver de seu empregador vantagens previstas em instrumento coletivo no qual a
empresa não foi representada por órgão de classe de sua categoria”, existem entendimentos em sentido diametralmente oposto quanto ao alcance das normas coletivas aos integrantes de categoria diferenciada.
Há a tese de que ao empregado que exerce função diversa da atividade econômica preponderante do empregador e que também pertence à categoria diferenciada dos vigilantes, devem ser aplicados os instrumentos normativos relativos a sua
categoria, sendo despiciendo o fato de a empresa não ter sido suscitada no dissídio,
o impasse se resolve dentro do princípio de que o efeito tanto da sentença quanto
da convenção coletiva pode ser estendido a quem não as integrou inicialmente.
Nesse aspecto, importante a lição de Giglio4, de maneira a considerar que todas as empresas que mantenham empregados da mesma categoria profissional dos
suscitantes sofrem os efeitos da decisão normativa, ainda que não tenham sido, cada
uma delas, individualmente, parte do dissídio, em conseqüência do efeito ultralitigante dessas sentenças. Veja-se a jurisprudência respectiva:
“RECURSO ORDINÁRIO. VIGILANTE. Mantido o entendimento do
Juízo de Piso de que o reclamante exercia a função de vigilante,
desacolhendo-se a alegação da empresa de que o obreiro era ape-
4 GIGLIO, Wagner D. Direito Processual do Trabalho, 10a ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p. 375.
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nas um simples vigia. Ademais, note-se que devido ao fato de o reclamante exercer função diversa da atividade econômica preponderante da recorrente e, também, pertencer à categoria diferenciada dos vigilantes, deverão ser aplicados ao obreiro os instrumentos normativos relativos à sua categoria, sendo despiciendo
que a empregadora tenha participado da negociação coletiva que
originou os referidos instrumentos normativos. ADICIONAL DE RISCO – O fato de o reclamante portar arma de fogo em seu trabalho
não gera para o obreiro o direito à percepção do adicional de periculosidade previsto no art. 193 da CLT e na Lei 7369/85.” (TRT 17ª
Reg., RO nº 3046/1999, ac. nº 7052/2000, rel. Juiz José Carlos Rizk,
in DJ-ES de 14/08/2000);
“VIGIA. EQUIPARAÇÃO A VIGILANTE. CATEGORIA DIFERENCIADA.
Essencialmente, não diferem as atividades exercidas por vigias,
guardas ou vigilantes, todos com tarefa constante de guardar, proteger o patrimônio alheio, pondo em risco a sua própria vida. Não
tem relevância a formação do empregado ou ainda se presta seu
serviço armado, já que é do empregador o dever de oportunizar a
freqüência em curso específico e fornecer o equipamento necessário. ENQUADRAMENTO SINDICAL. APLICAÇÃO DE NORMAS COLETIVAS DA CATEGORIA DE VIGILANTE. Ao trabalhador que exerce
função diversa da atividade econômica preponderante da empresa, são aplicáveis as decisões normativas relativas ao trabalho efetivamente exercido, sendo desnecessário que seu empregador tenha participado do processo de dissídio como suscitado, pois configurada está a categoria diferenciada.” (TRT 4ª Reg., RO
01031.01719/97-6, ac. da 3ª T., rel. Juíza Maria Inês Cunha Dornelles, julgado em 02/03/2000).
Em síntese, como foi possível verificar, grande parte da doutrina e dos nossos Tribunais não aceita o enquadramento funcional e sindical dos vigilantes sem
o preenchimento dos requisitos formais específicos, tampouco a aplicação dos
instrumentos normativos relativos a sua categoria quando o empregador ou a
entidade de classe representativa de sua categoria econômica não tenha sido
suscitada no dissídio.
Entretanto, de fato, o vigilante faz parte de uma categoria que possui regras
próprias, com formação e treinamento específicos, caracterizando mão-de-obra especializada, enquanto a situação do vigia é diferente, na medida em que pode, quando muito, ser caracterizada mão-de-obra semi-especializada, estando diretamente
vinculado ao tomador de seus serviços.
100
faculdade de direito de bauru
Afora isto, por força do disposto no § 4o do art. 10 da Lei no 7.102/1983, constitui ônus das empresas que tenham objeto econômico diverso da vigilância ostensiva e do transporte de valores, a observância e atendimento dos requisitos impostos para a contratação e utilização de pessoal do quadro funcional próprio para exercer a função de vigilante, por obrigar essas empresas ao cumprimento das disposições dessa lei e demais legislações pertinentes. Na hipótese de a empresa não atentar para o comando legal, não pode o empregado ser tolhido em seus direitos, decorrentes da legislação especial da categoria.
Todavia, quanto aos benefícios previstos em instrumentos normativos da categoria dos vigilantes no caso de o empregador, ou de sua entidade de classe, não
ter participado das negociações, não há como serem conferidos ao empregado.
O enquadramento sindical patronal faz-se pelo princípio da atividade preponderante da empresa, sendo que em decorrência da categoria econômica cria-se a
categoria profissional, isto é, os trabalhadores são enquadrados na associação correspondente àquela em que estão enquadrados os respectivos empregadores.
Considerando o desempenho do empregado na função de vigilante, é certo
que pertence a categoria profissional diferenciada. Entretanto, seu enquadramento
sindical continua atrelado à atividade preponderante da empresa empregadora, se
esta não participou da formação das normas coletivas pertinentes àquela categoria
profissional, por si ou pela entidade sindical representativa da categoria econômica.
Nesse sentido, repetindo, é o entendimento jurisprudencial consubstanciado na
Orientação Jurisprudencial no 55, da SBDI 1, do C. TST.
O fato de o empregado pertencer a categoria diferenciada, de per si, não enseja a aplicação automática dos instrumentos coletivos firmados com a entidade sindical representante dos trabalhadores em empresas de segurança e vigilância, pelo
fato de não estar a empresa obrigada às condições de trabalho ali pactuadas quando não tenha participado, direta ou indiretamente (através da entidade de classe
que a representa), da formulação de referidas normas.
OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS
HUMANOS COMO FONTE DO SISTEMA
CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO DE DIREITOS
Valerio de Oliveira Mazzuoli
Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da UNESP.
Professor de Direito Internacional Público e Direitos Humanos no
Instituto de Ensino Jurídico Professor Luiz Flávio gomes (IELF), em São Paulo,
e nas Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo, em Presidente Prudente-SP.
Advogado no Estado de São Paulo.
1.
INTRODUÇÃO
O presente ensaio tem por finalidade demonstrar que a Constituição brasileira de 1988 consagrou, no que tange ao seu sistema de direitos e garantias, uma dupla fonte normativa, sendo uma delas os tratados internacionais de proteção dos
direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro.
Para tanto, em primeiro lugar, buscou-se demonstrar como a Carta Magna de
1988, influenciada pela nova ordem internacional instaurada finda a Segunda Grande Guerra, se abriu definitivamente para o sistema internacional de proteção de direitos. Num segundo momento, pretendeu-se verificar como os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos integram-se à Constituição e como tais instrumentos passam a ser fonte do nosso rol de direitos e garantias constitucionalmente protegidos.
Buscou-se neste estudo, dar um novo enfoque à questão das relações entre o
Direito Internacional e o direito interno, no que toca à proteção internacional dos
direitos humanos e seu impacto no direito brasileiro.
faculdade de direito de bauru
102
2.
INOVAÇÃO CONSTITUCIONAL
A Constituição de 1988, alcunhada de “cidadã”, foi o marco fundamental para
o processo da institucionalização dos direitos humanos no Brasil. Erigindo a dignidade da pessoa humana a princípio fundamental, pelo qual a República Federativa
do Brasil deve se reger no cenário internacional, instituiu a Carta de 1988 um novo
valor que confere suporte axiológico a todo sistema jurídico brasileiro e que deve
ser sempre levado em conta quando se trata de interpretar quaisquer das normas
constantes do ordenamento jurídico pátrio.1
Nessa esteira, a Carta de 1988, seguindo a tendência do constitucionalismo
contemporâneo de se igualar hierarquicamente os tratados de proteção dos direitos
humanos às normas constitucionais, deu um grande passo rumo a abertura do sistema jurídico brasileiro ao sistema internacional de proteção de direitos, quando, no
§ 2.º do seu art. 5.º, deixou estatuído que:
“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou
dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte” [grifo nosso].
A inovação, em relação às Cartas anteriores, diz respeito à referência aos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Tal
modificação, referente a estes instrumentos internacionais, além de ampliar os
mecanismos de proteção da dignidade da pessoa humana, veio também reforçar
e engrandecer o princípio da prevalência dos direitos humanos, consagrado pela
Carta de 1988 como um dos princípios pelo qual a República Federativa do Brasil deve se reger em suas relações internacionais (CF, art. 4.º, II). E isto fez com
se modificasse sensivelmente a interpretação relativa às relações do direito internacional com o direito interno, no que toca à proteção dos direitos fundamentais, coletivos e sociais. Basta pensar que a inserção dos Estados em um sistema supraestatal de proteção de direitos, com seus organismos de controle internacional, fortalece a tendência constitucional em limitar o Estado e seu poder em prol da proteção e salvaguarda dos direitos humanos universalmente reconhecidos.
O processo de internacionalização dos direitos humanos, assim, teve fundamental importância para a abertura democrática do Estado brasileiro, que passou
a afinar-se com os novos ditames da nova ordem mundial a partir de então estabelecida. Essa abertura, por sua vez, contribuiu enormemente para a inserção automá1 Para um estudo aprofundado do assunto, vide VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI, Direitos humanos, Constituição e os
tratados internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do tratado na ordem jurídica brasileira. São
Revista do instituto de pesquisas e estudos
N.
38
103
tica dos tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurídica brasileira e
para a redefinição da cidadania no âmbito do direito brasileiro.
3.
OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS COMO
FONTE DO SISTEMA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO DE DIREITOS
Da análise do § 2.º do art. 5.º da Carta brasileira de 1988, percebe-se que três
são as vertentes, no texto constitucional brasileiro, dos direitos e garantias individuais: a) direitos e garantias expressos na Constituição, a exemplo dos elencados
nos incisos I ao LXXVII do seu art. 5.º, bem como outros fora do rol de direitos mas
dentro da Constituição, como a garantia da anterioridade tributária, prevista no art.
150, III, b, do Texto Magno; b) direitos e garantias implícitos, subentendidos nas regras de garantias, bem como os decorrentes do regime e dos princípios pela Constituição adotados, e c) direitos e garantias inscritos nos tratados internacionais em
que a República Federativa do Brasil seja parte.
A Carta de 1988, com a disposição do § 2.º do seu art. 5.º, de forma inédita,
passou a reconhecer, de forma clara, no que tange ao seu sistema de direitos e garantias, uma dupla fonte normativa: a) aquela advinda do direito interno (direitos
expressos e implícitos na Constituição, estes últimos decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados), e; b) aquela outra advinda do direito internacional (decorrente dos tratados internacionais de direitos humanos em que a República Federativa do Brasil seja parte). De forma expressa, a Carta de 1988 atribuiu aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos devidamente ratificados pelo
Estado brasileiro a condição de fonte do sistema constitucional de proteção de direitos e garantias. É dizer, tais tratados passam a ser fonte do sistema constitucional
de proteção de direitos no mesmo plano de eficácia e igualdade daqueles direitos,
expressa ou implicitamente, consagrados pelo texto constitucional, o que justifica o
status de norma constitucional que detêm tais instrumentos internacionais no ordenamento brasileiro. E esta dualidade de fontes que alimenta a completude do sistema significa que, em caso de conflito, deve o intérprete optar preferencialmente
pela fonte que proporciona a norma mais favorável à pessoa protegida, pois ao que
se visa é a otimização e a maximização do sistema (interno e internacional) de direitos e garantias individuais.2
A cláusula aberta do § 2.º do art. 5.º da Carta da República de 1988, assim, está
a admitir visivelmente que os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo governo ingressam no ordenamento jurídico brasileiro no
mesmo grau hierárquico das normas constitucionais, e não em outro âmbito de hierarquia normativa.
2 Cf. GERMAN J. BIDART CAMPOS. Tratado elemental de derecho constitucional argentino, Tomo III. Buenos Aires:
Ediar Sociedad Anónima, 1995, p. 282.
104
faculdade de direito de bauru
Ora, se a Constituição estabelece que os direitos e garantias nela elencados
“não excluem” outros provenientes dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte, é porque ela própria está a autorizar que esses direitos e garantias internacionais constantes dos tratados internacionais ratificados pelo
Brasil “se incluem” no nosso ordenamento jurídico interno, passando a ser considerados como se escritos na Constituição estivessem. É dizer, se os direitos e garantias
expressos no texto constitucional “não excluem” outros provenientes dos tratados
internacionais em que o Brasil seja parte, é porque, pela lógica, na medida em que
tais instrumentos passam a assegurar certos direitos e garantias, a Constituição “os
inclui” no seu catálogo de direitos protegidos, ampliando, assim, o seu “bloco de
constitucionalidade”.3
Grande parte da doutrina constitucionalista brasileira, infelizmente, parece
não ter se apercebido do grande passo dado pelo legislador constituinte de 1988 na
disposição do § 2.º do art. 5.º da Constituição, que faz agora referência à expressão
“tratados internacionais”, não encontrada nas Cartas anteriores. O internacionalista
CELSO D. DE ALBUQUERQUE MELLO, a esse respeito, cita vários autores brasileiros, como
MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, IVO DANTAS, PINTO FERREIRA, ALCINO PINTO FALCÃO e
JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, que ao comentarem o citado dispositivo, não levaram em consideração as conseqüências da inserção da referida expressão “tratados internacionais” naquele dispositivo. E a conclusão que chegou CELSO ALBUQUERQUE MELLO foi a
seguinte:
“O que se pode dizer é que os constitucionalistas brasileiros de um
modo geral ignoram o Direito Internacional Público e não sabem
aplicá-lo. Não há por parte deles nenhuma menção a questão das relações entre o DI e o D. Interno. Ou ainda, não se referem ao status
das normas dos tratados dos Direitos Humanos perante o D. Interno.
Eles se esqueceram até de verificarem os Anais da Constituinte onde
veriam que havia alguma novidade, vez que, como já afirmamos, é
uma proposição do internacionalista Cançado Trindade”.4
3 Cf. VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI. Direitos humanos, Constituição e os tratados internacionais…, cit., pp. 233252. Pelo status constitucional dos tratados de direitos humanos, vide também: ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, “A interação entre o direito internacional e o direito interno na proteção dos direitos humanos”, in A incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no direito brasileiro, 2.ª ed., San José, Costa Rica/Brasília: IIDH (et all.), 1996, pp. 210 e ss; FLÁVIA PIOVESAN, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, 4.ª ed., São Paulo: Max Limonad, 2000, pp. 73-94, e Temas de direitos humanos, São Paulo: Max Limonad, 1998, pp. 34-38; JOSÉ AFONSO DA SILVA, Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a Constituição, São
Paulo: Malheiros, 2000, pp. 195-196; e JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES, O Supremo Tribunal Federal e o direito internacional: uma análise crítica, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, pp. 64 e ss.
4 Cf. CELSO D. DE ALBUQUERQUE MELLO. “O § 2º do art. 5º da Constituição Federal”, in RICARDO LOBO TORRES (org.), Teoria dos Direitos Fundamentais, 2.ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 17-18.
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Na medida em que a Constituição deixa de prever determinados direitos e garantias, e encontrando-se tal previsão nos tratados internacionais de proteção dos
direitos humanos em que a República Federativa do Brasil é parte, tem-se que tais
instrumentos sobrepõem-se à toda legislação infraconstitucional interna por ter a
Carta Magna equiparado, no mesmo grau de hierarquia normativa, os direitos e garantias nela constantes àqueles advindos de tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro.
Como bem sustenta FLÁVIA PIOVESAN, quando a Carta da 1988 em seu art. 5.º, §
2.º, dispõe que “os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais”, é porque contrario sensu,
está ela “a incluir, no catálogo dos direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Este processo de inclusão implica a incorporação pelo texto constitucional destes direitos”.5
E isto significa, na inteligência do art. 5.º, § 2.º da Constituição Federal, que o
status do produto normativo convencional, no que tange à proteção dos direitos
humanos, não pode ser outro que não o de verdadeira norma materialmente constitucional. Diz-se “materialmente constitucional”, tendo em vista não integrarem tais
tratados, formalmente, a Carta Política, o que demandaria um procedimento de
emenda à Constituição, previsto no art. 60, § 2.º, o qual prevê que tal proposta “será
discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos
membros”. Integram os tratados de proteção dos direitos humanos, entretanto, o
conteúdo material da Constituição, o seu “bloco de constitucionalidade”.
Note-se que a Constituição, no § 2.º do seu art. 5.º, não se refere à lei, mas tãosomente aos direitos por ela, Constituição, assegurados, ou inscritos nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. De modo que se uma lei
contemplar outro direito ou garantia que não esteja previsto no corpo da Constituição,
esta lei, sem ferir o texto constitucional, poderá ser revogada por outra que lhe seja
posterior. Entretanto, se tal direito ou garantia vier expresso em tratado de direitos humanos ratificado pelo Estado brasileiro, a lei interna não poderá revogá-lo, diante do
status de norma constitucional que detêm os dispositivos desses tratados.6
Assim, entendam-se, os direitos internacionais provenientes de tratados, em
face da cláusula de não-exclusão do § 2.º do art. 5.º da Carta de 1988, passam a incluir-se no chamado “bloco de constitucionalidade”, e não no texto constitucional
propriamente dito. E assim sendo, como explica CARLOS WEIS,
“o artigo que confere ao Supremo Tribunal Federal poder de decidir sobre a constitucionalidade de tratado internacional (art. 102,
5 FLÁVIA PIOVESAN. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, cit., p. 73.
6 Cf. JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES. O Supremo Tribunal Federal e o direito internacional…, cit., pp. 64-65.
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faculdade de direito de bauru
III, “b”) não pode ser aplicado aos que tenham por objeto direitos
humanos, os quais (…) possuem ‘privilégio hierárquico’ em relação aos demais, conferido pela Constituição Federal de 1988, em
atenção à sua natureza e finalidade”.7
Explica-se: não se declara a inconstitucionalidade de direitos e garantias fundamentais. São eles cláusulas pétreas, não podendo ser abolidos nem mesmo pela
via de Emenda à Constituição. E a situação dos tratados de proteção dos direitos humanos não é outra. Gozando tais instrumentos de hierarquia constitucional, e ingressando, consequentemente, no chamado “bloco de constitucionalidade”, ou
seja, no catálogo dos direitos e garantias fundamentais protegidos, fica também impedida, por parte do Supremo Tribunal Federal, qualquer declaração de inconstitucionalidade no que diz respeito aos direitos e garantias neles contidos. Sendo considerados normas constitucionais, dá-se por desprezado qualquer argumento que
possa sustentar o seu não-cumprimento ou a sua não-aplicação.8
Em suma, tanto os direitos como as garantias constantes dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos de que o Brasil seja parte, passam, com
a ratificação desses instrumentos, a integrar o rol dos direitos e garantias constitucionalmente protegidos, ampliando consideravelmente o núcleo mínimo dos direitos constitucionalmente protegidos.9
Há de se enfatizar, porém, que os demais tratados internacionais que não versem sobre direitos humanos, não têm natureza de norma constitucional; terão sim,
natureza de norma infraconstitucional (mas supra-legal, não podendo, contudo, ser
revogados por lei posterior), extraída justamente do citado art. 102, III, b, da Carta
Magna, que confere ao Supremo Tribunal Federal a competência para “julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância,
quando a decisão recorrida: b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”. O termo “inconstitucionalidade dos tratados”, frise-se, surgiu pela primeira
vez com a Carta de 1967, emendada em 1969, que atribuía ao Supremo Tribunal Federal a competência para “julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância por outros tribunais, quando a decisão recorrida
declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal” (art. 119, III, b). Neste
caso, como se percebe com facilidade, é perfeitamente válida a declaração de inconstitucionalidade dos instrumentos internacionais tradicionais ou comuns pelo
Pretório Excelso.
7 CARLOS WEIS. Direitos humanos contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 1999, pp. 33-34.
8 Cf. GERMAN J. BIDART CAMPOS. Tratado elemental de derecho constitucional argentino, Tomo III, cit., pp. 287-288.
9 Sobre o impacto jurídico de tais tratados no ordenamento brasileiro, vide VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI, Direitos
humanos, Constituição e os tratados internacionais…, cit., pp. 265-271; para o impacto dos tratados de direitos
humanos na ordem internacional, cf. pp. 323-325.
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À primeira vista, a conclusão que se extrai do dispositivo é a de que os tratados internacionais (tradicionais ou comuns, tão-somente) apresentam a mesma
hierarquia jurídica das leis federais, sendo, portanto, aplicável no caso de conflito, a
regra lex posterior derogat priori. Foi inclusive com base nesse dispositivo que o
STF passou a adotar a já comentada teoria da paridade, equiparando o tratado às
leis federais. Mas, segundo já assentamos, os tratados internacionais (comuns) incorporados ao ordenamento brasileiro, estão, na escala hierárquica das normas,
numa posição intermediária, situando-se abaixo da Constituição, mas acima da legislação infraconstitucional, não podendo ser revogados por lei posterior, posto que
os tratados têm sua forma própria de revogação que é a denúncia.
Não é demais recordar que a decisão da Excelsa Corte que deu aos tratados
internacionais o mesmo grau hierárquico das leis infraconstitucionais, no Recurso
Extraordinário 80.004-SE, de 1977, além de ter sido proferida antes da entrada em
vigor da Constituição de 1988, tratava de matéria atinente ao direito comercial, estranha, por conseguinte, ao objeto do direito internacional dos direitos humanos.
Dessa forma, mais do que vigorar como lei interna, os direitos e garantias
fundamentais proclamados nas convenções ratificadas pelo Brasil, por força do
mencionado art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, passam a ter, por vontade da
própria Carta Magna, o status de “norma constitucional”. A isto se acrescenta o
argumento, sustentado por boa parte da doutrina publicista, de que os tratados
de direitos humanos têm superioridade hierárquica em relação aos demais acordos internacionais de caráter mais técnico, pois formam todo um universo de
princípios não convencionais imperativos, chamados de jus cogens, que, como
já se viu anteriormente, não podem ser derrogados por tratados internacionais,
por deterem uma força obrigatória anterior a todo o direito positivo. Tais regras
de jus cogens, a exemplo dos direitos humanos fundamentais, assim, têm o caráter de serem normas imperativas de direito internacional geral, sendo consideradas aceitas e reconhecidas pela comunidade internacional dos Estados,
em seu conjunto, como normas que não admitem acordo em contrário (é direito imperativo para os Estados) e que somente podem ser modificadas por uma
norma ulterior de direito internacional geral que tenha, ademais, o mesmo caráter. Dessa forma, somente surgindo nova norma de direito internacional geral é
que os tratados existentes que estejam em oposição com esta norma se tornarão nulos e terminarão.
A hierarquia constitucional dos tratados de proteção dos direitos humanos
não serve apenas de complemento à parte dogmática da Constituição, implicando,
ainda, o exercício necessário de todo o poder público – aí incluso o judiciário –, em
respeitar e garantir a plena vigência desses instrumentos. Disto decorre que a violação de tais tratados constitui não só em responsabilidade internacional do Estado,
mas também na violação da própria Constituição que os erigiu à categoria de normas constitucionais.
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faculdade de direito de bauru
Aqueles que resistem a esta solução – tanto no Brasil, como em outros países
que elegeram os tratados de proteção dos direitos humanos como normas prevalentes – apelam, no mais das vezes, para a tão antiga doutrina da soberania estatal absoluta – que a seus juízos ficaria desvirtuada ou prejudicada – bem como para a supremacia da Constituição. Não falta também a invocação ao poder constituinte, sob
a infundada alegação de que, admitir que os tratados internacionais de proteção dos
direitos humanos têm status de norma constitucional (ou supraconstitucional se levarmos em conta a tendência mundial de proteção de direitos), seria o mesmo que
anular de vez a participação dos órgãos do poder constituído no processo de formação das leis.
Tais argumentos, nas palavras de BIDART CAMPOS, traduzem uma escassíssima
capacidade de absorção das tendências que, aos fins de nosso século, exibem o direito internacional e o direito constitucional comparado. Ademais, não revisar os
conceitos e os modelos tradicionais do poder constituinte e da supremacia constitucional a fim de introduzir-lhes os reajustes que o ritmo histórico do tempo e as circunstâncias mundiais reclamam, significa, certamente, paralisar a doutrina constitucional com congelamentos que eqüivalem a atraso.10
Como se já não bastasse o status constitucional atribuído pela Carta de 1988
aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, é ainda de se ressaltar que tais tratados, por disposição também expressa da Constituição, passam a incorporar-se automaticamente em nosso ordenamento, a partir de suas respectivas
ratificações. É a conclusão que se extrai do mandamento do o § 1.º do art. 5.º da
nossa Carta Magna, que assim dispõe:
“As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata”.
A inserção desta norma no Título correspondente aos “direitos e garantias
fundamentais” na Carta Magna de 1988, fora influenciada, por certo, pelo anteprojeto elaborado pela “Comissão Afonso Arinos”, que, em seu art. 10, continha preceito
semelhante, o qual estabelecia que “os direitos e garantias desta Constituição têm
aplicação imediata”.
Frise-se que o § 1.º do art. 5.º da Constituição de 1988, dá aplicação imediata
a todos os direitos e garantias fundamentais, sejam estes expressos no texto da
Constituição, ou provenientes de tratados, vinculando-se todo o judiciário nacional
a esta aplicação, e obrigando, por conseguinte, também o legislador, aí incluído o legislador constitucional. É dizer, seu âmbito material de aplicação transcende o catálogo dos direitos individuais e coletivos insculpidos nos arts. 5.º a 17 da Carta da República, para abranger ainda outros direitos e garantias expressos na mesma Constituição (mas fora do catálogo), bem como aqueles decorrentes do regime e dos
10 Cf. GERMAN J. BIDART CAMPOS. El derecho de la Constitucion y su fuerza normativa. Buenos Aires: Ediar Sociedad Anónima Editora, 1995, pp. 455-456.
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princípios por ela adotados e dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, tudo, consoante a regra do § 2.º do seu art. 5.º.
É justamente este último caso (aplicação imediata dos tratados internacionais
de direitos humanos) que nos interessa neste estudo. Ora, se as normas definidoras
dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, uma vez ratificados, por também conterem
normas que dispõem sobre direitos e garantias fundamentais, terão, dentro do contexto constitucional brasileiro, idêntica aplicação imediata. Da mesma forma que são
imediatamente aplicáveis aquelas normas expressas nos arts. 5.º a 17 da Constituição da República, o são, de igual maneira, as normas contidas nos tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil seja parte.
Atribuindo-lhes a Constituição a natureza de “normas constitucionais”, passam os tratados de proteção dos direitos humanos, pelo mandamento do citado §
1.º do seu art. 5º, a ter aplicabilidade imediata, dispensando-se, desta forma, a edição de decreto de execução para que irradiem seus efeitos tanto no plano interno
como no plano internacional. Já nos casos de tratados internacionais que não versem sobre direitos humanos, este decreto, materializando-os internamente, faz-se
necessário. Em outra palavras, com relação aos tratados internacionais de proteção
dos direitos humanos, foi adotado no Brasil o monismo internacionalista kelseniano, dispensando-se da sistemática da incorporação, o decreto executivo presidencial para seu efetivo cumprimento no ordenamento pátrio, de forma que a simples
ratificação do tratado por um Estado importa na incorporação automática de suas
normas à respectiva legislação interna.
É ainda de se ressaltar que todos os direitos inseridos nos referidos tratados,
incorporando-se imediatamente no ordenamento interno brasileiro (CF, art. 5.º, §
1.º), por serem normas também definidoras dos direitos e garantias fundamentais, passam a ser cláusulas pétreas do texto constitucional, não podendo ser suprimidos nem mesmo por emenda à Constituição (CF, art. 60, § 1.º, IV ). É o que se extrai do resultado da interpretação dos §§ 1.º e 2.º, do art. 5.º da Lei Fundamental,
em cotejo com o art. 60, § 4.º, IV, da mesma Carta. Isto porque, o §1.º, do art. 5.º,
da Constituição da República, como se viu, dispõe expressamente que “as normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
Aceitar, pois, o ingresso dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos com hierarquia igual ou superior a das normas constitucionais significa, ao contrário do que pensam os autores adeptos da soberania estatal absoluta, deixar a Constituição mais intensa e com melhor aptidão para operar com o direito internacional.
4.
SÍNTESE CONCLUSIVA
A conclusão a que se chega do que acima foi exposto é que os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro são
faculdade de direito de bauru
110
fonte do sistema constitucional de proteção de direitos, pois ingressam na ordem
jurídica brasileira com índole e nível constitucional, conferindo suporte axiológico
à interpretação de todo o nosso direito interno.
Além do status de norma constitucional, tais tratados têm aplicação imediata
na ordem jurídica brasileira a partir da ratificação. Além disso, os direitos e garantias
advindos de destes instrumentos internacionais, uma vez integrados ao ordenamento brasileiro passam a ser cláusulas pétreas do texto constitucional, não podendo
ser abolidos sequer por emenda à Constituição. Consequentemente, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos em que a República Federativa do
Brasil seja parte são insusceptíveis de denúncia.
A Constituição brasileira de 1988 está perfeitamente apta a operar com o direito internacional, bastando que os operadores do direito percebam o grande passo dado pelo legislador constituinte no que tange à incorporação dos tratados de
proteção dos direitos humanos no ordenamento brasileiro. É o que se deseja e se
espera.
5.
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A Função Hermenêutica do Princípio da Proporcionalidade: superação de uma
perspectiva lógico-formal
Ricardo Galvão de Melo
Professor da UNIVERSO – Recife
Especialista em Ciências Criminais – UFPE
Mestrando em Direito Público – UFPE
INTRODUÇÃO
Costuma-se analisar a hermenêutica jurídica a partir de um conjunto de métodos tidos como necessários à descoberta do sentido e alcance de determinada regra, é dizer, instrumentos imprescindíveis à compreensão da estrutura lingüística da
regra1 de direito.
Tal técnica, entretanto, deita raízes no movimento reformista liberal-burguês do séc. XVIII, que, com suas pretensões de limitação do poder estatal, sobretudo em face dos arbítrios característicos do antigo regime, trouxe a idéia de
que ao juiz, no proceder exegético, estava vedada a tarefa de interpretar – como
se isso fosse realmente possível! – as leis elaboradas por um poder autônomo.
Um fetichismo legal que evidenciava o culto à norma através do literalismo extremado.
1 A clássica obra de Carlos Maximiliano, por exemplo, define hermenêutica como a teoria científica, a arte de interpretar, tendo como “objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 16 ed. Rio de Janeiro, Forense, p. 01).
114
faculdade de direito de bauru
Adicione-se a isso o advento de uma forma de racionalidade (de cunho positivista) em que a necessidade de se quantificar, de pautar as investigações em modelos mecânicos da ciência natural, era fundamental para o alcance de resultados
respeitáveis. Essas exigências epistemológicas terminavam por efetivar uma verdadeira redução da complexidade das coisas, acreditando-se, inclusive, na existência
de um nexo de causalidade absoluto entre os meios empregados (como causa) e os
fins obtidos (como resultado).
Em vista de tais circunstâncias, a idéia de que a hermenêutica se constituiria
numa arte, técnica, às vezes, ciência, destinada à mera análise dos métodos de interpretação, teve, assim, longa vida em nossa história, podendo-se afirmar que, ainda
hoje, sentimos os efeitos de tal entendimento.
Procuraremos analisar, ao longo do presente estudo, que todo e qualquer processo interpretativo exige, antes de tudo, compreensão, e a arma utilizada para tal
é, sem dúvida, o argumento. Afinal, analisar condutas humanas – e assim também as
pautas que procuram discipliná-las – é um labor que não se dissocia da questão axiológica.
Toda e qualquer ciência no mundo contemporâneo deve procurar abrir os
seus horizontes e evitar tais perspectivas reducionistas, sobretudo para compreender a realidade complexa do homem. Isso só nos parece possível através de uma atividade de assunção e controle da insegurança, é dizer, através de uma prática prudente que já os romanos conheciam.
Para além de um estudo restrito, tacanho mesmo, que se apegue apenas à fórmula do texto legal, vamos, então, em “busca da prudência perdida”2, procurando
demonstrar a superação do arcaico modelo lógico-formal a partir de uma idéia de
interpretação enquanto compreensão e aplicação efetiva do direito, salientando, inclusive, a função hermenêutica desempenhada pelo chamado princípio da proporcionalidade em tal contexto.
1.
PRINCÍPIOS JURÍDICOS E SUAS FUNÇÕES
Princípio (do latim principium, principii) é, segundo os léxicos, o momento
em que algo tem origem, a causa primária. Em ciência, os princípios são verdadeiras fórmulas diretoras (fundantes) de sua ordem.
Dessarte, na esteira de Miguel Reale3, devemos afirmar que toda e qualquer
forma de conhecimento necessita da existência de determinados enunciados lógicos, ou seja, proposições fundantes de determinado setor do conhecimento, sendo,
2 A expressão é cunhada pelo sociólogo português Boaventura de Souza Santos, quando o mesmo salienta a redescoberta, pelo direito, dos mundos filosófico e sociológico, olvidado pela secura dogmática (SANTOS, Boaventura de
Souza. Um Discurso sobre as Ciências. 12 ed. Porto, Edições Afrontamento, 2001, p. 46).
3 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 3 ed. São Paulo, Saraiva, 1976, p. 299.
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assim, parte da própria estrutura do seu sistema. Verifica-se, de plano, que não poderia o direito ficar à margem de tal realidade.
Tais enunciados, caracterizados como princípios, são, dentro do contexto do
pensamento ocidental atual, como bem salienta Nelson Saldanha, imprescindíveis à
garantia de inteligibilidade do sistema, ou melhor dizendo, essenciais à articulação
racional do pensamento científico4.
Imaginar, como fazem alguns autores, que os princípios jurídicos se destinam
unicamente a uma mera integração de lacunas é ter uma visão bastante restrita desse fenômeno5, ainda que tal argumento conte com o amparo do disposto no art. 4º
da Lei de Introdução ao Código Civil.
Em verdade, os princípios podem ser vislumbrados tanto como modelos que
orientam a ordem jurídica, situando-se anteriormente às regras de direito, quanto
como elementos extraídos dessas pautas de condutas através de uma operação exegética6, é dizer, deduzidos a partir do próprio sistema jurídico.
Os princípios jurídicos assumem, assim, uma dupla função de servirem de embasamento à elaboração das normas (“expressão da legitimidade da norma”7) e,
mesmo, critério de interpretação e integração do direito.
Na linha de Jean-Louis Bergel, podemos dizer que, em vista de suas funções,
os princípios podem ser analisados sob duas perspectivas básicas: as funções fundamentais e as funções técnicas8. Senão, vejamos.
As funções fundamentais dos princípios pertinem ao fato de os mesmos constituírem o alicerce do sistema jurídico, não havendo, assim, margem para uma elaboração coerente de regras jurídicas ante a ausência de tais enunciados que permitem um certo grau de racionalidade na organização das normas. No contexto de tal
função, não se despreza o papel exegético desempenhado pelos princípios ao esclarecerem o sentido e alcance de regras jurídicas, dirimindo, assim, controvérsias.
As funções técnicas, por outro lado, estão relacionadas à multiplicidade de
princípios, cujas destinações podem ser de mero comando ou de correção de excessos ou anomalias jurídicas, apresentando-se sob duas vertentes: princípios diretores e princípios corretores, é dizer,
“pode-se constatar que em todas as matérias se encontram simultaneamente princípios que comandam a regra ou a solução jurí-
4 SALDANHA, Nelson. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro, Renovar, 1998, p. 218.
5 Cf., neste sentido, TORRÉ, Abelardo. Introducción al Derecho. 10 ed. atual. Buenos Aires, Editorial Perrot, 1991,
p. 486-7.
6 SALDANHA, Nelson. Filosofia do Direito, cit., p. 200.
7 CRETELLA NETO, José. Fundamentos Principiológicos do Processo Civil. Rio de Janeiro, Forense, 2002, p. 25.
8 Cf. BERGEL, Jean-Louis. Teoria Geral do Direito. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 2001,
p. 118-124.
116
faculdade de direito de bauru
dica (diretores) e princípios destinados a corrigir os excessos ou as
anomalias das soluções legais (corretores)”9 – grifos nossos –.
Exemplos de princípios diretores são: princípio da isonomia, princípio da legalidade dos crimes e das penas, princípio da não-retroatividade legal. Temos, como
exemplos de princípios corretores, a seu turno, o princípio da boa-fé, o princípio de
que ninguém pode alegar a própria torpeza, etc.
Há, ainda, os princípios que são, ao mesmo tempo, diretores e corretores:
princípio da proporcionalidade dos crimes e das penas, o princípio da preponderância do interesse público sobre o privado, etc.
Essas duas funções básicas podem ser verificadas também em obra de Nelson
Saldanha, notadamente quando procura o autor inserir os princípios no âmbito dos
dados fundamentais provenientes da experiência jurídica: ordem (dimensão axiológica e positividade) e hermenêutica (inteligibilidade da ordem e compreensão
de sua aplicabilidade). Desta forma, haveria princípios conectados ao plano da ordem (princípios diretores) e outros ao plano da interpretação (princípios corretores)10.
Como bem lembra o autor,
“todos, porém, se reconhecem e se caracterizam dentro da dimensão hermenêutica da experiência jurídica. Na verdade a formação história da noção de princípio já encontra, dentro da realidade de cada sistema jurídico, a dualidade ordem-hermenêutica,
que só pode, é evidente, ser questionada a partir do segundo elemento. A interpretação é algo interior ao que se chama de experiência jurídica; mas a positividade e os conceitos que a elucidam,
é obra da interpretação”11.
2.
O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E A SUA DUPLA PERSPECTIVA HERMENÊUTICA
O princípio da proporcionalidade, como uma das pautas fundantes do sistema jurídico, pode ser caracterizado, pois, como a necessidade de que, em direito, sejam apropriados os meios destinados à realização de determinado fim, estando presentes, necessariamente, como veremos, dois elementos, a saber, a adequação e a necessidade12.
9 Idem, p. 122.
10 SALDANHA, Nelson. Filosofia do Direito, cit., p. 212; 218.
11 Idem, p. 218.
12 Adequação é, aqui, entendida como a capacidade de determinada medida atingir seus objetivos; a necessidade, por outro lado, consiste na indispensabilidade da restrição para o alcance de determinado fim, é dizer, que o
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Mas, em vista de que essa dualidade meio/fim não é, de fato, suficiente para a
correta identificação do princípio, incluiu a doutrina um novo elemento em seu contexto, ou seja, a situação de fato13.
Não à toa que afirma Luís Roberto Barroso:
“a atuação do Estado na produção de normas jurídicas normalmente se fará diante de certas circunstâncias concretas, será destinada à realização de determinados fins, a serem atingidos pelo
emprego de determinados meios. Deste modo, são fatores invariavelmente presentes em toda ação relevante para a criação do direito: os motivos (circunstâncias de fato), os fins e os meios. Além
disso, há de se tomar em conta, também, os valores fundamentais
da organização estatal, explícitos ou implícitos, como a ordem, a
segurança, a paz, a solidariedade; em última análise, a justiça”14.
Embora ainda não expresso em nosso direito, o que é irrelevante para a sua
existência, os constitucionalistas pátrios têm dado extrema importância ao princípio
da proporcionalidade, sobretudo porque é uma pauta que procura, a todo custo,
evitar o arbítrio do poder contra os direitos fundamentais do cidadão15.
Deve-se afirmar, com efeito, que não basta a observância do princípio da legalidade, isto é, não basta que determinadas restrições a direitos encontrem consonância com a norma legal, é imprescindível que tais limitações não colidam com o
princípio da proporcionalidade. Aliás, nesta mesma linha leciona Gilmar Ferreira
Mendes:
“a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se
indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a
compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da
proporcionalidade”16.
13 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo, Malheiros, 2000, p. 357.
14 BARROSO, Luís Roberto. Os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade no Direito Constitucional,
in Boletim de Direito Administrativo, n.º 03, Ano XXIII, março de 1997, p. 160.
15 O art. 18, n.º 2, da Constituição portuguesa assim dispõe: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para
salvaguardar os outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
16 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 2 ed. rev. e ampl. São Paulo, Celso Bastos Editor, 1999, p. 72.
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faculdade de direito de bauru
É necessário salientarmos que não existe lesão mais grave em direito do que
aquela que ofende a um princípio jurídico, notadamente porque expressam o fundamento de toda a ordem jurídica17.
De outra parte, é de se notar, ainda, que não apenas a extração da idéia de
proporcionalidade exige um labor hermenêutico, necessário à identificação do princípio no interior da ordem jurídica – primeira perspectiva –, mas, também, desenvolve ele uma função essencial à interpretação das normas de direito, na medida em
que, dentro da margem ampla de atuação do intérprete, deverá este analisar se os
meios utilizados pela regra foram, ou não, adequados e necessários ao fim precípuo
do direito: a justiça. Em não o sendo, por desacordo com os valores que encampa o
ordenamento, e incompatível a solução trazida normativamente à situação de fato,
dever-se-á proceder a um labor intelectual necessário à procura de harmonia da decisão com tal idéia de proporcionalidade – segunda perspectiva –. Uma atividade,
como se é de notar, eminentemente hermenêutica.
Por fim, vale ressaltar uma complexa problemática que circunda tal princípio,
e que, inclusive, é também aquela referente à idéia de razoável, desenvolvida por filósofos modernos, notadamente porque em ambos os casos, conforme veremos,
encontra-se presente um plexo axiológico que dificulta a busca de uma essência absoluta e imutável.
3.
A IDÉIA DO RAZOÁVEL E SUA CONEXÃO COM O PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE
Razoável e proporcional têm, sem sombra de dúvidas, ligações históricas com
a idéia de justiça, de eqüidade18. Falar de razoabilidade, de proporcionalidade, é, então, expressar uma idéia de raciocínio, de uma busca de meios para o alcance de determinado fim (justo), através de um labor intelectual, de forma que se tenha uma
solução compatível com os valores da dignidade da pessoa humana, igualdade, liberdade, etc.
Todo texto se constitui de uma estrutura lingüística que envolve, fundamentalmente, o raciocínio. Atentos à importância do elemento lógico na interpretação
dos elementos componentes do direito, procurou-se superar uma postura lógicoformal, matemática mesmo, de interpretação jurídica através de uma nova racionalidade que ficou conhecida como “lógica do razoável”.
A idéia de lógica do razoável é desenvolvida logo após a Segunda Grande
Guerra Mundial em face do dogmatismo exacerbado do positivismo normativo, cuja
lógica formal afastava qualquer idéia de valoração no campo da hermenêutica jurí17 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, cit., p. 396.
18 Cf. CRETTON, Ricardo Aziz. Os Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade e sua Aplicação no Direito Tributário. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001, p. 15.
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dica. A hermenêutica ganha, assim, um apoio filosófico em busca de uma forma adequada de interpretação.
Não se deixa de perceber, com isso, como ressalta Margarida Maria Lacombe Camargo, uma tensão entre os ideais de certeza, segurança e justiça, de
um lado; e a proposta de interpretação e aplicação do direito conforme a própria complexidade social – e com vistas à necessidade natural de ordem e estabilidade19 –, do outro.
De fato, a lógica comumente utilizada no direito, inclusive pelo positivismo normativo, era a lógico-formal, ou lógica das inferências, não sendo instrumento eficaz no trato de problemas humanos. Era importante, pois, o desenvolvimento de uma lógica própria à análise de tais questões, uma lógica que procurasse compreender e entender os fenômenos, antes de meramente explicar
conexões entre idéias, para melhor resolver problemas.
O razoável de Recaséns Siches não se contenta com o mero juízo de verdade ou falsidade sobre as regras jurídicas, devendo as mesmas ser analisadas
sob outras perspectivas, isto é, sobre juízos axiológicos ( justiça, dignidade do
ser humano, etc.)20. Trata-se de uma forma coerente de raciocínio que se embasa na idéia de interpretar para aplicar com justiça.
Desta forma, vale repetir que as limitações de uma interpretação apegada
tão-somente aos elementos internos da lei são evidentemente incompatíveis
com a solução de problemas humanos (objeto do direito). Sua utilização absoluta no direito traz soluções destoantes da realidade social, não conseguindo,
como conseqüência, a solução das controvérsias de forma adequada. O método lógico-formal não consegue, de maneira eficaz, estabelecer uma decisão
compromissada com o valor da justiça, sobretudo porque nenhuma conclusão
pode, em matéria jurídica, ser atingida apenas com um processo silogístico
puro de raciocínio.
Se, talvez, isso possa indicar uma perda da idéia de segurança, antes devemos afirmar que a busca do critério de justiça é que a indica de fato, ou pelo
menos evidencia uma probabilidade maior em sua consecução. O apego irrestrito à letra da regra é que pode sim, nos casos concretos, trazer interpretações
e soluções injustas por anacrônicas ou totalmente incompatíveis com as finalidades sociais. Tratando o direito de condutas humanas, e sendo estas essencialmente complexas, é de se assumir a insegurança a fim de controlá-la. Isso só
pode ser feito, no nosso entender, através de uma interpretação razoável, proporcional, vinculada à prática e compatível com a natureza da conduta do homem.
19 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 167.
20 Cf., neste sentido, FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 181.
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O direito vincula-se à hermenêutica de tal forma que só possui significado, ao
menos de um ponto de vista dinâmico – sem excluir sua perspectiva estática21 –,
quando devidamente concretizado através de suas compreensão e aplicação22. De
fato, não se há de encontrar sentido ao direito sem a sua aplicação, isto é, sem observância de seus elementos à realidade fática. Como diz Margarida Lacombe:
“No estudo em exame, é dada significativa ênfase à questão da
concretização do direito. As obras humanas não existem na sua
virtualidade; é-lhes intrínseca uma finalidade de caráter concreto. Possuem, portanto, um sentido que deve ser compreendido por
quem delas venha a fazer uso”23.
Todo o ato de interpretação vincula-se, pois, à aplicação, idéia esta, aliás, já defendida por Gadamer.
Em tal processo de conjugar os componentes jurídicos, com toda a sua carga
valorativa, à realidade fática, é imprescindível uma interpretação que nos conduza à
necessidade de se compreender, de fato, a problemática dessa mesma realidade. Tal
compreensão não se pode efetivar através de uma relação de causalidade absoluta,
como, aliás, pretendiam os adeptos da vetusta hermenêutica de cunho lógico-formal, mas sim através de uma argumentação que ocasione a abertura de várias possibilidades das quais se deve escolher a mais razoável, proporcional, compatível com
os sentimentos de justiça, de dignidade da pessoa humana, de igualdade e de liberdade.
Dessarte, verificamos que a interpretação e conseqüente concretização da
norma, não se deve efetivar através de um mero processo lógico-dedutivo de subsunção da norma ao caso concreto, mas, sobretudo, observando-se valores, o pluralismo inerente às questões humanas, a intersubjetividade e a experiência histórica.
Compreende-se o direito, antes de meramente explicá-lo numa relação de causa e
efeito própria das ciências naturais.
Como vimos, a idéia de adequação e necessidade de um determinado mecanismo à obtenção do fim maior do direito, é dizer, a justiça no caso concreto é, sem
dúvida, o cerne do princípio da proporcionalidade. De plano, fica evidente a relação
desse tão importante princípio com a idéia de se aplicar uma racionalidade razoável
21 As perspectivas estática e dinâmica são, em verdade, faces da mesma moeda, de tal forma que não se poderia falar
em ordem jurídica se não houvesse a possibilidade de compreender e interpretar suas regras em direção de uma aplicação efetiva (Cf., neste sentido, SALDANHA, Nelson. Ordem e Hermenêutica: sobre as relações entre as formas de organização e o pensamento interpretativo, principalmente no direito. Rio de Janeiro, Renovar, 1992, p. 244).
22 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do direito, cit., p. 17.
23 Idem, p. 171.
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na interpretação do direito, sobretudo porque tal princípio procura sempre ultrapassar a letra fria da lei, incidindo sempre sobre questões como a da legitimidade,
nível de invasão na esfera de liberdade, ferimento à dignidade da pessoa humana. O
princípio da proporcionalidade é fruto, aliás, de tal racionalidade. Há, por parte
dele, também um compromisso com o equilíbrio entre segurança e justiça
Diríamos, inclusive, que é esse princípio a própria identificação do imperativo da ordem jurídica tendente a vedar, de maneira veemente, a interpretação e aplicação das regras jurídicas de forma meramente matemática, exigindo-se antes uma
razoabilidade da interpretação e da aplicação a fim de se garantir uma maior probabilidade nessa incessante tentativa de se galgar justiça.
Sendo o princípio da proporcionalidade, desta forma, um instrumento indispensável ao desenvolvimento do raciocínio razoável, limita, de certo, os efeitos das
regras jurídicas. Contudo, sua carga valorativa nos impede de estabelecer uma essência imutável, uma vez que variável, realmente, no tempo e no espaço. Mas uma
característica, entretanto, não se perde: o compromisso efetivo com a aplicação justa do direito. Uma aplicação, diríamos, verdadeiramente prudente.
Em tal contexto, é interessante ressaltarmos, assim como o faz Raimundo Bezerra Falcão24, que dentre toda a gama de valores a serem observados como forma
de se trazer uma coerência e justiça à interpretação e aplicação do direito, está o valor da prudência, que, dentre outros sentidos, assume a adequação da interpretação
à natureza do problema. Sobre esse valor, trataremos no próximo tópico.
4.
A DERROCADA DE UMA PERSPECTIVA LÓGICO-FORMALISTA NA
HERMENÊUTICA JURÍDICA: RETORNO À PRUDÊNCIA PERDIDA
O direito em Roma antiga significava mesmo uma atividade ética, comprometida com o equilíbrio e a ponderação na solução dos casos (prudência)25. Os romanos desenvolvem, assim, um pensamento dito “prudencial”, ou seja, um raciocínio
jurídico voltado eminentemente à aplicação prática a fim de resolver os conflitos então existentes.
As regras jurídicas, à época da República e da Monarquia, eram verdadeiras
orientações que deveriam ser submetidas a uma aplicação prática, havendo o seu
preenchimento, através da adição de elementos outros, por parte dos pretores.
Esse método de análise de casos e tomada de decisões ficou conhecido como
jurisprudência entre os romanos, havendo, de fato, uma ligação dela com a fronesis da filosofia grega que, no dizer de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, era “uma espécie de sabedoria e capacidade de julgar, na verdade consistia numa virtude de24 Cf. FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo, Malheiros, 2000, p. 183.
25 Cf. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2 ed. São
Paulo, Atlas, 1994, p. 56.
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senvolvida pelo homem prudente, capaz, então, de sopesar soluções, apreciar situações e tomar decisões”26. O instrumento, para tal, era a dialética, a argumentação.
A prudência romana constituía-se, assim, em uma técnica tolerante, na medida em que admitia os argumentos através de suas devidas fundamentações, era uma
técnica voltada para a diferenciação, para a complexidade das questões humanas.
Seria o caso de retornarmos a esse pensamento prudencial na interpretação do direito?
A regra jurídica, apesar de sua importância para o direito moderno, vista de
uma forma isolada não possui o condão de estabelecer todo o significado, necessitando-se, assim, de elementos compatíveis com a natureza concreta da própria existência social. É por isso que a idéia de interpretação vincula-se à compreensão e aplicação prática do direito.
Uma racionalidade lógico-formal na interpretação só se justifica, ou pelo menos o tenta, através de um determinismo ou decisionismo metodológico, o que torna inviável sua aceitação numa sociedade plural e complexa como a atual, até porque “justificar uma decisão, num caso difícil, significa algo mais que efetuar uma
operação dedutiva que consiste em extrair uma conclusão a partir de premissas
normativas e fáticas”27.
A postura lógico-formal, além de arbitrária, não deixa de se constituir em um
modelo irracional de “racionalidade”, notadamente em vista de acreditar numa solução segura e justa sempre que dada regra venha a se subsumir a determinado fato
concreto.
O dogmatismo exacerbado e uma metodologia de interpretação que se atenha apenas ao contexto lógico-formal da regra são fatores que contribuem para a estagnação do direito, além de, na prática, trazer sérias injustiças. Suas idéias, aliás, de
que a norma jurídica poderia trazer todas as soluções – por si só –, nada mais significa do que um reducionismo tendente a fixar conteúdos imutáveis para o direito
(busca de uma ontologia). E, ao que nos parece, toda e qualquer tentativa de se buscar, em direito, uma ontologia definida, não deixa de se apresentar como arbitrariedade. Uma arbitrariedade que termina, conforme Alexandre da Maia, cometendo os
mesmos erros do positivismo exegético e do jusnaturalismo, é dizer, “a fixação de
dogmas inquestionáveis como sendo o conteúdo do direito em si”28.
Percebe-se, assim, uma relação íntima entre a problemática ontológica e a
questão da perspectiva lógico-formal na hermenêutica jurídica, tratada no presente
estudo. Isso porque um tal método de interpretação, que se fixa na estrutura inter26 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, cit., p. 58.
27 ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo, Landy, 2000, p. 25.
28 MAIA, Alexandre da. Ontologia Jurídica: o problema de sua fixação teórica com relação ao garantismo jurídico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 110.
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na da norma, não consegue, apesar de acreditar nisso, caracterizar o direito enquanto verdadeira compreensão e aplicação de seus elementos. Pensa-se, na verdade,
que todo o conteúdo jurídico é retirado exclusivamente da regra de direito.
Uma abordagem mais profunda em relação a tal problemática ontológica, e aí
também da interpretação, é fundamental para o que acreditamos ser a linha a ser seguida pela hermenêutica jurídica contemporânea.
O ato legislativo, assim como todo e qualquer ato gnoseológico, procura realizar
generalizações. Ademais, sendo tais generalizações lingüísticas, como as regras de direito, é de se perceber, de imediato, as limitações que existem na própria estrutura normativa, o que também se apresenta como uma problemática de extrema importância para
a teoria do conhecimento29. Alguns entendem, assim, que a linguagem é um meio hábil
à demonstração de uma realidade – direção ontológica –; enquanto outros, por outro
lado, não percebem fundamento na linguagem além de si mesma, sendo impossível a
ela expressar elementos externos – direção retórica –30, inclusive valores.
É de todo óbvio que a linguagem é limitada. Sendo limitada, também a norma
o seria, e isso deixa patente a necessidade de interpretá-la a fim de suprir tais deficiências. Mas além de limitada em face dos signos que possui, não consegue expressar todo o conteúdo axiológico necessário à compreensão e aplicação num caso
concreto. Não que a norma jurídica não seja importante, é, antes disso, fundamental ao direito moderno, mas ela se constitui, de fato, como o ponto de partida de
uma argumentação. É, afinal, apenas um dos elementos possíveis dentro do discurso, verdadeiro instrumento da interpretação.
O que se pretende com a inserção da argumentação, do método prudencial,
na interpretação do direito, não é se estabelecer um ceticismo absoluto, nem mesmo uma ontologia definida/descritiva. Pretende-se, na realidade, desenvolver uma
forma mais justa, tolerante, de interpretação, uma interpretação que admita a complexidade da vida social e que não se atenha somente à regra jurídica de forma exacerbada. Mas isso não seria fugir de um conteúdo ontológico, até porque seria isso
impossível – logicamente inevitável –31, e sim desenvolver uma chamada “essência
mutável, a partir de um referencial normativo”32.
Procura-se desenvolver algo que Adeodato chama de “ética tolerante, democrática”33, isto é, sem se perder de vista os pontos de partida, dogmáticos, pro29 Cf., neste sentido, ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência (através de um exame da ontologia de Nicolai Hartmann). São Paulo: Saraiva, 1996, p. 195.
30 Idem.
31 ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência (através de um
exame da ontologia de Nicolai Hartmann), cit., p. 208.
32 MAIA, Alexandre da. Ontologia Jurídica: o problema de sua fixação teórica com relação ao garantismo jurídico, cit., p. 111.
33 ADEODATO, João Maurício. “Modernidade e Direito’”. Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado
de Pernambuco. Recife, 2 (6): 255-273, out./ dez., 1997, p. 272.
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cura-se fixar o conteúdo axiológico do direito em face da necessidade de se alcançar a justiça.
Quando se afirma, desta forma, que não existe, em direito, uma ontologia absoluta, nega-se, via de conseqüência, toda e qualquer idéia de interpretação do direito apenas enquanto norma, acreditando-se em sua segurança e justiça. Esta é,
como já foi repetido, uma perspectiva, ressalte-se, reducionista e incompatível com
a necessidade de interpretação do direito com vistas ao alcance da justiça.
A ética da tolerância, a idéia de interpretação como compreensão e aplicação,
efetivada através da argumentação e com vistas ao alcance da justiça, constituem, em
nosso entender, o verdadeiro paradigma a ser seguido na hermenêutica atual. Para
além de uma exegese apegada ao texto normativo (ou aos textos normativos), propugna-se por uma interpretação razoável, proporcional, sem se dissociar da prática e valendo-se da argumentação para se alcançar fins justos nesta sociedade plural.
É, de certa forma, um retorno à prudência romana, já que o direito fica, aqui,
vinculado à sua aplicação prática e ao compromisso com a efetivação de justiça, de
razoabilidade, enfim, de adequação do direito à natureza e as condições do problema em foco. Como aliás, já disse Boaventura: “...o direito, que reduziu a complexidade da vida jurídica à secura dogmática, redescobre o mundo filosófico e sociológico em busca da prudência perdida”34.
Embebidos numa finalidade essencialmente prática, a idéia de razoável, e o
próprio princípio da proporcionalidade que é uma sua decorrência, assume papel
de destaque nessa nova realidade hermenêutica. O compromisso com sentimento
de justo, as pautas axiológicas a que sempre se propuseram, suas relações com a argumentação em face das finalidades práticas tornam, enfim, indispensável a sua aplicação no contexto da interpretação do direito.
5.
CONCLUSÕES
1. Ao processo de interpretação são indispensáveis dois elementos: compreensão e aplicação. A arma, para tal, é o argumento, uma vez que abre os
horizontes para elementos extranormativos, inclusive os axiológicos.
2. Os princípios, comuns a todos os campos do saber, são, na órbita jurídica,
pautas que embasam a elaboração de todas as normas integrantes de seu
sistema, garantindo a este, assim, a coerência necessária. São, ainda, parâmetros ao processo de integração e exegese dos demais elementos que
pertencem à realidade jurídica.
3. Possuem os princípios funções fundamentais e técnicas. As funções fundamentais dizem respeito à garantia de inteligibilidade que estabelecem na
34 SANTOS, Boaventura de Souza. Um Discurso sobre as Ciências, cit., p. 46.
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ordem jurídica ao embasarem todo o arcabouço normativo. As funções técnicas, por sua vez, relacionam-se à destinação dos inúmeros princípios jurídicos existentes, é dizer, se os princípios comandam normas jurídicas
(princípios diretivos) ou servem de instrumento útil à hermenêutica do
sistema (princípios corretores).
4. O princípio da proporcionalidade, que assume, ao mesmo tempo, funções
diretivas e corretoras, expressa a necessidade de que os meios utilizados
para a obtenção de determinado fim, em uma situação de fato, sejam adequados e necessários a fim de se evitar a concretização de medidas arbitrárias. Possui o princípio da proporcionalidade, ainda, uma dupla função hermenêutica, isto é, não apenas a sua idéia é extraída de uma atividade de interpretação, mas, também, funciona como instrumento essencial à compreensão e aplicação de regras jurídicas.
5. A lógica do razoável se apresenta como uma nova racionalidade em matéria de interpretação do direito, tendente a superar o método lógico-formal
que se limitava, tão-só, à estrutura lógica da norma, afastando qualquer
idéia de valor do campo da hermenêutica jurídica. O compromisso do razoável é, assim como a proporcionalidade – fruto de tal racionalidade –,
com a justiça, notadamente porque procura interpretar o direito de forma
compatível com a solução de problemas humanos, afastando, assim, os silogismos próprios do antigo método.
6. Os romanos desenvolveram, ainda na Antigüidade, uma racionalidade chamada “prudencial”, um raciocínio voltado eminentemente à aplicação prática como forma de solução de conflitos. Para tal, utilizavam-se, como instrumental, da dialética, da argumentação.
7. Apesar de sua importância para o direito moderno, a norma jurídica, por si
só, é incapaz de servir como instrumento à interpretação do direito, aqui
entendida como um processo de compreensão e efetiva aplicação. A racionalidade lógico-formal, que se atinha à estrutura interna da regra, é um
modelo de (ir)racionalidade extremamente arbitrário, por não admitir a
pluralidade e acreditar sempre na segurança e justiça de sua utilização. Daí,
pois, ter perdido muito em importância nos dias atuais.
8. O apego irrestrito à norma jurídica, sob a crença de que a mesma é “o objeto” de de interpretação do direito, tem um fundamento na idéia de uma
ontologia definida/descritiva. No entanto, em face de sua limitação, sobretudo por não conseguir expressar todo o conteúdo axiológico necessário
à concretização da justiça, deve ser superada em face de uma idéia de ontologia mutável, ou ética da tolerância, cuja mola mestra é a argumentação
jurídica, mecanismo indispensável à admissão da pluralidade da vida atual
e à consecução da justiça.
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9. Resgatando-se a prudência perdida dos romanos, sobretudo em face das
contribuições da lógica do razoável e das teorias da argumentação, continuamos a nos curvar diante da importância da norma jurídica, mas, no entanto, admitindo que a mesma funciona apenas como o ponto de partida
do discurso jurídico, onde vários outros elementos se fazem presentes a
fim de se buscar a justiça no caso concreto.
10. A derrocada de uma postura lógico-formalista na interpretação do direito
dá lugar, então, a uma nova racionalidade. A razoabilidade e a proporcionalidade assumem, assim, papel de destaque dentro do contexto da argumentação (retorno da prudência perdida).
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TORRÉ, Abelardo. Introducción al Derecho. 10 ed. atual. Buenos Aires: Editorial Perrot,
1991.
Os Caminhos da Justiça Agrária no Brasil
Um Caso de Engenharia
Político-Constitucional
Marcílio Toscano Franca Filho
Doutorando em Direito Comparado (Universidade de Coimbra - Portugal)
Mestre em Ciências Jurídicas (Universidade Federal da Paraíba - Brasil)
Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da Paraíba (Brasil)
Foi professor substituto do Departamento de Direito Público da Universidade Federal da Paraíba,
estagiário do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (Luxemburgo)
e aluno da Universidade Livre de Berlim (Alemanha).
Para a realização deste paper o autor contou com a valiosa assistência e competente
colaboração de Luciara Lima Simeão da Silva, acadêmica do curso de Direito do
Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba.
1.
À GUISA DE INTRODUÇÃO
A importância que assume a agricultura como uma das principais fontes de
renda, emprego e, obviamente, segurança alimentar nas economias contemporâneas, sobretudo nos países da periferia do sistema produtivo internacional, é reveladora da causa do prestígio que se empresta ao Direito Agrário na doutrina jurídica dos dias atuais. Nessa direção, a Organização das Nações Unidas para Agricultura
e Alimentação (FAO) tem sublinhado em diversos documentos que o desenvolvimento agrícola é a chave para a redução da pobreza no mundo e garantia da segurança alimentar nos países em desenvolvimento.
Objeto de freqüentes e profundas reflexões, a disciplina jurídica da realidade
agrária vem tendo um lugar de destaque na seara acadêmica internacional, dado o
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interesse do mundo globalizado em questões como a biotecnologia, a segurança alimentar, a agricultura sustentável, as enfermidades transfronteiriças e os investimentos em comodities. Nesse aspecto, a efetividade e a rapidez na solução dos conflitos
agrários são – muito menos do que uma velha conseqüência de dicotomias ideológicas – basilares para a própria organização e o desenvolvimento das relações econômicas e sociais no campo. Afinal, “a economia vive da segurança, cuja base é a
justiça”.
A institucionalização de uma Justiça Agrária, como meio de se garantir rapidez
e eficiência na solução dos conflitos agrários, constitui o objeto das reflexões que
ora iniciamos. Estas digressões, partindo da formulação de um conceito de Justiça
Agrária e passando pelo relato da experiência brasileira e estrangeira, objetivam fundamentalmente captar em que medida é eficiente a edificação de uma jurisdição
agrária autônoma no Brasil atualmente.
2.
ELEMENTOS PARA UMA TEORIA GERAL DA JUSTIÇA AGRÁRIA
Inúmeros postulados metafísicos, éticos, estéticos e epistemológicos que ampararam as formas de pensar e agir da nossa sociedade durante séculos, hoje, não
mais conseguem responder a muitas das questões que o processo histórico nos impõe. Aos nossos modelos culturais - paradigmáticos desde a Revolução Francesa - a
contemporaneidade impõe desafios crescentes que permanecem sem resposta.
Conceitos como Justiça, legitimidade, ordem, soberania e cidadania não podem ser
mais definidos apenas a partir da tríade “liberdade-igualdade-fraternidade” sem que
ignorem importantes demandas sociais. Tal fato é marca da crise do pensamento
contemporâneo, baseado em um modelo de racionalidade técnico, formal, dogmático e opressor, caro à tradição moderno-iluminista.
Esta crise geral do pensamento contemporâneo provoca inevitavelmente
reflexos sobre os nossos modos de organização e conhecimento jurídicos. A concepção tradicional do Direito, fundada no tripé da racionalidade, estatabilidade e
unicidade, é posta em xeque e começa a dar provas de ineficiência. Os sintomas
desta crise no âmbito do Direito citam-se à farta: é o aumento da litigiosidade social; é a radical dicotomia entre o Direito e a Justiça, o legal e o legítimo; é a crescente incapacidade da experiência jurídica em captar as necessidades da sociedade civil, é a busca revalorizada por formas não-estatais de resolução de disputas
e é a hiperinflação da produção legislativa na tentativa de se conter a complexidade e o risco.
No meio rural, particularmente, há muito o Direito já perdeu o monopólio da
força e da coerção, sendo a violência decorrente do acirramento daqueles conflitos
um fenômeno social que vem se banalizando. A crescente complexidade da sociedade contemporânea - com a sua maior diversidade de atores e papéis sociais - tem
provocado um significativo aumento dos conflitos no campo e na cidade. O direito,
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entretanto, não tem conseguido acompanhar estas mudanças sociais e não tem desenvolvido instrumentos capazes de suprimir estes conflitos.
Já viraram rotina na crônica jornalística quotidiana os relatos sobre espancamentos de trabalhadores rurais, cárceres privados, casas queimadas e reintegrações
de posse violentas. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra1, órgão da Igreja
Católica vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), foram 680
os conflitos no campo apenas em 1988. Tais conflitos resultaram em 110 trabalhadores mortos, 153 ameaças de morte e 68 tentativas de assassinato. Em 2001, a mesma
Pastoral da Terra contabilizou um total de 880 conflitos no campo, dentre eles ocupações, acampamentos, questões relativas à seca, desrespeito à legislação trabalhista, política agrícola e garimpo. Desse total, 45 ocorrências reportam a trabalho escravo, envolvendo o número de 2.416 pessoas. Até agosto de 2002, o número de assassinatos chegava a 16.2
Como meio de se superar e evitar tais conflitos, há algum tempo, vem tomando força entre os estudiosos das questões agrárias de diversas áreas do conhecimento a idéia de constituição de uma jurisdição agrária no Brasil. Nesse aspecto, vale observar a lição do Prof. ALVARENGA (1985:109):
“Regendo a funcionalidade do que se entenda por propriedade,
posse e utilização dos recursos naturais renováveis, balizado pelos
princípios da produtividade e da justiça social, o Direito Agrário
do Brasil reclama que a sua aplicação se faça por meio de especialistas, desde a promulgação do Estatuto da Terra, decorrente da
memorável exposição de motivos com que se encaminhou ao Congresso Nacional - tendo por base a Emenda Constitucional nº 10,
de 10.11.64 - o anteprojeto do que se viria a consubstanciar-se na
Lei 4.504, promulgada a 30 de novembro de 1964. Que a Justiça
Agrária seja decorrência natural do Estatuto da Terra, não é tese
apenas dos jus-agraristas.”
O eminente jurista baiano Raimundo LARANJEIRA (1983:15-16), ardoroso defensor da criação da Justiça Agrária, chega mesmo a ser radical ao afirmar:
“Não há o que discutir sobre a necessidade e a excelência da instituição da Justiça Agrária no Brasil. Tanto do ponto de vista científico, de enriquecimento da matéria agrojurídica, como do ponto
de vista da realidade fática, na qual milhares de pessoas precisam
1 Citados por ROCHA (1990:19).
2 No website da Comissão da Pastoral da Terra (www.cptnac.com.br/conflitos/index.htm), encontra-se uma tabela
com o resumo de todas as ocorrências, ano a ano, desde 1990.
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dela. (...) Há de se admitir duas ordens de coisas, como pressuposto da necessidade dela: uma, referente ao fato de que os países civilizados e os que vão deixando as amarras do subdesenvolvimento estão acolhendo esse órgão, conforme o prova, sobejamente, J.
Masrevery; de outra, relativa à constatação de que, no Brasil, o
seu estágio econômico-social já reclama um ‘foro adequado, como
instrumento regulador das relações decorrentes da reforma das
estruturas arcaicas e injustas’ - segundo a justeza de expressão de
um notável agrarista patrício.”
Mais recentemente, mas na mesma direção, a Profa. Valéria FERREIRA
(1997:343) ressalta:
“A questão agrária no Brasil tem importância relevante. É interesse nacional a sua resolução. Complexa e envolvendo poderosos,
deveria ser apreciada por um judiciário de expressividade também federal”.
Por jurisdição, entende-se o poder-dever de que dispõe o Estado para, nos limites de sua soberania, solucionar os conflitos entre as pessoas, aplicando o Direito e, assim, garantindo a paz social. Assim, a mencionada jurisdição agrária seria um
ramo especializado da função judiciária estatal3, que se dedicaria com exclusividade
aos problemas inerentes ao meio rural. Tais problemas cobririam, entre outros aspectos:
• Questões sobre a propriedade, o domínio e a posse da terra rural;
• A desapropriação por interesse social, questões relativas à distribuição da
terra, colonização e acesso a terra;
• As questões fiscais, como o Imposto de Renda sobre a produção agropecuária e o Imposto Territorial Rural;
• Os contratos agrários: arrendamento, parceria, empreitada rural, crédito rural e depósito de produtos rurais;
• As relações individuais e coletivas de trabalho rural, previdência social e acidentes de trabalho no campo;
• A economia rural: preços mínimos, armazenagem, produção, subsídios, distribuição e consumo;
3 A rigor, sendo a jurisdição um reflexo do poder soberano - uno e indivisível - do Estado, não comporta ela divisões ou especializações (princípio da unidade da jurisdição). Por razões didático-metodológicas, entretanto, a doutrina jurídica admite algumas classificações, dentre as quais, aquela que toma como critério distintivo o objeto tutelado. Daí ser autorizado falar-se em jurisdição civil, agrária ou penal.
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• A inseminação artificial, reprodutores, registro genealógico, mecanização, engenharia rural, aviação agrícola;
• Cooperativismo e sindicalismo rurais;
• Agricultura sustentável: conservação e defesa dos recursos naturais renováveis;
• Proteção penal da propriedade e dos bens rurais bem como da sua fauna e flora;
• Poder de polícia sobre as atividades agropecuárias;
• Questões relativas a convênios, tratados e acordos internacionais sobre defesa sanitária, vegetal e animal, padronização e classificação.
Essa ampla competência de uma jurisdição agrária encontra um princípio unificador muito claro e bem definido, conforme resume GARCÍA RAMÍREZ (1996: 44), presidente fundador do Tribunal Superior Agrário do México:
“La justicia agraria – que es una expresión de la política general del
Estado, proyectada hacia una de sus secciones más relevantes – debiera abarcar la suma de asuntos que aparecen en las relaciones jurídicas cuyo origen es precisamente la materia agraria, y cuyas consecuencias se vuelcan hacia ésta. Por ende, vale plantearse lo que pudiéramos denominar la identidad de “lo agrario”. Esto tiene, en mi concepto tres datos característicos, a saber: a) cierta forma jurídica de tenencia de la tierra: dominio pleno o propiedad ejidal o comunal; b)
determinado empleo natural de la tierra: aprovechamiento agrícola,
pecuario o forestal, y c) relaciones jurídicas que se suscitan a propósito de esas formas de tenencia en relación con ese aprovechamiento específico. Si esto es “lo agrario”, los litigios que en ese amplio ámbito se
produzcan debieran ser propuestos ante la justicia agraria, con el propósito de garantizar consecuencia en el tratamiento y las soluciones
de este sector de la vida del país”.
O argumento-mestre que fundamenta e legitima a proposta de uma jurisdição
agrária é o de que uma especialização jurisdicional muito contribuiria para densificar o
direito fundamental à efetividade do processo e para a agilização da prestação jurisdicional em um setor básico da vida nacional - o campo. No ponto particular da agilização da
prestação jurisdicional, é de se ressaltar que a morosidade é o principal problema que
afeta o Judiciário atualmente, além de se constituir em uma fonte primária de seu descrédito e sua ilegitimidade. É uma verdade acaciana4 que uma Justiça que tarda é, de fato,
4 No imaginário queirosiano de “O Primo Basílio”, o Conselheiro Acácio veio a transformar-se numa das personagens que retornaram para o mundo real. Pensando decerto neste burocrata para quem as “curiosidades” do Alentejo eram “de primeira ordem”, Eça de Queirós referiu-se várias vezes a ele, quando quis aludir à solenidade oca e
às obviedades que marcavam a sociedade portuguesa de então. Era o lugar-comum em pessoa. Longe estava Eça de
saber que a língua portuguesa havia de cunhar o adjectivo “acaciano”, precisamente derivado do nome da criatura
que por ele nos foi legada.
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uma Justiça que falha. Entre as causas mais freqüentes desta demora para prolação das
decisões judiciais estariam a falta de recursos materiais das comarcas, o excesso de formalidades procedimentais, o número insuficiente de juízes e varas, a inflação legislativa,
a extensão das comarcas e a falta de especialização dos operadores jurídicos.
Assim, alega-se que uma Justiça especializada na apreciação das questões que
dissessem respeito às relações do homem com a terra seria a chave para a resolução
rápida e eficaz dos variados aspectos das lides agrária. Nesse sentido, veja-se:
“(...) A idéia é de que a instalação de um órgão especial de apreciação e julgamento das lides agrárias conferiria ao Direito Agrário a sua autonomia jurisdicional, que ainda não conseguiu ter
entre nós. De outro modo, o enfoque é o de que tal entidade [a Justiça Agrária] viria carrear para as populações rurícolas uma Justiça mais prestimosa, desafogando a Justiça Comum e alguns órgãos administrativos dos milhões de processos que equacionam,
deficientemente, os problemas agrários da Nação.”5
No mesmo sentido é a opinião de Guillermo Figallo ANDRIAZEN, ex-presidente do Tribunal Agrário do Peru:
“Es indudable que el conocimiento especializado de la materia
permite una mayor apreciación de las cuestiones planteadas, mayor seguridad en las decisiones y la creación de una jurisprudencia uniforme, que impulse en desarollo doctrinario del Derecho
Agrario; y en el aspecto procesal significa la substitucíon de perniciosos hábitos procedimentales derivados de una idiosincrasia individualista, por una actitud inspirada en los valores sociales, de
acuerdo con el modo de ser del processo agrario.”6
Duas são as correntes encontradas no jus-agrarismo brasileiro quanto à institucionalização de uma Justiça Agrária. A primeira é aquela que opta apenas pela criação de varas especializadas junto à Justiça Federal e à Justiça comum. A segunda, a
que propugna pelo estabelecimento de toda uma estrutura judicante, com juízes
agrários ou juntas de conciliação e julgamento agrárias divididos em seções judiciárias, Tribunais Regionais Agrários e um Tribunal Superior Agrário, à semelhança da
bela Itália, a pátria do Direito Agrário.
Para qualquer dessas correntes, a fim de se garantir a instrumentalidade
do processo e a rapidez da prestação jurisdicional, a Justiça Agrária seria carac5 LARANJEIRA (1983:15).
6 Guillermo Figallo ANDRIAZEN (apud LARANJEIRA, 1983:15).
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terizada por certos princípios. A noção de “princípio” é uma noção cara a toda
a Teoria Geral do Direito. Sob seu pálio, se guardam as verdades fundantes de
qualquer sistema jurídico; enunciações normativas que norteiam a atuação de
juristas e operadores jurídicos, colmatando lacunas e orientando a atividade hermenêutica. Na definição de REALE (1993:299), princípios são “certos enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais asserções que compõem dado campo de saber”. Por serem elementos de base, sobre
os princípios se assenta todo o edifício da experiência jurídica de um Estado.
Isso explica por que ferir um princípio é mais grave do que ferir uma norma. Observa Josef Esser, citado por REALE (1993:301), que os princípios se revestem de
uma tamanha importância que são válidos independentemente de serem ou não
positivados em um texto legal.
Seriam princípios ordenadores da jurisdição agrária, segundo anota J. Paulo
Bittencourt7 com competência: 1) a gratuidade judiciária, a fim de garantir o acesso
à Justiça sem a necessidade de pagamento de custas; 2) mínimo de formalidades; 3)
maiores poderes instrutórios para o juiz, objetivando decisões céleres e seguras; 4)
maior uso do princípio da eqüidade, pelo qual é concedida ao juiz certa discricionariedade para avaliar as circunstâncias de que nos falava Ortega Y Gasset; 5) possibilidade de o juiz obter assistência técnica de agrônomo, veterinário, agrimensor e
economista rural; 6) alçada para apelação, evitando-se recursos procrastinatórios; 7)
fase prévia de conciliação; 8) processo de execução simplificado e 9) oralidade e
concentração.
Em completa oposição, MEDEIROS & GUIMARÃES (1986: passim) refutam a
necessidade de constituição de uma Justiça Agrária especializada. Entre seus muitos
argumentos, ressaltam-se sobretudo dois: 1) a dificuldade de delimitação da competência da Justiça Agrária; e 2) os prejuízos ao direito de ação, como resultado da diversidade jurisdicional, a provocar dúvidas nos cidadãos acerca de onde propor a
ação. Neste sentido, concluem:
“Inexistem razões de ordem científica ou prática que justifiquem a
criação de uma Justiça Agrária especializada, quer porque seria
difícil estabelecerem-se os limites de sua competência, quer porque
essa competência, sem dúvida, conflitaria com a competência da
Justiça do Trabalho e da Justiça Comum, quer porque a especialização de ramos da Justiça não tem obtido resultados satisfatórios;
devem as questões agrárias permanecer na competência da Justiça Comum, devendo esta ser aperfeiçoada e dotada dos meios materiais e humanos necessários ao seu bom desempenho, com o que
7 Apud ALVARENGA (1985:109)
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se agilizará o julgamento de todas as questões submetidas ao Poder Judiciário, com evidente melhora da qualidade das decisões.”
Não se pode esquecer que o Direito Comparado se constitui em importante
fonte para a Direito Agrário, afinal através de um exame crítico de institutos jurídicos e legislações estrangeiras podem ser extraídos valorosos exemplos. Sendo assim, não poderíamos deixar de comentar nesta parte - em que tratamos dos aspectos mais gerais da jurisdição agrária - como as demandas rurais são solucionadas nas
legislações alienígenas.
De quatro maneiras diferentes os ordenamentos jurídicos estrangeiros prevêem a solução das lides rurais8:
1) Através de vias administrativas comuns, em que se submetem os
litígios agrários a um órgão público administrativo, normalmente
colegiado, com funções não exclusivamente agrárias, ex.: Argentina e Espanha; 2) Por vias administrativas especiais, como os órgãos específicos para a reforma agrária; ex.: Bolívia, China, Albânia e Venezuela; 3) Pela via da jurisdição ordinária; ou seja, através de órgão não-especializados do Poder Judiciário, ex.: Brasil,
Paraguai e Uruguai. 4) Através da jurisdição especial, com a instituição de uma Justiça Agrária, ex.: Cuba, Chile e França.
O caso da França é interessante. Lá, a Jurisdição Agrária remonta ao regime de
Vichy, no auge da Segunda Grande Guerra. Em 1943, foram criadas as Comissões Paritárias de Arbitragem, embriões do que viria, futuramente, se tornar a jurisdição
agrária, em fins da década de 50, quando, então, os tribunais agrários tomaram sua
forma atual. A estrutura muito lembra a da Justiça Laboral brasileira até o advento
da EC n.º 24/99. O tribunal agrário francês é presidido por um juiz togado e composto por quatro representantes classistas. O procedimento é simples e flexível. O
tribunal deve ser provocado por escrito e as partes são convocadas para comparecimento em audiência de conciliação (podem se fazer representar por membro do
sindicato, advogado ou familiar). Não ocorrendo o acordo, uma audiência de instrução é marcada.9
De maneira similar, no Reino Unido, com jurisdição sobre a Inglaterra e o País
de Gales, a justiça agrária é especializada e conferida ao Tribunal de Terras (Lands
Tribunal), criado em 1950. O Código de Processo Civil inglês (Civil Procedure Ru8 Cf. LARANJEIRA (1983:16).
9 Os tribunais agrários franceses (Tribunaux paritaires des baux ruraux) têm sua estrutura, competência e questões procedimentais regulamentadas num Código Rural. Para maiores detalhes, veja-se GONY, Philippe. À quoi sert
la juridiction des baux ruraux? em www.vitisphere.com/dossier.php?eco=&id=49133.
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les), o qual é aplicado para os tribunais civis comuns, não tem aplicação no âmbito
do Lands Tribunal, em razão mesmo de sua especificidade e particularidades. Os
procedimentos são tais que devem assegurar a plena igualdade entre as partes e o
mínimo de formalismos e despesas10. As apelações são dirigidas ao Tribunal de Apelação (Court of Appeal).
3.
A JUSTIÇA AGRÁRIA NO BRASIL
Viu-se acima que, tradicionalmente, o Estado brasileiro, ao lado de Paraguai e
Uruguai, integra aquele grupo de países que adotam a via da jurisdição ordinária
para a solução dos conflitos rurais. No Brasil atual, a maior parte dos diversos tipos
de litígios agrários, começando pelas ações possessórias, passando pelas desapropriações e até chegar às ações de natureza tributária, não se concentra em juízos
agrários especializados, mas fica difusamente distribuída nas variadas competências
originárias de juízes de direito, juízes federais e juízes do trabalho. Todas essas ações
- de conhecimento, de execução, cautelares, mandamentais, entre outras - quando
no segundo grau de jurisdição, são apreciadas pelos Tribunais de Justiça dos estados, Tribunais Regionais Federais e Tribunais Regionais do Trabalho.
Sabe-se que a competência é a exata medida da jurisdição, ou seja, é a delimitação estabelecida pela norma jurídica ao poder de aplicar o Direito. Nesse sentido,
é a Constituição Federal de 1988 que dita as normas de competência do Poder Judiciário. Estabelece a Carta, em seu art. 114, que aos juízes do trabalho cabe a conciliação e julgamento dos dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores rurais, bem como outras controvérsias decorrentes daquelas relações de
trabalho.
Aos juízes federais cabe julgar, conforme o art. 109 da Constituição Federal,
entre outras, as causas em que houver interesse da União (como a cobrança de ITR,
p. ex.), autarquias (como o INCRA) e empresas públicas federais, as causas entre
município ou pessoa residente no país e estado estrangeiro ou organismo internacional, as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro
ou organismo internacional.
Aos juízes estaduais, por exclusão, cabem todas as demandas restantes como,
as ações possessórias, as fundadas em contratos agrários, a discriminação de terras,
o direito de vizinhança etc. A inexistência de um lugar privilegiado para a jurisdição
agrária dentro do ordenamento jurídico nacional provoca o inconveniente de, oca10 No sistema judicial britânico, há diferença no emprego dos termos court e tribunal. Este último consiste num
grupo de profissionais (no caso do Lands Tribunal, um juiz e advogados e/ou procuradores especialistas na área)
que exercem atividades judicantes em matérias específicas. Há, por exemplo, o VAT Tribunal, especializado em lides concernentes ao Imposto sobre Valor Agregado (value added tax). Mais informações sobre o sistema jurisdicional anglo-saxão podem ser obtidas em www.courtservice.gov.uk/index.htm.
138
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sionalmente, a matéria ser levada à apreciação de um magistrado não especializado,
sem a basilar formação agrarista e sem a familiaridade e sensibilidade necesssárias
para com as coisas do campo.
Todas essas razões explicam porque, desde há muito, a instituição da jurisdição agrária é reivindicação que ecoa entre as mais renomadas vozes do Direito nacional. Com efeito, a criação de uma jurisdição específica, com ação e processos próprios, já fora apregoada por Rui Barbosa, o “águia de Haia”, em discurso proferido
durante a campanha presidencial de 1910. Comentando duas leis que cuidavam da
imigração de colonos europeus e transformava em crédito privilegiado o referente
a salário dos trabalhadores rurais, assegurando-lhes preferência sobre os produtos
por eles plantados, colhidos ou de alguma forma beneficiados por eles, o grande jurista baiano asseverou que nas pendências entre patrões e colonos dever-se-ia abandonar o formalismo, causador da demora, da incerteza e do prejuízo dos litigantes,
autorizando-se que o julgador recebesse a reclamação e procedesse de ofício, quase que administrativamente, mediante instrução sumaria e com a simples audiência
da outra parte. Veja-se:
Num país onde empresas opulentas, associações de capitais poderosos têm a sorte do seu direito à mercê, por essa maneira, do capricho de vontades arbitrárias ou interesses irresponsáveis, em que
é que se há de fiar o pobre, o desvalido imigrante? Nem a todos afugenta a carestia da vida. A sobriedade habilita certas raças a arrostarem esses inconvenientes, reduzindo-se a privações, que lhes
não custam. Com pouco mais de duas parcas rações de arroz por
dia se nutre o colono japonês. Mas de um país sem justiça fogem os
mais temperantes, os mais ambiciosos e os mais audazes. Porque a
audácia, a ambição e a temperança trabalham para a economia,
e a economia vive da segurança, cuja base é a justiça.
À compreensão desta necessidade se devem as medidas tentadas
para garantir ao trabalhador rural a certeza do seu salário. A Lei
nº 1.150, de 1904, graduou entre os créditos privilegiados, abaixo
da hipoteca e do penhor agrícola, os salários dos colonos. A Lei nº
1.607, de 1906, sujeitou ao pagamento deles, com primazia a
quaisquer outros créditos, as colheitas pendentes. Praticamente,
porém, essas reformas, bem assim quantas do mesmo gênero se
queiram multiplicar, ainda não acertam no ponto vital. Consiste
ele na efetividade rigorosa dessas garantias, isto é, na criação de
uma justiça chã e quase gratuita, à mão de cada colono, com um
regímen imburlável, improtelável, inchicanável.
Toda a formalística, em pendências entre o colono e o patrão, importa em delonga, em incerteza, em prejuízo, em desalento. Nesta
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categoria de débitos, não sendo facílima, o mesmo é que não ser
exeqüível a cobrança. Sugeriu-se que o juiz mais acessível, o de direito, ou o de paz, receba a queixa, e proceda ex officio, de plano,
quase administrativamente, como nos casos policiais as autoridades respectivas, mediante sumaríssima inquirição, com simples
audiência de outra parte. Seja como for, ou se abrace este alvitre,
ou algum outro equivalente, o essencial está em cometer este gênero de pleitos a uma judicatura, que inspire confiança ao estrangeiro desprotegido, e liquidá-los mediante um processo ligeiro, correntio, rudimentar, mas claro, justo e seguro.11
Essa manifestação já nonagenária de um dos maiores juristas brasileiros, Rui
Barbosa, teve grande repercussão na formação do nosso Código Civil, de 1916.
Ao que tudo indica, a primeira tentativa concreta de se implantar uma Justiça
Agrária no país ocorreu em outubro de 1922, com a criação dos Tribunais Rurais
pelo então presidente do estado de São Paulo, Washington Luís, através da Lei Estadual 1.869, de 10 de outubro de 1922. De âmbito estadual apenas, aqueles tribunais
eram presididos por um juiz de direito e destinados a solucionar conflitos entre proprietários e assalariados rurais. A esta tentativa inicial seguiram-se inúmeros projetos de codificação rural e de regulamentação da reforma agrária.
Em 1968, ainda sob influência da criação do Estatuto da Terra (1964), uma comissão de juristas foi instituída pelo Ministério da Agricultura (Portaria MA-322/68)
para apresentar um projeto de emenda constitucional (através de Ato Institucional)
para a instituição de uma Justiça Agrária no país. A comissão era integrada, entre outros, por Otávio Alvarenga, Carlos Alberto Chiarelli e Motta Maia. Segundo aquele
projeto, a Justiça Agrária seria composta por juntas de conciliação e julgamento, tribunais regionais agrários e um Tribunal Superior Agrário. Esse anteprojeto, ao ser
apresentado ao Congresso, encontrou o Poder Legislativo em recesso. Em seguida,
houve a substituição do Presidente Costa e Silva e do Ministro Ivo Arzúa. Com a
Emenda Constitucional 01/69 a iniciativa restou paralisada.
Em 1974, o prof. Motta Maia conduz um novo estudo, agora patrocinado pela
Sociedade Nacional de Agricultura, que, aproveitando o estudo anterior, foi apresentado ao STF. Nesse projeto havia uma redução de competências da Justiça Agrária,
para garantir a sua viabilização, mas foi abandonado sem maiores repercussões. Em
1976, no bojo das reformas do Judiciário do Governo Militar do Presidente Geisel,
surgiram as propostas de emenda constitucional (não aprovadas) dos senadores
11 “Plataforma [Eleitoral ] lida no Teatro Politeama Baiano, em 15 de janeiro de 1910”. In: BARBOSA, Rui. Pensamento e Ação (Seleção de textos pela Fundação Casa de Rui Barbosa). Brasília: Senado Federal, 1999, p. 295-365. É
de se registrar que, nas eleições presidenciais de 1º de março de 1910, Rui Barbosa saiu derrotado, desta feita pelo
Marechal Hermes da Fonseca.
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José Lindoso (81/76) e Franco Montoro (59/76) para a criação de uma Justiça Agrária. Durante o início da década de 80, ainda surgiram os projetos de emenda constitucional dos deputados Jorge Arbage (PA), Rogério Rego (BA) e José Sarney Filho
(MA) que, em suma, eram assemelhados já que criavam, no âmbito da própria Justiça Federal, varas agrárias com competência para cuidar de relações de trabalho rural e ITR.
Em outubro de 1986, o então Ministro da Justiça do Presidente Sarney, Paulo Brossard, em visita ao antigo Tribunal Federal de Recursos, propugnou pela
criação de varas federais agrárias nas seções judiciárias dos estados. Desse pedido resultou o provimento 316/87 do Conselho da Justiça Federal, que implantou
a 5ª Vara da Seção Judiciária de Goiás, com sede em Araguaiana (hoje localizada
no Estado do Tocantins), especializada em questões agrárias, mas sem prejuízo
da distribuição normal.
Em sede administrativa, algumas tentativas também foram iniciadas, sem, entretanto, obter sucesso. Seus exemplos são a Comissão de Conciliação e Julgamento do extinto Instituto de Açúcar e do Álcool, que se prestava a dirimir as questões
entre fornecedores de cana e usinas, e a Comissão Agrária prevista no Estatuto da
Terra, composta de um representante do Governo Federal, um dos proprietários rurais, um dos trabalhadores rurais e um dos estabelecimentos de ensino rurais. Serviria como meio de implementação da reforma agrária, acompanhando os programas de desapropriação e concessão dos lotes.
