VISIEA Anais

Transcrição

VISIEA Anais
Anais do VI Simpósio
Internacional
Estados Americanos
pesquisas acadêmicas
contemporâneas 22 a 26
de outubro de 2012
Natal-RN
Comissão Organizadora Prof. Dr.
Henrique Alonso De Albuquerque
Rodrigues Pereira (UFRN) Prof. Dr.
Sebastião Leal Ferreira Vargas
Netto (UFRN) Prof. Dr. Haroldo
Loguercio Carvalho (UFRN)
ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
SUMÁRIO
PASSADO E PRESENTE DO SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADOS
04
AMERICANOS
ST 02. ESTADOS AMERICANOS E ENSINO DE HISTÓRIA
07
ST 03. FORMAÇÃO DOS ESTADOS NACIONAIS NAS AMÉRICAS
42
ST 04. AMÉRICA INDÍGENA: FORMAS DE DOMINAÇÃO, AGÊNCIA INDÍGENA E
80
PLURALIDADE CULTURAL
ST 07. DO REGIONAL E NACIONAL AO TRANSNACIONAL: AS PESQUISAS 108
CONTEMPORÂNEAS SOBRE OS MUNDOS DO TRABALHO
ST 08. DESAFIOS PASSADOS, PRESENTES E FUTUROS DAS PROPOSTAS DE 190
INTEGRAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS
ST 10. FORÇAS ARMADAS E POLÍTICAS NA AMÉRCIA LATINA: DAS DITADURAS 207
DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX ÀS DEMOCRACIAS DO SÉCULO XXI
ST 11. FESTAS E IDENTIDADES NAS AMÉRICAS 235
ST 12. ARTE, CULTURA E IDENTIDADE NA AMÉRICA LATINA 339
ST 13. ESTADOS UNIDOS, BRASIL E AMÉRICA LATINA: PROXIMIDADES, 396
TENSÕES E DISTANCIAMENTOS
ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Passado e Presente do Simpósio
Internacional Estados Americanos
Henrique Alonso de A. R. Pereira
Haroldo Loguercio Carvalho
Características do Evento
O VI Simpósio Internacional Estados Americanos: pesquisas acadêmicas contemporâneas (VI
SIEA), é a continuidade de uma parceria institucional entre programas de pós-graduação em História
desde 1995. A iniciativa partiu dos programas da UnB e da PUCRS entre 1995 e 2000, quando ocorreram
as três primeiras edições (1995, 1997 e 2000). Em 2004 o programa da UPF se somou a parceria,
organizando o quarto e quinto eventos, respectivamente em 2004 e 2010. No V SIEA, em 2010. Houve a
adesão de mais dois programas, o recém-instalado PPGH da UFPel e o também jovem PPGH da UFRN.
A característica de edições alternadas nas diversas universidades acabou por consolidar parcerias
interinstitucionais e redes de pesquisa importantes para a circulação da produção acadêmica sobre a
trajetória dos estados nacionais no continente, mas, sobretudo, permitir, pelo seu caráter aberto, a inclusão
de outros pesquisadores e instituições que desenvolvem projetos de investigação sobre temas relacionados
à perspectiva histórica da América e seus estados e sociedades na dimensão das Relações Internacionais.
Foi por iniciativa desta rede de aproximações entre as universidades brasileiras que se criou o GT em
História das Relações Internacionais, no XXV Simpósio Nacional de História/ANPUH em Fortaleza no
ano de 2009.
O tema das pesquisas acadêmicas contemporâneas para esta edição sediada no PPGH da UFRN
reflete a percepção de ampliar para o Nordeste brasileiro a experiência recente de aprofundamento deste
debate, claro em outras regiões do Brasil e Américas, e justificado pela necessidade hemisférica de
(re)articular-se no atual contexto internacional, pautado, mais uma vez, pela introdução de novos
elementos de convergência e conflito. Os estados americanos, especialmente da América Latina e Caribe
na necessidade de refletirem suas estratégias nacionais veem a oportunidade de rediscutir também as
relações entre si, situação já avançada na América do Sul. Portanto, refletir sobre a história deste processo
complexo, tem sido um tema cada vez mais sensível à investigação acadêmica, do qual o Simpósio
propõe-se a dar andamento. O evento tem um claro objetivo de dar acesso aos estudantes de graduação e
pós-graduação dos programas e cursos envolvidos para que tenham conhecimento e possam se envolver
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
nas discussões feitas a partir da produção científica docente desta área, História da América. O evento
está inserido na programação da XVIII CIENTEC por entender o caráter estratégico que esta possui para
o Rio Grande do Norte, seja pela divulgação que proporciona aos projetos acadêmicos realizados pela
UFRN, seja pela dimensão social e cultural que representa.
O evento tem um claro objetivo de dar acesso aos estudantes de graduação e pós-graduação dos
programas e cursos envolvidos para que tenham conhecimento e possam se envolver nas discussões feitas
a partir da produção científica docente.
Contribuição para a Pós-graduação
O Simpósio teve a intenção de contribuir para a pós-graduação de diferentes maneiras, todas elas
devidamente articuladas com a programação geral do evento ao mesmo tempo em que pretende
proporcionar avanços individuais consolidando linhas e temas em andamento como também abrindo
novas oportunidades para os recém-integrados. Por tratar-se de um evento proposto por cinco programas
de pós-graduação e cuja comissão científica é composta por vários membros do GT de História das
Relações internacionais da ANPUH, a primeira contribuição consiste em criar um espaço de debates e de
divulgação de pesquisas originais vinculadas à pós-graduação. Esta contribuição deve efetivar-se a partir
das conferências e das atividades dos simpósios temáticos (STs).
A segunda contribuição consiste na difusão de novos conhecimentos e abordagens, bem como na
reflexão crítica sobre a temática da autonomia no sistema internacional, o que deverá ser expresso tanto
nas atividades dos STs quanto das mesas redondas, onde especialistas de larga trajetória de pesquisa e
reflexão debaterão entre si e com o público as suas idéias.
Por fim, mas nem por isso menos importante, pretendeu-se que o evento de continuidade com a
formação e ampliação de redes de pesquisadores em suas respectivas áreas de investigação, bem com o
incentivo a difusão de novas temáticas, abordagens e fontes entre alunos de graduação e de pósgraduação.
Finalidades do Evento
O Simpósio objetiva reunir profissionais da área de história, relações internacionais, ciências
sociais e áreas afins, de diferentes países e regiões, para discutir a temática geral do evento e apresentar
suas pesquisas. Pretende também oportunizar a terceira reunião nacional do GT de História das Relações
Internacionais de modo a consolidar esta rede de pesquisadores e incentivar a formação e ampliação de
outras redes de pesquisa, especialmente a partir da inclusão da UFRN neste circuito. O evento tem por
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finalidade ainda proporcionar o contato entre pesquisadores seniores, mestrandos e doutorandos, bolsistas
de iniciação científica e alunos de graduação.
Histórico de Eventos Anteriores
O evento teve sua primeira edição em 1995 na UnB, com a temática "O Cone Sul no contexto
internacional". Consolidando a iniciativa, editou-se em 1997 o II Simpósio Internacional Estados
Americanos: relações continentais e intercontinentais, realizado na PUCRS e agregando, então, o
Programa de Pós-Graduação em História da UPF.
Em 2000, ocorreu na UnB a terceira edição do Simpósio, com o tema "500 anos de História". A quarta
edição ocorreu em 2004, na UPF, incorporando convidados estrangeiros e nacionais e mais uma vez
envolvendo os PPGs da PUC-RS e UnB.
Em todas edições foram publicados anais.
No decorrer do período, o grupo agregou outros parceiros institucionais tais como UFRGS,
Unisinos, FAPA, UFPel, Univale, e, em 2007, participou da fundação do Grupo de Trabalho de História
das Relações Internacionais (GT-HRI) da ANPUH-RS. Além de realizar atividades de âmbito regional, o
GT vem organizando dossiês temáticos nas revistas dos Programas vinculados, como no caso do volume
6 da revista do PPGH da UPF, História: Debates e Tendências, de 2006 e do volume 34 da revista do
PPGH da PUCRS, Estudos Ibero-Americanos, de 2008.
Em 2009, o GT-HRI mobilizou-se com colegas de várias instituições de ensino superior do país e
criou o GT de História das Relações Internacionais vinculado à ANPUH Nacional, incorporando, assim,
pesquisadores das seguintes instituições: PUCRS, UPIS, UCG, UnB, UPF, UERJ, UFPeL, UFRR,
Unipampa, UFRN, UFRGS, UFF, Unibennett, FGV, FEEVALE, ESPM-RS e ULBRA.
Em 2010, na quinta edição em Passo Fundo/RS, a UFRN e a UFPel formalizaram a intenção de
participar da organizações de eventos futuros.
Em 2011, no XXVI SNH o GT-HRI apresentou os simpósios temáticos 114, Política Externa e
Relações Internacionais: História e Historiografia; e 115, Política Externa e Relações Internacionais no
Mundo Contemporâneo.
Assim, a organização pelo PPGH da UFRN do VI Simpósio Internacional Estados Americanos:
pesquisas acadêmicas contemporâneas, além de refletir a trajetória de pesquisadores da área que se
reúnem desde 1995 e cujo objetivo é dar seguimento ao processo de consolidação e ampliação das
discussões e trabalhos do grupo, agregar novos debates e debatedores, além de oportunizar a regularidade
das reuniões do GT Nacional de História das Relações Internacionais.
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
ST 02: Estados Americanos e
Ensino de História Dr. Itamar
Freitas (UFS) Dra. Margarida
Maria Dias de Oliveira (UFRN)
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
A QUESTÃO DO “DESCOBRIMENTO DO BRASIL” NOS LIVROS DE HISTÓRIA DO RIO
GRANDE DO NORTE.
Flademir Gonçalves Dantas1
Cibele Carvalho2
Resumo: O presente artigo discute o uso do termo “descobrimento do Brasil” e suas representações em três livros de
História do Rio Grande do Norte, quais são eles: Introdução à História do Rio Grande do Norte de Denise Mattos Monteiro
(MONTEIRO, 2002); História do Rio Grande do Norte dos autores Luiz Eduardo Brandão Suassuna e Marlene da Silva Mariz
(SUASSUNA; MARIZ, 2005); e o Introdução à História do Rio Grande do Norte de Sérgio Luiz Bezerra Trindade
(TRINDADE, 2007), livros amplamente utilizados nos mais diferentes níveis de ensino no Rio Grande do Norte. A pesquisa de
caráter bibliográfico e empírico tem como objetivo analisar como o termo “descobrimento do Brasil” é empregado, abordado,
contextualizado e/ou descrito e suas implicações para compreensão da História no processo de ensino-aprendizagem. A
fundamentação teórica sobre representação é embasada nas ideias de Roger Chartier (1990) e a problematização do termo
“descobrimento do Brasil” são discutidas a partir de Francisco Iglésias (1992).
Palavras-Chaves: Descobrimento do Brasil. História do Rio Grande do Norte. Ensino de História.
INTRODUÇÃO
O ensino de História sofreu grandes transformações nas últimas décadas do século XX que
ocorreram articuladas às transformações sociais, políticas e educacionais, bem como àquelas ocorridas no
interior dos espaços acadêmicos, escolares e na indústria cultural. Portanto, se faz necessário debater as
diferentes temáticas que envolvem o ensino-aprendizagem na disciplina História, e de acordo com Selva
Guimarães Fonseca:
Discutir o ensino de história, hoje, é pensar os processos formativos que se desenvolvem
nos diversos espaços, é pensar fontes e formas de educar cidadãos, numa sociedade
complexa marcada por diferenças e desigualdades. (FONSECA, 2003, p.15)
Podemos pensar que o ensino de História deixou de ser prioritariamente uma História Política e
mera compilação de datas, nomes, locais e algumas palavras-chave que precisavam ser memorizadas para
uma ampla e nova gama de novos elementos, principalmente com as contribuições advindas da escola dos
Annales, corrente historiográfica surgida na França nos anos de 1930 que buscou novos objetos e fontes,
novas teorias, novas metodologias, novos problemas para a História e consequentemente para o ensino
1
Bacharel e Licenciado em História (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Pós-graduado Especialização
em Metodologia do Ensino de História e Geografia (Uninter - Facinter), aluno especial do Mestrado em Educação UFRN.
2
Bacharel e Licenciada em História (Universidade Federal do Paraná), Mestre em História (Universidade Federal
do Paraná), Doutoranda em História (Universidade Federal do Paraná), orientadora de TCC do Grupo Uninter.
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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dela, provocando uma renovação e ampliação do conhecimento histórico e consequentemente, dos olhares
da História.
A História deixou de ser meramente decorada para ser entendida, a repetição e memorização de
informações isoladas, como nomes e datas, tem dado lugar a um processo mais complexo e, ao mesmo
tempo, mais dinâmico. Na visão desses autores, essas mudanças, implicam que, “o aluno deixa de ser
visto como um ser passivo, reprodutor de um conhecimento que recebe de modo pronto e acabado, e
passa a ser entendido como agente na construção do saber.” (Idem, 2007, p. 36).
E conforme as Orientações curriculares para o Ensino Médio, “a História adquire seu pleno
sentido para o ensino-aprendizagem quando procura contribuir, com sua potencialidade cognitiva e
transformadora” (BRASIL, 2006, p. 66). Nesse sentido, os usos de materiais didáticos corroboram para
com o que foi dito acima, estes são instrumentos de trabalho do aluno e do professor, participando como
agentes na construção do saber e dão suporte na mediação entre ensino e aprendizagem, sejam eles; livros
- didáticos, paradidáticos, técnicos, especializados – filmes, excertos de jornais e revistas, mapas, dados
estatísticos e tabelas, entre outros meios de informação, têm sido utilizados com frequência nas aulas de
História. (BITTENCOURT, 2004, p. 295).
Devemos ainda considerar que o livro de História é uma mercadoria do mundo editorial, sujeito às
influências sociais, econômicas, técnicas, políticas e culturais como qualquer outra mercadoria que
percorre os caminhos da produção, distribuição e consumo.
DESENVOLVIMENTO
É dentro desse contexto que faremos a análise da questão do “Descobrimento do Brasil” 3 em três
livros de História do Rio Grande do Norte quais são eles: Introdução à História do Rio Grande do Norte
de Denise Mattos Monteiro (MONTEIRO, 2002); História do Rio Grande do Norte dos autores Luiz
Eduardo Brandão Suassuna e Marlene da Silva Mariz (SUASSUNA; MARIZ, 2005); e o Introdução à
História do Rio Grande do Norte de Sérgio Luiz Bezerra Trindade (TRINDADE, 2007).
3
A chegada dos europeus às terras situadas além do Atlântico vem sendo tratada de forma diferenciada (entre
aspas, ou em itálico) nesse texto, por acreditarmos, junto com Edmundo O’GORMAN, que o descobrimento se
trata de uma construção discursiva bem ao gosto da literatura europeia da transição entre os séculos XV e XVI.
O’GORMAN. Edmund. A invenção da América. Unesp, SP. 1992.
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Cremos que os livros examinados, obras de síntese da História Regional4, com edições posteriores
ao ano de 2002 e que representam uma nova produção historiográfica, todos com indicações para uso
didático.
Os livros listados acima são amplamente utilizados nos mais diferentes níveis de ensino no Rio
Grande do Norte, e levando-se em consideração levantamento realizado no Guia de Livros Didáticos
PNLD 2012, verificamos que o referido Estado não possui livros didáticos regionais aprovados em
nenhuma das edições, de 2004 (ano que se iniciou a avaliação dos livros regionais) a 2011, ao contrário
de outros estados que possuem livros didáticos regionais, como a Bahia, Minas Gerais, Maranhão, São
Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Paraná, Pará, entre outros. (BRASIL, 2011, p. 4)
Devido à ausência de livros de História Regional do Rio Grande do Norte específicos para uso
didático, os três livros elencados são comumente utilizados em sala de aula, cuja função, como já foi dito,
é servir de suporte para o ensino, um instrumento de trabalho para o professor e aluno e, portanto,
carregam em si valores ideológicos e culturais, que pretendem garantir o discurso supostamente
verdadeiro dos autores. Em um processo pouco dinâmico como o que se estabelece no sistema tradicional
de ensino, cria-se um círculo vicioso: o professor torna-se um reprodutor desses mitos e imagens errôneas
– como no caso do “descobrimento do Brasil” - e passa, ele também, a acreditar neles.
Argumentaremos sobre as representações – etnocêntrica e eurocêntrica5, dominante, imperialista,
ocidentalizante6 - nos livros de História do Rio Grande do Norte usados em sala de aula, ou seja, uma
demanda intrínseca ao conteúdo e à metodologia dos livros, referente às características do processo de sua
elaboração, realizando desta forma uma análise interna dos livros no tocante ao “descobrimento do
Brasil”.
Para tanto, tomaremos como referencial teórico as ideias defendidas por Roger Chartier, no livro
História cultural - entre práticas e representações - que define que “as representações do mundo social
4
O conceito de História Regional que está sendo tomado, aqui, de FREITAS, Itamar. História Regional para a
Escolarização Básica no Brasil, 2009, p. 9. Para quem os livros denominados de História Regional são impressos
que registram a experiência de grupos que se identificam por fronteiras espaciais e socioculturais – seja na
dimensão de uma cidade, seja nos limites de um Estado ou de uma região do Brasil –, sendo costumeiramente
utilizados em situação didática no ensino de História.
5
Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo – Eurocentrismo é o exemplo da Europa como
centro de tudo - é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos
valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. Rocha, Everardo. "O que é Etnocentrismo", Ed.
Brasiliense, 1984, pág. 7.
6
A ocidentalização corresponde, portanto, ao movimento de difusão/imposição da cultura ocidental nas colônias
dos Impérios Ultramarinos – em outras palavras, à conquista das almas, dos corpos e dos territórios do Novo
Mundo. Esse movimento de ocidentalização, levado à frente por castelhanos e posteriormente por portugueses,
produz[iu] situações de choque e relações de poder entre os recém-chegados (os europeus) e os que se
encontravam na terra firme (os nativos). O conceito e a problemática da ocidentalização estão sendo tomados,
aqui, de GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço, p. 63-110. In. Macedo, Helder Alexandre Medeiros. Citado
em Revista da Faculdade do Seridó, v.1, n.0, jan./jun. 2006. p. 16.
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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são construídas” e que “são sempre determinados pelos interesses dos grupos que as forjam”
(CHARTIER, 1990, p. 16). Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos
com a posição de quem os utiliza. CHARTIER, assim, aborda a questão das representações como um
conjunto de percepções do tecido social, sendo estes esquemas geradores de classificações e percepções
próprios de cada grupo, construídos em contraposição uns aos outros. Essas representações tendem a
produzir estratégias e práticas que tentam impor uma autoridade, legitimar um projeto ou justificar
condutas, sendo matrizes de discursos e práticas.
Desta forma, podemos relacionar essa colocação teórica com os diferentes discursos que estão
presentes nos livros tratados nessa pesquisa, uma vez que, tais discursos procuram transmitir uma verdade
histórica e uma representação daquilo que ficou cristalizado como “descobrimento do Brasil”. Importante
frisar que outros trabalhos também observaram essas questões postas acima, mais especificamente nos
livros didáticos de História, como bem observou Oliveira (2009):
Os trabalhos sobre livros didáticos de História centraram-se nas denúncias de uma
“ideologia dominante” contida nestes, da ausência de determinados temas nos mesmos,
ou até de tratamentos errados de alguns temas ou fatos pelos autores de livros didáticos.
(Idem, 2009, p. 38)
Pensar acerca das representações que estes livros transmitem sobre o período da chegada dos
portugueses ao que viria a ser o Brasil é refletir sobre o papel dos indígenas na construção social e
cultural da História do país, parafraseando DAVEIS (2009) essa abordagem da História vista nos livros
de História “nega a existência de sociedades indígenas antes da chegada dos portugueses e privilegia a
iniciativa europeia”. (Idem, 2009, p. 127). E de acordo com que Ferro (1983) mostra-nos em enfáticas
linhas:
Não nos enganemos: a imagem que temos de outros povos, e até de nós mesmos, está
associada à História que nos ensinaram quando éramos crianças. Ela nos marca para o
resto da vida. Sobre essa representação, que é para cada um de nós uma descoberta do
mundo e do passado das sociedades, enxertam-se depois opiniões, ideias fugazes ou
duradouras, como um amor..., mas permanecem indeléveis as marcas de nossas primeiras
curiosidades, das nossas primeiras emoções. (Idem, 1983, p.11)
O discurso contido nos livros se amplia de importância, por isso se faz necessário esclarecer o que
vem a ser “descobrimento”, pois conforme nos aponta Francisco Iglésias em artigo intitulado Encontro de
duas culturas: América e Europa “a palavra descobrimento, empregada com relação a continentes e
países, é um equívoco e deve ser evitada” (IGLÉSIAS , 1992, p. 23). Ou seja, de acordo com o
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historiador, só se descobre uma terra sem habitantes; se ela é ocupada por homens, não importa em que
estágio cultural se encontrem, já existe e não é descoberta. Apenas se estabelece seu contato com outro
povo.
A temática dos “descobrimentos” nos remete a uma ordem de significação que corresponde ao
imaginário europeu do século XV, para o qual a América, habitada por povos bárbaros, deveria
transformar-se em um "Novo Mundo". Nela, os descobridores e colonizadores deveriam implantar todos
os padrões básicos da cultura europeia, soterrando a barbárie. As cidades construídas, segundo as
determinações dos europeus, representariam a implantação dos padrões básicos da cultura europeia.
Seriam a expressão primeira de um Novo Mundo criado à imagem e semelhança do velho. Assim, o
Brasil refeito, segundo os moldes europeus, tornar-se-ia parte substancial na montagem de uma economia
mundial, centralizada em Portugal.
A utilização da expressão "descobrimento do Brasil", que denuncia a maneira pela qual a chegada
dos portugueses em terras do continente americano é interpretada, tendo os europeus como protagonistas
de um encontro entre povos que estabelece a inserção dessas terras e das populações que as habitavam na
História Ocidental. Como afirma SILVA (2000, p. 197), "a visão de paraíso e a noção de descobrimento e
não fundação produz uma naturalização da história". Ou seja, o “descobrimento” é visto como algo
positivo, que trouxe a civilização aos trópicos, a História, e permitiu avanços aos indígenas em termos de
sua melhora na “qualidade de vida”.
No nosso caso específico, podemos observar que TRINDADE (2007) em seu livro Introdução à
História do Rio Grande do Norte inicia da seguinte forma a sua narrativa:
O Rio Grande do Norte é parte de um território, o brasileiro, de proporção
verdadeiramente continental. Entendemos só ser possível compreender a história do Rio
Grande do Norte a partir da história do Brasil. E uma melhor compreensão da história
brasileira só é possível levando-se em consideração a necessidade de um conhecimento
anterior à data do Descobrimento propriamente dito, que, tradicionalmente e
cronologicamente, é 22 de abril de 1500. É o marco cronológico inicial da história do
Brasil. Porém é necessário o conhecimento dos fatos anteriores que nos possibilite uma
compreensão mais abrangente do processo histórico que resultou no descobrimento.
(Idem, 2007, p. 17)
Para TRINDADE, compreender melhor a História do Rio Grande do Norte é tão somente entender
a História do Brasil e consequentemente a da expansão marítima europeia - contextualizando esquecendo-se, desta forma, das sociedades indígenas que aqui já habitavam. O “descobrimento” é visto
como fundação/origem da nação brasileira. Por isso, temos sempre que ter em mente que “o ensino de
História é um fenômeno social fundamental, nas sociedades contemporâneas, de constituição da
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identidade, memória e consciência histórica de indivíduos e coletividades”. (FERREIRA; CERRI, 2007,
p. 76).
Logo em seguida temos um capítulo dedicado à expansão marítima europeia com ênfase na
formação de Portugal e as grandes navegações empreendidas pelos luso-portugueses. Dentro deste
capítulo encontramos um subtítulo “o descobrimento do Brasil” no qual o autor utiliza o termo
“descobrimento do Brasil” ou “descoberta do Brasil” 15 (quinze) vezes. (Idem, 2007, p.17, 23, 24, 25, 26,
41)
TRINDADE ainda procura debater se o descobrimento do Brasil foi proposital ou não:
São muitos os estudiosos que defendem a intencionalidade do descobrimento do Brasil,
confrontando-se com a tese consagrada, durante muito tempo, de que o Brasil teria sido
descoberto casualmente, quando Cabral se afastou da costa africana para fugir das
tempestades e/ou calmarias que assolavam aquela área, principalmente na costa do Guiné.
(Idem, 2007, p. 24)
Podemos observar que ele aborda a História de uma forma integrada (MOREIRA;
VASCONCELOS, 2007, p. 49), isto é, pelo tratamento da História da civilização ocidental de modo
articulado com os conteúdos de História do Brasil. Priorizando, desse modo, a compreensão do processo
histórico global, mas tendo por eixo condutor uma perspectiva de tempo cronológica e sucessiva, definida
a partir da evolução europeia.
Importante frisar aqui o que MORAIS (2009) nos esclarece acerca da História integrada:
Ensina-se aos alunos a teoria da eterna dependência, em que as determinações externas
são mais importantes do que as internas, e o Brasil não é o agente de sua própria história,
mas espectador. Com isso, fortalece-se a ideia de que as tensões e contradições internas
desempenham um papel secundário na construção da nação. O Brasil torna-se, assim,
apenas o resultado da História Geral. (Idem, 2009, p. 207)
Portanto, é muito importante à forma como abordamos os temas, conceitos e dados na narrativa
histórica dentro da sala de aula, sejam usando livros, músicas, vídeos, textos. Pois, de acordo com
Munakata (1997):
Por trás do ‘texto’ (livros, materiais, suportes vários), há toda uma seleção cultural que
apresenta o conhecimento oficial, colaborando de forma decisiva na criação do saber que
se considera legítimo e verdadeiro, consolidando os cânones do que é verdade e do que é
moralmente aceitável. Reafirmam uma tradição, projetam uma determinada imagem da
sociedade, o que é a atividade política legítima, a harmonia social, as versões criadas
sobre as atividades humanas, as desigualdades entre sexos, raças, culturas, classes sociais;
isto é, definem, simbolicamente a representação do mundo e da sociedade, predispõem a
ver, pensar, sentir e atuar de certas formas e não de outras, o que é conhecimento
importante, porque são ao mesmo tempo objetos culturais, sociais e estéticos. Por trás da
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sua aparente assepsia não existe a neutralidade, mas a ocultação de conflitos intelectuais,
sociais e morais. (Idem, 1997, p. 137)
Outra questão que TRINDADE levanta, trata da localização exata do descobrimento do Brasil:
Outra polêmica que surgiu no final do século XX é sobre o local exato do descobrimento
do Brasil. A tese consagrada, e até aqui indiscutível, é a de que o Brasil foi descoberto
por Porto Seguro, na Bahia. Lenine Pinto (1998) confronta essa tese, argumentando que o
descobrimento do Brasil não ocorreu na Bahia e sim no Rio Grande do Norte. (Idem,
2007, p. 26)
Ao final do Capítulo I, TRINDADE propõe a leitura de dois textos complementares, destacamos
aqui o primeiro deles intitulado: “Pedro Álvares Cabral no Rio Grande do Norte” de autoria de Lenine
Pinto (Reinvenção do descobrimento. Natal: RN Econômico, 1998), no qual podemos observar a
preocupação do autor em debater, problematizar mais uma vez se o Brasil teria sido “descoberto” em
Porto Seguro na Bahia ou em Touros no Rio Grande do Norte:
Faltam em Porto Seguro, entretanto, provas simbólicas e materiais que atestem a
ocorrência do descobrimento no porto seguro baiano, ao contrário da área de Touros,
onde foi deixado pelo menos um traço inequívoco da presença de Cabral. Aqui Cabral
chantou um marco que trazia para o descobrimento da Índia, providência indispensável
num descobrimento oficial, demarcando o ponto de arribagem da esquadra. (Idem, 2007,
p. 41)
Já no livro História do Rio Grande do Norte (MARIZ e SUASSUNA, 2005) encontramos 5
(cinco) menções ao termo “descobrimento” ou “descoberta” (Idem, 2005, p. 25, 26, 29), e em seu
primeiro capítulo, “O século XVI e a região do Rio Grande”, no ponto 1, “As origens da estrutura
territorial e do poder político”, subponto 1.1, “anos de formação”, temos que:
O descobrimento do Brasil em 1500 se enquadra no contexto do expansionismo
comercial europeu que ocorria na época, voltado para a busca de lucros e de novos
mercados para a exploração. O evento para a Coroa Portuguesa, de imediato causou
pouca euforia, uma vez que o seu alvo maior era o Oriente, onde os lucros configuravamse muito mais significativos, razão porque se passaram três decênios para que as terras
descobertas provocassem um maior interesse dos descobridores, levando-os a modificar a
situação de abandono em que as mesmas se encontravam [...] Como consequência da
nova posição assumida pela Coroa com relação às terras descobertas, foi instituído o
Sistema de Capitanias Hereditárias [...] Esse empreendimento tinha como meta conseguir
o efetivo domínio sobre as terras descobertas. (Idem, 2005, p. 25-26)
Da mesma forma que TRINDADE, MARIZ e SUASSUNA também recaem na ideia positiva do
“descobrimento”, fazendo uso da História integrada, delegando assim, um papel secundário e dependente
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
dos acontecimentos e fatos da Europa como forma de entender o processo pelo qual o Brasil foi então
“descoberto”, ou seja, o nascimento do novo território se deu graças aos portugueses. Num segundo
momento, os autores tratam da questão da primazia do Rio Grande do Norte no tocante a chegada dos
portugueses em solo brasileiro:
Devido sua posição geográfica, tudo indica que o Rio Grande do Norte tenha sido dos
primeiros pontos visitados do litoral brasileiro pela primeira expedição enviada ao Brasil,
em 1501, após a notificação oficial de seu descobrimento. (Idem, 2005, p. 29)
Esses autores citados anteriormente adotam acontecimentos cristalizados na memória histórica
norte-rio-grandense do início do século passado e que ainda perduram nos livros de História.
Nosso terceiro livro de análise, o Introdução à História do Rio Grande do Norte (MONTEIRO,
2002), somente encontramos uma menção ao termo descobrimento:
Portugal, a quem cabia a primazia pelo “descobrimento” da nova terra, desde 1500, frente
à ameaça francesa na exploração do pau-brasil, decidiu-se pelo envio da primeira
expedição que tinha como objetivo a conquista e ocupação efetivas desses territórios – a
expedição de Martim Afonso de Souza, de 1530. (Idem, 2002, p. 29)
Porém, em seu primeiro capítulo, “Índios, terras e armas: a luta pelo território (Séculos XVI e
XVII)”, subcapítulo denominado de “A conquista portuguesa”, encontramos o termo “conquista” logo no
subcapítulo que substitui desta forma, o politicamente incorreto, etnocêntrico (eurocêntrico) e
ocidentalizante termo “descobrimento”, pois como não é possível negar o caráter violento e dizimatório
da colonização portuguesa nos trópicos, a utilização do termo “conquista” permanece sendo plenamente
apropriada, embora também seja impossível deixarmos de reconhecer os efeitos civilizatórios exercidos
pelos nossos colonizadores lusos.
Podemos observar ainda o termo “chegada”, dentro da narrativa de MONTEIRO, “quando os
europeus chegaram às terras americanas, naqueles territórios que vieram mais tarde a constituir o Brasil,
encontraram homens e mulheres que foram por eles chamados de “índios”.” (Idem, 2002, p.19).
Ou seja, a análise da questão do “descobrimento do Brasil” nos leva a acreditar que as
representações postas em duas das obras estudadas, a de TRINDADE e a de SUASSUNA e MARIZ estão
carregados de representações eurocêntricas, que primam pela visão da História do ponto de vista
dominante e imperialista, bem como de uma noção ocidentalizante que corresponde, portanto, ao
movimento de difusão/imposição da cultura ocidental nas colônias dos Impérios Ultramarinos – em outras
palavras, à conquista das almas, dos corpos e dos territórios do Novo Mundo. Já no livro de MONTEIRO,
encontramos um posicionamento mais relativizante, como o cuidado de por aspas no termo
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
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“descobrimento”, e fazendo uso da palavra “conquista” substituindo o politicamente incorreto,
“descobrimento”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A História possibilita aos alunos o entendimento de que o mundo atual é o resultado de um longo
e contraditório processo histórico. Desde suas origens modernas, o ensino de História refletiu projetos de
nação de setores restritos da sociedade, que estimulavam determinadas identidades controladas e
desejadas pelas elites dominantes. A crise desse modelo, no quarto final do século XX, em que as
identidades multiplicaram-se, colabora para um quadro em que novos personagens adentram no drama e
passaram a reivindicar a sua aparição nas coisas e práticas pelas quais as novas gerações são educadas:
currículos e programas, materiais e livros didáticos.
Sabemos que as representações são motivadas por interesses múltiplos, já que os discursos que
constroem determinadas percepções do social não são neutros, implicando na construção das
representações pelos grupos a respeito deles próprios e dos outros, portanto, mais uma vez tomaremos
aqui as proposições abordadas por CHARTIER, para quem:
As percepções do social não são de forma alguma neutros: produzem estratégias e
práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de
outros, por elas menosprezados a legitimar um projeto reformador ou justificar, para os
próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso essa investigação sobre as
representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e
competições [...] As lutas de representações têm tanta importância como as lutas
econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta
impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus. (Idem, 1990, p. 17)
A forma como certos acontecimentos são apresentados nos livros ao longo do tempo, suas
representações no passado tem importância para a atuação da sociedade no presente. Os alunos –
principalmente os das camadas populares – que, na escola e também fora dela, recebem certas
representações – colonizantes, eurocêntricas, imperialistas - provavelmente tenderá a se ver e a se
comportar de acordo com os estereótipos difundidos pelos grupos dominantes. Naturalmente, não é
apenas a representação do passado que determina o comportamento ou a visão das camadas populares
acerca de si no presente, há de se considerar outros pontos, como a ideologia que exerce efeito ponderável
nas mudanças sociais. O aluno capaz de entender a História de uma forma mais ampla, com todas as suas
características e contradições, estará mais apto a atuar criticamente, sem idealização ingênua – como no
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
caso das heroizações – nem autodepreciação – a História do ponto de vista conservador – da
transformação social.
Dentro de uma dimensão científica, os livros de História, e os do Rio Grande do Norte também,
devem buscar retratar a realidade em sua inteireza, não apenas em sua parcialidade (entenda-se aqui a
visão do colonizador e do polo dominante), ainda que essa parcialidade tenda a imprimir o sentido maior
a essa totalidade. Os livros de História também devem ter um compromisso com a transformação social
(busca da cidadania), uma vez que o conhecimento advindo das ciências humanas relaciona-se
intimamente com uma proposta de manutenção ou transformação da sociedade, mesmo que tal proposta
não esteja explícita ou dela esteja consciente o produtor desse conhecimento.
Nosso principal intuito foi o de ampliar e problematizar um dos muitos possíveis olhares sobre a
chegada dos portugueses ao continente americano, ou seja, encará-la como “encontro de culturas”
(IGLÉSIAS, 1992) ou até mesmo como Darcy Ribeiro encara o advento dos portugueses no litoral
brasileiro, que provocou um choque de culturas afirmando que “surgimos da confluência, do entrechoque
e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros”. (RIBEIRO,
1995, p. 19).
É preciso, pois, contar a história do povo brasileiro e consequentemente do povo potiguar, a partir
dele mesmo, ou ainda, propor um espaço, no qual a sociedade consiga realmente enxergar as suas
histórias de vida e de seus antepassados da forma como ela realmente acontece ou aconteceu, pela
perspectiva da maioria da população, e não somente pela história oficial da classe dominante ou de uma
fatia da sociedade que deu certo.
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A QUESTÃO DO “DESCOBRIMENTO DO BRASIL” NOS LIVROS DE HISTÓRIA DO RIO
GRANDE DO NORTE.
Flademir Gonçalves Dantas7
Cibele Carvalho8
Resumo: O presente artigo discute o uso do termo “descobrimento do Brasil” e suas representações em três livros de
História do Rio Grande do Norte, quais são eles: Introdução à História do Rio Grande do Norte de Denise Mattos Monteiro
(MONTEIRO, 2002); História do Rio Grande do Norte dos autores Luiz Eduardo Brandão Suassuna e Marlene da Silva Mariz
(SUASSUNA; MARIZ, 2005); e o Introdução à História do Rio Grande do Norte de Sérgio Luiz Bezerra Trindade
(TRINDADE, 2007), livros amplamente utilizados nos mais diferentes níveis de ensino no Rio Grande do Norte. A pesquisa de
caráter bibliográfico e empírico tem como objetivo analisar como o termo “descobrimento do Brasil” é empregado, abordado,
contextualizado e/ou descrito e suas implicações para compreensão da História no processo de ensino-aprendizagem. A
fundamentação teórica sobre representação é embasada nas ideias de Roger Chartier (1990) e a problematização do termo
“descobrimento do Brasil” são discutidas a partir de Francisco Iglésias (1992).
Palavras-Chaves: Descobrimento do Brasil. História do Rio Grande do Norte. Ensino de História.
INTRODUÇÃO
O ensino de História sofreu grandes transformações nas últimas décadas do século XX que
ocorreram articuladas às transformações sociais, políticas e educacionais, bem como àquelas ocorridas no
interior dos espaços acadêmicos, escolares e na indústria cultural. Portanto, se faz necessário debater as
diferentes temáticas que envolvem o ensino-aprendizagem na disciplina História, e de acordo com Selva
Guimarães Fonseca:
Discutir o ensino de história, hoje, é pensar os processos formativos que se desenvolvem
nos diversos espaços, é pensar fontes e formas de educar cidadãos, numa sociedade
complexa marcada por diferenças e desigualdades. (FONSECA, 2003, p.15)
Podemos pensar que o ensino de História deixou de ser prioritariamente uma História Política e
mera compilação de datas, nomes, locais e algumas palavras-chave que precisavam ser memorizadas para
uma ampla e nova gama de novos elementos, principalmente com as contribuições advindas da escola dos
Annales, corrente historiográfica surgida na França nos anos de 1930 que buscou novos objetos e fontes,
novas teorias, novas metodologias, novos problemas para a História e consequentemente para o ensino
dela, provocando uma renovação e ampliação do conhecimento histórico e consequentemente, dos olhares
da História.
A História deixou de ser meramente decorada para ser entendida, a repetição e memorização de
informações isoladas, como nomes e datas, tem dado lugar a um processo mais complexo e, ao mesmo
7
Bacharel e Licenciado em História (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Pós-graduado Especialização
em Metodologia do Ensino de História e Geografia (Uninter - Facinter), aluno especial do Mestrado em Educação UFRN.
8
Bacharel e Licenciada em História (Universidade Federal do Paraná), Mestre em História (Universidade Federal
do Paraná), Doutoranda em História (Universidade Federal do Paraná), orientadora de TCC do Grupo Uninter.
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tempo, mais dinâmico. Na visão desses autores, essas mudanças, implicam que, “o aluno deixa de ser
visto como um ser passivo, reprodutor de um conhecimento que recebe de modo pronto e acabado, e
passa a ser entendido como agente na construção do saber.” (Idem, 2007, p. 36).
E conforme as Orientações curriculares para o Ensino Médio, “a História adquire seu pleno
sentido para o ensino-aprendizagem quando procura contribuir, com sua potencialidade cognitiva e
transformadora” (BRASIL, 2006, p. 66). Nesse sentido, os usos de materiais didáticos corroboram para
com o que foi dito acima, estes são instrumentos de trabalho do aluno e do professor, participando como
agentes na construção do saber e dão suporte na mediação entre ensino e aprendizagem, sejam eles; livros
- didáticos, paradidáticos, técnicos, especializados – filmes, excertos de jornais e revistas, mapas, dados
estatísticos e tabelas, entre outros meios de informação, têm sido utilizados com frequência nas aulas de
História. (BITTENCOURT, 2004, p. 295).
Devemos ainda considerar que o livro de História é uma mercadoria do mundo editorial, sujeito às
influências sociais, econômicas, técnicas, políticas e culturais como qualquer outra mercadoria que
percorre os caminhos da produção, distribuição e consumo.
DESENVOLVIMENTO
É dentro desse contexto que faremos a análise da questão do “Descobrimento do Brasil” 9 em três
livros de História do Rio Grande do Norte quais são eles: Introdução à História do Rio Grande do Norte
de Denise Mattos Monteiro (MONTEIRO, 2002); História do Rio Grande do Norte dos autores Luiz
Eduardo Brandão Suassuna e Marlene da Silva Mariz (SUASSUNA; MARIZ, 2005); e o Introdução à
História do Rio Grande do Norte de Sérgio Luiz Bezerra Trindade (TRINDADE, 2007).
Cremos que os livros examinados, obras de síntese da História Regional10, com edições
posteriores ao ano de 2002 e que representam uma nova produção historiográfica, todos com indicações
para uso didático.
Os livros listados acima são amplamente utilizados nos mais diferentes níveis de ensino no Rio
Grande do Norte, e levando-se em consideração levantamento realizado no Guia de Livros Didáticos
9
A chegada dos europeus às terras situadas além do Atlântico vem sendo tratada de forma diferenciada (entre
aspas, ou em itálico) nesse texto, por acreditarmos, junto com Edmundo O’GORMAN, que o descobrimento se
trata de uma construção discursiva bem ao gosto da literatura europeia da transição entre os séculos XV e XVI.
O’GORMAN. Edmund. A invenção da América. Unesp, SP. 1992.
10
O conceito de História Regional que está sendo tomado, aqui, de FREITAS, Itamar. História Regional para a
Escolarização Básica no Brasil, 2009, p. 9. Para quem os livros denominados de História Regional são impressos
que registram a experiência de grupos que se identificam por fronteiras espaciais e socioculturais – seja na
dimensão de uma cidade, seja nos limites de um Estado ou de uma região do Brasil –, sendo costumeiramente
utilizados em situação didática no ensino de História.
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PNLD 2012, verificamos que o referido Estado não possui livros didáticos regionais aprovados em
nenhuma das edições, de 2004 (ano que se iniciou a avaliação dos livros regionais) a 2011, ao contrário
de outros estados que possuem livros didáticos regionais, como a Bahia, Minas Gerais, Maranhão, São
Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Paraná, Pará, entre outros. (BRASIL, 2011, p. 4)
Devido à ausência de livros de História Regional do Rio Grande do Norte específicos para uso
didático, os três livros elencados são comumente utilizados em sala de aula, cuja função, como já foi dito,
é servir de suporte para o ensino, um instrumento de trabalho para o professor e aluno e, portanto,
carregam em si valores ideológicos e culturais, que pretendem garantir o discurso supostamente
verdadeiro dos autores. Em um processo pouco dinâmico como o que se estabelece no sistema tradicional
de ensino, cria-se um círculo vicioso: o professor torna-se um reprodutor desses mitos e imagens errôneas
– como no caso do “descobrimento do Brasil” - e passa, ele também, a acreditar neles.
Argumentaremos sobre as representações – etnocêntrica e eurocêntrica11, dominante, imperialista,
ocidentalizante12 - nos livros de História do Rio Grande do Norte usados em sala de aula, ou seja, uma
demanda intrínseca ao conteúdo e à metodologia dos livros, referente às características do processo de sua
elaboração, realizando desta forma uma análise interna dos livros no tocante ao “descobrimento do
Brasil”.
Para tanto, tomaremos como referencial teórico as ideias defendidas por Roger Chartier, no livro
História cultural - entre práticas e representações - que define que “as representações do mundo social
são construídas” e que “são sempre determinados pelos interesses dos grupos que as forjam”
(CHARTIER, 1990, p. 16). Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos
com a posição de quem os utiliza. CHARTIER, assim, aborda a questão das representações como um
conjunto de percepções do tecido social, sendo estes esquemas geradores de classificações e percepções
próprios de cada grupo, construídos em contraposição uns aos outros. Essas representações tendem a
produzir estratégias e práticas que tentam impor uma autoridade, legitimar um projeto ou justificar
condutas, sendo matrizes de discursos e práticas.
11
Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo – Eurocentrismo é o exemplo da Europa
como centro de tudo - é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos
nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. Rocha, Everardo. "O que é
Etnocentrismo", Ed. Brasiliense, 1984, pág. 7.
12
A ocidentalização corresponde, portanto, ao movimento de difusão/imposição da cultura ocidental nas colônias
dos Impérios Ultramarinos – em outras palavras, à conquista das almas, dos corpos e dos territórios do Novo
Mundo. Esse movimento de ocidentalização, levado à frente por castelhanos e posteriormente por portugueses,
produz[iu] situações de choque e relações de poder entre os recém-chegados (os europeus) e os que se
encontravam na terra firme (os nativos). O conceito e a problemática da ocidentalização estão sendo tomados,
aqui, de GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço, p. 63-110. In. Macedo, Helder Alexandre Medeiros. Citado
em Revista da Faculdade do Seridó, v.1, n.0, jan./jun. 2006. p. 16.
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Desta forma, podemos relacionar essa colocação teórica com os diferentes discursos que estão
presentes nos livros tratados nessa pesquisa, uma vez que, tais discursos procuram transmitir uma verdade
histórica e uma representação daquilo que ficou cristalizado como “descobrimento do Brasil”. Importante
frisar que outros trabalhos também observaram essas questões postas acima, mais especificamente nos
livros didáticos de História, como bem observou Oliveira (2009):
Os trabalhos sobre livros didáticos de História centraram-se nas denúncias de uma
“ideologia dominante” contida nestes, da ausência de determinados temas nos mesmos,
ou até de tratamentos errados de alguns temas ou fatos pelos autores de livros didáticos.
(Idem, 2009, p. 38)
Pensar acerca das representações que estes livros transmitem sobre o período da chegada dos
portugueses ao que viria a ser o Brasil é refletir sobre o papel dos indígenas na construção social e
cultural da História do país, parafraseando DAVEIS (2009) essa abordagem da História vista nos livros
de História “nega a existência de sociedades indígenas antes da chegada dos portugueses e privilegia a
iniciativa europeia”. (Idem, 2009, p. 127). E de acordo com que Ferro (1983) mostra-nos em enfáticas
linhas:
Não nos enganemos: a imagem que temos de outros povos, e até de nós mesmos, está
associada à História que nos ensinaram quando éramos crianças. Ela nos marca para o
resto da vida. Sobre essa representação, que é para cada um de nós uma descoberta do
mundo e do passado das sociedades, enxertam-se depois opiniões, ideias fugazes ou
duradouras, como um amor..., mas permanecem indeléveis as marcas de nossas primeiras
curiosidades, das nossas primeiras emoções. (Idem, 1983, p.11)
O discurso contido nos livros se amplia de importância, por isso se faz necessário esclarecer o que
vem a ser “descobrimento”, pois conforme nos aponta Francisco Iglésias em artigo intitulado Encontro de
duas culturas: América e Europa “a palavra descobrimento, empregada com relação a continentes e
países, é um equívoco e deve ser evitada” (IGLÉSIAS , 1992, p. 23). Ou seja, de acordo com o
historiador, só se descobre uma terra sem habitantes; se ela é ocupada por homens, não importa em que
estágio cultural se encontrem, já existe e não é descoberta. Apenas se estabelece seu contato com outro
povo.
A temática dos “descobrimentos” nos remete a uma ordem de significação que corresponde ao
imaginário europeu do século XV, para o qual a América, habitada por povos bárbaros, deveria
transformar-se em um "Novo Mundo". Nela, os descobridores e colonizadores deveriam implantar todos
os padrões básicos da cultura europeia, soterrando a barbárie. As cidades construídas, segundo as
determinações dos europeus, representariam a implantação dos padrões básicos da cultura europeia.
Seriam a expressão primeira de um Novo Mundo criado à imagem e semelhança do velho. Assim, o
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Brasil refeito, segundo os moldes europeus, tornar-se-ia parte substancial na montagem de uma economia
mundial, centralizada em Portugal.
A utilização da expressão "descobrimento do Brasil", que denuncia a maneira pela qual a chegada
dos portugueses em terras do continente americano é interpretada, tendo os europeus como protagonistas
de um encontro entre povos que estabelece a inserção dessas terras e das populações que as habitavam na
História Ocidental. Como afirma SILVA (2000, p. 197), "a visão de paraíso e a noção de descobrimento e
não fundação produz uma naturalização da história". Ou seja, o “descobrimento” é visto como algo
positivo, que trouxe a civilização aos trópicos, a História, e permitiu avanços aos indígenas em termos de
sua melhora na “qualidade de vida”.
No nosso caso específico, podemos observar que TRINDADE (2007) em seu livro Introdução à
História do Rio Grande do Norte inicia da seguinte forma a sua narrativa:
O Rio Grande do Norte é parte de um território, o brasileiro, de proporção
verdadeiramente continental. Entendemos só ser possível compreender a história do Rio
Grande do Norte a partir da história do Brasil. E uma melhor compreensão da história
brasileira só é possível levando-se em consideração a necessidade de um conhecimento
anterior à data do Descobrimento propriamente dito, que, tradicionalmente e
cronologicamente, é 22 de abril de 1500. É o marco cronológico inicial da história do
Brasil. Porém é necessário o conhecimento dos fatos anteriores que nos possibilite uma
compreensão mais abrangente do processo histórico que resultou no descobrimento.
(Idem, 2007, p. 17)
Para TRINDADE, compreender melhor a História do Rio Grande do Norte é tão somente entender
a História do Brasil e consequentemente a da expansão marítima europeia - contextualizando esquecendo-se, desta forma, das sociedades indígenas que aqui já habitavam. O “descobrimento” é visto
como fundação/origem da nação brasileira. Por isso, temos sempre que ter em mente que “o ensino de
História é um fenômeno social fundamental, nas sociedades contemporâneas, de constituição da
identidade, memória e consciência histórica de indivíduos e coletividades”. (FERREIRA; CERRI, 2007,
p. 76).
Logo em seguida temos um capítulo dedicado à expansão marítima europeia com ênfase na
formação de Portugal e as grandes navegações empreendidas pelos luso-portugueses. Dentro deste
capítulo encontramos um subtítulo “o descobrimento do Brasil” no qual o autor utiliza o termo
“descobrimento do Brasil” ou “descoberta do Brasil” 15 (quinze) vezes. (Idem, 2007, p.17, 23, 24, 25, 26,
41)
TRINDADE ainda procura debater se o descobrimento do Brasil foi proposital ou não:
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
São muitos os estudiosos que defendem a intencionalidade do descobrimento do Brasil,
confrontando-se com a tese consagrada, durante muito tempo, de que o Brasil teria sido
descoberto casualmente, quando Cabral se afastou da costa africana para fugir das
tempestades e/ou calmarias que assolavam aquela área, principalmente na costa do Guiné.
(Idem, 2007, p. 24)
Podemos observar que ele aborda a História de uma forma integrada (MOREIRA;
VASCONCELOS, 2007, p. 49), isto é, pelo tratamento da História da civilização ocidental de modo
articulado com os conteúdos de História do Brasil. Priorizando, desse modo, a compreensão do processo
histórico global, mas tendo por eixo condutor uma perspectiva de tempo cronológica e sucessiva, definida
a partir da evolução europeia.
Importante frisar aqui o que MORAIS (2009) nos esclarece acerca da História integrada:
Ensina-se aos alunos a teoria da eterna dependência, em que as determinações externas
são mais importantes do que as internas, e o Brasil não é o agente de sua própria história,
mas espectador. Com isso, fortalece-se a ideia de que as tensões e contradições internas
desempenham um papel secundário na construção da nação. O Brasil torna-se, assim,
apenas o resultado da História Geral. (Idem, 2009, p. 207)
Portanto, é muito importante à forma como abordamos os temas, conceitos e dados na narrativa
histórica dentro da sala de aula, sejam usando livros, músicas, vídeos, textos. Pois, de acordo com
Munakata (1997):
Por trás do ‘texto’ (livros, materiais, suportes vários), há toda uma seleção cultural que
apresenta o conhecimento oficial, colaborando de forma decisiva na criação do saber que
se considera legítimo e verdadeiro, consolidando os cânones do que é verdade e do que é
moralmente aceitável. Reafirmam uma tradição, projetam uma determinada imagem da
sociedade, o que é a atividade política legítima, a harmonia social, as versões criadas
sobre as atividades humanas, as desigualdades entre sexos, raças, culturas, classes sociais;
isto é, definem, simbolicamente a representação do mundo e da sociedade, predispõem a
ver, pensar, sentir e atuar de certas formas e não de outras, o que é conhecimento
importante, porque são ao mesmo tempo objetos culturais, sociais e estéticos. Por trás da
sua aparente assepsia não existe a neutralidade, mas a ocultação de conflitos intelectuais,
sociais e morais. (Idem, 1997, p. 137)
Outra questão que TRINDADE levanta, trata da localização exata do descobrimento do Brasil:
Outra polêmica que surgiu no final do século XX é sobre o local exato do descobrimento
do Brasil. A tese consagrada, e até aqui indiscutível, é a de que o Brasil foi descoberto
por Porto Seguro, na Bahia. Lenine Pinto (1998) confronta essa tese, argumentando que o
descobrimento do Brasil não ocorreu na Bahia e sim no Rio Grande do Norte. (Idem,
2007, p. 26)
Ao final do Capítulo I, TRINDADE propõe a leitura de dois textos complementares, destacamos
aqui o primeiro deles intitulado: “Pedro Álvares Cabral no Rio Grande do Norte” de autoria de Lenine
Pinto (Reinvenção do descobrimento. Natal: RN Econômico, 1998), no qual podemos observar a
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
preocupação do autor em debater, problematizar mais uma vez se o Brasil teria sido “descoberto” em
Porto Seguro na Bahia ou em Touros no Rio Grande do Norte:
Faltam em Porto Seguro, entretanto, provas simbólicas e materiais que atestem a
ocorrência do descobrimento no porto seguro baiano, ao contrário da área de Touros,
onde foi deixado pelo menos um traço inequívoco da presença de Cabral. Aqui Cabral
chantou um marco que trazia para o descobrimento da Índia, providência indispensável
num descobrimento oficial, demarcando o ponto de arribagem da esquadra. (Idem, 2007,
p. 41)
Já no livro História do Rio Grande do Norte (MARIZ e SUASSUNA, 2005) encontramos 5
(cinco) menções ao termo “descobrimento” ou “descoberta” (Idem, 2005, p. 25, 26, 29), e em seu
primeiro capítulo, “O século XVI e a região do Rio Grande”, no ponto 1, “As origens da estrutura
territorial e do poder político”, subponto 1.1, “anos de formação”, temos que:
O descobrimento do Brasil em 1500 se enquadra no contexto do expansionismo
comercial europeu que ocorria na época, voltado para a busca de lucros e de novos
mercados para a exploração. O evento para a Coroa Portuguesa, de imediato causou
pouca euforia, uma vez que o seu alvo maior era o Oriente, onde os lucros configuravamse muito mais significativos, razão porque se passaram três decênios para que as terras
descobertas provocassem um maior interesse dos descobridores, levando-os a modificar a
situação de abandono em que as mesmas se encontravam [...] Como consequência da
nova posição assumida pela Coroa com relação às terras descobertas, foi instituído o
Sistema de Capitanias Hereditárias [...] Esse empreendimento tinha como meta conseguir
o efetivo domínio sobre as terras descobertas. (Idem, 2005, p. 25-26)
Da mesma forma que TRINDADE, MARIZ e SUASSUNA também recaem na ideia positiva do
“descobrimento”, fazendo uso da História integrada, delegando assim, um papel secundário e dependente
dos acontecimentos e fatos da Europa como forma de entender o processo pelo qual o Brasil foi então
“descoberto”, ou seja, o nascimento do novo território se deu graças aos portugueses. Num segundo
momento, os autores tratam da questão da primazia do Rio Grande do Norte no tocante a chegada dos
portugueses em solo brasileiro:
Devido sua posição geográfica, tudo indica que o Rio Grande do Norte tenha sido dos
primeiros pontos visitados do litoral brasileiro pela primeira expedição enviada ao Brasil,
em 1501, após a notificação oficial de seu descobrimento. (Idem, 2005, p. 29)
Esses autores citados anteriormente adotam acontecimentos cristalizados na memória histórica
norte-rio-grandense do início do século passado e que ainda perduram nos livros de História.
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Nosso terceiro livro de análise, o Introdução à História do Rio Grande do Norte (MONTEIRO,
2002), somente encontramos uma menção ao termo descobrimento:
Portugal, a quem cabia a primazia pelo “descobrimento” da nova terra, desde 1500, frente
à ameaça francesa na exploração do pau-brasil, decidiu-se pelo envio da primeira
expedição que tinha como objetivo a conquista e ocupação efetivas desses territórios – a
expedição de Martim Afonso de Souza, de 1530. (Idem, 2002, p. 29)
Porém, em seu primeiro capítulo, “Índios, terras e armas: a luta pelo território (Séculos XVI e
XVII)”, subcapítulo denominado de “A conquista portuguesa”, encontramos o termo “conquista” logo no
subcapítulo que substitui desta forma, o politicamente incorreto, etnocêntrico (eurocêntrico) e
ocidentalizante termo “descobrimento”, pois como não é possível negar o caráter violento e dizimatório
da colonização portuguesa nos trópicos, a utilização do termo “conquista” permanece sendo plenamente
apropriada, embora também seja impossível deixarmos de reconhecer os efeitos civilizatórios exercidos
pelos nossos colonizadores lusos.
Podemos observar ainda o termo “chegada”, dentro da narrativa de MONTEIRO, “quando os
europeus chegaram às terras americanas, naqueles territórios que vieram mais tarde a constituir o Brasil,
encontraram homens e mulheres que foram por eles chamados de “índios”.” (Idem, 2002, p.19).
Ou seja, a análise da questão do “descobrimento do Brasil” nos leva a acreditar que as
representações postas em duas das obras estudadas, a de TRINDADE e a de SUASSUNA e MARIZ estão
carregados de representações eurocêntricas, que primam pela visão da História do ponto de vista
dominante e imperialista, bem como de uma noção ocidentalizante que corresponde, portanto, ao
movimento de difusão/imposição da cultura ocidental nas colônias dos Impérios Ultramarinos – em outras
palavras, à conquista das almas, dos corpos e dos territórios do Novo Mundo. Já no livro de MONTEIRO,
encontramos um posicionamento mais relativizante, como o cuidado de por aspas no termo
“descobrimento”, e fazendo uso da palavra “conquista” substituindo o politicamente incorreto,
“descobrimento”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A História possibilita aos alunos o entendimento de que o mundo atual é o resultado de um longo
e contraditório processo histórico. Desde suas origens modernas, o ensino de História refletiu projetos de
nação de setores restritos da sociedade, que estimulavam determinadas identidades controladas e
desejadas pelas elites dominantes. A crise desse modelo, no quarto final do século XX, em que as
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
identidades multiplicaram-se, colabora para um quadro em que novos personagens adentram no drama e
passaram a reivindicar a sua aparição nas coisas e práticas pelas quais as novas gerações são educadas:
currículos e programas, materiais e livros didáticos.
Sabemos que as representações são motivadas por interesses múltiplos, já que os discursos que
constroem determinadas percepções do social não são neutros, implicando na construção das
representações pelos grupos a respeito deles próprios e dos outros, portanto, mais uma vez tomaremos
aqui as proposições abordadas por CHARTIER, para quem:
As percepções do social não são de forma alguma neutros: produzem estratégias e
práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de
outros, por elas menosprezados a legitimar um projeto reformador ou justificar, para os
próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso essa investigação sobre as
representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e
competições [...] As lutas de representações têm tanta importância como as lutas
econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta
impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus. (Idem, 1990, p. 17)
A forma como certos acontecimentos são apresentados nos livros ao longo do tempo, suas
representações no passado tem importância para a atuação da sociedade no presente. Os alunos –
principalmente os das camadas populares – que, na escola e também fora dela, recebem certas
representações – colonizantes, eurocêntricas, imperialistas - provavelmente tenderá a se ver e a se
comportar de acordo com os estereótipos difundidos pelos grupos dominantes. Naturalmente, não é
apenas a representação do passado que determina o comportamento ou a visão das camadas populares
acerca de si no presente, há de se considerar outros pontos, como a ideologia que exerce efeito ponderável
nas mudanças sociais. O aluno capaz de entender a História de uma forma mais ampla, com todas as suas
características e contradições, estará mais apto a atuar criticamente, sem idealização ingênua – como no
caso das heroizações – nem autodepreciação – a História do ponto de vista conservador – da
transformação social.
Dentro de uma dimensão científica, os livros de História, e os do Rio Grande do Norte também,
devem buscar retratar a realidade em sua inteireza, não apenas em sua parcialidade (entenda-se aqui a
visão do colonizador e do polo dominante), ainda que essa parcialidade tenda a imprimir o sentido maior
a essa totalidade. Os livros de História também devem ter um compromisso com a transformação social
(busca da cidadania), uma vez que o conhecimento advindo das ciências humanas relaciona-se
intimamente com uma proposta de manutenção ou transformação da sociedade, mesmo que tal proposta
não esteja explícita ou dela esteja consciente o produtor desse conhecimento.
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Nosso principal intuito foi o de ampliar e problematizar um dos muitos possíveis olhares sobre a
chegada dos portugueses ao continente americano, ou seja, encará-la como “encontro de culturas”
(IGLÉSIAS, 1992) ou até mesmo como Darcy Ribeiro encara o advento dos portugueses no litoral
brasileiro, que provocou um choque de culturas afirmando que “surgimos da confluência, do entrechoque
e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros”. (RIBEIRO,
1995, p. 19).
É preciso, pois, contar a história do povo brasileiro e consequentemente do povo potiguar, a partir
dele mesmo, ou ainda, propor um espaço, no qual a sociedade consiga realmente enxergar as suas
histórias de vida e de seus antepassados da forma como ela realmente acontece ou aconteceu, pela
perspectiva da maioria da população, e não somente pela história oficial da classe dominante ou de uma
fatia da sociedade que deu certo.
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DO LADO DE CÁ DO ATLÂNTICO: A AMÉRICA NO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA
Rivaldo Amador de Sousa13
Resumo: Na maioria dos livros didáticos de história do ensino fundamental II os Estados latinoamericanos quase não
aparecem como tema de discussão que envolva sociedade, cultura, diversidade, política, espacialidades e que permitam aos
educandos pensar a América como realmente ela é: constituída de diferentes povos, línguas, tradições e identidades. A
América explorada concentra-se tão apenas em alguns países, quando aparecem no currículo escolar, mas com maior
intensidade os Estados Unidos visto antes de tudo como potência econômica. No entanto, a outra América continua
desconhecida e inexplorada e os alunos não são incitados a explorarem a diversidade desse mundo pouco conhecido nas aulas
de história através do livro didático. Embora a Europa esteja do outro lado do Atlântico é o continente mais exposto,
explorado e discutido em materiais didáticos em todas as séries do ensino fundamental. Nossa pretensão neste trabalho é
contribuir para uma discussão, já iniciada há algum tempo, sobre as possibilidades de uma nova história da América nos livros
de história do ensino fundamental. É possível que com a presença da cultura norte americana no cotidiano dos educandos, estes
apresentem facilidades de sentirem necessidade de conhecer por outros meios como, por exemplo, a internet. É importante que
os educandos conheçam a América enquanto continente formado pela diversidade étnica e toda uma terra pluricultural com
uma língua irmã.
No Brasil, durante muito tempo, os estudos acadêmicos desenvolvidos por historiadores
contemplavam muito pouco temas que estivessem relacionados à América Latina como âmbito
depositário de uma imbricada relação entre as nações que constitui esse continente. As pesquisas
históricas que exploravam a América se concentravam, em sua grande parte, no âmbito da história
política e/ou econômica e quase não se discutia a cultura enquanto elemento constitutivo de sociedades e
de valores predominantes que determinam o futuro de uma sociedade.
Hoje, em grande parte dos livros didáticos de história do ensino fundamental II, os Estados
latinoamericanos quase não aparecem como tema de discussão que envolva sociedade, cultura,
diversidade, política, espacialidades e que permitam aos educandos pensar a América como realmente ela
é: constituída de diferentes povos, línguas, tradições e identidades. A América explorada concentra-se tão
apenas em alguns países, quando aparecem no currículo escolar, mas com maior intensidade os Estados
Unidos visto antes de tudo como potência econômica. No entanto, a outra América continua desconhecida
e inexplorada e os alunos não são incitados a explorarem a diversidade desse mundo pouco conhecido nas
aulas de história através do livro didático. Embora a Europa esteja do outro lado do Atlântico é o
continente mais exposto, explorado e discutido em materiais didáticos em todas as séries do ensino
fundamental. Nossa pretensão neste trabalho é contribuir para uma discussão, já iniciada há algum tempo,
sobre as possibilidades de uma nova história da América nos livros de história do ensino fundamental. É
possível que com a presença da cultura norte americana no cotidiano dos educandos, estes apresentem
facilidades de sentirem necessidade de conhecer por outros meios como, por exemplo, a internet. É
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Mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande. Professor de história do Ensino Fundamental II do
município de João Pessoa-PB
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
importante que os educandos conheçam a América enquanto continente formado pela diversidade étnica e
toda uma terra pluricultural com uma língua irmã.
Algumas indagações nos permitem pensar as possíveis razões pelas quais os estudos acadêmicos
privilegiavam o que parece ser ainda hoje predominante, as pesquisas que concentram a Europa como
espaço historiográfico que concentram um maior número de eventos históricos estudados pelas crianças,
adolescentes e jovens no Brasil. Tais fatos históricos que retratam experiências e saberes giram entorno
da constituição de uma identidade nacional. Para tanto são fundamentais os conceitos de Estação, nação,
pátria, herói, independência, cidadania entre outros.
Uma América entre conquistadores e conquistados
Na exploração da história americana se sobressai dois elementos díspares e duais, colonizadores e
colonizados, conquistadores e conquistados, exploradores e explorados, santos e demônios. Esse interesse
de mostrar apenas duas Américas acaba por definir somente uma delas.
Para alguns especialistas que elegem a América como objeto de estudo, sobretudo no livro
didático, nos primeiros compêndios escolares de história o continente americano se apresentava como o
lugar conquistado e civilizado pelos europeus (FERNANDES e MORAIS, 2010). As mudanças e
transformações por que passaram o mundo permitiram o surgimento de novos paradigmas científicos, o
que refletiu no processo da uma renovação historiográfica. Tudo isso valeu uma demanda por uma
profunda revisão sobre escritas, verdades, conceitos, metodologias, discursos que acabou por redefinir
novos objetos, novos problemas, e a invenção de uma nova narrativa historiográfica.
Apesar de toda essa mudança, nos livros didáticos a Europa ainda continua sendo tomada como
um dos pontos de partida para se pensar as culturas diversas, principalmente aquelas que foram suas
colônias. E isso pode ser entendido quando analisamos o conteúdo selecionado e explorado por alguns
desses manuais.
Ainda de acordo com Fernandes e Morais (2010), os estudos americanos em análise de alguns
livros didáticos mais vendidos no Brasil, esses materiais parecem reproduzir o que compêndios históricos
do século XX criaram como a concepção dualista de barbárie e civilização. Esses conceitos parecem não
ter sidos considerados como elementos de jogo de poder que tentam reproduzir uma idéia eurocêntrica de
dominação. E nesse sentido a Europa aparece como o centro do mundo porque detém todo um arcabouço
de conhecimento de técnicas, descobertas e invenções, linguagens, calendários, redes comerciais e de
mercados internacionais.
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Mas a maneira como o conteúdo é explorado também se torna preocupante. Não podemos deixar
de reconhecer as potencialidades de leituras críticas desenvolvidas pelo público leitor, ou seja, o aluno. O
dualismo acaba por definir a existência de apenas dois lados, dois mundos: o dos vencidos e o dos
vencedores, o dos líderes e o dos liderados.
A inovação dos livros didáticos
De acordo com alguns historiadores o ensino de história sofreu mudanças significativas no final
do período ditatorial que por sua vez teria restringido à história a função de conteúdo disciplinar junto às
disciplinas de OSPB e EMC, operando a partir de uma educação tecnicista. A crítica a esse modelo na
segunda metade dos anos 1980 refletiu na produção de um livro didático que efetivou consideráveis
mudanças a partir da década de 1990 (STAMATTO, 2008). Nessa mesma perspectiva Ricci (2008, 117)
afirma que as inovações no ensino de história acompanharam outras mudanças que diríamos também
pedagógicas e didáticas na culminância com as normatizações e orientações educacionais como a Lei de
Diretrizes e Bases e os Parâmetros Curriculares Nacionais que permitem, até certo ponto, pensar a
educação não restrita a serviço de um Estado, mas esses a serviço do cidadão.
Mas isso foi possível
também por meio da iniciativa acadêmica, pois que, “a dicotomia ensino-pesquisa desfez-se na sala de
aula, a despeito de nem sempre ser relevante para o mundo acadêmico”. Ou seja, “a educação básica
configura-se como espaço de construção de conhecimentos, de desenvolvimento de competências e
habilidades historiográficas”.
Além disso, a implementação da avaliação do PNLD a partir do ano de 2007 funcionou, de certa
maneira, como uma pressão necessária à possibilidade de efetivação de algumas mudanças contínuas na
busca pela produção de um livro didático de história que valorize não apenas a formação de cidadãos com
pertencimento a uma identidade nacional, mas também na constituição de sensibilidades no sentido de
perceberem e respeitarem a diversidade, a singularidade, as mudanças e transformações por que passaram
o mundo e os sujeitos nele inseridos.
Os livros didáticos
Alguns livros didáticos passaram pelas nossas mãos seja com o uso deles em sala de aula seja
apenas como instrumento de consulta durante elaboração de plano de aula. Para esse trabalho elegemos
apenas dois manuais de história, considerando os seus quatro volumes (6º, 7º, 8º e 9º anos). O primeiro,
“História: Sociedade e Cidadania” de Alfredo Boulo Júnior. O autor é mestre em História Social pela
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USP e Doutor em Educação pela PUC-SP. O segundo “história e vida integrada” de Nelson Piletti e
Claudino Piletti. Nelson Piletti é graduado em filosofia, pedagogia e jornalismo, mestre e doutor em
educação pela USP. Claudino Piletti também graduado em filosofia e pedagogia com doutorado em
educação pela USP. Portanto, os dois últimos autores, advindos da mesma universidade.
Para se obter a escolha dos dois livros didáticos que ora estamos analisando utilizamos
basicamente dois critérios que consideramos importante. Primeiro, consideramos a experiência que
obtivemos em sala de aula com os dois manuais, durante o período de 2008 a 2012, para discutirmos o
princípio da ausência de temas e espaços relacionados ao continente americano. O segundo critério foi o
da escolha e indicação pelo PNLD, considerando os anos de edição desses volumes, ou seja, 2008/2009.
No sentido de figurar melhor a discussão em torno dessa temática elaboramos dois gráficos
representativos que nos permitem pensar a ideia sobre a presença do continente americano nas páginas
dos livros didáticos de história que analisamos. Nos gráficos, dividimos os espaços continentais eleitos
em quatro, de acordo com a sua exploração. Ficando assim distribuídos: Europa, América, Ásia/África e
Brasil. Para tanto consideramos o número de capítulos e a sua distribuição, mas nem sempre esses
capítulos são contados uma única vez. Em raros capítulos os quatros espaços distribuídos são explorados,
seja de maneira simultânea ou não. Cada um dos gráficos expostos na página seguinte corresponde a cada
uma das duas coleções com seu respectivo autor.
9
8
7
6
5
4
3
2
Brasil
América
Europa
Ásia/África
1
0
6º Ano
7º Ano
8º Ano
9º Ano
Gráfico 1: BOULOS JÚNIOR, Alfredo. História: sociedade e cidadania. São Paulo: FTD, 2009.
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
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12
10
8
Brasil
6
América
4
Europa
2
Ásia/África
0
6º Ano
7º Ano
8º Ano
9º Ano
Gráfico 2: PILETTI, Nelson; PILETTI, Claudino. História e vida integrada. São Paulo: Ática, 2008
Apesar de as duas obras apresentarem uma variedade de recursos didáticos tais como textos,
quadros, imagens, mapas, gráficos, atividades, o conteúdo relacionado à América é bastante reduzido.
Como podemos perceber, essa afirmação está representada nos gráficos expostos acima.
Quando esse continente aparece como parte do conteúdo desses manuais didáticos está geralmente
vinculado a exploração de personagens compreendidos como heróis ou vilãos (Francisco Pizarro, Simón
Bolívar, José San Martín, Tupac Amaru, George Washington, Abraham Lincoln, Fidel Castro etc),
guerras (Guerras de independências das colônias espanholas, guerra do Paraguai, Guerra de Secessão, as
guerrilhas em Cuba) e políticas ditatoriais.
Todos os conteúdos explorados nesses manuais que tratam da América remetem a constância de
uma história economicista que se explica pela ideia de exploração, de conquista, de governo, de mercado
etc.
Que América está no cotidiano do educando: o exemplo dos EUA
Embora não esteja presente fortemente no livro didático, os Estados Unidos interfere diretamente
na vida e no cotidiano dos brasileiros no mercado e na sua cultura. Durante todo o século XX, a indústria
cinematográfica de Hoollyood foi, e ainda continua sendo, o principal instrumento de divulgação de uma
cultura de massa que constituiu um mercado consumista e criou, ao mesmo tempo, a imagem de nação
poderosa, tomando para si o nome do continente. É por meio dos filmes, principalmente os que esboçam
ação e guerra, os mais vendidos, que a identidade de um país rico e aparentemente democrático aparece
nas telas do cinema e da TV no Brasil.
A imagem construída é aquela de um mundo civilizado pelos próprios norteamericanos que
parecem simpatizar com todos os habitantes do mundo. Heróis de guerras nos desenhos animados e de
espírito cosmopolita, exemplo para o mundo de uma nação sem preconceituosa, desigualdades ou
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
qualquer valor depreciativo. O mercado definido pela beleza com que se explora o protagonista não
parece expor a sua verdadeira face de dominação e exploração. A boneca Barbie é um sinal de uma não
camuflada, mas visivelmente prática cultural de sociedade e socialização fortemente preconceituosa na
exploração de um mercado preconceituoso.
Sabemos que o mercado se constitui numa rede imbricada de relações de oferta e demanda e que
são essas negociações que mais aproximam uma nação da outra. Contudo, não é, verdadeiramente, isso
que determina tais relações de aproximação ou distanciamento. Há também uma troca mútua de
experiências e saberes que permitem a existência dessa rede de mercado. Ou seja, as aproximações de
mercados não se reduzem a um determinismo economicista.
A construção de qual identidade?
Durante muito tempo se pensou a seleção de conteúdos para a confecção do livro didático de
história tendo como único pressuposto a formação de uma identidade nacional. Verdadeiramente, os
livros atuais permitem pensar essa construção ainda a partir dos mitos do herói e das figuras constitutivas
durante muito tempo na historiografia e os eventos revolucionários que parecem reviver nas páginas dos
manuais de história.
Pensando assim, até que ponto deve-se defender a constituição de uma identidade e que identidade
nacional deve ser eleita? Esse papel aglutinador não deixa escapar uma idéia de imposição e falseamento
quando homogeneíza culturas, valores, diferenças e acaba por negá-las? De que maneira devemos
considerar essa diversidade na pretensa construção de uma identidade nacional?
É possível uma América “paratodos”?
A idéia de que jamais podemos entender o outro sem conhecer primeiro a nós mesmos é
verdadeiramente aplicável na prática da sociabilidade e através do processo de reconhecimento da
diversidade e do respeito a ela. Sendo assim, não devemos esquecer que não somos ilhas e que, portanto,
estamos sempre ligados ao outro, igual ou diferente não importa, e acabamos por formar um conjunto, um
todo.
Se entendermos que a educação é um ponto de partida, um instrumento de mudanças e
transformações sobre o que pensa uma determinada sociedade, podemos afirmar que rever as leituras que
fazemos e como fazemos sobre a América não salvará o continente, mas oferecerá condições para a
construção de outros caminhos, de novos horizontes, pensando na criança como parte integrante de uma
nova sociedade.
A América não aparece apenas nos livros didáticos de história, mas também em outros recursos e
em diferentes áreas do conhecimento e que pode ser explorada de maneira indireta. São exemplos disso as
novas tecnologias que oferecem acesso a esses saberes (pesquisa em internet, redes sociais, programas
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
televisivos, cinema e música) e que passam a ser incorporados aos diferentes meios de comunicação e
que, embora não tenha uma linguagem pedagógica, acabam sendo objetos de apropriação no processo de
socialização de crianças e adolescentes. No entanto, essa maneira indireta não vai atingir o objetivo que
tem a proposta de um livro didático, mesmo que aquele tenha um cunho pedagógico com o seu próprio
método.
Os sujeitos aparecem nas páginas dos livros didáticos como heróis e sempre oriundo de classes
elitizadas. No entanto, as classes menos favorecidas, os pobres quase não aparecem e quando são falados
surgem como elementos massificados e grupos unificados, ou seja, homogêneos.
A unidade, a homegeinização na busca da construção de uma identidade pode, infelizmente, negar,
apagar, excluir a existência de um elemento importantíssimo na constituição da história das sociedades: a
existência de singularidades. A focalização em uma única proposição, a de unificar, acaba por criar e
exaltar falsos heróis que acabam se sobressaindo por sobre diferentes categorias e grupos sociais. Esses
pretensos heróis da história passam a se alimentar de mitos que, por sua vez, estão carregados de uma
falsa idéia de identidade nacional.
O livro didático acaba, dessa maneira, corporificando uma concepção de hierarquia social e não se
preocupa por uma tarefa de desconstrução de mitos e de “falsas verdades” que camuflam as desigualdades
e diferenças, postulando uma unidade e a idéia de um só povo, de uma só nação. Essa pretensa idéia de
construção de uma identidade custa muito caro a um Estado que se julga uma verdadeira democracia, mas
que revela uma nítida compreensão da existência de uma outra realidade
Assim como a cartografia da América que apresenta as suas diferentes nações, o livro didático
também deve ser um “mosaico” que exibe diferentes culturas, diversas singularidades que compõem um
todo e dar-lhe vida, constatando-se como um documento caminho para o reconhecimento da diversidade e
respeito às diferenças. Um livro que seja a face da realidade e que promova o desenvolvimento de
competências e habilidades para se construir um mundo em que o homem e a mulher garantam aos seus
ascendentes um elemento fundamental à humanidade, a felicidade e, portanto, o direito de todo e qualquer
cidadão, o de ser feliz.
As mudanças e transformações ocorridas principalmente na segunda metade do século XX
alteraram significativamente as noções de espaço e tempo, e tantos outros conceitos na formação de
novos saberes e novas sensibilidades. Esses são elementos constitutivos de um novo discurso
historiográfico que permite pensar na multiplicidade, na diversidade, na singularidade, na igualdade, no
pertencimento, no direito à memória e à história de todos.
Então, por que saber América?
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Esse questionamento surge a partir de indagações feitas pela historiadora Joana Neves (2008, 75)
proposta em um artigo de sua autoria e que ela coloca como um eixo norteador de busca das razões que
explicam a importância do estudo de determinados temas e épocas na disciplina de história em sala de
aula.
Penso como alguns historiadores e especialista do ensino de história que a escolha e seleção de
grande parte dos conteúdos a serem trabalhados no livro didático devem partir de alguns critérios
importantes que direcionam a resposta à indagação anterior. E um desses critérios é conhecer o
consumidor desse material, o educando, e o espaço em que ele vive. Assim, partimos da demanda, ou
seja, das necessidades que tem uma determinada sociedade saber tal e qual evento, mudanças, saberes e o
que e como esses saberes se inserem na vida do educando de maneira que passam e/ou determinam, ou no
mínimo influenciam a formação e instituição de determinadas práticas culturais.
E quais demandas estão vinculadas a necessidade de um saber América e outros saberes históricos,
também importantes na seleção desses conteúdos, que compõem o livro didático? Quais as razões que
explicam essas demandas? Até que ponto elas devem ser consideradas, atendidas e, portanto, selecionadas
como parte dos conteúdos do livro didático de história voltado para a criança e o adolescente? Até que
ponto a Europa é ou, pelo menos, deve ser importante - enquanto espaço histórico e socialmente
interligado a formação de uma nação, de uma sociedade, no caso aqui o Brasil – no estudo enquanto
conteúdo do livro didático?
Essas indagações nos levam a pensar também na contextualização de mudanças e transformações
por que passaram determinadas sociedades e espaços, especificamente na segunda metade do século XX,
para que se tornasse uma demanda. E nisso pensemos como a própria América mudou e criou outros
vínculos sejam político-econômicos, sejam de caráter cultural. Sejam vínculos de afastamento, sejam
vínculos de aproximação. Pensemos nos dois casos. Primeiro, nos diferentes de meios de comunicação
que movimentam instantaneamente uma miríade de informações quase que os educandos tem acesso e
que informações chegam a respeito da América? E, segundo, o que essas informações tem a ver com o
cotidiano do educando?
Responderemos aos questionamentos propostos logo que fizermos um percurso histórico das
últimas décadas na América e contextualizarmos tais mudanças com a experiência das novas gerações
com a constituição de novos saberes e sua importância na vida social fundamentados na idéia de Jacques
Delors sobre os quatro pilares da educação. E isso logo nos remete o como o mundo virtual e suas
tecnologias adentraram e se constituíram como importantes na vida social dessas novas gerações. Essas
tecnologias favoráveis a comunicação instantânea não favorecem apenas aos EUA, a Europa, Ásia, mas
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
também e fundamentalmente a aproximação maior dos países latinoamericanos. Elas nos remetem a idéia
não apenas da constituição de novos saberes, mas também a instituição de um mercado de consumo
visivelmente crescente. Além desse outros elementos importantes que convivem diariamente com grande
parte da sociedade brasileira - e que parecem bastante escondidos na sala de aula ou, pelo menos no livro
didático - principalmente com as fronteiras é o comércio ilegal e o tráfico de drogas.
O uso desenfreado e que vem crescendo assustadoramente nos últimos anos no Brasil é o consumo
de drogas ilícitas, especialmente a cocaína proveniente em sua grande parte de países latinoamericanos,
principalmente da Colômbia, Peru e Bolívia e que este aspecto está relacionado diretamente ao mundo do
trabalho, à pobreza e às desigualdades sociais. E, então, se pergunta: como não estudar o comércio e o
consumo de drogas a partir de sua origem e produção?
As práticas esportivas crescentes na maioria da população jovem brasileira instituem-se como uma
maneira integradora das nações americanas no PAN, por exemplo. Assim também, o futebol, como
esporte predominante no Brasil, tem esse mesmo papel na competição entre as nações do continente
americano, seja na Copa América, nos Jogos Pan-Americanos, na Copa Libertadores da América ou
mesmo em outras modalidades esportivas que permitem a aproximação cada vez maior dos países
latinoamericanos.
Tecendo algumas considerações
Embora a discussão tenha sido experimental no sentido de que não se trata de um intelectual, mas,
antes de tudo, de um profissional da educação fundamental que parte de suas experiências em sala de aula
e com o livro didático, pretende, se não desconstruir a idéia de América construída no livro didático, mas
provocar a possibilidade de uma discussão que eleja essa temática como um eixo importante para a
constituição de GTs que relacione o ensino de história aos problemas da América e a sua ausência no
livro didático como espaços de experiências de saberes, de singularidades, de visões diferentes de mundo.
Isso pode ser possível a partir da exploração de temáticas como conteúdos a serem trabalhados em sala de
aula.
Pensamos que a participação do professor de história do ensino fundamental e médio na torrente
desses questionamentos é importantíssima, uma vez que pode gerar discussões produtivas para a
renovação do pensar tal ou qual conteúdo do livro didático. É ele que vive o processo de ensino e
aprendizagem e que ocupa o papel central capaz de captar as sensibilidades da realidade em seu campo de
trabalho e que, em muitas vezes, não se encontra tão próximo da academia ou mesmo essa se permite tão
distante dele.
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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STAMATTO, Maria Inês Sucupira. Historiografia e ensino de história através dos livros didáticos de
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Batista de (Orgs.). Ensino de História: múltiplos ensinos em múltiplos espaços. Natal-RN: EDFURN,
2008. pp. 137-149
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
ST 03: Formação dos Estados
Nacionais nas Américas Dr.
Álvaro Antonio Kafke (UPF) Dr.
Arthur Lima de Ávila (UFPEL)
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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UM IMPÉRIO AMERICANO, MAS CIVILIZADO: O PROGRESSO SOB A ORDEM NO
DISCURSO DA IMPRENSA BRASILEIRA NO SÉCULO XIX
Álvaro Antonio Klafke∗
Resumo: A comunicação trata de analisar o discurso da imprensa sul-rio-grandense da primeira metade do século XIX,
buscando perceber a articulação proposta entre as ideias de civilização, progresso e a necessidade – imposta pelas elites – de
manutenção de uma ordem social hierárquica e autoritária. Parte-se do pressuposto de que, para além da preservação dos
interesses, era necessário, do ponto de vista discursivo, apontar para o futuro. Todavia, qualquer projeção estava limitada pelo
espectro, tido como pernicioso, da participação dos setores subalternos: indígenas, escravos, pobres em geral, imigrantes ainda
não integrados. A questão em pauta era, portanto, que posição tais setores ocupariam na estrutura sócio-política então em
processo de construção. Nesse sentido, objetiva-se propor uma reflexão que retorna às origens da formação nacional brasileira
para discutir aspectos contemporâneos da problemática questão da inclusão/exclusão social no Brasil.
Neste texto pretende-se tecer algumas considerações acerca do discurso da imprensa sul-riograndense da primeira metade do século XIX, buscando perceber a articulação proposta entre as ideias de
civilização, progresso e a necessidade – imposta pelas elites – de manutenção de uma ordem social
hierárquica e autoritária. Parte-se do pressuposto de que, para além da preservação dos interesses, era
necessário, do ponto de vista discursivo, apontar para o futuro. Todavia, qualquer projeção estava
limitada pelo espectro, tido como pernicioso, da participação dos setores subalternos: indígenas, escravos,
pobres em geral, imigrantes ainda não integrados. A questão em pauta era, portanto, que posição tais
setores ocupariam na estrutura sócio-política então em processo de construção. Nesse sentido, objetiva-se
propor uma reflexão que retorna às origens da formação nacional brasileira para discutir aspectos
contemporâneos da problemática questão da inclusão/exclusão social no Brasil.
Tomemos como ponto de partida, seguindo Ilmar Mattos, que a construção da nação dar-se-ia
fundamentada na rígida noção de posição em relação ao conjunto da sociedade. “Assim, às diferenças e
hierarquias presentes na sociedade correspondiam as diferenças e hierarquizações entre a nação brasileira
e as demais ‘nações’, pondo em evidência a noção de ordem que também identificaria a experiência
imperial brasileira”.14 Se a nação era composta de várias pátrias e “nações”, em processo de reunião,
impunha-se a questão de quem seriam os nacionais, ou seja, quem seriam os brasileiros, naquele mosaico
étnico e hierárquico? A fragilidade e o artificialismo do processo de construção de uma identidade
nacional então em curso, além da importância que se dava às questões relativas ao pertencimento e a
exclusão, pode ser percebida, entre outras coisas, pela atenção conferida aos seus símbolos externos:
∗
Doutor em História. Professor do Curso de História e do PPG em História da Universidade de Passo Fundo/RS.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. Construtores e herdeiros. A trama dos interesses na construção da unidade política. In:
JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec/FAPESP, 2005, p. 298.
14
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O Laço Nacional [insere nota: O Laço Nacional deve constar de campo verde com centro
amarelo, e não certas garatugens mescladas, que se não sabe o que é.] em Porto Alegre já
não distingue os Nacionais dos Estrangeiros, principalmente agora nos últimos dias, em
que parece que só se traz por moda e não por distinção. O Francês, o Alemão, o Espanhol
e o negro cativo trazem Laço Nacional!! Qual será a nossa divisa daqui por diante, se
todos lançarem isto ao desprezo, e se não tomarem sobre este abuso medidas policiais? Já
houve quem visse um Francês com laço tricolor por baixo, e o Brasileiro por cima: não
duvido, que isto seja de algum modo mostrar a estima em que tem a nossa Nação, mas
nós de bom grado lhe devemos agradecer tal oferta: mostre (se quiser) sua estima em
outras cousas. Alemães Colonos, (que ainda não foram considerados Cidadãos
Brasileiros) também trazem Laço Nacional: eu não duvido que eles pertençam de fato à
Família Brasileira, mas não pertencem de direito, e é quanto basta para não trazerem o
distintivo Brasileiro. Repetidas vezes têm aparecido escravos com o distintivo Brasileiro;
talvez seus senhores que tal consentem, sejam iguais em sentimentos àquele que na Vila
do Rio Grande o pregou nas costelas da cabrita: a esses e outros semelhantes homens (e
principalmente a uns certos que só deitaram Laço Brasileiro depois das notícias do dia 7
de Abril) nós com muita razão diríamos como outrora da feliz chegada aos Fluminenses –
larga o tope, que já estás forro, e com muitíssima razão, porquanto esses então cativos de
seu amo e senhor hoje se acham libertos pela generosidade dos Brasileiros.
Desejaria também saber a que família quererão pertencer certos Estrangeiros de
papeletas... daqueles... daqueles... que estando no Brasil já antes da Independência,
ousaram tirar a sardinha com a mão do gato, estrangeirando-se à vontade do Ministro de
então; e eu, se me não engano, diviso hoje certo sujeito de cavalgaduras altas que em
outro tempo fez na Corte muito rebuliço para obter Papeleta de Estrangeiro, e que hoje
tem deixado ver o seu Laço Brasileiro: porém oh! Miséria nossa! Quando será o Brasil
dos Brasileiros? Telo-á sido por ventura depois do Faustíssimo dia 7 de Abril? Eu não sei
o que a isso se possa responder, quando ainda nos tempos de hoje há gente que se não
envergonha dizer que, não cré no que vé. Adeus Sr. Redator: cuidado com o tope. Um
Brasileiro.15
Aqui, através da publicidade dada à correspondência, já começavam a ser esboçados os critérios
que circunscreveriam o brasileiro efetivamente pertencente à comunidade nacional. Evidentemente que o
laço o distinguiria dos demais estrangeiros que aqui viviam, e deveria ser sinal de exclusividade, daí o
escândalo com que o missivista encarava o seu uso disseminado.16 De outra parte, é interessante a
observação sobre os colonos alemães, pertencentes à “família brasileira” de fato mas não de direito. A
afirmação de que eles ainda não eram considerados cidadãos brasileiros diz muito acerca do caráter de
adesão voluntária do processo de constituição da nacionalidade, e do viés político que o cercava. Isto
também era confirmado pelas ironias dirigidas aos portugueses indefinidos, aos que esperavam e
avaliavam as tendências políticas para uma tomada de posição (a expressão não cré no que vé parece
15
Correio da Liberdade. Porto Alegre, n. 15, 4 de junho de 1831.
A relevância dos símbolos exteriores de pertencimento se nos apresenta, às vezes, de forma um tanto insólita. Veja-se que
não só em relação às cores devia ser dada atenção. Nesses tempos, a forma de apresentar-se podia significar identificação
imediata com alguma corrente política. Uma correspondência inserida no Artilheiro tratava dos bigodes e cavanhaques:
“Prescindindo da futilidade de pêras [cavanhaques], e bigodes, que em essência nada significam, e sobre que deveria haver
total indiferença em qualquer outra época, nas atuais circunstâncias contudo, e atendendo que as opiniões e usos regem o
Mundo, me parece este objeto de alguma transcendência, e até revoltante. O bigode é insígnia dos Legalistas, assim como a
pêra o é dos farrapos”. Queixava-se de que alguns usavam bigode e pêra, provocando confusão. O Artilheiro. Porto Alegre, n.
49, 30 junho 1838.
16
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satirizar o sotaque – lusitano? – ao mesmo tempo que apontaria para uma expectativa de que a situação
política ainda pudesse mudar).
Há um certo paradoxo nas assertivas do autor. Se, de um lado, fica evidente o peso das injunções
políticas na constituição da “família brasileira”, também é visível que existiria um tipo de identidade mais
genuína, oriunda da adesão precoce aos movimentos que conduziram à Abdicação de D. Pedro I, ou quem
sabe, remontaria ainda ao período das lutas de independência. De qualquer forma, ainda assim seria um
tipo de identidade nacional politicamente construída, e, principalmente, hierarquizada, diferenciando-se
radicalmente dos princípios do sentimento de nacionalidade que o Romantismo propagaria no Brasil,
sobretudo na segunda metade do século XIX.17
Com relação aos escravos, ao risco sublinhado pela referência à revolta que deu origem ao Haiti,
onipresente no discurso favorável e contrário à escravidão, somava-se a percepção de uma ordem
profundamente alterada: “Ai dos Leais que aparecem na rua, pelo menos são insultados pelos negros, que
engrossam as fileiras de Bento Gonçalves, e por brancos tão bons, ou piores do que eles”.18 A acusação de
que os farrapos agregavam escravos ou negros libertos em suas tropas demonstra uma clara distinção que
era pretendida pelos legalistas, em termos sociais. Assim, era motivo de denúncia certa espécie de
“contaminação” promovida pelos adversários em um conflito que, em princípio, dava-se intra-elites.
Seguindo essa tônica, uma proclamação de Francisco das Chagas Santos, relatando a retomada de Porto
Alegre pelos “Leais”, afirmava que os “sediciosos” engrossaram suas fileiras com lavradores
desmoralizados, facínoras e, “o que é mais horrendo, com escravos que armaram”.19
Chagas Santos mencionava outros segmentos, mas a atenção recaía sobre os negros, brandindo-se,
muito explicitamente, os custos da cisão social que a presença maciça da escravaria significava.
Comentando a informação de que tropas legalistas teriam sabido que “tem os inimigos uma força de 300
homens, quase toda composta de negros armados de lanças”, o redator do Liberal reagia com escândalo,
por este “recurso mais infame, e atroz”, questionando: “Não pensarão esses perversos, que essas mesmas
armas, que hoje dirigem aos peitos leais dos defensores da Integridade do Império, se a fatalidade
permitisse, que eles triunfassem, haviam de ser voltadas contra os mesmos anarquistas?”20 Muito
provavelmente este contingente compunha-se dos afamados lanceiros negros, de destino trágico no
desenlace do conflito. Acerca da formação do grupo, o sarcasmo do Artilheiro registrava uma das suas
17
Alencar seria um dos principais executores da “construção” do Brasil unificado e mesmo dos “brasileiros”. Como sustenta
Flora Süssekind, ocorre, no XIX, um processo cultural de figuração que “ao mesmo tempo que significa o ‘começo histórico’
de uma viagem, precisa negar que é algo que se funda. E, ato contínuo, mostrar que sempre estivera lá, que se está apenas
retornando a uma identidade nacional meta-histórica original”. SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a
viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 61.
18
O Liberal Rio-Grandense. Rio Grande, n. 36, 7 de maio de 1836.
19
O Liberal Rio-Grandense. Rio Grande, n. 57, 27 de julho de 1836.
20
O Liberal Rio-Grandense. Rio Grande, n. 79, 12 de outubro de 1836.
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
imputações favoritas aos farroupilhas, chamando-os de ladrões, quando relatava as movimentações do
“Caudilho David Canabarro com 400 Livres (extorquidos a seus Senhores!)”.21
A opinião que os periódicos legalistas manifestavam sobre a presença dos negros, escravos ou
não, nas forças farroupilhas não era mais do que conseqüência de uma visão geral que muitos detinham
da conformação social brasileira. Esta aparecia, sem rebuços, em um artigo comunicado, do Jornal do
Comércio, sob o título “FRANÇA, carta ao redator do Journal du Commerce”, que era uma resposta a um
texto ali publicado sobre o Brasil (Do Brasil e do seu novo Regente). A análise pretendia-se realista, no
sentido de amalgamar os interesses das elites:
No Brasil não há na população classes que tenham interesses opostos: não há,
propriamente falando, senão senhores e escravos, não sendo a classe proletária de
importância alguma, sobretudo nas Províncias preponderantes. Ora os escravos não
entram na política, e os senhores têm tamanho interesse em se coligarem contra eles, e em
se encostarem a um centro de autoridade geral, que, por pouco que o Governo mostre
bom senso e firmeza, e seja acessível ao espírito de progresso, que hoje em todos os
países tende a penetrar por todos os povos da civilização, pode-se predizer que o Brasil se
adiantará também no caminho dos melhoramentos.22
O Liberal, mesmo que em texto transcrito, deixava entrever algumas balizas que norteavam o
discurso legalista imperial, nas quais o espírito de progresso, ainda que calcado na rigidez hierárquica
derivada da força de trabalho cativa, deveria apontar para o rumo da civilização. Concreto, em tal
discurso, era o reforço da necessidade de união contra uma daquelas “nações” internas, de que fala Ilmar
Mattos, não absorvidas na sociedade brasileira.
Ao lidar com vários “outros” na difícil conformação do conjunto de cidadãos brasileiros que
sustentariam as bandeiras da nação e do Estado que se estruturava, o discurso centralizador, além do
problema da enorme massa de escravos e libertos, tinha de enfrentar a não menos delicada problemática
dos indígenas. Um Artigo de Ofício transcrito pelo Correio da Liberdade, informando e convocando os
cidadãos para uma diligência de iniciativa do governo provincial, dá a medida da questão:
Sendo bem constante as hostilidades que têm praticado os Bugres com os pacíficos
habitantes de vários lugares desta Província, e sobre o que tem este Governo dado as
providências, ao seu alcance; contudo pela distância dos ditos lugares, e não se poder
talvez acudir ao mesmo tempo todos os pontos, cumpre que Vm., convocando algumas
pessoas do seu Distrito, que voluntariamente se prestem, as faça reunir, e armar,
dirigindo-as a que entrem pelas florestas, e lugares de suspeita, a fim de o explorarem, e
evitar as incursões daqueles bárbaros, no que fará um grande serviço ao Governo, e aos
habitantes do seu Distrito, cuja polícia está a seu cargo. Deus Guarde a Vm. Porto Alegre
21
22
O Artilheiro. Porto Alegre, n. 30, 17 de fevereiro de 1838.
O Liberal Rio-Grandense. Rio Grande, n. 65, 24 de agosto de 1836.
46
ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
4 de Maio de 1831. – Américo Cabral de Mello, Vice-Presidente. Sr. Juiz de Paz do
Presídio das Torres.23
Os termos da nota indicam o uso da recorrente antítese retórica dos “cidadãos pacíficos”
(civilizados) confrontando os bárbaros. Mas aqui, mais do que o costumeiro efeito de contraste, era
justificada e autorizada oficialmente uma ação armada que, em nome da segurança, de certa forma define
o que está dentro ou fora da comunidade nacional. Os “bárbaros”, este outro que, perceba-se, habitava as
“florestas” que todavia estavam por ser efetivamente conquistadas, nesse momento serviam como reforço
de identificação para a categoria dos pacíficos habitantes.
Na província, a forma explicitamente excludente de projetar a sociedade, no que se refere
principalmente aos escravos, mas também aos índios, vinha acompanhada de desconfiança quanto aos
imigrantes estrangeiros. No Rio Grande do Sul, o problema era com os colonos alemães, abrindo outro
flanco à percepção das vicissitudes que envolviam os temas atinentes à formação da nacionalidade. Um
periodista comentava a falta de um padre na Colônia de São Leopoldo:
A Colônia de São Leopoldo, que hoje em dia conta alguns milhares de habitantes,
originários de diversas Nações, até aqui administrados por um Inspetor e com dois
Capelães, sendo um Católico Romano, e outro Protestante, hoje se vê totalmente
abandonada à discrição destes mesmos homens, oriundos de países, cujas linguagens e
costumes diferem muito dos nossos e dos quais um grande número é extraído de soldados
mercenários acostumados à imoralidade e à rapina das Campanhas, e o resto de sujeitos
vindos por convenção de países longínquos, onde é natural que se não escolhessem os
mais virtuosos para serem exportados.24
Embora travestida em uma linguagem que apelava à força do controle (indução ao auto-controle)
exercido pela religião, mostrava-se evidente a preocupação com a contenção de uma população que
poderia ser de difícil enquadramento ou assimilação. Estas pessoas seriam oriundas de diversas nações
(problema da heterogeneidade, de complicada resolução em termos de nacionalidade), com linguagens e
costumes distintos dos nossos. O pronome possessivo indica um movimento de pertencimento e
simultaneamente de homogeneização, ancorado em uma pressuposição de aceitação tácita do que seria
este conjunto de valores (nossos), em um período no qual nada, em relação à constituição da nação,
estava assentado.25
23
Correio da Liberdade. Porto Alegre, n. 19, 18 de junho de 1831.
Correio da Liberdade. Porto Alegre, n. 23, 2 de junho de 1831.
25
Todavia, cumpre reiterar que já havia manifestações de um nascente nacionalismo eminentemente brasileiro, quando menos
para defender a honra ofendida. O Artilheiro, por exemplo, ao comentar um artigo do Sete de Abril, que rebatia um curioso
apontamento de “um viajante Francês” sobre a prática da sodomia entre os brasileiros, asseverava: “Ainda supondo (o que é
uma atroz calúnia) que esse vício hediondo predominasse nos Brasileiros, como poderia acontecer o contrário, se a escória das
outras Nações, isto é, das que não falam a mesma língua, que nós, vem para o Brasil continuamente?” Ele dizia estar
preocupado em “defender a Nação Brasileira contra a língua danada de um perverso”. O Artilheiro. Porto Alegre, n, 9, 16
24
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Uma amostra de que o tema era polêmico surgiria no mesmo jornal, pouco depois, através de uma
carta que contestava a opinião emitida sobre os militares alemães. O redator respondia tratando de
estabelecer uma distinção entre soldados mercenários (“servirão eles somente no exército do Brasil?”) e o
“Cidadão Soldado, a quem justamente cabe o atributo de defensor da Pátria”.26 Ou seja, era mantida a sua
opinião pouco favorável à imigração e a preocupação quanto à efetiva capacidade de integração dos
estrangeiros. As considerações um tanto teóricas de 1831 acerca dos alemães viriam à tona, na prática,
quando da Revolução Farroupilha, pois houve uma divisão entre os colonos, tornando-os alvo do
interesse de legalistas e farrapos.
A definição quanto a quem seriam os brasileiros e quais as suas prerrogativas, portanto, estava
pendente. Exemplar na demonstração da complexidade da questão foi uma polêmica travada a partir de
uma denúncia feita por Francisco Xavier Ferreira, o conhecido político, periodista e mais tarde ativista
farrapo, contra Manoel da Silva Rios. Chico da Botica, como era conhecido, acusara o segundo de
introdução de escravos contrabandeados em Rio Grande. Em uma carta de defesa, Silva Rios sustentava
que, “se bem que nascido em Portugal, sou tão Brasileiro como ele [Ferreira], nascido na Colônia do
Sacramento”, e, portanto, “quero que todos saibam que faço parte da grande Família Brasileira”, da
mesma forma que o contendor, que provavelmente utilizara-se do argumento da nacionalidade na
disputa.27
Foram citados alguns exemplos que devem ser vistos como tentativas de interpretar,
circunscrevendo, as posições gerais de periódicos defensores da integridade imperial relativas à
conformação de uma nação marcada pela heterogeneidade e hierarquização. Entretanto, ainda cabe uma
última amostra que parece tocar em um ponto fundamental. Em 12 de outubro de 1831, ao comentar uma
corrida de cavalos realizada em Porto Alegre, que teria reunido de três a quatro mil homens (“gente
branca”, como era frisado), sendo 800 “de cavalo”, o redator do Correio da Liberdade afirmava que “é
fútil o receio, que alguns terroristas maliciosos, ou pusilânimes nos querem incutir sobre a possibilidade
de que os escravos atentem um dia contra a nossa segurança”.28
A afirmação aparentemente otimista indicava preocupações subjacentes, relativas à construção de
algum tipo de identidade que ultrapassasse a discussão sobre distribuição de cargos entre brasileiros natos
ou não, por exemplo. Paradoxalmente, a forma como era lembrado e minimizado o perigo estava
setembro 1837. Aqui percebe-se que se tocara na corda nacionalista, o que levava o redator a descambar para uma posição
xenófoba, no afã de defender a nação. Note-se que a menção sobre a “qualidade” dos imigrantes era similar, no conservador
Artilheiro e no moderado Correio da Liberdade. Sem menoscabo do seu conteúdo político, a polêmica também constitui um
interessante tema de história cultural.
26
Correio da Liberdade. Porto Alegre, n. 25, 9 de julho de 1831.
27
O Observador. Rio Grande, n. 156, 15 de março de 1834.
28
Correio da Liberdade. Porto Alegre, n. 52, 12 de outubro de 1831.
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vinculada à coesão das forças constituídas pela população branca. Note-se que o redator deixava
transparecer que a ameaça era real, em que pese os termos severos com que eram caracterizados os seus
divulgadores, pois só o poderio dos brancos parecia garantir segurança ou desestimular uma possível
revolta mais ampla dos escravos. Assim configurado um inimigo interno tão estigmatizado, isto servia
para aplacar outras dissensões, e o papel desempenhado pelo Estado imperial tornava-se então
fundamental, devido ao reconhecimento de que, independente da força armada representada pelas
populações brancas de algumas localidades (como o redator afirmava ser o caso de Porto Alegre),
somente um governo central forte seria uma efetiva garantia de segurança e de desenvolvimento da
economia escravista.
Com uma idéia de nação predominante, incluindo de forma limitada e incerta outras “nações”,
estruturava-se a edificação política e social peculiar que, não obstante, guardava características gerais do
sistema escolhido. “O Império representou uma solução permanente para todos aqueles regimes e
instituições que, chegados a um determinado momento crítico de sua evolução, procuraram descobrir e
definir uma forma superior de poder legal e internamente centralizador, a fim de superar suas
dificuldades”.29
E as dificuldades eram de várias ordens. Problemas de equalização social e política internos,
refletidos pelos diversos conflitos regenciais, respondiam também às determinações de um contexto
internacional de redefinição global, no mundo ocidental, do sistema de Estados. A província sul-riograndense, no seu decênio mais conflituado, emprestava cor local a questões discutidas em âmbito muito
mais amplo.
Articular um discurso que conseguisse preservar a monarquia, elemento unificador, como símbolo
de poder e estabilidade, ao mesmo tempo que acenasse ao futuro, dentro de um marco liberal, pautado
pelo conceito de progresso. Este era um dos objetivos dos defensores da unidade imperial, e traduziu-se,
na sua obra conjunta, em textos interessantes, embora não isentos de aparentes incoerências. De resto, as
contradições eram aquelas próprias da época das revoluções liberais.
Mais especificamente, no caso sul-rio-grandense, haveria que sustentar explicitamente uma
concepção organicista do Estado, reforçada por considerações de ordem pragmática. Ao estabelecer esta
crítica, a imprensa deixava transparecer idéias de estruturação da nação nas quais parecem evidentes as
correspondências com o modelo que afinal moldou a vida política e social brasileira até a proclamação da
República. É neste sentido que podemos falar que o Império também era construído nas periferias, por
29
COLLIVA, Paolo. Império. In: BOBBIO, N., MATTEUCCI, N. e PASQUINO, G. (org.). Dicionário de política. p. 621622.
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identidade de princípios e interesses, não por mera adesão.30 Tais identidades conformam uma visão de
mundo peculiar, dotada das particularidades mais óbvias como as que exigiam a defesa de uma sociedade
absolutamente desigual, porém pautada por princípios liberais. Essa visão sofria a determinação de uma
peculiaridade fundamental, constituidora de um paradoxo que fundamentava os demais, aquele que
pretendia unir, no discurso, concepções conservadoras, do ponto de vista político e social, com
apontamentos na direção do futuro do “vasto e poderoso império”, na expressão de Maria de Lourdes
Viana Lyra. Este império se construiu sobre bases sociais que hoje exigem reflexão, na medida em que
pretendeu estabelecer um modelo de “civilização” marcado por exclusões ainda problemáticas.
Fontes de pesquisa:
Periódicos: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa (Porto Alegre), Arquivo Histórico
Moysés Vellinho (Porto Alegre) Biblioteca Rio-Grandense (Rio Grande), Biblioteca Pública Pelotense
(Pelotas), e Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro).
O Artilheiro (Porto Alegre, 1837-1838)
O Continentista (Porto Alegre, 1835-1836)
Correio da Liberdade (Porto Alegre, 1831)
O Liberal Rio-Grandense (Rio Grande, 1835-1836)
O Observador (Rio Grande, 1832-1834)
O Propagador da Indústria Rio-Grandense (Rio Grande, 1833-1834)
Referências Bibliográficas
ALONSO, Paula (compiladora). Construcciones impresas: panfletos, diarios y revistas en la formación
de los Estados nacionales en América Latina, 1820-1920. México: Fondo de Cultura Económica, 2004.