Rompendo o paradigma urbano das Constituições anteriores, o legislador
constituinte de 1988 inovou, atendendo aos antigos e constantes anseios de institucionalização de uma Justiça Agrária no Brasil. A novel Constituição Federal trouxe no
seu art. 126 o seguinte comando:
Art. 126 - Para dirimir conflitos fundiários12, o Tribunal de Justiça
designará juízes de entrância especial13, com competência exclusiva para questões agrárias14.
Parágrafo único - Sempre que necessária à eficiente prestação jurisdicional, o juiz far-se-á presente no local do litígio.
Embora evitando a construção de uma Justiça Agrária ao estilo italiano, com
juízes, tribunais regionais e um tribunal superior próprios, com aquele dispositivo o
12 “O termo conflito na linguagem jurídica, presta-se para indicar embate, oposição, encontro, demanda (...).
Conflito agrário é o entrechoque de interesses em torno da propriedade rural” (COUTO, 1991:87).
13 Entrância especial, ou entrância da capital, é um sinônimo para comarca de terceira entrância.
14 “Todo e qualquer ato ou negócio jurídico, onde se ressaltasse direito e obrigações agrárias. As relações típicas e
diversificadas, entre um ou mais sujeitos e as coisas, fatos, serviços ou bens agrários; e entre os sujeitos e/ou coisas
e o poder público” (COUTO, 1991:83).
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texto constitucional deu um importante passo no sentido de solucionar com eficácia as lides agrárias. Não só porque obriga o magistrado à especialização mas também por aproximar o juiz do conflito, evitando uma conduta alheia à realidade do
campo.
Todavia, o supracitado art. 126 da Constituição Federal de 1988 recebeu lúcida crítica de Antônio Jurandir PINOTTI (1993:48-49) que vê na “designação” de magistrado (“...o Tribunal de Justiça designará juízes de entrância especial...”) uma
sujeição desnecessária das partes a critérios subjetivos da cúpula dos Tribunais de
Justiça dos Estados, que podem macular a imparcialidade requerida na atividade jurisdicional. In verbis:
“O texto constitucional em análise fere de morte o princípio do juiz
natural. Ele não resiste a esta simples pergunta: Como é possível,
em tese, o conflito de interesses (a lide agrária) preexistir ao juiz
competente, ao juiz certo, para dirimi-la? Sim, porque o texto constitucional não dá a garantia de que a designação do juiz agrário
deva ser anterior ao nascimento do conflito. É certo que o dispositivo legal em debate possibilita ao Tribunal de Justiça designação
prévia dos Juízes. Isto, porém, é insuficiente. Primeiro, porque possibilidade não é obrigatoriedade; segundo porque pelo menos no
Estado de São Paulo não houve a designação desses juízes (...); por
último, porque o Tribunal que designa juízes, é obvio, pode fazer
cessar a designação.”
À luz dessa argumentação, PINOTTI propõe a alteração do texto constitucional para os seguintes termos:
Art. 126 - Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça
proporá a criação de varas especializadas, classificadas em entrância especial, com competência exclusiva para questões agrárias.
Convidado pelo então Ministro da Justiça Saulo Ramos a presidir uma comissão oficial para criação de uma Justiça Agrária no país, o prof. Raimundo Laranjeira,
no início da década de noventa, apresentou um anteprojeto de lei, conhecido como
“Projeto Laranjeira”, que, ao caracterizar as questões agrárias, delimitava a competência das varas agrárias previstas no art. 126 da Constituição Federal e possibilitava
a sua concreta institucionalização pelos Tribunais de Justiça dos estados e Tribunais
Regionais Federais.
Sem invadir a competência dos Presidentes dos Tribunais de Justiça estaduais
e dos juízes dos Tribunais Regionais Federais para criar as respectivas varas agrárias,
142
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o prof. Laranjeira apresentou um estudo dividido em duas partes. Na primeira, fez um
anteprojeto de lei que definia o que seria de competência daquelas varas estaduais e federais, conforme autorização do próprio texto constitucional (arts. 22, I, XVI e XXV; 24,
V, VI, VIII, XI e XIII da CF/88). Na segunda parte do estudo, constituído de um anexo ao
referido anteprojeto, enumerou algumas sugestões aos desembargadores e desembargadores federais para a organização do foro agrário em território nacional. O “projeto
Laranjeira” em breves linhas, apresentava as seguintes linhas mestras:
• Conceituava o que seriam as questões agrárias de competência daquelas varas especializadas previstas no art. 126 da CF/88;
• Incluiu entre as atividades agrárias todas aquelas referentes à conservação
e preservação do solo;
• Elencava entre as competências agrárias, competências gerais, previdenciárias, trabalhistas, penais, tributárias;
• Excluiu da competência do foro agrário estadual as causas de interesse da
União, suas autarquias e empresas públicas, que estariam sob jurisdição das
varas agrárias federais;
• Delineou os princípios gerais do procedimento agrário, dentre os quais, a
brevidade, a gratuidade e a presença do juiz no local do conflito; e
• Proibia a designação de juízes e promotores proprietários de terras para funcionarem nessas varas, a fim de se assegurar a necessária imparcialidade;
Entre as sugestões elencadas pelo Prof. Laranjeira no anexo ao anteprojeto de lei
estavam:
• A criação de câmaras ou turmas especializadas nos Tribunais de Justiça;
• A presença de perito judicial especializado em ciências agrárias;
• A exigência para os juízes de varas agrárias, como requisito mínimo de formação, a especialização em direito agrário;
• O fomento aos cursos de Direito Agrário nas faculdades de direito, pós-graduações, escolas da magistratura e ministério público;
Em que pese a competência do Prof. Raimundo Laranjeira e a qualidade do projeto proposto, ele não chegou sequer a ser apresentado ao Congresso Nacional pelo Governo Federal. Contudo, a falta de uma caracterização mais plausível do que fossem as
questões agrárias não impediu que muitos tribunais estaduais já constituíssem diretamente as suas varas agrárias, aproveitando-se da permissão constitucional referida acima (art. 126 da Constituição).
No Brasil, a primeira Corte estadual a instalar uma vara dedicada a questões agrárias foi o Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba que, em meados de
1996, instalou a sua “vara de conflitos agrários e meio ambiente”. A Lei de Organização Judiciária do Estado da Paraíba15 previu em seu art. 26, Inc. I, letra L, que
15 Lei Complementar nº 25, de 27 de junho de 1996, com as alterações dadas pelas Leis Complementares nº 33, de
12 de junho de 1998; 35, de 19 de outubro de 1999, 37, de 16 de janeiro de 2001, e 38, de 14 de março de 2002.
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143
um Juiz de Direito serviria em uma “Vara de Conflitos Agrários e do Meio Ambiente”, localizada na capital do Estado (a cidade de João Pessoa). A competência e o preenchimento desta vara são estabelecidos pelo art. 53 da mesma lei de
organização judiciária, in verbis:
Art. 53. Compete ao Juiz designado para responder pela Vara de
Conflitos Agrários e do Meio Ambiente, cumulativamente com as
atribuições da Unidade Judiciária de que é titular, processar e julgar:
I - privativamente, com jurisdição em todo o Estado, os conflitos
fundiários, com competência exclusiva para questões agrárias
(CF. art. 126);
II - na Comarca da Capital, as ações referentes a assuntos ambientais, manifestados ou não interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, que tenham como fim o resguardo e o controle
do meio ambiente ou apuração de agressões ao mesmo.
§ 1º. A Vara de que trata o caput deste artigo será provida por designação do Tribunal.
§ 2º. Excepcionalmente, o Juiz designado na forma do parágrafo
anterior poderá recusar a designação.
Em que pese a valiosa e pioneira iniciativa do Tribunal de justiça, não se pode
deixar de notar que a expressão “cumulativamente com as atribuições da Unidade Judiciária de que é titular”, contida no caput do mencionado art. 53, parece não
encontrar guarida na Constituição Federal brasileira, cujo art. 126 fala em juízes
“com competência exclusiva para questões agrárias”. À primeira vista, esse mesmo raciocínio também poderia servir de base para uma crítica à reunião, na mesma
vara agrária paraibana, de competências agrárias e ambientais (cuja lei de criação fala
em “vara de conflitos agrários e meio ambiente”). Neste ponto, porém, foi sábia e irreparável a decisão do Tribunal de Justiça da Paraíba, já que, com muita perspicácia,
anteviu uma tendência que hoje caminha para um consenso no jus-agrarismo internacional: a integração entre a dimensão agrária e a dimensão ambiental, como instâncias complementares da relação Homem X Natureza.16
Merece destaque o fato de que, conforme o Anuário Estatístico Judiciário da
Paraíba (2001), a vara agrária paraibana, no ano em referência, deteve a menor movimentação processual entre as varas judiciais da comarca de João Pessoa. Vejam-se
alguns dos seus indicadores:
16 Quanto a esse ponto, o artigo de ULATE CHACÓN (2001) é bastante enfático e esclarecedor.
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Tabela 01 - Movimentação Processual na Vara Agrária da Paraíba
Tipo de Ações
Ações civis públicas
Outras Ações
Possessórias
Total
Em andamento
33
23
35
91
Distribuídos
01
12
09
22
Sentenças
17
06
40
63
Audiências
07
01
02
10
Fonte: Anuário Estatístico Judiciário - Paraíba 2001, p. 107
No âmbito da Justiça Federal brasileira, as seções judiciárias dos estados de
Goiás, Paraná e Pernambuco têm em sua organização jurisdicional varas especializadas no julgamento de questões agrárias. Os feitos mais freqüentes que tramitam
nestas varas são as ações de desapropriação movidas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e as cautelares de antecipação de prova (vistoria preventiva). Devido ao baixo movimento na distribuição daquelas causas, essas varas
também recebem outros feitos (comuns) mediante compensação: recebem com exclusividade os feitos agrários e ainda, por distribuição normal, todos os outros tipos
de feitos.
Uma forma alternativa de prestação da jurisdição agrária adveio da dissertação
de mestrado do Prof. Vítor Barbosa Lenza, magistrado goiano e mestre em Direito
Agrário pela UFGO, que sugeriu a proposta de constituição dos “juizados agrários”,
onde seriam resolvidas as questões agrárias limitadas a uma alçada de 40 salários mínimos e as questões penais agrárias a que a lei comine pena máxima de até dois anos
de detenção e um ano de reclusão. Esses “juizados agrários”, inspirados nas small
claims americanas, seriam orientados pelos princípios da oralidade, simplicidade,
informalidade, economia processual, gratuidade e celeridade, visando à conciliação
entre as partes, a semelhança do que ocorre nos “juizados especiais” urbanos (ou
“tribunais de pequenas causas”). Do ponto de vista concreto, o magistrado chega a
incentivar até mesmo a formação de um “magistrado de calças-jeans”, aquele que
troca a formalidade da toga e dos gabinetes pela possibilidade de contato freqüente, informal e direto com as partes, através de incursões rotineiras ao campo através
de caminhonetes equipadas com máquinas de escrever.
Segundo o Prof. Lenza, apenas o rurícola, o pequeno empreiteiro rural, o pequeno possuidor e o pequeno proprietário seriam sujeitos ativos nos juizados agrários, a
fim de se privilegiar o acesso dos hipossuficientes à Justiça e evitar uma sobrecarga de
demandas a se decidir. Também objetivando celeridade, das decisões dos juizados agrários caberia recurso inominado para o Colegiado Recursal Agrário, integrado por 3 juízes de direito. Embora a formulação do Prof. Lenza seja bastante exeqüível, mesmo porque a proposta de constituição dos juizados agrários é feita com riqueza de detalhes
técnico-jurídicos, a sua efetivação ainda não foi levada a efeito.
A busca pela implantação de uma justiça agrária no Brasil continuou com a
apresentação do Projeto de Emenda à Constituição n.º 47, de 11 de agosto de 1995,
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de autoria do então Senador Romero Jucá. O projeto foi arquivado em fevereiro de
1999, nos termos do arts. 332 e 333 do Regimento Interno do Senado Federal, que
estabelecem que toda proposição que se encontrar em tramitação há duas legislaturas deverá ser arquivada. O projeto propunha a criação de Tribunais e Juízes agrários, bem como o Ministério Público Especial Agrário. O Capítulo III do Título IV da
Constituição ficaria acrescido de uma nova seção, que disciplinaria a Jurisdição Agrária, nos mesmos moldes do que ocorre com as demais jurisdições especiais. Segundo a proposta, junto ao Tribunal Superior Agrário funcionaria um Conselho da Justiça Agrária, órgão administrativo responsável pela supervisão administrativa e orçamentária da Justiça Agrária de primeiro e segundo graus, além do recebimento e
processamento de reclamações contra tribunais e juízes agrários.
4.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Ao tecer algumas críticas sobre a Lei 4.504/64 (Estatuto da Terra), o eminente
civilista Caio Mário da Silva Pereira17 considerou imperativa a necessidade de constituição da jurisdição agrária especializada no país:
“Não descurando os planos assistenciais, técnicos e financeiros,
omitiu, entretanto, o Estatuto um aspecto importante: a instituição
de um aparelho judiciário adequado. Com efeito, não basta lançar as bases de uma nova política agrária, nem formular conceitos novos de relações humanas. Entregue à justiça ordinária o desate de controvérsias, faltará o dinamismo indispensável a que se
lhe imprima rapidez e objetividade. De nada valeria toda uma legislação social avançada, se não houvesse o Brasil criado uma
Justiça do Trabalho, que a aplicasse. Não é questão pessoal, pois
que das mesmas faculdades saem os que vão integrar a justiça trabalhista. É uma decorrência da criação de critérios que modelam
as mentalidades. A Comissão Agrária instituída no Estatuto da Terra (art. 42) ficou provida de atribuições simplesmente administrativas. É insuficiente. Cumpre dar nascimento a órgãos jurisdicionais especializados para que haja eficiência na aplicação do Estatuto, e particularmente, para que este se imponha sob a inspiração
de sua própria filosofia.”
Concordando com o Prof. Caio Mário, há de se ressaltar, porém, que o problema agrário é complexo, a se interrelacionar com fatores sociológicos, econômicos e
17 Apud ALVARENGA (1985:109)
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políticos, e não será resolvido com a simples instituição de uma jurisdição agrária especializada. Entretanto, é certo que a criação de foros privilegiados para a discussão
da questão agrária, como as varas especializadas ou mesmo de uma Justiça Agrária
propriamente dita, concretizará algumas diretrizes, indispensáveis ao desenvolvimento das relações no campo. Entre os objetivos que podem ser alcançadas destacam-se18:
1) Estabelecer procedimentos judiciais rápidos e seguros, que afastem a descrença do trabalhador rural na Justiça, aproximando-o
dos fóruns; 2) Criar um profícuo corpo de doutrina e jurisprudência acerca das lides agrárias; 3) Promover e divulgar o interesse e
o estudo pelo Direito agrário; 4) Ampliar a capacitação dos magistrados, membros do parquet e advogados em assuntos agrários; 5)
Salientar o conteúdo jurídico da reforma agrária, afastando-a de
ideologismos contraproducentes; 6) Auxiliar o Estado na tarefa de
transformação das estruturas agrárias; e 7) Proteger os recursos
naturais, favorecendo uma agricultura sustentável.
Improdutivas maiores argumentações acerca da necessidade da especialização jurisdicional, resta ainda uma questão: qual seria a via que melhor atenderia aos
reclamos distributivos de Justiça - a que propugna tão só pelas varas agrárias ou a
que opta pelos juízes e tribunais agrários? Numa época em que os conceitos da administração gerencial procuram a eficiência estatal com o simultâneo downsizing da
máquina pública, a melhor opção a seguir é a constituição de varas agrárias (na Justiça Federal e Comum) e juizados especiais de pequenas causas agrárias, em lugar
de juízes e tribunais agrários, devido à onerosidade do procedimento e o baixo número de feitos atualmente propostos. Em tempos de Estado mínimo, onde se busca o enxugamento dos custos estatais, seria um retrocesso a construção de um todo
um novo edifício judiciário para a Justiça Agrária brasileira. A simples instituição das
varas agrárias, com amplas competências agro-ambientais, como já propugna o texto constitucional brasileiro, com a ressalva quanto à designação do magistrado, é suficiente para iniciar-se com efetividade o atendimento às demandas de justiça no setor rural.
5.
BIBLIOGRAFIA
ALVARENGA, Octávio Mello. Justiça Agrária no Brasil. In: Revista Arquivos do Ministério da
Justiça. Brasília, a. 39, n. 166, out/85, pp. 108-118.
18 Cf. ALVARENGA (1985:117)
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ALIMENTOS TRANSGÊNICOS:
SOLUÇÃO OU PROBLEMA?
Luís Paulo Sirvinskas
Promotor de Justiça Criminal em São Paulo.
Mestre em Direito Penal e doutorando em Direito Ambiental pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Especialista em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo (FADUSP) e em Interesses Difusos e Coletivos pela Escola
Superior do Ministério Público (ESMP).
Ex-Professor Adjunto de Legislação Tributária nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU).
Professor Associado de Direito Ambiental na Universidade Cidade de São Paulo (UNICID).
Autor dos livros Tutela penal do meio ambiente, 2a. ed., Ed. 2002,
Manual de direito ambiental, 2a. ed., ed. 2003
e Introdução ao Estudo de Direito Penal, 1a. ed., todos da Saraiva, ed. 2003.
A prioridade do Governo Lula é erradicar a fome no Brasil (art. 3o, III, da CF).
Essa prioridade não pode ser adotada isoladamente, deve ser associada com outras
políticas igualmente importante, como, por exemplo, permitir o acesso amplo à saúde, à educação, ao trabalho, à habitação, à segurança, à assistência à velhice, à maternidade e à criança (art. 6o da CF). O combate à fome é talvez a prioridade mais
importante no momento, especialmente se dermos uma passada de olhos nas regiões menos favorecidas. O Brasil não se restringe a São Paulo, ao Rio de Janeiro, a
Belo Horizonte etc. O Brasil possui mais de cento e oitenta milhões de pessoas e
grande parte encontra-se excluída socialmente por estar distante dos grandes centros urbanos. Por essa razão é que o Governo Lula pretende dar uma atenção maior
a essas regiões onde a fome é mais premente.
150
faculdade de direito de bauru
Todos os meios devem ser empregados para a erradicação da fome. Não podemos deixa-la tomar conta das pessoas por causa da discussão acadêmica insolúvel. Só quem passou fome sabe como é difícil tentar sobreviver sem a ajuda de alguém. É nesse momento que o Governo deve intervir para minorar o sofrimento
dos menos favorecidos. Lula caminhou por todas as partes do Brasil e viu de perto
a fome se apoderar das pessoas. Viu também que o Brasil é maior do que a fome.
Cumprida essa prioridade, outras deverão ser adotadas para evitar o retrocesso e retomar o desenvolvimento sócio-econômico (art. 3o, II, da CF).
Não há dúvidas de que os alimentos transgênicos poderão ser utilizados para
o combate à fome (Programa Fome Zero). No entanto, não devemos ser ingênuos a
ponto de aceitar as pressões das multinacionais americanas que querem que o Brasil eliminem as restrições à comercialização de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs).
É importante ressaltar que os alimentos transgênicos podem causar modificações no meio ambiente e problemas à saúde humana. No entanto, podemos afirmar
que o desenvolvimento da biotecnologia aplicável às plantas é comemorada pelos
cientistas e ambientalistas como uma nova revolução verde. Não há dúvidas que a
aplicação dessas novas técnicas na melhoria das espécies agrícolas proporcionará
uma produção de alimentos mais saudável e com maior índice de proteínas. Claro
que toda intervenção do homem no meio ambiente deve ser realizada com muita
cautela, pois, tal intervenção, poderá causar mais danos do que benefícios. Essas novas espécies - mais resistentes aos herbicidas e aos pesticidas - poderão se transformar em espécies dominantes, reduzindo-se as variedades biológicas da região e empobrecendo-se o solo.
Os maiores produtores e exportadores de alimentos transgênicos são o EUA
(74%), a Argentina (15%), o Canadá (10%) e a Austrália (1%). Tais produtos trazem
vantagens e desvantagens. As vantagens são a produção de alimentos mais nutritivos e baratos. Seu cultivo é mais eficiente do que o convencional e poderá ser a solução para abastecer a população mundial. As desvantagens são aquelas advindas do
consumo desses alimentos, podendo causar alergias ou danificar o sistema imunológico humano. As sementes, além disso, poderiam transmitir seu material genético
a outras espécies, gerando “superpragas”. Os herbicidas, por fim, inoculados nas sementes modificadas poderiam afetar animais e insetos importantes ao equilíbrio do
meio ambiente.
Há notícias ainda que pesquisa do cientista Arpad Pusztal, Escócia, constatou
que ratos alimentados com batata transgênica apresentaram problemas. Um grupo
de cientistas do Reino Unido alertou para se evitar a venda de batata transgênica. Segundo Beatrix Tappeser, representante do Instituto de Ecologia Aplicada da Alemanha, há cada vez mais provas sobre os riscos ecológicos e danos à saúde que podem
ser provocados por esses alimentos. Estudos realizados na Universidade Cornell
constataram que larvas da borboleta Monarca sp, alimentadas com pólen de milho
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38
151
transgênico, ficaram em sua maioria atrofiadas. A liberação desse produto transgênico poderá causar a extinção de toda uma espécie da biodiversidade e da cadeia alimentar de outros animais.
A despeito da ausência de estudos científicos sérios, a Comissão Técnica de
Biossegurança (CTNBio) concedeu 626 liberações para pesquisas na área de engenharia genética para a soja, milho, algodão, arroz, batata, fumo, cana-de-açúcar, trigo etc.
Outra questão importante está relacionada à rotulagem dos produtos transgênicos que, por sua vez, está intimamente ligada ao direito de informação. Por conta
disso, o legislador resolveu disciplinar a questão através do Decreto n. 3.871, de 18
de julho de 2001, que dispõe sobre a rotulagem de alimentos embalados que contenham ou sejam produzidos com organismo geneticamente modificado, e dá outras providências.
O problema da rotulagem vem sendo discutido no mundo todo sobre a necessidade ou não de inserir no rótulo do produto informações de que se trata de alimentos transgênicos. Nos EUA, a rotulagem é voluntária. Fica a critério da empresa
informar se o alimento foi geneticamente modificado, bem como sua respectiva
composição. No Canadá, por exemplo, passa a ser obrigatória a necessidade de inserir no rótulo as informações sobre o produto geneticamente modificado.
No Brasil, tal discussão ficou superada por conta do advento do Dec. n. 3.871,
de 18 de julho de 2001, que determinou a obrigatoriedade de inserir no rótulo do
produto de que se trata de alimento geneticamente modificado, desde que o percentual esteja acima de 4% para dos ingredientes utilizados na formação do produto. Não havendo a necessidade dessa informação se o produto não atingir esse percentual. Seja como for, o produtor sempre será responsável, objetivamente, pelos
eventuais danos causados a terceiros. É importante ressaltar que os Estados, o Distrito Federal, e os Municípios poderão legislar sobre a matéria, estabelecendo percentual menor àquele fixado pelo decreto federal.
O direito à informação é supedâneo constitucional e deve ser observado
quanto à rotulagem do produto geneticamente modificado. Essa necessidade também está prevista nos arts. 6o, 7o e 9o do Código de Defesa do Consumidor (Lei n.
8.078, de 11 de setembro de 1990).
Há ação civil pública proposta perante a Justiça Federal de Brasília questionando a legalidade do citado Dec. n. 3.871/2001 por ser ofensivo aos arts. 6o e 31 do
CDC.
A entidade ambientalista Greenpeace fez manifestação em Brasília e o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), juntamente com o Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), moveu ação civil pública pedindo a suspensão do pedido de autorização de plantio de soja transgênica no país.
O fundamento foi que a CTNBio não exigiu da empresa (Monsanto) o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EPIA/RIMA), básico para a iniciativa pretendida. Aliado ao
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faculdade de direito de bauru
fato da falta de informação segura sobre as conseqüências para a saúde humana e o
meio ambiente, já que nem os estudos nos países europeus e nos Estados Unidos
chegaram a uma conclusão definitiva.
São muitas as polêmicas envolvendo os alimentos transgênicos, mas a população mundial continua crescendo acentuadamente e degradando nosso meio ambiente. O solo está sendo deteriorado e a água se escasseando cada vez mais. Apenas para efeito ilustrativo, em 1830, havia um bilhão de habitantes no planeta, em
1960, aumentou para dois bilhões, já em 1974, passou para três bilhões e, em 1999,
finalmente alcançou a cifra de seis bilhões. Esses dados demonstram que a população continua crescendo e ocupando os espaços que outrora eram utilizados para o
plantio de alimentos. Há informações de que cerca de oitocentos milhões de pessoas passam fome no planeta e a produção deverá dobrar para atender às carências
alimentares (Folha de S. Paulo, 26-11-2002, A11).
Conclui-se, através desses dados, que a engenharia genética deve ser utilizada na agricultura, especialmente na produção de alimentos transgênicos que
sejam mais abundantes, nutritivos, baratos e saudáveis, permitindo-se o seu acesso a todas as pessoas sob pena de vermos nossos irmãos morrerem de fome sem
nada fazermos.
O Governo Lula poderá ser bem assessorado pelo Ministério do Meio Ambiente, pelo Ministério da Agricultura e Reforma Agrária e pelo Ministério da Ciência e
Tecnologia sobre as questões dos alimentos transgênicos antes de tomar qualquer
medida que possam causar danos ao meio ambiente e a saúde humana sob o pretexto de erradicar da fome no Brasil.
INTERPRETAÇÃO DO ISSQN À LUZ DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL, EM DETRIMENTO À JURISPRUDêNCIA
PACÍFICA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(Elaborado em fevereiro de 2003)
Eduardo Amorim de Lima
Mestre em Direito pela Instituição Toledo de Ensino-Bauru/SP,
Advogado tributarista em São Paulo.
1.
INTRODUÇÃO
Um dos assuntos mais polêmicos para os operadores do direito, no Estado de São Paulo, neste início de ano 2003, principalmente para aqueles que
atuam com o Direito Tributário, foi a implantação, por diversos Municípios, de
uma nova sistemática de arrecadação do ISSQN – Imposto Sobre Serviços de
Qualquer Natureza.
Com efeito, escudados em posicionamento do STJ – Superior Tribunal de
Justiça – data venia, de duvidosa constitucionalidade, alguns Municípios passaram a cobrar o referido imposto, não mais se levando em consideração a localização da empresa prestadora de serviços, mas, sim, o local em que os serviços
são prestados. É o caso, por exemplo, dos Municípios de São Paulo, Osasco, Jandira, dentre outros.
Criou-se, então, uma teratológica situação de bitributação, pois, exemplificativamente, se uma empresa está localizada em Bauru/SP e presta serviços na capital
paulista, será tributada por ambos os Municípios, pelo mesmo fato gerador, sendo
que, para os serviços prestados na capital, o valor devido a título de ISS deverá ser
retido na fonte pelo tomador do serviço.
154
faculdade de direito de bauru
Isso representa, a toda evidência, diversos vícios de legalidade e de inconstitucionalidade, além de, é evidente, significativa supressão de faturamento dessas
prestadoras de serviços.
É o que será apontado na seqüência, de forma sintética.
2.
DA CRIAÇÃO DA FIGURA DO RESPONSÁVEL TRIBUTÁRIO PELO RECOLHIMENTO DO ISSQN
A maioria dos Municípios que alterou a forma de tributação dos prestadores
de serviços, criou a figura do responsável tributário, que passou a ter a incumbência legal de proceder à retenção na fonte do imposto devido.1
Ocorre que, ao criar a figura do responsável tributário, no âmbito do ISSQN
aqui em foco, houve ofensa ao artigo 128 do Código Tributário Nacional, que estabelece a figura do responsável tributário, no âmbito da legislação complementar. Vejamos:
Art. 128. Sem prejuízo do disposto neste Capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a
terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação. (grifou-se)
Ora, só há a figura do responsável tributário, quando patente estiver a sujeição passiva direta, concretizada na pessoa do contribuinte do imposto, o que, de
fato, inexiste, pois, o contribuinte estabelecido em determinado município, lá recolhendo seu ISS, não é contribuinte de um outro em que o serviço for prestado.
É exatamente essa a observação feita por Luciano Amaro, ao comentar a figura do responsável tributário:
A presença do responsável como devedor na obrigação tributária
traduz uma ‘modificação subjetiva no pólo passivo da obrigação’,
na posição que, naturalmente, seria ocupada pela figura do contribuinte. Contribuinte é alguém que, naturalmente, seria o personagem a contracenar com o Fisco, se a lei não optasse por colocar
1 Cite-se, como exemplo, o artigo 5º, da Lei nº 13.476/02, do Município de São Paulo, que estabelece extenso rol
de responsáveis tributários: Art. 5º São responsáveis pelo pagamento do Imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS, devendo reter na fonte o seu valor, os seguintes tomadores ou intermediários de serviços estabelecidos no Município de São Paulo, em relação aos serviços por eles tomados ou intermediados:
(...)
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155
outro figurante em seu lugar (ou a seu lado), desde o momento da
ocorrência do fato ou em razão de certos eventos futuros (sucessão
do contribuinte, p. ex.).
(...)
A identificação do contribuinte facilita a análise do responsável.2
Com efeito, o que pode ser verificado nas teratológicas criações municipais é
que a figura do responsável exsurge a partir do equivocado pressuposto de que as
empresas que prestam serviços em Municípios diferentes daqueles em que estão
sediadas são contribuintes do ISS para o Município destinatário dos serviços.
Em verdade, tal posicionamento ofende, também, o artigo 12, a, do Decretolei nº 406/68, que traça, peremptoriamente, o aspecto espacial da hipótese de incidência do ISS, conforme se demonstrará na seqüência, corroborando, mais fortemente, a ofensa ao artigo 128 do CTN.
3.
ASPECTO ESPACIAL DA HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA DO ISS
A Constituição Federal de 1988 dispõe, em seu artigo 156, III, que compete
aos Municípios a instituição do Imposto sobre Serviços de qualquer natureza.
No art. 146, inciso III, a, do texto constitucional, percebe-se a necessidade da
existência de uma lei complementar que venha fixar todos os critérios da hipótese
de incidência tributária, a saber: critério material, critério espacial, critério temporal,
critério pessoal e quantitativo.
A lei complementar a que se faz menção no texto constitucional é, sem sombra de dúvidas, o Decreto-lei nº 406/68, recepcionado, na vigente ordem constitucional, com o status de lei complementar, consoante retumbante vertente doutrinária, ratificada, inclusive, na mais Corte deste país.3
Buscando o aspecto espacial do ISS, estampado no referido Decreto-lei, encontra-se a seguinte prescrição, em seu artigo 12, alínea a:
Art.12. Considera-se local da prestação de serviço:
o do estabelecimento prestador ou, na falta de estabelecimento, o do domicílio do prestado;
no caso de construção civil, o local onde se efetuar a prestação.
No caso do serviço a que se refere o item 101 da Lista Anexa, o Município em cujo território haja parcela da estrada explorada. (grifou-se)
2 Direito tributário brasileiro, 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 293.
3 Cite-se, nesse sentido, apenas para exemplificação, Sacha Calmon Navarro Coêlho, Curso de direito tributário
brasileiro, 6ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 522.
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156
Percebe-se, assim, que resta perfeitamente preenchida a exigência constitucional de existência de lei complementar definindo o aspecto espacial da hipótese
de incidência do ISS.
Como decorrência lógica do imperativo legal, tem-se que o Município competente para instituir a cobrança do ISS é aquele em que está localizada a empresa
prestadora de serviços, independentemente do local factual em que se presta o serviço, exceção feita às empresas de construção civil.
4
DO POSICIONAMENTO DO STJ, CONTRÁRIO AO ARTIGO 12 DO
DECRETO-LEI 406/68 – OFENSA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Muito provavelmente, os Municípios tentaram legislar acerca daquilo que o
STJ já vinha decidindo, ou seja, que o Município em que ocorre a efetiva prestação
de serviços é o competente para instituir a cobrança do ISS.
Entretanto, no presente artigo, demonstrar-se-á que tanto a lei municipal,
quanto a jurisprudência pacífica do STJ, ofendem a Constituição Federal, conforme
a seguir delineado.
Mesmo diante da inequívoca conclusão de que o Município competente para
instituir a cobrança do ISS é aquele em que está localizada a empresa prestadora de
serviços, independentemente do local factual em que se presta o serviço, exceção
feita às empresas de construção civil, o Superior Tribunal de Justiça houve por bem
desconsiderar a hipótese da letra “a”, do art. 12, do Decreto-lei nº 406/68, em reiteradas decisões que desfraldam o entendimento de que a incidência seria sempre no
local de prestação do serviço, e não no da localização do estabelecimento prestador,
filial ou matriz; o que tem sido veementemente contestado pela doutrina.
Nestes termos, a ementa do acórdão que pacificou o entendimento da Primeira e da Segunda Turma daquele Sodalício:
‘Embargos de divergência’ ISS. Competência. Local da Prestação de
Serviço. Precedentes.
I – Para fins de incidência do ISS – Imposto sobre serviços – importa
o local onde foi concretizado o fato gerador, como critério de fixação
de competência do Município arrecadador e exigibilidade do crédito
tributário, ainda que se releve o teor do art. 12, alínea ‘a’ do Decretolei 406/68.
II – Embargos rejeitados.
(Embargos de divergência no Resp 130.792-CE, Rel. Min. Ari Pargendler, Rel. para acórdão: Min. Nancy Andrighi. DJ 12-6-2000, p. 66)4
4 Revista Dialética de direito tributário nº 59, ago/00, p. 178.
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Como se abstrai da leitura da referida ementa, o STJ, entendeu que a lei estabelece, como local de prestação do serviço, o do estabelecimento prestador. Isso
significa separação da letra “a” da letra “b”, do artigo 12, do Decreto-lei nº 406/68,
negando a interpretação sistemática da lei, que deve prevalecer à análise isolada de
parte de seus dispositivos.
A seqüência do discurso, entretanto, espanta quem o lê, pois se afirmou:
Para fins de incidência do ISS – Imposto sobre serviços – importa
o local onde foi concretizado o fato gerador, como critério de fixação de competência do Município arrecadador e exigibilidade do
crédito tributário...
O que mais causa espécie, no posicionamento do STJ, ao qual os Municípios
aderiram, é que, ao declarar que é sempre o local da prestação de serviços o determinante para a incidência do ISS, desconsiderou-se o preceituado no Decreto-lei nº
406/68, que vigora há mais de 30 anos sem contestação!
Ora, se é o local da prestação de serviços aquele que justifica a incidência do
ISS, pergunta-se: por que a exceção da letra “b”, que declara, também, que é o local da prestação de serviços o que atrai a tributação municipal?
Se é apenas o local da prestação de serviços o que prevalece, pergunta-se outra vez: por que o legislador cuidou de duas hipóteses distintas, ou seja, a da letra
“a” (local do estabelecimento ou domicílio do prestador) e a da letra “b” (local da
prestação de serviços para as empresas de construção civil)?
O referido posicionamento é tão frágil que o próprio STJ, em outra passagem,
já manifestou posição em sentido contrário. In verbis:
Ementa. Tributário. ISS. Local de Recolhimento. Serviços de Paisagismo. Obra já concluída.
A regra geral sobre a competência para instituir o tributo (ISS) é a do
local onde se situa o estabelecimento prestador, excepcionando-se os
casos da construção civil, em que a competência tributária se desloca para o local da prestação. (REsp nº 16.033-0/SP) (grifou-se)
Dessa forma, nada obstante a prestação de serviços ocorra em município variado, houve por bem, o legislador complementar, considerar que o ISS pertence ao
Município onde o faturamento se verifica, isto é, no local mencionado na emissão
documental, ainda que os serviços sejam prestados fora daquela base física.
Nesse sentido, os seguintes julgados:
IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS. PUBLICIDADE PARA LISTA TELEFÔNICA
ESTADUAL.
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I – Assinantes residentes em Municípios diferentes do mesmo Estado. Exegese dos arts. 10 e 12, ‘a’, do Decreto-lei 406/68.
II – Para efeito da cobrança do tributo o que importa é o local de estabelecimento prestador, posto que situado em Município diverso de sua matriz, contribuinte do imposto.
Recursos Extraordinário conhecido e provido. (STF – RE nº 91.9414 BA, RTJ 97/180) (grifou-se)
CONSTRUÇÃO CIVIL – SERVIÇOS PRELIMINARES – COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA.
Em se tratando de serviços preliminares de projeto e topografia, empreendidos para o preparo de futura construção civil, embora ainda
não atinentes a ela, a competência tributária é do Município
onde o prestador tem seu domicílio, ainda que o serviço seja
prestado no território à jurisdição fiscal de outra prefeitura,
se ao tempo do fato gerador a empresa não tinha ali filiais regularmente criadas (TACMG – AC 26.953 – 3ª C. – RJTACMG 2617/174) (grifou-se)
IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS – PRESTADORA DE SERVIÇOS SEDIADA
EM SÃO PAULO – LOCAÇÃO DE GUINDASTES –
Serviços em outra localidade. Tributo devido à prefeitura
paulista.
Se a prestadora de serviços tem sede em São Paulo, circunstância mencionada nas notas-faturas referentes a aluguel de
guindastes, a competência tributária é da Prefeitura na cobrança do ISS. (TACSP – AC 281.920 – RT 570/136) (grifou-se)
Nessa mesma esteira, encontra-se o posicionamento de Ives Gandra da Silva Martins:
O ISS deve ser recolhido, a meu ver, na sede do estabelecimento prestador, em todas as operações que não sejam de exploração de rodovias ou de construção civil.
Por estabelecimento prestador entende-se aquele estabelecimento indicado na nota fiscal de serviços, sempre que o serviço seja prestado
em Município em que a empresa não tenha estabelecimento. O estabelecimento-matriz, que é domicílio do prestador, apenas será consi-
5 Revista Dialética de direito tributário nº 59, ago/00, p. 124.
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159
derado para efeitos de recolhimento de ISS, se não houver outro estabelecimento prestador identificável.5
Por todo o exposto, conclui-se que, mesmo que a prestação de serviços ocorra em município variado, nosso legislador federal (Decreto-lei nº 406/68) considerou que o ISS pertence ao Município onde o faturamento se verifica, isto é, o local
mencionado na emissão documental, ainda que os serviços sejam prestados fora do
Município.
A toda evidência, as legislações municipais que desprezam o Decreto-lei nº
406/68, ainda que escudadas no posicionamento do STJ, ofendem diversos princípios e dispositivos constitucionais, a saber:
4.1 Ofensa ao princípio da legalidade
Ora, se somente a lei pode instituir cobrança de impostos, a decisão do STJ e
as leis municipais que a sucedem ofendem a legalidade genérica e o campo material
da lei complementar previstos no artigo 146, III, a, da Lei Maior, pois permitem, de
fato, que o Município institua cobrança de ISS sobre os serviços que são prestados
em sua base física, independentemente da localização da prestadora, violando os
artigos 5º, II, 146, III, a e 150, I da Constituição Federal de 1988.
Nessa mesma linha de raciocínio encontra-se o posicionamento de José
Eduardo Soares de Melo:
A jurisprudência firmada pelo STJ incorre em manifesta antinomia constitucional, porque, se de um lado prestigia o princípio da
territorialidade da tributação, harmonizado com o princípio da
autonomia municipal (competência para exigibilidade de seus
próprios impostos); de outro, implica ofensa ao princípio da legalidade, uma vez que se choca com a clareza do preceito do Dec.lei nº 406/68, face que o STF deverá solucionar o impasse afeto à
constitucionalidade do preceito.6
4.2 Violação à separação dos poderes da União, da competência do
Superior Tribunal de Justiça e da competência do Congresso Nacional
A Constituição Federal traça as funções típicas dos Poderes da União, separando-as por limites instransponíveis, a partir do momento em que as imutabilizou, no
artigo 60, §4º, III, da Lei Maior.
6 Aspectos Teóricos e Práticos do ISS, São Paulo: Dialética, 2000, p. 115.
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No caso específico em apreço, verifica-se que, dentre as competências do STJ,
previstas no artigo 105, da Constituição Federal de 1988, não há margem para que
ele atue como legislador positivo, como efetivamente fez, ao modificar a regra do artigo 12, a, do Decreto-lei 406/68.
Com efeito, uma vez que já existe lei (Decreto-lei nº 406/68) que satisfaz
os requisitos constitucionais para sua validade, frise-se, emanada do poder estatal competente (Poder Legislativo), com todas as características de generalidade
e abstração que lhe são inerentes, não há como o Superior Tribunal de Justiça
agir como legislador positivo, usurpando a função constitucional do Congresso
Nacional, prevista no artigo 48, I, da Lei Maior, modificando o critério espacial da
hipótese de incidência tributária, sob pena de total menoscabo à Constituição
Federal de 1988, mais especificamente, aos seus artigos 2º; 48, I, 60, §4º, III e
105.
4.3 Da ofensa ao artigo 146, I, da Constituição Federal de 1988
A sempre oportuna análise de Sacha Calmon Navarro Coêlho e Misabel
Abreu Machado Derzi não deixou de identificar ainda mais uma ofensa à Constituição Federal, qual seja, ao seu artigo 146, I.7
Com efeito, a jurisprudência do STJ aqui combatida permite, em tese, que
dois Municípios tributem o mesmo critério material da hipótese de incidência
do ISS. Isto porque, de um lado, ficará o Município em que está localizado o
prestador de serviço, exigindo o imposto na forma do art. 12, a, do Decreto-lei
406/68 e, de outro lado, o Município em que o serviço é prestado, instituindo
cobrança de ISS, na forma autorizada pela jurisprudência do STJ, que, como já
demonstrada, representa verdadeira legislação inconstitucional.
Instaurada tal situação conflituosa entre dois entes federativos (dois Municípios), com mira no texto constitucional, encontra-se a solução para tanto, com
a adoção de uma lei complementar, que disponha sobre conflito de competência entre os entes federados, em matéria tributária.
A toda evidência, o Decreto-lei 406/68 já vem cumprindo, há décadas, tal
função, reservada à lei complementar, de forma que o posicionamento jurisprudencial do STJ não faz as vezes de lei complementar, que seria o único instrumento hábil a modificar o preceptivo em questão.
Resta demonstrada, portanto, a ofensa direta ao artigo 146, I, da Lei Maior.
7 O aspecto espacial da regra-matriz do Imposto Municipal sobre serviços, à luz da Constituição. In: Revista Dialética de direito tributário nº 88, jan/03, p. 126.
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CONCLUSÕES
1. O Município competente para instituir a cobrança do ISS é aquele em que
está estabelecida a empresa prestadora de serviços, independentemente
do local factual em que se presta o serviço; exceção feita às empresas de
construção civil.
2. A obrigação do tomador de serviços, de reter na fonte o ISS cobrado das
empresas que prestam serviços em locais diferentes daqueles em que estão
estabelecidas, é ilegal, pois a criação da figura do responsável tributário (tomador de serviços), pressupõe a existência do contribuinte do imposto
(prestador do serviço), que, de fato, não existe, ou seja, não pode ser materializada a sua sujeição passiva em base física diversa daquela em que estiver estabelecido.
3. Mesmo existindo posicionamento pacífico do STJ, contrário à tese aqui defendida, é certo que a questão deve ser enfrentada pelo guardião da Lei
Maior, à vista de diversas ofensas constitucionais, mormente a atuação do
Judiciário (STJ) como legislador positivo em caso de ausência de lacuna
normativa.
Taxas de fiscalização ambiental. Uma análise
comparativa entre a Taxa de Fiscalização
Ambiental – TFA –, instituída pela Lei nº 9.960,
de 28 de janeiro de 2000, e a Taxa de Controle
e Fiscalização Ambiental – TCFA –, regulada
pela Lei nº 10.165, de 27 de dezembro de 2000.
Aferição de sua constitucionalidade.*
Trícia de Oliveira Lima
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Analista Judiciária da Justiça Federal/Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais.
Ex-chefe de Gabinete na Sexta Vara Federal de Belo Horizonte.
1
INTRODUÇÃO
Em 28 de janeiro de 2000, foi publicada a Lei nº 9.960, originada da conversão
da Medida Provisória nº 2.015-1/1999, que instituiu a denominada Taxa de Fiscalização Ambiental – TFA – em favor do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA –, alterando a redação do art. 17 da Lei nº 6.938,
de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente,
seus fins e mecanismos de formulação e de aplicação.
Publicado aquele primeiro diploma, diversas pessoas físicas e jurídicas que exploram atividades reputadas danosas ao meio ambiente e, por isso mesmo, insertas
*A autoria deste estudo encontra-se registrada na Fundação Biblioteca Nacional, onde foi depositada uma cópia do
presente texto, conforme facultado pelo art. 19 da Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.
164
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no Cadastro Técnico de Atividades Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais, foram ter às portas do Poder Judiciário, insurgindo-se contra a
exigência do novo gravame, em centenas de ações distribuídas por todo o País.
O Supremo Tribunal Federal, em 4 de abril de 2000, concedeu medida cautelar requerida pela Confederação Nacional da Indústria, nos autos da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 2.178-8/DF, suspendendo a eficácia do art. 8º da Lei nº
9.960/2000, que modificou o art. 17 da Lei nº 6.938/1981, instituindo a exação questionada.
Em resposta, foi editada a Lei nº 10.165, de 27 de dezembro de 2000, que conferiu nova redação às disposições inquinadas de inconstitucionais, pretendendo corrigir seus vícios, com a criação de nova taxa, desta feita denominada Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA. Não obstante, persistiram as alegações de inconstitucionalidade já desfechadas contra a Lei nº 9.960/2000.
No presente estudo, procede-se a uma análise comparativa dos elementos estruturais da regra-matriz de incidência das exações criadas pelas Leis nºs 9.960/2000
e 10.165/2000 e ao seu cotejo com as limitações constitucionais ao poder de tributar. Procuramos desvendar a natureza jurídica dos novos gravames (os quais os contribuintes asseveram configurar impostos que reclamariam a adoção de lei complementar), a fim de investigar as máculas de inconstitucionalidade apontadas, discutindo, também, a competência da União para sua instituição, diante das regras de repartição da competência para o desempenho das atribuições de fiscalização e proteção do meio ambiente. Tecem-se considerações acerca do poder de impor taxas,
quando se cogita de competência comum e de serviços concorrentes, e afere-se a
validade dos critérios de mensuração da taxa, em face dos balizamentos legais, doutrinários e jurisprudenciais, perscrutando a observância dos princípios da legalidade, da tipicidade e da capacidade contributiva.
2
DA NATUREZA JURÍDICA DOS GRAVAMES INSTITUÍDOS PELAS LEIS
NºS 9.960/2000 E 10.165/2000. CRITÉRIOS DE DETERMINAÇÃO. ESTRUTURA DA NORMA TRIBUTÁRIA. HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA E
BASE DE CÁLCULO. TAXAS E IMPOSTOS. ESPÉCIE NORMATIVA IDÔNEA A INSTITUÍ-LOS. ART. 145, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E
ART. 77, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL.
INTELIGÊNCIA. SUJEIÇÃO PASSIVA. ESTRITA LEGALIDADE.
Toda e qualquer reflexão acerca da constitucionalidade formal ou material
de determinado ônus tributário tem como pressuposto lógico a determinação de
sua essência ontológica, o que permite conhecer o regime jurídico que lhe é peculiar, e, por conseqüência, apurar eventual contraste das normas que o instituem com outras, hierarquicamente superiores, que lhe conferem fundamento
de validade.
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Malgrado o exame da constitucionalidade formal preceda logicamente ao estudo da substância do ato normativo submetido à aferição de compatibilidade com
a Lei Maior, a análise do conteúdo da regra-matriz de incidência tributária impõe-se
como providência preliminar, pois, somente se conhecendo a espécie fiscal com a
qual nos defrontamos, é possível identificar a pessoa política de direito constitucional interno investida de competência para instituir o gravame, assim como a espécie legislativa a que a Constituição reserva sua introdução no ordenamento jurídico.
Embora o primeiro passo no caminho da hermenêutica seja o recurso ao método gramatical, visto que nossas regras acham-se essencialmente expressas pela palavra escrita, precate-se o intérprete e aplicador do direito, de plano, contra as armadilhas da linguagem em que são vazados os textos legais, não se fiando na denominação que esses pretendam atribuir às exações. Como é cediço, as leis, nos Estados
Democráticos de Direito, são fruto do trabalho das Casas Legislativas, em cuja composição encontram-se membros e representantes dos mais diversificados segmentos da sociedade, os quais, em princípio, não detêm a ciência e a técnica jurídicas,
sendo recorrentes as impropriedades e as imprecisões encontradiças na redação
dos atos normativos.
Acerca dessa heterogeneidade característica dos regimes representativos,
bem observa Paulo de Barros Carvalho que “tanto mais autêntica será a representatividade do Parlamento quanto maior for a presença, na composição de seus quadros, dos inúmeros setores da comunidade social”.1 Ao profissional do direito cabe,
portanto, “purificar” o texto da lei, conferindo-lhe interpretação capaz de escoimálo das falhas e atecnias que maculam os diplomas legais.
De fato, seja por sincera ignorância, seja com a intenção de burlar a rigidez de
nosso sistema constitucional tributário, encontram-se, com indesejável freqüência,
em nossa experiência fiscal, como destaca Misabel Abreu Machado Derzi,2 as “pseudotaxas” ou “criptoimpostos”, em que, sob o manto vocabular, pretende o legislador
ocultar impostos que cria sob as vestes de taxas ou contribuições, a fim de se esquivar das limitações a seu poder de tributar. Daí o aviso encartado no art. 4º do Código Tributário Nacional:
Art. 4º. A natureza jurídica específica do tributo é determinada
pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevante para
qualificá-la:
I – a denominação e demais características formais adotadas pela
lei; [...].
1 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 4.
2 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed. rev. e compl. por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de
Janeiro: Forense, 2000. p. 68.
166
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Advertidos de que não vinculam o intérprete os nomes com que se venham a
designar as prestações pecuniárias compulsórias em moeda, ou cujo valor nela se
possa exprimir, que não constituam sanção por ato ilícito, exigidas pelo Estado, procuremos situar as taxas criadas pelas Leis nºs 9.960/2000 e 10.165/2000 no quadro
geral dos tipos tributários conhecidos por nosso direito positivo.
Convém, pois, que, sucintamente, passemos em revista a estrutura geral das
normas tributárias, buscando os préstimos das lições de Barros Carvalho, reconhecidamente o jurista que, entre nós, com mais rigor se aprofundou nesse estudo, à
luz da teoria geral da norma jurídica.
A regra-matriz de incidência tributária, como ensina o doutrinador3, apresenta-se com a compostura própria dos juízos hipotético-condicionais, sendo integrada por dois termos: haverá, por primeiro, uma hipótese, também denominada antecedente, descritor, prótase, suposto, pressuposto, pressuposto de fato,
fattispecie, hecho imponible, ou Tatbestand. A esse antecedente conjuga-se um
mandamento, segundo termo lógico da norma, também denominado conseqüente, conseqüência, apódose, prescritor ou estatuição. A forma associativa
dos dois termos, nas palavras do autor, é a cópula deôntica, o dever-ser que caracteriza a imputação jurídico-normativa das conseqüências previstas no mandamento da norma-padrão de incidência.
Na hipótese, acha-se abstratamente descrito um fato cuja ocorrência no mundo fenomênico faz com que se irradiem os efeitos prescritos no conseqüente da
norma tributária. Aqui encontraremos os aspectos ou critérios que permitem reconhecer, se concretamente ocorrido, o fato a que a lei atribuiu virtude jurígena, a aptidão de fazer irromper o vínculo estipulado no conseqüente.
No suposto da norma tributária, o legislador põe dados que recorta da realidade social, os quais considera relevantes, qualificando-os como fatos jurídicos.
Para Barros Carvalho, três seriam os critérios identificadores do fato descrito na
hipótese normativa: critério material, critério espacial e critério temporal.
Sucintamente, podemos dizer que o critério material constitui o núcleo da hipótese, trazendo uma referência a um comportamento de pessoas físicas, ou jurídicas, ou a um estado a elas relativo.
É o elemento objetivo do fato gerador, que emerge, nas precisas palavras de
Barros Carvalho, “de expressões genéricas designativas de comportamentos de pessoas, sejam aqueles que encerram um fazer, um dar ou, simplesmente, um ser (estado). Teremos, por exemplo, ‘vender mercadorias’, industrializar produtos’, ‘ser
proprietário de bem imóvel’, ‘auferir rendas’, ‘pavimentar ruas’, etc.”4.
Explicita o autor:
3 CARVALHO, 1998. p. 167 et seq.
4 CARVALHO, 1998. p. 180 et seq.
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Esse núcleo, ao qual nos referimos, será formado, invariavelmente, por um verbo, seguido de seu complemento. Daí por que aludirmos a comportamento humano, tomada a expressão na plenitude
de sua força significativa, equivale a dizer, abrangendo não só as
atividades refletidas (verbos que exprimem ação) como aquelas espontâneas (verbos de estado: ser, estar, permanecer, etc.).5
Teremos, pois, um verbo de estado ou de ação com seus complementos, seus
objetos, inserto em condições de tempo e espaço. Há, ainda, portanto, os critérios
temporal e espacial, elementos também presentes no antecedente das normas tributárias, que permitem conhecer, como denunciam suas denominações, as circunstâncias de tempo e de espaço que condicionam o aspecto material, mediante um
conjunto de indicações tácitas ou expressas que definem o local e o instante em que
se reputa verificado o fato gerador, surgindo o liame tributário.
Enquanto a hipótese descreve os critérios identificadores do fato gerador, o
conseqüente, como prescritor, dá os critérios componentes da relação jurídico-tributária, permitindo conhecer quem se acha investido do direito subjetivo ao crédito tributário, a quem é imputado o dever de cumprir a correlata prestação – os sujeitos da relação obrigacional – bem como seu objeto. No prescritor, pois, habitam
os elementos subjetivos e quantitativos do laço tributário, que nos dizem quem deve
pagar o tributo (sujeito passivo), a quem (sujeito ativo) e quanto (base de cálculo e
alíquota).
Em ligeira discordância com a doutrina de Barros Carvalho, prefere Sacha Calmon Navarro Coêlho utilizar o termo aspecto, em vez de critério, para qualificar as
facetas da hipótese e da conseqüência da norma jurídico-tributária, acrescentando
ao suposto, além dos três critérios já apontados por Barros Carvalho, um aspecto
pessoal, indicativo de que a consistência material do antecedente, expresso por um
verbo, liga-se, sempre, a uma pessoa que realiza o fato gerador. O aspecto pessoal
em determinados tributos, como ensina Sacha Calmon, pode delimitar a própria
concretização da hipótese, auxiliando, ainda, na compreensão do fenômeno da responsabilidade tributária por fato gerador próprio e por fato gerador alheio, por
substituição ou por transferência, calcando-se na coincidência ou na distinção entre
a pessoa efetivamente envolvida na realização do fato gerador (aspecto pessoal da
hipótese) e o sujeito passivo ao qual a lei comete o dever de pagar o tributo (aspecto subjetivo do mandamento da norma tributária).6
No que concerne ao conseqüente da regra-matriz, entende Sacha Calmon que
seus aspectos quantitativos não podem ser reduzidos à base de cálculo e à alíquota,
5 CARVALHO, 1998. p. 180.
6 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria geral do tributo e da exoneração tributária. 3. ed. Belo Horizonte: Del
Rey, 2000. p. 114-115.
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faculdade de direito de bauru
como sustenta Barros Carvalho, vislumbrando, no plano do mandamento, a possibilidade de adoção de valores fixos, ausentes, portanto, base de cálculo e alíquota. Vinca, ainda, que, em certos tributos, a quantificação do crédito exige o concurso de outros elementos, que se conjugam em operações mais complexas, com o envolvimento de deduções e adições, de créditos presumidos (como nos impostos sujeitos ao princípio da
não-cumulatividade), de concessão de despesas fictas dedutíveis do lucro bruto, de incentivos, enfim, múltiplos “quantificadores” diversos da base de cálculo e da alíquota.
Sem nos alongarmos mais, em linhas gerais, é esta a estrutura da regra-matriz
de incidência tributária com a qual trabalharemos.
Na tarefa de determinar a natureza jurídica específica das imposições sob exame, devemos concentrar nossas atenções na hipótese de incidência das normas que
as instituem, ou, mais precisamente, em seu critério material, traço distintivo dos tipos tributários, como está expressamente prescrito pelo art. 4º do Código Tributário Nacional.
Nesse sentido, também o magistério de Geraldo Ataliba, ao predicar que é “na
própria lei tributária, situado em posição essencial e nuclear, que haverá de ser encontrado o elemento decisivo de classificação dos tributos”, o qual, ensina, reside
no aspecto material da hipótese de incidência: “É a materialidade do conceito do
fato, descrito hipoteticamente pela h.i. que fornece o critério para a classificação das
espécies tributárias”.7
Ao fato descrito abstratamente no antecedente da norma tributária, a doutrina de Barros Carvalho acrescenta a necessidade de examinar, também, a base de cálculo adotada pela lei, por força de imperativo constitucional inscrito no art. 145, §
2º, e no art. 154, I, da Carta vigente, os quais prescrevem que as taxas não podem
ter base de cálculo própria dos impostos, e que, em caso de instituição de impostos
da competência residual da União, estes não podem ter fatos geradores e bases de
cálculo próprios dos discriminados na Constituição.
A ressalva é explicada pela possibilidade de o legislador, apesar de indicar determinado fato gerador no antecedente da regra-matriz, adotar base de cálculo que
o desvirtue.
A base de cálculo, nas palavras de Misabel Abreu Machado Derzi, é “a ordem
de grandeza que, posta no conseqüente da norma criadora do tributo, presta-se a
mensurar o fato descrito na hipótese, possibilitando a quantificação do dever tributário, sua graduação proporcional à capacidade contributiva do sujeito passivo e a
definição da espécie tributária”.8
Dessa tríplice função, destacamos sua serventia à definição da espécie tributária, ao se conjugar com o fato descrito abstratamente no suposto, função denomi7 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p.129.
8 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed. rev. e compl. por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de
Janeiro: Forense, 2000. p. 65.
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169
nada veritativa por Sacha Calmon, ou comparativa, por Barros Carvalho, porquanto, posta em comparação com o aspecto material da hipótese de incidência, é capaz
de confirmá-lo, de infirmá-lo ou de afirmar o que conste de modo obscuro na lei.9
Dessa forma, a base de cálculo há de ser o que Geraldo Ataliba chama perspectiva dimensível do critério material da hipótese de incidência, um aspecto ínsito ao fato nela descrito que permita dimensioná-lo, de tal sorte que, havendo incompatibilidade entre eles, deve prevalecer a espécie tributária denunciada pela
base de cálculo.
Refletindo acerca desse divórcio entre a materialidade da hipótese e a base de
cálculo escolhida pelo legislador, Geraldo Ataliba colaciona lição de Rubens Gomes
de Sousa, que transcrevemos a seguir:
Se um tributo, formalmente instituído coincidindo sobre determinado pressuposto de fato ou de direito, é calculado com base em
uma circunstância estranha a esse pressuposto, é evidente que não
se poderá admitir que a natureza jurídica desse tributo seja a que
normalmente corresponderia à definição de sua incidência. Assim, um imposto sobre vendas e consignações, mas calculado sobre
o capital da firma, ou sobre o valor do seu estoque, em vez de o ser
sobre o preço da mercadoria vendida ou consignada, claramente
não seria um imposto de vendas e consignações, mas um imposto
sobre o capital ou sobre o patrimônio. Por outras palavras, a ordem normal das coisas é que o pressuposto material ou jurídico da
incidência defina a natureza do tributo e determine a escolha da
sua base de cálculo. Mas, quando a base de cálculo adotada pela
lei fiscal seja incompatível com o pressuposto material ou jurídico
da incidência, então a ordem normal das coisas se inverte, e a natureza jurídica do próprio tributo passa a ser determinada pela
base de cálculo, e não, pela definição legal da incidência. Esta última fica, assim, reduzida a uma simples afirmação vazia de sentido, porque desmentida pela determinação legal de se calcular o
tributo sobre circunstâncias outras, que com ela não tenham relação, ou que dela não decorram necessariamente.10
Concluímos, assim, com a definitiva asserção de Barros Carvalho, para quem
o tipo tributário é integrado pela associação lógica e harmônica da hipótese de incidência e da base de cálculo. Diz ele: “O binômio, adequadamente identificado, com
9 CARVALHO, 1998. p. 239.
10 SOUSA, Rubens Gomes de. Parecer. Revista dos Tribunais, v. 227, p. 65-66, apud ATALIBA, Geraldo. Hipótese de
incidência tributária. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p.113.
faculdade de direito de bauru
170
revelar a natureza própria do tributo que investigamos, tem a excelsa virtude de nos
proteger da linguagem imprecisa do legislador”.11
Desejando definir a natureza específica das exações previstas pelas Leis nºs
9.960/2000 e 10.165/2000, cabe-nos, portanto, identificar tal binômio, partindo de
sua regra-matriz de incidência.
Com efeito, dizia o art. 8º da Lei nº 9.960/2000:
Art. 8º A Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos:
“Art. 17-A. [...]
“Art. 17-B. É criada a Taxa de Fiscalização Ambiental – TFA”.
“§ 1º Constitui fato gerador da TFA o exercício das atividades mencionadas no inciso II do art. 17 desta Lei, com a redação dada pela
Lei no 7.804, de 18 de julho de 1989 (grifos nossos)”.
“§ 2º São sujeitos passivos da TFA, as pessoas físicas ou jurídicas
obrigadas ao registro no Cadastro Técnico Federal de Atividades
Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais.
[...]”.
Como se depreende da leitura do dispositivo transcrito, o fato ao qual a Lei nº
9.960/2000 atribuía a virtude de gerar o dever de recolher a Taxa de Fiscalização Ambiental – TFA – consistia no exercício das atividades mencionadas no inciso II do
art. 17 da Lei nº 6.938/1981, na redação que lhe deu a Lei nº 7.804/1989, o qual diz
o seguinte:
Art. 17. Fica instituído, sob a administração do Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA: (Redação dada pela Lei nº 7.804, de 18.07.89)
I – [...] II - Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente
Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais, para registro
obrigatório de pessoas físicas ou jurídicas que se dedicam a atividades potencialmente poluidoras e/ou à extração, produção,
transporte e comercialização de produtos potencialmente perigosos ao meio ambiente, assim como de produtos e subprodutos da
fauna e flora. (grifos nossos).
Importa definir, portanto, que espécie tributária pode ter como hipótese de
incidência o exercício das atividades grifadas acima. Para tanto, servimo-nos do ins11 CARVALHO, 1998. p. 23.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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171
trumental proporcionado pela teoria dos tributos vinculados e não vinculados, tão
didaticamente exposta por Geraldo Ataliba, em seu clássico Hipótese de Incidência
Tributária.
Consigna o mestre que, após o exame e a comparação das legislações existentes, apura-se que as hipóteses de incidência das normas tributárias podem ser distribuídas em dois grandes grupos, conforme seus aspectos materiais consistam, ou
não, em uma atividade do Poder Público ou em uma repercussão desta. Daí falar-se
em tributos vinculados e não vinculados a uma atuação estatal.
No primeiro caso, o legislador vincula o nascimento da obrigação tributária a
uma atividade estatal, descrevendo, em seu antecedente, um ato jurídico ou material do Estado, uma obra pública, um serviço público ou uma repercussão ou conseqüência deste ou daquele. No segundo grupo, nas palavras de Ataliba, “tem-se um
fato outro qualquer, não consistente numa atuação do poder público, mas, via de regra, num fato ligado a uma pessoa qualquer, um fato que se desenvolve na esfera jurídica do sujeito que vai ser o contribuinte. É um fato jurídico produzido (provocado) pelo particular, ou que nela repercute”.12
As peculiaridades do aspecto material da hipótese de incidência dos tributos
vinculados permitem-nos, ainda, distinguir subespécies – taxas e contribuições. Os
tributos não vinculados, por seu turno, constituem a classe dos impostos.
Diz o art. 16 do Código Tributário Nacional que imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica relativa ao contribuinte.
A definição legal de imposto, como decalca Ataliba, é formulada em termos
negativos. Para reconhecimento do imposto, recomenda: “Seguro para se comprovar estar-se em presença de imposto é o critério de exclusão: se, diante de uma exação, o intérprete verifica que não se trata de tributo vinculado, então pode afirmar
seu caráter de imposto”.13
No antecedente das normas instituidoras de impostos, assim, teremos um
fato qualquer inserto na esfera econômica do sujeito passivo, estranho a qualquer
atuação do Estado. Teremos, sempre, um fato revelador da capacidade econômica,
contributiva, do sujeito passivo. Será um fato indicativo de sua força econômica –
auferir renda, ser proprietário de imóvel, realizar operações de circulação de mercadorias, industrializar produtos, entre outros. Enfim, os chamados fatos signos presuntivos de riqueza, na expressão de Becker.
Na hipótese de incidência das taxas, ao contrário, encontraremos uma atuação
estatal diretamente referida ao sujeito passivo, que poderá ser a utilização de um
serviço público específico e divisível, efetivamente prestado ao contribuinte, ou posto à sua disposição, ou o regular exercício do poder de polícia.
12 ATALIBA, 1991. p. 132.
13 ATALIBA, 1991. p. 137.
172
faculdade de direito de bauru
Na contribuição, a hipótese de incidência também descreve uma atuação estatal referida ao obrigado, todavia tal referibilidade é mediata ou indireta, pois, entre o sujeito passivo e a atividade estatal, há um fato ou uma circunstância intermediária, que, no caso da contribuição de melhoria, por exemplo, é a valorização imobiliária decorrente de obra pública que beneficia o contribuinte.
Ora, a materialidade da hipótese de incidência da regra-matriz trazida pela Lei
nº 9.960/2000 não consistia em qualquer atuação estatal, ficando absolutamente
afastada a possibilidade de configuração de taxa. Exercer atividades potencialmente
poluidoras, extrair, produzir, transportar e comercializar produtos potencialmente
perigosos ao meio ambiente, produtos ou subprodutos da fauna e flora constituem
fatos que denotam força econômica do sujeito passivo, sua aptidão para concorrer
ao custeio dos gastos públicos. São índices de aferição de sua capacidade de contribuir, totalmente desvinculados de qualquer atividade estatal.
Na hipótese de incidência insculpida no art. 17-B da Lei nº 6.938/1981, na redação que lhe dava a Lei nº 9.960/2000, reconhece-se, portanto, a criação de autêntico imposto, em razão da desvinculação do fato ao qual se atribui virtude jurígena
de qualquer atividade do Poder Público.
Não se tratando de imposto nominado pela Constituição, deveria ter-se subsumido ao regime dos impostos da competência residual da União, cujo berço se
encontra no art. 154, I, da Constituição de 1988. Exsurge evidenciada, aqui, a primeira contrariedade à nossa lei maior. Trata-se de incompatibilidade extrínseca entre a
Lei nº 9.960/2000 e as prescrições de cunho formal ditadas pela Constituição, que
reclama a regulação da espécie por lei complementar – mácula formal insanável, suficiente para que se fulmine a validade da exação, tornando-a inexigível.
O vício, no entanto, parece-nos efetivamente sanado com a Lei nº
10.165/2000, que deu a seguinte redação ao art. 17-B da Lei nº 6.938/1981, derrogando disposições da Lei nº 9.960/2000:
Art. 1º Os arts. 17-B, 17-C, 17-D, 17-F, 17-G, 17-H, 17-I e 17-O da Lei
no 6.938, de 31 de agosto de 1981, passam a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 17-B. Fica instituída a Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA –, cujo fato gerador é o exercício regular do poder
de polícia conferido ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis – IBAMA – para controle e fiscalização das atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos naturais” (NR) (grifos nossos). “§ 1o Revogado.” “§ 2o Revogado.”
A regra-matriz da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA –, na redação atual do art. 17-B da Lei nº 6.938/1981, diferentemente da Taxa de Fiscaliza-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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173
ção Ambiental – TFA –, hospeda, em seu antecedente, aspecto material cuja realização provoca a instauração do vínculo de imputação deôntica, quando presente uma
atividade do Estado, de onde deriva sua disposição taxionômica entre os tributos
vinculados, mais especificamente entre as genuínas taxas.
A modificação da descrição do fato gerador pela linguagem do legislador implicou substancial alteração na essência ontológica do tributo, transmutando-lhe a
natureza. Antes, o fato revestido da virtude jurígena consistia no exercício de atividades cadastradas como potencialmente danosas ao meio ambiental, não se detectando qualquer autuação estatal imediatamente referida ao obrigado, traço imprescindível à configuração das taxas.
As taxas, insista-se, por expressa previsão constitucional, são cobradas pela
União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos
específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição (art.
145, § 2º, da Constituição de 1988), previsão reiterada pelo art. 77 do Código Tributário Nacional.
Nessas matrizes, capitula-se a exação ora questionada, pois a situação definida
pela Lei nº 10.165/2000 como necessária e suficiente à instauração do liame obrigacional (art. 114 do Código Tributário Nacional) consiste no exercício regular do poder de polícia conferido ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA – para controle e fiscalização das atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos naturais.
O vínculo obrigacional que impõe aos sujeitos passivos o dever de recolher a
Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA – surge como efeito que se irradia da realização de atividades de fiscalização e controle das atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos naturais, cometidas pela União ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA –, autarquia federal integrante da Administração Pública Indireta.
A Lei nº 6.938/1981, dispondo sobre a Política Nacional do Meio Ambiente,
instituiu o Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA –, integrado por órgãos
e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, bem como
por fundações do Poder Público, responsáveis pela proteção e pela melhoria da qualidade ambiental. Em sua estrutura, figura o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
Recursos Naturais Renováveis – IBAMA –, encarregado, na qualidade de sucessor da
Secretaria Especial do Meio Ambiente – SEMA –, de executar e fazer executar, como
órgão federal, as políticas e diretrizes governamentais fixadas para o meio ambiente, consoante prevê o art. 6º, IV, da Lei nº 6.938/1981, na redação que lhe deu a Lei
nº 8.028/1990.
Ao longo do estatuto que regula a ação das entidades que compõem o Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA –, diversas tarefas de controle e fiscalização de atividades que encerram potencial de degradação dos recursos ambientais
174
faculdade de direito de bauru
foram atribuídas à Secretaria Especial do Meio Ambiente – SEMA –, hoje substituída pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA –, por força da Lei nº 7.804, de 17 de julho de 1989.
Entre tantas funções fiscalizatórias, apenas a título de exemplo, destacamos a
supervisão do licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras,
concedido pelos Estados, em conformidade com as normas e critérios propostos
pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA
–, consoante a previsão inscrita no art. 8º, I, da Lei nº 6.938/1981.
O art. 10 do mesmo diploma explicita:
Art. 10 - A construção, instalação, ampliação e funcionamento de
estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais,
considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente,
integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente, assim como do
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA –, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis. (Redação dada pela Lei nº 7.804, de 18.07.89).
Ainda no contexto das medidas de proteção aos recursos naturais abrigadas
pela Política Nacional de Proteção Ambiental, o parágrafo 3º do art. 10 comete ao
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA – a
função de determinar, se necessário, a redução das atividades geradoras de poluição, para manter as emissões gasosas, os efluentes líquidos e os resíduos sólidos
dentro das condições e limites estipulados no licenciamento concedido, também
em caráter supletivo à atuação do órgão estadual do meio ambiente. A seguir, o parágrafo 4º do mesmo artigo diz, expressamente, competir ao Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA –, sem concorrência dos
órgãos estaduais, o licenciamento previsto no caput do artigo 10, no caso de atividades e obras com significativo impacto ambiental, de âmbito nacional ou regional.
Na mesma esteira, o art. 11 da Lei nº 6.938/1981 esclarece competir ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA –
propor ao Conselho Nacional do Meio Ambiente normas e padrões para a implantação, para o acompanhamento e para a fiscalização do licenciamento previsto no artigo anterior, além de confiar também ao Instituto a fiscalização e o
controle da aplicação daqueles critérios, normas e padrões de qualidade ambiental, mais uma vez em caráter supletivo à atuação dos órgãos estaduais e municipais competentes.
Também por imposição legal, ficou a cargo do Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA – a manutenção de dois impor-
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175
tantes cadastros que aparecem entre os instrumentos da Política Nacional do Meio
Ambiente inventariados no art. 9º da Lei nº 6.938/1981.
O art. 17, I e II, dessa lei instituiu e submeteu à administração do Instituto o
Cadastro Técnico Federal de Atividades e Instrumentos de Defesa Ambiental, para
registro obrigatório de pessoas físicas ou jurídicas que se dediquem à consultoria
técnica sobre problemas ecológicos e ambientais e à indústria e comércio de equipamentos, aparelhos e instrumentos destinados ao controle de atividades efetiva ou
potencialmente poluidoras; e o Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais, para registro obrigatório de pessoas físicas ou jurídicas que se dediquem a atividades potencialmente poluidoras e/ou à extração, produção, transporte e comercialização de produtos potencialmente perigosos ao meio ambiente, assim como de produtos e subprodutos
da fauna e da flora.
As disposições selecionadas acima afastam, ao menos no que concerne à hipótese de incidência da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA –, as alegações de que a Lei nº 10.165/2000 teria revestido de eficácia jurídica fato gerador
próprio de impostos.
Nos preceitos citados, pode-se entrever a índole da atuação estatal ensejadora da obrigação ao pagamento do gravame, neles vislumbrando-se, como atributo
comum, a indefectível presença da prática de atos pelos quais a Administração Pública cerceia a liberdade dos sujeitos passivos, restringindo ou condicionando o
gozo de direitos individuais, como o direito à propriedade e ao livre exercício de
qualquer trabalho, ofício, profissão ou atividade econômica, consagrados pela Constituição vigente, no art. 5º, XIII e XXII, e no art. 170, parágrafo único.
Não sendo absolutos tais direitos, visto que devem ceder diante da supremacia do interesse público, que os condiciona ao atendimento a uma função social, ficam seus titulares sujeitos à atuação do Estado, que os tolhe com vistas à proteção
e à defesa do superior interesse da coletividade depositado na preservação do meio
ambiente e dos recursos naturais.
As ações de fiscalização e controle imputadas pela Lei nº 6.938/1981 ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA –, descritas anteriormente, configuram invariavelmente restrições a direitos individuais
em nome e em benefício do bem-estar comum do povo, como o condicionamento
da exploração de determinadas atividades empresariais à prévia obtenção de licenças e autorizações, ou a imposição da obrigação de tolerar a realização de fiscalizações, caracterizando-se como autêntico exercício de poder de polícia, em consonância com a conceituação legal que nos oferece o Código Tributário Nacional, em seu
art. 78:
Art. 78. Considera-se Poder de Polícia atividade da administração
pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liber-
176
faculdade de direito de bauru
dade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de
interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos
costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de
atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização
do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
Nesse panorama, nota-se que a Lei nº 10.165/2000 tem lastro axiológico no
princípio do poluidor-pagador, que, segundo José Marcos Domingues de Oliveira,
torna inarredável a atribuição ou a imputação, aos agentes poluidores, da responsabilidade pela integração do valor das medidas de proteção ambiental nos seus custos de produção: conceitua a diretriz, com amparo em definição da Organização
para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, como a “exigência de que o poluidor arque com os custos das medidas de prevenção e controle da poluição”.14 Frisa
o autor que, “juridicamente, o princípio do poluidor-pagador pode realizar-se através do licenciamento administrativo, da imposição de multas, da determinação de
limpeza ou recuperação ambiental, como pela cobrança de tributos, enquanto fonte de recursos para custeio da proteção ambiental”.15
Observa, ainda, que, entre os meios de prevenção e combate à poluição, o tributo surge como eficiente instrumento para proporcionar ao Estado recursos para
agir (tributação fiscal), como também para estimular condutas não poluidoras e para
desestimular as que agridem o meio ambiente (tributação extrafiscal). Visualiza no
princípio do poluidor-pagador, pois, uma dupla faceta: no sentido a que chama impositivo, o princípio significaria o dever estatal de tributar o poluidor, fazendo-o
contribuir para o custeio dos serviços públicos gerais ou específicos necessários à
preservação e à recuperação ou à fiscalização e ao monitoramento ambientais (efeitos fiscais da tributação). De outra parte, em sua face seletiva, o princípio determinaria ao Poder Público a graduação dos tributos, “de forma a incentivar atividades,
processos produtivos e consumos environmentally friendly (literalmente amistosos, adequados, sob a ótica ambientalista, numa palavra, não-poluidores), e desestimular o emprego de tecnologias defasadas, a produção e o consumo de bens not
environmentally friendly (isto é, nefastos à preservação ambiental). É, como se percebe, o campo da tributação extrafiscal”.16
Com os subsídios de estudos ambientais forâneos, Domingues de Oliveira
propõe a classificação dos tributos ambientais em product charges e environmental surtaxes, impostos referidos a atividades econômicas dos contribuintes ou ao
seus resultados; user charges, taxas pela utilização de serviços de coleta, tratamen14 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito tributário e meio ambiente. Rio de Janeiro: Renovar, 1995. p. 1415 OLIVEIRA, 1995. p. 16.
16 OLIVEIRA, 1995. p. 26.
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to e disposição do esgoto; e effluent charges e administrative charges, taxas de polícia, haja vista seu caráter de contrapartida a atividades públicas referidas aos contribuintes poluidores.17
Nesta última classe, como se vê, podemos capitular a Taxa de Controle e
Fiscalização Ambiental – TCFA –, criada pela Lei nº 10.165/2000, não remanescendo qualquer dúvida acerca de sua essência ontológica, ou de sua identidade
tributária.
Uma vez demonstrado que o suposto da regra-matriz de incidência da exação
instituída por essa lei descreve abstratamente fato gerador próprio das taxas, para a
conclusão do procedimento de investigação da verdadeira natureza jurídica do gravame, cumpre-nos recorrer ao outro termo do binômio fato gerador/base de cálculo, em virtude da já vista função veritativa desta última.
Importa, pois, a fim de confirmar a natureza específica revelada pela descrição
contida na hipótese de incidência, cotejá-la com os critérios de mensuração do crédito tributário postos pelo legislador no conseqüente da norma-padrão e apurar se
a base de cálculo utilizada guarda relação lógica e harmônica com o fato gerador a
ser por ela dimensionado, ou se, ao contrário, apresenta-se como grandeza imprestável a essa quantificação, implicando a transmutação da natureza sinalizada pela hipótese.
Partamos, mais uma vez, do desenho legislativo do prescritor da regra-matriz
de incidência da taxa, pondo em relevo seus aspectos quantitativos.
Diz o art. 17-D da Lei nº 6.938/1981, na redação que lhe conferiu a Lei nº
10.165/2000:
Art. 17-D. A TCFA é devida por estabelecimento e os seus valores são
os fixados no Anexo IX desta Lei.
§ 1º Para os fins desta Lei, consideram-se:
I – microempresa e empresa de pequeno porte, as pessoas jurídicas
que se enquadrem, respectivamente, nas descrições dos incisos I e
II do caput do art. 2o da Lei no 9.841, de 5 de outubro de 1999;
II – empresa de médio porte, a pessoa jurídica que tiver receita
bruta anual superior a R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil
reais) e igual ou inferior a R$ 12.000.000,00 (doze milhões de
reais);
III – empresa de grande porte, a pessoa jurídica que tiver receita
bruta anual superior a R$ 12.000.000,00 (doze milhões de reais).
§ 2º O potencial de poluição (PP) e o grau de utilização (GU) de
recursos naturais de cada uma das atividades sujeitas à fiscaliza-
17 OLIVEIRA, 1995. p. 26-27.
faculdade de direito de bauru
178
ção encontram-se definidos no Anexo VIII desta Lei.
§ 3º Caso o estabelecimento exerça mais de uma atividade sujeita
à fiscalização, pagará a taxa relativamente a apenas uma delas,
pelo valor mais elevado.
O Anexo a que se refere o caput do artigo tem a seguinte redação:
ANEXO IX
VALORES, EM REAIS, DEVIDOS A TÍTULOS DE TCFA POR
ESTABELECIMENTO POR TRIMESTRE
Potencial de Poluição,
Grau de utilização de
Recursos Naturais
Pequeno
Médio
Pessoa
Física
Microempresa
-
Empresa de
Pequeno
Porte
112,50
180,00
Empresa de
Médio
Porte
225,00
360,00
Empresa de
Grande
Porte
450,00
900,00
-
Alto
-
50,00
225,00
450,00
2.250,00
Têm sustentado os contribuintes que a Lei nº 10.165/2000 teria ofendido a limitação ditada pelo art. 145, § 2º, da Constituição de 1988 e reiterada pelo art. 77,
parágrafo único, do Código Tributário Nacional, os quais obstam a que leis instituidoras de taxas elejam bases de cálculo próprias de impostos. Alega-se que os critérios quantitativos insertos na regra-matriz de incidência da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA – não se prestariam à mensuração do fato descrito em sua
hipótese, por se apresentarem como aspectos ínsitos à atividade do contribuinte e
não à do Estado, asseverando-se, ainda, a verificação de contrariedade à vedação a
que taxas sejam calculadas em função do capital das empresas.
Alegam que a fórmula de cálculo escolhida pelo legislador seria típica de impostos, recorrendo a teses costumeiramente invocadas quando se apoda de ilegalidade a
cobrança de novas taxas. Argumenta-se que o montante devido não guardaria a necessária correspectividade com o critério material da hipótese de incidência do tipo tributário sob exame, que, no caso, consubstancia-se no exercício de atividades de controle
e fiscalização da exploração de atividades que repercutem sobre o meio ambiente, e
aduz-se a ausência de relação de retributividade entre o quantum devido e o custo da
atividade estatal ou os benefícios auferidos pelos contribuintes, exigência que reputam
indeclinável em face do caráter sinalagmático inerente às taxas.
Em linha de princípio, mostra-se consistente a assertiva de que os aspectos
quantitativos da regra-matriz de incidência das taxas devam ser hábeis para dimensionar a atividade estatal imediatamente referida ao obrigado, posta no núcleo de
seu descritor.
Não nos parece, contudo, que a conjugação de fatores engendrada pela lei
seja inservível ao fim a que se destina.
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Há de se ter em mente que o princípio cardeal que informa a escolha da
base de cálculo dos tributos, como já anotamos, assenta-se sobre a tríplice função dessa grandeza: mensurar o fato descrito na hipótese de incidência da lei
instituidora da exação, confirmar sua natureza e quantificar o objeto da prestação tributária.
A preocupação revelada pelo legislador no art. 145, § 2º, da Constituição de
1988 e no art. 77, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, diz respeito, precisamente, à função confirmatória da base de cálculo, visto que, ao se escolher grandeza inadequada à mensuração da hipótese de incidência de uma taxa, mas própria
de impostos, esvazia-se de sentido jurídico a letra da lei, desmentindo-se a espécie
tributária anunciada pela hipótese, que sucumbe diante dos elementos quantitativos
que preponderam na conseqüência normativa. Como observa Barros Carvalho acerca das taxas, “a análise de suas bases de cálculo deverá exibir, forçosamente, a medida da intensidade da participação do Estado. Acaso o legislador mencione a existência de taxa, mas eleja base de cálculo mensuradora de fato estranho a qualquer atividade do Poder Público, então a espécie tributária será outra, naturalmente um imposto”.18
A adequação da base de cálculo de determinado tributo, portanto, dependerá de sua correlação harmônica com o fato gerador abstratamente previsto no descritor da regra-matriz, que, no caso das taxas, será sempre uma atividade do Estado
– a prestação de serviço público específico e divisível efetivamente prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição, ou o regular exercício do poder de polícia.
Uma vez apurado que a Lei nº 10.165/2000 criou uma taxa de polícia, os aspectos quantitativos da respectiva norma-padrão de incidência hão de ser idôneos
a mensurar o exercício do poder estatal, o custo aproximado das diligências do Poder Público que culminarão na prática dos atos de polícia.
Para Roque Antônio Carrazza, sobrelevaria, aqui, o caráter sinalagmático do
tributo, ponderando que, “conquanto não seja necessária uma perfeita coincidência
entre o custo da atividade estatal e o montante exigido a título de taxa, deve haver,
no mínimo, uma correlação entre ambas”.19 O autor sustenta que as taxas não podem ser utilizadas pelo Estado com o fito exclusivo de gerar indistinta receita para
os cofres públicos, como instrumentos de financiamento de outros serviços ou de
outros atos de polícia que não aqueles imediatamente referidos aos obrigados, que
estejam postos na hipótese de incidência da norma criadora daquela espécie tributária e a cujo custeio são voltadas.
Frisa, porém, Carrazza:
18 CARVALHO, 1998. p. 30.
19 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
p. 367.
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faculdade de direito de bauru
O valor da taxa, seja de serviço, seja de polícia, deve corresponder
ao custo, ainda que aproximado, da atuação estatal específica. É
claro que, neste campo, não precisa haver uma precisão matemática; deve, no entanto, existir uma razoabilidade entre a quantia
cobrada e o gasto que o Poder Público teve para prestar aquele serviço público ou praticar aquele ato de polícia.
[...]
Todavia a ordem jurídica não exige, neste ponto, o impossível, isto
é, que haja uma dosagem milimétrica entre a quantia cobrada e
o gasto que o Poder Público (ou quem agiu em seu nome) teve para
praticar o ato de polícia ou para prestar o serviço público. Basta
que exista, como observou Hector Villegas, ‘uma prudente, razoável e discreta proporcionalidade entre ambos os termos.20
Respeitadas as parcas imposições inscritas no art. 145, § 2º, da Constituição de
1988 e no parágrafo único do art. 77 do Código Tributário Nacional, em doutrina se
reconhece a ausência de critérios sólidos para o exato dimensionamento das taxas,
registrando-se a construção de distintas teorias na busca de parâmetros para sua
quantificação.
Conforme anota Bernardo Ribeiro de Moraes21, para considerável segmento
da doutrina, o critério de determinação quantitativa das taxas residiria no custo, global ou parcial, da atividade estatal imediatamente referida ao obrigado, que enseja a
cobrança do tributo. Os autores que perfilham esse entendimento, ressalta, podem
ser distribuídos em distintos grupos, em função de nuanças percebidas no fundamento de suas teorias.
Há os que sustentam que a taxa deve corresponder exatamente ao custo total
da atividade, devendo haver um equilíbrio entre o gasto do Estado e a receita auferida com o tributo. O importe total da taxa, assim, deve equivaler à soma exigida
para a satisfação das respectivas necessidades, sob pena de, ultrapassando o limite
máximo daquilo que é indispensável à cobertura da despesa, converter-se em imposto. Como noticia Moraes, adotam esse critério Gerbino, Nitti, Tangorra e Ruy
Barbosa Nogueira, entre outros.
De outra parte, prossegue, há quem entenda dever a taxa corresponder ao
custo parcial da atividade estatal. Para esta corrente, a atividade estatal que motiva
a cobrança do tributo é complexa, nela convergindo interesses coletivos e interesses privados, o que justificaria a repartição do respectivo ônus entre o Estado e o
particular. Cita Pio Ballesteros, para quem os custos devem ser distribuídos entre a
20 CARRAZZA, 2000. p. 369-370.
21 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. v. 1, p.
541-545.
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comunidade e os concretos beneficiários da atividade estatal, com o que o valor da
taxa resultaria inferior ao custo da atuação estatal. Moraes consigna, ainda, como filiados desta corrente, Einaudi, Cossa, Flora e Salerno, entre outros.
Finalmente, expõe o pensamento de Hector B. Villegas e Andreozzi, para
quem a taxa deve representar um razoável equivalente com o custo do serviço, podendo haver um pequeno e moderado excedente. O norte que orientaria a fixação
do valor da taxa seria, assim, sua razoável proporção com o custo do serviço.
Moraes, no entanto, lança críticas contra as teorias fundadas exclusivamente
na noção de custo, argumentando, a respeito do equilíbrio entre o que o contribuinte paga e o custo da atividade estatal que lhe é dirigida, com a impossibilidade de se
estabelecer uma relação de igualdade matemática entre ambos. Invocando Rubens
Gomes de Sousa e Bilac Pinto, acentua que a exigência de uma equivalência estrita
e direta entre o montante do tributo e o valor do serviço acabaria por transformar a
taxa em preço público, salientando ser inaceitável a rigidez da conceituação tradicional da taxa como tributo de mera função contraprestacional, de modo a se pretender uma dosagem milimétrica do tributo em relação ao custo dos serviços que justificam sua exigência.
Acrescenta que o montante da taxa não é elemento que a caracterize juridicamente e ressalta a inexistência de fórmula que permita apurar, com exatidão, o custo real da atividade estatal desenvolvida em relação ao contribuinte, aduzindo que,
em verdade, a definição da fração do custo do serviço que deva ser financiada pela
taxa é questão eminentemente política. Censura a aplicação de regras econômicas
que reduzem as taxas à idéia de troca, de contraprestação ou de recuperação de custos por parte do Estado.
Com respeito a essas teorias, observa, ao final, com ponderação, que o custo
da atividade estatal deve ser levado em conta, mas apenas como guia de referência
para a “fixação do quanto se pretende auferir, globalmente, com a arrecadação da
taxa”, encarecendo que esse “elemento deverá ser levado em conta sem desprezo
do elemento político (conveniência do Estado em repartir esse custo da atividade
estatal pela universalidade dos cidadãos – custeio pelo imposto – e por aqueles que
recebem a aludida atividade estatal – custeio por taxa)”.22
Moraes registra a existência de outros critérios alvitrados pelos teóricos, como
o critério da vantagem ou da utilidade auferida pelo obrigado, pelo qual se preconiza que a taxa corresponda ao valor da vantagem advinda ao contribuinte com a prestação do serviço, pensamento encontrado entre autores franceses como Laferrière,
Mehl e Walline. Lembra, porém, que a proposta não subsiste modernamente, em virtude da impossibilidade de traduzir em cifras a vantagem ou a utilização subjetiva,
destacando que taxas existem nas quais nem sequer se detecta a provocação de benefícios aos contribuintes.
22 MORAES, 1996. p. 544.
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faculdade de direito de bauru
Por essas mesmas razões, insurge-se contra a corrente que advoga a adoção
de um critério híbrido de custo e utilidade oferecida, repelindo também a vertente
que vislumbra o fundamento da quantificação das taxas no primado da capacidade
contributiva, por reputá-las pertinentes exclusivamente aos impostos, porquanto a
hipótese de incidência daquelas primeiras vincula-se a uma atividade estatal referida ao obrigado, não descrevendo qualquer fato econômico inserto na esfera do sujeito passivo que possa atuar como índice de aferição de capacidade contributiva.
Após impugnar os fundamentos das teorias expostas acima, Moraes sugere regras para a quantificação das taxas, conjugando subsídios das várias correntes vistas.
Ensina que se deve conceber a taxa como instrumento de custeio da atividade estatal que a motiva, cumprindo ao legislador imbuir-se do objetivo de alcançar
uma razoável equivalência entre o custo global da atividade estatal que constitui o
fato gerador do tributo e o montante a ser arrecadado com a taxa. Isso não significa, no entanto, uma perfeita e milimétrica equivalência entre ambos, mas um limite
jurídico oferecido pelo conceito de taxa, que veda um desequilíbrio capaz de desnaturar a essência ontológica dessa espécie tributária. O custo operaria, assim, como
guia, ou elemento de prudente ponderação.
Moraes enfatiza, ainda, que a determinação quantitativa da taxa sofre também
influxos de um componente político, muitas vezes revestindo a exação de finalidades extrafiscais, que desbordam os limites meramente tributários do tratamento a
ser conferido ao tema, não se podendo olvidar, ainda, o caráter unilateral de sua imposição pelo Estado. Remetendo-nos à hipótese de incidência própria das taxas, salienta que sua quantificação há de ter em conta elementos que se relacionem, de algum modo, à medida da intensidade da atuação estatal, além de levar em consideração o número de contribuintes alcançados pela atividade do Poder Público, em sistema de rateio.
Proscreve, por fim, a eleição de critérios desarrazoados, arbitrários ou confiscatórios.
Na mesma senda, Sacha Calmon aponta as erronias das teorias que vimos
de ver, aludindo ao vezo de se examinarem questões jurídico-tributárias à luz de
conceitos e categorias estranhas ao Direito, fruto de antiga simbiose entre Ciência das Finanças, Direito Financeiro e Economia. Alerta para a necessidade de se
desvencilhar o intérprete de certos preconceitos acerca das taxas, abstendo-se
de análises que imiscuam dados financeiros e econômicos nas reflexões jurídicas sobre o tema, vício que Sacha Calmon, na esteira das críticas formuladas por
Moraes, identifica nas teorias que visualizam o fundamento das taxas na correlação com eventual benefício auferido pelos sujeitos passivos ou na recuperação
do custo dos atos estatais que lhes justificam a cobrança.
Refletindo especificamente sobre a espécie tributária que interessa a nosso estudo, diz o autor:
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As ‘taxas de polícia’se dão pela realização de atos administrativos com base no poder geral de polícia, diretamente relacionada
à pessoa do contribuinte. Não se cuida de ‘um benefício’ao contribuinte, nem de recuperar o ‘custo do ato’, mas de realizar atos
de polícia. O custo do serviço e o benefício são marginais. Pode
até ocorrer de o contribuinte colher um malefício. Caso daquele
que requer um atestado de bons antecedentes e recebe um de
maus antecedentes. Pode até ocorrer de a taxa exceder ou não
cobrir o serviço.23
Esposando os ensinamentos da doutrina vistos acima, ao procedermos à análise da fórmula legal de quantificação da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental
– TCFA – trazida pela Lei nº 10.165/2000, podemos, de plano, afastar a tese de sua
invalidade, por não guardar relação de rígida retributividade ou de correspectividade com o custo da prática do ato de polícia ambiental.
O sistema concebido pelo legislador conjuga, em prudente proporcionalidade, variáveis que, uma vez combinadas, permitem uma gradação da taxa, dentro de
faixas nas quais se verifica uma razoável presunção de maior ou menor onerosidade
da atividade estatal em relação a diferentes classes de contribuintes, em função do
porte da empresa obrigada e do potencial de poluição ou grau de utilização de recursos naturais encerrado na atividade econômica explorada pelos sujeitos passivos.
O critério adotado pela lei apresenta-se razoável, visto que os meios por ela
escolhidos mostram-se logicamente adequados aos fins a que visa. Aceitável parecenos a opção do legislador, que, em busca de forma de dimensionamento do poder
de polícia que enseja a exigência da taxa, laborou com a presunção de que o maior
ou menor porte da empresa, assim como o maior ou menor potencial poluidor ou
grau de utilização de recursos naturais encontram-se em relação diretamente proporcional à maior ou menor degradação do meio ambiente, reclamando, conseqüentemente, maior ou menor intensidade de diligências e de esforços de controle
e fiscalização das atividades dos sujeitos passivos.
Segundo o art. 17-D da Lei nº 6.938/1981, na redação que lhe deu a Lei nº
10.165/2000, a taxa é devida por estabelecimento e não, por pessoa jurídica, outra
apropriada opção legislativa que se sustenta sobre as mesmas razões subjacentes ao
mecanismo legal de quantificação do tributo examinado acima – permitir a mensuração da hipótese de incidência de modo mais aproximado à realidade concreta.
Com efeito, ao se determinar o cálculo da taxa por estabelecimento e não, por empresa como um todo, leva-se em conta que cada unidade da pessoa jurídica demandará atividade de fiscalização autônoma e distinta, assim como não se descura da cir23 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. O controle de constitucionalidade das leis e do poder de tributar na constituição de 1988. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 350-351.
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faculdade de direito de bauru
cunstância de que cada foco de atividades potencialmente poluidoras possa apresentar distinto grau de lesividade. Assim, consegue-se uma percepção mais individualizada, mais fidedigna da situação particularizada de cada unidade, bem como
uma mensuração mais justa da efetiva atuação estatal.
Domingues de Oliveira, ao tratar das taxas ambientais, pondera que, à luz do
art. 77 do Código Tributário Nacional, são admissíveis como fatos geradores dessas
exações:
[...] o licenciamento, a fiscalização e a limpeza ou recuperação
ambiental, guardando uma razoável equivalência com o custo
dos serviços públicos de licenciamento e fiscalização, e da limpeza ou recuperação ambiental correlacionáveis, exemplificativamente, a situações individuais dos contribuintes (tipo de estabelecimento/instalações/atividades, área fiscalizada, etc.) e aos volumes de emissões de resíduos poluidores.24
Na impossibilidade de mensuração real e casuística do exercício do poder de
polícia desempenhado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis – IBAMA – em relação a cada contribuinte, isolada e individualmente considerado, socorreu-se o legislador de técnicas de generalizações e presunções inspiradas pelo princípio da praticidade ou da praticabilidade, ao elaborar as tabelas estabelecidas nos Anexos IX e VIII da Lei nº 10.165/2000, que cuidam,
respectivamente, de minudenciar o valor da taxa em função do porte e das atividades das empresas e de classificar as atividades econômicas exploradas pelos sujeitos
passivos em graus de potencial de agressão ao meio ambiente.
A praticabilidade, como leciona Misabel Abreu Machado Derzi, é um princípio
jurídico que não encontra formulação em norma escrita, achando-se difuso no ordenamento. Pouco estudado na literatura nacional, chega até nós, como registra a
autora, por influência da doutrina alemã, podendo ser conceituado como o “conjunto de meios e técnicas utilizáveis com o objetivo de tornar simples e viável a execução das leis”.25 É, pois, como anota, um princípio inspirado em razões de economicidade e exeqüibilidade, que explica a adoção de expedientes que procuram facilitar a aplicação das leis.
Nesse sentido, tem como destinatário imediato o Poder Legislativo, que, para
tornar cômoda, econômica e viável a aplicação da lei, pode recorrer a generalizações, a abstrações, como presunções, ficções, enumerações taxativas, somatórios e
quantificações, dos quais são também exemplos citados por Derzi as tabelas e pau24 OLIVEIRA, 1995. p. 34-35.
25 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7. ed. rev. e compl. por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 554.
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tas de valores fixados pelo Poder Executivo, como no caso do imposto municipal sobre a propriedade predial e territorial urbana, do imposto estadual sobre propriedade de veículos automotores, aos quais poderíamos acrescentar a tabela trazida pelo
Anexo IX da Lei nº 10.165/2000.
No direito tributário, a razão da acentuada expressão das técnicas de praticidade pode ser localizada na circunstância de suas leis ensejarem aplicação e fiscalização em massa pela Administração.26
O sistema criado pela Lei nº 10.165/2000, a fim de estabelecer o quantum da
Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA –, realiza, assim, os princípios da
proporcionalidade, da razoabilidade e da isonomia, ao respeitar as peculiaridades
das distintas categorias de sujeitos passivos, conjugando-se satisfatoriamente ao
princípio implícito da praticidade, que, mais uma vez com as palavras de Derzi, evita “a investigação exaustiva do caso isolado, com o que se reduzem os custos na aplicação da lei”, e dispensa-se “a colheita de provas difíceis ou mesmo impossíveis em
cada caso concreto ou daquelas que representam indevida ingerência na esfera privada do cidadão”.27
Ainda no que concerne aos aspectos quantitativos prescritos no conseqüente
da regra-matriz de incidência da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA
–, cumpre-nos investigar a existência de contrariedade à regra inscrita no art. 145, §
2º, e no parágrafo único do art. 77 do Código Tributário Nacional, como tem sido
alegado por diversos contribuintes em juízo, em razão de a Lei nº 10.165/2000, ao
fixar o montante da taxa, aludir ao porte da empresa, este, por sua vez, definido em
função do capital da empresa.
O dispositivo constitucional invocado proíbe que a lei instituidora de taxas
adote base de cálculo própria de impostos, enquanto o preceito encontrado no parágrafo único do art. 77 do Código Tributário Nacional diz, textualmente, que a taxa
não pode ter base de cálculo ou fato gerador idêntico aos que correspondam a imposto, nem ser calculada em função do capital das empresas.
A mens legis, ali, é a de evitar o desvirtuamento da natureza jurídica da taxa
com a adoção de unidade de mensuração peculiar a outro tipo impositivo, pois,
como já foi visto, a natureza específica do tributo é definida pela conjugação harmônica da hipótese de incidência a uma base de cálculo que a confirme.
Comentando a preocupação legislativa estampada no parágrafo único do art.
77 do Código Tributário Nacional, dizia Aliomar Baleeiro:
O CTN, no mesmo parágrafo do art. 77, “impede ao legislador ordinário a utilização do capital das empresas como base de cálculo de taxas. É outro modo de distorção, pois um tributo calculado
26 BALEEIRO, 1999. p. 790.
27 BALEEIRO, 1999. p. 554.
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sobre o capital das empresas seria uma forma grosseira de imposto de renda medido pelo rendimento presumido, como um forfait”.28
Nossos Tribunais já visitaram o tema, encontrando-se, hoje, bem consolidada
sua orientação quanto à inteligência a ser fixada em torno da regra inscrita no art.
145, § 2º, da Constituição de 1988 e repetida no art. 77, parágrafo único, do Código
Tributário Nacional.
O Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que o conteúdo do parágrafo único do art. 77 da Lei nº 5.172/1966 foi mantido na Carta vigente, foi chamado a se
pronunciar a respeito do sentido e do alcance da vedação a que as taxas sejam calculadas em função do capital das empresas, quando do julgamento da constitucionalidade do art. 2º da Lei nº 7.940, de 20 de dezembro de 1989, que instituiu a Taxa
de Fiscalização dos Mercados de Títulos e Valores Mobiliários.
Pela lei, a taxa foi fixada em valores progressivos, variáveis conforme o patrimônio líqüido dos contribuintes e a classe em que foram postos pelo legislador, que
os distribuiu nos seguintes grupos: I - companhias abertas; II - sociedades beneficiárias de incentivos fiscais, corretoras, bancos de investimentos, bolsas de valores e
futuros, distribuidoras e bancos múltiplos com carteiras de investimentos; ou III –
fundos de conversão, fundos de investimento e carteiras de títulos e valores mobiliários (capital estrangeiro).
O sistema legal escalonou o valor da taxa em Bônus do Tesouro Nacional dentro de cada uma daquelas classes e conforme o patrimônio líqüido do contribuinte
sujeito ao poder de polícia exercido pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM –,
destinatária dos recursos arrecadados com a exação. À classificação legal vista acima
combinavam-se, assim, faixas de patrimônio líqüido.
Embora a Lei nº 7.940/1989 haja-se referido a patrimônio líqüido e não, ao capital das empresas, como está dito no art. 77, parágrafo único, do Código Tributário
Nacional, os fundamentos assentados pela Corte Suprema acerca do tema aplicamse também à fórmula adotada pela Lei nº 10.165/2000, razão pela qual reputamos
frutífero o estudo da construção pretoriana.
Destacamos, aqui, o julgamento do Recurso Extraordinário nº 177.835-1/PE,
de que foi relator o Ministro Carlos Mário Velloso, cujo voto pelo reconhecimento
da constitucionalidade da Taxa de Fiscalização dos Mercados de Títulos e Valores
Mobiliários sagrou-se vitorioso, não obstante a divergência do voto vencido do Ministro Marco Aurélio Mello.
A tese vencida frisava a necessidade de o valor das taxas estar obrigatoriamente relacionado ao dispêndio da Administração com o exercício do poder de polícia
28 BALEEIRO, 2000. p. 551.
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ou com a prestação do serviço público que lhe motive a cobrança, dizendo literalmente que a Corte Suprema “jamais placitou hipótese de instituição de taxa sem o
respaldo em tal fator, ou seja, o gasto realizado”.
O Ministro Marco Aurélio Mello externou o entendimento de que, no caso da
taxa criada pela Lei nº 7.940/1989, não existiria o imprescindível elo entre o patrimônio líqüido do contribuinte e o poder de polícia sobre ele exercido pela Comissão
de Valores Mobiliários – CVM. Em suas palavras, “o patrimônio líqüido, considerada
a ordem natural das coisas, não serve a dimensionar o dispêndio, pela administração, no exercício do poder de polícia”; “calcular-se a taxa a partir da grandeza do
contribuinte é descaracterizá-la, ensejando-se o arbítrio”, visto que o patrimônio líqüido nenhuma relação teria com a atividade estatal desenvolvida.
Prevaleceram, todavia, os fundamentos expendidos no voto proferido pelo
Ministro Carlos Mário Velloso, que buscou arrimo na manifestação do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, instância prolatora da decisão desafiada com a interposição do recurso extraordinário ora sob comento. Em seu voto, salientou o Ministro:
O fato de a taxa variar em função do patrimônio líqüido em função da empresa não significa que esse patrimônio líqüido constitua a sua base de cálculo. Com
propriedade, escreveu o Juiz Hugo de Brito Machado, no voto que proferiu, no Tribunal a quo, quando do exame constitucionalidade da referida taxa:
‘[...] É certo que a taxa questionada varia em função do patrimônio líqüido das empresas. Isto, porém, não significa seja o patrimônio líqüido sua base de cálculo.
Nos tributos fixos, não se faz cálculo. O valor do tributo é determinado diretamente pelo legislador.
No caso, a variação do valor da taxa, em função do patrimônio líqüido da empresa, é simples fator de realização do princípio da
capacidade contributiva. A esse respeito manifestou-se com inteira
propriedade a ilustrada Juíza Federal, Professora GERMANA DE
OLIVEIRA MORAES, então Procuradora da Fazenda Nacional, afirmando:
‘O estabelecimento de classes de contribuintes, além de lógico, é
um critério eqüitativo acima de tudo. Uma grande empresa certamente requisitará mais a atividade fiscalizadora da Comissão de
Valores Imobiliários do que uma pequena empresa. A existência de
uma taxa de valor único, para todo o amplo espectro de empresas,
não iria senão agravar o encargo para as de maior porte. Tratar
os desiguais como iguais é profunda ignomínia e ofende o sagrado princípio da igualdade constitucional’.
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No mesmo sentido assentou-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acerca da conformidade dos critérios quantitativos da Taxa de Fiscalização dos
Mercados de Títulos e Valores Mobiliários à regra ditada pelo art. 77, parágrafo único, do Código Tributário Nacional. Relator do Recurso Especial 135.767/DF, o Ministro Demócrito Reinaldo afirmou não divisar maltrato àquele preceito, por entender
que o art. 2º da Lei nº 7.940/1989 limitou-se a utilizar o patrimônio líqüido do contribuinte como “mero elemento referencial para cobrança da taxa de fiscalização dos
mercados de títulos e valores mobiliários”, ponderando que o quantum dessa taxa,
como o de tantas outras, foi estabelecido antecipadamente em valores fixos, por
meio da adoção de um parâmetro (patrimônio líqüido) capaz de aferir a proporção
da repartição dos custeios das atividades que geram a cobrança do tributo.
Em seu voto, o Ministro Demócrito Reinaldo invoca precedente colhido na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que transcrevemos a seguir. Diz ele
nos fundamentos de sua manifestação:
[...] para comprovar a impossibilidade de prosperar a pretensão
recursal, podem ser ainda invocados outros julgados deste Tribunal, que atestam a inexistência de afronta à norma apontada
como malferida (art. 77 do CTN), consoante pode-se colher nos termos da decisão prolatada pelo eminente Ministro CESAR ASFOR
ROCHA, in expressis:
‘Recolho do r. decisório que negou processamento ao recurso os seguintes excertos, da lavra do ilustre Juiz JOSÉ AUGUSTO DELGADO:
‘Este Tribunal, em inúmeros precedentes já se pronunciou a respeito
do tema. A exação em tela é do tipo variável classista. A fixação do valor do tributo é estabelecida de acordo com uma tabela, onde se classificam as empresas de acordo com o seu porte. Em que pese a utilização do quantum da taxa, não há uma relação proporcional progressiva, indicando-se, apenas, algumas categorias de empresas.
Assim, o nível de dificuldade oferecido pelas instituições subordinadas ao controle da CVM, em virtude da complexidade de sua organização, demandará uma fiscalização maior por parte da referida Comissão. Como o fato gerador da exação em debate é, exatamente, o poder de polícia exercitado sobre as empresas sujeitas
à fiscalização da CVM, não vislumbro qualquer óbice ao estabelecimento de certos níveis diferenciados de valores, conforme a dimensão das entidades. E o critério para se aferir tal dimensão, escolhido pela lei, foi, precisamente, o patrimônio líqüido.
[...]
Em segundo lugar, não se cuida de base de cálculo própria de imposto. O patrimônio líqüido serve de referencial para a aplicação
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de taxa, em um dos níveis previamente determinados, sem a necessidade da operação matemática peculiar ao cálculo dos impostos,
a multiplicação da base de cálculo por uma alíquota. De fato, haveria uma verdadeira desnaturação da espécie tributária se, identificado o patrimônio líqüido da empresa, aplica-se-lhe um determinado percentual, previsto na lei, obtendo-se o valor do tributo a
ser pago. No caso concreto tal inexiste (grifos nossos).
Do mesmo modo, também os Tribunais Regionais Federais proclamaram a
constitucionalidade da Taxa de Fiscalização dos Mercados de Títulos e Valores Mobiliários. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por exemplo, em voto proferido
pelo Juiz Tourinho Neto, no julgamento da Remessa ex officio nº 95.01.27306/DF,
destacou a inexistência de proporcionalidade entre o valor da taxa e o montante da
base de cálculo, assim como a não-incidência de um percentual sobre o patrimônio,
embora o valor do tributo varie de acordo com a classe do patrimônio líqüido. Na
mesma trilha, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região consolidou sua pacífica jurisprudência no enunciado da Súmula nº 15: “É válida a cobrança da Taxa de Fiscalização dos Mercados de Títulos e Valores Mobiliários (Lei nº 7.940/89), com base em
tabela, por faixas de contribuintes”.
O sistema de taxação criado pela Lei nº 10.165/2000 segue a mesma técnica, não
se vislumbrando qualquer afronta à vedação insculpida no art. 77, parágrafo único, do
Código Tributário Nacional, cuja exegese, já referendada por nossas Cortes, há de ser no
sentido de vedar que a taxa consista em um percentual ou uma fração retirada do capital da empresa, o que não obsta a que, eventualmente, o seu porte seja tomado como
um fator capaz de influenciar na maior ou menor requisição da atividade de fiscalização
estatal, posta no núcleo da hipótese de incidência das taxas de polícia.
O Anexo IX da Lei nº 10.165/2000, com razoabilidade, combinou o grau do
potencial de nocividade das atividades econômicas exploradas pelas empresas com
o seu porte, a fim de criar faixas de contribuintes dentro das quais estabeleceu valores fixos para a Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA. Os valores, assim,
são fixos dentro de classes nas quais há presunção de progressivo dispêndio de
energia estatal, em razão de peculiaridades da realidade fática dos sujeitos passivos,
o que prestigia os princípios da proporcionalidade e da isonomia.
Não vemos configurada, tampouco, a procedência da tese, também levada ao
Poder Judiciário, de que a exação teria efeitos confiscatórios, em desrespeito à regra
do art. 150, IV, da Constituição de 1988.
Como ensina Moraes29, a vedação constitucional à instituição de tributos com
conotação confiscatória visa a assegurar que, por meio de sua atividade fiscal, o Es29 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. v. 2, p.
126-127.
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tado não venha a fazer nula a garantia de proteção ao direito de propriedade, também de estatura constitucional, inscrita no art. 5º, XXII, da Carta vigente. Coíbe-se,
assim, que, por via indireta, a pretexto de tributar o particular, o Estado venha a lhe
exigir a transferência de seu patrimônio ao Erário.
A vedação à instituição de gravames, com efeito de confisco, não se confunde
com a proibição de majoração exorbitante de tributos, hoje inexistente no direito
pátrio, embora, conforme registra Moraes, a Constituição brasileira de 1934 estatuísse, em seu art. 185, que nenhum imposto poderia ser elevado além de vinte por cento do seu valor ao tempo do aumento.
No atual estado do direito brasileiro, o que se afasta é a onerosidade excessiva, conducente à própria supressão da propriedade. Vejamos as palavras de Moraes.
Não obstante se refiram a impostos, consagram princípio aplicável a qualquer espécie tributária:
Imposto confiscatório é o que absorve grande parte do valor da
propriedade ou da renda do contribuinte, havendo uma diferença apenas de grau entre o imposto constitucional e o confiscatório.
A dificuldade, na matéria, acha-se justamente na determinação
prática do que se deve entender como tal grau, que somente pode
ser estabelecida em cada caso concreto. A Corte Suprema da Argentina tem fixado em 33% o teto máximo de validade constitucional para certos impostos [...].30
No caso da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA –, contudo, o
cotejo dos valores consignados na tabela do Anexo IX da Lei nº 10.165/2000 com as
respectivas faixas de receita bruta anual, pelas quais são definidos o porte das empresas e o quantum do tributo, deixa patente que não há substancial comprometimento da capacidade econômica de seus contribuintes.
De toda a forma, como ensina Domingues de Oliveira:
A tributação ambiental é genuinamente de natureza ‘finalística’
ou ‘extrafiscal’, pois se destina fundamentalmente a ‘dirigir’a
atuação do contribuinte, o que é evidente no caso dos impostos.
Mesmo nos outros tributos ambientais, de caráter ‘retributivo’ou
‘contraprestacional’, pode-se vislumbrar uma finalidade diretiva
das reações dos contribuintes.
[...]
‘Efeitos extrafiscais’ há até mesmo nos denominados ‘tributos fiscais’.31
30 MORAES, 1997. v.2, p. 126-127.
31 OLIVEIRA, 1995. p. 38.
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O sistema tributário é eficiente instrumento de transformação econômica e social e, pois, deve estar a serviço da preservação dos recursos ‘ambientais’, através do manejo adequado da tributação: a
‘tributação ambiental’, isto é, a tributação voltada para a defesa
do meio ambiente, de inegável característica extrafiscal porque expressão do police power.32
Ainda que fossem elevados os valores definidos pela lei, cremos que permaneceriam admissíveis, dada a relevância de sua finalidade extrafiscal – preservar o
meio ambiente, do qual depende a qualidade de vida das gerações que hão de vir.
A essa altura, de tudo quanto vimos, podemos afirmar que a Lei nº
10.165/2000 criou verdadeira taxa, em cuja hipótese de incidência encontramos a
descrição abstrata de fato consistente no exercício de poder de polícia pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA. Os critérios quantitativos postos no conseqüente de sua regra-matriz, por seu turno, não
desmentem a natureza jurídica denunciada pela hipótese, restando também afastada a tese de ofensa às limitações ao poder de tributar inscritas no art. 145, § 2º, da
Constituição de 1988 e no art. 77, parágrafo único, do Código Tributário Nacional.
Concluído o processo de identificação da natureza jurídica específica do tributo estudado, que é autêntica taxa, pode-se, agora, proceder à aferição das teses de
incompetência da União para sua instituição, assim como de caracterização de bitributação.
Antes, porém, a fim de exaurirmos o exame dos critérios do conseqüente da
regra-matriz de incidência da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA –,
instituída pela Lei nº 10.165/2000, cumpre-nos volver os olhos para seu aspecto subjetivo, cuja disciplina corrigiu os defeitos encontrados na Lei nº 9.960/2000, que, ao
criar a antiga Taxa de Fiscalização Ambiental – TFA –, feriu o princípio da estrita legalidade, por omitir-se quanto à definição de seus contribuintes, relegando a tarefa
a atos administrativos.
A Lei nº 9.960/2000 dispôs a respeito dos sujeitos passivos da Taxa
de Fiscalização Ambiental – TFA – nos seguintes termos:
Art. 8o A Lei no 6.938, de 31 agosto de 1981, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos:
“Art. 17-A. [...]”
“Art. 17-B. É criada a Taxa de Fiscalização Ambiental - TFA.” (AC)
“§ 1o Constitui fato gerador da TFA o exercício das atividades mencionadas no inciso II do art. 17 desta Lei, com a redação dada pela
32 OLIVEIRA, 1995. p. 43.
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faculdade de direito de bauru
Lei no 7.804, de 18 de julho de 1989”.(AC)
“§ 2o São sujeitos passivos da TFA, as pessoas físicas ou jurídicas
obrigadas ao registro no Cadastro Técnico Federal de Atividades
Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais
[...] (grifos nossos).
No lacônico dispositivo, a Lei nº 9.960/2000 absteve-se de indicar precisamente os contribuintes da exação, tendo, na prática, ficado a cargo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA – a confecção do catálogo de obrigados, o que era feito com o supedâneo em informações fornecidas
pelo Ministério do Trabalho. À evidência, pois, o trato indevido de matéria circunscrita ao âmbito da reserva legal pelo art. 5º, II, da Constituição de 1988 e pelo art.
97, III, do Código Tributário Nacional.
Somente por lei em sentido formal e material, portanto, poderiam ser previstos os obrigados ao pagamento do gravame, sob pena de não se instaurar validamente o liame tributário.
Como já foi visto linhas atrás, a Lei nº 9.960/2000, em verdade, criou novo imposto, o que somente encontraria fundamento de validade na competência residual
da União, prevista no art. 154, I, da Constituição de 1988, o qual prescreve a edição
de lei complementar para a criação de impostos nela não discriminados nominalmente. Não bastasse o desrespeito a essa condição extrínseca, que macula o diploma de irremediável defeito formal, a eiva se repetiu com a falta de definição legal
dos sujeitos passivos do tributo.
A Lei nº 10.165/2000, diversamente, trouxe para o nível da legalidade estrita a
definição dos contribuintes da nova Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental –
TCFA –, sanando o vício. Imprimindo nova redação ao art. 17-C da Lei nº 6.938/1989,
dispõe literalmente o art. 1º da Lei nº 10.165/2000 que “é sujeito passivo da TCFA
todo aquele que exerça atividades constantes do Anexo VIII desta Lei”.
Omitiremos a reprodução do anexo citado, em razão da extensão do quadro
ali desenhado, todavia podemos afirmar que a indeclinável exigência de regulação
da sujeição passiva por lei em sentido estrito foi satisfatoriamente atendida.
Concluída a análise do prescritor da regra-matriz de incidência da Taxa de
Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA –, podemos passar ao estudo da competência da União para a criação da taxa sob exame.
3
INSTITUIÇÃO DE TAXAS. REGRAS DE REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIA.
PODER DE POLÍCIA. PROTEÇÃO AMBIENTAL. COMPETÊNCIA COMUM. SERVIÇOS CONCORRENTES. BITRIBUTAÇÃO. INOCORRÊNCIA.
A taxa, como já foi exposto, é classificada como tributo vinculado, por trazer,
no aspecto material de sua hipótese de incidência, a descrição de uma atuação es-
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tatal diretamente referida ao obrigado. Assim, competente para instituí-la será a pessoa jurídica de direito constitucional interno titular da competência para a prestação
do serviço público específico e divisível ou para o exercício do poder de polícia que
justifica a cobrança do tributo.
Por essa razão, ao cuidar das taxas de polícia, diz o Código Tributário Nacional
que se considera regular o exercício do poder de polícia, quando desempenhado
pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou
desvio de poder.
A determinação da pessoa política de direito constitucional interno competente para a prática dos atos de polícia ambiental postos no núcleo da hipótese de
incidência da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA – resolve-se nos domínios das normas que, encravadas em nossa Constituição, dispõem sobre os modos de aquisição e exercício do poder, desenhando sua repartição entre as esferas
autônomas de governo que compõem a Federação brasileira.
A repartição do poder para a instituição de taxas é, pois, mero desdobramento das regras gerais de repartição de competências administrativas.
Daí o magistério de Hugo de Brito Machado:
Ao Direito Constitucional e ao Direito Administrativo cabe a definição das atribuições de cada uma das pessoas jurídicas de Direito público. No âmbito dessas disciplinas, portanto, se há de examinar a questão da competência para instituição e cobrança das taxas, que é simples decorrência da competência para o exercício da
atividade a que se vinculem.33
Discorrendo sobre as técnicas de repartição de competência adotadas pelo direito pátrio, Sacha Calmon observa que, inspirando-se nos fundamentos da teoria
dos tributos vinculados e não vinculados, o constituinte logrou equacionar a distribuição do poder de tributar entre as pessoas políticas, evitando conflitos ou superposições.
O autor pondera que, no caso dos tributos vinculados, a Constituição declina
os respectivos fatos geradores, que, no caso particular das taxas, poderão consistir
em ato de poder de polícia ou na prestação de serviço público específico e divisível,
razão pela qual a competência outorgada às pessoas políticas para sua instituição é
comum, ao contrário do que se passa com os impostos. Diz Sacha Calmon:
Basta que qualquer pessoa política vá realizar um regular ato do
poder de polícia que lhe é próprio ou vá prestar um serviço públi33 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 344.
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co ao contribuinte, se específico e divisível, para que o seu legislador, incorporando tais fatos na lei tributária, institua u’a taxa. [...]
No concernente aos impostos, não é suficiente às pessoas políticas
a previsão do art. 145. Com esforço nele não lhes seria possível instituir os seus respectivos impostos. [...] É que, no caso dos impostos,
a competência para instituí-los é dada de forma privativa sobre fatos específicos determinados. Concluindo, as taxas e as contribuições de melhoria são atribuídas às pessoas políticas, titulares do
poder de tributar, de forma genérica e comum e, os impostos, de
forma privativa e discriminada. Como corolário lógico, temos que
os impostos são enumerados pelo nome e discriminados na Constituição um a um. São nominados e atribuídos privativamente,
portanto, a cada uma das pessoas políticas, enquanto as taxas e as
contribuições de melhoria são indiscriminadas, são inominadas e
são atribuídas em comum às pessoas políticas.34
Dessa combinação de competências comuns e privativas é que resulta a técnica constitucional de distribuição do poder de tributar, vincando Sacha Calmon que,
no caso da competência comum, que comanda a criação de taxas, a sua adoção é
possível exatamente porque suas hipóteses de incidência descrevem fatos do Estado: “[...] a competência tributária firma-se na esteira da competência político-administrativa dos entes tributantes. É dizer, a competência administrativa precede a tributária e a determina. Somente será competente para instituir e efetivamente cobrar
uma taxa a pessoa política que, antes, detenha a competência político-administrativa para realizar o ato de polícia ou prestar o serviço público [...]”.35
Nossas investigações devem partir, portanto, dos preceitos constitucionais
que se ocupam das atribuições estatais no âmbito da proteção ambiental.
O art. 225 da Constituição de 1988, em capítulo voltado especificamente ao
meio ambiente, após dizer que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e de preservá-lo para
as presentes e as futuras gerações.
Ao empregar a abrangente expressão Poder Público, o constituinte conclama
todas as ordens de governo da Federação à adoção de medidas de proteção ambiental, o que é confirmado no Título III da Carta vigente, que cuida da Organização do
Estado, trazendo as regras definidoras da competência dos entes políticos, das quais
colacionamos as seguintes:
34 COÊLHO, 1999. p. 256.
35 COÊLHO, 1999. p. 258.
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Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios:
[...]
III. proteger documentos, as obras e outros bens de valor histórico,
artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
[...]
VI. proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer
de suas formas;
VII. preservar as florestas, a fauna e a flora.
[...]
Parágrafo único. Lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
concorrentemente sobre:
[...]
VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa
do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;
VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico
e paisagístico;
VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico
e paisagístico.
[...]
§ 1º. No âmbito da legislação concorrente, a competência da
União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º. A competência da União para legislar sobre normas gerais
não exclui a competência suplementar dos Estados.
§ 3º. Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
§ 4º. A superveniência de lei federal sobre normas suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.
Definindo competência como “a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade, ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões”, José Afonso da Silva observa que, na estrutura de repartição de competências adotada pela
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faculdade de direito de bauru
Constituição de 1988, são conjugadas competências materiais, que podem ser a)
exclusivas e b) comuns, cumulativas ou paralelas, e competências legislativas, que
podem ser a) exclusivas, b) privativas, c) concorrentes e d) suplementares.36
A capitulação das atividades estatais que constituem os fatos geradores da
Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA – nesse esquema é desvendada
por Édis Milaré:
[...] quadro de competências desenhado pela Constituição da República discrimina as atribuições conferidas a cada ente federado, com ênfase para o que se convencionou chamar ‘federalismo
cooperativo’, já que boa parte da matéria relativa à proteção do
meio ambiente pode ser disciplinada concomitantemente pela
União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios.37
De fato, no art. 23 da Constituição de 1988, encontramos a discriminação de
competências administrativas comuns em matéria ambiental. São as denominadas
competências materiais ou de execução de tarefas, pelas quais se comete ao Poder Público a prática de atos concretos, como, por exemplo, o desempenho do poder de polícia ambiental. No art. 24, por sua vez, encontramos competências legislativas, ou seja,
a outorga da faculdade de produção de atos normativos, em caráter concorrente.
Da leitura dos arts. 23 e 24 da Constituição de 1988, infere-se que os atos de
polícia que ensejam a cobrança da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA
– acham-se insertos no rol das competências administrativas comuns, que cometem
a todos os entes da Federação o dever de promover a proteção ambiental, a preservação dos recursos naturais e o combate à poluição. A mesma matéria é também objeto da competência legislativa concorrente reconhecida à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios.
É preciso, pois, interpretar harmonicamente os arts. 23 e 24, a fim de se compreenderem, precisamente, os limites da atuação de cada pessoa jurídica de direito
constitucional interno.
Cuidando-se de competência administrativa comum, em linha de princípio,
todos os entes da Federação podem atuar, conjunta e cumulativamente, no exercício da proteção ambiental. Todavia, no seio de um Estado Democrático de Direito,
jungido ao primado da legalidade, a realização de atos concretos em relação ao particular, ou seja, a atuação do Poder Público, funde-se com o próprio legislar, visto
que toda ação estatal emanada do poder de polícia pressupõe a existência de lei que
a respalde. A competência material e a competência legislativa, portanto, o art. 23 e
o art. 24, assim, encontram-se umbilicalmente ligados.
36 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 419.
37 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 240-241.
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Embora diga o art. 23 que é competência comum da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios proteger as paisagens naturais notáveis (inciso III)
e o meio ambiente, combater a poluição em qualquer de suas formas (inciso VI) e
preservar as florestas, a fauna e a flora (inciso VII); o art. 24, após submeter essas
mesmas matérias à competência legislativa concorrente, ressalva que a União deve
limitar-se ao estabelecimento de normas gerais.
No confronto dessas disposições constitucionais, põe-se o cerne do próprio
federalismo, a coexistência pacífica das ordens jurídicas parciais, tangenciando a
questão da autonomia dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Em busca da harmonização daqueles preceitos, preconiza a boa doutrina que
a melhor exegese será aquela que leve em conta a relevância da conjugação dos esforços das distintas pessoas políticas em prol do superior interesse coletivo na preservação dos recursos ambientais. Prestigia-se, assim, proposta de interpretação que
tenda ao reconhecimento do mais amplo espectro de atuação às esferas da Federação, visto que, não raro, o impacto da depreciação ambiental faz-se sentir além das
áreas imediatamente atingidas.
Fernanda Dias Menezes de Almeida38, descrevendo a repartição de competências adotada pela Constituição de 1988, assinala tratar-se de um sistema complexo
em que convivem competências privativas, repartidas horizontalmente, com competências concorrentes ou comuns, repartidas verticalmente, franqueada, ainda, a
possibilidade de participação das ordens parciais na esfera de competências próprias da ordem central.
Frisa que as competências comuns ou concorrentes são discriminadas nos
arts. 23 e 24 da Constituição de 1988, dispositivos que prevêem tarefas cujo
cumprimento deve incumbir à União, aos Estados, aos Municípios e ao Distrito
Federal, por se tratar da defesa de valores que o constituinte entendeu não poderem ser adequadamente preservados sem aquela atuação conjunta. Demarcam, pois, área de competência exercitável conjuntamente, em parceria, pelos
integrantes da Federação.
Refletindo acerca da faixa de competência material delineada no art. 23, assim
ensina Fernanda Dias Menezes de Almeida:
Haverá concorrência de atuação nas matérias que o dispositivo
arrola. O que o constituinte deseja é exatamente que os Poderes
Públicos em geral cooperem na execução das tarefas e objetivos
enunciados.
Como diz PAULO LUIZ NETTO LOBO (1989:100), ‘na competência
comum ocorre uma descentralização de encargos em matérias de
38 ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2000.
p. 74.
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grande relevância social, que não podem ser prejudicadas por
questões de limites e espaços de competência’.39
Explica a Professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
que os preceitos constitucionais comentados convocam todos os entes políticos
para uma ação conjunta e permanente, atribuindo-lhes responsabilidade pelo cumprimento de obrigações que incumbem a todos, cuja índole é revelada pelas palavras de Anna Cândida da Cunha Ferraz, transcritas por Fernanda Dias Menezes de
Almeida: “Nota-se, no modo de enunciar essas competências (‘zelar’, ‘cuidar’, ‘proteger’), além do tom imperativo, certo caráter pedagógico. Cuida o texto de ‘lembrar’ que cada esfera de poder público tem deveres a cumprir para concretizar as
atribuições e competências que o constituinte federal lhes confere”.40
Debruçando-se sobre as atribuições administrativas previstas nos incisos VI,
VII e XI do art. 23 da Constituição de 1988, que tratam da proteção dos recursos ambientais e do combate à poluição, destaca, ainda, que a tutela do meio ambiente é
tema cuja importância transcende às próprias fronteiras nacionais, porquanto repercute na qualidade da vida humana no planeta, o que justifica a previsão de ação concertada dos Poderes Públicos de todos os níveis.
Almeida sintetiza a problemática da conciliação dos preceitos dos arts. 23 e 24
ora estudados, recorrendo, mais uma vez, à lição de Anna Cândida da Cunha Ferraz:
As atividades a serem exercidas no campo material das competências ‘comuns’ somente poderão ser executadas, na generalidade dos casos, fundamentadas em regulamentação normativa
precedente, oriunda de mais de um nível normativo de poder.
Nessa hipótese, ocorrerá a chamada repartição vertical de competências, o que significa dizer que a atividade poderá ser exercida pelas diferentes esferas políticas, porém estará sujeita à
disciplina legislativa hierarquizada e a regras gerais impostas
pelo poder central.41
Com acerto, apercebe-se Fernanda Dias Menezes de Almeida de que a lei complementar prevista no parágrafo único do art. 23 não compromete o comando geral
da União no campo das competências materiais comuns, em razão do comando le39 ALMEIDA, 2000. p. 129-130.
40 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha, apud ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na constituição
de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 130.
41 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. União, estados e municípios na nova constituição: enfoque jurídico-formal. A
nova Constituição paulista. São Paulo: Fundação Faria Lima/Fundação Desenvolvimento Administrativo, 1989. p.
65, apud ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas,
2000. p. 134.
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gislativo que também lhe assiste. À partilha de competências, pois, preside o princípio da conjugação de esforços, sob a égide da legislação federal:
Quanto às competências materiais comuns, muito embora devam
ser presididas pelo ideal da cooperação entre todos os entes federativos, será a autoridade federal, em última análise, a estabelecer
as regras da atuação conjunta, uma vez que a execução da grande maioria dessas competências deverá ser balizada por leis editadas com fulcro em competência legislativa concorrente, em que
caberá à União expedir normas gerais e às demais esferas a legislação suplementar, sendo certo que em alguns casos caberá à
União a legislação plena sobre as matérias de execução comum.
Quanto às competências legislativas concorrentes, em relação às
quais inegavelmente se registra o maior avanço em termos de participação das ordens periféricas, não se pode esquecer, no entanto,
que os contornos gerais, princípios e diretrizes da ação legiferante
serão postos pela União. Vale dizer, ocorrerá também aí uma centralização normativa [...].42
Sustenta Lúcia Valle Figueiredo que nem mesmo a ausência daquela lei complementar mencionada no parágrafo único do art. 23 da Constituição de 1988 inibe
o exercício das competências previstas nesse preceito, ao entendimento de que as
atribuições ali inscritas têm a natureza de deveres e, como tais, de desempenho
obrigatório. Para a administrativista, “entendidas as normas constitucionais como
dotadas de eficácia e, em várias das hipóteses, com a ratificação expressa de outras
normas constitucionais como são as veiculadas nos artigos 215, 216, §1º, §2º, art.
225, caput, §1º, § 2º, verificamos que as pessoas elencadas (sic) no art. 23 devem
exercitar plenamente a competência constitucional, mesmo sem se denotar a cooperação, que se deverá dar, se editada fosse (sic) a lei complementar”.43
Nesta direção também ruma o pensamento de Vladimir Passos de Freitas,
quando acrescenta ser “importante observar que, em face da competência comum,
pouco importa quem seja o detentor do domínio do bem ou o ente que legislou a
respeito. Todos podem atuar na preservação das árvores, da fauna, da flora. [...] O
art. 23, inc. VII, estabelece a competência comum, e a todos os entes políticos cabe
cumprir o dever de preservar o meio ambiente [...]”.44
42 ALMEIDA, 2000. p. 162.
43 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Competências administrativas dos estados e municípios. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 207, p. 5, jan./mar. 1997.
44 FREITAS, Vladimir Passos de. A constituição federal e a efetividade das normas ambientais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 77.
200
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Idênticas são as conclusões de Paulo Affonso Leme Machado, salientadas por
William Freire:
A Constituição Federal foi clara ao atribuir indistintamente à
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a competência para ‘proteger o meio ambiente e combater a poluição em
qualquer de suas formas’e de ‘preservar as florestas, a fauna e a
flora’ (art. 23, incisos VI e VII). Adequado interpretar-se que qualquer dos entes públicos mencionados tem competência para aplicar a legislação ambiental, ainda que essa legislação não tenha
sido da autoria do ente público que a aplica.45
Também Vladimir de Passos Freitas, buscando apoio em Vitta, sustenta que, em
matéria de interpretação de norma constitucional ambiental, deve-se optar pela que
mais favoreça o meio ambiente. Nesse contexto, assevera que o art. 23 da Constituição
vigente tem eficácia plena, prescindindo de norma infraconstitucional que o regule. A
lei complementar a que se refere o parágrafo único daquele preceito, assim, apenas viria a indicar a maneira pela qual se daria cooperação entre as entidades”46.
Nessa ordem de idéias, alerta Luís Roberto Barroso que “as normas constitucionais sobre o meio ambiente devem ser interpretadas sob a perspectiva de sua efetividade, dando-se-lhes, em toda a extensão e profundidade possíveis, aplicação direta e imediata para tutela das situações que contemplam”47.
Por esse prisma hermenêutico, confere-se a almejada efetividade às normas constitucionais que atribuem competência a todos os entes da Federação para o exercício do
poder de polícia ambiental, quando se reconhece a possibilidade de sua atuação concomitante.
Fica manifesta, portanto, a competência da União para a instituição de taxa que tenha por hipótese de incidência a prática de ato de polícia ambiental, no exercício do poder que lhe reconhece a Constituição de 1988, e cujos delineamentos gerais são encontrados na Lei nº 6.938/1981, que disciplina a política nacional de defesa do meio ambiente. Nesse diploma, corporificam-se, pois, as normas gerais a que alude o art. 24, § 1º, da
Constituição de 1988, como ensina José Afonso da Silva: “à União resta uma posição de
supremacia no que tange à proteção ambiental. A ela incumbe a política geral do meio
ambiente, o que já foi materializado pela Lei nº 6.938/1981”.48
45 MACHADO, Paulo Affonso Leme. O Município e o direito ambiental. Revista Forense, v. 317, p. 189, apud FREIRE, William. Direito ambiental brasileiro. Rio de Janeiro: Aide, 1998. p. 45.
46 FREITAS, 2000, p. 79.
47 ARROSO, Luís Roberto. A proteção do meio ambiente na constituição brasileira. Revista Forense, Rio de Janeiro,
v. 317, p. 177, jan/mar., 1992.
48 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 49.
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A União tem competência, portanto, para instituir taxas pelo exercício do poder de polícia cometido por aquele diploma ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA. Como já vimos, quando do exame do
aspecto material da hipótese de incidência da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA, ao longo da Lei nº 6.938/1981 encontram-se disciplinadas diversas
tarefas estatais de defesa do meio ambiente e de controle da poluição, como aquelas previstas em seus arts. 6º, IV, 8º, I, 10, caput e §§ 3º e 4º, 11, 17, II, 17-L.
Alguns dispositivos explicitam atos de polícia que devem ser praticados exclusivamente pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA –, enquanto outros prevêem diversas atuações em caráter supletivo à
ação dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. A correta inteligência a ser
fixada acerca da expressão em caráter supletivo, neste último caso, é importante registrar, é aquela que leve em conta a convocação constitucional à ação concertada
de todos os entes da Federação, norte axiológico que há de guiar o intérprete e aplicador do direito.
Não se cogita, portanto, de ação federal substitutiva, apenas para a hipótese
de ausência de atuação por parte dos demais entes, mas sim, de uma ação complementar, um somatório de esforços simultâneos nas tarefas de proteção aos recursos
ambientais e de combate à poluição, podendo cada pessoa política cobrar taxas pelo
poder de polícia que venha a exercer de modo individualizado.
Afastamos, pois, a tese de incompetência da União, assim como a de configuração de bitributação.
Sacha Calmon, desenvolvendo a idéia de que, na repartição constitucional do
poder de tributar, a competência para a instituição de taxas é comum, sustenta que
essa não dá azo a conflitos entre as pessoas políticas, ou, em suas precisas palavras,
“não redunda em promiscuidade impositiva”.49 A asserção se deve à circunstância de
a hipótese de incidência das taxas descrever, como fato gerador, uma atuação estatal, o que permite, conseqüentemente, identificar o ente político competente para
instituir o tributo – a pessoa política que prestar o serviço público ou executar o ato
de polícia que motiva sua cobrança.
O autor pondera que, no caso de contribuições de melhoria, quando duas ou
mais pessoas políticas realizam a obra pública beneficiadora, não há possibilidade de
superposição impositiva, resolvendo-se a questão pela repartição do produto da arrecadação entre elas, sem prejuízo para o contribuinte.50
A exemplo do que ocorre no caso da execução conjunta da obra pública, também no caso de serviços públicos concorrentes, de competência material comum,
não se verificará indevida bitributação, porquanto cada ente cobrará sua taxa proporcionalmente, na medida de sua atuação, que se desenvolverá paralelamente à
49 COÊLHO, 1999. p. 259.
50 COÊLHO, 1999. p. 259
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dos demais entes da Federação entres os quais a Constituição repartiu o encargo da
execução cumulativa de determinadas atribuições administrativas.
Moraes, sob a epígrafe de serviços públicos concorrentes, ocupou-se do tema,
também afastando o risco de conflitos de competência. É sua a seguinte a lição:
Pode ocorrer caso em que um mesmo contribuinte, por uma única atividade sua, fique sujeito a duas ou mais taxas. Duas ou mais
entidades tributantes podem exigir taxas de uma mesma pessoa,
por uma única atividade, pois o uso da competência tributária
por uma pessoa jurídica tributante não excluirá o da outra. [...] O
fato é de simples explicação: o fato gerador da obrigação relativa
à taxa é a atividade estatal (cada atividade estatal pode acarretar
a cobrança de uma taxa), e não a atividade do cidadão (esta não
faz nascer obrigação tributária relativa à taxa). No magistério de
Rubens Gomes de Sousa, a eventual sobreposição de taxas ‘não
cria maiores problemas, nem é, por definição, objetável, de vez
que cada um dos governos tributantes terá desempenhado o serviço, exercido a atividade. No mesmo sentido, já afirmou o Ministro
Thompson Flores: ‘em se tratando de taxa, não se aplica o princípio da bitributação’.51
Por tudo quanto foi exposto, compreende-se, pois, que a todos os entes da Federação – à União, aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal – foram cometidas, em caráter comum, as funções de preservação dos recursos ambientais e de
controle da poluição, tarefas suscetíveis de cumprimento mediante o exercício do
poder de polícia que lhes assiste. A esse ônus administrativo, corresponde, em contrapartida, o direito daquelas pessoas políticas de direito constitucional interno à arrecadação das respectivas taxas.
A União, por intermédio do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos
Naturais Renováveis – IBAMA –, exercerá as atividades inerentes ao poder de polícia que lhe reserva a Lei nº 6.938/1981, em caráter supletivo, no sentido de complementaredade, à fiscalização desenvolvida pelas demais unidades da Federação.
Essa índole complementar da atuação da autarquia federal é evidenciada pelo
art. 2º da Lei nº 10.165/2000, que, introduzindo o art. 17-P na Lei nº 6.938/1981, assim dispôs:
Art. 2o A Lei no 6.938, de 1981, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos:
51 MORAES, 1996. v. 1, p. 539.
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‘Art. 17-P. Constitui crédito para compensação com o valor devido
a título de TCFA, até o limite de sessenta por cento e relativamente
ao mesmo ano, o montante efetivamente pago pelo estabelecimento ao Estado, ao Município e ao Distrito Federal em razão de taxa
de fiscalização ambiental’.
O intuito do legislador, como se percebe, foi o de instituir um mecanismo que
permita graduar a taxa devida ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos
Naturais Renováveis – IBAMA –, em face da atuação dos demais entes. Assim, na hipótese de omissão das ordens estaduais e municipais, maior será a demanda de
atuação federal, que, por isso, embolsará integralmente o valor da Taxa de Controle
e Fiscalização Ambiental – TCFA. Diversamente, se houver exercício de poder de polícia por aquelas esferas, a atividade da autarquia será menos requisitada, e o valor
daquele tributo federal poderá ser compensado com as taxas já cobradas pelos Estados, pelos Municípios e pelo Distrito Federal, nos termos da lei.
4
CONCLUSÃO
Pensamos haver demonstrado que a Lei nº 10.165/2000, diploma que criou a
Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA –, em substituição à antiga Taxa de
Fiscalização Ambiental – TFA –, guardou obediência às limitações ao poder de tributar
inscritas na Constituição de 1988, assim como em nosso Código Nacional Tributário,
não padecendo dos vícios formais e materiais de que tem sido increpada.
Diferentemente da Lei nº 9.960/2000, que instituiu a antiga Taxa de Fiscalização
Ambiental –TFA –, a Lei nº 10.165/2000 criou autêntica taxa, com aspecto material típico dessa espécie tributária, natureza jurídica que é confirmada pelos critérios quantitativos postos pelo legislador no conseqüente da respectiva regra-matriz de incidência,
não se verificando qualquer contrariedade às vedações insculpidas no art. 145, § 2º, da
Carta vigente ou no art. 77, parágrafo único, do Código Tributário Nacional.
No que respeita à definição dos sujeitos passivos da nova taxa, a mácula de ofensa ao princípio da legalidade apurada na Lei nº 9.960/2000 foi devidamente sanada, visto que a Lei nº 10.165/2000 hoje traz a explícita previsão dos contribuintes da Taxa de
Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA.
Cremos, ainda, haver demonstrado a inconsistência das teses de incompetência
da União para a criação do gravame e de caracterização de indevida bitributação, por
se tratar de taxa que tem por fato gerador o exercício do poder de polícia ambiental,
competência material comum, repartida entre todas as esferas da Federação.
Registramos, por fim, o questionamento da constitucionalidade da Lei nº
10.165/2000 perante o Supremo Tribunal Federal, onde a Confederação Nacional da
Indústria – CNI –, a Confederação Nacional do Comércio – CNC – e a Confederação Nacional do Transporte – CNT – aforaram as Ações Diretas de Inconstituciona-
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faculdade de direito de bauru
lidade nºs 2.422-1/DF, 2.423-0/DF e 2.451-5/DF, respectivamente, às quais o Relator,
o Ministro Celso de Mello, negou trânsito.
As ações não foram conhecidas, em razão do acolhimento da preliminar de
“ausência de impugnação global do complexo normativo”, suscitada pelo AdvogadoGeral da União.
Nas decisões monocráticas que negaram seguimento às ações, o Ministro Relator salientou que o objeto de seus pedidos de declaração de inconstitucionalidade consistiria em dispositivos da Lei nº 10.165/2000 que se acham intimamente relacionados a outras normas do sistema, as quais, no entanto, não foram vergastadas
nas petições iniciais. Invocando precedentes da Corte Suprema, vincou que, no controle abstrato de constitucionalidade, é defesa a indicação e a hostilização tópica de
prescrições legislativas, pelo fato de estas, por integrarem a totalidade do sistema,
não admitirem impugnações isoladas, sob pena de comprometimento da unidade
orgânica, sistêmica, do ordenamento jurídico.
Naquelas decisões, ficou assentado caber ao autor da ação direta, ao postular
a declaração de inconstitucionalidade, “abranger todas as regras unidas pelo vínculo de conexão, sob pena de, em não o fazendo, tornar inviável a própria instauração
do controle concentrado de constitucionalidade”:
É que, nessa situação de mútua dependência normativa, em que
as regras estatais interagem umas com as outras, condicionandose, reciprocamente, em sua aplicabilidade e eficácia, revela-se incabível a impugnação tópica ou fragmentária de apenas algumas
dessas normas. E a razão é uma só: em um contexto no qual se destaque um complexo normativo indecomponível, que seja somente
capaz de atuar in solidum, vale dizer, quando presentes e eficazes
todos os preceitos que nele se acham incorporados, qualificandose, em tal situação, como uma verdadeira e incindível unidade estrutural, mostra-se inviável proceder, em sede de controle abstrato, a um questionamento seletivo de determinadas prescrições,
pelo fato de estas, por integrarem a totalidade do sistema, não admitirem impugnações isoladas, sob pena de completa desarticulação e desagregação do próprio sistema normativo a que se acham
incorporadas, o que culminaria, até mesmo, por viabilizar, por
parte do órgão investido de jurisdição constitucional, uma inadmissível reelaboração da própria lei, o que afrontaria, gravemente, o postulado constitucional da separação de poderes” (decisão
proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.422-1/DF).
Manifestado o entendimento do Supremo Tribunal Federal pela inadmissibilidade da declaração de inconstitucionalidade de dispositivos legais isolados, por
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comprometimento da unidade do sistema jurídico, e ressaltada a impossibilidade do
exercício ex officio da jurisdição, para incluir, no objeto das ações, outras normas indissoluvelmente ligadas às impugnadas, mas não suscitadas pelo requerente, silenciou-se nossa Corte Constitucional acerca do mérito das questões aqui abordadas.
Para conhecer o posicionamento definitivo dos guardiões da constitucionalidade de nossas leis, portanto, deveremos aguardar o ajuizamento de novas ações diretas, em que se sanem os vícios que obstaram o conhecimento dos feitos citados,
ou a ascensão, àquela Corte, das diversas demandas em que o tributo vem sendo
questionado pela via de exceção. Afastada a possibilidade do controle in these, esperemos, pois, pelo julgamento dos recursos extraordinários que se alçarão, futuramente, àquele Tribunal.
5
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A TRIBUTAÇÃO DAS OPERAÇÕES REALIZADAS
POR MEIO ELETRÔNICO
Ivan Lira de Carvalho
Juiz Federal.
Professor da UFRN.
Doutorando em Direito (UFPE).
1.
INTRODUÇÃO
A divisão da linha da história da humanidade em idades (Idade Antiga, Idade
Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea), decerto terá que ser alterada, com
o acréscimo de uma nova faixa, correspondente à inserção da Internet nas relações
sociais e institucionais das pessoas, notadamente com o boom dessa via de comunicação, operada nos últimos cinco anos do século vinte. Conceitos e condutas foram
revistos, valores foram totalmente reformulados, numa autêntica revisão radical em
costumes e práticas, inclusive no campo dos negócios.
Assim, pode ser dito que a Internet colocou de bruços, também, conceitos e
práticas jurídicas, inclusive os pertinentes ao Direito Tributário. Sim, pois em razão
da difusão, em escala crescente, do comércio eletrônico (popularizado pelo anglicismo e-commerce) e da prestação de serviços on-line, adveio uma pletora de questionamentos acerca da possibilidade (ou não) de o Estado tributar ditas atividades.
E é justamente sobre alguns desses problemas que tratará o presente ensaio.
É de ser considerado, sob a lente dessa revolução, um ponto deveras sensível
do sistema estatal, que é o chamado poder tributário, cuja noção apresenta um profundo teor das manifestações próprias da soberania do Estado. E não se fala aqui de
qualquer manifestação, mas de uma das suas mais preclaras e necessárias, pois é cer-
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to que o Estado moderno (isto é, o Estado capitalista) deposita nesse poder sua
principal fonte de manutenção, para a sua organização e exercício das atividades públicas irrenunciáveis, resolvendo e executando funções e serviços de ordem e de extensão várias.
Esse poder tributário se encontra tradicionalmente ligado à noção de jurisdição e, por sua vez, esta última tem permanecido vinculada, também por tradição, à
noção de território nacional. Entretanto, o comércio eletrônico, como tudo que
transcorre via Internet, não tem necessária amarração a um território determinado,
nem dá demasiada atenção aos limites políticos e geográficos demarcadores das
fronteiras nacionais.
Assim, da mesma forma que a atividade empresarial foi levada a adotar posturas e conceitos diferentes nos seus ofícios, a partir da implementação do e-commerce, também o Estado deve estar alertar para as novas formas de exercício da sua potestade tributária, sob pena de vê-la minguar sensivelmente.
É, pois, um dos mais destacados objetos deste estudo, a tentativa de levantar
alguns pontos acerca de como o Estado pode participar dessa nova realidade, qual
seja a das operações realizadas via Internet, potencialmente geradoras de tributos.
2.
O COMÉRCIO ELETRÔNICO COMO OBJETO DA TRIBUTAÇÃO
2.1. Princípios que devem orientar a tributação das operações realizadas via Internet
Qualquer ramo do conhecimento científico, para garantir respeito e utilidade
às suas proposições, necessita ostentar uma razoável coleção de princípios, base sobre a qual são desenvolvidas todas as atividades de cunho investigativo do específico segmento. Acerca da força dos princípios, diz Ronaldo Poletti que estes são “certos enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais asserções que compõem dado campo do sabe1”.
Pois no ainda incipiente campo da tributação do comércio eletrônico, apresenta-se um rol de princípios, os quais sem dúvida hão que ser somados aos princípios gerais do Direito e mais especificamente aos princípios do Direito Tributário,
visando a dar crédito e utilidade aos fins propostos por essa atividade arrecadadora
estatal.
A sedimentação de uma razoável carta de princípios norteadores da tributação
ora em estudo tem sido preocupação de entes estatais e de entidades não-governamentais, a exemplo do Center for Strategic & International Studies (CSIS), tradicional instituição pública norte-americana, dedicada à pesquisa e à análise do impacto
1 POLETTI, Ronaldo. Introdução ao Direito. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 285.
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da tecnologia da informação na sociedade e na estrutura do Estado, que no contexto do seu projeto Global Information Infrastructure Comisson (GIIC) publicou importante documento, sob o título E-commerce taxation principles: a GIIC perspective, analisando os postulados a seguir destacados.
O primeiro deles, nominado nos circuitos acadêmicos como princípio da neutralidade, indica que deve o Estado abster-se de criar novos impostos ou taxas exclusivamente para o comércio eletrônico. Em complemento, entende o CSIS, através
do GIIC, que a necessária e imprescindível tributação incidente sobre operações
empresariais realizadas com o intermédio da Internet não deve ter por base o número de bits transmitidos ou descarregados (downloaded)2.
Como uma espécie de sub-princípio ou de postulado decorrente da neutralidade, Francisco A. Laguna3 destaca a posição da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), segundo a qual o comércio eletrônico não deve ser
submetido a impostos adicionais discriminatórios ou não eqüitativos, estabelecendo,
assim, uma cláusula impeditiva de bi-tributação. Ainda sobre a vedação de dupla tributação, é posição assumida pelo CSIS, no GIIC, de que esta deve ser evitada, sob pena
de se inibir o desenvolvimento do comércio eletrônico, devendo ser eliminados os riscos de que o usuário da Internet seja alvo de múltipla taxação, o que poderá ser feito
se forem adotadas definições, conceitos e termos consistentes.
Outro princípio é o da eficiência, segundo o qual os custos administrativos
para a imposição, a fiscalização e a arrecadação dos tributos incidentes sobre as operações on-line devem ser pautados no mais baixo nível possível, de sorte a não implicar uma desnecessária elevação dos custos para que as empresas cumpram regularmente a legislação tributária pertinente. Nesta linha de raciocínio, não devem os
Estados lucubrarem engenhosos artifícios de ampliar os seus recursos através do filão comércio eletrônico, restando indene à tentação de criar tributos específicos
para o e-commerce. Se não atentarem para essas linhas de conduta política, os Estados poderão impor severos reveses ao desenvolvimento empresarial tecnológico,
afastando investidores e mutilando, na gênese, um florescente caminho de crescimento das atividades mercantis.
Na rota do princípio da eficiência, está também o da flexibilidade. Assim, é
preciso que os regimes fiscais sejam maleáveis e abertos às evoluções das regras de
mercado e do avanço da tecnologia, cumprindo o papel extrafiscal de fomentar novos negócios.
2 Conferir Uncitral model law on eletronic commerce with guide to enactment 1996 (Lei modelo da UNCITRAL sobre comércio eletrônico :1996: com guia para sua incorporação ao direito interno), http://www.mct.gov.br/temas/info/palestras/legisla%C3%A7%C3%A3o.pdf., disponível na internet [12.04.2002].
3 LAGUNA, Francisco A. Tributação sobre consumo, vendas e uso no comércio eletrônico. in SILVA JÚNIOR, Ronaldo Lemos da e WAISBERG, Ivo (Org). Comércio Eletrônico. São Paulo: Instituto dos Advogados de São Paulo e Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 40.
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Mais um princípio que se pode apontar no seio da tributação dos negócios
eletrônicos é o da autonomia relativa desses tratos empresariais ou envolventes de
empresas e consumidores. Com efeito, desde a consolidação da grande rede mundial de computadores, situado cronologicamente no Brasil em meados dos anos noventas, têm se manifestado infrutíferas as tentativas de regulamentação oficial e hermética das relações sociais (aí incluídas as comerciais) travadas via Internet. Essa
constatação de saudável ultima ratio do Estado não pode ser esquecida quando da
análise da tributação das operações realizadas por esse avançado meio da tecnologia da informação. Assim, é recomendável que os governos respeitem a liberdade
das empresas, dos usuários e dos fornecedores, para que estes discutam e regulem
questões como segurança, privacidade, interoperabilidade e verificação e autenticação das transações via Internet, somente intervindo em casos extremos, a exemplo
da tipificação criminal de condutas absolutamente intoleráveis, inclusive no meio
administrativo e tributário. É oportuna a advertência que não está sendo aqui feita
uma apologia ao lassez faire ou ao absenteísmo desmesurado do Estado em matéria de tributação. Estimula-se, é verdade, a conjuminância dos primados da necessidade e da moderação.
De acordo com o princípio da certeza, as regras tributárias incidentes sobre
as operações eletrônicas devem ser lavradas com o máximo de clareza, de sorte a
permitir que as pessoas (físicas ou coletivas) possam entender, sem desvios ou
maiores dificuldades, as obrigações às quais estão sujeitas, cumprindo-as com um
baixo (ou inexistente) índice de inadimplência. Esse princípio, decorrente próximo
do princípio da legalidade tributária, tem gênese no Direito Penal, onde é estudado sob o nome jurídico de princípio da lex certa ou princípio da determinação taxativa, que já constava do rol de cláusulas garantistas integrantes do opúsculo Dos
delitos e das penas, do Marquês de Beccaria4.
Rotulado pelo binômio eficácia e justeza, tem-se o princípio segundo o qual o
efetivo empenho do Estado na cobrança de tributos deve ser voltado para a arrecadação de receitas necessárias e suficientes para o custeio das atividades oficiais típi4 A propósito do manejo de princípios penais no trato de outras áreas do Direito, valiosa é a contribuição de Edilson Pereira Nobre Júnior: “Não se duvida que crime ou delito e infração administrativa são entidades distintas em
sua essência. Prova disso, vários critérios foram sugeridos pela doutrina para diferençá-las, dos quais sobressai o de
adorno prático, formulado por GUIDO ZANOBINI, no sentido de que a infração administrativa não integra o Direito Penal, porque a responsabilização do infrator não é tornada concreta pela função jurisdicional, mas pelo Estado
no desempenho de uma competência administrativa. (...) Essa distinção ontológica, no entanto, não pode olvidar
que, tanto no ilícito criminal como no administrativo, está-se ante situação ensejadora da manifestação punitiva do
Estado. Segue-se, em linha de princípio, nada haver a obstar, antes a recomendar, serem os postulados retores da
aplicação das punições criminais, cuja sistematização doutrinária e legislativa é bem anterior à ordenação das sanções administrativas, a estas aplicáveis. Há necessidade, porém, de restarem sempre consideradas as peculiaridades
das últimas.” (Sanções administrativas e princípios de direito penal, disponível na internet: www.jfrn.gov.br/doutrin1.htm, [01.08.2000].
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cas, devendo ser residual a missão sancionadora e extrafiscal dos tributos, a exemplo de multas ou outras penalidades por descumprimento das regras jurídicas pertinentes.
Também pode ser apontado como princípio reitor da tributação em análise, o
chamado princípio geral da territorialidade, definidor da competência de quem
pode e deve cobrar o tributo, pois, segundo o GIIC5, é ele eficaz, seguro, simples e
neutro, devendo ser ressalvado, no entanto, que “é possível que o princípio da tributação em razão do local de consumo seja mais difícil de ser implementado que o
princípio da tributação na origem do fornecimento do bem ou serviço”.
Mesmo que enfrentando discutibilidade acerca dos conceitos escolhidos, o
GIIC6 aponta como princípio ou critério inominado da tributação incidente sobre
operações on-line, o de que o fornecimento e o comércio de produtos em forma
digital “como livros, software, imagem, música ou informação devem ser tratados
como fornecimento de serviços, não como fornecimentos de produtos ou coisas
tangíveis.”.
2.2. O conceito de comércio eletrônico
Nesta quadra do trabalho, imperioso se faz um esboço do que pode ser considerado comércio eletrônico, para encarte no tema de tributação das operações online. Seria apenas uma operação de mercancia, esteiada nas milenares regras de comércio, apenas realizada através da moderna via da Internet? Ou seria um novo paradigma negocial, totalmente isolado das experiências anteriores? Haveria, ao invés
do radicalismo dos extremos, uma posição terciária onde fossem contemplados elementos das duas afirmativas antes esboçadas? Parece que a última indagação encontra resposta positiva, máxime diante da constatação de que o universo negocial estudado labuta com operações comerciais que prescindem de indicativo seguro do
local de origem e do destino final do trato e das suas conseqüências jurídicas e materiais.
Assim, pode ser arriscado um conceito de comércio eletrônico como sendo o
complexo de transações comerciais e financeiras levadas a efeito por intermédio do
processamento e da transmissão de informações, aí incluídos textos, sons e imagens, sendo que essas informações podem constituir, por si somente, o objeto primacial da transação ou apenas um acessório desta.
Inserido no campo das relações sociais que são levadas a cabo através dos
meios informáticos, o comércio eletrônico ganhou a rotulação universal de e-commerce e pode ser dividido, para fins operacionais ou didáticos em:
5 op.cit.
6 op.cit.
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a) ajustes celebrados entre empresas, em operações conhecidas pela sigla
B2B (business-to-business), nos quais as empresas podem atuar como
usuárias, é dizer, como vendedoras ou compradoras, ou como provedoras
de meios ou de serviços de Internet para o comércio eletrônico, a exemplo das empresas provedoras (American On Line, Terra etc.) ou das instituições financeiras;
b) vendas diretamente das empresas aos consumidores, formando o B2C (business-to-consumers), em operação na qual as empresas vendem os seus
bens ou serviços diretamente ao destinatário final, através de um site web.
Outra divisão possível trata o comércio eletrônico como direto ou indireto,
nos termos da opinião do professor italiano Cristiano Gambarini7, que pode assim
ser sintetizada:
a) comércio direto – é aquele onde o pedido, o pagamento e o envio de bens
intangíveis ou de serviços, realiza-se integralmente por meio da web, a
exemplo do que ocorre com a venda dos softwares ou da prestação de
consultoria;
b) comércio indireto – neste, apesar de os atos negociais serem celebrados
com o intermédio da Internet, a distribuição ou a entrega dos bens ou serviços são ultimadas por vias convencionais, a exemplo do meio postal ou
do transporte aéreo, ferroviário, rodoviário, náutico etc.
Assim, tem-se um retrato da relativa complexidade do tipo de comércio objeto desta análise, que guarda forte identidade com as formas tradicionais de mercancia, a exemplo das vendas telefônicas e daquelas realizadas com a utilização de catálogos de produtos e preços.
2.3. A expansão do comércio eletrônico e o seu posicionamento no
contexto econômico no Brasil e no Mundo
A expansão dos negócios travados via eletrônica é contemporânea da discutível globalização da economia. É possível que exista um forte elo entre estes dois fenômenos de mercancia e serviços, muito embora não possa ser atribuída à Internet
a exclusividade dos efeitos deletérios da mundialização da economia, posto que esta
foi arcabouçada através de um projeto político bem mais ambicioso, que tomou por
base e por finalidade a elegia à livre iniciativa (a doutrina neoliberal), coincidente
7 GAMBARINI, Cristiano. Profili impositivi delle operazioni di commercio eletronico, disponível na internet:
www.uckmar.com.br/next/gambarini.htm [23.o4.02].
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com a derrocada do poderio da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas,
no limiar dos anos noventas do século passado. Mas o inegável é que os novos paradigmas de trabalho e de circulação de riquezas inseridos na sociedade hodierna
pela Internet constituirem excelente cartão de visitas para a doutrina do novo liberalismo. Assim, por exemplo, quando um operário especializado é despedido de
uma indústria de mecânica fina, posto que o seu lugar foi ocupado por um robô, fica
mais fácil para o setor de recursos humanos da fábrica animá-lo a estabelecer o seu
próprio negócio solitário de terceirização de serviços, a partir de um microcomputador doméstico, do que ocorria nos anos sessentas ou setentas do século vinte,
época em que uma cruzada de piedade e de indignação universal encaminharia o
novo desempregado para as ligas de protesto ou para a miséria, muitas vezes temperada pelo alcoolismo ou pela criminalidade patrimonial.
A constatação de que muitos tipos de negócios firmados pela via eletrônica
alimenta a doutrina neoliberal, pode ser medida com os números que organismos
estatais ou não-governamentais apresentam acerca do volume de transações levado
a efeito por intermédio do mencionado caminho. Só a título de exemplo, são reproduzidos nesta quadra do ensaio informações divulgadas no site da Receita Federal8,
para onde são dirigidos os créditos e as responsabilidades pelos dados a seguir reproduzidos, registrando-se, por ser de justiça, a advertência ali contida, de que a dinâmica “e a crescente importância do comércio eletrônico é bem documentada na
imprensa internacional. O volume das operações, no entanto, carece de uma estimação precisa e confiável”. Eis a síntese:
• As previsões acerca do volume das operações do comércio eletrônico por
ano variam de vinte a cento e cinqüenta por cento.
• A maioria das empresas que realizam pesquisas do tipo acima referidas toma por base o tráfego na Internet e não as vendas efetivamente efetuadas,
sendo necessário lembrar que a maioria dos acessos implica mera consulta
e não em negócios realmente concretizados.
• A empresa Boston Consulting Group estima em duzentos e quinze milhões
de dólares o volume de negócios do tipo B2C (venda ao consumidor) realizado na América Latina em 2000. O Brasil é responsável por oitenta por
cento desse universo, num montante de cento e setenta milhões de vendas
on-line, projetando-se um crescimento para dois bilhões e seiscentos e
quarenta milhões para 2003.
• Edge Group, firma de consultoria, dá conta que o comércio eletrônico teve
faturame0nto de duzentos milhões de dólares no Brasil, no ano de 1999, e
em três anos esse movimento irá para a casa dos quatro bilhões de dólares.
8 Disponível na internet: www.receita.fazenda.gov.br [03.05.2002].
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faculdade de direito de bauru
• A International Data Corporation, consultora norte-americana, avalia que
o e-commerce movimentou quatrocentos e quarenta e nove milhões de
dólares no Brasil durante o ano 2000.
• Para a Fundação Getúlio Vargas, o comércio eletrônico envolveu, em 2000,
no Brasil, 0,43% do mercado total B2B e 0,16% dos negócios B2C, ficando
patente que o maior potencial de crescimento do e-commerce está no segmento dos negócios interempresariais, já que as vendas empresa-consumidor dificilmente ultrapassarão 10% do total das vendas varejistas tradicionais.
• O site B2B Mercado Eletrônico, por seu diretor Márcio Mansur, afirma que
o B2B totalizou, no Brasil, três bilhões e trezentos milhões de dólares em
2000, sendo possível o seu crescimento para setenta e seis bilhões de dólares em 2004.
• Nos Estados Unidos, as vendas B2C foram estimadas por R. Josten, com relação a 1998, em sete bilhões e oitocentos milhões de dólares com previsão de cento e oito bilhões para 2003.
• O movimento do e-commerce no Mundo variou de cem bilhões a quinhentos bilhões de dólares em 2000, segundo a Forrester Research, que prevê
um movimento universal entre um trilhão e quatrocentos milhões e três
trilhões e duzentos milhões de dólares, para o ano de 2003.
A disparidade dos números, em favor do B2B, pode ser explicada pela incerteza que o consumidor final e singular ainda detém em relação aos negócios celebrados pela via virtual.
Austan Goolsbee9, economista e pesquisador da Universidade de Chicago, dá
conta que durante o ano de 1998 o governo dos Estados Unidos deixou de arrecadar quatrocentos e trinta milhões de dólares em impostos, dentre estes a maior parte correspondente a taxas estaduais (símiles do ICMS brasileiro), em razão da inércia tributária frente ao comércio eletrônico, prevendo ainda uma situação mais preocupante, pois, segundo a empresa de pesquisas Forrester Research, as vendas online nos EUA crescerão, até 2003, cerca de setenta por cento.
Tem-se, pois, um inequívoco crescimento das operações eletrônicas no panorama econômico mundial, com inescondível prevalência, atual, dos tratos entre empresas, mas sem poder ser desconsiderada uma alvissareira ampliação do B2C advinda, principalmente, da ruptura de vários preconceitos negociais ainda existentes em
relação às compras virtuais, superação esta que pode (e possivelmente será) conseguida com a consolidação de uma ética empresarial forte para a área, onde a fidúcia
é e crescerá como elemento preponderante. Paradoxalmente, numa sociedade mes-
9 GOOLSBEE, Austan. Revista EXAME. Editora Abril. 28.ago.2002. p. 14.
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clada pelo “Admirável mundo novo” idealizado por Aldous Huxley, a firmação dos
cyber negócios terá como fortíssimo esteio insumos que foram cruciais para os tratos fechados na base do fio de bigode, prática bastante difundida no Brasil colonial
e na Velha República: a palavra e a honradez.
2.4. De como reage a tributação, frente ao comércio eletrônico
É inescondível a antipatia que a sociedade nutre sobre a imposição e a cobrança de tributos. Tanto que historicamente a figura do agente arrecadador é repulsada por particulares ou empreendedores e a lei que institui tributos sempre é tida,
pelo potencial pagador, como uma norma de recusa social. Com efeito, por mais
que o contribuinte acredite que o governante vai dar bom uso à riqueza arrecadada,
ainda paga o tributo sob protesto e deseja, sinceramente, ver a sua quota de contribuição diminuída ou extinta.
Assim, decorrência psicológica dessa aversão coletiva ao pagamento de tributos é que, tanto o contribuinte direto como substituto tributário criam os embaraços possíveis para que a máquina arrecadadora estatal não funcione a contento. Mas,
mesmo debaixo dessa aura de indesejabilidade, o contribuinte – digamos – real é
compelido pela cogência das leis a dispor das informações que lhe forem solicitadas
pelos agentes da administração tributária.
Já diante da realidade do e-commerce as dificuldades aumentam, especialmente no que diz respeito aos registros das operações, que podem ser escamoteados através de manobras tecnológicas. A fraude tem campo fértil no mundo da informática, sendo necessária a adoção de medidas de fiscalização mais compatíveis
com as facilidades do comércio on-line.
O baixo índice de intermediação varejista nas operações de e-commerce pode
significar um entrave à fiscalização e à arrecadação de tributos, tanto os incidentes
sobre vendas e serviços, como os de renda.
Deve ser lembrado que são os varejistas os responsáveis pela retenção e pelo
recolhimento de muitos dos impostos aqui referidos (ISS, ICMS, IR etc.). E aí é que
são postos os desafios ao Estados, para melhor aparelhamento da sua máquina de
tributação, fiscalização e arrecadação.
3.
PROVEDOR: INSUMO IMPRESCINDÍVEL PARA OS NEGÓCIOS DO
MUNDO WEB E AS PERSPECTIVAS DA TRIBUTAÇÃO SOBRE ELE INCIDENTE. NATUREZA JURÍDICA DO SERVIÇO PRESTADO, PARA
FINS DE TRIBUTAÇÃO
O provedor de acesso é o instrumento através do qual a clientela web ingressa no mundo da Internet. Configura, em primeiro olhar, uma espécie de clube virtual, através do qual pessoas (físicas ou jurídicas) idealmente se reúnem, a partir daí
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ingressando no espaço etéreo da rede mundial de computadores. Assim visto, pode
ser considerado um mero suporte técnico para permitir a conexão entre os interessados, via Internet. Mas, a exemplo do que acontece com os clubes existentes no
ambiente convencional, os provedores geralmente agregam ao seu mister original
uma gama infinita de prestação de serviços, que vão desde a publicidade veiculada
nos seus portais (banners etc.) até a intermediação de negócios ou a realização de
consultoria on-line, passando pela divulgação de músicas ou de outras mídias.
Mas, visto que as atividades desenvolvidas por um provedor não estão limitadas apenas a patrocinar a conexão de pessoas à Internet, e tomando-se em conta a necessidade de tributação de todos os meios de movimentação de riquezas
ou de serviços, qual seria a natureza jurídica da atuação dos provedores, para fins
de exação? Para Gilberto Luiz do Amaral10, está lançada a dúvida, firmada entre os
chamados serviços de qualquer natureza (prevendo incidência de imposto sobre
serviços – ISS) e os serviços de comunicação (desafiando o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços – ICMS), explicando que apesar da dissensão
doutrinária existente,
“a corrente majoritária é de que se trata de serviços taxados pelo
ISS, inclusive com precedentes jurisprudenciais. Mas o problema
não se encerra aí, pois daí vem a questão do local da prestação do
serviço (recentemente o STJ pacificou que o ISS é devido no local
da prestação do serviço, independentemente do local do estabelecimento do prestador)”.
Entretanto, o assunto não é tão singelo como aparenta ser, notadamente pela
distinção dos entes tributantes, ocupantes de faixas autônomas na organização do
Estado, é dizer, os Estados-membros e os Municípios. Mesmo que a análise tenha
por paradigma um provedor de acesso que tenha nesse mister a sua única atividade
(não servindo de portal de propaganda ou de realização de pesquisas etc.), as dificuldades não são apoucadas, como será visto a seguir.
Do ponto de vista técnico há o questionamento acerca do fato de o provedor
prestar um serviço de comunicação ou de prestar um mero serviço, em sentido estrito. E o esclarecimento desta dúvida é de fundamental importância para a incidência da tributação, já que a competência para instituir impostos sobre a comunicação
é conferida aos Estados e ao Distrito Federal, conforme está lançado na Constituição Federal. Já a tributação incidente sobre a prestação de serviços (sem a especialidade de comunicação, como acima destacado) está englobada, também por imperativo constitucional, na competência dos Municípios.
10 AMARAL, Gilberto Luiz. Internet e tributação, home page Estudos do IBPT, disponível na internet: www.tributarista.com.br/content/estudos/internet.html [02.06.2002].
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A propósito do tema, Fernando Facury Scaff11, concluindo pela inviabilidade
da cobrança do ICMS, em razão de o aspecto material da hipótese de incidência trazida na Constituição (art. 155, II) não estar presente no fato imponível realizado pelos provedores de acesso, afirma que estes não são prestadores de serviço de comunicação, pois, em verdade, assim não agem, sendo certo que a sua atividade
“consiste em disponibilizar um locus para que sejam conectadas
as linhas de acesso à Internet e conhecidos os conteúdos veiculados pela rede em qualquer parte do mundo. Está muito mais próximo do conceito de locação do que do de serviços”.
Ampliando a discussão sobre o assunto, não pode ser esquecido que a Lei nº
9.472, de 16 de julho de 1997, disciplinando a organização dos serviços de telecomunicação, cuidou de traçar um rol de conceitos úteis à aplicação da própria lei e
que servem também ao sistema juridico-tributário como um todo, dentre os quais
pré-traçando, no seu art. 61, a distinção entre serviço de telecomunicações e serviço de valor adicionado. Tem-se daí que o serviço de valor adicionado é a atividade
que ajunta a um serviço de comunicações novas utilidades relacionadas ao acesso às
redes de informática, cuidando de armazenamento, apresentação, movimentação
ou recuperação de informações, dando suporte ao serviço, mas sem confundir-se
com este.
Mais adiante, no § 1º do mencionado art. 61, da Lei 9.472/97, está consignado
que o serviço de valor adicionado não constitui serviços de telecomunicações, sendo o provedor de tal prestação um usuário daquele serviço (o de telecomunicações)
que lhe dá suporte. Usuário que é, o provedor tem direitos e deveres próprios dessa classificação.
A inserção do provedor como usuário, por força de lei, tem o condão de excluí-lo do rol dos prestadores de serviço de telecomunicação (diferentemente do
que ocorre, por exemplo, com as empresas de telefonia, atualmente atuando no
país sob o regime privatístico, sucedendo as paraestatais outrora reinantes no
ramo). Assim, localizados os provedores de acesso como tomadores dos serviços de
telecomunicação (e não – repita-se – como prestadores destes), é incontornável a
conclusão de que não existe a hipótese de incidência deflagradora da exigência de
recolhimento do ICMS, subsistindo, entretanto, as obrigações próprias de um consumidor final.
Mas, excluída a possibilidade de recolhimento do ICMS pela prestação do serviço típico de provedor de acesso, remanesce a exigibilidade do ISS sobre as operações, feitas pelo mesmo provedor, envolvendo conteúdo (ex: divulgação de ban11 SCAFF, Fernando Facury. O direito tributário das futuras gerações. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. Tributação na Internet. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais / Centro de Extensão Universitária, 2001. p. 415.
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ners propagandísticos, realização de pesquisas qualitativas etc.)? Ao que parece, há,
neste particular, um novo obstáculo de ordem legal a evitar a cobrança do referido
tributo municipal. Com efeito, para que as atividades dos provedores de conteúdo
sejam tributadas em ISS, necessária se faz a edição de lei complementar listando
essa atividade como deflagradora da exigência do imposto, conforme determina o
art. 156, § 3º, do Código Tributário Nacional. Aliás, olhando a questão sob o prisma
estritamente constitucional, lembra Celso Ribeiro Bastos12 o teor do art. 156, III, da
Carta Magna, exigente de lei complementar municipal para que seja formada a nominata dos serviços que servem à imposição tributária, e diz:
“Portanto, fica explícito que só são passíveis de incidência do ISS
aqueles serviços não abarcados pelo ICMS e que constem de lei
complementar. Nesse sentido, os servidores de acesso à Internet estão excluídos da incidência do ISS”.
Pelo que acima foi exposto, algumas conclusões podem ser adiantadas, dentre estas: a) impossível é a cobrança do ICMS em razão das atividades típicas do provedor de acesso, posto que não desenvolve ele um serviço de comunicação, mas sim
uma atividade empresarial que agrega novas utilidades à prestação da comunicação
stricto sensu; b) não é de todo desarrazoado o intento da cobrança do ISS sobre as
atividades do provedor de acesso, sendo necessário, entretanto, que lei complementar, editada em consonância com o regramento competencial previsto na Constituição Federal, elabore lista que contemple os serviços aqui comentados.
4.
IMUNIDADE OU ISENÇÃO TRIBUTÁRIA, EM RELAÇÃO ÀS OPERAÇÕES VIRTUAIS
Não bastassem as dúvidas que pairam sobre o correto enquadramento tributário das atividades realizadas via Internet, notadamente no que diz respeito ao papel dos provedores de acesso ou de conteúdo, outra questão não pode ficar indene
aos que ingressam na análise jurídica dessa moderna forma de interação e de negócios entre pessoas físicas e jurídicas. Fala-se aqui da possível imunidade beneficente
desse elo tão importante na realidade virtual, que é o provedor.
E não se diga que, uma vez sustentada a impossibilidade atual de cobrança do
ICMS ou do ISS em decorrência das atividades prestadas pelo provedor, estaria superada – por desnecessária - qualquer discussão acerca da possível imunidade tributária conferida a tal atividade. É de ser lembrado, por exemplo, que a maioria dos
provedores atuam de forma mista, ou seja, como meio de acesso dos contratantes
12 BASTOS, Celso Ribeiro. Tributação na Internet. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. Tributação na Internet. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais / Centro de Extensão Universitária, 2001. p. 75.
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à rede de computadores e como fornecedor de informações jornalísticas, empresariais, lúdicas, institucionais etc. Congregam, não raro, atividades de provedores de
acesso e provedores de conteúdo. E é justamente sobre este último viés que pode
ser deitada a controvérsia sobre o alcance da imunidade listada no art. 150, inciso
VI, “d”, da Constituição Federal.
Não pode ficar sem observação, nesta quadra da discussão, os argumentos de
política fiscal que são esgrimidos quando o assunto envolve arrecadação, pelo Estado, dos meios destinados ao custeio da máquina oficial. Assim, tanto em sede de
imunidade como no que toca à isenção, não são poucas as justificativas apresentadas para que o Estado não se porte como absenteísta em tributar e arrecadar em decorrência das atividades realizadas via Internet. Com efeito, por exemplo, é repetida a afirmação de que o crescimento das vendas on-line (ainda que abaixo do patamar que se projetava no final do século vinte), a isenção ou a imunidade tributária
dessas transações implicaria considerável erosão de receitas a ser suportada pelo Estado, pois os consumidores migrariam do comércio tradicional para a nova via, além
da possibilidade de esse mesmo comércio tradicional usar artifícios para se maquiar
de virtual, mirando obter as vantagens do esquecimento tributário. Ocorreria, nessa última hipótese, algo assemelhado ao que pode ser constatado em alguns segmentos do comércio varejista popular, onde tradicionais empresas de pequeno ou
médio porte optaram por fragmentar os seus estoques e vendedores através de bancas de camelô, fugindo da tributação e das obrigações sociais, num perigoso jogo de
conseqüências sociais nefastas ou pelo menos duvidosas. O mesmo ocorreu com setores da produção industrial, que migraram para a falácia da terceirização ou para o
disfarce da cooperativização, com mesmo fito.
Outro raciocínio que se desenvolve em prol da efetiva cobrança de tributos
sobre as operações on-line diz respeito ao chamado princípio da justiça tributária,
que diante da inação estatal poderia ser maculado. É que, nessa linha de argumentação, toma-se em conta que o perfil dos consumidores via Internet, especialmente
em países no estágio de desenvolvimento do Brasil, é formado por pessoas de renda mais elevada e com melhor padrão educacional. A imunidade ou a isenção implicaria retrocesso do ponto de vista distributivo, já que as pessoas menos aquinhoadas economicamente, sem acesso à Internet, arcariam com a quitação tributária indireta, em flagrante desatenção do já referido princípio da justiça tributária.
Do ponto de vista técnico, é possível que, se adotada claramente uma política de não tributação dos negócios praticados via Internet, acontecesse uma corrida
das empresas, no sentido de que as suas operações virtuais fossem formalmente separadas das operações convencionais, evitando assim qualquer incidência tributária
sobre os negócios on-line.
A argumentação em favor da tributação dos negócios eletrônicos passa pela
assertiva de que, no sistema tributário brasileiro, a natureza específica do tributo é
determinada pelo fato gerador da obrigação respectiva, sendo de relevância nenhu-
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ma, para qualificá-la, a denominação e demais características formais traçadas em lei,
bem como a destinação do produto da sua arrecadação. Assim, tem-se certo que a
prática do comércio por meio eletrônico não desnatura a compra e venda de bens
e serviços.
Apesar de todas as agruras enfrentadas pelo Estado para tributar as operações
on-line, já referidas no curso deste ensaio, destaca-se que do ponto de vista de política tributária a conduta omissiva neste particular implicaria resultados negativos, a
exemplo do enfraquecimento da soberania tributária do País. Outrossim, vulnerado
estaria o princípio da neutralidade tributária, segundo o qual a legislação pertinente a esse assunto deve ser neutra em relação à atividade econômica, posto que o
consumidor-contribuinte não deve ser levado a tomar decisão negocial diferente da
que tomaria em razão do fator tributário. Ou seja, o pagamento de um tributo não
pode ser o ponto fulcral da influência na decisão de um agente econômico, sendo
certo que a isenção do comércio eletrônico afetaria a neutralidade da tributação, já
que transações da mesma natureza seriam tributadas ou não, dependendo da maneira como fossem praticadas (via virtual ou real).
Outro argumento que milita pela cobrança de impostos sobre os negócios eletrônicos diz respeito à eqüidade da tributação, já que os contribuintes devem ser
chamados ao pagamento de tais exações na proporção da sua capacidade econômica. O valor de justeza aqui comentado deixaria de existir se o comércio via Internet
não fosse tributado, pois contribuintes com a mesma capacidade econômica, pelos
mesmos negócios, pagariam impostos quantitativamente diferentes, a depender da
via eleita para fazer a compra (real ou virtual). Assim, a competitividade de uma certa empresa no mercado seria aferida pela sua habilidade de vender os seus produtos ou serviços pela Internet, sendo a sua performance avaliada positiva ou negativamente na proporção dos negócios virtuais realizados e não pelos critérios éticos
e lógicos da produtividade com eficácia e eficiência.
5.
CONCLUSÕES
Ao término das análises desenvolvidas neste estudo, algumas conclusões podem ser alinhadas, como adiante se vê.
Assim, é certo ser dito que a Internet ingressou nas relações sociais como instrumento de união entre pessoas e interesses, causando reflexos, com muita rapidez, em áreas até de certa forma acomodadas aos padrões tradicionais, como é o
caso dos segmentos estatais responsáveis pela tributação e pela arrecadação. O chamado poder tributário está sendo constantemente desafiado a organizar-se de modo
a poder auferir riqueza decorrente das operações realizadas on-line e que configuram fatos geradores de impostos.
Sendo, como é, um instrumento essencial à prática de negócios via Internet,
o provedor de acesso ainda não conseguiu ser satisfatoriamente enquadrado para
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fins de tributação, posto que ainda perduram dúvidas acerca da natureza dos serviços por ele prestados (se de comunicação ou serviço stricto sensu, de sorte a definir a destinação dos impostos gerados por sua atuação (estaduais ou municipais).
Afigura-se como perigosa mácula ao poder tributante e à soberania do próprio
Estado a hipotética conduta retrativa deste, no campo da tributação, em relação às
operações realizadas via Internet. Destarte, desaconselhável, sobre todos os aspectos, a imunidade ou a isenção incidente sobre os negócios on-line.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Uncitral model law on eletronic commerce with guide to enactment 1996 (Lei modelo da
UNCITRAL sobre comércio eletrônico :1996: com guia para sua incorporação ao direito interno), http://www.mct.gov.br/temas/info/palestras/legisla%C3%A7%C3%A3o.pdf., disponível na internet [12.04.2002].
“A
PROBLEMÁTICA NA APLICAÇÃO DA INFORMATIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO, NO QUE DIZ RESPEITO À
PENHORA EM DINHEIRO JUNTO àS
AGÊNCIAS BANCÁRIAS”
PENHORA ON LINE
Paulo Cesar Gonçalves Valle
Advogado,
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional,
Mestrando em Direito Constitucional ITE/Bauru.
INTRODUÇÃO
No Direito Processual Civil, existem três espécies de processo. São eles: de
cognição, de execução e cautelar.