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de sombras: a
política imperial. 2ª Ed. rev. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Relume Dumará, 1996.
COLLIVA, Paolo. Império. In: BOBBIO, N., MATTEUCCI, N. e PASQUINO, G. (org.). Dicionário de
política. Brasília: Ed. UNB, 1999.
COSER, Ivo. Visconde do Uruguai – centralização e federalismo no Brasil. Belo Horizonte: Editora
UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2008.
30
Cf. KLAFKE, Álvaro Antonio. O Império construído nas fronteiras: defesa da unidade na província sul-rio-grandense. In:
COSTA, Wilma Peres & OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles (org.). De um império a outro: estudos sobre a formação do
Brasil, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Hucitec/FAPESP, 2007.
50
ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
DOLHNIKOFF, Miriam. Elites regionais e a construção do Estado nacional. In: JANCSÓ, István (org.).
Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo – Ijuí: Hucitec/FAPESP/UNIJUÍ, 2003.
______ O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
JANCSÓ, István e PIMENTA, João Paulo G. Pimenta. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o
estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem
incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). São Paulo: Ed. SENAC, 2000.
KLAFKE, Álvaro Antonio. O Império na província: construção do Estado nacional nas páginas de “O
Propagador da Indústria Rio-Grandense” – 1833-1834. Porto Alegre: UFRGS/ PPG em História, 2006.
(dissertação de mestrado)
______ O Império construído nas fronteiras: defesa da unidade na província sul-rio-grandense. In:
COSTA, Wilma Peres & OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles (org.). De um império a outro: estudos sobre a
formação do Brasil, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Hucitec/FAPESP, 2007.
KLAFKE, Álvaro Antonio & ARCE, Ana Inés. O “escritor público”: imprensa e constituição do Estado no
Brasil imperial. In: Anais do IX Encontro Estadual de História. [http://www.eeh2008.anpuhrs.org.br/site/anaiseletronicos]
LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império: Portugal e Brasil:
bastidores da
política, 1798/1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994.
MARTINS, Ana Luiza & Luca, Tania Regina de (org.). História da imprensa no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2008.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
______ Construtores e herdeiros. A trama dos interesses na construção da unidade política. In: JANCSÓ,
István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec/FAPESP, 2005.
MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na
Cidade Imperial, 1820/1840. São Paulo: Hucitec, 2005.
MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). São Paulo:
Ed. SENAC, 2000.
MOTA, Carlos Guilherme. Idéias de Brasil: formação e problemas (1817-1850). In: Idem (org.). Viagem
incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). São Paulo: Ed. SENAC, 2000.
SOUZA, Iara Lis F. S. Carvalho. Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo – 1780-1831.
São Paulo: Ed. da UNESP, 1999.
51
ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo, Companhia das
Letras, 1990.
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
ASPECTOS DA SOCIEDADE SERGIPANA ATRAVÉS DO DIÁRIO OFICIAL DE SERGIPE
(1895-1900).
Edla Tuane Monteiro Andrade*
RESUMO: São poucos os trabalhos da historiografia sobre a imprensa em Sergipe. Afora alguns trabalhos acadêmicos,
servem como referência textos de Armindo Guaraná (1913), Sebrão Sobrinho (1947) e Acrísio Torres de Araújo (1993). Longe
de ser apenas um veículo propagador de ações de Estado, o Diário Oficial de Sergipe revela facetas importantes da História e
da Cultura de Sergipe e para a pesquisa histórica. O presente trabalho será pautado pela análise do papel da imprensa oficial no
período de transição entre os regimes de governo: Monarquia e República. Em suma, pretende-se aqui uma interpretação
preliminar do conteúdo veiculado no Diário Oficial, para que a partir destas notícias seja possível obter um panorama acerca
dos diversos aspectos da sociedade neste período. Vale ressaltar que também se apresenta como um resultado preliminar de
projeto desenvolvido no Arquivo Público de Sergipe (APES) por meio do Programa Especial de Inclusão em Iniciação
Científica (PIIC), da Universidade Federal de Sergipe.
PALAVRAS-CHAVE: Imprensa – Diário Oficial – Sociedade Sergipana.
Introdução
No Brasil, a imprensa surgiu tardiamente e sua gênese está intrinsecamente ligada à vinda da corte
para o Brasil em 1808. A partir daí foi surgindo concomitantemente a necessidade em se imprimir os atos
do Governo e divulgar as notícias que interessavam a Coroa Portuguesa, portanto iam sendo implantados
as atividades tipográficas mediante o aval Régio, destacando a criação do primeiro periódico brasileiro A
Gazeta do Rio de Janeiro. Ultimamente, se tem notado o desenvolvimento de grandes estudos sobre a
história da imprensa no Brasil e que partem de diversas áreas como Comunicação, Ciências Sociais,
Arquivologia e principalmente História.
Claro que essas novas produções não substituem e não desconsideram trabalhos clássicos como o
do historiador Nelson Werneck Sodré escrito em meados da década de 60 o qual traz uma síntese da
história da imprensa no Brasil. Quando se estuda sobre este tema, as possibilidades de abordagens são
múltiplas. Dessa forma, este material impresso pode ser visto como uma imensa fonte documental sendo
muito útil para o surgimento de novas indagações e abordagens políticas, culturais, sociais contribuindo
para o desenvolvimento de pesquisas sobre uma determinada situação histórica e sobre uma dada
realidade. Nesta perspectiva deve-se fazer uma ressalva ao pensamento de Lúcia Neves:
Em estudos recentes a imprensa tanto constitui memórias de um tempo, as quais,
apresentando visões distintas de um mesmo fato, servem como fundamentos para pensar e
repensar a História quando desponta como agente histórico que intervém nos processos e
episódios, e não mais como um simples ingrediente do acontecimento. (LÚCIA NEVES
et al.,2006)
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Já na segunda metade do Século XIX intensificavam-se as lutas travadas entre monarquistas e
republicanos que criticavam o autoritarismo e defendiam o liberalismo. A partir de 1870 percebe-se uma
mudança no cenário nacional com a ampliação das discussões em torno da questão republicana e da causa
abolicionista que era defendida principalmente pela elite cultural do país como, jornalistas, intelectuais e
escritores. É evidente que o Brasil vivia um momento conturbado por causa da transição de regime. Já em
meados de 1880, verifica-se um efervescente debate político, causador de várias agitações populares.
Nesse contexto de discussões políticas, a imprensa, como força social ativa através dos jornais de várias
tendências políticas, teve papel primordial para influenciar a orientação da opinião pública com seus
discursos durante esse período de transformações políticas. E dessa forma,
Há de que se perceber também o papel da imprensa como instituição de controle social,
servindo à própria estrutura de poder e agindo como veículo de manutenção da ordem
vigente. (BARBOSA, 2007, p.17)
Entretanto, devemos frisar que nesse período de transição da Monarquia pra a República era
também um momento de “busca de uma identidade coletiva para o país, de uma base para a construção da
nação.” (CARVALHO, 2008, p.32). Isso nos faz perceber que, segundo Sodré, “a exaltação política da
época está integralmente retratada na imprensa” (SODRÉ, 1999, p.263). A Proclamação da República que
foi resultante da Questão Militar, pois estes estavam descontentes com o Governo, promoveram um golpe
em 15 de Novembro de 1889 que derrubou a Monarquia e instalou o regime Republicano no país. Um
trecho encontrado no Diário nos diz muito à respeito da opinião dos leitores republicanos diante este fato:
Quando a 15 de Novembro de 1889 a Monarquia morreu apoplética nos braços do Sr.
Visconde de Ouro preto, a República Nascente encontrou o Dr. Prudente de Moraes no
seu posto de honra para saudá-la com efervescência dos carentes puritanos.(Diário
Oficial, 04 de Outubro de 1896, pág.01)
A partir do ano de 1895 verifica-se uma mudança no cenário do jornalismo impresso onde
inovações técnicas pouco a pouco fazem os jornais assumirem uma estrutura empresarial, isto é, uma
transição entre a fase artesanal e a fase industrial da imprensa a qual demandava capitais e uma avançada
organização capitalista. Dessa forma, a produção que não se adaptar á forma capitalista, a qual não adota
os equipamentos e práticas modernas (rotativas, telégrafo, trabalho assalariado e divisão de tarefas) será
excluído e poderá desaparecer.
Uma exceção, quantos ao surgimento de nos instrumentos no período foi a criação, em 1891, do
Jornal do Brasil, um diário já estruturado como empresa e que trazia inovações importantes para a época:
54
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distribuição em carroças, correspondentes estrangeiros como, Joaquim Nabuco, e que aos poucos vai se
formando um jornal de grande prestígio. Esse é um primeiro aspecto de transição do período. Fazendo
uma comparação em escala nacional, a imprensa em locais como o Rio de Janeiro era variada e numerosa,
pois se deve considerar a importância de outros jornais como: Jornal do Comércio, Gazeta de Notícias, O
País, Correio da Tarde, entre outros. É neste período que o “jornal tornou-se um produto de consumo
corrente” (ALBERT E TERROU, 1990, p.51).
Metodologia
Optou-se neste trabalho pela pesquisa documental e por uma análise preliminar do conteúdo
veiculado no Diário Oficial procurando através das páginas deste resgatar e reconhecer aspectos da
sociedade Sergipana particularizando no período compreendido entre os anos de 1895 a 1900, que tem
como marco político a Proclamação da República. Além disso, este trabalho surgiu da necessidade em se
dar maior ênfase ás pesquisas relacionadas ao jornalismo sergipano e principalmente levantar reflexões
sobre a nossa imprensa ao mostrar o papel que a mesma tinha na sociedade. Para servir de base teórica
para a realização pesquisa utilizamos a historiografia sobre a história da imprensa bem como produções
acadêmicas mais recentes representadas pela obra de Marialva Barbosa com “História Cultural da
Imprensa: Brasil-1900-2000”. No entanto, a pesquisa ainda não foi concluída, pois a análise dos jornais
não foi feita em todo o período delimitado.
A imprensa em Sergipe tem sua origem através da ação de Monsenhor Antonio Fernandes da
Silveira, cujo possui o ilustre posto de fundador da Imprensa Sergipana, dando nome a seu jornal de
Recopilador Sergipano. Foi ele que em meio às dificuldades enfrentadas no período regencial, funda na
independente província de Sergipe Del-Rey o primeiro jornal, que foi publicado na Vila Constitucional da
Estancia em Setembro 1832, possibilitando assim, a abertura de um novo meio de transmissão de
informações que modificaria o cenário da comunicação em Sergipe. Então, surge a necessidade de se criar
uma imprensa que assuma um caráter oficial frente às ações do governo sobre o Estado, uma imprensa de
caráter moderno e que se preocupa a divulgação do progresso moral e material de Sergipe. Dar-se então
inicio a trajetória e lançamento do Diário Oficial de Sergipe, cujo tem como objetivo ser,
Uma imprensa não subordinada ás oscillações do interesse particular,fazia-se, de há
muito, sentir-se entre nós e isto explica o apparecimento deste órgão de publicidade.
(Diário Oficial de Sergipe, 1895, p.01).
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Este novo instrumento de informação que se forma em Sergipe, assumirá um papel muito
importante, que vai desde o seu “Diário Official”, uma vez que este termo “diário” possui um significado
de modo popular, entendido como um objeto que tem por função manter uma relação diária de descrever
e informar fatos que ocorreram no dia. Considerando a ideia de que o veículo de comunicação mais
importante no final do século XIX e início do Século XX era a imprensa escrita, Em suma, em meio ás
lutas políticas o Diário era um órgão republicano e uma “arma” com o qual o Estado poderia lutar.
A Imprensa Oficial em Sergipe foi criada através de uma autorização concedida pela Lei nº 54 de
05 de Agosto de 1894 durante o governo do Presidente de Estado Manoel Presciliano de Oliveira
Valladão. Após um ano, o decreto nº 141 de 24 de Agosto de 1895 regulamentava os fins da imprensa
Oficial em Sergipe, como por exemplo, a publicação do Diário Oficial, o qual entrou em circulação pela
primeira vez no dia 1º de Setembro de 1895. Segundo relatos do período,
A imprensa oficial foi fundada por aplausos de todos os amigos do progresso pátrio
daqueles que cheios do mais puro civismo não trocam as glórias perduráveis do presente
pelas idéias rotineiras do passado (Diário Oficial, 01 de Setembro de 1896, p.01).
Com o Diário inaugurado, a imprensa sergipana começa a dar seus primeiros passos na divulgação
diária de fatos, a qual assume uma responsabilidade de ser um veículo que descreva os atos e feitos do
Governo, como também refletir a ação da sociedade, e servir como um meio de se fazer propagandas de
empreendimentos, que visavam ser conhecidos pela região.
O primeiro exemplar do Diário Oficial foi editado com oito páginas e além de trazer no texto o
objetivo principal do novo órgão, o Diário estruturava-se da seguinte forma: Como veiculador de atos
administrativos e normativos, nas primeiras páginas verifica-se um espaço destinado aos decretos,
telegramas oficiais que eram enviados ao Presidente de Estado, cargo que equivale ao Governador nos
dias de hoje. Através da sua essência, este jornal oficial vem a ser encarado como um preenchimento dos
espaços deixados em branco na administração do Estado e a difundir a ideologia voltada para o progresso.
A inauguração dos trabalhos do diário foi vista como um ato comemorativo do progresso da Pátria
Sergipana. Estavam presentes diversas autoridades como o representante do Estado, o Coronel Oliveira
Valladão, além de representantes dos jornais da Notícia, do Paiz (um dos jornais mais vendidos do Rio),
da Gazeta de Notícias do Rio de janeiro (um jornal que estava em ascensão e que reunia os melhores
elementos das letras e do jornalismo brasileiro) e do Jornal de Notícias da Bahia.
Inicialmente, as três Officinas que compunham Diário Oficial faziam trabalhos de impressão,
encadernação eram montadas á máquinas Marinoni que era sem dúvida o sistema mais moderno
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implantado juntamente com a República, a partir de 1889. Com a virada do Século, essas inovações
tecnológicas que incluíam também o gramofone, o cinematógrafo e principalmente o serviço telegráfico,
possibilitavam o aumento da tiragem, maior qualidade e maior rapidez na impressão evidenciando assim a
transição para a etapa empresarial da imprensa sergipana através de uma estrutura relevante dotada de
equipamentos gráficos que supriam a necessidade para a realização das funções do jornal.
Mas, cabe aqui pontuar que essas inovações não se restringiram somente aos aperfeiçoamentos
gráficos, mas também no que diz respeito à uma nova linguagem jornalística que vai suprimindo as
relações do jornalismo com a linguagem rebuscada de outrora baseada na literatura, ou seja, percebe-se
uma objetividade ao se noticiar algo. Nesta fase de superação do jornalismo artesanal, temos também a
introdução das fotografias e das ilustrações nos jornais. Todas as oficinas que o Diário Oficial instalara,
estavam localizadas na capital do Estado, Aracaju.
Em um anúncio encontrado na primeira edição verificamos uma descrição importante do
equipamento que as oficinas do Diário possuíam: “A officina possue igualmente machina apropriada para
lithographar, estando assim habilitada a tirar qualquer peça de musica com o necessário asseio”. (Diário
Oficial, p.07, 01 de Setembro de 1895). Nos seus primeiros anos de funcionamento a assinatura do diário
custava na capital, 14$000 réis anuais, 7$000 réis semestrais e 3$000 réis trimestrais. Os valores das
assinaturas variavam no interior do Estado sendo custando anualmente o valor de 16$000 réis e
semestralmente 8$000 réis. Quem quisesse assinar o Diário teria que se deslocar ao próprio escritório do
Jornal ou recorrer ás Estações Fiscais do interior. Os empregados estaduais poderiam ter o abatimento da
assinatura em até 25% caso seus vencimentos anuais não excedessem 1:000$000 réis e o abatimento de
20% para quem ganhasse mais que isso.
Aspectos da Sociedade Sergipana através do Diário Oficial do Estado de Sergipe
O Século XIX foi marcado por profundas transformações nas estruturas econômicas e sociais do
Brasil, e Sergipe, também passa por algumas mudanças que não mexeram somente com as estruturas, mas
também com os detalhes da vida cotidiana. A sociedade sergipana se deparou com novos
questionamentos, novas situações, novos desafios e conseqüentemente novas experiências. Esta sociedade
no final do século XIX sofrera fortes pressões nacionalistas que estão sendo impostas por todo o Brasil,
devido a uma iniciativa de ser ter uma identidade nacional, ou seja, acabar com todas as divisões
provinciais, e formar o ideal de ser “brasileiro”. Desse modo, a imprensa servira como veículo
fomentador deste sentimento nacionalista para todos os cidadãos e aqui na província de Sergipe isso não
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será diferente, pode-se observar nos fatos descritos no Diário Oficial, que mostram e convidam o cidadão
a assumir e abraçar o seu país, formando assim a idéia de se ter uma identidade nacional.
À medida que o regime republicano avançava, pouca coisa mudou no cenário jornalístico
Sergipano, pois segundo Acrísio Torres, em Sergipe, o abuso da liberdade de imprensa levou, sobretudo
na República, os grandes, males-terras de jornais, foi também terra de jornalismo rude, agressivo.
(ARAÚJO, 1993, p. 19). Sendo assim, é importante ressaltar o papel fundamental desempenhado pelos
meios de comunicação, entre eles, os jornais, pois, a escrita e o saber estiveram, em geral, ligados ao
poder e funcionaram como forma de dominação ao descreverem modos de socialização, e os papéis da
sociedade dentro do meio em que ela vive.
Como já foi dito anteriormente, este período o qual estamos nos debruçando, foi marcado pela
tentativa de legitimação do regime, de centralização do poder, de construção da nacionalidade Brasileira,
um momento da redefinição da identidade coletiva bem como do patriotismo, registramos passagens no
Diário Oficial em que se observa uma aclamação patriótica ligada não só á figura, á autoridade do
Presidente da República que em 1895 era Prudente de Morais, mas também á Nação Brasileira.
Essas aclamações ao novo sistema de governo eram destinadas principalmente aos grandes
personagens da história do Brasil, mais especificamente aos militares que participaram do processo de
Proclamação da República e que nos primeiros anos do novo regime estiveram no governo. E para
comprovar que em Sergipe esta mentalidade também se fez presente, a redação do Diário Oficial possuía
retratos devidamente aureolados de figuras importantes para a época como o do fundador da imprensa
oficial Coronel Oliveira, do Marechal Floriano Peixoto, do Marechal Deodoro da Fonseca e de Saldanha
Marinho. Além disso, a salão de honra do palácio do Governo possuía um retrato do Presidente da
República que estava governando. A seguinte citação extraída de um exemplar do Diário ilustra muito
bem esta situação:
A Pátria tinha sobre vós voltada a sua attenção confiando na vossa lealdade e dedicação,
na vossa disciplina e patriotismo, tantas vezes correctamente velados no passado, sob as
ordens de Caxias, Osorio e Floriano, que serviram de exemplo e vos ensinaram o
caminho da horna e do dever. (Diário Oficial, 05 de Setembro de 1895) verificar fonte.
O Diário nos revela muitas informações importantes sobre vários aspectos sobre a sociedade
sergipana dentre eles administração, economia, política, educação, transportes, saúde pública entre outros.
Além de conter atos normativos e administrativos oficiais do Governo também fazia referências a artigos
publicados em jornais da Capital Federal como é o caso de jornais de grande circulação como o Jornal O
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Paiz do Rio de Janeiro, além de noticiar fatos ocorridos no âmbito internacional como a Revolução de
Cuba em 1895.
O Diário em seu formato já é em si um veículo administrativo, pois tal serve como o fio condutor
na transmissão dos feitos do Estado para sociedade sergipana, possibilitando assim que esta fique a par de
fatos como as movimentações feitas nas Caixas do Tesouro de Sergipe, podendo ser analisadas através de
balancetes no que se compõe o caixa geral, os depósitos públicos, depósitos diversos, estampilhas,
monte-pio(o total), observando estas caixas, pode-se jogar um olhar já sobre a economia da província
neste período. A cada dia saía em seus números, o preço dos produtos que circulavam no comércio
sergipano, sendo que os preços destes eram controlados e determinados pelo Governo Federal, sendo
repassado pelo Governo Estadual
Em se tratando de notícias nacionais, o diário tinha um serviço especial em Estados como a Bahia
e o Rio de Janeiro. Durante muitos números o diário dá destaque aos acontecimentos ocorridos no Rio
Grande do Sul entre os anos de 1893 e 1895. A sociedade Sergipana foi informada deste combate (que
ficou conhecido como Revolução Federalista) através de telegramas que chegavam diretamente de Porto
Alegre. Os anúncios publicados diariamente abrem espaço para a divulgação de produtos e serviços e
dizem muito sobre o as mudanças cotidianas oriundas da urbanização da cidade destacando entre elas o
consumo, uma marca da “civilização e do progresso”.
No âmbito político, para se analisar a história das eleições em Sergipe neste período verifica-se
que o Diário trazia os resultados das eleições para intendentes municipais cargo que hoje, equivale à
prefeitura municipal. Passando a analisar os aspectos econômicos, Sergipe torna-se reflexo do que
acontece no Nordeste, que passava por uma retração econômica que ocorre em função da decadência do
algodão, do açúcar e do tabaco. No setor agrícola sergipano, estas crises provocam a queda dos produtos e
a diminuição nas vendas por causa do excesso de produção como nos diz uma notícia do diário:
“compreende-se que esta situação tenha rompido o equilíbrio, dando lugar a depressão formidável de
preços que afflige os productores.” (Diário Oficial, 05 de Setembro de 1895, p.).
Os Engenhos que ainda estavam em atividade eram de pequeno porte, mais conhecidos como
Banguês e que vendas destes Engenhos ainda freqüentavam as páginas como, por exemplo: “Vende-se o
Engenho Itaporanga do termo do mesmo nome montado a vapor e com grande quantidade de terra
adaptavel á culturas de canna.” (Diário Oficial, 03 de Setembro de 1896, p. 07).
Assim como em Alagoas, Rio de Janeiro, Pernambuco o Estado de Sergipe possuía no início da
República a maior área no total de médias propriedades. Nesse contexto, é crucial lembrar também que
Sergipe destacava-se nacionalmente com a produção e o comércio do sal, este oriundo principalmente das
Salinas do Rio do Sal localizadas no município de Nossa Senhora do Socorro e que tinham como
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cessionário de todos os terrenos em 1895, José Rodrigues Bastos Coelho. As Salinas eram a fonte de
renda de muitos pequenos e médios proprietários rurais, pois o sal era a riqueza econômica de Sergipe e
tinha um valor significativo.
Figura 01
Fonte: Diário Oficial de Sergipe, 27 de Setembro de 1896, nº 307, pág. 08.
Ainda no final do Século XIX, a economia brasileira era predominantemente agrícola, mas a
produção industrial avançava e vinha crescendo continuamente desde 1880. Em Sergipe, nesse período,
merece destaque as atividades industriais têxteis exercidas pela indústria de fiação e tecido, Cruz e Cia ou
Fábrica Sergipe Industrial. Esta apresentava uma produção bem diversificada que ia de sacos para a
indústria de açúcar a brins, Bulgarianas, estopa, e etc.
Ao longo do Século XIX, a epidemia da varíola foi uma das principais preocupações das
autoridades sanitárias de vários países e do Império por causa da alta mortalidade provocada em função
da doença em várias cidades e vilas brasileiras. No Diário encontramos passagens em que a Inspectoria de
Higiene do Estado de Sergipe, instituição responsável pela área da saúde pública, faz observações sobre o
Lazareto de Variolosos de Aracaju que servia para isolamento e remoção de todos os doentes. Além do
Lazareto na capital do Estado, também existiam Lazaretos em cidades como Estância e Itabaiana. A
doença teve epidemias graves em Sergipe principalmente no começo do Século XX, sendo Laranjeiras
um dos locais mais afetados pela peste das Bexigas.
Considerações Finais
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Fica claro pelas questões aqui expostas que, embora preliminar, a análise do conteúdo veiculado no
Diário Oficial de Sergipe, entre os anos 1895 e 1900, pode demandar uma gama de informações que dão
conta de mostrar, explicar e entender diversos aspectos da sociedade sergipana.
Desse modo, reiteramos a importância desse tipo de fonte na pesquisa histórica sergipana. É fato que
ao longo do projeto, cuidar-se-á ainda mais de filtrar as informações, vistas que são oficiais, para não se
incorrer no risco de tê-la como a única versão da realidade.
O confronto com outras fontes do tipo e de outros, com trabalhos de memorialistas (se for o caso) e
principalmente com a historiografia sergipana será o grande desafio das próximas etapas.
Ao final, pretendemos contribuir com o trabalho de pesquisa e salvaguarda da memória sergipana por
meio da história da imprensa, levada a cabo pelo Arquivo Público Estadual de Sergipe (APES), através
dos números do Diário Oficial de Sergipe no período de 1895 a 1910.
Entre os resultados esperados, destaque para: a realização de um inventário analítico do Diário Oficial
de Sergipe; uma mobilização de colegas da UFS na realização de pesquisas com o conteúdo Diário
Oficial de Sergipe; a redação e publicação de trabalhos diversos na área acadêmica a respeito da temática
(como este que agora se apresenta) e a publicação de material de referência para os pesquisadores do
APES (livro-catálogo).
Referências Bibliográficas
ARAUJO, Acrisio Torres. Imprensa Sergipana. Brasília: gráfica do Senado, 1993.
BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa – Brasil – 1900- 2000. Rio de Janeiro: Mauad X,
2007.
CARONE, Edgar. A República Velha I: Instituições e classes sociais (1889-1930). Rio de Janeiro: Difel,
4ª Edição, 1978.
COSTA FILHO. O fundador da imprensa sergipana. Aracaju: Revista do Instituto Histórico de Sergipe,
nº 5, 1920
MARTINS, Ana Luiza, LUCA, Tânia Regina de. Imprensa e cidade. São Paulo, Unesp, 2006.
NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco; FERREIRA, Tania Maria Bessone da C. História e
Imprensa: Representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
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Referências Eletrônicas
CARVALHO, Kátia de. Imprensa e informação no Brasil, Século XIX. Ciência da Informação. Volume
25,
número
03,
pág.
01-05,
1996.
Dísponível
em:
<http://www.pucsp.br/projetohistoria/downloads/volume35/ATT06511.pdf> Acesso em 09 de novembro
de 2011.
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ESGARÇANDO O VÉU DO ONÍRICO: A NAÇÃO DADA A VER NA NARRATIVA
BARROSIANA
Elynaldo Gonçalves Dantas¹
Resumo: O pensar a história da Nação brasileira ocupou lugar privilegiado no pensamento de Gustavo Barroso que, durante
seu período de militância integralista, buscou uma reinterpretação do passado nacional, promovendo o resgate do que seriam as
características “verdadeiramente brasileiras” no intuito de legitimar o seu projeto ultranacionalista, centralizador e antissemita,
apontando a perda dos valores nacionais e a absorção das ideologias estrangeiras, como justificativas para a “crise brasileira”.
Neste texto procuraremos fazer uma reflexão sobre a organização do espaço nacional no pensamento integralista de Gustavo
Barroso. Utilizaremos para isso a análise do capítulo VI da obra, Brasil, Colônia de Banqueiros, intitulado, O Condor
Prisioneiro, onde Barroso se utiliza do papel crucial do tropo da animalização, para a construção espacial e identitária da
nação. Bem como estaremos preocupados com a dimensão visual do documento analisado, que carregado de uma potência
visual rabisca um quadro, forjado pelo poder das letras, do que seria a nação. Narrativa que desenha uma topografia afetiva dos
espaços. Visamos desta forma, responder à qual paisagem nacional Barroso queria construir e quais os mecanismos utilizados
por ele nessa operação.
Introdução:
Gustavo Dodt Barroso1 atuou em várias áreas desde advogado, professor, político, contista,
folclorista, cronista, ensaísta, romancista brasileiro, redator do Jornais, diretor do Museu Histórico
Nacional, na Academia Brasileira de Letras, entre tantas outras atuações. Isso exemplifica a abrangência
do campo de atuação de Barroso.
Mas foi sua participação como um dos líderes nacionais da Ação Integralista Brasileira, um dos seus
mais destacados ideólogos, e chefe das milícias dos camisasverdes, que iremos no concentrar nesse texto,
partindo para isso do capítulo VI da obra Brasil, Colônia de Banqueiros, intitulado, O Condor Prisioneiro
. Visando responder à qual paisagem Barroso queria construir e quais os mecanismo utilizados nessa
operação. Apoiar-nos-emos, como injeção de força para a realização desse texto o debate teórico
levantado por Stam e Shoat3 , no que tange ao papel fundamental do recurso tropológico, empregado nas
narrativas, fazendo-as funcionar. E no trabalho teórico metodológico de Ulpiano T. Bezerra de Meneses ,
preocupado com o estudo das dimensões visuais das fontes, ou seja, com a possibilidade de, sem
necessariamente partir de documentos visuais, examinar o que há de visualidade nos documentos
analisados.
Gustavo Barroso se insere no debate intelectual dos anos 30 que revela a busca por parte de uma elite
letrada em ordenar o espaço da nação, não só no do plano das ideias, mas também no plano político, onde
o se pensar a nação seria definir também seu próprio papel no cenário da política nacional. Inserido
também nas tensões e dinâmicas que se constituíam dentro da própria Ação Integralista Brasileira, AIB,
no qual disputava no campo da escrita, a liderança com o então Chefe Nacional da AIB, Plínio Salgado.
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O pensar a história da Nação brasileira ocupou lugar privilegiado no pensamento de Gustavo Barroso,
que buscou uma reinterpretação do passado nacional, promovendo o resgate do que seriam as
características “verdadeiramente brasileiras” no intuito de legitimar o seu projeto ultranacionalista,
centralizador e antissemita, apontando a perda dos valores nacionais e a absorção das ideologias
estrangeiras, como justificativas para a “crise brasileira”. Espaço povoado por desejos, sonhos, realidades
que são tecidas no calor do debate de sua época. Problematizar o que Barroso entende por espaço e
identidade nacional é procurar desnaturalizar esses dois conceitos, atrelados entre si, ue comportam
processos simbólicos coletivos , determinados por relações de poder que sustentam um sentimento de
pertencimento e lealdade entre os membros de uma nação, através do qual se evidenciam categorias que
ligam o Estado a seus membros, e estes entre si, nação e identidade lidos como construções ou
representações da realidade, como fenômenos seletivos no qual a afirmação de uma identidade nacional
vincula-se a uma ideia de preservação e pertencimento.
O ano de publicação do livro, Brasil Colônia de Banqueiros, em 1934, é revelador das dinâmicas e
tensões dentro da própria AIB, pois nesse ano Barroso é designado chefe das milícias integralistas no
Primeiro Congresso Integralista, posição na qual caberia a ele educar militarmente, pedagogicamente e
moralmente as fileiras integralistas. Nessa posição Barroso agora dava um salto de ideólogo para uma
forte liderança política-militar e com uma íntima relação com as bases de sua militância, passando a
disputar com Plinio Salgado a liderança da AIB, num movimento reflexo de radicalização da sua
narrativa antissemita assumida publicamente. Na referida obra, Barroso elabora uma explicação para a
suposta crise da realidade brasileira, que seria, em sua perspectiva, o fato dos bancos estrangeiros,
controlados pelos judeus estarem levando o país à falência, não só econômica como moralmente. A ponte
entre judaísmo e comunismo é construída pelo argumento de que o comunismo seria a etapa final da
conspiração judaica, o auge de suas aspirações, cuja primeira etapa seria a implantação do capitalismo
representado pelos bancos judaicos, que teriam a intenção de solapar e destruir a sociedade tradicional, de
valores cristãos e espirituais. Pois à medida que o capitalismo intensificava a exploração sobre as massas
trabalhadoras, atiçaria o ódio entre as classes, preparando o advento da sociedade comunista.
Nesse sentido, o livro abre com a seguinte epígrafe: “Trotski e Rotschild marcam a amplitude das
oscilações do espírito judaico; estes dois extremos abrangem toda a sociedade, toda a civilização do
século XX”. Trotski, intelectual marxista e revolucionário bolchevique de origem judia. Barroso se refere
à família Rothschild, de origem judia conhecida por suas atividades bancárias e financeiras. Barroso
identifica nesses dois elementos a síntese da ação judaica, seriam ambos os símbolos máximos do mal,
que necessitavam ser denunciados e combatidos pelo bem da nação que passa a ter suas raízes buscadas
na história, com uma visão teleológica, tendo uma origem e uma evolução que passa a ser racionalizada
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por Barroso a fim de entender o passado para se explicar o presente, e assim apontar uma saída para o
futuro, no qual ele seria o farol capaz de guiar o povo brasileiro rumo à salvação moral e espiritual.
A NAÇÃO DADA A VER NA NARRATIVA BARROSIANA: O condor prisioneiro
Neste capítulo Gustavo Barroso versa sobre um sonho que tivera quando entãocontava com dezoito
anos de idade, em 1907, e que o “impressionou para toda vida”, no município cearense de Quixeramobim,
onde se encontrava acometido de uma doença que quase lhe ceifara a vida. Nesse sonho um grande
animal desconhecido, parecendo um cadáver, se encontrava estendido no terreiro da casa cercado de
urubus, quando um mandamento oculto lhe falou com tom de comando: “Aquilo ali é teu Brasil! Em vez
de pensares na morte, cobra ânimo, vive, toma dum pau e afugenta aqueles bichos”.
No seu discurso, antissemita, centralizador e autoritário, as metáforas, os tropos, exercem um papel
fundamental, sendo mesmo a “alma do discurso”, como nos propõe Hayden White , mecanismo que sai
do seu sentido literal para formar um substrato metafórico que desempenha papel real no mundo ,
provocando efeitos de visualidade, produzindo e sustentando formas de sociabilidade. Muito mais do que
nos contar sobre seu sonho, o autor, trata de construir uma determinada imagem da nação e de sua
identidade. Mas, qual imagem Barroso queria construir? E quais os mecanismo utilizados nessa operação?
A chegada do mundo moderno e industrial parece alterar as percepções espaço temporais de Gustavo
Barroso, seu texto fala da ruina de um tempo e de um espaço, marcada pela relação harmoniosa entre o
homem e a natureza. Fruto da invasão de seus espaços por forças estranhas, causando a sensação que tudo
a sua volta estava se perdendo, que o mundo escapava de seus próprios pés. Espaço atravessado cada vez
mais pelo anonimato do capital, que não tem religião, que destrói todos os símbolos de um passado de
glórias e de poder, inimigo que nunca se apresenta diretamente, mas que age por trás do dinheiro, inimigo
que não apresenta um rosto só, mas que se camufla com máscaras, que segundo seu texto, talvez pela sua
pouca idade ainda não fosse capaz de descobrir que rostos estavam por trás dessas máscaras.
Seu sonho o perseguiu por toda a vida, como o autor afirma, mas em sua vida Barroso também
perseguiu esse sonho, encontrando na AIB o local ideal para a operacionalização dos seus desejos, dado
que a organização integralista trazia em seu âmago características semelhantes aos dos partidos nazista e
fascista, que ganhavam força na Europa, porém apresentando suas características peculiares, inerentes ao
contexto brasileiro, mas com a mesma matriz ideológica dos partidos nazifascistas, grosso modo: partido
único de massa, forte estrutura hierárquica, exacerbação dos valores nacionais, forte oposição aos
princípios do liberalismo, do comunismo e do socialismo, busca pelo domínio dos meios de comunicação,
eliminação do pluralismo político, aniquilamento das oposições embasado na violência e no terror.
Nos anos 30, Barroso acredita já ter entrado na sua maturidade, não só física, mas intelectual. Suas
lembranças do passado o saltavam os olhos através de suas experiências do presente, a esse momento ele
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já elegera os rostos por trás das máscaras do anonimato do capital, que destruía seu mundo - os
banqueiros judeus. Pois bem, ao remexer os arquivos e ao ler os maçudos relatórios para tirar a
documentação deste livro, a cada passo o sonho se refazia na minha memória. O nosso Brasil é a carniça
monstruosa ao luar. Os banqueiros judeus, a urubuzada que a devora. E Deus me deu vida para que
tivesse a coragem de rasgar o véu que encobre os verdadeiros exploradores do povo brasileiro, de mãos
dadas aos políticos e estadistas incapazes ou corruptos.
Um tropo essencial para a construção de seu discurso antissemita, como podemos observar, foi o da
animalização, recorrendo ao bestiário, para representar os judeus como urubus, animais que se alimentam
principalmente de carne de animais mortos. O Brasil, dentro desse discurso tropológico seria um enorme
animal, que ainda não morreu, mas que definha vitimado por parasitas e vermes , por muito tempo,
imperceptíveis ao olhar humano, que corroem seu corpo há tempos, e que apareciam agora em sua
plenitude como uma nuvem negra de urubus sobrevoando alto, em círculos, identificando o Brasil como
próximo alimento.
Seu recurso ao mecanismo topográfico escreve o corpo da nação e escreve nele sua própria história,
elegendo a figura do comunista-capitalista-judeu, como bode expiatório responsável pela destruição da
nação, o tropo da animalização, atua no sentido de sedimentar sua compreensão de realidade,
solidificando sentidos, que forjam, para o leitor, uma dada visualidade a partir da escrita.
A partir da evocação de seus processos de montagem evidenciamos a construção de uma moldura, um
frame. Seu texto carregado de uma potência visual rabisca um quadro, forjado pelo poder das letras,
narrativa que desenha uma topografia afetiva dos espaços do passado, produzindo a ideia de corte entre
esta espacialidade romantizada do assado, com o espaço estranho do capital estrangeiro, controlado pela
mão judaica, que não respeita barreiras materiais e imateriais, derrubando-as. Espaços sob os quais não se
tem mais domínio, que limitam seu próprio mundo, que quando jovem, sonhara que o teria em suas mãos,
mas amanhece na aurora de sua jovialidade acordado, mortal.
Bons ou maus, os anos passaram e eu fui vivendo, dentro do liberalismo enganador, na ignorância do
problema capitalista e de sua influência direta sobre nossos destinos. Um dia, em plena maturidade de
corpo e de espírito, enfronhado já na grave questão, entrei uma tarde no jardim zoológico. Próxima a
porta, havia uma jaula e dentro dela um condor prisioneiro. (...) E, compreendendo toda a angústia da
grande ave cativa, sofri um momento a mesma dor que ela. De repente, numa nesga de azul que se
avistava por entre as franças duma árvore esgalhada, ao pé da jaula, dei com uma revoada de urubus,
muito alto. Como que um instinto secreto advertiu o condor. (...) E viu o giro das urubus no espaço
solheiro. E viu a imagem da Liberdade! (...) Antes, porém, um olhar de soslaio para mim com um leve
estirar da asa, como a me dizer: "Homem, és coautor da monstruosa injustiça que me tolhe o gozo da
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liberdade e da vida! Eu, que sou a glória das asas nas alturas dos Andes e me perfilo heráldico nos brasões
das Repúblicas do Continente, aqui manietado, inutilizado e só, enquanto que as negras aves covardes, vis
e nojentas, que se alimentam da podridão, essas tem o domínio do espaço e revoluteiam no céu azul sob
tépido banho da luz solar (...)”. O meu pensamento inquieto e dolorido batia asas continuamente como um
inseto prisioneiro no vidro duma janela, até que apreendeu a imagem que tivera diante dos olhos. O
condor poderoso, mas aprisionado, era o BRASIL, e os urubus livres e gozadores, os políticos que o
venderam e os banqueiros que o compraram. O momento de escrita de seu livro corresponde a uma
abstração pessoal que forja uma imagem da nação pelas letras, a partir de uma experiência emocional e
espiritual. Barroso já era um dos mais destacados ideólogos do integralismo, maior representante da
corrente antissemita, chefe das milícias integralistas, posição na qual caberia a ele educar militarmente,
pedagogicamente e moralmente suas fileiras. Nessa posição Barroso agora dava um salto de ideólogo para
uma forte liderança política militar e com uma íntima relação com as bases de sua militância. Era chegada
a hora de assim como lhe foi ordenado em sonhos “toma dum pau e afugenta aqueles bichos” .
Sua arma seria um lápis na mão, mas no momento oportuno se fosse preciso outras armas seriam
usadas e suas milícias já estavam sendo treinadas para isso. Na busca pela constituição da nacionalidade
brasileira Barroso busca, a partir de suas experiências, um passado repleto de imagens que representariam
a verdadeira essência do brasileiro. O Brasil e seu povo eram como o condor que outrora, voava livre
soberano, imponente, mas agora estava preso na gaiola do capital judaico, não mais dono de si, que
precisava se libertar a partir da luta contra seu aprisionador . A construção barrosiana da identidade
nacional é assim relacional, pois em sua narrativa arroso constrói o Outro para se auto definir e definir a
nação brasileira, sendo esta seu reflexo, aderindo a uma fórmula que obedece a seguinte lógica: somos
aquilo que não somos. Num jogo de espelhos que sua narrativa tropológica constrói, o condor preso,
imóvel, feito para alçar voos grandiosos, representa a nação brasileira, nação esta que é sua auto imagem
projetada na escrita, onde Barroso escreve suas obsessões recorrentes, um mundo de sentimentos que
envolve o frame e lhe confere significados visando atender as suas determinadas demandas.
Sua narrativa também forma a um rosto nacional, identidade brasileira que era entendida em sua
percepção como uma síntese da fusão das três raças, a saber: o negro, o índio e o branco, em que o
elemento civilizador branco cristão-católico merecia destaque. Lembremos aqui o curioso paradoxo do
problema da posição dos integralistas na busca pela especificidade do seu movimento frente aos seus
congêneres europeus, dado que embora Barroso procure salientar também essa busca pela diferenciação
que residiria na maior dose de espiritualidade dos camisa-verde , fica claro em sua organização narrativa a
familiaridade com a ideologia praticada pelo partido nazista, que punha no lado oposto , inimigos da
moral, os judeus, “negras aves covardes, vis e nojentas, que se alimentam da podridão”.
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O jogo com as cores utilizado em sua escrita também compõe sua gramática e sintaxe espacial. Os
espaços azuis que o condor fitava nos remete à calma, à liberdade, às cordilheiras repletas da luz do sol,
visão voyeurística, pois preso em sua gaiola não se podia fazer mais nada que observar o voo livre
daquelas aves negras. A cor do uniforme integralista era o verde, representando a esperança, esperança de
ver seus anseios realizados, uniforme que Gustavo Barroso fazia questão de usar cotidianamente,
inclusive nas suas atividades na Academia Brasileira de Letras. Notamos ai um binarismo entre o claro e
a escuridão, marcante na filosofia cristã, tema muito caro ao integralismo como um todo, onde as forças
do mal, as trevas, aparecem ai ameaçando a ordem, o celeste. Como figuras da escuridão os judeus devem
ser controlados por meio da descoberta/denuncia sistemática do obscuro, no qual ele, ao assistir
passivamente a tudo isso se tornaria cumplice, devendo ele como sujeito privilegiado, “soldado de Deus”,
como os integralistas se entendiam, tomar uma atitude para libertar a ave que seria a “glória das asas nas
alturas” , sendo ele o próprio verde da esperança, que tanto ostentava em seu uniforme, não mero soldado,
mas chefe da milícia divina, afugentar a nuvem negra de urubus que ameaçavam a nação, que definhava
pela perda de seus valores a partir da absorção das ideologias estrangeiras.
Para estabelecer seu mando Barroso precisa limitar seu próprio mundo, operando uma construção de
sentidos na forma da escrita, a partir de uma profusão de metáforas que são utilizadas para dar sentido aos
seus argumentos, imagem nascida do medo, diante de um mundo cujas fronteiras materiais e espirituais
parecem se esgarçar. Paisagem do medo construída numa tentativa de manter controladas as forças hostis,
imagem de um mundo inseguro do qual ameaçavam desaparecer todas as harmonias, onde o Outro, os
judeus, e sua metaforização na forma de um tropo linguístico de animalização, são necessários para
explicar melhor seus próprios infortúnios individuais.
Brasil, Brasil, meu querido Brasil, não te concentres mais, como o condor prisioneiro na tua grande
dor! A tua concentração e o teu desprezo eles chamam de preguiça, de inércia, de jecatatuísmo. Estás
sendo caluniado. Vamos, acorda do marasmo do teu desespero, distende suas asas possantes e soberbas,
amola o bico anavalhante, desembainha as lâminas das garras formidáveis! Eia! Prepara-te o combate aos
urubus traiçoeiros e nefandos! Gustavo Barroso constrói narrativamente uma imagem da nação que
perdia seus valores, que definhava ameaçada pelas forças do mal. Imagem construída a partir do
movimento, da diferença com o Outro que deveria ser combatido, pressupondo a produção de uma
identidade como movimento que no confronto constante, entre o Eu e o Outro, forja uma espacialidade e
sua respectiva identidade, a partir de mecanismos que desviam o real, compondo outro real possível,
como marca de suas persistentes e inelutáveis obsessões. Sua ideia de nação e identidade seria assim sua
representação , o condor sua própria imagem metaforizada, que ao esgarçar os véus do onírico, com suas
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garras e bico amolado, desmascararia o inimigo, dissiparia a nuvem negra de urubus que tanto o
ameaçava, rompendo a gaiola da mente, para assim liberto, voltar a voar soberano em seu próprio mundo.
A “verdadeira” imagem do que seria o Brasil aparece para Barroso como que rabiscada, profanada,
adulterada, pela mão de um Outro. A missão que o pensador integralista assume é então a de restaurar
essa imagem pelo poder da escrita. Com o lápis na mão, o quadro barrosiano do que seria a nação começa
a ser “pintado” a partir da recorrência aos seus arquivos do passado, são as cores nebulosas de sua
memória que vão dando os primeiros contornos da imagem. A restauração do que seria essa imagem real
do Brasil passa a ser feita a partir da reconstrução de suas experiências pela sua percepção do presente.
Suas “pinceladas” oferece-nos um outro mundo, um mundo que mais se parece um autorretrato. Seu
processo de restauração do cenário nacional passa assim pelo crer numa imagem possível real que tem q
ser dada a ver, passa pelo processo de es/crer/ver a nação.
Desta forma entendemos que a concepção de Nação e identidade nacional, elaborada por Gustavo
Barroso, tem que ser lida como um discurso que busca emoldurar certa imagem, espacialidade entendida
por ele como fragmentada pela absorção dos valores liberais-comunista-capitalista, manipulados pelas
mãos judaicas. Espaço que fala mais dele próprio e de seus valores conservadores, autoritários,
hierárquicos, católico cristão. Nação/identidade afirmada como reação ao Outro, narrativa que mais fala
de uma fragilidade do próprio significante, que vê seu mundo ameaçado por forças desagregadoras que
parecem escapar-lhe do controle, realidade que tecida em suas linhas só apontam para um caminho, sua
total destruição, fim esse que só não será concretizado com a implantação do Estado Integral , onde o
tornar-se membro da nação requereria um disciplinamento do corpo e do espírito com a respectiva
eliminação das discrepâncias, papel pedagógico que caberia a ele.
Considerações finais:
Objetivamos neste texto observar como Gustavo Barroso se utiliza de mecanismos linguísticos para
construir uma imagem da nação e de sua respectiva identidade. Percorrendo para isso a uma breve
explanação do momento de sua escrita, a fim de mostrar com quem ele dialoga e a partir de onde. Em sua
narrativa Barroso recorre a suas lembranças do passado através de visões do presente, para construir a
metáfora do Condor Prisioneiro. Se utilizando dos mecanismos topográficos da animalização, da oposição
entre cores claras e escuras e da produção do Outro, para constituir sua base argumentativa e assim
modelar uma imagem de nação que definhava presa pelo capital judaico destruidor da ordem.
Na racionalidade barrosiana, a recorrência ao inimigo comum, o judeu, que destruía as nações em
busca do lucro material, é uma constante, onde a partir do choque com esse Outro, e com o mundo
moderno construído pela absorção dos valores estrangeiros, Gustavo Barroso pôde construir uma imagem
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de Brasil como ser vivo, um condor, que morria aos poucos, preso, um mundo que fala das fragilidades de
seu significante, um juiz verbal que encontra no poder de nomear sua prerrogativa.
Seu sonho de adolescência, no qual ele era incumbido de espantar os “urubus”
que ameaçavam aquele ser depauperado, aparecia distante e nebuloso. Mas com o passar dos anos
tudo se tornara mais claro para Barroso, que encontrando certo respaldo no seio do movimento
integralista, no qual se destacava como uma das principais lideranças e objetivava ser o líder máximo da
organização, conseguira traduzir seu sonho antigo, que tanto lhe atormentara, a partir do encontro
ocorrido no jardim zoológico com o condor preso.
Seu sonho um microcosmos: que ao esgarçar as barreiras do onírico comprime a
relação espaço-tempo, se materializando numa linguagem escrita, que constrói espacialidades,
geografias de medo, de mando, de mundo, que demarcam fronteiras identitárias entre o Eu e o Outro, por
meio de recursos tropológicos, que rompe o véu do onírico, para nos falar de um espaço que se pretende
exterior, mas cujo objeto é imanente a si mesmo. Gustavo Barroso, alguém que acredita ter rasgado o véu
dos sonhos, e mostrado ao mundo a verdade em sua essência. Sua linguagem, uma geografia do onírico,
necessária para não se esvair no frêmito perene de um sonho, e assim alcançar a eternidade, um condor
que liberto das grades da mente, enfrentaria e derrotaria seus inimigos, alçando voos pela posteridade que
demarcariam seu espaço.
Referencias bibliográficas
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provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol.23,
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Ed. Contraponto, 2001.
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Eurocêntrica. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
TRINDADE, Hélgio. Integralismo, o Fascismo brasileiro na década de 30. São
Paulo: Difel, 1974.
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Fonte:
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“VIVA VOSSA ALTEZA, NOSSO SENHOR: UMA VILA SERTANEJA OITOCENTISTA, UM
PRÍNCIPE E O IMAGINÁRIO”
Ivanice teixeira silva ortiz31
Resumo: Os novos tempos de importantes transformações que afloravam nos grandes centros com a transferência da família
real para o Brasil em 1808 refletiam nos longínquos sertões da Bahia. O povoado de Caetité, entreposto comercial entre as
rotas que ligavam as áreas auríferas ao recôncavo baiano, oficializava sua elevação à vila em 1810 e estabelecia redes de
relações e práticas que remetiam aos padrões de lusitanização à moda da corte. A elevação à vila consagrada no nome “Vila
Nova do Príncipe e Santana de Caetité”, expressava os balizadores de tal reconhecimento: o Estado e a Igreja. O erigir da vila
representaria um esforço coletivo de um grupo senhorial que viabilizou ao povoado sua autossuficiência econômica, política e
administrativa. A nova vila devia expressar como D. João e sua nobre família o status social “real”. Os símbolos reais
presentes nas festas, peças teatrais, nas reuniões familiares, nas procissões e principalmente nos hábitos e arquitetura refletiam
a vontade real, representavam os direitos de nascimento de uma “nobreza sertaneja” desejosa em afirmar para si e para os
outros o lusitanismo nos lugares, nos mecanismos de controle da vida coletiva e no imaginário social.
“Aos seus foros de cultura, deveu ser chamada, no século passado, Corte do Sertão”.32
A dialética do olhar do viajante, do memorialista e o do historiador tem possibilitado ao sertão o
exercício e problematização de sua história aquém da categoria de coadjuvante de espaços sociais já
consagrados pela historiografia e mais, com dinâmica própria, um sertão na expressão usada por Isnara
Ivo “longo que não tem portas”, que não está de costas para o mar.
A epígrafe que abre esse texto impera na memória popular dos habitantes de Caetité e faz
referência aos oitocentos, período de construção de sua autonomia política - administrativa consagrada na
elevação à vila em 1810 e a cidade em 1867. Nos oitocentos, quando o Brasil foi cenário das lutas
políticas de independência , de definição de fronteiras e conflitos internacionais, a vila vivenciou esse
processo com a participação nas lutas de independência travadas contra as tropas portuguesas na Bahia e
contra as tropas paraguaias na guerra do Paraguai. Outro grande acontecimento é a vinda da corte
portuguesa para o Brasil, que se confirma e se confunde com a elevação à vila do até então arraial.
31
Ivanice Teixeira Silva Ortiz, professora auxiliar do Departamento de Ciências e Tecnologias de Eunápolis,
Campus XVIII- UNEB, mestranda em História Regional e Local-UNEB. Email: [email protected].
32
Trecho da obra da memorialista e professora Helena Lima: Caetité- Pequenina e Ilustre. A frase faz alusão ao
século XIX, época de elevação à vila e cidade do antigo arraial de Caetité.
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Fonte: CEPLAB/ SEPLANTEC (1996 apud NEVES, 2005, p.23).
A antiga vila, atual cidade de Caetité, localiza-se na Serra Geral, na região Sudoeste da Bahia.
Nesse texto uso o termo Alto Sertão para definir sua localização, que segundo Neves (1988, p.22) é uma
definição que considera sua posição relativa ao curso do São Francisco e ao relevo baiano. A região ainda
é conhecida como Sertão dos Currais, área ocupada através da ação sertanista, das doações de sesmarias e
expansão da atividade pecuária de gado e muares em pequenas e médias propriedades. Contribuiu para o
seu povoamento a mineração aurífera na sede da comarca em Rio de Contas e o grande fluxo de
transeuntes que se movimentavam pelas rotas que ligavam as minas às áreas de transporte de gado e
víveres. Ao tratar do povoamento da região, Silva (1932, p.97) assinala,
O sertão dos curraes da Bahia, - chamado de São Francisco é descoberto e colonisado
sob a acção decisiva das Casas da Torre e da Ponte, representadas por Francisco Dias
d`Avila e Antonio Guedes de Britto, senhores dos immensos curraes que foram depois o
abastecimento animal de cumprida zona sertaneja.
A ação dos sertanistas em abrir caminhos pelos sertões na caça do ouro foi decisiva no extermínio
das tribos indígenas da região. As doações de sesmarias sedimentaram esse extermínio e consolidaram a
sociedade escravista. Neves (2007, p.21) observa que em Caetité “formaram-se fortunas, na fase inicial
do Império e inicial da República, de difícil comprovação das origens e de impossível demonstração
quantitativa, com o comércio de metais e pedras preciosas que o município não produzia”. O cenário dos
primeiros anos de ocupação é retratado por Silva (1932, p.98),
As correrias dos selvagens se vinham juntar, as depredações de aventureiros de toda
espécie, ladrões de curraes de gado, egressos das minas de Jacobina e minas de Rio de
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Contas, de Itacambira e Serro Frio, negros e mamelucos contrabandistas de ouro que
traziam convulsionadas aquellas regiões, roubando e matando a quantos alcançavam.
O discurso memorialista acima permite confirmar a movimentação na região e o intercâmbio
comercial e cultural nos percursos das rotas que cortavam os sertões. Salienta o temor de negros fugidos,
dos assaltos e ressalta a importância das autoridades para inibir a ação dos vândalos: “negros e
mamelucos” – homens de cor. A existência da população escrava na região já foi confirmada por
historiadores como Fátima Pires em suas obras “O crime na cor” e “ Fios da Vida” ou em Neves com o “
Sampauleiros”.33 Essas obras são cruciais para entender que nesse universo do Alto Sertão
as
experiências da população negra de escravos, forros, livres pobres e ricos foram fundamentais para a
dinâmica econômica e cultural da região. Olhares também se voltam para o universo das relações
familiares negras constituídas através de laços parentais sanguíneos, afetivos e simbólicos reconstituídos
em trabalhos sobre a região do São Francisco ou em problematização nas vilas de Caetité e Rio de
Contas.34
Os termos de vereações da câmara de Caetité são indicativos da presença escrava na vila e de
como esse grupo representava uma ameaça à ordem instituída pelos espaços de poder como a câmara e a
cadeia. São indicativos da preocupação com as fugas e formação de quilombos, e mais importante, de
como os homens e mulheres de cor, independente da idade e sexo, transgrediam as regras e imprimiam
suas vontades. O transitar de cativos levou a estabelecer indenizações por captura com referência a idade
ou sexo. Negro de mocambo e salteador de estrada a indenização era maior, até porque o primeiro era
uma ameaça ao próprio sistema escravocrata e o segundo atingia diretamente o alto negócio de gado e
muares. O termo de vereação explicita essa preocupação com o contrabando e o assalto que colocavam
em risco as altas somas advindas dos impostos cobrados sobre esse comércio e fonte principal de coronéis
e comerciantes da vila de Caetité. Diz o texto que era necessário o “cobrador de impostos na estrada para
cobrar sobre o aluguel de aguardente, mulas e bestas e nomeação de Manoel Ramos como capitão do
mato ou assalto.” Determinava ainda, que as prisões fossem feitas pelos oficiais da polícia ou por
33
Ao analisar os processos crimes Fátima Pires fez o levantamento da população escrava em Rio de Contas e
Caetité e primorosamente teceu suas experiências cotidianas, apresentou o conjunto de práticas repressivas e
vigilância das pessoas de cor. O trabalho de Erivaldo Fagundes Neves explora o universo do tráfico nos sertões,
principalmente na segunda metade dos oitocentos. A obra do mesmo autor “Da sesmaria ao minifúndio” é
fundamental para entender os sertões por apresentar vários aspectos da região através de um trabalho profícuo com
as fontes.
3434
Ver “Viver por si”, viver pelos seus: famílias e comunidades de escravos e forros no “Certam de Sima do Sam
Francisco” (1730-1790)” de Gabriela Amorim Nogueira . Há também o trabalho “ famílias negras no Alto Sertão
oitocentista: Caetité e Rio de Contas” de Ivanice Teixeira Silva Ortiz publicado na anpuh regional - Bahia 2012. A
autora problematiza as relações familiares negras no Alto Sertão em Caetité em sua dissertação de mestrado em
construção no programa de pós graduação em Historia Regional e local da UNEB.
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qualquer pessoa do povo que encontrasse em flagrante forros ou cativos, principalmente a regar carne
verde.35
A elevação a vila acontece em 1810, dois anos após as embarcações da corte atracarem em
Salvador, em 22 de janeiro de 1808, e sete anos após a primeira solicitação de sua criação em 12 de julho
de 1803. Vale observar que a recepção da realeza coube ao sexto conde da Ponte, um dos grandes
proprietários de fazendas com rebanhos de gado e mão-de- obra escrava no Alto Sertão. Segundo o
memorialista Pedro Celestino da Silva a época da elevação à vila Caetité contava com 147 fogos e 1018
habitantes.
Os possíveis impactos do translado da corte portuguesa sobre o processo de elevação da vila vai
ao encontro das expectativas dos colonos de virem suas reivindicações serem atendidas. A presença do
príncipe em chão brasileiro supostamente viabilizaria a intermediação mais rápida das suas
reivindicações, criaria condições concretas e simbólicas para a próspera freguesia de Santa Ana de Caetité
assumir sua autonomia administrativa e política, longe da tutela da distante Vila de Minas de Rio de
Contas. Contemplada com o “posto espiritual” faltava-lhe a jurisdição civil, nada mais propenso com os
ares de autonomia que aspirava o Brasil como sede da corte portuguesa. Exemplo parecido é dado por
Silva (2008), quando afirma que em Vila Rica os camarários encaminharam ao príncipe suas solicitações
e se diziam venturosos por sua presença e virtudes.36 Corroborando com essa ideia Maria Aparecida de
Sousa (2008, p. 141), em artigo sobre a Bahia na crise política do antigo regime, observava que “para
alguns, a situação incomum exigia demonstrações de submissão e contentamento, mas também propiciava
o encaminhamento das suas aspirações”.
Em homenagem ao príncipe a vila recebeu o nome de Vila Nova do Príncipe e Santa Ana de
Caetaté, acrescenta Pedro Celestino (1932, p.108) “unindo-se deste modo a tradição civil e religiosa, com
penhor de um culto fervoroso e popular.” A vila nascia sobre os cânones da Igreja e do Estado, e sob as
prioridades dos grupos locais em relação à confirmação de um espaço político materializado nos projetos
da elite branca latifundiária e comercial em detrimento dos outros grupos sociais. Os vínculos identitários
do tipo regional foram adensados pela presença da base familiar com sobrenomes, alguns criados e por
títulos militares. Era crucial erigir a vila sob padrões que realçasse sua pujança, principalmente em
tempos de padrões reais de administrar causas públicas em consonância com a conservação das causas
particulares. O sentimento de “orfandade” em relação à comarca de Rio de Contas seria rompido com a
proximidade do centro de poder. O termo de fundação do Pelourinho reafirma os espaços de poder:
35
Fundo Câmara de Vereadores, Termo de Vereação 1810-1815 – caixa 01, p.38,55.
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Identidades em construção. O processo de politização das identidades coletivas em
Minas Gerais (1792-1831). São Paulo: USP/ FFLCH, 2007.
36
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.... com toda a nobreza e o povo da Villa e sendo ahi defronte do terreno em que se há de
erigir a casa da camara e cadeia... era o que logo se executou com aclamação dos mesmos
moradores... o que precedeu o mesmo Ministro dizendo em altas vozes e intelligiveis
vezes- Viva Sua Alteza Real o Principe Regente Nosso Senhor.37
O título de nobreza, príncipe, compondo o nome da vila seria a coroação de uma situação já
percebida pelos moradores como o gosto pela cultura e pelo bom, advindos com os portugueses
residentes, ou por pessoas que transitavam pelos sertões. A historiadora Isnara Pereira Ivo (2006)
constatou no sertão da Ressaca artigos de luxo em utensílios domésticos e de uso pessoal. O Auto de
criação da vila de 1810 acrescenta:
Dizem os moradores do Arraial e Freguesia de Santa Anna do Caitaté abaixo assignados
que sendo a situação e limites d aquelle Arraial o termo mais próprio para plantação de
algodão e criação de gados vaccum e cavallar, que por isso presentemente abunda em um
avultado giro de negocio, com a sua indivisivel importação de fazendas europeas...,
supplicantes querem a sua custa fazer toda a despesa da creaçao da Villa, cadeia
competente... o arraial que habitam os suplicantes é o mais rico e fértil d aquelle
continente....”
Os símbolos reais, armas e estandartes para a Câmara, que ainda seria construída, coroavam a
presença do soberano maior, o príncipe, em solo sertanejo. No imaginário popular um passado de
desbravadores se entrelaça com o emergir do universo letrado. Assim como no Rio de Janeiro, sede do
governo, a memória popular registra que na Vila do Príncipe e Santa Anna de Caetité as “festas, bailes,
representações teatrais se realizam em maior ordem e harmonia” (SILVA, 1932, p.145). Soma-se a
afirmação de que os padres portugueses e famílias cultas possibilitaram “desde cedo pendor para as letras,
teatro e música”. Nessa memória popular consta o registro de filarmônicas e o evento da chegada em
1842 dos primeiros e caros instrumentos musicais. Os esforços foram colossais na recente vila para
institucionalizar o poder e definir os lugares de hierarquias dignos das vilas brasileiras. Lusitanizar-se era
necessário e inerente a uma população acostumada com eventos religiosos e sociais com a presença de
personalidades com fluência em latim.
O termo de vereação de quatro de fevereiro de 1811 determinava que a recente vila teria que
realizar as comemorações do festejo do casamento da Princesa com o Infante de Castela. Mas não era
qualquer comemoração, os dias de divertimento deveriam primar pela eficiência inerente aos portugueses
“que dentro ao dito termo possam a fazer toda claridade e divertimento que façam com perfeita
37
SILVA, 1932 p. 135-139.
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demonstração a que a nação portuguesa está acostumada a praticar a muitos séculos...”38 Numa terra de
trânsito , de quilombos e de constante resistência cotidiana escrava a festividade obrigatoriamente seria
vigiada, deveria evitar durante as comemorações que os homens de cor gozassem de tamanha liberdade
nos espaços públicos, a vigilância era crucial. Permitiu-se aos moradores da vila o uso de máscaras nos
festejos que seriam realizados no prazo de 95 dias, também estava autorizado a dança, inclusive dos
oficiais mecânicos. Quantos as máscaras, advertia-se sobre o uso com a indicação diurna, a noite estava
terminantemente proibido. Todos os moradores teriam que iluminar suas moradas, especificamente as
portas e janelas nas noites do dia 23, 24 e 25 de fevereiro. A determinação deixava claro a vigilância e
medidas punitivas, como a pena de 15 dias de prisão e seis mil réis para os que descumprissem as normas
de utilização das máscaras e de seis mil réis para todos os moradores que não iluminassem as suas casas,
portas e janelas. O evento civil e “profano” organizado culminaria com a festa da Igreja com o santíssimo
sacramento exposto, acompanhado de sermão e procissão.
As medidas punitivas e disciplinares apresentadas para a efetivação da festa e presentes nas
posturas funcionavam como instrumentos de controle social. Pires (2003, p.50) afirma que “ a vigilância
sobre os escravos no sertão comprova a necessidade de forjar e aperfeiçoar mecanismos disciplinares...”.
O texto da postura abaixo confirma,
São prohibidos os ajuntamentos de escravos com batuques, e algazarras na Vila, e nos
Arraies, sob pena de quatro dias de prisam para cada individuo, que fora achado em taes
ajuntamentos”( registro de posturas municpais (APMC.fl.03. 1834).
Os oitocentos cenário de “novos tempos”, de importantes transformações que afloravam nos
grandes centros com a transferência da família real para o Brasil em 1808, refletiram-se na vila nas redes
de relações e práticas que remetiam aos padrões de lusitanização à moda da corte. A elevação à vila
consagrada com o nome “Vila Nova do Príncipe e Santana de Caetité”, os símbolos reais presentes nas
festas, peças teatrais, nas reuniões familiares, nas procissões e principalmente nos hábitos e arquitetura
refletiam a vontade real, representavam os direitos de nascimento ou de status da elite sertaneja desejosa
em afirmar para si e para os outros o lusitanismo nos lugares, nos mecanismos de controle da vida
coletiva e no imaginário social.
FONTES E BIBLIOGRAFIAS
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POLÍTICAS PÚBLICAS NO CATU DOS ELEOTÉRIOS DO NO SÉC. XXI
Diego Marcos Barros de Castro
Resumo: A emergência étnica no RN pensada a partir dos direitos humanos na década de 1970 por meio do qual podemos
pensar os direitos coletivos; a Constituição de 1988, de caráter democrático como mecanismo que passa a pensar o índio
enquanto ser capaz político e culturalmente; o direito a diversidade e o espaço ontológico do outro; o atraso no campo jurídico
em relação à constituição de 1988; a auto-determinação dos povos; o surgimento de novas instituições e a articulação dos
Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo – APOINME; as emergências étnicas no Nordeste
Brasileiro;o conceito de etnogênese Melvyn Goldstein, as novas formas de pensar a cultura (GEERTZ, 1978) e as relações
políticas para a compreensão da identidade (BARTH, 1998); (OLIVEIRA, 1998-1999); (ALMEIDA, 2003); o padrão
camponês e a falta de traços forte de diferenciação cultural (OLIVEIRA, 1999);os conceitos de aculturação e desaparecimento
na historiografia do Rio Grande do Norte; processo de diferenciação étnica; a historicidade das unidades identitárias.; as
relações de territorialização do índio do Nordeste (OLIVERIA, 1999.); um olhar da história do tempo presente; o caso
específico do Catu dos Eleotérios; a história oral e a memória social (HALBWACHS, 1990 e POLLAK, 1992); as formas de
relação política; as tradições e re-elaborações do cotidiano; o acesso a mata e a criação da Área de Proteção Ambiental; o toré
entendido pelos sujeitos dentro do contexto de parentesco indígena no Nordeste.
INTRODUÇÃO
A comunidade do Catu fica a cerca de 90 km da capital do Rio Grande do Norte, na microrregião
sul. O Catu do Eleotérios e localizado em uma região de difícil acesso, na zona rural, região entre dois
pequenos municípios, o rio Catu divide os municípios de Goianinha e Canguaretama. Os Eleotéreos do
Catú tem visibilidade para a sociedade potiguar através de uma reportagem do jornal Tribuna do Norte
em 15 de junho de 2003 com o título “Comunidade resgata o tupi-guarani”. No entanto o processo de
autoidentificação indígena acontece há mais tempo na memória dos Eleotéreos, como analisado por
(SILVA, 2007) ao trabalhar entrevistas orais, a diferença étnica foi por muito tempo colocado de lado por
uma historiografia positivista que utilizava apenas documentos oficiais, tidos como verdade absoluta e
irrefutável (CAVIGNAC, 2003). As teorias dos sociólogos sobre a memória social, as narrativas orais e a
memórias dos excluídos (HALBWACHS, 1990, POLLAK, 1992), ajudou a repensar os silêncios ou os
“desaparecimentos”, ao mesclar a historia oficial as histórias e memórias locais marginalizadas.
Por meio de uma Audiência Pública na Assembléia Estadual três comunidades indígenas (Catu
dos Eleotérios, Mendonça do Amarelão e os Caboclos do Assú) pediram o garantido a elas pela
Constituição de 1988 e o reconhecimento a regularização fundiária. Este movimento de afirmação das
identidades indígenas é um dos campos de pesquisa dos antropólogos contemporâneos (OLIVEIRA,
1999).
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O discurso do desaparecimento da identidade indígena do final do século XIX e durante o século
XX aparece de forma contraditória com essa nova realidade histórica e política, constituindo-se como um
problema teórico para antropólogos, historiadores, juristas, entre outros profissionais que lidam com a
temática indígena no Brasil pós Constituição.
Pretendemos realizar um levantamento crítico histórico antropológico na comunidade do Catu dos
Eleotérios, buscando, compreender como se articulam às políticas publicas (saúde, educação e terras) e a
emergência étnica no caso específico do Catu dos Eleotérios no final do século XX e início do XXI?
Partindo dos rastros deixados pelos antropólogos que pesquisaram no Catu dos Eleotérios
anteriormente, pretendo realizar um trabalho etnográfico para compreender as relações entre o Catu dos
Eleotérios e as instituições governamentais e indígenas, relações que dão tônica à emergência étnica no
RN do século XXI.
Esse projeto tem relevância significativa no tocante às políticas públicas afirmativas e as
emergências étnicas. O Estado deve garantir a inserção de grupos e indivíduos, para que sejam
devidamente representados dentro de um Estado democrático de direitos, que visa diluir as exclusões
sociais.
Para responder a essa questão é necessário adotar uma perspectiva histórica (MESGRAVIS, 1993;
RIBEIRO, 1983; SCHWARTZ, 1988; MONTEIRO, 1994, LOPES, 2003; LOPES, 2005), objetivando
contextualizar melhor o fenômeno e adotar uma postura crítica em relação à legislação indigenista
(MONTEIRO, 2001; CARVALHO, JUNQUEIRA, 1981; BARROSO-HOFFMANN, LIMA, 2002).
Buscaremos discutir as emergências étnicas no RN, onde serão apresentadas discussões conceituais como,
“cultura”, “identidade”, “etnia”, “território”, além de pensarmos a relação desses conceitos com o Estado
moderno brasileiro e a questão multicultural (HALL, 2006).
Contando com aproximadamente 200 famílias os moradores da comunidade do Catu estão
inseridos no contexto econômico da região; trabalhando como empregados na produção de cana de
açúcar; carcinicultura; e pesca. Para complementar a renda os moradores do Catu mantêm uma produção
de subsistência como; batata-doce, alface, coentro, etc.
No caso específico do Catu na década de 1990, como constataram os antropólogos (SILVA, 2007)
e (JUNIOR, 2008), o fenômeno da emergência étnica esta intimamente ligada à questão de terra, com a
criação da APA (Área de Proteção Ambiental). O Estado foi responsável pela proibição da entrada dos
moradores do Catu dos Eleotérios na mata, espaço essencial para a caça, coleta e pesca.
A intervenção do Estado contribuiu para o ressurgimento das tradições culturais favorecendo o processo
de emergência étnica. Diferentemente do que aconteceu no período Colonial (com o avanço do gado) e no
período Imperial (com a lei de terras de 1850), na qual, a questão agrária foi um dos motivos para o
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suposto desaparecimento indígena no Nordeste. Hoje, é contraditório o impedimento do acesso à mata
causado pela criação da Área de Proteção Ambiental (APA) desencadeando um problema social e político
(SILVA, 2007).
A busca para reencontrar uma tradição que legitima uma reivindicação territorial pode ser
percebida por meio dos agenciamentos feitos pelas lideranças da comunidade do Catu dos Eleotérios.
Estes representantes viajaram para a Paraíba com o objetivo de entrar em contato com os índios da Baia
da Traição em 2002 e estabelecer ações de retomada cultural como a realização de aulas de tupi em 2003
oferecidas por funcionários da Fundação José Augusto e lideranças da comunidade; entraram em contato
com membros da Coordenação de Articulação de Povos e Organização Indígena do Nordeste, Minas e
Espírito Santo (APOINME); o grupo participou da VI Assembléia da APOINME na Baia da Traição em
2005; participaram em Brasília do encontro nacional da SEPPIR, participaram de audiência pública na
Assembléia Legislativa do RN em 2005 e 2008, elegeram representantes para a Comissão Nacional de
Políticas Indigenista (CNPI) realizada em Recife em 2006 pela APOINME, etc. Estas ações tinham como
objetivo reivindicar direitos constitucionais do Estado.
A relação dos Eleotérios do Catu com a mata denota o caráter diferencial de suas raízes étnicas,
pois eles aplicam saberes e costumes em seus cotidianos, construindo a diversidade e peculiaridade dessa
identidade (JUNIOR2008), entretanto, esses saberes não eram eleitos como sinais diacríticos para
reivindicação étnica.
Dentre os principais saberes e costumes, podemos ressaltar como diferencial a extração da
mangaba, realizada desde o início do século XX (GALVÃO, 1989), utilizada para a produção de látex, e,
para o consumo. A coleta da mangaba e a produção de Látex requerem saberes específicos e próprios,
desenvolvidos no cotidiano dos Eleotérios. Os instrumentos produzidos para a pesca e caça (arapuca,
‘visgo’, forjo, vara com ponta, o covo), criam uma cultura material dos Eleotérios e produzem saberes e
tradições diferenciadas.
Assim as tradições, técnicas e culturas que envolvem os conhecimentos da caça e da pesca
demonstram as peculiaridades da formação étnica dos Eleotérios do Catu. A renda mensal é baixa para a
maioria dos moradores do Catu/Goianinha e Catu/Canguaretama, quase 50% dessa população recebia
algum tipo de subsídio do governo devido a sua situação.
Além de uma análise substancialista da cultura, seria uma performance de significados e
resignificações mantidas por um contexto político articulado, por um sentimento de pertencimento
individual e coletivo e por meio de processos de interações sociais. As identidades sofrem mudanças
históricas. A alteridade aparece como uma forma de um grupo se diferenciar em relação a outro,
definindo assim, seu próprio contexto histórico “deflagrando um processo de reorganização sociocultural
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de amplas proporções.” (OLIVEIRA, 1999, p. 24). Sendo assim, as identidades indígenas no Nordeste
têm suas características próprias, e os grupos têm suas tomadas de decisões que devem ser entendidas
dentro das questões teóricas balizadoras em referência étnica (BARTH, 1998). Principalmente, se formos
pensar o processo de territorialização histórico pelo qual esses índios do Nordeste passaram.
Não se trata, como muitos acreditam, de um processo de fabricação de índios, mas sim, de uma
compreensão do processo histórico de manutenção da identidade das resistências e adaptações
(OLIVEIRA, 2011). Podemos perceber que a apropriação de formas, padrões e rituais devem ser
entendidas enquanto processos de identificação dos grupos étnicos diferenciados, sinais diacríticos. Os
elementos externos são incorporados sem provocar perda identitária, pois daqueles elementos são
retirados apenas os traços que são entendidos enquanto importantes por determinados grupos (relação
política), atingindo assim, uma legitimidade própria na forma de fazer, caracterizando a identidade dos
grupos étnicos do Nordeste, e, por conseguinte, do Rio Grande do Norte.
Os índios do Nordeste estiveram dentro de um processo violento, na qual se buscava, por meio da
força, impor uma cultura. Para entender esse contexto é foi cunhado o conceito de aculturação que explica
o processo histórico das perdas culminando no desaparecimento total de uma cultura, um conceito que
não leva em conta as resistências adaptativas dos índios (LOPES, 2003; ALMEIDA, 2003). Por meio do
mecanismo metodológico desenvolvido ao trabalhar com o conceito de etnogênese (GOLDSTEIN, 1975),
de memória social, e história oral (Halbwachs, 1990, Pollak, 1992), procura-se revisar a história do Rio
Grande do Norte e que vem a conflitar com a tese do desaparecimento (CAVIGNAC, 2003). Esssas
perspectivas implicam uma concepção de dinamicidade de cultura e que existe uma articulação entre as
tradições e as experiências que são selecionadas pelos sujeitos nos processos identitários. São
pressupostos essenciais para se perceber os processos históricos dos índios do Nordeste, por meio de uma
perspectiva que é antropológica e histórica (SCHWADE, VALLE, 2009). Procedimento que utilizei na
minha monografia intitulada; Os Índios na História do Brasil (da colônia a democracia): e o caso
específico do Catu dos Eleotérios – RN, no século XXI.
A metodologia desse projeto pressupõe as discussões conceituais de identidade e cultura, e a sua
dimensão política sob uma ótica da longa duração histórica, aqui às fronteiras com a antropologia e
história não são bem definidos, pelo contrário, são fluidas, dinâmicas e interdisciplinares (OLIVEIRA,
2011).
METODOLOGIA
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Para analise do processo de emergência étnica do Catu dos Eleotérios, seguirei uma metodologia
que enfatize as diferentes agências que motivam as reivindicações individuais e grupais. Utilizamos as
categorias de “experiência-próxima” e “experiência-distante” pensando os diferentes “modus operandi”
do “eu” e o “modus vivendi” da sociedade e da região, o indivíduo e suas relações associativas dentro do
tempo e espaço (GEERTZ, 1997). Buscamos, dessa forma, realizar uma leitura etnográfica que nem
privilegie o “eu” soberano nem às estruturas asfixiantes (COMARROF, 2010).
Defendo uma antropologia histórica e cultural, e em certa medida marxista no tocante da
percepção para fins analíticos de hegemonias e de processos de dominação nos fenômenos étnicos
(COMARROF, 2010). Nesse sentido, pretendemos pensar as relações étnicas de territorialização, entendo
a complexidade nesse “ir e vir” (e não só ir); dessas trocas, um meio pelo qual, determinados grupos
atribuem significados próprios da identidade indígena, como podemos evidenciar nos grupos indígenas do
Nordeste ao desenvolverem formas diversas em seus próprios modos de fazer. Como exemplo o ritual do
Toré e seus diferentes modos de cantos, de rituais, de caça, de pesca, de coleta na mata, de conhecimento
vegetal, de conhecimento espiritual, etc. Podemos observar no Catu dos Eleotérios uma “indianidade”
reivindicada através da linhagem de parentesco com os índios da Bahia da Traição (PB). O Toré aparece
como elemento essencial para pensar a fluidez dos limites territoriais. (GRÜNEWALD, 2005;
MAGALHÃES, 2007).
Partimos da premissa de que toda realidade cultural é socialmente construída; dessa forma
devemos procurar entender como foi gerada as formas de cultura especificas que dão tonicidade a
identidade indígena do Catu dos Eleotérios. O procedimento empreendido busca relacionar o meio de
expressão (códigos, significados, tradições, etc.) e o indivíduo que agência tais expressões. Ou seja, todo
e qualquer interlocutor que procuremos em nossa pesquisa está posicionado de forma dinâmica, de um
contexto social que também é dinâmico, cada indivíduo compreende o mundo e a realidade a sua forma e
a sua maneira, acessando múltiplas tradições, pois existe sempre uma disjunção entre os significados
pretendidos e as consequências, uma consciência que não atinge totalidade da sociedade das instituições e
das forças sobre o “eu”, mas que, todavia, esta ligada e sobreposta a um mundo maior, que agrega suas
respectivas práxis (BARTH, 2000). As questões étnicas aparecem ao mesmo tempo como um difusor
analítico para pensarmos assuntos considerados fechados ou já estabelecidos, o multiculturalismo é a
ponta de lança para pensarmos a situação dos Estados Modernos no século XXI, , dessa forma são
resignificados as identidades nacionais “modernas” e seus desdobramentos do poder (HALL, 2006).
DISCUSSÃO BIBLIOGRAFICA
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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Apesar da ausência de documentos oficiais que comprovem a ligação território do Catu dos
Eleotérios com aldeamento ou com missão indígena, ou seja, a historiografia ainda se comporta como se
seus fundamentos empíricos fossem auto-evidentes (COMARROF, 2010), devemos questionar essa
versão, assim, não podemos olhar para o território indígena a luz das categorias ocidentais, o limite
pressuposto entre Estado da Paraíba e Estado do Rio Grande do Norte, ou mesmo aldeamento e missão
indígena foram naturalizadas, da mesma forma, não podemos ler os documentos apenas enquanto os ditos
“oficiais”, ou seja, a oralidade, as imagens, a arte, os silêncios, os produtos materiais e cognitivos, os
signos formam um grande enredo analítico para uma antropologia histórica crítica. Para comprovar essa
ideia é preciso dotar um olhar antropológico livrando-se das amarras conceituais que deixam os índios
relegados ao passado histórico.
Para melhor sistematizar a forma de trabalho, será preciso a realização de um levantamento
bibliográfico sobre a temática, aproximando a pesquisa do contexto mais amplo à questão indígena no
Brasil, sem, todavia, fazer uma problematização mais aprofundada.
Devemos pensar o fenômeno da emergência étnica no Catu do Eleotérios em um contexto de manutenção
e implementação de políticas públicas a partir de 2011 com a recém-criada, Coordenação Técnica Local
da Fundação Nacional do Índio em Natal/RN, a FUNASA como conferência de saúde indigenista, e as
escolas indígenas. Trabalharemos o conceito de etnogênese (GOLDSTEIN, 1975), as novas formas de
pensar a cultura (GEERTZ, 1978) e as relações políticas para a compreensão da identidade (BARTH,
1998); (OLIVEIRA, 1998-1999); (ALMEIDA, 2003) as resistências indígenas (OLIVEIRA, 1998-1999);
(ALMEIDA, 2003); a teoria prática, a guinada histórica, a mudança do conceito de poder e cultura em
(ORTENER, 2007), o padrão camponês e a falta de traços forte de diferenciação cultural (OLIVEIRA,
1999); os conceitos de aculturação e desaparecimento na historiografia do Rio Grande do Norte; processo
de diferenciação étnica; a historicidade das unidades identitárias, as relações de territorialização do índio
do Nordeste (OLIVEIRA, 1999.); um olhar antropológico da história do tempo presente sobre o
fenômeno das emergências no caso específico do Catu dos Eleotérios. A história oral e a memória social
(HALBWACHS, 1990 e POLLAK, 1992); as formas de relação política; as tradições e re-elaborações do
cotidiano; o acesso a mata e a criação da Área de Proteção Ambiental; assim como o toré e seus
significados entendidos pelos sujeitos dentro do contexto de parentesco indígena no Nordeste
(GRÜNEWALD, 2005; MAGALHÃES, 2007).
Apesar da força exercida pelo discurso do “desaparecimento” na historiografia local, hoje (final do
século XX e início do XXI) já existem pesquisas realizadas na UFRN que desmistifica essa teoria, como
são exemplos os antropólogos, Dra. Julie Cavignac; Dr. Carlos Guilherme; Dr. Edmundo Pereira; Mª
Claudia Silva; Mª Jussara Galhardo, Bel. Juarez Moizes Junior;, os historiadores, Dra. Fátima Lopes; Dr.
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Lígio Maia; Dra. Carmem Alveal; Dr. Sebastião Vargas; Dr. Helder Macedo; Bel. Diego Castro; a
Turismologa Mª Tatiana Moritz, dentre outros que, ainda estão iniciando suas pesquisas, ou que não
foram por mim rastreados.
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QUE OS ÍNDIOS FALEM QUEM É O FRUTO DO TEMPO
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Felipe Henrique Cadó Salustino
Resumo: Nas diversas características que moldam a Idade Moderna uma em especial se mostra imprescindível no
trato com a época das Grandes Navegações, a transição. E como a sociedade nesse tempo lhe dava com esses
descobrimento fez com que surgissem para formar as estruturas, diferentes visões para com os novos humanos
encontrados no novo mundo. O padre dominicano Bartolomé de Las Casas é um verdadeiro exemplar dessa
diversidade no centro desse embate e saber qual era realmente as ideologias da época, sucinta em um embate que a
muito fora travado, embate este sobre a forma de dominação que os espanhóis impuseram aos nativos desde sua
chegada. Las Casas era diferente de seu tempo? Ou os espanhóis, sedentos pelo ouro, é que realmente consistiam o
verdadeiro molde daquela sociedade?
Palavras-chaves: Bartolomé de Las Casas; índios; fruto do tempo.
A Idade Moderna é marcada por ser um período histórico que vai do século XV ao XVIII. Esta
definição é dividida entre os historiadores, alguns acreditam que esse período possa ser alargado para uma
duração mais longa e outros para um período mais curto, porém nessa questão não darei muita
importância tendo em vista que o mais importante é o fato desse ser um tempo de profundas
modificações, onde que para o historiador isto deve ser dado às devidas proporções. É uma época
geralmente percebida como um período de transição. Tem como fator a ser considerado para a
historiografia já conceitual, a questão do valor da revolução social – que se constitui na substituição do
modo de produção feudal pelo modo de produção capitalista. Este é um período de grandes alterações e
de desenvolvimento no âmbito social; o que os estudiosos denominam de “Grandes Navegações” é um
exemplo deste avanço no mundo moderno. Esta fase importante do período da Idade Moderna se fez
existir devido a necessidade de descobrir novas rotas para livrar a Europa da supremacia italiana e turca –
Portugal e Espanha foram as primeiras nações a conseguir reunir condições técnicas e financeiras para
começar a explorar novas alternativas de rotas , fazendo cada um com as suas particularidades. Com essa
nova conjuntura mundial foi possível, para essas duas potências da época, chegarem a América.
A relação de dominados e dominantes no transcurso da história da América espanhola que se
apresenta de forma, muitas vezes, com aspectos de autoridade e intolerância, também nos mostra um
valor que em muito não se apresentou no discurso da História. A questão das diferentes visões que se
fizeram presentes no entrelaçado contato entre espanhóis e índios é um campo que trás repetidas
discussões a respeito de quem constituía o homem do tempo. No âmbito do Renascimento cultural, que
vivia o mundo do século XV, sabemos que a ideia primordial de espanhóis ao entrarem em contato com
os índios era a dominação. Tal dominação se fundamentava nas variadas concepções que importavam no
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Graduando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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discurso de dominadores e dominados. Porém, com o estudo de um importante padre dominicano que a
posteriori se torna o famoso Bispo de Chiapas (Bartolomé de Las Casas) que publicou importantes textos
sobre a colonização espanhola no decorrer do século XVI, descobrimos que este pensamento não era de
todo homogêneo e que existia a questão de ver o índio de outra forma que não a do ser formado para
dominação. Encontramos principalmente encabeçando essa ideia esse dominicano que participou da
colonização da Hispaniola, onde que na documentação estudada demonstra um discurso que verifica uma
certa “humanidade” aos indígenas, esta visão apresentada a partir das concepções da igreja e da religião.
Durante muito tempo da minha vida acadêmica escutei, dita pela boca de docentes e discentes, a
expressão que sempre me incomodou e me deixava inquieto: “ele (um objeto qualquer da história) é fruto
de seu tempo”. Movido por essa inquietude e a partir de um primeiro contato com a obra mais famosa do
frei Barlomé de Las Casas, começo esse projeto com essa interrogativa: será que o que se fez antes pode
ser passivo apenas dessa prerrogativa de um segmento tão ínfimo de reduzir tudo a um “fruto do tempo”?
O padre Bartolomé de Las Casas foi um frade dominicano que participou da segunda viagem de
Cristovão Colombo à nova terra descoberta, onde se tornou um dos principais defensores dos índios da
América. Partiu para a Hispaniola na caravana de Nicolás de Ovando em 15 de abril de 1502 (a partida
dessa expedição é considerada por alguns estudiosos um ano após esta data). Bartolomé vai a ilha
espanhola com o mesmo ardor que motivavam os colonizadores para essa nova terra (espírito aventureiro,
explorador de riqueza e da população indígenas), participou até de ataques a tribos escravizando-os em
suas plantações. O que traduz bem essa caracterização de colonos é o texto do Códice Florentino
(náhuatl) onde traz que: “como uns porcos famintos, ansiavam pelo ouro”. Já se sabe que a grande sede
de espanhóis pelo tão desejado ouro, do qual já eram conhecedores de lendas e famas do esplendor de
tamanha riqueza dos indígenas, tornou-se um carro chefe para tais atitudes e comportamentos para com
aqueles recém descobertos, a partir da visualização das ostentações de pedras preciosas e colares
ornamentais pelos nativos, os espanhóis se convenciam cada vez mais da exuberância de fortuna presente
naquelas localidades.
Contudo, como Bartolomé de Las Casas, um homem do século XVI, modificou completamente
sua forma de pensar? Em sua obra ele abre essa mesma discussão sobre os motivos pela prática dessas
tamanhas atrocidades – o ouro – desejo incessante combinado por um dos sete pecados capitais (forma
pela qual o cristianismo se aproprio dessa ideologia, que é bastante anterior ao nascimento de Cristo e que
fora instituída para controlar e educar de forma a dominar os instintos julgados errôneos do ser humano,
por isso está tão presente no discurso do dominicano) – essa questão está bem explicitado em um
fragmento do texto da Brevíssima relação (...):
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A causa pela qual os espanhóis destruíram tal infinidade de almas foi unicamente não terem
outra finalidade última senão o ouro, para enriquecer em pouco tempo, subindo de um salto a
posição que absolutamente não convinham a suas pessoas; enfim, não foi senão sua avareza que
causou a perda desses povos, que por serem tão dóceis e tão benignos foram tão fáceis de
subjulgar. (LAS CASAS, 2011, p. 29)
O que se aceita como marca nesse cambiar de ideologia de Las Casas é a relação que tivera com a
visão de evangelização dos índios de Isabel de Castela, mais conhecida como “A católica” e com o
famoso Sermão do Advento feito pelo frei Antônio de Montesismo. A visão que no começo se
assemelhava bastante ao de colono sedento de desejo pelo ouro cai por terra e o próprio Las Casas
começa a seguir caminho contesto, onde agora o dominicano passa a aceitar a ideia de que se deve
defender a dignidade dos indígenas com tão veemência defendida pelo frei Montesismo. Esse sermão que
em outrora informei é tratado como um verdadeiro marco no cambiar dos ideais de Las Casas, onde que o
mesmo passa de um colonizador (essa expressão, vale ressaltar, com carga negativa) para um defensor
das populações que ali vivam.
Ele escreveu tratados que se tornaram os mais importantes registros de defensa dos índios, fazendo
com que seu nome seja diretamente ligado com a luta dos Direitos Humanos na América, estes compostos
por oito escritos que foram publicados pela primeira vez em Sevilha, na Espanha, por volta de 1552 e
1553 – congregados em sete desses em língua espanhola e um em latim – onde que um desses Tratados é
a obra mais famosa do autor – a “Brévisima relación de la destrucción de las Indias” - esse texto foi
terminado por Las Casas em 1542 e publicado em 1552 sob o título origianal de : Brevissima relación de
la destruycion de las indias: colegiada por el obispo don fray Bartolome de Las Casas ó Cassaus, de la
orden de Sancto Domingo – año de 1552; a qual será a obra norteadora deste trabalho .
A obra – Brevíssima relação (...) – traz toda uma carga pessoal e de sensibilidade para com o índio
onde ele expõe toda sua visão contrária daquilo que estava ocorrendo na América espanhola. Esta traz
relatos constrangedores:
Os espanhóis, (...), entravam nas vilas, burgos e aldeias, não poupando nem as crianças e os
homens velhos, nem as mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre e as faziam em
pedaços como se estivessem golpeando cordeiros fechados em seu redil. (LAS CASAS, 2011, p.
31)
Um testemunho mais aterrador sobre a Conquista espanhola. Uma antologia de horrores, na qual nos
é descrito um mundo de pesadelos, atrozes estatísticas sobre o número de índios mortos, a crueldade dos
conquistadores e a inferioridade com tamanho horror dos índios; são todas essas cargas de caracteres que
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faz de Las Casas ao mesmo tempo defensor dos índios e o odiado pelos cristãos que ali habitavam, textos
como:
Outros, mais furiosos, passavam mãe e filho a fio de espada. Faziam certas forcas longas e baixas,
de modo que os pés tocavam quase a terra, um para cada treze, em honra e reverência de Nosso
Senhor e de seus doze Apóstolo (como diziam) e deitando-lhes fogo, queimavam vivos todos os
que ali estavam presos. (LAS CASAS, 2011, p.31)
A idolatria conquistadora ao ouro, que transformou em destruidores de povos, fica em face com a
visão de uma “América” linda e nova de Las Casa, onde conseguiu enxergar em meio daquela destruição
coisas favoráveis aos índios, vendo neles, sobretudo, um importante potencial de novos cristãos para a
Espanha e que as atrocidades sofridas não fazia jus a tamanha disposição. Em uma passagem da
Brevíssima relação ele traz sobre aqueles povos: “humildes, pacientes, pacíficos, quietos, (..), sem rancor,
sem ódio, sem desejo de vingança.” E é a partir de então que ele compara com as atrocidade cometidas
contra esses povos, onde em algumas vezes ele coloca que tem alma mais limpa do que muitos espanhóis
que cometiam barbaridades e que não tinham o verdadeiro espírito cristão. Passagem que exemplifica
muito bem essa dicotomia entre bem e mal, entre espanhóis e nativos, é no relato que o autor em questão
nos apresenta quando um cacique da ilha de Cuba fora preso e questionado sobre o desejo de ir para o
céu, segue a passagem:
Este senhor e cacique fugia sempre aos espanhóis e se defendia contra eles toda vez que os
encontrava. Por fim, foi preso com toda a sua gente e queimado vivo. E como estava atado ao
tronco, um religioso de São Francisco (homem santo) lhe disse algumas cousas de Deus e de nossa
Fé, que lhe pudessem ser úteis, (...). Se ele quisesse crer no que lhe diria, iria para o céu onde está
a glória e o repouso eterno e se não acreditasse iria para o inferno, a fim de ser perpetuamente
atormentado. Esse cacique, após ter pensado algum tempo, perguntou ao religioso se os espanhóis
iam para o céu; o religioso respondeu que sim desde que fossem bons. O cacique disse sem mais
pensar, que não queria absolutamente ir para o céu; queria ir para o inferno a fim de não se
encontrar no lugar em que tal gente se encontrasse. (LAS CASAS, 2011, p.41)
A escolha por Las Casas se dar devido ao mesmo se tornar uma grande antítese dos colonizadores
espanhóis que chegaram onde hoje é a América, tendo em vista que o mesmo viveu a relação EuropaAmerica no início da colonização nos séculos XV e XVI, enquanto os colonos praticavam maldade,
tortura e genocídio com índios e isso se tornava uma coisa “normal” devido ao fruto do tempo, aquele os
denunciam em seus livros, em destaque existem dois: “Brevísima relacíon de la destruccion de las Índias
e Apologética historia sumaria”, mostrando essa dualidade de visão para com essas novas descobertas e
que se diferem em muitos aspectos.
Contudo, não seria Las Casas o fruto de seu tempo? Então, o fato de ser cristão era a prerrogativa
para tal pensamento diferente? Bartolomé em sua obra nos deixa claro que essa coisa de influência que
pré-fabricam os indivíduos não lhe caía bem, porém no caso de Las Casas as coisas são mais profundas,
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tendo em vista que sua visão para com os índios se difere com a contemporâneos conquistadores. Então,
como fazer saber quem realmente foi o homem exemplo do século XVI? Sobretudo não era Las Casas o
diferente, “o fora de tempo”, mas sim os espanhóis que cometiam as barbaridades e malvadezas relatadas
por Las Casas, o que define isto são tratados e leis que regiram o mundo espanhol na época da Conquista
e que se apresentam por muitas vezes com os mesmos ideais do escritor, que em certa forma se opõe aos
conquistadores sanguinários. Por exemplo, haviam na época teólogos que protestaram contra a
escravização e conseguiram, junto com as leis redigidas na Espanha, que a escravidão indígena nas novas
terras fossem proibidas no século XVI. Não obstante melhor expressão não seria proibida, mas sim a
escravidão fora abençoada – como defende Eduardo Galeano – em cada ação militar contra os índios,
após a data afirmada, eram lidos para os capturados um extenso e retórico Requerimento no qual era
apresentado o que aconteceria a esses se não fossem dominados por livre vontade:
”Se não o fizerdes, ou se fizerdes maliciosamente, com dilação, certifico-vos que com a ajuda de
Deus, agirei poderosamente contra vós e vos farei guerra de maneira que puder em todos os
lugares, submetendo-vos ao jugo e a obediência da Igreja e de Sua Majestade, e tomarei vossas
mulheres e vossos filhos e vos farei escravos e como tais sereis vendidos, dispondo de vós como
Sua Majestade ordenar, e tomarei vossos bens e farei contra vós todos os males que puder (...)”39
Las Casas mudou completamente o mundo em que vivia e não transformou-se no fruto dessa forma
pré-moldado que estudos a posteriori identificava como sendo o colono conquistador; e era tão
revolucionário para sua época que em comparação até mesmo com a Instituição que lhe formou, e tem de
grande influencia em sua narrativa (a Igreja), encontramos disparidades dos opositores que a
frequentavam. Como exemplo temos seu maior opositor, o filósofo Juan Ginés de Sepulveda, que assim
como Las Casas era um cristão, porém não defendia as mesmas ideias do religioso. Sepulveda escreveu
um tratado em 1533 intitulado de Democrates primus o de la conformidad de la milícia com la religión
Cristiana, no qual o mesmo defendia a utilização da força armada para conquistar sem restrição, mesmo
que em conflitos religioso. Grande estudioso de Aristóteles esse jurista defendia a ideia de que os povos
recém descobertos eram passivos de ser escravizados, principio este muito enraizado na própria Igreja,
definia isto a partir dos tipos de servos defendido pelos escolásticos: alguns [servos] por natureza, outros
por malvadeza, outros por sua espontânea vontade, outros por necessidade, outros por somente
dominação e violência.
É a partir desse e de outros conceitos que se constrói a justificativa do domínio dos povos na conquista
da América. Juntando a essa definição temos os textos de Aristóteles, ambos serviram como base ideológica
para a dominação do Novo Mundo. Com um certo embasamento nesse filósofo grego (que viveu de 384 a.C a
322 a.C), um importante teólogo por volta de 1510 aplica esses ensinamentos à dominação desses povos que
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foram recém descobertos, alegava Johames Mior que alguns são escravos por natureza e outros livres pela
mesma, e alguns tem disposição à escravidão, porém quando algum dominador chega, imediatamente aqueles
dominados logo são beneficiados com essa relação; visão está bem defendida pelo Sepulveda quando
confrontado suas ideias com as do Dominicano, assim justificava a dominação dos índios a partir da dupla-mão
que essa relação causava.
Já São Tomás de Aquino, outro teólogo bastante estudado na relação de dominium, justifica a
servidão logo quando esta é aplicada àqueles que são por natureza servos e bárbaros, e os quais tem falta
de juízo e compreensão. Definindo os índios assim, ele acaba por dizer que estes são animais que falam.
Encontramos em Tomás de Aquino as ideias de Aristóteles – o discurso de “naturalização” da dominação
– tornando a condição do índio como um fator natural, onde que o mesmo foi destinado a acontecer
aquilo, tornando isso um discurso que justifica as ações dos dominadores, e para legalização dessa
dominação atribui-se ao nativo um valor depreciativo no qual se tem os valores de predisposição e os de
diminuição ao relacionar os índios como animais.
Foi a partir dessas controversas entre Las Casas e Sepulveda, que se constituiu o debate de Valladolid
convocado por Carlos V para que se fizesse ouvir as argumentações entre essas duas personalidades tão
dicotômicas e tão importantes para a constituição para saber como lidar com aqueles novos tipos de
homens descobertos em terras distantes, que gerou o debate sobre aceitar, num processo de alteridade, a
universalidade da condição humana ou recusar o outro como forma de poder (dominação). Essa discussão
sobre se justo ou não a guerra contra o indígena foi o cerne daquele debate e serve para demonstrar e
desmistificar sobre qual lado realmente está centrado a ideia do “homem do tempo”. Contudo constituir
que seja Sepulveda o homem do tempo é aceitar uma continuidade em plena Idade Moderna das ideias
que outrora fora outorgadas por Aristóteles e seus sucessores e não ver um período de profundas
mudanças onde no qual Las Casas se ver jogado e tendo que ultrapassar barreiras para proferir aquilo que
realmente se caracteriza como um dos diversos pensamentos que constitui a mudança e a estrutura dessa
nova era de descobrimentos.
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O CALENDÁRIO DA RESISTÊNCIA: estratégias e mobilização política nas performances
do dia 20 de maio nos Índios Xukuru.
Rita de Cássia Maria Neves
Resumo: Esse trabalho trata da identidade étnica indígena, em situação de conflito, observada a partir das performances
efetuadas pelos índios Xukuru no ritual de 20 de maio, tendo por base etnográfica o ano de 2003, em Pesqueira, Pernambuco.
O dia 20 de maio – data do assassinato do cacique Chicão (pai do atual cacique) - se constituiu como um dia de luta e
homenagem a esse cacique desde o ano seguinte à sua morte em 1998. Nesse texto procuro explicitar as fronteiras e as interrelações estabelecidas entre os Xukuru e o resto da sociedade envolvente durante o ritual citado. Para isso usarei o conceito de
Performance Cultural adotado por Victor Turner. Embora esse evento tenha se iniciado como um ato de protesto pela morte do
cacique, aos poucos se transformou em um evento que aprofunda o sentimento de comunidade entre os Xukuru, servindo como
elemento distintivo do grupo para com a sociedade envolvente. A história e a forma como os Xukuru se relacionaram com a
população que se estabeleceu próxima ou dentro do seu território se tornou a base sobre a qual foram construídas sua
identidade e organização social. Essa rede de relações estabelecidas ao longo do tempo deve ser compreendida como
estratégias conscientes e inconscientes de construção de uma identidade distinta em um cenário pluri étnico. Ao mesmo tempo
em que os Xukuru priorizaram as relações internas, também sentiram necessidade de abertura para a sociedade a sua volta. É
na própria criação de sociabilidades que os Xukuru puderam manter a sua distintividade.
Referências históricas sobre os índios Xukuru podem ser encontradas desde o século XVI. No
entanto, a maior parte da documentação disponível foi produzida por administradores coloniais,
autoridades locais, e são fundadas em referenciais da invasão das terras Xukuru. Além desses
documentos, temos alguns relatos de viajantes e referências de etnólogos como Curt Nimuendaju,
apresentadas em seu tradicional mapa etnohistórico, e Hohenthal, em artigo publicado em 1958 sobre os
Xukuru.
Alguns trabalhos produzidos sobre a cidade de Pesqueira, em Pernambuco também fazem
referência aos índios Xukuru. É o caso do livro de Nelson Barbalho, Caboclos do Urubá, editado em
1977. Nesse livro a principal preocupação é louvar feitos protagonizados pelos desbravadores, com
conotações heróicas, em que os Xukuru aparecem como figurantes nesse processo de civilizar a região.
Os Xukuru também estiveram presentes em todo o processo histórico de transformação das
instituições. Na década de 1980, tiveram ampla participação na campanha da Constituinte, ocasião em
que as populações indígenas pressionaram o parlamento pela garantia dos direitos constitucionais. Um
importante ator, nesse processo da Constituinte e na denominada etnogênese Xukuru, foi Francisco de
Assis Araújo, conhecido como Cacique Xicão.
Xicão nasceu na aldeia Canabrava, em 1950, e se casou com Zenilda Maria de Araújo, em 1970.
Emigrou para a cidade de São Paulo e ali morou por aproximadamente onze anos. Retornou para a aldeia
Canabrava em 1986, época em que o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) passou a atuar na terra
indígena Xukuru, através da promoção de cursos e apoio jurídico sobre os direitos indígenas. Xicão, na
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época como vice-cacique, vai pouco a pouco ganhando destaque nacional por participar ativamente da
luta na Assembléia Constituinte pela inclusão de direitos indígenas na nova Constituição.
Xicão, depois de eleito cacique, pressiona a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para que seja
constituído um grupo de trabalho para fazer a identificação e definição dos limites da terra indígena
Xukuru. O processo jurídico foi iniciado em 1989 com as etapas de identificação e delimitação da TI. O
grupo de trabalho, responsável pela identificação, cadastrou 243 imóveis rurais, dentro da área delimitada,
que ao final do processo ficou estipulado em 27.555 ha (vinte se sete mil quinhentos e cinqüenta e cinco
hectares), sendo uma grande parte deles pertencentes a pessoas importantes da região: o prefeito da
cidade de Pesqueira, secretários municipais e parentes do então senador Marco Maciel. A homologação
só veio a ocorrer em 2001, mesmo com as etapas necessárias para a regulamentação, tendo sido
concluídas em 1998. (SOUZA, 2003).
Além desse processo jurídico fundiário, como forma de pressionar o órgão indigenista responsável
pelo processo, bem como forçar o próprio governo a liberar recursos para indenização e desintrusão dos
não índios da Terra Indígena, os Xukuru realizaram “retomadas” das áreas consideradas prioritárias. Em
fevereiro de 1991, os Xukuru ocuparam a área chamada de Pedra D’água (hoje aldeia Pedra D’água) com
110 ha que estava de posse do Ministério da Agricultura.
A aldeia Pedra D’Água, como afirma Oliveira (2001), foi transformada no centro político Xukuru,
representando o lugar estratégico onde o cacique Xicão passou a morar. É considerado um local sagrado e
nele se localiza a Pedra do Rei, também chamada de Pedra do Reino, onde os Xukuru realizam rituais e o
cacique Xicão foi enterrado. O terreiro de Toré da Pedra D’Água é um dos mais importantes dos Xukuru.
É o local onde se realiza a Festa de Reis no mês de janeiro e também é o lugar onde são feitos os rituais
chamados de “pajelança”.
Em 1992, os Xukuru realizaram outra “retomada”, dessa vez na aldeia Caípe, de propriedade de
Hamilton Didier, num total de 1450 hectares de terra. Foi uma retomada que exigiu dos Xukuru uma
organização prévia e apoio de várias instituições externas como o CIMI, Comissão Pastoral da Terra
(CPT), Centro de Direitos Humanos, Universidade Federal Rural de Pernambuco, entre outras. A
retomada de Caípe legitimou o trabalho do cacique Xicão e preparou o grupo para um novo modelo de
organização que seria implantado logo em seguida.
A TI Xukuru se localiza na Serra do Ororubá numa região semi-árida, entre o Agreste e o Sertão.
Limita-se ao norte com o Município de Poção e com o Estado da Paraíba; ao sul com Mimoso; ao Leste
com Pesqueira e a Oeste com Arcoverde. Isso faz com que a terra indígena esteja incrustada numa região
com solo e clima variáveis, possuindo, desde áreas úmidas a áreas extremamente secas e dependentes da
chuva. A Serra do Ororubá é composta por uma cadeia de montanhas com uma altitude aproximada de
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1.125 metros. É uma região que dispõe de uma hidrografia privilegiada com a presença de um grande
açude e rios, como Ipanema e Ipojuca que cortam a TI. Essa conjugação hidrográfica é responsável pela
fertilidade de parte das terras dos Xukuru, abastecendo também, em época de seca, a cidade de Pesqueira.
Os índios participaram do processo de luta pela terra e sobreviveram, face aos desmandos, à venda
ilegal de terras e à força do poder público que, através de seus membros, negociavam terras na Serra do
Ororubá. Sobreviver significou, na maioria das vezes, estabelecer confrontos diretos, mas às vezes
significou também estabelecer vínculos e relações com os posseiros. Isso se deu através do casamento, da
adoção de símbolos cristãos e da relação de submissão com o poder público.
Quando se iniciou o processo de desintrusão dos não índios da TI Xukuru, as relações conflituosas
entre os Xukuru e a população da cidade de Pesqueira se acirraram. Entre os pesqueirenses é bastante
difundida a opinião de que os índios são preguiçosos e de que a terra nas mãos dos Xukuru ficaria ociosa.
Além disso, os pesqueirenses freqüentemente apresentam dúvidas sobre a autenticidade da identidade
étnica Xukuru, mesmo reconhecendo que a Serra do Ororubá um dia foi morada dos índios Xukuru. Esses
dois questionamentos colocam em dúvida a capacidade gerencial dos Xukuru sobre a terra e a sua
identidade étnica, apresentando-os como falsos índios.