No processo de execução, o deslinde da ação é mais rápido do que nos outros
dois, pois nesse não há necessidade de se solucionar a lide e dar o direito a quem
ele pertence. O credor já possui o título executivo que é a prova de seu direito. Não
há nada para o juiz decidir, na execução; não precisa dizer ou não a quem possui o
direito, apenas aplicá-lo e executá-lo, tendo em vista a existência do título executivo.
Enquanto que no processo de cognição, o Juiz tem que descobrir a regra jurídica para aplicar ao fato concreto, na execução a regra jurídica está clara, consistindo apenas à função jurisdicional em executar tais regras, na medida exata para forçar o devedor a cumprir sua obrigação.
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Como ressalta o Professor José Miguel Garcia Medina,
“a execução forçada tem por finalidade a satisfação do direito do
credor, e não definição, para o caso concreto, do direito de uma
das partes. Isto é, não é objetivo da execução forçada determinar
quem tem razão1”.
E, ainda, na visão do doutrinador Humberto Theodoro Junior,
“enquanto no processo de conhecimento o juiz examina a lide
para descobrir e formular regra concreta que deve regular o caso,
no processo de execução, providência as operações práticas necessárias para efetivar o conteúdo daquela regra, para modificar os
fatos da realidade, de modo que se realize a coincidência entra as
regras e os fatos2”.
Podemos notar claramente a diferença entre a execução e os outros processos, a começar pelos prazos. Na execução o devedor tem 24hs, para pagar a dívida
ou nomear bens (artigo 652 do CPC), e 10 (dez) dias para embargar a execução; nos
demais processo o prazo varia de 03 a 15 dias para contestar a ação.
Com as legislações processuais modernas, com as reformas ocorridas no
Brasil, tem-se preocupado constantemente com a celeridade no processo de execução, vez que a demora nesse tipo de procedimento não teria razão de existir,
pois o Juiz, na execução, age apenas como substituto do credor, na função de executar o direito.
Devemos ressaltar que esta preocupação, por sua vez, não fica apenas no âmbito da execução, mas em todos os outros setores do processo.
É de suma importância que abordemos alguns princípios que norteiam o processo de execução, para melhor compreensão do tema que iremos expor.
PRINCÍPIOS INFORMATIVOS DO PROCESSO CIVIL
Vale ressaltar aqui que não há uniformidade entre os doutrinadores quantos
aos princípios da execução.
Segundo Humberto, a doutrina costuma apontar, para a execução forçada, os
seguintes princípios informativos:
1 MEDINA, José Miguel Garcia. Execução Civil – Princípio Fundamentais, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 50.
2 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1998, vol. II, p.
05.
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II
III
IV
V
VI
VII
VIII
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toda execução é real;
toda execução tende apenas à satisfação do direito do credor;
toda execução deve ser útil ao credor;
toda execução deve ser econômica;
a execução deve ser específica;
a execução deve ocorrer às expensas do devedor;
a execução deve respeitar a dignidade humana do devedor;
o credor tem a livre disponibilidade da execução;
Todos os princípios acima expostos são pertinentes a execução, mas para o
presente trabalho e, para melhor compreensão, falaremos apenas de dois princípios, quais sejam toda execução deve ser útil ao credor e toda execução deve ser
econômica.
PRINCÍPIO DA UTILIDADE
Este princípio expressa que a execução deve ser útil ao credor. De nada adiantaria ao chegar na fase da penhora, o devedor já ter se desfeito de todo o seu patrimônio.
Porém, não se deve desprezar a pessoa do devedor. A execução deve ser usada de forma digna, sem expor o devedor a castigos ou sacrifícios.
Como ressalta José Miguel Garcia Medina, que
“não se dúvida de que o executado é merecedor de tutela, na medida em que se deve buscar, na execução, satisfazer o crédito executado do modo menos gravoso ao devedor. Desse modo, haverá o
executado de suportar a execução, mas poderá empenhar-se no
sentido de que lhe seja tirado apenas aquilo que é efetivamente devido”3.
A propósito, assim expõe Humberto: “... é intolerável o uso do processo executivo apenas para causar prejuízo ao devedor, sem qualquer vantagem para o credor”4.
Ainda, nesse sentido, é importante ressaltar que a execução não deve ser uma
espécie de punição ao devedor, e sim, a busca da satisfação do direito do credor em
receber seu crédito. Para punir o devedor transgressor o ordenamento já possui
3 MEDINA, José Miguel Garcia. Execução Civil – Princípio Fundamentais. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 50.
4 THEDDORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro, Forense, 1998, vol. II, p.
12.
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suas sanções punitivas, não necessitando que o aplicador do direito crie novas sanções.
E para reafirmar o princípio da utilidade, sensato seria citar a sentença dita
pelo eminente doutrinador Luiz Rodrigues Wambier, ao pronunciar que “... o processo deve dar a quem tem direito tudo aquilo e exatamente aquilo a que tem direito, inerente à garantia da inafastabilidade da adequada tutela jurisdicional”. 5P. 131
PRINCÍPIO DA ECONOMIA
Deste princípio se extrai que toda execução deve se desenrolar de forma menos onerosa ao devedor, e devendo satisfazer o direito do credor.
Deve se ter em mente dois fatores importantes, um é quanto à
economia do custo do processo, e a outra se refere à economia de procedimentos.
Isso quer dizer que quanto menos gastos o processo tiver, ganha-se credor e executado, e em relação à economia de procedimento, ganha-se o Judiciário, tendo em
vista que, quanto menos acionar a máquina do Judiciário, menos os cofres públicos
gastam.
E assim se expressou nosso saudoso Jurista Rui Portanova:
“A busca de processo e procedimentos tão viáveis quanto enxutos,
com um mínimo de sacrifício (tempo e dinheiro) e de esforço
(para todos os sujeitos processuais) interessa ao processo como um
todo e, por isso, compreende o que se convencionou chamar de
princípio informativo econômico ou da economia processual”6.
É interessante salientar que tal princípio está elencado no artigo 620, do CPC:
“Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o
juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor”.
INFORMATIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO
Estamos revivendo, de certa forma, a substituição do homem pela máquina.
A Revolução Industrial foi o marco inicial da era das máquinas. O homem teve
que se adaptar a nova realidade. Grandes fábricas surgiram, novos inventos dominaram o mercado de trabalho. A população passou de escravos, servos e aprendiz a
proletariado.
5 WAMBIER, Luiz Rodrigues, Almeida, Flávio Renato Correia, Talamini, Eduardo. Curso Avançado de Processo
Civil – 4ª. ed. – São Paulo – Editora Revista dos Tribunais, 2001.
6 PORTANOVA, Rui, Princípio do Processo Civil, 2ª. tir., Livraria dos Advogados, Porto Alegre, 1997.
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O que estamos vivendo hoje não é muito diferente daquela época. Obviamente, nos tempos atuais nos deparamos com máquinas muita mais avançadas do que
naquele período. Máquinas que imitam o homem.
Em razão dessas mudanças, novos direitos surgem, no entanto, não podemos
dizer o mesmo das leis que, muitas vezes, ficam estagnadas. As mudanças legislativas, em relação ao crescimento da humanidade, ainda são muito inferiores. A demanda de novas leis aumenta a cada dia. Os projetos apresentados ao Legislativo
quando são apreciados, já estão em desconformidade com a nova realidade.
Por outro lado, não podemos deixar de citar que leis esparsas são criadas, e
até muitas vezes aplicadas com sucesso.
Podemos até citar, como exemplo clássico destas mudanças, os crimes cometidos na internet. Não existem leis específicas para tais crimes.
A informatização do mundo pegou o Judiciário de surpresa. Mas é necessário
que se encontrem soluções rápidas para os problemas a ele apresentados.
Como cita o autor Ronaldo L. da Silva Junior e Ivo Waisberg, “em futuro próximo, os negócios realizados on line serão a regra e não mais a exceção...”, e sabiamente acrescentam: “Cumpre ao magistrado ter em mira um ideal superior de justiça, condicionado por todos os elementos que informam a vida do homem e da comunidade”.
Os direitos tutelados pelo Estado devem estar em conformidade com os princípios do processo civil, principalmente, o da celeridade, economia processual e
utilidade, para que o credor, já prejudicado, não sofra mais onerosidade de uma
ação cujo procedimento está atrelado a um sistema antigo e ultrapassado, e também
o devedor, no final da ação, não pague pela onerosidade do Judiciário.
O Direito, por sua natureza, é dinâmico e cabe ao Legislador apresentar Leis rápidas e práticas a essa constante mudança, para que o Judiciário cumpra o seu dever
de tutelar os direitos de forma eficiente e de acordo com a evolução da sociedade.
JUSTIÇA DO TRABALHO
A Justiça do Trabalho, em relação à Justiça Estadual, sempre teve procedimentos mais rápidos e menos burocráticos.
Não é de se espantar que o Banco Central do Brasil firmou um acordo com o
Tribunal Superior do Trabalho, a fim de realizar as penhoras on line, e com objetivo
de ainda mais acelerar os processos trabalhistas. Com o título de CONVÊNIO DE
COOPERAÇÃO TÉCNICO-INSTITUCIONAL QUE FAZEM ENTRE SI O BANCO CENTRAL DO BRASIL E O TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO, PARA FINS DE ACESSO AO SISTEMA BACEN JUD, esse convênio foi firmado em 05 de março de 2002,
estando em vigência desde de junho de 2002.
Esse acordo tem como principal objetivo o de determinar aos juízes do trabalho competência para encaminhar às instituições financeiras e demais instituições
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autorizadas a funcionar pelo BACEN ofícios eletrônicos contendo solicitações de informações sobre a existência de contas correntes e aplicações financeiras, determinações de bloqueio e desbloqueio de contas envolvendo pessoas físicas e jurídicas,
clientes do Sistema Financeiro Nacional, bem como outras solicitações que vierem
a ser definidas pelas partes.
Tal acordo não fica restrito apenas às contas bancárias das empresas empregadoras; podem ser estendidas também aos seus sócios, desde que devidamente citados.
A legislação processual civil, em seu artigo 655 do CPC, enumera as seguintes
formas de garantir a dívida executada: (a) dinheiro; (b) pedras e metais preciosos;
(c) títulos da dívida pública da União ou dos Estados; (d) títulos de crédito que tenham cotação em bolsa; (e) móveis; (f ) veículos; (g) semoventes; (h) imóveis, navios e aeronaves; e (j) direitos e ações. Apesar da garantia em dinheiro, estar no ápice da pirâmide, muitas vezes o devedor, prefere indicar outros bens que, por sua
vez, torna a execução mais demorada e onerosa. E essa demora não onera somente
as partes envolvidas, mas também a Justiça do Trabalho que, hoje conta com um
grande número de ações trabalhistas.
Em entrevista feita pela Revista Consultor Jurídico, com o ministro Vantuil Abdala, do Tribunal Superior do Trabalho, pela qual se indaga se não existe o perigo de
o bloqueio ser confundido com a quebra do sigilo bancário, o ministro satisfatoriamente respondeu que
“o convênio não permite a quebra de sigilo bancário de nenhum
usuário do sistema financeiro, nem mesmo das partes em litígio.
Conforme observado anteriormente, as ordens judiciais às entidades bancárias restringir-se-ão aos valores necessários à satisfação
dos débitos da empresa executada, sendo vedado aos magistrados
incursionar nas contas bancárias para obter informações que
não importem para o desfecho da execução, pois, nesse caso, estarse-ia violando os incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal,
que asseguram o direito à intimidade e à vida privada, bem como
a inviolabilidade do sigilo de dados”.7
APLICAÇÃO DO CONVÊNIO NA JUSTIÇA ESTADUAL.
Ainda, principalmente, na Justiça Estadual não há o hábito de se aplicar esse
novo dispositivo criado para as causas trabalhistas, aos processos de executivos da
Justiça comum.
7 Artigo da Revista Consultor Jurídico de 30/5/2002, sob o título original “Sem enrolação”.
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Quando se trata de inovar percebe-se um certo medo entre os aplicadores e
administradores do direito.
Neste tópico, as palavras de Medina bem elucidam o exposto:
falam-se em modificações de procedimentos porque uma das principais preocupações dos idealizadores de tais reformas é a celeridade, buscada, mais das vezes, com a abreviação do iter processual por meio da supressão de alguns atos processuais ou com a
criação de mecanismos que possibilitem alcançar, com maior rapidez, aquele bem que o demandante espera obter ao final da atividade jurisdicional.
A penhora no processo de execução ocupa uma posição fundamental. Se o
devedor não paga a dívida, é a penhora que tem a função de buscar no patrimônio
do devedor a satisfação dessa dívida. É para o credor o meio de ver seu crédito satisfeito. Pressupõe, ainda, o fim daquela delonga processual que nem para o credor,
nem para o devedor lhes conferem vantagens.
Como diz Humberto, “é a penhora” ad instar da declaração de utilidade pública, o primeiro ato por meio do qual o Estado põe em prática o processo de expropriação executiva”8.
E por ocupar essa posição fundamental é que ela, também, deve ser um procedimento rápido. Mas, muitas vezes, com a burocratização do sistema, o que ocorre é que entre a penhora e a arrematação do bem penhorado, pode demorar anos.
Ainda nesse sentido, Humberto Theodoro Junior diz que
“... a ordem prática e jurídica da penhora é de sujeitar os bens por
ela alcançados aos fins da execução, colocando-os à disposição ao
órgão judicial para” à custa e mediante sacrifício desses bens, realizar o objetivo da execução”, que é a função pública de “dar satisfação ao credor”9.
Temos, como exemplo prático dessa demora insatisfatória ao credor, a execução por Carta Precatória, principalmente quando se trata de utilizar esse procedimento a fim de penhorar bens que o devedor possua em outra comarca.
Vale consignar, ainda, que esses procedimentos, além de ser exaustivos às partes, e também ao Judiciário, fere um importante princípio, que é o acesso à Justiça,
8 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1998, vol. II, p.
183.
9 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1998, vol. II, p.
184.
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faculdade de direito de bauru
no sentido de que, quanto mais cara se torna a Justiça, menos pessoas poderão dela
se utilizar.
Cumpre urgir, também, que a sociedade está em movimento, novos direitos surgem, e o judiciário não tem acompanhado essas mudanças.
Dentre a ordem trazida pelo artigo 655 do CPC, de bens a serem penhorados,
elenca como primeira opção à penhora em sobre dinheiro, e é essa que nos interessa
nesse trabalho. Quanto aos outros bens, apesar de serem bem quistos no meio jurídico,
até se transformarem em dinheiro, passa por um procedimento relativamente demorado, ou seja, da avaliação à arrematação. Sendo assim, pressupõe-se que a penhora em
dinheiro seja o modo mais rápido de atingir o objetivo da execução.
Nessa ordem de idéias, vamos à aplicação de um caso concreto. Imaginemos o devedor “José da Silva” que possui suas atividades bancárias em outra praça, ou seja, localizada em outra comarca. Com o procedimento atual, o juiz deve determinar a expedição de Carta Precatória a fim de que se proceda a penhora dos valores suficientes a garantir a dívida.
Notoriamente, custas processuais e de oficial de justiça são relativamente altas,
em relação à atual situação vivida no Brasil. Quando da entrada do processo de execução, o credor já despende uma quantia razoavelmente onerosa. A expedição da carta
precatória equivale a desembolsar duplamente o valor da execução que se iniciou.
Apesar de todo esse esforço praticado pelo credor, nem sempre o resultado é satisfatório, pois nem sempre o valor existente na conta é suficiente para pagar a dívida
isso quando nada possui na conta. Com isso o credor, além de sofrer um desgaste psicológico, sofre sérios prejuízos, em virtude da gastos despendidos inutilmente. Sendo
que, depois do grave prejuízo sofrido, a Lei não prevê indenização por perdas e danos
ao credor prejudicado.
E ainda temos o caso em que o devedor toma conhecimento da decisão que determina a apreensão do dinheiro e, antes que a carta chegue a seu destino, retira todo
o numerário que eventualmente houver depositado.
Quando é realizada a penhora, se realizada, consumiu-se tempo e foi elevado o
custo para a obtenção da tutela jurisdicional.
Não podemos nos esquecer que tais prejuízos não são sofridos apenas pelas partes, também o Estado arca com eles, vez que mobiliza toda a máquina do
judiciário, para dar atendimento a esse procedimento que nem sempre é satisfatório.
PROCEDIMENTOS PARA REALIZAR A PENHORA ON LINE NA JUSTIÇA
ESTADUAL.
Totalmente modernizado há muito tempo está nosso sistema bancário. O cidadão, em qualquer lugar do mundo, tem o poder, através dos bancos, de enviar dinheiro de forma segura a quem desejar.
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Basta digitar alguns comandos para grandes operações financeiras serem efetivadas. Podemos dizer que é o mundo girando em torno de um computador, com
um operador por trás, ou seja, o funcionário do Banco.
Diante disso, fácil fica visualizar, também, o Judiciário fazendo uso de tais recursos, com o objetivo de cumprir o seu papel junto às partes. E não continuar a
exercer a função de máquina ultrapassada, tomada pela lentidão, complexidade e na
dificuldade de atender de maneira adequada aos que a ela busca.
A penhora on line seria a inovação, o salto inicial diante de tantas mudanças
que ainda estão por vir. Esse procedimento não seria tão oneroso quanto à carta precatória; bastaria apenas que o Juiz, a pedido do advogado, determinasse que um de
seus oficiais de justiça, devidamente munido do mandado de penhora, fosse até o
respectivo banco, e, através do gerente, efetuasse a penhora em qualquer agência
daquele banco, dentro da mesma comarca ou fora dela, sem ferir o sigilo bancário,
vez que a penhora se daria apenas sobre valor suficiente para garantir a execução.
Não há necessidade de divulgar ao Oficial de Justiça, ou mesmo aos autos, o valor
que o executado possui depositado.
Há de se ressaltar, ainda, que o valor penhorado ficaria depositado em conta
judicial, até o deslinde da ação, ou ainda, poderia ficar bloqueado na mesma conta
do executado, desde que sofresse remuneração, à disposição do Juízo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em lugar das conceituações filosóficas e do tecnicismo de institutos superelaborados, o que hoje mais ocupa a preocupação dos estudiosos e mesmo do legislador processual, é a aproximação dos mecanismos processuais aos anseios práticos
da sociedade. Busca-se uma dinâmica que torne o sistema processual permeável às
pressões axiológicas exteriores.
A lei deve, por essa razão, se adequar à realidade social. Temos em nossa frente todas esses meios eletrônicos que têm aproximado pessoas de todo o mundo de
forma ágil e eficiente. E por que não utilizar dessa informatização para ingressar o
Judiciário em meio a toda essas mudanças?
A penhora on line tem sido usada com sucesso na Justiça do Trabalho, e com
relativa facilidade poderia ser introduzida de forma definitiva na Justiça Estadual.
Além disso, o dever do Estado e de encurtar e baratear os custos do processo, em virtude de que, a execução tem que ser satisfatório ao credor e menos prejudicial possível ao devedor.
Todavia, notamos que alguns juízes estão aderindo a essas mudanças, ainda de
forma tímida. Porém, vale ressaltar que falta um pouco mais de ousadia, também aos
advogados que, na hora de formularem seus pedidos, deviam utilizar-se de aparatos
trazidos de outros ramos do Direito, como é o caso da penhora on line, introduzida com sucesso na Justiça do Trabalho.
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Com o surgimento do processamento eletrônico de dados e a comunicação
entre computadores, esses percalços que obstam uma justiça célere, ágil e eficaz
não mais se justificam.
A penhora eletrônica vem sendo efetivada, como ressalta o magistrado paranaense WALDOMIRO ANTÔNIO DA SILVA, no artigo publicado no jornal O Estado
do Paraná, Caderno Direito e Justiça, página 1, de 10/06/2001, dizendo que “o Judiciário tem determinado ao Oficial de Justiça que se dirija a uma das agências bancárias ou à diretoria do banco na sua jurisdição e determine que o empregado responsável – utilizando-se do acesso por via da informática – bloqueie valores que figuram na conta ou nas aplicações do devedor, depositando-os à disposição do Juízo da execução”. Essa é a penhora on line
E, ainda, com grande sabedoria, acrescenta o citado Juiz:
“Como na execução o juízo atua em sub-rogação ao devedor (o
juízo substitui o devedor), praticando os atos que o devedor deveria praticar para a quitação de sua dívida, há de ter os mesmos direitos de resgatar o crédito tal como é possível ao devedor, ou seja,
nos \mesmos pontos de resgate haverá de ser possível ao juízo à
movimentação do crédito”.
Enfim, por todo o exposto, a informatização do Judiciário não é mais algo tão
remoto, está próximo e atual; basta que os administradores do Direito lancem mão
dessas novas técnicas, para dar sentido aos princípios do processo civil.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Araken. Manual do Processo de Execução. 4ª. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais,
1997.
GRECO, Leonardo. O Processo de Execução, Vol. II, Rio de Janeiro, 2001.
MEDINA, José Miguel Garcia. Execução Civil: princípios fundamentais: São Paulo:Revista
dos Tribunais, 2002.
SILVA JUNIOR, Ronaldo Lemos da, WAISBERT, Ivo. Comércio Eletrônico, São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2001.
PORTANOVA, Rui. Princípio do Processo Civil, 2ª. Ed., Porto Alegre: Livraria dos Advogados,
1997.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Rio de Janeiro: Forense, 1998. Vol. II.
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WAMBIER, Luiz Rodrigues, Almeida, Flávio Renato Correia, Talamini, Eduardo, Curso Avançado de Processo Civil – 4ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
SILVA, Waldomiro Antonio da. Artigo publicado no jornal O Estado do Paraná, Caderno Direito e Justiça, página 1, de 10/06/2001.
Revista Consultor Jurídico de 30/5/2002, sob o título original “Sem enrolação”.
PAGAMENTO DA DÍVIDA JUDICIAL PELA
FAZENDA PÚBLICA FEDERAL
Roberto Luis Luchi Demo
Procurador Federal,
Chefe da Consultoria Jurídica do INSS em Cascavel/PR e
Especialista em Processo Civil
Uma série de alterações legislativas foi levada a efeito, com o objetivo de otimizar
a satisfação do crédito de quem litiga contra a Fazenda Pública Federal, especialmente
os beneficiários da Previdência Social, aperfeiçoando ainda mais a sistemática iniciada
com a Constituição de 1934. Todavia, é causa de equívocos procedimentais por alguns
juízes, bem como de pagamentos em duplicidade pela Fazenda Pública.
Essa situação é como o espaço de Newton: esconde-se em si mesma. Convém trazê-la a foco, em uma análise histórico-expositiva. De antemão, dimensionase a questão em dois bornais: um do Poder Judiciário e outro do Poder Executivo.
Na linha histórica, a opção política aloca os créditos orçamentários a um e a outro,
alternadamente.
No Direito reinol [Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas], a execução
contra a Fazenda Pública se processava como as demais, incluindo a penhora. Mas a
satisfação da dívida pública, em geral, dava-se mediante precatória de vênia, até
porque havia preferência na quitação da dívida garantida por penhora judicial. Na
precatória de vênia, a requisição judicial de pagamento era dirigida ao Procurador
Fiscal. Este, após atestar a legitimidade da despesa, determinava o pagamento à Tesouraria de Fazenda.
Com a Constituição de 1824 e por força de seu art. 15, XV, os bens da Fazenda Pública tornaram-se impenhoráveis e a precatória de vênia transformou-se no
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processo de precatório, como conhecemos hoje, instituto estranho ao Direito alienígena. Até a Constituição de 1934 [quando a matéria foi alçada a nível constitucional], quem tivesse um título judicial em face da Fazenda Pública Federal, passava a
rondar os corredores das repartições fiscais, imperando uma escandalosa advocacia
administrativa, de forma que os ‘mais bem patrocinados’ tinham seu crédito satisfeito em menor tempo.
Com a Constituição de 1934, o art. 182 determinava os pagamentos judiciais
seguissem uma ordem de apresentação dos precatórios. Esses precatórios eram expedidos pelos juízes da execução e dirigidos ao Presidente do STF [então Suprema
Corte], que expedia as requisições de pagamento ao Poder Executivo. A sistemática
consistia em que as verbas necessárias ao pagamento judicial da dívida pública fossem consignadas ao Poder Judiciário mediante recolhimento aos cofres do Depósito Público. O escopo dessa mecânica, que visava a coibir a advocacia administrativa e o nepotismo fazendário, foi atingido, por isso que mantida pelo art. 95, Constituição de 1937. De se ressaltar: a ordem cronológica era e é determinada pela autuação e registro dos precatórios no Tribunal.
A Constituição de 1946, no seu turno, alterou a mecânica de recolhimento de
valores: o art. 204 rezava que o crédito deveria ser consignado à repartição competente [não mais ao Poder Judiciário], a fim de que aí se cumprisse o pagamento,
mediante empenho e por conta da dotação orçamentária respectiva, bem como atribuiu ao Presidente do Tribunal Federal de Recursos a expedição das requisições de
pagamento ao Poder Executivo. A Constituição de 1967 não destoa, estabelecendo,
no seu art. 112, a obrigatoriedade de inclusão, no orçamento das entidades de
direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos constantes de
precatórios apresentados até 1o de julho, o que foi repetido pela Emenda Constitucional de 1969. Desde então, os pagamentos foram efetuados pela Fazenda Pública em conta especial no Banco do Brasil ou Caixa Econômica Federal e à disposição
do Presidente do Tribunal.
Com a Constituição de 1988, essa sistemática foi mantida no seu art. 100,
apenas ressalvando: [i] a atualização do débito feita em 1o de julho para pagamentos a serem efetivados no exercício seguinte e [ii] a atribuição de expedir a requisição de pagamento passou aos Presidentes dos Tribunais Regionais Federais, que sucederam o Tribunal Federal de Recursos. A Emenda Constitucional 20/98, acrescendo o §3o no art. 100, permitiu o pagamento de pequenos valores independente de
precatório [cujo limite inicial de R$ 5.181,00, posto pela Lei 10.099/00, que regula a
referida norma constitucional, foi alterado para 60 salários-mínimos, pela Lei
10.259/01, que dispõe sobre os Juizados Especiais Federais].
A Emenda Constitucional 30/00 deu nova guinada ao plano normado: [i] as
dotações orçamentárias e os créditos abertos voltaram a ser consignados diretamente ao Poder Judiciário [art. 100, §2o, Constituição de 1988], ou seja, estabelecidos
diretamente em favor dos tribunais requisitantes e recolhidas ao agente finan-
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ceiro indicado pelo tribunal e [ii] a correção monetária passou a ser feita quando do
pagamento. Nesse novel contexto normativo, que estabelece uma descentralização
orçamentária, as requisições, seja de precatório bem assim de pequeno valor, deveriam ser dirigidas ao Tribunal Regional Federal, que providenciaria o pagamento,
mediante a Secretaria de Planejamento, Orçamento e Finanças do Conselho da Justiça Federal. Por isso que, se até 2000, a programação e o detalhamento dos débitos
judiciais eram feitas pelas unidades orçamentárias do Poder Executivo, a partir de
2001 também passa a ser feita pelo Poder Judiciário [art. 23, Lei 9.995/00, lei de diretrizes orçamentárias para 2001, norma repetida nas leis posteriores, sendo a atual
posta no art. 25, Lei 10.524/02, lei de diretrizes orçamentárias para 2003].
Deveriam. Ocorre que, consoante se observa dos arts. 7o, XI e 23, §8o, Lei
10.266/01, lei de diretrizes orçamentárias para o ano de 2002, e das Resoluções
258/02 e 263/02, do Conselho da Justiça Federal, essa descentralização orçamentária foi operacionalizada somente para as requisições de pequeno valor, com a nota
de eliminar a inconstitucional possibilidade do seqüestro prevista no art. 17, §2o,
Lei 10.259/01. Os precatórios [e somente os precatórios] continuam sendo pagos à
conta do orçamento da Fazenda Pública.
Ou seja, as requisições de pequeno valor, reguladas, sucessivamente, pelas Resoluções 240/01, 258/02 e 263/02, todas do Conselho da Justiça Federal, são dirigidas pelos juízes da execução ao Tribunal Regional Federal, tal qual os precatórios.
Mas o seu pagamento se dá à conta do orçamento do Poder Judiciário, enquanto o
pagamento dos precatórios se dá a conta do orçamento do Poder Executivo.
Outrossim, nos termos da revogada Resolução 240/01, se se tratasse de dívida do INSS e referente a benefício previdenciário, a requisição de pequeno valor era
dirigida diretamente ao INSS [e não ao presidente do Tribunal], que mantinha verba orçamentária própria a essa finalidade no ano de 2002. Dessarte, tão-só valores
de precatórios do INSS inscritos em 2001 para pagamento em 2002, mas que foram
convertidos, posteriormente, em requisição de pequeno valor, é que podem, excepcionalmente, ser pagos diretamente pelo INSS, desde que confirmada previamente a não-liquidação pelo Tribunal respectivo.
Descortino, ainda, o novel §4o do art. 100 da Constituição de 1988, na redação da
EC 37/02, que veda a expedição de precatório complementar ou suplementar ou fracionamento de valor pago, bem como fracionamento do valor da execução, a fim de se
evitar haja requisições de pequeno valor parceladas, ou que parte do pagamento seja
feito por precatório e parte por requisição de pequeno valor. Daí a obrigatoriedade de
precatório para pagamentos parciais, complementares ou suplementares quando a importância total do crédito exequendo for superior a 60 salários-mínimos.
Finalmente, de se estadear essa descentralização orçamentária nos Tribunais
irá abranger as requisições de pequeno valor [como já vem abrangendo] bem assim de precatórios, a partir, de 2003, nos termos do art. 11, XI e art. 28 da Lei
10.524/02, lei de diretrizes orçamentárias para 2003.
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faculdade de direito de bauru
Para concluir, a descentralização de recursos para o Poder Judiciário confere mais eficiência ao Poder Judiciário no controle do cumprimento das decisões judiciais pelo Poder Executivo e racionaliza os serviços do Estado nessa área, eliminando a intermediação dos órgãos ou entidades devedoras federais no repasse das dotações e créditos ao Poder Judiciário. Essa evidência otimiza a realização da despesa
pública, aluindo a deletéria burocracia em prol do modelo gerencial de Administração Pública.
DEVIDO PROCESSO LEGAL:
Direito do Autor e do Réu
Cristian de Sales Von Rondow
Mestrando em Direito pela ITE – BAURU/SP e
Advogado em Lins/SP.
1.
INTRODUÇÃO: QUE É JUSTIÇA? É POSSÍVEL CONCEITUÁ-LA?
Para dissecarmos um pouco o tema em apreço, iremos traçar inúmeros paralelos e contrapontos com temas ligados à processualística moderna com o fito de trazer
ao leitor a ótica hodierna em que perpassa o princípio do Devido Processo Legal
como um direito do autor e do réu e não apenas comumente é visto, como um direito do réu, 1um equívoco que se deu quando o Estado, em virtude de receios próprios
da época do liberalismo do final do século XIX, construiu um processo destinado unicamente a garantir a segurança e a liberdade do réu diante da possibilidade do arbítrio do juiz. Em virtude da busca incessante por uma ordem jurídica justa, veremos
que a clássica idéia de Chiovenda de que “o processo deve dar, quanto for possível
praticamente, a quem tenha um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir”2 ainda é a pedra de toque do direito e o será, por muito tem-
1 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, cit. 224.
2 WATANABE, Kazuo. Da Cognição no Processo Civil. 2ª edição, Campinas: Bookseller, 2000, p. 19 apud Instituições de direito processual civil, v. 1, § 1, p. 84. Já no início do século (1911), afirmava que esse princípio geral “si
desume dalla natura stessa dell ordinamento giuridico e dalla esistenza del processo” (Dell azione nascente dal contratto preliminare, Saggi di diritto processuale civile, v. 1. P. 110).
240
faculdade de direito de bauru
po.
Tema tormentoso é expressarmos ou teorizarmos o quem vem a ser a justiça.
Peso maior será, quando ela ainda tiver que ser a mais justa possível. Para tanto, fomos buscar respostas para a questão epigrafada na célebre obra de Hans Kelsen “O
que é Justiça” traduzida por Luís Carlos Borges, observando que para Kelsen este assunto é altamente instigando e ao mesmo tempo frustrante, pois, como veremos,
para ele esta pergunta continua sem resposta.
Para Hans Kelsen, “nenhuma outra questão foi tão passionalmente discutida;
por nenhuma outra foram derramadas tantas lágrimas amargas, tanto sangue precioso; sobre nenhuma outra, ainda, as mentes mais ilustres – de Platão e Kant – meditaram tão profundamente. E, no entanto, ela continua até hoje sem resposta. Talvez
por se tratar de uma dessas questões para as quais vale o resignado saber de que o
homem nunca encontrará uma resposta definitiva; deverá apenas tentar perguntar
melhor”3.
Para Kelsen, a “justiça é, antes de tudo, uma característica possível, porém não
necessária, de uma ordem social. Como virtude do homem, encontra-se em segundo plano, pois um homem é justo quando seu comportamento corresponde a uma
ordem dada como justa”.4 Daí surge a seguinte indagação: o que significa uma ordem justa? Kelsen assim responde:
“significa essa ordem regular o comportamento dos homens de
modo a contentar a todos, e todos encontrarem sob ela felicidade.
O anseio por justiça é o eterno anseio do homem por felicidade.
Não podendo encontrá-la como indivíduo isolado, procura essa
felicidade dentro da sociedade. Justiça é felicidade social, é a felicidade garantida por uma ordem social. Nesse sentido, Platão
identifica justiça a felicidade, quando afirma que só o justo é feliz
e o injusto, infeliz”5.
Assim sendo, asseverando-se que a justiça é felicidade, a questão ainda não
está completamente respondida, surgindo daí uma nova pergunta, qual seja, a de se
saber o que é felicidade.
Novamente nos apoiamos nas meditações de Kelsen que aduz:
3 KELSEN, Hans. O que é Justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução Luís Carlos Borges. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 1.
4 KELSEN, Hans. O que é Justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução Luís Carlos Borges. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 2.
5 KELSEN, Hans. O que é Justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução Luís Carlos Borges. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 2.
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“é evidente que não pode haver uma ordem justa, isto é, que proporcione felicidade a todos, se entendermos por felicidade, conforme o sentido original da palavra, o sentimento subjetivo que cada
um compreende para si mesmo. É inevitável, então, que a felicidade de um entre em conflito com a felicidade de outro. Um exemplo:
o amor é a principal fonte tanto de felicidade como de infelicidade. Suponhamos que dois homens amem a mesma mulher e que
cada uma – com ou sem razão – acredite que não poderá ser feliz se não tiver essa mulher só para si. Pela lei – e talvez também
por seus próprios sentimentos – a mulher só poderá pertencer a
um deles. A felicidade de um é, sem dúvida, a infelicidade do outro. Nenhuma ordem social poderá solucionar essa problema de
forma justa, isto é, de maneira que os dois homens possam ser
igualmente felizes. Nem mesmo a famosa sentença do sábio rei Salomão. Como se sabe, ele resolveu dividir em duas partes uma
criança por cuja posse duas mulheres brigavam; todavia, concordava em entregá-la àquela que abdicasse de seu direito, a fim de
salvar a criança – comprovando assim, segundo o rei, amá-la verdadeiramente. A sentença salomômica só é justa – se é que o é –
sob a condição de apenas uma das duas mulheres amar a criança. Se ambas a amarem – o que é possível e até provável, pois ambas a querem – e por essa razão ambas abdicarem de seu direito,
o litígio permanecerá pendente; se, mesmo assim, a criança for finalmente adjudicada a uma das partes, a sentença certamente
não será justa, pois tornará a outra infeliz. Nossa felicidade depende freqüentemente da satisfação de necessidade que nenhuma
ordem social pode garantir”6.
Para Kelsen, não basta este tipo de felicidade, qual seja, a subjetiva, individual;
mas esta tem que dar lugar a uma outra elevando-a a um nível de categoria social,
sendo a felicidade da justiça.7
E continua o ilustre pensador:
“a metamorfose através da qual a felicidade individual e subjetiva se transforma na satisfação de necessidades reconhecidas so6 KELSEN, Hans. O que é Justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução Luís Carlos Borges. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 2-3.
7 KELSEN, Hans. O que é Justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução Luís Carlos Borges. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, cit., p. 4.
242
faculdade de direito de bauru
cialmente se equipara àquela a que se deve sujeitar o conceito de
liberdade a fim de tornar-se um princípio social; e o conceito de liberdade é freqüentemente identificado como o de justiça, na medida em
que uma ordem social é considerada justa se garantir a liberdade individual”8.
Essa tormenta parece inesgotável e Kelsen outra vez pergunta:
“mas quais interesse humanos têm esse valor e qual é a hierarquia
desses valores? É essa questão que se coloca quando surgem conflitos
de interesses. E somente onde existem tais conflitos de interesses, a justiça se torna um problema. Onde não há conflitos de interesses, não
há necessidade de justiça. Um conflito de interesses se apresente, todavia, quando um interesse só pode ser satisfeito á custa de outro, ou
seja, quando dois valores se contrapõem e não é possível concretizálos ao mesmo tempo se a concretização de um implicar a rejeição do
outro; quando é inevitável, para dar prioridade à concretização de
um dos dois, decidir qual deles é mais importante, mais elevado,
maior. O problema dos valores é, antes de tudo, o problema dos conflitos de valores. E esse problema não poderá ser solucionado com os
meio do conhecimento racional. A resposta às questões que aqui se
apresentam é sempre um juízo, o qual, em última instância, é determinado por fatores emocionais e possui, portanto, um caráter subjetivo. Isso significa que o juízo só é válido para o sujeito que julga, sendo, nesse sentido, relativo”9.
A idéia que se procura passar aqui, não é esgotar o inesgotável, pois, como vemos,
a cada resposta a que se chega, uma nova pergunta surge. A missão de conceituar o que
é justiça segue seu caminho das ilações e meditações, sem, contudo, satisfazer igualmente àqueles que a buscam: todos nós.
2.
DEVIDO PROCESSO LEGAL: HISTÓRICO
A garantia, hoje, constitucional do devido processo legal prescinde da história do
homem pela busca de sua liberdade, ou seja, libertar-se da servidão que lhe foi imposta
8 KELSEN, Hans. O que é Justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução Luís Carlos Borges. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 4.
9 KELSEN, Hans. O que é Justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução Luís Carlos Borges. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 4-5.
10 Silveira, Paulo Fernando. Devido processo legal – Due process of Law. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, cit. p. 15.
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pelo próprio semelhante. Revela, sobretudo, a luta pela contenção do poder.10
Nos primórdios, vivia o homem em regime tribal, com total liberdade e comunhão de patrimônio, restringidos apenas pelo interesse de sobrevivência do grupo.
Após a criação do Estado, os séculos vieram demonstrar que perdeu ele sua liberdade, quase que total, porque o detentor do poder passou a utilizá-lo, de modo geral,
em proveito próprio, ignorando o interesse do povo, chegando Luís XIV a dizer:
“L’État c’est moi” (O Estado sou eu).11
Todavia, a saga pela liberdade nunca foi abandonada, pois, para o homem
constitui o seu mais precioso bem, sendo o modo natural de manifestação da vida,
da inteligência, da criatividade, das quais decorrem, inelutavelmente, a indústria e o
progresso, enfim, a civilização. O homem nasceu para ser livre, sujeitando-se ao mínimo de restrições necessárias à realização do bem comum.12
Com exatidão Silveira, nos mostra que
“a lição que se extrai é que as ditaduras e impérios que se
apoiaram em ordem absoluta, individual do tirano ou do grupo dominante, contrariando a natureza das coisas, por mais
poderosos que tenham sido, entraram sem em colapso, como registra a história. Apenas o governo democrático, que tem o povo
como base, com suas múltiplas diversidades individuais e diferentes anseios, pode desenvolver-se serenamente, administrando a conjuntura variável, pois, ainda que cometa erros, serão,
por certo, reparáveis”.13
No Direito Inglês, a garantia do devido processo legal surgiu no reinado de
John, chamado de Sem-Terra, cujo reinado usurpou de seu irmão Ricardo Coração de Leão que morreu em virtude de um ferimento de flecha recebido em uma
batalha.
Silveira nos ensina que “Sem-Terra”, ao
“assumir a coroa passou a exigir elevados tributos e fez outras imposições decorrentes de sua tirania, o que levou os barões a se insurgirem: ‘Os desastres, cincas e arbitrariedades do novo governo
foram tão assoberbantes, que a nação, sentindo-lhe os efeitos envilecedores, se indispôs, e por seu representantes tradicionais reagiu.
Foram inúteis as obsecrações. A reação era instintiva, generalizada; e isso, por motivo de si mesmo explícito: tão anárquico fora o
11 Silveira, Paulo Fernando. Op. cit. p.15.
12 Silveira, Paulo Fernando. Op. cit. p.16.
13 Silveira, Paulo Fernando. Op. cit. p.16.
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faculdade de direito de bauru
reinado de João, que se lhe atribuía outrora, como ainda nos nossos dias se repete, a decadência; postergou regras jurídicas sãs de
governo; descurou dos interesses do reino; e, a atuar sobre tudo,
desservindo a nobres e a humildes, ameaçava a desnervar a energia nacional, que se revoltou’”.14
Assim, em 15/06/1215, John foi obrigado a concordar apondo seu selo real,
com os termos da declaração de direitos, que lhe foi apresentada pelos barões,
a qual ficou conhecida como Magna Carta, ou Great Charter, da qual ainda existem preservados quatro exemplares originais. Por esse documento, o Rei John
jurou respeitar os direitos, franquias e imunidades que ali foram outorgados,
como salvaguarda das liberdade dos insurretos, entre eles a cláusula do devido
processo legal (due process of law). Destaca-se que a Magna Carta (1215) evidenciou, pela primeira vez, de modo inequívoco, que nenhuma pessoa, por mais
poderosa que fosse, estaria acima da lei, ao assegurar, em seu § 39, com as alterações da Carta de 1225, com regra absoluta a ser observada, o devido processo
legal (due process of law)15:
“Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado
dos seus direitos ou seus bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou reduzido em seu status de qualquer outra forma, nem procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante
um julgamento legal pelos seus pares ou pelo costume da terra”
Portanto, pela primeira vez na história instituiu-se o devido processo legal que
constitui a essência da liberdade individual em face da lei, ao afirmar que ninguém
perderá a vida ou a liberdade, ou será despojado de seus direitos ou bens, salvo pelo
julgamento de seu pares, de acordo com a lei da terra.16
No Direito Americano o origem o devido processo legal surgiu por meio de
dissidentes protestantes ingleses, que, em fuga, aportaram nas praias americanas da
Virgínia em 1607, trazendo consigo os fundamentos da common law, entre os quais
o princípio do devido processo legal.
Não destoando da história de embates políticos e às vezes até sangrentos, os
virginianos Thomas Jefferson, Madison e Mason submeteram ao Congresso emendas à Constituição, a fim de que nela figurasse o que foi chamado de Bill of Rights
(Emendas n. 1 a 10), que foram incorporadas em abril de 1791. O que Jefferson pre14 Silveira, Paulo Fernando. Op. p. 21 apud PONTES DE MIRANDA. História e prática do habeas corpus. 7. Ed.,
Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 11
15 Silveira, Paulo Fernando. Op. cit. p. 22.
16 Silveira, Paulo Fernando. Op. cit. p. 22.
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tendia era um controle legal contra o governo nacional – ele não estava grandemente preocupado com os Estados, uma vez que tinham seu próprio Bill of Rigths,
contenção estatal que os elaboradores julgavam confortavelmente satisfatórios.
Após a Guerra Civil (1861/65), o Congresso aprovou, em 1866 – visando
a conferir, harmoniosamente, os direitos expressos no Bill of Rights, em face
das dispares constituições dos diversos Estados da União – a Emenda XIV, a
qual só foi ratificada em 9/7/1868, por ? dos legislativos estaduais, como exige
o art. V, da Constituição americana. Essa emenda, na Seção I, traz a seguinte redação:
“Todas as pessoas nascidas ou naturalizada nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados unidos e do Estado em que residem. Nenhum Estado fará ou executará qualquer lei que restrinja os privilégios ou imunidades
dos cidadãos dos Estados Unidos; nenhum Estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o devido
processo legal; nem negará a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção da leis”.17
O Direito Brasileiro não registra histórico no sentido de que, ao tempo da
Constituição imperial outorgada por D. Pedro I, em 1824, haja o direito brasileiro tomado conhecimento do instituto do devido processo legal, senão vaga, nebulosa e,
imprecisamente, na área criminal procedimental, senão vejamos:
“Constituição Política do Império do Brasil, jurada a 25 de março
de 1824
Título 8º - Das Disposições Geraes, e Garantias dos Direitos Civis, e
Políticos dos Cidadãos Brazileiros
Art. 179 A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império,
pela maneira seguinte:
...
VIII – Ninguém poderá ser preso sem culpa formada, excepto nos
casos declarados na Lei; e neste dentro de vinte e quatro horas contadas da entrada na prisão, sendo em Cidades, Villas, ou outras
Povoações proximas aos logares da residencia do Juiz; e nos logares remotos dentro de um prazo razoavel que a Lei marcará, at-
17 Silveira, Paulo Fernando. Op. cit. p. 26-27.
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faculdade de direito de bauru
tenta a extensão do territorio o Juiz por uma Nota, por elle assignada, fará constar aos Réo o motivo da prisão, os nomes do seu accusador, e os das testemunhas, havendo-as”.18
Com a proclamação da República em 15/11/1889, veio a Constituição de 1891
inspirada na Constituição americana de 1787, que instituiu entre nós o federalismo,
transformando as antigas províncias em Estados-Membros do País, já que antes o
Brasil era um Estado unitário.
Formalista, essa segunda Constituição não estava em descompasso com a realidade de seu tempo, ao formular princípios ou outorgar direitos que jamais foram efetivamente concretizados, cuja observação de Paulo Bonavides e Paes de Andrade é:
“Promulgou-se a lei maior, mas não diminuiu a distância entre as
regras fundamentais e o meio político e social constitutivo do País
real, aquele regido por impulsos autônomos exteriores ao espaço
abstrato dos mandamentos constitucionais. As forças substancialmente efetivas de um constitucionalismo sem Constituição entravam a atuar nos condutos subterrâneos da inspiração revolucionária, movendo a sociedade para os anseios de mudança e reforma”.19
Da Lei Fundamental de 1891, constou, também, uma declaração de direitos,
entre os quais não figurou expressamente o devido processo legal, não obstante, no
campo criminal, houvesse menção à plena defesa com os recursos e meios essenciais a ela, bem como à cláusula proibitiva da prisão sem prévia formação de culpa,
vejamos:
“Constituição da República dos Estados unidos do Brazil, promulgada a 24 de fevereiro de 1891.
Secção II – Declaração de Direitos
Art. 72 A Constituição assegura a brazileiros e a estrangeiros residentes no paíz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade nos termos seguintes:
...
§ 16 – Aos accusados se assegurará na lei a mais plena defesa, com
todos os recursos e meios essenciaes a ella, desde a nota de culpa,
18 CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil – Compilação e atualização dos
textos, notas, revisão e índices. 13ª ed., São Paulo: Atlas, 1999, p. 832.
19 SILVEIRA, Paulo Fernando. Op. cit. p. 30 apud BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. Op. cit. p. 8.
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entregue em vinte e quatro horas ao preso e assignada pela autoridade competente, com os nomes do accusador e das testemunhas.”20
Veio a Revolução de 1930 e Getúlio Vargas toma o poder em suas mãos. Surge nova Constituição, a de 1934 que teve existência efemêra, já que em 1937 foi outorgada ao País nova ordem constitucional, por força da ditadura decorrente do Estado Novo. Embora contenha no bojo destas, a ventilação do princípio da ampla defesa, não há de se cogitar de liberdades civis durante a vigência dessas duas cartas
políticas.
“Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada a 16 de julho de 1934.
Cap. II – Dos Direitos e das Garantias Individuaes
Art. 113 A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á subsistencia, á segurança individual e á propriedade, nos
termos seguintes:
...
24 – A lei assegurará aos accusados ampla defesa, com meio e recursos essenciaes a esta.”21
“Constituição dos Estados Unidos do Brasil, decretada a 10 de novembro de 1937.
Dos Direitos e garantias individuais
Art. 122 A Constituição assegura aos brasileiros, estrangeiros residentes no país o direitos à liberdade, à segurança individual e á
propriedade, nos termos seguintes:
...
11 – À exceção do flagrante delito, a prisão não poderá efetuar-se senão depois de pronúncia do indiciado, salvo os casos determinados
em lei e mediante ordem escrita da autoridade competente. Ninguém
poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, senão pela autoridade competente, em virtude de lei e na forma por ela regulada;
a instrução criminal será contraditória, asseguradas, antes e depois
20 CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil – Compilação e atualização dos
textos, notas, revisão e índices. 13ª ed., São Paulo: Atlas, 1999, p. 768.
21 CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil – Compilação e atualização dos
textos, notas, revisão e índices. 13ª ed., São Paulo: Atlas, 1999, p. 716.
22 CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil – Compilação e atualização dos
textos, notas, revisão e índices. 13ª ed., São Paulo: Atlas, 1999, p. 619.
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faculdade de direito de bauru
da formação da culpa, as necessárias garantias de defesa.”22
Elaborada com bases democráticas, haja vista, a participação do povo; tivemos
a Constituição de 1946, dedicando o Capítulo II aos direitos e garantias individuais
(art. 141/4/25). Contudo, embora tenha ampliado o leque das liberdades civis, não
fez referência expressa ao devido processo legal, vejamos:
“Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada a 18 de setembro de 1946.
Art. 141 A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à
vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos têrmos seguintes:
...
§ 4º - A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário
qualquer lesão de direito individual.
...
§ 25 – É assegurada aos acusados plena defesa, com todos os meio
e recursos essenciais a ela, desde a nota de culpa, que, assinada,
pela autoridade competente, com os nomes do acusador e das testemunhas, será entregue ao prêso dentro de vinte e quatro horas.
A instrução criminal será contraditória.”23
Após o Golpe Militar de 31/3/64, seguiram-se as constituições outorgadas de
1967 e 1969 (Emenda n. 1), nas quais, não obstante constarem formalmente direitos individuais, por óbvio não foram respeitados.
“Constituição do Brasil, promulgada a 24 de janeiro de 1967.
Cap. IV – Dos Direitos e Garantias individuais
Art. 150 A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à
vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos têrmos seguintes:
...
§ 15 – A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá fôro privilegiado nem tribunais de
exceção.”24
23 CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil – Compilação e atualização dos
textos, notas, revisão e índices. 13ª ed., São Paulo: Atlas, 1999, pp. 509 e 511.
24 CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil – Compilação e atualização dos
textos, notas, revisão e índices. 13ª ed., São Paulo: Atlas, 1999, pp. 429 e 431.
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Por fim chegamos a atual Constituição Federal promulgada em 05/10/1988,
fruto da ampla participação do povo, onde pela primeira vez na história constitucional brasileira, previu expressamente, como princípio garantidor das liberdades civis,
o devido processo legal (due process of law), ao dispor no art. 5º, inciso LIV:
“Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal.”
O constituinte a complementou, pelo inciso LV, onde diz:
“Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes”.
2.1 Conceito
Paulo Fernando Silveira, em sua obra “Devido Processo Legal” aduz que “qualquer pretensão de conceituar o devido processo legal deverá levar em consideração
sua origem, que remonta, aos reinados de Henry I (1100/11350 e Henry II
(1154/1189), culminando com a assinatura da Magna Carta pelo Rei João Sem Terra
– ( Jonh Lackland (1199/1216), que sucedeu ao seu irmão Ricardo Coração de LeãoRichard the Lion Heart (1189/1199)”.25
É bem verdade, que em sua gênese o devido processo legal confundiu-se com
a própria common law. Houve evolução do conceito passando a ser visto como
modo de contenção do chefe de governo, objetivando evitar o cometimento de arbitrariedades, como retirar do membro da comunidade seu direito à vida, liberdade
ou propriedade.26
O Chief Justice Burger da Suprema Corte dos Estados Unidos, nesse sentido
pronunciou:
“O conceito do devido processo abraçado em nossa constituição
remonta diretamente, há 600 anos atrás. É mais do que um conceito técnico legal, pois ele permeia nossa Constituição, nossas leis,
nosso sistema, e nosso próprio modo de vida – que a toda pessoa
deverá ser concedido o que é devido”. (“The Due Process concept
embraced in our Constitution traces directly back nearly 600 years
to Runnymede. It is more than a technical legal concept for it pervades our Constitution, our laws, our system, and our very way of
25 Silveira, Paulo Fernando. Devido processo legal – Due process of Law. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 79.
26 Silveira, Paulo Fernando. Devido processo legal – Due process of Law. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, cit. p. 79.
27 Silveira, Paulo Fernando. Devido processo legal – Due process of Law. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, cit. p. 79
apud BURGER, Justice. Magna Carta and the tradition of liberty. Us Capitol society, 1976, preface.
250
faculdade de direito de bauru
life-that every person shall be accorded what is due.”)27
Em 1884, a abrangência do conceito foi delineada pelo Associate Justice Harlan (Hurtado v. California), quando afirmou:
“O governo deve ser confinado dentro dos limites daqueles princípios fundamentais de liberdade e justiça, deitados na fundação de
nossas instituições civis e políticas, os quais nenhum Estado pode
violar consistentemente com o princípio do devido processo legal
requerido pela emenda n. 14 nos procedimentos envolvendo vida,
liberdade ou propriedade.” (“Governments should be confined within the limits of those fundamental principles of liberty and justice, lying at the foundation of our civil ond political institutions,
which no State can violate consistently with that due process of law
required by the Fourteenth Amendment in proceedings involving
life, liberty, or property.”)28
Noção ampla e mais refinada, são os dizeres de Abraham e Perry:
“O conceito do devido processo legal e sua aplicação aos nossos governos estadual e federal é baseado em um extensivo reservatório de
limitações constitucionais expressas e implícitas sobre a autoridade
governamental, fundamentalmente determinado pelo processo judiciário, sobre as noções básicas de lisura e decência que governam,
ou devem governar, o relacionamento entre legislador e legislado”.
(“The concept of due process of law and its application to our federal
and state governments is based on an extensive reservoir of constitutionally expressed and implied limitations upon governmental authority, ultimately determined by the judicial process, and upon those basic notions of fairness and decency which govern, or ought to govern, the relationships between rulers and ruled.”)29
Dada a dificuldade de se definir o devido processo legal, Ademar Maciel informa
que que Thomas Cooley procurou dar uma idéia do leque de proteção do instituto:
“O termo devido processo legal é usado para explicar e expandir
os termos vida, liberdade e propriedade e para proteger a liberda28 Silveira, Paulo Fernando. Op. cit. p.80 apud ABRAHAM, Henry J. e PERRY, Barbara A. Freedom and the Court.
London: Oxford University Press, 1994, p. 94.
29 Silveira, Paulo Fernando. Op. cit. p. 80 apud ABRAHAM, Henry J. e PERRY, Barbara A. Freedom and the Court.
London: Oxford University Press, 1994, p. 95.
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251
de e a propriedade contra legislação opressiva ou não razoável,
para garantir ao indivíduo o direito de fazer de seu pertences o
que bem entender, desde que seu uso e ações não sejam lesivos aos
outros como um todo”.30
Finalizeremos o tópico, trazendo alguns pronunciamentos da Suprema Corte
dos Estados Unidos sobre essa garantia constitucional:
Holden v. Hardy – 1898:
“Este tribunal jamais tentou definir com precisão as palavras due
process of law [...] basta dizer que existem certos princípios imutáveis de justiça aos quais é inerente a própria idéia de governo livre, o qual nenhum membro da União pode desconhecer”. Solesbee v. Balkcon – 1950: “Acha-se assentada a doutrina por essa Corte que a cláusula do due process enfeixa um sistema de direitos baseados em princípios morais tão profundamente enraizados nas
tradições e sentimento de nossa gente, de tal modo que ela deve ser
julgada fundamental para uma sociedade civilizada como concebida por toda a nossa história. Due process é aquilo que diz respeito às mais profundas noções do que é imparcial, reto e justo”.31
3.
EVOLUÇÃO
O conceito do devido processo legal, seja procedimental (instrumental viabilizador das liberdades civis) ou substantivo (análise de seu conteúdo substantivo da
legislação), tem evoluído no tempo, sendo sobremodo ampliado.
Roberto Rosas, (in, Direito Processual Constitucional: princípios constitucionais do processo civil, 3ª ed., São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 1999, p.
45-46) ensina-nos que “a Constituição assegura aos litigantes (em 1969 – acusados)
ampla defesa (art. 5º, LV ). Dir-se-á que a regra dirige-se para o processo penal, administrativo ou fiscal. Assim pensa Pontes de Miranda. No entanto, essa restrição
deve ser ponderada. O fato de alguém ser acusado não leva fatalmente a entenderse incriminação penal. Na tradição constitucional brasileira essa diretriz era para o
processo penal, tanto que desde 1824 falava-se em prisão, culpa formada, nota de
culpa, expressões não mais usadas no texto atual. A Constituição italiana considera
direito inviolável a defesa em todos os grau de procedimento (art. 24). O Direito italiano ysa a expressão convenuto contumace no sentido de réu revel, como se de30 Silveira, Paulo Fernando. Op. cit. p. 80 apud MACIEL, Adhemar Ferreira. Separata. Scientia juridica. Portugal: Universidade do Minho, 1994, p. 373.
31 Silveira, Paulo Fernando. Op. cit. p. 80 apud MACIEL, Adhemar Ferreira. Op. cit., p. 373-374.
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preende do ensinamento de Liebman:
‘Contumace è più propriamente, la parte che non si è constituita
nel processo, cioè quella che non há provveduto a legitimare il suo
difensore, o se stessa in tale qualità, nei casi consentiti presso il giudice della causa’ (Manuale di Diritto Processuale Civile, II/170,
1974).” E conclui: “A Constituição dirige o princípio do contraditório ao processo penal, e não ao processo civil. O direito ao contraditório, no processo civil, é assegurado constitucional numa decorrência da igualdade de todos perante a lei, e esta não exclui o
direito da parte defender-se. O direito de defesa é intrínseco ao
processo democrático (art. 5º, LV) – (AJ 69.523, RTJ 82/732).”
Marinoni, lembra-nos que
“convém recordar que o Estado, ao proibir a autotutela privada e
assumir o monopólio da jurisdição, obrigou-se a tutelar de forma
adequada e efetiva todos os conflitos de interesses, sabendo que
para tanto necessitaria de tempo para averiguar a existência do
direito afirmado pelo autor. O equívoco, contudo, deu-se quando
o Estado, em virtude de receios próprios da época do liberalismo
do final do século XIX, construiu um processo destinado unicamente a garantir a segurança e liberdade do réu diante da possibilidade de arbítrio do juiz”.32
Num pensamento mais evolutivo e dando-se maior elasticidade ao conceito
do devido processo legal, Paulo Henrique dos Santos Lucon aduz que
“a igualdade interage com o devido processo legal, pois o exercício
do poder estatal só se legitima através de resultados justos e conformes com o ordenamento jurídico, por meio da plena observância
da ordem estabelecida, com as oportunidades e garantias que assegurem o respeito ao tratamento paritário das partes. Tal é o direito ao processo justo, ou seja, o direito á efetividade das normas
e garantias que as leis do processo e de direito material oferecem.
A real consecução do acesso á justiça e do direito ao processo exige o respeito às normas processuais portadoras de garantias de
tratamento isonômico dos sujeitos parciais do processo. Ao estabe32 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 224.
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lecer a ordem de atos a serem praticados lógica e cronologicamente, com a observância de todos os requisitos inerentes a cada um
deles e a exigência da realização de todos, a lei pretende atingir
um resultado de modo a tutelar quem tem razão. Isso significa
atingir a ordem jurídica justa, que tem estreita relação com o devido processo legal, pois igualmente pode ser vista como meio e
fim; se de um lado é a própria abertura de caminhos para a obtenção de uma solução justa, de outro constitui a própria solução justa que se espera – justa porque conforme com os padrões éticos e
sociais eleitos pela nação. Daí porque o devido processo legal é
uma cláusula de abertura do sistema na busca por resultados formal e substancialmente justos. Tal é a amplitude que se espera dessa garantia de meio e de resultado, que desenha o perfil democrático do processo brasileiro na obtenção da justiça substancial.”33
E diz mais:
“a garantia constitucional do devido processo legal exige que se dê
às partes a tutela jurisdicional adequada. Além disso, aos sujeitos
do processo devem ser conferidas amplas e iguais oportunidades
para alegar e provar fatos inerentes à consecução daquela tutela”.34
Para Lucon,
“o princípio-garantia do devido processo legal não pretende apenas a observância do procedimento estatuído na lei, com a realização de todos os atos inerentes a ele: pretende também a efetividade da tutela jurisdicional, concedendo proteção àqueles que
merecem e necessitam dela”.35
4.
EM BUSCA DA INSTRUMENTAL JUSTIÇA
Neste evoluir, sem dúvida alguma, nos dias de hoje, a questão da efetividade
33 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenador José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 98.
34 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 99-100.
35 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 100.
254
faculdade de direito de bauru
da justiça é um problema que nos toca de perto. Já o era a tempo atrás, mas agora
toma ares de compromisso ético-político-social com vistas a minimizar o sofrimento daqueles que clamam pela justiça, ainda que lhes falte o conceito do que esta seja,
todavia, o que não lhes falta é o senso.
Para Kazuo Watanabe, “uma das vertentes mais significativas das preocupações dos processualistas contemporâneos é a da efetividade do processo como instrumento da tutela de direitos”.36
E continua:
“Do conceptualismo e das abstrações dogmáticas que caracterizam a ciência processual e que lhe deram foros de ciência autônoma, partem hoje os processualistas para a busca de um instrumentalismo mais efetivo do processo, dentro de uma ótica mais abrangentes mais penetrante de toda a problemática sócio-jurídica. Não
se trata de negar os resultados alcançados pela ciência processual
até esta data. O que se pretende é fazer dessas conquistas doutrinárias e de seus melhores resultados um sólido patamar para, com
uma visão crítica e mais ampla da utilidade do processo, proceder
ao melhor estudo dos institutos processuais – prestigiando ou
adaptando ou reformulando os institutos tradicionais, ou concebendo institutos novos -, sempre com a preocupação de fazer com
que o processo tenha plena e total aderência à realidade sócio-jurídica a que se destina, cumprindo sua primordial vocação que é
a de servir de instrumento à efetiva realização dos direitos. É a
tendência ao istrumentalismo que se denominaria substancial em
contraposição ao instrumentalismo meramente nominal ou formal”.37
Para José Roberto dos Santos Bedaque, em sua obra Direito e Processo, “a
ciência processual no Brasil encontra-se na fase de sua evolução que autorizada doutrina identifica como instrumentalista. É a conscientização de que a importância do
processo está em seus resultados”.38
Para esse mesmo autor
“o legislador constituinte percebeu essa circunstância fundamental e,
em boa hora, estabeleceu considerável corpo de normas, que inte36 WATANABE, Kazuo. Da Cognição no Processo Civil. 2ª edição, Campinas: Bookseller, 2000, p. 19.
37 WATANABE, Kazuo. Da Cognição no Processo Civil. 2ª edição, Campinas: Bookseller, 2000, p. 20-21.
38 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo – Influência do Direito Material sobre o Processo. São
Paulo: Malheiros Editores, 1995, p. 14 apud Cf. Dinamarco, A Instrumentalidade, passim.
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gram o direito processual constitucional., pois elevam garantias processuais ao nível máximo da hierarquia das leis, além de consagrar
meios específicos para proteção de determinados direitos, com substancial ampliação da legitimidade para agir.39 Aliás, já notou a doutrina que as grandes matrizes do direito processual cada vez mais encontram-se disciplinadas em texto constitucional”.40
Nessa linha evolutiva da processualística, o direito processual passou por momento metodológico que a doutrina denomina de autonomia e conceitual.41 Hodiernamente, cônscios da importância de sua ciência, da imprescindibilidade do instrumento para a própria sobrevivência do direito material, necessário que o processualista passe a se preocupar com os resultados de sua atividade.42
Oportuna é a colocação do Prof. Bedaque quando diz que
“talvez a noção mais importante do direito processual moderno
seja a de instrumentalidade, no sentido de que o processo constitui instrumento para a tutela do direito substancial. Está a serviço
deste, para garantir sua efetividade. A conseqüência dessa premissa é a necessidade de adequação e adaptação do instrumento ao
seu objeto. O processo é um instrumento, e, como tal, deve adequar-se ao objeto com que opera. Suas regras técnicas devem ser
aptas a servir ao fim que se destinam, motivo pelo qual se pode
afirmar ser relativa a autonomia do direito processual”.43
5.
A CÉLERE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL COMO UM COROLÁRIO DO
ACESSO À JUSTIÇA
Falar em instrumentalidade do processo é tocar na questão do tempo que leva
39 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo – Influência do Direito Material sobre o Processo. São
Paulo: Malheiros Editores, 1995, p. 14 apud “A merecer os maiores encômios encontra-se, na constituição de 1988,
um espetacular dimensionamento do direito constitucional processual, a convertê-lo num superdireito, ao ser maximizado seu potencial instrumental na defesa dos direitos individuais, coletivos, sociais, da nacionalidade e políticos” (cf. João Carlos Pestana de Aguiar, “A Constituição Federal de 1988 e o processo civil”, p. 62).
Sálvio de Figueiredo Teixeira também ressalta a valorização da Justiça pela Constituição de 1988 e a considerável ampliação de instrumentos processuais de proteção aos direitos do cidadão (cf. “O aprimoramento do processo civil”,
p. 163)
40 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo – Influência do Direito Material sobre o Processo. São
Paulo: Malheiros Editores, 1995, p. 14 apud Cf. Arruda Alvim, Tratado, p. 23
41 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade, p. 17 e ss.
42 Cf. Bedaque, Direito e Processo – Influência do Direito Material sobre o Processo, cit., p. 18.
43 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo – Influência do Direito Material sobre o Processo. São
Paulo: Malheiros Editores, 1995, p. 18 apud Cf. Cappelletti, Proceso, pp. 24 e ss..
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a prestação jurisdicional, ou seja, o tempo do processo.
Para isso, lançamos mão da singular obra do Prof. Marinoni (Novas linhas do
Processo Civil) que trata do tema com muita sensibilidade e ainda, de um escrito
seu, publicado no livro “Garantias Constitucionais do Processo Civil” sob o título de
“Garantia da Tempestividade da Tutela Jurisdicional”.
Para o renomado autor,
“a lentidão na justiça civil deve exigir cada vez mais atenção dos
estudiosos do processo civil. Não há dúvida de que um dos principais leitmotiv recorrentes na história do processo seja o problema
da relação entre a aspiração à certeza – a exigir a ponderação e
a meditação da decisão no esforço de evitar a injustiça – e a exigência de rapidez na conclusão do próprio processo.44
Luiz Guilherme Marinoni, citando o jurista italiano Vittorio Denti (La giustizia
civile, Bologna, II Mulino, 1989, p. 73) aduz que “a tutela jurisdicional somente é
efetiva quando é tempestiva”.45
Marinoni, citando o prof. Donaldo Armelin “Acesso à justiça”, cit. pp. 172-173,
aduz que a ‘morosidade da prestação jurisdicional sempre foi uma questão a desafiar a argúcia e o talento dos cientistas do processo e dos legisladores. A bula Clementina Saepe demonstra que, há séculos, tal problema afligia a todos, tal como
ocorre na atualidade. Todavia, não será ele resolvido apenas através de leis, devendo mesmo se arredar tal enfoque que constitui marca de subdesenvolvimento, o de
se pensar que problemas marcadamente econômicos possam ter soluções meramente legislativas’.
Marinoni, lembra que o “conselho de magistratura italiana já declarou que um
juízo lento e intrincado, como aquele imposto à atual organização processual judiciária italiana, dá lugar a fenômenos de compressão dos direitos fundamentais do cidadão”.46
E continua:
“é obvio que a morosidade processual estrangula os direitos fundamentais do cidadão. E o pior é que, algumas vezes, a morosidade
da justiça é opção dos próprios detentores do poder. Não é intuiti-
44 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas do Processo Civil. 4ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.
32 apud Cf. Federico Carpi, La provvisoria esecutorietà della sentenza, Milano, Giuffrè, 1979, p. 11.
45 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 219.
46 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas do Processo Civil. 4ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.
33 apud Carpi, idem, ibidem, p.12.
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va, por exemplo, a razão de ser da lei que proibiu, à época do denominado ‘plano Collor’, a concessão da medida liminar e a execução provisória da sentença na cautelar e no mandado de segurança? O uso arbitrário do poder, sem dúvida, caminha na razão
proporcional inversa da efetividade da tutela jurisdicional. É flagrante, ainda, que o abuso político, e nessa linha a própria desconsideração ao princípio da separação dos Poderes, encontra
campo aberto na inefetividade (= lentidão) do processo, sendo suficiente pensar, sob esse enfoque, no controle da constitucionalidade das leis por via direta”.47
Citando ainda Marinoni, este aduz que
“talvez falte vontade política para a redução da demora processual. Tal demora, segundo alguns, não seria meramente acidental,
mas fruto de vários interesses, até mesmo o de limitar o afluxo de
litígios ao Poder Judiciário. Devemos afastar, porém, a idéia simplista de que o juiz é o culpado pela demora do processo, ou mesmo pela falta de qualidade do seu serviço. Essa questão, obviamente, passa por uma dimensão muito mais profunda, ou seja, pela
própria ideologia que permite que o Poder Judiciário seja o que é,
pois, como é intuitivo, nada, absolutamente nada possui uma determinada configuração sem razão ou motivo algum. Nessa perspectiva até poderíamos dizer que nenhuma ‘justiça’ é boa ou má,
ou efetiva ou inefetiva, já que ela sempre será da ‘forma’ que os detentores do poder a desejarem e, portanto, para alguns, sempre
‘boa’ e ‘efetiva’. Aliás, em pesquisa realizada pelo IDESP (Instituto
de Estudos Sociais e Políticos), na qual foram ouvidos 351 juízes de
vários Estados, foi alcançada a unanimidade: todos os entrevistados (ou seja, 100%) afirmaram que a justiça é muito lenta.”48
Para o prof. Marinoni,
“a questão da morosidade do processo está ligada, fundamentalmente, á estrutura do Poder Judiciário e ao sistema de tutela dos
direitos. O bom funcionamento do Poder Judiciário depende de
47 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas do Processo Civil. 4ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.
33.
48 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas do Processo Civil. 4ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.
33-34.
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faculdade de direito de bauru
uma série de fatores, exigindo, entre outras coisa, relação adequada entre o número de juízes e o número de processos.”49
E arremata: “a lentidão do processo pode transformar o princípio da igualdade processual, na expressão de Calamandrei, em ‘coisa irrisória’.50 A morosidade gera a descrença do povo na justiça; o cidadão se vê desestimulado de recorrer ao Poder Judiciário quando toma conhecimento de sua lentidão e dos males
(angústias e sofrimentos psicológicos) que podem ser provocados pela morosidade da litispendência.51 Entretanto, o cidadão tem direito a uma justiça que lhe
garanta uma resposta dentro de um prazo razoável. Como disse Héctor Fix Zamudio, em excelente trabalho tratando da situação da justiça na América Latina,
‘se há elevado a la categoría de derecho fundamental de los justiciables, el de la
resolución de los procesos en un plazo razonable’.52 Aliás, a Convenção Européia
para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, em seu artigo
6º, § 1º, garante que toda pessoa tem direito a uma audiência equitativa e pública, dentro de uma prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, ao
passo que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu artigo 8º que tem plena vigência no território brasileiro, em face do artigo 5º, § 2º, da
Constituição Federal -, afirma que ‘toda pessoa tem direito de ser ouvida com as
devidas garantias e dentro de um prazo razoável...’”.53
49 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas do Processo Civil. 4ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.
34.
50 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas do Processo Civil. 4ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.
36 apud Piero Calamandrei, Processo e democrazia, cit., p.146
51 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas do Processo Civil. 4ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.
36 apud Como anota Cândido R. Dinamarco, “a litispendência não deveria ser, na vida das pessoas, um peso maior
que o necessário. Mas é. Adiam-se audiências com extrema freqüência e isso obriga as pessoas a sucessivos comparecimentos. Os serviços da infra-estrutura cartorária são muito burocráticos e desatualizados” (Cândido R. Dinamarco, A instrumentalidade do processo, cit., 278)
52 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas do Processo Civil. 4ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.
36 apud Héctor Fix-Zamudio, Constitución y proceso civil en Latinoamérica, México, Unam, 1974, p. 33.
53 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas do Processo Civil. 4ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.
36 apud Assim dispõe, segundo Fix-Zamudio, o mencionado artigo: “En la determinación de sus derechos y obligaciones civiles o de cualquier acusación criminal contra ella, toda persona tiene derecho a una audiencia equitativa
y pública, dentro de un plazo razonable por un tribunal independiente e imparcial, establecido por la ley. La sentencia será pronunciada en público pero podrá excluirse a la prensa o al público de todo o parte del juicio por consideraciones de moral, orden público o seguridad nacional en una sociedad democrática o cuando lo exija el interés de los menores o la protección de la vida privada de las partes o, en la medida estrictamente necesaria a juicio
del tribunal, cuando por circunstancias especiales del asunto la publicidad pudiera perjudicar a los intereses de la
justicia” (Héctor Fix-Zamudio, Constitución y proceso civil en Latinoamérica, cit., 1974, p. 22).
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6.
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A EXECUÇÃO IMEDIATA DA SENTENÇA COMO ALTERNATIVA DIANTE DA DEMORA DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL
Todavia, não fiquemos aqui apenas a criticar. Precisamos buscar instrumentos
eficazes dentro do ordenamento jurídico que se prestem a isso ou até mesmo propugnarmos para uma reforma neste sentido, embora a expectativa das Lei 10.352 e
10.358 de.... que alteraram substanciosamente alguns dispositivos do Código de Processo Civil, com o fito de dar mais efetividade às decisões de primeiro grau diminuindo-se, assim, o tempo da prestação jurisdicional.
Para tanto, o prof. Marinoni nos leva a fazer uma leitura moderna do Artigo 5º,
XXXV da Constituição Federal quando diz que “nenhuma lei excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Para ele, “tal norma, segundo uma
leitura inicial, consagraria apenas o direito de o cidadão reclamar em juízo contra
qualquer lesão ou ameaça a direito”.54
Mas, sob uma nova visão que atenda efetivamente os escopos sociais do processo faz surgir a idéia de que essa norma constitucional garante não só o direito de
ação, mas a possibilidade de uma acesso efetivo à justiça e, assim, um direito à tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva.55
Lógico e atual é o pensamento de Marinoni ao dizer que
“não teria cabimento entender, com efeito, que a Constituição da
República garante ao cidadão que pode afirmar uma lesão ou
uma ameaça a direito apenas e tão somente uma resposta, independentemente de ser ela efetiva e tempestiva. Ora, se o direito de
acesso à justiça é um direito fundamental, porque garantidor de
todos os demais, não há como imaginar que a Constituição da República proclama apenas que todos têm o direito a uma mera resposta do juiz. O direito a uma mera resposta do juiz não é suficiente para garantir os demais direitos e, portanto, não pode ser pensado com uma garantia fundamental de justiça”.56
Ao falarmos em tempestividade da tutela jurisdicional, não podemos esquecer
do duplo grau que embora útil à democracia, muitos vezes é entrave para uma célere prestação jurisdicional. Marinoni, assim, também entende quando assevera que
54 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 218.
55 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, cit., p. 218.
56 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 218.
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faculdade de direito de bauru
“para que o Estado possa se desincumbir do seu dever de prestar a
tutela jurisdicional, garantindo o direito do cidadão a uma tutela
jurisdicional tempestiva e adequada, é imprescindível que, em determinados casos, em nome da oralidade e de uma maior celeridade, seja eliminado o duplo grau. Nos demais, isto é, naqueles em
que o duplo grau deve prevalecer, deve ser instituída, em razão de
importantes direitos constitucionais, a execução imediata da sentença como regra. Se não for assim, a sentença do juiz de primeiro grau continuará valendo pouca coisa, já que poderá, o máximo, influenciar o espírito do julgador de segundo grau – e nesse
sentido ainda revestirá a forma de um projeto da verdadeira e
única decisão -, mas jamais resolver concretamente os conflitos,
tarefa que o cidadão imagina que todo juiz deve cumprir”.57
No tocante a este tópico brilhante e elucidativo é o ensinamento do prof. Marinoni:
“Chiovenda dizia, em frase que se tornou célebre, que ‘la durata del processo non deve andare a danno dell’attore che há ragione’.58
Entretanto, parece evidente e indiscutível que todo processo prejudica o autor que tem razão e beneficia o réu que não a tem na mesma proporção. Isto por
uma razão muito simples: se o autor reivindica um bem da vida, que está na esfera
jurídico-patrimonial do demandado, o tempo necessário para a definição do litígio
em que o autor tem razão faz com que o réu mantenha indevidamente o bem no
seu patrimônio, o que logicamente o beneficia. Ora esse benefício tem um custo,
que é o prejuízo imposto ao autor.
Como adverte Nicolò Trocker, em seu importante Processo civile e Costituzione, uma justiça realizada com atraso é sobretudo um grave mal social; provoca danos econômicos (imobilizando bens e capitais) favorece a especulação e a insolvência e acentua a discriminação entre os que podem perder. Um processo que se desenrola por longo tempo – nas palavras de Trocker – torna-se um cômodo instrumento de ameaça e pressão, uma arma formidável nas mãos do mais forte para ditar ao adversário as condições da sua rendição.59 Se o tempo do processo prejudica
57 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 222.
58 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 223 apud Giuseppe Chiovenda, Sulla perpetuatio iurisdictionis. Saggi di diritto processuale civile, Roma, 930, p. 264 e ss.
59 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 223 apud Nicolo
Trocker, Processo civile e Costituzione, cit., p. 276-277.
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N.
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261
o autor que tem razão, tal prejuízo aumenta de tamanho na proporção da necessidade do demandante, o que confirma o que já dizia Carnelutti há muito, ou seja, que
a duração do processo agrava progressivamente o peso sobre as costas da parte mais
fraca.60
O problema do tempo do processo não diz respeito apenas á possibilidade de
o autor sofrer ‘um dano irreparável ou de difícil reparação’, que abre ensejo, conforme o caso, à tutela cautelar ou à tutela antecipatória. A questão do ‘tempo’ é absolutamente inseparável da noção de processo, ainda que não esteja em jogo qualquer
receio de ‘dano irreparável ou de difícil reparação. Em outras palavras, o processo,
para cumprir o princípio da isonomia, não pode deixar de distribuir de forma isonômica o ônus do tempo entre os litigantes.
O que parece não se enxergar é que se o tempo do processo deve ser visto como
um ‘inimigo contra o qual o juiz deve lutar sem tréguas’ como preconizou Carnelutti , não é o autor que tem que suportá-lo, como se fosse o ‘culpado’ pela demora inerente à definição dos litígios. O medo de um juiz parcial, ou o receio de que a ‘liberdade’
do indivíduo pudesse ser ameaçada cegaram os processualistas por um bom período
de tempo para a obviedade de que o autor e o réu devem ser tratados de forma isonômica no processo. O que se quer dizer, em outros termos, é justamente que o processo que desconhece a tutela antecipatória e sujeita a sua sentença, no que tange à possibilidade de produção de efeitos concretos, incondicionadamente à confirmação de
um segundo juízo, é um processo construído para o réu.
Se é assim, não há motivo para alguém se assustar quando constata que o processo, retoricamente proclamado como um instrumento jurisdicional que não pode
prejudicar o autor que tem razão, acaba na realidade sempre o prejudicando. O mais
lamentável de tudo isso, de fato é que o processo tornou-se, com o passar do tempo, um lugar propício para o réu se beneficiar economicamente às custas do autor,
o que fez surgir o fenômeno do abuso do direito de defesa.
Uma das formas preferidas pela parte interessada em procrastinar os feitos é
o recurso61já que ele permite que o réu mantenha indevidamente o bem na sua esfera jurídico-patrimonial por mais um bom período de tempo. O recurso, nesse sentido, é uma excelente desculpa para o réu sem razão beneficiar-se ainda mais do processo em detrimento do autor. Como bem ressaltou Capelletti no seu parecer iconoclástico sobre a reforma do processo civil italiano,
60 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 223 apud Fracesco Carnelutti, Diritto e processo, Napoli, Morano, 1958, p.357.
61 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 223 apud Ver Romano Vacarella, Bruno Capponi e Claudio Cechela, Il processo civile dopo le riforme, Torino, Giappichelli, 1992, p.
279.
faculdade de direito de bauru
262
‘el hecho es que, cada vez que se añade un nuevo grado de jurisdicción, no solamente se le hace un buen servicio a la parte que no
tiene razón, sino que se le hace un también obviamente un mal
servicio, a la parte que la tiene. El exceso de garantías se vuelve
contra el sistema.’62
Destaca-se que
‘o conflito entre o direito à tempestividade da tutela jurisdicional
e o direito à cognição definitiva deve ser solucionado a partir da
evidência do direito do autor. Se o autor deseja, já no início do
processo, obter o bem que postula, o certo é que o direito somente
pode ser dito evidente, na maioria das vezes, quando o juiz está
em condições de proferir a sentença. Entretanto, se o juiz declara
a existência do direito, não há razão para o autor ser obrigado a
suportar o tempo do recurso. A sentença, até prova em contrário,
é um ato legítimo e justo.
Uma alteração no Código de Processo Civil, transformando-se a
execução imediata da sentença em regra, parece imprescindível
para uma distribuição isonômica do ônus do tempo entre os litigantes. É claro que um sistema que admite a execução imediata
da sentença como regra deve abrir oportunidade para o juiz, ou
mesmo o tribunal, obstar ou suspender a execução imediata em
vista de situações particulares ou especiais. O sistema processual,
dessa forma, estará oferecendo, na terminologia de Furno, os ‘pesos’ e ‘contrapesos’ necessários para que os diferentes casos concretos possam ser adequadamente tutelados.”63
7.
POR UMA NOVA VISÃO
O que se pretendeu demonstrar até aqui, é que o princípio do devido processo legal vem evoluindo conceitualmente longo do tempo, não restringindo-se apenas a mais uma cláusula protetora da vida, liberdade e propriedade. Sob seu manto
protetor abriga todos os direitos outorgados pela Constituição Federal, como o da
62 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 223 apud Mauro
Cappelletti, Dictamen iconoclastico sobre la reforma del proceso civil italiano, in Proceso, ideologías, sociedad, cit.,
p. 279.
63 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 223-227.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
N.
38
263
privacidade, da informação, do julgamento justo e imparcial, da fundamentação das
decisões, da mais ampla defesa, do contraditório, do direito de o réu falar por último etc.
Como preconiza Silveira, “pode-se dizer, com certeza, que o devido processo
contaminou todos os direitos fundamentais (inclusive os políticos) e as liberdades e
franquias constitucionais, fazendo com que o teste ácido de qualquer imposição estatal passe sob seu crivo dominador”.64
BIBLIOGRAFIA
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo – Influência do Direito Material sobre o Processo. São Paulo: Malheiros Editores, 1995.
CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil – Compilação
e atualização dos textos, notas, revisão e índices. 13ª ed., São Paulo: Atlas, 1999.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do Processo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1996.
GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de 1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 1999.
MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas do Processo Civil. 4ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2000.
KELSEN, Hans. O que é Justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução Luís Carlos Borges. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Silveira, Paulo Fernando. Devido processo legal – Due process of Law. Belo Horizonte: Del
Rey, 1996.
WATANABE, Kazuo. Da Cognição no Processo Civil. 2ª edição, Campinas: Bookseller, 2000.
64 Silveira, Paulo Fernando. Op. cit. p. 291.
EXECUÇÃO DAS CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS.
ENFOQUES PROCESSUAIS
Francisco Antonio de Oliveira
Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho,
ex-Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região e
Mestre e Doutor em Direito do Trabalho pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP.
1.
NOTAS INTRODUTÓRIAS
O poder público, ressalvadas honrosas exceções, sempre foi mal administrador das contas públicas. O INSS não foge à regra. Até hoje não possui qualquer controle sobre a sua arrecadação. Um simples esforço projecional, levando em conta o
número de trabalhadores existentes no Brasil, distribuídos em faixas salariais viria
demonstrar que a arrecadação previdenciária é suficiente a atender aos seus compromissos. Ao invés disso, admitindo em ato confesso a sua incompetência, busca o
aumento do índice da cota previdenciária, perseguindo, agora, a exemplo do governo anterior que o atual governo taxava de neoliberal, a imposição da contribuição
previdenciária também aos aposentados. Vale dizer, àqueles que já contribuíram
com antecedência dentro das normas legais (princípio de vigência de lei material).
É bem verdade que a economia informal, hoje no patamar de 64.6%, traduz fator de
ausência de arrecadação. Todavia, a economia informal se combate com o crescimento do Produto Interno Bruto e com uma reforma fiscal honesta em que o imposto pago não seja escorchante e que a retribuição pelo Estado seja em consonância com aquilo que se cobra, pois é o crescimento que gera empregos e que garante poder aquisitivo ao povo. E é esse mesmo povo que recolhe tributos.
faculdade de direito de bauru
266
De algum tempo para cá, o INSS descobriu que a Justiça do Trabalho tem, por
assim dizer, o dom da alquimia em termos de arrecadação de imposto de renda e de
cotas previdenciárias. Só no exercício de 2002, a Justiça do Trabalho como um todo
arrecadou para o INSS cerca de um bilhão e trezentos milhões de reais, sendo quarenta por cento desse total arrecadado pela 2ª e 15ª Regiões, conforme informações
do próprio órgão por meio de ofício.
2.
DAS SONEGAÇÕES
De tempos para cá, vem o Poder Público procurando colocar obstáculos legais
com o objetivo de minimizar a sonegação fiscal, lançando mão até mesmo de tipificações extremadas no campo penal. É exemplo a Lei 9.983/2000 que acrescentou ao
Código Penal, o art. 168-A: “Deixar de repassar à Previdência Social as contribuições
recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional”. Criou-se a
apropriação indébita previdenciária. Seguem os arts. 313-A, 313-B, 337-A, todos objetivando dificultar a sonegação na previdência. Com esse mesmo objetivo a disposição inusitada da Lei 8.212/91, no art. 43: “... o juiz, sob pena de responsabilidade,
determinará o imediato recolhimento das importâncias devidas à Seguridade Social”
(redação dada pela Lei nº 8.620/93). O lamentável de tudo isso é que o maior devedor do INSS é o próprio Poder Público, pois União, Estados e Municípios, salva honrosas exceções, se é que existem, nunca recolheram INSS e FGTS.
3.
DA OBRIGAÇÃO SEM COMPETÊNCIA
Numa análise objetiva, verifica-se certo açodamento do legislador ordinário,
quando resolveu investir contra o juiz trabalhista, responsabilizando-o, caso não determinasse o imediato recolhimento das importâncias devidas à seguridade social. A verdade é que a lei autorizava o juiz a “determinar”, mas isso não significava que lhe fosse
dada competência, uma vez que não tinha poderes para agir manu militari. Se determinada, a sua ordem não fosse cumprida, o juiz apenas poderia notificar a Previdência,
nos termos do art. 44 da Lei 8.212/91, cabendo a esta o procedimento administrativo
para a constituição do “crédito tributário”, por meio do lançamento e inscrição da dívida (art. 2º, § 3º, da Lei 6.830/80 – LEF), atividade essa vinculada e obrigatória, sob pena
de responsabilidade funcional (art. 142 do Código Tributário Nacional, Lei Complementar 5.172/66). Nesse passo, a cobrança judicial da dívida ativa era da competência
da Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, CF e da Lei 6.830/80.
4.
DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20/98
Com o advento da Emenda Constitucional nº 20/98, a situação se modifica e
o Juiz do Trabalho ganhou competência para agir de ofício, executando as contribui-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
N.
38
267
ções sociais previstas no art. 195, I, “a”, e II, da Constituição e respectivos acréscimos legais, decorrentes das sentenças que viesse a prolatar; ou acordos que viesse
a homologar (art. 831, parágrafo único, da CLT, de conformidade com a Lei 10.035,
de 25.10.2000). Com a Emenda Constitucional, o Juiz do Trabalho passa a ter competência para determinar o cumprimento da obrigação como também para aplicar
a necessária sanção. Conceder poderes para determinar sem ter, em contrapartida,
poderes para aplicar sanção em caso de resistência é o mesmo que desprestigiar a
autoridade. O juiz somente deve determinar o cumprimento daquilo que poderá
exigir o cumprimento: manu militari.
4.1 Da competência relativa
Aflora da Emenda Constitucional nº 20/98, com a inclusão do § 3º ao artigo
114 da Constituição Federal, que o Juiz do Trabalho tem competência apenas para
executar de ofício as contribuições sociais previstas na letra “a” do inciso I, bem assim no inciso II do art. 195 da Constituição Federal. Vale dizer, a competência está
gizada àqueles recolhimentos provenientes das sentenças proferidas na Justiça do
Trabalho, e nos acordos homologados, a saber: “I – do empregador, da empresa e
da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários
e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa
física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício”. É interessante verificar aqui que, em não sendo o caso de vínculo empregatício, a ação será julgada improcedente, não havendo o que executar a título de cota previdenciária. “II – do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição
sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de
que trata o art. 201”.
4.2 Da competência originária
Permanece a competência originária dos Juízes Federais, prevista no art. 109
da Constituição:
“as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa
pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés,
assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidente
de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho”.
É interessante notar que, enquanto a competência do Juiz Federal (art.109, I,
CF) é para processar e julgar, aí incluída naturalmente a execução dos seus julgados,
a competência do Juiz do Trabalho está balizada à mera execução. Não haverá qual-
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quer processamento ou julgamento pelo Juiz do Trabalho, uma vez que o órgão previdenciário não ocupa o pólo ativo da ação em que será executada a cota previdenciária, apresentando-se como simples interessado o que lhe confere a prerrogativa
legal de recorrer (art. 832, § 4º, CLT, com redação dada pela Lei 10.035/2000).
4.3 Da restrição competencial
Embora prima facie se possa concluir que a Emenda Constitucional nº 20/98
teria ampliado a competência do Juiz do Trabalho, fê-lo, todavia, da forma mais parcimoniosa possível, não lhe dando competência para processar e julgar matéria previdenciária, mas tão-somente para “executar”. Do que resulta que a Justiça do Trabalho não pode imiscuir-se em julgamento meritório de causa previdenciária, pena
de usurpação de competência, pois estaria adentrando ao campo de incompetência
absoluta. Sua competência está restrita a executar aquilo que se pode chamar de reflexo de suas sentenças em termos previdenciários. Poderá, contudo, e isso se apresenta em termos de virtualidade, resolver situações incidentais ligadas ao tema previdenciário. A execução está limitada às contribuições sociais que tenham nexo de
causalidade com a matéria apreciada na sentença prolatada pelo Juiz do Trabalho.
Vale dizer, o fato gerador aflora do inciso I, letra “a”, do art. 195 da CF e diz respeito aos rendimentos pagos ou creditados ao trabalhador, com base no salário-contribuição.
5.
DO PRINCÍPIO “JUIZ DA AÇÃO – JUIZ DA EXECUÇÃO”
De conformidade com a teoria geral do processo, o juiz da ação é também o
juiz da execução (art. 575, II, CPC). Vale dizer, aquele juízo que conhece do processo, instrui e julga, também será o competente para proceder à execução, transformando em realidade o comando abstrato da sentença prolatada. Excepciona o art.
87 do Código de Processo Civil, que cuida da perpetuatio jurisdictiones, a saber:
“Determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo
quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia”. Esta é apenas mais uma exceção que vem juntar-se a outras,
v.g., execução de títulos extrajudiciais (art. 576 do CPC), termos de conciliação firmados perante as Comissões de Conciliação Prévia (art. 876 da CLT), termos de
ajuste de conduta firmados perante o Ministério Público (art. 876 da CLT) (Nota: O
art. 5º, § 6º, da Lei 7.347/85 permite que todos os órgãos públicos legitimados para
ação civil pública possam assinar termo de compromisso de ajustamento de conduta). A Justiça do Trabalho somente reconhece como título extrajudicial o termo de
compromisso de ajuste de conduta assinado pelo Ministério Público do Trabalho e
os termos de conciliação firmados perante as Comissões de Conciliação Prévia (arts.
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269
876, CLT). Some-se, ainda, o caso da ação monitória, de aplicação subsidiária no processo do trabalho (art. 1.102-A usque 1.102-C do CPC).
6.
DA CONSTITUCIONALIDADE DO § 3º, DO ART. 114 DA CONSTITUIÇÃO
Poder-se-ia num esforço exegético discutir a inconstitucionalidade do § 3º
acrescido ao art. 114 da Constituição pela Emenda Constitucional nº 20/98, sob o argumento de que o juiz não poderá agir de ofício, pena de desprestigiar o devido
processo legal, o princípio do contraditório e o da ampla defesa. Argumentar, ainda,
que o tema “contribuições sociais”, ressalvadas honrosas exceções, sequer será objeto da petição inicial, não articulado, por conclusão lógica, pedido de condenação
em tais “contribuições”, não havendo apresentação de defesa prequestionando o
tema.
Viria, então, a pergunta: como executar aquilo que não foi objeto do pedido,
não passou pelo crivo do contraditório, não foi objeto de condenação e, por conseqüência lógica, não transitou em julgado? A pergunta, à primeira vista, seria irrespondível, em se considerando que as contribuições sociais haveriam de ser objeto
de regular pedido, permitido o prequestionamento da matéria a ser instruída por
meio de defesa, com posterior condenação ou não. Em caso positivo, haveria a possibilidade de execução. Mas, de imediato surgiria uma outra questão: a da legitimidade. O empregado teria legitimidade para pleitear que, sobre as verbas de natureza salarial que lhe fossem devidas, fosse também condenada a empresa ao recolhimento da contribuição devida à Previdência? A resposta seria não. O direito substancial devido sobre a “contribuição social” pertence à Previdência. Logo, a legitimidade também é da Previdência. Mas se houver o ajuizamento de uma ação objetivando a cobrança das “contribuições sociais”, a legitimidade para titular a ação será também da Previdência. Nesta hipótese, a competência material e funcional será da Justiça Federal. Voltamos ao início. O parágrafo 3º do art.114 da CF permite que o Juiz
do Trabalho apenas execute. Temos, na prática, casos idênticos que dizem respeito
à condenação de custas ou de honorários advocatícios. Ainda que o autor da demanda não peça expressamente a condenação em custas e em honorários advocatícios
(Súmula nº 256 do STF), o juiz acrescentará a condenação de ofício. Os exemplos
citados estão a indicar que, ao prolatar a sentença ou a homologar um acordo, o juiz
deixe expresso, de ofício, que será devida a “contribuição social” em favor da previdência nos termos legais. Basta este pequeno acréscimo para que se elimine toda e
qualquer discussão sobre o tema.
Poder-se-á ainda dizer que o § 3º incrustado no art. 114 da CF atenta contra a
independência dos Poderes, pois teria por escopo a transformação de órgão judicante em órgão arrecadador, vinculado à autarquia do Poder Executivo. Também
aqui, pelos mesmos motivos retro, a alegação não teria acolhida. A arrecadação da
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faculdade de direito de bauru
“contribuição previdenciária” pouco ou nada difere do recolhimento de custas. E o
recolhimento destas se traduz em pressuposto objetivo para o processamento de
recurso.
Por mais que nos esforcemos, não vemos como tisnar de inconstitucional o §
3º do art. 114 da CF. De resto, deve o julgador e intérprete esforçar-se para dar implementabilidade à norma. A lei nova tem presunção de bom senso. “Deve o intérprete manter-se fiel à lei, procurando, todavia, sem destruí-la, ajustá-la aos fatos sociais” (Saleilles, em prefácio à obra de Geny “Droit Privé Positif ”).
7.
DA NATUREZA JURÍDICA DO TÍTULO EXECUTIVO
Tem-se, de início, que a execução determinada pelo § 3º do art. 114, da CF,
não teria base em título executivo, pois não fora objeto de pedido, de defesa, de sentença e muito menos de trânsito em julgado.
Como então se enquadraria a presença do órgão da Previdência em sede executiva, podendo até mesmo recorrer (art. 832, § 4º, CLT). Terceiro interessado nem
pensar, pois a Previdência não é simples interessada, mas titular do direito.
Também não se poderá falar em procedimento meramente administrativo,
pois a execução da “contribuição social” tem base em verbas salariais oriundas de
sentença prolatada na Justiça do Trabalho ou em acordo homologado em sede trabalhista, ambos com força de coisa julgada. Logo, a execução da “contribuição social” se faz em sede jurisdicional. Tem-se, pois, que tanto a cobrança de custas como
a cobrança da contribuição para a previdência tem conotação de acessoriedade com
a causa principal no que pertine com o crédito trabalhista do trabalhador. Daí a possibilidade de execução, ainda que não tenha sido objeto de pedido.
8.
DA POSSIBILIDADE DO INSS RECORRER
Há de se exercer rigoroso controle sobre os processos que sobem com recurso do INSS para que o volume não venha inviabilizar o trabalho desenvolvido nos
Regionais. Se isso viesse a acontecer, estar-se-ia desvirtuando o objetivo do processo trabalhista, em detrimento do hipossuficiente e da preferência do crédito alimentar (art 100, CF; art. 186, do CTN; arts. 29 e 30 da Lei 6.830/80 – LEF).
Comanda o tecido legal celetista (art. 831, parágrafo único) que havendo conciliação, o termo que for lavrado valerá como decisão irrecorrível, salvo para a Previdência Social quanto às contribuições que forem devidas. A nova redação do parágrafo único (Lei 10.035/2000), excepciona a regra de que todo acordo transita em
julgado imediatamente. Evidente, pois, que caberá ao juiz efetuar o controle da matéria trazida à discussão recursal, indeferindo o processamento do recurso sempre
que a discussão não tiver suporte objetivo claro ou descambar para a simples imper-
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271
tinência. A discussão previdenciária não poderá ser de molde a prejudicar o bom andamento dos processos trabalhistas. Quando o agravo de petição versar apenas sobre contribuições, o juiz determinará a extração de cópias necessárias, fazendo autuação em apartado, conforme § 3º, art. 897 da CLT.
9.
DA LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA
Por ocasião da liquidação da sentença exeqüenda deverá ser apurada também
a “contribuição social” devida. As partes serão previamente intimadas para a apresentação de cálculos, inclusive da contribuição previdenciária incidente. Na oportunidade, o INSS será intimado, por via postal, para manifestação em dez dias.
Quando da liquidação do “quantum”, este será executado ex officio. Fica facultado ao devedor efetuar o pagamento imediato do valor que achar devido à Previdência Social, sem prejuízo da cobrança futura de eventuais diferenças levantadas
posteriormente. Tendo a parte conseguido parcelamento do débito previdenciário,
deverá juntar aos autos documento comprobatório do ajuste, ficando suspensa a
execução. De qualquer modo, a execução fiscal trabalhista das contribuições previdenciárias deverá observar um valor mínimo na forma disposta no art. 54 da Lei
8.212/91, cabendo ao INSS a fixação desse valor unilateralmente.
9.1 Do prazo do INSS para impugnação
A partir de 1992 (Lei 8.432/92), a impugnação à sentença de liquidação passou
a ser de dez dias (§ 2º do art. 879 da CLT). A ausência de impugnação devidamente
articulada, não se aceitando impugnação genérica, desaguará na preclusão.
9.2 Do recolhimento das contribuições sociais
As importâncias devidas a este título deverão ser depositadas nas agências locais da Caixa Econômica Federal ou do Banco do Brasil, por intermédio do documento de arrecadação próprio da Previdência Social, onde constará, obrigatoriamente, o número do processo que deu origem àquele depósito. As Varas do Trabalho deverão compilar cópias das guias do recolhimento ocorrido durante o mês, remetendo-as a órgão competente do INSS.
10. DO ACORDO HOMOLOGADO E A CONTRIBUIÇÃO SOCIAL
Há de se distinguir duas espécies de acordo: aquele levado a efeito antes do
trânsito em julgado e aquele levado a efeito depois do trânsito em julgado. Deve-se,
ainda, ter em vista que o direito da Previdência à contribuição surge com o trânsito
em julgado. Se assim é, no acordo levado a efeito antes do trânsito em julgado, a
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faculdade de direito de bauru
contribuição será calculada sobre as verbas salariais provenientes do acordo. Isso
porque nenhum direito havia adquirido o INSS, ainda. Todavia, se a sentença já adquiriu o status da res judicata, nesse momento surgiu o direito da Previdência. O
que significa que nada impedirá que o acordo seja levado a efeito entre as partes.
Todavia, a contribuição social será calculada sobre as verbas garantidas pela coisa julgada. A conclusão é óbvia, pois não pode o autor transigir sobre aquilo que não lhe
pertence. Essa mesma regra é aplicável com relação às custas processuais.
11. DO GRUPO ECONÔMICO
Dispõe o inciso IX, do art. 30, da Lei 8.212/91 que “as empresas que integram
grupo econômico de qualquer natureza respondem entre si, solidariamente, pelas
obrigações decorrentes desta lei”. Pergunta que surge imediatamente é se terá aplicabilidade o Enunciado nº 205. Temos para nós que referido enunciado afronta o
art. 2º, § 2º, da CLT quando pretende que qualquer empresa do grupo, para ser responsabilizada, participe da ação e faça parte dos limites subjetivos da coisa julgada.
O entendimento cristalizado no enunciado leva a situação inusitada, pois pelo mesmo raciocínio não se poderia responsabilizar o sócio da empresa. Vale dizer, seguindo-se a lógica do enunciado, quando se propõe ação contra a empresa, devem-se
também colocar no pólo passivo os sócios para que possam ser responsabilizados
numa futura execução. Todavia, nem a Justiça Comum faz tal exigência (art. 596, I,
CPC). Uma outra pergunta surge: O juiz de ofício passaria a chamar à lide todas as
empresas do grupo nas ações de conhecimento para que possam ser responsabilizadas não só pelas verbas trabalhistas, mas também pelas contribuições previdenciárias? A resposta é não. A Lei 8.212/91, art. 30, inciso, IX, é por demais clara. Qualquer
empresa do grupo poderá ser acionada na fase executória para responder pelas contribuições sociais. Essa mesma regra está insculpida no art. 121, inciso II do Código
Tributário Nacional, de resto também aplicável aos créditos trabalhistas nos termos
do art. 889, da CLT. Como se vê, o Enunciado nº 205 desprestigia a lei, dificulta a
execução e incentiva a discussão protelatória.
12. DA PRESCRIÇÃO
Dispõe o art. 46 da Lei 8.212/91 que “O direito de cobrar os créditos da Seguridade Social, constituídos na forma do artigo anterior, prescreve em 10 (dez) anos”.
É bem de ver que a contribuição social não traduz acessório das ações ou de acordos trabalhistas. Embora tenha nexo de causalidade, constitui direito autônomo da
Previdência. Disso se conclui que as regras celetistas são inaplicáveis, prevalecendo
as regras próprias. Se não localizado o devedor ou não encontrados bens sobre os
quais possa recair a penhora, o juiz suspenderá o curso da execução. Em ocorrendo
a hipótese, aplicáveis os preceitos do art. 40 da Lei 6.830/80 aos créditos trabalhista
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e previdenciário. Para que tal ocorra, é necessário que a liquidação tenha sido efetuada e o devedor tenha sido citado (art. 611, do CPC), sob pena de incorrer na
prescrição intercorrente. Note-se que o art. 40 da LEF permite o sobrestamento,
quando não for possível efetuar a penhora. Do que resulta que a parte já fora citada
para pagar em 48 horas (via postal, oficial ou edital) e não ofereceu bens e nem foram encontrados.
Medida Liminar em Tutela Antecipatória
Reis Friede
Mestre e Doutor em Direito,
é Magistrado Federal e
ex-Membro do Ministério Público e
autor da obra “Aspectos Fundamentais das Medidas Liminares em
Mandado de Segurança, Ação Cautelar, Tutela Antecipada e
Tutela Específica”, 5ª ed., Ed. Forense Universitária, RJ (810 ps.)
A rigor, não existe propriamente o que se convencionou chamar de medida liminar, no sentido formal de provimento administrativo-cautelar, em tutela antecipatória, não obstante, seja cediço reconhecer, em uma tradução ampla, a plena licitude quanto à conclusão corrente pela presença de um instrumento jurídico, provisório e antecedente, assemelhado ao consagrado instituto liminar, na disciplina normativa da denominada tutela antecipada, ainda que com natureza finalística diversa
e sem qualquer possibilidade de deferimento ex officio e inaudita altera pars.
(Resta Oportuno assinalar que a expressão liminar, do latim liminare, traduz,
em uma linguagem ampla, todo o tipo de procedimento antecedente ao mérito.
Nesse sentido genérico, portanto, é plenamente aceitável afirmar que o instituto da
tutela antecipada coaduna com o provimento liminar, ainda que, em termos mais rigorosos (e técnicos) seja preferível interpretar o instrumental antecipatório como
não perfeitamente compatível com a convencionalmente designada medida liminar).
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faculdade de direito de bauru
“Salvo no caso do art. 461, não cabe a concessão de tutela antecipada inaudita altera parte” (RT 735/359).
“O nosso ordenamento jurídico acolhe, por regra constitucional, o
respeito ao devido processo legal. Com exceção a esse princípio, em
determinadas situações, a Lei Processual admite a concessão de liminares inaudita altera pars. Expressamente, o instituto criado
pelo art. 273 do CPC, não menciona a possibilidade de concessão
de liminar, antes da citação. Em se cuidando da antecipação da
tutela, somente no art. 461 é que se vislumbra a possibilidade. A
antecipação da tutela, antes da citação, será viável somente em
casos que, por sua especialidade, exijam do julgador uma tal providência” (Ac. un. Da 1ª Câm. do TJMT de 12.08.96, no Ag. 6.380,
rel. des. Barros Filho).
“Inadmissível a concessão de antecipação de tutela pelo Juiz antes
da citação do demandado para oferecimento de sua defesa, a fim
de verificar a existência de prova inequívoca e convencimento de
verossimilhança da alegação” (Ac. un. da 2ª Câm. do TJMT de
13.05.1997, no Ag. 7.198, rel. des. Benedito Pereira do Nascimento)
“O provimento antecipado tem por escopo adiantar o provimento
final, apreciando-se initio litis o mérito do pedido. Provimento de
cunho exauriente, embora reversível.
Impossibilidade de concessão da medida inaudita altera pars. Inteligência dos arts. 273 e 461, § 3o do CPC.
Inexistência de ilegalidade ou abuso de poder.” (TRF/3a Região,
Agrar 03013493, 1a T/SP, DJ 30/6/96, rel. juiz Sinval Antunes, unânime).
Aliás, esse é o pensamento dotado de maior rigor técnico e amplamente dominante, também na doutrina vertente.
(De qualquer sorte, é fundamental assinalar e, sobretudo, esclarecer que, na
hipótese de eventual concessão da tutela antecipada (por se tratar de tutela de mérito) há sempre o obstáculo maior (e, nesse sentido, superável) caracterizado pela efetiva presença do princípio constitucional do contraditório (na hipótese, contraditório
material) a impedir, de forma invencível, o deferimento da antecipação sem a oitiva
prévia da parte contrária, considerando, particularmente, que a própria referibilidade
ao direito material, inerente ao processo de conhecimento (onde se encontra inserido
o instituto da tutela antecipada), por si só invalida qualquer mecanismo desafiador do
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princípio maior, sem o qual qualquer decisão meritória (mesmo que antecipada e,
neste especial, reversível (e de cognição sumária)) somente pode ser procedida pelo
julgador após a necessária manifestação de ambas as partes litigantes.
Tal obstáculo - é importante esclarecer - inexiste de modo sinérgico, na tutela
cautelar, posto que neste caso, de forma diversa da tutela antecipada, não há discussão sobre a questão de fundo (merito cause), existindo tão somente uma referibilidade processual (intrínseca) que, de nenhuma forma concerne ao direito material controvertido, permitindo, em caráter excepcional, a caracterização do denominado contraditório formal que, embora, a exemplo do contraditório material, deva
ser sempre observado a priori (ou seja, com a oitiva prévia de ambas as partes),
pode ser observado a posteriori, ou seja, após o eventual deferimento da medida
acautelatória, em face do próprio objetivo de preservação que é indiscutivelmente
inerente à tutela cautelar).
“O requerimento de uma tutela antecipada é feito por petição, nos
próprios autos do processo, sem a abertura de apenso. Nada obsta
a que, na própria inicial, demonstrando os pressupostos do caput
do inciso I (não do inciso II que, evidentemente, só se verifica diante da resposta ou da conduta protelatória do réu) e do §2º do art.
273, o autor requeira, desde logo, a antecipação. O juiz, todavia,
em nenhuma hipótese, a concederá liminarmente, ou sem audiência do réu, que terá oportunidade de se manifestar sobre o pedido,
na contestação, caso ele tenha sido formulado, na inicial, ou no
prazo de cinco dias (art. 185), se feito em petição avulsa.” (Sérgio
Bermudes, in A Reforma do CPC, Freitas Bastos, Rio de Janeiro,
1995, p. 36)
“Inexiste possibilidade de antecipação da tutela, no processo de conhecimento, antes da citação do réu e oferecimento de sua defesa ou
transcurso do prazo para ela previsto. (...) (J.J. Calmon de Passos, in
Inovações do CPC, 2ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 1995, p. 13)
Ainda assim, determinados autores, e mesmo alguns julgadores, - dentre estes muitos confundindo os diferentes objetivos da tutela antecipada (de feição satisfativa e exauriente) e da tutela cautelar (de natureza acautelatória e não-exauriente)
-, insistem em afirmar pela plena possibilidade de se prover liminarmente (e sem audiência da parte contrária) a tutela antecipada, o que tem motivado, de certa forma,
o Poder Executivo (através de medidas provisórias) e o Poder Legislativo (por intermédio de sua competência constitucional) a, de modo atécnico e, em certo sentido,
redundante, impor limites disciplinadores no que concerne à concessão da tutela
antecipatória.
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“Se urgente o deferimento da medida de antecipação de tutela, sob
pena da possibilidade de ocorrência de grave, ou irreparável
dano, a mesma deve ser assegurada liminarmente (ou seja, antes
da ouvida do réu) a tutela, ouvindo-se em seguida aquele” (Francisco Cavalcante, in Inovações no Processo Civil, Editora Del Rey,
Belo Horizonte, 1995, p. 50).
“A inovação mais importante instituída pela Lei nº 8.952, de 1994,
foi, sem dúvida, a que autoriza o juiz, em caráter geral, a conceder liminar satisfativa em qualquer ação de conhecimento, desde
que preenchidos os requisitos que o novo texto do art. 273 arrola
(...)” (Humberto Theodoro Jr., in As Inovações no CPC, 2ª edição,
Forense, Rio de Janeiro, p. 11).
De qualquer forma, ao que tudo indica, parece restar evidente à parcela majoritária (e mais tecnicamente capacitada), tanto da doutrina como da jurisprudência, as nítidas (e insuperáveis) diferenças, sobretudo finalísticos, de ambos os institutos (antecipatória e cautelar) (1), afastando, neste diapasão analítico, qualquer
possibilidade de concessão de provimento liminar (2), - no sentido específico de
medida urgente desafiadora do princípio basilar do contraditório -, em tutela antecipada, mormente se considerarmos o aspecto meritório (satisfativo e exauriente)
que a mesma forçosamente contém em sua efetivação, ainda que parcial.
“Tutela antecipada não se confunde com medida liminar, eis que
nesta a providência se destina a assegurar a eficácia prática da
decisão judicial posterior, enquanto que naquela existe o adiantamento do próprio pedido de ação” (Ac. un. da 5a Câm. do TJRJ de
10.12.1996, no Ag. 4.266/96, rel. des. Miguel Pachá; RDTJRJ 32/240)
“A tutela antecipada nada mais é que um adiantamento da prestação jurisdicional, incidindo sobre o próprio direito reclamado,
e não consiste em uma maneira de ampará-lo, como acontece
com as cautelares. O art. 273 do CPC coloca como requisitos para
a antecipação da tutela a existência de prova inequívoca da verossimilhança da alegação, o fundado receio de dano irreparável
ou de difícil reparação ou que fique caracterizada a resistência
da parte adversa. Cândido Rangel Dinamarco, ao lecionar que o
objeto da antecipação é a própria tutela requerida no processo, assevera com precisão:
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‘A técnica engendrada pelo novo art. 273 consiste em
oferecer rapidamente a quem veio ao processo pedir
determinada solução para situação que descreve, precisamente aquela solução que ele veio ao processo pedir. Não se tratar de obter medida que impeça o perecimento do direito, ou que assegure ao titular a possibilidade de exercê-lo no futuro. A medida antecipatória conceder-lhe-á o exercício do próprio direito afirmado pelo autor’ (in A Reforma do Código de Processo Civil, Malheiros Editores, 1995, p. 139).
Já no procedimento cautelar não se antecipa a prestação jurisdicional buscada na lide principal, pois isso implicaria atribuir-lhe
o caráter de execução provisória da sentença a ser prolatada no
processo principal, o que não é possível. Diversamente do que
ocorre com a tutela antecipada, instituída pelo art. 273 do CPC
para a admissibilidade da ação cautelar, além dos requisitos que
devem ser observados em qualquer demanda, dentre eles os pressupostos processuais e condições da ação devem estar presentes o
fumus boni iuris, ou seja, a plausibilidade do direito invocado
pela parte e o periculum in mora ou o fundado temor de dano a
direito de uma das partes.
Assim, não se pode dizer que com o advento do instituto da tutela
antecipada o credor não possa valer-se das ações cautelares que
entender por bem ajuizar para amparar o direito ameaçado, estando em pleno vigor o Livro III do Código de Processo Civil, que
cuida do Processo Cautelar e medidas cautelares” (Ac. un. da 1a.
T. do TJMS de 10.10.95, na Ap. 45.065-3, rel. des. Chaves Martins; Adcoas, de 20.06.1996, nº 8.150.292).
1.
NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS IMPEDITIVAS (OU RESTRITIVAS) QUANTO À CONCESSÃO DA TUTELA ANTECIPATÓRIA
No que tange ao instituto da tutela antecipada genérica (art. 273 do CPC) e específica (art. 461 do CPC), de forma diversa da tutela cautelar (e de seus respectivos
provimentos liminares), basicamente existe apenas um único ato normativo, editado pelo Poder Legislativo, objetivando impor limites à concessão da tutela antecipatória contra o Poder Público.
Em termos mais precisos, trata-se da Lei nº 9.494, de 10 de setembro de 1997,
que, por sua vez, originou-se do texto da Medida Provisória nº 1.570, inicialmente
editada em 26 de março de 1997.
280
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Esta mencionada MP nº 1.570/97, é importante assinalar, impôs, na verdade
(numa razoável confusão legislativa), uma série de restrições a diversos instrumentos jurídicos, alterando expressamente o texto da Lei nº 8.437/92 (basicamente uma
disciplina normativa limitadora de medidas liminares, de feição cautelar) e da Lei nº
7.347/85, relativo à disciplina legal da ação civil pública.
MEDIDA PROVISÓRIA N.º 1.570, DE 26 DE MARÇO DE 1997.
(Disciplina a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda
Pública, altera as Leis nos 8.437, de 30 de junho de 1992, e 7.347,
de 24 de julho de 1985, e dá outras providências.)
“Art. 1.º. Aplica-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461
do Código de Processo Civil o dispositivo nos arts. 5.º e seu parágrafo único e 7.º da Lei n.º 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. 1.º e
seu parág. 4.º da Lei n.º 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1.º,
3.º e 4.º da Lei n.º 8.437, de 30 de junho de 1992.
Art. 2.º. O art. 1.º da Lei n.º 8.437, de 30 de junho de 1992, passa a
vigorar acrescido do seguinte parágrafo:
‘Parág. 4.º. Sempre que houver possibilidade de a pessoa jurídica de direito público requerida vir a sofrer
dano, em virtude da concessão de liminar, ou de qualquer medida de caráter antecipatório, o juiz ou o relator determinará a prestação de garantia real ou fidejussória’.
Art. 3.º. O art. 16 da Lei n.º 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a
vigorar com a seguinte redação:
‘Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão
prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova’.
Art. 4.º. Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação (27/03/97)”.
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A medida provisória em questão foi reeditada em 24 de abril de 1997 (MP nº
1.570-1) já com alterações, suprimindo, desta feita, a anterior modificação consagrada no art. 2o. da versão original, que foi reputada inconstitucional pelo STF.
MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1570-1, DE 24 DE ABRIL DE 1997
(Disciplina a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda
Pública, altera as Leis nºs 8.437, de 30 de junho de 1992, e 7.347, de
24 de julho de 1985, e dá outras providências)
“Art. 1o. Aplica-se à tutela antecipada prevista nos artigos 273 e 461
do Código de Processo Civil o disposto nos artigos 5o. e seu parágrafo único e 7o. da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no artigo 1o e seu §4o. da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992.
Art. 2o. O artigo 16 da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a
vigorar com a seguinte redação:
‘Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão
prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova’.
Art. 3o. Ficam convalidados os atos praticados com base na Medida Provisória nº 1570, de 26 de março de 1997.
Art. 4.º. Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação”.
As subseqüentes reedições (MP’s nºs 1.570-2, 1.570-3, 1.570-4 e 1.570-5) repetiram, na íntegra, o texto da MP nº 1.570-1, permitindo que, em 10 de setembro de
1997, fosse editada a Lei nº 9.494 com base no texto último da MP nº 1.570-5, de 21
de agosto de 1997.
Ainda assim, de forma, no mínimo, surpreendente, o Poder Executivo editou
a MP nº 1.798/99, alterando, dentre outras, o texto da Lei nº 9.494/97, criando novas restrições, de modo geral, ao Poder Jurisdicional, e atingindo, de uma certa feita, a disciplina normativa da tutela antecipada que, em termos objetivos, continua
restringida diretamente pelo art. 1o. da Lei nº 9.494/97 e, agora, indiretamente, pelo
art. 2o. B do mesmo ato normativo.
282
faculdade de direito de bauru
LEI Nº 9.494, DE 10 DE SETEMBRO DE 1997
(Disciplina a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda
Pública, altera a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, e dá outras
providências)
“Art. 1o. Aplica-se à tutela antecipada prevista nos artigos 273 e 461
do Código de Processo Civil o disposto nos artigos 5o. e seu parágrafo único e 7o. da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no artigo 1o e seu §4o da Lei nº 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos artigos
1o, 3o e 4o da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992.
(Sobre a eficácia jurídica do presente dispositivo legal, resta
consignar que o ‘STF, por votação majoritária, deferiu, em parte, o pedido de medida cautelar para suspender, com eficácia ex nunc e com efeito
vinculante até final julgamento da ação, a prolação de qualquer decisão
sobre o pedido de tutela antecipada contra a Fazenda Pública, que tenha
por pressuposto a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade do art.
1o da Lei nº 9.494, de 10.09.97, sustando ainda, com a mesma eficácia,
os efeitos futuros dessas decisões antecipatórias de tutela já proferidas
contra a Fazenda Pública, vencidos, em parte, o Ministro Néri da Silveira,
que deferia a medida cautelar em menor extensão, e, integralmente, os
Ministros Ilmar Galvão e Marco Aurélio, que a indeferiram. Votou o
Presidente’ (STF-Pleno, ADC 4-UF, rel. min. Sydney Sanches, j. 11.2.98,
DJU 13.2.98, Seç. 1, p. 1).
Art. 1o A. Estão dispensadas de depósito prévio, para interposição
de recurso, as pessoas jurídicas de direito público federais, estaduais, distritais e municipais.
Art. 1º B. O prazo a que se refere o caput dos arts. 730 do Código de
Processo Civil, e 884 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, passa a ser
de trinta dias.
Art. 1º C. Prescreverá em cinco anos o direito de obter indenização
dos danos causados por agentes de pessoas jurídicas de direito público e de pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos.
(artigos 1º A/B/C acrescentados por força do art. 4º da MP nº
2.102/2001)
Revista do instituto de pesquisas e estudos
N.
38
283
Art. 2o. - O art. 16 da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a
vigorar com a seguinte redação:
‘Art. 16 - A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão
prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.’
Art. 2o. A - A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo
proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangem apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da
competência territorial do órgão prolator.
Parágrafo único - Nas ações coletivas propostas contra entidade da
administração direta, autárquica e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a petição inicial deverá
obrigatoriamente estar instruída com o ato da assembléia da entidade associativa que a autorizou, acompanhada da relação nominal
dos seus associados e indicação dos respectivos endereços.
Art. 2o. B - A sentença que tenha por objeto a liberação de recurso,
inclusão em folha de pagamento, reclassificação, equiparação,
concessão de aumento ou extensão de vantagens a servidores da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive
de suas autarquias e fundações, somente poderá ser executada
após seu trânsito em julgado”.
Parágrafo único - A sentença proferida em ação cautelar só poderá ter caráter satisfativo quando transitada em julgado e sentença
proferida na ação principal.”
(artigo 2o. A, 2o. B e respectivos parágrafos únicos, acrescentados
por força da MP nº 2.102/2001)
Art. 3o. - Ficam convalidados os atos praticados com base na Medida Provisória nº 1.570-4, de 22 de julho de 1997.
Art. 4o. - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”
284
faculdade de direito de bauru
(É importante assinalar que o texto original da MP nº 1.570, de 26.03.97, aludia, em seu art. 2o, a uma importante modificação na Lei nº 8.437, de 30 de junho
de 1992, vazada nos seguintes termos:
“Art. 2o. - O art. 1o. da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo:
‘§4o. - Sempre que houver possibilidade de a pessoa jurídica de direito
público requerida vir a sofrer dano, em virtude de concessão de liminar,
ou de qualquer medida de caráter antecipatório, o juiz ou o relator
determinará a prestação de garantia real ou fidejussória.”
O STF, em 15.04.97, no entanto, suspendeu a eficácia deste dispositivo por
seis votos a cinco (DJU 24.4.97, p.14.914), fazendo com que a Lei nº 9.494 tomasse
por base a MP nº 1.570-5 (5a. reedição) desprovida deste dispositivo e com a conseqüente renumeração dos demais)
1.1 Restrições Objetivas Previstas na Lei nº 9.494/97
Em termos objetivos, é lícito afirmar que as principais restrições à concessão
da tutela antecipada se encontram previstas no art. 1o da Lei nº 9.494/97 que, em seu
texto redacional, expressamente alude à aplicação dos arts. 5.º e 7.º da Lei n.º
4.348/64, art. 1.º da Lei n.º 5.021/66 e arts. 1.º, 3.º e 4.º da Lei n.º 8.437/92 aos institutos da tutela geral (art. 273 do CPC) e da tutela específica (art. 461 do CPC).
LEI N.º 4.348, DE 26 DE JUNHO DE 1964
“Art. 5.º. Não será concedida a medida liminar de mandados de segurança impetrados visando à reclassificação ou equiparação de
servidores públicos, ou à concessão de aumento ou extensão de
vantagens.
Parág. único. Os mandados de segurança a que se refere este artigo serão executados depois de transitada em julgado a respectiva
sentença.
Art. 7.º. O recurso voluntário ou ex officio, interposto de decisão
concessiva de mandado de segurança, que importe outorga ou
adição de vencimento ou ainda reclassificação funcional, terá
efeito suspensivo”.
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LEI N.º 5.021, DE 9 DE JUNHO DE 1966
“Art. 1.º. O pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias assegurados, em sentença concessiva de mandado de segurança, a
servidor público federal, da administração direta ou autárquica,
e a servidor público estadual e municipal, somente será efetuado
relativamente às prestações que se vencerem a contar da data do
ajuizamento da inicial.
Parág. 4.º. Não se concederá medida liminar para efeito de pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias”.
LEI N.º 8.437, DE 30 DE JUNHO DE 1992
“Art. 1.º. Não será cabível medida liminar contra atos do Poder Público, no procedimento cautelar ou em quaisquer outras ações de
natureza cautelar ou preventiva, toda vez que providência semelhante não puder ser concedida em ações de mandado de segurança, em virtude de vedação legal.
§1º Não será cabível, no juízo de primeiro grau, medida cautelar
inominada ou a sua liminar, quando impugnado ato de autoridade sujeita, na via de mandado de segurança, à competência originária de tribunal.
§2º O disposto no parágrafo anterior não se aplica aos processos
de ação popular e de ação civil pública.
§3º Não será cabível medida liminar que esgote, no todo ou em
qualquer parte, o objeto da ação.
§4º Nos casos em que cabível medida liminar, sem prejuízo da comunicação ao dirigente do órgão ou entidade, o respectivo representante judicial dela será imediatamente intimado.
§5º Não será cabível medida liminar que defira compensação de
créditos tributários ou previdenciários.
(Parágrafos 4º e 5º acrescentados por força da MP nº 2.102/2001)
Art. 3.º. O recurso voluntário ou ex-officio, interposto contra sentença em processo cautelar, proferida contra pessoa jurídica de direito
público ou seus agentes, que importe em outorga ou adição de vencimentos ou de reclassificação funcional, terá efeito suspensivo.
Art. 4.º. Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho funda-
286
faculdade de direito de bauru
mentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público
ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de
manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para
evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.”
§1º Aplica-se o disposto neste artigo à sentença proferida em processo de ação cautelar inominada, no processo de ação popular e
na ação civil pública, enquanto não transitada em julgado.
§2º O Presidente do Tribunal poderá ouvir o autor e o Ministério
Público, em setenta e duas horas.
§3º Do despacho que conceder ou negar a suspensão, caberá agravo, no prazo de cinco dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte a sua interposição.
§4º Se do julgamento do agravo de que trata o §3º resultar a manutenção ou o restabelecimento da decisão que se pretende suspender, caberá novo pedido de suspensão ao Presidente do Tribunal competente para conhecer de eventual recurso especial ou extraordinário.
§5º É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o §4º,
quando negado provimento a agravo de instrumento interposto
contra a liminar a que se refere este artigo.
§6º A interposição do agravo de instrumento contra liminar concedida nas ações movidas contra o Poder Público e seus agentes
não prejudica nem condiciona o julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo.
§7º O Presidente do Tribunal poderá conferir ao pedido efeito suspensivo liminar, se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade do
direito invocado e a urgência na concessão da medida.
§8º As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em
uma única decisão, podendo o Presidente do Tribunal estender os
efeitos da suspensão a liminares supervenientes, mediante simples
aditamento do pedido original.
(Parágrafos 2º ao 8º com redação determinada pela MP nº
2.102/2001)
Também, segundo o texto normativo da Lei n.º 9.494/97, fica alterado o art. 16
da Lei n.º 7.347, de 24 de julho de 1985, que passa a viger com a seguinte redação:
“A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da
competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for
Revista do instituto de pesquisas e estudos
N.
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287
julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que
qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”.
Se considerarmos, em seu conjunto, as restrições impostas pela nova lei vertente - em uma interpretação hermenêutica de feição sistêmica - encerram, sobretudo, limitações para o deferimento da medida liminar (na verdade, antecipação in
limine, como já nos referimos) em tutela específica (art. 461, parág. 3.º, do CPC),
possuindo, no que tange à denominada antecipação de tutela geral, prevista no art.
273 do CPC, no mínimo, alcance menor, na própria medida que inexiste na hipótese provimento liminar inaudita altera pars, conforme já nos referimos.
Por efeito, o disposto no art. 5.º. da Lei n.º 4.348/64 e a previsão ínsita no parágrafo 4.º do art. 1.º da Lei n.º 5.021/66 cingem-se, pelo menos em princípio, a pretensas medidas liminares deferidas sem a audiência da parte contrária (possuindo,
neste sentido, nítida característica cautelar), o que, em todos os casos, não encontra respaldo de aplicabilidade prática no que tange ao instituto da chamada tutela
antecipada (art. 273 do CPC), considerando que o escopo de atuação da antecipação meritória somente se efetiva após a resposta do réu (ou de audiência específica) e da conseqüente caracterização do contraditório.
Como, por outro prisma, os arts. 1.º e 3.º da Lei n.º 8.437/92 aludem expressamente a procedimento cautelar, de inconteste natureza diversa em relação ao instituto antecipatório (que, por sua vez, apresenta-se com indiscutível matiz cognitiva), resta, nesta acepção, a absoluta inaplicabilidade efetiva da restrição sub examen
e, por efeito conseqüente, a sinérgica possibilidade legal de se prover, pelo menos
em princípio, a antecipação meritória pretendida, com fulcro no art. 273 do CPC,
após a oitiva do réu (integrante da Fazenda Pública), independente de outras condicionantes legais, com exceção das que tenham por objeto recursos públicos, em
face da restrição imposta pelo art. 2o. B, introduzido por força da MP nº 1.798/99, e
ratificada pela MP nº 2.180/2001 (ainda que sem o anterior parágrafo único), verbis:
“Art. 2o. B - A sentença que tenha por objeto a liberação de recurso, inclusão em folha de pagamento, reclassificação, equiparação,
concessão de aumento ou extensão de vantagens a servidores da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive
de suas autarquias e fundações, somente poderá ser executada
após seu trânsito em julgado.
1.2 Recorribilidade Ampliada
Sob o aspecto recursal, todavia, a nova legislação restritiva da concessão de tutela antecipada parece ter plena e sinérgica efetividade.
288
faculdade de direito de bauru
Nesse sentido, o art. 7.º da Lei n.º 4.348/64, assim como os arts. 3.º e 4.º
da Lei n.º 8.437/92, ao incluir obrigatório efeito suspensivo nos recursos interpostos contra o deferimento da tutela antecipada, adiciona importante restrição
ao exercício da faculdade anterior de se prover (ou não) efeito suspensivo quando da apreciação do recurso de agravo, na modalidade por instrumento.
Desta feita, a anterior opção do julgador, quando da apreciação do recurso e de seu eventual provimento, simplesmente desaparece, ensejando lugar à
inafastável imposição do efeito suspensivo no eventual recurso interposto contra a antecipação porventura concedida no juízo originário.
Também, o recurso próprio e específico (e, neste particular, até então único) de agravo contra a concessão da antecipação de tutela enseja lugar a outras
possíveis modalidades recursais (até então inadimissíveis in casu), como o recurso administrativo de suspensão de efeitos da antecipação, apreciada pelo
presidente do tribunal a que se encontra vinculado o julgador originário.
1.3 Limites Quanto ao Objeto da Antecipação
Não obstante a doutrina mais abalizada sobre o tema sempre ter manifestado entendimento no sentido de que o objeto próprio e particular da antecipação de tutela meritória (arts. 273 do CPC) limita-se a prestações futuras (uma vez
que as prestações pretéritas (os denominados atrasados em se tratando de prestações periódicas) gozam da prerrogativa de pagamento (e quitação) através de
precatórios judiciais, o art. 1.º da Lei n.º 5.021/66, aplicável aos arts. 273 e 461
do CPC, não permite mais qualquer dúvida nesse particular, considerando a expressa disposição normativa impeditiva de qualquer forma de antecipação sobre
prestações vencidas e/ou anteriores ao ajuizamento da ação em que se deseja o
deferimento da tutela antecipada.
Aliás, mesmo antes do advento da disciplina legal restritiva em epígrafe,
expressiva parte da jurisprudência já nutria posicionamento neste sentido, verbis:
“Providência plenamente satisfativa da pretensão de direito
material, que essa Colenda Segunda Turma, a exemplo das demais que integram o egrégio tribunal, têm como ato ilegítimo,
que ao juízo não é dado proferir na antecipação de tutela
para pagamento de vantagens e vencimentos a servidores, aplica-se, por analogia, a vedação da Lei nº 5.021/66” (TRF/1a. Região, AG 0136882, 2a T/DF, DJ 12.05.97, rel. juiz Antônio Sávio,
maioria).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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289
1.4 Exigência de Prestação de Caução para o Deferimento da Antecipação de Tutela Cognitiva
Quanto ao acréscimo do parágrafo 4o. ao art. 1o. da Lei no. 8.437/92, por força
da MP nº 1.570/97, verbis:
“§4o. Sempre que houver possibilidade de a pessoa jurídica de direito público requerida vir a sofrer dano, em virtude de concessão
de liminar, ou de qualquer medida de caráter antecipatório, o
juiz ou o relator determinará a prestação de garantia real ou fidejussória.”;
deve ser consignado, em nosso entendimento, - de forma diversa do restante do texto normativo - a perfeita correção redacional do dispositivo em análise que expressamente alude, de maneira diferenciada, à concessão de medida liminar (de nítida
feição cautelar) e à concessão de medida antecipatória (como as previstas nos arts.
273 e 461 do CPC (de inconteste natureza cognitiva)), ambas em qualquer hipótese, passíveis, com fulcro neste regramento (embora no que diz respeito às providências cautelares já existisse disposição legal semelhante), de garantia real ou fidejussória, na qualidade de autêntica prestação contracautelar (ainda que na segunda hipótese (antecipação de tutela meritória) mais certo seria afirmar pela existência in
casu de verdadeira prestação cautelar de garantia).
De qualquer forma, cumpre registrar que o acréscimo normativo em questão
foi reputado, em votação apertada, seis votos a cinco (DJU 24.04.97, p.14.914), inconstitucional pelo STF, tendo sido suprimido das reedições subseqüentes da MP nº
1.570/97 e, conseqüentemente, não incorporado ao texto da vigente Lei nº
9.494/97.
1.5 Constitucionalidade da Lei nº 9.494/97
Em que pese algumas vozes discordantes, entendemos que inexiste, na atual
configuração vigente, qualquer vício de ineficácia jurídica (inconstitucionalidade) a
macular a Lei nº 9.494/97 em sua disciplina restritiva quanto à concessão da tutela
antecipada (art. 273 do CPC) ou da tutela específica (art. 461 do CPC), na própria
medida em que os institutos em questão não possuem natureza cautelar e, portanto, não encontram abrigo no princípio da inafastabilidade ampliada do controle jurisdicional (art. 5o., inciso XXXV, da CF/88).
A Sustação do Protesto Cambial através
de Tutela Antecipada e a Duplicata sem Aceite
Freddy Gonçalves Silva
Professor de Direito Civil/Comercial da Faculdade de Direito de Bauru - ITE
Gabriel Gonçalves Silva
Advogado
A Tutela Antecipada decorrente de Ação Ordinária tem se constituído em inovação das mais proveitosas para a ressalva de direitos, principalmente, com as recentes reformas do Código de Processo Civil, consubstanciadas no art. 461 e 273, §§ 6º e 7º, especialmente.
Antes disso, a doutrina e a jurisprudência vedavam a cumulação de ações para
atingir o objetivo da sustação do protesto. Após a cautelar, fundada exclusivamente no
chamado fumus boni juris, o autor dispunha do prazo de 30 dias para ajuizamento da
ação principal, invariavelmente de cunho declaratório, a teor do art. 806 do mesmo estatuto.
É que, na época, não existiam liminares em ações ordinárias de conhecimento,
vez que estavam previstas, apenas, em ações especiais, como as possessórias e o mandado de segurança; ou em ações cautelares, estas como preparatórias ou incidentes, podendo a ação principal versar “sobre a liquidez do título, da sua validade ou eficácia cambiária, sobre a existência ou não de negócio jurídico subjacente,
mas também colimar a sustação definitiva do protesto” 1
1 Julgados do Trib. de Alçada Civil de São Paulo, 64/106.
292
faculdade de direito de bauru
Com a inovação referida, extraindo-se da própria ação ordinária, a liminar para
sustar o protesto cambial, com suporte no instituto da “antecipação de tutela”,
eliminou-se uma medida em favor da celeridade e da economia processual, além de
tornar mais prático e eficaz o objetivo a ser atingido.
Todavia, considerando que a sustação de protesto envolve quase que invariavelmente um título de crédito, com referência à duplicata sem aceite, a medida se
afigura descabida, além de afrontante ao direito do credor, que fica ao sabor de dois
pesos e duas medidas.
Em primeiro lugar, por que a recusa do aceite pelo sacado da duplicata é considerado ilegal, tendo em vista que a lei faz referências expressas sobre as hipóteses
em que esta se torna admissível. Fora das hipóteses legais, a vinculação do sacado
ao título parece de rigor.
Como assevera Fábio Ulhoa Coelho:
“(...) dispõe o art. 8º da lei das duplicatas que a recusa só pode
ocorrer nos seguintes casos: a) avaria ou não recebimento das
mercadorias, quando transportadas por conta e risco do vendedor; b)vícios, defeitos e diferenças na qualidade ou na quantidade; c) divergências nos prazos ou preços combinados. Em suma, se
o comprador das mercadorias é devedor do preço correspondente
– porque o vendedor cumpriu com as suas obrigações, na execução do contrato de compra e venda – então ele não pode se recusar a ver sua dívida documentada por um título de efeitos cambiários, a duplicata”2
Daí infere-se, conforme o autor citado, que “o aceite da duplicata é obrigatório porque, se não há motivos para a recusa das mercadorias enviadas pelo sacador, o sacado se encontra vinculado ao pagamento do
título, mesmo que não o assine”3
Nesse sentido:
“Sustação de Protesto.Duplicata. Não cabe sustação por falta de aceite. No
ato do protesto caberá ao devedor alegar os motivos da recusa previsto no art 8º
da lei 5474/68” 4
Só por esse enfoque, verifica-se o primeiro obstáculo da sustação do protesto, especialmente por tutela antecipada, decorrente de ação ordinária, com fundamento no art. 273, §§ 6º e 7º do Código de Processo Civil.
2 Coelho, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial (De Acordo com o Novo Código Civil), p. 459, vol.1, ed.
Saraiva, São Paulo, 2002
3 In op. cit.,p.458
4 JTACSP 23/13
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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293
Com efeito, para que o juiz defira o pedido de antecipação de tutela, é de
fundamental importância a presença do fator “verossimilhança”, ou seja, da
plausibilidade do pedido, devidamente comprovada, porque tal antecipação,
como sabido, incide diretamente sobre o mérito, a despeito do seu caráter de reversibilidade (o que dificilmente ocorre na matéria exposta), seja pelo próprio juízo de 1ª instância, seja por juízo de retratação, através de agravo de instrumento,
pois que, neste último caso, não consegue o autor provar, para obtenção do efeito suspensivo, o chamado periculum in mora, como já foi julgado pelo Primeiro
Tribunal de Alçada Civil de São Paulo5. E, nessa ordem, sofre o credor sua primeira adversidade, - pois que não foi com a mesma exigência que beneficiouse o devedor da liminar -.
Assim sendo, quer me parecer, que a medida é pleiteada nos moldes da
cautelar, isto é, apenas com a presença do fumus boni juris, inserida numa história contada ao juízo, mas sem prova alguma do direito (pois existe comprovante da entrega da mercadoria e o devedor não declarou oportunamente as razões
da falta de aceite, nos termos da lei). Para antecipar a tutela, há necessidade do
juízo utilizar-se do princípio da “fungibilidade”, ou seja, transmudar de uma
situação para outra, com características idênticas, para a obtenção do resultado
prático.
Daí infere-se, sem detida análise, que o devedor-autor beneficia-se de uma antecipação de tutela, envolvendo liminar, sem prova alguma do direito pleiteado, violando princípio básico que rege a matéria, razão pela qual, pode o juiz revogá-la, até
mesmo de ofício, quando não se convencer da “verossimilhança” do pedido6.
Isso porque não cabe a antecipação de tutela nas cautelares, pois que nelas não há
julgamento de mérito7
Em segundo lugar e se não bastasse, advirta-se que o artigo 585, § 1º do Cód.
de Processo Civil, permite ao autor (no caso o credor e requerido na sustação de
protesto), o exercício do seu direito subjetivo de ação, objetivando a cobrança do
seu título pela via própria.
Em tais condições, qualquer que fosse o título de crédito, poderia esta extrair
certidão e ajuizar contra o seu devedor a competente ação de execução, de vez que
o protesto contra o devedor direto, se apresenta como meramente facultativo8, sendo viável, em casos tais, a renúncia do título, em seu original9, para a propositura da
medida cabível por simples certidão, extraída do cartório onde o mesmo se encontra, retido por ordem judicial, por força do protesto sustado.
5 Feito n.º 1199383- 4ª Câmara, Comarca de Pederneiras (SP), 26.05.03.
6 STJ - 3ª Turma –RSTJ, 152/311
7RT 785/266; JTJ 184/136.
8 Requião, Rubens. Curso de Direito Comercial, 2º vol., p. 356, ed. Saraiva, São Paulo, data
9 RT 585/221
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faculdade de direito de bauru
No caso da duplicata, porém, o seu protesto é absolutamente necessário ou
conservatório de direitos, para efeito de suprir o aceite e, conseqüentemente, conferir força executiva ao título, acompanhado que esteja da prova da entrega da mercadoria (artigos 14 e 15, I “a”, “b” e “c”, da Lei 5474/64). Daí convir que, somente em
CASOS EXCEPCIONAIS, admite-se a sustação do protesto da duplicata sem aceite, para evitar-se que “degenere em abuso, convertendo-se em meio violento de cobrança ou intimidação”10, ou outros idênticos, a merecer a pronta intervenção do Poder Judiciário.
Ora, frustrada com o protesto do título (principalmente quando procrastinatório o ato, de modo visível), como poderá o credor utilizar-se de seu direito de
ação? Como recorrer a uma certidão, se esta não consta o protesto necessário, como
atestado oficial do suprimento do aceite, para dar força executiva ao seu título? Deverá aguardar “anos a fio”, o desate da demanda, até seu trânsito em julgado, ou
por acaso confiar na caução “arranjada” às carreiras (caução inidônea) ou nem
sempre exigível? Evidente que não, até porque a Lei das Duplicatas, já referida, não
prevê a sustação de protesto para esta, quando desprovida de aceite, devendo o devedor consignar no próprio título as razões pelas quais deixou de aceitar a cambial,
conforme doutrina atual:
“A solução encontrada foi impedir, pela sustação, o protesto,mas,
declarar judicialmente o direito de regresso contra o endossatário
do título, que é um dos efeitos daquele ato notarial”11
Com efeito, em se tratando de outros títulos de crédito,
“Há decisões admitindo a juntada em xerocópia ou fotocópia autenticadas, obedecido o artigo 385, se o exeqüente justificar a impossibilidade de exibição do original, por estar junto a outro processo”12
“Não se pode, entretanto, obrigar o credor a aguardar o desfecho
da ação de conhecimento para exercer sua pretensão executória”13
“A propositura de ação para tornar inexeqüível o título, não impede o ajuizamento da execução: a existência de ação declaratória
de inexigibilidade de título, não obsta ao início da execução”14
10 RTJ, 75/247
11 Mamede, Gladson. Título de Crédito. De acordo com o Novo Código Civil – Lei 10.406 de 10.01.2002
– p. 172, ed. Atlas, São Paulo, em 2003.
12 STJ – 3ª Turma – RE 16.153 - RT 585/221; 781/249; JTA 41/72, 59/165
13 RSTJ 12/415 e 19/394
14 Negrão, Theotônio. Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor. Nota n.º 11, “c” ao artigo
265 RT 669/115/116, ed. Saraiva, 35ª edição, São Paulo, ano)
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E não é só.
A sustação de protesto, se não bastasse, não interrompe o prazo de prescrição para a propositura da ação executiva (RSTJ 51/286), deixando o credorcontestante, com a incumbência de interrompê-la, se necessário, diante de cada
caso.
Pelo exposto, se é verdade que a inovação ora referida, vêm permitindo a
providência conjunta, não menos exato, que a duplicata sem aceite não pode
servir de exemplo, pois que ela depende do protesto para suprimento do aceite
(Decreto-lei 436 de 27 de janeiro de 1969, que alterou a lei da duplicata), para
conferir liquidez e certeza ao título, e conseqüentemente força executiva, como
é expresso em lei.
Ironicamente, nem mesmo a ação monitória poderia ser utilizada na espécie, a despeito do seu caráter optativo no direito, tendo em vista que o autor decairia por falta de “interesse processual”, por dispor de título executivo, muito mais eficiente e com força cambial15
Por essa e outras razões de direito, considera-se de rigor a prova inequívoca na tutela antecipada, “e que convença da verossimilhança das alegações do autor, é que se autoriza o provimento antecipatório da tutela jurisdicional em processo de conhecimento” 16. E tal imposição, ninguém poderia suprir, quando tiver em mãos duplicata sem aceite, mas com prova da entrega da mercadoria, sem razões legais que justificassem a falta do aceite e sem colocar à disposição a mesma mercadoria.
“Não é cabível antecipação de tutela em ação que vise impedir
ao credor, a propositura de ação de cobrança”.17
Por tais fatos e considerando a regra expressa do art. 585, § 1º do C. P. Civil, o
benefício da liminar sem regramento específico e sem as provas necessárias que justificassem, seria como “santificar” o inadimplemento, em prejuízo flagrante de
uma das partes, principalmente quando ela se comporta nos estritos termos da lei.
Em conclusão: Onde está a mercadoria? Como ficam os prazos das prescrições ou decadenciais referentes à tradição e sua oferta ou depósito para que fique disponível ao vendedor (arts. 211 e 206 do Cód. Comercial), em se cuidando de compra e venda mercantil?
A matéria já foi apreciada pelo Egrégio TACSP18, sendo arredada do direito
brasileiro em qualquer das modalidades que envolva transação, seja no contrato
15 TJSP in Bol. AASP de 15 a 21/10/2001
16 RJTJERGS 179/251
17 DJU 10/04/00, p. 69
18 “Julgados”, 67/57
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de compra e venda mercantil, na distribuição, na concessão mercantil, ou outra
modalidade perfeita e acabada, sem qualquer das divergências ora apontadas
(art. 206,1ª parte, do Código Comercial e art. 8º, I a III da Lei 5474/68 – Lei das Duplicatas).
Aguarda-se, pois, que com a evolução do tema, possa a doutrina ou jurisprudência direcionar casos análogos, para que suposta evolução não venha constituirse em dois pesos e duas medidas em flagrante prejuízo de uma das partes.
Bauru, 14 de Junho de 2003.
A IMPOSSIBILIDADE DA COBRANÇA DO
TÍTULO DE CRÉDITO PRESCRITO
VIA PROCEDIMENTO MONITÓRIO
José Arnaldo Vitagliano
Advogado. Especialista Lato Sensu e Bacharel em Direito pela ITE – Bauru.
Mestre em Constituição e Processo pela UNAERP – Ribeirão Preto.
Licenciado em História e Estudos Sociais pela UNIFAC – Botucatu.
Professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil da FSP – Avaré/SP.
Professor de Contratos de Comércio Internacional da FACOL – Lençóis Paulista/SP.
1.
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
A Lei 9.079/95 criou o procedimento monitório, estabelecendo um tipo inédito de procedimento em nosso direito formal.1 Esse procedimento a visa a agilizar o
1 A Lei nº 9.079, de 14 de julho de 1995, modificando o Artigo 1.102 do Código de Processo Civil, criou a ação de
procedimento monitório, assim estabelecendo: Art. 1102a. A ação monitória compete a quem pretender, com base
em prova escrita sem eficácia de título executivo, pagamento de soma em dinheiro, entrega de coisa fungível ou de
determinado bem móvel. Art. 1102b. Estando a petição inicial devidamente instruída, o juiz deferirá de plano a expedição do mandado de pagamento ou de entrega da coisa no prazo de quinze dias. Art. 1102c. No prazo previsto
no artigo anterior, poderá o réu oferecer embargos, que suspenderão a eficácia do mandado inicial. Se os embargos não forem opostos, constituir-se-á, de pleno direito, o título executivo judicial, convertendo-se o mandado inicial em mandado executivo e prosseguindo-se na forma prevista no Livro II, Título II, Capítulos II e IV. § 1º Cumprindo o réu o mandado, ficará isento de custas e honorários advocatícios. § 2º Os embargos independem de prévia segurança do juízo e serão processados nos próprios autos, pelo procedimento ordinário. § 3º Rejeitados os embargos, constituir-se-á, de pleno direito, o título executivo judicial, intimando-se o devedor e prosseguindo-se na
forma prevista no Livro II, Título II, Capítulos II e IV.
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trâmite do processo de conhecimento, simplificando seu andamento quando o
autor for detentor de documento escrito sem força de título executivo e poupando o juiz de prolatar uma sentença, visto que, uma vez não apresentados os
embargos tempestivamente, o mandado de pagamento torna-se um mandado de
citação executivo, de onde se seguem atos como a penhora, a avaliação, etc. e o
procedimento passa a ser o executivo, previsto no Livro II do CPCB.
“A ação monitória é o meio processual diferenciado, pelo qual o credor de
quantia certa ou de coisa determinada visa a obter o reconhecimento e a concretização de seu direito, comprovado por documento hábil sem eficácia executiva”2.
“É o meio pelo qual o credor de quantia certa ou de coisa determinada, cujo crédito esteja comprovado por documento hábil,
requerendo a prolação de provimento judicial consubstanciado, em última análise, num mandado de pagamento ou de entrega de coisa, visa a obter a satisfação de seu direito”3.
“Trata-se de um remédio para eliminar, praticamente, o processo de conhecimento, permitindo ao credor substituir a comum
ação de cobrança por um expediente que atraia o devedor a
preferir o pagamento ao debate judicial. A ação monitória, portanto, foi criada em face da necessidade de se ter um procedimento intermediário que viabilizasse o pronto acesso da parte
à execução, sem percorrer os demorados trâmites processuais
impostos pelo rito ordinário.”4
A jurisprudência de nossos tribunais vem, ao nosso ver, data venia, erroneamente, admitindo a cobrança de título de crédito prescrito via ação de procedimento monitório.
A afirmação de que o acolhimento deste tipo de procedimento ao título de
crédito prescrito é errôneo deve-se ao fato de que, a ação, de procedimento monitório, nada mais é do que uma ação de conhecimento de rito especial onde se
visa a agilizar o andamento processual e conceder ao detentor do direito, configurado em um documento escrito sem força de título executivo, uma maior celeridade em sua pretensão.
2 RIBEIRO, P. B. FERREIRA, P. M. C. R. Curso de Direito Processual Civil. Unisíntese – Direito em CD-ROM. Porto
Alegre: Síntese, 1999. CD-ROM.
3 ZAVASCK, Teori Albino. Revista do Advogado da AASP, nº 46/75.
4 THEODORO JUNIOR, Humberto. Ação Monitória – prova escrita – conceito – iliquidez – momento de sua argüição. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil - nº 1 - Set-Out/99 – Pareceres p. 62.
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Trata-se, a ação monitória, de procedimento, de direito formal.5 No caso
do título de crédito prescrito, temos uma relação jurídica de direito material6
onde o direito encontra-se exaurido pela inércia do autor em ajuizar a ação competente no prazo legal. Esse título de crédito é regido por lei específica,7 lei material que prevê seu lapso temporal para execução, ação de cobrança, cognitiva,
portanto, tudo regido por lei material, que especifica a relação jurídica sui generis
ocorrente entre as partes que desse instituto jurídico se utilizarem, por livre e espontânea vontade.
Utilizar-se da ação de procedimento monitório quando da relação jurídica
regida materialmente por um título de crédito somente seria admissível se o título encontrasse despido de executividade, como é o caso, v. g., do cheque após
180 (cento e oitenta) dias de sua emissão, por dois anos depois de decorrido
esse interregno.8
5 Direito Formal: Diz-se do conjunto de regras mediante as quais o Estado e os indivíduos regulam e dirimem as
relações de direito material. Ex.: Direito Processual Civil. Vocabulário Enciclopédico de Tecnologia Jurídica e Brocardos Latinos. Folio Bound VIEWS. Rio de Janeiro, 1996. CD-ROM.
6 Direito Material: Diz-se do que estabelece a substância, a matéria da norma agendi. Vocabulário Enciclopédico
de Tecnologia Jurídica e Brocardos Latinos. Folio Bound VIEWS. Rio de Janeiro, 1996. CD-ROM.
7 Os títulos de créditos são previstos por lei específica; v. g.., cheque é previsto pela Lei 7357 de 1985, cujo Capítulo I trata da emissão e da forma do cheque in verbis: Art. 1º. O cheque contém: I - a denominação “cheque’’ inscrita no contexto do título e expressa na língua em que este é redigido; II - a ordem incondicional de pagar quantia
determinada; III - o nome do banco ou da instituição financeira que deve pagar (sacado); IV - a indicação do lugar
de pagamento; V - a indicação da data e do lugar da emissão; VI - a assinatura do emitente (sacador), ou de seu mandatário com poderes especiais. Parágrafo único. A assinatura do emitente ou a de seu mandatário com poderes especiais pode ser constituída, na forma da legislação específica, por chancela mecânica ou processo equivalente. Art.
2º. O título a que falte qualquer dos requisitos enumerados no artigo precedente não vale como cheque, salvo nos
casos determinados a seguir: I - na falta de indicação especial, é considerado lugar de pagamento o lugar designado junto ao nome do sacado, se designados vários lugares, o cheque é pagável no primeiro deles; não existindo
qualquer indicação, o cheque é pagável no lugar de sua emissão; II - não indicado o lugar de emissão, considera-se
emitido o cheque no lugar indicado junto ao nome do emitente. Art. 3º. O cheque é emitido contra banco, ou instituição financeira que lhe seja equiparada, sob pena de não valer como cheque. Art. 4º. O emitente deve ter fundos disponíveis em poder do sacado e estar autorizado a sobre eles emitir cheque, em virtude de contrato expresso ou tácito. A infração desses preceitos não prejudica a validade do título como cheque. § 1º. A existência de fundos disponíveis é verificada no momento da apresentação do cheque para pagamento. § 2º. Consideram-se fundos
disponíveis: a) os créditos constantes de conta corrente bancária não subordinados a termo; b) o saldo exigível de
conta corrente contratual; c) a soma proveniente de abertura de crédito.
8 A mencionada Lei do cheque, em seu artigo 59 assim determina: Art. 59. Prescrevem em 6 (seis) meses, contados
da expiração do prazo de apresentação, a ação que o art. 47 desta Lei assegura ao portador. Parágrafo único. A ação
de regresso de um obrigado ao pagamento do cheque contra outro prescreve em 6 (seis) meses, contados do dia
em que o obrigado pagou o cheque ou do dia em que foi demandado. Art. 60. A interrupção da prescrição produz
efeito somente contra o obrigado em relação ao qual foi promovido o ato interruptivo. Art. 61. A ação de enriquecimento contra o emitente ou outros obrigados, que se locupletaram injustamente com o não-pagamento do cheque, prescreve em 2 (dois) anos, contados do dia em que se consumar a prescrição prevista no art. 59 e seu parágrafo desta Lei.
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Agora, após dois anos e cento e oitenta dias, não vemos como pode ser possível a cobrança via procedimento monitório do cheque então prescrito, despido de
qualquer ação que assegure seu recebimento tendo em vista a presença do instituto da prescrição.9 Falar-se que, se pode ser cobrado, via ação monitória, um papel
qualquer onde exista a confissão de uma dívida, deve-se então ser aceito o título de
crédito prescrito devido o fato de que se trata de papel muito mais importante é,
para nos, um equívoco grave, pois, ao firmar-se, as partes, promessa qualquer de dívida em um papel qualquer, estão elas sujeitas à legislação material pertinente, que
trata da ação pessoal própria, prevista pela lei material.10
Em situação diversa, estando as partes envolvidas em relação jurídica regida
pelo direito material, mais especificamente do direito comercial no caso em tela, os
contratantes, os sujeitos presentes na relação jurídica comercial, encontram-se regidos pela legislação material pertinente, i. e., pela legislação específica ao título de
crédito utilizado pelas partes na relação jurídica firmada. Jamais uma lei formal, processual, pode modificar prazos e aplicações de institutos específicos de direito material, devidamente regrados por ele.
Argumenta-se que o título de crédito prescrito, portanto, que não tem força de
título executivo, é objeto apto ao embasamento para o ajuizamento da ação monitória.
Ora, o título de crédito é relação de direito material, prescrito em Lei específica, devidamente exeqüível dentro do seu interregno temporal legalmente previsto. Jamais uma ação, prevista por uma lei formal, pode utilizar-se como fulcro para
a parte ajuizar um procedimento cognitivo baseado em direito tutelado materialmente mas também materialmente previsto como prescrito.
Expomos uma questão: anteriormente ao advento da Lei 9.079/95, que criou
o procedimento monitório, existia alguma ação que se utilizasse para a cobrança do
título de crédito prescrito?
Em nosso ainda curto espaço de tempo em contato com a ciência jurídica, e
realizando uma minuciosa pesquisa sobre essa situação, desconhecemos qualquer
ação desse tipo. Não conseguimos vislumbrar ação que servisse para esse propósito. É evidente que não pode ser utilizada a ação de procedimento monitório para a
9 Prescrição, s. f. Em direito penal, diz-se da extinção da responsabilidade criminal do acusado, por se achar findo
o prazo legal da punição que lhe fora imposta por sentença judiciária. Diz-se, também, da decadência do direito de
punir o delinqüente, por inação do seu titular que não o exercitou dentro do prazo que para esse fim a lei lhe facultara. Em direito privado, diz-se da maneira pela qual e sob certas condições estabelecidas em lei, alguém adquire um direito ou se libera de uma obrigação, em conseqüência da inércia desta ou daquele, durante determinado
lapso de tempo. Vocabulário Enciclopédico de Tecnologia Jurídica e Brocardos Latinos. Folio Bound VIEWS. Rio
de Janeiro, 1996. CD-ROM.
10 Ação Pessoal: Em direito processual civil, diz-se da que compete contra quem tenha o dever de dar, fazer ou não
fazer alguma coisa, em virtude de lei ou de contrato. É a que serve para exigir o reconhecimento ou a proteção de
um direito individual, ou o cumprimento duma obrigação. Vocabulário Enciclopédico de Tecnologia Jurídica e
Brocardos Latinos. Folio Bound VIEWS. Rio de Janeiro, 1996. CD-ROM.
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cobrança de título de crédito prescrito. Estar-se-ia ressuscitando uma relação jurídica coberta com o manto da prescrição processual.
2.
A AÇÃO DE PROCEDIMENTO MONITÓRIO
Discorrendo sobre a ação de procedimento monitório, José Rogério Cruz e
Tucci, em sua obra Ação Monitória, São Paulo: Saraiva, 1995, explica com muita propriedade que se trata de procedimento cognitivo, criado para agilizar o andamento
processual das ações de cobrança, que visem a futura execução; assim, podemos
afirmar que jamais pode ser criada nova dívida em relação já prescrita, como é o caso
da cobrança do cheque prescrito, pois, antes do advento dessa nova Lei, não existia
qualquer procedimento jurídico para esse tipo de cobrança, ou seja, referido título
estava prescrito, o que não pode ser aceito é o fato de que uma lei formal ressuscite direito material prescrito.
Menciona o autor supra-referido, op. cit., p. 47:
“Longe de constituir um novo gênero de processo, Garbagnati adverte que a única peculiaridade emergente do processo de natureza monitória é a de criar mais celeremente, mediante um procedimento especial, o título executivo. Inequívoca, portanto, a sua natureza de processo de conhecimento.”
Continua o mesmo jurista, op. cit., p. 48:
“A especialidade da estrutura procedimental e da forma do pronunciamento judicial é ditada, nesse caso, exclusivamente pelo escopo de acelerar ao máximo o reconhecimento do direito, visando à formação do título executivo. Na verdade, a única novidade
que se vislumbra é a de que o procedimento em apreço encerra,
sob a ótica processual, uma espécie de privilégio para o credor, sobretudo no que se refere ao regime das provas e ao caráter diferido e eventual do contraditório.”
Independentemente da existência ou não desse novo procedimento (monitório), que relação jurídica tinha ocorrido entre as partes? Evidentemente uma transação comercial que acabou, com a prescrição da dívida. Existindo esse novo procedimento, o que ocorre? Nada de novo, ou seja, a dívida permanece prescrita. Um procedimento processual não pode ter o condão de ressuscitar relação material, comercial, definida em legislação material própria, já prescrita.
Fala-se em agilização do procedimento de conhecimento, do colhimento das
provas. Pergunta-se, nos casos de título de crédito prescrito, que provas tem o au-
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faculdade de direito de bauru
tor, não se trata de um Título de Crédito? É claro que um Título de Crédito não necessita de comprovação outra, uma vez que a dívida seria líquida, certa, exigível por
tempo expresso em lei, que não socorre quem dorme (dormientibus non succurrit jus).
Assim, podermos afirmar que, com relação à ação de procedimento monitório, trata-se de um equívoco, data venia, a aplicação desse procedimento para ressuscitar-se dívida prescrita, título que já teve seu interregno temporal executivo
prescrito.
3.
ASPECTOS HISTÓRICOS E DIREITO COMPARADO
Com relação, ainda, à ação monitória, analisando a mesma na ordem jurídica
e histórica brasileira, é providencial a magistral reflexão de Jhering:11
“Con el Derecho romano sucedió lo mismo que con la civilización
griega: no ejerció toda su influencia hasta después de haber desaparecido. Hay también un derecho hereditario para los pueblos:
pueden tardar en aceptar la herencia, pero ninguna herencia valiosa queda sin dueño. El Derecho romano tenía que servir algún
día a la humanidad, lo mismo que las obras del arte griego y la filosofía de Platón y Aristóteles. Lo verdaderamente grande nunca
acaba en el mundo. Puede ser como la semilla que queda invisible
en la tierra hasta que llega el momento oportuno para su germinación.”
“En el fondo y en la forma todas las legislaciones modernas se basan en el Derecho romano, que ha llegado a ser para el mundo
moderno, como el cristianismo, como la literatura y las artes griegas y romanas, un elemento de civilización cuya influencia no se
limita a las instituciones que le hemos pedido, sino que nuestro
pensamiento jurídico, nuestro método y nuestra forma de intuición, toda nuestra erudición jurídica en una palabra, son romanos si es que se puede llamar romana una cosa y verdad universal, que los romanos han tenido el mérito de desarrollar hasta su
último grado de perfección.”
“En algún tiempo las naciones que se daban nuevos Códigos dejaron
a un lado el Derecho romano, pero hubieron de volver a él y reanudar la continuidad.” (Abreviatura de el espíritu del Derecho Romano, Ed. Revista de Occidente - Buenos Ayres -, 1947, págs. 17 e 18).
11 NEVES, I. B. O processo civil na doutrina e na prática dos Tribunais – Doutrina e Jurisprudência – 8ª Ed. Rio
de Janeiro: PM do Brasil Publicações, 1998. CD-ROM.
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Podemos afirmar que é o que tem acontecido com relativa freqüência, como,
p. ex., com a cláusula rebus sic stantibus e o nauticum foenus, sementes adormecidas durante muitos séculos para nascerem sob as formas da teoria da imprevisão
e do seguro marítimo, respectivamente, e, no caso, com as regras mestras das ações
arbitrárias do direito romano, embriões onde os alemães e austríacos mostraram a
seus legisladores os elementos que os levaram à criação dos institutos do procedimento monitório, no ZPO, e da ação monitória, no JNZPO, austríaco.
Os institutos, nessas duas ordens jurídicas, não são idênticos, embora visem a
solução semelhante. No ZPO, o procedimento monitório visa a proporcionar ao requerente, para pretensões provavelmente indiscutíveis, sem debate e sem decisão
sobre a matéria, um título com força de coisa julgada.
Assim, diante da afirmação unilateral e sem verificar a verdade para provar a
afirmação do requerente, o curador de justiça, em caso de pretensões determinadas, decreta a assim chamada intimação de pagamento (ou notificação para pagamento), contra a qual o requerido deve apresentar impugnação. Se ele fizer isso, o
procedimento passa ao processo ordinário e o procedimento monitório então foi
somente uma forma especial de iniciar o processo; se ele não impugnar, e havendo
pedido do requerente, decreta-se a chamada execução forçada, que torna exeqüível
a notificação de pagamento e com respeito à impugnabilidade e à sentença de revelia. Tornando-se inimpugnável a intimação, ela se converte numa sentença definitiva, com força de coisa julgada sobre a pretensão, que se baseia na omissão da impugnação. Sem impugnação não é possível uma negativa da pretensão. Sem impugnação não é possível um debate sobre a matéria e decisão do tribunal.
No procedimento monitório, a competência é do curador de justiça (Rechtspfleger), inclusive para a decretação do mandado executivo, sua recusa e remessa
para o tribunal competente.
Apesar dos encômios que envolveram a introdução desse novo tipo de procedimento especial de jurisdição contenciosa, notadamente no que toca ao rigorismo
técnico de suas normas e à intenção de economia processual que se embute nelas,
não se pode fugir de algumas observações.
Salientamos que as ponderações que se lhe façam não têm o propósito de minimizar o valor da iniciativa. Toda e qualquer medida que se adote, visando à eliminação dos males técnicos ou procedimentais que entravam a economia processual,
já é, em tese e por si só, digna de ser recebida com louvor e boa vontade, tendo em
vista a terrível situação em que nossos Tribunais se encontram nos dias atuais.
Porém, o terrível entrave de nossa burocracia judiciária não está nos maiores
ou menores defeitos das normas de processo e de procedimento, ele se assenta,
como na maioria das instituições brasileiras, em estruturas arcaicas e carregadas de
vícios sedimentados ao longo dos tempos.
Pode ser constatado que, no interior do Brasil, é comum juízes acumulando
duas ou três comarcas, como também é comum acumularem, nas sedes das organi-
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zações judiciárias, duas ou mais varas; em alguns casos não existe qualquer cumulação, mas temos cartórios com até 11 mil processos; trata-se de tarefa humanamente impossível a condução de tamanha quantia de feitos. Mas, enquanto não se tomarem providências sérias, no âmbito administrativo, que corrijam, ao menos em parte, a dolorosa deficiência, material e humana, que estrangula a máquina judiciária,
as mais bem intencionadas medidas e os mais perfeitos textos de lei não passarão
nunca de enganosas e frustrantes esperanças, estarão fadadas ao insucesso.
Neste nosso Brasil, é comum a idéia de que uma determinada lei irá corrigir
os defeitos decorrentes de toda uma estrutura deficiente, que determinada lei irá
resolver tudo, a impunidade, a corrupção, a morosidade da justiça, enfim, todos os
graves defeitos de nossa jovem sociedade. Ora, é necessário, em primeiro lugar, deixar de literalmente empurrar a sujeira para debaixo do tapete, ou seja, de achar que
com o estalar dos dedos, com a criação de uma ou outra lei, estaremos resolvendo
estes problemas. É necessário, com urgência, a contratação de novos funcionários
em nossos fóruns, aí incluí-se principalmente juízes; é necessária a urgente informatização (realizada pelo Estado, não por iniciativa de alguns valorosos funcionários),
enfim, é necessário investimentos reais em nosso judiciário, em todas as instâncias
e fóruns.
Mas, voltando ao procedimento monitório, podemos afirmar, com segurança,
que trata-se apenas de um procedimento cognitivo que agiliza o trâmite processual,
suprimindo formas mais burocráticas e tornando o processo mais célere. No entanto, jamais poder-se-ia falar (e muito menos aplicar) em novo tipo de processo com
o poder de criar novas situações jurídicas em atropelo ao ordenamento material vigente. Em outras palavras, como já fora exposto, jamais poderia uma norma processual invadir a esfera do direito material e criar nova forma de cobrança de título de
crédito prescrito.
O procedimento monitório previsto em nosso ordenamento processual não
especifica este tipo de prática, nossa jurisprudência (e nossa doutrina), a nosso ver
entendendo de forma deturpada a legislação, vem aplicando o procedimento monitório de forma a sobrepor o direito formal ao direito material, sendo que, jamais isto
pode ser realizado, pois, aquele é instrumental em relação a este.
4.
PARTICULARIDADES DO PROCEDIMENTO MONITÓRIO
Podemos constatar que o art. 1.102a tem redação assemelhada à do § 1º da
Lei Monitória austríaca, de 27 de abril de 1873, com uma distinção importante. A lei
austríaca limita, prudentemente, a 15.000 shillings o valor da obrigação que pode
ser objeto da ação monitória, ou seja se a importância exigida ou se o valor do objeto considerado na pretensão, sem acréscimos de juros e acessórios, não ultrapassar a soma de 15.000 shillings. Este valor equivale mais ou menos a vinte salários mínimos brasileiros.
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Podemos realizar uma comparação com a lei nº 9.099, de 26 de setembro de
1995, criadora dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, que, no seu art. 3º, inc. I,
estabelece:
“O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas:
I - as causas cujo valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo;”,
Parece que, por isso e tendo em vista o procedimento sumário desse instituto, haveria nele, com vantagem, lugar para o que se pretende com a ação monitória.
Quarenta salários mínimos equivalem a R$ 4.400,00, ou seja, R$ 2.400,00 além
do limite máximo da lei monitória austríaca. Não seria mais consentâneo adaptar-se
às normas desse Juizado regras de procedimento que o habilitassem, também, a alcançar os objetivos do procedimento monitório recém-criado?
Tal orientação talvez trouxesse duas presumíveis vantagens práticas: a) não
deixar que se discuta num procedimento, onde o objetivo evidente é a rapidez dos
respectivos atos, obrigações de valor ad infinitum, cuja prova será, muitas vezes,
um singelo documento; b) utilizar-se de um meio que tem, em sua minudente sistematização, todos os instrumentos procedimentais que pressupõem conduzir a
uma real celeridade.
Em algumas comarcas do Estado de São Paulo (v. g. São Manuel), é perfeitamente aceito o procedimento monitório no juizado especial cível, providência esta,
pioneira e existente garças à iniciativa dos doutos magistrados locais, que aplaudimos e destacamos como muito bem aplicada no sentido de dar maior celeridade aos
procedimentos, objetivo maior da Lei do Juizado Especial Cível.
Todavia, nem sempre a ação monitória transmite a presunção de que a almejada
economia processual nela perseguida venha a traduzir-se em realidade. Provavelmente, a construção pretoriana deve adotar a orientação do procedimento monitório alemão, que também não estabelece um valor teto para a obrigação reclamada.
Com relação ao procedimento monitório, consoante o art. 1.102b, se a petição inicial estiver devidamente instruída, o juiz deferirá de plano a expedição do
mandado de pagamento ou de entrega da coisa no prazo de quinze dias.
A sistematização brasileira, também neste momento, difere da alemã e da austríaca, que lhe teriam servido de modelo. No procedimento monitório alemão não
é o juiz quem determina a expedição do mandado, mas o administrador da justiça
(Rechtspfleger), junto ao juízo e que é um escrivão de hierarquia superior. É, por
isso, um mandado de eficácia precária, tanto assim que, se a pretensão for impugnada, cessam seus efeitos e do procedimento monitório, que terá sido, apenas, uma
forma especial de início do processo ordinário pertinente.
306
faculdade de direito de bauru
No entanto, na ação monitória austríaca, embora sua expedição seja determinada pelo juiz, esse mandado é apenas um mandado de pagamento condicionado,
que perde sua força se for tempestivamente contestado. O credor pode recorrer ao
procedimento monitório para uma ação de cobrança. Nesse caso, o tribunal é obrigado a decretar a ordem de pagamento por meio de uma notificação (Bescheid)
para a ação, com a advertência de que, se for contestada, realizar-se-ão os demais
procedimentos da ação pertinente, devendo realizar-se audiência. Não se fala em
sentença. Não se fala em constituição, de pleno direito, de título executivo judicial,
no caso de a contestação ser rejeitada.
A defesa na ação de procedimento monitório é exercida através dos embargos. Segundo os princípios do direito processual brasileiro, embargos indicam meio
de defesa de natureza específica. Assim, doutrina JOSÉ DA SILVA PACHECO - Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, Ed. Borsói, v. XX, verbete EMBARGOS:
“No plural, a palavra embargos - título deste verbete - reveste-se de diversas acepções. Entre elas, destacam-se:” “II) A de um meio de impugnar a execução de sentença. São os chamados embargos do executado (arts. 1.008 e 1.016 do C.P.C. ‘736
a 747 do CPC de 1973’).
O Vocabulário Enciclopédico de Tecnologia Jurídica e Brocardos Latinos. Folio Bound VIEWS. Rio de Janeiro, 1996. CD-ROM, assim define o termo embargos:
“EMBARGOS, s. m. pl. Diz-se do recurso que a parte oferece, ao juiz
ou tribunal, prolator da decisão definitiva, para que, após o seu
reexame ou revisão, profira nova sentença reformatória ou declaratória da anterior. Diz-se, também, do remédio legal, em forma
articulada, ou não, que se emprega para obstar, ou suspender, certa medida ou ato da causa ou do processo, cuja efetivação se torne prejudicial aos interesses da parte. I - Embargos Auriculares.
Diz-se pejorativamente do ato de alguém que cochicha pedidos ao
ouvido do juiz. II - Embargos Infringentes. Diz-se de recurso que é
oposto, quando não for unânime o julgado proferido em apelação
ou em ação rescisória (Cód. de Proc. Civil, arts. 530 a 534). III - Embargos Infringentes ou de Nulidade. Em direito processual penal,
diz-se de recurso interponível contra decisão de segundo grau e
não unânime, desfavorável ao réu. É, portanto, recurso exclusivo
da defesa. IV - Embargos Ofensivos. Diz-se dos que atacam a decisão visando a reformá-la. V - Embargos Protelatórios. Diz-se da interposição de recursos de embargos de declaração, sem qualquer
fundamento e com a finalidade única de protelar o feito. VI - Embargos Relevantes. Em linguagem forense, diz-se daqueles que,
atendendo às formalidade legais pertinentes à matéria, devem ser
conhecidos para exame de mérito. Não se trata de recurso nomi-
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N.
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nado em lei. VII - Embargos à Arrecadação. Diz-se da impugnação
de terceiros prejudicados à apreensão judicial de bens de ausentes
ou de herança jacente. VIII - Embargos à Arrematação e à Adjudicação. Diz-se da impugnação que o devedor faz, fundada em nulidade da execução, pagamento, novação, transação, ou prescrição, desde que superveniente à penhora. IX - Embargos à Carta
Precatória. Diz-se do meio legítimo da parte, ou de terceiro prejudicado, para impedir o seu cumprimento. X - Embargos à Concordata. Em direito falimentar, diz-se de recurso que qualquer interessado pode oferecer contra a sentença homologatória de concordata. XI - Embargos à Execução. Diz-se do remédio legal do executado para obstar ou moderar os efeitos do cumprimento da sentença, alegando, conforme a fase, matéria anterior ou superveniente
à penhora. Segundo a ocasião em que ocorram, tais embargos dizem-se: à penhora; à adjudicação; à remissão, etc. XII - Embargos
à Penhora. V. Embargos à Execução. XIII - Embargos à Precatória.
V. Embargos à Carta Precatória. XIV - Embargos à Primeira. V. Interdito Proibitório. XV - Embargos à Remição. Em direito processual civil, diz-se de meio que o prejudicado em seu direito de remir
tem para impugnar a remição requerida por terceiro. XVI - Embargos à Sentença. Ditos, também, embargos de alçada, são os embargos infringentes do julgado e embargos de declaração, únicos
recursos admissíveis das sentenças de primeira instância proferidas em executivos fiscais, ou nas lides em que forem interessadas
na condição de autoras, assistentes ou opoentes a União, autarquias e empresas públicas federais, em causas de valor igual ou inferior a cinqüenta OTNs (Lei n° 6.830 - Execução Fiscal -, de
22.9.80, art. 34; Lei n° 6.825 - Justiça Federal -, de 22.9.80, art. 4°).
XVII - Embargos ao Acórdão. Diz-se do recurso de embargos infringentes, que são opostos à decisão do tribunal, que a prolatou por
maioria de votos. XVIII - Embargos de Alçada. Diz-se dos membros
infringentes e de declaração opostas contra decisões proferidas
pela Justiça Federal sobre causas de determinado valor (Lei nº
6.830/80, art. 4º). Diz-se, também, dos mesmos embargos que são
opostos contra decisões de primeira instância proferidas sobre execuções fiscais de determinado valor (Lei nº 6.830/80, art. 34). XIX Embargos de Declaração. Em direito processual civil, diz-se de recurso que se oferece contra decisão judicial contaminada pelos vícios da obscuridade, da contradição e da omissão. (Código de Processo Civil, arts. 535, I e II, a 538). XX - Embargos de Divergência.
Diz-se dos que são interpostos, no Superior Tribunal de Justiça,
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faculdade de direito de bauru
quando as Turmas divergirem entre si ou de decisão da mesma Seção (Regimento Interno, arts. 266/267). Diz-se, também, dos que se
interpõem no Supremo Tribunal Federal contra decisão de Turma,
em recurso extraordinário ou em agravo de instrumento, divergente de julgado de outra Turma ou do Plenário na interpretação
de direito federal (Regimento Interno, arts. 330/332). XXI - Embargos de Nulidade. Em direito processual antigo, dizia-se de recursos
opostos a sentenças de primeira instância, proferidas em ações de
pequeno valor ou em outras hipóteses especificamente previstas em
lei. Foi suprimido pelo atual Código de Processo Civil. XXII - Embargos de Nulidade e Infringentes de Julgado. No direito processual anterior, dizia-se de recurso oposto contra decisão, por maioria, nos julgamentos de segunda instância sobre apelação ou ação
rescisória. É recurso extinto. V. Embargos Infringentes. XXIII - Embargos de Terceiro. Diz-se do meio regular de defesa, oposto por
quem não tenha sido parte ativa na lide, mas, julgando-se prejudicado, intervém no feito, ou na execução, para salvaguardar direitos seus sobre os bens penhorados, arrecadados, arrestados, vendidos em praça, ou quaisquer outros sobre os quais recaia indevidamente ação judicial (Cód. de Proc. Civil, arts. 1.046 a 1.054). XXIV
- Embargos do Credor. Diz-se dos que opõe o credor hipotecário ou
pignoratício para defender a preferência que tem sobre a coisa objeto da garantia. XXV - Embargos do Devedor. Diz-se do que o devedor pode opor contra execução que lhe é movida (Cód. de Proc.
Civil, art. 736 e seguintes). V. Embargos à Execução. XXVI - Embargos do Executado. O mesmo que Embargos do Devedor. XXVII - Embargos por Benfeitorias. Diz-se daqueles que o executado opõe, nas
ações reais e reipersecutórias, para conservar em seu poder a coisa que é objeto da execução, até que seja pago de benfeitorias necessárias e úteis que nela fez, ou foram feitas por outrem, de que
as houve por qualquer título.”
Os embargos, na regra do art. 1.102c, têm claramente aquele sentido que lhe
atribui DE PLÁCIDO E SILVA, Vocabulário Jurídico, Ed. Forense, 4ª ed., Vol. II, pág.
581/582:
“Mas, ao rigor da técnica do Direito Processual, é a expressão usada para indicar o recurso judicial, utilizado por uma pessoa, seja
ou não parte no feito, para se opor aos efeitos do despacho ou da
sentença proferida em uma demanda, mesmo na fase inicial à
fase executória.
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Assim, os embargos, neste sentido estrito, mostram-se oposição ou impugnação a despacho ou sentença judicial, em virtude dos quais se ofenderam direitos ou
interesses de outrem, ocasionando-lhes gravames, que precisam de reparação, ou a
mesma oposição ao cumprimento do despacho ou sentença, porque se tenha justo
motivo para os não cumprir.
Nesta circunstância, o direito de embargar advém do prejuízo direto e imediato que se tenha sofrido pelo despacho ou pela sentença, ou pelo justo motivo, que
se mostre, de poder impedir o cumprimento de quaisquer das decisões judiciais.
O direito de embargo cabe às partes que participaram ou podiam participar
da demanda. Mas, também se confere o mesmo direito aos terceiros prejudicados,
desde que venham defender a sua posse ou o seu direito, perturbado ou esbulhado
pelo decisório judicial.
No entanto, com natureza de peça defensiva e embora muitas vezes recurso,
nos embargos não se discutem questões já decididas, salvo se expressamente a lei
conceder a liberalidade ou neles se reclame uma reconsideração do despacho ou
decisão, em face de alteração de fato na relação jurídica.
Tal princípio se firma na asserção de que nos embargos não cabe discussão de
matéria velha, quer dizer, matéria já anteriormente aventada, discutida e resolvida.
Assim, com relação ao procedimento monitório, a principal finalidade dos embargos é a de se oporem aos efeitos do despacho que determinou a expedição liminar do mandado de pagamento ou de entrega da coisa, suspendendo-os.
No entanto, não é assim nos procedimentos monitórios alemão e austríaco,
que somente falam, no caso, em contestação, impugnação ou oposição.
Esclarecendo acerca do processamento dos embargos no procedimento monitório, em artigo publicado na Revista do Advogado, doutrina o professor José Rogério Cruz e Tucci - pág. 78:
“Todavia, ainda consoante o caput do artigo 1.102c, oferecidos os
embargos pelo réu, dentro daquele prazo de 15 (quinze) dias,
inaugura-se um procedimento incidental de cognição exauriente,
regrado certamente pelas normas do procedimento comum ordinário (artigo 1.102c, parágrafo 2º).
Dessa forma, tratando-se de peça defensiva, nenhuma restrição é imposta ao
conteúdo da argumentação a ser desenvolvida pelo embargante. Poderá alegar qualquer matéria de natureza processual ou substancial. Todavia, com a inversão da posição processual que decorre da oferta destes embargos, ao devedor-embargante é
imposto o ônus de provar o fato constitutivo do direito deduzido (artigo 333, I),
com todas as conseqüências que advêm desse encargo.
Podemos afirmar, portanto, que foi criada uma nova modalidade de embargos
(“embargos ao mandado”), que são processados nos próprios autos, que indepen-
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faculdade de direito de bauru
dem de prévia segurança do juízo e que têm o condão de impedir a produção de
quaisquer efeitos decorrentes da ordem de pagamento ou de entrega da coisa (artigo 1.102c e parágrafo 3º). Aqui também a decisão liminar pode ser classificada
como interlocutória.
Devemos ter a devida atenção para evitar a confusão entre tais “embargos” e
a ação incidental, também denominada de embargos, que pode ser ajuizada pelo devedor após a intimação da penhora ou do depósito, quando da conversão do mandado de pagamento ou de entrega em mandado de citação, porque, nesse caso, tal
ato processual, como ressaltado, corresponde, em tudo, ao ato citatório da tradicional ação de execução.
Trata-se de verdadeira contestação, até porque inexiste ainda título executivo
a ser desconstituído. Assim, não há dúvida de que os “embargos ao mandado”, à luz
do disposto no artigo 1.102c, correspondem a uma ação incidental sui generis.
O parágrafo 3º dispõe que: “Rejeitados os embargos, constituir-se-á, de pleno
direito, o título executivo judicial...”. Assim, uma vez improvidos os embargos, a sentença prolatada reveste-se de força de título executivo judicial, uma vez prolatada
em procedimento similar ao cognitivo.
Se os embargos não forem opostos - ou forem opostos tardiamente - ocorrem
os efeitos típicos da revelia, constituindo-se, de pleno direito, o mandado inicial em
mandado executivo.
Obviamente, contra possível injurisdicidade dessa situação equivalente à revelia, uma vez que, em razão dela, a demanda prosseguirá na forma prevista no Livro
II, Título II, Capítulos II e IV, haverá ensejo de impugná-la. É certo que contra tal revelia, poderia, nessa oportunidade, ser argüido o entendimento de que:
“Embora recurso, entanto, nos embargos não se discutem questões
já decididas, salvo se expressamente a lei conceder a liberalidade
ou neles se reclame uma reconsideração do despacho ou decisão,
em face de alteração de fato na relação jurídica. Tecnicamente,
tal princípio se firma na asserção de que nos embargos não cabe
discussão de matéria velha, quer dizer, matéria já anteriormente
aventada, discutida e resolvida” (De Plácido e Silva, ob. e loc.
cits.).