Essa rede de relações estabelecidas ao longo do tempo deve, portanto, ser compreendida como
estratégias conscientes e inconscientes de construção e preservação de uma identidade distinta em um
cenário pluriétnico. Ao mesmo tempo em que os Xukuru priorizaram as relações internas, também
sentiram a necessidade de abertura para a sociedade à sua volta. É na própria criação de sociabilidades
que os Xukuru puderam manter a sua distintividade.
20 de maio: construção de uma tradição
No dia 20 de maio de 1998 o cacique Xicão foi assassinado no bairro Xukurus, em Pesqueira. O
mandante foi um fazendeiro que possuía terras na Serra do Ororubá. Desde 1999 que os Xukuru realizam
um ato público no dia 20 de maio. O que se iniciou como um ato de protesto pela morte do cacique Xicão,
aos poucos adquiriu outras conotações. Os Xukuru resignificaram esse dia, associando a data do
assassinato de Xicão às conquistas e decisões coletivas. Em 1999, no aniversário de morte desse cacique,
o 20 de maio teve um caráter de afirmação étnica e reivindicação política, aliada a um sentimento de
perda. No ano seguinte, em 2000, esse evento foi antecedido por dois dias de reuniões, na aldeia Pedra
D’Água, chamada de pós-conferência indígena, porque sucedeu à conferência indígena que aconteceu, em
Porto Seguro (BA), em abril daquele mesmo ano. Na pós-conferência, estiveram presentes índios de
vários estados do Brasil, assim como missionários do CIMI de todos os escritórios regionais. A Pósconferência culminou com uma pajelança, no dia 20 de maio pela manhã, seguida de uma missa próxima
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ao túmulo de Xicão. Após o almoço, os Xukuru e os demais índios e não-índios presentes na conferência
desceram a Serra do Ororubá em caminhada até o local em que Xicão foi assassinado. Lá, foi então
realizado um ato público. Para os Xukuru, esse foi o primeiro passo para a criação das suas assembléias
anuais.
Em 2001, os Xukuru realizaram, entre os dias 18 e 19 de maio, a sua Primeira Assembléia do Povo
Xukuru. No dia 20, por sua vez, fizeram uma pajelança, em Pedra D’Água e à tarde, desceram a Serra do
Ororubá para mais um ato em homenagem a Xicão. Dessa vez, após a descida da serra, eles pararam para
discursar em vários locais de Pesqueira e, por fim, leram publicamente uma carta com o resultado da
assembléia.
No ano de 2002, um pouco antes da realização da Segunda Assembléia do Povo Xukuru, foi preso o
fazendeiro José Cordeiro de Santana (Zé de Riva), mandante do assassinato de Xicão. Nesse ano eu não
estava presente, mas, de acordo com Palitot (2003), a tônica dessa assembléia foi buscar a consolidação
das instituições Xukuru. A descida da serra, nesse ano, ainda segundo Palitot, foi tensa, pois refletia a
prisão de Zé de Riva.
Se em 2002, a tensão se expressava pelo fato de terem prendido o assassino de Xicão; em 2003, o
evento adquiriu uma conotação peculiar, na medida em que foi realizado, apenas três meses após o
atentado ao cacique Marcos Luidson, filho do cacique Xicão e que o sucedeu no cacicado. O atentado foi
realizado por um índio Xukuru pertencente a um grupo de Xukurus dissidente e que se encontrava em
conflito. Após o atentado em que dois índios que estavam junto com o cacique na ocasião, foram
assassinados, a população, em revolta pelo atentado e pelas mortes, expulsou da TI todo o grupo
dissidente. A situação, após o atentado era muito tensa, tanto na terra indígena, quanto na cidade de
Pesqueira, onde passou a morar a maioria dos índios que deixaram a TI Xukuru.
Ainda na rodovia BR 232, ao chegar a Pesqueira, de longe se avista uma grande pedra. Ao se dirigir
para a área indígena, é a Pedra do Rei que acompanha toda a subida da serra. Ao pisar na Pedra do Rei é
impossível ficar indiferente à sua imponência física e espiritual. Ela é um símbolo consagrado, pois nela
se realizavam os rituais dos Xukuru, quando ainda eram proibidos por lei; foi nela que os Xukuru
iniciaram a retomada de seu território. Foi na Pedra do Rei que Xicão soube que se tornaria cacique e nela
também Marcos se tornou cacique e, finalmente, foi na Pedra do Rei que Xicão pediu para ser enterrado.
Ela é a pedra que fertiliza a luta dos Xukuru e, portanto, é nela que se inicia o ritual do dia 20 de maio.
Outro espaço simbólico importante para os Xukuru é a aldeia Santana. É uma área que foi retomada
pelos Xukuru, em 1990, e é o local onde mora Dona Zenilda, importante liderança e mãe do cacique
Marcos. Ao mesmo tempo em que Santana é a porta de entrada para Pedra D’Água, todo esse território é
uma conquista que se efetivou aos poucos, do “centro” para a “periferia”. Primeiro, os Xukuru retomaram
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a Pedra do Rei, depois a Pedra D’Água, para, em seguida, conquistarem a entrada da Pedra D’Água, que é
a aldeia Santana.
No dia 20 de maio, os Xukuru fazem o caminho inverso do que fez Xicão no dia em que foi
assassinado. Xicão morreu em Pesqueira, na frente da casa de sua irmã, foi levado para Cimbres, depois
passou por Santana, Pedra D’Água, e foi enterrado na Pedra do Rei. No dia 20 de maio, os Xukuru
iniciam o ritual na Pedra do Rei, seguem para Santana, descem a pé a Serra do Ororubá e encerram as
atividades, na frente da casa da irmã de Xicão, em Pesqueira.
Toda a Serra do Ororubá é território Xukuru e, conseqüentemente, fronteira delimitadora de
identidade. A Serra do Ororubá ao mesmo tempo em que é espaço residencial, de ocupação, se constitui
também como espaço interacional e simbólico. Até mesmo para aqueles índios que moram na cidade de
Pesqueira, a Serra do Ororubá é o seu lugar de origem, o local onde viveram os seus antepassados.
Mary Douglas, em Pureza e Perigo (1980), afirma que é impossível ter relações sociais sem atos
simbólicos e que, em algumas situações, mecanismos de enfoque são acionados, enquadrando a realidade
de forma que todos a percebam e a tomem para si. Desde as primeiras horas da manhã, os Xukuru são
preparados para detectarem o significado do dia 20 de maio. É um evento político simbólico que é
realizado, há catorze anos, e que, embora outros mecanismos também sejam acionados, a paisagem
cultural anima a memória e liga o presente com o passado. A paisagem focaliza e direciona a atenção das
pessoas para o evento que se desenrola nesse dia.
Embora tenha participado de quase todos os anos do 20 de maio, passarei a analisar o evento do ano
de 2003, pois foi nesse ano que o cacique Marcos havia sofrido um atentado à sua vida e, foi nesse ano
que o evento adquiriu sua maior projeção.
20 de maio de 2003: apresentação, situação, contexto.
O dia 20 de maio é o maior evento realizado pelos Xukuru, em termos de número de pessoas.
Participaram desse evento em 2003, índios Xukuru das 24 aldeias, além do cacique, do pajé, de
representantes das aldeias, do Conselho de Professores Indígenas Xukuru do Ororubá (COPIXO), do
Conselho Indígena de Saúde Xukuru do Ororubá (CISXO), bem como alguns Xukuru que foram ao
evento montados a cavalo e que são intitulados “Cavaleiros de Aruanda”. Além dos Xukuru, estavam
presentes índios de outras etnias, vindos do Nordeste e de outras regiões do Brasil, que se aliam à luta dos
Xukuru.
Além dos índios, participaram desse evento padres convidados para celebrar a missa, representantes
da FUNAI, da FUNASA, do CIMI, ONGs que atuam na causa indígena e alguns deputados pertencentes
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aos quadros do Partido dos Trabalhadores e que se apresentaram publicamente, apoiando os Xukuru do
Ororubá.
Esse evento divide-se em dois momentos. Num primeiro momento, pela manhã, são realizados
rituais em homenagem ao cacique Xicão, mais especificamente Toré e missa. É um ritual feito pelos
Xukuru, para os Xukuru e seus aliados. No segundo momento, na cidade de Pesqueira, o evento adquire
outra conotação, é feito para os pesqueirenses, principalmente aqueles que criticam os Xukuru. Em 2003,
além da população de Pesqueira, estavam presentes nessa cidade, os Xukuru expulsos da TI, motivo pelo
qual o cortejo até o local do evento foi rápido e pujante.
Primeiro Momento: Toré e Missa
Na manhã do dia 20 de maio de 2003, os Xukuru seguiram para a Pedra D’Água, em direção ao
local onde Xicão foi sepultado para a celebração de uma missa. Uma chuva fina cobria a paisagem, mas
isso não fazia ninguém se retirar. As pessoas tentavam se acomodar na clareira onde Xicão e mais alguns
Xukuru estão enterrados. Alguns se apertavam, nas laterais íngremes da montanha escorregadia e cheia de
árvores de galhos finos; outros subiam em uma grande pedra que toscamente se inclina por sobre a
clareira. Durante toda a manhã foi celebrada uma missa, além do ritual do Toré.
Após esse momento, as pessoas lentamente seguiram para Santana, para esperar a hora de descer a
Serra do Ororubá em direção à cidade de Pesqueira, para a segunda parte do 20 de maio.
Segundo Momento: descendo a Serra do Ororubá.
Participei, algumas vezes, das homenagens do dia 20 de maio, no entanto neste ano de 2003,
percebi que a descida da Serra fora mais tensa e mais veloz. Das outras vezes, os Xukuru desciam a Serra
lentamente e paravam em frente de alguns locais da cidade de Pesqueira para discursarem. Este ano, além
de não efetivarem nenhuma parada, realizaram o trajeto em um ritmo mais veloz. Os Xukuru desceram a
serra, paramentados e com passos firmes e ritmados como num Toré; seguiram na mesma velocidade para
o bairro Xucurus. O pé direito marcava o ritmo e todos cantavam fortemente:
“Pisa ligeiro,
Oi pisa ligeiro
Quem não pode com a formiga
Não assanha o formigueiro”.
Na medida em que os Xukuru passavam nas ruas, os comerciantes fechavam as portas das suas
lojas. Ao mesmo tempo, vi muitas pessoas paradas nas praças, olhando com curiosidade. Havia
evidentemente uma tensão, quando os Xukuru desceram a serra. Entretanto, nada aconteceu e os índios
chegaram ao bairro Xukurus, sem maiores problemas. Além das vinte e quatro aldeias Xukuru, havia
muitas outras pessoas presentes na caminhada, o que conferia a esta um aspecto grandioso. Aos poucos,
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todos se posicionaram em frente ao caminhão que serviu de palanque, onde as performances
aconteceram.Nos discursos proferidos por essas pessoas, alguns temas são insistentemente repetidos,
fazendo com que mesmo aqueles que não são indígenas façam o mesmo discurso dos indígenas. O
conjunto dessas narrativas nos revela como as pessoas enxergam esse evento (Basso, 1997). No momento
em que os discursos são proferidos cada narrativa pessoal organiza, transmite e recria permanentemente a
experiência não apenas da pessoa que profere o discurso, mas também a experiência do público presente.
Isso se dá, através da ligação que se estabelece entre o sujeito narrador e seu público, que, juntos, passam
a integrar a mesma história.
Numa situação de conflito, como a vivenciada pelos Xukuru, momentos de grande reflexividade
performática se apresentam, em cada ocasião, onde se encontrem público e performer. Todos os que
subiram ao palanque sejam índios ou não índios, levaram a audiência a refletir sobre os conflitos. Os
discursos sobre determinados temas estimulam não apenas a reflexão, mas percepções sensoriais, ou seja,
experiências. Nesta ocasião os discursos criam para a audiência – como ocorre com a religião –
simultaneamente dois tipos de modelos: modelos de e modelos para. (Geertz 1978).
Na narrativa do cacique Marcos percebemos claramente o controle que ele possui sobre a audiência
e a transformação que seu discurso propicia ao público presente:
Primeiro de que tudo, eu gostaria de pedir permissão aos encantos, à natureza sagrada, para eu
poder falar em nome do povo Xukuru. Também gostaria de pedir aqui a todos os parentes uma salva de
palmas pra Nilson e Nilsinho (palmas), que deram a sua vida pra que hoje eu pudesse estar aqui com
vocês. E eu gostaria de fazer um relato dos últimos acontecimentos que o nosso povo vem sofrendo, das
atrocidades que vem acontecendo neste país, tentando dizimar as nossas populações indígenas,
especificamente o povo Xukuru.
(...) Andam dizendo por aí, na imprensa, na mídia, por aí, o tempo todo, que o povo Xukuru está
dividido e que os índios andam se matando entre si, uns aos outros. Isto é uma grande mentira que está
acontecendo. Isso é uma grande armação que está acontecendo, dos políticos, dos religiosos que existem
aqui na cidade de Pesqueira, empresários que têm interesse na exploração, no projeto de turismo religioso
lá em cima.
(...) E aí é a grande armação que está acontecendo contra o povo Xukuru e queremos dizer pra
justiça que não é assim que eles vão conseguir derrubar o povo Xukuru, porque nós já estamos
identificando esses agentes externos que estão tentando nos destruir e nós vamos, sim, denunciar isso a
todo custo. E aí eu quero dizer pra vocês mais uma prova da perseguição política e da injustiça contra a
minha pessoa e contra as lideranças do povo Xukuru, foi o que aconteceu no dia 07 de fevereiro, aqui em
cima, quando sofri um atentado, ainda tenho aqui algumas marcas pelo corpo (...).
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(...) Então é isso que eu tenho a dizer pra vocês. Com vocês nós jamais vamos recuar dessa luta
porque o povo Xukuru está de parabéns, ta organizado, ta unido, mostrando pra toda a sociedade, que nós
sabemos o que queremos e vamos lutar por isso, vamos ou não vamos? (vamos!)
E pode contar com essa pessoa que vos fala. Tenho 24 anos, nasci, fui colocado no mundo pelo
guerreiro Xicão e a guerreira Zenilda; eu nasci, eu sou o fruto dessas pessoas e estou aqui pronto para dar
a minha vida por vocês e não vou recuar dessa luta; não há ninguém que faça eu recuar dessa luta, não há
dinheiro que possa me comprar, nenhum fazendeiro vai fazer eu recuar dessa luta e por vocês eu dou o
meu peito à própria morte. (palmas).
Do mesmo modo que um ritual, o 20 de maio se constitui também como uma meta-linguagem, ou
seja, nele os Xukuru falam sobre si mesmos. Esse evento possui dois momentos bem demarcados: os
rituais do Toré e a Missa na Pedra do Rei, pela manhã, e o cortejo com os discursos, em frente à casa da
irmã de Xicão, à tarde. Em ambos os momentos, o 20 de maio possibilita aos Xukuru a saída do cotidiano
e da estrutura social, para um momento chamado por Turner (1992) de antiestrutural, ou seja, uma
situação de liminaridade, em que os atores saem do cotidiano e, numa atitude reflexiva, repensa suas
próprias formas organizativas.
Considerado em seu conjunto, o 20 de maio de 2003, reflete os conflitos vividos pelos Xukuru,
nesse ano. Foi um evento em que os Xukuru do Ororubá precisavam se impor ainda mais, como um grupo
coeso e organizado, principalmente diante da pressão dos órgãos governamentais (FUNAI, Ministério
Público) para que os Xukuru que saíram do território retornassem. Era preciso explicitar as fronteiras,
entre os que saíram do território e aqueles que ficaram. Essas fronteiras não eram forjadas na distinção, a
partir da identidade étnica, pois todos - os que ficaram e os que saíram - são índios Xukuru, mas no
caráter político, nas concepções e formas de organização. Era preciso, então, demarcar a intenção dos que
ficaram na TI, e o dia 20 de maio se configurou como o momento onde a distinção foi comunicada.
Identidades étnicas são contraditórias, ambivalentes e formadas em torno de ideologias e poder.
Desta forma, conflitos, cujos resultados são a cisão, podem ser vislumbrados não como movimentos de
desestruturação, mas como elementos de relevância, no processo de emergência étnica do grupo, ou ainda
como estratégias de atuação no campo sócio-político indígena. Isso se evidencia, quando, após a morte de
Xicão, os Xukuru, inspirados pela trajetória de vida do seu cacique, procuraram consolidar a organização
social deixada por Xicão. Houve um crescimento demográfico da população Xukuru, concomitantemente
com o fortalecimento de suas instituições.
Para Bauman e Briggs (1990), para que a autoridade do narrador seja estabelecida é necessário que
a pessoa adquira algumas condições: 1) ter acesso às narrativas; 2) possuir legitimidade perante a
audiência; 3) demonstrar competência comunicativa e, 4) reconhecer os valores que possibilitam narrar as
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histórias de forma correta. A partir das categorias apresentadas por Bauman e Briggs, percebo, no
discurso de Marcos, por exemplo, que o narrador efetua um tipo especial de fala em que o texto emerge
no contexto da performance. Ou seja, a expressão e não a mensagem é ressaltada.
Acesso às narrativas
1)
O acesso de Marcos a tudo o que vai expor se dá pelo fato de ele próprio ter sofrido um
atentado, o que o coloca em situação semelhante ao seu pai e a tantos outros “guerreiros Xukuru”, que
deram a vida pelo seu povo. O atentado dá a Marcos experiência de vida para poder narrar os dramas
sociais que os Xukuru vivenciam.
Legitimidade
1)
Inicialmente, Marcos pede licença aos Encantos e às forças da natureza para poder falar.
Ao final do discurso, ele agradece ao Pai Tupã e aos Encantos o fato de estar vivo. Pedir a autorização aos
Encantos no início da sua fala e agradecer ao final da mesma, legitima o seu discurso, perante a
comunidade.
2)
Marcos também é legitimado pelo público ao falar sobre as marcas que ficaram no seu
corpo, após o atentado. As marcas corporais são a prova física de que, além de ele ser protagonista da
ação, recebe a proteção dos encantos para seguir adiante na luta.
Competência comunicativa
1)
Marcos demonstra habilidade para narrar os conflitos. Primeiramente, ele engloba os
eventos em uma só categoria, enquadrando-os como armação: “vou contar uma grande armação” (frame).
A seguir, detalha essa armação de maneira cronológica, desde os assassinatos, culminando com o
atentado e a tentativa de incriminação das lideranças. Por fim, ele afirma que isso não se efetivou, porque
os Xukuru estão protegidos e organizados. Dessa forma, ele realça não só os problemas, mas também as
realizações.
Reconhecimento de valores
Três aspectos importantes fazem de Marcos a pessoa que alia tradição à mudança:
1)
Primeiro, ele se apresenta como filho do “guerreiro Xicão” e da “guerreira Zenilda”. Essa
filiação o coloca como herdeiro da tradição.
2)
Em segundo lugar, ele afirma ter 24 anos, e embora essa idade o insira legalmente como
adulto, há muito tempo, para os Xukuru ele será sempre o filho mais novo de Xicão, um “menino” que
não teve medo de assumir a luta do pai.
3)
Finalmente, assim como seu pai, ele está disposto a “dar a vida pelo seu povo”. É
novamente herdeiro da tradição, mas, nesse momento, inserido em uma comunidade: Xukuru do Ororubá.
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A performance de Marcos, portanto, apresenta elementos que o põe em relevo, havendo um
reconhecimento por parte da comunidade que confere credibilidade ao que foi dito. A história de Marcos
está marcada não só no corpo, mas também através da sua própria nominação, “Marquinho Xukuru”, é
como é chamado por todos. O seu nome é uma individuação, mas ao mesmo tempo o liga a uma
comunidade. Ele não é Marcos Luidson apenas, é Marquinho. O diminutivo confere a este uma identidade
essencialmente “jovem”, é o filho mais novo de Xicão. Mas ele não é apenas Marquinho, é Xukuru, o que
significa que esta identidade é também étnica, é uma identidade que o insere em um grupo, em uma
comunidade.
Por fim, o 20 de maio de 2003 legitimou o cacique Marcos como liderança, legitimou os Xukuru do
Ororubá e legitimou o discurso dos Xukuru sobre os pesqueirenses. Em 2003, através do 20 de maio, os
Xukuru refletiram sobre sua história e suas conquistas. Uma práxis histórica, no sentido de reelaboração
de uma identidade étnica, através da história recente.
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Transnacional: as pesquisas
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TRABALHADORES E MILITÂNCIA SINDICAL NA BAHIA NO FINAL DO ESTADO NOVO
(1945/6)
Edinaldo Antonio Oliveira Souza*
Resumo: Este texto pretende analisar os pontos de vista e as expectativas de ativistas sindicais e de parcelas do operariado
baiano no contexto de declínio do Estado Novo e de avanço do processo de democratização. A partir de fontes jornalísticas,
procura verificar as formas como lideranças sindicais e os próprios trabalhadores se apropriaram dos discursos do “esforço de
guerra” e da “União Nacional”, preconizados, respectivamente, pelo governo Vargas e pelo Partido Comunista Brasileiro
(PCB).
Palavras-chaves: Trabalhadores, ativismo sindical, União Nacional e reivindicações operárias.
Trabalhadores, ativismo sindical e mobilização patriótica na Bahia
Em janeiro de 1945, no comício comemorativo pelo terceiro aniversário do rompimento das
relações do Brasil com os países do Eixo, do alto de um palanque instalado pela Prefeitura de Salvador na
Praça da Sé, o ativista sindical comunista Juvenal Souto Júnior , líder portuário, ressaltou o apoio dos
trabalhadores baianos à política de guerra do governo contra o fascismo e conclamou a união do povo e a
unidade da classe operária para ao término da guerra permanecerem lutando “pelo progresso do Brasil e
por uma paz democrática, bem como pelo bem-estar social do povo brasileiro e por uma legislação
trabalhista cada vez mais aperfeiçoada”.
O discurso de Juvenal Souto Júnior expressa bem a posição do movimento operário sindical
naquele contexto político. Para as lideranças sindicais e, certamente, para o conjunto do operariado, o
esforço de guerra, a união e a colaboração em prol da democracia vinculavam-se à luta pelo bem-estar da
população e em defesa dos direitos dos trabalhadores. Havia, assim, uma correlação direta entre o
sacrifício de guerra e as expectativas alimentadas para o tempo de paz, no que diz respeito ao progresso
econômico, ao bem-estar social e à solução das reivindicações do proletariado.
Na Bahia, segundo reportagem de O Imparcial , “não faltaram braços” para impulsionar o esforço
de guerra. De acordo com a mesma fonte, “o povo baiano sentiu a guerra na sua própria carne”. Durante o
conflito mundial, a crise, a carestia e a fome atingiram duramente a maioria da população “que tudo
suportou com heroísmo”.
Embora expressando certo ufanismo regionalista, que se inseria numa
estratégia retórica das elites locais, interessadas em alcançar maior projeção política no cenário do pósguerra, a matéria ratifica a colaboração da população e, sobretudo, dos trabalhadores baianos com o
esforço de guerra.
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A mobilização dos sentimentos patrióticos em função do “esforço de guerra” tanto contribuiu para
reforçar os apelos governistas pela conciliação e colaboração de classe quanto para a divulgação e
exaltação da política trabalhista, apontando assim novas perspectivas de ações reivindicatórias para os
trabalhadores. Os discursos de Getúlio Vargas durante as comemorações do 1º de Maio, veiculados
através de uma poderosa máquina de propaganda coordenada pelo Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), as palestras radiofônicas do Ministro do Trabalho Alexandre Marcondes Filho , além
de diversas entrevistas e discursos de políticos getulistas e de militantes trabalhistas que possuíam trânsito
no meio operário, representaram momentos privilegiados para a veiculação da retórica governamental. A
partir de 1945, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) ajudou a difundir esses ideais nos meios operários,
através de suas bases políticas que atuavam junto aos sindicatos e no interior dos organismos burocráticos
do Ministério e da Justiça do Trabalho.
O apelo patriótico mobilizado pelas campanhas do esforço de guerra e pró-democracia e o
empenho das lideranças desses movimentos para atrair o apoio dos trabalhadores, certamente, ajudaram a
estreitar as ligações dos sindicatos e do ativismo operário com suas bases trabalhistas. Na Bahia, um
exemplo foi a Semana Trabalhista contra o integralismo, em junho de 1945, quando foram realizadas
assembléias em muitos sindicatos, tais como o dos Sindicatos dos Marceneiros, dos Empregados no
Comércio Armazenador, dos Padeiros, dos Empregados em Hospitais e Casas de Saúde, dos Barbeiros,
dos Portuários, dos Jornaleiros e dos Estivadores com o objetivo de associar os trabalhadores ao
movimento anti-integralista. Para a mobilização dos sindicatos, uma comissão de representantes
trabalhistas e das organizações patrióticas recorreu ao apoio do delegado regional do Trabalho, Amílcar
de Faria Cardoni.
Igualmente, o Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT) promoveu
assembléias e organizou comícios em locais de grande concentração operária de Salvador como a
Plataforma, a Boa Viagem, as Docas do Porto, buscando acessar os trabalhadores e seus familiares.
Comissões democráticas também foram fundadas em locais de grande concentração popular, como o Alto
de Peru, Itapagipe, Pelourinho e Baixa dos Sapateiros.
A despeito dos limites impostos pela conjuntura sobre as organizações e manifestações operárias,
progressivamente, verificou-se o envolvimento de setores da militância e de segmentos da classe
trabalhadora nas principais questões que agitaram o cenário político da época, como as campanhas contra
o nazifascismo e o integralismo, pela convocação da assembléia constituinte e pelo estabelecimento de
uma constituição democrática, bem como nas mobilizações públicas pela anistia, pela convocação de
eleições livres e no queremismo. Geralmente, essas campanhas de mobilização popular acenavam com
promessas de progresso econômico, de justiça social e de solução das reivindicações do proletariado,
nutrindo perspectivas de uma vida melhor no final da guerra.
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A participação nesses movimentos pluriclassistas abriu caminho para a retomada do processo de
organização e mobilização coletiva dos trabalhadores no âmbito da esfera pública. Formado durante o
Estado Novo, o Sindicato dos Empregados no Comércio do Salvador foi um dos primeiros a se solidarizar
com o movimento de mobilização popular para a guerra contra o nazifascismo. Em 1942, promoveu a
criação da “Legião dos Comerciários”, que teve destacada atuação no movimento patriótico na Bahia,
tomando parte em todas as campanhas pelas reivindicações democráticas e populares. Além de marcar
presença nessas lutas mais gerais, o grêmio sindical dedicou atenção às necessidades imediatas da
categoria. Juntamente com a campanha patriótica e democrática, teve destacada atuação na luta contra a
carestia, inclusive enviando memoriais às autoridades competentes reivindicando reajuste dos salários e
pleiteando outros benefícios. Igualmente, apresentou sugestões contra a especulação e o câmbio negro e
solidarizou-se com os estudantes baianos na campanha contra o aumento no preço dos bondes da
Companhia Linha Circular em Salvador.
Num memorial, dirigido ao presidente Getúlio Vargas, o Sindicato dos Comerciários reivindicou
aumento de salários, a semana inglesa, dilatação do período de férias para 25 dias úteis, estabilidade no
emprego após cinco anos de serviço, participação nos lucros das empresas, pagamento integral do salário,
pelo Instituto de Aposentadoria, durante o período de enfermidade do associado e sindicalização
obrigatória. À Associação Comercial e à Federação do Comércio, reivindicou alimentação mais barata,
restaurantes e cooperativas de subsistência e vilas operárias. Também denunciou à DRT o desrespeito,
pelos comerciantes, do horário de encerramento das atividades, que os impedia de freqüentar a escola
noturna mantida pelo sindicato, cobrando as providências cabíveis. A partir de 1943, com a atenuação da
repressão política e a deterioração das condições de trabalho e de salários, as inquietações operárias “são
bem mais expressivas”.
Na Bahia, assim como noutros estados brasileiros, as conjunturas do final da Segunda Guerra e do
imediato pós-guerra assinalaram novas perspectivas de participação política e social das classes
trabalhadoras. O biênio 1945/6 marcou a retomada do movimento operário sindical após o refluxo
decorrente da escalada repressora que se abateu sobre suas lideranças e organizações desde o levante da
Aliança Nacional Libertadora (ANL), em 1935, e durante a maior parte do Estado Novo. Foi também um
contexto marcado pela aproximação dos trabalhadores com os organismos jurídicos e administrativos
trabalhistas, sobretudo as Delegacias Regionais do Trabalho (DRT), a Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT), a Justiça do Trabalho e a estrutura sindical corporativista. Em 1945, quando já era evidente o
esgotamento do Estado Novo, diversos setores do operariado baiano mobilizaram ações reivindicatórias
por aumento de salários, contra a carestia, por melhores condições de trabalho, pela revisão, ampliação e
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materialização dos direitos trabalhistas e pela moradia. Juntamente com estas reivindicações, içaram as
bandeiras da liberdade, autonomia e unidade sindical e em defesa do direito de greve.
Os fatores que motivaram a retomada do movimento sindical naquele contexto são bastante
conhecidos. No plano externo, a iminente derrota dos países do Eixo e internamente o envolvimento de
diferentes setores da sociedade em ampla frente de mobilização popular contra o nazifascismo e o
integralismo e pró-democracia contribuíram para a desarticulação da ditadura do Estado Novo e para
soerguimento do processo de democratização. Entrementes, o abrandamento da censura e a diminuição da
repressão policial possibilitaram a vivificação das manifestações públicas dos trabalhadores e o
surgimento de novas lideranças sindicais. Igualmente, a anistia (em abril de 1945) permitiu o retorno à
atividade de antigas lideranças sindicais que se encontravam banidas dos meios trabalhistas.
Aliado a isto, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) experimentou um curto período de legalidade
(entre maio de 1945 e maio de 1947), participando ativamente dos principais eventos e debates políticos e
alcançando expressiva projeção e influência no movimento sindical. Pari passu, as militâncias comunista
e trabalhista passaram a atuar mais ostensivamente no processo de organização e mobilização coletiva dos
trabalhadores, tanto ao nível do movimento sindical quanto no ambiente do chão das fábricas.
Também concorreram para o processo de mobilização operária os efeitos socioeconômicos da
Segunda Guerra no cotidiano dos trabalhadores. Juntamente com a descomunal elevação do custo de vida,
a política de “esforço de guerra” implicou uma série de restrições à legislação trabalhista, favorecendo a
exploração patronal sobre a força de trabalho. Sucessivas alterações jurídicas promoveram a ampliação
da carga horária de trabalho, restringiram o direito de férias, autorizaram o trabalho noturno para
mulheres e menores. As faltas ao trabalho a partir do oitavo dia passaram a ser consideradas abandono de
emprego e a recusa do empregado em mudar de posto de trabalho ou sessão dentro da empresa motivo de
dispensa imediata. Também, pelo artigo 33 do decreto-lei 4.766, de 1º de outubro de 1942, o trabalhador
que participasse de movimentos de suspensão ou abandono coletivo de trabalho nos centros industriais
considerados essenciais à defesa nacional, tornava-se passível de condenação, com reclusão de dois a seis
anos, sob acusação de praticar violência contra pessoas ou coisas. Além disso, o decreto-lei 5.821, de 16
de setembro de 1943, que vigorou até fevereiro de 1945, impossibilitou, na prática, a instauração de
dissídios coletivos. Como assinalou Hélio da Costa, “a exploração e os abusos patronais tinham suas
ações legitimadas pelos sucessivos decretos presidenciais, que criavam amarras jurídicas, verdadeiras
camisas de força para os trabalhadores”.
Nesse contexto, vicejava a tese da “União Nacional” contra o nazifascismo e o integralismo, pela
paz e pela democracia, empunhada pelo PCB, que aproximou os comunistas de outros segmentos
democratas. Apesar das contradições e divergências internas, esta frente pluriclassista embalou as
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campanhas pela anistia, pela convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte e pelo
restabelecimento das liberdades democráticas, ao tempo em que reforçou os apelos à colaboração e
conciliação de classes.
Trabalhadores, sindicalistas e a “União Nacional” na Bahia
Entre os comunistas, a tese da “União Nacional”, se esboçava desde fins de 1938, contudo tornouse hegemônica após a Conferência da Mantiqueira, realizada em agosto de 1943, quando se consagrou na
direção do PCB a linha de colaboração com o governo de Getúlio. Ideologicamente, era uma tentativa de
transpor para a realidade brasileira uma diretriz dominante no campo das esquerdas, a nível internacional,
para a conjuntura do pós-guerra, que atribuía à classe operária um papel basilar no processo de
consolidação da paz e da democracia, através da colaboração com as “forças progressistas e
democráticas” das classes dominantes. Politicamente, pretendia contribuir para a consolidação e
ampliação das conquistas democráticas, evitando sobressaltos que pudessem servir de pretexto para
retrocessos autoritários. Ao mesmo tempo, os comunistas miravam a efetivação da anistia política, a
legalização e o soerguimento do PCB, após a dura repressão a que fora submetido desde 1935.
No decurso de 1945, à medida que, no cenário internacional, se evidenciava a derrota das
ditaduras nazifascistas e internamente se definhava o aparato repressivo do Estado Novo, abrindo
caminho para o processo de democratização, a tese da “União Nacional” aproximou os comunistas tanto
dos trabalhistas e queremistas quanto de alguns setores da oposição liberal engajados na frente
democrática. Entrementes, o periódico O Imparcial, que até pouco tempo era porta-voz do integralismo na
Bahia, engajou-se na campanha democrática, abrindo espaço para lideranças políticas e ativistas operárias
comunistas ao lado de políticos liberais, estudantes, intelectuais e diferentes personalidades, inclusive
militares e dissidentes do Estado Novo, que manifestavam apoio à causa democrática. Neste ínterim, deu
cobertura às ações reivindicatórias e sindicais dos trabalhadores.
Diversos manifestos e declarações de dirigentes pecebistas e ativistas sindicais, divulgados pelo
periódico comunista O Momento , no decorrer de 1945, expressaram essa orientação política. No início
de março, um manifesto assinado por conhecidos líderes esquerdistas, preconizava a congregação de
diferentes forças sociais para a realização de um “programa mínimo de União Nacional”. Este se baseava
em quatro princípios gerais: instauração e aperfeiçoamento de um regime democrático, baseado na
cooperação política das classes; reestruturação econômica nacional, pelo desenvolvimento planificado da
grande indústria, da grande agricultura, dos transportes e do crédito, com garantidas à iniciativa privada e
à expansão da grande e da pequena propriedade agrária “progressista”; criação de um grande mercado
interno, através da contínua elevação do nível material e cultural de vida da classe média e do
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proletariado urbano e rural; aprofundamento das relações internacionais do Brasil com todas as nações
Unidas e amantes da paz. De acordo com o documento, a democratização, a anistia, a formação de um
governo de coalizão nacional e a realização de eleições democráticas eram requisitos essenciais para a
efetivação desse programa e para que o Brasil alcançasse o desenvolvimento pacífico de um ciclo “de
emancipação econômica”, de “verdadeira democracia”, “do bem estar e da cultura”, na conjuntura após
guerra.
Na mesma época, o advogado e jornalista comunista baiano, João Falcão conclamou a “unidade
de todas as forças democráticas e progressistas” para a “restauração pacífica” da democracia brasileira
“dentro da ordem”. Conforme argumentou, somente pela cooperação pacífica, pelo entendimento e pela
colaboração entre as classes se resolveriam “todos os problemas que interessam ao proletariado e ao povo
brasileiro”.
Nos meios trabalhistas, as diretrizes e perspectivas preconizadas pela política de “União Nacional”
eram processadas e difundidas por militantes comunistas e dirigentes sindicais vinculados ao MUT. No
início de abril de 1945, no ato do seu lançamento o MUT divulgou uma nota desaconselhando “quaisquer
movimentos grevistas e agitações” que não se fundassem “nas justas aspirações econômicas e sociais”
dos trabalhadores e do povo em geral. A decisão pela greve só deveria ser tomada por meio de amplas
assembléias, dentro dos sindicatos e depois de esgotados todos os recursos pacíficos. Esta orientação
pretendia evitar que as inquietações operárias servissem de pretexto para que as forças da reação
refreassem o processo de restabelecimento das liberdades democráticas.
No início de abril, foi divulgado um manifesto das federações sindicais do Rio de Janeiro aos
sindicatos e aos trabalhadores em geral desaconselhando as greves e recomendando a instauração de
dissídios ndividuais ou coletivos na Justiça do Trabalho, sob pretexto de que “elementos mal
intencionados” procuravam instigar a confusão nos meios proletários, jogando os trabalhadores contra o
Ministério do Trabalho, enquanto este esforçava-se, pelos meios legais, para resolver seus problemas e
atender aos seus justos anseios. Este mesmo documento foi subscrito e assinado pelos presidentes de
dezesseis sindicatos baianos, com a justificativa de “evitar infiltrações de elementos interessados em
lançar a discórdia nos meios trabalhistas e provocar greves sob diversos pretextos”. Em seguida, foi
encaminhado à DRT e publicado pela redação de O Imparcial.
Todavia, não foi tarefa fácil para a militância comunista, sobretudo para algumas lideranças
sindicais que haviam galgado prestígio e reputação junto às suas bases nas lutas trabalhistas do início da
década de 1930 assumirem um posicionamento contrário às greves num momento em que as inquietações
dos trabalhadores extrapolavam os locais de trabalho e ganhavam o espaço público das ruas. Afinal,
aquelas experiências não foram apagadas da memória dos trabalhadores, apesar da repressão e das
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estratégias de cooptação empreendidas pelo regime ditatorial. No final de abril, o presidente do Sindicato
dos Estivadores na Bahia, José de Jesus Silva, após assinar o manifesto desaconselhando as greves, em
entrevista à reportagem de O Momento tratou de defender-se da acusação, veiculada na imprensa, de que
seria contrário à pratica grevista.
Em maio, durante a solenidade de abertura do Segundo Congresso Sindical dos Trabalhadores
Baianos o ativista sindical comunista Manuel Batista de Souza , orador oficial do evento, afirmou que a
classe trabalhadora compreendia que somente “dentro da ordem” e “pacificamente” seriam encontradas as
soluções mais justas para as suas aspirações. Todavia, ressaltou que a condição precípua para que ela
seguisse essa orientação era que fosse assegurada a sua “independência de ação” e respeitados seus
direitos elementares “a uma vida digna, sem miséria, com trabalho certo, bem remunerado e em completa
liberdade”.
Para os organizadores daquele conclave, a colaboração dos sindicatos com a política de ordem e
tranqüilidade não se incompatibilizava com o apoio às reivindicações trabalhistas por melhores condições
de trabalho, aumentos de salário, dignidade e bem-estar social, nem tampouco com a defesa do direito de
greve e dos princípios da autonomia, liberdade e unidade sindical. Ao contrário, estes seriam atributos
essenciais à “participação ativa e efetiva dos sindicatos e do operariado na vida pública e na solução dos
problemas da própria classe trabalhadora”.
O discurso de Manuel Batista expressa o ponto de um ativista sindical que possuía uma relação
efetiva com suas bases trabalhistas naquela conjuntura. Para algumas lideranças sindicais e, certamente,
para o conjunto do operariado, o sacrifício em defesa da pátria e a colaboração em prol da democracia
vinculavam-se à luta por justiça social e em defesa dos direitos trabalhistas. Desse modo, alimentavam
esperanças de recompensas, em termos de benefícios para os trabalhadores.
Este mesmo ponto de vista ficou evidenciado num memorial enviado pelo Sindicato dos Padeiros
de Salvador, em maio de 1945, à Associação dos Estabelecimentos de Padaria, reivindicando aumento
salarial. O documento afirmava que durante o “esforço de guerra” o proletariado não poupou esforços,
colaborando “com a melhor boa vontade” pelo êxito da pátria e para que muitas empresas auferissem
lucros extraordinários. Em contrapartida, denunciava que ao término da guerra os trabalhadores
encontravam-se “subalimentados e doentes”, pois ninguém podia negar que o ônus maior do
desajustamento entre salário e o custo de vida “recaía sobre a classe obreira”. Logo, esperavam “senão
uma recompensa” pelo esforço empenhado, “pelo menos uma justa remuneração”.
Na prática, na conjuntura do final da Segunda Guerra tanto os ativistas comunistas quanto os
trabalhistas vivenciavam a ambigüidade de apoiarem as teses políticas preconizadas pelas instâncias de
cúpula partidárias e a necessidade de se colocarem à frente das reivindicações operárias para firmarem
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representatividade entre os trabalhadores. Afinal, havia uma demanda efetiva por direitos e uma crescente
insatisfação nos meios operários, que não podiam ser ignoradas por seus interlocutores, sob pena de
perderem prestígio e credibilidade junto às suas respectivas bases. Ainda mais que os próprios
trabalhadores, aproveitando-se do “surto de liberdade que sacudia o país, aos poucos iam reconquistando
o direito de greve, apesar das leis proibitivas”. Isso deixou muitas lideranças sindicais em situação
ambígua e alimentou tensões no interior dos sindicatos.
As discussões acaloradas nas assembléias dos sindicatos sobre as propostas de greve, como foi
observado no movimento dos portuários de Salvador pelo abono de natal, em janeiro de 1946; as
tentativas sem êxito por alguns dirigentes sindicais de evitar as paralisações, como fez o presidente do
Sindicatos dos Bancários da Bahia, durante a greve nacional dos bancários, na mesma época, e a decisão
de outros sindicatos de colocarem-se à frente dos movimentos grevistas, como foi verificado na greve
dos canavieiros de Santo Amaro, no interior da Bahia, entre fevereiro e março de 1946, corroboram as
ambigüidades do movimento sindical naquela conjuntura.
Em abril de 1946, durante uma sabatina realizada pela reportagem de O Momento com os
portuários de Salvador, o líder sindical Cosme Ferreira conclamou seus companheiros a permanecerem
“unidos, vigilantes, dentro da ordem a da tranqüilidade” para não darem motivos para a “reação”, mas
ressalvou que isso não significava que deviam “cruzar os braços diante da fome e da miséria, porque lutar
contra a fome é lutar por tranqüilidade”. Também condenou o decreto 1.402 de 5 de julho de 1939 “que
concorreu para a desorganização sindical”.
Como têm indicado diversas pesquisas , embora a militância sindical, tanto de orientação
comunista quanto trabalhista, contribuísse para a disseminação das diretrizes políticas e ideológicas
preconizadas pelas lideranças partidárias de cúpula, não parece plausível a conclusão de que atuou como
mera “correia de transmissão” junto aos trabalhadores, nem tampouco que estes últimos eram uma
“massa amorfa”, submissa e disponível à manipulação.
Em seu estudo sobre o Rio Grande do Sul, Alexandre Fortes observou que “mesmo sob a
coordenação da estrutura partidária geral, a militância de base do partido (PCB) estava longe de aplicar
cegamente sua linha sindical sobre uma base amorfa”. Conforme assinalou, os militantes comunistas “reelaboravam as orientações partidárias a partir da sua experiência como operários. Para imprimir um
direcionamento às entidades, precisavam ter a capacidade de propor alternativas às questões colocadas na
sua agenda coletiva, para as quais muitas vezes o partido não tinha respostas preestabelecidas.”
Para a militância sindical e, certamente, para as bases operárias, o apoio ao esforço de guerra e ao
processo de democratização vinculava-se à expectativa de melhorias trabalhistas e de uma política de
bem-estar social. Aproveitando-se das brechas abertas pelas circunstâncias conjunturais, no biênio 1945-
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46 diferentes grupos operários mobilizaram ações reivindicatórias na Bahia, pleiteando aumentos
salariais, melhores condições de trabalho, a materialização e a ampliação da legislação trabalhista. Apesar
das restrições em contrário, também içaram as bandeiras da liberdade, da autonomia e da unidade sindical
e do direito de greve.
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DE FESTA DA ORDEM À MANIFESTAÇÃO DEMOCRÁTICA: AS COMEMORAÇÕES DO
PRIMEIRO DE MAIO NO BRASIL DURANTE O GOVERNO FIGUEIREDO (1979 A 1985)
Isabel Bilhão
Resumo: A comunicação visa a analisar os embates pela forma de representação e pelo significado das celebrações do
Primeiro de Maio no período de 1979 a 1985, abrangendo o mandato de João Batista Figueiredo, último presidente militar do
país, pretende-se identificar nesse momento de embates, rupturas e tensões políticas, as estratégias, utilizadas pelos diferentes
grupos (líderes sindicais e religiosos, governo e empresários), para conquista ou manutenção de espaço de legitimação junto ao
operariado e à sociedade como um todo, bem como as transformações na percepção do significado e da forma de marcar a
data. O embasamento empírico desse estudo privilegia a pesquisa na imprensa comercial, destacando os seguintes veículos:
Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro; Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha de São Paulo, Notícias Populares, de São Paulo;
Correio do Povo e Zero Hora, do Rio Grande do Sul; Revista Veja; e na imprensa alternativa, em materiais como: A Verdade,
O inimigo do Rei, Folhetim, de São Paulo; Movimento e Opinião (edição semanal brasileira do Le Mond); Pasquim, A Classe
Operária, Rio de Janeiro.
A discussão aqui apresentada parte de um estudo mais amplo relacionado às disputas e
transformações nas formas de comemorar e no significado do Primeiro de Maio em um período mais
recente da história brasileira , seu principal objetivo é analisar os embates pela forma de apresentação e
pelo significado das celebrações do Primeiro de Maio nos anos de 1979 a 1985, período em que esteve no
poder o último general-presidente do país, João Batista de Oliveira Figueiredo. Pretende-se identificar
naquele momento de embates, rupturas e tensões políticas, as estratégias, utilizadas pelos diferentes
grupos (líderes sindicais, religiosos, governo e empresários), para conquista ou manutenção de espaço de
legitimação junto aos trabalhadores e à sociedade como um todo, bem como as transformações na
percepção do significado e da forma de marcar a data.
O texto será organizado em duas partes, inicialmente realiza-se uma breve contextualização das
comemorações da data no Brasil, dos anos iniciais da República, até o período cívico-militar brasileiro e,
na segunda parte, analisam-se os embates travados em torno das comemorações da data no período
Figueiredo.
1. As comemorações do Primeiro de Maio no Brasil, uma breve contextualização
O Primeiro de Maio viveu desde o seu surgimento, a disputa por sua “paternidade” e a divergência
em torno da sua forma de apresentação. No Brasil suas celebrações ocorreram inicialmente na cidade do
Rio de Janeiro, em 1891 e, nessa primeira fase que se estende cronologicamente até os anos iniciais do
século XX, a exemplo da versão socialdemocrata internacional, as manifestações, realizadas por iniciativa
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de militantes socialistas
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congregavam, sem maiores problemas, o caráter festivo e de protesto,
apresentando o dia como o grande feriado da confraternização universal, instituído em 14 de julho de
1889, quando se comemorava o centenário da tomada da Bastilha e como ato patriótico em apoio à
jovem República .
Ao longo da década de 1900, com o crescimento da influência anarquista no movimento operário
nacional , o Primeiro de Maio passou a ser apresentado tanto como dia de greve geral revolucionária,
quanto como dia de luto, de recordar não apenas a execução dos “mártires”, Engels, Spies, Fischer,
Parsons e Lingg, ocorrida na cidade de Chicago, em 1887, mas de todos os que pereceram na defesa da
causa operária.
Mas, além das disputas entre si, as lideranças operárias precisaram competir, durante a Primeira
República com o governo, empresários e Igreja Católica pela definição da data, como “Dia do Trabalho”
ou do trabalhador; como feriado nacional ou como dia de greve.
Essa tendência acentuou-se quando, em 1924, o governo Artur Bernardes decretou sua transformação em
feriado nacional, tornando-o “Dia do Trabalho”. As autoridades pretendiam que a data passasse a ser
considerada “momento de festividade cívico-patrióca na qual os trabalhadores poderiam glorificar o
trabalho ordeiro e útil” , estabelecendo-se como mote comemorativo a ação de trabalhar e produzir para o
progresso do país.
No caso da Igreja Católica, especialmente a partir de meados dos anos 1920, as comemorações
passaram a ser apresentadas como um momento devocional, no qual os trabalhadores eram lembrados de
que “Jesus era filho do carpinteiro”, portanto, também pertencente a uma família operária. Nessa visão, as
comemorações deveriam servir para a afirmação da solidariedade aos mais pobres, por meio da realização
de “quermesses beneficentes” e, especialmente, um momento de reafirmar a doutrina social da igreja –
defendendo que as necessárias transformações sociais não decorreriam da “luta de classes”, mas sim das
ações combinadas entre Igreja, Estado, patrões e empregados – e de condenar os excessos do capitalismo:
os baixos salários, as extensas jornadas e o trabalho aos domingos .
Nos anos iniciais da década de 1930, não aparecem indícios de grandes preocupações oficiais para
com as comemorações do Primeio de Maio. Uma das únicas considerações do novo governo intituido
pelo movimento armado conhecido como “Revolução de 1930” em relação à data, foi mantê-la dentre os
poucos feriados preservados, daqueles comemorados durante a Primeira República .
No entanto, a parir de 1936, quando foram inseridas no calendário cívico nacional, as celebrações
da data tornaram-se momentos privilegiados para apontar rumos sociais e econômicos, demonstrar força,
propagandear a pretendida coerência do “projeto governamental” e, progressivamente, cultuar a figura de
Vargas. Contudo, embora os rituais tenham passado por profunda reconfiguração, mantiveram parte dos
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traços anteriores, observando-se, por exemplo: as concentrações em praças públicas, a realização dos
desfiles operários, mesmo que combinados a outros elementos e realizados de forma alegórica; a presença
dos estandartes das agremiações, agora subordinados à Bandeira Nacional e do elemento feminino,
simbolizando as aspirações nacionais .
Com a redemocratização, os rituais alusivos ao Primeiro de Maio saíram do controle do Estado e
voltaram paulatinamente a ser organizados por variadas agremiações, de sindicatos a partidos políticos,
mesclando tanto seu caráter festivo, quanto de manifestação de protesto. Conservando, contudo,
características que lhes foram conferidas ao longo do Estado Novo, como a realização de espetáculos
musicais, partidas de futebol e outras formas de diversão populares, além da usual saudação do presidente
da República, ou do ministro do Trabalho, aos trabalhadores.
Nos primeiros anos após o golpe cívico-militar de 1964, as comemorações do Primeiro de Maio
parecem não ter sofrido grandes transformações em sua fórmula ritual, entretanto, os sindicatos já haviam
passado por intervenção e tiveram suas diretorias cassadas. Logo, as manifestações alusivas à data
acentuaram ainda mais seu caráter festivo e os protestos tornaram-se cada vez mais discretos.
Já em 1967 as comemorações do Primeiro de maio ocorreram sob ostensiva vigilância policial,
não sendo permitidas passeatas ou manifestações. Em contrapartida, a imprensa intensificou os relatos de
compra, por parte do Ministério do Trabalho, de ingressos para partidas de futebol, disputadas ou por
equipes reconhecidas nacionalmente ou ainda pela Seleção Brasileira contra combinados estaduais. Os
ingressos eram distribuídos às centrais sindicais que os repartiram entre seus filiados.
O empresariado nacional, por meio da Confederação Nacional da Indústria – CNI, do Serviço
Nacional da Indústria – SESI e do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI, tomou parte
ativa nas comemorações enfatizando, em suas publicações, não apenas o caráter de integração capitaltrabalho, mas também os aspectos moralizadores e disciplinadores das atividades comemorativas e a
importância de trabalhar “em paz e em ordem” para o desenvolvimento do país.
Entre 1970 e 1974 , período no qual o governo valeu-se em larga escala das prerrogativas do Ato
Institucional número 5 – AI5, decretado em dezembro de 1968, o Primeiro de Maio aprofundou o caráter
de dia festivo, propagandeando-se o aumento do salário mínimo e de outras medidas relacionadas às
vivências operárias. Situação que não impedia a imprensa de publicar, ainda que discretamente, que desde
1965, o percentual de aumento do salário mínimo era menor do que do aumento do custo de vida .
As mensagens governamentais alusivas ao Primeiro de Maio insistiam na ideia de que a
cooperação capital-trabalho seria a base do crescimento nacional. As promessas aos trabalhadores,
contudo, não se distanciavam muito daquelas feitas ao longo de todo o período republicano, em especial,
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a que previa a aquisição da casa própria. Nesse quesito, a data também se tornou um momento propício à
difusão e exaltação dos projetos do recém-criado Banco Nacional de Habitação – BNH.
Outra faceta importante das comemorações é a de que, a exemplo de períodos como o Estado
Novo, o governo aproveitou-se da mensagem oficial para “mandar recados”, informando aos distintos
grupos sociais o que deles se esperava. Ilustrativa dessa atitude é a manifestação de Emílio Médici, em
1970, ao referi-se à vida sindical do país:
É nosso propósito renovar e incentivar a vida sindical, desenvolvendo ao máximo a associação
entre o Sindicato e a Previdência, por meio de convênios descentralizadores. Mas não vemos apenas o
Sindicato servindo como ambulatório, consultório e laboratório, senão também buscamos o SindicatoEscola, o Sindicato-Centro Cívico, cultural, recreativo e desportivo, o Sindicato-Cooperativa de Consumo
[...]. Queremos o Sindicato integralmente ativo, expressão de defesa do trabalhador. O Sindicato
assistencial, financiador e fiscalizador do exercício dos direitos e dos deveres dos sindicalizados .
A mensagem de Médici elucida a prática do governo que, valendo-se da legislação sindical
herdada do período Vargas, transformava os sindicatos em entidades de cooperação do Estado e de
disciplinarização dos trabalhadores. Entretanto, as contradições e tensões internas e externas que levaram
ao desgaste do regime já começavam a ser sentidas naquele momento.
Entre os anos de 1975 e 1978, durante o governo de Ernesto Geisel, com o início do processo de
abertura “lenta, gradual e segura”, observa-se que nas coberturas jornalísticas do Primeiro de Maio
gradualmente ganham espaço as notícias relacionadas à defasagem salarial e ao aumento inflacionário.
Informações e imagens relacionadas ao empobrecimento da família operária, bem como ao desemprego,
tornam-se comuns na imprensa, numa relação diretamente proporcional à diminuição do espaço ocupado
pelas autoridades governamentais e pelo discurso do presidente da República.
Geisel tomou para seu governo a responsabilidade pela retomada do processo de “abertura
política”. Entretanto, conforme Francisco Teixeira da Silva, se esse projeto representava uma volta ao
Estado de Direito, a reconstitucionalização do regime, não significava exatamente a redemocratização do
país. Ainda segundo o autor, “em suas origens, o alcance e o ritmo da reabertura ficavam muito aquém do
que a oposição desejava” .
Uma das medidas desse governo foi a extinção do AI-5, a contar de 1º de janeiro de 1979,
elencando, entretanto, no texto da Constituição, as chamadas “salvaguardas”, no sentido de não permitir
que o processo da abertura tomasse proporções excessivamente amplas. Além de restringir as categorias
profissionais beneficiadas pelo direito de greve, excluindo aquelas mais diretamente as ligadas à
prestação de serviço público, também foi instituído o “estado de emergência”, facultando ao governo
federal intervir em qualquer área do território nacional, independentemente de audiência ao Congresso,
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para controlar focos de subversão. Essas medidas, entretanto, não contentaram o grupo de militares
ligados à chamada “linha-dura” do regime, que discordavam de qualquer forma de política de abertura.
Refletindo a situação conflituosa no interior das forças armadas, em meados de 1976, começaram
a ocorrer atentados contra instituições civis de caráter oposicionista, atribuídos à Aliança Anticomunista
Brasileira. A primeira bomba explodiu em 29 de agosto na Associação Brasileira de Imprensa (ABI),
enquanto outra foi encontrada na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ambas no Rio de Janeiro.
Apesar do apelo de Geisel para que fosse mantida a ordem e a disciplina, novos atentados foram
executados e novas bombas foram encontradas, uma delas no altar da Igreja de Santo Antônio, em Nova
Iguaçu, Rio de Janeiro. Esta era a Diocese de Dom Adriano Hipólito que, assim como outros bispos de
sua geração, destacou-se como defensor dos direitos humanos e na oposição ao regime. Tais atentados
não se restringiriam ao governo Geisel, ao longo do governo de seu sucessor, o General João Batista
Figueiredo, novos atos terroristas desencadearam-se pelo país. Adiante voltaremos a mencionar aquelas
que repercutiram especialmente nas comemorações do Primeiro de Maio.
2. O Primeiro de Maio em tempos de abertura
Em seu discurso de posse, Figueiredo reafirmou, perante o Congresso, o propósito de “fazer do
país uma democracia”. Entretanto, tal objetivo não se concretizaria facilmente. Além das dissidências no
interior das Forças Armadas a situação encontrada por Figueiredo era de instabilidade econômica
internacional, com a segunda crise mundial do petróleo, desencadeada em 1973, e de avançado estado de
desestabilização da economia interna. As crescentes taxas inflacionárias, combinadas à manutenção do
arrocho salarial e à recessão econômica, contribuíram para a eclosão de um grande número de greves em
todas as regiões e em diversas categorias profissionais. Ao longo do período, o país viu surgir com toda a
força no cenário político nacional um novo personagem: a organização sindical autônoma.
No Primeiro de Maio de 1979 o jornal do Brasil estampou a seguinte manchete em sua primeira
página: “Figueiredo pede a trabalhador ajuda contra a inflação”, informando em seguida que o novo
presidente não participaria de nenhum ato ou solenidade em comemoração à data e que seu discurso em
saudação aos trabalhadores seria transmitido em cadeia nacional naquela noite .
Essa decisão pode apontar para um duplo reconhecimento. O primeiro, do desgaste da imagem do
regime e, consequentemente, de seu general-presidente, passados os primeiros 45 dias de seu governo,
fazendo com que, diferente de seus antecessores, este começasse a evitar a participação em atividades
públicas, especialmente às relacionadas a questões trabalhistas e, o segundo, da crescente dificuldade em
manter as comemorações da data sob o controle governamental.
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O ano de 1979 marcou, nesse sentido, o início de um envolvimento cada vez mais amplo e
generalizado de grupos sociais, os mais heterogêneos, com a realização de celebrações e com a defesa de
variados significados, ora complementares, ora antagônicos, para o Primeiro de Maio.
Assim, na mesma edição do Jornal do Brasil pode-se ler a mensagem da Confederação Nacional
da Indústria, alusiva à data. Sob o título “A indústria e o 1º de Maio” tem-se, no trecho inicial, a seguinte
mensagem:
a Nação vive mais um 1º de Maio. A data, que tantas evocações traz aos trabalhadores, cujo papel
tem sido de significativa relevância na construção da sociedade moderna, é igualmente grata ao
empresariado industrial. É que empregados e empregadores, todos conscientes de suas responsabilidades,
têm trabalhado de mãos dadas para o crescimento da Pátria .
Pode-se observar nessa mensagem a ideia, que a cada ano seria mais fortemente sublinhada por
parte dessa Confederação, de que empregados e empregadores (especialmente o empresariado industrial:
produtivo, consciente e gerador de empregos), deveriam conjuntamente envidar esforços para a superação
da crise econômica – em meio ao contexto de distensão política e de acirradas campanhas salariais – em
prol da grandeza nacional. Tal questão era ainda reafirmada na parte final da mensagem, na qual se lê que
“a solidariedade nos grandes ideais visando à afirmação do Brasil no mundo contemporâneo é
fundamental e comum no comportamento dessas duas grandes parcelas da nacionalidade” .
Às vésperas da extinção do bipartidarismo, que seria finalmente aprovada em novembro de 1979,
as forças políticas já começavam a se organizar. Naquele Primeiro de Maio, o Jornal do Brasil informava
que “uma comissão de líderes sindicais paulistas, tendo a frente o Presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Paulo, Henos Amorina, iria requerer, no dia 25, ao Tribunal Superior Eleitoral
(TSE), o registro do Partido dos Trabalhadores e que os princípios e o anteprojeto da carta da nova
agremiação haviam sido divulgados no dia anterior na capital paulista .
O restante das forças de oposição também passava a se reagrupar, a maior parte dos antigos emedebistas
filiou-se ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), sob a presidência do deputado
paulista Ulisses Guimarães. Dissidentes da antiga Arena, conjuntamente com o senador emedebista
Tancredo Neves, criaram o Partido Popular (PP), que tinha como presidente de honra o senador arenista
Magalhães Pinto. Entretanto, quando o Congresso Nacional recebeu um pacote de reformas eleitorais
oriundas do Executivo, que proibiam as coligações partidárias e estabeleciam o voto vinculado, definindo
que para que o voto fosse considerado válido o eleitor deveria sufragar apenas candidatos de uma mesma
agremiação, de modo a barrar o avanço da oposição nas eleições seguintes, os dirigentes do PP decidiram
pela incorporação do partido ao PMDB, em convenção nacional, realizada em dezembro de 1981.
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Dois outros grupos oposicionistas, um liderado pelo ex-governador gaúcho Leonel Brizola e,
outro, pela ex-deputada Ivete Vargas, disputavam a sigla do antigo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
Ambos, aproveitando o ensejo das comemorações do Primeiro de Maio, divulgaram notas oficiais em
homenagem aos trabalhadores. A nota divulgada pelo grupo de Ivete Vargas reafirmava o propósito de
lutar pela revisão da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e pela reformulação da Lei de Greve e o
grupo de Leonel Brizola, além de apontar para estas questões, reivindicava “medidas efetivas e
consequentes contra a alta indiscriminada do custo de vida” . O desfecho dessa disputa deu-se em 1980,
quando a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) favoreceu Ivete Vargas, levando Leonel Brizola a
fundar o Partido Democrático Trabalhista (PDT). As duas agremiações mantiveram em suas campanhas a
ênfase na histórica relação com a herança do trabalhismo de Getúlio Vargas.
Na mesma edição, o Jornal do Brasil apresentava o anúncio publicitário, criado pelo cartunista
Ziraldo, para divulgar a realização de um grande show em homenagem a data. A imagem, mostrando um
cantor em traje de gala e segurando uma chave inglesa como se fosse um microfone, anunciava para
aquela noite a transmissão de um programa especial pela TV TUPI. O anúncio informava que “show do
ano” teria a participação de vários artistas renomados. Entre eles, Chico Buarque, Gal Costa, Vinícius de
Moraes, Toquinho, João Bosco, Cartola, Paulinho da Viola e que iria ao ar em cadeia nacional às nove da
noite.
O slogan da chamada era “Rede Tupi – vamos mudar juntos”, demonstrando a intenção do grupo
em solidarizar-se com as forças da redemocratização do país. No entanto, acaso essa tenha sido uma
jogada publicitária, tentando vincular sua imagem as novas forças sociais de caráter progressista, tal
atitude não lhe rendeu maiores dividendos e sua situação financeira, que já era extremamente precária,
tendeu a agravar-se, levando a Rede a enfrentar greves de funcionários, devido a atrasos de salários, e a
ter sua falência decretada judicialmente no ano seguinte. A partir de então, os grandes shows musicais em
homenagem ao Primeiro de Maio, promovidos pelo Centro Brasil Democrático, passariam a ser
transmitidos pela Rede Bandeirantes de Televisão.
Todavia, naquele Primeiro de Maio os trabalhadores poderiam optar ainda por assistir, ao vivo, a
diversos shows musicais. Esse era o caso, por exemplo, do evento promovido no campo do Olaria
Atlético Clube, por várias associações sindicais, entre elas, dos trabalhadores em energia elétrica e
produção de gás, metalúrgicos, petroquímicos, rodoviários, empregados de vidros e porcelanas, alfaiates e
costureiras, do comércio de derivados de petróleo, professores, artistas, jornalistas, médicos e
funcionários de companhias telefônicas; contando ainda com a participação de federações como a dos
Trabalhadores Rurais, de Associações de Favelas e diversas associações de bairros, bem como com
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representantes de diretórios acadêmicos, do Parlamento, da Igreja Católica e da Ordem dos Advogados do
Brasil.
Esse ato – que tinha como palavras de ordem liberdade e autonomia sindicais, direito de greve,
garantia no emprego, melhores salários e luta contra a carestia e salário mínimo real e unificado – foi
denominado de 1º de Maio Unificado e foi a primeira manifestação organizada por entidades de
trabalhadores na cidade do Rio de Janeiro, desde 1964. O evento pretendia atrair uma grande
concentração de trabalhadores, incluindo em seu programa além de uma série de discursos das lideranças
sindicais participantes, um show musical gratuito no qual se apresentaram artistas populares como Beth
Carvalho, Fagner, Dominguinhos, Sérgio Ricardo, Abel Ferreira .
No dia seguinte a imprensa, avaliando esse evento, informou que dele participaram cerca de quatro mil
pessoas, destacando tratarem-se na maioria de jovens universitários e de profissionais liberais, que
portavam faixas reivindicando “liberdades políticas e sindicais, uma central única dos trabalhadores,
unidade, anistia, o fim da repressão e da intervenção sindical” .
Essas mesmas demandas estiveram presentes nas concentrações de trabalhadores em quase todos
os estados do país. Um exemplo disso foi a mensagem conclamando os trabalhadores à mobilização, lida
em Porto Alegre, no encerramento da semana sindical independente do Rio Grande do Sul .
A Igreja Católica, como já fazia há muitas décadas, também participou das comemorações daquele
Primeiro de Maio. Sobre isso, informava o Jornal que “embora não seja dia santo, o dia do trabalho é
festejado também pela Igreja, desde 1955, quando o Papa Pio XII declarou são José Padroeiro dos
Trabalhadores e lhe fixou a mesma data para ser cultuado” .
Contudo, se essa participação não era novidade, o mesmo não se pode dizer do caráter atribuído à
data pela chamada ala progressista da Igreja Católica, grupo formado por religiosos próximos à Teologia
da Libertação – reflexão teológica que vinha se desenvolvendo na América Latina desde a década anterior
e que foi reafirmada nas decisões da Conferência Episcopal de Puebla, realizada nos meses iniciais de
1979, na qual a Igreja assumiu sua “opção preferencial pelos pobres”.
Segundo a imprensa, na arquidiocese do Rio de Janeiro, seriam feitas preces, em todas as missas,
pelos trabalhadores que “estão organizados em sindicatos, fábricas e bairros, para que continuem numa
luta autêntica em favor de sua união”. O folheto que acompanhava as missas no Rio lembrava ainda que
“a classe operária continua sua via sacra derramando suor e sangue para ter vida digna de filhos de Deus.
Fatos recentes mostram quanta força ainda tem a opressão a serviço da ganância e do lucro, opressão que
tenta tirar dos trabalhadores os direitos conquistados há muitos anos” .
Entretanto, provavelmente foi nas celebrações realizadas em São Bernardo do Campo, no estado
de São Paulo, que o ritual religioso mais fortemente se encontrou com a manifestação sindical. Pelo relato
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da imprensa, fica-se sabendo que na manhã daquele Primeiro de Maio, mais de 30 mil pessoas teriam
comparecido à missa campal celebrada pelo bispo diocesano de Santo André, Dom Claudio Hummes. O
culto teria transcorrido ao som de músicas de Geraldo Vandré, Chico Buarque de Holanda e Milton
Nascimento, e contado, como ponto alto, com a leitura realizada por Vinicius de Morais de um poema
preparado especialmente para aquela que ficou conhecida como a “Missa do Trabalhador”. Após a
celebração, os presentes teriam se dirigido ao Estádio Distrital Costa e Silva.
A multidão presente no Estádio foi calculada pela imprensa em cem mil participantes. O ápice
desse segundo evento foi o discurso do ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do
Campo e Diadema, Luiz Inácio da Silva, mais conhecido como Lula. Nele, o então sindicalista teria
reafirmado o caráter unitário da manifestação e enfatizado que “o operário brasileiro não aceita mais
servir de instrumento a quem quer que seja”, numa alusão ao ato promovido por autoridades estaduais no
Estádio do Pacaembu, na capital paulista, reafirmando que “hoje nesse país não se engana o trabalhador
como se enganava em outros tempos”.
Em seguida, o salário mínimo decretado pelo governo teria sido vaiado pelos participantes, após
Lula ter desafiado “qualquer autoridade a viver, pelo menos um mês, e sustentar sua família com 2.268
cruzeiros” e aconselhado a todos a que fizessem economia, porque “se não vier aumento vamos entrar em
greve”, afirmando ainda, em referência ao presidente da República que “em 45 dias de trégua [período
transcorrido do governo de Figueiredo], nosso movimento não esfriou. Quem pensou que vamos ser
enganados com palavras caiu do cavalo” .
O evento oficial, criticado por Lula, era a comemoração promovida pela Secretaria Estadual do
Trabalho de São Paulo, realizada no Estádio do Pacaembu, com portões abertos ao público. Segundo a
imprensa, cerca de três mil pessoas participaram desse evento no qual tiveram a oportunidade de ouvir o
discurso em que o Secretário do Trabalho, Sebastião Coelho, reconhecia que o índice de reajuste do
salário mínimo “embora razoável, não veio atender realmente as necessidades dos trabalhadores”,
justificando, entretanto, que “algum fato de nível superior deve ter determinado ao governo fixar os níveis
salariais em 2.268, dentro de um programa de Governo que visa a evitar a aceleração do processo
inflacionário” .
Outro evento, na cidade de Taubaté, contou com a presença do ministro do Trabalho. Em seu
discurso Murilo Macedo, afirmou que “todos esperavam por movimentos grevistas nesta hora de abertura
democrática, o que não podemos é concordar e conviver com a greve pela greve”, enfatizando que a
intervenção nos sindicatos dos metalúrgicos do ABC somente seria suspensa quando fossem concluídas
as auditorias em suas contas e “na hora que tudo estiver calmo” .
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O discurso do ministro permite observar que a política de distensão conduzida pelos governos
Geisel e Figueiredo não modificou a estrutura sindical e a legislação trabalhista, que colocavam as
entidades e os movimentos reivindicativos dos trabalhadores sob tutela e vigilância do governo. Todavia,
a abertura possibilitou uma retomada das atividades sindicais duramente reprimidas depois de 1964. Os
sindicatos dos metalúrgicos da região do ABC paulista se destacaram no contexto nacional, organizando,
a partir de 1978, sucessivas greves que paralisaram a indústria de ponta. Na época da posse, Figueiredo
enfrentou uma greve de 160 mil metalúrgicos paulistas que resultou na intervenção do Ministério do
Trabalho nos sindicatos envolvidos. Mesmo assim, trabalhadores, patrões e governo conseguiram chegar
a um acordo que incluiu a volta das direções cassadas.
Do pronunciamento de Figueiredo, a imprensa destacou o fato de ele ter afirmado que, apesar de
“ser homem de ponderação e prudência”, não hesitaria em “aplicar as leis existentes, diante de situações
que ameacem a tranquilidade da família brasileira, ou possam conduzir à desordem social” e ainda o fato
de ele considerar “elitistas as reivindicações dos grupos que dispõem de forte poder de pressão”, porque
estas só seriam atendidas “à custa de mais inflação. E, sobretudo, à custa de desemprego dos
trabalhadores de renda mais baixa e sem a mesma força de representação”. Ao encerrar sua fala convocou
todas as classes “a participar do combate à inflação”. Do empresariado solicitou o controle dos custos, a
melhoria da produtividade e a limitação das margens de lucros e, falando aos trabalhadores, pediu:
“participação dedicada e calorosa nesse esforço”, pois, em suas palavras: “se os brasileiros todos não se
engajarem na luta contra a inflação será praticamente impossível ganhá-la” .
Em outubro, pressionado pelo crescimento da escalada inflacionária e dos movimentos
trabalhistas, o governo promulgou uma nova lei salarial, introduzindo o reajuste semestral, maiores
índices para os trabalhadores de menores rendimentos e a incorporação de uma taxa de incremento de
produtividade no cálculo do salário. Considerada uma vitória do movimento sindical, essa lei vigoraria
até janeiro de 1983, quando as vicissitudes da crise econômica e as exigências do Fundo Monetário
Internacional (FMI) levariam o governo a reformulá-la.
Após meses de campanhas e debates, em 27 de junho de 1979, o general Figueiredo enviou ao
Congresso Nacional o projeto de Lei de Anistia. Como lembram Rodeghero et alli, para os grupos
oposicionistas já não se tratava mais de pressionar o governo para que concedesse a anistia, mas de
denunciar as limitações do projeto – especialmente a exclusão de seus benefícios aos que foram
condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal – medida que
impedia a libertação de diversos militantes presos. Diversas entidades, de associações de bairros a
sindicatos, ampliaram sua participação ou engajaram-se na campanha pela “anistia ampla, geral irrestrita”
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A aprovação da lei, embora mantendo as restrições, em 28 de agosto de 1979, permitiu o retorno
ao país de um grande número de exilados, entre eles Leonel Brizola e Miguel Arraes, e a libertação de
vários prisioneiros políticos. Sob essa influência foi comemorado o Primeiro de Maio de 1980.
Em abril de 1980, uma nova greve paralisou as indústrias metalúrgicas do ABC durante mais de um mês,
provocando uma escalada repressiva que levou à ocupação militar de São Bernardo, à interdição dos
sindicatos e à prisão, no dia 30, de Lula e mais 29 líderes sindicais, enquadrados posteriormente na Lei de
Segurança Nacional. Libertados em 16 de maio, foram condenados em primeira instância a penas entre
três e quatro anos de prisão, mas aguardaram em liberdade o recurso ao Superior Tribunal Militar (STM),
que anulou a sentença anterior por considerar a Justiça Militar incompetente para julgar a greve.
No mesmo período, tornaram-se constantes as denúncias de demissões por justa causa por ordem
do Ministério do Trabalho e de novas prisões de participantes em piquetes ao longo da semana que
antecedeu ao Primeiro de Maio. Nota-se também o reconhecimento da diminuição do número de grevistas
por medo do desemprego.
Refletindo esse estado de coisas, a edição de 1º de Maio do Jornal do Brasil noticiou, em sua
primeira página, que no inquérito encaminhado no dia anterior à Auditoria Militar, foi pedida a prisão
preventiva de Lula e de outros dezessete líderes sindicais do ABC, e que nele o delegado do
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), Edsel Magnotti, chamava a atenção do Ministério
Público para um possível indiciamento do Bispo de Santo André, Dom Claudio Hummes, a quem acusava
de incitar à greve em palestras, sermões e missas.
Essa situação permite observar a participação cada vez mais intensa de clérigos nos conflitos
sociais existentes no país e, no exemplo de Dom Claudio Hummes, a tensão decorrente de sua insistência
em celebrar novamente a missa de 1º de Maio que antecederia uma passeata denominada pelas lideranças
sindicais de “marcha pela reabertura das negociações”, que iria da Igreja Matriz em direção ao Estádio da
Vila Euclides, em um momento que a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo havia proibido
passeatas, concentração em estádios e outros atos públicos.
A intervenção nos sindicatos, o fechamento das negociações por parte dos empresários e as prisões
de lideranças sindicais, contrastavam com as promessas de abertura política pregada pelo governo e
ensejaram uma campanha conjunta por parte das lideranças dos partidos de oposição que, naquele 1º de
Maio, mandaram publicar um “Manifesto dos líderes de partidos da oposição” .
O documento iniciava com um arrazoado da situação, denunciando que “há trinta dias os
metalúrgicos de São Bernardo e Santo André estão parados. Trinta longos dias de esperança e de
decepção. Esperança nascida da luta por melhores salários e condições de trabalho. Decepção derivada da
recusa ao diálogo por parte dos empresários e do Governo” .
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Na sequência do texto, observa-se que os líderes partidários procuravam demonstrar a incoerência
entre o discurso democratizante e a prática repressora de parte do governo. Em suas palavras: “importa
registrar o conservantismo dos grupos dirigentes e a incapacidade de setores da sociedade para absorver
as demandas mais justas. A tal ponto que hoje altas autoridades envolvem-se num processo inglório de
prender líderes visando confinar as reivindicações operárias a São Bernardo e quebrar o ímpeto da luta
sindical”, procurando estabelecer uma associação direta entre a abertura política e a necessidade de
retomada das negociações entre o empresariado e as lideranças sindicais, afirmavam ainda que “diante
desse quadro, todos os setores da sociedade empenhados no progresso social e na democratização, tudo
vêm fazendo para restabelecer o diálogo entre as partes e para manifestar sua solidariedade ao direito de
reivindicação dos trabalhadores” .
E, dirigindo-se diretamente ao empresariado, cobrava-lhe uma parcela maior de responsabilidade
na situação:
As dificuldades criadas pela inflação e pela dívida externa – que fazem da crise uma presença inquietante
que impõem deveres a todos. Mas impõem especialmente aos empresários sem que a nação sinta que o
ônus das dificuldades econômicas será efetivamente pago por todos e proporcionalmente mais pelos que
mais têm. Mormente, quando a decisão judicial está pendente de recurso, é seu dever – e do governo –
fazer tudo para a retomada do diálogo, passo essencial para que a volta ao trabalho não represente uma
imposição pela repressão ou pela fome .
Como conclusão, o documento reafirmava a importância da data e retomava o antigo discurso da
dignidade e da importância do operariado nacional, associando-o à efetivação da democracia no país.
Assim se expressava em seu trecho final, [...] ainda há tempo para corrigir os rumos e restabelecer a
confiança numa democracia que não se restrinja a formas exteriores, mas assegure o reconhecimento das
classes trabalhadoras como parte ativa da nação que, por sua luta, conseguirá condições dignas de
trabalho e de remuneração. Apelamos pela libertação dos líderes sindicais presos e pela retomada
imediata do diálogo, como gestos capazes de conferir à celebração do 1º de Maio o sentido de grandeza
que a nação necessita e reclama.
Entretanto, pode-se observar que a situação também não era totalmente tranquila entre os
empresários e, ao menos na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), que durante esse
período se encontrava em processo de eleição de sua nova diretoria, havia vozes discordantes em relação
à estratégia de endurecimento adotava pela entidade. O empresário Luís Eulálio de Bueno Vidigal Filho,
candidato da oposição, declarou à imprensa que se ele já estivesse na presidência “teria ido negociar com
os metalúrgicos lá no sindicato deles”. Por seu turno, o então presidente, Theobaldo de Nigris, dizia
considerar “compensador e satisfatório” o retorno dos metalúrgicos ao trabalho.
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Tal afirmação era feita com base numa pesquisa realizada pelo Ministério do Trabalho, revelando que o
retorno continuava aumentando, indicando índices “de 61% na Volkswagen e 95% na equipamentos
Villares, em São Bernardo” .
A posição intransigente da diretoria patronal também encontrava apoio na postura do ministro da
Indústria e do Comércio, Camilo Penna, que então afirmava que “o governo não tem mais o que negociar
com os metalúrgicos, pois já negociou demais”, enfatizando ainda que “hoje não há mais grevistas, mas
desempregados” .
O presidente da República, por outro lado, preferiu manter-se distante da arena, evitando qualquer
declaração à imprensa e não realizando nenhum pronunciamento de Primeiro de Maio aos trabalhadores,
“‘por não considerar o momento oportuno’, segundo o secretário de Comunicação Social, Said Farhat” .
Figueiredo inaugurava então uma postura que marcaria os próximos anos de seu mandato.
Em Brasília o presidente assistiu, como atividade alusiva à data, um jogo de futebol realizado na
cidade satélite de Taguatinga, no qual se enfrentaram a Seleção Brasileira e um combinado de Minas
Gerais. No dia seguinte, o noticiário destacou que ele “não se manifestou em nenhum dos quatro gols
marcados pela Seleção Brasileira contra a equipe mineira. Manteve-se sempre sério, circunspecto,
impassível, acompanhando o jogo com um rádio colado ao ouvido”. Essa postura de distanciamento foi
reforçada ainda pelas providencias tomadas pela equipe de segurança, que mandou cercar a tribuna de
honra com uma parede de vidro a prova de som e balas .
Esses cuidados não evitaram, no entanto, que o general-presidente ouvisse, quando o locutor
anunciou sua chegada, uma grande vaia do público presente. Segundo a imprensa, o estádio estava lotado,
sendo que dos 40 mil ingressos vendidos, 30 mil foram comprados pelo governo e distribuídos a
entidades sindicais .
No Rio de Janeiro, a data foi marcada por dois eventos. O primeiro, ocorrido na noite do dia 30
para o dia 1º, no Riocentro da Barra da Tijuca, inaugurava aquela que pretendia tornar-se uma série de
shows musicais, organizados pelo Centro Brasil Democrático, para marcar a data e associá-la ao processo
de distensão política do país.
Antes de anunciar a primeira atração, o cartunista Ziraldo, apresentador da noite e criador da
imagem símbolo do evento, afirmou que pretendia fazer com que “esta reunião se transforme numa
tradição brasileira e que ela fique conhecida como a noite da música popular brasileira” .
O público daquela edição foi estimado pela imprensa em 35 mil pessoas, sendo a renda revertida
aos trabalhadores em greve no ABC paulista. Entre os artistas presentes destacavam-se: Dominguinhos,
Alceu Valença, Boca Livre, Dorival Caymmi, As Frenéticas, João do Vale, Milton Nascimento, Moraes
Moreira e Sérgio Ricardo.
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O outro evento realizado no Rio foi promovido pela Unidade Sindical e transcorreu na quadra da
Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro. Naquela tarde de 1º de Maio estiveram presentes lideranças
dos principais partidos de oposição e a imprensa destacou ainda o rápido encontro entre Tancredo Neves,
líder do recém criado Partido Popular, e Luís Carlos Prestes, histórico líder comunista brasileiro.
Pelo relato do Jornal do Brasil, fica-se sabendo que estudantes e jovens da Zona Sul foram a
maioria entre as cinco mil presentes e que a maior parte dos trabalhadores foi transportada em ônibus
fretados por partidos políticos e ainda que houve muito samba e o estoque de cerveja acabou logo .
Apesar de seu caráter festivo, o evento contou com uma longa lista de discursos, proferidos tanto
pelos representantes das 44 entidades que formavam a Unidade Sindical, quanto pelos mais de 30
parlamentares dos partidos de oposição – PMDB, PP, PT e PTB – que estiveram presentes. Destes, o mais
aplaudido teria sido o do Senador Nélson Carneiro (PMDB-RJ) quando pediu solidariedade aos
metalúrgicos do ABC. Além disso, todos respeitaram o minuto de silêncio em memória ao operário Santo
Dias, morto em São Paulo, durante a greve de 1979.
Nas manifestações de Tancredo à imprensa, também se podia observar a ênfase na impossibilidade
de dissociar o respeito aos trabalhadores do processo de redemocratização do país. Em suas palavras: “o
Estado do Rio, na sua Capital, mostra o clima de respeito às liberdades democráticas, ao contrário do
ABC, que festeja o seu 1º de Maio com seus sindicatos sob intervenção, as suas lideranças despojadas e
presas e os trabalhadores perseguidos nas ruas, por forças da repressão” . Essa declaração, entretanto,
também reflete o clima político partidário do momento, uma vez que Antônio Chagas Freitas, então
governador do Rio, apesar de ter sido reeleito, em 1979, pela maioria do MDB na Assembléia Legislativa,
teve seu ingresso vetado pelo diretório nacional do PMDB, restando-lhe a alternativa de filiar-se ao PP de
Tancredo Neves.
A nota cômica da tarde deveu-se a gafe cometida pelos líderes do PP que, talvez pouco
familiarizados com universo carnavalesco, distribuíram bandeirolas verde e rosa, cores da Escola de
Samba Mangueira e não do Salgueiro .
Os impasses e tensões mais importantes que marcaram o transcurso do dia ocorreram cidade de
São Bernardo do Campo e arredores. Como foi mencionado, o comando de greve dos metalúrgicos havia
programado para o final da “Missa do Trabalhador”, a realização de uma grande passeata que tomaria as
ruas da cidade e se dirigiria ao Estádio dos Eucaliptos onde, como no ano anterior, lideranças sindicais
pretendiam reunir uma multidão estimada em 100 mil participantes.
Ocorre que, com a prisão dos principais líderes grevistas e com a intervenção nos sindicatos, o
governador de São Paulo, Paulo Maluf, julgou por bem proibir a passeata. Assim, no início da manhã, a
missa celebrada por Dom Claudio Hummes, transcorreu num ambiente de tensão, pois a Igreja foi cercada
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por tropas da Polícia Militar. O senador Teotônio Vilela parlamentou com o Comandante da Polícia
Militar, coronel Arnaldo Braga. Os trabalhadores, contidos pelos líderes até o último instante, haviam
decidido realizar a passeata mesmo sem permissão.
Depois de alguns incidentes de rua, o Comandante da PM liberou a passeata e a concentração no
estádio, mandando recolher o esquema policial. Segundo sua declaração: “Recebi ordens superiores. Eu
havia dito a eles que é impossível conter essa multidão” . A caminhada começou então com os
manifestantes cantando o Hino Nacional, enquanto dezenas de viaturas das polícias civil e militar,
transportando a tropa, ainda deixavam o local. A organização do percurso ficou a cargo de grupos de
estudantes, ex-dirigentes dos sindicatos membros da Comissão de mobilização e salários de São
Bernardo.
Segundo a imprensa, a multidão presente contava com a participação de “trabalhadores, mulheres,
crianças, estudantes e representantes dos mais diversos grupos, estendendo-se por dois quilômetros”.
Entre as principais palavras de ordem gritadas pela multidão destacavam-se: “Greve geral”, “um, dois,
três, Maluf no xadrex”, “vai acabar a ditadura militar”; “agora, já, libertem nossos presos”: “se não soltar
o Lula, ninguém vai trabalhar”.
No estádio da Vila Euclides, que estava interditado desde o dia 17 de abril, a Prefeitura de São
Bernardo teve dificuldades para restaurar o sistema de som, pois os funcionários encontraram os fios
cortados e foi preciso ligar alto-falantes, que funcionaram precariamente. Militantes de diversas correntes
políticas e entidades desfilavam com faixas e bandeiras. Inicialmente alguns sindicalistas tentaram
recolhê-las, mas desistiram devido à quantidade. Enquanto isso ocorria uma discussão do lado de fora do
palanque, pois membros de entidades e grupos políticos queriam discursar. O comando de greve dos
metalúrgicos não permitiu, argumentando que só falariam representantes dos trabalhadores.
O principal orador da tarde foi Osmar Mendonça, líder grevista procurado pelo DOPS. Seu
discurso enfatizou aos metalúrgicos que a greve “teria condições de durar 60 ou 80 dias, se não forem
atendidas as reivindicações salariais e sociais”, afirmando ainda que, “nosso movimento só adquiriu
caráter político porque o governo colocou a sua pá” , reafirmando à intenção de distanciamento das
questões político-partidárias que ainda marcava o discurso de boa parte das lideranças sindicais da região
e que, nessa versão, só teria sido alterada devido a intervenção governamental nos sindicatos.
Na fala de outros dois oradores percebe-se novamente a tensão provocada pela vinculação do
movimento a qualquer corrente política. O prefeito Tito Costa explicou, ao microfone, que falava em
nome do PMDB. O orador seguinte, Jacob Bittar, presidente do sindicato dos petroleiros de Campinas (e
também coordenador nacional do PT) não mencionou seu partido e disse: ‘ninguém deve, agora, falar em
nome de partido político e sim manifestar solidariedade aos trabalhadores” .
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Um dos aspectos que salta aos olhos nesse Primeiro de Maio é o de que se, com a prisão das
lideranças e a intervenção nos sindicatos dos metalúrgicos, o governo tentou esvaziá-lo, essas meditas
tiveram resultado diametralmente oposto, pois as manifestações nas principais cidades do país não apenas
aludiram à greve e à necessidade de libertação dos presos e da retomada das negociações, como em
muitos casos ensejaram medidas concretas de apoio ao movimento.
Outra característica importante, observável tanto nos atos do Rio de Janeiro quanto de São
Bernardo e em outras cidades, é de que a data tornou-se um espaço de disputa por parte das lideranças dos
recém-criados partidos políticos, que tanto procuraram propagandear suas legendas e personalidades,
quanto passaram cada vez mais a vincular o respeito às demandas dos trabalhadores ao processo de
redemocratização do país.
Entretanto, o Primeiro de Maio tornou-se arena de disputa de outros contendores e essas diferentes
comemorações permitem observar a existência de tensões e divergências também entre as lideranças
sindicais, estas se relacionavam tanto às reivindicações trabalhistas mais objetivas, quanto às formas de
combate à ditadura, e acabariam por separá-las em dois blocos: os “combativos”, que assim se
autodenominavam como forma de se diferenciarem do outro bloco, formado pela Unidade Sindical. Na
definição de Marco Aurélio Santana: o bloco ‘combativo’, em grande parte via PT, defendia um combate
direto ao regime a partir do centro sindical e da organização e demandas dos trabalhadores. Já a Unidade
Sindical [...] visava a evitar enfrentamentos diretos com o regime, conquistar apoio de amplos setores da
sociedade, trabalhando firmemente no sentido de enfraquecer o regime militar e garantir a continuidade
do processo de transição, ainda que isso pudesse significar uma certa redução do ímpeto dos movimentos
reivindicativos do trabalhadores .
Ainda nas palavras do autor, “o bloco combativo considerava a e estratégia da Unidade Sindical
como negocista, conciliadora e reformista. A Unidade Sindical, por sua vez avaliava a estratégia do outro
setor como sendo esquerdista e desestabilizadora”. De maneira geral, foi cindido entre essas orientações
que o movimento sindical brasileiro adentrou a nova década.
O ano de 1980 caracterizou-se ainda pelo crescimento do número de atentados por parte de grupos
militares contrários ao processo de distensão política. A imprensa registrou a ocorrência de pelo menos 25
ações sem vítimas, em sua maioria explosões de bombas contra bancas de jornal que vendiam periódicos
de orientação esquerdista, chamados de “imprensa alternativa”. A situação se agravou com a detonação,
em 27 e 28 de agosto, de cartas-bombas enviadas ao vereador do Rio de Janeiro, Antônio Carlos de
Carvalho, do PMDB, e a Eduardo Seabra Fagundes, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB). Em consequência desses atentados, o jornalista José Ribamar de Freitas, chefe de gabinete do
vereador, ficou gravemente ferido e dona Lida Monteiro da Silva, secretária da OAB, faleceu.
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A morte de dona Lida indignou todas as correntes de opinião do país. Em repúdio ao fato, as
lideranças partidárias enviaram uma resolução de apoio ao governo no combate aos atentados. Este foi,
depois de 1964, o primeiro movimento unânime de condenação ao terrorismo, unindo partidos políticos,
sindicatos, imprensa, organismos universitários e outros segmentos representativos da sociedade. O
presidente da República, em discurso pronunciado em Uberlândia, chegou a exortar os terroristas a que
lhe escolhessem como alvo, no lugar das vítimas que vinham sendo atacadas.
Entretanto, a escalada de violência estava longe de terminar e, por mais que a retórica
antiterrorista estivesse na ordem do dia, nenhuma medida mais efetiva foi tomada por parte do Estado.
Como veremos adiante, as comemorações do Primeiro de Maio de 1981 foram marcadas por essa
realidade.
Embora o governo Figueiredo tenha conseguido obter altas taxas de crescimento do Produto
Interno Bruto em 1979 e 1980 (6,4% e 7,9%), acabou perdendo o controle sobre a inflação, que aumentou
de 77% para 110% nesse período, e assistiu a uma grave deterioração na relação entre o valor das
exportações e o montante da dívida externa. O quadro se agravou durante o ano de 1981, quando a alta
taxa de inflação (95%) e o aumento da dívida para 61 bilhões de dólares se combinaram com um
crescimento negativo do PIB (-1,9%), que inaugurava no Brasil a “estagflação” (combinação de inflação
e estagnação), tão temida pelos economistas de todas as partes do mundo.
Nesse quadro econômico um dos principais problemas enfrentados pelos trabalhadores era o valor
do reajuste salarial. Desde o governo Geisel a imprensa já vinha noticiando que os aumentos não
permitiam a reposição das perdas inflacionárias e, desde 1978, categorias profissionais mais organizadas
denunciaram a defasagem e iniciaram movimentos grevistas .
Tal situação agravou-se em 1981 quando foram anunciados, para o Primeiro de Maio, os índices
de reajuste de salário mínimo. Os aumentos variavam de 46,3%, na região Sul e Sudeste; a 60,19%, nas
regiões Norte e Centro-Oeste, devido à política de unificação dos salários . Como os índices de reajuste
ficaram muito abaixo da inflação oficial divulgada no período, vários sindicatos das regiões Sul e Sudeste
ameaçaram entrar na Justiça com um pedido de mandato de segurança contra o governo .
Embora grave, o problema foi tratado com humor. O jornal Folha de São Paulo, por exemplo,
publicou uma charge na qual um trabalhador, com o jornal nas mãos, lê a manchete da 1ª página: “Salário
mínimo tem reajuste menor”, refletindo em seguida:
“– A gente no 1º de Maio e eles aprontando um 1º de Abril” .
Coube ao ministro do Trabalho, Maurício Macedo, oferecer novamente as explicações para os
índices definidos pelo governo. Em sua mensagem de Primeiro de Maio, ele aludiu à difícil situação da
economia brasileira “premida principalmente pela elevada inflação, por dificuldades externas”.
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Reconhecendo, entretanto, que “o trabalhador, todavia, sofre de maneira especialmente dolorosa com os
constantes aumentos de preços”. Mas, justificando e elogiando, em seguida, as medidas governamentais:
Em que pese à necessidade de combate à inflação, o presidente Figueiredo instituiu a política de reajustes
semestrais de salários [...] o compromisso democrático do Presidente Figueiredo implica em amenizar as
dificuldades econômicas e sociais do povo, implica em promover maior justiça social e também melhor
atendimento das necessidades do homem brasileiro .
Trilhando caminho semelhante, Luís Eulálio Vidigal, novo presidente da FIESP, em discurso
durante a instalação dos 34º Jogos Desportivos Operários, defendeu a ideia de que “hoje, quando toda a
família trabalhadora confraterniza, comemorando o Dia do Trabalho, é importante lembrar que depende
de todos nós – e de cada um de nós –, a construção de uma sociedade mais justa e próspera”, assinalando
em seguida que, “empregados e empregadores devem colocar-se lado a lado, não frente a frente”, e
concluindo que “o único confronto que interessa a todos nós é o confronto com a situação mundial, para
vencermos o desafio que se nos depara com nossas próprias forças, nosso trabalho, nossa união” .
O posicionamento da maioria das organizações sindicais, no entanto, não correspondia à visão
harmoniosa pregada pelas organizações patronais e pelo governo. Depois de novas greves, a
movimentação dos trabalhadores em várias cidades do país mostrava a decisão de realizar um Primeiro de
Maio marcado por reivindicações. Em São Bernardo do Campo, repetiu-se a aliança entre celebração
religiosa e sindical, com a comemoração ocorrendo no Largo da Matriz, após a missa celebrada
novamente por Dom Claudio Hummes. Naquela edição do evento, entretanto, a atmosfera parecia ser
mais tranquila do que a do ano anterior, uma vez que os sindicatos já não se encontravam sob intervenção
e suas lideranças estavam em liberdade.
A mesma tranquilidade parecia orientar as comemorações no Rio de Janeiro. Nessa cidade o ponto
alto seria a realização de nova edição do Show no Riocentro, na noite do dia 30 para o dia 1º, anunciada
pela imprensa como “o maior acontecimento musical de todos os anos”. Contando com roteiro de Chico
Buarque de Holanda e Fernando Peixoto, o evento teve a participação de artistas renomados como Alceu
Valença, Angela Rô Rô, As Frenéticas, Beth Carvalho, Cauby Peixoto, Clara Nunes, Djavan, Elba
Ramalho, Fagner, Francis Hime, Gal Costa, Gonzaguinha, Ivan Lins, Ivone Lara, Joanna, João Bosco,
João Nogueira, Miúcha, MPB-4, Ney Matogrosso, Paulinho da Viola, Zizi Possi.
Somados ao enorme poder atrativo dos artistas, os ingressos vendidos a preços populares e a
disponibilização de linhas especiais de ônibus, contribuíram para o grande sucesso de público no evento,
divulgado pela imprensa como tendo atingido os 20 mil presentes . Esse sucesso, entretanto, por pouco
não se transformou em tragédia, pois um novo atentado foi planejado para ocorrer durante a realização do
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show. Nas palavras de Francisco Teixeira da Silva, este seria “o mais audacioso e, se bem realizado, o
mais cruel ato terrorista da história do país” .
As bombas seriam colocadas no interior do pavilhão do Riocentro pelo sargento Guilherme
Pereira do Rosário e pelo então capitão Wilson Dias Machado, ambos do CODI do I Exército. Por volta
das 21 horas, com o evento já em andamento, um dos artefatos explodiu dentro do carro em que estavam
os dois militares, matando o sargento e ferindo gravemente o capitão Machado.
A imprensa e a opinião pública se convenceram de que as vítimas eram os próprios terroristas,
mas o general Gentil Marcondes, comandante do I Exército, divulgou a versão de que ambos cumpriam
“missão de rotina” e determinou que o sepultamento do sargento ocorresse com honras militares.
A crise subsequente chegou a ameaçar a estabilidade do governo e foi solucionada à base de
mútuas concessões. Não houve punição ostensiva aos militares integrantes da “linha dura” e o I Exército
pôde fazer seu próprio inquérito para concluir que os dois militares haviam sido “vítimas de uma
armadilha ardilosamente colocada no carro do capitão”. Em compensação, não ocorreu a partir daí outro
atentado terrorista significativo. Essa solução, entretanto, não agradou a todos os membros do governo.
Em 6 de agosto, alegando “divergências irreconciliáveis”, o general Golbery do Couto e Silva pediu
demissão da chefia do Gabinete Civil, que exercia desde o início do governo Geisel e que o projetava
como principal articulador do processo de distensão política.
Em entrevista ao jornal Jornal do Brasil, em abril de 1991, Figueiredo reconheceu que o atentado
do Riocentro fora obra dos militares apontados no inquérito policial-militar arquivado pelo STM e que
não interveio no trabalho da Justiça em nome da independência dos poderes, embora o resultado não
tenha, segundo o ex-presidente, “convencido ninguém porque não chegou a nada” .
Diante de novas provas, em 1999, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados
solicitou a reabertura do caso. A procuradora da República, Gilda Berger, aceitou o pedido, considerando
que o crime não estava coberto pela Lei de Anistia, uma vez que esta se aplica apenas aos crimes
cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 e nem estava prescrito.
Após três meses de investigações o Inquérito Policial Militar foi enviado ao procurador-geral da
Justiça Militar Kleber Coêlho, para que oferecesse denúncia ao STM. Em 4 de maio de 1999, o caso foi
arquivado pelo ministro civil desse Tribunal, Carlos Alberto Marques Soares. Segundo ele, o poder de
punição do Estado teria cessado, ou seja, mesmo que surgissem novas provas, nada mais poderia ser feito,
já que uma decisão anterior do STM enquadrou o caso na Lei de Anistia .
A guisa de conclusão, retomo brevemente as transformações ocorridas comemorações do Primeiro
de Maio durante o período aqui analisado. A primeira questão a destacar é a perda de controle, por parte
do governo, de suas celebrações e a consequente variedade de significados e formas que passaram a ser
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atribuidos à data. Gostaria de destacar algumas delas: o primeiro de maio do governo e dos empresários, o
primeiro de maio dos artistas e intelectuais, o primeiro de maio dos políticos e, finalmente o primeiro de
maio de religiosos e entidades sindicais.
No primeiro caso, os discursos de entidades patronais, como a FIESP, e os do governo, apesar da
existência de divisões internas, parecem coincidir, especialmente quando justificavam a crise econômica
como sendo fruto da conjuntura internacional desfavorável e demandavam dos trabalhadores colaboração
e empenho em sua superação. De modo geral, enfatizavam a necessidade de cooperação e de harmonia
entre patrões e empregados, como caminho tanto para resolver os problemas econômicos quanto para
garantir a estabilidade política. Vez ou outra esse discurso aparecia entremeado por alguma ameaça
velada, como aquela da fala de Figueiredo em 1979, travestida de garantia da manutenção da ordem.
Para artístas e intelectuais, as comemorações de Primeiro de Maio, tornaram-se momentos
privilegiados nos quais poderiam conjugar suas demandas por liberdade de expressão e distenção política,
entrelaçando-as às reivindicações dos trabalhadores, tentando aproximar dois universos reivindicatórios
que nem sempre se aproximavam ou se compreendiam, conjugando-os na chamada “festa da
democracia”.
Num sentido semelhante, se pode pensar que a participação de lideranças políticas nas celebrações
da data apontam para o reconhecimento de que as questões sociais e, especialmente, as operárias,
deveriam ser levadas em conta em um contexto mais amplo de redemocratização do país. Mas, indo um
pouco além, se pode observar ainda que tal atitute também externa o reconhecimento da importância dos
trabalhadores quando, paulatinamente, o país retornava à normalidade eleitoral e as agremiações
partidárias precisavam contar com seus votos para se consolidarem e venceram as futuras competições
pelo poder.
No caso da Igerja Católica, é impossível dissociar sua participação nas celebrações do Primeiro de
Maio de uma postura que vinha desenrolando-se desde meados dos anos 1960, quando uma ala
considerável de jovens religiosos e também de parcelas do episcopado passaram, engajados à Teologia da
Libertação, a realizar uma leitura radical dos Evangelhos, associando a missão da Igreja à luta contra
todos os tipos de opressão, aí incluida a ditadura cívico-militar. As missas dos trabalhadores, realizadas
em várias cidades do país no período em análise, atualizavam a tradicional participação da Igreja nas
comemorações, que ocorriam desde meados dos anos 1920, dotando-a de um discurso muito mais
contundente, no qual se associava o martírio de Cristo ao dos operários, de forma a sacralizar a data.
Como mencionado, o ressurgimento das lutas sindicais no país marcou também a retomada de
antigas divergêncas entre as lideranças operárias, as quais somaram-se outras novas. O Primeiro de Maio
não ficou imune a esse estado de coisas e a forma de suas celebrações, os grupos presentes e o teor dos
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
discursos, assinalavam o aprofundamento das divergências entre as duas principais orientações do
período, tanto no que consernia à amplitude das reivindicações trabalhistas, quanto à intensidade da
oposição ao regime, e ainda aos tipos de alianças aceitáveis.
De qualquer forma, a data ajudou a marcar a retomada de grandes espaços públicos por parte de
multidões de trabalhadores que, fosse para ouvir escolas de samba, ou artístas consegrados, discursos de
líderes partidários ou de militantes sindicais, passaram a marcar presença e a associar cada vez mais suas
demandas ao processo de redemocratização do país, demonstrando pelo peso de sua participação que,
para ser realmente a democrático, o país precisaria reconhercer seu valor. Essa pode ser uma explicação
possível para a motivação daqueles que levaram a cabo o mal sucedido atentado ao Primeiro de Maio do
Riocentro: a de que uma parcela inconformada das Forças Armadas tentou calar, a força de bombas, uma
voz que não podia mais deixar de ser ouvida.
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OPERÁRIOS VIAJANTES: OLHARES CRUZADOS ENTRE A EUROPA E AS AMÉRICAS NO
SÉCULO XIX
Ivone Gallo*
Resumo: Ao longo do século XIX operários e intelectuais movidos por necessidades de vida e por convicções socialistas
deixavam a Europa em direção às Américas. O artigo que apresento busca resgatar diferentes aspectos destes deslocamentos
tomando como base os registros em memórias, relatos de viagens e poemas legados pelos protagonistas destas experiências.
Através de suas narrativas notamos que pelas lentes da classe operária a imagem de uma Europa civilizada se reverte como
barbárie à luz da expectativa de se encontrar nas Américas selvagens a liberdade. O caráter político e transnacional das
experiências operárias na primeira metade do século XIX, ainda pouco explorado, torna visível não apenas as utopias em jogo
na travessia do Atlântico, mas os limites e as possibilidades da aplicação no novo contexto econômico, social e político dos
projetos sociais trazidos de fora. No jogo entre os desejos e a realidade, entre velho mundo e novo mundo, entre civilização e
barbárie, a classe operária, ao dar as costas para a Europa buscava reconstruir sua própria história.
Uma leitura da América do sul do século XIX a partir do olhar de uma intelectualidade europeia é
bastante comum e tema exaustivamente explorado pela historiografia nos dias de hoje. Os escritos
considerados como mais profissionais, de cunho científico, geralmente tomavam como modelo Alexandre
Humboldt ou Carl Liné que no século XVIII, no impulso da revolução industrial, ocuparam-se em
estabelecer sistemas classificatórios sobre a natureza, -homens, plantas, animais e minerais- com objetivo
de estudo, exploração e também de classificação política do mundo todo em que a Europa aparece como o
máximo de civilização e o restante do mundo como a barbárie. Escritos de outra natureza como cartas,
memórias, relatos, em geral não foram mais condescendentes com os não europeus, embora existam
exceções. Neles a cultura e a arte brasileira, por exemplo, imitam a natureza do lugar, que por visões
externas, se mostrava bruta e selvagem. São estas referências que justificam o título irônico conferido a
esta minha apresentação, pois através disto aponto a necessidade de chamar a atenção para uma literatura
de outro tipo: os relatos legados por operários ou por intelectuais próximos ao mundo do trabalho que
estiveram em contato com o nosso continente. As imagens projetadas por eles sobre as Américas, a
cultura e os povos podem ser apreendidas também em notícias de jornal, poemas, diários de viagem,
cartas, documentos estes que, na maioria dos casos, revelam impressões destoantes daquelas encontradas
na literatura habitual de época ao redor do tema de viagens. Achei importante a abordagem deste assunto
porque através dele chegamos a um ponto da discussão capaz de retratar algo pouco visível: o vai e vem
de operários e intelectuais com preocupações sociais e políticas entre Europa e América do Sul ainda na
primeira metade do século XIX. Para antes dos anos de 1830 tivemos a movimentação dos carbonários e
mazzinianos no sul do país e na região do Prata, mas posteriormente a isto, vemos operários europeus
saindo de seus países de origem em direção às Américas com vistas a estabelecer projetos de cunho
associacionista e comunitário. Eram eles fourieristas, sansimoneanos, cabetistas e owenianos. Por outro
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lado, saindo da Argentina, Echeverría, um jovem intelectual, foi à França onde tomou contato com
sansimoneanos e fourieristas para finalmente voltar a seu país inspirado de um projeto social sintetizado
no seu Dogma Socialista, programa da sociedade clandestina conhecida como Associacion de Mayo que
opunha forte resistência à ditadura de Rosas. A difusão do fourierismo nas Américas deu-se também pela
propaganda e pelas ações de militantes saídos da França para estes continentes. Eugène Tandonnet, por
exemplo, esteve no Uruguai e lá estabeleceu propaganda através do jornal Le Messager Français e fundou
um estabelecimento pautado no associacionismo, diga-se de passagem, muito criticado por companheiros
de militância. Partindo do princípio de que fomos da servidão nobiliárquica para a feudalidade mercantil,
industrial ou financeira, Tandonnet reconhecia que neste processo a grande perda foi das classes
inferiores e pobres, daí a necessidade de igualdade de distribuição, mas também de direitos ao
proletariado que deve ter acesso aos postos do estado. No Brasil, o socialismo francês inspirou tanto
Abreu e Lima que difundia em obras e na imprensa as suas visões sobre o tema e o Brasil, bem como na
cidade do Recife, um conterrâneo seu, Antonio Pedro de Figueiredo, editor da revista O Progresso
dedicava-se a uma propaganda semelhante. A crítica social levantada pela revolução de 1830 na França e
difundida também por autores franceses como Saint Simon e Charles Fourier atravessou o oceano e
lançou sementes também na Revolução Praieira, comparada por Figueiredo com a revolta dos cannuts.
Deixou também vestígios ainda com o estabelecimento de uma colônia fourierista na Península do Saí
(1841-1847) em Santa Catarina, quando para lá se dirigiram operários franceses participantes da Société
Union Industrielle, mutual que congregava fourieristas em Lyon. Além disto, difundiu-se no Rio de
Janeiro uma propaganda fourierista pelas mãos de Benoit Mure e de Derrion, ambos militantes
fourieristas que antes haviam sido sansimoneanos. Até o momento, as fontes consultadas me levaram a
constatar que a propaganda de fourieristas no Rio de Janeiro era voltada para a saúde do escravo, para a
educação dos pobres e sua emancipação e todas as demais questões trabalhadas pelo socialismo de época
na França, como por exemplo, a emancipação das mulheres, dos jovens e das crianças, além da
preocupação em refundar o conhecimento (a ciência) para que respondesse às questões candentes da
miséria e da opressão.
Na América do Norte a influência do fourierismo se fez sentir de forma mais intensa
comparativamente à América do sul e de 1840 à 1853 foram fundadas ali 30 comunidades de cunho
associacionista com livre escolha de funções, de relações amorosas e repartição proporcional ao trabalho,
capital e talento e compartilhamento dos benefícios. A participação do comunista Etienne Cabet e
também do inglês Robert Owen em projetos na América do Norte também se fez notar.
Aqui, eu não vou tratar da especificidade das experiências, da propaganda levada no Brasil por
fourieristas, mas vou abordar apenas algumas impressões, sonhos e ilusões que estes estrangeiros
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nutriram a respeito de nosso país. O contexto em que esses contatos se estabeleceram, é preciso lembrar,
foi o de impacto terrível sobre alguns setores da indústria francesa, mas também de perseguição aos
operários vinculados a alguma vertente do socialismo ou comunismo.
Os exemplos citados, e aqui haveria ainda muito mais a ser elencado, apontam para as relações
estabelecidas entre Europa e as Américas, entre culturas diferentes cujo traço comum é a preocupação
com direitos sociais e a solução da miséria. Destas experiências permaneceram relatos sobre os quais é
preciso dizer algumas palavras porque apesar de não terem constituído um sucesso editorial, o que
justifica o parco conhecimento que ainda hoje temos sobre eles, revelam uma visão totalmente inesperada
do jogo de alteridades. Inicialmente porque do grupo que pretendemos tratar a experiência da viagem não
se dá apenas pelo impulso e curiosidade em lançar-se em uma aventura, como ocorre a turistas e
viajantes, tampouco por uma inspiração artística ou científica, menos ainda por desejo de alcançar
notoriedade e riqueza com a venda posterior do relato de viagem. Os relatos de que vamos tratar
enfatizam pontos de interesse que os lugares venham a ter para a classe operária ou mesmo tratam de
temas convencionais, como por exemplo a natureza, a cultura e o trabalho de um ponto de vista não
convencional. Eu gostaria de começar pela abordagem do tema da natureza para apontar como aparece de
diferentes formas a partir do ponto de vista determinado.
Inicialmente, uma visão social do problema da natureza remete aos direitos primordiais do ser
humano. No estado de natureza o homem pode desfrutar dos alimentos fornecidos pela terra, se servir de
animais como alimento e vestimenta, abrigar-se. O estado de sociedade, supostamente produziria
condições de um melhor aproveitamento da natureza, mas, ao contrário, parece violar estes direitos, que,
na verdade, se perderam quando se aceitam as desigualdades. A opção de operários europeus pela saída
de seus países de origem leva em consideração o fato de que a Europa é o velho continente corrompido
pela civilização. Os olhares lançados por estes viajantes em direção ao novo mundo -as Américas- são,
sem dúvida, contaminados por uma concepção edênica deste novo mundo, porém com um sentido
diferente. Um exemplo claro está na Correspondance des disciples de la Science Sociale, matrerial de
propaganda fourierista de uma das várias dissidências do movimento na França e que incentivava a
realização imediata de projetos associacionistas. No número que citamos abaixo, o Brasil e a província
de Santa Catarina aparecem como lugares de “fertilidade e de beleza incomparáveis por sua superioridade
a todos as regiões da Europa”...Alí há um imperador bondoso, disposto a
“concessão gratuita e à perpetuidade de dez léguas de terras cobertas por florestas, isentas
de impostos durante um tempo fixado, todas as liberdades possíveis e a proteção do
governo. Nós seremos então, imediatamente proprietários de uma vasta extensão de
terreno e de materiais de construção: bosques imensos, granito, etc. E logo o café, a cana
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de açúcar, o algodão, o milho, o índigo e os frutos de todas as espécies serão nossos
produtos. Ali faltam apenas os braços. Tem-se legumes até doze vezes por ano. As
colheitas são geralmente de duas por ano...”
Ao mesmo tempo em que se reproduz o estereótipo de uma natureza prodiga que tudo fornece sem
muito esforço, lembrando nisto até o famoso relato utópico medieval sobre o país da Cocanha, na
verdade, o trecho acima me parece bem pragmático. Inicialmente porque sugere que se na França são
perseguidos pelo governo, no Brasil serão amparados pelo imperador; se na França são despossuídos, no
Brasil serão proprietários que com seu trabalho tornarão a terra produtiva (no Brasil faltam braços). De
fato, os fourieristas não faziam a crítica da propriedade, mas porque a consideravam como um direito a
ser usufruído também pelo proletariado e, a partir disto, há uma crítica à propriedade tal como as
sociedades a estabelecem. No falanstério todos são proprietários de partes ideais do todo, que é indiviso
num evidente contraste com a propriedade como instituição burguesa.
Uma segunda visão sobre a relação homem-natureza aparece entre falansterianos vindos para a
experiência do Saí e, neste caso, no ensejo de uma crítica à espoliação da natureza da América do sul,
como teria sido feita pelos antigos colonizadores. A paixão pelo ouro, segundo os fourieristas, teria sido
alimentada com o sangue de nativos e conquistadores:
“Eles brigavam pelo ouro, os insensatos, pelo ouro que arruinou os espoliadores do Novo
Mundo;- e o ferro, este pai da indústria, este pivot dos destinos humanos, o ferro cujo
desaparecimento paralisaria o desenvolvimento das sociedades e as faria retroceder na
direção de príscas eras, e este solo de uma inesgotável fecundidade, estas florestas
virgens, fonte insaciável de madeiras de construção, e o inumerável rebanho que as
povoa.-estes rios onde os peixes abundam, e que não esperam nada além do trabalho do
homem para ligar entre eles estas imensas regiões, e em lhes aumentando a fertilidade.estas quedas d’àgua, forças naturais, que parecem chamar usinas e grandes canteiros para
concorrer, com o homem, à produção das maravilhas da indústria, de tudo isto, eles não
viam nada ou não compreendiam nada” .
Ao contrário do desejo de dominação colonialista vinham com um intuito colaborativo e do uso da
natureza para o bem geral. Neste caso é preciso destacar que tal como se difundia no exterior, tornou-se
fácil a crença de que a abundância de terras significava terras disponíveis, sem donos. Isto revela o modo
um tanto idealista como se mirava o Novo Mundo. Na verdade, as terras ocupadas no Saí, para citar um
exemplo, eram de propriedade do coronel Camacho que as cedeu para a experiência. Além disto, a
relação com a ocupação de terras no Brasil sempre foi de conflito com os indígenas, com os posseiros,
com oponentes políticos. Por outro lado, a chegada de estrangeiros abria uma nova ordem de
desentendimentos: os privilégios concedidos aos estrangeiros fizeram com que brasileiros, caboclos da
região do Saí se queixassem do fato de não terem acesso aos mesmos direitos. Da parte dos
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falansterianos, entretanto, houve iniciativa em incorporar trabalhadores brasileiros na experiência e
menções do desejo de ensinar a eles, a quem chamaram de irmãos, os seus ofícios.
Imagens semelhantes aquelas esboçadas na citação anterior sobre a América do sul e sobretudo do Brasil,
aparecem ainda no relato de Louise Bachelet :
“Aqui, nada semelhante; esta natureza nobre e luxuriante do Novo-Mundo está tão bem em harmonia com
o desenvolvimento do pensamento falansteriano! Ela é tão abundante em esperanças e em promessas! Eu
me via rodeada por homens tão corajosos e tão confiantes, que malgrado as terríveis provações de um
austero noviciato, eu me abandonei, sem reservas a todas as impressões que me causava a vista deste
canto de terra prometida a tão elevados destinos”
Mas, para Bachelet, a natureza é, antes de mais nada, o cenário do trabalho que transforma um
mundo decrépito e viciado no mundo da harmonia vislumbrado por Fourier e pelos fourieristas. O seu
relato, na verdade, uma carta enviada à França a amigos que decidiram publicá-la, descreve os trabalhos
de doma da natureza no falanstério do Saí, as jornadas dos societários embaladas por cânticos laudatórios
ao trabalho, à liberdade, à Fourier.
Sem dúvida que, em muitos casos, as expectativas de operários nas Américas foram bruscamente
confrontadas com certas realidades imprevistas. Antes de mais nada, as próprias dificuldades postas pela
natureza tão incensada pelos visitantes. No Falanstério do Saí foi difícil a adaptação ao clima e aos
perigos da selva, para o que não puderam contar com o apoio do bondoso monarca. Algo semelhante foi
vivenciado pelos operários cabetistas que zarpariam anos depois na direção da comunidade norte
americana de Nauvoo, a materialização da Icária de Etiénne Cabet. Através das memórias legadas por um
dos adeptos, Cretinon, e publicada nos anos de 1980, pudemos ter acesso ao lamentável registro das
sucessivas desventuras dos companheiros, desde a travessia até a vida na comunidade. Neste caso a
natureza não havia sido prodiga, mas inclemente e os colonos viam seus trabalhos destruídos pelas
frequentes intempéries. Se antes da partida imaginavam que o trabalho compartilhado amenizaria a carga
de afazeres para cada um, logo se deram conta de que se tratava de um engano. Isto não foi muito
diferente do que sucedeu também ao proletário Norbert Truquin, cujas memórias escritas no final do
século XIX foram editadas apenas em 1972 e depois em 2006. Imbuído da convicção de que o
proletariado só poderia contar consigo mesmo para a solução de seus problemas e de que para tal seria
preciso estabelecer solidariedades que levassem a uma revolução social, partiu da França em direção a
América do sul em busca de experiências de comunidades socialistas que se proliferavam na época.
Durante sua peregrinação pela África e pela América do sul abordou dificuldades semelhantes a de seus
antecessores como de abusos cometidos por comerciantes que o levaram à escravidão por dívidas. Em
suma, o conjunto destas experiências revela nada além do seguinte: tratados como bárbaros e classe
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perigosa em seus países de origem, a travessia apenas confirmou o seu status, agora do outro lado do
mundo. Era a barbárie europeia misturada à tradicional barbárie das selvas americanas. Esta opinião seria
compartilhada pelo naturalista Auguste de Saint Hilaire que aconselhava o governo brasileiro sobre
colonização nos seguintes termos:
“o governo não deve limitar-se a aumentar a população do país, sem mais exame e sem escolha; importalhe, sobretudo introduzir homens que não estimulem, pelos maus exemplos, os vícios dos antigos
habitantes, e não anulem com sofismas grosseiros, o que ainda lhes resta de senso moral. Evite pois o
Brasil encaminhar para as terras colonos operários; homens desta classe que deixam a sua pátria são, as
mais das vezes, elementos postos à margem no país de origem, pela sua indolência, pouca aptidão e mau
procedimento”
De fato, os operários não imaginavam o interesse que os governantes brasileiros nutriam pela
vinda de estrangeiros para o Brasil, fossem eles europeus ou chineses. Interesses muito fortes se levarmos
em consideração que dos investimentos em colonização não havia um lucro imediato para o governo,
apenas para os armadores, responsáveis pelo recrutamento e transporte da mão de obra. Pouco importava
para o governo o lado fourierista da experiência porque valia mais povoar com mão de obra branca que
pudesse prestar serviços em agricultura, indústria, construção de obras de infra estrutura, tudo para
estabelecer as condições de substituir o trabalho escravo. Antero de Brito, na contramão desta política de
colonização, vinha criticando desde 1841 a importação de mão de obra porque como presidente de
província sentia mais perto a pressão de nacionais desprovidos de terras ou trabalhando em terras
esgotadas e que viam com descontentamento a iniciativa do governo em facilitar o acesso às terras aos
estrangeiros. Para Antero de Brito, com pouco dinheiro seria possível trabalhar com nacionais fazendo-os
ainda enfrentar a ferocidade dos índios e pouco a pouco associá-los aos trabalhadores nacionais e ao
mesmo tempo povoando o interior. Mas esta matemática não parecia tão simples em virtude dos
interesses de negociantes na imigração.
Se os proletários foram explorados em seus países de origem sua situação não melhorou em outros
lugares, mas aqui há ainda uma questão a tratar: qual a relação entre operários e intelectuais com o perfil
que analisamos e trabalhadores locais, incluindo-se aqui os escravos? Esta pergunta é difícil de responder
ainda para a primeira metade do século XIX, mas acredito que respostas consistentes virão com o esforço
de exploração das fontes dentro desta cronologia, bem como pelo olhar renovado que hoje podemos
lançar sobre elas. Nas últimas décadas, sobretudo, em que os estudos de E. P. Thompson favoreceram
uma compreensão do conceito de classe mais dinâmica, elástica e calçada na experiência, abriu-se um
campo para a historiografia: a possibilidade de lançar um novo olhar sobre o trabalho escravo. De fato, de
muitas maneiras poderíamos estabelecer pontes entre trabalho escravo e trabalho livre, mas este é um
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terreno que permite também marcar diferenças essenciais. Neste artigo, como já adiantei, não pretendo
responder definitivamente a estas questões que exigem ainda maiores estudos, porém vou apontar as
direções de pesquisa que tenho procurado.
Inicialmente, os operários viajantes mostravam-se dispostos a uma integração com os
trabalhadores de outros lugares. Na literatura analisada aqui aparecem elogios à organização produtiva e
social das comunidades indígenas da América do sul, como em Louise Bachelet e, para o caso do Brasil,
Benoit Mure teria observado encantado como os caboclos catarinenses realizavam o puxirão, algo que o
doutor entendeu como sendo uma prática natural e até espontânea dos princípios do fourierismo (o
associacionismo) aplicados por gente simples (primitiva?). Do ponto de vista teórico, os intelectuais
fourieristas dedicaram estudos à crítica da escravidão e mesmo chegaram a envolver-se nos debates
parlamentares da época sobre a abolição da escravidão nas colônias francesas com a proposição de
projetos associacionistas com inclusão de escravos. Apesar de Fourier não tratar em separado do
problema do trabalhador escravo, pois considerava a todos nós, sobretudo as mulheres e crianças, como
escravos da Civilização, de toda a maneira a sua perspectiva foi a da abolição da escravidão, considerado
por ele um costume hediondo que remonta à antiguidade clássica, pelo menos. Entretanto, Fourier e os
fourieristas acreditavam que tendo o escravo sido colocado à margem da sociedade, sendo a ele atribuídos
os trabalhos de bárbaros, seria preciso prepará-los para o ingresso na condição de trabalhador livre do que
dependeria sua própria sobrevivência física e moral. Seria preciso ensinar a estes trabalhadores as
habilidades dos trabalhadores livres, então aqui já nos deparamos com uma questão: o trabalho livre
branco implica na inserção das tradições do ofício, num percurso para se atingir o conhecimento e num
orgulho pelo trabalho e pelo produto gerado. Neste caso, não haveria da parte do trabalhador livre uma
tendência a ver-se como superior na relação com o escravo? Claro que pelo que analisamos neste artigo
pareceu bem evidente a disposição dos trabalhadores europeus aliarem-se aos nacionais, mas isto apenas
excluiria estas barreiras? O ex-cabetista Truquin, por exemplo, mostrava-se surpreso com certas
diferenças como o fato de que “falar em trabalho para os gaúchos é perder seu tempo” . Este carvoeiro
comenta ainda sobre o trabalho dos coolies chineses no Perú tratados como cativos pelos proprietários,
mas na realidade vivendo uma situação muito pior que a dos escravos porque, uma vez que os contratos
não vão além de nove anos, os proprietários não têm o mesmo interesse que o antigo plantador em manter
a saúde destes trabalhadores preocupando-se apenas em extrair deles o máximo de trabalho em menor
tempo possível. Sobre isto podemos dizer que o proletariado europeu vivendo no limite da sobrevivência
e experimentando jornadas de trabalho comparáveis a de escravos, tem sua situação comparável a deles
neste sentido Na tentativa ainda de cercarmos um pouco o assunto da relação entre não escravos e
escravos, mencionamos as ações de Benoit Mure no sentido de proteger a vida dos escravos no Rio de
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Janeiro fornecendo tratamento homeopático, ou propondo a substituição do trabalho escravo nos campos
pela utilização de máquinas. Naquele momento, os sansimoneanos e os fourieristas acreditavam que a
tecnologia seria capaz de libertar a humanidade de todo trabalho extenuante, enfim, que seria possível
uma vida melhor com apoio das máquinas para execução de trabalhos mais penosos e para emprego em
transporte a favorecer a ligação dos continentes e da humanidade.
Algumas impressões sobre a relação trabalho livre/trabalho escravo no Brasil ainda foram
reveladas por um cônsul francês em correspondência a seus superiores na França. Dizia ele que diante das
primeiras dificuldades encontradas no Brasil, os estrangeiros como primeira medida juntavam economias
com o objetivo da compra de um escravo e que mesmo na condição de branco pobre um indivíduo era
incapaz de atravessar a rua carregando um pacote, temendo a perda do status de livre na opinião alheia e
portanto preferia pagar a um negro para fazê-lo. Em suma, no século XIX o mundo do trabalho branco é
também um mundo hierarquizado e se um aprendiz ou jornaleiro não se dirige a um mestre em posição de
igualdade, ou um mestre mais considerado desdenha um outro mestre considerado inferior, esta cultura
não se reproduziria também na escala do trabalho livre e do trabalho escravo?
Aqui ficam algumas questões como inspiração para novos estudos e que muito tem a ver com uma
história do trabalho em sentido global. Afinal, talvez nem fosse possível colocarmos estas perguntas sem
admitirmos que os “viajantes de novo tipo” buscaram estas conexões seja da abolição da escravidão
propriamente dita, seja da escravidão do que chamavam de uma “feudalidade industrial”.
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FAMÍLIA E TRABALHO A DOMICÍLIO NO SETOR DE CONFECÇÃO DE TORITAMA-PE
Jéssica Lôbo Sobreira
Resumo: As mudanças que vem ocorrendo no cenário global e em especial no mundo do trabalho, com o processo de
reestruturação produtiva, não atingem só o plano macro da realidade, mas manifestam-se também no nível mais micro da
sociedade, ou seja, nas unidades familiares, provocando mudanças na inserção de diferentes componentes da família no
mercado de trabalho e, possivelmente, interferindo nas suas subjetividades. Com a reestruturação produtiva, grande parte das
empresas promoveram descentralização da produção e antigas modalidades acabaram sendo recriadas, como o caso do trabalho
domiciliar. Um exemplo emblemático consiste no setor têxtil brasileiro, em especial, no ramo de confecções de jeans no
município de Toritama -PE. A referida cidade notabilizou-se por apresentar indicadores de desocupação muito baixos,
conjugada com elevadíssima informalidade (considerando o aspecto jurídico do termo) e severos problemas ambientais.
Procura-se ver quais são os deslocamentos de papeis e/ou atribuições, a ressignificação dos vínculos familiares e as possíveis
transformações nas subjetividades dos sujeitos envolvidos no trabalho domiciliar neste setor.
Palavras-chave: Trabalho a domicílio. Família. Reestruturação produtiva.
Introdução
Após a década de 1990, com a abertura do mercado nacional, somado à nova ordem ditada pelo
capital mundializado, sérias consequências se impuseram ao mundo do trabalho, afetando diretamente a
vida dos trabalhadores. A informalidade, neste contexto, comparece como mais um elemento que reforça
os altos índices de precarização do trabalho no Brasil. Ao lado do desemprego, a reestruturação produtiva
capitalista gera um número enorme de trabalhadores que são obrigados a se sujeitarem a condições cada
vez mais precárias, com baixos salários, péssimas condições de trabalho, perda de direitos trabalhistas,
extensão da jornada de trabalho etc.
Dessa maneira, tanto nos países centrais quanto no Brasil, a classe trabalhadora vem sofrendo
profundas mutações. Há, então, um movimento pendular que caracteriza a classe trabalhadora: por um
lado, cada vez menos homens e mulheres trabalham muito, em ritmo e intensidade que se assemelham à
fase pretérita do capitalismo, na gênese da Revolução Industrial, configurando uma redução do trabalho
estável, herança da fase industrial que conformou o capitalismo do século XX. Porém, sabe-se que os
capitais não podem eliminar completamente o trabalho vivo, conseguem reduzi-lo em várias áreas e
ampliá-lo em outras, como se vê pela crescente apropriação da dimensão cognitiva do trabalho. Aqui
encontramos, então, o traço de perenidade do trabalho (Antunes, 2005).
Assim, o objetivo desta pesquisa consiste em realizar uma reflexão sobre as novas dinâmicas e
sentidos atuais da informalidade nas relações de trabalho, sob a perspectiva da globalização, a partir do
estudo do Pólo de Confecções do Agreste de Pernambuco, produzindo uma reflexão sobre o fenômeno da
nova informalidade e suas implicações na periferia do capitalismo. Para o alcance do referido objetivo, a
estratégia metodológica adotada consistiu, inicialmente, de pesquisa bibliográfica (em Universidades e
Instituições de pesquisa e de planejamento, públicas e privadas da região), particularmente sobre as
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mudanças que atualmente vêm ocorrendo no mundo do trabalho, no Brasil e no mundo, com foco no
fenômeno da nova informalidade. Mais particularmente, sobre a organização produtiva e do trabalho
desenvolvido historicamente no Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, com foco na questão da
informalidade, nas suas versões velha e nova.
1. Modelo Fordista, Acumulação Flexível, Precarização do Trabalho
O trabalho é ainda par maioria das pessoas, a única fonte de recursos com que produzem ou
adquirem os bens e serviços que consomem para viver e manter seus dependentes. O aspecto mais antihumano dos processos de trabalho, produtivos ou improdutivos, segundo as conceituações propostas por
Marx, diz respeito às diversas violências que intranquilizam, ferem e matam as pessoas e outros seres
vivos que deles participam ou sofrem efeitos a ele associados.
Há pouco mais de um século, no Brasil, saímos de um cenário onde o trabalho era escravo para
um capitalismo tosco. A vida do escravo era um privilégio concedido pelo senhor. A violência
escravocrata rural cede progressivamente espaço a padrões civilizatórios urbanos, mas a vida do
trabalhador assalariado é insegura, e as condições de trabalho muitas vezes insalubre. Os processos de
trabalho na produção de serviços e bens complexos podem ainda gerar problemas em uma explosão
combinatória. As condições de vida podem ser agressivas, expondo as pessoas a: risco s de violência
criminosa nos locais aonde moram ou no trajeto casa-trabalho e escola-trabalho; escassez de bens e
serviços básicos, como alimentos, água potável, saneamento; e a violência social como insegurança
alimentar e restrições ao direito de ir e vir.
A permanência nos locais de trabalho com riscos mais controlados pode corresponder não só há
uma redução de algumas das inseguranças (o salário permite a compra de alimentos) como, dada alguma
referência positiva, propiciada alguma referência positiva, propiciar a emergência de relações individuais
e coletivas, com e através do trabalho, próprias do mundo do trabalho, não alcançáveis para as pessoas
que do trabalho só conhecem o produto que consomem. Ou seja, ao lado das muitas referências negativas,
tal como o senso de pertencimento profissional, associados as atividades cotidianas em micro, pequenas,
médias ou grandes organizações. O trabalho representa a força motriz que permite a sobrevivência, e seu
colapso tende a aumentar a criminalidade.
A preocupação com o meio industrial no Brasil surge na década de 1930, despontando também
nesse período, além da preocupação com a regulamentação do trabalho, a necessidade de ampliar o
trabalho assalariado através de instituições de qualificação de mão de obra, para que garantissem a nova
forma de produção que se colocava no processo de industrialização (DRUCK, 1999).
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Com a consolidação de um padrão fordista incompleto, precário e tardio, o capitalismo
industrial leva o Brasil à modernização, dentro de um contexto estatal forte e centralizado cujo ápice se
deu com o regime ditador e autoritário de 1964. Vale salientar que neste momento, junto a modernização
brasileira, a exclusão social se constitui no país, que por sua vez promoveu a integração de “amplas
massas ao mercado de trabalho e consumo”. Deste modo, o assalariamento no Brasil diferencia-se dos
países capitalistas desenvolvidos, constituindo-se como um tipo singular de mercado de trabalho
(DRUCK, 1999).
Neste contexto de industrialização, começa a se definir forçosamente uma divisão regional do
trabalho, onde ciclos capitalistas dão origem a um movimento de concentração e centralização do capital,
focalizado na região Sudeste, comandado pelo Estado de São Paulo. Deste modo, ainda segundo o autor,
o ciclo toma espacialmente a forma de destruição das economias regionais que destrói para concentrar, e
capta o excedente das outras regiões para centralizar o capital. Como resultado da economia estabelecida,
há aumento das diferenças regionais de crescimento, onde não se conforma a questão da estagnação
regional, mas sim uma nova forma de crescimento do capital (OLIVEIRA, 1987).
O tema da precarização do trabalho ganhou destaque no Brasil, especialmente a partir da década
de 90, associado às transformações do sistema capitalista em nível internacional e à maior inserção do
País na economia globalizada, tendo em vista os impactos advindos de tais processos sobre a população
trabalhadora. As mutações em curso adquirem relevância à medida que vêm remodelando as formas de
produzir e os modos de organizar o trabalho, reordenando as relações sociais constituídas nesse âmbito,
cujas consequências têm conduzido, preponderantemente, a situações desfavoráveis para os trabalhadores.
Todavia, os impactos sobre os trabalhadores não seguiram uma direção linear, podendo-se afirmar
que, enquanto análises sobre a década de 90 apontam a precarização do trabalho como a marca
prevalente, estudos respaldados em informações sobre o mercado de trabalho nos anos 2000 indicam um
cenário com evolução mais promissora, sugerindo que a precarização tenha sido um processo mais
circunscrito à década anterior.
No plano internacional, as transformações que se vêm processando no sistema capitalista, erigidas
em termos de alternativas de enfrentamento à crise instalada nas economias avançadas, notadamente a
partir do último quartel do século XX, têm acarretado profundas mudanças, associadas à globalização e
aos novos padrões competitivos em escala internacional e, em sua dimensão propriamente política, à
adoção de políticas de cunho neoliberal, propagando fortes movimentos de reestruturação produtiva e de
novas formas de organização e gestão do trabalho. Como desdobramentos, questiona-se o caráter do
Estado de Bem-Estar Social o qual, notadamente no pós-Segunda Guerra, previa proteções contra os
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riscos da existência social, através de regulação pública dos mecanismos de mercado (Castel, 1998;
Pochmann, 2001; Mattoso, 1995).
A crescente heterogeneidade do trabalho e a precarização das relações de trabalho, que se ampliam
em escala mundial, manifestas tanto pela elevação do desemprego aberto quanto através da redução
relativa ou absoluta de empregos estáveis ou permanentes nas empresas e da expansão de formas
alternativas de trabalho – consideradas atípicas frente ao padrão assalariado – têm provocado uma
crescente “desordem do trabalho”, face às regulações precedentes (Mattoso, 1995). Em decorrência, a
proteção ao trabalhador é reduzida e ampliam-se inseguranças sociais.
Conforme Druck (1999), já na década de 60, o modelo fordista dá sinais de crise nos Estados
Unidos, indicada pela queda no ritmo de crescimento da produtividade, atrelado a isso, teve-se perda de
competitividade no mercado. De acordo com Harvey (1999), o ano de 1975 foi a data marco para a
instauração definitiva desse processo de crise do regime de produção fordista e a ascensão do regime
flexível. Para o autor, a acumulação flexível é “... marcada por um confronto direto com a rigidez do
fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos
e padrões de consumo”(Harvey, 1999, p.40). Formam-se novos padrões de produção e gestão, não
necessariamente excluindo os regimes anteriores, mas apenas assumindo novas feições.
Essa nova forma de organização do trabalho termina por implicar, segundo Harvey (1999), em
níveis altos de desemprego estrutural, rápida destruição e reconstrução de habilidades e o retrocesso do
poder sindical – uma das colunas políticas do fordismo. Esse novo regime, portanto, instaurou a
possibilidade de uma intensa precarização do trabalho, haja vista que os sindicatos se enfraqueceram,
houve uma redefinição dos contratos de trabalho com a inclusão do trabalho em tempo parcial,
temporário e subcontratado, horas extras, crescimento de atividades informais; enfim, observa-se, com
esse regime flexível, uma redefinição radical das condições de trabalho.
Esse regime flexível é denominado de “toyotismo” ou “ohnismo”, de Ohno, engenheiro que o
implantou na fábrica Toyota, e se expressou amplamente no Japão pós-45, mas que se espalhou pelo
mundo. “O sistema industrial japonês, a partir dos anos 70, teve grande impacto no mundo ocidental,
quando se mostrou para os países avançados como uma opção possível para a superação capitalista da
crise” (Antunes, 1999, pág.54). O toyotismo penetra, mescla-se ou mesmo substitui o padrão fordista
dominante, em várias partes do capitalismo globalizado. Vivem-se formas transitórias de produção, cujos
desdobramentos são também agudos, no que diz respeito aos direitos do trabalho. Estes são
desregulamentados, são flexibilizados, de modo a dotar o capital do instrumental necessário para adequarse a sua nova fase. Direitos e conquistas históricas dos trabalhadores são substituídos e eliminados do
mundo da produção. (Antunes, 1997, pág.16).
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Esse regime flexível solapou a forma de produção organizada e o padrão único de produção. Na
verdade, ele possibilita a confluência de trabalhos alternativos “... lado a lado, no mesmo espaço, de uma
maneira que permita que os empreendedores capitalistas escolham à vontade entre eles. O mesmo molde
de camisa pode ser produzido por fábricas de larga escala na Índia, pelo sistema cooperativo da ‘Terceira
Itália’, por exploradores em Nova Iorque e Londres ou por sistemas de trabalho familiar em Hong Kong.”
(Harvey, 1999, pág.175). Além disso, o toyotismo permite uma produção atrelada a demanda, ou seja,
hábil a mudar o produto a depender do mercado, a produzir mais ou menos, sem crises de produção, além
de uma rápida substituição de trabalhadores. Pode-se, por exemplo, importar toda a mão de obra, deslocar
toda uma produção de um país para outro e, principalmente, com a terceirização, pode-se diminuir os
custos com a especialização de mão de obra e com os encargos sociais. Por fim, exige-se nesse modelo
trabalhadores multifuncionais, polivalentes, flexíveis, que são colocados em uma situação de vida
flexível, propícia a mudar de função e de localidade em um piscar de olhos.
2. O setor de confecções do agreste pernambucano e os impasses da subcontratação
O Pólo de confecções se desenvolveu na Mesorregião do Agreste Pernambucano, área de transição
entre a Mata úmida e o Sertão semi-árido, possuindo três municípios que se destacam na atividade. Entre
eles: Caruaru, situado na Microrregião do Vale do Ipojuca, a 136 km da Capital do Estado, às margens da
BR-232, e os municípios de Santa Cruz do Capibaribe, que dista 180 km da capital e Toritama, a 167 km,
situados na Microrregião do Capibaribe.
A indústria da sulanca constitui um caso particularmente interessante do processo de
industrialização do Nordeste, pelo seu caráter espontâneo, baseado fortemente por relações de trabalho
informais e que surgiu no auge – e à margem - da política de incentivo oficial à indústria proporcionado
pela SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste).
A “sulanca” se constitui inicialmente na confecção de simples cobertas, colchas e tapetes; no
decorrer passou a confeccionar roupas para crianças e roupas rústicas para o trabalho no campo,
posteriormente passando de confecções de roupas populares para confecções com maior qualidade,
chegando a se igualar a outros produtos do gênero no mercado. A atividade se expandiu, alcançando
atualmente o comércio e o fabrico de tecidos. A sulanca significa hoje, por extensão, todos os tecidos e
confecções fabricados e ou comercializados na região de Santa Cruz do Capibaribe, ou produzidos nas
mediações onde se espalhou a produção de confecções - seguindo o modelo santa-cruzense - constituindo
o Pólo como destacado circuito de confecções em Pernambuco.
Destaca-se a “sulanca” pela informalidade dominante, por suas vendas no atacado e por ter preços
reduzidos (em grosso ou no varejo). A atividade cresceu e com ela a chance de ganhar dinheiro. Novos
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comerciantes aderiram ao ramo e passaram a fabricar roupas, vendidas para revenda a preço reduzido.
Numerosos revendedores levavam o produto para outros estados (em especial, interior baiano e
maranhense) e para regiões da zona canavieira nordestina. A maioria dos habitantes da cidade, inclusive
os pertencentes a distritos e a zona rural, trabalham na confecção de roupas e no comércio de tecidos. É
um artesanato que avança muito com a instalação de indústrias de maior porte. Em média, são feitas umas
500 mil peças de vestuário por mês.
Segundo o Sindvest-PE (Sindicato das Indústrias de Confecções e Vestuário de Pernambuco), o
estado é o “segundo maior produtor de confecções do Brasil, estando atrás apenas do estado de São
Paulo”. Porém, na geração de empregos diretos para esta atividade, o Pernambuco fica atrás de estados
como: Ceará, Santa Catarina e Rio de Janeiro, além de São Paulo. O argumento, entretanto, seria que o
nível de informalidade na indústria de confecções é estimado como “o maior do país”.
O setor têxtil, incluindo confecções e vestuário, possui grande relevância dentro da economia
internacional, nacional e regional, sendo forte gerador de empregos. Tradicionalmente, o setor têxtil
auxiliou no processo de industrialização de inúmeros países. SACHS (2005) mostra que investir no setor
de confecções é hoje uma forma através da qual as nações mergulhadas numa situação de miséria
absoluta podem conseguir “pisar” no primeiro degrau na escada do desenvolvimento, ao citar o caso de
Bangladesh. Foi o setor têxtil o impulsionador da revolução industrial inglesa dos séculos XVIII e XIX.
No Brasil não foi diferente, tendo sido a indústria têxtil de grande importância já desde antes da década de
50.
Segundo o SEBRAE/SP (2001, p. 26), “Apesar do setor de confecção está voltado praticamente
apenas ao mercado interno (cerca de 90% das vendas), o agregado dos confeccionados vem liderando as
exportações da cadeia têxtil nos últimos anos, representando 43,3% do total em 1994 e 36,5% em 1995 e
1996”. A indústria de confecções nordestina é caracterizada pela diversidade de escala, onde participam
empresas micro, pequenas, médias e grandes, embora a participação das micro e pequenas empresas na
estrutura industrial da região sejam predominantes.
O Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano é composto pelas cidades de Caruaru, Santa
Cruz do Capibaribe, Toritama e Pão de Açúcar (distrito de Taquaritinga do Norte). Atualmente, Caruaru
destaca-se como segunda cidade do estado fora da região metropolitana do Recife e entreposto entre a
capital e o sertão. Com uma população, segundo dados do IBGE (2007), de 294.558 habitantes, e uma
economia formal mais diversificada (em relação às outras cidades do entorno), se notabilizou pela feira
livre, localizada no centro da cidade, que além dos produtos alimentícios reproduziu a experiência da
venda de confecções, tal como Santa Cruz do Capibaribe. Esta se destaca como a terceira maior cidade
da Agreste Pernambucano com população de 73.680 habitantes segundo IBGE 2007. A atividade
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econômica principal é a produção e comercialização de confecções. Conhecida como a Capital da
Sulanca, possui um parque de confecções, o Moda Center Santa Cruz, inaugurado em outubro de 2006
para abrigar de modo permanente, a feira da sulanca, que antes funcionava no centro da cidade. Tal
estrutura conta com 80 mil m² de área coberta, 6.208 boxes de feira e 528 lojas, dormitórios com dois mil
leitos e estacionamento para mais de 3.000 veículos.
A cidade de Toritama localizada no Agreste Pernambucano fica a 167 Km de Recife. Mesmo
sendo o menor município de Pernambuco, com apenas 34,8 Km², a cidade é fornecedora do produto
jeans, o que faz com que seja conhecida como a capital do jeans - atrai compradores e lojistas de várias
cidades da região e de outros estados. Segundo IBGE (2000) a cidade tem cerca de 21.800 habitantes,
sendo até a década de 30, produtora de calçados, desaparecendo quase por completo no final dos anos 80
em função basicamente da escassez da matéria prima, iniciando daí a migração para indústrias de
confecções. A intenção, ou mesmo, a opção pelo Jeans segundo o SEBRAE (2003, p.1) “foi para criar um
nicho de negócios, sem concorrência com as cidades vizinhas”, como por exemplo Santa Cruz do
Capibaribe e Caruaru.
Juntas, essas cidades configuram o que vem sendo denominado de Pólo de Confecções do Agreste
Pernambucano para onde confluem semanalmente de 200 a 400 ônibus vindos dos estados do Norte e
Nordeste do país (LIMA & SOARES, 2002). Apesar das dificuldades estatísticas em mensurar a
dimensão de tal realidade, conforme dados de 2007, estima-se que o Pólo seja formado por quase 8.000
micro e pequenas empresas, principalmente familiares, com cerca de 76.000 trabalhadores empregados no
setor. Cerca de 7.000 empreendimentos são informais, todas envolvidos na produção e comercialização
de confecções de roupas (masculina, feminina e infantil), tais como, calças, bermudas, saias, shorts,
camisas, vestidos e lingerie, e que são fabricados em diversos materiais (jeans, malhas de algodão e
sintéticos, brim, etc.) (CEDES, 2007).
Estima-se que cerca de 60% das empresas produtoras de confecção do Nordeste sejam
microunidades e somando-se às micro as pequenas avalia-se em 90% a participação desse subconjunto no
total da indústria em questão (ABRAVEST).
Levando em consideração a crescente tendência à subcontratação, nessa indústria, verificada nos
últimos anos, torna-se complexo identificar o real tamanho das empresas tomando como referência o
número de empregados. Ao contrário dos anos 70 e 80, quando o crescimento do emprego industrial girou
em torno das grandes metrópoles, hoje são as cidades de pequeno e médio portes que fazem a diferença,
principalmente devido os ramos de confecções, calçados e móveis que constituem-se como os mais
centros mais intensivos na geração de emprego formal nos municípios do interior na qual as indústrias
migram para o interior atraídas pela mão de obra barata e pela política dos incentivos fiscais.
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Segundo o SINDVEST, há “uma movimentação no setor de R$ 1,73 bilhões por ano, geração de 77 mil
empregos diretos e indiretos e 12.000 empresas formais e informais”. No entanto o que prevalece é a
informalidade com 90% deste percentual. A região do Agreste se consolida, então, com 73% da produção
de confecções, de todo o Estado de Pernambuco, com 850 milhões de peças ao ano.
A forma de organização do processo produtivo é, para a grande maioria (73,5%) das empresas
formais, “por processo” enquanto apenas 44,1% das informais estão organizadas desta forma. Os locais
frequentemente utilizados para compras de tecidos, aviamentos e equipamentos se localizam no Pólo
como um todo, pois mais de 95% das empresas informais compram nos distribuidores localizados no
agreste de Pernambuco, enquanto para as empresas formais este percentual é de 71,2% na compra de
tecidos, 89,4% na compra de aviamentos e 89,2% na de equipamentos. É bom destacar que 24,7% das
empresas formais de Caruaru e 20,4% das formais de Santa Cruz do Capibaribe compram tecidos
diretamente da fábrica.
Conforme Raposo e Gomes (2003), inicialmente identificou-se quais empresas tinham atividade
de comercialização, que resultou na identificação de que 95,1% das empresas formais e 72,6% das
informais exercem atividades de venda, sendo destacada como diferente a realidade de Toritama
especialmente no segmento informal, onde apenas 58,7% das empresas exercem a atividade referida. As
vendas das confecções produzidas nos municípios de Caruaru, Santa Cruz do Capibaribe e Toritama são
efetuadas de diversas formas, destacando-se: “a venda direta pelos proprietários”, em mais de 90% das
empresas informais, em cada um dos municípios e num percentual em torno de 75%, nas empresas
formais; a venda através de “revendedores” é um procedimento utilizado por cerca de 16% dos
empresários informais. O escoamento da produção encontra-se representado nos diagramas a seguir, os
quais demonstram o fundamental papel desempenhado pelas feiras locais, principalmente no tocante as
empresas informais.
Diagrama: Destino das confecções produzidas pelas empresas formais
Fonte: RAPOSO e GOMES (2003)
Os empresários quando questionados sobre que outras praças, fora do pólo do agreste
pernambucano têm maior potencial de vendas, indicaram os Estados do Norte e Nordeste do Brasil num
percentual de 65,2%, Estados do Norte foram indicados apenas por 17% dos empresários formais de
Toritama. Visto que 90% das indústrias da região são micro empresas familiares, que não têm consciência
da concorrência internacional no setor de vestuário, diante deste fato, selecionamos empresas associadas a
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
entidades representativas da indústria do APL, para isso procuramos a ASCAP (Associação dos
Confeccionistas de Santa Cruz do Capibaribe), a ACIT ( Associação Comercial e Industrial de Toritama)
e a ACIC (Associação Comercial e Industrial de Caruaru), bem como o SEBRAE. Diante da lista de
opções, decidimos fazer um estudo de caso com cinco empresas representativas, no qual se está menos
preocupado com a geração de grandes amostras representativas de uma dada população, mas sim se
prioriza o estudo profundo de algumas situações típicas. O interesse é conhecer o inter-relacionamento
entre as diversas variáveis que ocasionam um fenômeno.
3. Considerações Finais
A pesquisa realizada no setor de confecção do agreste pernambucano mostrou que, em sua
maioria, as empresas de pequeno e médio porte, iniciaram um processo de reestruturação de caráter
defensivo baseado fundamentalmente na subcontratação e no uso do trabalho a domicílio como estratégia
central de competitividade e sobrevivência.
Os resultados desta pesquisa sugerem que, no setor de confecção, o porte da empresa, o tipo de
mercado a que ela destina seus produtos e sua posição na cadeia de subcontratação constituem variáveis
que condicionam o grau de conhecimento e de adoção dos novos métodos de gestão. Esta pesquisa nos
permitiu identificar neste setor duas modalidades de relação de subcontratação.
Na primeira, uma forma de subcontratação quase completa, para a fabricação grande parte da peça
(na maioria dos casos, a calça jeans ou o shorts ou então o setor de camisaria), realizada através de
contrato misto (formal e grande parte informal). A segunda modalidade, envolvendo uma rede de
pequenas facções (trabalhadores a domicílio, que trabalham em produção familiar na própria casa,
geralmente na garagem ou na sala) visando à redução de custos através da transferência dos gastos de
produção e com a mão de obra para as subcontratadas.
Devido a isso, observa-se elementos centrais no processo de reestruturação do setor são os baixos
salários, a intensificação do ritmo de trabalho e a extensão da jornada. Potencializados pela presença
maciça da mão de obra feminina, eles asseguram o aumento da produtividade e da lucratividade em toda a
rede de subcontratação.
Por fim, é a partir deste contexto de formação deste arranjo produtivo, que buscamos captar,
diante da diversidade conceitual da temática da informalidade, a apreensão dos sentidos e práticas da
informalidade nestas particularidades econômicas, sociais, históricas e geográficas assumida por esse
experimento coletivo caracterizado como Pólo de confecções do Agreste Pernambucano.
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TRABALHADORES RURAIS DO VALE DO RIO DOCE: NEGOCIAÇÃO E RESISTÊNCIA NA
DÉCADA DE 1950
Michelle Nunes de Morais*
Apresentação
Este trabalho faz parte da discussão sobre negociação e resistência desenvolvida em uma dissertação de
mestrado em andamento na PPGHIS-UnB. Nossa proposta é apresentar as formas de resistência que os
Trabalhadores Rurais em Governador Valadares, no médio Rio Doce, buscaram durante o processo de
expropriação que vinham sofrendo na década de 1950. As formas de resistência destes trabalhadores
podem ser vista como uma cultura política.
A resistência como cultura política
No decorrer da década de 1950 os trabalhadores rurais de Governador Valadares, que vinham
sendo expulsos de suas posses em benefício do latifúndio, buscaram resistir à mesma. Maria Elisa
Linhares Borges (1988, p. 215) diz que a resistência neste período não tinha carácter político, ou seja, não
eram ações políticas organizadas, mas ações de natureza individual. Porém, não concordamos com a
autora, pois fazemos uma leitura de que nesta resistência vê-se uma cultura política. Respaldamo-nos em
Thompson (2010), que diz que estes movimentos de resistência mesmo não tendo uma formação de
classe, são sim conflitos de classe, pois são conflitos de interesses de classes, assim como, em Olinda
Maria Noronha (1986, p. 65) para quem as demandas dos trabalhadores, embora encaminhadas
individualmente, representam os interesses de todo o grupo, o que faz da causa de um, uma causa de
todos.
Segundo Thompson (2010) nas revoltas, ou resistências, se vê o surgimento de uma cultura
política, ou seja, o incipiente surgimento de uma consciência e formação de classe no qual “os fragmentos
residuais das antigas estruturas são revividos e reintegrados no âmbito dessa consciência de classe
emergente” (p. 21). Para ele embora ainda não haja uma classe, está se encaminhando para a formação da
mesma, por isso trabalha com revoltas de classe sem classe, pois, as diferentes formas de revoltas
manifestam uma ação coordenada do grupo (THOMPSON, 1989).
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Olinda Maria Noronha (1986), estudando as trabalhadoras inseridas na cultura de cana no interior
de Minas, observa que no processo de exclusão e opressão que os trabalhadores são submetidos há um
processo de aprendizagem da resistência. E este processo
pode levar a uma aprendizagem de classe. Isso porque entendemos que as relações de
expropriação do saber, de apropriação de um saber novo, engendrado nas relações de
trabalho assalariado, e de resistência dão-se de maneira articulada no interior de um
mesmo processo: o social. (p. 126)
Para a autora ao se submeter às novas regras do capital os trabalhadores irão instrumentalizar
novas habilidades, criando um contra saber, assim como, “termina-se por criar a possibilidade de
transgressão desse código, ou seja, há a formação de estratégias de resistência e de consciência de classe”
(idem, p. 126). Denunciar a violência, as condições degradantes a que são submetidos, entre outros,
representa que os trabalhadores conquistaram um nível de consciência da realidade.
Sendo assim, acreditamos que os posseiros – transformados em trabalhadores rurais pela
expropriação - ao tomarem a iniciativa de procurar a justiça para reclamar direitos, denunciando a
violência com que estão sendo expulsos de suas posses, estão “de alguma forma, resistindo e, ao ir atrás
de seus direitos, estará se reconhecendo como sujeito de direitos” (ibidem, p. 128). Por conseguinte, a
demanda individual torna-se coletiva ao se observar que a reclamação de um se confunde com os
interesses de todo o grupo, mesmo talvez não havendo uma organização intencional dos trabalhadores
(ibidem, p. 205).
Trabalhadores rurais e suas formas de resistência
A primeira forma de resistência que podemos identificar entre os trabalhadores do Vale do Rio
Doce é a parceria/meação. Para Antônio Candido (1964) a parceria/meação é a forma encontrada pelos
posseiros e pequenos sitiantes de manterem sua dignidade humana, pois ela é a forma de relação que mais
se assemelha as formas de relação de subsistência do posseiro. “Apegar-se à parceira significa, para quem
não pode mais ser sitiante, preservar o próprio respeito o conceito social e a possibilidade de manter a
tradição da cultura – isto é, preservar os elementos que equilibram o grupo” (CANDIDO, 1964, p. 163).
Caio Prado Junior via que o regime de parceria/meação era uma etapa viável para uma possível
reforma agrária, pois os trabalhadores deste regime tinham melhores condições de vida e trabalho, assim
como a possibilidade (futura) de se tornarem proprietários de fato. Ele considerava que a meação deveria
ser incluída na discussão da reforma agrária (PRADO JR., 1981, p. 69-70).
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Porém, Margarida Maria Moura (1988) alega que a transmutação do posseiro (ocupante de fato) em
parceiro e assalariado transforma pobres em miseráveis.
O que ocorre nessa sociedade agrária é a passagem dos pobres a miseráveis: os que
pertenciam a uma condição social desvalida, mas tinham terra para plantar e morar, ainda
que submetidos a distintas formas de dominação e exploração, são hoje em grande
número vaqueiros sem chão para plantar, peões de empresas reflorestadora, diaristas e
empreiteiros de semeaduras e grandes capinas de pastos. (MOURA, 1988, p. 198)
Carlo Castaldi (1957, p. 61) observa que na região do Vale do Rio Doce a inserção dos
trabalhadores na parceria era estabelecida por um contrato de dois anos, no qual no primeiro ano
deveriam derrubar a mata, sem pagar nada ao patrão. Esse primeiro estágio, com a chegada da frente
pioneira, absorveu bastante mão-de-obra, na derrubada da mata e fabricação de carvão vegetal para
abastecer os autos fornos da Belgo Mineira e Acesita. Por conseguinte, em um segundo estágio, com os
pastos formados, a pecuária de invernada absorve baixa mão-de-obra, o que levou a expulsão dos
trabalhadores ou para a cidade ou para outras áreas de fronteiras. Alguns trabalhadores conseguiam
continuarem nas fazendas como assalariados, mas, “a fazenda representa um mercado local de mão de
obra, [...] porém, um mercado reduzido e de salários baixíssimos; daí resulta que o lavrador é obrigado a
emigrar” (idem, p. 61).
Para José de Souza Martins (1997) os trabalhadores rurais vítimas de processos sociais
excludentes, que engrossam a mão-de-obra excedente do operariado urbano, não conseguem se incluírem
a cidadania. O autor considera que “essa produção de excedentes populacionais cria uma miséria
profundamente desumanizadora, que não politiza nem anima a possibilidade da revolução social, antes, a
freia. […] Neles não nasce o cidadão” (p. 73). Partindo dessa reflexão conseguimos compreender o
porquê que no Vale do Rio Doce os Trabalhadores Rurais não eram considerados cidadãos, mas,
marginais sociais. “A expulsão do campo não cria o cidadão. O esmoleiro não é um cidadão. A pessoa
que vive marginalmente em relação às oportunidades econômicas tem escassa e limitada possibilidade de
se tornar cidadã” (p. 73).
Essa marginalidade advém dos processos de exclusão social, que geram os incompetentes sociais.
Para Marilena Chauí (1989) a Massa é negada “o acesso ao 'moderno, pois, se tal ocorresse, os
'subalternos' estariam pondo em questão a viga-mestra da 'modernidade', isto é, a divisão social entre
competentes e incompetentes” (p. 34). Para Chauí (2002, p. 338) a divisão da sociedade brasileira entre
competentes e incompetentes é fruto de um autoritarismo social no qual os competentes são oriundos da
classe dominante, e por isso legislam em interesses próprios e não em prol dos interesses coletivos
(universais). Em função desse autoritarismo social, centrado na desigualdade, que opõe as carências da
massa e os interesses das elites, vê-se que “os interesses, por não se transformarem em direitos, tornam-se
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privilégios de alguns, de sorte que a polarização social se efetua entre os despossuídos (carentes) e os
privilégios” (ibidem, 338).
A sociedade centrada nesta divisão - carências e privilégios - ao promover a reinclusão dos
trabalhadores rurais excluídos do acesso a terra no sistema produtivo, seja urbano (industrial, construção
civil, comercio, entre outros) seja no campo (assalariado rural, vaqueiro, braçal, entre outros) a faz em
condições precárias e marginais, que não possibilita o trabalhador manter sua dignidade humana. Essa
reinclusão é econômica, mas não cidadã, ela
se dá no plano econômico: a pessoa consegue ganhar alguma coisa para sobreviver, mas
não se dá no plano social. A pessoa não se reintegra numa sociabilidade 'normal'. A
reintegração não se dá sem deformações no plano moral; a vítima não consegue se
reincluir na moralidade clássica, baseada na família, num certo tipo de ordem.
(MARTINS, 1997, p. 33)
As meninas do Vale do Rio Doce - quando suas famílias são expulsas da área rural, e por isso migram
para a cidade - que se integram ao plano econômico através da prostituição é um caso de inclusão precária
e marginal (DIÁRIO de Minas, 5/09/1957).
Elas são incluídas como prostitutas, isto é, como pessoas que estão no mercado possível
de uma sociedade excludente que é essa. Elas estão vendendo um serviço, recebendo
dinheiro para sobreviver. Só que se trata de um serviço que lhes compromete a dignidade
e a condição de pessoa. […] Elas se integram economicamente, mas se desintegram
moralmente e socialmente. [...] Já não é o mundo dos pobres, porque as pessoas são
reincluídas economicamente, em vários graus e de diferentes modos, que no fundo
comprometem radicalmente sua condição humana. (MARTINS, 1997, p. 33)
Assim como, os trabalhadores e trabalhadoras que recebem salários miseráveis, que impossibilitam sua
sobrevivência, nas fazendas, na extração de mica, no fabrico de carvão vegetal, na lavagem de roupas e
até mesmo na mendicância, são formas de inserção precária e marginal que os privam da dignidade
humana. Em Governador Valadares a mendicância se tornou um problema social tão grave que entre
1949 a 1960 foram tomadas diversas providências pelo legislativo e executivo visando conter a
mendicância na cidade.
Mas também, nos meios subalternos, dos excluídos, surgem formas de resistências que visam uma
inclusão mais digna da pessoa humana. Segundo Chauí os grupos subalternos podem manifestar formas
resistência mesmo em situação de aceitação e conformismo com a legalidade vigente. Eles podem
simplesmente não aderir ao pensamento dominante sem, no entanto, se rebelar contra ele. “Não se trata de
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um movimento global de revolta para modificar a legislação trabalhista nem a legislação sindical (em
outros casos isto acontecerá, evidentemente), mas de encontrar uma prática que torne impossível a
aplicação da lei e a repressão” (1989, p. 45).
Buscar formas de se inserir no latifúndio como agregado, assalariado, parceiro, entre outros, assim
como buscar o amparo na lei, negando a se retirarem das glebas posseadas por décadas, e se organizarem
em associações e sindicatos, foram formas de negociação e resistências manifestas pelos trabalhadores da
região do vale do Rio Doce.
O caso do Vale do Rio Doce
A industrialização do País a partir da década de 1930, motivado pelo desenvolvimentismo
varguista, incentivou o avanço da fronteira agrícola para áreas ainda não colonizadas. Diversos órgãos
privados e públicos financiaram a expansão das frentes de ocupação, tais como: “o capital comercial e
bancário, através de empresas colonizadoras vinculadas a companhias de estradas de ferro, grupos
econômicos nacionais e estrangeiros e entidades governamentais” (BORGES, B., 1996, p. 39-40).
Segundo Bolsanulfo G. Borges (1996) o estado estabeleceu tanto políticas de industrialização
quanto de colonização, por isso implantou diversas colônias agrárias em todo o país, medida que tinha
como fim incentivar a pequena propriedade. Por conseguinte, as áreas de fronteira inicialmente foram
colonizadas por pequenos proprietários – posseiros que dedicavam a agricultura de subsistência,
posteriormente, com a expansão da fronteira agrícola, para estas áreas migraram o capital agrário, que
implantou uma forma de relação de propriedade privada da terra ainda desconhecida do posseiro. Isto
agravou os conflitos entre posseiros, primeiros ocupantes destas terras, e os grandes proprietários, novos
donos – legais – das mesmas (p. 40-50). O que vemos, então, nestas áreas de fronteiras é o fenômeno da
concentração de terras, e consequentemente a expropriação da frente expansão que por se ver
impossibilitada de manter suas terras através do posseamento são inseridos de maneira precária as novas
formas de trabalho.
Analisando os Censos de 1940 de 1960 podemos ver essa concentração de terra. Em 1940 a área
total de propriedades com mais de 200 hectares correspondia a 60.969 hectares, já em 1960 essa área
correspondia a 125.766 hectares. Embora, neste período, tenha ocorrido o crescimento vertiginoso do
número de propriedades com menos de 50 hectares – em 1940 havia 402 estabelecimentos com menos de
50 hectares e em 1960 esse número era de 926 –, a área total correspondente a estes não acompanhou o
crescimento do número dos estabelecimentos - 1940 a área total correspondia a 14.182 hectares e em
1960 a 22.459 hectares. O crescimento do número de propriedades foi superior ao crescimento da área
ocupada.
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Maria Conceição D’Incão e Melo (1977, p. 45), analisando o caso do Alto Sorocaba considera que
o crescimento no número da pequena propriedade se deu em detrimento da fragmentação da média
propriedade. Isso, também, observamos no caso do Vale do Rio Doce, pois em 1940 havia 340
estabelecimentos com área entre 50 a 200 hectares, em 1960 esse número foi para 366, porém houve um
decréscimo da total ocupada por essas propriedades - em 1940 era de 38.186 hectares sendo que em 1960
esse número declinou para 37.214 hectares. Outro fator que a autora observa nas pequenas propriedades
são os proprietários “que possuem numerosas escrituras de áreas contiguas que compõem a sua
propriedade” (idem, p. 46), ou seja, as pequenas propriedades também seriam parte dos latifúndios.
Esse tipo de concentração fundiária é típico das regiões de fronteira. A expansão da frente
pioneira, que tem como característica a propriedade (posse capitalista e legitima da terra) impossibilita
que a frente de expansão se mantenha. Por isso, os movimentos migratórios para a área urbana são
comuns nestas regiões. Consequentemente a propriedade legitima, torna os posseiros invasores de terras
e, assim, marginais sociais. Mas também vemos nestas regiões surgir formas de resistência muitas vezes
incompreendidas pela sociedade.
Experiência, negociação e pedagogia da resistência
Para Thompson (1981) a experiência é uma categoria “indispensável ao historiador, já que
compreende a resposta mental e emocional, seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos
acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo” (p. 15). Acreditamos que a
experiência dos posseiros (expropriação, assimilação, inserção ao latifúndio, entre outras) levou a uma
aprendizagem da resistência, pois é a experiência que possibilita a negociação, e na negociação que se
adquiri instrumental para resistir. Os trabalhadores rurais não eram passivos, eles estavam apreendendo o
meio, possibilitando o desenvolvimento de habilidades sociais para negociar, há nesse processo a
formação de uma consciência social e consequentemente de tensões (THOMPSON, 1981, p.15). Para o
autor
não podemos conceber nenhuma forma de ser social independentemente de seus
conceitos e expectativas organizadores, nem poderia o ser social reproduzir-se por
um único dia sem o pensamento. O que queremos dizer é que ocorrem mudanças
no ser social que dão origem a experiência modificada; e essa experiência
determinante, no sentido de que exerce pressões sobre a consciência social
existente, propõe novas questões e proporciona grande parte do material sobre o
qual se desenvolvem os exercícios intelectuais mais elaborados. (p. 16)
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Thompson (1981, p. 26) considera a habilidade como uma “prática teórica, nascida de uma
história, ou ‘experiência’.” A experiência é espontânea no ser social é dela que surge a consciência social.
“A 'experiência' [...] foi, em última instância, gerada na 'vida material', foi estruturada em termos de
classe, e, consequentemente o 'ser social' determinou a 'consciência social'.” (idem, p. 189). A consciência
surge da experiência vivida, e dela os valores. “Os valores [...] são vividos, e surgem dentro do mesmo
vínculo com a vida material e as relações materiais em que surgem as nossas idéias. São as normas,
regras, expectativas etc. necessárias e aprendidas (e ‘aprendidas’ no sentimento) no ‘habitus’ de viver”
(ibidem, 194).
Os posseiros do Vale do Rio Doce ao serem expropriados e ressignificados dentro da lógica do
capital agropecuário adquiriram novas habilidades, advindas da experiência de negociar a permanência na
terra. Percebe-se então uma nova consciência nos trabalhadores, a qual é mesclada com a tradição, ou
seja, o novo saber é reelaborado com o saberes tradicionais. “Em formações como esta que está sendo
estudada, o novo aparece como o velho redefinido” (NORONHA, 1986, p. 59). O que consideramos
como pedagogia da resistência são os vários elementos acionados pelos posseiros/trabalhadores rurais
para burlar a lógica da exclusão, exploração e violência do capital fundiário.
Segundo Olinda Maria Noronha (1986) a expropriação dos trabalhadores leva a constituição de
um novo saber (p. 24). Ela analisou que a concentração de terras, e a impossibilidade dos trabalhadores
em manterem suas posses, possibilitaram a contra produção de um saber. “A perda da autonomia do
trabalhador [...] representa, também a possibilidade de [...] se educarem para uma nova amplitude de
relações, fundada na negação de todos os níveis, e funcionando como aprendizagem da resistência”
(idem, p. 22).
Essa concentração traz em seu bojo, ao mesmo tempo, o processo de expropriação e o de
transformação dos pequenos produtores que anteriormente ocupavam o minifúndio, e que
hoje são simples assalariados, tendo perdido tudo nesse processo de transição de
camponês a assalariado. Perdeu sua autonomia e a de sua família, sendo obrigado a
aprender as regras de uma nova ética no interior das novas relações de trabalho. Tal
aprendizagem se faz e se produz em termos de socializar os trabalhadores para a
submissão, domesticando-os no interior do processo produtivo. (ibidem, p. 47).
A experiência do cotidiano (a exploração, a violência, entre outros) encontra-se ambiguidades
pedagógicas que leva a resistência (NORONHA, 1986, p. 43). Assim, “a recriação do trabalhador em
cada nova condição gera também novas situações de aprendizagem, pode-se perceber aí um elemento de
aprendizagem da resistência” (idem p. 54), ao serem expropriados e inserirem na propriedade fundiária
como assalariado, parceiro, agregado, entre outros eles estão apreendendo uma nova dinâmica social.
Essa aprendizagem no objeto retratado nesta dissertação possibilitou que os posseiros/trabalhadores rurais
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quando passam a serem expulsos a procurarem, por iniciativa própria, a justiça, reivindicando direitos que
julgavam possuidores.
Fazemos uma leitura com Noronha (1986) de que “apesar de as demandas serem encaminhadas
individualmente, o saber sobre esse encaminhamento é difundido entre eles. E a causa de um termina por
se configurar como a causa de todos” (p. 65), ou seja, uma causa coletiva. Assim como, mesmo não tendo
um programa elaborado de resistência, ou certa coesão nas ações que eram impetradas na justiça, elas
representam uma grande oportunidade de aprendizagem, no qual eles aprendem a lidar com novos
instrumentais em seu cotidiano (idem, p. 126).
Esse processo de pedagogia passa por um longo caminho de aprendizagem que perpassa pela
exclusão, perda de autonomia, inclusão precária e um discurso de desqualificação do trabalhador. Essa
“experiência espontânea de vida, [...] constitui um momento de grande significação pedagógica, uma vez
que é nessa experiência espontânea que se dá a compreensão da condição social e se gestam [...] os
elementos de superação dessa condição” (NORONHA, 1986, p. 135).
Sendo assim, a opressão que o latifúndio impõe aos posseiros possibilita o surgimento de
habilidades de negociação. Ao negociarem os trabalhadores estão adquirindo novos padrões culturais que
possibilita a resistência. Assim como, se observa uma apropriação dos saberes dos trabalhadores,
enquanto desqualifica seus saberes. Há um discurso competente do opressor que desqualifica a cultura do
oprimido. E é nessa contradição apropriação-expropriação, os oprimidos se percebem como sujeitos.
A consciência adquirida na negociação e conflito possibilitando a instrumentalização de
habilidades de resistência possibilita a aprendizagem da cidadania. Os trabalhadores ao denunciarem a
violência da expropriação e reivindicarem direitos se reconhecem como sujeitos detentores de direitos,
assim, reivindicam a inserção a cidadania (NORONHA, 1986, p. 138).
Considerações finais
As formas de negociação e resistência dos trabalhadores do Vale do Rio Doce mostram um
incipiente surgimento de uma cultura política que acreditamos ter possibilitado aos trabalhadores
buscarem formas de permanecerem nas antigas posses. As diversas formas de negociação e resistência
sejam as negociações políticas amparadas pela lei ou as negociações no âmbito cotidiano, não podem ser
negadas como importantes instrumentos da luta pela terra na região. Sendo assim, não consideramos os
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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conflitos entre trabalhadores e proprietários fundiários como ações isolados de caráter individual, mas
como ação coletiva com característica de luta de classe.
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Geografia e Estatística, Departamento de Estatística de População. Disponível
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Multidão e diversidade:
Os trabalhadores da Bahia and San Francisco Railway Company
Robério S. Souza*40
Resumo: Na segunda metade do século XIX, a construção da Bahia and San Francisco Railway Company concentrou uma
multidão diversificada de trabalhadores, destacadamente de diferentes origens étnica-raciais e diversas condições jurídicas. O
estudo pretende analisar a demografia social dessa multidão de trabalhadores, ainda sem rosto e sem história, engajada na
construção da primeira estrada de ferro da Bahia. Em linhas gerais, a pesquisa em questão destaca histórias de trabalhadores
brasileiros livres pobres, indígenas, escravos e imigrantes, sobretudo italianos, que foram engajados nos canteiros de obras da
estrada ferrovia no contexto da escravidão brasileira.
Na segunda metade do século XIX, a construção da Bahia and San Francisco Railway Company
concentrou uma multidão diversificada de trabalhadores, destacadamente de diferentes origens étnicaraciais e diversas condições jurídicas. Essa multidão de homens diferentes, engajados nos canteiros de
obras de construção da primeira estrada de ferro baiana, chamava a atenção dos observadores, inclusive
daqueles responsáveis pela manutenção da ordem social.
Em carta escrita em 22 de fevereiro de 1861, o subdelegado José Nicolao da Silva não poupou
palavras para lembrar ao presidente da Província que, em 18 daquele mês, havia encaminhado em caráter
de urgência uma correspondência para o chefe de polícia, relatando a necessidade de um destacamento de
praças no arraial de Pojuca, medida que pretendia “prevenir os crimes, prender-se criminosos e
desertores, e manter-se a ordem entre as centenas de pessoas de diversas nações, que aqui estão
aboletadas, e empregadas nos serviços da via férrea”.41
Assim como o subdelegado José Nicolao da Silva, diversos registros oficiais que quantificam o
universo de trabalhadores da construção da primeira estrada de ferro baiana sinalizam para uma vasta mão
de obra estrangeira e nacional. Em março de 1860, estimava-se que o número do pessoal empregado era
de 2.639 trabalhadores, os quais estavam distribuídos em termos de nacionalidades: 2.069 brasileiros, 446
italianos, 107 ingleses, onze alemães, quatro franceses e dois suíços.42
Em um prognóstico quiçá mais realista para o ano de 1860, Charles Vignoles, engenheiro inglês,
informou que até seus últimos cálculos a quantidade de trabalhadores empregados na estrada de ferro
correspondia aproximadamente a 1.800 pessoas, número que deveria aumentar rapidamente, segundo sua
40
*Docente da Universidade do Estado da Bahia-UNEB, Doutorando em História Social-UNICAMP
Ofício de José Nicolao da Silva, subdelegado de Santana de Catu, para Presidente da Província, 22 de fevereiro de 1861.
Correspondência dos Subdelegados de Polícia. Maço 3005. APEB. Grifos do autor.
42
GALVÃO, Manoel da Cunha. Notícia sobre as estradas de ferro do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. do Diário do Rio de
Janeiro, 1869, p. 319.
41
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avaliação, para 2.500, “que pode ser considerado o número padrão máximo”. Para os últimos meses de
1860, há notícias de que a força de trabalho empenhada em toda extensão das obras da estrada de ferro
estava em torno de 2.700 operários.43
As medidas provinciais que buscavam estimular a introdução de trabalhadores estrangeiros para os
canteiros de obras da linha férrea baiana no final da década de 1850 mostrar-se-iam, em parte, bemsucedidas. Ate 15 de março de 1859, já haviam entrado nada menos que quatro grandes embarcações com
centenas de imigrantes de diversas nacionalidades pelo porto marítimo de Salvador, todas com
trabalhadores destinados aos canteiros de obras da estrada de ferro na capital e no interior da província
baiana.44
Ao todo, localizamos 1.025 indivíduos que, entre 1857-1861, deslocaram-se à Província da Bahia,
atraídos para o trabalho na ferrovia. Alguns poucos foram para atividades ligadas ao comércio, outros
para exercer postos de engenheiros, mas a grande maioria empenhou-se na execução das atividades de
construção.
Em termos gerais, os 1.025 eram procedentes basicamente de portos localizados na Itália,
Inglaterra e Bélgica. A maior parte, 88,3%, vinha do porto de Gênova e desembarcou em 1859, ano que
coincide com o auge do tumultuado processo de unificação da Península Itálica. As embarcações eram
compostas de italianos, ingleses, portugueses, suíços, austríacos. Esse padrão se mantém, quando se
analisa cada um dos navios isoladamente, e há preponderância de pessoas do sexo masculino, ligados aos
ofícios manuais (“indústria”) e destinadas a residir no “campo”, interior da Província da Bahia.
Inicialmente, foram os ingleses, especialmente os de profissões mais qualificadas, como
engenheiros e desenhistas, que, no ano de 1857, inauguraram o processo imigratório da Europa com
destino as obras da linha férrea na Bahia. Esses homens vieram para se empregar primeiramente na
construção e depois nos serviços de operação dos trechos iniciais da primeira estrada de ferro da
Província.
É seguro afirmar que os italianos, quase todos provenientes do famoso porto de Genova, eram a
maioria absoluta dos trabalhadores imigrantes engajados nas obras da primeira estrada de ferro da Bahia.
A maior parte do volumoso contingente de trabalhadores italianos desembarcou em terras baianas em
1859. A primeira embarcação de italianos, procedente do porto de Gênova, Itália, atracou na zona
portuária de Salvador em 14 de janeiro de 1859. Denominando-se Barca Sarda Onorata, trazia 154
43
Essa variação constatada por Vignoles não diferiu tanto do índice apresentado nos dados do contemporâneo Manuel Galvão
para o mês de março de 1860. Report Of The Engineer In Chief Charles Vignoles. 24 de outubro de 1860. Anexo do Bahia and
San Francisco Railway Company Limited. Viação. Maço 4967. APEB; GALVÃO, Manoel da Cunha. Notícia sobre as
estradas de ferro do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. do Diário do Rio de Janeiro, 1869.
44
Livro de Entrada de Passageiros I. APEB.
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homens contratados para trabalhar na estrada de ferro. Embora todos eles tenham sobrenome italiano, 112
aparecem com a nacionalidade italiana declarada.45
A profissão atribuída à maioria (112) deles era a “indústria”, o que significava trabalho manual.
Apenas seis eram das “artes” e “letras”. É bem provável que essas últimas profissões refiram-se a ofícios
de maior qualificação, como desenhistas, ferreiros, marceneiros. Convém salientar ainda que, com a
residência pré-definida no interior e não na capital, embora o maior número dos imigrantes tenha se
identificado como solteiros, alguns desses imigrantes, braçais e qualificados, não se aventuraram a vir
sozinhos para a Bahia, sem as suas famílias.46
Exatamente um mês depois, em 14 de fevereiro de 1859, atracou em Salvador, para a alegria dos
empreiteiros da ferrovia, a embarcação Sarda São Pietro com nada menos que 170 trabalhadores, 166
declaradamente italianos (sardos, toscanos, genoveses), alguns poucos com suas esposas, assim como
aconteceu na Onorata. Existem ainda quatro viajantes que, embora constem no registro como sendo dois
suíços, um inglês e um austríaco, é provável que também sejam italianos, uma vez que os sobrenomes
apontam nesse sentido. Essa leva de trabalhadores se constituía, em sua maioria, também de trabalhadores
braçais.
O mês de fevereiro reservava ainda mais italianos para os postos de trabalho da estrada de ferro.
Um número provável de 206 italianos, a maioria sardos, desembarcou no porto de Salvador em 26 de
fevereiro 1859. Dentre estes, havia 198 operários manuais, sete das letras e um do serviço doméstico,
todos fixando residência fora da área urbana da capital baiana.
Após a longa travessia pelo Atlântico, a barca Alexandro Volta chegou à Bahia em 9 de março de
1859 com mais 165 pessoas oriundas da Sardenha. Daquele grupo, 160 foram identificados como
“indústria” e cinco pessoas não tiveram ofício declarado e vieram exclusivamente para trabalhar no
serviço doméstico. Todos eles estavam programados para trabalhar na estrada de ferro e diziam que iriam
residir no campo.
Além da mão de obra estrangeira, uma parcela considerável de trabalhadores brasileiros pobres foi
recrutada para as frentes de trabalho na estrada de ferro. Grande parte dessa multidão de "nacionais" era
oriunda da região sertaneja do interior da Província da Bahia. Esses trabalhadores rurais que provinham
do sertão não pareciam dispostos a abandonar o setor agrícola para engajar-se definitivamente no trabalho
45
Ocorrido entre 1859-1861, o processo de unificação das províncias que compunham a Península italiana é conhecido como
“Risorgimento”. A Itália, como Estado Nação, só passa realmente a existir a partir de 1861. Antes disso, a região era dividida
em diversas cidades com reinos e administrações diferentes. BERTONHA, João Fábio. Os Italianos. São Paulo: Contexto,
2005.
46
Livro de Entrada de Passageiros I. APEB. p. 36, 38 e 39. Ao todo são 7 filhos, 4 esposas e a mãe de um trabalhador.
174
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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da estrada de ferro. Ao contrário, demonstraram a habilidade de conjugar o trabalho das lavouras com as
oportunidades de trabalho sazonal na construção da Bahia and San Francisco Railway.
Em fins de 1860, dos 2.700 operários da estrada de ferro, a “grande parte [consistia] de emigrados
do sertão”.47 Não é estranho que, naquele ano, o próprio governo provincial parecesse querer desenvolver
políticas de engajamento de “emigrados do sertão” nas obras da ferrovia e tratou de demonstrar seu
interesse aos administradores da Companhia Férrea.48 A preocupação do Governo Provincial com as
populações oriundas da região sertaneja era plausível. Afinal, entre 1857 a 1861, a sertão baiano foi
castigado por uma grande estiagem que causou grande seca. Tamanho foi seu impacto no período que o
governo provincial teve que criar ações para diminuir os efeitos dessa seca entre os sertanejos, os mais
diretamente afetados.49
No dia 12 de outubro de 1860, Alfred Dick, superintendente da Companhia Férrea, apressou-se em
responder a um ofício enviado por Antonio da Costa Pinto, presidente da Província, acerca da
possibilidade de engajamento de “emigrantes do interior” nas obras da estrada de ferro. Em resposta à
autoridade provincial, Dick dizia que, embora não tivesse àquela altura “experimentado o emprego de
tamanha gente”, existia possibilidade de empregá-la nos serviços da estrada de ferro. Mas não era
qualquer trabalhador que o superintendente inglês desejava engajar e deixou isso bem nítido. Segundo
ele, os trabalhadores nacionais oriundos do sertão que se apresentassem nos canteiros de obras da ferrovia
em busca de emprego poderiam conseguir trabalho desde que fossem “bons e industriosos”.50
Percorrer pequenas distâncias de vilas e distritos até os locais de construção para oferecer sua mão
de obra parece ter sido uma das formas encontradas por alguns trabalhadores para garantir uma vaga nos
postos de trabalho da estrada de ferro. Arriscando-se ao insucesso de uma viagem incerta, Olímpio
Francisco Preges, a fim de garantir meios à sua subsistência, deslocou-se até Salvador para “contratar-se
nos trabalhos da Estrada Férrea” em 18 de abril de 1860. Por motivos não muito claros, o candidato à
vaga nas obras da estrada foi preso e conduzido à cadeia do Aljube.51 Alfabetizado, já que assinou a
47
GALVÃO, Manoel da Cunha. Notícia sobre as estradas de ferro do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. do Diário do Rio de
Janeiro, 1869, p. 326.
48
Sobre engajamento de sertanejos e retirantes em obras de construção de estrada no século XIX, consultar: CÂNDIDO,
Tayrone Apollo Pontes. Trem da seca: sertanejos, retirantes e operários (1877-1880). Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria
de Cultura do Estado do Ceará, 2005.
49
Conferir essa discussão em: GONÇALVES, Graciela Rodrigues. As secas na Bahia do século XIX: sociedade e política.
Dissertação [Mestrado], Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2000.
50
Correspondência de Alfred Dick, superintendente da Via Férrea, para Antônio da Costa Pinto, presidente da Província. 12 de
outubro de 1860. Viação. Maço 4967. APEB.
51
De acordo com a pesquisadora Claudia Trindade, antiga prisão religiosa destinada para os “diocesanos e os cristãos leigos
que cometiam delitos”, a Aljube foi desativada como prisão religiosa em 1833, quando cedida ao Governo da Província da
Bahia “que passou a utilizá-la como prisão civil até 1863”. Conferir: TRINDADE, Claudia Moraes. A Casa de Prisão com
Trabalho da Bahia, 1833-1865. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade
Federal da Bahia, Salvador, Bahia, 2007. p. 26.
175
ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
petição em seu nome e escreveu uma carta ao chefe de Polícia em que solicitava sua liberdade.
Argumentou que desde o período em que foi preso, ficou “não só preterido do seu trabalho como também
[corria o risco] de perder o seu lugar [a vaga] para [qual era] bastante preciso”.52
Na década de 1860, as notícias sobre as oportunidades de trabalho nas obras na estrada de ferro
não estavam circunscritas a Salvador, capital da Província. Provavelmente, muitos trabalhadores
brasileiros tiveram acesso a essas notícias e, a partir de suas expectativas e necessidades, ofereceram-se,
mesmo que talvez temporariamente, para “contratar-se nos trabalhos da Estrada Férrea”, assim como fez
Olímpio. Eles eram trabalhadores avulsos que, a partir de suas conveniências, queriam ocupar daqueles
postos de trabalho disponíveis. Quiçá, Olímpio estivesse vivenciando a dura realidade de desemprego nas
cidades ou mesmo falta de serviços na lavoura, ocasionada pela ausência de chuvas no interior da
Província.
Recrutados por intermédio de agenciadores de mão de obra ou engajados por força de sua própria
atitude de “contratar-se” nas obras da via férrea, os trabalhadores nacionais, emigrados ou não do interior,
mantiveram uma presença predominante e marcante ao longo de todo o processo de construção da estrada
de ferro. Tal assertiva, de certa forma, contradiz os discursos oficiais das autoridades e das elites
proprietárias que reclamavam da escassez de mão de obra livre e da indisposição dos trabalhadores
nacionais ao trabalho.53
A relação nominal de trabalhadores nacionais avulsos engajados nas obras produzida pelos
empresários da ferrovia quantifica a presença de 1.897 pessoas para os meses de julho, agosto e setembro
de 1861. Segundo informava, esses trabalhadores estavam distribuídos nas obras localizadas na Calçada,
Periperi, Mapele, Camaçari, Mata de São João e Pojuca.
Tabela 3 - Trabalhadores nacionais engajados na estrada de ferro – 1861
Local das obras
Trabalhadores engajados
Data
Calçada
61
8 de agosto de 1861
Periperi
173
27 de julho de 1861
Mapele
341
13 de julho de 1861
Camaçari
409
5 de setembro de 1861
Mata de São João
330
Agosto de 1861
Pojuca
583
[1861]
52
Correspondência de Olímpio Francisco Preges para Chefe de Polícia. 21 de abril de 1860. Maço 6487. Assuntos Diversos.
APEB.
53
Uma interessante discussão que contesta essa tese da falta de braços no Brasil está presente em: CUNHA, Silvio Humberto
dos Passos. Um retrato fiel da Bahia: sociedade-racismo-economia na transição para o trabalho livre no Recôncavo
açucareiro, 1871-1902. Tese (Doutorado), Instituto de Economia, UNICAMP, 2004.
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Total
1.897
Fonte: Lista de trabalhadores nacionais atualmente empregados nas obras da Estrada de Ferro. Viação. Maço 4967. APEB.
A maior concentração de trabalhadores nos distritos de Pojuca, Camaçari e Mata de São João
deve-se, possivelmente, ao contínuo progresso das obras da linha férrea por aquela região. As obras das
seções localizadas mais próximas à capital já estavam mais adiantadas ou parcialmente concluídas em
1861. Isso, é importante destacar, não parece ser um fator que arrefecesse a volumosa quantidade de mão
de obra nacional recrutada, pois, como se observa, ela ainda mantém níveis altos (1.897) em 1861.
A expressiva quantidade de trabalhadores nacionais e imigrantes reunida nas obras da estrada de
ferro preocupava as autoridades políticas e policiais. Afinal, a multidão de operários provocava temor,
entre outras razões, por ser difícil controle. Isso, segundo essa visão, porque essa multidão de operários
poderia atrair, também, um conjunto de indivíduos foragidos da lei. Ela poderia ser utilizada por esses
indivíduos para esconder sua condição social e dificultar a ação de seus algozes perseguidores. Assim,
desertores, contraventores, fugitivos, acusados de crimes, na difícil arte de se manter anônimos e esconder
sua condição social, engajavam-se nas obras da estrada de ferro juntando-se e misturando-se à multidão
de trabalhadores que ali se empregava.
Para as autoridades policiais, 1860, o ano que anunciava o começo de uma nova década, deveria
representar também o início de uma ação mais efetiva no que dizia respeito à perseguição de desertores
refugiados nos caminhos de ferro da Bahia. Em 7 de março de 1860, ao considerar o aviso do Ministério
da Marinha sobre o assunto, a autoridade policial recomendava que fosse empregada “toda vigilância nas
mais diversas diligências, com ordem a descobrir e capturar os desertores da Armada ou do Exército que
por ventura se achem nos trabalhos da estrada de ferro”.54 Apesar de todo esforço demonstrado nas
diversas recomendações, tanto do Ministério da Marinha quanto das autoridades policiais, esses
desertores continuaram a desafiar a ordem militar.55
A escolha dos canteiros de obras da estrada de ferro para camuflar sua identidade não era gratuita.
Os desertores certamente imaginavam que seria menos perigoso permanecer entre os trabalhadores. Isso
porque combater a prática de desertores que se escondiam como operários nos trabalhos da estrada de
ferro era uma tarefa inglória, pois, além da grande quantidade de pessoas reunidas em um mesmo local de
trabalho, esses indivíduos poderiam contar com a solidariedade dessa imensa multidão de trabalhadores,
fosse escondendo-os nos barracões operários, fosse acionando códigos sociais próprios daquele universo
54
Registro de correspondência expedida da Secretaria de Polícia. 7 de março de 1859. Livro 5740. APEB.
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de trabalho, tornando os desertores indivíduos indiferenciáveis perante seus patrões e as autoridades
policiais.
Nos canteiros de trabalho da estrada de ferro, juntando-se e misturando-se à multidão de
trabalhadores, estavam também os diversos foragidos da lei que regia aquela sociedade. Esse diferente
grupo de infratores que diversificava e tornava mais complexa a multidão da estrada de ferro era
composta por desertores, acusados de crimes e, também, por indígenas e escravos.
Os trabalhadores indígenas estiveram presentes nos canteiros de obras da estrada de ferro desde os
primórdios. Há registros oficiais que, inclusive, avaliam o comportamento e a produtividade dessa mão de
obra indígena empregada na construção da ferrovia. Nessa direção, em 18 de novembro de 1859, quando
esteve na província da Bahia para avaliar as obras de estrada de ferro, C. B. Lane, membro do Instituto
dos Engenheiros Civis, escreveu um minucioso relatório tratando do andamento das obras da ferrovia
para o Ministro dos Negócios do Império. Entre os muitos assuntos abordados, o engenheiro destacou que
identificava entre os trabalhadores diversos indígenas.56
Ao longo de toda a segunda metade do século XIX, diversos outros caminhos também levaram o
mundo da escravidão para os postos de trabalho da construção e serviços de operação de ferrovias
brasileiras. As fugas escravas, assim, é uma dessas forças condutoras nesse processo no Brasil,
particularmente na Bahia. Algumas histórias de lutas de escravos pela liberdade se entrecruzaram com a
experiência de instalação, expansão e funcionamento de empreendimentos ferroviários na Bahia.57
Em um desses casos, evidenciando o campo diversificado das estratégias escravas, por volta de
novembro de 1880, o escravo Manoel, preto, 38 anos de idade, “ausentou-se” de sua senhora, D. Auta
Elisa de Figueiredo, para trabalhar na construção da estrada de ferro de São Felix, no Recôncavo. O chefe
de polícia daquele distrito recebeu ordens para capturá-lo e enviá-lo de volta para Salvador.58 Talvez
Manoel tivesse conhecimento de outros cativos que, anos antes, escapuliram ou foram empregados pelos
seus senhores nos postos de trabalho dos caminhos de ferro.
Os esforços das autoridades provinciais e imperiais, da companhia férrea, bem como de seus
agentes e empreiteiros, para a importação de mão de obra estrangeira e o recrutamento de nacionais,
resultaram no agrupamento, em um mesmo universo de trabalho - as obras de construção da estrada de
ferro - de uma abundante quantidade de homens diferentes, de diversos países e de culturas e hábitos
56
Correspondência de C. C. Lane, engenheiro, para o Ministério dos Negócios do Império. 18 de novembro de 1859. Maço.
862. APEB. A exploração e apropriação da mão de obra indígena na Bahia oitocentista, especificamente na região sul por
missionários cappuccinos, foi objeto de estudo de: MIRIAM, Telma. Entre a cruz e o trabalho: a exploração de mão-de-obra
indígena no sul da Bahia (1845-1875). Dissertação [Mestrado], Salvador, UFBA, 2007.
57
Em um estudo recente, ainda de forma preliminar, indiquei a presença do escravo Basílio nas atividades da estrada de ferro
da Bahia ao São Francisco nos idos de 1868. Consultar: SOUZA, Robério S. Tudo pelo trabalho livre!: trabalhadores e
conflitos no pós-abolição(1892-1909). Salvador: EDUFBA/FAPESP, 2011.
58
Polícia. Registro de correspondência com Subdelegados (1879-1880). Maço: 5843. Seção Colonial e Provincial. APEB.
178
ISBN: 978-85-425-0007-3
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muito diferentes. Na Bahia oitocentista, a experiência de trabalho por empreitada nos caminhos de ferro
reuniu e pôs em contato personagens de trajetórias sociais distintas. Os desdobramentos dessa experiência
histórica, que reuniu europeus e brasileiros pobres em um mesmo mundo de trabalho predominantemente
braçal, será capítulo de outros estudos.
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Cultura, Trabalho e o American Way Of Life: A sedução da intelectualidade e da sofisticação
através do 1º centro binacional estadunidense em Porto Alegre (1938-1989).
Rodrigo Pinnow ∗
RESUMO: O presente artigo apresenta o processo de inserção da cultura estadunidense e do American way of life em Porto
Alegre através do 1º centro binacional estadunidense conhecido como Instituto Cultural Brasileiro Norte Americano (ICBNA).
Busca também refletir como a criação do ICBNA influenciou o mundo do trabalho e consumo na capital, assim como
contribuir na elucidação desse processo velado na historiografia gaúcha e porque não dizer nacional, no que tange a relação
dos centros binacionais estadunidenses com o universo de trabalho e suas consequências no imaginário social e cultural da
época.
PALAVRAS CHAVE: Sociedade – Cultura - Trabalho.
1 – A versão romanceada:
O “Livro digital comemorativo aos 70 anos do Instituto Cultural Brasileiro Norte Americano
(2008)”
59
apresenta em suas primeiras páginas a descrição do imaginário na década de 1930 em Porto
Alegre. A obra digital expressa o período como sendo marcado por muita apreensão, citando o intervalo
entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, assim como a Grande Depressão dos Estados Unidos como
principais fatores de preocupação da sociedade porto-alegrense.
De acordo com a obra institucional, o mundo começava a passar por consideráveis
transformações, principalmente de hábitos e costumes que já eram perceptíveis na literatura e na nova arte
que despontava: o cinema. Estas transformações seriam as responsáveis por despertarem o interesse do
chamado grupo de intelectuais gaúchos. Romanceadamente, o material institucional relata o desejo dos
intelectuais em conhecer de perto a cultura retratada por Chaplin, Orson Welles, John Steinbeck, Willian
Faulkner. No entanto, dramaticamente, ressalta que a viagem teria que ser adiada, pois o mundo estava na
iminência da Segunda Guerra Mundial.
Contudo, retratado de maneira entusiasmada no decorrer das páginas digitais, o grupo de
intelectuais gaúchos persistiu no desejo de cultivar, mesmo à distância, a língua, os costumes e a cultura
daquele país que viam magicamente através do cinema e da literatura. Idealizaram, então, um grande
projeto de intercâmbio cultural entre Brasil e Estados Unidos, mas principalmente com ênfase na
divulgação da cultura gaúcha. Com isso, no dia 14 de julho de 1938, este projeto tornava-se realidade.
Nascia o Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano, com a colaboração do Cônsul dos Estados
Unidos, Mr. Guy W. Ray.
∗
Mestrando em História – UFPEL/CAPES – Email : [email protected]
Disponível em: http://www.cultural.org.br/Livro70anos/Default.htm. Acesso em: 10 de Out.2012.
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
O material institucional obviamente foi produzido para fins comemorativos, de exaltação e
não de análise historiográfica. Nesse sentido, entende-se que no contexto de inserção da cultura
estadunidense, no caso de Porto Alegre e no restante do Brasil, atentando ao que comumente é
mencionado no senso comum e também na historiografia, somente a imprensa, a arte, a literatura, o
cinema e a música são considerados como vetores da inserção cultural estadunidense.
Entretanto, não se encontram registros ou estudos mais extensivos sobre os centros
binacionais e sua atuação como difusores culturais, bem como sua evidente influência no imaginário
das relações de trabalho e consumo nas capitais, isso porque esse exemplo é apenas de Porto Alegre,
porém de acordo com dados da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil 60e a da Coligação dos
Centros Binacionais 61durante as décadas de 1930 e 1940 outros centros foram fundados no Brasil,
assim como programas de intercâmbio e aperfeiçoamento.
Os indícios apontam que a partir da influência da difusão cultural dos centros binacionais,
tendo por base o caso da capital gaúcha, houve o amadurecimento e o fomento ao contato com a
cultura estadunidense ou ao conhecido American way of life62, no contexto cultural e educacional da
época, assim como a certeza de que os Estados Unidos era um exemplo de nação a ser seguido.
Especificando o exemplo do ICBNA, conforme o artigo de Ferraretto (2002) observa-se que a
principal ideia sobre a chamada “americanização” de Porto Alegre se faz a partir da mídia. No texto,
em especifico, o autor aponta as emissoras de rádios como veículos condutores da cultura
estadunidense. Porém, confrontando a afirmação do autor com as fontes institucionais pode-se dizer
que as emissoras de rádio não foram às únicas protagonistas desse processo.
Nas interpretações que seguem alguns fatos serão apresentados no que diz respeito a ideia de
uma cultura de trabalho intelectual, ou seja, difere do que muitas vezes é discutido no mundo do trabalho,
como por exemplo as ações do movimento operário e sua organização como classe, mas traz a tona uma
interpretação direcionada ao imaginário de aperfeiçoamento e inclusão tendo como referência a cultura
estadunidense.
A intenção do artigo é relatar alguns indícios desse processo de combinação, e/ou, fusão entre as
duas culturas, proporcionando assim uma visão mais ampla da inserção estrangeira em Porto Alegre,
pontuando, neste caso, a inserção cultural estadunidense e a evidente mudança da mentalidade por parte
de empregadores e trabalhadores na capital que passaram a incorporar nas suas relações necessidades
oriundas de American way of life.
2 – O processo criacional : O que dizem as fontes ?
60
http://portuguese.brazil.usembassy.gov/
http://www.coligacaobnc.org/
61
62
Modo de vida americano. COLLINS, Disal. Dicionário Inglês - Português/Português - Inglês. CS. Collins Sons, 2010.
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
O Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano foi criado por um grupo de intelectuais
gaúchos, “liderados”, de acordo com as fontes institucionais, por Erico Verissimo, que tinham como
principal objetivo a utilização do Instituto como difusor da cultura estadunidense em Porto Alegre por
meio do intercâmbio cultural, com anseio de uma aproximação entre as duas culturas, conforme cita a
1º página da ata de criação institucional em 14 de Julho de 1938:
“Às 20hs do dia 14 de Julho de 1938, reuniram-se na residência do Sr. G.W.Ray Cônsul dos
E.E.U.U. da América do Norte pessoas interessadas em concretizar a ideia de criação de um instituto
cultural surgida numa palestra entre o Sr. G.W.Ray e os bacharelandos João Kessler Coelho de
Souza, Dante Sfoggia e Paulo Augusto Simões Pires. Após uma rápida dissertação sobre a utilidade e
alta significação de um instituto dessa natureza, no sentido de promover um intercâmbio cultural
entre as duas nações amigas, o Dr. Renato Barbosa propôs que devesse ser eleita a primeira diretoria
do instituto ao qual resolveu se dar o nome de I.C.B.N.A , iniciais que significam Instituto Cultural
Brasileiro Norte Americano. ”
Porém, analisando as “entrelinhas” institucionais, percebe-se que o intercâmbio ou a
aproximação de culturas foi de mão única, ou seja, não foram fundados centros brasileiros nos Estados
Unidos difusores de cultura.
O Birô Internacional63 ao que tudo indica, promoveu, com astúcia, a inserção da cultura
estadunidense também por intermédio dos centros binacionais e sem nenhum esforço financeiro inicial
ou mídia, apenas aproximando-se da elite intelectual através de seus representantes espalhados pelas
capitais brasileiras, dentre elas Porto Alegre.
Elisabeth Rochadel Torrensini em sua obra “Editora Globo: Uma Aventura Editorial nos
Anos 30 e 40 (1999)” apresenta a atuação de Erico Verissimo na Editora como escritor, tradutor,
colaborador de revistas entre outras atividades, fato que evidencia o interesse do intelectual na
proliferação da literatura brasileira, assim como na tradução das obras de língua estrangeira no País e
principalmente na consolidação do oficio de escritor.
Tais indícios colocam o escritor como um dos protagonistas nesse processo de inserção da
cultura estadunidense, embora em suas memórias autobiográficas64, o nome do ICBNA jamais tenha
sido citado, o que parece estranho, pois a ênfase nas fontes institucionais descreve o escritor como um
entusiasta do processo de intercâmbio que nascia, ou melhor, da instituição.
O grupo de intelectuais teve a ajuda (ou influência) do cônsul estadunidense Guy.W.Ray,
citado nas fontes como um incentivador e defensor da importância na troca de culturas e do
estreitamento das relações Brasil - Estados Unidos, pensamento esse que iria ao encontro com o desejo
dos intelectuais gaúchos.
Interessante ressaltar que o mesmo Cônsul comunicou no dia 01 de agosto de 1938 o
recebimento de uma circular do Departamento de Estado de Washington com a notícia da criação da
63
64
Chefiado por Nelson Rockefeller, essa “superagência” chamou-se a principio Office for coordination of commercial and cultural relations
between the american republics. Um ano mais tarde, o nome foi simplificado para Office of the coordination of Inter-American Affairs,
pelo qual ficou conhecido até o final da 2ª guerra, promovendo também uma série de encontros, visitas e aproveitando-se das
receptividade e interesse do ministro das relações Exteriores Osvaldo Aranha para começar o já planejado processo de aproximação.
(MOURA, 1980)
Solo de Clarinete 1 (2005), Solo de Clarinete 2 (2005), Gato Preto em Campo de Neve (2005) e A Volta do Gato Preto(2006).
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Divisão de Relações Culturais, que conforme exaltação demonstrada na forma de escrita da ata leva a
crer que Verissimo e seus colegas ficaram bastante entusiasmados e ansiosos com o futuro da
instituição que se consolidava.
A lacuna existente na historiografia Porto Alegrense sobre a implantação da política liberal
estadunidense em Porto Alegre pode ser preenchida pela análise das fontes encontradas no acervo
privado do ICBNA. Como também, por uma profunda análise nas fontes dos relatórios ministeriais do
Ministério das Relações Exteriores a partir de 1938, o que com certeza vai problematizar o tema no
contexto nacional.
3 – Intelectualidade e sofisticação nos mundos do trabalho?
Nesse processo complexo, um questionamento fica evidente: Os novos produtos culturais foram
apresentados ou impostos aos países menos desenvolvidos? No caso brasileiro, em função do poderio
econômico e de circulação da grande potência que se consolidava, os Estados Unidos, autores como, por
exemplo, Gerson Moura, autor das obras “Autonomia da Dependência : A política externa brasileira de
1935 a 1942 (1980)” e “ Tio Sam chega ao Brasil : A penetração cultural americana (1980) ” analisando o
contexto nacional, relata em suas obras um processo maquiavélico de inserção dos novos produtos
culturais, porém, é preciso esclarecer que tais produtos também foram aceitos, incorporados e difundidos
por parte das elites intelectuais locais, como no exemplo de Porto Alegre, ou seja, é preciso analisar
outros fatores peculiares que sustentaram o processo.
O fato inegável é que houve uma luta ideológica, lucrativa e que garantiu certo controle sobre os
movimentos revolucionários que se formavam na América latina, através da tradução e distribuição de
diversas obras literárias ocidentais e da “amigável” oferta de cooperação, apoio e parceria sempre
ressaltada pelos estadunidenses. Com o foco direcionado a conquistar uma base intelectual nas sociedades
Latino-Americanas, tinham o propósito de facilitar essa aproximação através do conhecimento.
Precisa-se do empenho governamental para articular em uma agência os interesses
relativos ao desenvolvimento educacional, científico e cultural no hemisfério ocidental.
Trata-se de homogeneizar formas de pensamento. Deve ser iniciada uma campanha para
capturar a elite intelectual ibero-americana através do rádio, da televisão, de livros, de
artigos e folhetos, de mais doações, bolsas de estudos e premiações. Consideração e
reconhecimento são o que mais agrada aos intelectuais e um programa com essas
características poderá atraí-los... (IANNI apud PINSKY 2007, pag. 139)
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Através de uma bem engendrada política cultural, os Estados Unidos consegue, no decorrer de
décadas expandir seus padrões culturais aos latino-americanos, conduzindo-os no sentido de reforçar a
opção capitalista, logo consumista, desestimulando e enfraquecendo o nacionalismo.
Tal política fez com o que o ICBNA juntamente com suas ofertas de ensino de inglês, testes de
proficiência, e abertura de espaço para artistas gaúchos recebesse decretos de utilidade pública municipal
e estadual, bem como reconhecimento e influência por parte das autoridades gaúchas.
Consequentemente, as relações de trabalho passaram a seguir padrões oriundos de uma cultura
estrangeira, com a exigência de domínio do inglês, conhecimento da cultura, ou melhor, a ideia de
sofisticação e principalmente a necessidade de possuir testes de proficiência para concorrer a vagas no
exterior ou para conquistar uma boa colocação no mercado de trabalho que crescia na capital.
De acordo com as fontes da instituição, entre 1938 e 1943 a principal operação do ICBNA tinha
como meta atividades essencialmente culturais, como exposições de artes plásticas, apresentação de peças
teatrais, leitura de poemas, dança, música e a criação de uma biblioteca. Entretanto, os idealizadores
chegaram à conclusão de que havia um elemento que afastava e, muitas vezes, impedia esta integração: o
conhecimento do idioma inglês.
A partir de 1943 a instituição implementou o ensino de inglês, sendo a primeira escola oficial do
Rio Grande do Sul no ensino do idioma, passando a ser referência profissional e acadêmica na época. Foi
pioneiro e solitário no ensino de inglês até aproximadamente a década de 1950 em Porto Alegre.
Com mais de 300 mil alunos contabilizados pela instituição no decorrer de sua trajetória, entre os
quais se podem citar intelectuais, profissionais liberais, empresários, políticos e formadores de opinião e
unidades destinadas às artes, cultura e o ensino da língua inglesa em seis endereços espalhados pela
capital , por onde passavam, a cada ano, mais de 4000 alunos, crianças, jovens e adultos.
O ICBNA foi o único instituto sem fins lucrativos de origem local e com marca própria. Durante
mais de 70 anos promoveu mudanças, adequando-se aos novos tempos, orientada e “conduzida” pela
Embaixada Estadunidense através de uma agência consular em sua sede central. Abaixo segue o trecho da
“Declaração de Missão” de fundação do ICBNA:
“O Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano deve ser o líder na promoção da integração
global, no âmbito local, através do ensino da língua inglesa e acesso às atividades culturais,
educacionais e humanas que proporcionem à sociedade gaúcha a equidade com elevados padrões
mundiais de desenvolvimento”.
A proposta teórica sugerida para reflexão do processo de inserção da cultura estadunidense
busca utilizar uma escala analítica social, construindo assim a história a partir de “baixo”, ampliando a
visão da sociedade contemporânea em todos os seus aspectos.
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Ao mesmo tempo, utiliza-se a mesma escala analítica focando as conjunturas sócioeconômicas e culturais, buscando não apenas reforçar o referencial teórico já produzido, mas sim
alcançar uma história para todos, tentando construir uma alternativa para a reflexão no sentido do
passado cultural da sociedade de Porto Alegre, localizando suas mudanças e transformações. Por
escala analítica social entende-se a compreensão dos aspectos que constituem as camadas sociais e
suas diversidades.
Acredita-se que o processo de inserção da cultura estadunidense vem sendo contextualizado
de forma positivista na historiografia porto-alegrense, ou seja, apenas exaltando e elite que se
beneficiou desse processo, não apontando fatores que nos levam a ter uma compreensão mais
abrangente e suas dimensões decisivas na época como no exemplo dos reflexos desse processo nas
relações de trabalho.
Por esse motivo, as interpretações que foram apresentadas no decorrer do texto tiveram sua
origem na análise das fontes de fundação do ICBNA e no seu acervo documental com mais de setenta
anos. Com isso, no contexto de explicação das relações entre cultura, trabalho e o já citado American way
of life, acredita-se que as considerações da análise referida podem se inserir na historiografia do
comumente chamado mundo do trabalho, apresentando o que se arrisca a chamar aqui de cultura de
trabalho intelectual ou cultura de trabalho para elite (ou para elitizar), bem como aprofundar questões
referentes entre as relações diplomáticas, econômicas e culturais entre os países envolvidos.
Entende-se que os mundos do trabalho apresentam diferentes culturas de trabalho, das quais
podemos identificar grupos ou processos não mencionados na historiografia, como no exemplo
apresentado. Delinear a trajetória de um centro binacional estadunidense, num País considerado por muito
tempo subdesenvolvido exige, acima de tudo, coerência e um total desprendimento do que já foi
apresentado. Ao analisar as fontes do ICBNA, observa-se a necessidade de interrogá-las, procurando
diferenciar dos interrogatórios já produzidos. Com isso, este artigo buscou aplicar o aparato teórico de
estudo das conjunturas, de cultura, trabalho e sociedade. Como já foi dito, o encontro dos resultados
obtidos, das análises propostas, naturalmente, criará novas perspectivas e novas problemáticas.
FONTES E BIBLIOGRAFIA
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ST 08: Desafios passados,
presentes e futuros das propostas
de integração dos Estados
Americanos Dra. Albene Miriam
Menezes (UNB) Dr. Haroldo
Loguercio Carvalho (UFRN) Dra.
Mercedes Kote (UPIS/Brasília)
190
ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
AMÉRICA DO SUL: CAMINHOS DA INTEGRAÇÃO REGIONAL
Haroldo Loguercio Carvalho65
RESUMO: A comunicação aborda a ideia de América do Sul como espaço de inserção internacional hemisférica distinta da
América do Norte. Recupera a tradição de autonomia iniciada na segunda metade do século XX e procura atualizá-la nos
cenários onde tradicionalmente se opôs à ordem sistêmica: na economia e na sociedade inicialmente e agora também na
política e nos valores. Na economia pela experiência bem sucedida de regulação do capital e direcionamento ao
desenvolvimento, na sociedade pela incorporação paradigmática da ideia de que a diversidade da população a decidir resulta
em acúmulo de compromissos compartilhados, na política no sentido de buscar eficiência a partir dos agentes públicos e pela
manutenção da ordem democrática, que por fim define os valores da paz, da cidadania e respeito às diversidades.
Desde o fim da ordem bipolar o mundo passa por transformações que evidenciam o caráter
limitado daquilo que se projetava ao final da segunda guerra. A instituição de uma ordem global ancorada
na livre circulação de bens, serviços e capitais, regulada por instituições multilaterais desde a política, o
comércio e as finanças, respectivamente, ONU, OMC e FMI, como sabemos foi adiada em razão da
emergência da contenção soviética, incialmente na Europa e depois no mundo todo.
De 1945 a 1989 o mundo presenciou não o renascimento do direito internacional como era de se
esperar em razão do final da guerra. Encobertos pelo conteúdo ideológico emanado pelos promotores da
guerra fria, experimentamos a interferência direta e indireta dos Estados Unidos da América a promover
restrições comerciais, impor preferências tarifárias, exigir o lastreamento em dólar da economia mundial e
estabelecer um ambiente político sempre pronto ao conflito.
Para a América Latina concederam apoio ao que havia de conservador nas estruturas sociais
herdeiras do colonialismo e sempre dispostas a colaborarem na manutenção do atraso social e da
dependência econômica. Em outras palavras, a dar longevidade à observação de Roberto Schwarz66,
quando descreve que o liberalismo brasileiro esteve assentado no braço escravo.
Os esforços que alguns estados latino-americanos fizeram no sentido do desenvolvimento
econômico e social somente foram tolerados se mantivessem vínculos de estreita dependência ao centro
do sistema e não competissem com os interesses industriais das corporações que iniciavam sua
abrangente e real conquista do mundo.
A América Latina em geral e o Brasil em particular sofreram constantes ameaças de golpes de
estado a frear qualquer tentativa de aproximação regional ou autonomia. O isolamento dos estados e o
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Professor do Departamento de História da UFRN
SCHWARZ, R. (org.). 1992. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades.
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clima de desconfianças mútuas foram as estratégias mais usadas e o sucesso deveu-se em muito pela
acolhida e divulgação feitas por uma imprensa nativa elitista e preconceituosa para com os povos latino
americanos.
As iniciativas de integração regional nunca se pautaram pelo horizonte de rompimento do
capitalismo, pelo contrário, foram e são projetos que procuram trazer os benefícios deste para milhões de
excluídos da propriedade, do trabalho, do mercado e da cidadania.
O criativo projeto de Mercado Comum Latino Americano, elaborado pela CEPAL em 1959, foi
preterido pelo Tratado de Montevidéu de 1960 que instituiu a desprestigiada ALALC que tão somente
projetava uma área de livre comércio, ideia rejeitada em razão das disparidades e assimetrias entre os
estados. A ALADI de 1980, por seu turno, é a primeira iniciativa que ao agregar o conceito de
desenvolvimento logra algum êxito na região, especialmente por permitir a formação de acordos subregionais, como, por exemplo, a Comunidade Andina de Nações – CAN, de 1996, herdeira do Pacto
Andino de 1969, e por fim o Mercado Comum do Sul – MERCOSUL, de 1991.
De todos os projetos, em que pesem os aspectos positivos que proporcionaram ao romperem com
o isolamento instigado e de terem logrado algum êxito no campo econômico e comercial, vale destacar
que é no campo da política e das relações internacionais que as maiores conquistas se deram.
O MERCOSUL, inicialmente previsto para 1995, foi uma antecipação derivada daquilo que viria
ser a Iniciativa para as Américas de 1992, de George Bush, em resposta à União Europeia, e que mais
tarde apareceria como ALCA. Os EUA desejavam restringir as Américas ao seu próprio campo de
interesses, numa reatualização da Doutrina Monroe. A forma como procuraram dissuadir os estados a
manterem projetos de integração mais profundos que áreas de livre comércio, foi através de acordos
bilaterais vantajosos para setores tradicionais das periferias que ao longo dos anos 1990 governaram a
América Latina aceitando as diretrizes do neoliberalismo.
É necessário que se diga, no entanto, que nosso entendimento do que vem a ser a integração dos
países do Cone Sul, não se limita ao caso do Mercosul enquanto bloco regional. A questão em pauta, na
atual fase do desenvolvimento econômico mundial, tem apontado para a formação de blocos. Essa é a
realidade sobre a qual cabe a reflexão acerca dos caminhos que se tem percorrido nesse sentido, que, a
princípio, não são lineares nem uniformes. Pelo contrário, são tortuosos e emblemáticos, uma vez que
trazem, em seu conjunto, elementos que transcendem a mera articulação de políticas econômicas. Isso
quer dizer que mesmo na hipótese de o Mercosul vir a desagregar-se, a realidade da busca de
aproximação com parceiros no cenário mundial permanecerá, seja na efetivação de zonas de livre
comércio, uniões aduaneiras, ou outra forma qualquer que venha a ser implementada com o intuito de
viabilizar os projetos econômicos internos a cada Estado na sua relação com os demais.
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A própria ideia de identidade também deve cambiar, pois tende a refletir-se, ao longo do tempo,
em atitudes similares de grupos dentro de um mesmo Estado, ou então, como queremos supor, de
sociedades dentro das regiões que se fortalecem com o processo de globalização, vide o caso da União
Europeia na sua fase inicial.
A discussão acerca da concretização da integração latino-americana, especialmente no Sul do
continente, no Cone Sul, se tem dado, de forma mais intensa, pelo que tem sido apontado como caminho
econômico, ficando em plano secundário o aspecto, em nosso entender fundamental, que diz respeito ao
estreitamento das diferenças nas identidades socioculturais.