No procedimento monitório alemão é admitido um recurso - Einspruch -,
contra a sentença de revelia, cujo efeito imediato é fazer cessar a competência do
juízo que expediu o mandado executivo em razão dela, o qual, de ofício, remete o
processo para o tribunal superior competente (§ 700 do ZPO).
Conforme o § 1º do art. 1.102c, se o réu cumprir o mandado, ficará isento das
custas e honorários advocatícios. Todos os encargos com o procedimento são da
responsabilidade do autor.
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No § 2º do art. 1.102c, no que toca ao propósito da economia processual,
parece estar o complicador do procedimento monitório. Com efeito, diz este
dispositivo que os embargos serão processados nos próprios autos “pelo procedimento ordinário.” Então eles produzirão os efeitos da contestação e demais
atos que fossem pertinentes à ampla defesa do réu. De pronto, não se pode deixar de admitir a possibilidade de argüição de incidente de falsidade - arts. 390 a
395 - com as tormentosas oscilações da jurisprudência, ad. ex., em torno do recurso cabível contra o indeferimento da inicial ou contra a sentença que venha
a ser proferida. As anotações de Theotonio Negrão12 dão uma idéia bem nítida
de como, ante apenas essa ação incidental, o procedimento monitório pode ser
envolvido pelos mesmos obstáculos que empolgariam uma ação de procedimento comum ordinário. E toda a esperança de celeridade e economia processual,
que inspirara a instituição da ação monitória, se esboroará irremediavelmente.
Podemos afirmar, portanto, que o procedimento monitório trouxe algumas inovações procedimentais, alguma celeridade no interstício processual não
havendo oposição do devedor; ocorre que, havendo a efetivação do litígio, os
trâmites são quase que idênticos, ou seja, no lugar de contestação teremos os
embargos, havendo a possibilidade de recurso de apelação da mesma forma tendo em vista seu improvimento, agilizando-se apenas a formação do litígio com o
reconhecimento de simples prova escrita sem eficácia de título executivo e
transformando o mandado de citação em mandado de pagamento. Mas, repetimos, essas modificações em nosso direito formal jamais poderiam fulcrar um
novo tipo de processo que atropelaria todo um ordenamento de direito material, permitindo a cobrança de título de crédito prescrito, de dívida coberta com
o manto da prescrição.
5.
A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO
O processo é instrumental em relação ao direito material objeto da controvérsia a ser dirimida. Assim, sendo instrumental, ele sempre dependerá de uma
relação de direito material para que possa existir.
12 NEGRÃO, Theotonio. Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor. 34ª Edição. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais. 2002. “AÇÃO MONITÓRIA - Requisitos - Lei n. 9079, de 1995 - Art. 1102, “a”, CPC. Ação monitória. Lei n. 9.079/95. O processo monitório é de natureza cognitiva, observando-se em sua tramitação procedimento especial, pelo que na elaboração da petição inicial devem ser atendidos os requisitos previstos no art. 282 do Código de Processo Civil. O nosso sistema legislativo não admite o processo monitório puro. Tendo instituído o processo monitório documental, pelo que a inicial deve ser instruída na forma prescrita no art. 1102, “a” e 283 do Código de Processo Civil, sob pena de indeferimento. Apelação improvida.” (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro, 10ª Câmara Cível, Ap. Cív. 2169/96, rel. Des. José Rodriguez Lema, julg. 05/06/96, in D.O. de 17.10.96, pág.
158).
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faculdade de direito de bauru
Ao mencionarmos que o direito material é “o corpo de normas que disciplinam as relações jurídicas referentes a bens e utilidades da vida“13, e, o direito formal,
processual “o complexo de normas e princípios que regem tal método de trabalho,
ou seja, o exercício conjugado da jurisdição pelo Estado-juiz, da ação pelo demandante e da defesa pelo demandado”14, podemos seguramente afirmar que, sem que
haja relação de direito material, jamais podemos falar em relação processual.
Como nos ensinam os mestres supracitados, o processo é “um instrumento a
serviço da paz social”
“Falar em instrumentalidade do processo, pois, não é falar somente nas suas ligações com a lei material. O Estado é responsável pelo
bem-estar da sociedade e dos indivíduos que a compõem: e, estando o bem-estar social turbado pela existência de conflitos entre pessoas, ele se vale do sistema processual para, eliminando os conflitos, devolver à sociedade a paz desejada...” “Por outro lado, a instrumentalidade do processo, aqui considerada, é aspecto positivo
da relação que liga o sistema processual à ordem jurídico-material e ao mundo das pessoas e do Estado, com realce à necessidade de predispô-lo ao integral cumprimento de todos os seus escopos
sociais, políticos e jurídico. Falar da instrumentalidade nesse sentido positivo, pois, é alertar para a necessária efetividade do processo, ou seja, para a necessidade de ter-se um sistema processual
capaz de servir de eficiente caminho à ‘ordem jurídica justa’”15
Mais adiante, corroborando totalmente com nosso posicionamento acerca da
instrumentalidade do processo, que veda-o de criar novos “direitos” materiais, anteriormente inexistentes, como no caso da aceitação da ação de procedimento monitório para fulcrar a cobrança de título de crédito prescrito, nossos mestres, nesta excelente obra, continuam:
“Fala-se da instrumentalidade do processo, ainda, pelo seu aspecto negativo. Tal é a tradicional postura (legítima também) consistente em alertar para o fato de que ele não é um fim em si mesmo
e não deve, na prática cotidiana, ser guindado à condição de fonte geradora de direitos. Os sucessos do processo não devem
ser tais que superem ou contrariem os desígnios do direito
13 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do
Processo. 18ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. p. 40.
14 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. op. cit. p. 40.
15 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. op. cit. p. 41.
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material, do qual ele é também um instrumento (à aplicação das regras processuais não deve ser dada tanta importância,
a ponto de, para sua prevalência, ser condenado um inocente ou
absolvido um culpado; ou a ponto de ser julgada procedente uma
pretensão, no juízo cível, quando a razão estiver com o demandado).”16
Negritamos esta frase tendo em vista sua total consonância com tudo o que
afirmamos até este momento, ou seja, o processo, como instrumento do direito material, jamais pode sobrepor-se à legislação material da qual advém o direito colocado à sua apreciação; sendo incabível, assim, o recebimento da ação monitória (instituto exclusivamente de direito formal, processual) para fulcrar ação de cobrança
de título de crédito prescrito (títulos de crédito e prescrição são objeto de direito
material); ainda, com o agravante de que, ates da criação da ação de procedimento
monitório, em nosso ordenamento processual, não existia qualquer ação apta a dar
supedâneo à cobrança judicial do título de crédito prescrito.
6.
CONCLUSÕES
Como fora exposto, nossos tribunais vêm recebendo e processando a ação
monitória para cobrança do título de crédito prescrito, ou seja, emitido, v. g., há
mais de dez anos. Entendemos, todavia, tendo em vista todos os argumentos demonstrados, que referida providência fere frontalmente toda a estrutura jurídica pátria, isso uma vez que coloca, assim agindo, o direito formal de forma sobreposta ao
direito material; ou seja, coloca o direito formal a regulamentar uma ação de cobrança que o direito material já regulamentou e incorporou em seus institutos (prescrição e decadência). Um título de crédito prescrito está, à luz do direito material, impossibilitado de acionado na justiça, de ser cobrado através de qualquer forma processual uma vez que atingido pela prescrição.
Afirmamos isso com base em que os próprios títulos de crédito têm suas formas prescritas em lei material, lá determinando sua liquidez, sua forma e sua exigibilidade, requisitos essenciais para sua validade. A forma prescrita em lei nada mais
é do que o conjunto de formalidades que determinado título de crédito apresenta
para que seja legalmente válido (v. g. o cheque requer o emitente, o banco contra o
qual é emitido, a pessoa favorecida, a data e local de pagamento, etc.), a liquidez
nada mais é do que o valor a ser pago pelo referido título, valor certo, determinado
no corpo do título. A exigibilidade refere-se à data de vencimento, data em que o título de crédito passa a ser cobrado, e, uma vez não cumprida, torna o devedor ina-
16 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. op. cit. p. 41/42.
faculdade de direito de bauru
314
dimplente e sujeito aos procedimentos judiciais de cobrança.
As ações de cobrança (de execução e de conhecimento), encontram-se devidamente discriminadas na legislação originária dos títulos de crédito, permitindo ao credor a execução e a ação de cobrança (cognitiva), uma vez referida execução não ajuizada dentro de certos prazos preestabelecidos.
Trata-se, os títulos de crédito, de instrumentos de direito material, e, uma
vez prescritos, em sede de direito material, todos os procedimentos regulamentadores da transação realizada entre as partes, cabe ao credor acionar o devedor
de acordo com a situação que o processo como instrumento lhe conferir. Presentes a decadência ou a prescrição nesta forma de relação jurídica, não há de
se falar, jamais, em qualquer ação que possibilite a cobrança de referida dívida,
isso embasado na legislação material da qual originou-se a relação e da qual e sobre a qual as partes transacionaram.
Jamais poderia, neste diapasão, receber, o judiciário, uma ação que possa
ser ajuizada para cobrança de um título de crédito prescrito, que teve seu regular prazo expirado para a execução (no caso do cheque, 180 dias) e para a ação
cognitiva (dois anos, no caso do cheque), adotando-se o procedimento monitório (art. 1102 do CPC.), que nada mais é do que uma medida de direito formal,
que, dessa forma, não pode sobrepor-se ao direito material regulamentador dos
títulos de crédito. Argumentar-se que tratar-se-ia de mero documento escrito
sem força de título executivo, no caso do cheque emitido há mais de dez anos
é, a nosso ver, um acinte, pois, o cheque, não é e jamais será (mesmo prescrito)
um mero documento sem força de título executivo; é um título de crédito, e,
prescrito, impossibilitado de cobrança judicial, isso tudo segundo nosso ordenamento jurídico material.
A única forma de aplicação do procedimento monitório para cobrança de
título de crédito, a nosso ver, seria o momento em que referido título poderia
ser cobrado via procedimento cognitivo, jamais após decorrido o interstício
temporal que o aniquila através da prescrição.
Portanto, o procedimento monitório, embora inovador em nosso ordenamento jurídico, não pode ser aplicado com tanta amplitude, sobrepondo-se ao
direito material que regulamenta as relações de crédito; jamais poderá ser recebido pelo judiciário para cobrança de título de crédito maculado pelo instituto
da prescrição, que o invalida e o torna materialmente impossibilitado de fulcrar
uma ação judicial para cobrança do crédito transacionado materialmente.
7.
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ZAVASCK, Teori Albino. Revista do Advogado da AASP, nº 46/75.
VALIDADE DO JULGAMENTO DE MÉRITO SEM
A CITAÇÃO DO RÉU
Gelson Amaro de Souza
Mestre em Direito e doutorando em Processo Civil pela PUC-SP.
Ex-Diretor e Professor de Direito nos cursos de graduação e pós-graduação
na Faculdade de Direito de Presidente Prudente-SP (AET - Associação Educacional Toledo)
e pós-graduação da Faculdade de Direito da FIO – Ourinhos-SP,
Procurador do Estado de São Paulo (aposentado)
e Advogado em Presidente Prudente-SP.
1.
NOÇÕES PRELIMINARES
A citação é um pressuposto da formação da relação processual, mas que
vem ao longo do tempo, sendo tratada de forma diferente pela doutrina, jurisprudência, e até mesmo pelo legislador processual.
Em época mais remota, a doutrina em sua maior expressão entendia que a
citação era um pressuposto de existência do processo. Neste sentido, ressoa respeitáveis entendimentos nas vozes expressivas dos eminentes, sempre lembrados e reverenciados ARRUDA ALVIM, para quem a citação é um dos pressupostos processuais de existência, ao expor assim: “Pois, sem ela o processo seria um
natimorto”.1 E da Professora TERESA ALVIM WAMBIER, que entende que “A citação é pressuposto processual de existência; e a citação válida é pressuposto pro-
1. ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Direito Processual Civil, VOL. I, pág. 290-292 e Manual de Direito Processual Civil, vol. I, pág. 289;
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318
cessual de validade”.2
Com o passar dos tempos, parte da doutrina passou a entender que a citação
era um pressuposto processual de validade do processo, no sentido de que sem ela
o processo não seria valido. Desta forma é que, ora se propugnava pela inexistência
do processo e ora se apregoava que era caso de nulidade, mas não se fazia referência à eficácia ou à ineficácia do processo, aspecto que parecia fora de cogitação até
então.
Nesta confusão generalizada tomou parte até mesmo o legislador processual
quando no artigo 214 do Código de Processo Civil, diz textualmente: “Para a validade do processo, é indispensável à citação inicial do réu”. Sem se falar da redundância da palavra “inicial”, já que toda citação deve ser realizada logo de início e não haveria necessidade usar a expressão “inicial”. Até porque, se não realizada a citação
no início, quando ela for necessária3, será realizada depois em qualquer tempo, que
pode ser exemplificado com os casos de litisconsortes ulteriores (art. 47 e parágrafo do CPC).
Modernamente, inclina-se para afastar a citação da lista de pressupostos do
processo, seja na consideração de validade ou de existência. Em verdade o processo existirá e valerá independentemente de citação. Assim a citação não poderá mais
ser classificada como pressuposto do processo.
Deve, de outra forma, ser considerada pressuposto para a formação (complementação ou aperfeiçoamento, vinculação, sujeição etc.) da relação processual em
face à pessoa que deveria ser citada e não o foi. Como o direito é dinâmico e o pensamento jurídico está em permanente vigília e evolução, surgiu mais recentemente
a figura da inefícácia que parece melhor adequar à questão.
Desta forma, o ato de citação passa a ser pressuposto de eficácia da relação
processual, não produzindo qualquer efeito em relação à pessoa que deveria ser citada e que por qualquer motivo ou mesmo falha no procedimento não o foi, mas
com plena eficácia em face de quem figure no processo e que tenha sido regularmente citado, ressalvado tão-somente os casos de litisconsórcio necessário em que
a falta de citação de uma pessoa retira a eficácia do processo em relação aos demais
a não ser o caso do artigo 249, § 2° do CPC.
Mesmo nos casos de litisconsórcio necessário, é possível o julgamento de mérito sem a citação de todos nos casos do art. 295, IV c/c 269, IV e ainda nos casos em
que se puder decidir o mérito a favor de quem não foi citado na forma prevista no
artigo 249, § 2°, do CPC.
2.
CITAÇÃO E O PROCESSO
2. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo da sentença, 4ª edição, p. 39. São Paulo: RT. 1.998.
3. Utilizou-se a expressão necessária, porque nem sempre será necessária como será demonstrado mais à frente.
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319
A citação pode ser entendida como o ato que leva ao conhecimento de alguém de que alguma ação foi proposta e que lhe diz respeito. Pode ser com a advertência de que em caso de não contestação os fatos alegados pelo autor serão considerados verdadeiros (parte final do art. 285, do CPC), bem como pode ser sem
esta advertência, como acontece no processo de execução (art. 652, do CPC).
Com a propositura da ação (art. 263, CPC), surge o processo que passa a existir, mesmo antes de qualquer citação. Quando o autor apresenta a sua petição inicial
para protocolo ou quando ela é apresentada para despacho do juiz, o processo surge e passa a ter vida independentemente de eventual e futura citação.
Caso o juiz entenda que o a petição inicial deva ser aditada ou complementada, utilizará a disposição do artigo 284, do CPC e concede ao autor o prazo de dez
(10) dias para regularização, sob pena de indeferimento da inicial. Sendo a petição
inicial indeferida, não haverá citação, mas este indeferimento corresponde a uma
sentença, pois é ato que põe fim ao processo (artigos. 162. Par. 1º e 296, do CPC).
Desta sentença indeferitória da petição inicial, o autor poderá apelar (art. 296,
CPC), o que implica apontar o ato como sentença e mais que isso, que existe processo. Pois, caso não existisse o processo não haveria o que extinguir. Também se
não existisse o processo não poderia haver recurso de apelação, pois este é um dos
atos que se pratica no processo.4
Desta forma, pode-se, concluir que o processo existirá com ou sem citação.
Da mesma forma que pode haver citação sem processo, como ocorre nos casos de
mero procedimento sem processo, também poderá haver processo sem citação. A
citação serve para vincular a pessoa citada à relação processual, mas a sua falta não
impede a formação da relação processual linear entre autor e juiz.
Desde há muito, já se reclama a necessidade de separar-se as duas figuras processuais correspondentes à figura do processo e outra à figura da relação processual. Do processo, surge a relação processual, mas esta relação processual poderá
vincular umas pessoas e outras não.
De tal forma que uma pessoa poderá se vincular à relação em um momento e
a outra em outro momento posterior. O autor se vincula com a simples propositura
da ação e o réu depois, com a citação.
Neste sentido, lembra-se, os provectos ensinamentos, de SANSEVERINO e
KOMATSU, quando disseram: “Com o despacho, favorável ou não, ordenando a citação ou indeferindo a inicial (por inépcia, por exemplo), forma-se relação jurídica pro4.”Uma dificuldade para se incluir a citação entre os pressupostos de existência do processo decorre da circunstância de que ele se constitui, antes mesmo da citação do réu, na linha autor-juiz, a ponto de poder ser concedida
e executada liminar inaudita altera pars. Se o processo sequer existe antes da citação do reú, como explicar possa o autor apelar da sentença que indefira a inicial ou obter desde logo antecipação de tutela?” TESHEINER, José
Maria. Pressupostos processuais e nulidades no processo civil, pág. 22.
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320
cessual linear entre autor e Estado (juiz), nascendo, com isso, o processo, ainda antes
da citação”.5
Também o Professor FIDELIS segue este entendimento e ao versar o assunto assim se expressou:
“Quando não se faz a citação, ou se esta for nula de pleno direito, o
processo não é inexistente, conforme pretende alguns doutrinadores,
porque a relação processual, embora defeituosa, pode formar-se angularmente, apenas, apenas entre autor e juiz. Neste caso, qualquer
decisão que se profira terá eficácia e, transitando em julgado, a definitividade dos efeitos atinge somente o autor e não o réu”.6
De nossa parte restou anotado alhures que, o processo inicia pela simples provocação da parte (art. 262, CPC) e a ação é considerada proposta tanto que a inicial seja
despachada ou simplesmente distribuída (art. 263, CPC), mas a relação processual somente se forma e se aperfeiçoa a partir da citação, conforme dispõe a parte final do artigo 263, CPC. Dispõe este último dispositivo que em relação ao réu a propositura somente produz efeito a partir da citação.7
3.
CITAÇÃO E A RELAÇÃO PROCESSUAL
Foi visto que o processo passa a existir assim que apresentada à petição inicial
para despacho ou para protocolo, na forma disciplinada no artigo 263, do CPC. Assim,
o processo existe mesmo antes da citação. O mesmo acontece com a relação processual
que se forma angularmente (ou linearmente) entre autor e juiz antes da citação.8
Diz PONTES DE MIRANDA: “Dizer-se que, se não se fez a citação, relação jurídica
processual não formou, é afirmação que nunca fizemos e temos de repelir“. Mais à frente completa: “Tanto é assim que, comparecendo o não citado, ou o nulamente citado,
sem argüir a nulidade, mesmo se deixa de opor embargos do devedor com base no art.
741, I, houve e há processo.”9
Esta relação processual por ser angular ou linear como é reconhecida vin5. SANSEVERINO, Milton e KOMATSU, Roque. A Citação no direito processual civil, pág.51-52, Editora RT. São Paulo, 1.977.
6. FIDELIS DOS SANTOS, Ernane. Manual de Direito Processual Civil. Vol. 1, pág. 274, nº 444. Saraiva, 4ª edição. São
Paulo, 1.996.
7. SOUZA, Gelson Amaro de. Curso de Direito Processual Civil, pág. 377. Datajuris, 2ª edição, 1.988.
8..Mais amplamente sobre o assunto versamos em “ Efeitos da sentença que acolhe embargos à execução de sentença por falta ou nulidade de citação na forma do art.741, I, do CPC”, in Revista de Processo n° 93, pág. 280-301,
São Paulo: RT. Jan/março, 1999; Revista de Direito Processual Civil, vol. 6, pág. 581-605, Gênesis, Curitiba, Setembro/dezembro, 1.997; RT. 785, pág. 93-116. São Paulo: Revista dos Tribunais, março de 2001.
9 PONTES DE MIRANDA. Com. CPC. t. III, p. 373, 3ª edição, 1996.
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cula o autor ao processo de tal forma que aquilo que nele é decidido pode ser
atingido pela preclusão ou pela coisa julgada, efeitos estes que atinge somente o
autor. Para o autor, o processo existe, é válido e é eficaz, produzindo todos os
efeitos processuais.
Diferentemente se dá em relação ao réu porque este somente será atingido
pela relação processual a partir da ocorrência da citação. Antes da citação, a relação
processual somente existirá e vinculará o autor e o Estado-jurisdição e somente estes ficam obrigados ao resultado do que até então ocorrer no processo. Existe o processo e a relação processual produzindo todos os efeitos em relação ao autor e o Estado-jurisdição, mas ineficaz em relação ao réu qualquer solução que lhe seja prejudicial. Mas, mesmo assim eficaz quando beneficiar o réu não citado.
A citação, diferentemente do que se tem apregoado, não é pressuposto do
processo, pois este existe e tem validade sem aquela. A citação é, apenas, pressuposto de aperfeiçoamento ou complementação da relação processual para vinculação
do réu ao processo e sujeita-lo ao seu resultado quando este lhe for prejudicial.
Com a citação, somente serve parar completar ou aperfeiçoar a relação processual e a partir desse aperfeiçoamento o réu fica vinculado aos resultados do processo, quaisquer que sejam esses resultados. Desta forma, a citação tem por finalidade vincular o réu ao processo e com isso completar a relação triangular processual que até então existia apenas angularmente entre autor e o Estado-Jurisdição ou
até mesmo triangularmente entre o autor e outros réus efetivamente citados e o Estado-Jurisdição quando se tratar de litisconsórcio passivo facultativo. Com isso, o
processo que já existia, agora com a citação, passa a ter plena eficácia em relação ao
réu e qualquer que seja o resultado da demanda o vincula.
4.
AUSÊNCIA OU NULIDADE DA CITAÇÃO
O processo inicia-se com a provocação do autor (art. 262, CPC) e a ação é considerada proposta assim que protocolada ou simplesmente despachada (art. 263,
CPC), não se importando se este despacho é positivo (deferindo-a) ou negativo com
a característica de sentença quando indefere liminarmente a petição inicial. A norma do artigo é imperiosa no sentido de dizer que a ação se considera proposta com
a simples distribuição ou com o despacho do juiz. Ora, se ação é que dá origem ao
processo, logo, há de se concluir que é nesse momento que nasce o processo, porque do contrário, teríamos ação sem processo.
O indeferimento liminar da petição inicial obsta o seguimento do processo e com
isso não haverá a citação do réu extinguindo-se o processo sem essa formalidade. O pronunciamento judicial de indeferimento da petição inicial na sistemática do nosso direito processual tem a natureza de sentença que é ato que põe fim ao processo. Se põe fim
ao processo é porque ele existia, porque não encerra ou finaliza o que inexiste.
Neste caso, o processo existe e é válido até o ponto em que teve seguimento.
322
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Para se falar em existência e validade do processo, não se há de cogitar da existência e da validade da citação. A citação, em verdade, somente é necessária para a vinculação do réu à relação jurídica processual, com efeito, prejudicial. Todavia, não se
produzindo efeito prejudicial ao réu, a relação processual é existente, válida e eficaz.
Caso ocorra prejuízo ao réu, retira-se apenas a eficácia, nada alterando em relação à
existência e a validade.
A ausência ou a nulidade da citação não é suficiente para impedir ou descaracterizar a existência e a validade do processo, que pode existir e ter validade sem
aquela.
PONTES DE MIRANDA já advertia:
“Se faltou a citação e prosseguiu o processo, o que não existiu foi a
citação, portanto a angularização da relação jurídica. Com o despacho da petição inicial estabelecera-se a relação jurídica processual e, a despeito da inexistência ou da nulidade da citação o processo foi se produzindo”.10
Mesmo sem a citação o processo existirá e será válido, sendo que apenas a relação processual que dele se formar, não vinculará o réu naquilo que lhe for prejudicial. Mas no que puder beneficia-lo é perfeitamente válido e eficaz o processo,
como será visto mais adiante.
O mesmo PONTES DE MIRANDA reclama: “Não se diga que o Código de 1.973
identificou a nulidade e inexistência da citação inicial. Incrível que juristas e juízes
digam isso”.11
Até mesmo naquilo em que prejudicar o réu, a validade e a eficácia do processo, fica à disponibilidade do réu que se não alegar nulidade a tempo e a hora, ocorrerá preclusão e em razão desta, sobrevém a convalidação de todo o processado.
GALENO LACERDA12 esclareça que a falta de citação implica nulidade dos atos posteriores. Mesmo assim os atos posteriores que prejudicarem o réu e não os que lhes
forem favoráveis, como sentença extinção do processo sem julgamento de mérito
ou sentença que reconheça a prescrição ou a decadência.
5.
VALIDADE DO JULGAMENTO DE MÉRITO SEM CITAÇÃO.
A validade ou eficácia do julgamento de mérito nem sempre está vinculada à
citação do requerido. Em várias situações a sentença poderá ser proferida com julgamento de mérito sem a efetiva citação de uma ou de todas as pessoas referidas no
10. PONTES DE MIRANDA, F.C. Comentários ao Código de Processo Civil, t. III, pág. 209, 3ª edição.
11 PONTES DE MIRANDA. Com. CPC. tomo III, pág.353.
12 GALENO LACERDA. Do saneamento, p. 75.
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323
polo passivo.
O que sempre se procurou foi evitar prejuízo ao réu e por isso sempre lhe garantiu o contraditório e o direito à ampla defesa. Essas garantias constitucionais existem exatamente para evitar que o réu não sofra algum prejuízo em suas relações jurídicas. No entanto, sempre que puder vislumbrar a ausência de prejuízo para o réu,
nada obsta que o juiz profira julgamento de mérito e este julgamento será válido e
eficaz mesmo em relação ao réu não citado, conforme o que se extrais dos artigos
219, § 6° e 249, § 2° do CPC.
5.1 Pronunciamento de prescrição ou de decadência
Para o juiz pronunciar pela prescrição ou decadência, não se exige que o réu
tenha sido citado. Isso pode se dar no início do processo logo no momento da primeira aferição da petição inicial, bem como poderá depois durante o percurso do
processo, até porque se trata de matéria que admite tal pronunciamento a qualquer
momento.13
O processo pode existir e ter validade e até mesmo produzir coisa julgada material sem a citação do réu.
Em nosso curso, restou anotada a seguinte passagem:
“Por mais estranho que possa parecer, a apreciação judicial da
petição inicial que a repele, indeferindo-a, pode consubstanciar em julgamento de mérito. Isto acontece mesmo sem a participação do réu que nem mesmo será chamado a responder em
razão do próprio indeferimento da inicial. Mesmo sem a participação do réu, antes mesmo de se formar a relação processual
com a citação, já é possível o juiz decidir sobre o mérito, por
autorização legal (art. 295, IV c/c 269, IV ). A conjugação dos
dois dispositivos mencionados faz-se chegar a esta conclusão.
Sempre que o juiz indeferir a petição inicial sob o fundamento
de prescrição ou decadência, estará proferindo sentença de mérito e com isso, o trânsito em julgado da referida sentença forma-se a coisa julgada material”14
As normas dos artigos 219, § 5º, 295, IV e 269, IV, do CPC, autorizam ao juiz
13. O art. 152 do Código Civil de 1916, admitia a alegação de prescrição a qualquer momento. Essa redação foi repetida no Novo Código Civil no art. 193, com a acréscimo no artigo 194 de que o Juiz poderá pronunciar de ofício
sobre a prescrição quando for para favorecer o incapaz. Com isso fica o juiz a pronunciar de ofício sobre a prescrição mesmo sem a citação do requerido quando se tratar de réu absolutamente incapaz.
14. Confira nosso Curso de Direito Processual Civil, citado, pág. 487;
324
faculdade de direito de bauru
decidir pela extinção liminar do processo com decisão de mérito, sempre que o fundamento for pela prescrição ou pela decadência, com indeferimento da inicial, sem
que para tanto necessite citar o réu. É muito fácil perceber-se que se trata de julgamento com mérito completamente válido sem a necessidade da citação do réu.
DALL’AGNOL, percebeu esta possibilidade e sobre o assunto assim se expressou:
“Tratando-se de prescrição de direitos não-patrimoniais, as mais
das vezes, hipóteses de decadência, viável o conhecimento de ofício pelo juiz, extinguindo-se o processo com julgamento de mérito
(art. 269, IV)”.
“Permite a lei que o juiz de ofício conheça da prescrição de direitos não-patrimoniais e a decrete de logo (“de imediato” – di-lo a
lei), isto é, sem oitiva da parte contrária, a quem a prescrição beneficiaria”.15
A lei processual autoriza ao juiz decidir o mérito nas hipóteses de decadência
ou de prescrição sem a citação do réu e neste caso, o mesmo somente será comunicado depois do trânsito em julgado da sentença e quando já se deu a coisa julgada material, conforme dispõe o artigo 219, § 6º, do CPC. A lei processual refere-se à
comunicação depois do trânsito em julgado e não antes deste fenômeno exatamente para deixar claro que ao réu somente de dará conhecimento do caso julgado e
não lhe esteja chamando para defesa alguma.
Esta comunicação que é dirigida ao réu depois de julgado o mérito da ação
sem a sua citação, não é para dar existência e validade ao processo; diferentemente,
é para lhe dar conhecimento da existência e validade do processo no qual se deu o
julgamento e estabeleceu-se a coisa julgada material. Tomando conhecimento da
existência da coisa julgada material, o réu fica ciente desta ocorrência e poderá se
defender em caso de futura e eventual repetição da mesma ação.
A comunicação feita ao réu serve apenas de alerta para que ele possa alegar a
coisa julgada em caso de futura e eventual repetição da ação e não para dar validade ou indicar existência do processo. Com ou sem essa comunicação o que foi decidido e passado em julgado torna-se definitivo. Mesmo que, por qualquer motivo
ou até mesmo eventualmente se esqueça de comunicar ao réu, aquilo que foi julgado permanece e adquire foro da definitividade pela presença e incidência da coisa
julgada material.
A falta de intimação ou comunicação ao réu é mera irregularidade que se re15. DALL’AGNOL, Antonio. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 2, pág. 512. Editora Revista dos Tribunais,
São Paulo. Ano 2.000; Como restou anotado na nota n° 9, o novo Código Civil em seu artigo 194, permite o pronunciamento de ofício pelo juiz, mesmo nas causas que versem sobre questões patrimoniais, desde que o réu seja
absolutamente incapaz.
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325
veste de vício com força bastante para afastar a eficácia da formação da relação processual. Apenas fica o réu desconhecendo a existência de coisa julgada em seu favor
e em caso de eventual repropositura da ação não poderá alegar que já existe coisa
julgada por mero desconhecimento.
Mesmo vencido em segunda propositura da mesma ação, se mais tarde souber da coisa julgada anterior poderá o réu se valer da ação rescisória (art. 485, IV, do
CPC) porque a coisa prevalece mesmo à mingua de comunicação na forma do artigo 219, § 6° do CPC.
5.2. Litisconsórcio
Também quando se tratar de processo em que se apresente a figura do litisconsórcio passivo é possível o juiz pronunciar o mérito do processo sem que todos
sejam citados. Nessa hipótese, o que se exige é o cuidado para se saber se no caso
de que se cuida trata-se de litisconsórcio facultativo ou se diferentemente se trata de
litisconsórcio obrigatório ou necessário. Os efeitos a serem atribuídos ao julgamento e a sua subsunção ao réu dependerão da análise da natureza do litisconsórcio.
Dependendo da natureza do litisconsórcio, havendo citação de um ou mais
réus, ainda que permanecendo um ou mais requeridos sem citação, ainda assim, o
processo será existente, válido e eficaz em relação aos réus regularmente citados,
não produzindo eficácia em relação aos réus que deveriam ser citados e não o foram. Em sendo o julgamento favorável e em benefício de todos a eficácia atinge até
mesmo os réus não citados.(art. 219, § 6° e 249, § 2°, do CPC).
5.2.1. Litisconsórcio facultativo
A questão não oferece maiores dificuldades quando se tratar de litisconsórcio
facultativo passivo em que faltando de citação de um ou de alguns litisconsortes e
mesmo assim houver julgamento de mérito.
Em linhas gerais, o réu ou réus não citados não serão atingidos pela coisa julgada, em face da ineficácia do processo em relação a eles. Mas o processo é existente, válido e eficaz em relação aos demais regularmente citados. Se a ação é considerada proposta com a simples distribuição ou pelo simples despacho inicial e, se é
dessa que nasce o processo, há de se convir que o processo existe antes da citação.
Embora não se concorda com essa afirmação, mas se lembra que é até comum
dizer-se que a falta de citação é causa de anulação do processo. Como se anular o
que inexiste. O simples fato de se falar em anulação de um processo já induz a idéia
de que o mesmo existe. Em verdade, o processo surge antes e a relação processual
se completa depois. Assim ele existe, é válido e eficaz em relação ao autor, somente
poderá não ter eficácia em relação ao réu.
Nesse sentido, é bastante esclarecedora a exposição de TESHEINER, lavrada
faculdade de direito de bauru
326
nos seguintes termos:
“Não é nesse sentido, porém, que falamos de ineficácia, mas no de
ato que, embora existente e válido, contudo é ineficaz, o que, à primeira vista, parecer paradoxal, porquanto definido o ato jurídico
em função de seus efeitos jurídicos.
Com alguns poucos exemplos, como o do testamento que, embora
existente e válido, somente se torna eficaz com a morte do testador,
bem como o da sentença que existe e vale, mas não para o litisconsorte que não foi validamente citado, é fácil compreender o que se
pretende significar com o conceito de ato válido, mas ineficaz”.16
Contudo, deve observar-se que em se tratando de julgamento de mérito em
favor do réu ou réus, como se dá nos casos de reconhecimento da prescrição ou da
decadência na forma dos artigos 219, § 6°, 269, IV e 295 ou ainda nos casos em que
o mérito tenha sido julgado a favor do réu não citado na forma do artigo 249, § 2°,
do CPC, o julgamento terá toda a eficácia possível em benefício do réu não citado.
5.2.2. Litisconsórcio necessário
Mesmo no caso de se tratar de litisconsórcio necessário que, via de regra, se invalida todo o processo quando não se faz a citação de algum dos litisconsortes na dicção do artigo 47 § 1°, do CPC, ainda assim, poderá ocorrer que o julgamento de mérito possa ser favorável ao réu nos casos dos artigos 295, IV c/c 269, IV e 249 § 2° do CPC
e com isso plenamente válido e eficaz em relação ao litisconsorte não citado.
Pelo que se depreende de uma análise mais acurada do sistema processual, a
questão não se coloca no campo da existência ou validade, mas no campo da eficácia,
e em sendo o julgamento favorável ao réu, ele terá plena eficácia. Apenas deixa de ter
essa eficácia quando o julgamento for contrário aos interesses do réu não citado e por
isso lhe cause prejuízo.
Ainda que se trata de litisconsórcio necessário ou obrigatório, poderá o réu não
citado concordar com todo o processado e não alegar essa nulidade, circunstância que
apesar de tudo, o processo e a sentença ganham a perfeita eficácia. Cabe ao réu avaliar
a conveniência ou não de alegar a falta de citação e ineficácia em relação a si.
Nesse sentido, é provecta a lição de TESHEINER, como se transcreve:
“Observamos, além disso, que o réu pode aceitar a sentença chamada inexistente. Basta que não argua a nulidade, quando citado para execução. Ora, que espécie de inexistência é essa suscetí16 TESHEINER, José Maria. Pressupostos processuais e nulidades no processo civil. pág. 16.
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327
vel de tornar-se existente, por posterior omissão do réu? Como que
por um passe de mágica, o réu teria o condão de tornar retroativamente existente o que até então não existia?”.17
CONCLUSÕES
Pelo exposto, pode-se concluir que a citação não se trata de pressuposto
processual, senão apenas pressuposto da relação jurídica processual existente
entre autor e réu. Em determinadas situações o julgamento de mérito pode se
dar independentemente de citação e essa ausência em nada abala a eficácia processual, como são os casos em que se reconhece a prescrição ou a decadência
ou ainda nos casos em que se decida o mérito a favor do réu não citado.
Até mesmo quando se decide contra todos os réus em litisconsórcio facultativo o julgamento ainda é existente, válido e eficaz em relação aos réus citados,
sendo apenas ineficaz em relação aquele não validamente citado. Mesmo nos casos de litisconsórcio necessário ou obrigatório o julgamento ainda poderá ser
válido e eficaz em relação ao réu não citado, desde que o julgamento tenha sido
ao seu favor. (art. 249, § 2° do CPC).
Fosse esse vício de falta ou ausência de citação tão grave como se propaga, não se haveria de se permitir a sua convalidação, o que efetivamente acontece, quando se dá o comparecimento espontâneo do réu. Nota-se que essa convalidação acontece sempre que o réu comparecer aos autos e não alegar qualquer vício em relação à citação, sendo a mesma neste caso, considerada existente, válida e regular. Isto é, até se considera existente, válida e eficaz uma citação
que nem sequer existe.
A questão do vício ou da falta de citação não se coloca no campo da existência ou validade, mas apenas no campo da eficácia. O julgamento poderá ser
ou não eficaz em relação ao réu não citado. O processo existirá e valerá normalmente, o que poderá não existir é a formação da relação processual em relação
ao réu não citado. Nesse caso, não haverá a relação processual, daí poder-se falar em inexistência de relação processual em face do réu e nunca em inexistência do processo, porque este existirá mesmo sem a formação da relação processual com a citação.
Por final, em face da atual sistemática processual civil, pode-se dizer que a
citação não mais é pressuposto de existência e nem de validade do processo,
mas tão somente caso de eficácia ou ineficácia em face do réu não citado.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
17. TESHEINER, José Maria, obra citada, pág. 23.
328
faculdade de direito de bauru
ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Direito Processual Civil, Vol. I
————————————- Manual de Direito Processual Civil, vol. I.
DALL’AGNOL, Antonio. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 2, São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2.000;
FIDELIS DOS SANTOS, Ernane. Manual de Direito Processual Civil. Vol. 1, São Paulo: Saraiva, 4ª edição, 1.996.
KOMATSU, Roque. Da invalidade no processo civil. São Paulo: RT. 1.991.
PONTES DE MIRANDA, F.C. Comentários ao Código de Processo Civil, t. III, 3ª edição, Rio
de Janeiro: Forense, 1.996;
SANSEVERINO, Milton e KOMATSU, Roque. A Citação no direito processual civil. São Paulo: Editora RT. São Paulo, 1.977.
SOUZA, Gelson Amaro de. Curso de Direito Processual Civil. Pres. Prudente: Datajuris, 2ª
edição, 1.988.
————— Efeitos da sentença que acolhe embargos à execução de sentença por falta ou
nulidade de citação na forma do art. I, do CPC”. Revista de Processo n° 93, pág. 280-301,
São Paulo: RT. Jan/março, 1999; Revista de Direito Processual Civil, vol. 6, pág. 581-605, Gênesis, Curitiba, Setembro/dezembro, 1.997; RT. 785, pág. 93-116. São Paulo: Revista dos Tribunais, março de 2001.
TESHEINER, José Maria. Pressupostos processuais e nulidades no processo civil. São Paulo:
Saraiva, 2000.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença, 4ª edição. São Paulo:
RT. 1.998.
A NOVA LEI DE TÓXICOS – ASPECTOS PROCESSUAIS
Rômulo de Andrade Moreira
Promotor de Justiça e Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça.
Ex-Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais
do Ministério Público do Estado da Bahia.
Professor de Direito Processual Penal da Universidade de Salvador-UNIFACS (na graduação e na pós-graduação),
da Fundação Escola Superior do Ministério Público da Bahia, da Escola Superior da Magistratura EMAB e do Curso PODIUM – Preparatório para Concursos.
Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal).
Especialista em Processo pela UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor Calmon de Passos).
Membro da Association Internationale de Droit Penal, do Instituto Brasileiro
de Direito Processual e da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais - ABPCP.
Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim
e ao Movimento Ministério Público Democrático.
Autor da obra “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
“Talvez o caminho seja mais árduo. A fantasia é sempre mais fácil e
mais cômoda. Com certeza é mais simples para os pais de um menino drogado culpar o fantasma do traficante, que supostamente induziu seu filho ao vício, do que perceber e tratar dos conflitos familiares latentes que, mais provavelmente, motivaram o vício. Como,
certamente, é mais simples para a sociedade permitir a desapropriação do conflito e transferi-lo para o Estado, esperando a enganosamente salvadora intervenção do sistema penal.”1
1 De Crimes, Penas e Fantasias, Rio de Janeiro: LUAM, 1991, p. 67.
faculdade de direito de bauru
330
1.
INTRODUÇÃO
No dia 27 de fevereiro do ano de 20022, entrou em vigor em nosso país a Lei
nº. 10.409/02 que dispõe sobre a prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle
e a repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos, substâncias ou
drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, assim elencados pelo Ministério da Saúde. Ao todo, foram onze anos de discussão no Congresso Nacional.
Esta lei, concebida para disciplinar toda a questão referente às drogas em nosso país, nos seus aspectos jurídicos e administrativos, acabou sofrendo um veto do
Presidente da República que sancionou o Projeto de Lei no. 1.873, de 1991 (no 105/96
no Senado Federal), apenas parcialmente, alegando a sua inconstitucionalidade e
contrariedade ao interesse público. O veto alcançou cerca de 30% do texto integral.
Em linhas gerais, vejam as razões dos vetos:
“A inconstitucionalidade de artigos isolados do projeto, bem como
o veto sugerido a todo o Capítulo III, que trata dos Crimes e das Penas, resulta na incapacidade de o sistema legal proposto substituir
plenamente a Lei no 6.368, de 21 de outubro de 1976, que “Dispõe
sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Além disso, o
espírito do projeto é compatível com a Lei no 6.368/76, que, embora carente de atualização, vem permitindo a sedimentação da jurisprudência ao longo de mais de duas décadas. O legislador, ciente dos avanços tecnológicos, da complexidade crescente da criminalidade, e da necessidade de tratamento jurídico diferenciado
entre traficantes e usuários de droga, aprovou o projeto. Todavia,
repita-se, a incompatibilidade de alguns dispositivos com a Constituição barrou alguns avanços. Por causa disso, estuda-se a elaboração de projeto de lei em regime de urgência para, sanados os vícios, alcançar à sociedade os aspectos positivos que o legislador
sensivelmente expressou. Assim, o projeto soma-se à ordem legal já
vigente. Apenas são derrogadas as normas que tratam de matéria
especificadamente veiculada nos artigos, parágrafos e incisos sancionados.”
A lei é extremamente confusa e dá azo a enormes confusões interpretativas.
Das boas novidades, algumas foram vetadas, como pode ser conferido adiante. É de
2 A lei foi publicada no Diário Oficial da União do dia 14 de janeiro de 2002, logo entrou em vigor 45 dias depois
de oficialmente publicada, na forma do art. 1º. da Lei de Introdução ao Código Civil.
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uma atecnia absoluta, sem falar que desatendeu manifestamente a Lei Complementar nº. 95/98 (alterada pela Lei Complementar nº. 107/2001) que dispõe sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis. Como bem acentuou João José
Leal, “ao contrário de trazer consigo a solução para as questões jurídico-penais e
processuais relativas à matéria, acabou se constituindo num grande problema de
hermenêutica jurídica.”3
Aliás, possivelmente ciente do equívoco, o próprio Governo já encaminhou
ao Congresso Nacional um novo projeto de lei (o de nº. 6.108/02), tendo sido aprovado no Senado um substitutivo (nº. 115/02).
Os dois primeiros capítulos dispõem sobre questões administrativas, sanitárias, preventivas e de tratamento relacionadas com o uso de entorpecentes e o seu
combate, revogando, nesta parte, a lei anterior. Neste tocante, e para que se dê uma
idéia geral da lei e das justificativas aos vetos, iremos basicamente transcrever os artigos, os vetos e as suas respectivas razões.
Quanto aos capítulos IV e V, que abrangem toda a persecutio criminis, procuraremos fazer uma análise mais detida e crítica.
2.
O CAPÍTULO I – DISPOSIÇÕES GERAIS
O veto presidencial4 começou já no art. 1º. deste Capítulo que dispunha, in
verbis: “Esta Lei, que tem aplicação no âmbito da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, regula as operações e ações relacionadas aos produtos,
substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica.”
O art. 2º. estabelece ser
“dever de todas as pessoas, físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras com domicílio ou sede no País, colaborar na prevenção
da produção, do tráfico ou uso indevidos de produtos, substâncias
ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica”, determinando que a “pessoa jurídica que, injustificadamente, negarse a colaborar com os preceitos desta Lei terá imediatamente suspensos ou indeferidos auxílios ou subvenções, ou autorização de
funcionamento, pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e
pelos Municípios, e suas autarquias, empresas públicas, sociedades
de economia mista e fundações, sob pena de responsabilidade da
autoridade concedente.” Por outro lado, a “União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios criarão estímulos fiscais e outros,
destinados às pessoas físicas e jurídicas que colaborarem na pre3 Boletim do IBCCrim nº. 118, setembro/2002.
4 Mensagem nº. 25, de 11 de janeiro de 2002.
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venção da produção, do tráfico e do uso de produtos, substâncias
ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica.”
O art 3º. também foi vetado. Ele estabelecia que para
“os fins desta Lei, são considerados ilícitos os produtos, as substâncias ou as drogas que causem dependência física ou psíquica, especificados em lei e tratados internacionais firmados pelo Brasil,
relacionados periodicamente pelo órgão competente do Ministério
da Saúde, ouvido o Ministério da Justiça”, competindo ao “Ministério da Saúde disciplinar o comércio de produtos, substâncias ou
drogas que causem dependência física ou psíquica e que dependam de prescrição médica”, e estabelecendo que “sempre que as
circunstâncias o exigirem, será revista a especificação a que se refere o caput, com inclusão ou exclusão de produtos, substâncias
ou drogas que causem dependência física ou psíquica.”
Este dispositivo também foi vetado sob a seguinte justificativa:
“Em face da permanência em vigor da Lei no 6.368/76, assim como
de avanços legislativos ocorridos durante o período em que tramitava o projeto, o art. 3o. corresponderia a um retrocesso em relação aos esforços empregados no aperfeiçoamento da regulamentação da matéria. É contrário, portanto, ao interesse público que a
definição de substâncias entorpecentes, psicotrópicas, que determinem dependência física ou psíquica, e afins, sofra restrições
pela interpretação da lei. A expressão “para os fins desta Lei” é,
portanto, potencialmente lesiva à modernização e à complexidade da legislação penal brasileira.”
Dispõe o art. 4º. ser
“facultado à União celebrar convênios com os Estados, com o Distrito Federal e com os Municípios, e com entidades públicas e privadas, além de organismos estrangeiros, visando à prevenção, ao
tratamento, à fiscalização, ao controle, à repressão ao tráfico e ao
uso indevido de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, observado, quanto aos recursos financeiros e orçamentários, o disposto no
art. 47”, estabelecendo que “entre as medidas de prevenção incluise a orientação escolar nos três níveis de ensino.”
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No seu art. 5º. afirma-se que as
“autoridades sanitárias, judiciárias, policiais e alfandegárias organizarão e manterão estatísticas, registros e demais informes das
respectivas atividades relacionadas com a prevenção, a fiscalização, o controle e a repressão de que trata esta Lei, e remeterão,
mensalmente, à Secretaria Nacional Antidrogas - Senad e aos Conselhos Estaduais e Municipais de Entorpecentes, os dados, observações e sugestões pertinentes”, cabendo ao “Conselho Nacional Antidrogas - Conad elaborar relatórios global e anuais e, anualmente,
remetê-los ao órgão internacional de controle de entorpecentes” e
sendo “facultado à Secretaria Nacional Antidrogas – Senad, ao Ministério Público, aos órgãos de defesa do consumidor e às autoridades policiais requisitar às autoridades sanitárias a realização
de inspeção em empresas industriais e comerciais, estabelecimentos hospitalares, de pesquisa, de ensino, ou congêneres, assim como
nos serviços médicos e farmacêuticos que produzirem, venderem,
comprarem, consumirem, prescreverem ou fornecerem produtos,
substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou
psíquica” (art. 6º.). Neste caso, a “autoridade requisitante pode designar técnico especializado para assistir à inspeção ou comparecer pessoalmente à sua realização.” O § 2o deste art. 6º. ainda estabelece que “no caso de falência ou liquidação extrajudicial das
empresas ou estabelecimentos referidos neste artigo, ou de qualquer outro em que existam produtos, substâncias ou drogas ilícitas
que causem dependência física ou psíquica, ou especialidades farmacêuticas que as contenham, incumbe ao juízo perante o qual
tramite o feito:
I – determinar, imediatamente à ciência da falência ou liquidação, sejam lacradas suas instalações;
II – ordenar à autoridade sanitária designada em lei a urgente
adoção das medidas necessárias ao recebimento e guarda, em depósito, das substâncias ilícitas, drogas ou especialidades farmacêuticas arrecadadas;
III – dar ciência ao órgão do Ministério Público, para acompanhar o feito”, sendo que a “alienação, em hasta pública, de drogas,
especialidades farmacêuticas ou substâncias ilícitas será realizada na presença de representantes da Secretaria Nacional Antidrogas – Senad, dos Conselhos Estaduais de Entorpecentes e do Ministério Público.” O “restante do produto não arrematado será, ato
contínuo à hasta pública, destruído pela autoridade sanitária”,
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na presença daqueles representantes da Secretaria Nacional Antidrogas – Senad,
dos Conselhos Estaduais de Entorpecentes e do Ministério Público.
O art. 7º. exige que da
“licitação para alienação de drogas, especialidades farmacêuticas
ou substâncias ilícitas, só podem participar pessoas jurídicas regularmente habilitadas na área de saúde ou de pesquisa científica
que comprovem a destinação lícita a ser dada ao produto a ser arrematado”, sendo que os “que arrematem drogas, especialidades
farmacêuticas ou substâncias ilícitas, para comprovar a destinação declarada, estão sujeitos à inspeção da Secretaria Nacional
Antidrogas – Senad e do Ministério Público.”
Observa-se que o Ministério Público terá atuação importante nestas medidas
administrativas, devendo, evidentemente, adequar-se a estas novas atribuições,
criando interna corporis uma estrutura suficiente para esta demanda que se inicia.
3.
O CAPÍTULO II - DA PREVENÇÃO, DA ERRADICAÇÃO E DO TRATAMENTO
Neste capítulo, a primeira seção trata da prevenção e da erradicação, estabelecendo no art. 8º. que são
“proibidos, em todo o território nacional, o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de todos os vegetais e substratos, alterados na condição original, dos quais possam ser extraídos produtos, substâncias ou
drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, especificados pelo órgão competente do Ministério da Saúde”, podendo este órgão “autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos
no caput, em local predeterminado, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, sujeitos à fiscalização e à cassação da autorização,
a qualquer tempo, pelo mesmo órgão daquele Ministério que a tenha
concedido, ou por outro de maior hierarquia.” Fora desta hipótese permissiva, as “plantações ilícitas serão destruídas pelas autoridades policiais mediante prévia autorização judicial, ouvido o Ministério Público e cientificada a Secretaria Nacional Antidrogas - Senad.”
Observa-se, aqui, mais uma vez a intervenção obrigatória do parquet.
Vetou-se, porém, a disposição que estabelecia que em “hipóteses excepcionais, as plantações ilícitas poderão, sem a prévia autoriza-
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ção judicial, ser destruídas por determinação do delegado de polícia da circunscrição, que imediatamente comunicará a ocorrência e as razões da medida às autoridades e órgãos previstos no §
2o. (o Ministério Público e a Secretaria Nacional Antidrogas – Senad) e registrará a localização, extensão do plantio e demais informações destinadas a promover a responsabilização”,
sob o seguinte argumento:
“A norma presta-se ao desvirtuamento do trabalho policial, na medida em que prioriza a destruição de plantações em detrimento da
consecução de prova judicial sólida. Esta última, que permite a
prisão de criminosos e o desmantelamento de organizações ilícitas, é realmente instrumento eficiente no combate ao crime. A prova capaz de ensejar a condenação deve ser judicializada. As indeterminadas ´hipóteses excepcionais´ de eliminação da materialidade do delito seriam potencialmente nocivas ao interesse público. Além disso, a regra geral da prévia autorização judicial para
o ato policial estipula diligência de dificuldade semelhante à prevista no próprio parágrafo da proposta, qual seja a de ´determinação do delegado da circunscrição’. Por outro lado, normas gerais impedem que haja prejuízo ao trabalho policial em casos excepcionais. A proteção jurídica ao cumprimento do dever e a relevância penal da omissão apontam, portanto, para a desnecessidade da norma.”
Cremos que o veto foi correto, até porque o dispositivo poderia ensejar, como
é óbvio, um sem número de arbitrariedades.
Manteve-se, no entanto, a disposição segundo a qual a “destruição
de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica será feita por incineração e somente pode ser
realizada após lavratura do auto de levantamento das condições
encontradas, com a delimitação do local e a apreensão de substâncias necessárias ao exame de corpo de delito”, sendo que “em
caso de ser utilizada a queimada para destruir a plantação, observar-se-á, no que couber, o disposto no Decreto no 2.661, de 8 de
julho de 1998, dispensada a autorização prévia do órgão próprio
do Sistema Nacional do Meio Ambiente – Sisnama.” Tal erradicação “far-se-á com cautela, para não causar ao meio ambiente
dano além do necessário.”
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A preocupação aqui demonstrada pelo legislador foi extremamente salutar.
Em seguida, dois outros artigos foram vetados. O primeiro estabelecia que a
“autoridade que descumprir o preceito do § 6o. (logo acima transcrito) sujeitar-seá às sanções administrativas da Lei no. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, após apuração em processo administrativo.” Vetou-se, sob o argumento de que
“com ou sem o § 7o. em questão, as operações que exacerbarem o
necessário na destruição de culturas ilícitas, e causarem danos
ambientais, estarão, de qualquer modo, sujeitas às penas da Lei
no. 9.605/98 (Lei do Meio Ambiente). Há mais: a autoridade pública deve conhecer a legislação em sua plenitude. Haja ou não a remissão constante do § 7o., eventual conduta lesiva ao meio ambiente estará induvidosamente sujeita à Lei dos Crimes Ambientais. Desse modo, por ser desnecessário, pronuncia-se o Ministério
da Justiça pelo veto do dispositivo enfocado.”
Em seguida ocorreu o veto ao parágrafo que estabelecia que as
“glebas em que forem cultivadas plantações ilícitas serão expropriadas, conforme o disposto no art. 243 da Constituição Federal, mediante o procedimento judicial adequado, ressalvada, desde que provada,
a boa-fé do proprietário que não esteja na posse direta”, alegando-se
que o “art. 243 da Constituição dispõe que as glebas onde forem localizadas culturas ilegais serão imediatamente expropriadas, sem qualquer indenização ao proprietário. A instituição, por meio de lei, de
ressalva para os casos de boa-fé do proprietário que não esteja na posse direta da terra é inconstitucional. Além disso, a Lei nº. 8.257/91 já
trata da matéria, de forma conveniente ao interesse público.”
Determina-se no art. 9o. ser
“indispensável a licença prévia da autoridade sanitária para produzir, extrair, fabricar, transformar, preparar, possuir, manter em
depósito, importar, exportar, reexportar, remeter, transportar, expor, oferecer, vender, comprar, trocar, ceder ou adquirir, para
qualquer fim, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, ou produto químico destinado à sua
preparação, observadas as demais exigências legais”,
dispensando-se, porém, esta exigência para “a aquisição de medicamentos, mediante prescrição médica, de acordo com os preceitos legais e regulamentares.”
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No entanto, o Ministério da Saúde sugeriu o veto ao inciso II do parágrafo único do art. 9º. que dispensava aquela licença prévia da autoridade sanitária na “compra e venda de produto químico, ou natural, em pequena quantidade, a ser definida pelo órgão competente do Ministério da Saúde, destinado a uso medicinal,
científico ou doméstico.” O veto existiu
“tendo em vista a competência da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária - ANVISA estabelecida na Medida Provisória no. 2.190-34,
de 23 de agosto de 2001, que altera a Lei no. 9.782/99, no seu art.
7o., VII: ´autorizar o funcionamento de empresas de fabricação,
distribuição e importação dos produtos mencionados no art. 8o.
desta Lei de comercialização de medicamentos´.”
E, continua:
“tal como está redigido o inciso II do parágrafo único do art. 9o.
do projeto de lei, cujo veto está sendo sugerido, haverá uma liberalização generalizada, que restringe o exercício do poder de polícia
da ANVISA, no tocante a fiscalização e controle elencados no dispositivo retromencionado da Medida Provisória e ainda invalida
o preceito do parágrafo 1o. do art. 3o. do projeto de lei. Vale salientar que da forma que foi escrito o projeto de lei, poderá haver uma
vulnerabilidade do controle e da fiscalização, já exercidos pela
ANVISA, em conformidade com o art. 6o. da Lei no 6.368/76, em
função, principalmente, da ausência de clareza na conceituação
sobre produto, substância e droga que causa dependência, destinados a uso lícito e ilícito, gerando conflitos de controle no que
tange ao uso lícito e também superposição de competências (Ministério da Saúde e Ministério da Justiça) quanto ao controle e fiscalização do uso ilícito. Lembramos ainda, que as ações de controle
e fiscalização do uso lícito, de substâncias e medicamentos sujeitos
a controle especial, incluídos aqueles que causam dependência,
historicamente atribuídas ao Ministério da Saúde e hoje, por força
da Lei no. 9.782/99, desenvolvidas pela ANVISA, visam sobretudo
coibir o uso abusivo e indevido, protegendo e promovendo a saúde e o bem-estar da população.”
O art. 10 prevê que os
“dirigentes de estabelecimentos ou entidades das áreas de ensino, saúde, justiça, militar e policial, ou de entidade social, reli-
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giosa, cultural, recreativa, desportiva, beneficente e representativas da mídia, das comunidades terapêuticas, dos serviços nacionais profissionalizantes, das associações assistenciais, das
instituições financeiras, dos clubes de serviço e dos movimentos
comunitários organizados adotarão, no âmbito de suas responsabilidades, todas as medidas necessárias à prevenção ao tráfico, e ao uso de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, que causem dependência física ou psíquica”, sendo que as “pessoas jurídicas e as instituições e entidades, públicas ou privadas, implementarão programas que assegurem a prevenção ao tráfico e
uso de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica em seus respectivos locais de trabalho, incluindo campanhas e ações preventivas dirigidas a funcionários e seus familiares.” Estas medidas de prevenção são “as
que visem, entre outros objetivos, os seguintes: incentivar atividades esportivas, artísticas e culturais; promover debates de
questões ligadas à saúde, cidadania e ética; manter nos estabelecimentos de ensino serviços de apoio, orientação e supervisão
de professores e alunos; manter nos hospitais atividades de recuperação de dependentes e de orientação de seus familiares.”
Importante disposição, pois este controle informal é fundamental no combate a este tipo de criminalidade, ainda mais se considerando o caráter subsidiário do
Direito Penal5. A propósito, vale a advertência da educadora espanhola Encarna Bas,
doutora em Ciências da Educação, segundo a qual
“la educación sobre drogas requiere una política real de prevención, que contemple la formación del profesorado, de los padres y
madres, y de otros mediadores sociales, para el desarollo de programas globales, fundamentados, coherentes, continuos, sistemáticos y creativos.”6
3.1 A Justiça Terapêutica:
Na seção II deste capítulo, temos a matéria referente ao tratamento do dependente ou usuário de droga. Aqui vemos uma clara opção do legislador pela chamada “Justiça Terapêutica” de origem estadunidense, e de relativa eficácia, pois equi-
5 Sobre o assunto, leia-se “Do Caráter Subsidiário do Direito Penal”, de Paulo de Souza Queiroz, Del Rey Editora.
6 Drogas – Cambios Sociales y Legales ante el Tercer Milenio, Madrid: Dykinson, 2000, p. 194.
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para injustificadamente o dependente (este sim passível de ser tratado) ao mero ou
ocasional usuário de drogas, não necessariamente dependente. Como anota Luiz
Flávio Gomes, pretende-se
“que todos os usuários sejam submetidos a tratamento. Isso constitui erro clamoroso. É preciso distinguir o usuário dependente do
não dependente. O mero experimentador ou ocasional usuário
não tem que se submeter a nenhum tratamento, porque dele não
necessita. O tratamento não pode nunca ser visto como uma
´pena´ ou um ´castigo´. É apenas uma oferta para recuperar o
dependente.”7
Muito antes, Maria Lúcia Karam afirmava que
“leis penais, como a brasileira, que impõem a obrigatoriedade do
tratamento àqueles que têm sua culpabilidade excluída, em razão
da dependência, contrariam o princípio básico de que o êxito de
qualquer tratamento, nesta área, está condicionado à voluntariedade de sua busca.”8
Assim, o art. 11 começa por estabelecer que o “dependente ou o
usuário de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, que causem
dependência física ou psíquica, relacionados pelo Ministério da
Saúde, fica sujeito9 às medidas previstas neste Capítulo e Seção”,
devendo o “tratamento do dependente ou do usuário ser feito de
forma multiprofissional e, sempre que possível, com a assistência
de sua família”, cabendo ao “Ministério da Saúde regulamentar as
ações que visem à redução dos danos sociais e à saúde.”
Por outro lado, as
“empresas privadas que desenvolverem programas de reinserção
no mercado de trabalho, do dependente ou usuário de produtos,
substâncias ou drogas ilícitas, ou que causem dependência física
ou psíquica, encaminhados por órgão oficial, poderão receber be7 Reformas Penais: a nova Lei de Tóxicos, site www.ibccrim.com.br, 21/02/2003.
8 De Crimes, Penas e Fantasias, Rio de Janeiro: LUAM, 1991, p. 54.
9 Como adverte Luiz Flávio Gomes, “nenhum tratamento pode ser imposto (obrigatório). Aliás, tratamento compulsório está fadado a não produzir nenhum resultado positivo. Todo tratamento só tem chance de prosperar
quando há efetiva (e ativa) participação do paciente.” (www.ibccrim.com.br, 21/02/2003).
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nefícios a serem criados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios”. Ademais, os “estabelecimentos hospitalares ou psiquiátricos, públicos ou particulares, que receberem dependentes ou usuários para tratamento, encaminharão ao Conselho Nacional Antidrogas - Conad, até o dia 10 (dez) de cada mês, mapa estatístico
dos casos atendidos no mês anterior, com a indicação do código
da doença, segundo a classificação aprovada pela Organização
Mundial de Saúde, vedada a menção do nome do paciente. No
caso de internação ou de tratamento ambulatorial por ordem judicial, será feita comunicação mensal do estado de saúde e recuperação do paciente ao juízo competente, se esse o determinar. As
instituições hospitalares e ambulatoriais comunicarão à Secretaria Nacional Antidrogas – Senad os óbitos decorrentes do uso de
produto, substância ou droga ilícita.”
O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República sugeriu o
veto ao caput do art. 12 que tinha a seguinte redação:
“As redes dos serviços de saúde da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, observado o disposto nos arts. 4o. e 47,
desenvolverão programas de tratamento do usuário de substâncias ou drogas ilícitas ou que causem dependência física ou psíquica”,
sob o argumento de que
“da maneira como se encontra grafado, o artigo em questão determina, em outras palavras, que somente mediante financiamento
com recursos arrecadados pela Secretaria Nacional Antidrogas é
que as redes de serviços de saúde da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios desenvolverão programas para tratamento do usuário de drogas. Desse entendimento, decorre que essa
proposta vai de encontro ao estabelecido pela Política Nacional
Antidrogas, conforme pressuposto básico por ela definido no item
2.12. de seu texto. Ainda, relativamente aos objetivos do Sistema
Nacional Antidrogas – SISNAD, da mesma maneira não encontra
guarida, uma vez que esse Sistema orienta-se por esse pressuposto
básico, a responsabilidade compartilhada entre Estado e Sociedade, adotando como estratégia a cooperação mútua e a articulação de esforços entre Governo, iniciativa privada e cidadãos - considerados individualmente ou em suas livres associações. Por ou-
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tro lado, podem ser considerados, isoladamente, como fatores impeditivos à consecução do desiderato pretendido pelo artigo em comento, a diminuta previsão orçamentária disponibilizada para o
Fundo Nacional Antidrogas, mais especificamente, no que diz respeito à fonte de recursos vinculados à arrecadação, bem como a
reduzida estrutura da SENAD, que não pode ser comparada à rede
do Serviço Único de Saúde – SUS, para efeitos de aplicação, controle e fiscalização do emprego de tais recursos. Nesse sentido, este
Gabinete vislumbra que o presente dispositivo deverá ser contemplado em diploma legal especialmente voltado para o assunto, devidamente consideradas as limitações e responsabilidades de todos os órgãos que integram o Sistema Nacional Antidrogas, bem
como o Sistema Único de Saúde, em todos os níveis da Federação,
uma vez que é legítima a preocupação do Legislador sobre a questão do tratamento do usuário, que se constitui primordialmente
em ação de saúde pública, e esta um dever do Estado.”
4.
O CAPÍTULO III – DOS CRIMES E DAS PENAS
Todo este capítulo foi vetado, continuando em vigor, então, os arts. 12 e seguintes da Lei nº. 6.368/76 que definem os delitos e as respectivas sanções penais.
Para simples conhecimento, veja-se como estava ele grafado e as razões do veto:
“Art. 14. Importar, exportar, remeter, traficar ilicitamente, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, financiar, expor à venda,
oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar a consumo e oferecer, ainda que gratuitamente, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, sem autorização do órgão competente
ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena: reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, financia, vende, expõe à venda ou oferece, ainda que gratuitamente, fornece, tem em
depósito, transporta, traz consigo ou guarda matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de produto, substância ou droga ilícita ou que cause dependência física ou psíquica, sem autorização do órgão competente ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar;
II – semeia, cultiva ou faz a colheita de plantas destinadas ao consumo direto ou à preparação de produtos, substâncias ou drogas,
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relacionadas como ilícitas pelo órgão competente do Ministério da
Saúde;
III – fabrica, tem em depósito ou vende, sem autorização do órgão
competente ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, medicamentos, solventes, inalantes, inebriantes ou produtos que os contenham, de uso não autorizado pelo órgão competente do Ministério da Saúde;
IV – utiliza local de que tem a propriedade, posse, administração,
guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, para tráfico ou depósito de produto, substância ou droga ilícita.
§ 2o Induzir, instigar ou auxiliar alguém a usar produto, substância ou droga ilícita, bem assim contribuir, efetiva e diretamente,
para incentivar ou difundir o uso indevido ou o tráfico de produto, substância ou droga ilícita:
Pena: reclusão, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.
Art. 15. Promover, fundar ou financiar grupo, organização ou associação de 3 (três) ou mais pessoas que, atuando em conjunto,
pratiquem, reiteradamente ou não, algum dos crimes previstos nos
arts. 14 a 18 desta Lei:
Pena: reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos, e multa.
Art. 16. Utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a
qualquer título, guardar e fornecer, ainda que gratuitamente, maquinismo, aparelho ou instrumento, ciente de que se destina à produção ou fabricação ilícita de produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica:
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.
Art. 17. Prestar colaboração, direta ou indireta, ainda que como
informante, ou apoiar grupo, organização ou associação responsável por crimes previstos nos arts. 14, 15 e 16 desta Lei:
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Art. 18. Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização,
disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, do tráfico de produtos, substâncias ou drogas ilícitas:
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1o Influenciar, induzir ou instigar terceiro a receber ou ocultar,
de boa–fé, bem ou valor proveniente de tráfico de produto, substância ou droga ilícita:
Pena: reclusão, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa.
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§ 2o Adquirir ou receber bem proveniente de tráfico ilícito de produto, substância ou droga ilícita, que, pela desproporção entre o
valor e o preço, ou pela condição da pessoa que o oferece, deva
presumir ter sido obtido por meio ilícito:
Pena: reclusão, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa.
Art. 19. Prescrever ou ministrar, culposamente, o médico, dentista,
farmacêutico ou outro profissional da área de saúde, produto,
substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, em dose evidentemente superior à necessária, ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Penas e medidas aplicáveis: as previstas no art. 21.
Parágrafo único. O juiz comunicará a condenação ao Conselho
Federal da categoria profissional a que pertença o agente.
Art. 20. Adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer
consigo, para consumo pessoal, em pequena quantidade, a ser definida pelo perito, produto, substância ou droga ilícita que cause
dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo
com determinação legal ou regulamentar:
Penas e medidas aplicáveis: as previstas no art. 21.
§ 1o O agente do delito previsto nos arts. 19 e 20, salvo se houver
concurso com os crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18, será
processado e julgado na forma do art. 60 e seguintes da Lei no
9.099, de 26 de setembro de 1995 - Lei dos Juizados Especiais, Parte
Criminal.
§ 2o Nas mesmas penas e medidas aplicáveis aos crimes previstos
neste artigo, e sob igual procedimento, incorre quem cede, eventualmente, sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento,
maior de 18 (dezoito) anos, produto, substância ou droga ilícita,
para juntos a consumirem.
§ 3o É isento de pena o agente que, tendo cometido o delito previsto neste artigo, era, ao tempo da ação, inteiramente incapaz de
entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo
com esse entendimento, em razão de dependência grave, comprovada por peritos.
§ 4o Quando o juiz absolver o agente, reconhecendo por força de
perícia oficial, que ele, à época do delito previsto neste artigo,
apresentava as condições prescritas no § 3o, determinará, ato contínuo, na própria sentença absolutória, o seu encaminhamento
para o tratamento devido.
Art. 21. As medidas aplicáveis são as seguintes:
I – prestação de serviços à comunidade;
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faculdade de direito de bauru
II – internação e tratamento para usuários e dependentes de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, em regime ambulatorial ou
em estabelecimento hospitalar ou psiquiátrico;
III – comparecimento a programa de reeducação, curso ou atendimento psicológico;
IV – suspensão temporária da habilitação para conduzir qualquer espécie de veículo;
V – cassação de licença para dirigir veículos;
VI – cassação de licença para porte de arma;
VII – multa;
VIII – interdição judicial;
IX – suspensão da licença para exercer função ou profissão.
§ 1o Ao aplicar as medidas previstas neste artigo, cumulativamente ou não, o juiz considerará a natureza e gravidade do delito, a
capacidade de autodeterminação do agente, a sua periculosidade
e os fatores referidos no art. 25.
§ 2o Para determinar se a droga destinava-se a uso pessoal e formar sua convicção, no âmbito de sua competência, o juiz, ou a
autoridade policial, considerará todas as circunstâncias e, se necessário, determinará a realização de exame de dependência toxicológica e outras perícias.
Art. 22. Dirigir veículo de espécie diversa das classificadas no art.
96 da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 — Código de Trânsito Brasileiro —, após ter consumido produto, substância ou droga
relacionados como ilícitos pelo órgão competente do Ministério da
Saúde:
Pena: apreensão do veículo, cassação da habilitação respectiva e
multa, sem prejuízo de sanções específicas, aplicáveis em razão da
natureza náutica ou aérea do veículo.
Art. 23. As penas previstas nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 são aumentadas de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se:
I – dada a natureza, a procedência ou a quantidade da substância, droga ilícita ou produto apreendidos, as circunstâncias do
fato evidenciarem o envolvimento do agente com o tráfico ilícito
organizado, nacional ou internacional;
II – o agente praticar o crime prevalecendo-se de função pública,
ou se desempenhar missão de educação, guarda ou vigilância;
III – a prática visa atingir ou envolver pessoa menor de 18 (dezoito) anos, ou que tenha, por qualquer motivo, diminuída ou
suprimida a capacidade de discernimento ou de autodeterminação;
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IV – a infração tiver sido cometida nas dependências de serviços
de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social,
em estabelecimento penal, militar ou policial, em transporte público, ou em locais onde alunos se dediquem à prática de atividades
esportivas, educativas ou sociais, ou nas suas imediações;
V – o crime tiver sido praticado com violência, grave ameaça ou
emprego de arma;
VI – o agente obteve ou procura obter compensação econômica;
VII – o produto, a substância ou a droga ilícita forem distribuídos
para mais de 3 (três) pessoas;
VIII – o agente portava mais de uma modalidade de produto, substância ou droga ilícita.
Art. 24. São inafiançáveis e insuscetíveis de graça os crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 desta Lei.
§ 1o A prisão temporária requerida para os crimes previstos nos
arts. 14, 15, 16, 17 e 18 terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável
por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade.
§ 2o As penas aplicadas aos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17
e 18 terão pelo menos a primeira terça parte cumprida integralmente em regime fechado.
Art. 25. Na fixação da pena, além do disposto no art. 59 do Código
Penal, o juiz apreciará a gravidade do crime, a natureza e a
quantidade dos produtos, das substâncias ou das drogas ilícitas
apreendidos, o local ou as condições em que se desenvolveu a
ação criminosa, as circunstâncias da prisão, a conduta e os antecedentes do agente, podendo, justificadamente, reduzir a pena de
1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço).
Art. 26. O dependente ou usuário de produto, substância ou droga
ilícita que, em razão da prática de qualquer infração penal, se encontrar em cumprimento de pena privativa de liberdade ou medida de segurança poderá ser submetido a tratamento em ambulatório interno do sistema penitenciário respectivo.
Parágrafo único. Enquanto não forem instalados os ambulatórios,
o tratamento será realizado na rede pública de saúde.”
Estas foram as razões do veto:
“Em que pese a louvável intenção do legislador ao tentar conferir
tratamento diferenciado ao consumidor de drogas, há vício de inconstitucionalidade no art. 21, que contamina a íntegra de vários
outros artigos do capítulo em questão.
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faculdade de direito de bauru
O art. 5o, XXXIX, da Constituição Federal e o art. 1o. do Código Penal dispõem que ´não há crime sem lei anterior que o defina, nem
pena sem prévia cominação legal´. Além disso, o art. 5o, XLVI, da
Lei Maior, consagra o princípio da individualização da pena, atribuindo à Lei essa tarefa. Por fim, o art. 5o, XLVII, “b”, também da
Constituição, determina a proibição de pena de caráter perpétuo.
O projeto, lamentavelmente, deixou de fixar normas precisas
quanto a limites e condições das penas cominadas. Diferentemente do que ocorre nos casos de conversão de penas restritivas de liberdade em restritivas de direitos e vice-versa, o projeto não contém limites temporais expressos que atendam aos princípios constitucionais.
Em matéria tão sensível, não se deve presumir a prudência das
instituições, pois a indeterminação da lei penal pode ser a porta
pela qual se introduzem formas variadas e cruéis de criminalidade legalizada.
A inconstitucionalidade apontada contamina os artigos 19 e 20,
na medida em que estes descrevem tipos penais cujas penas são as
presentes no art. 21.
Quanto ao artigo 14 do projeto, o primeiro do capítulo em comento, o tipo em questão já é contemplado pelo art. 12 da Lei no
6.368/76, com a mesma cominação de pena. No projeto, todavia,
dois verbos somaram-se aos verbos do tipo vigente: “financiar” e
“traficar ilicitamente”. Conquanto representassem, em tese, avanços legislativos, contêm o risco inadmissível, ainda que remoto, de
provocar profunda instabilidade no ordenamento jurídico.
Veicula-se tese no meio jurídico pela qual a redação proposta pelo
projeto no art. 14 promoveria uma ´evasão de traficantes das prisões´. Explique-se. O verbo ´traficar´ acrescentado pelo projeto, e
que não aparece na lei vigente, poderia concentrar sobre si, em caráter exclusivo, a aplicação da Lei no. 8.072, de 25 de julho de 1990 (Crimes Hediondos), que impõe o cumprimento integral em regime fechado da pena para o crime de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas
afins. Em decorrência disso, apenados condenados por decisão judicial que contenha referência expressa a verbos como ´produzir´,
´ter em depósito´, por exemplo, não estariam submetidos à norma
especial sobre o regime. Hediondo seria, por essa interpretação, apenas o verbo novo, o ´traficar´. Assim, por causa do princípio da irretroatividade da lei penal mais grave, todos indivíduos condenados e
processados pelo tipo do art.12 da Lei no. 6.368/76, poderiam estar, automaticamente, descobertos pela Lei no. 8.072/90. Conquanto seja tese
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de duvidosa plausibilidade, divulgada ad terrorem, não é do interesse público que se corra risco algum a respeito do tema. Em vista disso, somado ao fato de que em vários artigos há remissão expressa ao
art. 14, a permanência dos demais artigos do Capítulo III acarretaria
difícil e temerária conjugação com os tipos previstos na Lei no.
6.368/76. Isso porque a interpretação extensiva e a analogia são proibidas em direito penal. Acrescente-se que, no caso do art. 18 do projeto, o tipo penal consta do art. 1o, I, da Lei no 9.613, de 3 de março de
1998 (lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores) que comina
pena mais elevada, o que, em razão do interesse público, deve ser
mantida. O tema conhecido por ´lavagem de dinheiro´ merece repressão diferenciada, pois é reconhecido como uma das bases do crime organizado, nacional e transnacional. Por último, os sensíveis
avanços contidos no projeto, mas prejudicados por inconstitucionalidade reflexa, não cairão no esquecimento, vez que se estuda, para
breve, o encaminhamento de proposta legislativa que tratará de forma adequada da matéria constante do presente capítulo.”
5.
O CAPÍTULO IV – DO PROCEDIMENTO PENAL
5.1 Da aplicabilidade dos dispositivos:
Este capítulo, que efetivamente nos interessa, diz respeito à primeira fase do
procedimento penal a ser adotado quando da prática dos delitos tipificados na Lei
nº. 6.368/76. Ele engloba os arts. 27 a 34 da nova lei e diz respeito, repita-se, à primeira fase da persecutio criminis.
Adota-se o que a lei denominou de procedimento comum, segundo o qual “o
procedimento relativo aos processos por crimes definidos nesta Lei rege-se pelo
disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código
Penal, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.” (Grifo nosso).
Aqui, observa-se uma primeira dificuldade de interpretação causada exatamente
pelo veto inteiro ao anterior Capítulo III, pois, na verdade, a lei não define nenhum crime; logo, poder-se-ia argumentar até que este procedimento é inaplicável, visto que, não
havendo crime definido nesta lei, o respectivo e pretenso procedimento seria inaplicável, restando, então, incólume aquele procedimento estipulado na Lei nº. 6.368/7610.
Em que pese reconhecermos a atecnia resultante do veto, não vemos obstá10 É a opinião, por exemplo, de Cristiano Ávila Maronna e Carlos Alberto Pires Mendes, em artigo publicado no Boletim do IBCCrim nº. 111, fevereiro/2002; e de Sérgio Habib que, fundamentadamente, admite a aplicação deste capítulo apenas “quando for mais favorável ao réu” (Revista Jurídica Consulex, nº. 139, outubro/2002). Assim também Vicente Greco Filho (Revista Jurídica Consulex, nº. 139, outubro/2002).
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faculdade de direito de bauru
culo jurídico em admitir a validade deste novo procedimento em relação aos delitos
tipificados na Lei nº. 6.368/76, mesmo porque esta é a legislação que em nosso País
tipifica delitos desta natureza. Por outro lado, ao estabelecer um novo procedimento, a lei nova, implicitamente, revogou a lei anterior nesta sua parte procedimental
(art. 2º., § 1º., da Lei de Introdução ao Código Civil). Como escreveu Luiz Flávio Gomes, pelo fato de não existir
“a menor dúvida sobre a quais crimes refere-se o art. 27 da Lei nº.
10.409/02 (é evidente, óbvio e ululante que esse dispositivo legal diz
respeito aos crimes previstos na Lei nº. 6.368/76), segundo nosso
ponto de vista, parece muito claro que o novo procedimento tem
que ser observado em todos os seus termos, sob pena de nulidade
total do processo (por inobservância do devido processo legal).”11
Não esqueçamos, ainda, que o art. 59 desta lei foi vetado, exatamente aquele
que revogava a Lei nº. 6.368/76. Atentemos para as razões do veto a este art. 59:
“Conquanto repleto de positivas inovações, o projeto, por razões já
expostas, não logra êxito quanto à juridicidade de vários de seus
artigos. Isso compromete a substituição plena da Lei que regula a
matéria. Portanto, a cláusula que revoga a Lei no 6.368/76 não
deve persistir, sob pena de abolição de diversos tipos penais, entre
outros efeitos nocivos ao interesse público. Apesar disso, a futura
norma legal apresenta importante avanço no combate ao crime.
Os diversos vetos, se aceitos, obrigam que se aumente o prazo de
entrada em vigor da lei, bem como da sua regulamentação. As ausências de que se rescinde o projeto poderão, todavia, ser reparadas posteriormente mediante iniciativa do Poder Executivo, que
deverá levar em consideração todas as discussões já havidas no
Congresso Nacional.”
Vale, neste momento, fazer uma ressalva que entendemos necessária e pertinente: a lei dos crimes hediondos havia acrescentado um parágrafo único ao art. 35
da Lei nº. 6.368/76, duplicando os prazos procedimentais quando se tratasse dos crimes previstos nos arts. 12, 13 e 14. Pergunta-se: tal dispositivo continua em vigor
com esta nova lei, isto é, no atual procedimento deve prevalecer este parágrafo único? A resposta é negativa, pois não somente toda a parte procedimental da antiga lei
foi revogada implicitamente pela nova (incluindo o seu art. 35), como pelo fato de
11 www.ielf.com.br
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não ter havido qualquer referência neste sentido na lei que ora se comenta (o que
poderia ter sido feito). Se não o foi, e sendo uma norma gravosa (principalmente
para indiciados e réus presos), evidentemente que não é cabível qualquer outro entendimento.
5.2 Da prisão em flagrante e do inquérito policial:
Logo no início da seção única deste capítulo, foi vetado o caput do art. 28 que
dispunha: “Ocorrendo prisão em flagrante, a autoridade policial, no prazo de 24
(vinte e quatro) horas, fará comunicação ao juiz competente, remetendo-lhe cópia do auto lavrado.” Vetou-se porque
“a Constituição exige, no art. 5o., LXII, que a prisão de qualquer
pessoa seja imediatamente comunicada ao juiz competente. Por
ser norma restritiva de direito não pode o legislador ordinário ampliar-lhe o âmbito de aplicação. Além disso, com a ressalva do art.
60, § 4o., IV da Constituição Federal, o veículo adequado para a alteração proposta seria projeto de emenda à Constituição.”
Estabelece a lei que para o efeito
“da lavratura do auto de prisão em flagrante e estabelecimento da autoria e materialidade do delito, é suficiente o laudo de constatação da
natureza e quantidade do produto, da substância ou da droga ilícita,
firmado por perito oficial ou, na falta desse, por pessoa idônea, escolhida, preferencialmente, entre as que tenham habilitação técnica.”
O perito que subscrever este laudo “não ficará impedido de participar da
elaboração do laudo definitivo.” Observa-se que, diferentemente do que ocorre
com a feitura do laudo definitivo, para este provisório laudo de constatação não é
necessária a participação de dois peritos, como exige o art. 159 e seu § 1º., além de
se dispensar o diploma de curso superior para o perito não oficial. Aliás, este parágrafo representa uma clara exceção ao disposto no art. 279, II do Código de Processo Penal, segundo o qual não pode ser perito quem “tiver opinado anteriormente
sobre o objeto da perícia.” Aqui, mesmo aquele perito que assinou o primeiro laudo poderá também atestar o segundo e definitivo documento. Tais disposições
constavam da lei anterior (art. 22, §§ 1º. e 2º.)
Continua a lei:
“O inquérito policial será concluído no prazo máximo de 15 (quinze) dias, se
o indiciado estiver preso, e de 30 (trinta) dias, quando solto”, podendo tais prazos
ser “duplicados pelo juiz, mediante pedido justificado da autoridade policial.” Ob-
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serva-se que pelo Código de Processo Penal, a dilação de prazo para a conclusão do
inquérito policial só está permitida quando o indiciado estiver solto (art. 10, § 3º.).
Como se percebe, quanto ao indiciado preso aumentou-se o prazo para o término do
inquérito policial, em relação àquele estabelecido genericamente no art. 10 do CPP e
mesmo no estipulado anteriormente pelo art. 21 da lei antiga. É evidente que apenas
quando demonstrada efetivamente a necessidade da dilação é que o Juiz, também fundamentadamente, deferirá o pedido feito pela autoridade policial. Estando preso o indiciado, esta duplicação do prazo deve ser feita com bastante cautela, a fim de que não
se prolongue demasiado a conclusão da peça informativa.
Ao final do procedimento inquisitivo, a
“autoridade policial relatará sumariamente as circunstâncias do
fato e justificará as razões que a levaram à classificação do delito,
com indicação da quantidade e natureza do produto, da substância ou da droga ilícita apreendidos, o local ou as condições em
que se desenvolveu a ação criminosa e as circunstâncias da prisão, a conduta, a qualificação e os antecedentes do agente.”
Excepcionalmente a lei determina que o relatório do inquérito policial indique, expressa e justificadamente, a qualificação jurídica do fato, evitando-se, assim,
que arbitrariamente sejam indiciados meros usuários como traficantes, com todas as
conseqüências daí decorrentes, como, por exemplo, a impossibilidade de prestar
fiança ou mesmo de se livrar solto. Doravante, deverá o Delegado de Polícia explicitar em suas conclusões o que o levou ao indiciamento pelo art. 12 e não pelo art.
16, regra absolutamente inédita e inovadora em nosso sistema processual, pois,
como diz Tourinho Filho, tradicionalmente “esse relatório não encerra, não deve
nem pode encerrar qualquer juízo de valor.”12
Continuemos a análise do texto:
“Findos os prazos previstos no art. 29, os autos do inquérito policial
serão remetidos ao juízo competente, sem prejuízo da realização
de diligências complementares destinadas a esclarecer o fato”, sendo que as “conclusões das diligências e os laudos serão juntados
aos autos até o dia anterior ao designado para a audiência de instrução e julgamento.”
Entendemos que se tratando de acusado preso, em nenhuma hipótese deve
ser adiada a audiência de instrução e julgamento que deverá ser realizada na data
marcada, ainda que não tenham sido concluídas aquelas diligências complementa12 Processo Penal, Vol. I, São Paulo: Saraiva, 2000, 22ª. ed., p. 279.
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res, salvo se se conceder liberdade provisória ao réu. O acusado tem o direito a um
julgamento rápido (nada obstante seguro13) e sem dilações indevidas14. Se aquelas
diligências complementares ainda não puderam ser concluídas, a culpa não é do
acusado (se for é diferente) e sim do aparato estatal que não teve a suficiente competência para terminar as investigações oportuno tempore. Tratando-se, porém, de
acusado que esteja respondendo ao processo em liberdade, aquela audiência pode
ser adiada, requisitando-se com urgência o encaminhamento das diligências complementares.
Relembre-se que o laudo definitivo continua sendo imprescindível para subsidiar um decreto condenatório, sendo “francamente majoritária a jurisprudência
que reputa imprescindível para a condenação nos arts. 12 e 16 da Lei nº. 6.368/76
o exame toxicológico definitivo, não o suprindo o laudo de constatação preliminar.” (TJSP – Rev. 28.417 – Rel. Álvaro Cury – RT 594/304 e RJTJSP 92/482).
Foram vetados também o caput e o § 1º. do art. 32 que tinham a seguinte redação:
“Antes de iniciada a ação penal, o representante do Ministério Público ou o defensor poderão requerer à autoridade judiciária
competente o arquivamento do inquérito ou o seu sobrestamento,
atendendo às circunstâncias do fato, à personalidade do indiciado, à insignificância de sua participação no crime, ou à condição
de que o agente, ao tempo da ação, era inteiramente incapaz de
entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com
esse entendimento, em razão de dependência grave, comprovada
por peritos.
“A solicitação, qualquer que seja a natureza ou a fase do processo,
também poderá se basear em qualquer das condições previstas no
art. 386 do Código de Processo Penal.”
Eis as razões alegadas:
“O Ministério Público é o titular privativo da ação penal pública,
conforme disposto no art. 129, I, da Constituição. O juízo de conveniência a respeito da transformação de um inquérito ou de uma
13 Atentemos, porém, para a lição de Carnelutti, segundo a qual “se la giustizia è sicura non è rápida, se è rapida non è sicura...”, apud Tourinho Filho, Processo Penal, Vol. 03, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 94.
14 A propósito, conferir o art. 7º., 5 do Pacto de São José da Costa Rica - Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969 e art. 14, 3, c do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova
York, assinado em 19 de dezembro de 1966, ambos já incorporados em nosso ordenamento jurídico, por força, respectivamente, do Decreto n.º 678 de 6 de novembro de 1992 e do Decreto n.º 592, de 6 de julho de 1992.
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notitia criminis em ação penal é, repita-se, exclusivo do Ministério
Público. Só ele está legitimado a pedir o arquivamento de inquérito policial. Por isso, mesmo quando o pedido feito pelo Ministério
Público é indeferido em primeiro grau, a solução da controvérsia
mantém-se sob a responsabilidade do mesmo órgão, dessa vez,
contudo, do Procurador-Geral. É o que dispõe o art. 28 do Código
de Processo Penal. A hipótese de facultar ao defensor o pedido de
arquivamento implica, portanto, limitação ao exercício constitucional da ação penal pelo Ministério Público, pois, em caso de deferimento do pedido feito por advogado ao juiz, o Ministério Público ficaria impedido de exercer sua prerrogativa constitucional.
Por outro lado, não há prejuízo para a defesa, pois continua ela
dispondo do instrumento constitucional do habeas corpus. O §1o
do art. 32, por indissociável do caput, resta prejudicado.”
5.3 O sobrestamento do inquérito policial, a redução da pena e o
perdão judicial: a delação premiada15:
Deste art. 32 restaram apenas os seus §§ 2o. e 3º. (sic), estabelecendo que
“o sobrestamento do processo ou a redução da pena podem ainda decorrer de acordo entre o Ministério Público e o indiciado que, espontaneamente, revelar a existência de organização criminosa, permitindo a prisão de um ou mais dos seus integrantes, ou a apreensão do
produto, da substância ou da droga ilícita, ou que, de qualquer
modo, justificado no acordo, contribuir para os interesses da Justiça.”
Ademais, se
“o oferecimento da denúncia tiver sido anterior à revelação, eficaz, dos demais integrantes da quadrilha, grupo, organização ou
bando, ou da localização do produto, substância ou droga ilícita,
o juiz, por proposta do representante do Ministério Público, ao proferir a sentença, poderá deixar de aplicar a pena, ou reduzi-la, de
1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), justificando a sua decisão.”
Como se nota, são parágrafos sem caput, o que se revela estranho. São verda15 Sobre a delação premiada, conferir o nosso “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003. Hoje, inclusive e, principalmente, a doutrina estrangeira, prefere a expressão “colaboração processual”, ainda que tal colaboração se dê, também, na fase pré-processual, como informa Eduardo Araújo da Silva (Boletim do IBCCrim. nº.
121, dezembro/2002).
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deiras almas penadas... Como ensina Tourinho Filho, “sabe-se que o parágrafo
guarda estreita relação com o artigo a que está atrelado.”16 O que dirá o mestre...
Vejamos, então, o que se pode fazer para simplesmente não ignorarmos estes
dispositivos legais ou torná-los inaplicáveis, até porque são, afinal de contas, disposições que podem vir a favorecer o réu. Como ensinava Carlos Maximiliano, respaldado na lição do francês Charles Brocher, “no Direito Criminal se não tolera a retificação efetuada pelo intérprete, quando prejudicial ao acusado; por outro
lado, é de rigor fazê-la, quando aproveite ao réu.” (Grifo nosso)17. A lição parecenos válida no presente caso.
Pois bem. Temos, então, três disposições diferentes contidas nestes parágrafos sobreviventes a este naufrágio legislativo:
1) O sobrestamento do inquérito policial;
2) O perdão judicial;
3) A redução da pena.
Ressalve-se a utilização pela lei brasileira, mais uma vez, de expressões como
“organização”, “organização criminosa” e “grupo” sem que se saiba “juridicamente
o que é isso no Brasil!”, como bem adverte (e desde há muito) Luiz Flávio Gomes.18
Há quem entenda inaplicáveis estes dois parágrafos, exatamente pela falta do
caput do art. 32, tornando-os “dispositivos legais juridicamente inócuos ou ineficazes”, devendo aplicar-se a respeito os arts. 13 e 14 da Lei nº. 9.807/99 (Lei de Proteção às Testemunhas)19. Preferimos a corrente que sustenta a aplicabilidade dos
dois parágrafos, apesar da evidente balbúrdia legislativa ocasionada pelo veto parcial
ao art. 32, mesmo porque as disposições da Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas
são menos amplas do que estes dois parágrafos. O perdão judicial, por exemplo, só
é cabível para o colaborador primário e não há a previsão de sobrestamento do inquérito policial.
Apesar do § 2º. referir-se a processo, evidentemente não se trata de sobrestamento da ação penal, por dois motivos: primeiro porque este parágrafo encontra-se indiscutivelmente no capítulo atinente à disciplina do inquérito policial e
segundo porque o próprio parágrafo refere-se a indiciado. Ademais, o caput vetado iniciava-se com a ressalva “antes de iniciada a ação penal”. Logo, este sobrestamento diz respeito, tão-somente, à primeira fase da persecutio criminis,
permanecendo íntegra a regra da indisponibilidade da ação penal (arts. 42 e 576
do CPP), com a mitigação operada pelos arts. 79 e 89 da Lei n. 9.099/95 (suspensão condicional do processo)20. Em reforço a esta tese, veja-se a lição de Fernan16 Código de Processo Penal Comentado, Vol. I, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed., 2001, p. 220.
17 Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 7ª. ed., 1961, p. 404.
18 “Colcha de Retalhos”, artigo publicado no site www.conjur.com.br, 06/02/2002.
19 João José Leal, “A Lei nº. 10.409/02 e o Instituto da Delação Premiada”, Boletim do IBCCrim nº. 118, setembro/2002.
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do Capez e Victor Eduardo Rios Gonçalves, segundo a qual este capítulo IV “trata, em sua quase totalidade, do inquérito policial e de medidas investigatórias
específicas, deixando para o capítulo V (instrução criminal) a incumbência de
regulamentar, em todos os aspectos, o novo rito judicial em relação ao tráfico
de entorpecentes.”21
Segundo o entendimento de Eduardo Araújo da Silva
“o emprego do vocábulo ‘processo’ pelo legislador foi equivocado,
pois o dispositivo trata da colaboração na fase pré-processual. O
correto seria o emprego da expressão ‘sobrestamento do inquérito
ou da investigação’, pois a colaboração na fase processual está
disciplinada no § 3º. do mesmo dispositivo” (idem).
A lei olvidou-se de estabelecer o prazo para o sobrestamento do inquérito policial. Podemos, então, por aplicação analógica (art. 3º., CPP), utilizar-nos do art. 89,
caput da Lei nº. 9.099/95 (suspensão condicional do processo). Neste caso, por absoluta falta de previsão legal, não será possível, como determina o art. 89, § 6º., a
suspensão do curso do prazo prescricional, pois, como se sabe, a prescrição é um
instituto de Direito Penal, logo impossível a analogia in malam partem.
Nas três hipóteses acima indicadas o acordo é feito com o Ministério Público
que, na primeira hipótese (sobrestamento), agirá autonomamente, sem necessidade de se dirigir ao Juiz de Direito para requerer a homologação do acordo. Esta atividade lhe é privativa, mesmo porque, privativo também é o exercício da ação penal
pública.22
Já o perdão judicial e a redução da pena serão requeridos pelo Promotor de
Justiça ao Juiz do processo. O perdão judicial e a redução da pena são obrigatórias, configurando-se direitos subjetivos do acusado23, acaso estejam presentes,
efetivamente, os pressupostos previstos no referido parágrafo, ou seja, se com a
revelação da existência da organização criminosa permitiu-se “a prisão de um ou
20 Sobre este assunto, conferir o nosso “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
21 Boletim do IBCCrim nº. 113, abril/2002.
22 Entende Eduardo Araújo da Silva (ob. cit.) que “caberá ao Ministério Público, no plano interno, disciplinar
através de ato normativo, regras básicas de como devem proceder seus membros para a lavratura do acordo a
que se refere a lei.”
23 Comentando a respeito do perdão judicial, Damásio de Jesus entende tratar-se de um “direito penal público
subjetivo de liberdade. Não é um favor concedido pelo Juiz. É um direito do réu. Se presentes as circunstâncias
exigidas pelo tipo, o juiz não pode, segundo seu puro arbítrio, deixar de aplicá-lo. A expressão ´pode´ empregada pelo CP nos dispositivos que disciplinam o perdão judicial, de acordo com a moderna doutrina penal, perdeu a natureza de simples faculdade judicial, no sentido de o juiz poder, sem fundamentação, aplicar ou não
o privilégio. Satisfeitos os pressupostos exigidos pela norma, está o juiz obrigado a deixar de aplicar a pena.” (Direito Penal, Vol. I, Parte Geral, São Paulo: Saraiva, 19ª. ed., p. 597.
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mais dos seus integrantes, ou a apreensão do produto, da substância ou da droga ilícita, ou que, de qualquer modo, justificado no acordo, contribuir para os
interesses da Justiça.” A redução será feita dentro dos parâmetros estabelecidos
pelo próprio parágrafo.
Para Eduardo Araújo da Silva (ob. cit.), a redução da pena acordada entre o indiciado e o Ministério Público deve constar expressamente na denúncia, tratando-se
de uma nova causa obrigatória de diminuição da pena. Caso, porém, a colaboração
se efetive após o oferecimento da peça acusatória, o pedido de redução, e mesmo
o de perdão judicial, devem ser feitos no momento dos debates orais.
5.4 Dos meios investigatórios e de prova:
Os arts. 33 e 34 especificam e permitem alguns procedimentos investigatórios
até então desconhecidos do nosso sistema, além daqueles já indicados na chamada
lei do crime organizado (com a alteração feita pela Lei nº. 10.217/01). Assim, permite-se que
“em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, (...) além dos previstos na Lei no. 9.034, de 3 de
maio de 1995, mediante autorização judicial, e ouvido o representante do Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:
I – infiltração de policiais em quadrilhas, grupos, organizações ou bandos,
com o objetivo de colher informações sobre operações ilícitas desenvolvidas no
âmbito dessas associações; este procedimento é amplamente usado, e desde há
muito, nos Estados Unidos. É o também chamado agente encoberto, que pode ser
conceituado como um
“funcionario policial o de las fuerzas de seguridad que hace una investigación dentro de una organización criminal, muchas veces, bajo
una identidad modificada, a fin de tomar conocimiento de la comisión de delitos, su preparación e informar sobre dichas circunstancias para así proceder a su descubrimiento, e algunos casos se encuentra autorizado también a participar de la actividad ilícita.”24
Ocorre que, como bem anotou Isaac Sabbá Guimarães,
24 Claúdia B. Moscato de Santamaría, “El Agente Encubierto”, Buenos Aires: La Ley, 2000, p. 1. Nesta excelente monografia sobre o assunto, a autora portenha distingue claramente o agente encoberto de outras figuras afins, como
os informantes (não policiais), arrependidos (criminosos delatores) e os agentes provocadores (policiais que instigam outrem a praticar o delito).
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“não há previsão expressa sobre a conduta a ser seguida pelo agente
infiltrado, especificamente sobre atos que eventualmente possam configurar crimes, fato este que inapelavelmente terá de ser tratado pela
doutrina e jurisprudência dos tribunais, pois, em inúmeras situações
a infiltração levará a alguma conduta criminosa que não poderá ser
recusada sob pena de malograr as investigações.”25
Cremos, sob este aspecto e a depender, evidentemente, de cada caso concreto,
que, nada obstante a conduta típica, estaríamos diante de um estrito cumprimento do dever legal se o ato praticado fosse “rigorosamente necessário26”, a excluir a ilicitude.
II – a não-atuação policial sobre os portadores de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que entrem no território brasileiro, dele saiam
ou nele transitem, com a finalidade de, em colaboração ou não com
outros países, identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal
cabível.” Nesta hipótese, “a autorização será concedida, desde que sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos agentes do
delito ou de colaboradores” e “as autoridades competentes dos países
de origem ou de trânsito ofereçam garantia contra a fuga dos suspeitos ou de extravio dos produtos, substâncias ou drogas ilícitas transportadas.”
Trata-se, aqui, de mais uma hipótese de flagrante diferido ou protelado, cuja previsão legal já havia na Lei do Crime Organizado, como mostraremos adiante. Em suma, evita-se a prisão em flagrante no momento da prática do delito, a fim de que em um momento posterior, possa ser efetuada com maior eficácia a prisão de todos os participantes da quadrilha ou bando, bem como se permita a apreensão da droga em maior quantidade.
Em seguida, o art. 34 estabelece que
“para a persecução criminal e a adoção dos procedimentos investigatórios previstos no art. 33, o Ministério Público e a autoridade policial
poderão requerer à autoridade judicial, havendo indícios suficientes
da prática criminosa:
I – o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, patrimoniais e financeiras;
II – a colocação, sob vigilância, por período determinado, de contas
25 Tóxicos – Comentários, Jurisprudência e Prática, Curitiba: Juruá, 2002, p. 207.
26 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, Parte Geral, 5ª. ed., 1999.
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bancárias;
III – o acesso, por período determinado, aos sistemas informatizados
das instituições financeiras; aqui, como explica Isaac Sabbá Guimarães, “a lei não se contenta com a mera informação que pode um estabelecimento da rede bancária fornecer: admite a intervenção das
investigações policiais diretamente nos sistemas informatizados.”27
IV – a interceptação e a gravação das comunicações telefônicas, por
período determinado, observado o disposto na legislação pertinente e
no Capítulo II da Lei no 9.034, de 1995.”
Atente-se que em todas as hipóteses exige-se expressamente a autorização judicial,
sem a qual, portanto, torna-se ilícita a prova colhida28.
Note-se que estes dois últimos artigos fazem referência expressa à Lei nº. 9.034/95
(alterada pela Lei nº. 10.217/01), que dispõe sobre a utilização de meios operacionais
para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. Esta lei
procurou definir e regular os meios de prova e os procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou “organizações” ou “associações” criminosas de qualquer tipo.
Por ela, permite-se, em qualquer fase da persecução criminal (tanto no inquérito
policial, quanto na instrução criminal, em Juízo), sem prejuízo dos meios de prova já previstos na legislação processual brasileira, os seguintes procedimentos de investigação e
formação de provas:
1) A ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que
mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações. Permite-se, por exemplo, que não se prenda os
agentes desde logo, ainda que em estado de flagrância, quando há possibilidade de que o diferimento da medida possa ensejar uma situação ainda melhor
do ponto de vista repressivo. Exemplo: a Polícia monitora um porto à espera
da chegada de um grande carregamento de cocaína, quando, em determinado momento, atraca um pequeno bote com dois dos integrantes da quadrilha ou bando (já conhecidos) portando um saco plástico transparente contendo um pó branco, a indicar ser cocaína. Pois bem: os agentes policiais, ao invés
27 Tóxicos, Curitiba: Juruá Editora, 2002, p. 210.
28 Ada, Scarance e Magalhães Gomes esclarecem que “quando a proibição for colocada por uma lei processual,
a prova será ilegítima (ou ilegitimamente produzida); quando, pelo contrário, a proibição for de natureza material, a prova será ilicitamente obtida.” (As Nulidades no Processo Penal, São Paulo: Malheiros, 5ª. ed., 1996, p.
116.
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de efetuarem a prisão em flagrante, pois há um crime visto, procrastinam o ato,
esperando que a “grande carga” seja desembarcada em um navio que se sabe
virá dentro em breve. É o chamado flagrante diferido.
2) O acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e
eleitorais. Nesta hipótese, ocorrendo a possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será realizada pessoalmente
pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça. Ainda neste caso, para
realizar a diligência, o juiz poderá requisitar o auxílio de pessoas que, pela natureza da função ou profissão, tenham ou possam ter acesso aos objetos do sigilo. Permite a lei que o juiz, pessoalmente, lavre auto circunstanciado da diligência, relatando as informações colhidas oralmente e anexando cópias autênticas
dos documentos que tiverem relevância probatória, podendo para esse efeito,
designar uma das pessoas referidas no parágrafo anterior como escrivão ad
hoc. O auto de diligência será conservado fora dos autos do processo, em lugar
seguro, sem intervenção de cartório ou servidor, somente podendo a ele ter
acesso, na presença do juiz, as partes legítimas na causa, que não poderão dele
servir-se para fins estranhos caso de divulgação. Os argumentos de acusação e
defesa que versarem sobre a diligência serão apresentados em separado para
serem anexados ao auto da diligência, que poderá servir como elemento na formação da convicção final do juiz. Em caso de recurso, o auto da diligência será
fechado, lacrado e endereçado em separado ao juízo competente para revisão,
que dele tomará conhecimento sem intervenção das secretarias e gabinetes,
devendo o relator dar vistas ao Ministério Público e ao Defensor em recinto isolado, para o efeito de que a discussão e o julgamento sejam mantidos em absoluto segredo de justiça.
Temos aqui uma perigosa e desaconselhável investigação criminal levada a cabo diretamente pelo Juiz. Não é possível tal disposição em um sistema jurídico acusatório, pois
que lembra o velho e pernicioso sistema inquisitivo29 caracterizado, como genialmente
diz o jurista italiano Ferrajoli, por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”, ou seja, este método “confía
29 Parece-nos interessante transcrever um depoimento de Leonardo Boff, ao descrever os percalços que passou até
ser condenado pelo Vaticano, sem direito de defesa e sob a égide de um típico sistema inquisitivo. Após ser moral
e psicologicamente arrasado pelo secretário do Santo Ofício (hoje Congregação para a Doutrina da Fé), cardeal Jerome Hamer, em prantos, disse-lhe: “Olha, padre, acho que o senhor é pior que um ateu, porque um ateu pelo
menos crê no ser humano, o senhor não crê no ser humano. O senhor é cínico, o senhor ri das lágrimas de uma
pessoa. Então não quero mais falar com o senhor, porque eu falo com cristãos, não com ateus.” Por uma ironia
do destino, depois de condenado pelo inquisidor, Boff o telefonou quando o cardeal estava à beira da morte, fulminado por um câncer. Ao ouvi-lo, a autoridade eclesiástica desabafou, chorando: “Ninguém me telefona... foi preciso você me telefonar! Me sinto isolado (...) Boff, vamos ficar amigos, conheço umas pizzarias aqui perto do Vaticano...” (in Revista Caros Amigos – As Grandes Entrevistas, dezembro/2000).
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no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga”.30
Ao comentar este artigo, Luiz Flávio Gomes, pedindo a devida vênia, afirma
que o legislador
“acabou criando uma monstruosidade, qual seja, a figura do juiz
inquisidor, nascido na era do Império Romano, mas com protagonismo acentuado na Idade Média, isto é, época da Inquisição. (...)
Não é da tradição do Direito brasileiro e, aliás, também segundo
nosso ponto de vista, viola flagrantemente a atual Ordem Constitucional”.31
É evidente que o dispositivo é teratológico, pois não se pode admitir que uma
mesma pessoa (o Juiz), ainda que ungido pelos deuses, possa avaliar como
“necessário um ato de instrução e ao mesmo tempo valore a sua
legalidade. São logicamente incompatíveis as funções de investigar
e ao mesmo tempo garantir o respeito aos direitos do imputado.
São atividades que não podem ficar nas mãos de uma mesma pessoa, sob pena de comprometer a eficácia das garantias individuais do sujeito passivo e a própria credibilidade da administração de justiça. (...) Em definitivo, não é suscetível de ser pensado
que uma mesma pessoa se transforme em um investigador eficiente e, ao mesmo tempo, em um guardião zeloso da segurança individual. É inegável que ‘o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao
contrário, o bom juiz desterra o inquisidor’”.32
Parece-nos claro que há efetivamente uma mácula séria aos postulados do sistema acusatório, precipuamente à imprescindível imparcialidade33 que deve nortear
a atuação de um Juiz criminal, o que não se coaduna com a feitura pessoal e direta
de diligências investigatórias. Neste sistema, estão divididas claramente as três funções básicas, quais sejam: o Ministério Público acusa (ou investiga), o advogado defende e o Juiz apenas julga, em conformidade com as provas produzidas pelas par-
30 Ferrajoli, Luigi, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, p. 604.
31 Crime Organizado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª. edição, 1997, p. 133
32 Lopes Jr., Aury, Investigação Preliminar no Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 74.
33 Como diz o Professor da Universidade de Valencia, Juan Montero Aroca, “en correlación con que la Jurisdicción juzga sobre asuntos de otros, la primera exigencia respecto del juez es la de que éste no puede ser, al mismo tiempo, parte en el conflicto que se somete a su decisión.” (Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 186).
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tes. “Este sistema se va imponiendo en la mayoría de los sistemas procesales. En
la práctica, ha demonstrado ser mucho más eficaz, tanto para profundizar la investigación como para preservar las garantías procesales”, como bem acentua Alberto Binder.34
3) A captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos
ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial. Esta medida é novidade em nosso sistema jurídico, que apenas conhecia a interceptação e a escuta telefônicas, disciplinadas pela Lei
nº. 9.296/96. Para Luiz Flávio, entende-se “por interceptação ambiental a
captação de uma conversa alheia (não telefônica), feita por terceiro, valendo-se de qualquer meio de gravação. Não se trata, como se percebe,
de uma conversa telefônica. Não é o caso. É uma conversa não telefônica, ocorrida num gabinete, numa reunião, numa residência etc. Se nenhum dos interlocutores sabe da captação, fala-se em interceptação ambiental em sentido estrito; se um deles tem conhecimento, fala-se em escuta ambiental.”35
4) A infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial, caso em que a autorização judicial será
estritamente sigilosa e permanecerá nesta condição enquanto perdurar a
infiltração.
O restante do capítulo foi vetado. Assim dispunha o parágrafo único do art. 34
e os arts. 35 e 36:
“Parágrafo único. Nos delitos de que trata esta Lei, o flagrante estende-se a
até 72 (setenta e duas) horas.”
Eis as razões:
“A fixação do limite temporal para configurar o flagrante contraria o disposto no art. 5º, LXI, da Constituição, que trata do assunto. Além disso, fere o interesse público, pois restringe o tempo de
perseguição policial, por exemplo. O flagrante obedece a pressupostos bem definidos juridicamente. A idéia de um lapso temporal
legal poderia acarretar abusos contra indivíduos, por um lado, ou
situações indesejáveis contra a sociedade, por outro. Além do
mais, o Código de Processo Penal confere tratamento particularizado à matéria, diferenciando espécies de flagrante, garantindo
34 Iniciación al Proceso Penal Acusatório, Buenos Aires: Campomanes Libros, 2000, p. 43.
35 Interceptação Telefônica, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 111.
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uma melhor conformação da medida restritiva de direito, das liberdades e garantias fundamentais.”
Perfeito o veto. Não faz sentido “cronometrar” o tempo dentro no qual poderia ainda se caracterizar o estado de flagrância. Esta tarefa cabe à jurisprudência, analisando-se caso a caso.
O art. 35 tinha a seguinte redação:
“O juiz decidirá sobre requerimento de prisão cautelar do indiciado, para a garantia da ordem pública, ou para assegurar a aplicação da lei penal.”. Vetou-se porque “o Código de Processo Penal,
em seu art. 312, dispõe que a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por
conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e
indício suficiente de autoria. Observa-se que o projeto restringe as
hipóteses previstas no ordenamento codificado. O expurgo da possibilidade de decretação de prisão preventiva por conveniência da
instrução criminal constitui grave ofensa ao interesse público.
Sabe-se que a instrução é momento crucial na apuração do fato
delituoso e de suas circunstâncias. Além disso, o projeto não contempla os requisitos da prova da existência do crime e do indício
suficiente de autoria, o que conduziria à inadmissível presunção
desta última. Há, portanto, desvirtuamento do instituto da prisão
cautelar, que, na legislação pátria, protege tanto o indivíduo, através dos pressupostos da prova da existência do crime e do indício
suficiente de autoria, como a sociedade, através das hipóteses já
mencionadas, com destaque para a conveniência da instrução
criminal.”
Lamentavelmente foi vetado o art. 36 que estabelecia:
o “usuário encontrado com pequena quantidade de substância ou
droga ilícita, ou que cause dependência física ou psíquica, destinada a consumo pessoal (art. 20), ou o agente do delito previsto no
art. 19, se, em ambas as hipóteses, a prática não configurar concurso com os crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18, será conduzido à autoridade policial para prestar declarações.
§ 1o A declaração será tomada pela autoridade policial em, no
máximo, 4 (quatro) horas, a contar da chegada do usuário à delegacia policial e, no mesmo período, examinada a natureza e
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quantidade do produto ou substância.
§ 2o Concluídos os procedimentos policiais, o usuário será submetido a exame de corpo de delito, se o requerer, ou se a autoridade
policial entender conveniente, e em seguida liberado.
§ 3o Constitui falta disciplinar a desobediência por parte da autoridade policial, quanto à liberação do usuário.”
Vetou-se uma disposição absolutamente salutar que era a possibilidade do
usuário livrar-se solto. De toda maneira, e como veremos adiante, hoje os delitos
dos arts. 15, 16 e 17 da Lei nº. 6.368/76 são de menor potencial ofensivo, de forma
que, em regra, também não haverá a lavratura do auto de prisão em flagrante, nem
tampouco instauração de inquérito policial.36
A razões do veto: “O disposto no art. 36 do projeto fica prejudicado em face
do veto sugerido ao Capítulo III.” Ocorre que se não houvesse o veto, naturalmente o dispositivo teria inteira aplicação no caso da prática dos crimes tipificados nos
arts. 15 e 16 da Lei nº. 6.368/76. A prevalecer esta justificativa, o veto ao Capítulo III
acarretaria o veto a todo o Capítulo IV.
6.
O CAPÍTULO V – DA INSTRUÇÃO CRIMINAL
6.1 A atuação do Ministério Público:
Este capítulo trata do início da segunda fase da persecutio criminis e não contém aquela expressão constante no começo do Capítulo IV (“crimes definidos nesta lei”), de forma que não haverá maiores discussões a respeito de sua aplicabilidade, como ocorreu em relação ao capítulo anterior.
Inicia-se por estabelecer no seu art. 37 que
“recebidos os autos do inquérito policial em juízo, dar-se-á vista ao
Ministério Público para, no prazo de 10 (dez) dias, adotar uma
das seguintes providências:
I – requerer o arquivamento;
II – requisitar as diligências que entender necessárias; veja o art.
13, II do Código de Processo Penal.
III – oferecer denúncia, arrolar até 5 (cinco) testemunhas e requerer as demais provas que entender pertinentes;
o prazo, como se lê, é de 10 dias, esteja preso ou não o indiciado, modificando-se a
36 Sobre os Juizados Especiais Criminais, remetemos o leitor ao que escrevemos em nosso “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
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regra geral estabelecida no art. 46 do CPP, bem como a anterior disposição contida
no art. 22 da Lei nº. 6.368/76 (3 dias). O número de testemunhas não foi alterado
em relação ao antigo procedimento.
IV – deixar, justificadamente, de propor ação penal contra os agentes ou
partícipes de delitos. Aqui temos uma clara mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal37 (que já havia sido mitigado pela possibilidade da transação penal
prevista no art. 76 da Lei nº. 9.099/9538). Observa-se que esta hipótese difere do arquivamento, cujas regras não mudaram. Com efeito, o arquivamento pode ser requerido em razão da atipicidade do fato, extinção da punibilidade, falta de justa causa, autoria desconhecida, ausência de interesse de agir, etc, já que “o legislador não
tratou expressamente das hipóteses de arquivamento, mas sim dos casos em que
a ação não deve ser exercitada (art. 43).”39 Permite-se, agora, além do arquivamento, que o Ministério Público deixe justificadamente (art. 129, VIII, in fine da Constituição Federal) de propor a ação penal, inclusive fundamentando o seu pedido em
razões de política criminal. Trata-se, às escâncaras, da consagração, ainda que tímida, em nosso sistema do princípio da oportunidade antes apenas presente nas ações
penais de iniciativa privada40. É uma excelente inovação, pois, decididamente, o princípio da obrigatoriedade (ou legalidade) da ação penal está em franca decadência
nos sistemas modernos.
Assim, por exemplo, caso o indiciado tenha colaborado com as investigações,
fazendo jus ao sobrestamento do inquérito policial, ao final do prazo acordado,
pode o Ministério Público deixar de oferecer a denúncia em relação a ele, acusando
os demais autores cujas participações puderam ser efetivamente esclarecidas com a
colaboração processual deste primeiro indiciado. Pode igualmente deixar de ser oferecida a denúncia atendendo às circunstâncias do fato, à personalidade do indiciado, à insignificância de sua participação no crime, ou à condição de que o agente,
ao tempo da ação, era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato e
de determinar-se de acordo com esse entendimento, em razão de dependência gra37 Sobre ação penal e o princípio da obrigatoriedade indicamos: Da Ação Penal – Jorge Alberto Romeiro – Forense; Ação Penal – José Antonio Paganella Boshi – AIDE; Ação Penal Pública – Afrânio Silva Jardim – Forense; Ação
Penal Pública – Eduardo Araújo da Silva – Atlas; Ação Penal Condenatória – Paula Bajer Fernandes Martins da Costa – Saraiva; Da Natureza Jurídica da Ação – Benedicto de Siqueira Ferreira – RT; Ação Penal – Joaquim Canuto Mendes de Almeida – RT; Tratado das Ações, Tomo 5 – Pontes de Miranda – Bookseller; Ministério Público e Persecução Criminal – Marcellus Polastri Lima – Lumen Juris; As condições da ação penal – Ada Pellegrini Grinover – José
Bushatsky, Editor; Justa Causa para a ação penal – Maria Theresa Rocha de Assis Moura – Editora Revista dos Tribunais; Apontamentos e Guia Prático sobre a Denúncia no Processo Penal – Paulo Cláudio Tovo – Sergio Antonio Fabris Editor; Princípio da Oportunidade – Carlos Adérito Teixeira – Almedina; e Teoria do Direito Processual Penal,
de Rogério Lauria Tucci, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
38 Sobre o assunto, confira-se o nosso “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
39 Afrânio Silva Jardim, “Ação Penal Pública – Princípio da Obrigatoriedade”, Rio de Janeiro: Forense, 3ª. ed., p. 46.
40 Sobre ação penal de iniciativa privada no Direito espanhol, conferir “El Proceso por Delito Privado”, de J. M. Martinez-Pereda, Barcelona, Bosch, 1976.
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ve, comprovada por peritos (estas últimas hipóteses constavam do caput do art. 32,
mas podem servir perfeitamente de exemplos, pois o veto ocorreu exclusivamente
em razão da possibilidade que existia do defensor requerer o arquivamento do inquérito policial, o que, realmente, contrariava o disposto no art. 129, I da Constituição Federal). Se o Juiz discordar desta opção do Ministério Público poderá encaminhar os autos ao Procurador-Geral de Justiça, na forma do art. 28 do CPP, usando-se
a analogia.
O § 1º. deste artigo estabelece que “requerido o arquivamento do inquérito
pelo representante do Ministério Público, mediante fundamentação, os autos serão conclusos à autoridade judiciária.” Repita-se: aqui é o caso do tradicional arquivamento, já sistematizado, ainda que implicitamente, em nosso código processual. Não é, portanto, a hipótese do inciso IV, acima referido.
Se o Juiz “discordar das razões do representante do Ministério Público para
o arquivamento do inquérito fará remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça, mediante decisão fundamentada”, tal como é hoje41. Com a mesma redação
do atual art. 28 do CPP, o § 3º. determina que “o Procurador-Geral de Justiça oferecerá denúncia ou designará outro membro do Ministério Público para apresentá-la ou, se entender incabível a denúncia, ratificará a proposta de arquivamento, que, nesse caso, não poderá ser recusada pela autoridade judiciária.”
6.2 As infrações de menor potencial ofensivo:
Observa-se que com o advento da Lei nº. 10.259/01, o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo restou ampliado, fazendo com que alguns dos tipos penais elencados na Lei nº. 6.368/76 passassem, desde então, a ser considerados crimes de menor potencial ofensivo, cuja competência para o julgamento é indiscutivelmente dos Juizados Especiais Criminais, afastando-se, inclusive, o procedimento especial da nova Lei de Tóxicos. Neste caso, deverá ser tentada, antes da denúncia, a transação penal42. Dos seis crimes tipificados na Lei nº. 6.368/76 dois deles
são de menor potencial ofensivo (arts. 15 e 16, sendo que o do art. 17 restou inaplicável, em razão da revogação do art. 26 da lei), salvo se houver alguma causa de aumento de pena que faça aumentar a pena máxima em abstrato (ex.: art. 18).43 Os
arts. 12, 13 e 14 trazem infrações mais graves.
Portanto, tratando-se de crimes de menor potencial ofensivo, e tendo em vis41 O Projeto de Lei n. 4.209/01 modifica por completo a redação do art. 28 do CPP, deixando inteiramente nas mãos
do Ministério Público o arquivamento das peças de informação. Sobre este projeto de lei veja os nossos comentários no “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
42 Quanto à composição civil dos danos, ficaria na dependência em se admitir ou não a figura de um ofendido em
tais delitos, o que é controverso. Voltaremos a abordar esta questão quando, adiante, falarmos sobre a possibilidade do assistente de acusação.
43 Sobre assunto, conferir o nosso “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
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ta que a competência para o respectivo processo é dos Juizados Especiais Criminais
(art. 98, I da Constituição), indeclinável que em tais casos haverá, ao invés de inquérito policial, um termo circunstanciado, impossibilitando-se a lavratura do auto de
prisão em flagrante (art. 69 da Lei nº. 9.099/95).44
6.3 A resposta preliminar:
Sendo o caso de oferecimento de denúncia,
“o juiz, em 24 (vinte e quatro) horas, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez)
dias, contado da data da juntada do mandato (sic) aos autos ou
da primeira publicação do edital de citação, e designará dia e
hora para o interrogatório, que se realizará dentro dos 30 (trinta)
dias seguintes, se o réu estiver solto, ou em 5 (cinco) dias, se preso.”
Aqui temos uma primeira disposição absolutamente salutar, já prevista em
nosso ordenamento jurídico (art. 514 do CPP, art. 4o. da Lei n. 8.038/90, art. 43, § 1º.
da Lei de Imprensa e art. 81 da Lei dos Juizados Especiais Criminais, além do art. 395
do Projeto de Lei nº. 4.201/0145). Temos, efetivamente, uma defesa prévia, anterior
ao recebimento da peça acusatória, dando-se oportunidade ao denunciado de contrariar a imputação feita pelo Ministério Público, rechaçando-a e tentando obstaculizar a instauração da ação penal.
O dispositivo determina desde logo que se efetive a citação do denunciado,
ainda que não se possa falar, nesta fase, em acusado ou processo. Melhor seria que
se determinasse a notificação do denunciado. Após o recebimento da denúncia, então, teríamos a citação do acusado ou réu. Renato de Oliveira Furtado, atento a esta
impropriedade técnica, assevera que a “citação não pode ser confundida com notificação e não é possível se falar já em citação quando a denúncia nem mesmo
foi ainda recebida.”46
A citação poderá ser feita por edital, evidentemente que nas hipóteses dos
arts. 361, 362 e 363 do código processual. A resposta deve ser dada em 10 dias.
Esta resposta preliminar consiste, na forma do § 1º., na defesa prévia propriamente dita, bem como na argüição de exceções, podendo o denunciado “argüir
preliminares e invocar todas as razões de defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas que pretende produzir e arrolar testemunhas.” Já as
44 Nesta obra acima indicada, fazemos um estudo sobre os Juizados Especiais Criminas, onde procuramos abordar
todos os seus aspectos, inclusive o que se refere à sua competência ditada pela Constituição Federal.
45 Sobre este projeto de lei veja os nossos comentários no “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
46 “Nova Lei de Tóxicos” – Revista Jurídica 295 – Maio/2002.
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“exceções serão processadas em apartado, nos termos dos arts. 95 a 113 do Código de Processo Penal.” Como ensina José Frederico Marques, nesta hipótese “estabelece-se um contraditório prévio, para que o Juiz profira, com o despacho liminar, decisão semelhante ao judicium accusationis.”47 O denunciado poderá argüir
em sua defesa qualquer matéria, seja de natureza estritamente processual (ausência
de pressupostos processuais ou de condições da ação, por exemplo), como adentrar o próprio mérito da acusação, inclusive postulando a produção de provas que
serão realizadas a critério do Juiz, como permite o art. 38, § 5º. Evidentemente que
deve ser dada a esta disposição (art. 38, § 5º.) uma correta interpretação, a fim de
que não se lhe restrinja o alcance (prejudicando a defesa e o juízo de admissibilidade a ser feito pelo Magistrado), nem, tampouco, elasteça-se de uma tal forma o seu
alcance que se permita uma verdadeira antecipação da instrução criminal.
Atente-se que será nesta resposta prévia que o denunciado deverá, sob pena
de preclusão, arrolar as suas cinco testemunhas.
Esta resposta é obrigatória e deverá ser necessariamente subscrita por um advogado. Neste sentido, dispõe o § 3º. que se “a resposta não for apresentada no
prazo, o Juiz nomeará defensor para oferecê-la em 10 (dez) dias, concedendo-lhe
vista dos autos no ato de nomeação.” Esta observação é válida para os processos
pendentes cuja peça acusatória ainda não foi recebida, conforme já vêm decidindo
os nossos Tribunais:
“Habeas Corpus – Entorpecente – Denúncia recebida – Inobservância do disposto no art. 38, caput da Lei nº. 10.409/02 – Nulidade – Infringência ao princípio da ampla defesa – Ordem parcialmente concedida, para anular o processo criminal ab initio, impondo-se observar o rito especial da lei em vigência. A inobservância da regra prevista no art. 38 da nova lei de tóxicos impõe seja declarado nulo ex
radice o procedimento, por importar óbvia violação do direito constitucional à ampla defesa.” (TAPR, HC 206.389-4, 4ª. CCrim, Rel. Juiz
Lauro Augusto Fabrício de Melo, DJ de 13/09/2002).
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por sua 4ª. Câmara Criminal, em
10/09/02, também assim o entendeu, concedendo habeas corpus e anulando um
processo criminal a partir da citação (HC nº. 390.665.3/6, Rel. Des. Hélio de Freitas).
Entendemos, inclusive, tratar-se de uma nulidade absoluta, ainda que não haja
processo instaurado. Observa-se que em relação ao art. 514 do Código de Processo
Penal (que contém disposição idêntica), a jurisprudência, apesar de vacilante, já decidiu, inclusive o Supremo Tribunal Federal:
“Art. 514 do CPP. Formalidade da resposta por escrito em crime afian47 Elementos de Direito Processual Penal, Vol. III, Campinas, Bookseller, 1998, p. 342.
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çável. Nulidade alegada oportunamente e, como tal, irrecusável, causando a recusa prejuízo à parte e ferindo o princípio fundamental da
ampla defesa.” (RT 601/409).
“Art. 514 do CPP. Falta de notificação do acusado para responder, por
escrito, em caso de crime afiançável, apresentada a denúncia. Relevância da falta, importando nulidade d processo, porque atinge o
princípio fundamental da ampla defesa. Evidência do prejuízo.” (RT
572/412).
O Superior Tribunal de Justiça da mesma forma:
“Recurso de habeas corpus. Crime de responsabilidade de funcionário
público. Sua notificação para apresentar defesa preliminar (art. 514,
CPP). Omissão. Causa de nulidade absoluta e insanável do processo.
Ofensa à Constituição Federal (art. 5º., LV). (...) Nos presentes autos, conheceu-se do recurso e deu-se-lhe provimento, para se anular o processo criminal a que respondeu o paciente, pelo crime do art. 317 do CP,
a partir do recebimento da denúncia (inclusive), a fim de que se cumpra o estabelecido no art. 514 do CPP.” (RSTJ 34/64-5).
Se o denunciado tem advogado constituído (e o fez, por exemplo, na fase inquisitorial), além de sua “citação”, deverá também ser notificado este profissional contratado
(afinal de contas, como se sabe, a ampla defesa inclui, além da autodefesa, a chamada defesa técnica ou processual48). A notificação deste advogado constituído obedecerá ao art.
370 do CPP. Ainda nesta hipótese, não sendo apresentada a defesa preliminar pelo
profissional contratado (e, possivelmente desidioso), urge que se cumpra disposto
48 O defensor exerce a chamada defesa técnica, específica, profissional ou processual, que exige a capacidade postulatória e o conhecimento técnico. O acusado, por sua vez, exercita ao longo do processo (quando, por exemplo,
é interrogado) a denominada autodefesa ou defesa material ou genérica. Ambas, juntas, compõem a ampla defesa.
A propósito, veja-se a definição de Miguel Fenech: “Se entiende por defensa genérica aquella que lleva a cabo la
propia parte por sí mediante actos constituídos por acciones u omisiones, encaminados a hacer prosperar o a
impedir que prospere la actuación de la pretensión. No se halla regulada por el derecho con normas cogentes,
sino con la concesión de determinados derechos inspirados en el conocimientode la naturaleza humana, mediante la prohibición del empleo de medios coactivos, tales como el juramento – cuando se trata de la parte
acusada – y cualquier otro género de coacciones destinadas a obtener por fuerza y contra la voluntad del sujeto una declaración de conocimiento que ha de repercutir en contra suya”. Para ele, diferencia-se esta autodefesa da defesa técnica, por ele chamada de específica, processual ou profissional, “que se lleva a cabo no ya por la
parte misma, sino por personas peritas que tienen como profesión el ejercicio de esta función técnico-jurídica
de defensa de las partes que actuán en el processo penal para poner de relieve sus derechos y contribuir con su
conocimiento a la orientación y dirección en orden a la consecusión de los fines que cada parte persigue en el
proceso y, en definitiva, facilitar los fines del mismo” (Derecho Procesal Penal, Vol. I, 2ª. ed., Barcelona: Editorial
Labor, S. A., 1952, p. 457). Sobre o assunto, conferir o nosso “Direito Processual Penal”, Forense, 2003.
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no art. 38, § 3º., ou seja, nomeie-se um defensor dativo para o mister. Neste ponto,
discordamos de Renato de Oliveira Furtado que entende, nesta hipótese, nada possa ser feito, pois “por força do ´foro de eleição´ do réu, que é uma das mais vigorosas colunas do instituto da ampla defesa, a nomeação de outro defensor que
não o escolhido do réu feriria tal princípio.” Pergunta-se: qual o prejuízo que poderia advir desta resposta elaborada pelo defensor nomeado. Por mais singelo que
seja o trabalho, não representará prejuízo maior que a falta absoluta e material da
defesa escrita. Preferimos, data venia, privilegiar a defesa em sua acepção mais ampla, até porque não teríamos como distinguir uma (estranha) opção defensiva de
uma desídia profissional.
Após esta defesa inicial, terá vista dos autos, mais uma vez, o Ministério Público, no prazo de 5 dias. Esta deferência ao órgão acusatório parece-nos ferir o princípio do contraditório, pois permite a uma das partes que se pronuncie duas vezes
(na denúncia e nesta réplica), ferindo a paridade de armas própria do contraditório.
Melhor seria que a disposição repetisse o art. 5º. da Lei nº. 8.038/90 (que regula o
procedimento nas ações penais originárias): “se, com a resposta, forem apresentados novos documentos, será intimada a parte contrária para sobre eles se manifestar, no prazo de cinco dias.”
Também em cinco dias deve ser proferida a respectiva decisão, não recebendo, rejeitando ou aceitando a denúncia. Se não se sentir suficientemente preparado,
do ponto de vista probatório, para proferir esta decisão, o Juiz, “se entender imprescindível, determinará a realização de diligências, com prazo máximo de 10
(dez) dias.” Veja-se o que dissemos acima a respeito desta última disposição contida no art. 38, § 5º.
6.4 O interrogatório:
Como vimos acima, a lei determina que o denunciado seja interrogado em 30
dias se estiver solto e em 5 dias se estiver preso. Ocorre que no art. 41 está previsto também o interrogatório do acusado, que será realizado na audiência de instrução e julgamento após a ouvida das testemunhas. Teríamos, assim, dois interrogatórios, sendo o primeiro antes mesmo da defesa preliminar (tratando-se de indiciado
preso) e mesmo da instauração da ação penal. Um interrogatório judicial sem processo, portanto. Haveria, assim, dois interrogatórios judiciais (feito pelo Juiz), além
daquele já realizado na Delegacia de Polícia? Cremos que não. Salvo uma justificável
necessidade, basta um interrogatório em Juízo, ressalvando a possibilidade legal de
a qualquer momento o Juiz reinterrogar o acusado, mesmo em fase recursal (arts.
185, 502, parágrafo único e 616, todos do CPP).
Para nós, a melhor interpretação que se pode dar a este dispositivo é que a lei
exige apenas aquele interrogatório que será realizado na audiência de instrução e
julgamento. Qual a necessidade deste que seria um primeiro interrogatório? Con-
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cordamos com Renato Flávio Marcão ao dizer “que a parte final do art. 38, caput
não reúne condições de aplicabilidade”, não devendo ser designada data para este
que seria um primeiro interrogatório, aguardando-se “o momento do art. 40, quando então, recebendo a denúncia, designará data para a audiência em que se procederá ao interrogatório, instrução e julgamento, o que me parece mais adequado, considerando, inclusive, o disposto no art. 41 do mesmo Diploma Legal.”49
Aliás, é este autor quem observa que o novo projeto de lei em trâmite no Congresso (referido na introdução a este trabalho) exclui expressamente este primeiro interrogatório, deixando apenas o segundo, já na audiência de instrução e julgamento, o que dá a entender o equívoco laborado pelo legislador de agora.50
Há, indiscutivelmente, uma contradição entre os arts. 38 e 41 e em razão disto preferimos adotar aquele posicionamento, ou seja, a realização de apenas um interrogatório, na fase processual (ressalvado, evidentemente o interrogatório policial51), não advindo daí nenhum prejuízo, até porque o denunciado terá a oportunidade de alegar qualquer fato em sua defesa escrita. Não faz sentido este primeiro interrogatório (tanto que abolido no projeto de lei acima referido), ainda que esteja
preso o indiciado. Aliás, a prevalecer a interpretação literal, nesta hipótese de indiciado preso o interrogatório antecederia mesmo a resposta preliminar.
6.5 A aplicação da Lei nº. 9.271/96:
Determina-se a aplicação da “Lei no 9.271/96, ao processo em que o acusado,
citado pessoalmente ou por edital, ou intimado para qualquer ato processual,
deixar de comparecer sem motivo justificado”, o que, à primeira vista, poderia indicar a aplicação do art. 366 do CPP (suspensão do processo e do curso do prazo
prescricional), ainda que a citação tenha sido pessoal e o réu não compareceu nem
49 Boletim do IBCCrim nº. 120, novembro/2002.
50 Fernando Capez e Victor Eduardo Rios Gonçalves pensam diferentemente e defendem a realização de dois interrogatórios, apesar de admitirem ser “evidente que a repetição do interrogatório soa como desnecessária.” A argumentação dos ilustres Promotores, em suma, é a de que a realização dos dois interrogatórios refletiria a intenção
do legislador de “aumentar a possibilidade de defesa dos acusados.” Assim também Jorge Vicente Silva, “Tóxicos”,
Curitiba: Juruá, 2002, pp. 104 e segs. Por sua vez, Gevan Almeida tem uma posição, digamos, intermediária: “Acreditamos que no caso de acusado que esteja em liberdade, o interrogatório possa ser realizado na audiência, podendo-se invocar o princípio da economia processual. Contudo, em se tratando de acusado que se encontre preso o prazo estipulado no art. 38 deve ser rigorosamente cumprido, evitando-se, destarte, o relaxamento da prisão, com fundamento no excesso de prazo.” (in Modernos Movimentos de Política Criminal e seus Reflexos na Legislação Brasileira, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 372).
51 Há quem defenda que na fase inquisitorial não há falar-se em interrogatório (Hélio Tornaghi, Compêndio de Processo Penal, Rio de Janeiro: José Konfino, tomo III, 1967, p. 812), que seria, então, ato tipicamente processual, a ser
praticado exclusivamente em Juízo. Em reforço, afirmam que o próprio art. 6o., IV refere-se a “ouvir o ofendido”.
A par de ser uma questão meramente terminológica, aduzimos que o art. 304 manda “interrogar” o preso em flagrante, tal como o faz a nossa Lei das leis, no art. 5o., LXIV, referindo-se expressamente ao “interrogatório policial”.
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constituiu advogado. Não é, porém, esta a hipótese. Com efeito, a Lei nº. 9.271/96
não se restringiu a modificar tão-somente o art. 366 do Código de Processo Penal,
mas o fez, também, em relação aos arts. 367 a 369. E, como se sabe, dispõe o art.
367 que “o processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado
pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado,
ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo.” Logo, em relação às regras gerais do Processo Penal brasileiro, nada mudou neste aspecto em relação ao novo procedimento, ou seja, o processo só será suspenso
se o revel foi citado por edital. Se a citação foi pessoal, o julgamento ocorrerá à sua
revelia. Neste sentido, é a lição de Fernando Capez e Victor Eduardo Gonçalves
(idem).
6.6 A rejeição e o não-recebimento da denúncia:
Além das hipóteses do art. 43 do Código de Processo Penal, “a denúncia também será rejeitada quando for manifestamente inepta, ou faltar-lhe pressuposto
processual ou condição para o exercício da ação penal, ou quando não houver
justa causa para a acusação.”52
Pergunta-se se nestes casos, incluindo as hipóteses do art. 43, a ação penal
pode ser reiniciada. Repetimos, então, a lição da doutrina mais aceita nesta matéria,
segundo a qual nas hipóteses dos incisos I e II do art. 43 há uma verdadeira decisão
de mérito (rejeição da denúncia)53, fazendo coisa julgada material e, por conseguinte, impedindo renovação da demanda. No caso do terceiro inciso do referido art. 43,
CPP, a denúncia pode ser oferecida mais uma vez, na forma como o permite o seu
parágrafo único, acaso sanada a irregularidade.
No caso específico da nova Lei de Tóxicos, cremos que se a denúncia foi rejeitada por manifesta inépcia, o caso está definitivamente decidido, impedindo-se a
reiteração da denúncia. Contrariamente, se o não recebimento se der em virtude da
falta de um pressuposto processual ou de uma condição da ação que possa ser suprida, nada impedirá a renovação da peça acusatória, já agora respaldada por todos
os pressupostos processuais e todas as condições da ação. Quanto ao não recebimento pela falta de justa causa54, como se trata de carência de lastro probatório mí52 Relembre-se a diferença doutrinária entre rejeição e não-recebimento da denúncia. Não sendo cabível neste estudo adentrar o assunto, remetemos o colega a três obras que esclarecem bem a matéria, a saber: Ação Penal, de
José Antonio Paganella Boschi, Rio de Janeiro: AIDE; Ministério Público e Persecução Criminal, de Marcellus Polastri Lima, Rio de Janeiro: Lumen Juris e Juizados Especiais Criminais, de Cezar Roberto Bitencourt, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora.
53 Para Paganella Boschi (obra citada na nota de rodapé anterior, p. 233), nestes casos, “a rejeição equivale a julgamento antecipado da lide, que impede a reiteração do pedido, salvo quando fundada nos motivos a que se
refere o parágrafo único do atr. 43 do CPP relacionados com a ilegitimidade de parte e as condições de procedibilidade e de punibilidade (vide RJTJRS 79/41 e 131/76).”
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nimo, evidente que com novas provas a ação penal poderá ser novamente iniciada.
6.7 A audiência de instrução e julgamento:
Caso seja recebida a peça acusatória55, “o juiz designará dia e hora para a
audiência de instrução e julgamento, e ordenará a intimação do acusado, do Ministério Público e, se for o caso, do assistente.” Mais uma vez o legislador descurouse da diferença entre intimação e notificação56. Por outro lado, como se trata de crime contra a saúde pública57, a coletividade é o sujeito passivo da infração, podendo
ser considerados prejudicados, secundariamente, e em alguns casos, as pessoas que
recebem a droga para o consumo que, então, poderão se habilitar como assistentes
da acusação, na forma do art. 268 do Código de Processo Penal.58 Neste sentido, mutatis mutandis, já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo:
“Mesmo tratando-se de delito contra a fé pública, em que o sujeito
passivo é, primariamente, o Estado, secundariamente será sujeito
passivo aquele em prejuízo de quem a falsidade tenha sido praticada, tendo legitimidade, pois, para figurar nos autos como assistente do Ministério Público.” (RT 552/308).
Nesta audiência de instrução e julgamento,
54 Afrânio Silva Jardim considera a justa causa como uma quarta condição da ação e a define como “um lastro
mínimo de prova que deve fornecer arrimo à acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado.” (Ação Penal Pública, Rio de Janeiro: Forense, 3ª.
ed., 1998).
55 Evidentemente que esta decisão de recebimento não deve ser lacônica, como sói acontecer. Sendo uma decisão
que irá instaurar a relação processual, evidentemente deve ser fundamentada nos termos, aliás, do art. 93, IX da
Constituição Federal. A bem da verdade, não se justifica, qualquer que seja o procedimento, que o recebimento de
uma peça acusatória seja feito por um mero e despretensioso despacho. Infelizmente esta é a práxis (odiosa), respaldada, inclusive, pela grande maioria dos nossos Tribunais, até pelo Supremo, guardião da Constituição Federal...
56 Sobre o assunto, conferir o nosso “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
57 Aliás, exatamente em virtude do bem jurídico tutelado é que se mostra “inadmissível a punição da posse de
drogas para uso pessoal, seja pela inafetação do bem jurídico protegido (a saúde pública), seja por sua contrariedade com um ordenamento jurídico garantidor da não intervenção do Direito em condutas que não afetem
a terceiros”, como explica Maria Lúcia Karam, em sua excelente obra “De Crimes, Penas e Fantasias”, Rio de Janeiro: LUAM, 1991. Karam complementa afirmando com absoluta propriedade que a “aquisição ou posse de drogas
para uso pessoal, da mesma forma que a autolesão ou a tentativa de suicídio, situa-se na esfera de privacidade de cada um, não podendo o Direito nela intervir.” (pp. 60 e 128)
58 Comentando a Lei de Tóxicos anterior, Vicente Greco Filho afirma textualmente que “não se admite assistente
de acusação em ações penais pelos delitos desta lei”, por entender que, no máximo, poder-se-ia “determinar-se a
figura de um prejudicado, como por exemplo na hipótese de alguém ministrar entorpecente a um menor inimputável”, alertando que no sentido técnico não se pode confundir prejudicado com ofendido (Tóxicos, São Paulo:
Saraiva, 9ª. ed., 1993, p. 84).
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“após o interrogatório do acusado e a inquirição das testemunhas,
será dada a palavra, sucessivamente, ao representante do Ministério Público e ao defensor do acusado, pelo prazo de 20 (vinte) minutos para cada um, prorrogável por mais 10 (dez), a critério do
juiz, que, em seguida, proferirá a sentença.”
A lei certamente descurou-se de uma tendência moderna em considerar o interrogatório também, e principalmente, como um meio de defesa, realizando-o apenas ao final da colheita de toda a prova, como o fez a Lei nº. 9.099/95 e o Projeto de
Lei nº. 4.204/01 que visa a reformar o Código de Processo Penal59.
No interrogatório, deverá o Juiz questionar o acusado sobre eventual dependência, pois continua em vigor o art. 19 e seu parágrafo único da Lei nº. 6.368/76
que se refere à incapacidade por dependência química. Aliás, no regime anterior, determinava o art. 22, § 5º. que o Juiz deveria indagar do réu “sobre eventual dependência, advertindo-o das conseqüências de suas declarações.”
Se o Juiz “não se sentir habilitado a julgar de imediato a causa, ordenará
que os autos lhe sejam conclusos para, no prazo de 10 (dez) dias, proferir a sentença.”
Foram vetados os arts. 42 e 43 deste capítulo. Dizia o art. 43: “O réu condenado por infração dos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 não poderá apelar sem recolher-se à
prisão”, pois “o disposto no art. 43 do projeto fica prejudicado em face do veto ao
Capítulo III.”
O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República sugeriu o
veto ao art. 42. Ele dispunha:
“Art. 42. O juiz, observado o disposto no art. 77 do Código Penal e
as disposições contidas nesta Lei, poderá, ouvido o representante
do Ministério Público, determinar a suspensão do processo, com a
adoção de uma das medidas previstas no art. 21 desta Lei.
§ 1o O juiz poderá determinar, além de medidas previstas no art.
21, a sujeição do réu a tratamento médico ou psicológico, ou a internação em estabelecimento clínico ou hospitalar adequado.
§ 2o Negando-se o réu ao cumprimento de uma ou mais das medidas previstas no art. 21, ou ao tratamento recomendado, submeter-se-á à pena privativa de liberdade, cumulada ou não com penas restritivas de direitos.”
Estas foram as razões do veto:
59 Sobre o assunto, conferir o nosso Direito Processual Penal, já referido.
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“Com esse dispositivo, o Legislador objetiva estender o benefício da
suspensão condicional da pena (art. 77 e segs. do Código Penal) ao
condenado pela prática de qualquer dos crimes tipificados no presente projeto de lei, que tenham a pena privativa de liberdade
como reprimenda básica. Na realidade, ainda que com visível e
arrojada intenção de propiciar melhor e mais célere interpretação à aplicação do benefício acima, esse dispositivo também reproduz, no contexto deste diploma, o que já preconiza a legislação
penal brasileira, a exemplo do disposto no art. 44, c/c arts. 45, 46 e
47 do Código Penal. Outrossim, registre-se que, antes mesmo da
vinda do projeto de lei à sanção Presidencial, a redação dada ao
presente artigo vem causando preocupantes desentendimentos no
seio da opinião pública e das comunidades científica e jurídica,
uma vez que tem induzido à associação errônea de que se refira
ao simples usuário/ dependente, já contemplado no art. 20, quando, na realidade, se refere ao agente que, sendo usuário e/ou dependente, cumulativamente, tenha cometido delitos efetivamente
graves, tal como o narcotráfico, por exemplo. Assim, não obstante
a ausência de conflitos entre as situações que define, relativamente às normas de direito positivo em vigor, pela dúvida que suscita,
já em seu nascedouro, haja vista a opinião pública ter agregado
esse dispositivo à figura do simples usuário/ dependente, o que, juridicamente, não procede, sugere-se o veto ao presente artigo, fato
que não impedirá a propositura do tema a que se refere em dispositivo legal futuro, com vistas ao aprimoramento de sua aplicação,
conforme pretendeu o Legislador.”
6.8 A inversão do ônus da prova:
Vetou-se o caput do art. 44 que estabelecia que o
“juiz, a requerimento do representante do Ministério Público ou
da autoridade policial, ouvido o Ministério Público em 24 (vinte e
quatro) horas, pode decretar, no curso do inquérito policial ou da
ação penal, o seqüestro ou a indisponibilidade do produto de crime, ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido
pelo agente com a prática dos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16,
17 e 18.”
Subsistiu, no entanto, o seu parágrafo único (mais uma alma penada...), deter-
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minando que “incumbe ao acusado, durante a instrução criminal, ou ao interessado, em incidente específico, provar a origem lícita dos bens, produtos, direitos
e valores referidos neste artigo.” Não existindo mais o caput, aplica-se o seu parágrafo, se for o caso, aos bens porventura usados ou adquiridos pelos autores dos crimes tipificados nos arts. 12, 13 e 14 da Lei nº. 6.368/76. Dizemos “se for o caso”, pois
temos aqui indiscutivelmente uma odiosa inversão do ônus da prova, o que já havia
acontecido no art. 4o., § 2º. da Lei nº. 9.613/98 (“lavagem de dinheiro”).
Observa-se que a ilicitude deve ser provada pelo órgão acusador, a teor, inclusive, do art. 156 do CPP, pois “à parte acusadora incumbe fornecer os necessários
meios de prova para a demonstração da existência do corpus delicti e da autoria”, como já ensinava o mestre José Frederico Marques60. No dispositivo ora comentado há uma presunção de ilicitude absolutamente estranha aos postulados constitucionais consubstanciados no princípio maior da presunção de inocência. Aliás, comentando aquele dispositivo da Lei de Lavagem de Capitais, Luiz Flávio Gomes advertia que a
“sua literalidade poderia dar ensejo a uma interpretação completamente absurda e inconstitucional, além de autoritária e seriamente perigosa, e que consistiria na exigência, em todos os casos,
de inversão do ônus da prova (com flagrante violação ao princípio da presunção de inocência).”
Para salvá-lo (e a lição é válida para nosso estudo), o jurista propõe a seguinte interpretação: “durante o curso do processo, tendo havido apreensão
ou seqüestro de bens, se o acusado, desde logo, espontaneamente (sponte sua,
sublinhe-se), já comprovar sua licitude, serão liberados imediatamente, sem
necessidade de se esperar a decisão final.” Do contrário, diz ele, estaríamos
diante de uma “inconstitucionalidade e arbitrariedade. Ninguém está autorizado a fazer ruir um princípio constitucional conquistado depois de uma
luta secular.”61
Por fim, o art. 45 estabelece que as
“medidas de seqüestro e de indisponibilidade de bens ou valores serão suspensas, se a ação penal não for iniciada no prazo de 180
(cento e oitenta) dias, contado da data do oferecimento da denúncia.” O pedido de restituição “bem ou valor não será conhecido
sem o comparecimento pessoal do acusado ao juízo do feito”, podendo o “juiz determinar a prática de atos necessários à conserva60 Elementos de Direito Processual Penal, Vol. II, Campinas: Bookseller, 1998, p. 265.
61 Lei de Lavagem de Capitais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 366.
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ção do produto ou bens e a guarda de valores.”
7.
O CAPÍTULO VI – DOS EFEITOS DA SENTENÇA: A APREENSÃO E A
DESTINAÇÃO DE BENS CONFISCADOS E A PERDA DA NACIONALIDADE
O presente capítulo trata especificamente dos efeitos da sentença, iniciando
pelo art. 46 que dispõe:
“Os veículos, embarcações, aeronaves e quaisquer outros meios de
transporte, os maquinismos, utensílios, instrumentos e objetos de
qualquer natureza, utilizados para a prática dos crimes definidos
nesta Lei, após a sua regular apreensão, ficarão sob custódia da
autoridade de polícia judiciária, excetuadas as armas, que serão
recolhidas na forma de legislação específica.”
A lei permite que,
“havendo possibilidade ou necessidade da utilização de qualquer
dos bens mencionados neste artigo, a autoridade de polícia judiciária poderá deles fazer uso, sob sua responsabilidade e com o objetivo de sua conservação, mediante autorização judicial, logo
após a instauração da competente ação penal, observado o disposto no § 4o deste artigo.”
“§ 2o Feita a apreensão a que se refere o caput, e tendo recaído sobre dinheiro ou cheques emitidos como ordem de pagamento, a
autoridade policial que presidir o inquérito deverá, de imediato,
requerer ao juízo competente a intimação do Ministério Público.
“§ 3o Intimado, o Ministério Público deverá requerer ao juízo a
conversão do numerário apreendido em moeda nacional, se for o
caso, a compensação dos cheques emitidos após a instrução do inquérito, com cópias autênticas dos respectivos títulos, e o depósito
das correspondentes quantias em conta judicial, juntando-se aos
autos o recibo.
“§ 4o O Ministério Público, mediante petição autônoma, requererá ao juízo competente que, em caráter cautelar, proceda à alienação dos bens apreendidos, excetuados aqueles que a União, por
intermédio da Secretaria Nacional Antidrogas – Senad, indicar
para serem colocados sob uso e custódia da autoridade policial,
de órgãos de inteligência ou militares, envolvidos nas operações
de prevenção e repressão ao tráfico e uso indevidos de produtos,
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faculdade de direito de bauru
substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou
psíquica.
“§ 5o Excluídos os bens que se houver indicado para os fins previstos nos §§ 1o. e 4o., o requerimento de alienação deverá conter a
relação de todos os demais bens apreendidos, com a descrição e a
especificação de cada um deles, e informações sobre quem os tem
sob custódia e o local onde se encontram.
“§ 6o Requerida a alienação dos bens, a respectiva petição será autuada em apartado, cujos autos terão tramitação autônoma em
relação aos da ação penal principal.
“§ 7o Autuado o requerimento de alienação, os autos serão conclusos ao juiz que, verificada a presença de nexo de instrumentalidade entre o delito e os objetos utilizados para a sua prática e risco de perda de valor econômico pelo decurso do tempo, determinará a avaliação dos bens relacionados, intimará a União, o Ministério Público, a Secretaria Nacional Antidrogas – Senad e o interessado, este, se for o caso, por edital com prazo de 5 (cinco) dias.
“§ 8o Feita a avaliação e dirimidas eventuais divergências sobre o
respectivo laudo, o juiz, por sentença, homologará o valor atribuído aos bens e determinará sejam alienados em leilão.
“§ 9o Realizado o leilão, e depositada em conta judicial a quantia
apurada, a União será intimada a oferecer, na forma prevista em
regulamento, caução equivalente àquele montante e os valores depositados nos termos do § 2o, em certificados de emissão do Tesouro Nacional, com características a serem definidas em ato do Ministro de Estado da Fazenda.
“§ 10. Compete à Secretaria Nacional Antidrogas - Senad solicitar
à Secretaria do Tesouro Nacional a emissão dos certificados a que
se refere o § 9o.
“§ 11. Feita a caução, os valores da conta judicial serão transferidos para a União, por depósito na conta do Fundo Nacional Antidrogas - Funad, apensando-se os autos da alienação aos do processo principal.
“§ 12. Terão apenas efeito devolutivo os recursos interpostos contra as decisões proferidas no curso do procedimento previsto
neste artigo.”
Observa-se, contudo, que em sede de Mandado de Segurança pode-se perfeitamente ser concedida, liminarmente, uma ordem para cassar ou sustar as medidas
apontadas nestes parágrafos. Ada, Scarance e Gomes Filho esclarecem que
“no curso da demanda surgem com bastante freqüência atos juris-
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dicionais ilegais, cuja execução é apta a provocar dano irreparável a uma das partes. E a existência de recurso contra esse ato
pode não ser suficiente para evitar o dano, quando a impugnação
não tiver efeito suspensivo. Nesses casos, o único meio capaz de
evitar o dano é o mandado de segurança, notadamente pela suspensão liminar do ato impugnado. Pode-se afirmar, portanto, que,
se o writ não pretendia, inicialmente, ser instrumento de controle
de atos jurisdicionais, as necessidades da vida judiciária acabaram levando-o a preencher essa finalidade.”62
O art. 47 dispõe, in verbis:
“A União, por intermédio da Secretaria Nacional Antidrogas – Senad, poderá firmar convênio com os Estados, com o Distrito Federal e com organismos orientados para a prevenção, repressão e o
tratamento de usuários ou dependentes, com vistas à liberação de
equipamentos e de recursos por ela arrecadados, para a implantação e execução de programas de combate ao tráfico ilícito e prevenção ao tráfico e uso indevidos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas ou que causem dependência física ou psíquica.”
Já o art. 48 estabelece que “ao proferir a sentença de mérito, o juiz
decidirá sobre o perdimento do produto, bem ou valor apreendido, seqüestrado ou declarado indisponível e sobre o levantamento
da caução.” Evidentemente que estes efeitos secundários da sentença não poderiam jamais ser automáticos, exigindo-se a devida e
indeclinável fundamentação. Aliás, neste sentido, é o disposto no
art. 92, parágrafo único do Código Penal.
“§ 1o No caso de levantamento da caução, os certificados a que se
refere o § 9o. do art. 46 serão resgatados pelo seu valor de face, e
os recursos para o respectivo pagamento providos pelo Fundo Nacional Antidrogas.
“§ 2o A Secretaria do Tesouro Nacional fará constar dotação orçamentária para o pagamento dos certificados referidos no § 9o do
art. 46.
“§ 3o No caso de perdimento, em favor da União, dos bens e valores
mencionados no art. 46, a Secretaria do Tesouro Nacional providenciará o cancelamento dos certificados emitidos para caucioná-los.
“§ 4o Os valores apreendidos em decorrência dos crimes tipifica-
62 Recursos no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª. ed., 2001, p. 393.
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dos nesta Lei e que não foram objeto de tutela cautelar, após decretado o seu perdimento em favor da União, serão apropriados diretamente ao Fundo Nacional Antidrogas.
“§ 5o Compete à Secretaria Nacional Antidrogas – Senad a alienação dos bens apreendidos e não leiloados em caráter cautelar,
cujo perdimento já tenha sido decretado em favor da União.
“§ 6o A Secretaria Nacional Antidrogas – Senad poderá firmar
convênios de cooperação, a fim de dar imediato cumprimento ao
estabelecido no § 5o.”
A Seção II deste capítulo cuida da perda da nacionalidade. O primeiro artigo
foi vetado. Ele dispunha que seria “efeito da condenação perder o naturalizado,
condenado por infração aos arts. 14, 15, 16, 17 e 18, a nacionalidade brasileira.
O juiz, transitada em julgado a sentença condenatória, oficiará ao Ministro da
Justiça para o cancelamento da concessão da naturalização.” Vetou-se porque
“o art. 12, § 4o., I da Constituição Federal, que dispõe sobre a perda da nacionalidade, dá um tratamento diferenciado a questão.
A Lei Maior prevê que será declarada a perda da nacionalidade
do brasileiro que tiver cancelada sua naturalização por sentença
judicial em virtude de atividade nociva ao interesse nacional. É
claro que o tráfico de drogas é uma atividade contrária ao interesse nacional. A perda da nacionalidade, todavia, ocorrerá por processo administrativo declaratório, após a decretação judicial do
cancelamento da naturalização. Esse processo judicial admite
contraditório. O contraditório pode, até mesmo, abarcar questões
que envolveriam suposta apatridia em caso de perda da nacionalidade brasileira, caso essa seja a única que possui o indivíduo. A
apatridia é fortemente condenada pela Comunidade Internacional e há diversos instrumentos jurídicos internacionais comprometendo os países a evitá-la. O problema do artigo é que atribui
uma automática perda da nacionalidade a quem for condenado.
Essa perda seria mero efeito da condenação por tráfico. Isso, ao
nosso ver, contraria o disposto na Constituição Federal acima
mencionado. Quanto ao parágrafo único, este não apresenta problema, já que é o Ministério da Justiça o responsável pela solicitação de processo de cancelamento da naturalização no caso de atividade contrária ao interesse nacional, entretanto, o dispositivo já
se encontra regulamentado pelos arts. 23 a 34 da Lei no 818/49. Razão pela qual também não merece prosperar.”
O art. 50, porém, sobreviveu: “É passível de expulsão, na forma da legisla-
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ção específica, o estrangeiro que comete qualquer dos crimes definidos nos arts.
14, 15, 16, 17 e 18, tão logo cumprida a condenação imposta, salvo se o interesse
nacional recomendar a expulsão imediata.” Atente-se que a expulsão depende de
um inquérito sumário a ser instaurado pela Polícia Federal, assegurando-se ao expulsando, excepcionalmente, o direito de defesa (art. 71 da Lei nº. 6.815/80). Nesta hipótese, como diz Tourinho Filho, “o inquérito é mesmo contraditório, obrigatoriamente contraditório.”63
8.
O CAPÍTULO VII – DA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
Foi vetado também todo o CAPÍTULO VII que tratava da Cooperação Internacional (arts. 51 e 52), in verbis:
“Art. 51. Preservadas a soberania nacional, a ordem pública e os
bons costumes, o Governo brasileiro, observadas as disposições da
Convenção das Nações Unidas de 1988 contra o tráfico ilícito de
substâncias entorpecentes e às drogas que causem dependência física ou psíquica de entorpecentes, prestará cooperação a outros
países, sem ônus, quando solicitado a:
I – colaborar na produção de provas;
II – realizar exame de objetos e lugares;
III – prestar informação sobre pessoas e coisas;
IV – colher o depoimento de testemunhas;
V – prestar outras formas de colaboração permitidas pela legislação em vigor.
§ 1o A solicitação de que trata este artigo será dirigida ao Ministério da Justiça, via Departamento de Polícia Federal, que a remeterá, quando necessário, à apreciação do Poder Judiciário para decidir a seu respeito, ou a encaminhará à autoridade competente.
§ 2o São requisitos da solicitação:
I – o nome e a qualificação da autoridade solicitante;
II – o objeto e o motivo da solicitação;
III – a descrição sumária do procedimento em curso no país solicitante;
IV – a especificação da assistência solicitada;
V – a documentação indispensável ao esclarecimento da solicitação, quando for o caso.
Art. 52. Para a consecução dos fins fixados nesta Lei, será instituí-
63 Processo Penal, Vol. I, São Paulo: Saraiva, 22ª. ed., 2000, p. 215.
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do e mantido sistema de comunicações apto a facilitar o intercâmbio rápido e seguro de informações sobre o tráfico de produtos,
substâncias e drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica com órgãos congêneres de outros países.”
Eis as razões do veto:
“O artigo apresenta vários e graves problemas. Primeiro, remete a
cooperação judiciária a questões de ´bons costumes´, expressão
indefinida e que não acrescenta nada às hipóteses de concessão
ou denegação de assistência judiciária. Em segundo lugar, elenca
de maneira incompleta as formas de cooperação, excluindo, por
exemplo, o bloqueio de bens e produtos do crime. Em terceiro lugar, o inciso V do art. 51 dispõe sobre outras formas de assistência
previstas na legislação em vigor, sem mencionar, como deveria,
dispositivos de instrumentos internacionais bilaterais e multilaterais existentes sobre o tema, que são muitos. A própria Convenção
das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e
Substâncias Psicotrópicas, de 1988, prevê, em seu art. 7o e seguintes a assistência Judiciária Recíproca, de maneira mais ampla do
que o que consta do projeto. O § 1o do art. 51 prevê o encaminhamento das solicitações de assistência pelo Departamento de Polícia
Federal. Entretanto, em todos os acordos internacionais vigentes
sobre o tema, é a Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da
Justiça, indicada como Autoridade Central para o trâmite das solicitações de cooperação judiciária em matéria penal. O art. 52,
isoladamente, não teria sentido. Fica prejudicado, portanto.”
9.
AS DISPOSIÇÕES FINAIS
O Capítulo VIII trata das disposições finais, nos seguintes termos:
“Art. 53. As medidas educativas aplicadas poderão ser revistas judicialmente, a qualquer tempo, mediante pedido expresso do agente, do seu defensor ou do representante do Ministério Público.
“Art. 55. Havendo a necessidade de reconhecimento do acusado,
as testemunhas dos crimes de que trata esta Lei ocuparão sala
onde não possam ser identificadas.” Dispositivo absolutamente dispensável, diante do art. 226, III do CPP.
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O restante do capítulo foi vetado. Estabelecia:
“Art. 54. Os meios de divulgação manterão sob sigilo os valores atribuídos a drogas e equipamentos apreendidos.”
Razões do veto:
“Em que pese o elevado propósito da norma, seu acolhimento
apresenta a impropriedade de não especificar quais os meios de
divulgação que deverão manter sigilo sobre os valores atribuídos
a drogas e a equipamentos apreendidos, além de não definir o
tempo desta proibição. A amplitude da norma destoa da intenção
do legislador. Poderia, ainda, gerar dificuldades na aplicação da
norma, inviabilizando, inclusive, a divulgação de dados oficiais
de interesse público.”
“Art. 56. O processo e o julgamento dos crimes previstos nos arts. 14,
15, 16, 17, 18 e 19, se caracterizado ilícito transnacional, caberão
à Justiça Federal.
Parágrafo único. Se o lugar em que tiverem sido praticados for Município que não seja sede de vara da Justiça Federal, o processo e
o julgamento referidos no caput caberão à Justiça Estadual, com
interveniência do Ministério Público respectivo, com recurso para
o Tribunal Regional Federal da circunscrição.”
Razões do veto:
“O disposto no art. 56 e seu parágrafo único ficam prejudicados
em face do veto sugerido ao Capítulo III.”
“Art. 57. Esta Lei será regulamentada em 90 (noventa) dias.
“Art. 58. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
“Art. 59. Ficam revogados a Lei no 6.368, de 21 de outubro de 1976,
mantido o Sistema Nacional Antidrogas de que trata o art. 3o daquela Lei, e o art. 1o da Lei no 9.804, de 30 de junho de 1999.” As
razões já foram transcritas acima.
Ainda e sempre o Direito Natural
Emerson Ike Coan
Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Professor de Linguagem Jurídica na Faculdade de Direito da
Universidade Presbiteriana Mackenzie.
1. Na Antigüidade Clássica, uma das primeiras manifestações de uma idéia de
“Direito Natural” remonta ao teatro grego, na “Antígona”, tragédia de Sófocles. Nela, Antígona se recusa a obedecer às ordens do rei Créon (que proíbe o sepultamento de seu
irmão Polínice), sob o argumento de que além das leis impostas por uma autoridade pública haveria certas leis não escritas, como se pode ver nesta passagem:
“CRÉON - Não obstante, ousaste infringir minha lei?
ANTÍGONE - Porque não foi Zeus quem a editou, nem foi a que vive
com os deuses subterrâneos - a Justiça - quem aos homens deu tais
normas. Nem nas tuas ordens reconheço força que a um mortal
permita violar aquelas não-escritas e intangíveis leis dos deuses.
Estas não são de hoje, ou de ontem: são de sempre; ninguém sabe
quando foram promulgadas1.”
No povo grego, a cosmologia, ao se relacionar com o nascimento da Filosofia, implica conhecimento racional do mundo ou da natureza, pois, apoiada na
1 “Três tragédias gregas”. “Antígone”, p. 62.
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exigência da ordem, equilíbrio ou harmonia, fez com que a idéia de cosmo se vinculasse à noção de ordenamento social ou comunidade bem ordenada como necessariamente adequada à natureza, o que inspira racionalmente a origem da legislação
da “Polis” grega.
Neste período, a partir desse paradigma, a natureza das leis do Estado foi julgada idêntica à das restantes leis do Cosmo, ou seja, todo direito do Estado era considerado natural e o homem não tinha autonomia, pois o universo “continha-o a
ele e ele, contido no universo, contemplava-o e reflectia-o, como um espelho reflecte uma imagem, sem perguntar por si nem pela natureza do fenómeno que reside nessa reflexão”(sic)2. Isso ganha destaque na colocação de Werner Jaeger, pois
ele diz que a idéia filosófica do Cosmos na formação do Estado jurídico grego, originariamente expressa, numa estreita simetria com organização social, reta ordem
do Estado e de toda a comunidade3, o que é esclarecido por Willis Santiago Guerra
Filho, no sentido de que se tratava apenas da maneira como os ‘protofilósofos’ tentavam transmitir a seus contemporâneos, com suas mentes centradas nos assuntos
da “Polis”, o conhecimento filosófico que atingiram4.
De todo modo, como também assinala Jaeger, não se pode negar que os gregos tiveram o senso inato do que significa ‘natureza’, tendo indubitavelmente origem na sua constituição espiritual, pois sempre organicamente “consideravam as
coisas do mundo numa perspectiva tal que nenhuma delas lhes aparecia como
parte isolada do resto, mas sempre como um todo ordenado em conexão viva, na
e pela qual tudo ganhava posição e sentido.”5
É na sofística que nasce a distinção entre ph?sis e nómos (entre natureza e
convenção) e se trata de uma acepção geral, que, ao deslocar o problema do cosmos
para o homem (“o homem é a medida de todas as coisas” - Protágoras), antes se
vincula à vida deste como membro de uma sociedade. Ora, de um lado, Direito, Estado, sociedade, costume, religião, linguagem etc., que constituem todos nómos e,
de outro, tais criações possuem todas o seu modelo e seu fundamento na natureza
mesma, na ph?sis. Assim, dessa conjugação obtém-se um nómos natural ou um “direito natural”.
Observa-se a superação dessa acepção em Socrátes, uma vez que, para ele, “o
homem é a sua alma” (psyché), isto é, a consciência e a personalidade intelectual e
moral. A partir disso, tem-se que o fundamento de todo comportamento moral é o
domínio de si mesmo (a autonomia do indivíduo enquanto tal; o “conhece-te a ti
mesmo”; “sei que nada sei”), enfim, o domínio da razão sobre a paixão, que conduz
ao íntimo equilíbrio ou à harmonia da alma.
2 L. Cabral de Moncada. “Filosofia do Direito e do Estado”, p. 11.
3 “Paidéia: a formação do homem grego”, pp. 143-144.
4 “Teoria da ciência jurídica”, p. 14.
5 Op. cit., p. 10-11.
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Por via de conseqüência, também quando a autoridade da lei externa é abalada, resta ao homem um critério interno, uma própria lei da alma, que se impõe para
conseguir e manter o domínio da razão sobre a paixão, o que projeta o problema
subjetivo-moral ao problema ético-objetivo (a maiêutica, como pesquisa associada
enquanto solidariedade com os outros), especialmente quanto à busca de um “conceito” (ou verdade universal) prático daquilo que seja o “Bom”, o “Justo”, o “Corajoso” etc.
A par dessa posição intelectualista e ética, a “Verdade” é uma coisa digna e respeitável, acima do capricho dos homens, e o viver sujeito às leis tem um fundamento ôntico e não arbitrário, de maneira que, mesmo deixando de ser justas as leis da
cidade, como aquelas que o condenaram à morte, o homem deve-lhes ainda obediência, pois, ao contrário, nenhum Estado seria jamais possível.6
Platão, seguindo esses passos, formulou uma teoria jurídica em “ A República” e “ As Leis”, ilustrada pela existência de uma “idéia pura de justiça ou harmonia”,
que conduz diretamente dessa ordem cósmica a um programa de leis positivas para
um singular Estado justo ou bem ordenado. Ele chama de “Idéia” os conteúdos (paradigmas) “a priori”, constituindo, assim, o mundo das Idéias - topos uranos - (de
todas as coisas: dos valores estéticos, morais, realidades corpóreas, entes geométricos, matemáticos etc.) ou plano inteligível (do ser), constituído por ‘modelos’, distinto e separado (transcendente, portanto) de um mundo sensível (das aparências;
do não-ser; do fenômeno).
Desse modo, associando a Idéia de Bem (o fundamento de todas as Idéias)
com a de Justiça, sustenta um “Direito Natural” ideal, munido de uma rigorosa validade geral, como forma “a priori” do ser do mundo, condicionando o conjunto da
vida do indivíduo e a do Estado (no qual os que mandam sejam filósofos, pois únicos capazes de ter acesso ao “Bem”), no sentido de uma unidade, portanto, justa e
ordenada.
Aristóteles, em sua “Ética a Nicômaco”, distingue o justo por natureza (physikon dikaion) do justo por lei (nomikon dikaion), pois a justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de aceitá-las ou não (como o fogo por toda a parte queima igualmente), e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente. Cumpre asseverar que o termo grego empregado (dikaion) deve ser tomado no
sentido próprio de “justo”, ou seja, um conceito universal típico dessa época, e não
no de “direito”. 7
Cabe assinalar que, tanto para Platão como para Aristóteles, a “justiça” é, em
primeiro lugar, virtude perfeita ou geral, porque essencialmente igualdade propor6 L. Cabral de Moncada. Op. cit., p. 15.
7 Miguel Reale. “Filosofia do Direito”, p. 625. Norberto Bobbio. “O positivismo jurídico”, p. 16.
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cional ou ‘justo meio’ e, em segundo lanço, virtude ética (ligada à coragem, moderação e generosidade), porque essencialmente vinculada às relações interpessoais,
sociais ou políticas, enfim, à ciência prática ou política. No entanto, o que separará
um do outro é que, para Platão, há uma idéia pura de justiça ou harmonia, enfim,
de ordem da natureza ou Cosmos (imutável), e, para Aristóteles, há uma concepção
de movimento (mutável, portanto). Isso porque, aceitando a concepção platônica
de mundo ideal ou supra-sensível, Aristóteles, ao invés de separar, relaciona idéia
(conceito, valor ou ‘Bem’) e realidade (coisa individual). E, ao estabelecer que
toda realidade tem em si mesma, enquanto tal, o princípio de sua validade (valor
intrínseco), fixa a noção de “fim” (telos; sentido, finalidade), pois “a coisa advém a
ser aquilo que é, porque sua matéria é informada, é plasmada, recebe forma, e
uma forma que é a que lhe dá sentido e finalidade”8, fazendo com que, como diz
Hans Welzel, “La ‘natura’ è la forma compiuta della realtà di un oggetto, che sta
nella materia solo secondo la possibilità o l’attidudine, e si attualizza nel processo del divenire”9.
Tal quadro mudará com o estoicismo. Para os estóicos, a lei da natureza é idêntica à lei da razão e, como ser essencialmente racional, o homem deve conduzir sua
vida de acordo com as leis da própria natureza, não se restringindo à “Polis”, mas se expandindo ao mundo, ao universo todo. Viver ‘conforme a natureza’ significa, pois, viver realizando plenamente essa apropriação ou conciliação do próprio ser e daquilo
que o conserva. Em particular, considerando que o homem não é simplesmente ser vivente mas ser racional, o viver segundo a natureza será um viver ‘conciliando-se’ com
o próprio ser racional, conservando-o e atualizando-o plenamente.
Ademais, essa característica fundamental dos seres é indicada pelos estóicos
pelo termo oikeíosis (apropriação, atração, conciliatio), de onde deve ser deduzido o princípio da ética estóica: conservar a si mesmo, de ‘apropriar-se’ do próprio
ser e de tudo quanto é capaz de conservá-lo, de evitar aquilo que lhe é contrário e
de ‘conciliar-se’ consigo mesmo e com as coisas que são de conformidade com a
própria essência.10 Assim, Giorgio Del Vecchio, ao analisar essa escola, sintetiza a ética estóica no sentido de que “Esiste una legge naturale che domina il mondo e si
riflette anche nella coscienza individuale: l’uomo è partecipe per sua natura di
una legge che vale universalmente. Il precetto supremo dell’Etica è quindi per gli
Stoici: ‘vivere secondo natura’”11.
Descobriu-se com isso a idéia de um “direito mundial universal” e válido
para todos os homens diante da evolução do nomos (leis) da Polis para lei universal e, então, para lei da natureza. Essas duas leis, ou antes, esta única lei (Logos) com
8 M. Garcia Morente. “Fundamentos de Filosofia”, p. 100.
9 “Diritto naturale e giustizia materiale”, pp. 43-45 - o destaque pertence ao original.
10 Giovanni Reale e Dario Antiseri. “História da Filosofia”, v. I, p. 261 - os destaques pertencem ao original.
11 “Lezioni di Filosofia del Diritto”, p. 31 - os destaques pertencem ao original.
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duas faces, ao mesmo tempo “lei” (lei natural do mundo físico) e “norma” (lei natural das ações humanas), é a “concepção mais original dos filósofos estóicos” e “o
direito positivo é agora nitidamente contraposto, como nunca até ai, a um outro
direito cuja essência radica na própria ordem do universo”.12 Um exemplo que
pode ser empregado é o referente à escravidão, pois em Aristóteles, pela sua teoria da desigualdade social, ela é um instituto fundado na própria natureza humana:
necessária à subsistência do corpo social; para o estoicismo, ao contrário, baseado
no princípio da igualdade natural entre os homens, a escravidão é contra o “Direito
Natural”.13
Em Roma, na sua fase transitória, Marco Túlio Cícero, revelando forte influência desse pensamento, dá uma definição descritiva do “Direito Natural” como
recta ratio:
“Há de fato uma verdadeira lei denominada reta razão, que é
conforme a natureza, aplica-se a todos os homens, é imutável e
eterna. Ela não prescreve uma norma em Roma, outra em Atenas,
nem uma regra hoje e outra diferente amanhã. Essa lei eterna e
imutável abrange todos os tempos e todos os povos.”14 Repete-se, assim, a distinção posta na Grécia entre o ‘justo por natureza’ e o
‘justo por lei ou convenção’.
Nesse contexto, cabe lembrar que a primeira grande elaboração teórica do Direito deve-se aos romanos, cujo centro gravitacional estava na noção efetiva de
prudentia e conduziu a um saber considerado de natureza prática, pois sua racionalidade não é apenas contemplativa e esquematizadora do real, mas dirige-se à
ação, ou seja, à criação de uma sociedade (“Urbs”) e de um direito tendente à solução de conflitos concretos (Jurisprudentia).
É de se considerar que o direito ( jus) é um termo empregado, sobretudo no
sentido objetivo de “lei”, de instituições jurídicas ou de um conjunto de regras, tomando-se por base a idéia de “arte”, mais precisamente, na expressão do jurisconsulto Ulpiano - em colaboração com Celso, “arte do bom e do equitativo” (“ars boni
et aequi”), isto é, como adverte Reynaldo Porchat, “a arte de discernir o bom e o
justo”15.
Esse sentido objetivo também é percebido na significação dada por esse jurisconsulto, e inserida nas “Instituições” do Imperador Justiniano, qual seja, “juris
praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere”
12 L. Cabral de Moncada. Op. cit., p. 38.
13 Alexandre Correia. “O conceito de ius naturale, gentium et civile no direito romano”, pp. 25-27.
14 “De Officiis” apud Hermes Lima. “Introdução à Ciência do Direito”, p. 207.
15 “Curso elementar de Direito Romano”, p. 106, nota (1).
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(“os preceitos do direito são os seguintes: viver honestamente, não lesar os outros,
dar a cada um o seu”)16, sintetizando-o nesses três preceitos, no sentido de categorias, ou seja, três normas gerais, em que se enquadram todas as diversas regras jurídicas. No sentido subjetivo, ainda no dizer de Ulpiano (inserto na epígrafe do Título I - Da Justiça e do Direito, Livro I, das “Instituições”), na sua definição de justiça (“Justitia est constant et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi” - A Justiça é a vontade constante e perpétua que atribui a cada um o que é seu), exprime o “poder” que cada um tem na sociedade, e que deve ser por todos respeitado,
com ênfase na “vontade” (voluntas), que não é aquela que se manifesta apenas num
dado momento, mas naquela disposição “constante e perpétua”, ou seja, permanente de dar a cada um o que lhe pertence, como uma energia moral, uma “virtude”, isto é, uma impulsão firme e consciente para o bem.
Quanto à noção de “Direito Natural”, encontra-se em Paulo, no sentido de
que “jus naturale est quod semper aequum ac bonum est” (“o justo por natureza é
aquele que é sempre eqüitativo e bom”). Diante disso,
“Ulpiano, quando definiu a justiça como uma - constans et perpetua voluntas, apreciou-a sob um ponto de vista mais subjetivo; mas
toda a vez que é ella encarada em sua feição objectiva, apresentase, em frente dos textos, e do pensamento dos jurisconsultos e philosophos romanos, visivelmente identificada á - aequitas” (sic).17
O Direito Natural compreendia, também, manifestações comuns aos homens
e aos animais (“Jus naturale est quod natura omnia animalia docuit”):
“O direito natural é aquele que a natureza ensinou a todos os animais, pois este direito não é próprio do gênero humano, mas diz
respeito à totalidade dos animais que nascem no céu, na terra e
no mar. Daqui provém a união do homem e da mulher, que chamamos de matrimônio, daqui a procriação e a educação dos filhos; vemos que os outros animais também se consideram capazes
deste direito.”18
Essa concepção de Ulpiano, ao contrário daquela de Paulo, pode encontrar obstáculo para sua aceitação, no sentido de ter rebaixado o homem à escala dos animais
16 “Institutas do Imperador Justiniano”. Livro I, Título I - Da justiça e do direito, § 3°. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro. Também é utilizada a edição traduzida por Sidnei Ribeiro de Souza e Dorival Marques, Curitiba: Tribunais do
Brasil Editora Ltda., s.d., que contém o texto no original.
17 Reynaldo Porchat. Op. cit., p. 131 - os destaques pertencem ao original.
18 “Institutas do Imperador Justiniano”. Livro I, Título II - Do Direito Natural, Das Gentes e Civil, epígrafe.
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inferiores e de reconhecer entre estes o uso do “Direito”, quando é certo que o “Direito” se funda na razão, faculdade de que exclusivamente é dotado o gênero humano e,
nas palavras de Pietro Bonfante, é um conceito muito infeliz, pois, como diz,
“mal si può parlare di norme giuridiche o rapporti giuridici comuni a uomini e ad animali, ma solo di bisogni comuni: la congiunzione del maschio e della femmina, ricordata dal giureconsulto,
non è matrimonio, come del resto non è nemmeno matrimonio
ogni unione tra uomo e donna“19.
Não há, entretanto, incoerência em face daquilo que esse jurisconsulto já havia colocado, antes existe adequação, porque coadunado com o pensar estóico, que
por uma razão universal (a alma do mundo) inspirava, tanto aos homens quanto
aos animais inferiores, o instinto da própria conservação. Não desconsidera, é bem
de ver, o gênero humano como superior, tanto é assim, que distingue o que homem
pratica como um animal que é (um “conceito” de jus naturale em sentido lato,
como coloca Alexandre Correia), arrastado pelas naturais solicitações do seu organismo, como união entre os sexos, procriação e a criação dos filhos, e o que realiza
na sua qualidade distinta de homem (um “conceito” de jus naturale em sentido restrito, seguindo o autor supracitado), como a escravidão, o comércio e os contratos,
inseridos também nas “Institutas” (Livro I, Título II, § 2°).20
Os “direitos naturais”, portanto, fundados nas necessidades comuns a todos os
homens, constituem um conjunto de princípios essenciais à vida e permanecem “sempre fixos e imutáveis, como se constituídos por uma providência divina” (“quae apud
omnes gentes peraeque servantur, divina quadam providentia constituta, semper firma atque immutabilia permanent”)21 enquanto o jus civile designa “o direito que
cada povo constituiu para si mesmo é o característico de sua cidade e se denomina direito civil, sendo o direito próprio dessa cidade” (“nam quod quisque populos ipse sibi
jus constituit, id ipsius proprium est civitatis”)22, ou seja, trata-se de um direito particular, encerrando aquelas regras especiais que refletem o seu caráter próprio, as suas
tendências, que “sóem ser com freqüência mudadas, seja pelo tácito consenso popular, seja por uma lei mais tarde promulgada” (“saepe mutari solent, vel tacito consensu populi, vel alia postea lege lata”)23, sem se afastar totalmente de um direito comum,
imprimido em outras regras que traduzem o reconhecimento das necessidades comuns ou naturais a qualquer povo, ou seja, a todo o gênero humano.
19 “Istituzioni di Diritto Romano”, p. 18-19.
20 Op. cit., pp. 4-17.
21 “Institutas do Imperador Justiniano”. Livro I, Título II, § 11.