Ao olharmos para as intenções iniciais da aproximação Brasil-Argentina na década de 1980,
antecedentes diretas do Mercosul, vemos que para além dos aspectos de natureza econômico-comercial,
outros elementos foram fundamentais para a concretização de tal iniciativa, as quais podem ser divididas
em três pontos, a saber: a) a superação das divergências geopolíticas bilaterais, sobretudo aquelas
relacionadas à utilização dos recursos hídricos; b) o retorno à plenitude do regime democrático nos dois
países a partir do encerramento dos ciclos militares; e c) a crise do sistema econômico internacional, que
evidenciou o protecionismo e o quadro recessivo em muitas economias desenvolvidas, responsáveis pela
absorção de cerca de 65% das exportações latino-americanas. Dessa forma, a "Declaração de Iguaçu",
primeiro de uma série de acordos bilaterais que precederiam o Mercosul, firmada em 30 de novembro de
1985, buscava acelerar a integração dos dois países em diversas áreas (técnica, econômica, financeira,
comercial, etc.) e estabelecia as bases para a cooperação no campo do uso pacífico da energia nuclear, e
que acabaria sendo confirmado já no ano seguinte.
Em 20 de julho de 1986, os presidentes do Brasil e da Argentina assinam a "Ata de Integração
Brasileiro-Argentina", a qual estabeleceu os princípios e diretrizes fundamentais do "Programa de
Integração e Cooperação Econômica" (PICE). O objetivo de tal Programa foi o de proporcionar a
constituição de um espaço econômico comum por intermédio da abertura seletiva dos mercados brasileiro
e argentino. A partir daí, o processo de integração brasileiro-argentino evoluiu, em 1988, para a assinatura
do "Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento", cujo principal objetivo era formar, no prazo
máximo de dez anos, um espaço econômico comum por meio da liberalização integral do comércio
recíproco.
O incremento do caminho econômico da integração é percebido como decorrente de necessidades
imediatas na constituição da integração diante dos desafios econômicos impostos pelo presente estágio de
desenvolvimento da economia mundial. A formação de blocos regionais se apresenta como salvaguarda
para alguns Estados menos desenvolvidos e como expansão para os mais desenvolvidos.
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Nesse sentido, é possível afirmar que a formação de blocos passou a ser um recurso na busca de
inserção na ordem internacional globalizada, independente do nível de industrialização em que se
encontre cada dos países.
No que se refere ao Mercosul, podemos defini-lo como uma resposta dimensionada, funcional e
estratégica, às injunções do contexto internacional e, em concordância com Almeida, perceber que o
bloco “constitui assim uma resposta criativa à nova dinâmica das economias nacionais e internacional,
uma vez que o esgotamento das políticas substitutivas levou obrigatoriamente à necessidade de encontrar
novas formas de inserção econômica externa”.67
Uma ordem de transformações como a que presenciamos na atualidade produz uma série de
elementos correlatos que agem sobre outras realidades até então aparentemente estáveis. De certa forma,
está ocorrendo uma espécie de reinvenção dos espaços geográficos que se transformam em função das
novas necessidades. Nesse sentido, as funções dos Estados nacionais são recolocadas noutra dimensão,
pois se torna imperativo redefinir o território sobre o qual se exercerá a soberania com a finalidade de
integrá-los favoravelmente nos fluxos globais de mercadorias, capitais e informações.
Tradicionalmente na afirmação da soberania externa de grupos de Estados, ocorre algo similar ao
que ocorreu na própria formação e afirmação dos Estados nacionais quando tomados individualmente, ou
seja, a possibilidade da formação de um campo de disputas pela hegemonia, seja no interior de uma
sociedade que se emancipa isoladamente, seja, no caso de sistemas regionais, com as nacionalidades
internas ao grupo de Estados.
Geralmente a busca por hegemonia acaba refletindo negativamente na necessidade de
aproximação entre as populações dos países envolvidos, ou então dificulta a possibilidade de redefinir um
mínimo de identidade comum a fim de viabilizar a constituição de um bloco enquanto tal. Entretanto,
nossa hipótese vai ao sentido oposto, pois a percepção interna, no contexto regional dos blocos,
especialmente no Mercosul, que assim como na União Europeia que se caracterizam pelo princípio do
comunitarismo pode agir como afirmação deste conjunto, diante de uma ordem internacional altamente
competitiva, em direção a um posicionamento mais uniforme. Assim, as disputas hegemônicas são
transferidas para a ordem internacional, enquanto que no interior dos sistemas regionais privilegia-se a
estabilidade, a normalidade, o equilíbrio e a eficácia, no sentido de buscar-se o crescimento geral,
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ALMEIDA, Paulo Roberto de. O Mercosul no contexto regional e internacional. São Paulo: Edições Aduaneiras, 1993.
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especialmente em processos de integração que têm como objetivo último à constituição de um mercado
comum.68
Portanto, essa é uma realidade que altera substancialmente os laços de identificação cultural, que
mesmo os mantendo vinculados às histórias nacionais, agregam elementos transnacionais que emergem
das situações comuns enfrentadas pelos subsistemas diante do sistema mundial, além é claro do complexo
jogo de administração que requer instrumentos ou órgãos de gestão representativos de todas as partes. O
processo de integração do Mercosul apresenta tais características e é, por isso mesmo, favorável à
ampliação dos relacionamentos gerais das sociedades envolvidas.
Ianni, que reconhece que o sistema mundial tende a predominar no contexto contemporâneo, a
partir de que o mesmo acaba estabelecendo poderosas injunções a uns e outros, a nações e nacionalidades,
a corporações e organizações, além de atores e elites, refere à interdependência das nações diante do
sistema mundial a partir de uma certa imposição do pragmatismo. 69
As discussões sobre a identidade cultural no âmbito do Mercosul vêm ocorrendo de uma forma
ainda insipiente, no entanto, os próprios prazos estabelecidos no Tratado de Assunção têm sido
constantemente revistos, dado o caráter político que adquiriu sua assinatura, o que, por um lado, revela o
otimismo dos que os subscreveram inicialmente, enquanto que por outro, permite o amadurecimento de
uma iniciativa que como tal nunca ocorrera na América Latina.
O processo de aproximação de cada um dos estados-membros com os demais é que irá definir, em
última análise, qual tipo de situação nova estará sendo criado com a perspectiva de consolidação da
integração.
As motivações e estratégias que cada país em seu interior, sejam econômicas, políticas, sociais ou
culturais, e como estes se percebem como parte do conjunto, serão, sem dúvida, alguns dos elementos
concretos de apreensão das identificações ou das aspirações nacionais transpostas para o próprio
conjunto, e para termos estes dados, é preciso que alguns pontos de entrave do projeto integracionista
sejam suprimidos a parir do amadurecimento do processo.
A preocupação com a hegemonia interna em uma região como a do Cone Sul nos remete a um
problema anterior, ou seja, é necessário percorrer os caminhos da afirmação dos próprios Estados
nacionais envolvidos, visto que a construção da idéia de nação nesta região é permeada por conflitos de
interesses locais e regionais que podem ser percebidos desde o mundo colonial ibero-americano,
perpassando pelo período das emancipações políticas destes Estados com as delimitações territoriais e
68
Sobre as etapas da integração econômica e a diferenciação entre cada uma, ver GINESTA, Jacques. El Mercosur y su
contexto regional e internacional. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1999, especialmente Cap. 2 “Aspectos
teóricos de la integração”, pp. 29-48.
69
IANNI, Octavio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
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chegando até os dias de hoje, quando grande parte das regras da integração já estão definidas dentro da
proposta do Mercosul. Diante disso, torna-se comum a emergência de uma série de dificuldades
conjunturais que, no limite, podem ser responsáveis pela a permanência de rivalidades no campo político
entre os dois principais membros, Argentina e Brasil, enquanto que na esfera econômica a assimetria é
fator determinante das preocupações dos outros dois signatários do Tratado, Uruguai e Paraguai.70
No geral, os pontos que têm levado ao atraso da integração econômica em definitivo são derivados
das disparidades setoriais, como, por exemplo, o setor agropecuário, que tem, em cada um desses Estados,
uma força política considerável no jogo das relações internas do poder, configurando-se, via de regra, em
interesses regionais, que historicamente não abrem mão de sua posição privilegiada em nome de políticas
econômicas mais globais.71
Um outro problema de primeira grandeza das políticas integracionistas contemporâneas,
especialmente em se tratando de economias como as de Brasil e Argentina, diz respeito às limitações de
capacidade do gerenciamento macroeconômico, isso em função dos desajustes das contas internas nestes
estados, seja através do déficit público ou de serem vulneráveis em suas políticas cambiais num cenário
mundial de desaceleração global da economia capitalista.
A falta de unidade política macroeconômica tem sido a responsável principal pelos percalços do
Mercosul enquanto bloco. A explicação para isso, segundo Gualda é que os países envolvidos apresentam
estruturas produtivas e tributárias diferenciadas, o que implica em condições desfavoráveis de competição
em várias indústrias dos países participantes.72
De qualquer forma, esta e outras questões pontuais tendem a ser superadas na medida em que no
interior do bloco se produzam os ajustes necessários, e se dê importância para a interpretação sistêmica
70
Sobre as preocupações uruguaias em relação ao destino do bloco, ver LAVAGNA, Roberto. Mercosur: zona de libre
comercio o área de decisión brasileña. In: BARBATO, Célia (coord.) Mercosur, una estratégia de desarrollo: nuevas miradas
desde la economía y la política. Montevideo: Ediciones Trilce, 2000, pp. 29-38.
71
Em realidade, este problema não é exclusividade dos países do Cone Sul e pode ser observado na maioria dos países em que
o setor primário desempenha algum papel importante na pauta de exportações. A própria OMC enfrenta atualmente um debate
sobre estas questões, uma vez que países ricos, como Estados Unidos e alguns europeus adotam políticas de subsídios a seus
agricultores, o que distorce o livre mercado. É o que afirma, por exemplo, Sandra Silveira quando analisa os dilemas que se
colocam na rodada da OMC em Cancun, México. “Segundo pesquisa da Organização Para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), o gasto dos países ricos em apoio a seus agricultores supera os US$ 300 bilhões anuais, seis vezes mais
do que investem em ajuda aos países mais pobres. Juntos, os EUA e a UE somam quase dois terços dos subsídios. O comércio
agrícola representa menos de 10% do comércio mundial, mas quando se trata de pactos internacionais, sempre adquire uma
grande importância. Dificilmente algum outro tema é tão sensível do ponto de vista político. Cerca de três quartos das pessoas
que vivem no mundo com menos de US$ 1 por dia - cerca de 99 milhões - são pequenos agricultores em áreas rurais. Sem uma
drástica redução das milionárias ajudas dos países ricos à agricultura, que permitem inundar os mercados com mercadorias
artificialmente mais baratas, como o açúcar europeu e o milho americano, certamente as negociações de Cancún fracassarão.
Sandra Silveira In: http://globonews.globo.com/GloboNews/article/0,6993,A597521-10,00.html Reunião da OMC em
Cancún: crônica de um fracasso anunciado? Acesso em 05/09/2003.
72
GUALDA, Neio Lúcio Peres. Mercosul – a necessidade de uma integração intra-industrial e seus condicionantes estruturais.
In ALGORTA PLÁ, Juan (coord.). O Mercosul e a comunidade européia: uma abordagem comparativa. Porto Alegre: Ed. da
Universidade/Goethe-Institut, 1994, p. 159.
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das relações internacionais contemporâneas, entendidas como suporte para a interpretação do fenômeno
da globalização/mundialização, pois, por este caminho, podemos articular ascendentemente os sistemas
nacionais, tomados individualmente, aos sistemas regionais – blocos de nações -, ao superior sistema
mundial contemporâneo. Nesse sentido, é necessário que se reconheça que a constituição desse
ordenamento ampliado tem sido buscada desde meados do século XX, especialmente após a Segunda
Guerra Mundial, e mais recentemente acelerado, com o colapso soviético e com o fim da bipolaridade
leste-oeste, e estaria institucionalizado e reconhecido por órgãos como as Nações Unidas, Fundo
Monetário Internacional, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio, além, é claro, da
abrangente atuação de empresas e conglomerados internacionais.
No cenário das relações internacionais contemporâneas, a percepção da representatividade desse
sistema mundial é responsável, por um lado, pelas atitudes cada vez menos isoladas dos Estados
nacionais, enquanto que por outro, pela mudança de comportamento dos nacionalismos, uma vez que tal
ordenamento impõe a articulação de conjuntos ampliados, a regionalização, como fator decisivo aos
projetos de inserção e desenvolvimento. Isso quer dizer que o vocabulário político-econômico e
sociocultural tende a ser cada vez mais padronizado universalmente, sobretudo por que num contexto
como o atual, e daqui para frente ainda mais, os meios de comunicação adquirem uma importância ímpar
e eficaz para compor e difundir o imaginário mundial.
Portanto, é possível caracterizarmos o atual estágio de desenvolvimento econômico na região do
Cone Sul, sobretudo através do Mercosul, que presenciamos um modelo de crescimento que articula
modernização produtiva com vistas à expansão para fora. Tal modelo se inicia com a crise dos anos 1970,
quando se encerra um padrão tecnológico de industrialização baseado na estabilidade dos preços
internacionais do petróleo.73 A nova configuração determinou a busca pelo aperfeiçoamento tecnológico e
pela redução de custos nos produtos. Diante de tal situação, emergiram no cenário mundial economias
industriais altamente competitivas como a europeia, com destaque para a Alemanha, e no Sudeste asiático
com o centro gravitacional dado pelo Japão.
Na América Latina esta nova fase de abertura do mercado mundial foi responsável pela transição
da produção para o mercado interno para a inserção competitiva no mercado global. Foi fundamental para
73
Na opinião de Celso Furtado, “...a mudança do quadro internacional manifestou-se desde inícios dos anos 70: a crise do
dólar, seguida do primeiro choque petroleiro, deu origem a grande massa de liquidez internacional com a baixa nas taxas de
juros, conduzindo ao processo de sobreendividamento de grande número de países do Terceiro Mundo. O que vem em seguida
é a dolorosa história dos ajustamentos impostos aos países devedores: de absorvedores passam estes a supridores de capitais
internacionais, devendo concomitantemente aumentar o esforço de poupança e reduzir o investimento interno...”. FURTADO,
Celso. Globalização das estruturas econômicas e identidade nacional. In: Estudos Avançados, v. 6, no16, Setembro/Dezembro,
1992, p. 60.
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essa mudança, a capacidade tecnológica desenvolvida e acumulada durante a fase substitutiva anterior de
desenvolvimento para dentro. Ocorre, então que as empresas que atendiam prioritariamente a produção
doméstica iniciam um movimento em direção ao mercado externo. Isso se dá em função das novas
exigências do comércio internacional que não aceita mais os mecanismos protecionistas.
As novas orientações da política e da economia mundiais acabam reduzindo as possibilidades da
gestão interna dos Estados nacionais no sentido em que os mecanismos de crescimento atuais são
determinados pelo que ocorre no mundo. A partir dos anos 1990 essa situação fica mais evidente e acaba
influenciando as políticas dos Estados latino-americanos de uma forma que até então não se percebia
claramente. Os modelos de política econômica não são adotados de forma uniforme, mas visam o mesmo
objetivo que é a inserção competitiva no mercado mundial. A abertura das economias induz a mudanças
de percepções sobre a capacidade de crescimento e transforma também a natureza das ideias políticas no
continente. O tradicional nacionalismo cede lugar a um novo liberalismo e os Estados tendem a buscar a
adaptação a esta nova situação.74
As implicações da nova conjuntura favorecem a aproximação e a busca de ampliação de relações
entre Estados que podem representar ganhos de produtividade em face de uma disputa internacional mais
acirrada. A busca da integração econômica acaba também influenciando outros aspectos das relações
entre Estados e populações, que se pautam, por um novo pragmatismo de resultados que não pode mais
deixar de compatibilizar desenvolvimento econômico com justiça social, indispensáveis por garantirem a
estabilidade das sociedades envolvidas.
74
A adaptação à nova ordem internacional não quer dizer que os Estados tenham que se submeter às diretrizes dos
organismos de forma incondicional, pois o receituário neoliberal radical acaba produzindo resultados adversos. Assim, é
preciso combinar políticas de abertura com projetos de desenvolvimento, o que no quadro sul-americano pode ser percebido
no projeto de afirmação internacional do Mercosul que tem sérvio de modelo para a integração da América do Sul.
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O TRATADO DE MONTEVIDÉU (1960) E A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA
José Evangelista Fagundes∗
Resumo: Reflexões sobre a integração econômica na região do Cone Sul americano, com o foco nos processos que deram
origem à ALALC, à ALADI e ao MERCOSUL. Pesquisa de natureza predominantemente bibliográfica traz uma abordagem
comparativa dos projetos de integração, ressaltando interesses e dificuldades a partir de suas lógicas internas e destas com o
processo de acumulação capitalista em âmbito mundial. Originalmente colônias para atender demandas das metrópoles
europeias, os países latino-americanos priorizaram, após a independência, um desenvolvimento “voltado para fora”, como
diriam os estudos iniciais da CEPAL. A partir de meados do século XX a integração econômica coloca-se como uma
possibilidade de incrementar a industrialização e a acumulação de capital desses países. Entretanto, muitas barreiras têm
dificultado a concretização da integração. Dentre elas, está a dificuldade de encontrar uma forma de compensação justa, nas
relações de troca, para as economias dos países-membros. Isso em parte está relacionado aos diferentes níveis de
desenvolvimento desses países, contribuindo muitas vezes para a reprodução de relações semelhantes ao que se convencionou
chamar de relação centro-periferia. Neste tipo de relação, o comércio tende a ser favorável aos países centrais, ou
industrializados. Esta comunicação tem como propósito refletir sobre as barreiras que têm dificultado essas propostas de
integração.
O Tratado de Montevidéu (1960) expressa o entendimento de que a América Latina deveria
acelerar seu processo de desenvolvimento econômico como forma de garantir uma vida melhor aos seus
povos. Para isso, seria necessária a ampliação das dimensões dos mercados nacionais, através da
diminuição gradual das barreiras do comércio intra-regional. Assim, seriam fortalecidos os laços
comerciais locais e, conseqüentemente, com o resto do mundo. Para tanto, o tratado leva em consideração
as regras do comércio internacional, especialmente as estabelecidas pelo antigo Acordo Geral sobre
Tarifas e Comércio (Gatt).
A última parte do preâmbulo do tratado elucida bem as intenções dos signatários:
Animados do propósito de unir seus esforços em favor de uma progressiva complementação e
integração de suas economias com base numa efetiva reciprocidade de benefícios, decidem
estabelecer uma zona de livre comércio e celebrar, com esse objetivo, um tratado que institui a
Associação Latino-Americana de Livre Comércio (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES
EXTERIORES, 1976).
A ALALC (Associação Latino-Americana de Livre Comércio)75 traz a perspectiva da
formação de um mercado comum latino-americano. Através do princípio de reciprocidade, previa-se
aumento de exportação entre os países integrantes da Associação à medida que houvesse aumento de
importações.
∗
Doutor. Professor de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Países participantes da Alalc: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai,
Venezuela.
75
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Elaborou-se um programa de liberação do intercâmbio regional visando estabelecer uma zona
de livre comércio num prazo máximo de 12 anos, a contar do momento em que o tratado passasse a
vigorar. Isto é, a partir de junho de 1973, já que ele entrou em vigor em junho de 1961. Previa-se, então,
para esse momento, a eliminação de todos os direitos aduaneiros e quaisquer outros encargos de efeitos
equivalentes que incidissem sobre as transações dos produtos regionais. Para remover os obstáculos e
viabilizar a expansão e diversificação do intercâmbio, bem como a promoção da complementação das
economias regionais, o tratado aposta nas negociações periódicas entre as partes contratantes,
fundamentadas em dois mecanismos: as listas nacionais de concessões e a lista comum.
As “listas nacionais”, elaboradas anualmente, seriam portadoras da redução de restrições e
gravames, correspondendo no mínimo a 8% da média ponderada dos gravames vigentes para terceiros
países, até alcançar a eliminação dos mesmos para o essencial de suas importações da zona, enquanto a
“lista comum” constituir-se-ia de produtos cuja participação no valor global do comércio entre as partes
contratantes alcance, pelo menos, as seguintes percentagens, calculadas conforme o disposto em
protocolo: 25%, no curso do primeiro triênio; 50%, no curso do segundo triênio; 75%, no curso do
terceiro triênio; e o essencial desse comércio, no curso do quarto triênio.
Na lista comum constaria a relação dos produtos com os gravames e outras restrições que
seriam negociados entre os países através de decisões conjuntas, ficando acertado um prazo máximo de
doze anos, isto é, até 1973, para a eliminação total dos entraves ao comércio intrazonal.
As reduções alfandegárias em quaisquer das listas teriam que obedecer a um ritual de
negociação de produto a produto, o que, convenhamos, é um processo bastante desgastante, uma vez que,
ao primeiro sinal de discordância de qualquer país, todo o processo de negociação era comprometido. Tal
forma de negociação não conta com a simpatia de todos; a própria CEPAL (Comissão Econômica das
Nações Unidas para a América Latina e o Caribe) é adepta de uma desgravação automática, mas não é o
que prevalece nos anos 1960 e 1970. É importante notar o fato de que enquanto as concessões das listas
nacionais podem ser revogadas, as concessões da lista comum, uma vez outorgadas, assumem caráter
definitivo e irrevogável. Mesmo assim, se as concessões viessem provocar dificuldades em algum país, o
mesmo poderia reclamar junto às partes contratantes para que fossem tomadas medidas no sentido de
eliminar o problema, uma vez que trabalhava-se no sentido de haver reciprocidade de benefícios.
Preocupando-se em garantir igualdade de condições de concorrência que viesse viabilizar a
integração e a complementação das economias, o tratado recomenda aos países a “harmonização” de
“seus regimes de importação e exportação, assim como os tratamentos aplicáveis aos capitais, bens e
serviços, procedentes de fora da zona”. Recomenda, também, principalmente no campo da indústria,
esforços no sentido de se promover uma coordenação das políticas de industrialização que viabilize
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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ajustes de complementação dos setores industriais. Previa-se, então, a celebração de ajustes de
complementação por setores industriais desde que tais ajustes ficassem abertos à participação de qualquer
membro da ALALC, caso viesse a se interessar.
Uma das cláusulas mais apontada como responsável pelo fracasso da integração dessa época é
a que se refere ao “tratamento da nação mais favorecida”, na qual se afirma que qualquer privilégio na
transação de um produto concedido de um país para outro seria automaticamente estendido às demais
partes contratantes.
O tratado reconhece, entre seus integrantes, níveis de desenvolvimento diferenciados e, por
isso, concede às economias de menor desenvolvimento76 vantagens que possibilitem a obtenção de um
maior crescimento econômico. Entre essas vantagens estão: maior flexibilidade no cumprimento do
programa de redução de gravames, adoção de medidas visando cobrir eventuais desequilíbrios de seu
balanço de pagamentos e, quando necessário, medidas de proteção à produção nacional.
Em relação aos órgãos da Associação, o tratado inicialmente estabelece: a “Conferência das
Partes Contratantes e o Comitê Executivo Permanente”. A Conferência, órgão de decisões superiores da
Associação, encarregar-se-ia de questões mais gerais como tomar providência no sentido de fazer valer o
que fora estabelecido no tratado, promover a realização das negociações referentes às listas nacionais e à
lista comum, designar o secretário-executivo da secretaria do Comitê Executivo. O Comitê, órgão
executivo permanente e encarregado de cuidar da aplicação das disposições do tratado, constituir-se-ia
por um representante permanente de cada país e contaria com uma secretaria formada por especialistas
das áreas técnica e administrativa, tendo à frente um secretário-executivo. Esses especialistas, cujas
funções teriam caráter internacional, não deveriam se submeter a orientações específicas de qualquer
governo ou entidade.
No entanto, um protocolo assinado em 12 de dezembro de 1966, apesar de só entrar em vigor a
partir de 27 de setembro de 1975, modifica o tratado no que diz respeito aos órgãos da ALALC. A
modificação fundamental vem com a criação do “Conselho de Ministros das Relações Exteriores”, que
passa a ser o Órgão Supremo da Associação, responsável pelas decisões políticas superiores. A
Conferência perde o status de órgão superior, mas continua a existir, preservando muitas de suas
atribuições, porém como órgão intermediário entre o Conselho e o Comitê.
76
A divisão clássica dos países é: países de menor desenvolvimento – Bolívia, Equador e Paraguai; os de desenvolvimento
intermediário – Colômbia, Chile, Peru, Uruguai e Venezuela; os países considerados de maior desenvolvimento – Brasil,
México e Argentina.
201
ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Nas chamadas “disposições diversas”, consta que as partes contratantes se esforçarão ao
máximo “no sentido de orientar suas políticas, com vistas à criação de condições favoráveis ao
estabelecimento de um mercado comum latino-americano”. Por fim, o artigo 58 determina que “o Tratado
ficará aberto à adesão dos demais Estados latino-americanos”.
A ALALC não consegue assegurar benefício equilibrado, tampouco ganhos para todos, e isso
contribui de forma decisiva para seu fracasso. Durante a década de 1970, a ALALC continua existindo,
teoricamente, mas na realidade não se dá importância alguma a esse organismo. O fato é que a realidade
se coloca bem diferente das intenções estabelecidas no papel e a proposta pouco avança em termos de
integração efetiva.
Os motivos que levam ao não-avanço são vários, começando pelas dificuldades “domésticas”
como a obrigatoriedade na promoção da “reciprocidade de seus benefícios” e a abrangência das
concessões a todos os membros do Tratado de Montevidéu, até os motivos de ordem mais geral, como,
por exemplo, a forma pela qual os países, em estágios de desenvolvimento diferenciados, inserem-se no
mercado externo. Dependendo do potencial de cada país e da conjuntura internacional, países de uma
mesma região podiam levar vantagens em relação a outros.
É ponto pacífico que a economia latino-americana, depois do esgotamento do dinamismo da
industrialização baseada na substituição de importações, passa por um período de grandes dificuldades, o
que dura até o início de 1967. Ora, essa crise se dá exatamente no momento em que a integração
econômica ensaia seus primeiros passos. Quer dizer, a integração surge num período de crise para a
região. Isso vai refletir na relação comercial entre os países integrantes. Ao observarmos, no quadro
abaixo, a evolução das exportações intra-regionais latino-americanas, no período de 1957 e 1964,
verificamos que não há mudanças significativas entre os quatro anos anteriores à vigência da Alalc e os
primeiros anos de seu funcionamento.
Quadro 1: Exportações intra-regionais latino-americanas
(em milhões de dólares)
ANO
1957
TOTAL
760
1958
760
1959
720
202
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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1960
690
1961
580
1962
680
1963
730
1964
980
Fonte: Monthly Bulletin of Statistics das Nações Unidas (apud DELL, 1966, p. 126).
Mesmo sabendo que o desempenho tem a ver com as dificuldades porque passava a economia
regional, os dados mostrados na tabela não deixam de despertar certa curiosidade, pois demonstram um
desempenho inédito em termos de integração, uma vez que todos os processos que conhecemos77
começam com o aumento substancial de intercâmbio entre seus membros. No entanto, a ALALC, nos
seus quatro primeiros anos, obtém praticamente o mesmo desempenho dos quatro anos precedentes à
vigência do tratado. Em 1961, ano em que este passa a vigorar, tem-se o pior resultado no que se refere às
exportações intrazonais. As argumentações de que o tempo fora insuficiente para assimilar toda a
regulamentação ou de que a região encontra-se em crise econômica não devem ter muita sustentação, pois
vamos encontrar situações semelhantes no início do processo de integração dos países da América
Central, do Pacto Andino, por exemplo. Entretanto, em todos esses processos há um aumento
significativo do comércio em seus primeiros anos. A situação europeia, embora em outras condições,
apresenta o mesmo resultado dessas experiências. Vale ressaltar que a ALALC visava a ampliação do
mercado através de um redirecionamento do comércio regional, embora não descartasse o comércio com
outras regiões.
Menezes (1990) faz referência a um estudo do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais78,
no qual é feita uma análise dos problemas latino-americanos diante da proposta de integração. O estudo
aponta aspectos já notórios como o fato de as economias regionais escolherem a industrialização como
meta de desenvolvimento e, por isso, serem adotados protecionismo, privilégios e incentivos que
encarecem o produto local. Apesar de caro, o produto local era viabilizado dentro dos pequenos mercados
nacionais fechados, dificultando sua abertura à concorrência externa, sob pena de verem suas indústrias
destruídas por produtores mais competitivos. O fato é que, independentemente de o produto ser de origem
77
Para verificar o desempenho inicial da integração na América Central ver Furtado (1978, p. 256); do Pacto Andino, Almeida
(1993b, p. 65-66); com relação à integração européia, ver Jensen (1965, p. 58); o desempenho do Mercosul está no subitem 4.3
deste livro.
78
Estudo apresentado na VII Conferência Brasileira de Comércio Exterior, realizada em Belo Horizonte, em 1963.
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fabril ou primária, as economias latino-americanas eram competitivas e não complementares. A grande
maioria dos países era produtora de produtos tropicais, o que leva-os à competição entre si. A produção
brasileira de café e banana encontrava fortes competidores. A Argentina e o Uruguai, com produtos
temperados, vendiam bastante trigo e verduras mas não tinham como fazer a contrapartida (em
quantidade), uma vez que seus mercados eram limitados e a oferta de produtos tropicais era significativa.
Os produtos industrializados eram, em sua grande maioria, concorrentes, pois o processo de
industrialização, baseado na substituição de importações, começara por produtos similares,
principalmente os de consumo corrente e bens intermediários (MENEZES, 1990, p. 78-79).
O autor mostra que, além dos problemas apontados, os países desenvolvidos ofereciam
produtos melhores, com preços e condições mais acessíveis ao consumidor latino-americano. Isso ocorria
devido à forma de produção, já que os países desenvolvidos contavam com equipamentos modernos que
permitiam a produção em grande escala, barateando o produto, como também dispunham de melhores
condições no campo da circulação. Com o fraco comércio entre os países da região, a compra de
determinados produtos dentro da área torna-se inviável. É o caso do cobre chileno, cuja aquisição no
mercado europeu, e não no país vizinho, é mais vantajosa ao Uruguai. Outro caso ilustrativo dessa
realidade é o fato de o manganês do Amapá, território brasileiro, sair mais caro a algumas regiões
brasileiras do que o manganês da Índia.
A nosso ver, além das dificuldades econômicas e dos problemas domésticos que emperravam
a atividade comercial, a integração não foi um instrumento eficaz no sentido de entusiasmar os agentes
econômicos da região, o que vem demonstrar que a grande empolgação nos meios acadêmico e técnico,
transposta aos documentos e resoluções referentes à integração, não correspondia às atitudes dos setores
econômicos, aliás, de onde se esperava maior envolvimento.
Considerações Finais
Versiani (1987) nos faz ver que logo no início de funcionamento, percebe-se como o
Tratado de Montevidéu é inoperante. E, diante dessa constatação, algumas regras são modificadas com o
intuito de dar ao tratado um mínimo de viabilidade. No entanto, contraditoriamente, algumas delas
caminham no sentido de desenvolver ações com tendência ao fortalecimento do bilateralismo, ao invés do
multilateralismo. É o caso da revogação da cláusula da nação mais favorecida, no que se refere aos
acordos de complementação. Ao contrário do estabelecido no tratado, a partir de dezembro de 1964, as
concessões nessa área não estão obrigadas a ser estendidas a todos os signatários. Esse fato vem permitir
a concretização de vários acordos na região; entretanto, muda significativamente o “espírito” do tratado
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de 1960, pois a partir de então os acordos ficam restritos a poucos países, principalmente aos de maior
desenvolvimento industrial. Nessa mesma direção, são estabelecidas, em 1966, as bases do que
constituiria o Acordo de Cartagena, assinado em 26 de maio de 1969, entre os países da Região Andina.
Segundo o autor, esse acontecimento caminhou em direção contrária ao multilateralismo uma vez que
O grupo adotou um modelo de integração onde, mais do que a abertura recíproca de mercado,
enfatizava-se o planejamento conjunto do desenvolvimento de certos setores produtivos, em
especial na indústria, como uma espécie de defesa contra o predomínio do Brasil, Argentina e
México no âmbito da ALALC (VERSIANI, 1987, p. 35).
Somado a esses fatos, em 12 de dezembro de 1969, foi aprovado o Protocolo de Caracas,
trazendo também mudanças no aspecto institucional. O Tratado de Montevidéu estabelecia a redução de,
no mínimo, 8% da média ponderada dos gravames vigentes para terceiros países. O protocolo diminui o
percentual para 2,9%. Além dessa mudança, suspende-se a aplicação da lista comum até, no mínimo,
1974, momento em que seriam estabelecidas novas normas para sua efetivação. O protocolo modifica,
ainda, o prazo para o aperfeiçoamento da Zona de Livre Comércio: ao invés de 1973, como dita o tratado,
amplia-se para 31 de dezembro de 1980. O que percebe-se é que, ao invés de avançar e aprofundar o
processo de integração, a criação da ALADI (Associação Latino-americana de Integração), em 1980, é o
reconhecimento do fracasso e do recuo do processo de integração regional.
Referências
DELL, Sidney. Os primeiros anos de experiência da Alalc. In: WIONCZER, M. S. (Org.). A integração
econômica da América Latina. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1966, p. 125-144.
FURTADO, Celso. A economia latino-americana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.
JENSEN, F. B.; WALTER, I. O mercado comum: a integração econômica da Europa. Rio de Janeiro,
1965.
MENEZES, Alfredo da Mota. Do sonho à realidade: a integração econômica latino-americana. São
Paulo: Alfa-Omega, 1990.
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Coleção de Atos Internacionais n. 843. Tratado que
estabelece uma zona de livre comércio e institui a Associação Latino-Americana de Livre Comércio
(Tratado de Montevidéu). Brasília: Departamento de Comunicações e Documentação/Divisão de
Divulgação Documental, 1976.
205
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
VERSIANI, Flávio Rabelo. A experiência latino-americana de integração e os novos acordos BrasilArgentina-Uruguai. In: BAUMANN, Renato; LERDA, Juan Carlos (Orgs.) Brasil-Argentina-Uruguai: a
integração em debate. Brasília, Marco Zero: UnB, 1987, p. 26-42.
206
ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
ST 10. Forças Armadas e Políticas
na América Latina: das ditaduras
da segunda metade do século XX
às democracias do século XXI Prof.
Dr. Sebastião Vargas (UFRN)
Prof. Dr. Fernando Mariana
Bonfim (UFRN)
207
ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
ESPAÇO DO ESQUECIMENTO E DE MEMÓRIA: A ANISTIA POLÍTICA DE 1979 COMO
MEIO DE DISPUTA DAS FORÇAS ARMADAS E DA SOCIEDADE CIVIL NUM CONTEXTO
DA POLÍTICA DE TRANSIÇÃO.
Aliny Dayany Pereira de Medeiros *79
Rafael Oliveira da Silva **
Resumo: Mesmo antes de sua edição, a lei da anistia de agosto de 1979 foi responsável por uma série de
discursos que proporcionaram sua defesa, sobretudo pelas Forças Armadas, ou sua total ojeriza pelos
grupos em defesa do restabelecimento da ordem democrática. Em pleno século XXI, a lei continua sendo
foco de debates e espaço de disputa entre estes grupos. Dessa forma, o presente se propõe analisar a lei de
anistia política de 1979 enquanto espaço de esquecimento para os militares, assim como lugar de
memória para grupos defensores da democracia, a exemplo da Ordem dos Advogados do Brasil, das
associações de anistiados políticos e da Comissão de Anistia, realizando uma construção histórica sobre a
questão. A utilização da lei de anistia de 1979, além dos discursos de ambos os grupos em recortes de
jornais, sites e entrevistas, faz-se essencial para o desenvolvimento da referida pesquisa. Igualmente, o
uso dos conceitos de Hannah Arendt, Pierre Nora, René Remond, como norteadores teóricos.
Palavras-chave: Memória, esquecimento, anistia política de 1979, política de transição, forças armadas,
sociedade civil.
1. Introdução
Mesmo antes de sua edição, a lei da anistia de agosto de 1979 foi responsável por uma série de
discursos que proporcionaram sua defesa, sobretudo pelas Forças Armadas, ou sua total ojeriza pelos
grupos em defesa do restabelecimento da ordem democrática. Neste aspecto, o instrumento jurídico que
concedia o esquecimento de todos os atos cometidos no decorrer dos governos autoritários pode ser
considerado para os militares um política de Estado, uma vez que desde o governo do presidente general
Ernesto Geisel (1974-1979) se pretendia uma abertura política: “lenta, gradual e segura.”. A anistia de
1979 entrava na filosofia defendida pelo então presidente.
Na ponta contrária deste discurso, localizam-se as instituições da sociedade civil organizada, na
figura do Movimento Feminino pela Anistia, do Comitê Brasileiro pela Anistia, da Ordem dos
79
*Mestre em História (História e Espaço) pela UFRN, atualmente docente das instituições: Instituto Natalense de Educação
Superior (Inaes/Ipep/Facen); Secretaria Municipal de Educação do Município do Natal (SEED); e tutora no Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN).
**Mestrando em História (História e Espaço) pela UFRN
208
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Advogados do Brasil, dentre outros a nível nacional ou mais regionalizados, os quais pretendiam uma
ferramenta jurídica ampla e imparcial.
Em pleno século XXI, a lei continua sendo foco de debates e espaço de disputa entre estes
grupos. Dessa forma, o presente se propõe analisar a lei de anistia política de 1979 enquanto espaço de
esquecimento para os militares, assim como lugar de memória para grupos defensores da democracia.
Observamos que o choque entre estas falas sintetizadas no presente trabalho realizam a
construção de dois espaços, os quais modelados pelas práticas ou ações políticas encabeçadas por estas
instituições os delineia: o espaço da memória e do esquecimento. No entanto, devemos levar em
consideração que estes espaços, apesar de formado por discursos diferentes, não se isolam, mas se
relacionam.80
A construção do espaço de memória se constitui a partir do referencial do historiador Pierre
Nora81, o qual nos chama a atenção para o conceito de “lugar de memória”. O autor observa que todo
lugar de memória é formulado, na medida em que os eventos do passado não são lembrados de forma
“natural”, ou seja, não mais pertencem ao cotidiano de uma sociedade, sendo necessária a criação de
dispositivos que o façam lembrar. Dessa forma, a lei de anistia de 1979 pode ser entendida como tal, haja
vista que a mesma se constitui desta maneira na contemporaneidade.
Nesse sentido, enquadramos esta pesquisa no espectro de discussões da história do tempo
presente, modalidade da História que vem crescendo ao lado da história política nos últimos anos, como
já aponta René Remond82. Isso porque, ao tratarmos da anistia não podemos considerá-la restrita à década
de 1979, mas pelo contrário vemos que até hoje ela é objeto de disputa, sobretudo após a criação da
Comissão da Verdade.
Logo, o artigo está estruturado em três momentos, cujos quais se ocupam nas construções dos
espaços da memória e do esquecimento, primeira e segunda parte respectivamente, e no confronto entre
os discursos, percebendo as disputas entre ambos. Para tanto fizemos uso da lei de anistia de 1979, além
dos discursos de ambos os grupos em recortes de jornais, sites e entrevistas.
2. Espaço de memória: a lei de anistia na visão dos grupos que defendem a ordem democrática no
país.
80
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
NORA, Pierre. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, pp. 0728, dez. 1993.
82
Ver RÉMOND, René. Por uma História política. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. Para discussões acerca da história do tempo
presente.
81
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Desde sua criação a lei 6.683/79, também conhecida como lei de anistia, vem sendo objeto de
disputa entre grupos distintos, cada qual defendendo seus interesses. Antes da sua construção, a lei de
anistia era bandeira de luta dos movimentos em defesa da democracia e da liberdade no país. Foi a partir
da luta pela anistia que as pessoas começaram a voltar às ruas após os atos arbitrários cometidos pela
ditadura, sobretudo, a partir do Ato Institucional n. 5.
A luta pela anistia, que se iniciou a partir da organização do Movimento Feminino pela Anistia,
tinha como objetivo inicial o perdão do governo aos perseguidos políticos para que esses pudessem
retornar aos seus lares, e era um movimento bastante marcado pela figura da mãe, da esposa, da filha, da
família, que há muito vinha sofrendo junto aos seus entes, como vemos a seguir na descrição feita por
José Gerardo Vasconcelos sobre o sofrimento da família do preso político:
O preso não sofre sozinho, a própria pena é cumprida coletivamente se somarmos o
tempo "doado" nas visitas e nas buscas incessantes dos familiares. A "mulher do preso" é
também marcada simbolicamente através das classificações operadas socialmente. A
memória ressentida é representa para um grupo de mulheres no grito contido e retraído no
qual a suposta "fragilidade" do feminino é transportada para grandiosos atos de coragem e
de solidariedade para com os "companheiros" encarcerados.83
Porém, com o amadurecimento da luta e sua expansão, principalmente com a construção dos
primeiros Comitês pela Anistia, o objetivo não era somente obter o perdão, mas alcançar o retorno dos
perseguidos aos seus postos de trabalho e faculdades. E ia, além disso, buscando investigações acerca das
mortes e desaparecimentos provocadas pela ditadura e a punição aos que cometeram tais absurdos. O que
se almejava era que o Estado brasileiro assumisse que havia institucionalizado a violência durante a
ditadura e pusesse fim às legislações que permitiam tais abusos. Podemos ver tal posicionamento a partir
do manifesto produzido durante o Primeiro Congresso pela anistia em São Paulo, 1978, disposto a seguir:
Expressando insatisfações nacionais, os participantes do Congresso repudiam a
marginalização política, econômica e social do povo brasileiro, condenam a repressão que
sobre ele se abate e exigem anistia. O preço pago pela nação foi parcialmente
documentado no Congresso: censurados, demitidos, cassados, reformados, exilados,
banidos, presos, torturados, perseguidos, mortos e desaparecidos: este é o saldo de 14
anos de arbítrio e violência. O povo exige anistia: liberdade para todos os presos e
perseguidos políticos; volta de todos os exilados e banidos; recuperação dos direitos
83
VASCONCELOS, José Gerardo. Memórias do silêncio: militantes de esquerda no Brasil autoritário. Fortaleza: UFC, 1998,
p. 108.
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ISBN: 978-85-425-0007-3
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
políticos de quem os teve cassados ou suspensos; readmissão nos quadros civis e
militares. Fim das torturas, fim da legislação de exceção.84
No entanto, é preciso lembrar que tais acontecimentos se desenvolviam ainda durante o regime
ditatorial e que os militares não aceitariam comprometer a si mesmos aprovando uma proposta de lei que
poderia puni-los. Sendo assim, a melhor alternativa para esse grupo seria a construção de uma legislação
que atendesse parcialmente às pressões populares, mas que ao mesmo tempo não pusesse em risco suas
posições e prestígio. Diante disso, e a contragosto de grande parte dos movimentos sociais, foi aprovada
uma lei de anistia que não era "ampla, geral e irrestrita" como se defendia e que permitia (a depender de
sua interpretação) anistiar tanto os perseguidos, como os perseguidores. Diferentes grupos políticos não
concordavam com tal legislação, embora, muitos a tenham visto como o avanço possível naquele
momento, como vemos na fala de Maria Rizolete Fernandes, secretária do Comitê norte-rio-grandense85
pela anistia:
[A anistia de 1979] Não foi ampla, geral e irrestrita como nós queríamos. E uma coisa
que irritou muito e deixou muita gente triste foi que anistiou também os torturadores,
porque foi a condição que o Presidente João Baptista Figueiredo impôs para aprovar a
anistia, que anistiasse todos os lados. Uma excrescência... e ainda tinha aquela restrição:
os presos considerados terroristas, como Luciano Almeida, o próprio Maurício, uns da
Bahia, enfim, muita gente continuou presa, por alguns anos. Em que pese tudo isso,
muitos retornaram às suas famílias, os que estavam no exterior voltaram. Então, foi um
avanço, bem ou mal, foi um avanço. Se precisou continuar sendo aprimorada, como ainda
o é até hoje, é outra fase da História. Mas que foi um avanço político para época, foi.
A fala de Maria Rizolete demonstra os aspectos limitadores da legislação e ao mesmo tempo sua
abrangência. Isso porque, enquanto os chamados "crimes de sangue" como sequestros e luta armada não
foram abrangidos pela legislação, a partir de uma interpretação bastante polêmica acerca do conceito de
crime conexo ao crime político, os militares envolvidos em torturas e homicídios poderiam também ser
anistiados. A seguir, trazemos o trecho da lei que gerou e gera até hoje muitas controvérsias:
84
ARANTES, M. A. O Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo (CBA-SP): memória e fragmentos. In: SILVA, H. R.
(Org.). A luta pela anistia. São Paulo: Editora da UNESP, 2009. p. 88.
85
Em entrevista concedida à Aliny Dayany P. de Medeiros.
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
“§ 1º Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza
relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.86
A partir dessa parte do primeiro artigo da lei de anistia, tem início uma ampla disputa. Na visão
dos grupos que defendem a ordem democrática no país como: anistiados políticos, advogados e a própria
Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, não é possível anistiar qualquer pessoa por crime que não tenha
motivação política, uma vez que a anistia é um instrumento que se restringe aos crimes políticos. E a
justificativa de crime conexo ao político buscou incluir nesse rol crimes contra a humanidade, como fica
notório na fala da advogada Lúcia Helena Bastos:
Ainda sobre a questão do propósito da anistia, no caso brasileiro, foi possível observar
que se tratava de uma proposta a mais abrangente possível, pois sob o conceito de “crime
conexo” seria possível abarcar inúmeras violações dos direitos humanos.
Até mesmo internacionalmente a interpretação feita acerca do crime conexo na anistia brasileira
passa por severas críticas, como vemos nas considerações feitas pelo Center for Justice and International
Law - CEJIL, que:
[...] alega que a lei de anistia no Brasil é interpretada de maneira equivocada, permitindo
a anistia a agentes torturadores, ferindo a jurisprudência das cortes internacionais, que já
declararam que os crimes de tortura são crimes contra a humanidade, imprescritíveis e
não passíveis de anistia.87
Diante de tais impasses, chegamos ao século XXI sem uma resolução satisfatória da questão da
anistia no Brasil. Esses impasses foram significativamente reavivados a partir do ano de 2011 e,
sobretudo neste ano de 2012, quando o governo federal cria e põe em funcionamento a Comissão da
Verdade. Essa Comissão, de acordo com a legislação que a fundou, tem por objetivo principal apurar os
86
BRASIL. Lei 6.683/79. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/110286/lei-de-anistia-lei-6683-79>. Acesso
em: 06 jul. 2011.
87
BASTOS, L. E. A. Anistia: As Leis Internacionais e o Caso Brasileiro. Curitiba: Juruá, 2009. p. 207.
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
casos de morte, tortura e desaparecimentos, durante o Regime Militar, tornando os dados da investigação
públicos através de um dossiê.
A proposta da Comissão trouxe à tona os pontos deixados em aberto no passado. Os grupos que
buscam a anistia viram na Comissão a possibilidade de apurar um passado e, sobretudo de construir uma
memória acerca da ditadura e dos sofrimentos causados por essa. A exposição de nomes dos militares
envolvidos nos crimes contra humanidade parece, para muitos, ser uma condição necessária para o
fechamento do processo de anistia. Isso porque, desde 2002, quando foi criada a Comissão de anistia para
julgar os processos de anistia e garantir os direitos aos cidadãos perseguidos, a sociedade pode contar com
o pedido de desculpas publicamente do Estado brasileiro e o reconhecimento de que houve prisões,
torturas e outros absurdos. No entanto, embora conheçamos quem são os anistiados, falta ainda descobrir
quem cometeu tais atos.
Diante de tudo isso, vemos que para os setores que lutam pela ordem democrática no país a lei de
anistia é vista como espaço de memória. A partir da anistia, surge a possibilidade de se esclarecer a
situação dos perseguidos políticos e construir uma memória da resistência no país. Sendo assim, a anistia,
para esses grupos, como associações de anistiados, por exemplo, não significa esquecimento, do
contrário, ela aponta para a necessária construção e manutenção de uma memória.
3. Espaço do Esquecimento: a anistia de 1979 na perspectiva das Forças Armadas.
No atual contexto da política de transição, boa parte das entidades da sociedade civil tem na lei
que conferiu a anistia política aos perseguidos do período dos governos autoritários um espaço de
memória. Lugar este que aferiu ao instrumento legal um dos principais elementos na construção da
memória histórica sobre o momento obscuro da História do Brasil. Igualmente a este fenômeno
percebemos a atuação da própria Comissão da Verdade, organismo do Governo Federal que objetiva
tornar público os locais e os militares envolvidos nos dispositivos de repressão militar, apesar de não
criminalizar os atos.
Em movimento contrário ao dessa construção da memória ou constituições de lugares de
memória, evidenciamos o posicionamento das Forças Armadas, sobretudo o Exército brasileiro, no debate
que se delineia sobre a anistia. Oposto ao movimento da memória, o grupo dos militares defendem a
instituição de um espaço do esquecimento, o qual tem como principal bandeira a mesma lei de anistia
defendida enquanto espaço de memória. O esquecimento se verifica na medida em que se estabelece à
referida lei o seu significado primário, o de apagamento dos eventos do passado.
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O general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva, membro das rodas intelectuais do Exército
brasileiro, defende veementemente a face da amnésia da história do país. Em entrevista concedida à
jornalista Miriam Leitão, o general Rocha Paiva afirma ao falar da Comissão da Verdade:
Eu sou contra a Comissão da Verdade, agora não adianta ser contra. Ela vai existir. Era
contra no momento em que ela pretende apurar a memória histórica do país. Isso é
trabalho para pesquisadores e para historiadores e não para uma comissão, que eu vejo
como uma comissão chapa branca. Ela busca a reconciliação nacional depois de 30 anos,
e não há mais cisão nenhuma, que tenha ficado do regime militar, inclusive porque as
Forças Armadas são instituições da mais alta credibilidade no país. Então, não vejo a
necessidade. Acho que se há alguma coisa a investigar é só usar a Polícia Federal e, com
vontade política, a presidente tem autoridade para ir até onde ela quiser respeitada a Lei
de Anistia [grifo nosso]. Eu fiz uma análise da lei da Comissão Nacional da Verdade. E
eu vejo que essa lei não é imparcial. Esse facciosismo e o provável maniqueísmo do seu
relatório a gente pode ver a partir dos objetivos.88
A partir desta citação, analisamos que o general Rocha Paiva se coloca contra a já referida
Comissão, visto a falta de necessidade para o procedimento que lhe parece revanchista e unilateral. Na
mesma fala ele até “sugere” o estabelecimento de uma investigação por parte da Polícia Federal, em
relação a possíveis crimes, e de historiadores, ao se tratar da memória, o que leva a desqualificação do
organismo. Paralelo a isto poderíamos ressaltar o grifo realizado em sua narrativa: “(...) respeitada a Lei
de Anistia”, o qual deixa transparecer a chamada “carta na manga” do discurso militar, uma vez que
inviabilizaria o trabalho da Comissão, visto que esta estaria ferindo a lei do esquecimento, ou melhor, a
lei de anistia de 1979.
Diante desta situação podemos formular a seguinte questão: como investigar possíveis crimes e a
própria memória histórica do evento sem o acesso às provas ou a falta delas? O questionamento surge a
partir do momento que o general afirma não terem provas para os “desvios” disciplinares que
ocasionaram as prováveis torturas, mortes, desaparecimento, dentre outros. O que nos insere dentro de
uma verdadeira escuridão no meio desta seara, o esquecimento não apenas se processa no âmbito da lei,
mas na própria falta de documentos e nas lacunas presentes nas narrativas dos poucos militares que
expuseram seus posicionamentos sobre o período.
Dentro do mesmo espectro de falas dos militares temos as considerações do general Leônidas
Pires Gonçalves, o qual nos anos de 1970 foi responsável por um dos maiores órgãos de repressão do
88
GENERAL duvida que Dilma tenha sido torturada na ditadura. Disponível em:<oglobo.globo.com/pais/general-duvida-quedilma-tenha-sido-torturada-na-ditadura-4120865>. Acessado em: 15 out. 2012.
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período dos governos autoritários, o Centro de Operações de Defesa Interna (CODI). O seu discurso
confere aos defensores da mudança da anistia política o caráter de “traidores da pátria”.
O Lamarca foi pego na Bahia. Quem o pegou foi o general Cerqueira, um oficial de muita
bravura, de muita disposição para o combate, para essas coisas. Ele saiu atrás do
Lamarca e o matou, porque considerou que o Lamarca era um traidor da pátria. Eu
também considero o Lamarca um traidor da pátria. Considero traidores da pátria os
raptores de embaixadores, porque dilapidaram a nossa imagem no mundo. Hoje, esses
que estão querendo mexer com a anistia vão ter que pagar também seus crimes
diante da pátria. Porque eu acho que eles também são traidores da pátria. Se há
anistia, foi para anistiar todo mundo. [grifo nosso] Assaltar banco, matar gente, matar
oficial estrangeiro, raptar embaixador, isto é crime contra a pátria. Mataram aquele pobre
americano em São Paulo, um tal de Chandler. Para que aquilo? Não é uma coisa que
dilapida completamente a nossa imagem? E ficam esses engraçados falando nisso.89
Podemos observar, a despeito da recorrente acusação de “traição” dos que foram contrários aos
governos autoritários e mesmo depois deste momento, o completo engessamento da lei de anistia de 1979,
ou melhor, do seu entendimento: “Se há anistia, foi para anistiar todo mundo”. Percebemos do mesmo
modo, que mesmo com o espaço temporal de vinte anos que separam os discursos utilizados, o de Rocha
Paiva em 2012 e o de Leônidas Gonçalves em 1992, visualizamos uma homogeneidade de seus
argumentos.
Ambos os representantes de um nicho das Forças Armadas ressaltam a contrariedade a uma
possível mudança do instrumento jurídico da anistia do regime militar (1964-1985), assim como o uso do
esquecimento para o quê ocorrera em outrora. Nas próprias considerações do general Luiz Eduardo Rocha
Paiva, os chamados “desvios” foram cometidos pelos grupos que se combatiam durante o período do
regime militar, então o esquecimento serviria para todos mesmo?
Com as disputas políticas ao redor destas discussões a resposta assumiria uma condição
complexa e com a presença de várias facetas. No entanto, para as Forças Armadas, como podemos
analisar nas falas apresentadas, a criação do espaço do esquecimento se constitui um instrumento de
cessão das críticas contra as decisões tomadas pelo grupo em um contexto histórico específico. Todavia, a
mesma construção não é percebida quando da comemoração do evento que marcou duramente mais de 20
anos da história brasileira e que reverbera nas discussões atuais, mas neste caso o Golpe Civil-Militar de
89
D’ARAÚJO, Marina Celina; SOARES, Glaucio Ary Dillon; CASTRO, Celso. (orgs). Os anos de chumbo: a memória
militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 240.
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1964 é tido enquanto um ato revolucionário em defesa da ordem democrática.90 Observamos na mesma
perspectiva que todo este esforço e o movimento contrário da sociedade civil só tende a consolidar um
espaço de memória construído no item anterior.
4. Anistia: espaço de memória x espaço do esquecimento.
Os espaços de memória e do esquecimento, como observamos, são separados por tênue linha, a
qual tem como tensores os posicionamentos em relação à lei de anistia de 1979. O referido dispositivo
jurídico e de Estado é encarado como elemento constituinte das memórias de um dado passado de
governos autoritários, assim como meio para esquecê-lo.
Percebemos que os organismos da sociedade civil na contemporaneidade, como as associações
de anistiados, a Ordem dos Advogados do Brasil, dentre outros, tem um papel salutar na manutenção da
memória do regime militar, não apenas reconstruindo o período através das memórias, o que já é bastante,
mas requerendo reparações, tanto no âmbito financeiro quanto na luta para criminalizar os torturadores de
outrora. A Comissão de Anistia e a Comissão da Verdade, estabelecidas por decretos do Governo Federal
já nos fins da primeira década de 2000, podem ser considerados resultantes das lutas da sociedade civil.
Estas últimas ferramentas que instituem a publicização dos torturadores e os locais de tortura, também
podem ser tidos enquanto ampliação deste espaço de memória.
Representantes das Forças Armadas tem na referida lei um espaço de esquecimento, uma vez que
observam nela o seu significado primeiro, o de amnésia da história política e social do país. Observadas
as falas dos seus emissários, as quais reproduzem uma mesma estrutura de ideias.
Logo, o estabelecimento dos espaços construídos no decorrer do artigo evidencia a preocupação
atual com a anistia, seja esta fonte de reconstrução histórica de um período obscuro da História do Brasil,
ou, até mesmo como tabernáculo que confere para “todos” o direito de se esquecer. Igualmente, dentro do
corpo da análise, é possível constatar a complexidade do próprio termo, o qual vai além do simples
perdão dos atos considerados delituosos no campo político, mas o reconhecimento dos que concedem a
anistia enquanto culpados, em alguma medida, das ações contra os chamados “subversivos” do regime
estabelecido.
Diante de tantos discursos díspares acerca de uma mesma legislação, percebemos que a anistia
hoje é objeto de uma evidente disputa de interesses e sua interpretação segue de acordo com o objetivo
90
Ver a matéria: MILITARES da reserva promovem nova homenagem ao Golpe Militar de 1964. Disponível
em:<g1.globo.com/.../militares-da-reserva-promovem-nova-homenagem-ao-golpe-militar-1964.html>. Acessado em: 31 mar.
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que visasse alcançar. Mais uma vez notamos que o passado é muito mais presente do que muitos podem
imaginar, sobretudo no campo da história política, pois só compreendendo o contexto histórico de
formação da lei de anistia de 1979, é possível entender porque ela foi feita com tantas possibilidades de
interpretação. O que nós temos é uma lei de anistia pleiteada pela sociedade civil organizada e construída
por militares que já viam o fim próximo do regime autoritário. Portanto, a anistia surgiu, mas foi
produzida buscando agradar a “gregos e troianos”, promover uma reabertura, mas não sem garantir
segurança aos que ainda ocupavam o poder.
E hoje, já no Estado democrático, esse passado é rebuscado na tentativa de reparar erros e
organizar o presente com vistas no futuro, porém, os sujeitos em questão são os mesmos, embora
ocupando lugares diferentes daqueles da década de 1970. E nós, pesquisadores, ficamos a observar a
história se desenrolar à frente dos nossos olhos, tendo a difícil tarefa de lidar com o limite, cada vez mais
tênue, entre passado e presente, analisando cada discurso, cada postura, cada nova legislação, buscando
construir uma história do tempo presente, que é por demais perigosa, mas na mesma medida necessária. A
anistia ainda está em aberto, mas fica notória a necessidade de construção de uma memória e de
reconhecimento de todos os sujeitos envolvidos no regime militar, para que ela possa finalmente ser
concluída e o país vivenciar a democracia em sua plenitude, sem carregar o peso de sustentar parte de
uma história sem nomes.
Referências bibliográficas
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GENERAL
duvida
que
Dilma
tenha
sido
torturada
na
ditadura.
Disponível
em:<oglobo.globo.com/pais/general-duvida-que-dilma-tenha-sido-torturada-na-ditadura-4120865>.
Acessado em: 15 out. 2012.
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ISBN: 978-85-425-0007-3
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
MILITARES da reserva promovem nova homenagem ao Golpe Militar de 1964. Disponível
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REDEFININDO FRONTEIRAS NO MAR: A DISCUSSÃO DAS MILHAS NÁUTICAS E A
SEGURANÇA NACIONAL (1970-1980).
Renato Marinho Brandão Santos91
Flávia Emanuelly Lima Ribeiro92
Resumo: O artigo trata das iniciativas governamentais destinadas ao aumento do Mar Territorial brasileiro em meio aos
governos militares (1970-1980), discutindo aspectos da segurança nacional. Mapeando as iniciativas do governo em estender o
mar territorial para duzentas milhas náuticas, vimos que o Decreto n. 553, de 1969, estendeu o mar territorial para doze milhas,
até que outro decreto, n. 1098, de 25 de março de 1970, estendeu o mar territorial para duzentas milhas. A decisão, de forte
sabor nacionalista ao modo da ditadura militar brasileira, embora já contasse com precedentes entre outras nações latinoamericanas, não agradou às grandes potências. O alargamento do mar para as duzentas milhas foi “aceito”, mas, em anos
posteriores, questionado, até que se chegasse a um primeiro consenso em 1982. A mudança de postura do governo brasileiro
decorreu, em grande medida, das exigências colocadas pela ordem jurídica internacional. Os direitos do mar, e especificamente
o “regime de ilhas” regulamentado pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos do Mar (CNUDM), assinada pelo
Brasil em 1982 e ratificada em 1988, estabeleceu que “os rochedos que por si próprios não se prestam à habitação humana ou à
vida econômica não devem ter Zona Econômica Exclusiva (ZEE) nem Plataforma Continental”. Para se adequar ao “regime de
ilhas”, o Brasil passa a ocupar o arquipélago de São Pedro e São Paulo, que foi incorporado ao território nacional.
Considerações iniciais
O presente trabalho é fruto das pesquisas para o projeto “De rochedo à Arquipélago: a emergência
do Arquipélago de São Pedro e São Paulo na história da pesquisa científica”, coordenado pelo professor
Raimundo Arrais93. Neste artigo utilizamos com fontes decretos governamentais das décadas de 1970 e
1980, referentes à discussão do alargamento das milhas náuticas, além de relatórios ministérios
relacionados à pesca no Brasil.
Um dos objetivos do referido projeto é reconstituir a dinâmica relativa à longa ausência e à
emergência do interesse no Arquipélago de São Pedro e São Paulo como objeto da pesquisa científica
brasileira, articulando esse fenômeno com a história da extensão da soberania brasileira sobre o
Arquipélago. Procura-se reconstituir o modo como o Arquipélago foi despertando o interesse dos
pesquisadores e do Estado brasileiro, levando-se em conta o quadro internacional que interfere nos
posicionamentos do Estado para a definição de seu território.
A doutrina de Segurança Nacional
91
Mestre em História-UFRN/ Professor efetivo do IFRN.
Estudante, UFRN/ Graduanda em História-UFRN.
93
Raimundo Pereira Alencar Arrais é Doutor em História Social (USP) e professor do PPGH-UFRN. Coordena o projeto
intitulado “De rochedo à Arquipélago: a emergência do Arquipélago de São Pedro e São Paulo na história da pesquisa
científica.”, ao qual se vincula este artigo, contando com o apoio do CNPq, por meio do Edital MCT/CNPq Nº 026/2009 Programa Arquipélago e Ilhas Oceânicas, e com uma bolsista de Apoio Técnico CNPq.
92
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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Os anos de 1970 ficaram marcados pelo desenrolar de golpes de Estado e pela entrada dos
militares no cenário político de diversos países da América Latina, dentre eles o Brasil. Borges afirma
que:
Depois de 1964, sob a égide da Doutrina de segurança Nacional (instrumentalizada pela
Escola Superior de Guerra), quando os militares assumem o papel de condutores dos
negócios do Estado, afastando os civis dos núcleos de participação e decisão política,
transformando-se em verdadeiros atores políticos, com os civis passando a meros
coadjuvantes no sentido de dar ao regime uma fachada de democracia e legitimidade94.
A doutrina de Segurança Nacional foi pensada, no caso brasileiro, dentro da Escola Superior de
Guerra fundada em 1949. Segundo Borges, objetivamente, “a Doutrina de Segurança Nacional é a
manifestação de uma ideologia que repousa sobre uma concepção de guerra permanente e total entre o
comunismo e os países ocidentais” 95.
Na concepção de pensadores da Escola Superior de Guerra, a pauta da Segurança Nacional
implicava pensar um novo conceito, a geopolítica. Para os militares brasileiros, distinguiam-se na
geopolítica as seguintes características:
O espaço político, a posição física, a segurança interna e externa, e as vantagens positivas
da terra. E mais: a geopolítica é uma arte que se filia à política e, em particular, à
estratégia ou política de segurança nacional. A geopolítica adota sempre um ponto de
vista único e privativo o do espaço físico. Este deve ser o elemento, não exclusivo por
certo, mas sim dominante, da paisagem que ela procura interpretar, com a finalidade
prática de aí discernir a margem de possibilidades e aproveitar na construção de maior
grandeza, do processo crescente e da segurança externa e interna do Estado,
beneficiando-se das vantagens positivas que a terra oferece e neutralizando-o, na medida
do possível, os aspectos negativos que ela apresenta em sua imparcialidade
incomovível96.
Nas palavras do general Golbery do Couto e Silva, a política de Segurança Nacional previa não
somente a defesa interna do território nacional, mas também a defesa externa, uma defesa que se estendeu
ao mar.
94
BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. ____In: FERREIRA, Jorge; LUCILIA,
Delgado (orgs.) O Brasil Republicano: o tempo da ditatura – regime militar e movimentos sociais do século XX. Vol 4. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2011,p. 24.
95
Ibid., p. 24.
96
Ibid., p. 26.
220
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Ao estender o Mar Territorial a duzentas milhas náuticas, muito embora parecesse remota a
possibilidade de agressão naval, havia interesse em impedir que a costa brasileira fosse usada, por navios
estrangeiros, para atividades de espionagem ou de pesquisa marinha para fins militares97.
Vale salientar que na década de 1960 o conflito conhecido como Guerra da Lagosta, movimentou
os mares brasileiros, na disputa com navios franceses pela pesca do referido crustáceo no Litoral
Pernambucano98.
A doutrina de Segurança Nacional previa segurança interna e externa, e nesse caso que estendeu
aos mares com o aumento do Mar Territorial brasileiro. Cabe lembrar que está não foi uma decisão
tomada apenas pelo Brasil, algum de nossos vizinhos como o Chile, o Peru, Costa Rica e Nicarágua,
antecederam o Brasil no aumento do Mar Territorial (CASTRO, 1989, p. 12).
Redefinindo fronteiras no mar
Nas palavras do Ministro da Marinha na década de 1980, Maximiano Fonseca, o Mar territorial
seria “uma extensão do território de um país. Tradicionalmente as nações adotam três milhas náuticas
(tiro de canhão), nas três milhas o país exerce soberania, o mesmo não acontece com o Mar Territorial de
200 milhas, adotado por algumas nações, entre as quais o Brasil99”. As duzentas milhas tinham sido
adotadas pelo Brasil, mas não foram reconhecidas em nível do direito internacional.
No entanto, apesar das iniciativas de estender o mar territorial brasileiro, o oceano não era
concebido ainda como promessas de riquezas, seja de pesca, seja de pesquisa. As fontes de riqueza
nacional, segundo a mentalidade e o modelo econômico do século XIX, herdados pela República, não
estavam localizadas no mar. De fato, o oceano permaneceu longo tempo como uma reserva de riquezas
inexploradas e desconhecidas. Mas, figurava como fonte de riquezas, em um horizonte de expectativas100
para o Ministro da Marinha em 1913:
Os povos mais ricos e mais enérgicos são também os mais poderosos no mar, pois a
grandeza e a decadência das nações coincidem com a grandeza e a decadência marítima
(...) O chanceler alemão von Bullow lançou a pouco um axioma verdadeiro e fatal: “No
século vinte, as nações que não forem fortes no mar, serão como os figurantes do ultimo
plano da cena (...) A liberdade que o direito consagrou do uso do oceano, compara-se á
97
CASTRO, Luiz. O Brasil e o novo direito do mar: Mar territorial e Zona econômica exclusiva. Brasília: IPRI, 1989. p. 23.
BRAGA, Claúdio. A guerra da lagosta. Rio de Janeiro: SDM, 2004.
99
FONSECA, Maximiano. Esclarecimentos a respeito do mar de 200 milhas. Brasília, 1980.
100
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio,
2006.
98
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liberdade natural, quanto ao ar que respiramos; de um, como de outro, a utilização é
facultativa; de um, como de outro, a abstenção é perniciosa e fatal101.
Os sonhos do ministro da Marinha em 1913 refletiam um pouco da situação do Ministério sob sua
direção. No final do século XIX e inicio do século XX diferentes ministros que ocuparam a chefia da
Marinha, criticavam o descaso para com o mar e para com o preparo da Armada.
Outro ponto divergente seria para com as riquezas oferecidas pelo mar. Observando os relatórios
do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, produzidos entre 1910 e 1960, percebemos que a
pesca era uma atividade secundária para o Ministério da Agricultura. Existia a consciência da riqueza que
o mar reservava para o Brasil e que vinha inclusive sendo explorada por países estrangeiros, mas as
iniciativas governamentais eram muito tímidas. O ministro da Agricultura em exercício em 1910, falava
da concorrência estrangeira em mares brasileiros “com prejuízo da piscicultura natural”, pedia urgência
na fiscalização e na regulamentação da pesca, e falava da necessidade de criação de uma Inspetoria da
Pesca, que deveria ser sediada na Capital Federal. O governo oferecia incentivos fiscais e garantias às
companhias de pesca em funcionamento no Brasil, mas, dado o pouco conhecimento sobre o mar
brasileiro e suas espécies, a iniciativa privada manifestava pouco interesse na exploração dessa atividade.
O mesmo relatório menciona que uma firma carioca, a Bravo & C, havia caído em falência em três meses
de atividades, por falta desse conhecimento sistematizado, que só poderia ser construído na pesquisa
científica 102.
Medidas institucionais foram adotadas, como a criação da Inspetoria de Pesca em 1912103 e sua
substituição pela Estação de Biologia Marinha dois anos depois104. Após quase uma década e meia sob
responsabilidade do Ministério da Marinha, em 1933, a pesca volta para o Ministério da Agricultura,
Indústria e Comércio. Volta-se a falar da importância da pesca marítima, embora poucas ações concretas
tenham sido feitas para se fomentar a atividade. O fim da década de 1930 mostrou alguns avanços, como
o aproveitamento do cação em São Luís105, a pesca e aproveitamento da albacora e da baleia, esta, de uma
forma rudimentar, na Paraíba 106.
101
ALENCAR, Alexandrino Faria de. Relatório do Ministério da Marinha. In: BRASIL, Ministério da Marinha. 1913. p. 39-40.
TOLEDO, Pedro de. Relatório do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio: Pesca. In: BRASIL, Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio. 1910-1911.
103
Ibid., p. 173-175.
104
CAVALCANTI, José Rufino Beserra. Relatório do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio: Estação de Biologia
Marinha. In: BRASIL, Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. 1914.
105
COSTA, Fernando. Relatório do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio: Caça e pesca. In: BRASIL, Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio. 1939-1. p. 9.
106
Ibid., p. 236-238.
102
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A maior parte das pesquisas e dos investimentos relativos à pesca ainda girava em torno da
atividade em água doce. Só na segunda metade da década de 1950, são dirigidas ações governamentais e
de particulares mais consistentes no fomento à pesquisa e à pesca marítima107. Em 1960, por exemplo,
com o uso de embarcações japonesas apresenta-se o resultado de 500 baleias capturadas.
Desde meados do século XIX o governo brasileiro havia fixado a largura de seu mar territorial em
três milhas náuticas, mas a partir da década de 1930 tomou decisões para levar cada vez mais longe sua
soberania sobre o Oceano. Em 1938, pelo Decreto no. 794, o Brasil estabeleceu um regime de direitos
exclusivos de pesca até a distância de doze milhas. A plataforma submarina é incorporada ao território
nacional em 1950. Em 1966, o mar territorial é estendido para seis milhas marítimas. Em 26 de agosto de
1968 o Decreto no. 63.164 regulamentou a pesquisa científica no mar territorial e na plataforma
continental. O Decreto n. 553, de 1969, estendeu o mar territorial para doze milhas, até que outro decreto,
n. 1098, de 25 de março de 1970, estendeu o mar territorial para duzentas milhas 108.
A decisão, de forte sabor nacionalista ao modo da ditadura militar brasileira, embora já contasse
com precedentes entre outras nações latino-americanas, não agradou às grandes potências. O alargamento
do mar para as duzentas milhas foi “aceito”, mas, em anos posteriores, questionada, até que se chegasse a
um primeiro consenso em 1982.
Todas as ações de interferência sobre o mar marcaram uma nova postura para o país. Uma nação
como sonhou o ministro da Marinha em 1913, Alexandrino Faria de Alencar, que voltava sua atenção
para o mar, este como fonte de riquezas, muito embora pouco exploradas. Mas, importava marcar o
território, demarcar novas fronteiras, garantir a dominação do país sobre a imensidão marítima. No
entanto, a Marinha Brasileira responsável pelo patrulhamento do território no mar, não dispunha de
material físico nem muito menos humano, para vistoriar a imensidão azul, na qual o Brasil pretendia
exercer sua soberania109.
Considerações finais
Os decretos que previam o aumento do Mar territorial brasileiro antes de terem motivações
politicas, econômicas e diplomáticas, tinham a função de escrever uma nova espacialidade brasileira, a
construção de um território que ia além da faixa de terra. Uma nova geografia do poder, na qual o oceano
teria papel central na defesa e enriquecimento da nação, o mar passava a adquirir um sentido como parte
107
DORNELLES, Ernesto; MENEGUETTI, Mário David. Relatório do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio: Pesca
e fauna. In: BRASIL, Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. 1956. p. 63-66.
108
CASTRO, Luiz. O Brasil e o novo direito do mar: Mar territorial e Zona econômica exclusiva. Brasília: IPRI, 1989.
109
Relatórios do Ministério da Marinha.
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
de um sistema que se projetava a partir do continente, inserindo-se numa rede de poder monopolizado
pelo Estado-Nação, que desenhava o território sob seu comando 110.
O desenho do território não mais se limitaria aos traçados de terra, mas se estenderia ao mar. Na
atualidade, o traçado “azul” que se estende pelo oceano atlântico é conhecido como “Amazônia azul”,
uma referência direta a multiplicidade de riquezas proporcionadas pela floresta e que também poderiam
ser extraídas da imensidão azul, sob a qual o Brasil tem o direito de exploração.
Referências
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Marinha. 1913.
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Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2006.
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TOLEDO, Pedro de. Relatório do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio: Pesca. In: BRASIL,
Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. 1910-1911.
110
RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
(A)CERCA DA DEMOCRACIA: a emergência do MST
Tiago Tavares e Silva∗
Resumo: Este artigo pretende analisara emergência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra nos anos 1980, no
Brasil,como uma visibilidade - forma de conteúdo do saber- da democracia. Os seus assentamentos formam pontos de
resistência, não só ao capitalismo liberal, mas ao próprio movimento enquanto diagrama de forças, relações de poder.
Palavras chave: MST, democracia, relações de poder.
“É indispensável marchamos para mecanismos de participação”
(Fernando Henrique Cardoso, 1983)
I-
INTRODUÇÃO
O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST- surgiu, oficialmente, em 1984, no
Paraná, na cidade de Cascavel.O Movimento é criado dentro de um novo campo de possibilidades
políticas no que diz respeito às instituições que operam dentro da legalidade, como o Partido dos
Trabalhadores. A percepção desse tempo, aqui, será levada pelo viés da democracia, de um saber
democrático que ajudou a formar um conjunto de fatores políticos distribuídos por toda sociedade, ou,
mais precisamente dentro dos conceitos aqui usados, por todo estrato social.
Nesse sentido, é primordial colocar que o enfraquecimento da Ditadura Militar responde,
inicialmente, ao florescimento de novas instituições – em torno da ideia de democracia-, sejam partidos
políticos ou movimentos sociais organizados. Os governos militares na referida década não
corresponderam às expectativas econômicas criadas outrora, notadamente na segunda metade dos anos
1960 e início dos anos 1970; também havia o desgaste provocado por anos de repressão política, censura
e desaparecimentos de oposicionistas em diversas áreas, nem sempre militantes.
A chamada questão agrária era um problema anterior, fruto de desigualdades sociais inerentes ao
modo de produção capitalista e ao (sub)desenvolvimento social da América Latina. Os latifundiários, no
entanto, não eram mais os mesmos. A expressão agronegócio, derivada do inglês agribusiness, não era à
toa: o latifundiário da primeira metade do século XX cedia lugar ao empresariado que, dentre vários
investimentos, possuía grandes lotes de terra, muitas vezes usados como complemento de um negócio
maior, como investimento de matéria prima aos negócios da indústria.111 Os mesmos empresários
detinham poderes produtivos nos espaços urbano e rural.
∗
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
MENDONÇA, Sonia Regina de. A classe dominante agrária: natureza e comportamento -1964-1990 in: STEDILE, João
Pedro. A questão agrária no Brasil vol. 5. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
111
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Essa forma aparentemente esquemática não deve ser entendida aqui como um obstáculo teórico a
outras percepções – como a questão do esquema proposto por Deleuze das formações históricas enquanto
visível e enunciado -, mas como um contraponto, um diálogo (necessário) frente aos conceitos aqui
usados. Nesse sentido, pensamos a emergência do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra a
partir destes mesmos conceitos, isto é, as questões da visibilidade e enunciado como saber que, como
colocado mais detalhadamente à frente, envolve a ideia de democracia. O contraponto se faz então
necessário porque não se tratará aqui o surgimento do MST, seus desdobramentos com encontros em
diferentes instâncias – sejam elas política, econômica ou social; visível ou enunciável; saber ou poder–
como um passe de mágica.112
O MST não é criado apenas por falta, ausência, elemento negativo: sem terra, sem teto. Esses são
condições necessárias ao surgimento de uma série de positividades e criações, inclusive de identidade e
cientificidade, tratadas aqui como irmãs: o Movimento faz sua práxis política através do marxismo
(relacionado a uma ideia de cientificidade) e paralelamente desenvolve questões identitárias ao perceber a
realidade e a si próprio através de tal olhar. São formas que compõe um falar e um ver, de naturezas
distintas, mas que se remetem um ao outro, em concorrência e, por isso mesmo, em interdependência,
com, no entanto, primado do enunciável, o que não quer dizer determinação.113 Inicialmente é importante
colocar que “cada formação histórica vê e faz ver tudo o que pode, em função de suas condições de
visibilidade, assim como diz tudo o que pode, em função de suas condições de enunciado”114.
O estrato que possibilitou o surgimento do MST, e como o fez,é o objetivo desse artigo. A
democraciaera o saber que ativava a visibilidade dos partidos, dos movimentos sociais e seus regimes
visuais, suas cores, bandeiras e símbolos; assim como enunciados anti-ditatoriais, leis de eleições diretas,
anistia, pluripartidarismo, participação popular etc. Mas, ele próprio se constituiu (ou se ativou)
paralelamente a certos diagramas de poder.A democracia não é, portanto, uma força, uma força motriz
geradora como um meio de se fazer a vontade da maioria, ou, como muitos dizem, dessa maioria anônima
que sempre fala através de terceiros, reivindicar seus direitos. Ela é uma forma, um saber componente de
um estrato social através do qual o MST poderia se formar e se formou.
II -UMA ÉPOCA E SUAS SIGLAS
112
Deleuze chega a usar a expressão“passe de mágica” quando trata da aproximação e encontro das formas visíveis e
enunciáveis dos estratos (por serem de “natureza distinta”). DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 71.
113
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.
114
Idem, p.68.
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O MST surge ligado à CPT – Comissão Pastoral da Terra-, da Igreja Católica, influenciado pela
Teologia da Libertação115. O pensamento era politicamente cristão, resquício do envolvimento de setores
da Igreja no combate aos governos militares, da luta pelos Direitos Humanos e, nesse outro momento,
passa ao direito à terra, luta pela terra e democracia. Eram espaços crescentes nas rachaduras da Ditadura,
mas também causadores destas fendas, relação biunívoca que era a própria época.
Durante os seus primeiros quatro anos o MST só cresceu e ganhou notoriedade, aumentando,
inclusive, o número de assentamentos e instâncias reguladoras. A chamada Coordenação Nacional (CN)
já foi instituída em 1985, como um órgão administrativo e centralizador, pois o movimento ganhara uma
grande dimensão. No ano seguinte, 1986, também foi criada a Direção Política (DP), ainda sob influência
das revoluções Soviética e Chinesa, mais especificamente as teorias de Lenin e Mao TseTung. A mais
decisiva116, porém, só surgiu em 1988: a Direção Nacional (DN), criada após a extinção da DP,
justamente pelo acúmulo de poder e as fracassadas tentativas de contê-lo. Essas instâncias tinham como
função organizar ações e encaminhamentos burocráticos, como a DN e a DP, articular lideranças e órgãos
do movimento, como a CN.
Assim, as criações e extinções desses órgãos deliberativos e burocráticos, inclusive os ligados às
elites rurais, em contraposição, serão entendidas aqui como uma visibilidade constituída nos anos 1980,
uma forma de ver e fazer ver interesses ideológicos117 imbricados em democracia, em uma formademocracia ou visibilidade ativada a partir do dispositivo de saber democracia. Essas visibilidades não
eram harmônicas, eram formas democracia em conflito, partidos em conflito, movimentos sociais em
conflito, inclusive, por vezes, defendendo os mesmos interesses, como veremos adiante. A visibilidade
democrática e seus regimes visuais legitimavam interesses; ainda que estes interesses fossem
antidemocráticos, só poderiam se manifestar com legitimidade enquanto forma democrática.
Para pensar esse aparente paradoxo podemos citar o I Plano Nacional de Reforma Agrária, o I
PNRA, coordenado pelo então presidente do INCRA, José Gomes da Silva. O Plano foi elaborado pelo
novo Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário, o Mirad, e apresentado no IV Congresso
Nacional dos Trabalhadores Rurais. Oficialmente tinha como objetivo a desapropriação das chamadas
115
Movimento católico com influência marxista surgido na América Latina nos anos 1950. Nomes como Leonardo Boff e Frei
Beto foram importantes na formação teórica do MST, da influência marxista no movimento que, junto com o próprio
cristianismo, deram um caráter missionário e escatológico ao seu desenvolvimento político.
116
A DN é a mais decisiva, aquela que concentra o poder de ação, das estratégias de ação mas, na verdade, está submetida à
CN, sendo parte constituinte dela.
117
O conceito de ideologia aqui tem um sentidodiferente do tradicional marxista. Primeiro porque as intenções não serão
tratadas como escamoteadas, escondidas, mas sim expostas, esperando apenas serem vistas. Depois pelo sentido de classe
inerente ao conceito, que será relativizado, atenuado por outras questões, por identidades deslocadas e descentradas.
Respectivamente, Gilles Deleuze e Felix Guattari e Stuart Hall. A ideia de interesses ligados a grupos dominantes
disseminados como naturalizados (embora expostos) permanece.
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terras improdutivas para assentamento dos trabalhadores rurais, mormente nas zonas de maiores conflitos,
como o Norte e Nordeste. O Plano nunca foi, de fato, implantado. O I PNRA serviu para conter os
avanços efetivos da reforma agrária seguindo os interesses hegemônicos do novo bloco de poder118, de
suas instituições como Sociedade Rural Brasileira, de São Paulo, e a Sociedade Nacional de Agricultura,
do Rio de Janeiro, ainda que estes interesses não sejam todos harmônicos e haja disputas entre si119.
As sociedades patronais citadas encontram um caminho, ainda nos anos 1980, de
desfragmentação. Em 1985 surgiu a UDR- União Democrática Ruralista. Esse espaço pretende a união
das vozes dissidentes das elites agrárias e suas agremiações, do fortalecimento de algo maior que elas: o
interesse de classe120, a defesa da propriedade privada. A UDR era “democrática” por que a democracia
era o único caminho visível e viável para ir contra o próprio “tempo democrático” e seus crescentes
perigos aos latifúndios e ao agronegócio. A UDR formou um espaço institucional das elites rurais que se
sentiram excluídas dos novos projetos e agremiações tais como SRB e SNA, mas também porque tiveram
interesses de classe ameaçados com o I PNRA que, mesmo apenas no plano oficial, significava o
crescimento das reivindicações por reformas no campo.
A UDR era a institucionalização do latifúndio, dos interesses dos grupos latifundiários que se
renovavam. O latifúndio passou ao agribusiness e, posteriormente, ao agronegócio; isso por que os
próprios latifundiários não eram mais apenas isso, mas se transformaram em empresários urbanos que
compravam grandes lotes de terra e tinham negócios em diversas áreas. As novas formas de política
latifundiária não se ocultaram, pelo contrário, se mostraram em toda sua potencialidade na linguagem,
esta era parte da própria transformação que diversos autores colocaram como apenas uma camada
superficial moderna: “O latifúndio muda de nome, muda de forma, moderniza-se, mas na sua essência é a
mesma fera peçonhenta que se une e se arma para conservar seu status, manter seus privilégios e
continuar a oprimir o povo brasileiro”121 Havia uma vontade de se adequar a democracia, mas também
havia uma vontade de explorar outros setores paralelos ao campo ou ligados a ele de forma indireta. O
118
Não cabe aqui esmiuçar o que seria esse grande bloco de poder, mas, grosso modo, colocar que ele era uma nova
articulação política que envolvia concessões e enfraquecimentos dos militares governistas, partidos surgidos dessas forças com
uma roupagem nova, como o PFL, e forças políticas novas ligadas aos anseios já expostos de democracia, como o PT e PDT.
Assim, esse bloco tem interesses diversos, mas alguns se sobrepõem, não só pelas “demandas ideológicas”, mas pelas
circunstancias, que parece sero caso do próprio I PNRA.
119
Como podemos observar nos próprios nomes, estas instituições buscavam uma hegemonia nacional e, justamente por isso,
eram conflitantes
120
A ideia de classe pressupõe, aqui, mais interesses de diferentes grupos e a tentativa de naturalização deles, conscientemente
ou não, do que deunidade, processos sempre coerentes , contínuos. A ideia dos estratos, enunciados e visibilidades (Deleuze),
opera na sua própria exposição, “nada além da cortina”, o que se choca com as noções dos interesses de classe naturalizados
(ideológicos). Na tradição clássica do marxismo esses interesses são ocultados, mas consideramos aqui seu “descortinamento”
através das leis, governos, discursos, etc. Os interesses de grupos são considerados aqui, mas eles estão expostos no discurso,
no saber, mais precisamente nos enunciados.
121
STEDILE, João Pedro. A questão agrária no Brasil Vol. 5. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 14-15.
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enunciado dos regimes jurídicos democráticos reforçam a necessidade de buscar mecanismos repressivos
eficientes, disputar e ganhar o jogo dentro de uma nova regra, de um estrato social específico, de uma
forma de saber, com suas visibilidades e enunciados, e diagrama de forças de poder.
III – O MST COMO VISIBILIDADE DA DEMOCRACIA
Os estratos ou camadas históricas são formados por regiões de visibilidade e campos de
legibilidade, podemos dizer também conteúdos e expressões, ver e falar, ou, finalmente, visibilidade e
dizibilidade.
É uma nova divisão, na qual conteúdo e expressão têm forma e substância, e não
simplesmente significado (para o conteúdo) e significante (para expressão).Estas categorias são formas,
formas do saber que tornam, por serem prévias, possíveis as ideias, mentalidades, comportamentos, e,
consequentemente, os movimentos sociais.Cada estrato, por sua vez, revela suas visibilidades e
enunciados constantemente, com o primado do segundo sobre o primeiro, mas, sem uma redução
absoluta, pois a relação é conflituosa. O primado se deve a natureza do enunciado -espontaneidade (da
linguagem) - em detrimento da natureza do visível – receptividade (da luz).122
Como o saber, então, colocado como agenciamento prático, dispositivo de enunciados e
visibilidades, poderia ser pensado no momento de emergência dos novos partidos, movimentos sociais,
enfim, da política brasileira da década de 1980? Talvez a questão mais adequada fosse questionar como o
saber tornou possível essa outra política; ou qual era esse saber, esse estrato, visibilidade e enunciado que
formaram uma política específica: a política da democracia.
Nos anos finais do regime militar brasileiro as famosas greves do ABC paulista mostravam não
só a insatisfação popular com a ditadura, mais especificamente pelas demissões e cortes no salário devido
às crises econômicas, mas também, em parte justamente por isso, sua fragilidade: as greves não
enfrentaram grandes problemas com a repressão. O próprio sindicalismo reivindicava também mais
autonomia perante o patronato, as estruturas empresariais. Era o tempo de articulação do Partido dos
Trabalhadores. Junto a isso, para pensarmos o PT e a política brasileira dos anos 1980, adicionamos as
lutas de intelectuais pela anistia na segunda metade dos anos 1970 e os debates teóricos depois das
derrotas da esquerda guerrilheira, como observa Bernardo Kucinski:
Os intelectuais marxistas racharam. Um grupo liderado por Francisco Weffort, Chico de Oliveira e
Florestam Fernandes, aderiu ao novo partido [que era o PT]. Outro sob a influência de Fernando Henrique
Cardoso ficou de fora. Fernando Cardoso rejeitou a tese da autonomia operária, argumentando que se
tratava de uma empreitada obreirista, que as relações políticas não se resumiam a relações de classe (...)
122
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.
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Os trabalhistas, herdeiros do Getulismo e liderados por Leonel Brizola, tinham seu próprio projeto de
partido, mas acabariam se aliando ao PT mais tarde (...)123
Esse debate teórico visava renovação, afinal, o Brasil era visto como um país igual há duas
décadas de ditadura (embora, esse tempo, mesmo tomando apenas o aspecto político e governista, não foi
homogêneo. O AI-5 e o fim das guerrilhas mostram alterações significativas nos governos militares, cada
uma em seu momento e em suas especificidades que não cabe explorar mais aqui, para ficarmos apenas
nos exemplos mais óbvios).
A esquerda mundial também era vista como estática, paralisada no tempo e em decadência. Isso
se deve às crises econômicas (e finais) da União Soviética, assim como sua instabilidade política na
primeira metade dos anos 1980 até Mikael Gorbatchev ser secretário-geral do PC em 1985, e à
progressiva abertura da China ao mercado capitalista.
Havia, então, uma procura pelo novo no Brasil, tanto por processos internos quanto por uma
macroestrutura em escala global, notadamente o desgaste do regime comunista. O enfrentamento político,
a defesa de interesses se reafirmava em uma nova linguagem. Essa linguagem política, no sentido mais
amplo do termo, identificava as reivindicações de quem faziaem algo novo, com roupagem moderna,
associadas à democracia em oposição aos interesses contrários, vistos como forças antidemocráticas.
Quem falava era parte dessa “lógica democrática”, pois o sujeito é componente do próprio enunciado,
assim, mesmo formando milícias, reprimindo os movimentos sociais e defendendo a legalidade do
latifúndio, as algumas elites rurais formam a União Democrática Ruralista (grifo nosso).
A democracia era, portanto, saber. Sua difusão como meio de solucionar problemas políticos,
econômicos e sociais era exposta na legislação (Constituição Federal), na TV (debates entre candidatos),
nos regimentos e siglas de partidos e instituições (UDR). Esse saber que educava para a democracia tinha
como enunciado maior a Constituição Federal de 1988; mas e quanto a sua visibilidade? Deve-se colocar
que “As visibilidades não se confundem com os elementos visuais ou mais geralmente sensíveis,
qualidades, coisas, objetos, compostos de objetos” 124.
Os partidos, movimentos sociais, greves, mobilizações eram as visibilidades acionadas pelo
saber-democracia. Eles tinham um regime visual, objetos sensíveis, tais quais bandeiras, símbolos, urnas:
um conjunto que se fazia ver, que era preciso ver, no sentido mais midiático do termo: a campanha
123
KUCINSKI, Bernardo. O partido tardio dos trabalhadores in: D’INCAO, Maria Ângela (org). O Brasil não é mais aquele:
mudanças sociais após a redemocratização. São Paulo: Cortez, 2001.
124
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 61-62.
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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Diretas Já seria o exemplo maior. O MST era o exemplo maior quando se trata dos novos movimentos
sociais.
Todo aparato burocrático, funcionamento pragmático e desenvolvimento teórico do MST passa
pelo saber-democracia, por formas visíveis e enunciáveis em constante movimento, de captura, disputa,
formas não estáveis. A visibilidade do partido não pode ser pensada separadamente do enunciado das leis,
debates, regimentos... O MST faz um movimento duplo, paradoxal, pois, se por um lado tem a forma do
saber-democracia dos anos 1980 e esta é exposta nos seus enunciados, por outro reivindica para si uma
categoria que atravessa o tempo como se ele não existisse:
Mas seria injusto dizer que começamos ali [Cascavel, Paraná, 1984]. A semente para o surgimento do
MST talvez já estivesse lançada quando os primeiro indígenas levantaram-se contra a mercantilização e
apropriação pelos invasores portugueses do que era comum e coletivo: a terra, bem da natureza. Como
imaginar o Movimento Sem Terra hoje, sem o exemplo de Sepé Tiarajú e da comunidade Guarani em
defesa de sua terra sem Males. Ou da resistência coletiva dos quilombos ou de Canudos? Da indignação
organizada de Contestado? Como imaginar nosso movimento sem o aprendizado e a experiência das
Ligas Camponesas ou do Movimento de Agricultores Sem Terra - Master. Por tudo isso, nos sentimos
125
herdeiros e continuadores de suas lutas.
O MST, enquanto instituição, enquanto prática discursiva ou visibilidade do saber, desenvolve a
forma democrática, mas não só, pois desenvolve igualmente o sentido de unidade, reforçada pelo
cristianismo e marxismo e seus tempos escatológicos que dão sentido à vida; ela seria um meio para
atingir um fim, a salvação em outro mundo e a sociedade sem classes neste, respectivamente. O marxismo
não é apenas teoria, assim como o cristianismo não é apenas religiosidade, mas ambos são elementos
identitários do MST, elementos que se imbricaram em sua emergência, tornados possíveis (enquanto
forma “política” específica) dentro do estrato da democracia. Eram formas, tanto visibilidades quanto
enunciados, ativadas por forças, por relações de poder, como veremos adiante.
IV - ONDE O PODER OPERA MAIS QUE O SABER: OS ASSENTAMENTOS
Os assentamentos constituem formas distintas daquilo que querem suas lideranças, a organização
central do MST. O território é ocupado e nele se desenvolvemnovas práticas no espaço que o
transformam126, quando vivenciado pelos assentados. Os assentamentos desenvolvem vivências
específicas, conflituosas, com resultados na própria política: subdivisões; aproximação com outros
movimentos; ultrapassagem do limite da cerca; cooperativas paralelas, etc.
Nesse sentido, voltemos às questões dos estratos sociais. Como pensar, desta forma, os
assentamentos? Neles operam menos as formas do que as forças, porque neles ocorrem mais relações de
poder que de saber. Não há separação absoluta entre o poder e o saber, estes estão constantemente se
125
126
Nossa história. Acessado em www.cpt.org.br
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano I:artes de fazer. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2008
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relacionando, quase sempre conflituosamente, mas há diferenciação, pois “entre o poder e o saber há
diferença de natureza, heterogeneidade; mas há também pressuposição recíproca e capturas mútuas e há,
enfim, primado de um sobre o outro”127, o poder está sempre com o primado porque este integra as
formas do saber (ainda que, por sua vez, se o próprio poder tem esta função como essencial para sua
existência, há uma relação de “pressuposição recíproca”).
O MST é atravessado pelas relações de poder, elas se fazem mais perceptíveis nos
assentamentos, mas estão por todo estrato social. Neles operam os diagramas de forças por que estas
pressupõem resistência mais do que forma, isto é, mais poder que saber. O saber da democracia é ativado,
mantém uma relação com o diagrama do poder, em constante disputa, interação, determinação, captura e
fuga (assim como as visibilidades e os enunciados). Portanto, são de natureza distinta, mas não podem ser
pensados separadamente; os assentamentos são formas, visibilidades do saber, no entanto, estas só são
ativadas pelas relações de poder, pois “não emanam de um ponto central ou de um foco único de
soberania, mas vão a cada instante ‘de um ponto a outro’ no interior de um campo de forças, marcando
inflexões, retrocessos, giros, resistências.”128
É esse movimento que faz do assentamento visibilidade e não visibilidade, enunciado e não
enunciado, movimento que retira sua forma (pois visibilidade e dizibilidade são formas), mas que precisa
dela para ser, pois só há fuga da forma se houver forma. Os assentamentos são pontos de poder e onde há
poder há resistência: o MST é resistência ao capitalismo liberal enquanto questionador da propriedade
privada, mas também ao próprio Movimento através dos assentamentos que estão sempre subjetivando,
fragmentando, subvertendo as formas de visibilidade em forças de poder difusas.
O espaço é o lugar praticado, como coloca Michel de Certeau. Os assentamentos constituem
formas distintas daquilo que querem suas lideranças, a organização central do MST. O território é
ocupado e nele se desenvolvem novas práticas no espaço que o transformam129, quando vivenciado pelos
assentados. Os assentamentos desenvolvem vivências específicas, conflituosas, com resultados na própria
política: subdivisões; aproximação com outros movimentos; ultrapassagem do limite da cerca;
cooperativas paralelas, etc.Os indivíduos fazem e refazem o espaço ao ocupa-lo, ao caminhar por ele ou
ao se assentar nele. Essa modificação do espaço, realizada pelos assentamentos, também corresponde às
diferenças regionais do Brasil, suas diferenças sociais, econômicas e políticas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano I. Petrópolis, Vozes, 1994.
127
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 81.
Idem, p.81.
129
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano I:artes de fazer. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2008
128
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ST 11. Festas e Identidades na
Américas Prof. Dr. Jaime Almeida
(UNB) Prof. Dra. Flávia de Sá
Pedreira (UFRN) Prof. Dr.
Alessandro Dozena (UFRN)
235
ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
HISTÓRIAS DE VELHOS GARIMPEIROS EM BUSCA DA MEMÓRIA E DA IDENTIDADE
DOS PRIMEIROS GARIMPEIROS DA MINA BREJUÍ
Ângela Maria Bezerra130
As imagens dos acontecimentos passados
estão completíssimas em nosso espírito
(na parte inconsciente do nosso espírito),
como páginas impressas nos livros que
poderíamos abrir se o desejássemos,
ainda que nunca mais venhamos a abri-los.
Halbwachs
Resumo: A proposta do artigo é investigar elementos e componentes que regem a construção da identidade operária dos
trabalhadores atraídos pela nova atividade econômica que surgia na cidade de Currais Novos-RN no início da década de 1940:
o garimpo da scheelita. Era um perfil muito particular de trabalhadores – agricultores sem perspectivas por causa da seca.
Pretendo fazer um recorte entre as décadas de 40 e 50, por marcar o processo de transição entre os “garimpeiros” – pioneiros
na extração do minério e os “mineradores” – contratados oficialmente pela empresa como operários. Não há registros no
Museu nem no Memorial Tomaz Salustino sobre os primeiros garimpeiros, nem sobre o sistema de exploração do minério em
seu início, na região. O que há, a respeito desse período da história daquele lugar e daquelas pessoas, está na lembrança dos
mais velhos e de alguns de seus parentes e amigos. Este artigo toma, como referência, os depoimentos de dois desses
garimpeiros que viveram aqueles momentos como atores e respiram, até hoje, o ar empoeirado da Mina Brejuí, onde
escreveram suas histórias. Mesmo aposentado, José Gentil Cortez segue trabalhando no almoxarifado, optou por continuar na
mesma função que ocupa há décadas, como forma de manter o sentido da vida. Dona Cícera Alves da Silva não trabalha mais,
permanece, porém, morando na Vila Operária, com um filho e uma neta. Para a vizinhança, ela é a maior detentora das
memórias da Mina: os dedos indicam certos a sua casa, a de número 43. Foi onde passou toda a vida.
Sertão do Seridó, região central do Rio Grande do Norte, município de Currais Novos, 1943.
Neste lugar e neste tempo começava a ser escrita uma nova história, não só de uma cidade, mas de toda
uma região. Era o início da exploração da scheelita - minério de tungstênio de cálcio, que beneficiado,
resulta em um metal de alta resistência e robustez, por possuir o mais alto ponto de fusão - só se deforma
quando submetido a uma temperatura acima de 1.650°. Tal característica o torna matéria prima para
numerosas utilidades, dentre elas, a fabricação de superligas – úteis para revestimentos de aeronaves e
fins militares, como projéteis penetrantes.
Era o período da II Guerra Mundial e os americanos precisavam se municiar, por isso a scheelita
era tão importante para eles. Sabedores da ocorrência do minério na região, haviam instalado um
escritório no município de Parelhas para prospectar novas minas além das já em funcionamento, como a
Mina Quixeré, na cidade de São João do Cabugi.
130
*Mestranda em antropologia – PPGAS/UFRN
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
As notícias se espalhavam, a população se movimentava em torno da novidade, quando um
vaqueiro da fazenda do desembargador Tomaz Salustino encontrou uma pedra de scheelita nas terras do
patrão, distante oito quilômetros do centro de Currais Novos. É a partir daí que vamos nos aprofundar
nessa história: a descoberta do minério nas terras de Tomaz Salustino atraiu uma legião de trabalhadores
interessados em fazerfortuna, em conseguir um emprego, em mudar de vida. Quem eram essas pessoas,
de onde vinham, que memória se construiu em torno delas, que identidade mineira surgiu a partir deles e
o que permanece dela até hoje, são algumas das questões cujas respostas irei em busca, daqui em diante.
Adoto como fundamentação teórica de base para este artigo, as ideias de Maurice Halbwachs
sobre memória individual e coletiva, para quem “somos arrastados em inúmeras direções, como se a
lembrança fosse uma baliza que permitisse nos situarmos em meio da variação constante dos contextos
sociais e da experiência coletiva”.131 Justifico o porquê da escolha: pretendo aqui tomar como referência
para relembrar aqueles momentos e buscar a memória e a identidade construídas em torno do grupo, os
depoimentos de duas pessoas que viveram aqueles dias, acompanharam de perto todo o processo, como
atores: Cícera Alves da Silva, de 88 anos e José Gentil Cortez, de 81 anos. Ainda hoje eles estão lá,
testemunhando a história da Mina Brejuí, cada um no seu canto, carregados de recordações.
Entre outros teóricos, busco também Ecléa Bosi que igualmente procurou em Halbwachs suporte
para embasar sua pesquisa sobre lembranças de velhos, entre os quais é possível, segundo ela, verificar
uma história social bem desenvolvida. “Já atravessaram um determinado tipo de sociedade, com
características bem marcadas e conhecidas; já viveram quadros de referência familiar e cultural
igualmente reconhecíveis, enfim, sua memória atual pode ser desenhada sobre um pano de fundo mais
definido do que a memória de uma pessoa jovem”.132
As lembranças
Não há, ainda, registros no Museu nem no Memorial Tomaz Salustino133 sobre os primeiros
garimpeiros, nem sobre o sistema de exploração do minério em seu início, na região. O que há, a respeito
desse período da história daquele lugar e daquelas pessoas,
está na lembrança dos mais velhos e de alguns de seus parentes e amigos – que tiveram
oportunidade de ouvir os relatos – dos que viveram aquele tempo. Ao tratar da memória como função
social, Ecléa Bosi seguiu o curso das recordações dos velhos.
131
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. SP: Centauro, 2006: 13.
BOSI, Ecléa, 1995:60.
133
O Museu e o Memorial Tomaz Salustino, onde estão expostos fotografias e objetos pessoais do fundador da mineração,
foram montados em 2005, como forma de atrair visitantes e manter alguma atividade em torno da Mina, que passou a Parque
Temático, já que desde 1988 deixou de produzir scheelita, em função da impossibilidade de competir com a China no mercado
internacional.
132
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda: repassada de nostalgia,
revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens caras, pela separação de entes amados, é
semelhante a uma obra de arte (Ecléa Bosi, 1995, p. 82).
Os velhos com quem conversei e cujos depoimentos aparecem aqui, permanecem inseridos nas
atividades do dia a dia da Mina, o que os garantem ativos e, consequentemente, com as lembranças mais
próximas da fala. Seu José Gentil Cortez segue trabalhando no almoxarifado: mesmo aposentado, optou
por continuar na mesma função que ocupa há décadas, como forma de manter o sentido da vida. Ele tem
com a Mina uma ligação que vai além da relação de empregado: toda a sua vida foi escrita naquele chão.
Os colegas mais próximos já tiveram oportunidade de ouvir seus “causos” de quando ainda era menino e
encontrava a scheelita - a pedra rolada – farta, na superfície daquelas serras.
Antigamente, a scheelita tinha diversas cores: azulada, branquicenta, a chamada rolada... A maior
parte que existia aqui em cima da terra era chamada de rolada, porque era redonda e lizinha. Aqui passou
um bocado de ano tirando muita scheelita, muita.
Seu Gentil
Começou assim: a pedra era rolada, num sabe? Num era cavando, a gente apanhava numa latinha
de doce, aí botava numa lata grande e aí quando chegava em casa a gente ia catar num prato, que não
tinha ímã, não tinha nada, tirava aquelas pedrinha de dentro e deixava só a schelita. Começou assim.
Dona Cícera
Dona Cícera Alvez da Silva não trabalha mais, permanece porém, morando na Vila Operária, com
um filho e uma neta. Para a vizinhança, ela é a maior detentora das memórias da Mina, é uma referência
que logo se revela para quem chega ao local à procura de informações: os dedos indicam certos a sua
casa, a de número 43. Foi onde cresceu, casou, criou os filhos, enterrou os pais e o marido. Todos da
família trabalharam na Mina, nas mais diferentes fases, desde seu auge em 1943, até a derrocada, em
1988.
O fluxo das lembranças segue fácil para ela, que sentada na cadeira de ferro e fios de plástico, se
localiza no centro do redemoinho das recordações que trazem para o presente os acontecimentos do
passado: aponta o braço para a esquerda quando fala do local onde “bateava e telava” a scheelita, e para o
lado direito na intenção de localizar por onde passavam os caminhões carregados de milho para as festas
de São João que Tomaz Salustino organizava na Vila Operária.
Como disse Halbwachs, não há memória coletiva que não aconteça em um contexto espacial, o
espaço é uma realidade que dura. Permanecer morando naquele local certamente contribui para que Dona
Cícera retome com facilidade o passado que está conservado no ambiente material que a circunda. Claro
que ela poderia relembrar com igual facilidade daqueles fatos, mesmo que tivesse se mudado para outro
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lugar, recorrendo à imagem do espaço em sua memória, já que este, devido à sua função de estabilidade,
nos dá a ilusão, como reflete Halbwachs, de não mudar pelo tempo afora e fazer encontrar o passado no
presente.
É ao espaço, ao nosso espaço – o espaço que ocupamos, por onde passamos muitas vezes e que
sempre temos acesso e que, de qualquer maneira, nossa imaginação ou nosso pensamento a cada instante
é capaz de construir – que devemos voltar nossa atenção, é nele que nosso pensamento tem de se fixar
para que essa ou aquela categoria de lembrança reapareça (Halbwachs, 2006, p.170).
As experiências pelas quais Dona Cícera passou junto com sua família – assim como a família de
Seu Gentil, se repetiram entre muitos os que se arriscaram na labuta das banquetas134 para a extração da
scheelita. Estas lembranças individuais representam a vida de todo um grupo, porque vividas por muitos,
numa mesma época, num mesmo lugar, se unificaram. Juntas, compõem o mosaico da lembrança coletiva
das famílias dos agricultores que passaram a garimpeiros – mesmo que depois tenham retornado à
atividade anterior devido ao insucesso no novo ofício. As lembranças coletivas, segundo Halbwachs, se
aplicam sobre as memórias individuais, mas será preciso que as lembranças individuais já estejam ali,
senão, a nossa memória funciona no vazio135. São também as memórias coletivas que vão construir a
memória histórica.
Halbwachs argumenta que nossa memória não se apoia na história apreendida, mas na história
vivida.136 Foi então preciso estar lá, respirar daquele ar empoeirado, compartilhar a rotina da lida nas
banquetas, dominar o ritmo do “garfeado”, diferenciar a “pedra pesada” das outras, saber do seu valor e
acompanhar os outros iguais, na busca pelo mesmo sonho, para, ao contar sua própria história, ajudar a
escrever uma maior. Assim, ao passo que as conversas se desenrolam e as lembranças se avivam em
nossos interlocutores, os fios entre elas vão se amarrando.
A memória coletiva se distingue da história sob pelo menos dois aspectos. Ela é uma corrente de
pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, pois não retém do passado senão o
que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a mantém (Halbwachs, 2006, p.102).
O começo A notícia da descoberta do minério atraiu gente de todo lugar: de municípios vizinhos –
Parelhas, Acari, Jardim do Seridó, Carnaúba dos Dantas e de outros estados. Entre 1943 a 1955, em torno
de duas mil pessoas trabalharam no garimpo de Tomaz Salustino. A terra foi dividida em áreas
administradas por feitores, que distribuíam as banquetas entre os garimpeiros, em sua grande maioria,
colonos que antes trabalhavam na agricultura.
134
Banquetas são valas cavadas na terra para a extração do minério.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. SP: Centauro, 2006: 80.
136
Idem, ibidem: 79.