22 Livro I, Título II, § 1°.
23 Livro I, Título II, § 11.
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Ulpiano coloca que além do jus naturale e do jus civile, que era o direito positivo, havia o jus gentium, que tratava das relações entre diversos Estados. Essa sua
visão tricotômica apóia-se na distinção entre jus naturale e jus gentium, pois, em
primeiro lugar, o Direito Natural é dividido em duas espécies, o de todos os animais
- homem e animais inferiores - (em sentido amplo) e aquele próprio dos homens
(em sentido restrito), cabendo ao Direito das gentes apenas esta última acepção,
que pode ser vista como expressão de um Direito “universal” fundado na “ratio naturalis”, usado por todos os povos (direito à vida, liberdade etc.), não esquecendo
a constatação do caráter de “positivo” desse direito, incluindo a prática do comércio
e dos contratos com uniformidade em qualquer parte onde se manifestassem. Mas,
mesmo nessa, não guarda relação de identificação porque admite a escravidão
(como um instituto da legislação positiva universal), o que não é tolerado pelo “Direito Natural”, pois não pode ser justificado racionalmente em face do princípio
pelo qual “omnes homines aequales sunt” (“todos os homens são iguais”).24
Observa-se nas “Institutas” um predomínio da uma visão dicotômica (com
apoio em Gaio)25 ao fixar que o direito próprio de cada povo como jus civile e o comum a todas as gentes como jus gentium, que, ao possuir universalidade fundamentada na razão natural, é um jus naturale.
Nota-se que jus gentium é “aquele, porém, a verdadeira razão natural
constituiu em meio a todos os homens é direito como observado pela totalidade
dos povos e se denomina direito das gentes, o qual é o direito utilizado por todas
as gentes. O povo romano, também, utiliza um direito que, em parte, lhe é próprio
e, em parte, é comum a toda a humanidade”26. O seu desenvolvimento ocorreu
(lembrando que, assim como o grego, o romano primitivo não admitia que tivesse
a mesma natureza racional que os povos além de suas fronteiras, incapazes da mesma civilização que a sua) em virtude das necessidades práticas, sem preocupações
teóricas, como obra dos magistrados a fim de decidir conflitos entre cidadãos romanos e indivíduos que não o eram (mercadores estrangeiros).
Cabe a assertiva de que
“no fundo dessas classificações, tricotómica e dicotómica, se exceptuarmos a idea original de Ulpiano, de estender o direito natural
também aos animais, há uma idea commum que as unifica: a de
um ius naturale, expressão das exigências profundas da natureza
do homem; e a de um ius gentium que, se por um lado, se apresenta com o caracter de direito positivo universal, de outro mantem
com o ius naturale as mais estreitas afinidades, a ponto de pode24 Alexandre Correia. Op. cit., p. 18-21.
25 Idem, ibidem, pp. 61-68.
26 “Instituições”, Livro I, Título II, § 1°.
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rem ser consideradas muitas das suas instituições como consequências próximas dos princípios da legislação natural”(sic)27.
Isso não impede a constatação de que:
“Inspirados nas concepções filosóficas da Grécia sobre os problemas do bem e da justiça, os romanos souberam aplicá-la sabiamente no mundo específico do Direito, mas sem propósitos sistemáticos ou de pura teoria compreensiva da realidade humana. Em
verdade, a criação original de Roma foi, acima de tudo, a Jurisprudência, Jurisprudência que eles constituíram através de fino
lavor interpretativo das necessidades sociais e econômicas, graças
a um trabalho admirável de tipificação normativa, na qual a rigidez aparente das estruturas formais se casava à plasticidade
funcional dos fins visados, segundo uma correlação prudente entre fato, valor e norma, à medida que se punham exigências de solução de conflitos particulares de interesses.”28
Portanto, quanto à questão de haver um ‘direito das gentes positivado’ e um
‘direito natural abstrato ou universal’,
“mesmo quando alguns poucos jurisconsultos chegam a distinguilos nas categorias do jus gentium e do jus naturale, permanecem
sempre interligados, dado o sentido de integração fático-axiológico-normativa que caracteriza a Jurisprudência romana, a respeito da qual já foi possível invocar a concepção de um Direito Natural de conteúdo variável.”29
E sobre a problemática do jus naturale e a da aequitas, tem-se que esta representa um princípio ideal de justiça humana, composta de elementos jurídicos e
metajurídicos, superior ao jus e para o qual o jus deve tender, enquanto que, antes,
no Direito clássico, a aequitas havia designado um princípio singularmente jurídico,
o fim supremo ou a força ideal que informa o sistema do Direito Positivo e “É esse
sentido concreto do jus naturale, como algo inseparável da experiência histórica
do jus, que, a nosso ver, caracteriza o Direito Romano clássico, em contraste com
o conceito abstrato do jus naturale na época seguinte, notadamente no chama27 Alexandre Correia. Op. cit., p. 72 - os destaques pertencem ao original.
28 Miguel Reale. “Concreção de fato, valor e norma do Direito Romano Clássico (Ensaio de interpretação à luz da
teoria tridimensional do Direito)” In: “Horizontes do Direito e da História”, p. 48 - destaques no original.
29 Idem, ibidem, pp. 65-66.
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do ‘Direito romano cristão’”.30
2. Na Idade Média, surge um novo sistema filosófico no qual prevalece
uma visão comum a todos os homens acerca do universo ou da representação do
mundo centrada em torno da idéia de um Deus pessoal, tornando-se, assim um
paradigma teocentrismo, e adquire um sentido diverso nas coordenadas da cultura cristã.
A união ou ponte de passagem entre a Antiguidade clássica e a Filosofia Cristã da Idade Média é verificada a partir da figura do apóstolo São Paulo, que difunde
o Cristianismo, fazendo com que o “Direito Natural” estóico passasse a identificarse com a vontade de Deus, tornando-se, assim, teocêntrico. As duas idéias fundamentais expostas por ele foram: 1) - a afirmação do direito e do Estado como manifestação duma lei natural e da vontade de Deus; e 2) - a afirmação da idéia de uma
comunidade do Espírito, implantando-se e crescendo no seio de uma certa e determinada comunidade mais vasta de homens, a partir de uma renovação da vida interior de cada um. Diante disso
“A justiça como que se despe assim dos seus elementos puramente intelectuais e formais, para se encher de conteúdo ético na
consciência do indivíduo; deixa de ser apenas o princípio de
uma relação meramente extrínseca dentro do Estado, para se
tornar no de uma relação viva e existencial entre o homem e
Deus, para além da lei e das obras, com repercussão na vida da
comunidade.”31
Neste contexto, para tecer a transição no plano da Filosofia da história, Santo
Agostinho desenvolve seu pensamento distinguindo a “civitas Dei” da “civitas terrena”. A cidade de Deus é a comunidade de todos aqueles que neste mundo vivem
segundo o espírito e buscam a justiça (“amor Dei”), qual prefiguração da verdadeira cidade dos santos que só pode realizar-se na outra vida ou no ‘reino dos céus’. Já
a “civitas terrena” é a comunidade dos que vivem segundo a carne e unicamente
para a satisfação dos seus apetites de concupiscência e de domínio (“amor sui”).
Com influência da teoria das idéias de Platão, cuida de analisar a Igreja e o Estado. A Igreja mais voltada para o céu e o Estado (que teoricamente existiria mesmo
sem o “pecado original” como condição da vida dos homens em comum, criada e
querida por Deus para a realização da paz e da justiça) mais inclinado para o reino
da terra, em virtude da natureza corrompida do homem, como conseqüência do pecado original (isto analisado empiricamente, pois, na história dos grandes impérios,
nenhum deles obedecia à exigência suprema da justiça, uma vez que não reconhe30 Idem, ibidem, p. 63.
31 L. Cabral de Moncada. Op. cit., p. 53-54.
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ciam o único e verdadeiro Deus do Cristianismo). Propõe-se, assim, a transformar o
Estado numa comunidade de paz e de justiça entre os homens e, como tal, num
meio de realização neste mundo da “civitas Dei”, pela sua conversão ao Cristianismo e subordinação à Igreja: o “Estado de Direito Natural”. Diante disso, tomandose, ab initio, por base o princípio da justiça, cuja idéia completa-se com a do amor
ou caridade e que reside unicamente na vontade Divina, pois Justo é simplesmente o que Deus quer e só e porque o quer, o “Direito Natural”, como manifestação exclusiva dessa vontade, ganha acentuação voluntarista32.
A figura de maior importância, porém, foi Santo Tomás de Aquino, que, fiel à
visão teocêntrica, toma como ponto de partida de sua posição a concepção de que
o mundo é governado pela Divina Providência, isto é, a vontade de Deus, que é essencialmente racional. É a razão Divina que estabelece a ordem geral do universo
e suas regras constituem a lei suprema.
O acento agora está sobre o caráter racionalista e não mais sobre o voluntarista, pois é a inteligência divina ou o Logos a essência da divindade criadora do
mundo, à semelhança da qual o homem foi criado e é, simultaneamente, princípio
ordenador daquele. A razão passa a ser a regra e a medida dos atos humanos, enfim o princípio primeiro do agir humano e, ao servir de fundamento ao Direito, a
lei humana não pode deixar de ser um ordenamento da razão (do “agir segundo
a razão”33):
“Ora, na ordem das coisas humanas, chama-se justo ao que é reto
segundo a regra da razão. E como da razão a primeira regra é a
lei da natureza, conforme do sobredito resulta, toda lei estabelecida pelo homem tem natureza de lei na medida em que deriva da
lei da natureza. Se, pois, discordar em alguma coisa, da lei natural, já não será lei, mas corrupção dela.”34
Traço característico e distintivo em relação ao pensamento de Santo Agostinho está no fato de que não se prendeu o “Doutor Angélico” à teoria das idéias de
Platão (com a divisão nas duas cidades e com acento voluntarista, no qual só a vontade de Deus dirige a natureza corrompida do homem pelo pecado original), mas
ao sistema teleológico de Aristóteles, pois a inteligência humana, não totalmente
pervertida pelo pecado original, pode ainda elevar-se, em parte, ao conhecimento
da lei eterna e da lei natural, assim como do bem pelos seus próprios recursos. Isso
porque, na concepção de Santo Tomás de Aquino, inspirado em Aristóteles, o peca32 Idem, ibidem, pp. 56-67.
33 “Suma Teológica”, quest. XCIV (Da lei natural), art. IV (conforme transcrição do texto e sua tradução de Alexandre Correia. “Textos Clássicos de Filosofia do Direito”, pp. 8-26).
34 “Suma Teológica”, quest. XCV (Da lei humana), art. II.
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do de Adão é uma “simples mácula”, havendo depois disso algo de bom no homem,
como uma “virtude original”, suscetível de, com a ajuda da graça divina, lhe permitir colaborar mais ativamente na obra da sua salvação.
Em sua Summa Theologica, disserta sobre os três tipos diferentes de leis: 1) lex aeterna, base e fundamento de todas as leis, a lei suprema ou razão divina a respeito da criação e da ordem universal (e não deve ser confundida com a lex divina
ou revelada, a qual é uma expressão da primeira, a mais alta forma de sua participação aos homens, porque dada por Deus, como no exemplo das Sagradas Escrituras);
2) - lex naturalis, que é a lei da natureza humana conhecida racionalmente pelo homem, independentemente de qualquer revelação sobrenatural, e estatui aquilo que
o homem deve fazer ou deixar de fazer, pois “conforme à ordem das inclinações
naturais”, tendo por princípio de ordem prática fundamental de toda a concepção
tomista, o de que “deve-se fazer e buscar o bem e evitar o mal” 35; e 3) - lex positiva, obra do legislador humano - lex humana, mas que deve ser conforme à lei natural e, portanto, à lei eterna.
Distingue, ainda: 1) - “quanto aos seus princípios primeiros, a lei natural é
absolutamente imutável”36. Logo, “o primeiro preceito da lei é: deve-se fazer e buscar o bem e evitar o mal. E este é o fundamento de todos os outros preceitos da lei
natural”37, por exemplo, “viver honestamente”, “dar a cada um o que é seu”, “não
lesar a outrem”38; 2) - mas, quanto aos “preceitos segundos...não é imutável”39, pois
a situação é diferente à medida que se distanciam dos primeiros princípios, eles são
cada vez mais “contingentes e variáveis”. Essa variação pode ocorrer em virtude do
processo natural à razão caminhar do imperfeito para o perfeito, por uma decadência dos costumes ou simplesmente pela diversidade e variação das condições do
meio social.
Por isso, a diversidade das leis humanas provém da variedade das coisas humanas: “Os princípios gerais da lei da natureza não podem ser aplicados a todos
do mesmo modo, por causa da múltipla variedade das coisas humanas. E daí
provém a diversidade das leis positivas dos diversos povos.”40 E, essa variabilidade
da lex humana, que completa as prescrições gerais do “Direito Natural”, deve se
dar, de acordo com o fim do Estado, visando ao “bem comum”.
3. No pensamento moderno a perspectiva é a do Renascimento, prendendose a uma concepção abstrata e imaginária da natureza humana, que, ao substituir Deus
pelo próprio homem, revela um processo de laicização do Direito Natural.
35 “Suma Teológica”, quest. XCIV (Da lei natural), art. II.
36 “Suma Teológica”, quest. XCIV, art. V.
37 “Suma Teológica”, quest. XCIV, art. II.
38 Exemplos dados por André Franco Montoro. “Introdução à ciência do direito”, p. 261.
39 “Suma Teológica”, quest. XCIV, art. V.
40 “Suma Teológica”, quest. XCV (Da lei humana), art. II.
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Nesta etapa, existe a pretensão de que todo o conteúdo da realidade jurídica
possa ser logicamente construído conforme a exatidão matemática ou geométrica,
pela concatenação lógica das proposições pelas regras da dedução, a partir de princípios básicos universalmente válidos (uma demonstratio more geometrico), ou
seja, a possibilidade de se deduzir sistematicamente, de um conjunto de fórmulas abstratas ou princípios gerais que a razão reconhece, a totalidade das normas jurídicas.
Como expõe Tércio Sampaio Ferraz Jr., a diferença entre esse direito natural
e o direito natural da tradição escolástica
“é provocada, entre outros fatores, pela modificação no próprio
conceito de razão. Não é a idéia de que o homem é um animal rationale, comum a outras formas de direito natural, que prima no
caso. Esta noção, típica da escolástica, entendia a palavra ratio
como um elemento de uma metáfora teleológica, o ser racional
era o princípio formal ( forma) do ser humano, para o qual ele
tende; já para o jusnaturalismo do direito racional, ratio é apenas
a clara et distincta perceptio, capaz de veicular um princípio formal, mas não mais no sentido de forma/matéria da escolástica,
base de todo e qualquer direito que possa ser pensado.”41
Dentro desse contexto, Hugo Grotius é considerado o criador da ciência do
Direito Natural. Ele é, como expôs Miguel Reale, “o primeiro autor da Filosofia do
Direito moderna...Antes dele não se poderia falar em Filosofia do Direito em sentido próprio, pois é com seu livro De jure belli ac pacis que se apresenta o primeiro
tratado de Direito Natural, ou, para melhor dizer, o primeiro tratado autônomo de
Filosofia do Direito.”42
Grotius utilizou como princípio o da sociabilidade, o appetitus societatis ou
socialitas - o instinto natural teleológico de viver gregariamente, que não é apenas
um fato empírico, mas um ditame da razão, pois esta permite estabelecer os princípios naturais, porque lógicos e necessários, reguladores da convivência social. Por
via de conseqüência, o Direito Natural “é um ditame da justa razão destinado a mostrar que um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário segundo seja ou não
conforme a própria natureza racional do homem, e a mostrar que tal ato é, em conseqüência disto vetado ou comandado por Deus, enquanto a autor da natureza.”43
Os critérios da racionalidade e da sociabilidade, dados naturais do homem,
acrescidos da vontade, dando origem à predominância da idéia de contrato, faz
41 “Direito Natural ou Racional (‘jus naturale’)” In: “Enciclopédia Saraiva do Direito”, v. 27, p. 375.
42 “Hugo Grocio e sua posição na Escola do Direito Natural” In: “Horizontes do Direito e da História”, p. 103.
43 “De jure belli ac pacis”, 1, 10 - apud Norberto Bobbio. “O positivismo jurídico”, p. 21-22.
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com que o princípio do pacta sunt servanda (isto é, a força vinculativa da promessa de cada uma das partes) seja a tônica na concepção do Direito Natural, quer no
plano interno do Estado, quer no plano internacional.
A. Machado Paupério explica que
“o direito deixa de aparecer como um dos aspectos do justo em si
para tornar-se uma criação voluntária do homem. Este, dirigido
pelo instinto de sociabilidade, vai erigir a regra Pacta sunt servanda como base de toda a vida jurídica e social, nacional e internacional. A liberdade e a vontade humanas passam então a constituir a essência das relações jurídicas e sociais. Erige-se como cerne de todo o sistema jurídico a autonomia da vontade. Obviamente, passa a ser instrumento fundamental e ideal da realização do
direito o contrato, que passa até a significar justiça. O contratual
passa a ser vulgarmente o justo.”44
Os autores que a ele sucederam foram identificados sob a “velha etiqueta” de
“Escola do Direito Natural”, possuindo o termo “escola”, como ensina Norberto
Bobbio, a idéia de um princípio de unificação que
“não reside nesse ou naquele conteúdo, mas consiste certamente
num modo de se aproximar do estudo do direito e, em geral, da ética e da filosofia prática: numa palavra, no ‘método’...O método
que une autores tão diversos é o método racional, ou seja, aquele
método que deve permitir a redução do direito e da moral (bem
como da política), pela primeira vez na história da reflexão sobre
a conduta humana, a um ciência demonstrativa” e ao se chamar
o direito natural moderno de “direito racional”, “temos aqui um
indicador do fato de que aquilo que caracteriza o movimento em
seu conjunto não é tanto o objeto (a natureza), mas o modo de
abordá-lo (a razão), não um princípio ontológico (que pressuporia uma metafísica comum que, de fato, jamais existiu), mas um
princípio metodológico”45.
Thomas Hobbes marca um ponto elevado nessa pretensão de substituir o
Direito Natural teocêntrico e teológico por um antropocêntrico ou antropológico.
Prende-se, em harmonia com a concepção matemática do conhecimento, a uma
noção mecânica da natureza, pela qual, assim como o trabalho de um relojoeiro
44 “A Filosofia do Direito e do Estado e suas maiores correntes”, p. 43.
45 “Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna”, pp. 15-16 - destaques no original.
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entretido em desmontar e a reconstruir um relógio, peça por peça, procura compreender a origem e a formação do Direito e do Estado. Para ele, “que não admite mistérios, os indivíduos humanos, como átomos ou elementos últimos, irredutíveis, da matéria social, ou como as sensações na vida da alma, eram puras unidades abstractas, apreensíveis dentro de uma visão matemática; o mais feroz e insociável egoísmo era o único dado empírico que os caracterizava”46. Sustenta, a
partir disso, que a condição do homem no “estado de natureza” não é, como em
Grotius, a sociabilidade, mas o temor, ou seja, “o homem é o lobo do homem”
(homo homini lupus).
Como os homens não podem permanecer por muito tempo nessa condição
de ferocidade, abandonam o estado de natureza, ou seja, o ‘direito natural’ de fazerem só o que lhes apetece, e estabelecem o ‘estado social’ como um ‘contrato’ (no
sentido de “pactum subiectionis”), que consiste numa renúncia ou transferência
dos direitos naturais na figura do Estado soberano (entidade distinta da multidão).
Isso, em função de duas leis fundamentais da natureza racional do homem: 1) - “que
todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de
consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra”, isto é, “por todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós
mesmos”; 2) - “que um homem concorde, quando outros também o façam, e na
medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo,
em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação
a si mesmo.”47
Esse Estado absoluto e onipotente, o mais totalitário de todos os Estados,
cujo poder se deve estender regulando positivamente todas as esferas da vida, é o
“Leviathan” (nome bíblico dum monstro marinho), representado por um gigante,
constituído por uma infinidade de seres humanos. O gigante tem na mão direita
uma espada e na esquerda um báculo, símbolos do poder civil e religioso; tem a
seus pés uma cidade e sobre a cabeça a sentença: “não há outro poder comparável
sobre a terra” (“non est potestas super terram quae comparetur ei”).
Samuel Pufendorf, ao combinar Grotius e Hobbes, procura também deduzir
matematicamente de um princípio único todo o sistema do Direito Natural. O princípio da “conservação do indivíduo”, que só pode estar no pleno desenvolvimento
e satisfação do seu instinto de sociabilidade (“socialitas”), ou seja, de viver na dependência do auxílio de outros homens, é o único princípio do qual se deduz depois, more geometrico, todo o Direito.48 Esse supremo princípio, regulativo do
modo de viver do homem, é o fundamento, quanto ao conteúdo, do Direito Natu46 L. Cabral de Moncada. Op. cit., p. 170 - o destaque pertence ao original.
47 Idem, ibidem, pp. 114-115.
48 Idem, ibidem, p. 183-184.
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ral, como decorrência do desamparo em que se acha na sua solidão, devido à sua
natureza decaída, ou seja, aquela alimentada pelo egoísmo e amor-próprio (“imbecillitas”). E, em função disso, esse princípio não tem força vinculante ou caráter jurídico (pois não é o próprio Direito Natural), o que é possível somente mediante a
sanção divina, na medida em que Deus prescreve ao homem a sua observação.
A sua particular colaboração, no entanto, está no reconhecimento, em suas
obras “De iure naturae et gentium libri octo” e “De officio hominis et civis libri
duo”, da dicotomia entre “entia physica” e “entia moralia”, considerando o fato de
o homem estar situado, dualisticamente, no mundo da natureza com seus perigos e
necessidades, e no mundo moral, que por sua sociabilidade, vincular-se ao senso de
valores. Assim, distingue, pela primeira vez, os conteúdos do mundo espiritual ou
moral do ser do mundo físico ou natural para fins de separação entre Direito Natural e Teologia Moral.
No desenvolvimento da modernidade, há, ainda, entre outros, John Locke e
Jean-Jaques Rousseau. Ora, se de início o pensamento jusnaturalista estava centralizado num método a fim de conferir segurança de todos como fator fundante do
Estado, a situação nesta etapa reside na preocupação com a liberdade individual
em face dos excessos cometidos pelos Estados absolutistas, o que desencadeia as
revoluções liberais dos séculos XVII e XVIII.
John Locke, como os demais autores na modernidade, considera o Direito Natural aquele conhecido pela razão e procura uma lei natural universal, uma lei da razão comum a todos os homens. Assim como em Hobbes, o estado de natureza é o
ponto de partida nesse sistema racional, sendo que, para Locke, representa aquele
em que todos os homens se acham: 1) - em “perfeita liberdade” para ordenar-lhes
as ações, regular-lhes as posses e as pessoas conforme acharem conveniente, dentro
dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de
qualquer outro homem; e 2) - em “igualdade”, na qual é recíproco qualquer poder
e jurisdição, ninguém tendo mais do que qualquer outro, de modo que todos podem fazer cumprir a lei natural enquanto não afetar sua própria sobrevivência, pois
“O estado de natureza tem uma lei de natureza para governá-lo
que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que tão-só a consultem, sendo todos iguais e independentes,
que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na
liberdade ou nas posses”49.
Esse estado de natureza não é substancialmente bélico, não existindo hipoteticamente no sentido de uma guerra que é de todos os homens contra todos os ho49 “Segundo tratado sobre o governo: ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil”, p.
35.
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mens, mas regulado pela razão, no sentido de que a existência dos direitos naturais
vai proteger o indivíduo também no estado de sociedade, não havendo, assim, renúncia ou transferência, pelo pacto comum, na figura do Estado soberano de toda
liberdade natural, isto é, de todos os direitos naturais.
Isso não quer dizer que não possa haver, ainda no estado de natureza, transgressões à lei natural, com ocorrência de tensões, podendo qualquer homem, por esse motivo, em virtude do direito que tem de preservar a Humanidade em geral, “restringir
ou, quando necessário, destruir tudo quanto lhe seja prejudicial, fazendo recair sobre quem transgrediu a lei malefício tal que o leve a arrepender-se de tê-lo feito e assim impedindo-o e outros, pelo exemplo deste, de fazer malefício semelhante”50 Significa fazer justiça por si e o problema é o da moderação e imparcialidade do ofendido que vá executar a punição, levando-se em conta os ditames da razão calma e da
consciência, o que esteja em proporção com a transgressão.
O estado de guerra, como se vê, não é permanente, mas em potência, considerando o conflito de interesses que pode surgir entre os homens e, uma vez instaurado este estado, faz-se necessária a sua conversão, pelo pacto consensual, em
‘sociedade’, e
“os homens deixam o estado de natureza para entrarem no de comunidade, estabelecendo um juiz na Terra, com autoridade para
resolver todas as controvérsias e reparar os danos que atinjam a
qualquer membro da comunidade; juiz esse que é o legislativo ou
os magistrados por ele nomeados”51.
Nota-se que a condição primitiva do homem em Locke é diferente daquela estampada por Hobbes, pois o estado de natureza, enquanto pressuposto teórico, não
é essencialmente mau, mas na prática apresenta inconvenientes, e quando as desvantagens superam as vantagens torna-se necessário abandoná-lo, partindo-se para
o estado social ou político, o qual possuirá uma instituição capaz de proporcionar a reparação dos danos e a punição dos culpados. Acrescente-se que em
Hobbes, com a passagem do estado de natureza para o “Leviatã”, as leis naturais
convertem-se em leis positivas emanadas pelo Estado absoluto, preservando-se apenas o direito à vida; em Locke, o que se vê é um Estado limitado, como uma instituição com o objetivo de tornar possível a convivência entre os homens, permanecendo vigentes as leis relativas aos direitos naturais (centralizadas na vida, na liberdade e na propriedade), uma vez que necessita apenas de um juiz para que fossem
aplicadas com imparcialidade, ou seja, há renúncia somente do direito natural de
fazer justiça pelas próprias mãos.
50 Idem, ibidem, p. 37.
51 Idem, ibidem, p. 68.
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Quanto a Jean-Jacques Rousseau, ao tomar por base as teorias anteriormente
lançadas, em sua obra “Do contrato social”, procura uma solução ao problema político de se conjugar num só sistema as noções de liberdade natural do homem
e necessidade da vida num Estado, em suma, de uma situação em que se possa
falar em liberdade dentro do Estado.
Rousseau retoma a linha de apreciação de Hobbes no que tange à idéia de um
contrato inicial, fazendo-o, porém, ao considerar o homem bom em sua origem, eivado apenas de um egoísmo passivo, no sentido de uma indiferença recíproca, tendo sido corrompido pela vida em sociedade civil, que o privou de sua liberdade inata (“O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros”52) em função de
suas inovações, entre as quais a instituição da propriedade privada. Com isso, proclama o regresso do homem ao estado de natureza, ou seja, de liberdade e, portanto, de felicidade, fixando, simultaneamente, as bases de como deve organizar-se uma
sociedade para tal finalidade.
Nota-se, assim, que sua posição, diferentemente dos autores anteriores, não
é diática (estado de natureza/estado civil), mas triádica (estado de natureza/sociedade civil/Estado). O importante é, para ele, determinar como a construção e manutenção do Estado podem ser legítimas. Quanto à origem, como nos autores que o precedeu, uma vez que um estado (para ele, o social) deixa de ser conveniente, porque há mais desvantagens do que vantagens, passa-se, de forma convencional, a outro (no caso, o Estado). E só se legitimará o Estado que se formar, e
assim possa permanecer, ao “encontrar uma forma de associação que defenda e
proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela
qual cada um, unindo-se a todos, só obedecer, contudo. a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes”53.
O ponto central nessa passagem, e em todo pensamento de Rousseau, localiza-se no “só obedecer contudo a si mesmo”, pois o homem só é livre quando obedece a lei que a ele mesmo se deu. No estado de natureza o homem é feliz, ele não
é, porém, livre, porque está vinculado apenas a seus instintos; já na sociedade civil,
embora obedeça a leis, estas são impostas de cima para baixo, dentro de um quadro
de desigualdades. Desse modo, somente a partir do contrato social (pactum societatis), com a renúncia ou transferência total dos direitos naturais não em favor de
um terceiro (o Estado soberano, para o qual, como em Hobbes, se falaria em mera
sujeição), mas em favor de todos, ou seja, de cada indivíduo para si mesmo, enquanto corpo político constituído pela totalidade dos contratantes (a comunidade inteira), é que se observará a liberdade do homem (direito natural permanente, pois o
indivíduo não pode renunciar, sob pena de perder a sua qualidade de homem), que
ao obedecer às leis postas por ele mesmo, não será mais, como em Locke, apenas o
52 “Do Contrato Social”, Livro I, Cap. I, p. 53.
53 Op. cit., Livro I, Cap. IV, p. 69-70.
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homem natural protegido pelo Estado, mas se transformará em um novo homem:
o cidadão. E o Estado por ele concebido, porque regido por leis como condições
da associação civil e expressões da soberania, é a “república”54.
Essa passagem de um estado, pelo contrato social, a outro, faz com que o homem perca sua liberdade natural, mas, em contrapartida, ganhe sua liberdade civil e, assim, a propriedade de tudo que possui, limitada pela síntese da vontade de
todos os indivíduos contratantes tendentes à utilidade pública, a qual se pode denominar de forma racional e democrática por “vontade geral”55. De maneira que,
“cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo
um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se
lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem” e “cada um de nós
põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro
como parte indivisível do todo”56.
Para concluir essa síntese, observa-se que se o problema antigo era o de uma
adequação à ordem natural, o moderno passa a ser o de dominar tecnicamente
a natureza ameaçadora e, ao se criar um espaço juridicamente neutro para a
perseguição da utilidade privada, estabelece uma oposição entre os sistemas
formais do Direito e a própria ordem vital, ficando a teoria jurídica com a função social de se estabelecer para a paz, a paz do bem-estar social, na manutenção de
uma vida a mais agradável possível.57
4. De todo modo, o Direito Natural baseia-se na própria natureza histórica, social e cultural do homem e, numa visão teleológica, pode ser vista como
uma idéia de justiça fundada na experiência. Vincula-se, pois, ao que diz respeito
aos fundamentos do Direito, isto é, à inclinação do homem de encontrar a legitimidade das normas que lhe são impostas.
É um termo “que não deixa de ter inconvenientes, mas que é insubstituível”58, uma vez que, embora a expressão natural possa designar aquilo que tenha sido produzido no mundo sem intervenção do homem, em sede de adjetivação ao Direito, é melhor atribuir-lhe a acepção natureza social do homem,
haja vista
54 Op. cit., Livro II, Cap. VI, pp. 107-108.
55 Op. cit., Livro I, Cap. VIII, pp. 77-78.
56 Op. cit., Livro I, Cap. VI, pp. 70-71.
57 Tércio Sampaio Ferraz Jr. “Função social da dogmática jurídica”, p. 38 e 45.
58 Miguel Reale. “Fundamentos do Direito”, p. 318 e “Filosofia do Direito”, p. 591, nota 4.
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“la storia del diritto naturale è la storia del rapporto che si istituisce in base ad una tipica concezione della realtà della vita”59 e “se
existe uma natureza social no homem, essa natureza social só poderá existir se obedecer a determinadas condições” e “o princípio
básico em que repousa é formulado pela razão fundada na experiência sensível.”60
No que tange ao caráter teleológico, deve-se advertir que, embora não se possa confundir o Direito Natural com justiça, o certo é que um dos caminhos que
levam o pensador ao jus naturale é a sua insatisfação com a carência de justiça nos
estatutos legais. Cumpre deixar claro, ainda, que
“o sentimento de respeito aos ditames jusnaturalistas e morais é
imanente à pessoa humana e se revela a partir dos primeiros
anos da existência. Embora afins, as duas ordens não se confundem. Mais abrangente, a Moral visa à realização do bem,
enquanto o Direito Natural se coloca em função de um segmento daquele valor: o resguardo das condições fundamentais da
convivência.”61
É bem de ver que, ao se especular sobre a idéia de Direito Natural e as bases
de sua cientificidade, se ele não existisse o Direito se transformaria em “mera arte
de interpretar as leis”62 e isso toca as raízes do jurídico. A questão do Direito Natural
diz respeito “à obrigatoriedade dos preceitos legais, podendo ser resumida na pergunta: por que obriga o direito? É que o problema da validade do direito não se
esgota em seu aspecto formal, prolongando-se naturalmente no sentido de sua validade intrínseca.” 63
Condiz, embora possua diversos matizes expressos em correntes distintas à
convicção de que, além do Direito escrito, haveria uma outra ordem, o que traz à
colação, em determinados momentos históricos, a expressão “eterno retorno ao Direito Natural”, na tentativa de se responder que “questo eterno ritorno risponde
sempre al richiamo de una esigenza culturale, di una filosofia e di una ideologia
politica che svolgono, o si fanno valere in quanto svolgono, il tema fondamentale della liberazione dell’uomo”64.
59 Giacomo Perticone. “Diritto Naturale (teoria moderna)” In: “Nuovissimo Digesto Italiano”, v. IV, p. 954.
60 A. Machado Paupério. “Introdução à Ciência do Direito”, p. 61.
61 Paulo Nader. “Filosofia do Direito”, p. 156-57.
62 Alexandre Correia. “Direito natural” In: “Enciclopédia Saraiva do Direito”, p. 368.
63 Plauto Faraco de Azevedo. “Permanência e relevância do Direito Natural. O justo natural aristotélico”, p. 51.
64 Giacomo Perticone. Op. cit., p. 955.
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De maneira que
“pode-se negar que seja expressão da ‘natureza humana’, pode-se
não acreditar que seja a manifestação humana da lex aeterna,
pode-se não considerar como direito no sentido técnico do vocábulo, pode-se admitir a variabilidade de seu conteúdo, porém não se
pode negar que foi em seu nome que no passado da Civilização
Européia se fizeram grandes reformas sociais...Chamem-no como
quiserem: direito natural, direito racional, direito vivo, direito social, direito inoficial, direito espontâneo ou simplesmente justiça,
não se pode negar a sua existência, a sua validade, a sua pressão
social.”65
Na atualidade seu estudo tem importância, pois, como afirma Miguel Reale,
“o drama da sociedade contemporânea, sequiosa de apoio em valores permanentes, põe em relevo um ponto essencial, realçado
desde Aristóteles até Cícero, e herdado por tradição relevante da
civilização ocidental, de que natura juris ab hominis repetenda
est natura. O que significa que, quando está em causa o problema
do homem, põe-se, concomitantemente, com mais urgência, a indagação dos fundamentos do Direito, e vice-versa.”66
A sua compreensão transcendental-axiológica do Direito Natural resulta
da constatação de que o homem, no processo histórico da humanidade, vai tomando
consciência de determinados valores fundamentais, como, por exemplo, o da inviolabilidade da pessoa humana, os quais, uma vez trazidos à luz da consciência histórica, são considerados intangíveis, não se confundindo, ressalte-se desde já, com a
idéia (na transição entre o Direito Natural moderno e o contemporâneo) de “natureza das coisas”, no sentido de descobrimento de elementos objetivos para colmatação
de eventuais lacunas no sistema jurídico (tendo em vista os ideais de justiça e utilidade
comum que o legislador teria perseguido)67, pois “representa apenas um dos aspectos
das condicionantes axiológicas da realidade jurídica, não se justificando a sinonímia que, às vezes, se estabelece entre uma e outra idéia.”68
Prende-se à concepção de que o Direito é uma realidade histórico-cultural
que se constitui e se desenvolve em função de exigências inelimináveis da vida hu65 Paulo Dourado de Gusmão. “Introdução à Teoria do Direito”, pp. 44-45.
66 “Raízes do Direito Natural” In: “Direito Natural e Direito Positivo”, p. 3.
67 Eduardo Garcia Maynez. “Introduccion al estudio del Derecho”, p. 345.
68 “Raízes do Direito Natural” In: “Direito Natural e Direito Positivo”, p. 12.
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mana, examinando-se as condições não apenas lógicas de seu estudo, mas também
éticas e históricas, vendo-o como Experiência.
Nesse sentido, é bem de ver que
“à medida que o homem vai elaborando ou aperfeiçoando a sua
experiência estimativa, vai-se formando, como horizonte da sociedade civil, uma sucessão de ‘constelações axiológicas’ que, embora oriundas do espírito subjetivo, adquirem força objetiva e transpessoal, exercendo pressão, como modelos ou arquétipos, sobre as
subjetividades individuais, assim como sobre os grupos, as comunidades e as nações.”69
Vincula-se à sua teoria tridimensional específica, dinâmica e concreta,
pela qual o Direito é fato histórico-cultural, como produto da vida humana objetivada, isto é, o factum do homem se integra normativamente no sentido de certos valores. O mundo cultural é expressão de ‘intencionalidades objetivadas’ do
homem, na sua ‘possibilidade de atuação infinita e livre’, onde cada bem cultural
possui uma natureza binária: ‘são’ enquanto ‘devem ser’, (‘realidades’ referidas a
‘valores’), e, em razão disso, existem tão-somente na medida em que valem para
algo. A par disso, o Direito é uma expressão do viver, do conviver do homem, sendo impossível, nesta integração tridimensional, reduzir-se a um ordenamento lógico-formal.
Lançado sob um ângulo ético, ou da praxis, põe-se como objetivação histórica, em termos de experiência axiológica ou histórico-cultural, cuja denominação
mais precisa é ‘historicismo axiológico’. E pensar o homem nesse processus de implicação-polaridade significa estabelecer que ele ‘é enquanto deve ser’.70
Acrescente-se que, o seu culturalismo acentua um alto grau personalista (a
pessoa como valor fonte de todos os valores), conferindo-lhe um caráter mais
objetivo e prático, pois a pessoa é concebida como ser concreto (individual e socialmente) guiado pelo seu dever-ser (componente ético).
O normativismo jurídico de Miguel Reale, como expressão da correlação
dialética entre fato, valor e norma, em cada manifestação jurídica concreta diz
respeito ao marco do Direito Positivo. Diante disso, “o Direito Natural tem sempre
um sentido de universalidade, que nós podemos apenas pensar, mas não conhecer:
Há, em suma, uma idéia e não um conceito de Direito Natural, como o horizonte
metafísico da positividade jurídica.” 71
Nota-se que, como diz Perticone, mutatis mutandis,
69 Idem, ibidem, p. 11.
70 “Teoria tridimensional do Direito”, p. 79-80.
71 Miguel Reale. “Historicismo Axiológico e Direito Natural” In: “Nova fase do Direito Moderno”, p. 48.
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“il diritto naturale, nella sua universalità simbolica, non è diritto
astorico; i suoi principi e fini sono principi e fini di un sistema,
non sono concepibili al di fuori di un sistema compiuto di comandi e autocomandi, che si riassumono, ma non si resolvono in quello...in altri termini, i principi della personalità, libertà, solidarietà, ecc., non sono principi astratti, ma storici, che già implicano e
portano in se una determinata storica visione del mondo e della
vita associata, un complesso sistematico di soluzioni. Questo è il
punto sempre vitale e la funzione sempre attuale del diritto di natura...Questa presenza operosa di principi, definiti storicamente e
dottrinalmente como adeguati a un determinato ordine positivo o
ideale, è presenza, azione e ragione del diritto naturale.”72
E, nessa linha, sua função é a de estabelecer pontos de sustentação em que
“La concezione di una legge naturale si giustifica con l’esigenza stessa di portare
nella dottrina dello Stato e del diritto il valore originale e fondamentale della persona umana e di collocare questo valore al vertice di tutto il sistema”73.
Embasa-se Miguel Reale, diante de todo o exposto, num historicismo-culturalaxiológico pensado como um processus de autoconsciência, ao confundir-se com a
procura permanente da verdade, ao fazer com que se descubram certos valores enquanto aquisições históricas, definitivas na idéia de invariantes axiológicas,
como valores fundamentais ou fins a serem atingidos (vida, liberdade, igualdade, participação etc.) e servindo, assim, como fontes permanentes de legitimação da conduta humana, ao mesmo tempo em que traçam limites à intervenção do poder do Estado.74
4.
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72 “Diritto Naturale (teoria moderna)” In: “Nuovissimo Digesto Italiano”, v. IV, p. 956.
73 Idem, ibidem, p. 955.
74 Miguel Reale. “A pessoa humana e a proteção da subjetividade” In: “Direito Natural e Direito Positivo”, p. 19;
“Universalidade da Cultura” In: “Cinco temas do culturalismo”, p. 23.
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ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA FUNDAMENTAÇÃO
DAS DECISÕES JUDICIAIS NO BRASIL
1
Rogerio Bellentani Zavarize
Mestre em Direito pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru.
Especializado em Direito Civil e Processual Civil pela UNIARA/INPG.
Juiz de Direito no Estado de São Paulo (Segunda Vara Judicial de Novo Horizonte).
Ex-Professor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito de Catanduva.
1.
INTRODUÇÃO
A atividade jurisdicional, característica do Estado Democrático de Direito, não é
arbitrária, mas vinculada ao ordenamento jurídico existente, e o dever de fundamentar
as decisões, que abrange todo o Poder Judiciário, ganha elevada importância, porque
demonstrará aos litigantes – vencedor e vencido – bem como a quem possa se interessar, os motivos pelos quais o Estado-Juiz tomou determinada decisão.
A fundamentação das decisões encontra-se atualmente prevista pela Constituição Federal, in verbis:
“Art. 93...
IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade,
podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em
1 Texto elaborado tendo por base Dissertação de Mestrado do autor, apresentada no programa de Pós-Graduação
da Instituição Toledo de Ensino de Bauru, sob orientação do Prof. Dr. Olavo de Oliveira Neto.
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412
determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes.”2
O presente trabalho traz o estudo histórico da fundamentação das decisões,
nos diversos diplomas legais brasileiros, enfocando o direito processual civil. Desde
logo, saliente-se que apenas na Constituição Federal de 1.988 a fundamentação das
decisões ganhou foro constitucional, enquanto, na legislação ordinária, sempre esteve presente, desde o direito lusitano.
2.
CONSTITUIÇÕES ANTERIORES
As Constituições brasileiras anteriores à de 1.988 não trouxeram expressa previsão do princípio da fundamentação das decisões judiciais.
O fato já havia levado alguns juristas a se manifestar sobre a omissão e a defenderem a inclusão de expresso dispositivo, consagrador da garantia.
Pode-se citar, em tal linha, a conclusão de José Rogério Cruz e Tucci, em obra
específica sobre a motivação, publicada em 1.987, em que afirma a necessidade “urgente” de o dever de fundamentação adquirir dignidade constitucional, complementando a legislação vigente e impedindo a adoção de normas ordinárias que venham suprimir o princípio3.
O texto escrito por José Carlos Barbosa Moreira, em 1.978, consagrado na
doutrina nas referências ao princípio da motivação, espelha a preocupação do jurista, que defendia a necessária inclusão de dispositivo na reforma da Constituição Federal, como a única forma de preservar-lhe a invulnerabilidade:
“No aspecto particular de que trata o presente trabalho, é nossa convicção que o princípio da motivação obrigatória das decisões judiciais, por espelhar garantia inerente ao Estado de Direito, merece
consagração expressa em eventual reformulação da Lei Maior.”4
Porém, há posições importantes no sentido de que a fundamentação das decisões se expressa como manifestação, e, portanto, garantia, do Estado de Direito,
antes mesmo do advento da norma expressa da Constituição5.
2 O Projeto de Emenda à Constituição nº 29/2000 (Reforma do Judiciário), em trâmite no Congresso Nacional quando da elaboração do presente trabalho, altera o inciso IX do art. 93 da Constituição Federal apenas na parte relativa à publicidade, mantendo íntegra a redação pertinente à motivação.
3 A motivação da sentença no processo civil, p. 153.
4 A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao estado de direito. Temas de direito processual,
2ª série, p. 94.
5 Nelson Nery Júnior, Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 173.
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413
Também não falta quem atribua a origem da fundamentação das decisões à garantia do devido processo legal6.
3.
A LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL
Como a fundamentação das decisões se trata de garantia ligada ao direito processual, importa ao presente estudo verificar os antecedentes históricos da legislação processual no Brasil, mormente a civil, por força da delimitação do tema do trabalho.
Nos primeiros tempos, vigoravam normas emanadas da Coroa Portuguesa,
que se aplicavam ao território brasileiro.
A garantia à fundamentação das decisões judiciais sempre esteve presente,
desde as ordenações portuguesas aqui aplicadas, ainda que o assunto fosse abordado, com ênfase, no aspecto do dever do juiz em motivar, e nem tanto no aspecto da
garantia que o princípio proporcionava às partes.
É possível enumerar, basicamente, os seguintes tópicos principais, para o estudo específico da evolução da garantia no Brasil:
a) O direito lusitano e as ordenações
b) O Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1.850
c) A Constituição de 1.891 e os Códigos Estaduais
d) O Código de Processo Civil de 1.939
e) O Código de Processo Civil de 1.973
f ) O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e a argüição de relevância da questão federal
3.1. O direito lusitano e as ordenações
Ao tempo do Brasil Colônia, havia a influência do direito português. Por vezes, se observa a análise histórica a partir das chamadas Ordenações Filipinas, consideradas as mais importantes por Sérgio Nojiri7.
Outros autores também iniciam o estudo histórico a partir das Ordenações Filipinas, como José Carlos Barbosa Moreira8, Nelson Nery Júnior9 e José Augusto Delgado10.
Em dissertação de Mestrado sobre o mesmo tema, Maria Thereza Gonçalves
Pero também afirmou que a obrigatoriedade de motivar as sentenças é tradição des6 Carlos Mário da Silva Velloso, Temas de direito público, p. 231.
7 O dever de fundamentar as decisões judiciais, p. 28.
8 A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao estado de direito. Temas de direito processual,
2ª série, p. 85.
9 Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 174.
10 A sentença judicial e a Constituição de 1.988, Revista de processo nº 61, p. 62.
414
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de o Código Filipino11. Outros, porém fazem menção, ainda que sumária, às Ordenações Afonsinas e Manuelinas12.
Compreende-se a preferência em tratar do direito positivo a partir das Ordenações Filipinas: foi como a independência brasileira encontrou o País13.
Em 1.521, sob o reinado de Dom Manuel, surgiram as Ordenações Manuelinas, perdurando até 1.603. As Ordenações Manuelinas previam que os juízes deveriam motivar suas decisões, no título Das sentenças definitivas, e, demonstrando
preocupação, traziam o seguinte texto:
“Mandamos, que daqui por diante todos os Nossos Desembarguadores, Corregedores das Comarcas, e todos os Ouvidores, e Juizes de
Fora, posto que cada huu dos sobreditos Letrados nom sejam, e quesquer outros Julguadores, que Letrados forem, que sentenças definitivas poserem, declarem em suas sentenças (assi na primeira instancia,
como na causa d’apellaçam, ou agravo, ou na causa da revista) a
causa, ou causas, per que se fundam a condenar, ou absolver, ou a
confirmar, ou revoguar, dizendo especificamente o que he, que se prova, e por que causas do feito se fundam a darem suas sentenças”.
As mesmas Ordenações ainda explicitavam que aquele dever de motivação tinha por objetivo, além de proporcionar às partes o conhecimento das causas de decidir, permitir que os magistrados de superior instância compreendessem os fundamentos da decisão recorrida. Dispunha o dispositivo 3.50.6, in verbis, “...e assi também quando appellassem, ou agravassem, os Juizes da moor alçada sentiriam milhor
os fundamentos, que os Juizes inferiores tiveram.”
Nota-se que a explicitação da época era bem acentuada. As próprias Ordenações já eram bem explicativas, esclarecendo que aquela obrigação se estendia a todos os magistrados, de todas as alçadas, e ainda definia os objetivos, dos quais os
principais eram proporcionar às partes o conhecimento das razões da decisão e permitir que os magistrados da maior (moor, no texto) alçada sentissem melhor os fundamentos adotados.
Não havia, na época, a previsão para a nulidade da decisão imotivada, como
ocorre no direito atual.
Na verdade, embora não se falasse, à época, da fundamentação das decisões
como garantia do processo, percebe-se uma nítida preocupação em proporcionar às
partes o conhecimento das razões do julgamento.
11 A motivação da sentença civil, p. 16.
12 Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo,
p. 93; Pedro Barbosa Ribeiro, Estudos de direito processual civil, 1º Volume, p. 72.
13 Humberto Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil. Vol. I, p. 13.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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415
As Ordenações Filipinas foram promulgadas em 11 de janeiro de 1.603, pelo
rei Felipe II de Portugal. Tais Ordenações são verdadeiros marcos teóricos do processo civil pátrio, já que o processo era dividido nas fases postulatória, instrutória,
decisória e executória. Ao lado do procedimento ordinário, existia o sumário, menos formal, e os procedimentos especiais, para, por exemplo, ações possessórias e
de despejo14.
As Ordenações Filipinas, que vigoraram até o advento do Regulamento nº 737,
de 25 de novembro de 1.850, também tratavam do tema, em capítulo denominado
Das sentenças diffinitivas, item 3.66.7, in verbis:
“E, para as partes saberem se lhes convém appellar, ou aggravar
das sentenças diffinitivas, ou vir com embargos a ellas, e os Juizes da mor alçada entenderem melhos os fundamentos, por que
os Juizes inferiores se movem a condenar, ou absolver, madamos
que todos nossos Desembargadores, e quaesquer outros Julgadores, ora sejam Letrados, ora o não sejam, decclarem specificamente em suas sentenças diffinitivas, assim na primeira instancia, como no caso da appellação, ou aggravo, ou revista, as causas, em que se fundaram a condenar, ou absolver, ou a confirmar, ou revogar”.
Após a proclamação da independência, em 1.822, o direito processual civil
continuou a ser regido pelas Ordenações Filipinas, até o advento do Regulamento
nº 737, de 25 de novembro de 1.850.
3.2. O Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1.850
O Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1.850, foi editado em seqüência ao Código Comercial, destinando-se a disciplinar o procedimento das causas comerciais.
Era a primeira legislação pátria que dispunha sobre a motivação das decisões15,
quando, em seu art. 232, dispunha, in verbis:
“A sentença deve ser clara, sumariando o juiz o pedido e a contestação com os fundamentos respectivos, motivando com precisão o
seu julgado, e declarando sob sua responsabilidade a lei, uso ou
estylo em que se funda”.
14 Moacyr Amaral Santos, Primeiras linhas de direito processual civil, Vol. 1, p. 51.
15 José Rogério Cruz e Tucci, A motivação da sentença no processo civil, p. 56.
416
faculdade de direito de bauru
Sérgio Nojiri trata o Regulamento nº 737 como o primeiro ato legislativo genuinamente nacional que prevê a fundamentação das decisões judiciais16.
Seguiram-se disposições legais cuidando da fundamentação das decisões.
Antes, é importante mencionar que após o regramento do Regulamento nº 737,
seguiu-se a Constituição de 1.891 com os Códigos Estaduais, sendo que alguns
Estados demoraram a elaborar os seus, e o Regulamento nº 737 continuou a vigorar até então.
O Decreto nº 763, de 19 de setembro de 1.890, do Governo Provisório da
República, mandava aplicar às causas cíveis o teor do Regulamento nº 737, continuando a reger-se pelas Ordenações os processos que não fossem disciplinados pelo Regulamento, como eram alguns procedimentos especiais e os de jurisdição voluntária.
O Decreto nº 5.561, de 1.905, regulamentou a Lei nº 1.338, do mesmo ano. O
Decreto determinava que se considerasse não fundamentado e nulo o acórdão, a
sentença ou o despacho que se reportasse às alegações das partes ou mesmo a outro ato decisório.
Posteriormente, o Decreto nº 9.263, de 28 de dezembro de 1.911, em seu art.
259, expressamente permitiu que o acórdão confirmasse a sentença por seus próprios fundamentos, deixando de haver a nulidade proclamada pelo Decreto nº
5.561, de 1.905.
3.3. A Constituição de 1.891 e os Códigos Estaduais
A Constituição da República de 1.891, primeira após a proclamação da República, permitiu aos Estados membros a edição de normas processuais.
Alguns Códigos Estaduais transcreveram o dispositivo contido no Regulamento nº 737, sobre a fundamentação das decisões.
Sobre o aproveitamento do Regulamento nº 737, Sérgio Bermudes alude ao
fato de que os Estados estavam despreparados para tal tarefa legislativa, tanto que
alguns Estados demoraram a editar seus Códigos, como foi o caso de São Paulo, que
somente o promulgou em 1.93017.
Em alguns Estados, a legislação local foi além. Nos Código de Processo de Minas Gerais e de Pernambuco, “divagações científicas ou inúteis” não deveriam constar das sentenças (respectivamente arts. 382 e 388).
Outros Códigos já cominavam a pena de nulidade para as sentenças que não
fossem motivadas. Em tal sentido, o de São Paulo (art. 333), o do Paraná (art. 231)
e o de Santa Catarina (art. 794).
16 Sérgio Nojiri, O dever de fundamentar as decisões judiciais, p. 28.
17 Introdução ao processo civil, p. 217.
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3.4. O Código de Processo Civil de 1.939
O período da dualidade processual, com os códigos estaduais, se encerrou
com o Código de Processo Civil promulgado pelo Decreto-lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1.939, de abrangência nacional. O código foi editado já sob a égide da
Constituição Federal de 1.937, que previa a unidade legislativa em matéria processual, a cargo da União.
Amaral Santos afirma que o código possuía virtudes, como adoção de modernas doutrinas que tomavam o processo como instrumento do Estado no desempenho da função jurisdicional, mas também defeitos, porque não conseguiu melhorar
a justiça brasileira18.
Ao tratar da sentença, o código exigia clareza e precisão, contendo o relatório,
os fundamentos de fato e de direito, e a decisão (art. 280, incisos I a III).
Não estava cominada a pena de nulidade, em norma expressa, para o caso de
ausência de motivação da sentença, mas assim se admitia, pois caso contrário, a sentença não comporia a lide com justiça, já havendo posicionamentos doutrinários no
sentido de atribuir natureza de ordem pública ao preceito da motivação19.
Por fim, há aspecto interessante a ser anotado. No sistema do Código de Processo Civil de 1.939, os motivos da sentença faziam coisa julgada, por força do disposto no parágrafo único do seu art. 287, que dispunha, in verbis: “Considerar-seão decididas todas as questões que constituam premissa da conclusão”. O ponto difere do atual código, que prevê expressamente o sentido inverso (art. 469, I a III, do
Código de Processo Civil de 1.973).
3.5. O Código de Processo Civil de 1.973
O Código de Processo Civil atual, promulgado pela Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1.973, continuou a adotar a obrigatoriedade da motivação das decisões, explicitando em diversos dispositivos o teor do princípio.
O art. 131 trata da livre apreciação da prova, com a necessária indicação dos motivos que levaram o juiz a formar determinado convencimento; o art. 165 afirma que as
sentenças e os acórdãos serão proferidos com observância do disposto no art. 458, sendo que as demais decisões também serão motivadas, ainda que concisamente.
O art. 458 e seus incisos tratam dos requisitos essenciais da sentença, elencando, no inciso II, a exigência dos fundamentos.
Nota-se que ao dispor sobre os requisitos20 da sentença, o Código os chama
de essenciais, dizendo que a ausência de qualquer deles compromete o ato.
18 Moacyr Amaral Santos, Primeiras linhas de direito processual civil, Vol. 1, p. 56.
19 José Rogério Cruz e Tucci, A motivação da sentença no processo civil, p. 62.
20 Elementos, na realidade.
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3.6. O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e argüição
de relevância da questão federal
Já vigente o Código de Processo Civil, e antes do advento da Constituição Federal de 1.988, a Emenda Regimental nº 3, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, datada de 12 de junho de 1.975, criou o instituto da argüição de relevância da questão federal.
Na apreciação, a sessão era secreta e dispensava motivação, sendo que da ata
da sessão que se publicava, constava apenas a relação das argüições acolhidas e daquelas rejeitadas (Regimento interno, art. 308, §4º, VIII e IX).
Muito embora não houvesse, ainda, expressa previsão constitucional da obrigatoriedade da fundamentação das decisões, somente advinda em 1.988, a argüição
de relevância da questão federal foi taxada de inconstitucional naquela época.
Justificou-se o entendimento no fato de o dever de motivação ser deduzido
do art. 153, §4º, da Constituição Federal de 1.967, como desdobramento do direito
de ação; e também porque a competência do Supremo Tribunal Federal para disciplinar o processamento dos julgamentos não o autorizaria a fugir aos princípios consagrados na legislação processual comum, entre os quais o dever de fundamentação,
já constante do art. 458, II, do Código de Processo Civil em vigor21.
4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise histórica do instituto da fundamentação das decisões judiciais demonstra que ele foi tratado, por diversas legislações, de origens diversas e momentos políticos distintos, mas nunca deixou de ser referido no direito positivo.
Sérgio Nojiri consignou, em seu trabalho, que a obrigação à motivação foi
além da tradição histórica, sendo sempre regra impositiva do ordenamento jurídico
positivo, desde o nascimento do País22.
Também já se disse se tratar de “norma antiga do direito processual ordinário”
que ganhou posição constitucional23.
Pode-se dizer, assim, que a existência da fundamentação das decisões judiciais, em que pese ter encontrado amparo constitucional apenas em 1.988, é verdadeira tradição no ordenamento jurídico brasileiro, o que fornece valioso conteúdo
para o prosseguimento do estudo, que segue com a análise dos aspectos essenciais
do princípio da fundamentação das decisões.
21 José Carlos Barbosa Moreira, A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao estado de direito.
Temas de direito processual, 2ª série, p. 93.
22 Sérgio Nojiri, O dever de fundamentar as decisões judiciais, p. 30.
23 Celso Agrícola Barbi, Garantias constitucionais processuais. RT 659/11.
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419
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBI, Celso Agrícola. Garantias constitucionais processuais. Revista dos Tribunais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, nº 659, p. 09, set., 1990.
BERMUDES, Sérgio. Introdução ao processo civil. 3ª ed., revista e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2002.CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini;
DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo, 9ª Ed., São Paulo: Malheiros, 1993.
DELGADO, José Augusto. A sentença judicial e a Constituição de 1988. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 61, p. 57, jan./mar., 1991.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao estado de direito. Temas de direito processual,: segunda série. São Paulo: Saraiva, 1980.
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6ª Ed., revista,
ampliada e atualizada, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
NOJIRI, Sérgio. O dever de fundamentar as decisões judiciais. 2ª Ed., São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000.
PERO, Maria Thereza Gonçalves. A motivação da sentença civil. São Paulo: Saraiva, 2001.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. Vol. 1: 21 ed., rev. e
atual. por Aricê Moacyr Amaral Santos. São Paulo: Saraiva, 1999.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I, 37ª Ed., Rio de
Janeiro: Forense, 2001.
TUCCI, José Rogério Cruz e. A motivação da sentença no processo civil. São Paulo: Saraiva,
1987.
VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Temas de direito público. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.
inclusão social
“direito das minorias”
PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA E O DILEMA DO
ESTADO MODERNO: PARTICIPAÇÃO OU EXCLUSÃO
Lafayette Pozzoli
[email protected]
Advogado,
Pós-doutorado em Filosofia do Direito e do Estado na Universidade de Roma “La Sapienza”, Itália,
Doutor e Mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC/SP,
Membro da Comissão da Pessoa Portadora de Deficiência e do
Tribunal de Ética Deontológico TED-1, da OAB/SP,
Sócio efetivo do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo,
Professor na Faculdade de Direito da PUC/SP e na Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha,
Consultor avaliador do INEP (MEC) para Cursos Jurídicos;
foi Professor Assistente no Curso de TGD ministrado pelo saudoso
Professor André Franco Montoro - Pós-Graduação PUC/SP,
foi Consultor Internacional em Legislação para pessoa portadora
de deficiência pela OIT Organização Internacional do Trabalho.
Olney Queiroz Assis
[email protected]
Advogado,
Professor na Universidade São Francisco, na Faculdade Damásio de
Jesus e no Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET;
Mestre e Doutor pela PUC/SP em Filosofia do Direito e do Estado;
Diretor Presidente do Instituto de Defesa do Consumidor – Multicon;
Membro da Comissão da Pessoa Portadora de Deficiência da OAB/SP;
Diretor do Instituto Tridimensão, Campo Grande – Mato Grosso do Sul.
faculdade de direito de bauru
424
1.
INTRODUÇÃO
A caracterização da cidadania da pessoa portadora de deficiência decorre da
sua própria dignidade humana e, de forma concreta, pelo fato da mesma estar inserida no contexto social. A Organização Mundial da Saúde (agência de execução da
ONU) afirma que cada país tem 10% (dez por cento) da sua população composta de
pessoas portadoras de deficiência. Aliás, um motivo suficiente para colocar o Estado
originariamente na obrigação de dispensar um tratamento tão igual quanto dispensa aos demais membros da sociedade, isto porque se trata de pessoas que têm direitos a ter direitos, qualquer que seja sua idade, crença ou convicção política.
Sabemos que as guerras são fatos geradores de grandes transtornos para as
pessoas e que desembocam normalmente numa deficiência física, mental ou sensorial. No entanto, deve ser lembrado que a deficiência não é um fato de nossos dias,
nem é de nossos dias o sentimento contraditório que fez sociedades ao longo da
história buscarem para a pessoa portadora de deficiência alguma culpa humana.
Na verdade, as pessoas portadoras de deficiência compõem um segmento da
sociedade tantas vezes marginalizado pela vida e pela injustiça social, para o qual geralmente lança-se, sem perceber, o olhar desatento de homem são ou até cheio de
perversidade, reconhecendo-as como seres humanos e, sem a menor cerimônia,
muitas vezes, ignorando-as como cidadãs.
Entretanto, a maior dificuldade nem sempre ocorre pela ausência do exercício da cidadania, cujo pressuposto é a consciência da pessoa. Muitas vezes o dilema
é até mesmo para nascer e sobreviver, pois políticas governamentais, fundadas no
binômio do custo-benefício, acabam por realizar um cálculo econômico considerado demasiado para o Estado, ou diante de suas outras prioridades.
Tendo como referencial o acima estudado, analisaremos um caso concreto,
ocorrido nos Estados Unidos da América e passível de ser revivido em qualquer outro país. Da mesma forma será analisado o direito como função promocional da pessoa humana, considerando o seguimento da pessoas portadoras de deficiência.
2.
DILEMA DOS EUA
A conquista da cidadania, por parte dos portadores de deficiência de diversos
países do mundo, tem merecido elogios dos profissionais do direito. Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, por exemplo, destaca os EUA ao relatar que
“o cuidado e a atenção ao deficiente nos EUA é um dos primeiros
fatos a impressionar qualquer visitante. Face a todas as facilidades
colocadas a seu alcance, os americanos portadores de deficiência
participam efetivamente da vida da comunidade. Estão em todos
os lugares, nas ruas, nas universidades, no mercado de trabalho,
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nas competições esportivas, nos cinemas. Enfim, na sociedade
americana moderna, o portador de deficiência rejeitou as amarras medievais e o medo de se mostrar em público.”3
No plano legislativo norte-americano, a tutela do portador de deficiência se intensifica a partir da década de 1960 quando o American National Standards Instituto (ANSI) edita, em 1961, o primeiro regulamento fixando requisitos mínimos sobre o acesso de pessoas portadoras de deficiência a edifícios públicos. Em 1968 surge a primeira lei federal com o propósito de tornarem acessíveis os prédios de repartições federais às pessoas portadoras de deficiência (Architectural Barriers Act,
1968). Merecem destaques outros diplomas normativos: o que proíbe a discriminação no trabalho (Rehabilitation Act,1973); o que garante o direito à educação às
crianças portadoras de deficiência (Education for All Handicapped Children,
1975), o que garante o direito ao trabalho e à assistência médica (Developmental Disabilities Assistance and Bill of Rights Act, 1976).
A evolução legislativa concernente aos direitos dos portadores de deficiência
é uma tendência mundial e não apenas da sociedade norte-americana. Contudo,
Luiz Alberto David Araujo4 observa que a legislação, ao garantir os direitos das pessoas portadoras de deficiência, coloca em evidência suas contradições e seus conflitos, diante de determinados problemas que atingem a população pobre, como a miséria, a fome, a desnutrição infantil, a falta de moradia e de atendimento médico.
Existem situações que constituem causas para o nascimento de crianças portadoras de deficiência, razão pela qual a deficiência exige ações preventivas, especialmente nas áreas da alimentação e da saúde pública. Além disso, a deficiência exige a presença ostensiva do Estado na concessão de auxílio financeiro às famílias necessitadas. O nascimento de uma criança portadora de deficiência em uma família
pobre ou a aquisição de uma deficiência, ainda que temporária, por um membro
dessa família, gera dificuldades incomensuráveis, em virtude dos cuidados que a
pessoa portadora de deficiência exige e da falta de recursos para despesas com remédios, hospitais e locomoção.
Assim, a deficiência, congênita ou adquirida, em maior ou menor grau, é um
problema que atinge todas as classes sociais em todos os países do mundo e isso
exige dos governos investimentos em prevenção e atendimento especializado. Também é um fato que os governos (inclusive o dos EUA) têm dificuldades para lidar
com a deficiência, especialmente quando o atingido é de família pobre, posto que
isto exige auxílio financeiro do Estado.
As estatísticas demonstram que nos EUA o número de crianças portadoras de
deficiência cresce ao ritmo de 25 mil ao ano. Dentre estes, um quarto corresponde
3 Artigo in Revista Advocacia Pública & Sociedade, p. 21.
4 Luiz Alberto David Araujo. A Proteção Constitucional das Pessoas Portadoras de Deficiência, p. 12.
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a deficientes graves. Isso implica subvenções para as famílias, mediante auxílios públicos que alcançam a cifra de 10 bilhões de dólares ao ano.5
A respeito desses números, o Senador Lowell P. Weicker Jr em Relatório ao Senado dos EUA, faz as seguintes observações:
“As maiores implicações destas estatísticas são que os órgãos públicos e contribuintes gastarão bilhões de dólares no período de vida
destes indivíduos para mantê-los em estado de dependência e com
padrões de vida de adequação mínima. Muitos poderão tornar-se
cidadãos produtivos, contribuindo para a sociedade em vez de serem forçados a se manterem como sobrecarga.”6
Percebe-se, nas palavras do Senador, uma preocupação acentuada com o cálculo econômico estatal. Com essa visão, os portadores de deficiência constituem um
problema para o Estado, especialmente aqueles que não estão inseridos numa atividade produtiva.
3.
CASO “BEBÊ X”
Babies Doe é uma referência a um processo que provocou expectativas nos
Estados Unidos e repercutiu nos países europeus. Baby Doe significa Bebê X, refere-se a uma criança nascida em 1982, que apresentava mongolismo e malformação
intestinal. O médico pediatra propôs aos pais a alternativa de não operá-la e deixála morrer, assegurando-lhe, contudo, todos os cuidados e confortos. Os pais aceitaram e a criança morreu.
Um funcionário do hospital noticiou o fato à Associação Nacional pelo Direito à Vida (National Right to Life Association - NRLA) e esta propôs uma ação contra
o médico e os pais da criança. O Tribunal decidiu que naquelas circunstâncias o
abandono clínico não implicava uma conduta contrária ao direito e decidiu a favor
do médico e dos pais da criança. Entretanto, com fundamento no direito à vida, a
NRLA pressionou o governo norte-americano no sentido de não permitir o abandono clínico de recém-nascidos com deficiência.
Movido pela pressão da NRLA, o Presidente da República (na época Ronald
Reagan) ordenou ao Departamento Federal de Saúde para não dar subvenções aos
hospitais que não assegurassem uma reanimação intensiva a todo bebê nascido vivo.
Também pressionado pela campanha da NRLA, em 1984 o Congresso aprova lei que
impõe atendimento terapêutico sistemático, isto é, obriga os hospitais a utilizar os
5 Condamnés à Survivre, texto de Anne-Marie Casteret fornecido pela PUC-SP/COGEAE – Departamento de Françês.
6 Citado por Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, in Revista Advocacia Pública & Sociedade, p. 22.
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meios técnicos disponíveis para manter os recém-nascidos vivos, salvo se o tratamento for inútil ou desumano. As crianças que sobreviveram em virtude da aplicação dessa nova política, foram denominadas superpreemies pela imprensa norteamericana.
Passados dezesseis anos, Mark Hunter7, numa série de artigos para a revista
The American, onde retrata a difícil vida das famílias daquelas crianças, revela a amplitude e a consequência do fato. Relata que 250 mil jovens, cerca de dois terços daqueles que a imprensa batizou de superpreemies, padecem, hoje, de graves problemas: paralisias, deficiências auditivas e visuais, afecções pulmonares ou digestivas
crônicas, deficiências intelectuais.
Segundo Mark Hunter, em 1996, os republicanos – que aprovaram a Lei “Bebê
X” em 1984 – decidiram reduzir drasticamente os auxílios públicos às pessoas portadoras de deficiência. Calculam que os cuidados intensificados dispensados às
crianças custam 2,5 bilhões de dólares ao ano que, somados às demais despesas
concernentes à sobrevivência daquelas crianças, elevam os custos a 10 bilhões ao
ano. Diante dessas informações econômicas, o Estado decidiu subvencionar somente as crianças atingidas por deficiências agudas.
Atualmente nos Estados Unidos, os hospitais e médicos aplicam rigorosamente a Lei “Bebê X”, razão pela qual o número de superpreemies cresce ao ritmo de 25
mil ao ano. Dentre estes, um quarto corresponde a deficiências graves e mais da metade sofrerão de seqüelas classificadas como moderadas.
Mark Hunter revela que, ao conversar com uma mãe, cujo filho é considerado
portador de uma deficiência moderada, constatou que o menino é portador de deficiência mental média, enxerga muito mal e tem hidrocefalia crônica. Portanto, mesmo a deficiência considerada moderada exige cuidados e gastos que muitas famílias
não podem suportar sem a ajuda do Estado.
Como se nota, não obstante os avanços legislativos e tecnológicos, os Estados
Unidos, como qualquer outro país capitalista, também estão inseridos em um mundo paradoxal do excesso e da escassez que é, ao mesmo tempo, barbárie e civilização. A imensa concentração de riqueza é suficiente para sustentar o luxo desmedido de uma classe de afortunados e financiar formas catastróficas de desperdício
como: as aventuras imperialistas, as guerras, a contaminação ecológica, a destruição
da natureza. No entanto, o Estado não é suficiente para atender às crianças portadoras de deficiência. O abandono (clínico ou financeiro) dessas crianças implica uma
política estatal de extermínio e exclusão levada a cabo pela maior potência do planeta. Evidentemente, essa política tem alcance mundial, posto que “o cuidado e a
atenção que os EUA dedicam às pessoas portadoras de deficiência” têm servido de
paradigma para nortear a legislação e as ações dos governos de outros países.
7 Citação de Anne-Marie Casteret, in Condamnés à Survivre.
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4.
DILEMA DOS ESPECIALISTAS
A evolução legislativa e as conquistas da medicina colocam em evidência um
dilema da consciência, acentuado com o processo “Bebê X”, que diz respeito à proteção da vida e à inserção social da pessoa portadora de deficiência. Vale dizer, existe a proteção jurídica e a medicina dispõe dos meios técnicos para manter os recémnascidos vivos; mas, como diz o Senador norte-americano, essas pessoas podem ser
uma sobrecarga para a família, a sociedade e o Estado, razão pela qual muitas pessoas são partidárias do abandono clínico. Com outras palavras, entendem que as
crianças portadoras de deficiência devem ser abandonadas para morrer.
Problemas decorrentes da deficiência se alocam, perfeitamente, no campo
dos direitos humanos. Envolvem, primordialmente, o plano ético, tanto no aspecto
subjetivo (a consciência e a moral de cada um) como no aspecto objetivo (os valores que devem prevalecer no mundo globalizado). Portanto, constitui um risco decidir esses problemas apenas com os fundamentos do cálculo econômico submetido à relação custo-benefício.
Mesmo na sociedade contemporânea burocratizada e calculadora, os profissionais do direito e da medicina se esforçam para manter seus compromissos com
a vida e com a ética. O abandono clínico de recém-nascidos com deficiências abala
esses compromissos e aprofunda as contradições da sociedade, posto que as conquistas da medicina podem ser vistas não como um progresso, mas como uma catástrofe, e as conquistas legislativas podem perder seu sentido e utilidade.
Na sociedade sob o império do cálculo econômico, onde tudo se submete à
relação custo-benefício, onde tudo é objeto de consumo, os produtos mais sofisticados, como o direito e a medicina, só podem ser consumidos por uma elite que
tem disponibilidade financeira para pagar um tempo integralmente útil dos especialistas.
As estruturas dos Estados modernos não implicam, necessariamente, garantia
e proteção dos direitos de todas as pessoas portadoras de deficiência. A evolução legislativa na sociedade do trabalho e do consumo parece alcançar apenas aquela categoria de portadoras de deficiência aptos para trabalhar e/ou com disponibilidade
financeira para consumir. Com essa ótica, quem não possui aptidão para o trabalho
ou não dispõe de finanças para consumir corre o risco de ser descartado logo ao
nascer, no caso de uma política legislativa que autorize o abandono clínico; ou antes mesmo do nascimento, no caso de implementação de uma política legislativa
que autorize o aborto de fetos com possibilidades de deficiências irreversíveis.
O caso “Bebê X” retrata um dilema da consciência em relação às crianças nascidas vivas e com deficiência: a medicina deve envidar todos os esforços para mantê-las vivas ou deve deixá-las morrer? Os médicos possuem os meios técnicos para
mantê-las vivas. Há, entretanto, os riscos de sequelas definitivas, custos para o Estado e a sociedade, além do sofrimento das famílias. Nos EUA, como dito, existe uma
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lei que obriga os hospitais e médicos a envidar todos os esforços no sentido da manutenção da vida. Até como forma de evitar a suspensão das subvenções que o Estado lhes concedem, os hospitais têm aplicado a lei rigorosamente. O governo norte-americano aplica uma política, no mínimo, paradoxal, mantém as subvenções dos
hospitais, mas retira o auxílio financeiro das famílias, quando a deficiência da criança é considerada moderada.
Na França, onde os médicos preservam o seu livre arbítrio, cada equipe faz
sua própria escolha. Mas os especialistas não ocultam a angústia e a perturbação que
o dilema provoca, por isso apelam para a necessidade de um consenso médico sobre o assunto. Consenso que, segundo eles, deve ser estabelecido sobre regras que
veiculem critérios precisos, que certamente servirão para apaziguar as consciências.
Aliás, os médicos, no decurso de seus congressos, colocam a questão da seguinte
maneira: a reanimação intensiva de todos os recém-nascidos é um progresso ou
uma catástrofe?
Para muitos, como parece ser o caso dos militantes da NRLA (National Right
to Life Association), esse dilema não será apaziguado com normas regulamentadoras que autorizem o abandono dos recém-nascidos. Vale dizer, o simples fato de
existir uma norma, ainda que jurídica, não é suficiente para apaziguar as consciências das pessoas mais exigentes com os princípios éticos, posto que o abandono clínico é uma clara opção pelo extermínio e pela exclusão.
Mas, a tese do abandono clínico tem os seus partidários, cuja defesa geralmente se sustenta na relação custo-benefício e no sofrimento da família. O abandono clínico de crianças portadoras de deficiência talvez possa aliviar o sofrimento da
família e com certeza desonera o Estado, que pode aplicar seus recursos financeiros
em projetos mais significativos, ou mesmo, talvez, fabricar ou comprar armas, fazer
guerras e produzir outras pessoas portadoras de deficiência.
Reafirmando, uma lei que autorize o abandono clínico de recém-nascidos com
deficiência, ainda que apenas aqueles com deficiência considerada aguda pela medicina, revelará outras contradições ou outros dilemas da sociedade contemporânea, talvez até mais profundos. De qualquer modo, não será uma lei inovadora, pois,
a autorização legal para eliminar crianças mal constituídas ou monstruosas é uma
prática antiga. Em Esparta, por exemplo, havia uma lei que prescrevia que as crianças mal constituídas deveriam ser abandonadas para morrer. Do mesmo modo,
em Roma, na Lei das XII Tábuas, encontra-se a seguinte prescrição: as crianças
monstruosas devem ser mortas ao nascer.
5.
DILEMA DA MODERNIDADE
Esse dilema pós-moderno (considerando notadamente a idade contemporânea) certamente provoca angústia em determinados setores da sociedade, posto
que é possível a implementação tanto de uma política jurídica de proteção quanto
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uma política jurídica de extermínio. A angústia é maior porque uma ou outra pode
ser aceita de um modo muito indiferente pelo conjunto dos cidadãos.
A indiferença não se reduz simplesmente ao desinteresse generalizado das
pessoas e das instituições. No domínio da Ciência do Direito, a indiferença é um
pressuposto teórico que a dogmática jurídica introduz na formação dos operadores
do direito, por intermédio da neutralização axiológica que implica aceitação acrítica
e inquestionável dos conteúdos das leis (o dogma). Essa indiferença certamente
produz o apaziguamento dos espíritos de alguns especialistas. Nesse caso, com as
palavras de Weber, os últimos seres humanos desse desenvolvimento cultural poderiam ser designados como “especialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado”.
A modernidade, como se pode ler em René Descartes,8 rompe com o passado, vê nele apenas erros a serem evitados. Por isso, a modernidade não quer tomar
dos modelos de outras épocas os seus critérios de orientação, ela tem de extrair de
si mesma a sua normatividade. Há, pois, muitas tentativas para fundamentar a modernidade a partir de si mesma. A era moderna, em síntese, rompe com as eras passadas. Esse rompimento dá origem ao processo de alienação, que consiste em separar as diversas áreas do saber a partir das especializações. Nesse sentido, o direito, a
moral, a ciência e a religião diferenciam-se como áreas que são examinadas de modo
autônomo. A totalidade cindida é a totalidade ética que vem de um passado que se
reporta a polis grega e a civitas romana.
As relações econômicas capitalistas geram uma sociedade moderna que apresenta uma realidade totalmente nova. As cisões que essa sociedade promove a torna incompatível com as formas clássicas da polis ou da civitas. Essas formas clássicas são tidas como inadequadas e incapazes de fornecer qualquer critério do qual
uma modernidade cindida possa se apropriar.
No curso do processo histórico, a sociedade capitalista rompe também com o
seu próprio passado ao esquecer ou negar as premissas que lhe deram origem: liberdade, igualdade e fraternidade (solidariedade). Aliás, premissas que vêm de um passado que remonta à comunidade gentílica. Conforme relata Max Weber, até mesmo os
princípios éticos religiosos que impulsionaram o capitalismo foram abandonados tão
logo que cumpriram essa função. A modernidade rompe com a sua própria tradição,
posto que as premissas que lhe deram origem fazem parte de um passado que não merece ser atualizado porque não se ajusta ao presente. Por isso, aquelas premissas estão
esquecidas e apenas suas conseqüências devastadoras continuam em curso.
Afinal, o que se pode esperar de uma sociedade cujas ações são conduzidas
pelo cálculo econômico fundado na relação custo-benefício? Vale a pergunta: qual é
o fundamento ético que conduz a sociedade moderna?
8 René Descartes. O Discurso do Método.
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Como já afirmado, a modernidade instaura uma nova visão de mundo ao promover cisões: entre o passado e o presente, entre ciência e virtude, entre liberdade
e natureza, entre ética e direito. Todas essas coisas passam a ser, na modernidade,
objetos teóricos estanques. As conexões que efetivamente existem entre as diversas
áreas do saber são subtraídas e isso provoca situações paradoxais: a manutenção da
vida das pessoas portadoras de deficiência recém-nascidas nos EUA é decidida no
âmbito do direito (a ordem objetiva estatal: a lei, a sentença) e na França é decidida
no âmbito da medicina (a ordem subjetiva: o livre arbítrio, vontade ou escolha do
médico).
Profissionais da medicina e do direito se reúnem para decidir assunto de extrema relevância (manutenção da vida, direito à vida) em congressos separados. Esses profissionais não se encontram porque se consideram “especialistas” em suas
respectivas áreas. Não percebem as conexões entre medicina e direito e anulam a
hipótese ou a possibilidade de ambos ter uma base ética comum.
6.
DILEMA DO DIREITO
Na modernidade, a principal fonte do direito são as normas emanadas do Estado. Com base nesse conjunto normativo os problemas devem ser decididos pelo
tribunal estatal. Segundo o enfoque teórico predominante, os profissionais do direito devem partir do sistema (conjunto de normas) para o problema (a situação que
envolve a pessoa portadora de deficiência). Esse enfoque reproduz a idéia segundo
a qual a solução para o problema já está dada antecipadamente pelo próprio sistema de normas.
Dentro deste raciocínio, objetivando melhor entender o caso do “Bebê X” e
possibilitar uma maior compreensão do direito dentro do seu dilema, ou seja, orientação do trabalho de sistematização do conjunto de normas jurídicas no seio da estrutura estatal (as normas constitucionais, federais, estaduais e municipais), e o fato
de regular as atividades relativas ao exercício da cidadania e a interação social no Estado. Para isto, é necessário pressupor duas situações que se projetam por todos os
quadrantes do direito moderno:
a) o direito moderno (contemporâneo) tornou-se um instrumento de gestão
governamental e caracteriza-se pelo processo de contínua mudança no
conteúdo das normas jurídicas;
b) estão presentes no direito contemporâneo vetores que apontam para uma
função promocional da pessoa humana.
A gênese dessas duas situações (ou deste dilema) localiza-se, historicamente,
no final do período medieval, momento inicial da consolidação das novas relações
decorrentes do modo de produção capitalista. Com a solidificação do Estado mo-
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derno tem início o processo que culminou no monopólio pelo Estado do poder de
dizer o direito.
Assim, nos dias atuais, a presença ostensiva do Estado no todo da sociedade
se explica, em parte, pela necessidade de equacionar o cálculo econômico de uma
economia em crise. Em um Estado com sua economia em crise, o seu cálculo é reorganizado em espaços de tempo relativamente curtos. A utilização do direito como
instrumento dessa reorganização implica não só a edição de um número excessivo
de normas jurídicas, mas também numa intensa mutabilidade do conteúdo das mesmas. Aqui, quiçá, uma resposta ao caso do “Bebê X”, tendo o Estado que se manifestar diante de eventuais e novas reivindicações deste e de outros segmentos da sociedade.
Para operacionalizar a sua função de regulamentador da sociedade, o Estado
dispõe de instrumentos jurídicos que lhe possibilitam ordenar a sua própria máquina administrativa e ao mesmo tempo coordenar a atividade econômica através de
um imenso sistema de estímulos e incentivos, determinando preços, salários, criando tributos, promovendo isenções fiscais, aumentando ou simplificando e reduzindo as obrigações administrativas etc.
Esta posição do Estado intervencionista reflete em todos os campos do universo jurídico, no direito administrativo, tributário, previdenciário, trabalhista, penal, comercial etc. Enfim, não há momento mais propício para se perceber a força
conformadora do econômico sobre o jurídico, mas também não há melhor exemplo
de ação recíproca, como no segmento das pessoas portadoras de deficiência.
Por isto que o direito utilizado como instrumento de atuação, de controle e
de planejamento pelo Estado, implica dar maior ênfase às normas de organização,
de condicionamentos que antecipam os comportamentos desejáveis. Nesse sentido,
o profissional do direito, além de sistematizador e intérprete, passa a ser também
um teórico do aconselhamento, exercendo uma função preventiva, na medida em
que indica opções, oportunidades, avalia a necessidade e a demora nos processos
judiciais, tudo isto conforme um cálculo de custo-benefício.
Deve ser considerado como operador do direito o profissional advindo dos
bancos acadêmicos jurídicos. Mas, também é aplicador do direito o leigo que, por
exemplo, compra um imóvel e elabora o respectivo contrato - através de agência
imobiliária ou particularmente - sempre com observância à legislação vigente.
A tarefa do operador do direito, em sistematizar um conjunto de normas jurídicas, nunca poderá resultar numa sistemática fechada, com pretensões a resolver,
através de mecanismos meramente lógicos, todos os problemas que lhe são postos.
Portanto, o direito, hoje, deve ser visto, também, como um direito que tem
uma função promocional da pessoa humana, não sendo tão somente um direito punitivo. Deve se interessar por comportamentos tidos como desejáveis e, por isso,
não se circunscreve a proibir, obrigar ou permitir, mas almeja estimular comportamentos, através de medidas diretas ou indiretas.
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É dentro deste contexto que entendemos o trabalho dos norte-americanos legislando para evitar casos como o ocorrido com o “Bebê X”. Também, toda legislação produzida na proteção dos direitos das pessoas portadoras de deficiência.
O direito, aplicado visando a uma função promocional, pode assegurar a justiça social, distributiva, comutativa e participativa na sociedade, estando-lhe reservada nesta perspectiva uma condição significativa no que diz respeito à realização do
bem comum e, especialmente, no exercício pleno da cidadania.
Por fim, um direito voltado para a proteção e segurança da dignidade da pessoa humana, ajudando na construção de uma sociedade solidária, dando atenção
necessária a todos os seus respectivos segmentos.
7.
CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
As Faculdades de Direito, na sua maioria, adotaram uma orientação em que
passam a formar profissionais que não questionam os pontos de partidas (as normas, os dogmas) e com isso as normas são consideradas convenientes, adequadas e
irrepreensíveis. As disciplinas que poderiam provocar o questionamento crítico (filosofia, sociologia), não raras vezes são designadas pelos especialistas como perfumarias jurídicas. A força semântica da expressão, aliada ao tom jocoso, conquista
corações e mentes, e os estudantes repetem as palavras do “mestre” sem um mínimo de reflexão.
Sob a batuta dos especialistas, o direito se configura como um saber tecnológico que serve apenas para ganhar dinheiro. A maioria dos estudantes não percebe
o direito como um saber tecnológico que também serve à luta social, que o mundo
em que vivemos exige; não percebe o direito como um instrumento de mudança,
mas apenas como um objeto de consumo que se compra e se vende.
É preciso remodelar o ensino do direito para que ele possa ser visto, não apenas como um saber tecnológico voltado para o cálculo econômico estatal e empresarial, mas também como uma prática virtuosa. É aqui que se coloca a importância
do exame do direito como função promocional da pessoa humana, nos molde acima analisado, evitando o Estado ter que produzir, eventualmente, políticas de extermínio e de exclusão.
8.
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TRABALHO FORÇADO OU COMPULSÓRIO:
A QUASE-ESCRAVIDÃO
1
Mário Gonçalves Júnior
Demarest & Almeida Advogados
Pós-graduado em Direito Processual Civil
e Direito do Trabalho
O Direito do Trabalho surgiu como ramo autônomo a partir do objetivo de equilibrar forças econômicas desproporcionais na relação entre capital e trabalho, protegendo este último da exploração desmedida daquele. Como lembra Sérgio Pinto Martins, “visa ao princípio da proteção compensar a superioridade econômica do empregador em relação ao empregado, dando a este último uma superioridade jurídica”
(Fundamentos de Direito do Trabalho, Atlas, 2a. ed., São Paulo, 2002, pág. 30).
Foram alçados ao nível constitucional a dignidade da pessoa humana (art. 1o.,
III), os valores sociais do trabalho (idem, IV ) e a melhoria da condição social dos trabalhadores (art. 7o., caput), competindo de igual para igual com a livre iniciativa (art.
1o., V, segunda parte) e o direito de propriedade (art. 5o., XXII), estando este último,
ainda, submetido expressamente à função social (idem, XXIII).
Talvez por ser tão complicado harmonizar interesses que naturalmente competem entre si, é que a discussão da flexibilização dos direitos trabalhistas se faça até
hoje em terreno movediço, tão fértil a acirradas controvérsias. Neste campo, da flexibilização, aglutinaram-se três correntes: a teoria antiflexibilista, que repugna qual1 Dados conceituais e informações extraidas basicamente do Relatório Global do Seguimento da Declaração da OIT
relativa a Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho (Não ao Trabalho Forçado, Conferência Internacional do
Trabalho, 89ª. Reunião, 2001).
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quer hipótese de flexibilização não expressamente prevista na legislação; a teoria semiflexibilista, que admite a flexibilização apenas por meio de negociação sindical,
preservados os direitos mínimos em lei; e a flexibilista que prega a autonomia irrestrita da vontade dos interlocutores sociais.
Ideologias à parte, não se deve perder de vista que ainda constitui um vergonhoso flagelo mundial o trabalho forçado ou compulsório. A escravidão persiste
apenas em alguns países da África, mas outras espécies de trabalho forçado, não menos desumanos e censuráveis, acentuam uma triste realidade da qual provavelmente nenhum país possa se orgulhar ter erradicado: servidão por dívida mediante aliciamento, rapto e tráfico de pessoas, práticas análogas à escravidão, por exemplo,
são formas contemporâneas de trabalho forçado e degradante.
As vítimas de trabalhos forçados são preferencialmente arrancadas de regiões
ou países pobres, de minorias (como os índios, migrantes e imigrantes) etc. Não são
poupadas nem crianças, mulheres e idosos.
Em comum, todas as odiosas formas de trabalho forçado guardam as seguintes características: o recurso à coação e a negação da liberdade. Trata-se de coerção
extra-econômica, na forma de restrições físicas e de exigência de prestação de serviços remunerados ou não remunerados. Ainda não há consenso mundial sobre se
outras formas de coerção, puramente econômicas, devem ou não ser incluídas no
conceito de trabalho forçado.
Daí porque, para entender e delimitar o fenômeno é preciso, em princípio,
não abranger o trabalho mal-remunerado, perigoso ou realizado em condições gerais de exploração. Embora muitas vezes limítrofes, tais situações ainda não foram
equiparadas ao trabalho forçado. Todas podem ser injustas e degradantes, mas só as
que, de alguma maneira, direta ou indireta, aniquilam a liberdade humana é que podem ser abrangidas por um conceito seguro de trabalho forçado ou compulsório.
Na Índia, por exemplo, o artigo 23 da Constituição proíbe o tráfico de seres
humanos, begar (que a Corte Suprema daquele país definiu como “forma de trabalho forçado em virtude do qual se obriga uma pessoa a trabalhar sem nenhuma remuneração”) e outras formas de trabalho forçado, e em 1976, foi adotada uma importante lei federal, a lei da abolição do sistema de trabalho em servidão, que a define como “sistema de trabalho forçado ou parcialmente forçado” no qual o devedor (trabalhador) conclui, ou se presume tenha concluído, acordo com o credor
(tomador do serviço) e por cujos termos aquele renuncia a certos direitos básicos.
Em que pese radicalizarem conceitos, chama a atenção por se tratar de um
exemplo incomum de vontade política no combate ao trabalho forçado, envolvendo todas as esferas de poder, inclusive o Judiciário. Uma sentença de 1982 estabeleceu vínculo entre o conceito de trabalho forçado e o fato de um trabalhador receber menos do que o salário mínimo (A União dos Povos pelos Direitos Democráticos contra a União da Índia, AIR 1982, S.C.1473, conhecido como Asiad Workers´Case). Numa outra sentença de 1984, num caso de trabalho em pedreiras, o
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tribunal determinou que “toda vez que se demonstrar que um trabalhador foi obrigado a prestar trabalho forçado, o tribunal suporá a presunção de que foi obrigado
a fazê-lo por força de um adiantamento ou de uma compensação econômica recebida e que se trata, portanto, de trabalhador em regime de servidão”. Em outra sentença, no mesmo ano, a Suprema Corte Indiana decidiu que se presume o trabalho
em servidão, salvo prova em contrário de ônus do tomador do serviço, toda vez que
se obriga uma pessoa a fazer um trabalho sem remuneração ou com uma remuneração simbólica (Neerja Cheudary contra o Estado de Madyha Pradesch, AIR 1984,
S.C.1099).
Esta tendência, como se disse, todavia, não é a que prevalece, ao menos por
enquanto. A própria OIT considera “arriscado” (temerário) “recorrer a expedientes
aparentemente simples, como o uso da dívida entre agricultores arrendatários como
indicador em regime de servidão” (item 97 do Relatório).
“À medida que a reforma agrária distributiva foi se arrefecendo
na maioria das agendas de desenvolvimento, o arrendamento e a
meação têm sido considerados mais favoráveis, como degraus da
“escada agrícola” para a plena propriedade da terra” (item 90 do
Relatório).
A Convenção 26 da Liga das Nações, de 1920, definia a escravidão como “o estado ou a condição de uma pessoa sobre o qual se exercem alguns ou todos os poderes relativos ao direito de propriedade”.
A Convenção 29 da OIT, de 1930, estabelece que
“a expressão trabalho forçado ou compulsório significará todo trabalho ou serviço exigido de um ind

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