135
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A organização social e familiar137 que caracteriza os que trabalharam naquela época segue em
maior ou menor escala, o modelo da família de Dona Josefa e de Seu Gentil: o pai deixa a antiga
atividade em busca de uma nova vida, expulsos, na maioria dos casos, pelas dificuldades trazidas com a
seca. O fenômeno da migração verificado em função da demanda atraída pela descoberta da scheelita no
Seridó detém padrões observados em situações semelhantes: alguns seguiram sozinhos antes e, quando
obtinham relativo sucesso e estabilidade no novo trabalho, iam buscar a família para juntos, trabalhar e
aumentar a renda familiar. Outros já levavam todos – mulher e filhos – de uma vez pra arriscar a sorte. A
migração neste caso, como esclarece Eunice Duhram138, não se deu apenas em função da miséria na
sociedade de origem, mas da necessidade de melhoria social. E essa realização só acontece se o indivíduo
migra.
Os garimpeiros moravam no mesmo local em que trabalhavam, acampados em barracas
improvisadas, construídas com folhas de marmeleiro e coqueiro, dormindo em redes ou até mesmo no
chão. A batalha era individual para conseguir retirar a maior quantidade possível de minério, cada um na
sua banqueta, espaço individual, geograficamente respeitado pelos outros, de acordo com as leis
estabelecidas entre eles para regulamentar, mesmo que informalmente, a atividade. Apesar da
competição, criou-se uma espécie de companheirismo, de solidariedade. As famílias se ajudavam umas às
outras e, os garimpeiros desacompanhados de suas famílias, acabavam sendo adotados por outra, ou se
agregavam aos grupos formados por colegas na mesma situação.
Aos homens, cabia o trabalho braçal mais pesado. As mulheres e os adolescentes lhes davam
suporte, carregando água e cuidando dos afazeres domésticos, enquanto as crianças e as moças assumiam
tarefas de apoio, como “imar” a scheelita – serviço que consistia na separação, com a ajuda de um ímã, da
scheelita do ferro, este descartado. Cada um, portanto, assumia um papel na cena que se construía no
garimpo de Tomaz Salustino. Eram atores sociais em uma nova vida cotidiana, elaborando interações
resultantes desta convivência139.
Tomaz Salustino, o mito
Ao encontrar scheelita em suas terras, Tomaz Salustino140 já era desembargador, dono de 25
propriedades onde criava gado (quatro mil cabeças) e cultivava algodão, arroz, feijão, milho e frutas.
Ocupava, portanto, o papel de convergente ou mediador dos três ciclos econômicos pelos quais passou a
137
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. RJ: Tempo Brasileiro, 1993.
138
DURHAM, Eunice. 1984.
GOFFMAN, Erving. 2009.
140
Tomaz Salustino Gomes de Melo concluiu o Bacharelado em Ciências Jurídicas em 1910 na Faculdade de Direito de
Recife/PE. Em 1940 foi nomeado desembargador do Tribunal de Justiça do Estado. Em 1939, assumiu provisoriamente o
Governo do Estado. Nasceu no Sítio Alívio em Currais Novos em 06 de setembro de 1880. Morreu em 30 de julho de 1963.
139
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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região: o ciclo do gado, do algodão e agora, o ciclo do minério. “Era, portanto, um homem múltiplo, um
homem bom, o jurista, o
político, o homem público, o pecuarista, o agricultor e o pioneiro na exploração em larga escala” (RN
Econômico, 1981, p. 37).
A memória construída em torno do patrão por Dona Cícera e Seu Gentil, corrobora com a alimentada pela
sociedade local: a do empreendedor que mudou a realidade do município. Reconhecido pela astúcia e
inteligência, a figura de Tomaz Salustino é ainda lembrada como a do homem espirituoso e brincalhão.
Ele também assumiu um papel como ator no palco daquela vida cotidiana141:
Dr. Tomaz era um camarada que gostava muito de recitar poesia, gostava de falar com todo mundo. Se a
pessoa passasse por ele e não falasse, ele chamava e dizia:
- Ei, venha cá, por que não falou comigo?
- Ah, porque eu sou pobre e o senhor é rico.
- Não, não é assim não. Eu sou rico por causa de vocês. Toda vida que passar por mim, me dê as horas,
não passe assim sem me dar as horas porque eu reclamo.
Tá vendo aquela caixa d’água? Quase todo mês eu subia lá mais ele. Ele ficava andando lá em cima solto
e eu sentado, com medo. E ele lá, recitando poesias.
Seu Gentil
Em determinadas datas, promovia grandes festas, ansiosamente esperadas, especialmente no período
junino e em seu aniversário. Todos experimentavam uma fartura à qual não estavam acostumados. Era o
mito que se aliava ao rito.
O finado Tomaz completava ano no dia 6 de setembro. Aí ele mandava ir na (fazenda) Barra
Verde e mandava matar oito bois, sete, aí repartia: onde tinha uma casa com quatro menino, com família,
ele dava 3 quilos, onde tinha pouca, ele dava dois quilos e um litro de vinho, que ele dava. Um carro era
que saía entregando nas portas. Mas tinha festa, muié...
Quando era noite de São João, ele ia buscar na Serra do Doutor dois carros de milho verde e trazia
lenha, muié, a fogueira era quase no meio da estrada, os carros que vinham, chega paravam...
Aí ele fazia assim, muié, botava quatro pau bem grande, mandava o povo botar, aí arrodiava de
corda, num sabe? Era pra gente dançar ali dentro. Aí, botava um tocador numa ponta e outro na outra.
(risos)
Dona Cícera
De garimpo a mina
141
GOFFMAN, Erving, 2009
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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A grande demanda do mercado internacional à procura da scheelita fez com que Tomaz Salustino
regularizasse a mina. Em 1948 ele contratou o engenheiro metalúrgico Sandoval Carneiro para instalar a
usina de beneficiamento da scheelita. Foi a única mina na época que partiu para a industrialização. Assim,
em 1955, surgiu a Mineração Tomaz Salustino, empresa registrada, cujo nome de fantasia seria Mina
Brejuí. Dois anos depois, a mina começou a aprofundar a exploração: os túneis chegariam a 150m,
somando ao todo 65 km de galerias.
Com a regulamentação, apenas os homens seriam contratados. Tratava-se, a partir dali, de uma
atividade exclusivamente masculina, na qual a família operária passaria a ocupar o segundo plano,
tornando-se dependente dos trabalhadores masculinos - os pais de família, assim como foi identificado
por José Sérgio Leite Lopes entre os operários do açúcar142.
Os garimpeiros que permaneceram se uniram aos operários que já traziam a experiência de outras
minas - eram, portanto mineradores que, junto com o antigo corpo de trabalhadores, passariam a dar
início à construção de uma identidade mineira, sem, todavia, cortar definitivamente os laços que os uniam
à antiga identidade como garimpeiros-agricultores, pois esta permanecia ainda forte nesta fase de
mudança.
Os operários, o capacete, a identidade
Trabalhar na mina, enquanto esteve em seu auge de produção, significava status, prestígio. Os
mineradores assumiam agora uma posição social acima dos agricultores e de outros ofícios de valor social
semelhante ao dos colonos, tanto que ser funcionário da mina era um projeto de vida dos moradores não
só de Currais Novos, mas dos municípios vizinhos. O valor dado aos operários era o mesmo atribuído ao
minério, responsável pelo incremento da economia da cidade, assim, bastava sair pelas ruas usando o
capacete, que os comerciantes literalmente os convidavam a entrar nas lojas: quem trabalhava na mina,
portanto, tinha crédito no comércio e o capacete sinalizava isso: seria um símbolo de status, de
estabilidade financeira, assim como Turner identificou: uma vez que os símbolos são relacionados a
outros “eventos”, estão essencialmente, envolvidos com o processo social.
O símbolo vem associar-se com os interesses, propósitos, fins e meios humanos, quer sejam estes
explicitamente formulados, quer tenham de ser inferidos a partir do comportamento observado. A
estrutura e as propriedades de um símbolo são as de uma entidade dinâmica, ao menos dentro do seu
contexto de ação apropriado (Turner, 2005, p.50).
A mina, de acordo com o diretor Carlos Dutra, foi uma escola para a formação de mão de obra.
Engenheiros de vários países vinham conhecer como era desenvolvido o processo de extração e
142
LOPES, José Sérgio. 2011:584
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beneficiamento da scheelita; muitos operários que saíam para trabalhar em outros estados, quando se
identificavam como oriundos da Mina Brejuí, tinham as portas abertas com mais facilidade. Nestas
situações, não era mais preciso usar o capacete para simbolizar o pertencimento, mas ele estava lá, em
forma de conceito.
Um capacete também esteve presente no relato de Seu Gentil. Era a lembrança de um colega
operário, morto em um acidente na mina. Seu Gentil o mantém guardado no almoxarifado como um
troféu, uma prova de bravura. O alto risco do ofício, aliás, sempre foi um fantasma que acompanhou os
trabalhadores. Mas também tinha o poder de transformá-los em heróis: ao sair de casa para o trabalho,
sabiam que poderiam não voltar.
Cansei de ver uma parede assim, cair e matar dois três e eu assim, espiando bem pertinho. Era, de
primeiro aqui morria muita gente.
Dona Cícera
O trabalho na mina, especialmente no subsolo, é uma atividade de alto risco que exige coragem
para descer aos túneis diariamente, esforço físico no desempenho das tarefas e solidariedade nos
momentos difíceis de acidentes e de lutas. Com base em elementos reais e imaginários, muitas vezes se
constrói uma imagem mitificada em torno dos trabalhadores mineiros - personagens que protagonizam
esses episódios.
Ao pesquisar os operários da Vila La Grande-Combe, situada a sudoeste da França, Cornélia
Eckert observou que a mina, o trabalho mineiro, contém qualidades simbólicas de uma ‘identidade-valor’
que amalgama a ideia de cultura como sistema simbólico e de sociedade como atualização de uma ordem
de princípio abstrato.
O ‘valor-trabalho’ é intrínseco à ideologia da sociedade moderna e individualizante, mas
impregnado de seu contrário, sustenta princípios de complementaridade e reciprocidade. Princípios que
não negam o operário-indivíduo (do ideário moderno), mas não o colocam no centro, dão antes, sentido a
uma totalidade, à cultura de uma coletividade pensada como hierarquizada e holista, uma comunidade que
se identifica (ECKERT, 1993, p.143).
A derrocada, o recomeço
Em 1984 a produção de scheelita no Seridó caiu, devido à forte presença da China no mercado. As
multinacionais não podiam mais operar no Seridó, assim, as minas foram fechando uma a uma. A única
que continuou resistindo foi a Brejuí, mas não por muito tempo. A cidade de Currais Novos sentiu os
impactos: os operários foram embora em busca de trabalho em outros estados, muitos deixando suas
famílias para trás, retomando o processo de migração. Entre 1988 a 2005, a Mina permaneceu fechada,
243
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
até reabrir, mas como Parque Temático, passando a ser visitada diariamente por turistas e estudantes
vindos de toda parte do Brasil e até do exterior.
Os mesmos fenômenos vivenciados há quase setenta anos, porém, podem se repetir, com
possibilidade de provocar impactos semelhantes aos que aconteceram na economia, no ambiente e nos
homens daquela região. Empresas nacionais e estrangeiras, especialmente, têm demonstrado interesse em
descobrir jazidas de minerais no Rio Grande do Norte, especialmente, no Seridó.
A superintendência regional do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) confirma
que nos últimos anos vem aumentando a quantidade de requerimentos tendo como objeto da pesquisa os
metais. Somente em 2011, o Departamento autorizou cerca de 400 novos requerimentos. Em 2002, por
exemplo, foram 123. Há ainda 414 solicitações protocoladas que aguardam autorização do DNPM.
Minérios de ferro, ouro, cobre, tungstênio e níquel são algumas das riquezas minerais cada vez mais sob a
"lupa" dos geólogos que mapeiam o território do Rio Grande do Norte 143.
Atualmente, a Mina Brejuí está retomando a atividade: mantém 150 funcionários e produz 20
toneladas de minério por mês, com perspectivas de crescimento.
Considerações finais
Muitos investigadores (historiadores, arqueólogos, sociólogos e antropólogos, sobretudo) têm
dedicado suas pesquisas à coleta e recuperação de elementos do passado das minas e das populações
mineiras com vista à sua preservação para a posteridade. A mina transformou-se então, em um terreno de
trabalho privilegiado para estas ciências e em especial, para a antropologia.
Os antropólogos têm desempenhado um papel fundamental na salvaguarda de uma identidade
mineira, contribuindo para o reforço e perpetuação de memórias e identidades construídas, num contexto
marcado em grande medida, pelas necessidades e interesses das empresas mineiras e dos projetos de
patrimonialização para fins turísticos apresentados pelos poderes centrais e locais envolvidos.
Tais histórias contadas aqui, e que vêm sendo transmitidas oralmente de geração em geração,
ainda permanecem vivas. Mas correm o risco de, com o passar do tempo, ir perdendo os detalhes que a
enriquecem e lhes conferem autenticidade e, por fim, caírem no esquecimento. Por isso a necessidade de
documentá-las o quanto antes, para garantir uma permanência maior, aproveitando que ainda é possível
encontrar vivos os testemunhos de quem as viveu.
Bibliografia
143
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
REVISTA A ORDEM: EXEMPLO DE COMO O DISCURSO ANTICOMUNISTA CATÓLICO
AJUDOU NA FORMULAÇÃO DE UMA IDENTIDADE NACIONALISTA NO FINAL DA
DÉCADA DE 1930
Autora: Daniela Araújo Leirias144
Resumo: Neste trabalho procurarei analisar dois artigos da revista A Ordem de janeiro de 1937 e, outro artigo de agosto de
1939, tendo como objetivo compreender o imaginário anticomunista católico por meio do exame de suas imagens e elementos.
A revista A Ordem foi fundada em 1921 no Rio de Janeiro, sendo depois ligada ao Centro Dom Vital, que foi dirigido por
Jackson de Figueiredo, tornando-se o principal órgão de atuação da intelectualidade leiga para a disseminação dos ideais da
Ação Católica. Meu objetivo é explicar o discurso anticomunista católico como uma continuação do ideário desenvolvido no
século XIX e início do XX pela Igreja. Minha discussão está inserida num contexto histórico em que se discute o regime
implantado na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, sendo acirrado pelo Levante Comunista de 1935 no Brasil e pela
Guerra Civil espanhola. Portanto, entendendo que, por meio da revista A Ordem é possível demonstrar como o discurso
anticomunista católico ajudou na formulação de uma identidade nacionalista no final da década de 1930.
A Igreja católica do Brasil no século XIX se encontrava com inúmeras dificuldades e problemas
tradicionais na conjuntura nacional. A Igreja já apresentava uma diferença marcante no desempenho na
sua firmação religiosa, onde possuíam menos investimento, e apresentando várias dificuldades na
organização institucional. A Igreja já demonstrava essas dificuldades no pequeno número de seminários
com baixa qualidade, posteriormente a quantidade de padres e freias diminuíram depois de 1855 devido à
proibição do Estado a aquisição de novas ordens religiosas, somados ainda, e consequentemente aofrágil
vínculo com o Vaticano.
Neste contexto surgemàs primeiras tentativas de mudança, a Igreja católica passa a tomar decisões
para reverter a sua posição frente ao Estado, e dessa maneira, passando a defender uma ação mais
presente na sociedade, e consequentemente um maior controle do Vaticano nas Igrejas nacionaisjá na
segunda metade do século XIX. A Igreja vai em busca de firmar a sua ação de uma forma mais marcante,
defendendo a religião considerada tradicional da sociedade.
No Brasil tendo influencia dos ideais liberais já no século XIX, resultou na construção de
princípios anticlericais que condenavam as reivindicações dos bispos ativistas. Estas novas ideias
defendiam uma separação entre o Estado e a Igreja, dessa maneira, resultou na ruptura oficial incorporado
na constituição de 1891. Mesmo, devido essa nova situação,a instituição se apresenta agora de uma forma
144
Estudante do Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, orientando PIBIC,
vinculado ao projeto de pesquisa “O pensamento católico, a atuação política e a intervenção social da Igreja em relação à
formulação da identidade da espacialidade norte-rio-grandense entre 1930 e 1964” coordenado pelo professor Renato Amado
Peixoto.
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
independência frente ao Estado. A Igreja passa a construir novas maneira de adquirir a aproximação ao
Estado através de novas relações, entretanto realizam diferentes medidas através de novas reformas
internas, criação de novas dioceses, e também com uma maior intervenção do vaticano e do clero
estrangeiro.
Podemos afirmar que é nesta nova reação e mudança da instituição que definimos como sendo o
modelo da neocristandade, que surge em 1916, mas anteriormente já apresentava indícios dessas novas
reformas e adaptações institucionais. A igreja demonstrava uma conciliação, evitando um posicionamento
de revelia ao Estado, apresentando medidas de adaptações às mudanças sociais, pode desempenhar a sua
intervenção, que dessa maneira, foi possível recuperar o sua atuação social e política.
Assim conseguia o que percebia como sendo os interesses indispensáveis da igreja: a
influência católica sobre o sistema educacional, a moralidade católica, o anticomunismo, e o
antiprotestantismo. Através do modelo da neocristandade, a Igreja revitalizou sua presença dentro da
sociedade. Em poucas palavras, o modelo da neocristandade era uma forma de se lidar com a
fragilidade da instituição sem modificar de maneira significativa a natureza conservadora da mesma.
Por volta dos anos 30, a instituição havia revertido sua decadência.(MAINWARING, 1989, P. 43)145
Dom Sebastião Leme em 1916 se tornou arcebispo de Recife e Olinda, e posteriormente em 1921
a 1942 arcebispo do Rio de Janeiro e eminente líder da Igreja Católica. Em sua figura se expressa a
liderança frente à instituição onde impulsionou a implantação da neocristande, através da publicação da
Carta Pastoral, e posteriormente preparou a Igreja brasileira para a atuação da Ação Católica.
A Ação Católica no Brasil é uma associação civil católica criada em 1935 pelo Cardeal
Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra, devido às novas exigências fundadas pelo Papa Pio XI, que
determinou a construção de associações leigas vinculadas a Igreja Católica de todo o país. Esta ação teve
como princípios os países na Europa, mas no Brasil teve como referencia aos modelos da Itália e da
França. Esta ação teve como meta a divisão em quatro ramos de ação: masculino, feminino, adultos e
jovens, com o propósito de formar uma ação leiga que atuasse nos diversos ramos sociais e políticos da
sociedade.
Na tentativa da criação, teve a sua origem dês do início do século xx ocasionando vários meio para
a implantação dessa nova intervenção da Igreja na sociedade, mas só foi possível através da primeira
encíclica do Papa Pio XI, que defendia a implantação dos ideais católicos com a intervenção em vários
países,que pretendeu o trabalho da hierarquia Eclesiásticano argumento de evangelização das nações.
A Igreja precisava cristianizar as principais instituições sociais, desenvolver um quadro de
intelectuais católicos e alinhar as práticas religiosas populares aos procedimentos ortodoxos.
(MAINWARING, 1989, P. 41)
145
MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e Política no Brasil (Trad. Heloisa Braz de Oliveira Prieto). São Paulo:
Brasiliense, 1989.
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
De acordo com as diretrizes do vaticano, os objetivos da Ação Católica considerada por Pio XI,
que defendia a intervenção da Igreja Católica, promoveram a intervenção em diversas áreas: educacional,
política e moral, como uma forma de promover a restauração dos ideais católicos com mútuo trabalho da
hierarquia Eclesiástica. Entretanto, já demonstrando uma preocupação neste novo contexto, onde se
confirmava a presença da implantação da neocristandade, a Igreja atuando dentro na sociedade sem
perder seu principio conservador.
De acordo om esses ideais da aproximação entre a Igreja Católica e a aproximação com o Estado,
proporcionando uma intervenção com o laicato, em 1921 surge à revista A Ordem, sendo o primeiro
órgão de origem laica composta por intelectuais convertidos ao catolicismo, passam através da revista a
defender seus principais princípios, contra o socialismo e os ideias liberais decorrentes do período após a
Primeira Guerra Mundial.
Posteriormente, se tornou possível à criação do Centro Dom Vital, fundado em 1922 no Rio de
Janeiro por Jackson de Figueiredo, intelectual católico com sua formação em Direito que se dedicou
também ao jornalismo.
Nesta difusão, ondepropiciou o surgimento do catolicismo entre os intelectuais, que se destacou na
direção do Centro Dom Vital, foio líder leigo Alceu Amoroso Lima, queBacharelou-se em 1913 pela
Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, tendodemostrado o seu trabalho como crítico
literário em O Jornal, utilizando o pseudônimo de Tristão de Ataíde. Posteriormente se tornando diretor
do Centro Dom Vital e da revista A Ordem.
A participação do Arcebispo Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra a esta associação civil, como
um dos principais objetivos: de se inserir na sociedade com a participação de intelectuais leigos nas
discussões e estudos dos ideais católicos sob a supervisão da Igreja. O centro era uma associação elitista
como propósito de atrair intelectuais de todo o país para a construção de uma aliança entre o poder
eclesiástico e a intelectualidade com o intuito da formação de intelectuais católicos.
Desse modo, os católicos não se limitariam a resistir à cultura e as instituições diminuídas pelas
elites secularizantes: criaram, além disso, suas próprias vanguardas intelectuais e forjaram um
discurso político com características próprias. (RODRIGUES, 2005, p.138).
A Igreja se utilizou da presença de intelectuais que defendiam seus ideais, com o argumento que
esses intelectuais católicos formulariam uma melhor solução para os problemas daquele período, e dessa
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
forma, se envolvendo nas questões sociais e políticas que proporcionou uma relação de aproximação ao
Estado como uma maneira de influenciar a sociedade.
Esse posicionamento alcançado define sua nova posição frente ao Estado, principalmente,
verificamos no governo de Vargas, onde essa aliança entre a Igreja e o Estado se reafirma. O Estado
percebeu a importância desse apoio religioso que legitimava as suas diretrizes politicas.Nessa aliança que
coincidem com a semelhança ideológica que era defendida por ambos: o nacionalismo, o patriotismo e o
anticomunismo.
O que seria então esse anticomunismo? O termo anticomunista devido a sua complexidade de
definições heterogênea se tornou bastante difícil uma definição precisa, mas podemos entender com
sendo uma atitude militante contra os ideais comunista, demonstrando essa oposição de forma
governamental ou através de organizações que demonstre o posicionamento contrário por um conjunto de
ideias ou de ações contra os princípios dessa ideologia.
O anticomunismo surgiu no Brasil, de acordo com Rodrigo Patto Sá Motta146, após o surgimento
da Revolução de 1917, que postulou os princípios do bolchevismo onde foi capaz de influir nas questões
políticase internacionais,somadas as crises ocorridas após as consequências da Primeira Guerra
Mundial.Nesta perspectiva, baseando no contexto histórico, onde se defrontava ao exemplo do sistema
implantado na União das Repúblicas Socialistas Soviética serviu como alternativas políticas de outros
países.
Essa ascensão da Revolução Russa deixou os países capitalistas preocupados com a expansão
revolucionária, somado as consequências que os países estavam passando das crises pós-primeira guerra,
ocasionou o medo de que esse exemplo poderia servir para as demais massas proletárias. Os governos
capitalistas tomaram atitudes que resultaram ao combate a esses ideais, juntando esforços estatais e
degrupos da sociedade civil que se utilizarão de propagandas e atitudes repressivas contra o inimigo
comum.
Na análise do Marco Antônio Machado Lima Pereira147, demonstra que o anticomunismo teve
mais enfoque após 1935 a 1937, sendo um dos momentos mais críticos de combate ao comunismo,
146
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo:
Perspectiva: FAPESP, 2002.
147
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
enfatizado após o Levante Comunista de 1935. Segundo o autor Cândido Rodrigues148, através da análise
da revista A Ordem,em seu trabalho enfatiza a presença do discurso anticomunismono Brasil
presenteantes do Levante Comunista de 1935, que formulou de forma presente os princípios do
anticomunismo.
Na revista A Ordem,que publicou um artigo intitulado:“A Igreja e o socialismo violento ou
moderado”, escrito pelo intelectual Antônio Osmar Gomes, em que utilizava o pseudônimo de Paulo de
Damasco. Neste artigo do ano de 1937, nos demonstra uma preocupação de manter em seu discurso a
condenação dos princípios socialistas que se demonstracontrários aos ideais católicos.
Ora, em seu todo, o socialismo é taxativamente condenado pela Igreja, que o considera imoral, isto é,
contrário ao direito natural e á moral cristã. É como uma peste mortal, uma seita de homens que se esforçam,
sob os mais variados disfarces, por levar a cabo o desígnio de destruir os alicerces da sociedade civil. (Leão
XIII). Esse Julgamento ainda não se modificou em que pesem os vários aspectos que a doutrina socialista tem
apresentado em suas aplicações, aqui e alhures, para inisuar-se cada vez mais no seio do povo. Dando origem
á doutrina da violência e da subversão completa de toda a ordem no mundo, que é o comunismo militante, o
socialismo, pela voz de seus mentores, diz ter evoluído, uma vez que transigiu quanto aos seus principais
postulados – a luta de classes e a supressão da propriedade privada.149
A Igreja se manifestouatravés da sua própria colocação frente a uma ação doutrinária, que deixava
clara a sua preocupação na defesa dos princípios morais da Igreja católica, defendendo como a única
verdade eterna, se colocando em primeira instância como a única salvadora dos problemas da
humanidade.
O comunismo se apresentava como sendo o adversário mais recente da Igreja, pois a história da
instituição demonstrava uma série de acontecimentos que era visto pela Igreja como desafios superados
desde a antiguidade, e que sempre apresentou vitoriosa na luta contra os inimigos de Deus.
É violento o socialismo, sob o nome de comunismo, pugnado a ferro e a fogo pela conquista do mundo para a
utópica implantação de sistema de governo e de vida, em tudo contrário aos direitos naturais e aos fins
sobrenaturais do homem... A Igreja, hoje como ontem e como sempre, ainda não cessou nem cessará nunca
de gritar a sua enérgica condenação a essa espécie de socialismo violento e subversivo.150
148
RODRIGUES, Cândido Moreira. A Ordem – uma revista de intelectuais católicos: 1934-1945. Belo Horizonte:
Autêntica/FAPESP, 2005.
149
DAMASCO, Paulo de. A Igreja e o socialismo violento e moderado. A Ordem. Rio de Janeiro, p.31, jan./jun. 1937
150
Ibidem, p. 32.
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Portanto, podemos entender o comunismo visto como um inimigo não apenas pelo o que se define
na luta de classes, onde se tornaria possível à conquista do poder pela classe trabalhadora, mas pelos
princípios filosóficos que levam aos questionamentos sobre a doutrina católica, negando os seus
principais valores, como a negação a existência de Deus, a família, contra a hierarquia e a ordem, e
consequentemente preferindo a luta de classes no lugar da caridade cristã.
Esses princípios comunistas se apresentaram de forma concreta através do advento bolchevique.
Onde o medo da Igreja aumentou devido as inúmeras perseguições aos padres na Rússia. O governo
mandou fechar templos, e posteriormente prendeu e executou religiosos por estarem contra o processo
revolucionário. Este é um dos argumentos contra o comunismo expresso também na revista A Ordem
sobre o artigo “A Igreja e as Perseguições Modernas”, onde o bispo Artur da Inglaterra fez denúncias das
perseguições sofridas pelospadres na Rússia,como forma de denunciar as perseguições aos religiosos.
Utilizou-setambém desse argumento para enfatizar o anticomunismo em sua crônica.
O inferno de Dante, disse S. Exa. Revdma, nada é em comparação aos horrores dessa perseguição, que nasce
do materialismo dialético sobre a qual assenta todo esquema bolchevista. Não há lugar para um ideal solitário
espiritual ou para um simples pensamento religioso ou mesmo para consciência, num sistema materialista.151
Por fim, outro discurso anticomunistaonde podemos verificarna presença marcante neste período é
a defesa do nacionalismo, entendido neste contexto como um dos principais argumentos a favor de uma
nação unida contra qualquer conflito ou algo que trouxesse a desordem social. O comunismo seria no
momento a desordem mais iminente e perigosa, e o nacionalismo seria a proteção, de acordo com os
conservadores, como um conjunto unido contra ao inimigo estrangeiro.
O espírito da nacionalidade acentuou-se nestes últimos tempos, em todos os países, num despertar vigoroso.
Este fato significou a princípio uma reação contra o internacionalismo insidioso, acusado com fundamento de
propagar por todo o mundo os germes da revolução social moscovita.152
A própria formulaçãodo discurso anticomunista é uma construção de uma identidade nacionalista
presente no final da década de 1930, onde a Igreja pode restabelecer os vínculos com o Estado, e
consequentemente, serviu como doutrinária defensora da moral contra qualquer ideologia que ameaçasse
o seu espaço conquistado na atuação politica e social. Entretanto, foi na junção com a Igreja e a
151
ARTUR . AIgreja e as Perseguições Modernas A Ordem. Rio de Janeiro, p. 64,jan./jun. 1937
MARQUES, Xavier. Nacionalismo e Imperialismo. A Ordem. Rio de Janeiro, p. 154, ago. 1939.
152
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intelectualidade católica que o Estado podeformular essa identidade como uma maneira de legitimara sua
ação política.
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CARNAVÁLIA: ESPAÇOS DO CARNAVAL DA TROPICÁLIA.
Enzio Gercione Soares De Andrade
Eu organizo o movimento/
Eu oriento o Carnaval/
Eu Inauguro o monumento/
No planalto central/
Do país.
Tropicália (1968)
Música e Letra: Caetano Veloso
Resumo: A Tropicália como proposta e cenário dominante na cultura brasileira entre o fim dos anos 1960 e início dos anos
1970, no último século, se caracterizou pelo uso da festa enquanto temática e performance ,notadamente o carnaval, para
discernir a ideia do espaço Brasil e suas aporias históricas. Este trabalho é uma tentativa inicial de compreensão desta questão.
A origem do Carnaval é incerta, desencontrada e remota; certamente tal festa resulta no encontro
de antigas práticas religiosas, ligadas a ciclos agrários, que celebravam a vida, a morte, e a carnalidade.
Desta forma, O Carnaval sempre foi uma festividade ritmada por uma noção de tempo inerente a sua
constituição, mas o que pouco se percebe é a espacialidade que o carnaval ajudou a criar e a importância
que a mesma possui.
O carnaval no Brasil é uma síntese que começa a se estabelecer no período da colonização
portuguesa, recebendo evidentemente influências negras e indígenas. Em princípio era denominado de
entrudo e lentamente em seu devir histórico tomou as formas gerais pelas quais as conhecemos hoje.
Tornando-se gradativamente ao longo dos séculos XVIII e XIX uma festividade eminentemente negra,
terminou por se constituir:
“Um meio de expressão de resistência escrava e negra, e, portanto motivo de preocupação branca”.
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Assim foi estabelecido o espaço transgressivo, rebelde e anárquico do Carnaval, como uma área
cultural de resistência, onde os corpos poderiam ter a liberdade, mesmo que por um breve instante. Esse
espaço transgressivo, essa fronteira no limiar da revolta, permitia a mobilidade popular em vários
momentos da História da sociedade brasileira, como uma válvula de escape, uma catarse que exorcizaria
as dores e angustias de grande parte da nação.
Talvez por ser um espaço potencialmente perigoso, O Carnaval sempre foi alvo dos moralistas,
das autoridades, de todos aqueles que não conseguiam e ainda não conseguem conviver com o excêntrico,
o indeterminado, o atópico, na medida em que o prazer e a rebeldia são escandalosos não por serem
imorais, mas porque não tem lugar nenhum em nenhum lugar. A Historiadora Rachel Soihet afirma de
forma muita precisa sobre a folia:
“O Carnaval é um momento privilegiado nesse processo de resistência, no qual
aparece de forma mais acentuada sua irreverência, através da paródia às diversas
modalidades de opressão, às regras e aos tabus. Também é o momento em que, a despeito
de todas as proibições, os populares ocupam as ruas, quer amedrontando as elites com
seus cordões quer extasiando-as com seus ranchos e suas músicas.”
Não podemos esquecer que o Carnaval no contexto das festas nacionais assumiu um caráter
superlativo e foi lentamente erodindo convenções sociais vigentes, ou abrindo novas perspectivas de
relacionamentos sociais na medida em que:
“As festas, afinal,pertencem ao contexto social que as comemora e produz,impondo seus próprios
impulsos e cores.”
É importante observar que embora o Carnaval tenha criado um espaço de liberdade e transgressão, ele
foi sendo lentamente incorporado a cultura dita oficial. Tal fato teve início com o movimento modernista
no início do século XX, principalmente a partir do trabalho de dois grandes mestres que são Oswald de
Andrade e Mário de Andrade. O primeiro afirmava em 1924 no “Manifesto Pau Brasil”:
“O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau Brasil.Wagner submerge ante os cordões
de Botafogo. Bárbaro e nosso.”
Posteriormente em 1928, reafirmaria o primado do Carnaval pra o Brasil no “Manifesto
Antropófago” onde dizia:
“Nunca fomos catequizados”. Fizemos foi o Carnaval. O índio vestido de senador do Império.
Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses. ’’
Mario de Andrade em seus estudos de musicologia procurou atentar para os ritmos festivos que se
efetivam no Carnaval assinalando que:
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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“De longe, a música popular brasileira é a mais completa, mais totalmente nacional, mais poderosa
criação da nossa raça”.
É notório o interesse dos modernistas no Carnaval na proporção em que buscavam construir um
paradigma de identidade nacional, sempre ressaltando o caráter popular, irrequieto, paródico, irônico e
transverso da festa, mas como ressaltado anteriormente essa idéia estava na ordem do dia do Estado
Brasileiro que percebia a celebração momesca como uma expressão da raça, um elemento cultural que
seria a alma do Brasil, uma síntese da nossa mestiçagem amplamente alardeada pelo Governo Varguista
principalmente no período conhecido como “Estado Novo” entre 1937 e 1945.
A esse respeito o brasilianista Christopher Dunn ressalta:
“By the 1930s, the spirit of irreverent rebellion against literary conventions had
subsided as modernismo was institutionalized under the aegis of an emergent nationalist
and populist political regime. During this period, key artists and intellectuals sought to
explain the originality of Brazilian civilization in terms of its racial and cultural hybridity,
thereby establishing a paradigm for a mestiço national identity”
(Nos anos trinta, o espírito de rebelião irreverente contra as convenções literárias que subsistiam como
modernismo estavam institucionalizadas sob a égide de um emergente regime político nacionalista e
populista. Durante esse período, artistas e intelectuais chaves procuraram explicar a originalidade da
civilização brasileira em termos de hibridismo cultural e racial,estabelecendo por conta disso um
paradigma de uma identidade nacional mestiça.)
Um exemplo chave dessa idéia se encontra na canção de Lamartine Babo intitulada “O Hino Do
Carnaval Brasileiro”, uma marcha de 1939:
Hino do carnaval brasileiro
(Lamartine Babo)
Salve a morena!
- A cor morena do Brasil fagueiro
Salve o pandeiro!
Que desce o morro pra fazer a
Marcação...
São são são são
Quinhentas mil morenas!
Loiras, cor de laranja, cem mil...
Salve! Salve!
Meu carnaval Brasil!
Salve a loirinha!
Dos olhos verdes - cor das nossas
Matas...
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Salve a mulata!
Cor do café - a nossa grande produção
São são são são...
Quinhentos mil morenas!
Loiras, cor de laranja, cem mil.. .
Salve! Salve!
Meu carnaval Brasil!
A apropriação do Carnaval pela cultura oficial, evidentemente reduziu seu caráter transgressivo,
todavia não eliminou o espaço que o mesmo sempre determinava. Sendo uma manifestação coletiva da
sociedade brasileira, o Carnaval tanto se realizava no campo quanto na cidade, entretanto tendo um
caráter notadamente urbano, foi no espaço citadino que ele encontrou suas formas mais apropriadas de
manifestação. O Historiador Nicolau Sevcenko chega a relatar que o Carnaval gerou uma nova
sensibilidade urbana na proporção em que:
“Todos vivem de maneiras diferentes a mesma experiência, concentrada no mesmo setor do espaço
público e no mesmo intervalo de tempo. A rigor, não são um espaço e um tempo qualquer”.
Na medida em que por sua vez:
“A excepcionalidade desse momento e desse local põe em relevo a estranha conjunção observada entre
simultaneidade de ações desconexas, incomunicabilidade de grupos, fragmentação das percepções,
descontinuidade dos fluxos de transito pelas áreas públicas.”
O Carnaval não teve dificuldades em se adaptar a sociedade moderna e de mesma forma ao seu
caráter dispersivo e fragmentário, inclusive pela sua essência ser naturalmente dada à incongruência, a
dispersão e a hipérbole barroca. É importante ressaltar que em alguns períodos, a temeridade do carnaval
fez com que muitos quisessem até proibi-lo; um bom exemplo disso foi à discussão da viabilidade ou não
em se realizar a festa na época da segunda grande guerra; A esse respeito à Historiadora Flavia Pedreira
de Sá relata:
“A discussão sobre a “conveniência” de ocorrerem às comemorações carnavalescas na
fase mais crítica da Segunda Guerra, período que coincidiu com a entrada formal do
Brasil no conflito mundial, foi assunto que ocupou por várias vezes as principais páginas
dos jornais de varias capitais brasileiras. Na então capital federal essa polêmica ganhava
fôlego, indicando uma preocupação por parte da população em geral e de seus expoentes
intelectuais com os possíveis significados da festa paga e sua associação ao símbolo de
“maior festa popular brasileira”“.
O carnaval pela sua irreverência sempre foi um espaço para a ação crítica da sociedade brasileira e
tal elemento não foi normatizado no decorrer do tempo, sendo um dos elementos capturados pela
Tropicália em sua intervenção cultural em fins da década de 1960 e início dos anos 1970. Uma das
principais expressões utilizadas para definir o movimento da Tropicália é a “carnavalização”. O
movimento promoveu um processo de carnavalização cultural no Brasil.
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
O Carnaval de rua é a expressão do rito carnavalesco que mais influenciou a Tropicália. Tendo
sido interiorizado enquanto linguagem, estendeu-se ao aspecto formal das composições, à performance
dos artistas no palco e ao espetáculo.Imbricou-se tão profundamente com a estética tropicalista que se
tornou imbricado também com a cultura brasileira.Caetano Veloso viu no Carnaval um exemplo de
solução estética e de saúde criativa do povo brasileiro.
O procedimento fundamental da Tropicália é a realização de um inventário sobre as “relíquias do
Brasil”, entendidas todas as relíquias como visões, representações, utopias tanto a direita, quanto a
esquerda do espectro ideológico. Nesse processo é que o Carnaval é alçado à condição ideal de espaço
para a realização dessa liturgia sobre o país. Sobre esse aspecto nos relata o filósofo Celso Favaretto:
“A carnavalização tropicalista deve, além disso, ser analisada quanto ao seu processo de espacialização.
Na maior parte das músicas há alternância,quando não oposição,de espaço aberto e espaço fechado,
inclusive um processo de abertura de espaços fechados. As “ações” ocorrem nas ruas, praças públicas,
parques, que são lugares de passagem e mudanças rápidas; ou, então, em interiores e exteriores
(psicológicos ou ideológicos)-salas de jantar, quintais, corredores, portões, prateleiras, balcões”.
O carnaval não é para a Tropicália apenas o cenário onde se realiza o acontecimento, seja a crítica
social, a vaia, o transe, mas o espaço vivenciado como experiência histórica, atendo se a idéia de que:
“O carnaval se situa na fronteira entre a arte e a vida. É a própria vida apresentada como os elementos
característicos da representação. Ignora qualquer distinção entre atores e espectadores”.
O rito festivo carnavalesco não conhece fronteira espacial e é por natureza, invasivo, extensivo,
espraiando-se pelo corpo social, pelo espaço cultural e pela concretude do espaço urbano. A Tropicália
tinha ciência dessa perspectiva, e inseriu na sua ação performática todos esses elementos. A apoteótica
cena final do filme “Terra em Transe” do cineasta Glauber Rocha é um bom exemplo dessa mirada; Num
átrio barroco,onde se encontram relíquias de uma suposta nação chamada Eldorado, um líder populista de
tendências politicamente conservadoras é sagrado num ritual carnavalesco, e o próprio carnaval é usado
aí como forma de ampliar o grotesco do espaço e da cena em questão.Cruzes,flâmulas,passistas,corroem o
ideário político em que se assentavam certezas históricas do Brasil, e nunca o poder corrosivo do
Carnaval foi tão intenso. A intensidade da cena só encontra equivalente em contundência, em derrisão, na
música Tropicália de Caetano Veloso. A canção emblema do movimento assinala em seus primeiros
versos, a necessidade de organizar o movimento e inaugurar o monumento na simultaneidade da
orientação do Carnaval. A celebração festiva não se encerra nesse primeiro momento, mas percorre todo o
espaço da canção, notadamente em seus estribilhos onde se entoam vivas a imagens de espaços
cristalizados da história e da sociedade brasileira. De mesma forma a composição da obra Tropicália
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carnavaliza o espaço e o tempo na medida em que alegoriza de forma abissal nossos impasses e
dicotomias sociais no Brasil nas últimas décadas do século XX.
Na mesma orientação a instalação Tropicália do artista plástico Hélio Oiticica traz o espaço do
carnaval como uma prática que o espectador tem de vivenciar para compreender a realidade que o cerca.
A obra se compõe de um labirinto, onde de forma carnavalesca convivem objetos diversos, aliados a
seixos de pedra, areia, plantas, e no fim um monitor de televisão ligado, como uma representação
especular e espetacular, para não dizer barroca ou surreal do Brasil.
O ritual carnavalesco para a Tropicália interessa como uma vivência que não se esgota em si
mesmo, ou seja, o espaço do carnaval tropicalista é algo que pode e é continuamente reinventado e
reinvestido de força. Essa força era perceptível de uma forma bem clara, marcada e presente nas
apresentações tropicalistas seja nos espetáculos ao vivo como na boate sucata após o festival internacional
da canção, onde Gil, Caetano e Os Mutantes celebravam de forma anárquica e carnavalesca os
descaminhos sociais e políticos do país, e que posteriormente terminou por provocar a prisão dos dois
primeiros artistas em dezembro de 1968, após a edição do ato institucional número 5(AI-5) ou nas
apresentações do programa Divino Maravilhoso, onde realizavam banquetes que carnavalizavam a santa
ceia cristã, causando intensa repulsa nos setores mais conservadores da nação.
É importante mencionar que o movimento tropicalista tinha uma noção de que o espaço do
carnaval por ser sempre reinvestido e reinventado era um espaço contínuo labiríntico e desdobrável,
sendo também permutável na medida em que poderia abrigar ou cambiar diversas expressões, situações,
avatares, discursos históricos, formulações sociais numa intensa cadeia de multiplicidades, chamando a
atenção para a situação presente da contemporaneidade da nação e nunca formulando um devir histórico
pleno e isento de contradições como apregoavam os artistas ligados a “Canção de Protesto” para o Brasil.
A visão tropicalista remete a concepção que o carnaval cria um espaço, uma zona não interdita de
onde poderiam surgir impulsos sociais que regenerassem o seio da nação brasileira. Implícita se encontra
uma idéia anti nostálgica de um espaço carnavalesco, ou seja, a Tropicália se nega aceitar a conservação
de uma expressão do passado, algo bonito, mas melancólico porque ultrapassado. O espaço da festa
carnavalesca para o tropicalismo é o espaço onde tudo converge, diverge e se reorienta ganhando nova
roupagem e dimensão. Em certa medida a Tropicália oficia o espaço do Carnaval como uma tragédia
grega, onde a teatralidade pode ser o mecanismo de desrecalque social, do deixar sangrar, o espaço que
tudo pode ser e acontecer. Caetano Veloso disse a esse respeito:
“O carnaval é um momento em que a totalidade da população das cidades brasileiras,
aqueles que se escondem do carnaval, aqueles que temem, aqueles que ficam
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tristes,aqueles que não gostam,estão sendo atingidos negativamente por aquilo.
Negativamente é uma palavra errada, mas todo mundo vai entender o que eu quero
dizer... Carnaval, então, é o momento em que a totalidade da população das cidades
brasileiras vive aquela coisa sutil, e grossa, que é difícil dizer,como se fosse,talvez, um
momento da tragédia na Grécia,quando todo mundo ia ao teatro que durava horas,às
vezes o dia inteiro”
O elemento do desrecalque social permite pensar o espaço carnavalesco tropicalista, como um
espaço tácito de quebra dos acordos sociais, que em qualquer momento pode ser dilatado, remetido a
outras possibilidades, e que poderia ser uma área de revolução social, comportamental, existencial, na
medida em que a dor, entendida, em todos os seus desdobramentos, do coletivo ao individual, do
existencial ao político, seria a senha pra balançar o chão da praça, da rua, escancarando as avenidas,
subvertendo toda a noção de ordem e progresso.
O Carnaval é para a Tropicália, também o espaço da ludicidade, da realização da utopia possível,
do êxtase social, mas jamais da alienação ou do esquecimento. O alvo maior do tropicalismo seria a
carnavalização da existência, a criação de um espaço libertário, onde todas as restrições seriam execradas,
na proporção em a vida seria entendida como uma celebração profusa e não mediada por nenhuma
limitação ao prazer.
Os tropicalistas usavam da formulação carnavalesca como uma tática de guerrilha que de e em
certa forma seria uma maneira de ao ocupar espaços cristalizados pela ação temporal humana, procurar
organizar uma nova espacialidade. Se entendermos a operação tropicalista como uma “tática”, conforme a
acepção de Michel de Certeau, aquela procura orientar a criação de um novo espaço, a qual é um lugar
praticado, implicando em um movimento que foge as operações de poder que tentam controlar o espaço
social ou conforme a metáfora, uma dada língua.
O Carnaval pela sua capacidade de estranhamento, de provocar estranhamento antes de tudo,
permite a Tropicália deslizar entre o espaço do dizível e do indizível. É importante ressaltar que a opção
do Carnaval pela Tropicália ocorre num contexto histórico de extrema densidade e de extrema sisudez, e
que o carnaval tropicalista se alinha em afinidade existencial e comportamental ao Maio Parisiense de
1968, ao questionamento das formas usuais de ser fazer política e não esquecendo a introdução das
questões a respeito da política do corpo. Os tropicalistas recuperam o adágio de Oswald de Andrade que
formulava a equação, Amor=Humor.
Tal formulação tropicalista era uma maneira de levar para o espaço cultural, tendo por ícone
primário o espaço carnavalesco, as diversas discussões que grassavam no interior da sociedade brasileira
em um momento em que os canais tradicionais da política e do social se encontravam interditos pela
radicalização que vivenciava o país.
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A radicalização desdobrou-se em atos coercitivos da maior gravidade tanto que o Carnaval
tropicalista foi momentaneamente interrompido, não antes de Gilberto Gil e Caetano Veloso terem
lançado dois petardos, respectivamente “Aquele Abraço” e “Atrás do trio elétrico”, levando o carnaval
para outras paragens frias e distantes.
Evidentemente que o espaço que a Tropicália criou na sociedade brasileira foi obnublado por
forças políticas extremas, mas o espaço criativo que o carnaval tropicalista fomentou não desapareceu de
um todo, não havia força tão extrema que pudesse fazer calar a voz do carnaval. E nesse ínterim, mesmo
após o impulso mais vital da Tropicália ter cessado a chama viva carnavalesca prosseguiu, e frestas foram
abertas na vereda tropical do país, quer fossem no espaço da cultura, do social e no espaço político porque
como afirmava Caetano Veloso:
“Não é, também, que o Carnaval sugira uma sociedade ideal, não. O Carnaval, nesta sociedade real,
desempenha um papel fundamental. Terapia, também. É estética. É uma força cega, pode ser política.”
Afinal de contas, atrás do trio elétrico, só não vai quem já morreu.
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
SOCIABILIZAÇÃO E MANIFESTAÇÃO CULTURAL ATUANDO NA PRODUÇÃO DE UMA
IDENTIDADE COMUNITÁRIA NO CONJUNTO CIDADE SATÉLITE (1982-2010)
Gabriela Fernandes de Siqueira
Thaiany Soares Silva∗
Resumo: Esse trabalho objetivou apresentar como ocorreu o desenvolvimento de espaços de sociabilização e de
manifestações culturais no Conjunto Cidade Satélite (Natal- RN), contribuindo para a criação de uma identidade comunitária
nesse também denominado “conjunto dormitório”. O trabalho analisou as manifestações culturais do Conjunto desde sua
fundação (1982) até os dias atuais, tentando perceber as modificações desse espaço e de sua identidade (identidades). Para
tanto, foram realizadas e analisadas entrevistas com os moradores, utilizando-se a metodologia da história oral e análise de
discurso. As entrevistas foram realizadas com indivíduos de diferentes faixas etárias e demonstraram a existência de diversas
manifestações como gincanas, festas de São João, festas religiosas, shows de rock e o desenvolvimento de outros espaços que
também representavam mecanismos de integração entre os membros da comunidade e foram importantes para a construção de
um sentimento de pertença. Cada morador possuiu uma visão particular sobre essas festas e manifestações que movimentavam
e integravam a comunidade, contrariando o papel de “cidade dormitório” que foi atribuído àquele espaço. Muitas dessas festas
e expressões do Conjunto se perderam ao longo do tempo devido às transformações da sociedade urbana. Entender essas
mudanças é também reconstruir a (as) história/histórias da comunidade estudada.
Palavras-chave: Sociabilização. Identidade. Cidade Satélite.
O processo de urbanização no Brasil intensificou-se a partir do século XX, possuindo variações de
acordo com as peculiaridades locais de cada território. A partir da década de 1960, o denominado êxodo
rural passou a ser mais expressivo no país, contribuindo para dar destaque às discussões sobre a questão
da moradia, já que as cidades começaram a possuir um maior número de habitantes, não tendo
infraestrutura suficiente para acomodar esses novos moradores.153
Segundo Correa, existem três agentes principais atuando na produção do espaço urbano:
proprietários fundiários, promotores imobiliários e Estado.154 O Estado é um dos agentes que mais atua
nessa produção espacial, uma vez que age criando mecanismos de créditos para financiar habitações,
estabelecendo ainda normas regulares do uso do solo. Nesse sentido, o Estado brasileiro tomou algumas
iniciativas para tentar sanar o problema da habitação, uma delas foi a criação, em 1964, do Banco
Nacional de Habitação (BNH), objetivando coordenar a política habitacional dos órgãos públicos,
financiando a aquisição da casa própria, estimulando a construção de moradias populares, entre outras
soluções. O BNH, extinto em 1996, foi considerado um dos agentes financeiros mais expressivos do
processo de desenvolvimento urbano brasileiro.
∗
Mestrandas em História e Espaço pelo Programa de Pós- Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
GOMES, R. C. C., SILVA, A. B., SILVA, V. P. Política habitacional e urbanização no Brasil. Scripta Nova. Revista
electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2003, vol. VII, núm.
146(083). Disponível em: http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-146(083).htm Acessado em: 26-11-2011.
154
CORREA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 1989.
153
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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Em relação ao processo de urbanização de Natal, nota-se que até a construção dos denominados
conjuntos habitacionais, a cidade possuía um espaço reduzido, até o início do século XX era formada por
apenas dois bairros, Cidade Alta e Ribeira. Após a Segunda Guerra Mundial, a cidade passou a receber
maior número de migrantes, fazendo-se ainda mais necessário a construção dos conjuntos habitacionais.
Esses conjuntos passaram a ser construídos em áreas periféricas, proporcionando o surgimento de
“externalidades positivas” para a expansão do capital.155 Assim, a cidade começava a ser ligada a áreas
até então desocupadas, sendo necessária uma rede de infraestrutura, dinamizando o espaço e integrando-o
à parte central da cidade.
Esse artigo tem como objetivo apresentar um pouco da história de um desses conjuntos
habitacionais projetados no final da década de 1970, o Conjunto Cidade Satélite, localizado no bairro
Pitimbu (Natal/RN), enfatizando a importância das manifestações culturais na criação de uma identidade
comunitária. Compartilhando da noção de que os indivíduos estão continuamente colocando para si
questões relacionadas ao local onde moram, possuindo senso aguçado de herança156; e concebendo a
memória como representação seletiva do passado, que nunca é somente a representação do indivíduo
apenas, mas sim de um sujeito inserido em um contexto familiar, social, nacional157, optou-se por utilizar
a metodologia da história oral nesse trabalho, visando resgatar diferentes memórias. A realização de
entrevistas possibilitou entrar em contato com a produção direta de fontes. Foram entrevistadas pessoas
da própria comunidade, habitantes que foram morar em Satélite quando do início de sua fundação, outros
que chegaram posteriormente e jovens que nasceram no Conjunto.
Compartilhou-se da noção de que história oral é uma metodologia fundamental para o estudo de
acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos e
conjunturas à luz de depoimentos de pessoas que deles participaram ou testemunharam.158
Com
a
história oral tenta-se ampliar o conhecimento sobre acontecimentos e conjunturas do passado por meio do
estudo aprofundado de experiências e versões particulares, procurando ainda compreender a sociedade
com base no indivíduo que nela viveu, estabelecer relações entre o geral e o particular por meio da análise
comparativa de diferentes testemunhos, e tomar as formas como o passado é apreendido e interpretado
por indivíduos e grupos como dado objetivo para compreender suas ações.
Como uma “Cidade Satélite” pode forjar uma identidade comunitária?
155
GOMES, R. C. C., SILVA, A. B., SILVA, V. P. Op. cit.
SAMUEL, Raphael. História local e história oral. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/ Marco Zero, v.9,
n.19, set. 1989/fev.1990. p.219-243.
157
LE GOFF, Jaques. Memória: In: História e memória. Trad. Bernardo Leitão. 3 ed. Campinas: UNICAMP, 1994.p.476-477.
158
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 2d.rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
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O Conjunto Cidade Satélite foi projetado no contexto de expansão urbana da cidade. O programa de
habitação popular implantado nessa região foi gerenciado pelo INOCOOP (Instituto de Orientação às
Cooperativas Habitacionais) e coordenado pelo SFH (Sistema Financeiro de Habitação), por meio do
BNH. Quando o Banco Nacional de Habitação foi extinto, em 1996, coube à Caixa Econômica Federal
coordenar o sistema de financiamento. Projetado pelo arquiteto Acácio Gil Borsoi, em 1976, o Conjunto
seria formado por três etapas. A primeira etapa foi entregue em 1982 e, em 1985, foram concluídas as
outras duas etapas.
O Conjunto foi projetado para atender as demandas das classes médias, e, inicialmente, era habitado
por casais jovens, recém-casados, militares e funcionários públicos. Morar em Cidade Satélite, logo na
sua fundação, era uma aventura à parte. Desde o início de sua construção e, posteriormente, com as
entregas das etapas do Conjunto, verificaram-se desafios presentes para os então novos moradores.
Situado já na região fronteiriça entre Natal e Parnamirim, o Conjunto Cidade Satélite apresentava-se
como uma região distante do centro da cidade. Ainda assim, desde a entrega de sua primeira etapa em
1982, logo os primeiros moradores chegaram e estabeleceram-se em suas moradias, tendo que superar as
adversidades: as linhas de transporte eram precárias; havia apenas um acesso para veículos e as linhas
telefônicas eram um luxo dos mais abastados.
O que caracterizou Cidade Satélite foi seu traçado urbano. Todas as suas ruas inter-quadradas
tinham forma de ‘U’. O arquiteto adotou esta forma para tentar amenizar o fluxo de veículos pesados
como ônibus e caminhões nas ruas internas do conjunto. Esse Conjunto foi concebido para ser uma
espécie de “bairro dormitório”. Um bairro, comunidade ou cidade dormitório é um espaço de
características residenciais, no qual a maioria dos moradores trabalha em uma cidade próxima ou no
centro dessa cidade ou capital. Geralmente as cidades tidas como dormitórios estão ligadas por meios de
transportes de massa aos locais de trabalho de seus moradores. Para Freitag, uma cidade dormitório tem o
mesmo sentido de cidade satélite, uma vez que o habitante desse local “não se reconheceria como cidadão
da mesma, pois na medida em que ali não se encontra seu local de trabalho e só serve como dormitório e
residência, ele não teria compromisso efetivo com a cidade”.159 Entretanto, com a pesquisa por meio da
história oral, verificou-se que os primeiros moradores do conjunto desenvolveram relações entre si,
contrariando o planejamento inicial de ser uma cidade dormitório.
159
FREITAG apud OJIMA, Ricardo, Silva, Robson B. da; Pereira, Rafael H. M. A Mobilidade Pendular na Definição das
Cidades-Dormitório: caracterização sociodemográfica e novas territorialidades no contexto da urbanização brasileira.
Disponível
em:
http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/outros/5EncNacSobreMigracao/comunic_sec_1_mob_pen_def.pdf Acessado em:
26-11-2010. p.4.
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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As entrevistas realizadas apontaram que manifestações culturais, como a festa do padroeiro da
Paróquia de São Francisco de Assis, festas em algumas ruas do Conjunto, entre outras formas de
expressão cultural e espaços de lazer, foram fundamentais como espaços de sociabilização e criação de
sentimentos de pertença, essenciais para forjar uma identidade comunitária. Como afirma o geógrafo
francês Paul Claval160, a cultura não se constitui em um sistema fechado, podendo ter sua origem em um
passado distante. Aspectos da cultura podem ser transmitidos por meio de várias gerações e a cultura não
está fechada para as mudanças. Tal consideração permite que se imaginem as transformações ocorridas no
Conjunto Cidade Satélite. Algumas atividades e hábitos que existiam na década de 1980, passadas quase
três décadas já não podem ser encontrados na comunidade, mas, apesar dessas mudanças, os moradores
ainda possuem um sentimento de pertença, uma identidade com aquele espaço, como pode ser visto nas
entrevistas realizadas. Essas transformações são frutos do avanço da sociedade urbana, que promove
mudanças nas manifestações socioculturais.
Tendo como base as noções de geógrafo Yi-fu Tuan, o conceito de espaço que permeou essa
pesquisa foi guiado por uma perspectiva cultural. Para tal autor, o espaço “tem a capacidade de refletir a
qualidade dos sentidos do indivíduo, assim como a sua mentalidade”.161 Desse modo, Tuan utilizou a
cultura como fator explicativo do significado e organização do espaço, uma vez que a cultura interfere
fortemente no comportamento e nos valores humanos. Seguindo esse conceito, o espaço não seria algo
naturalizado, mas sim construído culturalmente. O conceito de espaço de Tuan permitiu analisar as
modificações que ocorreram ao longo do tempo no conjunto não apenas quanto aos aspectos físicos,
como o surgimento de prédios (os denominados “espigões”), e modificação da arquitetura das casas, o
que contribuiu para descaracterizar o modelo de conjunto habitacional tipicamente residencial; esse
conceito de espaço aqui empregado foi muito mais amplo, pretendeu analisar as transformações que vão
além do aspecto material, físico e concreto do espaço, atingindo o pensamento e o sentimento dos
indivíduos. Nesse sentido, foram analisadas as mudanças nas manifestações culturais do conjunto ao
longo do tempo, bem como as diferentes representações que os moradores expressavam sobre as mesmas,
de acordo com suas vivências, e foi investigado como o sentimento de pertença dos moradores foi sendo
(re) construído ao longo do tempo.
Nessa discussão, o conceito de identidade também foi problematizado. Como afirma Stuart Hall, a
globalização interfere nas noções de tempo e espaço dos sujeitos, que são elementos fundamentais para
todo sistema de representação. Nota-se que Hall já apontava o impacto que a globalização gerava sobre a
160
CLAVAL, P. Geografia Cultural: o estado da arte. In: CORRÊA, R.L.; ROSENDHAL, Z. (Orgs.). Manifestações da
cultura no espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999. p.59-97.
161
TUAN, Yi-fu. Introdução; Perspectiva Experiencial. In: _____. Espaço e Lugar: a perspectiva da
experiência. São
Paulo: Difel, 1983. p.17.
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
identidade (identidades), uma vez que a representação dos sujeitos é fundamental na construção dessa
identidade, que está localizada em um espaço e tempo simbólicos. A globalização foi entendida na
pesquisa enquanto uma série de processos que atuam globalmente, “integrando e conectando
comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e
em experiência, mais interconectado”.162 O conceito de globalização aqui empregado vai além das
relações econômicas, perpassando relações sociais, políticas e culturais.
Dessa maneira, com a aceleração dos processos globais as distâncias se tornam mais curtas e os
eventos ocorridos em um lugar outrora longe, passam a ter impactos imediatos sobre indivíduos e espaços
situados a uma grande distância geográfica. Hall defende que a globalização não destrói simplesmente a
identidade local, ao contrário, produz “novas identificações ‘globais’ e novas identificações ‘locais’”,
tendo, assim, um efeito pluralizante sobre as identidades, “produzindo uma variedade de possibilidades e
novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionadas, mais políticas, mais plurais
e diversas, (...)”163. Assim, a globalização possibilita o surgimento de uma pluralização de centros de
poder. O descentramento de referências, também provocado pela globalização, gera uma alteração nas
noções de identidades, que muitas vezes tornam-se contraditórias ou não resolvidas. Dessa maneira, a
identidade passa a ser algo móvel, elaborada e reelaborada continuamente, de acordo com os sistemas
culturais que permeiam os sujeitos.
Ainda segundo Woodwar, a globalização pode fazer com que sejam produzidos “diferentes
resultados em termos de identidade. A homogeneidade cultural promovida pelo mercado global pode
levar ao distanciamento da identidade relativa à comunidade e à cultura local”.164 No Conjunto Cidade
Satélite, ao passar do tempo, ocorreram modificações nas manifestações culturais dos moradores. A
própria urbanização, a proximidade com outros bairros e comunidades, sobretudo após o prolongamento
da Avenida Prudente de Morais e construção dos shoppings na parte central da cidade, provocaram
transformações na forma como a comunidade sociabilizava-se, integrando-a a um conjunto maior,
ampliando suas relações com as demais comunidades. O próprio interesse mercadológico passou a ser
mais forte nessas manifestações, o que pode ter ocasionado esse afastamento da identidade relativa à
comunidade.
O que se percebeu em Cidade Satélite, foi a existência de diferentes espaços de lazer, que vão
modificando-se ao longo do tempo, espaços que foram importantes na construção identitária da
162
Ibid. p.71.
Ibid. p.94.
164
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade
e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. RJ: Vozes, 2000.p.21.
163
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
comunidade e também contribuíram para transformá-la. Outra característica existente foi a ausência de
uma única manifestação cultural. Dependendo da faixa etária, profissão, e mesmo do gosto do indivíduo,
os espaços de sociabilização diferenciam-se. O conjunto surgiu, segundo os depoimentos, na época em
que o cantor Michael Jackson fazia muito sucesso. Havia uma casa de show próxima à Escola Estadual
Djalma Aranha Marinho, e, à noite, essa instituição promovia festas que sempre tocavam as músicas mais
conhecidas do cantor, como Thriller e Billie Jean. Essa preferência musical da comunidade já apontava
como a globalização da década de 1980 interferia nas formas de sociabilização da comunidade, uma vez
que o cantor Michael Jackson começou a fazer sucesso nessa época, inspirando comportamentos e estilos,
inclusive nessa comunidade localizada em uma região outrora periférica de Natal (RN).
A pesquisa não esteve focada em compreender como a globalização da década de 1980 interferiu no
Conjunto Cidade Satélite; o trabalho buscou entender como essas relações globalizadas (desde a década
de 1980 quando o conjunto foi construído até os dias atuais) e as transformações urbanas interferiram nas
manifestações culturais do Conjunto Cidade Satélite, contribuindo para modificar os espaços de lazer e
diversão e, conseqüentemente, modificar as relações dos moradores com a comunidade. Ao longo do
tempo e com o encurtamento das distâncias (tanto físicas como culturais), esses moradores passaram a
relacionarem-se com outros sujeitos, oriundos de outros espaços. O Conjunto construído para ser uma
verdadeira “cidade dormitório” além de ter construído uma identidade comunitária, também passou a
pluralizar essa identidade, modificando-a, expandindo-a, passando incorporar novos aspectos ao longo do
tempo. Se o Conjunto foi projetado para ser um local apenas para passar a noite, acabou revelando-se uma
comunidade integrada. As transformações urbanas, sobretudo o Prolongamento da Avenida Prudente de
Morais, poderiam ter ajudado a concretizar essa idéia de “cidade dormitório”, entretanto, foi essencial
para integrar esse Conjunto com outras comunidades, não solapando a identidade “sateliteana”, mas
transformando-a.
As gincanas existentes na comunidade também se revelaram como espaços de socialização e lazer,
e contribuíram para criar um sentimento de pertença, uma identidade comunitária. As gincanas eram
divertidas e movimentavam o bairro Pitimbu. Existiam várias equipes e um dos coordenadores do
movimento era Walker Costa, atual diretor da Escola Estadual Antônio Pinto de Medeiros. Entretanto, os
participantes dessas gincanas começaram a exagerar nas provas e atividades. Muitos alugavam carros e
andavam pelas ruas em alta velocidade.
A dinâmica do conjunto, as transformações que se
processaram, o surgimento de uma nova geração de jovens, entre outros fatores também foram
responsáveis por encerrar as tão movimentadas gincanas. A dinâmica dessas gincanas envolvia provas
inusitadas, que iam desde a caça por um objeto até provas em que os participantes tinham que achar
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
mulheres grávidas e vesti-las de “Papai Noel”. Ao final, seria vencedora a equipe que realizasse tais
provas em menos tempo, por isso os jovens andavam com os carros em alta velocidade.
As gincanas eram um espaço de diversão e momento de forjar uma identidade comunitária. A
maioria dos moradores narra sobre essas gincanas, mesmo que alguns não tenham participado das
mesmas, sabem que elas existiram e foram importantes para criar um sentimento de pertença àquele
conjunto. Tais gincanas eram financiadas por alguns vereadores e por algumas pessoas, por meio de
iniciativas próprias. Entretanto, com o tempo, essas gincanas modificaram seu modelo original e, segundo
alguns moradores, só apareciam em época de campanha, modificação que confirma a noção de mudança
cultural em virtude das mudanças urbanas, das transformações do cotidiano que interferem na variação
das formas de lazer e sociabilização.
Walker Costa, principal idealizador das gincanas, afirmou que elas foram, inicialmente, realizadas
durante a festa do padroeiro do Conjunto. Nesse período inicial, as provas eram modestas e ocorriam na
quadra de esportes da primeira etapa, possuindo uma premiação simples. Os integrantes das equipes
vencedoras ganhavam refrigerante, medalhas ou algum outro prêmio simbólico. Posteriormente, os
idealizadores dessas gincanas conseguiram patrocinadores e a premiação passou a ser dada em dinheiro.
Inicialmente essas gincanas reuniam apenas os habitantes do conjunto. Com o passar dos anos, o
encurtamento das distâncias possibilitou a integração com outros bairros e comunidades da cidade, uma
vez que várias pessoas de outras localidades iam para o Conjunto Cidade Satélite nos períodos de
gincanas. Dessa maneira, o efeito do encurtamento da distância, fruto da urbanização e da globalização,
interferiu na construção da identidade comunitária, e um evento outrora característico de Cidade Satélite,
passava a receber diversos conjuntos e bairros de Natal, o que descaracterizava essas gincanas enquanto
algo próprio do Conjunto.
O “Consenso”, período informativo que circulou pelo Conjunto entre 1993 e 1997, também
demonstrou a existência de uma comunidade identitária, já que se tratava de um jornal que reunia os
problemas e acontecimentos daquele espaço, sendo distribuído entre seus moradores. A proximidade
entre leitores e jornalistas dentro de uma comunidade, possibilita a identificação de opiniões, interesse e
posicionamentos. Os jornais comunitários revelam-se como porta-vozes, manifestando os anseios, as
posturas e as atitudes que os moradores possuem sobre diversas temáticas, bem como as cobranças feitas
às autoridades. Por meio desses periódicos foi possível perceber em Cidade Satélite uma evolução urbana,
uma preocupação dos moradores com o local onde viviam e com o próximo, por meio da melhoria da
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qualidade de vida em prol do bem comum dos habitantes daquela área (como apontam muitas matérias
desse periódico).165
Interessante perceber que apesar de sentir-se um “cidadão satelitiano”, os moradores de Cidade
Satélite também conviviam com outras identidades, demonstrando a idéia de pluralidade das identidades
no mundo pós-moderno, como apontaram as considerações de Hall. Assim, além de ser estudante de
história, guitarrista, abcdista, o jovem Renan Ramalho era também morador de Cidade Satélite; Walker
Costa também não é só um professor, diretor, organizador de eventos, é, entre outras múltiplas
identidades, um habitante da Comunidade Cidade Satélite; Aquino Neto também não é só vereador,
radialista, político, é, um cidadão “sateliteano”, entre as várias identidades que são responsáveis pela sua
construção. Percebeu-se como a identidade comunitária desse Conjunto foi sendo forjada, mas continuou
convivendo com outras identidades.
Também existiam algumas festas de forró, que aconteciam, esporadicamente, no Conjunto e
também serviam de espaços de integração e construção da identidade comunitária. Existiam, ainda,
algumas festas que aconteciam nas ruas do Conjunto, sendo a Rua Piquiá a mais famosa, por ser sede do
popular “Arraiá do Piquiá”, bem como de outras festas.
O denominado “Arraiá da Espiga” era realizado na quadra localizada na primeira etapa do
Conjunto, nas proximidades da igreja católica. Entretanto, posteriormente, Aquino Neto, que na época era
radialista e já possuía uma grande liderança na comunidade, passou a conduzir tal festa. Com essa
interferência de Aquino Neto, o arraiá modificou seu nome para “Arraiá do Aquino” e passou a ser
realizado durante muitos anos, crescendo cada vez mais.
Aquino Neto afirmou que, por Cidade Satélite ainda ser carente de autenticidade, a festa contribuía
para manifestar a cultura própria do Conjunto. Em seu depoimento, percebeu-se uma exaltação para com
suas contribuições pessoais para a festa do Conjunto. Aquino Neto orgulha-se de ter contribuído para que
o Arraiá se transformasse no que ele considera ser a terceira maior festa do país. Eis, pois, uma
representação criada por um determinado sujeito, que é construída por meio das influências e interesses
desse sujeito no espaço em que atua. Aquino Neto foi eleito vereador com forte apoio da população do
Conjunto Cidade Satélite e do Bairro Planalto, essa festa de São João possivelmente ajudou-o a adquirir
simpatia da população dessas comunidades, amealhando votos para eleger-se. Dessa forma, o discurso de
165
SIQUEIRA, Gabriela Fernandes de; SOARES, Thaiany. História e Jornalismo: Cidade Satélite na perspectiva dos
informativos comunitários. In: Carmen Margarida Oliveira Alveal; Henrique Alonso de Albuquerque Pereira; Luciano Fábio
Dantas Capistrano. (Orgs.). Memória minha comunidade: Cidade Satélite. 1 ed. Natal: Secretaria Municipal de Meio Ambiente
e Urbanismo, 2010, v. 1, p. 13-195.
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Aquino Neto foi permeado por exaltação e jamais mencionou que a festa era permeada por interesses
mercadológicos.
Outros eventos aconteciam na comunidade, como a festa do padroeiro São Francisco de Assis, Festa
de Santa Clara, Festa de Nossa Senhora dos Impossíveis, destacando que a igreja católica exercia certa
força na comunidade, uma vez que muitas manifestações do Conjunto eram vinculadas à Paróquia São
Francisco de Assis, representação da igreja católica na comunidade.
Atualmente, não existem tantas festas e manifestações como no início de formação da comunidade,
na década de 1980. Um dos motivos que contribuiu para o enfraquecimento de tais manifestações,
segundo os depoimentos, foi o aumento da violência, não só no Conjunto, mas também em todas as
cidades, fruto do processo de globalização e urbanização, sobretudo do encurtamento das distâncias e
surgimentos de outros conjuntos habitacionais (mais carentes) nas proximidades de Cidade Satélite.
Quando os eventos são noturnos, há maiores possibilidades de vítimas de assaltos. Assim, a violência é
apontada como o principal fator responsável pelo enfraquecimento das festas, fator esse que é agravado
pela própria configuração de Cidade Satélite. O Conjunto está dividido em etapas e, entre essas, existem
terrenos baldios. Acredita-se que as pessoas temem passar por esses terrenos à noite e, para não correr
riscos, a maioria da população prefere ficar em casa a ir para um evento que ocorra no próprio Conjunto.
Outros moradores não acreditam que existam festas populares no Conjunto, considerando como
populares manifestações de rua espontâneas. Para esses moradores, as festas que existem em Cidade
Satélite, sobretudo as que festejam o São João, são frutos de manipulações políticas e não ocorrem para
manifestar determinada tradição e, sim, para representar uma espécie de vitrine de algum político que
almeja conquistar votos.Também ocorreram shows de rock na comunidade. Existiam algumas bandas de
rock e até um evento foi organizado na AMORCISA (Associação dos Moradores da segunda etapa)
reunindo bandas que tocavam esse estilo musical. Entretanto, movimentos como esses são exceções, a
maioria das festas que ocorriam, sobretudo nas ruas do Conjunto, eram as de São João, revelando a força
de tradição que as festas juninas possuem no Nordeste.
Considerações finais
Como afirma Paul Claval, as transformações são frutos da própria dinâmica das sociedades urbanas,
que, ao longo do tempo, sofrem modificações em virtude do seu próprio crescimento. Cidade Satélite
pode ser um exemplo de uma comunidade que no início era isolada da cidade, possuía dificuldade de
acesso, entre outros problemas como dificuldades de transporte. Com o encurtamento das distâncias,
provocado, sobretudo pelo prolongamento da Avenida Prudente de Morais, Cidade Satélite modificou sua
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
dinâmica e a proximidade com bairros mais movimentados pode ter sido um fator responsável por
descaracterizar as festas que aconteciam no Conjunto.
São diversos fatores que caracterizam a modificação dessas manifestações e espaços de lazer.
Diversos também são os discursos e representações dos sujeitos, moradores do Conjunto. Entretanto, a
pesquisa concluiu que apesar das transformações e das variadas representações de seus moradores, ainda
existe uma identidade que os une, uma identidade comunitária marcada por pontos em comum, por
manifestações e ações que demonstram o que é morar em Cidade Satélite, o que é conviver com a
natureza da região, com os problemas de infraestrutura que persistem, entre uma série de fatores. Essa
identidade modificou-se ao longo do tempo, enfraqueceu-se com os distanciamentos, com a própria
dinâmica fruto da urbanização. Mas, a identidade comunitária ainda persiste e pode ser notada ao longo
das entrevistas. Todos os moradores entrevistados respondiam, ao final da entrevista, que Cidade Satélite
ainda era um dos melhores locais da cidade para morar, que possuía problemas, mas ainda era um local
tranqüilo, com espaço, capaz de atender as necessidades de uma família. Um conjunto no qual os
moradores poderiam até serem distantes um dos outros devido à dinâmica do mundo contemporâneo, do
dia-dia atribulado, mas que, diante de alguma precisão, estão sempre a postos para ajudar a vizinhança.
Morar em Cidade Satélite para esses depoentes, ainda é conviver com certa tranqüilidade e
companheirismo, sabendo que se pode contar com os vizinhos quando preciso.
Torna-se interessante perceber que as modificações, a construção de outras identidades, com o
crescimento urbano e as influências de um mundo globalizado, não significou a supressão de uma
identidade comunitária, ao contrário, muitas vezes essa identidade pode até se fortalecer. Enfim, as
identidades não se suprimem, hoje, na época da pós-modernidade, modernidade líquida, modernidade
tardia, e outras denominações utilizadas para definir essa época atual, não existe mais a preocupação com
a idéia de uma única identidade, existe uma multiplicação de identidades frágeis. Dessa maneira, a
permanência de uma identidade comunitária não significa algo estático, parado, imutável; não significa
que o indivíduo não possa ter outras identidades e conviver com as mesmas. As identidades são múltiplas,
passam por transformações, mas podem persistir, foi isso que aconteceu no Conjunto estudado.
Referências:
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FREITAG apud OJIMA, Ricardo, Silva, Robson B. da; Pereira, Rafael H. M. A Mobilidade Pendular na
Definição das Cidades-Dormitório: caracterização sociodemográfica e novas territorialidades no contexto
272
ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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brasileira.
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GOMES, R. C. C., SILVA, A. B., SILVA, V. P. Política habitacional e urbanização no Brasil. Scripta
Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de
agosto de 2003, vol. VII, núm. 146(083). Disponível em: http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-146(083).htm
Acessado em: 26-11-2011.
LE GOFF, Jaques. Memória: In: História e memória. Trad. Bernardo Leitão. 3 ed. Campinas:
UNICAMP, 1994.
SAMUEL, Raphael. História local e história oral. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/
Marco Zero, v.9, n.19, set. 1989/fev.1990.
SIQUEIRA, Gabriela Fernandes de; SOARES, Thaiany. História e Jornalismo: Cidade Satélite na
perspectiva dos informativos comunitários. In: Carmen Margarida Oliveira Alveal; Henrique Alonso de
Albuquerque Pereira; Luciano Fábio Dantas Capistrano. (Orgs.). Memória minha comunidade: Cidade
Satélite. 1 ed. Natal: Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo, 2010, v. 1.
TUAN, Yi-fu. Introdução; Perspectiva Experiencial. In: _____. Espaço e Lugar: a perspectiva da
experiência. São Paulo: Difel, 1983.
WILLIAMS, 1973, p.3-26. Apud CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny(Orgs). Introdução à
Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand, 2003.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz
Tadeu. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. RJ: Vozes, 2000.p.21.
Anexos: algumas imagens do Conjunto Cidade Satélite
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Imagens do Conjunto no início da década de 1980 (destaque para o formato comum nas casas e para a grande quantidade de
areia existente).
Algumas Capas do período informativo “Consenso” que circulou pelo Conjunto.
Descaracterização do Conjunto, com o aparecimento dos denominados “espigões” (edifícios) e casas reformadas,
desobedecendo o padrão original.
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Imagens do prolongamento da Avenida Prudente de Morais, um dos responsáveis por diversas transformações ocorridas em
Cidade Satélite.
Publicação fruto da pesquisa
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SERIDOENSE POR MEIO DA PRODUÇÃO DE UMA
OUTRA MEMÓRIA DO LEVANTE COMUNISTA DE 1935
Manuel da Silva166
Resumo: A historiografia que trata do Levante Comunista de 1935 no nível nacional quando trabalha os episódios ocorridos
no Rio Grande do Norte não menciona a Batalha da Serra do Doutor, centrando-se apenas na narrativa dos eventos ocorridos
na cidade Natal. A historiografia norte-rio-grandense, por sua vez, pouco se reporta à Batalha da Serra do Doutor, apenas
apontando-a como um ligeiro episódio acontecido quando da fuga dos sediciosos ao do movimento. No caso, entendo que a
batalha da Serra do Doutor foi um episódio referente à expansão do movimento comunista, quando foram formadas três
colunas revolucionárias, que adentrando o interior do Rio Grande do Norte se defrontaram com as forças locais, sob a
coordenação de Dinarte de Medeiros Mariz, então comerciante e ex-prefeito de Caicó - RN, e de Monsenhor Walfredo Gurgel,
um dos principais líderes integralistas do estado e pároco da cidade de Acari – RN. Este episódio, esquecido pela historiografia
nacional e estadual, foi, no entanto, logo marcado no espaço por meio da construção de um monumento no sítio mesmo do
combate em 1936 e logo incorporado à identidade seridoense, destacando-se nesta rememoração do evento a resistência, o
heroísmo e a tenacidade dos locais, sendo, daí em diante, incorporado à historiografia do Seridó.
A historiografia que trata do Levante Comunista de 1935 a partir de um ponto de vista de que o
movimento se dá no nível nacional, quando trabalha os episódios ocorridos no Rio Grande do Norte não
menciona a Batalha da Serra do Doutor, centrando-se apenas na narrativa dos eventos ocorridos na cidade
de Natal. No que diz respeito à Batalha da Serra do Doutor, embate ocorrido na tarde do dia 25 de
novembro de 1935 entre as forças comunistas e as tropas formadas por voluntários seridoenses, os
estudos críticos se não chegam a serem precários são, sem dúvida, cheios de lacunas.
Estudos feitos a partir de um ponto de vista estadual, como ‘A Insurreição Comunista de 1935’ de
Homero de Oliveira Costa, livro publicado em 1995; ‘Praxedes: Um Operário no Poder’, de Moacyr de
Oliveira Filho, publicado em 1985; ‘A Revolta Comunista de 1935 em Natal’, publicado por Luiz
Gonzaga Cortez em 2005; e ‘82 Horas de Subversão’ de João Medeiros Filho, cuja segunda edição é de
1980, divergem desde a avaliação da Batalha até quanto à data do encontro entre as tropas beligerantes.
Esse problema é acentuado pela circunstância de nenhum dos líderes do Levante Comunista em
Natal ter deixado qualquer registro a respeito do ocorrido, sabendo-se pouco do que realmente ocorreu
naqueles dias de novembro de 1935. Segundo relato de Hélio Silva,
o levante de Natal foi uma revolta de cabos, sargentos, operários, funcionários públicos.
A maioria nada sabia de comunismo. Nem mesmo os dirigentes do movimento, os poucos
declaradamente comunistas, tinham formação marxista. Eram revoltados, simplesmente.
O elemento de mais popularidade, o sargento Quintino, da banda de música do
Regimento, não era letrado. Acreditava apenas que o comunismo solucionaria os
problemas brasileiros. O grosso dos adesistas julgava tratar-se de um movimento para
repor o interventor Mário Câmara. (SILVA, 1969, p. 280).
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Aluno do curso de História (bacharelado) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN – Orientando PIBIC.
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Por sua vez, se observarmos o relato do ex-secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, o
baiano Giocondo Gerbasi Alves Dias, ex-cabo do Exército, do 21º Batalhão de Caçadores de Natal, em
entrevista concedida em 1981 a três jornalistas de São Paulo (José Paulo Netto, Luiz Arturo Obojes e
Regis Fratii), da “Voz da Unidade”, Quintino Clementino de Barros, músico de primeira classe do
Exército era um intelectual, contador e velho conspirador. Era o único que tinha contato com a direção do
partido (CORTEZ, 2005, p. 26-27). Por conseguinte, podemos observar que também existem divergências
historiográficas quanto à avaliação da liderança do movimento.
Por sua vez, em relação aos acontecimentos do dia 23 de novembro de 1935, não existem
divergências. Tudo começou por volta das 7h da noite do sábado, quando o quartel do 21º BC (exército)
foi ocupado pelos rebeldes, e o Levante durou até às primeiras horas da manhã do dia 27 de novembro de
1935, quando os revoltosos empreenderam a fuga, debandando cada qual para seu lado. Segundo narração
de Moacyr de Oliveira Filho,
a tomada do 21º BC foi rápida e eficiente. Aproveitando-se do fato de que apenas um
oficial de dia estava no quartel, os rebeldes assumiram o comando sem nenhuma
resistência, liderados pelo sargento Eliziel Dinis Henriques, pelo cabo Estevão e pelo
sargento Quintino, que, depois de controlada a situação, assumiu o comando da rebelião.
(OLIVEIRA FILHO, 1985, p. 58).
Nesse ínterim, criaram grupos que foram destacados para atacar o Quartel da Polícia Militar, o
Esquadrão de Cavalaria, a Casa de Detenção e o Teatro Carlos Gomes (hoje Teatro Alberto Maranhão),
onde o Governador Rafael Fernandes assistia uma solenidade.
Na manhã do dia 24 de novembro de 1935 os revoltosos eram senhores da situação, embora a luta
no Quartel de Polícia durasse até o começo da tarde. Então foi formado um Governo Popular
Revolucionário, com a seguinte configuração:
João Lopes, mestre de obras e assessor do Comitê Central do Partido, que usava os
codinomes de “Santa” e “Maranhão”, presidente; sargento Quintino Clementino de
Barros, secretário de Defesa; Lauro Lago, ex-diretor da Casa de Detenção, secretário do
Interior e Justiça; José Macedo, tesoureiro dos Correios, secretário de Finanças; João
Galvão, advogado, secretário de Viação, e José Praxedes, sapateiro, secretário de
aprovisionamento. (OLIVEIRA FILHO, 1985, p.62).
Composto o governo, José Praxedes foi encarregado de fazer a proclamação oficial do novo
governo ao povo de Natal, na Praça do Mercado, que ficava em frente ao Quartel do 21º BC. Depois da
proclamação do Governo Popular Revolucionário os seus membros se reuniram na Vila Cincinato,
palácio residencial do Governo do Estado, onde foram tomadas as primeiras medidas, dentre as quais a de
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se constituírem colunas revolucionárias para se adentrarem no interior do Estado, visando à consolidação
do novo governo.
Por meio da leitura dos estudos feitos a partir de um ponto de vista estadual, ainda no dia 24 de
novembro de 1935, podemos constatar que, depois de constituída a Junta Governativa, ficou decidida que
a propagação do movimento seria feita através de três colunas revolucionárias, da seguinte maneira: uma
seria enviada para sul em direção do município de Nova Cruz; outra seguiria na direção norte, pelo litoral,
até alcançar o município de Mossoró; a última coluna seguiria pelo centro do Estado até alcançar o
município de Caicó, na região Seridó. Esta última coluna se digladiou com as forças seridoenses sob a
coordenação de Dinarte de Medeiros Mariz, então comerciante e ex-prefeito de Caicó - RN, e de
Monsenhor Walfredo Gurgel, um dos principais líderes integralistas do estado e pároco da cidade de
Acari – RN. No caso, entendo que a Batalha da Serra do Doutor foi um episódio referente à expansão do
Levante Comunista.
Segundo Seráfico Batista, ex-prefeito de Santana do Seridó, que em 1935 tinha 24 anos e fazia
parte das forças seridoenses,
na luta da Serra do Doutor, morreram três soldados do Exército, enquanto mais de 100
insurretos, que procediam de Natal, fugiram em caminhões e a pé. Alguns deles foram
presos depois, outros, trancafiados na delegacia de Polícia de Currais Novos, cujo
delegado mandou matá-los numas grotas das cercanias da cidade (localidade Serra da
Dorna). [grifo nosso]. (CORTEZ, 2005, p. 34).
Dinarte Mariz, quando senador pelo Rio Grande do Norte, em discurso pronunciado na sessão do
dia 04.11.1975 no Senado Federal, assim se refere ao Levante Comunista:
quando em 1935, em Natal, os comunistas depuseram o Governo constituído e instalou
uma junta governativa, de caráter nitidamente comunista – fato que acontecia pela
primeira vez na América do Sul – organizei um grupo de sertanejos que, sob o meu
comando, descendo da região do Seridó até a Capital, derrotou, depois de encontros
sangrentos, o movimento sedicioso, restabelecendo a ordem política e social. Para isto,
contei com a ajuda decisiva do então Governador da Paraíba, hoje Senador Argemiro de
Figueiredo, que deslocou numerosos contingentes da Polícia daquele Estado, apoiando
nossa atuação. (MARIZ, 1975, p.65).
Já monsenhor Walfredo Gurgel, então um dos chefes integralistas do Estado, naquela época
vigário da paróquia de Acari, diante das críticas acerca da atitude assumida pelos integralistas de Natal,
publicadas em editorial no jornal ‘A RAZÃO’, do dia 16 de janeiro de 1936, assim se expressou aquele
sacerdote no jornal ‘A ORDEM’, de 26 de janeiro de 1936:
Publicações “A pedidos” no jornal “A ORDEM”, de 26 de janeiro de 1936.
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Os integralistas e o movimento comunista neste Estado
Escrevem-nos:
Sr. Redator d’A ORDEM,
Peço acolhida no vosso conceituado jornal para as linhas que se seguem. Bem sei
que a orientação desse Diário paira acima de toda e qualquer discussão de caráter
partidário, porém o meu intuito é dar esclarecimentos acerca da atitude assumida
pelos integralistas do Seridó durante a sublevação comunista de Novembro
último.
Li num editorial d’A RAZÃO, de 16 do corrente, sob a epígrafe “A outra
Camisa” um juízo apressado e leviano acerca da atitude dos camisas-verdes
brasileiros em face da mazorca comunista.
Diz o editorial que, nas ruas de Natal, enquanto um punhado de homens de boa
vontade defendia o último reduto da ordem legal no domingo 24 de Novembro,
não se viu uma só camisa-verde vestir o busto de um combatente. E acrescenta:
outro tanto, nos demais pontos do país atingidos pela mazorca.
Sr. Redator,
Quanto à atitude dos camisas-verdes de Natal, todos viram a impossibilidade de
mobilização, tanto pelo inesperado do movimento, quanto pela falta de armas e de
munições.
A população civil de nossa capital não pode, por isso, auxiliar, na defesa, aos
gloriosos soldados da nossa força pública que deram ao país um exemplo
luminoso de heroísmo e coragem.
Os integralistas do Seridó, porém, prestaram seu auxílio valioso e leal às forças
que se organizaram sob o comando geral do valoroso sertanejo Dinarte Mariz.
Em Acari, onde exerço o meu paroquiato, o Sr. Prefeito Gil de Britto, logo que
compreendeu a gravidade da situação pediu patrioticamente a colaboração dos
camisas-verdes, pois se tratava de defender a honra da pátria, a tranquilidade da
família brasileira.
Noites a fio estiveram os integralistas de Acari em vigília sagrada guarnecendo a
cidade em companhia de outros sertanejos que se ofereceram em defesa da ordem
legal.
E quando, após o combate de Panelas, as famílias se retiravam aflitas em procura
de outras localidades, de Acari partia um caminhão de sertanejos, entre os quais
vinte e sete camisas-verdes, para resistirem à invasão vermelha.
Como sacerdote e integralista, acompanhei os meus paroquianos e companheiros
até à Serra do Doutor, onde assisti à atividade dos integralistas de Acari e de
Currais Novos, na obstrução da estrada e no preparo das trincheiras, no local onde
as forças legais destroçaram os inimigos da civilização cristã.
Sr. Redator:
Assisti a cenas de verdadeiro patriotismo. Dois companheiros casados deixaram
suas companheiras de lar gravemente enfermas entregues aos cuidados de pessoas
da família, e foram sacrificar-se pelo Brasil. Um outro, ao saber que irrompera a
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revolução comunista, caminhou cinco léguas a pé e veio apresentar-se a chefia
municipal de Acari, disposto a morrer em defesa de seu ideal.
Sr. Redator:
Esses fatos não mereciam publicidade porque apenas se cumpriu um dever
sagrado, porém trago-os ao domínio público para desfazer afirmação inverídica do
editorial da Razão.
O integralismo vencerá um dia, porém dentro da ordem e com os meio legais.
Compará-lo ao comunismo, só o pode fazer quem ignorar a doutrina do Sigma,
que defende Deus, Pátria e Família, ou então quem estiver com os olhos vendados
pelo sectarismo partidário.
A campanha do integralismo no Brasil é leal e sincera. As nossas armas são a
doutrina e a verdade. Acima de tudo, colocamos a nossa fé em Deus, nosso amor
ao Brasil, nosso devotamento à família.
Agora, Sr. Redator, só almejamos que a imprensa nacional nos julgue com mais
justiça e com mais amor à verdade.
Pelo bem do Brasil!
Anauê!
Acari, 22 de janeiro de 1936
Pe. Walfredo Gurgel
O episódio da Serra do Doutor, esquecido pela historiografia nacional e estadual, foi, no entanto,
marcado no espaço por meio da construção de um monumento no mesmo sítio do combate e logo
incorporado à identidade seridoense, destacando-se nesta rememoração do evento a resistência, o
heroísmo e a tenacidade dos seridoenses e dos habitantes da região Trairi, sendo, daí em diante,
incorporado à historiografia do Seridó.
O jornal ‘A ORDEM’, de 28.11.1936, se refere àquele episódio da seguinte maneira:
Publicação no jornal ‘A ORDEM’, de 28 de novembro de 1936.
Merece francos aplausos a ideia de erigir-se um cruzeiro na Serra do Doutor,
no local da resistência às hordas vermelhas, pois a cruz é o grande símbolo da
humanidade redimida
Tocante cerimônia na Serra do Doutor
Recordando a heroica resistência às hordas vermelhas
Ontem, às 8h, na estrada da Serra do Doutor, justamente no ponto em que, um ano
atrás, encontraram as hordas comunistas, que demandavam o interior do Estado,
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pela zona do Seridó, a mais decidida resistência, fazendo-os estacar, realizou-se
uma tocante cerimônia.
Com a presença de cerca de 300 pessoas residentes nos diversos municípios do
Seridó, o padre Benedicto Alves, vigário de Currais Novos, celebrou uma missa
de ação de graças, na qual produziu eloquente sermão.
Falaram ainda sobre o significado daquela cerimônia o padre Antônio Chacon,
vigário de Jardim do Seridó, solidarizando-se com a homenagem, pela sua
freguesia e pelo povo do município; o prefeito interino de Acari, Sr. Alcebíades
Carvalho, que se congratulou com a iniciativa do município de Currais Novos, no
sentido de todos os municípios seridoenses erigirem no local um monumento
comemorativo.
Por delegação do prefeito de Currais Novos, Sr. Thomaz Silveira, falou por último
o acadêmico Ewerton Cortez frisando a necessidade de se perpetuar de maneira
indelével a data inesquecível e acentuando que o povo reclamava como o melhor
de todos os monumentos, uma cruz, símbolo do cristianismo. Disse ainda que
naquele local se chocaram representantes de duas civilizações, uma, materialista,
internacional, outra profundamente cristã, equilibradamente nacionalista, com
esse nacionalismo norteado pelo cristianismo.
Ao ato esteve presente o Tiro de Guerra 217, de Currais Novos.
Durante a elevação foi entoado o hino nacional.
Não sabemos se o monumento em forma de cruzeiro foi erigido, como sugerido na reportagem
acima. Todavia, em 30 de novembro de 1994, por iniciativa do Lions Clube de Natal – Potengi e do Lions
Clube de Santa Cruz – Inharé, com a colaboração das prefeituras de Campo Redondo (RN) e de Santa
Cruz (RN), foi inaugurado um obelisco (Anexo - Foto 1) perpetuando a memória dos sertanejos das
regiões Seridó e Trairi. Na face leste do obelisco existe uma placa (Anexo – Foto 2) com os seguintes
dizeres:
AQUI NESTE LOCAL, NO FIM DA TARDE DE 25 DE NOVEMBRO DE 1935, INTRÉPIDOS
SERTANEJOS DAS PLAGAS SERIDOENSES IRMANADOS AOS HERÓICOS HABITANTES DA
REGIÃO DO TRAIRI, SALVARAM A HONRA E A DIGNIDADE DA FAMÍLIA NORTERIOGRANDENSE, DERROTANDO CONTIGENTES ARMADOS DAS FORÇAS COMUNISTAS
QUE SE DIRIGIAM AO INTERIOR VISANDO A CONQUISTA DO NOSSO ESTADO.
Interessante frisar que próximo ao obelisco existe duas cruzes (Anexo – Foto 3), carcomidas pelo
tempo, assinalando o local onde deve ter tombado algum morto. Lembro-me que quando trabalhei no
Posto Avançado de Crédito Rural do Banco do Brasil em Campo Redondo (RN), no ano de 1982, existia
um cliente daquele posto, morador da comunidade Malhada Vermelha, próxima do local onde aconteceu
a refrega, que afirmava a existência de cruzes no local onde aconteceu a batalha. Confirmei essa
informação no dia 06 de outubro de 2012, por ocasião de viagem para a região Seridó.
Por conseguinte, nosso trabalho pretende mostrar os elementos obscuros existentes na
historiografia que trata do Levante Comunista no Rio Grande do Norte, especialmente os acontecimentos
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referentes à Batalha da Serra do Doutor. Pretendo também discutir a formulação de uma identidade
seridoense, que destaca a resistência, o heroísmo e a tenacidade daqueles se debateram contra os
revoltosos na Batalha da Serra do Doutor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CORTEZ, Luiz Gonzaga. A revolta comunista de 1935 em Natal. Natal: s.n., 2005.
COSTA, Homero de Oliveira. A Insurreição Comunista de 1935: Natal, o primeiro ato da tragédia. São
Paulo: Ensaio. Natal: Cooperativa Cultural Universitária do Rio Grande do Norte, 1995. 190 p.
CUNHA, Artéfio Bezerra da. Memórias de um sertanejo. Rio de Janeiro: Pongetti, 1971.
FURTADO, João Maria. Vertentes (Memórias). 2 ed. Natal: Clima, 1989. 474 p.
LAMARTINE, Pery. Serra Negra e a intentona comunista de 1935. Natal: ARTGRAF, 2005.
MARIZ, Dinarte de Medeiros. A vide de um revolucionário. Brasília: Centro Gráfico do Senado, 1975.
MEDEIROS FILHO, João. 82 horas de subversão (Intentona Comunista de 1935 no Rio Grande do
Norte). Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1980.
OLIVEIRA FILHO, Moacyr de. Praxedes: um operário no poder. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1985.
124 p.
SILVA, Hélio. 1935 – A Revolta Vermelha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.
ANEXOS:
FOTOS DO SÍTIO ONDE SE ENCONTRAM O OBELISCO E AS CRUZES
FOTO 1
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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FACES SUL E LESTE DO OBELISCO
Autor: Manuel da Silva
Data: 06/10/2012
FOTO 2
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
AQUI NESTE LOCAL, NO FIM DA TARDE DE 25 DE NOVEMBRO DE 1935, INTRÉPIDOS
SERTANEJOS DAS PLAGAS SERIDOENSES IRMANADOS AOS HERÓICOS HABITANTES DA
REGIÃO DO TRAIRI, SALVARAM A HONRA E A DIGNIDADE DA FAMÍLIA NORTERIOGRANDENSE, DERROTANDO CONTIGENTES ARMADOS DAS FORÇAS COMUNISTAS
QUE SE DIRIGIAM AO INTERIOR VISANDO A CONQUISTA DO NOSSO ESTADO.
Autor: Manuel da Silva
Data: 06.10.2012
FOTO 3
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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PERTO DO LOCAL ONDE FOI ERIGIDO O OBELISCO ENCONTRAMOS DUAS CRUZES,
CARCOMIDAS PELO TEMPO, QUE SUPOMOS MARCAR O LUGAR ONDE TOMBARAM OS
MORTOS DAQUELE FIM DE TARDE.
Autor: Manuel da Silva
Data: 06.10.2012
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
ISBN: 978-85-425-0007-3
“Quem te viu e quem te vê não te conhece mais”:
O centenário de Campina Grande gerando uma identidade para a cidade
Regina Paula Silva da Silveira∗
Resumo: Este artigo analisa as festividades de comemoração do centenário de Campina Grande, Paraíba, ocorrido em 1964,
momento de grande mobilização na cidade e que chamou a atenção de vários olhares sobre a mesma. Isso ocorreu porque
Campina se preparou para festejar o seu aniversário com muita pompa, a administração pública preparou uma grande festa,
presenteando a cidade com jornais, monumentos, livros, músicas, etc.Buscamos compreender como a festa foi o momento em
que se gesta uma identidade para a cidade, a de que Campina era grande. A festividade teve assim, um grande valor simbólico,
pois foi nessa ocasião que se pôde mostrar o ideal de cidade que se queria para Campina Grande, ideal esse que refletia os
anseios das elites locais em construir uma Cidade grandiosa e moderna tanto no tocante a sua infraestrutura como imagética e
discursivamente, implantando no imaginário da população a idéia da Campina “Grande”.
Palavras-chave: Campina Grande, festa do centenário, identidade.
Introdução
”No nordeste brasileiro
Na Paraíba do norte
Existe um lugarejo,
vila nova da rainha
logo se tornou cidade
oh campina pequenina
foi crescendo, foi crescendo
com muita prosperidade”
(Marinês)167
Campina Grande mais conhecida pelos seus habitantes como “Rainha da Borborema”, a cidade
que é a “capital do trabalho”, considerada por alguns a “capital do nordeste brasileiro” e que já foi
chamada de a “Liverpool brasileira”168. Tantos adjetivos para uma cidade só, Campina Grande aparece
nos discursos oficiais, nas músicas, nos versos, na história, no imaginário popular como uma cidade que
não é grande só no nome, ela nasceu com o destino de ser grandiosa de ser “Rainha”, cidade cheia de
simbolismos e qualificações.
Segundo Sandra Jatahy Pesavento os espaços são dotados de significados que qualificam as
cidades simbolicamente, as enchendo de sentidos, de cargas simbólicas que os diferencia e os identifica.
Mas, ainda segundo a autora, através do imaginário urbano (que é construído historicamente) podemos
∗
Mestranda em História pela UFRN.
Trecho da música Campina Centenária de Marinês. Cf. LP “Centenário de Campina Grande” de 1964 disponível em:
<http://cgretalhos.blogspot.com.br/2009/08/lp-do-centenario-de-campina-grande- em.html#.UCjmUKFlR3M>.
168
Conferir todos esses adjetivos na descrição da cidade no site da Wikipédia. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Campina_Grande>.
167
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também ter sido induzidos, educados e ensinados a identificar lugares e memórias de uma cidade
(PESAVENTO, 2007). A partir disto nos perguntamos se Campina é tão grandiosa como dizem, ou
fomos educados a vê-la assim?
Eric Hobsbawm em seu estudo sobre as tradições nos chama a atenção para o fato de que
muitas tradições que parecem ser antigas, muitas vezes são recentes ou até mesmo inventadas (1997, p.
9). Já existem alguns estudos sobre Campina Grande que discutem a questão de grandiosidade ser um
mito, que foi inventado pelas elites locais. Giscard Farias Agra é um dos autores que discutem isso,
mostrando que essa grandiosidade de Campina começou a ser cogitada em fins do século XIX e efetivada
tanto no tocante a sua infraestrutura como imagética e discursivamente nas primeiras décadas do século
XX. Para tanto foi selecionando, em cada momento específico de sua história, elementos distintos através
dos quais se podia ver e dizer que Campina era Grande (AGRA, 2007).
Na escolha do que lembrar e do que esquecer na invenção dessa tradição foi-se criando uma
história para cidade que privilegiava a memória das elites campinenses, pois como já nos advertia José
D’assunção Barros sobre a Memória Social se estabelecer em um espaço-tempo e sua relação com o
homem, na qual se afirmam poderes da comunidade e dos indivíduos sobre si mesmos e sobre os outros
(2009, p. 37.). Assim, a memória também é uma construção que está sempre em um jogo de poder, pois à
medida que ela estabelece identidades assegura também a permanência de grupos. Por isso que a memória
escolhida para caracterizar Campina Grande foi a das elites locais, que viram nessa invenção da tradição
mais uma forma de se perpetuar no poder.
O auge da concretização dessa construção foi nas comemorações de aniversário de cem anos da
cidade, em11 de outubro de 1964, Campina Grande se preparou toda para festejar os seu aniversário, a
administração pública preparou uma grande festa, presenteando a cidade com jornais, monumentos,
livros, músicas, etc.
A festa do Centenário
Salve campina!
Nas paginas do novo calendário
Salve campina!
No ano do primeiro centenário169
O centenário deveria ser grandioso, tal qual sua aniversariante, para tanto foi aprovada uma lei que
regulamentava a organização da festa e instituía uma Comissão do Centenário para organizar a festa,
como podemos ver no trecho abaixo:
169
Trecho da música Campina Centenária de Marinês. Op. Cit.
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Está sendo aguardada pelos círculos mais interessados no progresso de Campina Grande a
designação, pelo prefeito, da Comissão Central do Centenário, em conformidade com a lei
recentemente aprovada pela Câmara de Vereadores.
Cremos que a primeira medida a tomar seria a solicitação, por parte da prefeitura, às entidades que
deveram fazer-se representar na aludida Comissão, de três nomes dentre os quais o Prefeito
escolheria um dêles a fim de integrar o órgão central. [...]
Na esperança do atendimento de Vossa Excelência, subscrevo-nos:
Pelo “GRUPO CAMPINENSE DE ESTUDOS”
Elpídio de Almeida – Médico, Historiad., Ex-Prefeito
Atila Almeida – Professor Universitário
Everaldo Lopes – Médico
Antonio Lucena – Advogado
Noaldo Dantas – Jornalista (GAZETA CAMPINENSE, 28/05/1961)
Assim, vemos que a cidade estava se preparando para o grande dia de 11 de outubro de 1964 para
a “Rainha da Borborema”. Segundo Fábio Gutemberg de Sousa (2006), toda essa mobilização chamou a
atenção de vários olhares sobre a cidade. Um deles que o historiador destaca é que em julho de 1962
chegou a Campina Grande uma equipe que buscava compreender e explicar para o país170 como uma
cidade no interior da Paraíba, em menos de 30 anos, conseguiu um grande destaque comercial e se tinha a
promessa de ser destaque também no setor industrial.
Depois da análise feita, o resultado foi que o estudo apontou Campina Grande como “Capital
Regional” e comparada a São Paulo pelo fato da “Rainha da Borborema” dominar economicamente
diversas áreas vizinhas. Sousa (2006) comenta que esse deve ter sido o melhor presente que Campina
ganhou, ou melhor, suas elites ganharam, pois além de receber o título de capital ainda foi comparada
com a grande metrópole brasileira.
Percebemos então que esse centenário tinha grande valor simbólico para as elites locais, pois para
as elites que viram o progresso da cidade durante o início de século XX essa festa vinha fechar um ciclo
de sucesso. É o que mostra Fábio Gutemberg de Sousa, ainda tratando sobre os impactos do estudo das
geógrafas, fala o seguinte sobre o assunto:
Seguindo as análises e observações das geógrafas, acompanhadas de uma saraivada de dados,
números, fotografias, mapas de diversos tipos, etc., vemos Campina Grande crescer aos nossos
olhos e tornando-se “o maior empório comercial da região, depois do recife”, “ser considerada a
capital econômica de uma extensa área nordestina”; “verdadeira capital regional” e, como se não
bastasse a cantilena que enfeita o texto desde o início, o último parágrafo do trabalho não poderia
ser mais promissor: “Campina Grande, o maior empório comercial da Região Nordeste depois de
Recife, ocupa lugar privilegiado entre todas as cidades brasileiras, sendo o seu nome, hoje,
sinônimo de progresso urbano e um exemplo vivo da real capacidade de realização dos
nordestinos”
Uma verdadeira redenção para as elites locais e regionais, a glória para os poucos letrados e
administradores dos anos 30 e 40 que ainda estivessem vivos. [...] (SOUSA, 2006, p. 185.)
170
Como ressalta Fábio Gutemberg Sousa principalmente para os investidores e órgãos públicos.
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Assim, Campina foi se preparando com entusiasmo para o tão esperado 11 de outubro de 1964.
Para organização da festa existiam duas comissões, uma que organizava a festa no geral, que era
composta pelos políticos locais e uma comissão que tratava dos assuntos culturais que era encabeçada
pelo médico e ex-prefeito da cidade Elpídio de Almeida (Souza, 2010), essas comissões prepararam
várias homenagens para a cidade. Dentre elas podemos citar: foi encomendada três grandes estátuas que
simbolizava os pioneiros da cidade, foi feito um LP com músicas de Luiz Gonzaga e Marinês que
também simbolizavam a cidade, a Comissão Cultural organizou uma a Revista Campinense de Cultura
que discutiu sobre a história da aniversariante, entre outras coisas.
A festa era o ponto alto das comemorações e segundo Antonio Clarindo Barbosa de Souza na
manhã de domingo de 11 de outubro, a cidade acordou ao som das várias bandas marciais e dos fogos,
iniciava-se a tão esperada festa! Ainda segundo Souza “Não só as pessoas, mas a própria cidade estava
vestida para festa” (2010, p. 115). E assim foram feitas várias comemorações, durante todo o mês de
outubro um parque de diversões se instalou na cidade, no dia do aniversário houve o desfile de bandas
marciais tanto de Campina como de outras cidades, desfile do exército, além de grandes bailes realizados
pelos clubes da cidade, atraindo muitos visitantes para a centenária Campina Grande.
O que significou a festa
“Do pequeno vilarejo veio a emancipação
Campina foi crescendo
Crescer sempre foi seu lema
E hoje é campina grande
Rainha da Borborema”
(Marinês)171
Em 1889 Irinêu Joffily172 escreveu em seu jornal A Gazeta do Sertão que a grandiosidade de
Campina, até então, era apenas uma aspiração e que fazia-se necessário que a administração da cidade
usasse de todos os meios para que essa aspiração se tornasse realidade (AGRA, 2007). Assim, vemos que
a grandiosidade de Campina Grande, que a epígrafe mostra, foi cogitada em fins do século XIX e
começou a ser construída no início do século XX, pois foi nessa época que a administração municipal
começou a desenvolvê-la efetivamente173. Com as melhorias feitas na cidade, principalmente a chegada
171
Trecho da música “Campina Centenária” de Marinês disponível no LP “Centenário de Campina Grande” de 1964. Cf.
http://cgretalhos.blogspot.com.br/2009/08/lp-do-centenario-de-campina-grande-em.html#.UC1ayd2PVhs
172
Irineu Ciciliano Pereira Joffily (Pocinhos –PB, 1843-1902) foi um jornalista, redator, político, geógrafo, advogado, juiz e
promotor de justiça. Fundou os jornais Academia Paraibano (Recife, PE) e a Gazeta do Sertão (Campina Grande, PB).
173
Isso ocorreu através da implantação do trem (1914), da luz elétrica (1920), da revitalização do centro da cidade - com
alargamento das ruas, construção de prédios modernos, etc.- (1930), e etc.
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do trem, possibilitou que a cidade conseguisse se desenvolver através do comércio, especialmente o de
algodão durante a década de 1930 a 1940, momento em que a cidade teve seu maior progresso174.
Esse momento histórico que a cidade passou inspirou a construção desse ideal de cidade grande
que estava sendo construído em Campina, até hoje esse fato é glorificado e tomado como sendo um
caminho natural da cidade, como está na epígrafe “crescer sempre foi seu lema”175. Fabio Gutemberg nos
chama atenção para o fato de que a partir dos anos 60 memorialistas, instituições administrativas, a
população da cidade retomam intensamente as décadas de 1930 e 1940 para explicar o principal sucesso
da cidade, fazendo com que esse período seja recorrente, trazendo certas memórias que assumem uma
dimensão quase mítica, embora ambígua (Sousa, 2006, p. 186).
Percebemos assim que é nas comemorações do centenário de Campina Grande (1964) que as elites
campinenses consolidam seu projeto de construir Campina “Grande”. Segundo Fábio Gutemberg de
Sousa o centenário tinha grande valor simbólico para as elites locais, pois para eles que presenciaram o
progresso da cidade durante o início de século XX essa festa vinha fechar um ciclo de “sucesso” (Sousa,
2006, p. 186). E por isso seu centenário foi tão comemorado, evocando e sempre reafirmando a memória
dessa época áurea, porque evocava a memória dessas pessoas.
“A memória é uma construção, que não se refere apenas a um passado e a um presente, mas
também a um futuro (...) de igual maneira, haverá também a manipulação da memória pelos projetos
futuros e pelos poderes do presente” (BARROS, 2009, 36), essa fala de José D’assunção Barros é útil
para essa discussão que empreendemos aqui, pois, vemos que nesse processo de construção da memória
quem estar no poder sempre quer deixar para posteridade sua memória.
Desta forma percebemos que a imagem de Campina “Grande” é uma “tradição inventada” para a
cidade, que mesmo inconscientemente, serve para manter o Status Quo da elite. Segundo Eric Hobsbawm
e Terence Ranger “muitas vezes, ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante
recentes, quando não inventadas” (1997, p. 9). Os autores entendem por “tradição inventada” o conjunto
de práticas normalmente reguladas, de natureza ritualística ou simbólica que visam firmar certos valores e
normas de comportamento através da repetição (Idem). Esse conceito é amplo e pode ser entendido por a
tradição ser realmente inventada ou construída e formalmente institucionalizada. Para Hobsbawm, em um
mundo que está em constantes transformações às tradições são inventadas para reestruturar alguns
aspectos da vida social de maneira imutável.
174
Nessa época Campina Grande chega a ser segunda maior comerciante de algodão do mundo, atrás apenas de Liverpool, na
Inglaterra. Ver mais sobre o assunto em: Ó, Alarcon Agra do ET al. A Paraíba no Império e na República: Estudos de história
social e cultural 3ª Ed. Campina Grande: EDUFCG, 2006.
175
Desse fato que surgem os principais qualificativos da cidade como “Rainha da Borborema”, “capital do trabalho” entre
outros como já mostramos anteriormente.
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
As mudanças na sociedade provocam a necessidade de invenção de novas tradições. Pois essas
chegam a um ponto que algumas tradições antigas não cabem mais para o contexto. Assim, surgem as
novas tradições que são comumente inventadas a partir de antigos elementos para novas finalidades a
partir de práticas existentes e institucionalizadas, cultuando antigos símbolos, mas principalmente
inserindo novos na tentativa de concretizar essa nova tradição.
Campina Grande assiste entre as décadas de 1950 e 1960 grandes mudanças, principalmente no
âmbito social, por conta de seu desenvolvimento econômico, muitos “forasteiros” foram para cidade
procurando oportunidades, mas nem todos a conseguiram, desta forma em Campina houve um
significativo aumento do número mendigos, prostitutas, delinquentes, etc., que “enfeiam” Campina
Grande e que vão ser alvos da futura organização da cidade, que vai tirar do centro tudo que for feio, sujo
e anti-moderno176. Campina Grande pretendia ser cosmopolita, desejando ser comparada as grandes e
modernas cidades do Brasil, assim era preciso criar uma tradição para Campina ressaltando sua
grandiosidade para mascarar esses problemas sociais cada vez mais frequentes e que geralmente acontece
em cidades em processo de desenvolvimento177. Mostrando que esse desenvolvimento e prosperidade da
cidade muitas vezes não passavam de uma máscara impostas pelas elites, para manter seus negócios e seu
Status quo.
Considerações finais
A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer como Halbwachs o
fez, que há tantas memórias quantos grupos existem. (Pierre Nora)
Buscamos argumentar nessas páginas que a festa do centenário de Campina Grande buscou
concretizar a imagem de grandiosidade para cidade, que já há alguns anos tinha sido almejada e iniciada
pelas elites locais, inventando a tradição de que Campina é grandiosa, desde sempre. Essa invenção da
tradição se configura como uma busca romântica dessas elites para não deixar morrer a memória dos anos
de glória que Campina passou, anos de glória dessas elites também, por isso a necessidade de não deixar
morrer na poeira do tempo essa época.
176
Sobre o assunto Cf. CAVALCANTI, Silêde Leila Oliveira. Campina Grande De(FL)vorada Por Forasteiros: a passagem de
Campina Patriarcal a Campina Burguesa. In: GURJÂO, Eliete de Queiroz (Org.) Imagens multifacetadas da história de
Campina Grande. Campina Grande: SEC, 2000.
177
Alarcon Agra do Ó mostra que no jornal Diário da Borborema de maio de 1959 traz uma matéria que mostra que nunca
havia tido tanta falta de emprego na cidade gerando uma leva de miseráveis cada dia maior, e esse fenômeno segundo o
historiador gerou na elite muitos medos. Cf. Ó, Alarcon Agra do. Da cidade de pedra à cidade de papel: projetos de educação,
projetos de cidades – Campina Grande (1959). Campina Grande: EDUFCG, 2006, p. 43.
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Na medida em que se cria uma tradição, se constrói uma memória coletiva acerca dos
acontecimentos passados se instaura uma forma de as pessoas verem a história do ângulo de quem a criou
determina. A memória se refere ao passado, sendo forjada através do presente se pensando no que ficará
para o futuro, é nessa dialética que as comemorações do centenário de Campina Grande concretizam uma
memória para cidade, memória essa que a idealiza e a mitifica.
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A CRISE DE 1935 NO RIO GRANDE DO NORTE: A TENSÃO ENTRE AS ESPACIALIDADES
E IDENTIDADES ESTADUAIS E A NACIONAL POR MEIO DO CASO NORTE-RIOGRANDENSE.
Renato Amado Peixoto*178
Resumo: Nesta comunicação, trabalharemos a ideia de que a Crise de 1935, exemplificada no plano local pelo Levante
Comunista, pela violenta disputa do pleito estadual, pela ascensão do integralismo e pela inserção da Igreja Católica como ator
político de primeiro nível, deve-se a uma tensão provocada pela reorganização eclesiástica, levada a cabo na Primeira
República e que visava a uma nova espacialização do poder dessa instituição por meio da estadualização. Nesse sentido, a
atuação do bispo de Natal, D. Marcolino Dantas, levando a cabo no plano local uma estratégia nacional da Igreja, o do
fortalecimento das Dioceses estaduais, articulada com a política do Governo Vargas, o que provocou uma colisão com os
interesses das oligarquias norte-rio-grandenses e que se refletiu em termos da identidade estadual, a qual seria reorganizada a
partir dos sentidos em disputa, colocados a partir do confronto entre o comunismo e o integralismo e entre a Igreja e as
organizações familiares estaduais.
Nosso objetivo com esta comunicação é oferecer, em primeiro lugar, uma interpretação que busca
integrar as várias compreensões historiográficas de certos acontecimentos ou problemas da década de
1930 no Rio Grande do Norte, a saber, as disputas políticas entre os Interventores e as oligarquias
estaduais; o Levante Comunista; a repressão aos movimentos sindicais e a ascensão do integralismo no
Rio Grande do Norte. Entendemos que, trabalhados separadamente, estes não oferecem um modelo geral
do período, além do que deixam de receber os insumos referentes às explicações dos outros
acontecimentos e problemas.
Nesse sentido, não procuramos buscar uma hipótese do desenvolvimento da sociedade ou da
política norte-rio-grandense que se constitua apenas numa sinopse dos acontecimentos, mas buscamos
enxergar os dados e cada um dos movimentos e acontecimentos por dentro de sua própria lógica
linguística de modo a procurar constituir nexos e descortinar cadeias de implicações que resultem na
possibilidade de interpretação de uma relação mútua.179
No caso, entendemos ainda que nossa interpretação se objetiva por meio da compreensão de que
esses acontecimentos e problemas se interpenetram, mas que, ao mesmo tempo, se separam por conta de
sua interação com outros acontecimentos e problemas, correlatos, mas pertinentes a outras escalas do
local, regional ou nacional.
Neste ponto, torna-se necessário colocar que nosso segundo objetivo é nortear essa interpretação
pela História dos Espaços, buscando identificar, em cada um dos acontecimentos e problemas citados, as
178 Professor Doutor – Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal do Rio
Grande do Norte.
179
A respeito do problema teórico e metodológico da constituição de uma interpretação não sinóptica, ver Peixoto, Renato
Amado. Cartografias Imaginárias. Natal: EDUFRN, 2011, pp. 152-154.
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
racionalidades que prescreveram distintas estratégias de atuação no espaço aos atores políticos e sociais,
instituições e governos, ou seja, trabalharemos de modo a deslindar diferentes espacialidades.180 Essa
metodologia se torna importante na medida em que as compreensões historiográficas dos acontecimentos
ou problemas da década de 1930 no Rio Grande do Norte incorporam ou trabalham em torno de vertentes
de interpretação que estão mais centradas na problematização do local ou do nacional.
Nesse sentido, poderíamos mesmo justificar a construção de uma interpretação que trabalhe as
traduções das dinâmicas local e nacional num ou noutro sentido, ou seja, do local para o nacional e do
nacional para o local. Esta aproximação permitiria entender influências, traduções ou hibridizações e,
inclusive, constituir a ideia de que uma ‘Crise de 1935’ no Rio Grande do Norte poderia servir como um
caso de estudo das dinâmicas que incidiram noutros estados e nas escalas do regional e do nacional.
A necessidade do exame acima apontado se torna mais premente na medida em que os avanços
historiográficos, especialmente pela apresentação de novos conteúdos e teorias permite discernir novos
atores políticos e sociais no Rio Grande do Norte bem como melhor caracterizar acontecimentos e
movimentos já trabalhados.
No primeiro caso, a grande novidade de nosso estudo é a incorporação da atuação política da
Igreja na análise do período, posição esta que se encontra endossada pelos recentes trabalhos que
descortinam novas estratégias dessa instituição no nível nacional bem como novas compreensões dos seus
processos internos. Como exemplo disto, podemos citar os estudos que acrescentam melhores
compreensões da relação entre Estado e Igreja no governo Vargas e na Primeira República, bem como
daqueles que cuidam de avaliar a importância de seus principais intelectuais e locais de produção de
saberes.181
No segundo caso, outra novidade de nosso estudo é a melhor caracterização e problematização do
integralismo norte-rio-grandense, que aproveita os recentes estudos os quais têm buscado entender sua
heterogeneidade e suas diferentes origens por meio do exame do movimento na escala do estadual bem
como dar conta da compreensão e do alcance das suas variadas vertentes ideológicas.
180
Em respeito à ideia de espacialidade, ver: PEIXOTO, Renato Amado. ‘Espacialidades e estratégias de produção identitária
no Rio Grande do Norte no início do século XX.’ In: Renato Amado Peixoto. (Org.). Nas trilhas da representação: trabalhos
sobre a relação história, poder e espaços. Natal: EDUFRN, 2012, v. 1, p. 11-36; PEIXOTO, Renato Amado. ‘Espaços
imaginários: o historiador dos espaços como cartógrafo.’ In: PEIXOTO, Renato Amado. Cartografias Imaginárias: estudos
sobre a construção do espaço nacional brasileiro e a relação História & Espaço. Natal: EDUFRN, 2011.
181
Ver por exemplo: Gomes, Edgar da Silva. "O catolicismo nas tramas do poder: a estadualização diocesana na Primeira
República (1889-1930)." Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2012; Pereira, Mabel Salgado.
"Dom Helvécio Gomes de Oliveira, um salesiano no episcopado: artífice da Neocristandade(1888-1952)." Tese de Doutorado
em História, UFMG. 2010; Rodrigues, Cândido Moreira. A Ordem: uma revista de intelectuais católicos. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005; Rodrigues, Cândido Moreira. "Alceu Amoroso Lima: matrizes e posições de um intelectual católico; militante
em perspectiva histórica - 1928-1946." Tese de Doutorado em História, UNESP. 2006.
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Justificados, portanto, os objetivos de nosso trabalho e as aproximações teóricas e metodológicas
que adotadas, apontaremos os ganhos de nossa pesquisa, cuidando de resumi-los no quadro abaixo em
virtude do âmbito restrito desta comunicação:
I - A reflexão e a integração dos problemas referentes à espacialidade do nacional e do estadual:
a) A ascensão da ‘Estadualidade’ na República, ou seja, de uma espacialidade centrada na escala do
estadual:
Conforme a ideia trabalhada em nosso artigo ‘Espacialidades e estratégias de produção identitária no
Rio Grande do Norte no início do século XX’,182 a de que uma espacialidade estadual se contrapõe com a
República à uma racionalidade central desenvolvida a partir da década de 1840 no Segundo Reinado;
nosso entendimento é a ‘Crise de 1935’ se constitui num reflexo das tensões entre a produção de uma
identidade e de uma espacialidade estadual, que se tornam mais agudas no contexto pós-Revolução de
1930. As Intervenções e o papel desempenhado pelos Interventores no estado até 1935 evidenciam um
choque das organizações familiares desinstaladas do governo estadual não apenas com governantes
indicados pelo governo central, mas também com elites cooptadas nesse processo. Especialmente
examinado o caso de Mário Câmara, o último interventor, entendemos que aquilo que foi descrito pela
historiografia como as disputas políticas entre os Interventores e as oligarquias estaduais deve ser
adensado por uma análise das relações entre as organizações familiares e as elites que estavam
desalojadas do poder tanto na escala do local quanto do estadual desde o início da República. Foi a partir
deste dissenso que se devem compreender as proporções do confronto que se evidenciou nos confrontos e
na violência que caracterizou as eleições de 1934-1935 no Rio Grande do Norte. Este quadro se
complementa com a manipulação dos processos identitários que sustentaram ideologicamente as
organizações familiares e a narrativa da disputa após 1935, grosso modo, caracterizado como um atentado
à democracia, praticado por indivíduos que vindos de fora do espaço norte-rio-grandense, desprezaram a
tradição estadual.183
b) A ‘Reorganização diocesana’ como estratégia da Igreja Católica em meio à Estadualidade:
A atuação da Igreja Católica na ‘Crise de 1935’ já apontada como um ganho de nossa pesquisa
deve ser entendido enquanto potencializada por um processo que se desenvolve na escala do nacional e
182
Peixoto, Renato Amado. Espacialidades e estratégias de produção identitária no Rio Grande do Norte no inicio do século
XX. Revista de História Regional, v. 15, p. 169-193, 2010.
183
Como exemplo da produção dessa narrativa ver Barbosa, Edgar. História de uma campanha. Natal: EDUFRN, 2008. Como
exemplo de narrações centradas no problema oligárquico ver Spinelli, José Antonio. Getúlio Vargas e a Oligarquia Potiguar:
1930-1935. Natal: EDUFRN, 1996; Spinelli, José Antonio. Da Oligarquia Maranhão à política do Seridó. Natal: CCHLA,
1992.
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
que foi denominado por Edgar Silva184 como a ‘estadualização diocesana’. Também detectado por nossa
pesquisa, nesse processo a atuação da Igreja se volta para o aproveitamento das brechas de poder e da
espacialidade estadual que propiciam à Igreja expandir sua influência por meio de uma base de poder que
considera as tensões e as disputas na escala do estadual. Foi nesse sentido que se estimulou durante a
Primeira República a expansão da uma rede diocesana que influenciou sobremaneira a política brasileira
no século XX. Assim, entendemos que a Diocese de Natal teve participação decisiva na ‘Crise de 1935’,
uma vez que suas estratégias e atuação desencadearam, estimularam ou potencializaram diversos
acontecimentos do período.
c) A relação entre a Igreja e o Estado na década de 1930:
A atuação da Igreja na escala estadual não deve ser compreendida enquanto desarticulada de um
esforço na escala do nacional. Os esforços do governo Vargas visando rearticular uma espacialidade
central foram juntados pela Igreja aos seus próprios esforços de recuperação de prestígio e poder
nacional. Aquela atuação que foi interpretada por Scott Mainwaring enquanto formulada no projeto da
Neocristandade, impelida pelos esforços de Dom Sebastião Leme foi coadjuvada pelo apoio à
manutenção política do projeto e do próprio governo Vargas, resultando em apoio recíproco da Igreja ao
Estado e vice-versa. Logo, tratar da ‘Crise de 1935’ resulta em também ter de compreender que a atuação
da Diocese de Natal tinha a ver com esse apoio recíproco na escala do nacional e com sua junção a uma
introjeção do identitário e da espacialidade central sobre a Estadualidade.185
d) A Ação Católica e o Centro Dom Vital:
Constituídas pela Igreja Católica brasileira como estímulo ao processo da Neocristandade, o
Centro Dom Vital fundado no Rio de Janeiro em 1922 e depois espraiado para várias cidades, tinha como
principal missão forjar um pensamento católico e formar intelectuais que o manejassem. O Centro Dom
Vital receberia em 1935 o reforço da Ação Católica, organização replicada pela Igreja brasileira em
reforço a um projeto da escala do transnacional, de modo a instigar uma atuação dos leigos que
obstacularizasse os avanços do comunismo, do fascismo e do liberalismo, desenvolvendo seus esforços
por meio da mídia, especialmente pela imprensa. No caso da ‘Crise de 1935’ é necessário notar que o
184
Gomes, Edgar da Silva. "O catolicismo nas tramas do poder: a estadualização diocesana na Primeira República (18891930)." Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2012.
185
Ver Mainwaring, Scott. A Igreja Católica e política no Brasil, 1916-1985. São Paulo: Brasiliense, 1989; Arduini, Guilherme
Ramalho. "Em busca da Idade Nova: Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de organização social (1928-1945)."
Dissertação de Mestrado, UNICAMP. 2009; Pereira, Mabel Salgado. "Dom Helvécio Gomes de Oliveira, um salesiano no
episcopado: artífice da Neocristandade(1888-1952)." Tese de Doutorado em História, UFMG. 2010.
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Centro Dom Vital foi o principal estímulo para os intelectuais católicos norte-rio-grandenses e que a Ação
Católica foi o detonador de um movimento que teria o jornal ‘A Ordem’, da Diocese de Natal como seu
veículo. Note-se que o jornal da Diocese de Natal era homônimo da principal revista editada pelo Centro
Dom Vital.
e) A influência do ‘sombrismo’ e da Legião Cearense do Trabalho sobre o integralismo no Rio
Grande do Norte:
Outro problema de espacialidade, desta vez regional, interfere diretamente com a análise da ‘Crise
de 1935’. O sombrismo e a Legião Cearense do Trabalho, ideologia e movimento autônomos que depois
se incorporaram a Ação Integralista, foram determinantes não apenas para determinar a alavancagem do
integralismo no Rio Grande do Norte a partir da base fornecida pela Diocese de Natal, mas também para
determinar uma competição com o movimento sindical no Rio Grande do Norte. Considerando que a base
de atuação da Legião Cearense do Trabalho, era fundamentalmente o operariado e os trabalhadores rurais
e que o sombrismo, originado dos esforços do Centro Dom Vital, possuía fortes matizes anticomunistas, a
competição e o conflito foram inevitáveis e provocaram não apenas o confronto entre comunistas e
integralistas, mas também acirraram uma perseguição já movida ao movimento sindical ou comunista
pelas oligarquias tradicionais, o que permitiria explicar, por exemplo, a guerrilha levada a cabo pelo
Partido Comunista na região do Açu, antes e depois do Levante Comunista de 1935, bem como as
direções peculiares do Levante no Rio Grande do Norte. Fato é que nem o movimento nem os embates se
limitaram à Natal ou ao recorte proposto cronológico do Levante Comunista, como trabalha a
historiografia centrada na problematização do nacional. Observe-se que a data de fundação da Ação
Integralista no Rio Grande do Norte e do jornal que se constituiu no seu principal veículo, ‘A Ordem’
pela Ação Católica, são coincidentes com o aniversário da Queda da Bastilha, o dia 14 de julho,
evidenciando a participação de um mesmo grupo nos dois processos e um mesmo ideário, que se referia
ao combate católico às ideias liberais e socialistas.
II - A compreensão dos processos internos e das estratégias de atuação da Igreja Católica no Rio Grande
do Norte e de sua relação com o nacional.
a) A atuação da Igreja no espaço estadual:
Entendemos que a atuação da Igreja no Rio Grande do Norte se torna diferenciada a partir de
1929, quando D. Marcolino Dantas assume a Diocese de Natal, uma vez que a dinâmica da Igreja passa a
ser marcada pela expectativa de projeção nos espaços que até então eram base de atuação mais restrita das
organizações familiares, a região de Mossoró e a de Caicó, para onde D. Marcolino possui, desde 1929,
planos de formação de uma rede diocesana sufragânea a de Natal. Essa atuação se torna mais marcada na
escala estadual a partir de 1935, com a fundação do jornal ‘A Ordem’, com o apoio explícito ao
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Intendente Mário Câmara, originário de uma das organizações familiares dissidentes, e com a expansão
do movimento integralista, por meio do apoio dado a este pela Ação Católica. A compreensão deste
envolvimento é fundamental para se compreender o desenrolar dos acontecimentos durante o ano de
1935, inclusive durante o Levante Comunista em Natal, com a ocupação do jornal A Ordem e o confisco
de parte de seus bens pelos revoltosos. O sucesso do movimento no Rio Grande do Norte deveu-se
mesmo à percepção pelos revoltosos do dissenso das elites bem como a desestabilização e quase vacância
do governo estadual foi uma das resultantes do envolvimento da Diocese de Natal.
b) A atuação da Igreja pós-Levante Comunista:
As consequências da ‘Crise de 1935’ são muitas, a mais importante delas é a inscrição definitiva
da Diocese de Natal como um dos contendores do jogo político no Rio Grande do Norte. Depois do
Levante Comunista, especialmente, a Igreja compactua uma nova organização do poder que passa a
incluir a hierarquia católica na sanção do político, mesmo que à custa do integralismo e por meio da
acomodação com as antigas organizações familiares. Garantidora da sanção do governo central e
articuladora do ideário anticomunista, a Igreja constitui, em primeiro lugar, a Diocese de Mossoró na base
principal da contestação comunista no estado, instaurando ações e participação visando a diluição dos
conflitos sociais por meio de ações assistencialistas e religiosas, sintomaticamente conduzidas pelo futuro
Cardeal do Rio de Janeiro, D. Jaime Câmara. Em segundo lugar, com a participação decisiva de um dos
antigos líderes integralistas, o padre Walfredo Gurgel, que mais tarde seria eleito governador do Rio
Grande do Norte, constitui a Diocese de Caicó, na base principal das organizações familiares que até
então dominaram o Governo estadual. Em terceiro lugar, cuida-se da formulação de uma identidade e
espacialidade católica norte-rio-grandense, que se conjugava aos esforços da espacialidade central,
reforçados mais ainda no Estado Novo. Os protomártires de Cunháu e Uruaçu seriam formulados como o
elemento central de uma narrativa onde os esforços da Igreja Católica se conjugavam desde o início com
uma espacialidade norte-rio-grandense.
Finalizamos nossa comunicação colocando que nossa interpretação integra os não apenas os
principais acontecimentos e problemas do que denominamos ‘Crise de 1935’, mas que esta interpretação,
ao explicitar a tensão entre as espacialidades central e estadual, pode servir para outras análises não
apenas na escala do estadual, mas também na do regional e nacional.
Bibliografia:
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A PRODUÇÃO DA IDENTIDADE ASSUENSE POR MEIO DOS FESTEJOS JUNINOS
Roberg Januário dos Santos *186
Lucilvana Ferreira Barros**187
Resumo: Tida pelo discurso folclórico como uma festa de origem europeia chegada ao cenário americano por meio do
processo de colonização portuguesa, as festas de São João no Brasil têm sido descritas enquanto festejos que traduzem uma
cultura de raiz, enquanto expressão de origens culturais autênticas ligadas a noção de tradição. Estes eventos são marcados pela
presença de um arsenal de elementos simbólicos utilizados por diferentes espaços e sujeitos na constituição de suas
identidades. Compreende-se que os festejos juninos são invenções provenientes de práticas, imagéticas e discursos que
destacam o evento pelo viés dos costumes em comum, pela sociabilidade e pela fraternidade religiosa (LIMA, 2010). Nesse
sentido, buscamos problematizar a produção da identidade assuense por meio dos discursos escritos alusivos a festa de São
João enquanto tradição da cultura local. Buscamos através de produções impressas, tais como jornais, livros e cordéis
questionar como as referidas narrativas fazem parte de um discurso construtor da identidade assuense como terra de tradicional
São João, examinamos a inserção destas obras num conjunto de estratégias agenciadas por setores de produção e divulgação da
cultura intelectual/artística assuense que visam apresentar tais festejos como os mais antigos do Assú/RN, comemorando em
junho de 2012 duzentos e oitenta e seis anos de existência. Até o presente momento, a análise das fontes aponta para uma
escrita acerca do São João assuense interessada em demonstrar a antiguidade da festa, a perenidade da mesma, sua tipicidade,
além de alçarem a mesma enquanto lugar de memória e de religiosidade.
Introdução
Viva o São João!
Viva o povo!
Viva a terra assuense!
O que é velho o que novo
Na tradição se mistura
Esse caldo de cultura
Bebo, como e não reprovo. 188
Esses versos poéticos acerca do São João do Assú muito nos impelem a perguntar quais as
condições que possibilitaram a emergência deste enunciado, condições essas não necessariamente a de
autor ou da elaboração da obra poética, mas aquelas que viabilizaram a produção de um discurso
construtor de um Assú identificado pelos festejos tradicionais de São João. O “viva” na referida produção
poética é uma tentativa de mostrar quão grande é a identificação do povo assuense e os festejos de São
João, denota a força da referida festa para a população local, toda essa energia parece pontecializada pela
tradição que a cidade possui em vivenciar os festejos, tradição responsável pela diluição das “fronteiras”
entre o velho e o novo, de modo que tem-se uma continuidade cultural de homenagem alusiva aos festejos
186
Autor/Mestrando em História /UFCG
Co-autora/Mestranda em História/UFCG
188
Trecho extraído da poesia do poeta Neto Braga In: FRANCISCO, Antonio; BRAGA, Neto. LOPES, Gilvan. O São João do
Assú no topo da tradição 282 anos de festa, 2008, p.10.
187
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juninos a ponto de eliminar as possíveis ameaças que “as coisas novas” trazem, assim incutindo uma
visão de permanência de antigos costumes comemorativos em novos cenários.
Nesse sentido, devemos indagar por que a noção de tradição aparece tão nitidamente quando se
faz menção aos festejos juninos. Aventamos que o apego dos enunciadores das festas de São João a esta
noção acima citada decorre não só da concepção de um evento que apresenta costumes comuns,
comemorações continuadas, acontecimentos que se repetem, mas de um olhar que reduz as diferenças em
nome de uma suposta unidade festiva que estendida ao recorte que a circunscreve reitera a produção de
identidade e de espaço. Desse modo, lendo estes enunciados como produções que envolvem relações de
poder e saber devemos inquiri-los nas regras que os constrói, uma vez que daí temos condições de
problematizar os ditos e os não-ditos do discurso que agrupa tais enunciados. Assim, ainda deve-se
considera que a simplificação das diferenças ocasiona a continuidade das origens, aquelas situadas num
passado longínquo responsável pela autoridade da tradição, esta conforme Foucault (2012, 25),
Permiti repensar a dispersão da história na forma desse conjunto; autoriza reduzir a diferença
característica de qualquer começo, para retroceder, sem interrupção, na atribuição indefinida da
origem; graças a ela, as novidades podem ser isoladas sobre o fundo de permanência, e seu método
transferido para a originalidade, o gênio, a decisão própria dos indivíduos.
Esse rápido exercício de leitura de um trecho poético traduz o nosso percurso neste trabalho,
oportunidade em que constatando a produção de um discurso postulador de um Assú terra de tradicional
São João, interrogaremos esta produção procurando investigar como ela se presta, em parte, a uma
construção identitária do espaço assuense, haja vista que partindo da aproximação história e espaço,
particularmente da ideia de descortinamento da produção das espacialidades, considero que a fabricação
de identidade (s) serve como suporte para a construção de espaços, estes entendidos aqui como invenções
humanas localizadas em dado momento e determinada época cujas condições que os produzem emergem
das práticas discursivas e não-discursivas vinculadas a lugares de produção e voltadas para produção de
paisagem. O espaço de acordo com Michel de Certeau (2011) é um lugar praticado, ou seja, é um lugar
movimentado, subjetivado, inscrito, projetado, imaginado e sonhado. Ele é o resultado da modificação
ocasionada no lugar, é fruto da interferência humana no território. Assim, o espaço está no âmbito da
relação e não necessariamente da localização e extensão.
Compreendendo em linhas gerais a concepção de espaço, devemos elencar que as identidades são
substanciais para a produção destes, pois as identidades enquanto formas de pertencimento e
reconhecimento de uma dada situação de apego são
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[...] construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como
produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas
discursivas especificas, por estratégias e iniciativas especificas (HALL, 2009, 109).
Assim, as identidades devem ser entendidas como marcas muito mais da diferença e da exclusão
do que de uma unidade idêntica e natural, elas devem ser problematizadas a luz das desnaturalizações,
pois tal procedimento implica mostrar o avesso das verdades cristalizadas e dos poderes ocultos. Postulase assim que em geral a identidade conferida aos festejos juninos tende a exaltar suas origens, sua
perenidade, sua homogeneidade, aquilo que permite a “criação de raízes”. Especificamente em relação ao
Assú, adiantamos que os enunciados em relação à festa de São João nos moldes de uma produção
identitária acima referenciada, contribuem juntamente com outros enunciados para a produção da
identidade espacial assuense, a festa torna-se assim mais um elemento simbólico pertencente ao Assú,
pois se situa no conjunto de celebrações, acontecimentos históricos e elementos naturais que visibilizam a
cidade, a saber: a colonização “heroica”, a participação na Guerra do Paraguai; a abolição dos escravos, a
cidade do primeiro médico norte-rio-grandense, a terra dos poetas, a cidade de um grande patrimônio
arquitetônico e a terra dos verdes carnaubais e do Rio Assú.
Mas esse conjunto de atributos construtores do espaço assuense e de sua identidade emergiu em
função da montagem de uma maquinaria discursiva responsável pela adjetivação do Assú, como veremos
a seguir.
1. A construção de um espaço de tradições
A produção de um Assú de tradições já citadas acima foi fruto de uma operação de grupos de
intelectuais, poetas, escritores, boêmios e artistas assuenses que agenciaram um discurso caracterizador
do Assú, um discurso que mesmo tendo suas condições de produção dispersas e descontinuas, angariou
tonalidade homogênea, um discurso sedimentado na ideia de terra de um passado glorioso, um espaço
decantado poeticamente, um ambiente tradicional tracejado por linhas culturais que se arrastam no tempo,
que rabiscam as páginas vivenciais da cidade.
Por isso, este trabalho aqui apresentado é parte de um estudo mais amplo que problematiza a
produção do espaço assuense enquanto terra de história, poesia e tradição e, concomitantemente, a
constituição de uma prática imagético-discursiva necessária para tal construção. Assim, constatamos uma
regularidade discursiva, por sua vez identitária manifestada em vários enunciados, por sua vez dispersos
acerca do Assú, mas que ganham sentido de unidade ao passo que implicitamente convergem para
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anunciar uma terra (Assú) de características ancestrais, por conseguinte histórica, um espaço de tradições
intelectuais, populares, acústicas, entre outros.
Além disso, se produz uma cidade poética, um ambiente onde parece brotar poetas de todos os
lados, poesias parecem atravessar o cotidiano local a ponto de transbordar para outros recantos do Estado
e do país. Assim, a produção do Assú enquanto espaço de história, poesia e tradição emerge nas
escrituras por mim investigadas no plano da problematização do discurso histórico-poético como uma
perspectiva implícita, articulada no entrecruzamento dos saberes e poderes. Essa produção pode ser
encontrada em diferentes camadas de enunciados cabendo por nossa parte uma operação
historiográfica/arqueológica no sentido decompor cada camada visando investigar as condições que
possibilitaram a existência desse discurso construtor do espaço assuense.
Nesse sentido, a produção e consequentemente a invenção identitária de um espaço passa pela
ênfase nas origens, na continuidade e na tradição, pois estes elementos possibilitam a busca das
“verdadeiras naturezas”, das “essências”, das coisas que imortalizam uma face para o lugar. Busca-se
assim uma fundamentação para o espaço que venha a tornar-se continuo, unificado e imutável. Assim, se
pressupõe de uma terra de história, poesia e tradição movimentos discursivos que remontem as origens,
que vislumbrem marcos criadores, que apontem uma fundação gloriosa, que destaquem o lugar. Assim,
ao longo do tempo, particularmente no século XX, Assú foi alvo de uma série de investidas discursivas
capazes de lhe reservar um lugar no panteão das cidades tidas como tradicionais. A cidade é fabricada
pelo discurso sendo considerado espaço da intelectualidade potiguar.
2 - São João do Assú: escritas de uma festa
Neste ponto do texto, pretendo mapear as grafias do São João do Assú, oportunidade em que
incursionando por várias obras acerca do Assú, observamos que estas se remetem aos festejos juninos de
maneira a considera-los ainda na sua acepção tradicionalista, ou seja, nestas a festa de São João é
apresentada por meio de sua feição religiosa, cívica e festiva no que concerne telegramas, arranjos
pirotécnicos, mosteiros e a soltura de balões. Além disso, constam os registros de noites de fogueiras e da
tradicional vaquejada. Compreendemos que algumas narrativas evidenciaram, entre os anos de 1950 e
1980, certa saudade de uma festa de São João tradicional, aquela vivida em tempos passados, festas
memoráveis que parecem perder ao longo do temo o brilho que possuía. No final deste subtópico
abordarei brevemente as características de produção da festa no momento contemporâneo.
Assim, se faz necessário adiantar que os festejos a São João Batista no Assú datam do processo
de povoamento da região onde hoje encontra-se a cidade, ocasião em que o domínio do território assuense
em tempos de colonização foi acompanhado por uma colonização religiosa, uma vez que no enfretamento
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com os indígenas, as forças beligerantes comandadas pelas autoridades políticas e militares da capitania
construíram dois arrais, estes denominados com nomes de santas: Santa Margarida e Nossa Senhora dos
Prazeres. Já no início do século XVIII, aparecia o interesse por parte dos habitantes da Ribeira do Assú
para construir uma igreja, sendo tal registrado constante no arquivo do bispado de Olinda/PE. Em 1926 já
se confere o funcionamento da Freguesia de São João Batista nas Ribeiras do Assú, sendo em 1760,
erigida a Matriz em reverência ao santo padroeiro.
Consideramos que a festa de São João no Assú, apesar de datar de tempos longínquos, é uma
construção também discursiva, sua visibilidade depende dos ditos e escritos acerca desta. Assim, já num
primeiro momento de produção historiográfica assuense, situado na década de 1920, observamos a
fabricação de uma terra que festeja o referido santo, pois em Municípios do Rio Grande do Norte (1929),
seção Assú, Nestor Lima (1929, p. 150), expõe que “o Templo, que serve de Matriz, é um do mais bellos
e amplos do Bispado; é seu orago São João Baptista, cuja festividade, encerrada a 24 de junho de cada
anno, é uma das mais gratas e fortes tradições do logar e da sua população”. Nesta escrita,
deliberadamente a favor das tradições assuenses, Nestor Lima fortalece mais um “ícone” de uma cultura
arquetípica local: os festejos ao padroeiro.
Essa ênfase de uma “grata e forte tradição” em torno dos festejos de São João Batista, mais uma
vez reforça a tese da ótica luso-brasileira enquanto perspectiva de análise histórica praticada por Nestor
Lima, uma vez que investigando a origem da festa de São João no Brasil, Elizabeth Lima, mediante o
discurso folclórico, argumenta que “assim uma ideia unânime entre todos os folcloristas investigados, é a
defesa de que a festa de São João possui uma origem européia e que chegou ao Brasil, através dos
portugueses, em meados do século XVI” (2011, p.57).
Ou seja, conforme o estudo de Elizabeth Lima foram os discursos folclóricos189 quem mais
descreveram as festas de São João no Brasil, daí estes remontarem a referida festa ao espaço europeu,
dando ênfase a Portugal e sua extensividade aqui no Brasil já no período colonial. Assim, compreendendo
que a identidade é fabricada por meio da diferença, entendemos que Nestor Lima quando relata acerca da
decadência das manifestações religiosas dos negros em Assú, informando que “esse costume
desappareceu com os últimos descendentes directos da raça inditosa e resta só a recordação d curiosa
usança”. E ressalta a festa de São de João, buscou a afirmação da identidade religiosa do espaço assuense
por meio da fé cristã e católica, de modo que se sobressaísse à religião trazida de Portugal vinculada ao
189
Ainda conforme esta pesquisadora, os discursos folclóricos propiciam aos festejos juninos “[...] uma abordagem na qual as
ideias de origem, continuidade e peculiaridade propiciam a construção de uma visão romântica, estática, homogênea e unitária
[...]” (LIMA, 2008, p.17). Sobre esta discussão consultar LIMA, Elizabeth Cristina de Andrade. A fábrica dos sonhos: a
invenção da festa junina no espaço urbano. 2. ed. Campina Grande, EDUFCG, 2008. Tais características acerca dos festejos
juninos se assemelham aos enunciados produzidos sobre os referidos festejos em Assú, estes são discutidos mais adiante neste
trabalho.
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homem branco e colonizador. Por isso, “a afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam,
sempre, as operações de incluir e de excluir” (SILVA, 2009, p.82).
Após este primeiro apontamento registram-se vários enunciados emergidos no século XX que
farão menção a festa de São João em Assú. A festa ganha certo lugar de memória para vários escritores
locais e passa a constar nas produções poéticas da cidade. Assim, em 1954, a professora e poetisa Maria
Carolina Wanderley Caldas (Sinhazinha Wanderley) produz uma obra escrita denominada Anotações,
nela a autora prenunciando sua morte rememora sua vida em Assú, de modo a exaltar os principais
acontecimentos históricos que a mesma vivenciou. Entre tantas lembranças, Sinhazinha se reporta aos
festejos do padroeiro como uma festa de momentos ímpares, como hasteamento das bandeiras,
oportunidade em que várias moças conduziam estas até o mastro cantando
“Salve! Salve
O glorioso
São João
De Deus amado
Nosso Excelso Padroeiro
Nosso firme advogado
Sinhazinha adianta que a letra destes versos era de autoria de Elias Souto e a música de Luiz
Carlos Wanderley. Esta poetisa também rememora os festejos através dos fogos, girandolas, mosteiros e
os balões. Sinhazinha demonstra-se encantada por aquela festa, inclusive o adornamento da Igreja Matriz
era um dos elementos que mais lhe chamavam a atenção, particularmente da iluminação por candeeiros a
querosene.
Em 1966, o assuense Lauro de Oliveira, professor da Universidade de Pernambuco, participou de
solenidade de lançamento do livro de outro assuense, dessa feita, Rômulo Wanderley, que publicava
Panorama da Poesia Norte-Rio-Grandense (1965). Lauro produz uma curta obra denominada O Açu no
Recife (1966) ressaltando não só Rômulo, mas rememorando sua terra. Assú aparece em páginas de
nostalgia, lembranças são várias e entre elas a da festa do padroeiro e sua vaquejada. Para Lauro “as
festividade de João Batista – o padroeiro da cidade – constituíam um ponto alto a assinalar, na vida da
Cidade” (1966, p. 13). É com Lauro que observamos um componente tido como indispensável às
tradicionais festas de São João, notadamente a tradicional vaquejada. Ele reitera que “as vaquejadas
daquela época tão diferentes das de hoje que obedecem a rigores de uma técnica e aquelas de outrora, que
se caracterizavam pela espontaneidade [...]”. O autor já em 1966 operava em defesa da velha tradição da
vaquejada, aparece aí o apego às origens e à ameaça da modernidade representada pela técnica. Ele ainda
considerava a festa de São João encantadora e que o santo era milagroso.
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Em 1977, João Marcolino de Vasconcelos publicava em comemoração à passagem do 132º
aniversário de emancipação política do Assú, a Coletânea Literária Assuense. Nesta obra foram reunidas
diversas poesias, trovas, glosas, entre outros de vários poetas e escritores locais. Frente a uma data cívica
da cidade, produzia-se mais uma obra para reforço de uma identidade poética e intelectual assuense, dessa
feita sobre o patrocínio do Poder Público Municipal capitaneado pela chamada Coleção Assuense,
entidade voltada para a valorização da cultura local. Capturamos do conjunto de produções constantes na
Coletânea trecho do poema intitulado “Junho de minha infância”, de autoria do próprio João Marcolino
de Vasconcelos. Ele fez percurso de rememoração semelhante a Lauro de Oliveira, quando escrevia sobre
as festas do mês de junho de seu tempo de menino, ocasião em que elenca elementos já citados e
presentes nas escritas de Sinhazinha e Lauro de Oliveira, como aqueles que envolvem o fogo (balões,
fogos, fogueiras, etc.). Segundo Lima, o discurso folclórico sobre a festa de São João concede forte
importância ao fogo, pois este elemento “[...] é apresentado como um dos principais símbolos da festa,
particularmente representado pelas fogueiras e pelos fogos de artifício” (2010, p. 89). Além disso, ele
relembra que junho era
Mês de festas e evocações
De um passado distante.
Junho da minha infância
Que se foi como os balões
E eu não vejo voltar...
No trecho acima podemos conferir o discurso da saudade acerca de uma forma de festa junina a
qual o autor considera que não se ver mais. Reforça esse pensamento de Vasconcelos trechos do mesmo
poema onde ele caracteriza os festejos em moldes rurais, na medida em que faz referência às comidas
típicas, aos compadres e comadres, casamentos matutos, etc. Assim, no tempo de sua infância o São João
era de “raiz” o que pela sua narrativa em 1977 não era mais. Deve-se entender que a menção a todas essas
coisas se dá em função da busca do perfil rural que se faz em relação às festas de São João,
principalmente no Nordeste brasileiro, haja vista que nesta região esse tipo de festa possui uma áurea de
autenticidade e espontaneidade. Quanto à recorrência as comidas típicas, é preciso pensar que “as festas
de São João são comumente analisadas pela leitura folclórica como a festa da fartura” (LIMA, 2010, p.
105). Daí presença de bolos, milho, doces e bebidas.
Devemos lembrar que entre 1950 e 1990, o Assú passou por várias modificações no seu cenário
urbano, de modo que a vida cotidiana das pessoas foi impactada, uma vez que, a cidade recebia
melhoramentos no abastecimento hídrico e elétrico; ampliação da rede bancária; infraestrutura urbana
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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(construções e reformas); telefonia; dinamismo do esporte; construção do clube social da AABB;
implantação de um faculdade; gravação cinematográfica (filme Jesuíno Brilhante) na década de 1970;
entre outros. Possivelmente este pode ser um dos vetores a ter impulsionado a escrita saudosista dos
escritores aqui analisados.
Ainda nesse contexto, elencamos dois outros autores que se remetiam a festa de São João no Assú:
Maria Eugênia Montenegro e Francisco Augusto Caldas de Amorim. Em 1978 a escritora mineira e
radicada em Assú, Maria Eugênia, membro da Academia de Letras potiguar e autora de diversos
trabalhos, publicava Lembranças e tradições do Açu, nesta obra ela pretendeu narrar diversos aspectos do
folclore do Vale do Assú, entre eles o “das festas do padroeiro e das vaquejadas”. Ao aludir sobre a
temática anteriormente citada, Maria Eugênia a aborda pelo viés religioso e folclórico, inicia dizendo que
“o padroeiro da cidade do Açu é São João Batista – o percussor do Messias” (1978, p. 178). concede
importância a programação desencadeada na Matriz, mas destaca que “as vaquejadas são o ponto alto da
festa” (1978, p. 179). Percebe-se na narrativa da escritora que a emoção das festas juninas está na
vaquejada, o que não anula a festa de São João, pois as mesmas faziam parte da programação junina.
No entanto, a magia e a alegria para Maria Eugênia estava mesmo na vaquejada, inclusive era
neste espaço que se dançavam os forrós como xotes e baiões, além da alegria dos vaqueiros. Portanto,
temos assim uma visão mais otimista da vaqueja “moderna” com regras e premiações. Essa ótica da
escritora já evidencia uma leve mudança na composição da festa, pois antes visibilizada praticamente só
pelos festejos religiosos, ocasião em que a festa era composta de ritos e costumes em frente à Matriz,
agora a festa ganhava outra conotação a partir das festas dançantes realizadas nas vaquejadas e clubes
sociais, como o Clube Municipal e a AABB. Daí, a possível perda para Vasconcelos da tradição. Para
Maria Eugênia, os festejos continuavam laureados pela noção de tradição, até porque seu livro era
justamente sobre as “tradições do Vale e do Açu”.
O segundo escritor de naturalidade assuense foi considerado um dos mais destacados intelectuais
do cenário local, pois é autor de uma vasta produção histórico-literária sobre o Assú. Em um de seus
livros, Assú da minha meninice (1982), obra pela qual seu autor rememora sua infância, evidencia que
“quando o Assu era povoação de São João batista da Ribeira do Assu, já se festejava o Precusor do
Messias. A denominação do Povoado por si só definia sua veneração. O culto ao Batista não teve solução
de continuidade. Vem atravessando os tempos mais atuante e mais efervescente” (1982, p 20). Aqui,
percebe-se a intencionalidade de ligar o passado e o presente, de maneira a reavivar os festejos, uma vez
que estes na visão do autor atravessam os tempos, posição essa diferente de João M. Vasconcelos que
pensava num certo decréscimo da tradição joanina. Além do mais, a referência ao padroeiro da cidade
como percussor do Messias, denota um elemento aproveitado estrategicamente pelos escritores, pois
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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sendo São João Batista padroeiro cidade, a festa de São João se torna mais forte e tradicional, é tida como
autêntica.
Mas, os apontamentos de Maria Eugênia não eram atoa, pois denotavam que a festa passava a ter
outro ritmo, dessa feita dançante, era o início dos festejos juninos estilizados. Por isso, em 1973 o jornal
O Mossoroense destacar que “prosseguem em Açu os festejos em honra a São João Batista, cuja
comemoração é tradicional naquela região”. Logo após a reportagem fazia menção a várias atrações da
festa, inclusive concursos musicais. Assim, a festa de São João em Assú continuava tradicional, mas com
outras feições. Os efeitos desse contexto apareceriam no final da década de 1980 e início de 1990, quando
o Poder Público Municipal demonstrava preocupação em tornar a festa participativa e melhorar a
infraestrutura da cidade para receber os filhos do Assú que moravam fora, bem como os demais turistas
(TRIBUNA DO VALE DO AÇU, 1990). Assim, além da ideia de confraternização expressa quando se
fala em receber os conterrâneos, o discurso era fazer da festa a “festa do povo”, o que denota a intenção
de se produzir uma experiência festiva de igualdade social. Também se evidencia já uma festa de
conotações turísticas, muito em função do engrandecimento da cidade e dos representantes políticos, pois
de acordo com Lima (2008, p. 141), “[...] a construção da festa junina no espaço urbano surge como um
excelente campo de busca e concretização por prestígio e poder”.
Assim, a festa de São João em Assú entra no século XXI sendo produzida enquanto grande, pois a
infraestrutura e recursos para a mesma se avolumam, a cidade apresenta uma variedades de atrações, entre
elas as musicais advindas de várias partes do Brasil que se apresentam na Praça São João, atrações essas
consideradas “do momento”, modernas em relação ao forró tradicional. Assim, logo se constata uma
contradição, pois uma festa grande tende a requisitar uma aparelhagem moderna, mas o Poder Público
Municipal tendeu a reacionar o caráter tradicional da festa, inclusive em determinado momento Assú foi
tido como a cidade que possuía o São João mais antigo do mundo, daí essa festa, como evidenciado no
cordel citado no início deste texto, estaria no topo da tradição. Mas essa possível contradição fora diluída
na ideia de que a festa em Assú possui a peculiaridade de misturar o velho com o novo, assim essas duas
instâncias conviveriam harmoniosamente.
Conclusão
Acreditamos que mediante uma forte produção escrituristica responsável pela adjetivação do
Assú, a festa de São João tenha se tornado um dos símbolos de identificação do espaço assuense. Ao
passo que várias narrativas se remeteram ao São João do Assú, estas gestaram um viés identitário da
cultura local e concomitantemente produziram
uma ideia de espaço assuense, pois um espaço é
constituído quando se é enunciado através de seus ícones, mitos, emblemas, sinais e símbolos. As escritas
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do São João assuense por mais que em algum momento se desencontrem acabam produzindo a identidade
assuense por meio dos festejos juninos. Quanto à festa no espaço assuense, os sentidos situados nos
enunciados lidos neste trabalho apontam que a festa passou de um cenário tipicamente tradicional para
um palco de atrações modernas, mas a ênfase na tradição continuou, pois ela transparece ser o porto
seguro daquilo que se pretende antigo em paisagens novas.
Referências
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Mossoroense).
CALDAS, MARIA Carolina Wanderley. Anotações. Assu: 1954. Mimeo.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: I. Artes de fazer. 17. ed. Petrópolis: RJ: Vozes, 2011.
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EUGÊNIA, Maria. Lembranças e tradições do Açu. Natal: Gráfica Minimbu, 1978.
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a perspectiva dos estudos culturais. 9 ed. Petropólis, RJ: Vozes, 2009, p.109.
LIMA, Elizabeth Cristina de Andrade. A fábrica dos sonhos: a invenção da festa junina no espaço
urbano. 2. ed., Campina Grande, EDUFCG, 2008
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Grande: EDUFCG, 2010.
OLIVEIRA, Lauro de. O Açu no Recife. Recife: Imprensa Oficial, 1966.
WANDERLEY, Rômulo Chaves. Panorama da poesia Norte-Rio-Grandense. Edições do Val LTda,
1965.
Jornais
Começa a movimentação das festas juninas. O Mossoroense. Ano C. Mossoró/RN, 30 de maio de 1972,
p.4.
Açu iniciou os festejos do Padroeiro S. João Batista. O Mossoroense. Ano 101, nº 4.064, 20 de junho de
1973.
No São João a festa é do povo.Tribuna do Vale do Açu. Ano III, nº 110, Açu/RN, 16 de junho de 1990.
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NOS ENTRUDOS DO CARNAVAL: TUDO JUNTO E MISTURADO
Valdemiro Severiano Filho*190
Resumo: O carnaval natalense, entre os últimos anos do século XIX e as primeiras décadas do século XX, atravessou uma
disputa de espaços: de um lado os confettise serpentinas, associados a uma nova imagem do brasileiro construída nos moldes
da Europa moderna, exprimindo simbolicamente a busca de uma identidade nacional e, de outro, os limões-de-cheiro e
enfarinhadas, que persistiam nas brincadeiras de rua, sobretudo pelas camadas populares. O “velho” entrudo resistia, entre
tensões e diálogos, com o “moderno” carnaval. Esta coexistência refletiu numa identidade híbrida, que nos permite discordar
da visão evolutiva do carnaval. A pesquisa incorporou vários documentos, principalmente as notícias da imprensa natalense e
os relatos presentes na memória dos foliões de outrora, que nos remete aos desdobramentos da folia momesca nos anos que
cercam o final do século XIX até 1935.
Assim como se tenta descobrir as origens do carnaval, procura-se, também, impor um marco ao
surgimento do carnaval em Natal/RN, que, para alguns pesquisadores, encontra-se nas décadas finais do
século XIX191. Demarcar um início é matéria difícil e não é a nossa proposta no momento, ainda mais
quando se propõe que a festividade nos remonta à própria chegada portuguesa no Brasil. Não seria
coerente imaginar que o carnaval era celebrado em todo o país há séculos e em Natal ser diferente.
Não há como delimitar seguramente o início das práticas entrudísticas; também cremos que pôr
um fim pela chegada do modelo “moderno”192 de carnaval é um equívoco. É preferível pensar na
coexistência das formas de “brincar”, ainda que a elite natalense, a exemplo das classes dominantes de
outras cidades brasileiras, tivesse o propósito de extinguir o entrudo e não permitir, aos poucos que se
aventuravam, manifestarem-se nos mesmos espaços das brincadeiras elitizadas.
Sem mensurar datas, sabe-se, todavia, que as principais referências – sejam orais ou documentais
– das festividades momescas em Natal nos remetem às últimas décadas do século XIX. Todavia, isto não
nos autoriza afirmar que o carnaval natalense foi “introduzido” no calendário local naquela época. Certa é
a heterogeneidade da festa em relação às formas de diversão neste tempo de folia. Inúmeras maneiras de
participar do carnaval coexistiram na cidade: clubes, sociedades, ranchos, cordões e indivíduos avulsos.
Grupos e pessoas davam o “ar da graça” na festa, de forma coletiva ou individualmente, porém, separados
pelo nível de abastança.
190
Mestrando do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte.
191
De acordo com o pesquisador Gutemberg Costa, o primeiro carnaval registrado pela imprensa em Natal é datado de
1877, quando o jornal A República noticiou o Entrudo na cidade.
192
Em todo o texto, sempre que nos referirmos à “moderno” e suas adjetivações e flexões, colocaremos entre aspas
por se tratar de uma discussão muito abrangente e até contraditória dentro da academia. O “moderno” dos intelectuais
natalenses da época pode estar ligada ao modernismo das artes. Preferimos pensar o desenvolvimento de Natal como
projeto arquitetônico e urbanístico, não necessariamente voltado para os planos da “modernidade” consolidada pela
Revolução Industrial e o capitalismo.
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Rememorando os primeiros festejos momescos, Cascudo (2005) nomina os entrudistas, dentre os
quais encontravam-se os “terríveis” papangús. Quanto aos primeiros grupos, relembra o Club do Silêncio
e o Club Carnavalesco Nocturno; este último foi referenciado por Lulú Capeta no expediente do Jornal
Oficial de 05 de fevereiro de 1902 pela sua ausência até então para o carnaval daquele ano193, sendo,
também, o mais antigo do carnaval natalense, datado de 1896194. Tais participantes e clubes celebravam o
período momesco enquanto um momento de folia vicinal, reunindo-se à família e vizinhos, ornamentando
determinadas ruas da cidade para ocasiões de sociabilidade. O espaço da rua era primordial, fazendo-se
extensão da casa, numa íntima relação entre público e privado, tornando-se um território festivo e
privilegiado para que as pessoas se relacionassem e brincassem, como “expressão teatralizada da
solidariedade comunitária” (BURKE, 1989: 223).
Em 1901, a Rua Treze de Maio, no bairro Ribeira, foi palco de “fortíssimos tiroteios de confetti e
serpentinas de variegadas [sic] cores, devendo o torneio começar à tarde e estender-se até à noite”. Para
receber os brincante, a rua foi ornamentada com “bandeiras e folhas de palmeiras e com uma boa
iluminação à noite”195. Nesta época, diferentemente da efervescência do carnaval carioca e suas pomposas
Sociedades, o reinado do Momo em Natal, embora animado, ainda não havia absorvido os corsos196
venezianos, mas já se deleitava com os “moderníssimos” confetes e serpentinas.
Em 1902, o Jornal A República noticiou a “decência” do carnaval natalense, com a proibição do
“brinquedo brutal da goma e da lima de borracha”197 pelos editais do chefe de Polícia, que produziram
bons resultados, salvo “uma ou outra pessoa mais aferrada ao velho entrudo, que não pude prescindir do
gosto de enfarinhar-se”198. Tal posição revela as múltiplas faces dos festejos carnavalescos na cidade,
onde, por um lado, como sinônimo de brilhantismo e beleza, o “carnaval” do confete e serpentina, “que
adquiriram foros de cidade e entraram nos hábitos da nossa população”199, era aceito pela sociedade, por
outro, o entrudo popular não ganhava afeição da imprensa, mas pôde ser visto na cidade, pelos grupos e
indivíduos que persistiam nas molhadelas.
193
A República de 05.02.1902.
Em carta escrita ao Jornal A República, publicada no periódico de 16.02.1912, o clube carnavalesco participa aos
redatores a comemoração do “seu 16º anno de vida percorrendo as principaes ruas desta cidade no próximo sabbado de
carnaval”
195
A República de 16.02.1901.
196
Corso foi o nome dado ao desfile dos ricos em carros no período carnavalesco, reproduzindo a “batalha das flores”
francesa. O nome, porém, é derivado da Via del Corso, rua em Roma onde ocorreram os primeiros desfiles em carros. Em
terras brasileiras, os primeiros corsos ocorreram na cidade do Rio de Janeiro, no século XIX.
197
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198
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199
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194
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Não obstante as tentativas de extermínio dos limões-de-cheiro, considerados indignos do festejo
momesco, encontra-se no mesmo jornal oficial uma opinião bem diversa no que se refere à prática do
entrudo, conforme podemos observar na nota de Lulú Capêta:
A rapaziada da minha terra já não se diverte. No meu tempo, a história não se contava
assim. Eram clubs e mais clubs. Alguém me disse que tudo isso é devido ao tal confetti...
Eu sou do tempo de cuia d’água e das laranginhas de cêra: e si brinco com taes papeis
cortados, é porque quem não tem cachorro, caça com o gato200.
O saudosismo do redator nos remete aos festejos entrudísticos ocorridos no século XIX na cidade.
Apesar de rejeitado pelo “projeto modernizador”, as enfarinhadas dos antigos carnavais ainda estavam
arraigadas na população e a mudança, como queria os “modernos”, não se operava de forma rápida, mas
lenta e gradual. O desejo de acabar com as brincadeiras “atrasadas” pela simples imposição, gera
resistência do “velho”, “antigo” e indesejado, que persiste no mesmo espaço.
Os festejos carnavalescos natalenses, já no início do século XX, preocupavam-se em atender os
anseios da elite local, num ideal de “modernidade” e civilização, tendo como parâmetro os modelos
europeus. Ela tinha o interesse de que a população também acompanhasse esta “evolução” para uma
sociedade civilizada. Esta busca pela “modernização” da cidade também se fazia presente nos préstitos
carnavalescos, com as várias tentativas de acabar com os jogos de entrudo e a preferência pelos corsos e
festas nos clubes elitizados, copiando aqueles realizados pela classe dominante em seus momentos de
sociabilidade entre pares no Rio de Janeiro, Paris e Veneza. Alojou-se no imaginário uma distância
simbólica entre o “velho” e o “novo”, definindo parâmetros nas representações carnavalescas.
Natal aspirava à “modernidade”, buscando o nascimento de outra cidade construída pela
juventude, suplantando a capital provinciana, nos moldes que palestraram Eloy de Souza e Manoel
Dantas, no ano de 1909. O entusiasmo dos intelectuais, cujas palestras devem ser entendidas “como uma
alegoria ou como uma metáfora de aspiração de modernização e de modernidade que as elites
preconizavam para o futuro de Natal” (LIMA, 2007: 72), refletia as mudanças urbanísticas, demográficas
e comportamentais dos natalenses. Faz coro as palavras de José Braz, em 1903:
Somos um grupo de indivíduos cuja única preocupação cifra-se em espiar uns aos outros.
Povo sem comércio, sem arte, sem literatura, e, por conseguinte, sem intuição clara da
vida moderna, a nossa existência parece a de um corpo sem cabeça, sem capacidades
volitivas, sem órgãos de sentimento, sem vontade (BRAZ, 2007: 63).
O crescimento econômico da cidade proporcionava a melhoria da infraestrutura, sobretudo no
calçamento das ruas, implantação do sistema de iluminação a gás, instalação dos bondes e ampliação da
200
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rede telefônica. No plano cultural, foi inaugurado o primeiro cinema da capital potiguar. Acompanhou,
também, o aumento populacional, quase duplicando nas duas primeiras décadas do século XX (LIMA,
2007).
Nestes planos e projetos para a reforma estrutural, cultural e comportamental da cidade, estava
incluído a folia de Momo, cujo principal exemplo foi a desafeição e repudiação de um importante
mascarado do folclore local. O veículo informativo oficial da capital potiguar, assim como a classe
dominante da época, não se mostrava afeto a uma das figuras carnavalescas mais ilustres da festividade
momesca potiguar, o “papangú”: “As mascaradas poderiam ter sido melhores, se, de uma vez por todas,
se expelisse das ruas o papangú mal vestido e semsaborão [sic] [...]”201. O motivo, talvez, seja a relação
do personagem com a brincadeira do entrudo, realizada pelas classes populares e não aceito pela alta
sociedade da época. Este posicionamento tinha implicações ideológicas deste construto simbólico do
personagem “semsaborão”, pois manifestava certa ascendência e sobreposição dos setores dominantes da
cidade frente às classes menos abastadas.
Os blocos da época organizavam-se para as “batalhas” “sempre com muita ordem e muito
respeito”202. Se as arruaças com os limões de água perfumada ficaram de lado, as guerrilhas foram
apropriadas pela elite com esses novos instrumentos de batalha importados dos carnavais europeus. Para
além das ruas, as festividades terminavam em saraus realizados nas residências de festejados senhores da
elite local, como a ocorrida no último dia do carnaval de 1902, na casa do Inspetor da Alfândega Manuel
Coelho203, demonstrando a solidariedade comunitária no interior dos grupos dominantes.
Nesta busca incessante de suplantar o “velho” entrudo pelo “moderno” carnaval, o Departamento
de Segurança Pública fez publicar prescrições para impedir o jogo entrudístico no carnaval de 1911,
reforçando a fiel observância pelos delegados de polícia, “não consentindo sobretudo que transitem pelas
ruas desta cidade mascaras com alusões individuaes, quer sejam a particulares, autoridades ou
corporações, e, no caso de desobediência às vossas intimações regulares fareis lavrar o auto de flagrante
para ulterior processo”204.
Marinho (2008) coloca que as restrições ao entrudo já eram impostas aos natalense desde 1896,
mas tais proibições não impediam as brincadeiras entrudísticas. Porém, com o passar dos anos,
percebemos a diminuição das hostilizadas pândegas, que se deve, sobretudo, à organização do espaço,
seja pelas ações estatais, por meio das normas e do policiamento nas ruas, e/ou pelas as ações dos
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cidadãos natalense, que adquiriram novos valores, materializados no espaço através da ornamentação das
ruas e da utilização das novidades trazidas da Europa.
Ao fim da primeira década do século passado, vários clubes apresentavam-se às ruas, com suas
respectivas licenças concedidas pela Polícia, para alegria dos foliões e da grande sociedade, conforme
podemos ver no Jornal Diário de Natal em 1910: “[...] os papangus dos anos passados já foram quase
totalmente substituídos pelos Clubs e máscaras decentes, de toiletes características e elegantes”205. Não
foi outra a notícia d’A República, já nos festejos de 1912:
Decorreram bastante animadas, nesta cidade, as festas carnavalescas. [...] O povo, sem
distincção de classes, numa alegria ruidosa, tomou parte em todos os festejos,
organizando aqui e alli renhidas batalhas de confetti e lança perfumes. [...] Os mascarados
avulsos foram egualmente reduzidos206.
Aliado às festas nas ruas, a partir dos últimos anos da primeira década do século XX iniciaram-se
os grandes festejos nos clubes sociais. Enquanto a folia nas ruas estava aberta à “todos” – mas cada classe
em seu devido lugar –, os clubes restringiam o público, permitindo o acesso apenas das grandes famílias
elitizadas, tornando-se acontecimentos a cada ano mais importantes, conforme se pode denotar nos
anúncios dos jornais, que reservavam boa parte da matéria carnavalesca aos preparativos dos clubes para
as festividades.
Dentre aqueles que abriam seus salões para o carnaval, temos o Natal-Club como o precursor. Para
as festividades, eram realizadas inúmeras reuniões, iniciadas ainda no mês de janeiro, que definiam como
se daria o reinado do Momo, conforme podemos ver na reunião ocorrida em 29.01.1911, publicada n’A
República, onde foi resolvido que “o baile de carnaval seja na segunda feira, 27 de fevereiro”, salientando
que os convites foram restritos, “por se tratar de um baile onde todos comparecerão fantasiados”207..
Percebe-se o receio da elite local naqueles que iriam participar da festa, ainda mais pelo motivo de que as
identidades seriam preservadas por trás das máscaras. Um exemplo desta apreensão está na determinação
do Natal-Club aos convidados para retirarem as máscaras na quinta parte da quadrilha de carnaval208. A
restrição aos convidados reforçava a hierarquização espacial consolidada na folia carnavalesca.
O redator, que assinava por nome Aurélio, publicou n’A República, em 23.02.1912, uma nota sob
o título “Mascarados...”, demonstrando que os infelizes mascarados vibram prazerosamente no carnaval
fazendo um “esforço inútil de atrahirem sobre as suas insignificâncias alguma attenção, que os seus
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Diário de Natal de 10.02.1910.
A República de 21.02.1912.
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A República de 25.02.1911.
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próprios méritos não lograriam obter”209. Este esforço ingênuo e enganador merece, segundo o jornalista,
a complacência da elite e dos intelectuais. Percebe-se, pelo discurso, que os referidos mascarados
consistem naqueles pobres que procuram extravasar na folia momesca e falsear a sua realidade cotidiana.
Assim termina a nota:
Vós inspiraes compaixão, e é por isto que a humanidade vos deixa vegetar no mundo
arrastando a vossa vilania e a vossa miséria que são o premio de vossa fraqueza e o
castigo de vossa pobreza de espirito.
Passai, infelizes mascarados de todo o anno, ingênuos ridículos; o mundo precisa da
vossa presença para escarneo de vossa baixeza e para diverti-lo nos momentos de ócio210.
Por outro lado, aos mascarados presentes na soirée do sábado de carnaval do Natal-Club, no ano
de 1913, foi creditado o sucesso de suas presenças, demonstrando a clara divisão entre a elite e os pobres
revelada no período carnavalesco: “Na noite de hontem, constituiu verdadeiro sucesso o aparecimento de
dois máscaras, um ‘dominó’ e uma ‘viúva alegre’, que por muito tempo ‘intrigaram’ a assistência com
seus ditos espirituosos”211.
Uma importante brincadeira que se realizava na capital potiguar ainda na segunda década do
século XX eram os chamados “assaltos” pré-carnavalescos. Em 1911 encontramos o registro da visita da
agremiação Mão Negra212 ao Jornal A República213. Conforme nota jornalística, “eram 7 senhoras e
senhoritas, com toilettes uniformes e artisticamente arranjadas, trazendo à cabeça gorros confeccionados
de ns d’A República”214. O fato curioso é a presença feminina no carnaval, numa época em que a
participação das mulheres na sociedade era um pouco restrita.
Quanto à distribuição espacial da festividade nas primeiras décadas do século passado, ela se dava
nos dois principais bairros da cidade, Cidade Alta e Ribeira, conforme expresso no expediente de 23 de
fevereiro de 1911, d’A República. Os dois bairros recebiam iluminação e banda de música para os três
dias de festa, organizados através da comissão promotora do carnaval existente em cada um deles,
conforme anuncia o jornal: “Os trabalhos de ornamentação das ruas ‘Vigário Bartholomeu’, na Cidade
Alta, e ‘Senador José Bonifácio’, na Ribeira, estão quase concluídos, graças aos esforços das respectivas
comissões”215. Era para esses lugares que convergiam as renhidas batalhas, como a ocorrida entre a
209
A República de 23.02.1912.
A República de 23.02.1912.
211
A República de 05.02.1913.
212
O grupo Mão Negra foi inspirado em grupo de igual nome da cidade de Fortaleza, pela iniciativa de Jurema Ramos
que frequentou a agremiação cearense em carnavais anteriores.
213
A República de 05.02.1911.
214
A República de 17.02.1911.
215
A República de 25.02.1911.
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sociedade “Mão Negra” da Cidade Alta e “Os Democráticos” da Ribeira, travada neste último bairro que,
segundo a imprensa, abrilhantaram os festejos do ano de 1912216.
O Jornal Diário de Natal, de 10.02.1910, publicou em nota sobre o carnaval, que na segunda e
terça-feira daquele ano a agremiação “Divisão Branca” havia percorrido as ruas da Cidade Alta e Ribeira,
com oito carros alegóricos, com um público não inferior a duas mil pessoas217. No ano de 1912 observase um corso feminino na cidade de Natal, quando no terceiro e último dia de carnaval, um rancho de
sócias do Clube “Mão Negra”, “fantasiadas com muito gosto e elegância, sahiu a carro, fazendo um
passeio por algumas ruas da cidade, conduzindo o estandarte da sociedade”218. Percebemos que partiu,
novamente, de uma iniciativa feminina. No ano seguinte, dois “carros de reclame” da cidade – Cerveja
Brahma e Elixir de Maruré Caldas – foram arranjados carnavalescamente e, ao som de uma fanfarra,
saíram às ruas com pessoas fantasiadas que jogavam sobre as pessoas brindes e reclames219, de onde
verificamos o comércio propagandístico no período carnavalesco, valendo-se de uma modalidade de folia
que estava inserindo-se na cidade: o corso. Esta manifestação carnavalesca importada das principais
cidades mundiais da época retrata a “passagem gradual das formas mais espontâneas e participativas de
entretenimento para espetáculos mais formalmente organizados e comercializados para espectadores”
(BURKE, 1989: 273).
É certo que também as festividades ocorriam em outros locais, como se denota nas várias
localidades dos grupos carnavalescos que tiveram a licença do Chefe de Polícia para exibição, dentre os
quais podemos citar os blocos “Chaleiras” e “Amantes da pinga”, ambos com sede na Rua 21 de julho,
Tirol, e o bloco “Caboclinhos”220, sediado à Rua Solidão, em Cidade Nova, mas sempre convergindo para
os bairros tradicionais.
Observa-se que a região da Cidade Nova – que abrange, hoje, os bairros Tirol e Petrópolis –,
consistiu numa localidade estritamente residencial para receber a elite natalense, em busca de um
ambiente mais propício à moradia e sossego, “fugindo” do eixo Cidade Alta-Ribeira, que se firmou como
o centro institucional e comercial da capital. A Cidade Nova representava os “desejos das elites
governantes de negação da cidade existente e da expectativa de Natal como uma cidade de futuro”
(ARRAIS, et al, 2008: 113).
216
A República de 21.02.1912.
Diário de Natal de 10.02.1910.
218
A República de 21.02.1912.
219
A República de 05.02.1913.
220
Esta foi a primeira referência aos indígenas no carnaval natalense. Dentre as seis agremiações que tiveram a licença
concedida pelo Chefe de Polícia para se exibir nos festejos carnavalescos do ano de 1911, encontramos dois grupos de
“caboclinhos”, um com sede à rua Mossoró e outro sediado na rua Solidão, em Cidade Nova.
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
O carnaval também ecoava para o novo bairro que surgia no início da década de 1910, cujo
núcleo habitacional era composto pelos menos abastados, sobretudo imigrantes vindos do interior do
Estado, denominado Alecrim. Muito embora não tenha referências às festividades naquela localidade, não
faltaram cuidados do corpo policial, como podemos verificar nas recomendações do Chefe de Polícia aos
delegados e subdelegados dos bairros Cidade Alta, Ribeira e Alecrim:
Aos delegados de polícia do 1ª e 2ª districtos e aos subdelegados da Cidade Alta, Ribeira
e Alecrim: Tenho por muito conveniente recomendar-vos a fiel observância das
prescripções publicadas de minha ordem pelo Secretario desta Repartição, em data de 9
do corrente, para os dias do próximo carnaval, não consentindo sobretudo que transitem
pelas ruas desta cidade mascaras com alusões individuaes, quer sejam a particulares,
autoridades ou corporações221.
É patente a urbanização de Natal voltada para a diferenciação de classes em termos espaciais: a
Cidade Nova dos ricos composta pelas elites locais e o Alecrim dos pobres, imigrantes e operários.
Como vimos, portanto, o carnaval em Natal não se limitou – em termos de “espaço da folia” – à
Rua da Palha222, no bairro Cidade Alta, onde, nas memórias de infância de Umberto Peregrino na segunda
década do século XX, as brincadeiras consistiam em circular pela referenciada rua, de forma inocente,
espargindo confetes e lança-perfume e, à meia noite do sábado de carnaval, esperar o zé-pereira, que,
segundo ele, era o que tinha de mais expressivo no carnaval natalense, formado por um clube de rapazes
da sociedade que partia do Natal-Club (PEREGRINO, 1989). Podemos dizer que a Rua da Palha se
tratava de um dos vários locais da época momesca, pois, afinal, o que estariam fazendo estes “rapazes da
sociedade” no único clube da cidade que abria as portas nas noites de carnaval?
Provavelmente, estariam participando da soirée blanche, nos elegantes salões do clube, com suas
danças e jogo de confete e lança-perfume, ao som da orquestra, que executava variados estilos musicais.
Para além da festividade no interior do salão, outros espaços tomados por aqueles que não podiam
adentrar ao clube para festejar são as ruas e avenidas que tangenciavam o Natal-Club, numa espécie de
baile ao ar livre, como colocado pelo redator: “o baile popular ao lado do baile chic”223.
A proibição dos não-convidados era patente naquela época, sobretudo no período carnavalesco. O
Natal-Club, para o ano de 1918, colocou a figura de um leão na entrada para o salão como forma de
advertir os “indesejados” para não adentrarem. A representação simbólica foi uma maneira encontrada
para claramente excluir aqueles os quais era defeso a entrada e permanência no recinto restrito às elites
locais e seus convidados. Mas, como vimos, tal impedimento não foi motivo para que os brincantes
221
222
223
A República de 25.01.1911.
Atualmente denominada Avenida Vigário Bartolomeu, no bairro Cidade Alta.
A República de 13.02.1918.
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
deixassem a festividade, permanecendo fora do salão, mas realizando seu “baile”, mesmo que sem o
aspecto pomposo do Natal-Club.
A festividade, em franco crescimento com a cidade, foi ganhando outras proporções, seja com o
aumento dos locais festivos, seja com uma maior participação da população. Foi nesta época que a capital
passou a direcionar-se progressivamente para o oeste, em direção aos novos bairros e localidades que
surgiram, formados por migrantes do interior norte-rio-grandense.
Observe-se que, na época, o Brasil atravessava o primeiro período republicano (1889-1930) e o
Rio Grande do Norte, assim como os outros estados nacionais, sofria uma reestruturação política,
constituindo-se uma composição do poder formado pelas oligarquias republicanas, primeiramente com as
do setor açucareiro, na figura da família Maranhão, e, posteriormente, pelo sertão algodoeiro (LINDOZO,
1992). Dantas (2007) considerou este período como um processo de “desconstrução da Natal colonial”,
passando de uma cidade oitocentista para outra “moderna e capitalista”. Tentava-se desconstruir para
construir uma nova imagem citadina, sob o império dos três componentes imprescindíveis: identidade,
estrutura e significado (LYNCH, 1982).
Nos anos vinte do século passado, a capital, de fato, passou por um vasto processo de estruturação,
com a expansão e reforma da cidade, sob a administração municipal do engenheiro Omar O’Grady (19241930). O projeto teve como pilar a urbanização e a divisão da cidade em zonas, engendrando o
crescimento de Natal.
A Avenida Tavares de Lira, na época da Belle Époque natalense, era o centro da cidade, sediando
os órgãos públicos e as instituições financeiras, concentrando as manifestações e decisões políticas; era,
também, o lugar de encontro de intelectuais, políticos, militares, advogados, banqueiros, enfim, de toda a
elite natalense que se encontrava nos cafés e botequins. Segundo Djalma Maranhão, a “esquina da
Tavares de Lira, com a Dr. Barata, é uma espécie de mar, aonde deságuam todos os rios. Verdadeiro
museu ambulante, pitoresco, trágico, divertido, palco dos mais variados espetáculos”224. O referido
logradouro se colocava “como dimensão concreta da espacialidade das relações sociais num determinado
momento histórico” (CARLOS, 1996: 86). Vamos além, dizendo que tal espacialidade ultrapassa a
dimensão material em direção a uma esfera simbólica.
Era neste lugar que, na forma dos carnavais europeus, as famílias ricas da cidade desfilavam, no
conhecido corso, em carros decorados e portando fantasias importadas e comercializadas em lojas da
capital potiguar. Em 1922 o préstito carnavalesco foi realizado na Avenida Tavares de Lira, no bairro
Ribeira. O redator d’A República parecia satisfeito com o carnaval, cuja opinião foi a seguinte:
224
Diário de Natal de 27.03.1949.
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
O carnaval deste ano teve entre nós desusada animação. [...] O centro das diversões
populares foi a avenida Tavares de Lyra, no bairro da Ribeira, onde milhares de pessoas
de todas as classes estiveram aglomeradas durante as festas. [...] Esta grande e vasta
artéria de nossa capital mostrava-se modestamente ornamentada, achando-se, entretanto,
225
profundamente iluminada .
Por outro lado, com fantasias inventadas a partir de lençóis e trapos, outros grupos formados pelos
menos favorecidos desfilavam num carnaval não menos alegre, a exemplo dos mascarados avulsos que
percorriam a cidade, sozinhos ou em grupos.
Na época já existia a fragmentação da sociedade que “vinha às claras” no período carnavalesco: os
ricos com o corso e os pobres com suas troças e pequenos blocos. Não obstante os desfiles dos ricos e
pobres ocorressem no entorno da Avenida Tavares de Lira, de acordo com Pedreira (2005), havia uma
nítida prevalência dos luxuosos carros da elite natalense, enquanto que os outros blocos percorriam nas
ruas periféricas. Os clubes sociais, por sua vez, como vimos anteriormente, ofereciam bailes
carnavalescos que ficavam restritos aos ricos:
Apesar da tão alardeada entrada na ‘modernidade’, as clivagens socioeconômicas
continuavam a ser determinantes para a distribuição espacial da festa. E disso decorria
que os lugares mais ‘adequados’ às comemorações carnavalescas eram nitidamente
diferenciados: as ruas periféricas destinavam-se aos foliões de baixo poder aquisitivo, [...]
reservando-se às classes médias e setores elitizados o desfile do corso nas principais
avenidas da Ribeira e a utilização dos salões de baile dos clubes particulares, cujo
ingresso fazia-se mediante o pagamento de caras mensalidades [...] (PEDREIRA, 2005:
67)
Ainda que o período carnavalesco fosse considerado como um momento onde a sociedade
“deixava de lado” as diferenças, percebe-se uma nítida repartição do carnaval natalense durante as
primeiras décadas do século passado. Aos pobres e suas troças não faltava fiscalização e controle policial,
como medida de manutenção da ordem pública. O carnaval era visto como uma festa de transgressão
social pelos menos abastados, devendo ser restrito e normatizado, e aos ricos reservava-se os grandes
bailes e pomposos corsos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARRAIS, Raimundo; ANDRADE, Alenuska; MARINHO, Márcia. O corpo e a alma da cidade: Natal
entre 1900 e 1930. Natal: EdUFRN, 2008.
BRAZ, José. Aspectos natalenses: críticas dos costumes. In: NATAL, Prefeitura Municipal de Natal.
Secretaria de Meio Ambiente e Urbanismo. Natal não-há-tal: aspectos da história da cidade de Natal.
225
A República de 03.03.1920.
321
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BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
CARLOS, Ana Fani A. O lugar no/do mundo. São Paulo: Hucitec, 1996.
CASCUDO, Luís da Câmara. Carnaval! Carnaval! In: ARRAIS, Raimundo (org.). Crônicas de origem: a
cidade do Natal nas crônicas cascudianas dos anos 20. Natal: EdUFRN, 2005.
DANTAS, George Alexandre Ferreira. A administração Omar O'Grady (1924-1930): a modernização
urbana de Natal. In: NATAL, Prefeitura Municipal de Natal. Secretaria de Meio Ambiente e Urbanismo.
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LIMA, Pedro. Natal em 1909. In: NATAL, Prefeitura Municipal de Natal. Secretaria de Meio Ambiente e
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LINDOZO, José Antônio Spinelli. Coronéis e oligarquias na Primeira República, 1992. Disponível:
<http://www.fundaj.gov.br/geral/observanordeste/spinelli_05.pdf>, acesso em: 11.01.2012.
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70, 1982.
MARINHO, Márcia Maria Fonseca. A civilização do Deus Momo: carnaval e modernização na cidade de
Natal. In: Revista Espacialidades [online], v. 1, 2008.
PEDREIRA, Flávia de Sá. Chiclete eu misturo com banana. Natal: EdUFRN, 2005.
PEREGRINO, Umberto. Crônica de uma cidade chamada Natal. Natal: Clima, 1989.
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
REPENSANDO MEMÓRIAS E IDENTIDADES EM ACARI-RN ATRAVÉS DE FELICIANO
JOSÉ DA ROCHA
Feliciano José da Rocha
Danycelle Pereira da Silva226
Julie A. Cavignac227
Resumo: O jogo social que envolve a memória e a identidade são os principais elementos para refletir sobre as
transformações e representações por que passou a cidade de Acari-RN. Acari, cidade localizada no Seridó norte-rio-grandense,
foi uma das primeiras povoações da região e se desenvolveu a luz de grandes fazendas de gado. Em meio às trajetórias dos
grandes senhores e primeiros proprietários de terras, propomos repensar a construção de identidades de Acari, através da
memória e história de Feliciano José da Rocha, escravo que se tornou pequeno latifundiário. Feliciano José da Rocha é a base
para pensarmos as marcas e reelaborações da sociedade acariense diante da escravidão, período notadamente profundo da
história do Brasil (1550-1888), onde grandes marcas foram deixadas a partir do encontro entre os africanos escravizados e os
moradores desta terra. A história incomum de Feliciano em pleno auge da escravidão (estima-se que ele viveu entre 17001815) é o mote inicial para pensar Acari no passado e no presente, tendo como foco a construção de identidades e as memórias
da cidade.
Os tecidos que ligam a memória e a identidade são compostos de diversos tipos de fios. As roupas
que modelam o corpo das sociedades são costuradas com esses fios e por isso, construímos nossas
identidades de acordo com a roupa que nos vestem ou escolhemos para vestir. Para além das metáforas, o
jogo da memória e da identidade serve para pensar a vida em sociedade e as representações individuais e
coletivas, em particular as do passado. Propomos aqui um exercício de reflexão sobre a formação e a
transmissão de uma memória e uma identidade local, tendo como cenário a cidade de Acari, localizada no
Seridó norte-rio-grandense. A trajetória do escravo Feliciano José da Rocha aparece como exemplar já
que mostra a trajetória de um escravo que se tornou vaqueiro no sertão seridoense
Na ocasião, aparece a questão do estatuto do escravo no Seridó e da transmissão da memória de
um personagem com uma trajetória singular que, curiosamente, deixou poucos rastros na memória local.
Após apresentar a biografia de Feliciano José da Rocha, discutiremos questões ligadas à elaboração da
identidade de uma cidade que se pensa como branca e silencia a história dos afrodescendentes.
Sobre Feliciano José da Rocha
Feliciano viveu entre 1700 e 1815, numa época marcada pelo processo de dominação colonial. 228
Sua história é singular: viveu como escravo num engenho de cana de açúcar, foi alforriado e se tornou um
rico fazendeiro no sertão.
Segundo a historiografia local, a população escrava era reduzida no Seridó
porque era pouco povoado, havia poucas fazendas e muita terra. Assim, as relações que se
estabeleceram entre os escravos e os senhores na região eram também diferentes das zonas açucareira.
226
Mestranda em Antropologia Social da UFRN, bolsista CAPES, participante do Projeto de Pesquisa “Memórias da
Escravidão no Seridó-RN” (CNPQ Universal), em andamento
227
Professora e Coordenadora da Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRN
Dada a imprecisão da data de nascimento pelos registros históricos, Olavo Medeiros Filho em Velhas Famílias do Seridó
transcreve o seu registro de óbito: “Aos dez do mez de Settembro de mil oitocentos e quinze na Fazenda Barrentas desta
Frequezia, faleceo com todos os sacramentos na idade de cento equinze anos FELICIANO DA ROCHA DE
VASCONCELLOS, viúvo de Paula Pereira; seu cadáver foi sepultado na Capella do Acari, filial desta Matriz, do cruzeiro para
sima, sendo incómendado pelo Padre André Viera de Medeiros, de minha licença; de que fiz este Assento, que assigno. O
Vgro. Francisco de Brito Guerra” (1981, pág. 126)
228
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Diferentemente dos escravos que trabalhavam nos engenhos na região do litoral, os escravos do sertão
eram vaqueiros e tomavam conta da propriedade,
tinham que tirar o sustento do seu trabalho, plantando ou criando alguns animais
(CAVIGNAC, 2011; MACEDO, 2007). O fazendeiro e seu vaqueiro tinham que cooperar,
dividiam as tarefas cotidianas, a mesma mesa e pouco se fala de uma dominação violenta nos poucos
registros. O período entre o final do século XVII e o início do século XIX é o momento em que os sertões
são povoados. No século XIX, havia quatrocentos e cinquenta escravos na região do Seridó que
trabalhavam como vaqueiros na criação do gado e dos afazeres das pequenas propriedades da região.
(MACEDO, 2007)
A narrativa de Feliciano José da Rocha nos fornece elementos para reconstruir o contexto
histórico do Seridó colonial do final do século XVIII até o início do século XIX. Escolhemos como texto
de referência a história de Manuel Dantas229, primeiro escritor a mencionar o escravo numa publicação,
em 1941, mais de um século depois da sua morte. Interessante notar que o autor faz referência a
elementos de uma tradição oral que foi transmitida por várias gerações, o que mostra a importância desta
figura. Outros autores fazem referência à Manoel Dantas e retomam os principais temas da história que se
tornou lendária mas que hoje foi esquecida pelos intelectuais da cidade.
Nos relatos escritos e orais, a figura de Feliciano está sempre associada ao português Antônio Paes
de Bulhões230 que fundou a cidade numa aposta de cavalo. Em um ano de seca severa, este fazendeiro de
muitas terras no Acauã viajou para o litoral buscando alimentos para levar para sua família que ficou no
Seridó-RN. Antônio Paes de Bulhões pediu auxílio a um fazendeiro em Camaratuba, Paraíba, que lhe
negaqualquer ajuda. Entretanto, este fazendeiro informe que seu escravo, Feliciano José da Rocha, tem
alguns víveres próprios que possivelmente queira vender. Antônio Paes de Bulhões encontra alento na
figura de Feliciano que não quer receber o dinheiro daquele que seria seu futuro senhor, lhe oferta os
víveres para sanar a fome daqueles que ficaram em Acari.
Antônio Paes de Bulhões se impressiona com a atitude do escravo e passada o período de forte
seca, conforme havia prometido, volta e liberta Feliciano. Ele passa a trabalhar para seu novo dono que
logo o alforria, assumindo a função de vaqueiro de Bulhões em uma de suas melhores fazendas. Feliciano
conquista posses e compra duas fazendas: Fazenda Barrentas e a Fazenda Cacimba das Cabras.
Figura 01 – Mapa de Acari com destaque para as propriedades de Feliciano
229
A versão escrita utilizada para a descrição da história do escravo consta em Homens de Outr’ora de Manoel Dantas (2001).
Antônio Paes de Bulhões, filho de Manoel da Costa Viera e Maria Paes de Bulhões, é nascido na região de Pernambuco.
Seu Pai, antigo senhor de engenho, foi assassinado por um vizinho que provocou a vingança por parte de Antônio Paes de
Bulhões. Após vingar-se ele vem para o Seridó, temendo represarias. Ao chegar a Acari, casa-se com Ana de Araújo Pereira,
filha de Tomás de Araújo Pereira, um dos fundadores da cidade (DINIZ, 2008).
230
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Rico, Feliciano se casa com uma escrava que ele mesmo alforria. Sua história é rica em detalhes.
Manuel Dantas conta que Feliciano:
Foi ao Recife, e encontrando um português desses que acabavam de saltar em terra ao Deus dará,
sem outros haveres mais que os socós de madeira, o chapéo de Braga, a japona de cotim e as calças de
baeta de fundilhos cosicados, fez-lhe proposta de casamento com sua filha Severina, convencendo-o de
que todos os habitantes do Brasil eram negros, excetuados somente os das grandes cidades. (DANTAS,
2001, Pág. 29)
Entre outros tantos elementos coletados durante a pesquisa, a narrativa de Feliciano aparece como
excepcional diante do contexto da época. Então, porque tomar esta trajetória para pensar como a história
se constrói na cidade de Acari? Feliciano é o símbolo de um passado de dor que se reflete na perpetuação
do presente. Feliciano é a figura que encarna uma forma mais branda e encena a generosidade dos
fazendeiros brancos, insistindo no mito da harmonia racial. O que ele foi para a sociedade Acariense,
assim como sua história relegada a narrativas escritas, de pequenos trechos e profundos silêncios mostra a
invisibilidade negra na cidade de Acari na atualidade.
Percebe-se, assim, a negação da identidade negra no município e o apagamento crônico das
marcas de um passado indesejado pelos próprios atores. Portanto, a memória serve para pensar a relação
entre as lembranças dominantes e o silenciamento do passado.
Costurando o passado com a memória
A memória coletiva que se constitui a partir da junção de lembranças particulares inscreve em um
grupo os elementos mais marcantes vivenciados. Halbwachs (1990) trata das nuances da memória que é,
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antes de tudo, uma memória construída em função do presente. Além disso, a memória coletiva da cidade
não se funde com uma memória histórica encontrada nos documentos e monumentos. Podemos constatar
isso ao analisar a situação de Feliciano José da Rocha e das ambiguidades do passado em Acari. A
população de Acari não carrega consigo fortes lembranças de um passado escravo, já que através dos
mecanismos e dos meandros da memória, o passado escravocrata foi silenciado e reconfigurado de acordo
com o caráter seletivo daqueles que perpetuaram a memória ao longo do tempo. Sabemos que a memória
não é somente transmitida oralmente, mas ela está inscrita materialmente nos monumentos, nos jornais,
nas fotos, etc.; os resquícios do passado são lidos através da junção destas memórias escritas e orais,
transmitidas pelos diferentes veículos.
A partir do pressuposto que a memória confere continuidade ao indivíduo e que o passado compõe
a identidade de cada ser, um indivíduo sem memória é um ser vazio. O jogo social a qual todos nós,
enquanto seres sociais estamos sujeitos, também deixa claro o poder organizador e desorganizador da
memória. A memória é plástica, modelável. Esquecemos ou lembramos de acordo com escolhas íntimas
ou coletivas (CANDAU, 2011).
A história de Feliciano consta nos documentos de cartórios, igrejas e na “memória fraca” de
alguns interlocutores da cidade. No entanto, mas é desconhecida de seus próprios descendentes. Suzete de
Ambrósio231, uma das descendentes de Feliciano, descobriu sua origem quando trabalhava no Museu do
Vaqueiro, em Acari. Este encontro com um passado remoto e distante fez com que outras memórias da
nossa interlocutora fizessem sentido. Temos registros de depoimentos de sua avó paterna, Iluminata
Clementina da Rocha, sobre a perda das terras da família agora entravam na lógica de uma história. Na
contramão desta descoberta, encontramos seu Raimundo Nunes, descendente dos primeiros moradores do
Sítio do Saco dos Pereira232, propriedades em que viviam famílias negras desde o inicio da colonização.
Tem suas memórias ligadas as de seus antigos patrões que descendem de família importante e de muitas
terras na cidade.
Seu Raimundo, assim como outros interlocutores que carregam na pele a existência do passado
escravo, não se reconhecem nas memórias negras, fazendo ressalva a festividades como a Festa dos
Negros do Rosário. Estes interlocutores não compartilham as memórias que remetem à questão negra, e
sim, povoam suas histórias, o trabalho e a lida do gado atrelada às famílias brancas. A “amnésia” de seu
Raimundo faz sentido quando pensamos com Françoise Zonabend (1991): "[...] a memória familiar pode
tomar uma outra forma: a de uma série de narrativas transmitidas de geração em geração e que constituem
um verdadeiro legendário familiar." (pág. 3) Seu Raimundo não recebeu estas lembranças de seus
antepassados que certamente queriam silenciar ou apagar de sua história as vivências dolorosas ligadas à
discriminação ou devido a cor da pele.
As memórias de Suzete de Ambrósio e Seu Raimundo são exemplos de como a transmissão da
memória é flutuante, e pode ser reconstruída, ser remodelada em função da percepção dos eventos
históricos. Quando tomamos o caso de Feliciano para pensar esse jogo da memória, buscamos pensar
porque uma história tão singular não ficou inscrita na memória coletiva deste grupo. A memória
fundamenta identidades, que se alicerçam de acordo com os costumes, lembranças e práticas transmitidas.
Portanto, o caso de Feliciano também serve para pensar como se construiu a representação de uma
231
Suzete Suely da Rocha Córdula, moradora de Acari e descendente de Feliciano José da Rocha.
Em pesquisas realizadas em 2012, com o cruzamento das árvores genealógicas constata-se a ligação dos moradores do
Saco dos Pereira com Feliciano José da Rocha e sua família.
232
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Americanos. Natal: UFRN, 2012.
história onde o negro é esquecido e não tem lugar para poder se reconhecer como ator importante deste
processo.
Recortando retalhos, transformando identidades
Feliciano José da Rocha norteia esta reflexão pois sua história é um exemplo marcante de um
passado ainda desconhecido onde o africano trazido para o Brasil consegue acessar a um estatuto social
igual ou superior a muitos colonos europeus. No entanto, não somente a memória nos dá margem para
pensar o jogo das identidades que deixam de se construir. Muitos outros elementos observados durante a
pesquisa nos mostram a reconfiguração dada à presença negra nesta cidade. Lembra o que o antropólogo
Richard Price (1998) em um artigo que conta sobre sua experiência etnográfica na Martinica quando
encontra por acaso a história de um artista chamado Médard que cria uma estátua que é famosa na
Martinica. Por causa da estátua, Medard é preso, condenado. Price mostra como essa história, antes
disseminada entre os moradores da região onde estudou, após cinquenta anos, foi esquecida ou apagada.
O autor trata justamente desse novo imaginário que foi construído em cima de uma nova memória
(simulacro) em que se desenha um novo personagem para Medard que o desvincula de qualquer luta ou
resistência colonialista como era narrado no princípio. A identidade e a memória coletiva daquele lugar
na Martinica sofrem com as mudanças no jogo social.
Há mudanças como as que Price estudou na Martinica. No Seridó, encontramos grupos ligados à
irmandade do Rosário em diferentes cidades: em Parelhas, na comunidade de Boa vista dos Negros, em
Jardim do Seridó, em Serra Negra do Norte e em Caicó. A Festa de Nossa Senhora do Rosário, “Padroeira
dos negros”, se configura
pela presença atuante da irmandade que faz o cortejo com tambores e danças. Mesmo com grupos
atuantes em municípios vizinhos a Festa da Irmandade do Rosário de Acari esvaziou-se da presença negra
desde meados de 1960, quando a festa passou a assumir apenas a versão religiosa sem a participação dos
negros.
Havia presença negra naquela localidade e a celebração de uma festa. No entanto, desapareceu do
cenário acariense, esvaziando o sentido da festividade antes celebrada pelos negros. Alguns dos próprios
descendentes e participantes chegam a negar a pertença a Irmandade do Rosário, tamanha é a negação da
ligação com a questão negra.
Pierre Nora (2012) ao refletir sobre os lugares, a memória e a história afirma que “O que os
constitui é um jogo da memória e da história, uma interação dos dois fatores que leva a sua sobre
determinação recíproca”(pág. 22). Memórias e histórias de Acari perderam-se no silêncio do tempo. Ao
visitarmos os lugares que poderiam nos remeter a um passado afrodescendente, percebemos que eles
estão vazios desta memória, não traduzem um sentimento de pertencimento, já que para que houvesse a
pertença teria que ter memória, a vivência. O Museu do Vaqueiro de Acari que retrata a cultura sertaneja
na figura do vaqueiro é exemplo da ausência dos elementos afrodescendentes.
Feliciano José da Rocha é um desses personagens que ao ser alforriado, tornou-se vaqueiro e
proprietário de terras. No entanto, por várias peculiaridades em sua trajetória, não deixou fortes marcas na
historiografia e na memória coletiva de Acari. As narrativas elitistas que foram escritas sobre o Seridó,
baniram o protagonismo negro das memórias que seriam transmitidas, assim como a tentativa de mostrar
as relações entre Senhor e alforriados (brancos e afrodescendentes) como uma interação amistosa e
amigável (CAVIGNAC, 2003). Entretanto, a impossibilidade de ser fazer visível tanto na história oficial
quanto nas narrativas orais, mostra que a memória transmitida foi selecionada e refeita a favor daqueles
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ISBN: 978-85-425-0007-3
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
com maior poder e prestígio (GOULART, 2012). A ausência de elementos no curso da história e da
memória da cidade de Acari fez com que não haja representações no patrimônio material e imaterial da
cidade, o que temos no lugar é a negação do sentimento de pertença a uma cultura de origem africana.
Entrelaçando fios
A história de Acari foi revestida com memórias repletas de um silencio que sugere uma ausência,
a dos afrodescentes. Muito embora essas memórias estão ali, em cantos marginais da cidade, esperando
ser libertas de um silêncio que intriga e resiste.
Memórias que provocam dor naqueles que se veem à margem das ações dominantes, causam
vergonha, silêncio, exclusão. A vestimenta branca posta na identidade de Acari não possibilitou espaços
de afirmação, de reinvindicação de um passado ligado à raízes negras. O ambiente desfavorável para a
emergência dessa resistência e dessas memórias causam a invisibilidade não somente da memória negra,
mas de elementos identitários que poderiam compor identidades conscientes de um passado mais fiel aos
acontecimentos, com outras vozes da história.
A desmemorialização e a escrita da história feita pelas elites deixa margem para a reflexão sobre o
passado dos vencidos. Homens sem lembranças ou sem possibilidade de expressá-las. A negação e a dor
de ser um vencido gera uma forte rejeição em lembrar aquilo que ficou perdido nos currais de gado, nas
conversas das cozinhas e no aboio do gado. Mas, enquanto a memória for plástica e modelável e a
identidade for fluida, estes personagens irão ressurgir de um passado apagado e os netos de Feliciano
poderão, com orgulho, reconstruir partes daquilo que se perdeu no tempo e vestir roupas que serão
produto de seus próprios fios.
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(AUTO)BIOGRAFIA DE UMA CIDADE: FESTA E HISTÓRIA NA PRODUÇÃO DE
IDENTIDADES NA
“TERRA DA LIBERDADE”.
Vânia Juçara da Silva 233*
Resumo: Este trabalho promove uma reflexão sobre questões que norteiam a emergência de uma “ideia” de identidade
mossoroense através de uma festa especifica, o “Auto da Liberdade”e quais são as relações entre a produção espacial, memória
e a tradição histórica da cidade de Mossoró. A festa em questão é um espetáculo teatral, celebrada anualmente e conta a
História da cidade de Mossoró, através dos seus principais eventos históricos,tidos como definidores da região e que
evidenciam o pioneirismo e o caráter libertário e vanguardista desta cidade que se intitula um “país”. Buscaremos compreender
os mecanismos que geram sentimentos de pertencimento na produção dessa identidade, demarcando territorialmente uma
cultura especifica. Nossa reflexão enfoca o Auto da Liberdade enquanto um discurso cultural muito específico e forte, que
costura uma História e uma identidade para Mossoró, um "sentido", fazendo seus sujeitos se sentirem membros de um “país”, o
país de Mossoró, apropriando-se da sua história local como referência a esse ideal, compreendendo como os “sujeitos
mossoroenses” constroem imagens sobre si e sobre outros, como a história é tomada como aporte nesse processo,(re)definindo
identidades de um espaço, território claramente demarcado, seja por fronteiras geográficas seja por fronteiras culturais.
Introdução
Na cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte todo ano é celebrado o Auto da Liberdade, um
evento que já faz parte do calendário social e mental do povo mossoroense. Ocorre todo ano nos dias que
precedem o 30 de setembro celebra os quatro fatos que remontam ao pioneirismo da cidade em questão
que são: a expulsão do
cangaceiro Lampião e seu bando da cidade de Mossoró pela população local; a primeira cidade do estado
a libertar os seus escravos em 30 de setembro de 1983; o primeiro voto feminino da América Latina pela
mossoroense Celina Guimarães e o Motim das Mulheres, que foi um movimento contra o alistamento
obrigatório dos homens da cidade após a Guerra do Paraguai.
Esses fatos são encenados, através de um espetáculo teatral, que desde 1998 vem ganhando
conotações de festa popular, que além de divertir a população tem também a função didática de ensinar a
história de Mossoró, atavés da sua espetacularização, objetivando com isso produzir um sentimento de
valorização e orgulho do seu passado.
Sua apropriação é realizada por dispositivos midiáticos e poder político local, enquanto cenário
que congrega ao mesmo tempo emoções e expectativas de um público que durante todo ano visualiza esse
evento como uma “celebração de suas grandes conquistas e vitórias”, um vanguardismo que a "Terra da
Liberdade" clama aos seus membros uma participação ativa. Analisando mais profundamente esse
espetáculo podemos percebemos esse enquanto um “ritual anual de celebração mossoroense” , uma
afirmação e (re)atualização da identidade de um povo, um mecanismo utilizado pelas elites políticas
233
Vânia Juçara da Silva- Graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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locais como forma de legitimação e dominação de determinados valores e identidades e de sua
manutenção dos privilégios.
O Auto da Liberdade está inserido dentro de um evento maior que é a Festa da Liberdade,
celebrada no mês de setembro e que marca a conquista de várias “liberdades” na cidade de Mossoró,
como por exemplo a liberdade da mulher mossoroense, de estigmas e papéis sociais que a deixavam como
uma categoria a margem da sociedade brasileira e a encenação do “Motim das Mulheres” e o “Primeiro
voto feminino” e vão servindo para fortalecer esse ideal, assim como a luta pela liberdade, que com
coragem conseguiram expulsar o cangaceiro Lampião e seu bando de seu território, evidenciam a bravura
do povo mossoroense, motivo de orgulho desses sujeitos, que se situam enquanto produtos e produtores
desses ideais. A celebração da liberdade mossoroense é colocada enquanto motivo de orgulho para a
população local, que se vê no centro de um pioneirismo histórico que é reforçado por discursos que
legitimam tal assertiva. Mossoró então penetra em uma passado cheio de glórias, construindo assim um
“sentido”, através de uma memória que fortalece a imagem de “Terra da Liberdade”. Esse discurso,
apoiado nas artes e na história oficial, se torna um discurso forte na construção da identidade desse povo,
como sujeitos da resistência, se refletindo não apenas no espetáculo Auto da Liberdade, mas também na
encenação do “Chuva de Balas no país de Mossoró”, que é um outro espetáculo que encena a expulsão do
cangaceiro Lampião da cidade de Mossoró, sendo realizado no mês de julho em conexão com as
festividades de São João da cidade.
Partindo dessas informações sobre o Auto da Liberdade, pretendemos compreender até que ponto
esse evento consegue atingir identitariamente seus habitantes, seus espectadores, compreendê-lo enquanto
um discurso em forma de festa, que com músicas, imagens, gestos e uma alegoria da história de uma
cidade, através de seus rituais, cria um ambiente propício a uma participação coletiva programada, um
palco de sociabilidades, demarcado espacialmente, construindo conceitos e ideias, assimilados pela
população como elementos constituidores de sua identidade, para isso é essencial desconstruir a ideia de
uma identidade hegemônica e padronizada, mas sim compreendê-la enquanto produto de uma série de
mecanismos utilizados para definir o ideal do que é ser mossoroense, inclusive a participação desses
sujeitos enquanto constituidores de suas identidades, a partir de escolhas.
O espetáculo teatral Auto da Liberdade se enquandra muito além da festa, de uma peça de
fragmentos da história dessa cidade, é pois sim um produtor de sentidos, um espaço cuja importância é
essencial enquanto instrumento cultural que busca atender uma determinada função, que é a criação da
identidade mossoroense. Ela produz "sujeitos", ou ideais de "sujeitos", através de características exaltadas
e celebradas, baseadas na História dessa cidade, mais do isso devemos levar em conta todo o valor que é
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dado ao calendário, ao espetáculo, as imagens são referenciadas enquanto "cenas de um povo", numa
totalidade, demarcando um dado lugar, no caso Mossoró.
A relação entre o Auto da Liberdade e Poder Político de Mossoró foi trabalhada pelo Professor
José Lacerda Alves Felipe, em seu texto “ Festa e poder político”, onde ele analisa as relações entre festa
e poder político na cidade de Mossoró, enfatizando o papel da família Rosado na organização desta festa
e as implicações sócio-espaciais desse evento. Para isso ele faz uma reflexão sobre o processo de
enunciação da festa, a utilização de mitos e da história para manter o domínio de uma organização
familiar há mais de 50 anos na política da cidade de Mossoró.
Conforme nos diz o Professor José Lacerda Alves Felipe, em seu texto "Festa e poder político",
o Auto da Liberdade é uma repetição teatralizada do passado, para firmar numa sociedade
específica, uma memória, inserindo todos numa ação coletiva, em que são eleitos
antepassados, que através de seus feitos e exemplos podem influenciar a ação do presente,
e assim produzirem discursos que constituem o “ideal mossoroense”, baseados em atos
heroicos e revolucionários. 234
Ele faz uma incursão pelos reflexos do Auto da Liberdade no território mossoroense e a utilização
destes pela família Rosado, que criam um culto à liberdade se apropriam da memória para se projetarem
como guardiões do passado para fins políticos,
Os Rosado se colocam como os guardiões da memória da cidade, bem como seus
“animadores culturais.” Por meio das festas cívicas, solenidades e outros rituais, esse
grupo político mantém o culto, aos heróis do passado, revitaliza velhos mitos e, ainda,
busca trazer seus concidadãos para a luta do tempo presente.235
Portanto ele analisa a cidade enquanto geografia de uso político através da cartografia de seus
bairros e monumentos, reflete também sobre como a festa afeta o cotidiano dos mossoroenses, suas
emoções, suas mentes, insere todos numa ação coletiva que liga o povo ao seu passado, impondo
permanências sociais, cuja essência da festa pode ser compreendida como luta pelo poder, onde os
governantes e "heróis" guardam e defendem seu território de inimigos externos. Para ele o grupo político
familiar aparece como sendo um dos principais atores do espetáculo teatral, pois seus membros elegem
“santos” e os “altares” na história recontada de um lugar. A cultura passa a ser utilizada por essa
organização familiar como arma de dominação, em que a criação imagética do "País de Mossoró" foi uma
das formas encontradas pela família Rosado para dominar politicamente a região.
234
FELIPE, J. L .A. Festa e Poder Político. In: Espaço e Cultura, UERJ- n. 23 (jan/jun. 2008), Rio de Janeiro: UERJ, 2008, p.
47
235
Idem. p. 44
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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A Professora Amélia Cristina Alves Bezerra, em seu texto “Festa e cidades: entrelaçamentos e
proximidades” faz uma análise sobre o papel das festas e as formas de afirmação de singularidades que
vão sendo reinventadas e espetacularizadas, afetando a dinâmica espacial destas cidades. Ela analisa a
relação festa-identidades para pensar a cidade, tendo como referência empírica a cidade de Mossoró,
fazendo um estudo sobre o processo de transformação das festas em grandes eventos, realizados pelo
poder público local, marcando uma tendência contemporânea de mercantilização das festas.
Analisa também a “dimensão identitária” das festas na produção de relações hegemônicas, tendo
estas o poder de mobilizar e forçar identidades a nível sociogeográfico, trabalhando de perto ou de longe
a identidade social, para isso ela faz uma relação entre identidades territoriais e a memória nas relações de
poder. Para ela o Auto da Liberdade:
O Auto da Liberdade recupera e (re)atualiza alguns fatos e sujeitos históricos que
compuseram a memória da cidade e que vêm sendo apropriados e representados com
objetivo de (re)significar e reafirmar os referenciais de liberdade e coragem que tendem a
serem lidos como aqueles da cidade. O resgate desses fatos históricos por meio de um
grande espetáculo conduz a uma conexão entre o presente e o passado, (re)atualiza os
referenciais identitários e produz um sentimento de identificação territorial.236
Compreende a festa enquanto representação da cidade, produção de uma imagem e na
conformação de uma identidades numa conexão entre passado e presente.
Ela estuda a dinâmica sócio espacial em Mossoró na ultima década, tal como formas de se pensar
a cidade e a festa nesta cidade. Festa, Memória e História. A apropriação dos lugares públicos, como o
Memorial da Resistência, bairros e prédios público também vão definindo a história de Mossoró e
demarcando a presença da familia Rosado, é comum bairros em que seus nomes são associados a ideais
de liberdade e a História de Mossoró, como por exemplo os bairros da liberdade e Abolição.
É nesse sentido que se dá a apropriação da História pelo Auto da Liberdade, com a finalidade de
produzir um sentimento de ser membro de um grupo, através de um passado em comum, que buscam em
sua história a fonte de orgulho e representação do ideal de um povo, como por exemplo no caso do Motim
das Mulheres, que é um dos quatros atos da peça e que celebra esse pioneirismo feminino, pois em qual
outro lugar mulheres saíram as ruas, rasgando cartazes em igrejas, em confronto corporal com a policia,
batendo panelas e colheres de pau para defender seus maridos e sendo caracterizado pelos jornais locais
da época, como por exemplo "O Mossoroense" como um dos movimento mais esdruxulos no Rio Grande
do Norte.
236
ALVES BEZERRA, A.C. Festa e Cidade: entrelacamentos e proximidades. In: Espaço e Cultura,UERJ- n. 23 (jan/jun.
2008), Rio de Janeiro: UERJ, 2008, p. 13
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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Embora em outras cidades também tenham ocorrido esses levantes contra a nova lei do
alistamento, somente na cidade de Mossoró as mulheres participaram exclusivamente, não existia homens
no seio do movimento, somente mulheres. Assim sendo há um uso de um recorte da História Local, com a
apropriação de suas características mais positivas, para definir por exemplo o ideal da mulher
mossoroense, como forte, valente, sem medo das opressões, a frente do seu tempo, que sai do âmbito
privado para defender seus maridos.
A festa em questão tem se apropriado da memória para afirmação de uma cidade enquanto
resposta aos caos identitário presente nos dias atuais. É uma espetacularização de uma "identidade", de
um discurso que caracteriza um território demarcado, seja cartograficamente ou culturalmente. Ela
transforma a história em "Patriômonio da cidade", a ser valorizado assim como os referenciais de
liberdade e coragem que são tão bem trabalhados pelos produtores do evento.
Assim sendo é importante celebrar essa história através desse evento cultural grandioso que
conduz a população a voltar à suas origens, é um espaço que congrega, na mesma temporalidade passado
e presente, produzindo emoções, é a materialização da memória idealizada, interessada e indereçada, que
pode ser compreendido pela perspectiva do que Pierre Nora chama de “Lugares de Memória” que
apreciado pelos discursos das identidades deve ser compreendido como um discurso mais cultural do que
político e que tem na tradição mitológica da cidade a produção de mitos e heróis que devem sempre ser
celebrados, enaltecendo a identidade da cidade em questão.
Nesse discurso são eleitos heróis que devem ser rememorados, cria-se um imaginário social com a
mitificação de alguns "elegíveis" e ocorre uma (re)significação nas formas de celebrar o passado da
cidade de Mossoró, com a função de cativar o que as festas cívicas de conotação política, que outrora
celebravam essas conquistas, não mais cativavam, passa de um evento com caráter cívico para um grande
evento festivo, com atrações musicais, cuja direção do espetáculo fica a cargo de diretores de renome
nacional. Isso revela um caráter "patrimonialista" dado ao mesmo, um "Lugar de Memória" devido a essa
importância que lhe é atribuída.
Para Nora esses "Lugares de Memória" em seu texto “ Entre Memória e História: a problemática
dos lugares”
Nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea, que é preciso criar
arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios
fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas
minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilégiados e enciumadamente
guardados nada faz mais do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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memória(...) Mas se o que eles defendem não estivessem ameaçado, não se teria
tampouco, a necessidade de construí-los.237
O Auto da Liberdade enquanto (re)encenação do passado pode ser visto como um ato de memória,
como tentativa de impor interpretações do passado, formar a memória coletiva e assim construir uma
identidade social, mas deve também ser compreendido enquanto produtor de sentidos, através das
transmissões de memórias que na maioria dos casos são registrados por rituais de comemorações.
Dentro dessa perspectiva é possível compreender o Auto da Liberdade como um evento cujo
objetivo principal é assegurar ao povo mossoroense uma participação ativa no cotidiano e na produção de
suas identidades baseados na História de sua cidade, enquanto membros de um "país" chamado Mossoró,
calcados nos ideais de liberdade, coragem e pioneirismos, a “Terra da Liberdade” conclama seus cidadãos
para “Celebrarem e Liberdade”, na “Festa da Liberdade” que marca todo o mês de setembro com eventos
que comemoram uma identidade mossoroense. Esses discursos se cruzam e se refletem na elaboração da
identidade de um povo, na mentalidade desse povo.
A grandiosidade da festa se efetiva nas grandes mobilizações que estão por trás do espetáculo, a
grande quantidade de atores envolvidos, a participação do poder político local, a geografia do local sofre
alterações, diretores de renome nacional são contratados para dirigir o espetáculo, o figurino é chamativo
e muito bem trabalhado, atrações musicais completam o espetáculo inspirado no texto do escritor
cordelista Crispiniano Neto.
As imagens desse espetáculo desempenham um papel fundamental na produção simbólica de uma
identidade mossoroense, seja através da mídia, dos convites televisivos, com o chamado para “Celebrar a
Liberdade” na “Terra da Liberdade”, elas podem ser compreendidas enquanto artefatos para a produção
de um espaço especifico, espaço esse que com o uso da memória e da História produz um sentido para
seus membros, de serem sujeitos de uma história que deve ser celebrada constantemente.
Ocorre a produção de um espaço através das imagens, que constrói sentidos para a população
local.
Além de festejar, o ensino da História também faz parte dessa festa, que enquanto espaço que
congrega lembranças e produz sentidos também ensina o povo de Mossoró a importância do seu passado,
essa proposta é associada à legitimação do ideal de que a familia rosado tem a grande importância de ser
"guardiã dessa História" é o que poderíamos chamar de espetacularização da História e sua materialização
no cotidiano.
237
NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto História. São Paulo, v. 10,1993.
Revista do Programa de Estudos Pós-Gradudos em História e do Departamento de História da PUC-SP(Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo), p. 13
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Assim sendo o Auto da Liberdade vai transmitir uma memória, que se encontra preservada e
reproduzível através de artefatos simbólicos e materiais que mantém a população mossoroense ligada ao
seu passado, onde o grupo político familiar, que detém a organização desse espetáculo a utiliza para suas
finalidades mais diversas, conseguindo instituir um ideal de identidade que lhe assegura ainda hoje a
manutenção de seus certos poderes e privilégios.
No que se refere ao espaço podemos compreender Mossoró enquanto construção, refletindo
culturas e relações sócio políticas-culturais específicas, cujas imagens que temos são produtos de ações
humanas que visam atender uma determinada função, que no caso específico é a criação da identidade
mossoroense, compreender esse dinâmica sócio espacial é fundamental para a denaturalização de
significações cristalizadas na mentalidade do povo mossoroense e perceber o espaço e o cotidiano a partir
dos discursos e suas representações.
Logo o espaço é um meio essencial para a transmissão de memórias, quando colocamos figuras
que queremos lembrar em locais importantes, como por exemplo no Auto da Liberdade e assim grupos se
tornam mais “destacados” mais "vizíveis" na celebração do passado da cidade, ocorre uma valorização de
uma identidade coletiva, baseada em escolhas específicas, com feitos escolhidos para serem celebrados e
dignos de representar a população mossoroense. Compreender a importância desse espaço para a
cristalização de determinados valores, como a "idéia da identidade mossoroense" é fundamental também
para sua contestação e subversão.
O que buscamos nessa pesquisa é assumir o Auto da Liberdade como uma produção discursiva
que realiza uma passagem da memória para a história, atualizando sentidos, provocando uma adesão
simbólica de seus membros na identificação com a sua História Local, refletindo na produção de uma
identidade cujo passado é a essência". Essa identificação do sujeito com sua História e com sua cidade
deve ser compreendido como um jogo de negociações entre os sentimentos de pertencimentos, pois a
sociedade contemporânea tem seus referenciais identitários constantemente mudados, portanto a
experiência subjetiva, transformada em parte da representação de si próprio como sujeito de uma
comunidade é uma leitura subjetiva em cada sujeito, em cada cidadão mossoroense.
Esse evento já vem se tornando "tradição" para a população, cuja necessidade de preservação de
uma memória, foi instituído em um momento específico da história de Mossoró, e busca através dos
aparatos culturais simbolicos consolidar uma identidade local através da força da empatia. Assim sendo
devemos utilizar para essa pesquisa o conceito de Identidade proposto por Stuart Hall em seu livro
“Identidades Culturais na Pós Modernidade” em que ele compreende as identidades como longe de ser
um conceito fechado mas sim enquanto relacionalmente construído.
Assim segundo Hall baseados nas ideias de Freud:
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A identidade é algo formado, ao longo do tempo, através de processos
inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momentos do
nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela
permanece sempre incompleta, está “em processo” sempre “sendo formada”238
Podemos então compreender que a identidade do que é ser mossoroense não emerge no momento
de seu nascimento, mas vai sendo a cada dia construída pelas mais diversas práticas, da relação do sujeito
com o outro e na negociação com seu inconsciente, o Auto vem a colaborar para ampliação da
“montagem”, dessa identidade, vem fortalecer essas identidades frente ao caos gerando na modernidade
tardia, onde segundo Hall com os efeitos da globalização essas identidades locais tendem a se fortalecer e
até mesmo produzir novas identidades através da hibridização cultural.
Enquanto discurso, o Auto da Liberdade pode ser compreendido à luz do pensamento do Professor
Durval Muniz em que ele não representa a verdade sobre uma região, mas sim como monumentos de sua
“construção”:
Nese sentido podemos entender que a elaboração da região se dá no plano
cultural, mas do que no político, ou seja há trabalho com a memória, na busca e
organização de lembranças, no passado legando resultados que acabam por
constituir uma identidade de um determinado espaço.239
Durval diz também que há um esforço na elaboração de uma memória social, cultural e artística
que pudesse servir de base a instituição da "região-construção" que busca elementos que se localizassem e
que fossem garantidores da identidade. Para ele os fatos históricos e principalmente, os de ordem cultural,
marcariam sua origem e desenvolvimentos desta identidade regional. A invenção da tradição é a garantia
de perpetuação de privilégios e lugares sociais, são poderes que permeiam a prática discursiva.
Compreender o Auto da Liberdade enquanto um discurso que colabora para a produção da
identidade mossoroense nos permite utilizar a ferramenta de análise e interpretação dos discursos,
servindo para problematizar o que é ser mossoroense, buscando sua historicidade no campo das práticas e
discursos. Ele se materializa em vários campos como por exemplo o Auto da Liberdade, produzindo
sentidos:
O discurso tem sempre uma materialidade, composta de uma memória e história, eles
transitam pelo tempo e espaço, nos enredam e nos constituem. Para Foucault o sujeito foi
constituído por práticas discursivas e enredado por histórias, ele não passa de uma
posição discursiva.240
238
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O espaço pode ser compreendido como um dispositivo de produção do sujeito, pois experiências
espaciais que certos lugares nos oferecem tem o poder de deslocar e transportar subjetividades. O Auto da
Liberdade é um lugar construído pelo jogo das identidades que espaço, história e memória propõe ao
sujeito participar, elas colocam o sujeito em um tempo e espaço construídos para que as identidades
também sejam construídas, é uma forma de produzir sentidos e identidades. Podemos compreender o
Auto como um gerador de múltiplas significações, articulador de memórias e cujas imagens transpostas
no espetáculo exerce influência ímpar no sujeito que busca os mais variados efeitos de sentidos pelo
código espacial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A cidade de Mossoró toma para sí o título de Capital Cultural do Rio Grande do Norte, a " Terra
da Liberdade", que detém entre outros eventos culturais, o espetáculo teatral Auto da Liberdade. Nesse
texto procurei mostrar os desdobramentos em relação ao espaço e identidade, a partir das imagens que
esse evento utiliza, imagens que idealizam um povo e sua cidade. Esse "ideal mossoroense" pôde ser
compreendido como produto de vários agentes, seja cultural ou político, assegurado pelo Auto da
Liberdade. Assim sendo, esta pequena reflexão nos permitiu compreender como uma cidade que se
intitula um país tem sua produção identitária culturalmente definida, onde o Auto da Liberdade
desempenha um papel grandioso nessa construção, materializando e celebrando essa identidade, através
da sua história local, que ganha contornos culturais e simbolicamente é instituída na mentalidade do povo
mossoroense.
Referências bibliográficas
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Janeiro: UERJ, 2008, p. 43-52.
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História da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
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ST 12. Arte, Cultura e Identidade
na América Latina Prof. Dr.
Francisco das C. Fernandes Jr.
(UFRN) Prof. Dr. Gerson Luís
Trombetta (UPF)
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
A ARTE COMO PODER DE ENUNCIAÇÃO: O SERIDÓ ATRAVÉS DAS IMAGENS
Ariane de Medeiros Pereira*
Muirakytan Kennedy de Macêdo**
Resumo: O presente trabalho possui como objetivo demonstrar que a arte gera discurso, a partir do momento que dar
visibilidade a um determinado espaço, seja uma região ou uma dada localidade. Para a realidade aqui trabalhada, será enfocada
a região do Seridó241, e como as obras de arte produzem um discurso, sobre esse dado espaço. Sendo assim, recorreremos ao
trabalho da artista Maria Davina dos Santos Lacerda.
Palavras-chave: Seridó; arte; discurso.
Um breve apanhado sobre a arte como produtora de identidade
Para que possamos compreender melhor o que entendemos aqui por arte, deixamos claro que arte
neste momento engloba tudo que torna- se imagem, ou seja, pintura, gravura, escultura, enfim, tudo
aquilo que podemos atribuir significado. Nesse sentido, consideramos que a imagem é um componente
que faz parte da trajetória da humanidade e que, portanto, é uma fonte histórica de suma importância, para
compreendermos a cultura e a vivência de determinada sociedade.
A imagem revela a diversidade existente dentro do grupo social, que perpassa desde os aspectos
econômicos, sociais, políticos, até os culturais. Daí ela, ser produtora de discurso, que serve para
compreendermos como uma região está sendo construída. Nesse contexto, “pode-se compreender a
importância do estudo da produção artística como fonte de discurso que se relacionam com a vida em
sociedade” (KNAUSS, p. 100, 2006).
Ainda seguindo o pensamento de KNAUSS (2006), esse considera que o interesse pelo estudo da
imagem não acontece apenas na historiografia contemporânea, mas envolve várias tradições disciplinares
e que o interesse atual resultou na construção de um novo campo interdisciplinar que tem como propósito
a investigação da cultura visual, uma vez que esta possibilita esclarecer outros aspectos da sociedade,
como por exemplo, examinar as desigualdades sociais. Sendo assim, isso ocorre porque,
*Mestranda do programa de pós-graduação em História/UFRN, com área de concentração em História e Espaços. Sob a
orientação do professor doutor Muirakytan Kennedy de Macêdo.
**Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal do
Professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte , Brasil.
Rio
Grande
do
Norte,
Brasil(2007)
241
“O Seridó, em termos geográficos – pela classificação do IBGE – localiza-se em Mesoregião Central do Rio Grande do
Norte, divido em duas Microregiões: Seridó Ocidental e Seridó Oriental” (Macêdo, 1998, p.9).
340
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
“O espectador se vale de uma competência visual que é socialmente estabelecida,
do mesmo modo que o pintor depende da resposta de seu público. Assim, a
sociedade influencia a experiência visual. Fundamentalmente, Michael Banxandall
aponta para o fato de que o olhar é um sentido construído socialmente e
historicamente demarcado” (Ibid, p.111).
Considerando esse ponto de vista, podemos afirmar, que a arte visual estar carregada de
significação social, que por sinal é uma construção do homem em seu tempo. O que nos permite dizer,
que ao analisar uma imagem, esta ganha inúmera interpretações, no entanto, deve-se ter o cuidado de
estar preparado culturalmente para empregar esse olhar, no qual futuramente se desdobrará num discurso
sobre as características que a imagem procura representar do seu meio.
Como deve- se ter um olhar preparado para analisar a arte visual, a própria maneira de pintar uma
paisagem ou outro determinado objeto requer toda uma técnica, como salienta CHINCANGANABAYONA (2008),
“[...] a aproximação do mundo visível e a construção de uma imagem fiel do
natural é uma conquista, um processo de aprender a olhar, a selecionar e enquadrar,
á medida que os esquemas sejam mais elaborados e sofisticados. Para descrever o
mundo visível em imagens, é necessário um sistema de schemata bem
desenvolvido” (p.605).
O artista deve dominar tanto as técnicas quanto ter um olhar bem apurado sobre a sociedade como
também entender como foi transformada a paisagem natural pelo homem, para atender as condições
exigidas pela sociedade em que vive242. Nesse sentido, o artista retrata o cotidiano das pessoas, mas ao
fazer isso tem uma intenção de dar significado a determinado momento, ou seja, o artista ao produzir uma
obra de arte possui uma finalidade.
A arte como produtora de um objetivo fica bem explícita no momento em que Vítor Meireles pinta
a primeira missa no Brasil, a finalidade ali é deixar claro o instante de nascimento do nosso país, para
isso, “a pintura será encarregada de fixar e de imprimir nas mentes esse instante inaugural através do
pincel de Vítor Meireles, então jovem e promissor talento” (COLI, p.29, 2005).
Em sua essência, a arte passou por mudanças em suas concepções, primeiramente a arte no Brasil
estava mais voltada para o paisagismo, ver-se que ao longo dos anos, a mesma passar por transformações,
nas quais podemos citar que hoje a arte representa cenas do dia-a-dia passando pelo abstrato. No Brasil
242
Para uma discussão mais profunda ver: SCHAMA, Simion. Paisagem e memória. p. 13- 30.
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colônia, isso se torna evidente no instante que o paisagismo vai perdendo espaço e surge como
transformação a arte religiosa243.
Nesse cenário de imagens, a arte vai configurando os lugares e criando um discurso sobre os
mesmo. Considerando o pensamento de Durval Muniz 244, o Nordeste enquanto região foi criada a partir
de uma tradição de pensamento imagético- discursiva que deu visibilidade a este recorte espacial. É nesse
pensamento da arte como produtora de identidade que passaremos a trabalhar a região do Seridó.
Uma rápida caracterização da região do Seridó e sua relação com a arte
A região do Seridó está localizada no sertão nordestino do Estado do Rio Grande do Norte Brasil, contando com vinte três municípios 245, nos quais apresentam inúmeras semelhanças, dentre estas
semelhanças podemos citar, a seca que predomina na maioria do ano. Sendo uma região peculiar, tendo
em vista que no momento em que as chuvas voltam à paisagem cinza e as árvores retorcidas que estavam
como mortas, tornam- se verdes e exuberantes, como se a vida renascessem como num passo de mágica.
Região esta, portanto, que está apta a diversas leituras e se pensarmos, no que se refere a arte
torna-se possível inúmeras interpretações. Nesse caso, trabalharemos aqui com o pensamento do
historiador Durval Muniz, que coloca a arte como produtora de um discurso a respeito de uma dada
região. "As obras de arte têm ressonância em todo o social. Elas são máquinas de produção de sentido e
de significados. [...] São máquinas históricas de saber” (ALBUQUERQUER Junior, p. 30, 2006).
Nesse sentido, procuraremos mostrar neste subitem, como os artistas seridoenses produzem sua
arte a partir da leitura que fazem da região do Seridó, para tanto recorreremos ao trabalho do historiador
Lourival Andrade - Arte e seca: imagens rememoradas por artistas do Seridó, que faz parte de seu projeto de
pesquisa “Seridó Visual: arte e estética”, para retirar daí os discursos desses artistas da terra.
Segundo as pesquisas feitas pelo historiador acima, a região do Seridó possui 96 artista,
considerando para esse número a quantidade de pessoas entrevistada pelo pesquisador. Esses artistas
trabalham com diversos enfoques desde a pintura, chegando à escultura. O que torna-se um empecilho
para o trabalho desses artistas, é que os mesmos não possuem incentivo por parte do poder público, desse
maneira, expõem seus trabalhos principalmente nas feiras de padroeiras de suas respectivas cidades, como
também nas cidades circunvizinhas.
243
Para discussão ver: BULHÕES, Maria Amélia; KERN, Maria Lúcia Batos. America Latina: territorialidade e práticas
artísticas. p. 21-23.
244
245
Ver: ALBUQUERQUE Junior, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes.
Ver: ANDRADE Junior, Lourival. Arte e seca: imagens rememoradas por artistas do Seridó Potiguar. p. s/n.
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Dentre as temáticas exploradas por esses artistas seridoenses fica evidente a presença dos aspectos
naturais dessa região, podendo até mesmo ampliar nossa visão, com a tentativa desses artistas de
preservarem a memória das tradições desse espaço ao longo do século, fica claro a insistência pelo
passado. E seguindo esse pensamento, voltamos mais uma vez, ao pensamento de Durval Muniz, no
momento que considera que o gênero artístico cria um discurso, como no caso do cantor Luis Gonzaga246
que possui sua música voltada para o nordestino que saiu de sua terra, mas que procura “matar” sua
saudade através da música que caracteriza o seu lugar de origem.
Nesse sentido a arte serve para criar uma identidade, manter viva a tradição de um determinado
lugar e é um instrumento usado pelas pessoas que saíram de seu lugar de nascimento para manter-se de
alguma forma perto de seu lugar de origem. É o caso da “música de Gonzaga vai ser pensada como
representante desta identidade regional [...]” (ALBUQUERQUER Junior, p.155, 2006).
No caso do Seridó diante das pinturas dos artistas podemos verificar que revivemos esse espaço
como se nunca tivéssemos saído dali, como um espaço inalterado pela ação do tempo, no qual o passado
está sendo vivido no presente. Sendo assim,
“As imagens impregnadas de descrições que colocam a natureza como parte da
corporalidade humana, ou seja, homens e mulheres, que de alguma forma
empedram-se como o próprio chão que pisam, que sempre estão caminhando em
busca de água, mas que ficam circunscritos a este espaço calcinado e que assim
decidem viver adaptando-se aos xique-xiques, mandacarus, cabeças de frade,
favelas, faxeiros, rios sem água, gado que se alimenta da vegetação ocre, que se
vestem cobrindo-se dos pés a cabeça e que se mantém firmes em sua fé de que os
céus, os santos e os milagreiros possam mandar chuva e diminuir suas agruras”
(ANDRADE Junior, s/n).
Percebemos com isso que o sertão seridoense está intimamente ligado a questão da seca, daí
inúmeros artistas da terra247 enfocar essa questão que perpassa também pela questão social e de
dificuldade, como a própria Davina
248
coloca que esta região se confunde com seus habitantes e que a
própria paisagem possui uma relação muito particular com o povo, já que este sofre junto com a natureza
o problema da falta de água.
A região do Seridó sob o olhar da artista Maria Davina dos Santos Lacerda
246
247
248
Nota V, p. 151-164.
Aqui me referido aos artistas seridoense.
Artista Caicoense, que concedeu uma entrevista a autora deste texto em: 22 de janeiro de 2012.
343
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Nesse momento faremos uma rápida biografia da artista nomeada acima, para que possamos
entender como esta artista desenvolve seus trabalhos e quais são as suas técnicas, como também
ampliaremos nosso propósito ao longo do texto para identificamos como Davina pensa a região do Seridó
a partir de sua arte e como caracteriza a arte que produz 249.
Maria Davina dos Santos Lacerda está com 61 anos de idade, nasceu em Serra Negra do norte,
mas já é filha de Caicó segundo suas palavras, começou a praticar arte com nove anos de idade até hoje.
Considera que a arte é uma questão de vivencia e aprendizado e nesse último quesito considera que o
aprendizado é uma questão diária e que não há uma arte melhor do que outra.
Em suas obras de arte Davina deixa claro que trabalha com diversas formas de pintura desde um
abstrato, ao cubismo, a paisagens sertanejas, pois sua intenção é dar ao povo o que eles lhe pedem. Sendo
assim, podemos perceber que essa artista trabalha muito por encomenda, característica dos artistas do
Seridó, que não possui um incentivo do poder público, como coloca Andrade Júnior
250
, no entanto no
tocante as encomendas feita a artista, esta afirma que não ver isso de forma negativa, pelo contrário
apesar de muitas vezes deixar de criar uma obra que ela estivesse pensando para aquele momento, encara
como um desafio novo.
Davina nos diz que não aprendeu a pintar numa escola de arte, mas que foi se descobrindo
sozinha, a passo que pintava suas unhas, viu nessas pequenas telinhas, as cores ganhando forma e cada
vez mais foi gostando disso, daí começou a passar essas formas para o caderno. Considera que talvez esse
“dom” estivesse em sua família, por ser descendente de um cigano251 (primo do pai dela) que desenhava
muito bem, mas sua primeira obra foi óleo sobre tela em 1974 em São Gabriel da Cachoeira, quando ali
morava.
Quando a artista pensa a região do Seridó, mais precisamente esse sertão nordestino pensa no azul
do céu e nas variadas cores que ali existe, porque considera que o sertão possui um colorido próprio e
exemplifica que o verde da caatinga é uma cor que não tem igual. Ao pintar suas telas Davina possui um
objetivo, no caso da região do Seridó procura demonstrar que esta região possui valor, não criando um
misticismo em cima deste lugar, mas procurando demonstrar suas características como ela mesma diz:
“que faça a gentileza de conhecer essas veredas, porque elas são muito importantes... não criando um
discurso da seca, mas mostrando o sertão como sertão na seca e no inverno” 252.
249
Os próximos parágrafos serão construídos a partir da entrevista realizada com a artista caicoense Maria Davina, em 22 de
janeiro de2012, por: Ariane de Medeiros Pereira, Gisele Tâmara de Araújo, Katiúscia Kelly Leite Ramalho.
250
Ver nota VI.
Davina diz que ouvia dizer que este cigano pertencia ao primeiro grupo de ciganos que andaram aqui pelo Seridó.
252
Transcrição das palavras da artista dada na entrevista.
251
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Aborda da paisagem da caatinga aos aspectos culturais da região do Seridó, afirmando que esta
região possui um ecletismo cultural e exemplifica com a festa junina, que dar identidade ao lugar e que os
filhos da terra que estão distante ao vir ao Seridó procuram por esta identidade. Disse-nos que ao pintar
uma pequena coleção de cenas juninas, estas não passaram muito tempo exposta em uma das lojas da
cidade de Caicó, logo foi comprada, porque o povo seridoense se reconhece naquele ambiente, que muitas
vezes é um espaço de saudade, por filhos do Seridó que já não mora nesta região.
Maria Davina considera que o sertão é infinito, sendo o mais bonito que existe e diz, que falar de
sertão a deixa emocionada e não se conforma com a discriminação que existe com esse espaço pelos
meios televisivos e acredita que é através do saber, que este sertão será exaltado no momento em que nos
dispomos a estudá-lo e apresentar-lo como ele realmente é, com suas características e potencialidades.
A arte feita por Davina atinge os mais variados públicos, isso fica claro no momento em que a
artista expõe suas obras e essas apresentam boa receptividade com as mais variadas pessoas que as
compram, ou seja, de várias regiões, no entanto, não se pode deixar de ressaltar que estas obras
conquistam um público seleto, que é os filhos da terra – os sertanejos seridoenses – que estão em outras
regiões distante do Seridó, mas que ao ir às feiras de artesanatos procura à artista com o desejo de uma
lembrancinha daquela virgem do sertão.
O trabalho com arte exige uma disciplina, como a própria Davina nos falou. O artista muitas vezes
tem de deixar sua vida social para de dedicar ao trabalho, porque a inspiração vem a qualquer hora, e o
artista como seu bom fiel tem de executar, pois no momento em que não executa esse chamado uma etapa
da arte é “queimada”, como a própria artista nos confidenciou.
Para Davina trabalhar com a arte é se surpreender todos os dias, pois se não for assim, à natureza
não te dar o dom de criar e recriar, o artista não deve acreditar que já aprendeu tudo, porque o artista está
em constante renovação, é o dom da plástica que esta artista considera, apesar de que em alguns
momentos, os artistas apresentam uma menor produtividade, mas é da vida humana, contudo passado o
momento ruim o artista volta à condição de trabalho artístico, a todo vapor.
E quando indagada como Davina conceituaria a arte, a artista não pensou duas vezes e disse: “arte
é vida, arte é raciocínio, arte é respiração, arte é pensar e não pensar, arte é ser atrevida, arte é ser livre,
arte é sentir presa também, arte é sentir um pouco de incerteza, mas também é ter certeza, mas arte é
arte”. Com relação à arte que produz considera que arte é uma troca entre as duas partes e que não sabe se
realmente arte é dela mesmo, ou a artista é apenas um instrumento usado pela arte.
Considera que a arte que faz passa por mudança no decorrer do tempo, quando compara a sua
primeira obra, por exemplo, o acabamento vai se aprimorando e passa também pela experiência que a
artista adquiriu, como pelo seu estado de espírito, porque a arte é vida e se confunde com a própria vida
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do artista. A arte é um conjunto que perpassa pelo artista, técnica e a própria inspiração. E cada pessoa faz
uma leitura da obra de arte.
A seguir serão apresentadas algumas das obras de arte de Maria Davina dos Santos Lacerda, para
que cada pessoa que ler esse texto, possa fazer sua própria leitura das obras de arte e tirar suas conclusões.
Acervo pessoal da pesquisadora
Acervo pessoal da pesquisadora
Acervo pessoal da pesquisadora
Acervo pessoal da pesquisadora
Considerações finais
Através desse texto é possível perceber que a arte é produtora de identidade e que um artista pode
contribuir para a formação de um discurso sobre determinada área ou região.
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No caso da artista Maria Davina dos Santos Lacerda podemos perceber que ela tem verdadeira
devoção pela arte que produz, e que procura fazer sua arte voltada para o sertão do Seridó, não para
relacioná-lo com a seca, mas sim para manter viva a tradição de um sertão que convive com a dualidade
entre a seca e o inverno e como essa paisagem se transforma a cada período de chuva e de estiagem – essa
que perdura pela maior parte do ano.
Além do mais, ficou explícito que arte de Davina possui um público seleto no instante que a artista
trabalha com o cotidiano desse sertão, e que as pessoas que compram sua arte é justamente quem sente
saudade desse espaço, ou aqueles que pretendem manter a tradição da região do Seridó sempre viva.
Portanto, a artista Maria Davina se confunde com sua própria arte, mulher de personalidade forte
que não foge as suas raízes e que prima pela tradição sertaneja, que possui um olhar voltado às questões
sociais e que traduz em arte o que sente por esse espaço sertanejo, lugar onde homem e natureza mantêm
uma relação íntima, mas que apresenta uma grande força que emana desta região que apresenta tantas
características próprias.
Referências bibliográficas
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Cortez; Recife: Massangana, 2006.
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Imagens da escrita, escrita das imagens: visualizações do engenho em Minha Formação (1900)
Diego José Fernandes Freire*
Resumo: O presente texto se ocupará da imagem que Joaquim Nabuco (1849-1910) teceu, a partir de sua
escrita, do engenho Massangana, local onde o renomado abolicionista passou seus primeiros anos de
infância. Entendemos imagem como uma “representação visual”, oriunda também de textos, de palavras,
da linguagem escrita. A frase posta no papel pela mão de um escritor tem o poder de criar imagens tanto
quanto o pincel na mão de um pintor que desliza em uma tela. Assim, objetiva-se analisar a
“representação visual” da espacialidade banguê, presente no livro “Minha formação” (1900).
Palavras chaves: Imagem – minha formação – Massangana
O engenho Massangana e Minha Formação:
Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo, filho do eminente jurista e político baiano José
Tomás Nabuco de Araújo Filho, do qual fez a volumosa biografia intitulada Um estadista do
império(1899), nasceu em 19 de Agosto de 1849, no Recife, em uma tradicional e abastada família
patriarcal. Nesse mesmo ano, seu pai foi eleito deputado, o que fez com que fosse, juntamente com a
esposa, para o Rio de Janeiro, a fim de se residir. Com isso, o menino Quincas, como era chamado
cariosamente Nabuco, ficou aos encargos da madrinha Ana Rosa Falcão de Carvalho e do padrinho
Joaquim Aurélio de Carvalho, no engenho Massangana, propriedade deste casal. Sua estadia nesta terra
foi até 1857, quando ela passou para posse de outras pessoas, em virtude do falecimento de sua madrinha.
Depois de deixar seu “paraíso perdido” (NABUCO, 1900, 222), segue para o Rio de Janeiro, a fim
de continuar seus estudos. Em 1859, foi, interno, estudar no colégio do Barão de Tauthpoeus, com quem
muito aprendeu, e, no ano seguinte, no famoso colégio Dom Pedro II. Mais tarde, em 1866 entrou para a
Faculdade de Direito de São Paulo, mas se bacharelou em ciências jurídicas, em 1869, no Recife. Os anos
seguintes, já não tanto de formação acadêmica, é marcado por viagens a Europa e Estados Unidos,
participação na imprensa e movimentos sociais, notadamente no abolicionismo, do qual foi um dos
fundadores. Quando começa a fazer as anotações que mais tarde, em 1900, dariam na publicação de
Minha Formação, Nabuco já era alguém consagrado; jurista, político e diplomata de capacidade
inquestionável no meio intelectual brasileiro253. Como tantas autobiografias, a sua também veio na época
da glória, marcando mais um momento de consagração do indivíduo Joaquim Nabuco.
*
Licenciado em História pela UFRN e mestrando do Programa de Pós-graduação em História nessa mesma instituição. Este
artigo foi fruto do trabalho final da disciplina Tópicos Avançados IV: História Cultural dos Espaços, tendo como orientação o
prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior. E-mail: [email protected].
253
Na terceira página de Minha Formação consta, logo abaixo do nome Joaquim Nabuco “da Academia de letras e do Instituto
histórico e geographico”. Ver: Nabuco, Joaquim Nabuco. Minha Formação. Brasiliana USP (versão digitalizada da primeira
edição), 1900. p.3.
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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Minha Formação, dedicado aos filhos de Nabuco, é todo estruturado de modo a mostrar os
principais elementos que concorreram para a formação de seu autor. Por formação, Nabuco aparenta
entender o desenvolvimento de sua personalidade, postura política, orientação religiosa e gosto literário.
Sua “escrita de si” é para revelar como apareceu um Joaquim Nabuco humanista, monarquista, católico e
literariamente anglo-saxão254. É dessa forma que o livro é divido em 26 capítulos, cada um dos quais
mostrando a influência de um dado fator para formar o autor conhecido nacionalmente, cobrindo uma
temporalidade de mais ou menos 30 anos (1859-1889).
O fato do banguê Massangana figurar nas memórias, em um livro que expõe os fatores que
concorreram para uma formação, já é por si só significativo255. Ao lado de personalidades políticas e
literárias, de cidades famosas (como Londres, Paris, Washington e Vaticano) está o engenho, também
como elemento formador. Mesmo tendo passado menos de 10 anos nele, a influência da terra e das
pessoas que viviam nela foi sentida. Diz-nos Nabuco:
os primeiros oito annos da vida foram assim, em certo sentido, os de minha formação instinctiva,
ou moral, definitiva...Passei esse período inicial, tão remoto, porém, mais presente do que qualquer
outro, em um engenho de Pernambuco, minha província natal (NABUCO, 1900, 211).
Mesmo sendo um tempo tão remoto e curto, a influência exerceu-se256. Deu o engenho sua contribuição
no desenvolvimento do menino. Conseguiu ficar presente na vida do sujeito Nabuco como uma luz forte
que não se apaga nem com o tempo nem tampouco com a distância espacial.
Também é sugestiva a posição dentro do livro em que se encontra o capítulo sobre o engenho,
intitulado apenas “Massangana”. Este é o vigésimo capítulo, já um dos últimos, e está entre o capítulo
nomeado de “Eleição de deputado” e o “Abolição”. Como bem percebeu Alfredo Bosi, o tópico sobre o
engenho está entre as memórias de 1878-1888, justamento o “tempo forte da campanha pela libertação
dos escravos” (BOSI, 2010, 88). “Massangana” é a sessão que abre as memórias sobre o movimento
Abolicionista, como se o autor quisesse nos mostrar que a causa primeira de sua militância advém da
estadia que passou no banguê de sua madrinha. O motor primevo de sua luta abolicionista foi
Massangana; “eu trazia da infancia o interesse pelo escravo” (NABUCO, 1900, 209). E assim uma
visualização do engenho vai aos poucos acenando.
254
Sobre o objetivo do livro, diz-nos Nabuco: “a primeira idea fôra contar minha formação monarchica; depois, alargando o
assumpto, minha formação político-litteraria; por ultimo, desenvolvendo-o sempre, minha formação humana”. Ver: Nabuco,
Joaquim Nabuco. Minha Formação. Brasiliana USP (versão digitalizada da primeira edição), 1900. p.210.
255
Um dado pertinente diz respeito a quantidade de páginas dedicadas ao engenho, que somam o número de 15 páginas,
constituindo-se como o quarto maior capítulo. O maior de todos retrata sua visita ao Vaticano (23 páginas), o segundo é o da
Abolição (19 páginas) e o terceiro é o que trata do pai (18 páginas).
256
Interessante pontuar que autores como Manuel Bandeira, Gilberto Freyre e José Lins do Rego, que também passaram breves
períodos da infância em um engenho, também colocaram esta espacialidade como algo central em suas vidas. A valorização do
engenho parece não depender necessariamente do tempo que se passou nele, mas sim da influência exercida. Sobre isso,
conferir as memórias escritas destes autores.
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ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
Imagens do Massangana:
De fato, uma das imagens que Nabuco constrói para o engenho de sua meninice é deste espaço
como uma força mobilizadora, como um agente histórico atuante em sua vida. Eis uma das mais famosas
passagens de Minha Formação; “Massangana ficou sendo a séde do meu oráculo íntimo: para impellirme, para deter-me, e, sendo preciso, para resgatar-me, a voz, o frêmito sagrado, viria sempre de lá. Mors
omnia solvit [a morte resolve tudo, tradução livre]...” (NABUCO, 1900, 223). Visualizamos o engenho
como um sujeito histórico ao mesmo tempo humano e divino, que ora faz Nabuco parar, ora o faz seguir.
Trata-se de algo interior que tem poderes para impulsionar a ação. A despeito da morte do Massangana,
de sua destruição para Nabuco, este ainda o representa visualmente como uma espécie de entidade, que
lembra a figura do oráculo antigo; nas horas difíceis, aparece como a fonte de conselho, de sabedoria, de
orientação ante os dilemas da vida. A saída do engenho não foi de maneira alguma o fim deste para
Joaquim Nabuco, na medida em que o preservou dentro de si, como um ser que é sempre consultado.
Essa representação visual do engenho ganha mais consistência quando o autor de O abolicionismo
(1883) fala de seu combate contra escravidão, colocando-o como fruto de sua vivencia no Massangana: “a
escravidão para mim cabe toda em um quadro inesquecido da infancia, em uma primeira impressão, que
decidiu, estou certo, do emprego ulterior de minha vida” (NABUCO, 1900, 215). Figuramos o banguê,
espaço onde se deu a infância de Nabuco, como o elemento que determinou as ações posteriores do
menino Quincas, sua militância contra a escravatura. A imagem do engenho não é senão de uma força
impulsionadora, atuante, semelhante “as cordas soltas, mas ainda vibrantes, de um instrumento que não
mais existe” (NABUCO, 1900, 214). Daí o autor dizer, sobre o tempo que passou em contato vivo com
aquela força modeladora; “meus moldes de idéas e de sentimentos datam quasi todos d’essa epocha”
(NABUCO, 1900, 214).
O Massangana é ofertado à visualização como um fator essencial para o antiescravismos de
Nabuco, como a essência de sua vocação antiescravocrata. Ora, a grande causa do abolicionista, aquilo
que lhe trouxe mais prestígio e o fez, talvez, entrar para história, é colocado como produto de um espaço,
das relações sociais e das pessoas que ai tinham seu lugar. “Eu trazia da infancia o interesse, a compaixão,
o sentimento pelo escravo – bolbo que devia dar a única flor da minha carreira” (NABUCO 1900, 203204). Seguramente, onde se tem infância pode-se ler engenho, na medida em que sua meninice foi
desfrutada neste espaço. Com isso, o Massangana ganha uma importância cabal: causa da grande obra de
Nabuco. À uma obra grandiosa – o combate a escravidão – corresponde um fator também grandioso – o
engenho.
Pensado a narrativa como “ordenação temporal” (LIMA, 1989), a propriedade Massangana figura
como o elemento que liga o menino Quincas ao adulto Joaquim Nabuco, o menino de engenho ao
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ardoroso antiescravista. Estabelece-se uma continuidade, dentro do tempo narrativo, entre a
temporalidade da meninice, desfrutada no engenho, e a vida de homem feito a lutar pelo fim da
escravidão. Ao colocar o banguê como fator crucial para seu antiescravismo, o memorialista Nabuco cria
a visualização de uma linha temporal ordenada. O Massangana é, pois, peça da montagem da narrativa
que liga tempos distintos, que enlaça com um nó firme o menino e o homem adulto, o passado e o
presente.
A impressão que nos dá é que o fervoroso monarquista pernambucano quer colocar também o
engenho Massangana na história, como fator desencadeador de seus combates sociais. Ao dizer que o
engenho contribuiu para sua formação, esta espacialidade ganha ares de sujeito, de força, de agente
atuante. Da memória individual para a história coletiva, tal é o movimento que Nabuco faz. Com isso,
cria-se uma visualização do banguê; força presente, atuante, responsável por atos e desejos.
Sendo assim, visualizamos as terras de sua infância não como um espaço qualquer, mero cenário,
que diz somente respeito a um período distante, mas sim como algo vivo e atuante, como uma força
histórica fundamental para a formação da persona Joaquim Nabuco. Este, mediante a escrita, vai
construindo relações de causalidade entre o engenho e suas ideias e atuações publicas, de modo que fica a
imagem do primeiro como algo que influiu decisivamente na vida do indivíduo. O combate à escravidão e
a sensibilidade humanitária figuram como uma dívida ao Massangana. As causalidades parece ser o
elemento que permite a figuração do engenho como agente histórico.
As metáforas (oráculo, a voz, o frêmito sagrado) tem também um papel importante para não só
marcar a relação de causa e efeito, mas para permitir uma determinada visualização do engenho. As
imagens vêm com mais clareza a partir do uso figurativo das palavras, pois “la representacion visual no
puede representarse a si mesma; tiene que ser representada por el discurso” (MITCHELL, 2009, 142). A
maneira como Nabuco usa a linguagem escrita, quando seleciona tal ou qual palavra, fazendo a descrição
metafórica, aciona uma determinada visualidade do engenho, a qual consiste no Massangana como um
agente histórico. Como dissemos, seguindo as discussões de Mitchell, a visualização depende do discurso,
do manejo das palavras. Porém, essa não é única representação visual que o autor de Minha Formação faz
do seu “paraíso de infância”.
Outra visualização do engenho que salta ao leitor nas linhas de Minha Formação consiste numa
imagem de uma terra grandiosa, algo próximo de um reino. Acompanhemos as primeiras descrições do
Massangana:
a terra era uma das mais vastas e pittorescas da zona do Cabo...Nunca se me retira da vista esse
panno de fundo da minha primeira existencia...A população do pequeno domínio, inteiramente
fechado a qualquer ingerência de fóra, como todos os outros feudos da escravidão (NABUCO,
1900, 211).
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A representação visual é nítida: território extenso, fechado, que abriga uma enorme e variada
população de “sinhás, inhós, aderentes, escravos e rendeiros”. O engenho se apresenta visualmente como
uma propriedade alargada, autônoma, uma espécie de reino feudal. A noção de domínio nos remete para
uma terra senhorial de proporções territoriais consideráveis. Nabuco usa um vocabulário medieval
(domínio e feudo) para caracterizar suas terras, criando uma visualização espacial de um reino.
Sobre a imagem que Nabuco cria para o Massangana, Alfredo Bosi destaca a representação visual
de “uma ilha, um oásis, imagens que implicam a existência de um outro mundo que se estende além de
seus confins” (BOSI, 2010, 90). De fato, concordamos com o crítico literário, ao apontar o engenho como
um espaço que se recolhe, isolado de outros espaços, como se bastasse a si mesmo. Interessante pontuar
que a própria figuração da natureza existente no banguê atesta isso: “era por essa agua [do rio Ipojuca]
quasi dormente sobre os seus largos bancos de areia que se embarcava o assucar para o Recife”
(NABUCO, 1900, 211). O contato, o movimento, o curto fluxo, advém de águas quase dormentes. A
relação entre o engenho e outras plagas se dá a partir de um movimento vagaroso, como se entre o banguê
e outros lugares houvesse um percurso moroso.
Essa representação visual do engenho como um espaço estável cujo tempo social é lento, parece
contrastar com outros espaços ligados à sociedade burguesa moderna, marcado pela dinamicidade e
flexibilidade. No engenho, ao contrário da cidade, a vida passa devagar, sem muita presa, num ritmo
social dito natural, pois os homens que habitam tal espacialidade teriam “um resguardo em questões de
lucro, próprio das classes que não traficam” (NABUCO, 1900, 215). O resguardo ao lucro, que Nabuco
diz existir no Massangana, pode ser visto como uma resistência as relações capitalistas, que instauram no
espaço um outro tempo, uma outra experiência com este. Protegido da influência capitalista, que já na
segunda metade do século XIX rondava os engenhos brasileiros, preservava-se o mundo campestre e as
relações sociais patriarcais.
Dentro dessa visualização, vejamos como Nabuco representa visualmente a Casa-Grande: “no
centro do pequeno cantão de escravos levantava-se a residência do senhor, olhando para os edifícios da
moagem, e tendo por traz, em uma ondulação do terreno, a capela” (NABUCO, 1900, 211). O espaço
central do engenho é figurado como uma torre residencial, que se coloca bem acima do terreno, tudo e a
todos vendo. Uma terra vasta exige uma Casa-Grande elevada, onde o senhor de engenho possa, a partir
dela, passear seus olhos vigilantes pelo extenso domínio. À grandiosidade do território corresponde
igualmente uma grandiosidade da residência.
Banguê e Casa-Grande se unem em uma visualização que enaltece esses dois espaços. Pensamos
que naquela descrição há uma positividade do espaço representado. Como nos alerta Yi-Fu Tuan, na
cultura ocidental, as noções de alto – baixo e centro – periferia supõem valorações positivas ou negativas.
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Joaquim Nabuco, ao retratar a residência do senhor de engenho como um espaço que se ergue, que se
levanta, o dota de uma imponência patriarcal, de uma qualificação positiva. O alto é o sublime, o
maravilhoso e majestoso, ao passo que o baixo é terreno, mundano, pequeno (TUAN, 2005, 42-46).
A visualização do engenho como um reino é reforçada quando Nabuco aborda as relações sociais
existentes entre o senhor de engenho e os escravos: “aspirei a dedicação de velhos servidores que me
reputavam o herdeiro presumptivo do pequeno domínio de que faziam parte” (NABUCO, 1900, 216). A
linguagem que retrata o tratamento entre os homens, baseado em valores de dedicação, honra, família e
hereditariedade, reforça a noção de reino, de domínio. Em um espaço como este, os homens e as mulheres
tendem mais a se pautar por essas noções. Mais uma vez, o monarquista abolicionista vale-se de uma
gramática medieval para retratar aspectos do Massangana. Neste espaço, as noções de dedicação,
herdeiro e domínio fazem sentido, o que nos autoriza a pensar no engenho apresentado visualmente como
um reino, território que abriga relações aristocráticas e nobiliárquicas.
O vínculo entre relações sociais e espaço, de modo a se visualizar este como um reino, é novamente
enfatizado na seguinte passagem:
eu receio que essa espécie particular de escravidão tenha existido sómente em propriedades muito
antigas, administradas durante gerações seguidas com o mesmo espírito de humanidade, e onde
uma longa hereditariedade de relações fixas entre senhor e os escravos tivessem feito de um e
outros uma espécie de tribo patriarchal isolada do mundo (NABUCO, 1900, 217).
Nabuco acredita que o tratamento afetivo para com os cativos, que viu em Massangana, tenha sido algo
particular de determinados tipos de engenho. E que tipos são esses? Aqueles cuja administração passaram
de geração para geração, sendo muito antigos. Ora, a imagem do reino também aqui aparece, na medida
em que um reinado tende a passar de geração a geração, levando consigo a marca do tempo. A todo o
momento o memorialista nos chama a atenção para o aspecto alargado e isolado, autônomo do seu
engenho de meninice. A grandeza, a vastidão que permite o pouco contato com o mundo, é o elemento
central da representação visual do engenho.
A noção de reino, mobilizada aqui para explicar uma das imagens usada por Joaquim Nabuco para
visualizar o engenho, contém uma carga aristocrática forte. Reino fala de um mundo não burguês, de uma
temporalidade anterior a modernidade. De uma época em que os valores e visões de mundo ainda não
tinham ganhado feições burguesas, modernas. Reino aponta, pois, para uma sociedade hierárquica e
nobiliárquica, de fortes traços rurais. Além disso, reino sinaliza ainda para uma unidade territorial vasta,
um agrupamento espacial humano coeso, que cobre uma extensa faixa de terra, a qual é mantida graças a
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uma autoridade superior. Todo reino se pretende minimamente unido, homogêneo. Em um reino, as
clivagens e fissuras tendem a ser abafadas257.
Quando Nabuco deixa o “primeiro paraíso”, devido “a mudança de senhor”, que era “o que havia
de mais terrível na escravidão” (NABUCO, 1900, 217), a imagem é de um reino desfeito, espedaçado:
“todo esse pequeno mundo, tal qual se havia formado durante duas ou três gerações em torno d’aquelle
centro, não mais existia depois d’ella [sua madrinha]; seu último suspiro o tinha feito quebrar-se em
pedaços” (NABUCO, 1900, 221). A visualização que o autor monta do fim de Massangana é semelhante
a fragmentação de um reino que, com a morte de seu governante, se verá esmigalhado em pedaços. A
ruína de suas terras da infância é o desmoronamento de um vasto reino que se desfaz em pedaços.
O poderio do engenho é identificado com o poderio de uma pessoa, que no caso de Nabuco é sua
madrinha, retratada como uma senhora matriarcal258. Como um reino, o engenho também é um espaço
personalizado. Aqui identificamos uma certa ambiguidade na representação visual deste espaço, uma vez
que é elaborado como um reino patriarcal governado por uma mulher. Que reino patriarcal é esse,
comandado por uma mulher? A ambiguidade diminui um pouco quando atentamos para a descrição desta
mulher:
ella era de grande corpulencia, caminhando com dificuldade, constantemente assentada. [...] minha
madrinha occupava sempre a cabeceira de uma grande mesa de trabalho, onde jogava cartas, dava
tarefa para a costura e para as rendas a um numeroso pessoal, provava o ponto dos doces,
examinava as tisanas para enfermaria defronte, distribui as peças de prata a seus afilhados e
protegidos, recebia os amigos que vinham todas as semanas attrahidos pelo regalo de sua mesa e
de sua hospitalidade, adorada por toda sua gente, fingindo um ar severo (NABUCO, 1900, 219).
Como se vê, Massangana era governado por uma senhora que realizava inúmeras tarefas. A
madrinha de Nabuco, comandando o banguê, substituía muito bem o senhor de engenho, seu falecido
marido e padrinho de Joaquim Nabuco. Ela não aparece como uma mulher viúva, a lamentar a ausência
do marido e indisposta ao governo do engenho. Trata-se de uma senhora de engenho, a ocupar
firmemente a mesa patriarcal, a distribuir e cobrar tarefas e a receber os amigos. Nabuco não mostra uma
257
Não é foi isso que Gilberto Freyre, na sua clássica obra Casa Grande & Senzala, tentou fazer, mostrar o reino patriarcal
nordestino como uma comunidade unida, com poucas fissuras? No ensaio de 1933, o sociólogo de Apipucos harmoniza as
diferenças entre senhores e escravos, brancos e negros, casa grande e senzala, embora não deixe de pontuar as violências e
atritos frequentes existentes na sociedade patriarcal. A tese freyreana da mestiçagem vem justamente nos falar do convívio
comunitário relativamente harmônico que existiu no Brasil dos séculos XVI-XVII. Ver: FREYRE, Gilberto. Casa Grande &
Senzala. 41ª edição, Rio de Janeiro, Record, 2000.
258
Interessante pontuar que Joaquim Nabuco, ao contrário de uma serie de outros autores que se autocolocaram como
influenciados por ele (Gilberto Freyre, Julio Bello e José Lins do Rego), não mostra uma valorização exacerbada da figura do
senhor de engenho, do patriarca. Nem o avô nem tampouco o pai é objeto de muitos elogios, como é a madrinha. É esta quem
governa o engenho. Daí porque, segundo Evaldo Cabral de Melo, Nabuco teria mudado o nome do engenho de “MassanganO”
para “MassanganA”, ou seja, femininizando-o para valorizar a figura da madrinha. Sobre isso, ver: BOSI, Alfredo. Joaquim
Nabuco memorialista. In:
: estudos avançados, 24 (69), 2010. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142010000200006&script=sci_arttext e consultado em 13 de Julho de 2012.
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mulher recolhida ao lar, entregue as lamúrias pela ausência do esposo. Com isso, o engenho governado
por uma mulher preserva seu aspecto patriarcal, aristocrático e hierárquico. A mulher comando o engenho
como um patriarca, senta em uma enorme mesa de trabalho como se fosse um senhor a ditar ordens.
O fim da espacialidade Massangana é trágico, como se encerrasse um espetáculo, tal é o que nos
mostra a escrita imagética de Nabuco: “a noite da morte da minha madrinha é a cortina preta que separa
do resto de minha vida a scena de minha infância” (NABUCO, 1900, 221). Espaço personalístico, que
depende de um comandante, desaba quando não existe mais um senhor ou uma senhora de engenho para
governa-lo. O fim da senhora de engenho é a ruína do reino, que é também o encerramento trágico do
espetáculo.
A representação visual do engenho como um reino de terras extensas e afastadas, como um
domínio patriarcal rural e autônomo é obtida mais a partir das descrições do que das metáforas, como
ocorreu com a imagem do engenho como agente histórico. Ao descrever o banguê, as águas, a CasaGrande e sua madrinha, Nabuco cria uma específica visualização de seu espaço favorito da infância.
Quando o narrador Nabuco “para” para retratar sua terra de origem, as pessoas e as relações sociais
existentes nela, emerge do texto uma imagem do Massangana. Esta é obtida mediante caracterizações de
determinados aspectos da realidade. No entanto, as imagens do engenho não dependem somente de
elementos linguísticos pontuais, mas também de uma visão geral que Nabuco guarda alegremente do seu
banguê de criança259.
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259
É certo que se poderia aventar outros fatores extratextuais para a representação visual do engenho de Joaquim Nabuco.
Porém, neste nosso texto, como dissemos no início, optamos por fazer uma discussão que nos deixasse ligado ao texto, que
raras vezes nos permitisse sair do material e objeto de análise. Essa orientação explica e justifica muito das reflexões feitas
neste trabalho.
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ISBN: 978-85-425-0007-3
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A CONSTRUÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS DA ARQUIDIOCESE DE NATAL COMO
FORMULADORA DE UMA IDENTIDADE LOCAL EM ESPELHO DO NACIONAL ENTRE
OS ANOS DE 1955 E 1964.
João Maria Fernandes de Lima260
Resumo: Este trabalho resulta de uma pesquisa que se encontra em sua fase inicial, em que percebemos a Arquidiocese de
Natal como um lugar formulador da identidade no cenário local em reflexo do nacional entre os anos de 1955 e 1964. Esta
identidade local estaria em sintonia com o discurso nacionaldesenvolvimentista, procurando traduzir as transformações
ideológicas que formulavam um Brasil moderno, assim, a Arquidiocese de Natal, será o agente desse processo de construção
de uma identidade dentro das praticas nacionaldesenvolvimentistas. No caso do Rio Grande do Norte ocorria algo diferente do
que acontecia em outros estados do Nordeste, uma vez que a Igreja Católica norte-rio-grandense já possuía uma atuação
diferenciada desde a década de 1930. Entendemos que o Movimento de Educação de Base (MEB), fez parte desse processo de
construção de uma identidade local, como uma iniciativa nacional da qual posteriormente se formaram as Escolas Radiofônicas
a partir das experiências locais que serão incorporadas pelo MEB, surgindo desse processo o MEB/Escolas Radiofônicas,
tendo o Governo Federal como financiador e a Arquidiocese de Natal como gerenciadora dessa nova política educacional e
modernizadora que procurava “conscientizar” o homem do campo, como dizia um dos lemas das Escolas Radiofônicas: “se as
escolas radiofônicas não educam, porém, conscientizam”.
Introdução
O objetivo deste trabalho é analisar, ainda que brevemente, alguns aspectos da implantação e do
desenvolvimento das Escolas Radiofônicas no Rio Grande do Norte entre os anos de 1955 e 1964.
Procuraremos fazer isso em uma perspectiva crítica onde nos propomos a resgatar certos episódios desse
projeto pioneiro no estado, além buscar contextualizar as ações e os modi operandi do referido
experimento. Analisaremos também os discursos proferidos pela Igreja Católica, especificamente os da
Diocese de Natal, que em nosso entendimento objetivava politizar as comunidades rurais por meio da
educação radiofônica procurando assim uma sintonia com o discurso desenvolvimentista nacional.
Analisaremos nosso problema por meio das obras ‘Igreja e Desenvolvimentismo: o Movimento de
Natal’ de Alceu Ferrari, ‘Igreja e desenvolvimento’ de Candido Procópio Ferreira de Camargo, ‘Escolas
Radiofônicas de Natal’ de Marlúcia Menezes de Paiva e ‘Uma pedagogia da participação popular’ de
Osmar Fávero e ‘A igreja católica e política do Brasil’ de Scott P. Mainwaring. Estas obras nos servem
na medida em que descrevem o treinamento, planejamento e o funcionamento das Escolas Radiofônicas.
Segundo Osmar Fávero (2006) podemos dividir a história das Escolas Radiofônicas em três fases:
uma primeira fase, em que o discurso da Igreja Católica em oposição as Ligas Camponesas se fazia
presente no anticomunismo; um segundo período chamado pelo autor “de fase da politização”; e um
terceiro momento que foi afetado pelo Golpe de 1964, uma vez que o os militares cortaram as verbas
desse projeto das Escolas.
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Aluno do Curso de História (Licenciatura) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Orientando PIBIC.
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PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
A Missão Rural Ambulante
As Escolas Radiofônicas no Rio Grande do Norte surgem através do movimento da Missão Rural
Ambulante que retoma as mesmas diretrizes dos movimentos de alfabetização do Governo federal das
décadas de 1940 e 1950. O Movimento de Educação de Base (MEB) nasce a partir de uma proposta da
Diocese de Natal de usar as emissoras de rádio para repor um projeto já existente do Ministério da
Educação chamado Sistema de Rádio Educativo Nacional (SIRENA), que estava sendo produzido em
conjunto com a Igreja Católica. Sendo assim nasciam as Escolas Radiofônicas no Rio Grande do Norte,
por meio do decreto presidencial Nº 43.829 de 16 de maio de 1958 que ligava a estas o Movimento de
Educação de Base (MEB). O objetivo das Escolas era alfabetizar o maior numero de pessoas,
transformando o perfil do país formulando assim uma identidade nacional sintonizada com os discursos
da época.
Acreditamos que o estado do Rio Grande do Norte neste período tornou-se um grande laboratório
além da elaboração desse projeto, segundo Alceu Ferrari (1964) esse Estado e principalmente a cidade de
Natal estava ligada ao que ele denominou de Movimento de Natal, a ação da Igreja Católica em setores de
assistência social e da Aliança para o Progresso.
“Que se instale com, máxima urgência, nas dioceses do RN, a missão
rural ambulante, instrumento de magnífica elevação total do bem” (Documento
do SAR 1954)
A Missão Rural Ambulante iniciou suas atividades em março de 1951, na Vila de Extremoz,
funcionando até o fim de 1954, quando por efeito de acordo transformou-se em Missão de Educação
Rural, tendo o município de Nisia Floresta como ponto de partida. A Missão Rural era executada em um
veiculo motorizado o voltava-se para a prestação de serviços de assistência religiosa e moral, médicoodontológico, educacional e de orientação agropecuária da população alvo. Tinha ainda os objetivos de
evitar o paternalismo e de despertar a melhor colaboração dos próprios assistidos e de entrar em contato
com os proprietários rurais a fim de conquistá-los para o apoio moral e material dessa grande obra. A
Missão Rural foi planejada e executada pela Escola de Serviço Social que possuía em suas fileiras
pessoas ligadas diretamente a Igreja Católica.
Observando o Relatório da 1ª visita da Missão Rural, percebemos que em primeiro lugar se rejeita
o mero assistencialismo da missão. Era necessário que o povo entendesse melhor o papel da missão para
mais facilmente conhecer o que dela pudesse advir, no entanto, se coloca a ideia de que a missão sempre
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vá de encontro dos que necessitam dela. No dia 2 de janeiro de 1954 D.Marcolino Dantas publica uma
circular sobre a primeira semana rural no RN:
“Clero e caros diocesanos, por culpa de todos. O comunismo ateu oprime as cidades e
já começa a estender seu poder sobre os campos. É preciso salva-los quanto antes o descuido, a
condescendência, que infelicitaram as cidades, arruinariam também os campos se não
cuidarmos a tempo. Surge uma campanha decidida e bem orientada, o governo por meio de
seus organismos da agricultura, e a Igreja pela, Ação Católica estão deveras, empenhados
nessa tarefa patriótica e cristã.” (Arquivo Arquidiocese de Natal.Caixa 225)
Note-se que o Papa Pio XII, em 30 de outubro de 1950, já havia colocado para cerca de 500
cardeais, arcebispos e bispos presentes no Vaticano sobre a necessidade da assistência social
notadamente no setor rural, ainda imune em regra geral, do “veneno” do comunismo. Por conseguinte,
a Missão Rural foi organizada por orientação do Vaticano, mas nossa hipótese é que, com o tempo,
esse experimento ganhou características próprias no Rio Grande do Norte, dentre as quais devemos
ressaltar a experiência de politização das comunidades rurais exploradas pelo paternalismo que ainda
era recorrente no interior do estado não sendo esse fenômeno meramente local também regional.
A formação e preparação de lideres comunitários, formação de clubes (agrícolas, das mães,
masculinos e etc) centros sociais de comunidades e atividades.
A formação das Escolas Radiofônicas
Para nosso melhor entendimento devemos compreender o porquê e o para quê do
discurso de formação das Escolas Radiofônicas no Rio Grande do Norte.
O movimento de formação das Escolas Radiofônicas retoma as mesmas diretrizes dos
movimentos de alfabetização do governo federal das décadas de 1940 e 1950. O MEB em si nasce de
uma proposta católica de usar as emissoras de rádio para repor um projeto que já existente do
Ministério da Educação chamado SIRENA (Sistema de Rádio Educativo Nacional), que estava sendo
feito em conjunto com a Igreja Católica. A grande inspiração para a construção do projeto das Escolas
Radiofônicas era a experiência de Sucatenza, na Colômbia, onde os recursos paroquiais foram
utilizados a criação de um sistema de alfabetização no meio rural por meio da radio fusão. Nossa ideia
é que essa experiência foi trazida para Natal adaptada a uma ótica diferente, uma vez que Natal já
possuía um Sistema de Amparo Rural (SAR).
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Outro feito inédito de Natal para esse sistema era que as primeiras Escolas de Serviço Social
que foram fundadas no Brasil eram pertencentes ou estavam ligadas direta ou indiretamente à Igreja
Católica, sendo a Escola de Serviço Social de Natal a primeira desse sistema essas Escolas de Serviço
Social possuíam um dinamismo próprio, mesmo com um teor e um ranço paroquial, essas escolas
servem para a compreensão do que conhecemos na década de 1960 como Igreja Progressista, que
passava muito mais a se preocupar com os problemas sócias do que meramente com a Liturgia Diária.
As experiências de Sucatenza foram retomadas na periferia de Natal, em uma pequena
emissora radiofônica, Rádio Rural Católica. D. Vicente Tavora foi o responsável direto por essa
retomada nos anos iniciais do governo João Goulart 1961-1964. D. Vicente Távora traz a proposta de
um projeto grandioso de educação de base, pelo rádio encabeçado pela Igreja Católica através das
emissoras católicas de rádio, esse projeto funda mais de 15 mil escolas radiofônicas no Brasil, essas
escolas estavam centradas no principio pedagógico que procurava trabalhar o tripé (alfabetização,
educação de base e catequese). Como enfatiza Osmar Fávero em sua obra: Uma pedagogia da
participação popular. Analise da pratica educativa do MEB Movimento de Educação de Base. (19611966).
O MEB
O MEB em si foi o grande inovador na pratica educativa que procurava sintonizar-se como
discurso nacional do desenvolvimentismo, utilizando o meio de dar aulas pelo rádio, para um artigo de
comparação as aulas do SIRENA eram gravadas no Rio de Janeiro na Rádio Nacional e transmitidas
posteriormente, já no MEB (Escolas Radiofônicas) a produção era local o material era o que foi
rejeitado em uma campanha de alfabetização do Ministério da Educação, sendo o mesmo reutilizado
pelas Escolas Radiofônicas (MEB).
O professor primário, João Ribas da Costa gerente de relações publicas da Phillips do Brasil,
apresentou uma proposta inovadora e pioneira para a época, a alfabetização de adultos e a difusão da
cultura popular por meio de sistemas radiofônicos com uma recepção organizada, tendo em vista que
o rádio na década de 1950 era o principal meio de comunicação do país..
O professor João Ribas da Costa foi convidado em 1957 pelo Ministro da Educação Clóvis
Salgado da Gama para organizar o sistema Rádio e Educativo Nacional, que tinha como objetivo
combater o analfabetismo através da radiodifusão, instalando receptores cativos em pequenas e
remotas comunidades. O MEB no Governo JK promoveu assim uma cadeia de emissoras para a região
Nordeste. Para que essa região passasse a se integrar nacionalmente com as praticas políticas do seu
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governo. As emissoras católicas iniciariam suas transmissões educativas por esse sistema SIRENA
(Sistema Educacional Rural Nacional), o (SIRENA) e o antecessor do (MEB) onde posteriormente
passa a integrar. As Escolas Radiofônicas do Rio Grande do Norte, onde essas praticas passaram a ser
coordenadas e executadas pela Igreja Católica Norte Riograndense
As Escolas Radiofônicas de Natal (re)utilizavam o material do (SIRENA), pois o mesmo já
possuía uma forte conotação de transformação social, daí para alguns autores, como Osmar Fávero
defende a fusão como algo bem sucedido .
A Phillips divulgou essa iniciativa, o que lhe garantiu mais tarde, a exclusividade na fabricação
e venda dos rádios utilizados nas escolas radiofônicas, bem como a venda de equipamentos sendo o
modelo: Phillips 2509 (rádio padrão das escolas radiofônicas no inicio de 1960).
Em 1958 a Arquidiocese de Natal recebe do Governo Federal, pelo decreto Nº 43.729, de 21
de maio, a concessão de um canal para a instalação da emissora rural (Radio Rural) que foi
inaugurado no dia 10 de agosto do mesmo ano. A primeira aula radiofônica foi transmitida no dia 20
de agosto de 1958, atingindo os municípios de São Paulo do Potengi, São José do Mipibu, São
Gonçalo do Amarante, Touros, Macaíba e Ceara Mirim (todos próximos a Natal).
Já em 1959 o Programa das Escolas Radiofônicas do Rio Grande do Norte possuía 800 lideres
treinados, fato este que permitiu uma recepção dirigida das comunidades em quase todos os
programas da emissora dedicados a temática rural. Um desses programas era o (Semeia a Boa
Semente), que segundo a professora e locutora Maria Araujo de Carvalho em entrevista, relata que no
programa (Semeia a Boa Semente) onde o principal tema tratado era de politização.
“Politização e um processo de percepção de realidade, que faz com que
o homem compreenda a situação, em que vive a partir da compreensão, parte
para modifica-la”
(Arquivo Arquidiocese de Natal. Documento Escolas Radiofônicas.
Caixa 116)
Um dos grandes suportes para as Escolas Radiofônicas como já mencionado era o MEB,
pois as escolas estavam diretamente ligadas a esse segmento do Governo. Em um determinado
momento do inicio da década de 1960 o MEB com o objetivo de dar maior ênfase ao discurso
nacional na parte local criou a Equipe de Politização que possuía a diretriz de elaboração do jornal da
vida rural, através do caderno de politização para discussões (saíram apenas três números bimestrais
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em 1962). Esse era apenas um dos mecanismos de politização das Escolas Radiofônicas. Em 1963 o
MEB produziu o livro ‘Educação para transformar’, leitura dirigida aos jovens e adultos alfabetizados
das Escolas Radiofônicas.
O livro era dividido em três partes para a melhor compreensão dos que estudavam por ele. A
primeira parte versava sobre o papel do líder na educação, o papel do monitor, a segunda sobre o
papel do sindicalismo e a terceira parte sobre a importância do desenvolvimento de uma ‘cultura de
libertação’.
O declínio das Escolas Radiofônicas e do MEB
Após o Golpe de 1964, as verbas federais começaram a diminuir gradativamente, até que em
1965 chegou ao fim o convênio de cinco anos do MEB, assinado entre Igreja e o Governo Federal o
que acarretou no quase total corte das verbas. Daí em diante o MEB Natal se transformaria num mero
programa de alfabetização perdendo sua conotação de politização. Com o lançamento do Movimento
Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), no final da década de 1960, que surgiu como um
prosseguimento das campanhas de alfabetização de adultos, todos os recursos federais migraram para
esse novo programa.
Apesar dos textos oficiais negarem, sabemos que a primordial preocupação do MOBRAL era
tão somente fazer com que os seus alunos aprendessem a ler e a escrever, sem uma preocupação
maior com a formação do homem.
O Mobral foi criado pela Lei número 5.379, de 15 de dezembro de 1967, propondo a
alfabetização funcional de jovens e adultos, visando "conduzir a pessoa humana a adquirir técnicas
de leitura, escrita e cálculo como meio de integrá-la a sua comunidade, permitindo melhores
condições de vida". Apesar da ênfase na pessoa, vemos que o objetivo do MOBRAL relaciona a
ascensão escolar a uma condição melhor de vida, deixando à margem a análise das contradições
sociais inerentes ao sistema. Ou seja, basta aprender a ler, escrever e contar e estará apto a melhorar
de vida.
Tanto o MEB-RN e as Escolas Radiofônicas continuaram operando em pouquíssimas
localidades, porém essas últimas perderam totalmente sua função, pois anteriormente essas Escolas
não buscavam apenas alfabetizar, elas tinham como objetivo a politização do individuo.
Conclusões finais
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Para alguns autores que se propõe a analisar as Escolas Radiofônicas como um segmento maior que
está ligado a o Movimento de Natal. Esse segmento chega ao fim com o Golpe civil militar de 1964,
mesmo que documentos oficiais mostrem que esse referido movimento ainda nos dias atuais esta
ativo, compreendemos que tudo que se passa posterior a 1964 pode ser considerado com outra coisa,
pois as características desses segmentos perdem suas essências devido à truculência do pós 1964, não
existindo mais espaço para certos discursos políticos mesmo que esses discursos fossem proferidos
pelo clero católico. Ou em outra visão o golpe acaba meramente com o vinculo político e contestador
das Escolas Radiofônicas tendo em virtude que as escolas perduram mesmo que precariamente até o
inicio da década de 1970. Então chegamos ao recorte que em 1964 no Brasil estava se desfazendo o
conteúdo politizador das Escolas Radiofônicas do Rio Grande do Norte.
Bibliografia Básica
FERRARI, A. R. Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal. Natal: Fundação José Augusto,
1968.
MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Brasiliense,
1989.
CAMARGO, Candido. P. Igreja e Desenvolvimento. CEBRAP, 1971.
FÁVERO, Osmar. Uma pedagogia da participação popular. Analise da pratica educativa do MEBMovimento de Educação de Base. (1961-1966). São Paulo Brasiliense, 2006.
PAIVA, Marlúcia M. Escolas Radiofônicas de Natal. Uma História construída por muitos (19581966). Rio Grande do Norte: UFRN 2007.
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CHICLETE EU MISTURO COM BANANA: JACKSON DO PANDEIRO E A MÚSICA
NACIONALISTA NO BRASIL PÓS DÉCADA DE 70
Lucilvana Ferreira Barros*261
Roberg Januário dos Santos**262
Resumo: Pós década de 70 no Brasil assistiu-se a tessitura de um ambivalente movimento de desenraizamento e
reavivamento das culturas regionais e locais, onde músicos a exemplo de Caetano Veloso e Gilberto Gil passaram a produzir
composições de caráter comercial propondo um diálogo de certas tradições brasileiras com ritmos estadunidenses- rock, pop,
eletrônico, buscando conectar o Brasil ao mundo. Assim, os artistas tanto voltavam-se para o que estava acontecendo de mais
avançado na música internacional, quanto retomavam a cultura musical nacional. De um lado havia o desejo de ruptura com a
tradição, e de outro, a re-invenção crítica e cultural dessa mesma tradição. Era uma espécie de vontade de abertura para o
mundo, e, ao mesmo tempo, uma volta as origens, um retorno em busca de uma identidade cultural brasileira. Assim, inseridos
neste jogo de modernidade e ambivalência, músicos a exemplo de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, entre outros vão ser reacionados como “representantes” de uma cultura musical regionalista nordestina, sendo o próprio Jackson alvo de um feixe de
imagens e discursos que o instituía enquanto um emblema dos ritmos nordestinos, mais especificamente da música ligeira
nordestina, sendo também retomado a partir deste olhar no final dos anos 1980 e ao longo dos anos 1990 na Paraíba, seu estado
natal. Deste modo, nessa operação historiográfica, buscamos cartografar a origem desses enunciados e investigar as relações
de poder aí implícitas e responsáveis por esta construção, localizando historicamente esses enunciados, buscando compreender
este movimento de regionalização em torno de Jackson do Pandeiro.
1. Introdução
Buscar compreender o movimento por meio do qual Jackson do Pandeiro foi transformado em um
monumento da cultura nordestina, implica inicialmente investigarmos como se deu processo de
territorialização de sua identidade enquanto um artista de destaque na música desta região, buscando
cartografar os jogos de imagens e discursos que o classificaram ao lado de Luiz Gonzaga enquanto um
artista que canta/ anuncia as coisas deste espaço, vindo a tornar-se um de seus “artistas símbolos”,
valorizado e re-ativado em alguns momentos de sua história tornando-se no tempo presente um brasão da
cultura desta região.
1.1 – Território da regionalização
O repertório de músicos nordestinos a exemplo de Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Trio
Nordestino, Marinês, etc., são tomados comumente enquanto representantes de práticas e discursos
culturais ligados à região e às tradições deste espaço, gerando um sentimento de pertencimento e fazendo
crer e sentir imaginariamente o Nordeste. Suas músicas são tomadas como manifestações de uma
“nordestinidade” através da poesia da letra, dos ritmos, dos instrumentos, das roupas, da postura destes
músicos, permitindo relembrar o passado e a “tradição” dos signos da cultura regional. Neste sentido,
Hall afirma que as narrativas culturais:
261
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Mestranda em História- PPGH/UFCG.
Mestrando em História- PPGH/UFCG.
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[...] fornecem uma série de histórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e
rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas, os trunfos
e os desastres que dão sentido à nação. Como membros de tal ‘comunidade imaginada’, nos
vemos, no olho de nossa mente, como compartilhando dessa narrativa. Ela dá significado e
importância à nossa monótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino
nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte. (HALL, 1999, p. 56-57)
Segundo o autor, tais narrativas geralmente enfatizam as origens em termos de continuidade,
tradição e intemporalidade, sendo a identidade representada como primordial, algo que “está lá”, na
verdadeira natureza das “coisas”, algumas vezes adormecida, mas sempre pronta para ser acordada, (re)
ativada. Ainda segundo Hall (1999, p. 48), as identidades nacionais não são coisas com as quais nós
nascemos, mas antes são transformadas com o decorrer do tempo e estão sendo modificadas a cada
momento, assumindo novos contornos de acordo com as situações a que são submetidas. Assim, a
identidade regional atribuída tanto ao Nordeste quanto aos habitantes deste espaço não emergiram no
vazio, mas no interior de uma rede de interesses que o fez assumir no tempo presente a face com a qual
conhecemos.
Dessa forma, buscar entender a tessitura da identidade regional nordestina por meio de sua cultura
musical pressupõe primeiramente tomar este espaço a partir dos vários enunciados e imagens que se
repetiram em diversos momentos históricos e em diferentes discursos, significando não pensá-lo enquanto
uma
homogeneidade,
uma
identidade
presente
na
natureza.
Mas
compreendê-los
como
invenção/fabricação pela repetição ordenada de determinados enunciados, presentes nos diversos
discursos, como sendo definidores na formação do temperamento de seu povo. “Uma espacialidade, pois,
que está sujeita ao movimento pendular de destruição/construção, contrariando a imagem de eternidade
que sempre se associa ao espaço”. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 24).
De acordo com Albuquerque Júnior (1999), a ideia de Nordeste, como a de nordestino, é uma
novidade na historiografia regional, tendo sido construído/inventado no começo do século XX, entre o
final dos anos dez e começo dos anos vinte. Junto com a região de quem é filho, habitante e sujeito, o
nordestino é uma figura que também resulta de vários enunciados, feixe imagético–discursivo. Segundo
esse autor, o feixe de enunciados e práticas emergente nos anos vinte se caracterizou pelo estabelecimento
de uma nova formação discursiva, identificado pelo binômio nacional-popular. Sob este binômio,
qualquer perspectiva regionalista era colocada num lugar de subordinação. É como contraponto a este
movimento de subordinação da nação a região que se assistiu nas primeiras décadas do século XX a
emergência de uma ampla produção regionalista, um feixe de múltiplas imagens, que imprimem
visibilidade e dizibilidade ao texto Nordeste. Vozes que se entrecruzam na rede de poder/saber, vindo da
literatura, da arte, do setor econômico, político, dentro de um processo de codificações, que criam assim,
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os estereótipos que produzem, estabelecem uma verdade que chega a regrar e suprimir a multiplicidade
das imagens, falas e tipos regionais. Dentre esse amálgama discursivo vale ressaltar a emergência do
mercado de música regional nordestina, tendo em seu meio, como agente de enunciação o cantor e
compositor pernambucano Luiz Gonzaga do Nascimento.
Luiz Gonzaga surge na indústria de música regional na década de 40, e é quem melhor nomeia as
imagens e falas do espaço e do ser nordestino. Influenciado pela política nacionalista em valorizar a
cultura regional, ele decide explorar os sons e ritmos deste espaço, contando com o apoio do advogado
cearense Humberto Teixeira que escrevia as letras para as suas melodias. Com essa parceria ele cria o
baião, como um ritmo, um estilo musical, superando o baião que era conhecido como um simples
dedilhado da viola ou a marcação rítmica, feita pelos violeiros - repentistas, entre um verso e outro de
inspiração entre eles. Esse gênero, entretanto, só surge de forma efetiva no cenário musical brasileiro a
partir do lançamento da canção de mesmo nome, “Baião, 1946”, da autoria de Humberto Teixeira e Luiz
Gonzaga.
Assistia-se a tessitura de um novo cenário sócio-político e cultural, caracterizado pelo
desenvolvimento dos meios de comunicação de massa no país. Bem como a urdidura de uma nova
paisagem tanto no Nordeste quanto no Sudeste do país, marcada pelo o êxodo de milhares de homens
pobres, de origem rural, que deixaram seus locais de nascimento para tentar a vida em outras paragens.
Além do estímulo proporcionado pelo mercado de trabalho numa região mais rica, outros fatores, como a
melhoria dos transportes e dos meios de comunicação, contribuíram para a emigração nordestina. Em
relação aos meios de comunicação, o desenvolvimento dos correios, dos jornais de circulação nacional e,
principalmente, a presença do rádio como o mais importante veículo de comunicação de massa contribuiu
significativamente na propaganda das oportunidades do Sudeste e com a própria política de integração
nacional defendida pelo governo federal.
É, portanto nesta confluência do êxodo de nordestinos rumo ao Sudeste, do aumento do poder de
comunicação do rádio e da valorização do nacional-popular que ocorre o grande impulso da música
regional no mercado fonográfico, possibilitando a inclusão de novos artistas nordestinos, com grande
destaque para Jackson do Pandeiro, que fez sucesso cantando cocos e emboladas (SILVA, 2003, p. 85),
Marinês, com o xaxado, e Luiz Gonzaga com baião, então já consolidado como fenômeno de massa,
sendo bastante cultivado por todas as classes sociais e ganhando reconhecimento internacional. Não
obstante, mesmo com reconhecimento internacional, o baião entrou em declínio no período entre 1956 a
1967, e deixou de ser executado nos principais programas radiofônicos. Conforme Santos (2004, p. 62),
os fatores determinantes do “ostracismo” urbano do baião estão relacionados às transformações políticas e
culturais ocorridas na sociedade brasileira entre os anos de 1956 a 1967. Juscelino Kubitscheck, ao
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assumir o governo em janeiro de 1956, apresentava um projeto político ambicioso, denominado “Plano de
Metas”, cuja função era transformar e fazer mudanças na sociedade brasileira. Entre as novidades está a
consolidação da TV como um veículo essencial para o entretenimento dos brasileiros.
1.2- (Carto) grafias do Rei: Tessituras de um corpo efêmero
Foram exatamente os programas de tevê que possibilitaram a Jackson do Pandeiro a oportunidade
de mostrar o seu trabalho e o trabalho de muitos artistas regionais. (MOURA, 2001, p. 238). Desde que
chegou ao Rio de Janeiro, ao lado de sua esposa Almira Castilho263, primeiro provisoriamente em 1954, e
depois de forma definitiva em 1955, que não paravam de fazer sucesso. Já com um LP gravado “Jackson
do Pandeiro”, lançado pela gravadora Copacabana, transformam-se em celebridades na Cidade
Maravilhosa. As várias apresentações nas casas de shows, boates, e estúdios das rádios e TV lhes
trouxeram ampla visibilidade no cenário artístico nacional.
Nesse período a tevê Tupi funcionava como um tipo de casa dos nortistas. Estavam, passaram, ou
passariam por ali Severino Araújo, Sivuca, Moacir Santos, Luiz Gonzaga, Luiz Vieira, João do Vale...
Gente que chegara pelos próprios pés, mas que vinha ajudando a moldar uma cara regional para a
emissora. (MOURA, 2001, p. 238) Foi, justamente para este espaço, que seguiu o artista ao lado de sua
esposa Almira Castilho em 1955 ao aceitar a oferta da emissora de comandar “um programa televisivo
semanal de meia hora de duração, às 20h15 das sextas-feiras, intitulado “No Forró do Jackson”, dirigido
por Mário Provenzano. Era o espaço onde os dois poderiam fazer o que quisessem desde que repetissem o
desempenho rítmico e plástico utilizado nos auditórios radiofônicos”. Era um casal de matutos, fazendo
tipos, cantando músicas folclóricas, contado histórias matutas, como se estivessem no terreiro de um sítio
qualquer do sertão, sempre acompanhados de um conjunto regional formado por dois violões, uma
zabumba, um pandeiro e um trompete. (MOURA, 2001, p. 215-218).
Performance nordestinizada assumida pelos artistas em vários momentos de suas carreiras, e que
ficou estampada nos diversos LPs da dupla ajudando a configurar uma imagem, um rosto para o
nordeste. A produção musical Jacksoniana, assim como a de Luiz Gonzaga, ajudou a legitimar uma
identidade para a região, trazendo em sua tessitura elementos típicos daquele espaço, a roça, o sertão, as
festas juninas, as mulheres, a rudeza, a valentia, etc., construindo no imaginário dos que os (ou)viam uma
imagem da região e de seus habitantes. Entretanto, a atribuição desta identidade regional a sua produção
musical só foi possível através de uma produção discursiva que a tomou como objeto. Como música é
intensidade, é diferença, requer preferências, submetê-la a uma identidade, produzir a semelhança, requer
263
Almira Castilho Figueiredo, cantora, compositora e radioatriz, nasceu em 24/8/1924, em Olinda, PE, e faleceu em
26/2/2011, em Recife, PE. Foi a segunda esposa de Jackson do Pandeiro, com quem viveu, cantou e atuou por doze anos.
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submeter a música a uma rede de comentários, desde comentários críticos das revistas especializadas em
música, as revistas voltadas para a cobertura do rádio, que eram, em grande número, neste momento,
comentários do próprio artista, através de suas entrevistas, bem como de todas as atitudes e hábitos que
passam a compor sua identidade de artistas.(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 177).
Nessa produção discursiva, os programas de tevê, as revistas, os jornais, o rádio tornaram-se
espaços de instituição da musicalidade, do ritmo e dos discursos do artista um elemento atrelado ao
espaço e a região nordestina, e, por conseguinte a nação. Não por acaso, o músico pernambucano
Manezinho Araújo, que outrora havia sido fonte de inspiração musical para Jackson o nomeia em 1954 de
bandeira melódica do nordeste, ajudando a legitimar a sua imagem de testemunha das coisas da região,
que canta a ritmicidade daquele espaço, das feiras, dos cocos, das emboladas, dos forrós, das festas de
São João. Jackson vai sendo investido de uma identidade regional atrelada não apenas a sua musicalidade,
mas em suas inúmeras performances apresentadas tanto nos estúdios das rádios, quanto no palco e no
cinema. A exemplo das nove chanchadas da qual participou entre 1956 e 1962 em conjunto de sua
companheira Almira Castilhos. Dentre estas vale ressaltar “Cala a Boca, Etelvina” de 1959, filme baseado
em um texto teatral de Armando Gonzaga. No, filme os dois comandam um quadro, intitulado Fantasia
Nordestina, onde desfilam algumas músicas de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, incluindo as canções
“Baião”, e “Mulher Rendeira, tornando-se mais uma vez território de enunciação/investimento para a
identidade regional na qual já vinha sendo inscrito.
Todo esse monturo de imagens e discursos foi instituindo uma forma de ver e dizer o artista,
transformando-o em um emblema dos ritmos nordestinos, mais especificamente da música ligeira
nordestina, reduto de autenticidade e brasilidade de elementos culturais da região. Uma malha discursiva
que foi se delineando atribuindo-lhe um lugar, um posto de verdade, de autoridade, uma identidade
atrelada à região e as coisas desse espaço.
Vivendo o período áureo de suas carreiras, com nove LPs gravados e três coletâneas a dupla
ultrapassa as fronteiras da notoriedade outrora centralizadas basicamente em cinco estados: Rio, São
Paulo, Minas Gerais, Recife e Paraíba. Um sucesso talvez nunca sonhado pelo menino magro, negro e
solto no mato, mais parecido com um curumim nascido em uma casinha paupérrima dentro dos limites
das terras do Engenho Tanques, no município de Alagoa Grande, região do brejo da Paraíba, em 31 de
agosto de 1919 (MOURA, 2001, p. 24). Filho da pobreza e do campo, Jackson do Pandeiro teve sua
subjetividade perpassada pelas experiências de ser filho e aprendiz do oleiro José Gomes e da cantora de
coco Flora Maria da Conceição (conhecida por Flora Mourão), uma das mais respeitadas coquistas (ou
coqueiras) de sua região, entre o final da década de 1910 até os estertores da década de 1930 (MOURA,
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NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
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2001, p. 24), quando em consequência da morte de seu pai parte juntamente com sua família para
Campina Grande, em busca de melhores condições de vida.
Foi nesta cidade onde começou a ser desenhada a história desse personagem, ganhando
visibilidade e dizibilidade como músico, enquanto pandeirista de sucesso, começando a figurar como
ritmista de importância na história da música paraibana, é inclusive para este município que ele direciona
boa parte de suas homenagens quando se reporta as lembranças de suas vivências na Paraíba, compondo
ou gravando canções que falam destas cidade, a exemplo de Forró em Campina, 1971, Alô Campina
Grande, 1977, “Forró De Zé Lagoa”,1963, “Lei da compensação”, 1962, Bodocongó, 1966, entre outras.
Um amálgama discursivo enaltecido pelo pandeirista, revelando a sua admiração por Campina Grande.
Foi, portanto, a partir das frequentes apresentações, tanto nas zonas de meretrício em nesta cidade,
nos bailes e festas para os quais era requisitado, e a sua passagem pelo Cassino Eldorado entre os anos
1939 e 1944, que sua imagem de pandeirista de sucesso inicialmente, e “silenciosamente” foi sendo
arquitetada engendrando uma teia de significados responsáveis por produzir o sujeito Jack do Pandeiro,
fazendo juz ao instrumento por meio do qual este se tornaria conhecido nacionalmente uma década depois
quando iniciasse a sua carreira de músico na Rádio Jornal do Comércio em Recife, tornando-se a convite
do locutor chefe da rádio Ernani Séve, intérprete de temas do folclore nordestino, a exemplo de cocos,
baiões, rojões, maracatus, etc no programa Clube da Colher, programa comandado pelo próprio Séve
(MOURA, 2001, p. 14). É nesta emissora que o músico ganha notoriedade, especialmente após o carnaval
pernambucano de 1953, evento em que apresenta-se ao lado da radioatriz Luzia de Oliveira com o coco
“Sebastiana” de autoria do pernambucano Rosil Cavalcanti tornando-se uma “celebridade” na capital do
frevo, levando-o ao reconhecimento em Recife, Rio de Janeiro, e em vários estados e capitais do Brasil,
culminando em sua coroação em de 1960, quando a gravadora carioca Copacabana lança o Long-Play
“Jackson do Pandeiro: Sua Majestade, o Rei do Ritmo”, nomeando-o, imprimindo-o enquanto majestade
do ritmo nordestino, título que carregaria pelo resto da vida.
Não obstante, mesmo com o título e os vários holofotes voltados para seus sucessos, o castelo do
músico, não demoraria muito para sofre um abalo. No final dos anos 1950 teve início um amplo e visível
movimento de eclipse da música regional nordestina em âmbito nacional. Era o início de uma etapa
decadente da música regional, cujo alcance ficou restrito aos focos de resistência musical na cidade e no
quintal do país, o seu interiorzão. Fizeram sucesso, mas ninguém soube disso. (MOURA, 2001, p. 268). A
música que marcou esse divisor de águas na carreira de Jackson foi o samba "Chiclete com banana", do
baiano Waldeck Artur Macedo(Gordurinha) em parceria com Almira Castilho, sendo gravado por
Jackson em 1959. A música à época foi ouvida com uma atenção displicente, como tudo mais gravado
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pelo pandeirista neste período. (MOURA, 2001, p. 268). Esta canção, para além de ser um tecido cultural
que traz escrito em seu corpo as marcas da historicidade de sua produção, pode ser vista como um grito
de guerra, um protesto a invasão da música estrangeira. Jackson, assim, como vários outros músicos de
matriz regional á época sofreu com a chegada do novo cenário musical no país:
Eu só boto bebop no meu samba/ Quando Tio Sam tocar um tamborim/ Quando ele pegar No
pandeiro e no zabumba/ Quando ele aprender/ Que o samba não é rumba/ Aí eu vou misturar/
Miami com Copacabana/ Chiclete eu misturo com banana/ E o meu samba vai ficar assim:
Tururururururi bop-bebop-bebop/ Tururururururi bop-bebop-bebop/ Tururururururi bop-bebopbebop/ Eu quero ver a confusão/ Tururururururi bop-bebop-bebop/ Tururururururi bop-bebopbebop/ Tururururururi bop-bebop-bebop/ Olha aí,o samba-rock,meu irmão/ É, mas em
compensação/ Eu quero ver um boogie-woogie/ De pandeiro e violão/ Eu quero ver o Tio Sam/ De
frigideira/ Numa batucada brasileira264.
Pós década de 1960 no Brasil assistiu-se a tessitura de uma cartografia musical desenraizada do
solo nacional e em constante devir. A emergência de movimentos musicais como a bossa nova, jovem
guarda, e o rock produziram uma geografia cultural que balançou o país e levou cada vez para o seu
interior os ritmos regionais. No topo da hierarquia musical havia a MPB, tida como uma música “culta”, e
aberta a várias tendências, tornando-se amplamente aceita entre os setores intelectualizados da sociedade
e pelas “ousadas” vanguardas jovens, que ora identificavam-se com a MPB, ora com o Tropicalismo.
(NAPOLITANO, 2005, p. 70).
Os “Novos Baianos”, e os roqueiros mais assumidos como Rita Lee, Raul Seixas e o conjunto
“Secos e Molhados”, era o grupo que se destacava como espaço alternativo, a MPB “ortodoxa”,
nacionalista e engajada se consolidando numa linha musical-comportamental amplamente marcada pelo
pop-rock, com incursões na contra- cultura e na música e poesia de vanguarda, reclamando para si a
continuidade das ousadias estéticas e comportamentais do tropicalismo de 68. É importante lembrar,
entretanto, que, por vezes, as preferências musicais das vertentes jovens mais radicais, e dos segmentos
mais voltados para o consumo de MPB engajada poderiam muitas vezes misturar-se. (NAPOLITANO,
2005, p. 71) É o que acontece, por exemplo, com Caetano Veloso e Gilberto Gil, que passam a produzir
composições de caráter comercial propondo um diálogo de certas tradições brasileiras com ritmos
“estrangeiros”- rock, pop, eletrônico, buscando conectar o Brasil ao mundo.
O diálogo proposto pela cultura musical tropicalista era fruto de uma geração de jovens imersos
em um mundo fragmentário de notícias, espetáculos, pop-rock, propagandas, era a emergência de novas
maneiras de se relacionar com o país e com o planeta.
Os músicos voltavam-se para o que estava
acontecendo de mais avançado na música internacional, não desconsiderando, entretanto a cultura
musical nacional. De um lado havia o desejo de ruptura com a tradição, e de outro, a re-invenção crítica e
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"Chiclete com banana", samba- Waldeck Artur Macedo(Gordurinha) e Almira Castilho- Copacabana- 1959.
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cultural dessa mesma tradição.
Era uma espécie de vontade de abertura para o mundo,
internacionalização-cultural e, ao mesmo tempo, um retorno em busca de uma identidade nacional e
cultural brasileira.
Foi inserida nesta geografia de mudanças, que surgiu na década de 1970 a primeira geração do
Forró universitário, fruto da junção do forró tradicional com a musicalidade do pop e do rock. A fusão da
linguagem regional do forró com a linguagem da música popular urbana, mixando tanto os atributos e
valores do rock quanto do forró tradicional, o que gerou uma nova espécie de forró, ganhando adeptos e
apreciadores de várias vertentes da sociedade. É neste segundo momento da história do forró que
assistimos os primeiros artistas a incluírem instrumentos eletrônicos no forró. (SILVA, 2003, p. 17).
O “Brasil” das canções tropicalistas abraçavam de uma só vez o elemento tradicional da cultura e
o ideal moderno da sensibilidade pop, articulando Luiz Gonzaga e Andy Warhol, Beatles e João Gilberto,
baião e guitarra elétrica. O interesse tropicalista de associar no mesmo plano “o tradicional (arcaico)” e o
moderno revelava as pretensões do movimento de se afastarem das concepções de música brasileira
baseadas exclusivamente em características supostamente nacionais- norteadoras da chamada moderna
MPB, realizando uma síntese elaborada do local com o global ao combinar influências nordestinas com
informações do mundo pop.
Foi a partir deste movimento de associação entre o “tradicional e o moderno”, que se assistiu em
1972 o (re) surgimento de Jackson do Pandeiro na mídia nacional, após o período de ostracismo em que
vinha mergulhada a sua carreira ao longo dos anos 1960. Este retorna em 1972 pela voz de Gilberto Gil, a
partir da gravação da música “Chiclete com Banana”, incluída no disco “Expresso 2222”. Gil grava a
canção como uma espécie de volta as origens, um olhar para dentro, para os ritmos nacionais. (MOURA,
2001, p. 268).
A própria canção situava-se como uma forma de Jackson reclamar a atenção do país para os
ritmos nacionais e regionais. É inclusive, a partir desta lógica de reafirmar o compromisso com a música
regional nordestina, ou forró-pé-de serra, que Jackson e Almira gravam entre 1963 e 1965 uma parcela de
discos, todos pela Philips, com uma face e os signos de uma nordestinidade a vista, cantando cocos,
rojões, cirandas, xaxados, quadrilhas, etc. Em algumas de suas gravações, durante ou depois da Jovem
Guarda e da consolidação do rock no Brasil, podemos observar nas composições de Jackson e seus
compositores a crítica ferina aos ritmos que vinham lhe tomando a cena musical. Até quando achavam o
ritmo “bonitinho”, aproveitavam para injetar veneno. É o caso do rojão “Iê- Iê- Iê no Cariri”, de 1976,
composta por Maruim. A história narra uma festa no interior nordestino contaminada pelos novos ritmos.
Ao final da canção, fugindo do script da letra, Jackson lança seu protesto pessoal e afirma: “... esse norte
véi tá perdido”. (MOURA, 2001, p. 280):
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Eu fui no Cariri pra ver/ Caipira dançar o Iê Iê Iê/ Tomei parte na festa de arromba/ Olha ai São
João do Cariri/ Eu chegar francamente até gostei/ E aqui vou contar o que eu vi/ Vi um velho com
mais de oitenta anos/ De calcinha apertada na gandaia/ Dançando com uma velha de setenta/ A
coroa tava de mini saia/ Vi muita caipira bonitinha/ Mastigando/ chiclete no embalo/ E matuto
com pinta de playboy/ Falando na giria como eu falo/ Sanfoneiro tocando Iê Iê Iê/ Pois se o cabra
no fole era raçudo/ Até o Coronel dono da festa/ Esse era um tremendo cabeludo
Essa (re)aproximação com a música regional na década de 1970 também influenciou empresários
da música na criação das casas de forró no Rio de Janeiro e São Paulo, criando esses espaços como
principal local de divertimento do migrante nordestino, após o lançamento do baião, sendo freqüentadas
pelas camadas mais populares, mas também serviram de mercado para artistas e compositores da região.
Segundo Ferreti (1988, p. 80), frequentando as casas de forró, podia-se perceber que alguns artistas
buscavam se manter dentro do estilo traçado por Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira e Zé Dantas, fazendo
sua música ao som da sanfona, triângulo e zabumba, como Marinês e Sua Gente, Trio Nordestino,
Severino Januário e Abdias. Outros se popularizaram com músicas de “duplo sentido”, como é o caso de
Genival Lacerda e Zé Nilton, ou tocando acordeom com um estilo mais erudito e até introduzindo
elementos jazzísticos, como Dominguinhos, Oswaldinho e Sivuca. Misturando música nordestina com
certa dose de rock, também aparecem nos anos de 1970 Alceu Valença, Elba Ramalho e Fagner. Foi
inclusive, em companhia desta nova geração de músicos que Jackson participou no final dos anos 1970 do
Projeto Pixinguinha, percorrendo vários estados e capitais do Brasil, a exemplo de Rio de Janeiro, São
Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte e Brasília, retomando o fôlego de sua carreira, aproveitando
o impulso dado a música regional nesse novo e favorável cenário musical, concedendo entrevistas,
reaparecendo nos programas de rádio e TV, fazendo vários shows.
A música nordestina, que no final dos anos de 1960 fora considerada semelhantes à dos Beatles,
dez anos depois foi apresentada à juventude como próxima do “reggae”, especialmente no caso do xote.
O próprio Luiz Gonzaga em 1979 buscou alternar os ritmos em suas apresentações, “para não cansar o
público”, dois anos depois exibia em seu repertório uma seleção de xotes (FERRETTI, 1988, p. 81).
Tratava-se de um trabalho de contínua reelaboração dos ritmos, atualizando-se e adaptando-se aos seus
diferentes públicos. Nesta esteira, sua vinculação a um público mais exigente impulsionava a mudança de
instrumentos tradicionais (sanfona, triângulo e zabumba) por outros mais modernos (guitarra, piano e
flauta), e assim velhos sucessos foram reelaborados. Uma característica também presente na carreira de
Jackson durante este momento. Apesar de menos tolerante com os novos ritmos, o pandeirista no disco
Aqui Tô Eu de 1970 adiciona elementos característicos dessa passagem de tempo, a começar pela capa.
De acordo com Moura (2001), a capa era uma re-leitura do dico Abbey Road, de 1969, onde os Beatles
atravessavam uma faixa de pedestres nas imediações da EMI londrina, “Jackson também aparece numa
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faixa de pedestres, segurando um violão, sorridente, em plena Avenida Rio Branco, nas proximidades da
sede da Philips”.
Essa postura se tornou mais expressiva a partir da convivência de Jackson com os músicos da
banda de Alceu Valença, (formada para acompanhar o cantor pernambucano durante as apresentações do
Projeto Pixinguinha em 1978), e o conjunto Borborema, grupo musical que acompanhava Jackson,
composto por amigos e familiares do ritmista265. As viagens e as apresentações ao lado da banda e do
cantor pernambucano o tornaram “mais flexível” em relação aos mais variados ritmos e instrumentos,
chegando a ser reconhecido como o músico que harmoniza samba e rock, samba e forró, frevo e música
de terreiro no mesmo gogó.
Assim, o forró considerado tradicional foi se adaptando às novas tecnologias e formas de vender
música, e para isso se adequando aos novos formatos, a exemplo do forró universitário engendrado
durante a década de 1970 quando já não se falava mais em baião, porém em forró. Quem melhor ilustra
este contexto é a Pesquisadora e jornalista francesa Dominique Dreyfus, quando fala da transformação da
música do Nordeste ao misturar baião e rock, oito baixos e baixo elétrico, repente e poesia concreta,
folclore e futuro. Segundo essa pesquisadora, na década de 1970, não eram exatamente o baião, o xote, o
xaxado ou a toada que interessavam ao público urbano, mas o “forró”:
Ora no final da década de 70, a palavra forró – nas zonas urbanas – adquiriu um segundo sentido,
exatamente como sucedera no início do século com a palavra samba. O forró, que significava
originalmente “baile”, passou a designar também o ritmo sobre o qual se dançava no baile.
Sintoma de novos tempos, nos quais imperavam os grandes bailes funks, as discotecas gigantescas,
a moda do forró oferecia ao público urbano mais uma opção de dança. (DREYFUS, 1996, p 275)
No final dos anos 1980, início dos anos 1990, este cenário torna-se ainda mais complexo com a
emergência e propagação forró eletrônico, abrindo o caminho para as bandas responsáveis por mudanças
na estética musical e na indústria da música nordestina. O Novo Forró, ou Forró Eletrônico, como ficou
conhecido, emergente no Nordeste do País no final do século XX e início do século XXI, causaria um
descompasso na “tradicional música nordestina”, emergindo como produto de um solo frágil, instável,
resultante de uma onda de mudanças sócio-econômicas e culturais que atingiam o país e
consequentemente o Nordeste nas últimas décadas do século XX, fazendo com que músicos a exemplo de
Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Marinês, Trio Nordestino, Dominguinhos, entre outros fossem
levados para outra categoria na história da música nordestina, passando a ser identificados como
“representantes do forró tradicional”, dos “autênticos ritmos regionais”, passando a serem (re)ativados
como portadores da memória musical deste espaço, de uma cultura em vias de desaparecimento, portanto
265
Com mais frequência composto por Severo que tocava Acordeon, Cícero (irmão de Jackson) que tocava Zabumba, e João
Gomes- Tinda (irmão de Jackson) que tocava Triângulo, ainda haviam outros músicos itinerantes que geralmente
acompanhavam no pandeiro e violão.
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rara, os representantes de uma cultura musical em mutação, imprescindível de ser mantida, vigiada,
imortalizada, produzida como verdadeira.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo:
Cortez, 1999.
DREYFUS, Dominique. Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga. São Paulo: Editora 34,1996.
FERRETTI, Mundicarmo Maria Rocha. Baião dos dois: Zédantas e Luiz Gonzaga. Recife: Massangana,
1988.
HALL, Stuart. (1999) A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva
e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro, DP&A.
MOURA, Fernando; VICENTE, A. Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo. São Paulo: Ed. 34, 2001.
NAPOLITANO, Marcos. História & Música- História cultural da música popular. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002.SILVA, Expedito Leandro. Forró no Asfalto: mercado e identidade sociocultural. São
Paulo: Annablume, FAPESP, 2003.
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CULTO ÀS LETRAS: O CASO DREYFUS E A CONSTRUÇÃO DO INTELECTUAL
NATALENSE (1898-1899)
Maiara Juliana Gonçalves da Silva*
Resumo: No ano de 1898, a cidade do Natal experimentava um desenvolvimento cultural. O desenvolvimento cultural na
cidade era conduzido por grupos de escritores mediante suas produções culturais. O grêmio literário “Le Monde Marche”
(1894) e “Polymathico” (1897) compunham o universo das associações literárias que reuniam os homens de letras
responsáveis pela produção cultural e o avivamento do gosto pela literatura na capital potiguar. Ainda que as duas agremiações
literárias conduzissem as produções culturais na urbe natalense, estas também apresentavam algumas disparidades. Enquanto o
“Grêmio Polymathico” era constituído por membros do grupo republicano de Pedro Velho, dispusessem de um amplo e
equipado espaço destinado às sua redação e possuíam um maior reconhecimento no universo das letras na cidade de Natal; o
grupo literário “Le Monde Marche” era constituído por indivíduos à margem dos cargos políticos, com carentes instalações de
redações e tipografias e de nomes pouco conhecidos na história da produção cultural natalense. Apesar dos distanciamentos
mencionados, os grupos literários “Polymathico” e “Le Monde Marche” articularam a constituição da identidade do
“intelectual natalense” por meio do Manifesto à Émile Zola – romancista francês envolvido no caso Dreyfus e perseguido pelo
governo francês – que convoca a “mocidade que afirma, nas letras, tão simpaticamente e auspiciosamente, a sua existência”. O
presente trabalho tem como objetivo discutir acerca da tentativa de uma constituição da identidade do intelectual natalense,
conduzida pelos grupos responsáveis pela produção cultural na cidade potiguar a partir do caso Zola-Dreyfus na França
republicana.
Palavras-chave: Produção cultural, intelectuais, grêmios literários, Natal
Bello dever humano esse de solidariedade moral e mental tão superiormente cumprido
pela mocidade de alguns paizes mais cultos do mundo na manifestação de sympathia e
adhesão enviadas ao grande mestre da literatura contemporanea.(...) O apoio moral dos
semelhantes é sempre um grande conforto e um grande incitamento para o homem, seja
elle Zola ou o mais obscuro dos operários. O Gremio Polymathico levanta a sua voz em
apoio a Émile Zola. O Gremio solicita o suffragio de toda mocidade do Rio Grande do
Norte, desta mocidade que nas lettras em que o grande mestre é rei, começa a affirmar tão
sympathica e auspiciosamente a sua existencia, para uma mensagem que vai dirigir ao
autor dos Rougon-Macquart, de Lourdes, de Rome, e da mais divina obra de sua vida
gloriosa – a defesa convencida de um homem que julga innocente que é condenado por
milhões de homens. Antônio de Souza – presidente, Auta de Souza, Alberto Maranhão,
Manoel Dantas, Augusto Lyra, Pedro Avelino, Thomas Gomes, Homem de Siqueira,
Henrique Castriciano.
(A REPÚBLICA, 1898, p. 1)
O ano de 1898 consistiu no ano de pleno desenvolvimento do universo literário na capital do Rio
Grande do Norte. No fim do século XIX, havia quatro agremiações literárias na capital: o grêmio literário
Le Monde Marche (1894), o grêmio Polymathico (1897), o Congresso Literário (1896) e o grêmio Castro
Alves (1897). Os quatro grupos reuniram os homens de letras responsáveis pela produção cultural na urbe
potiguar. As mencionadas associações literárias atuaram também na publicação de periódicos voltados
*
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bacharel nessa
mesma instituição. Este artigo compõe sua pesquisa sobre as atividades intelectuais na cidade do Natal durante o período da
Primeira República, sob a orientação do prof. Dr. Raimundo Pereira Alencar Arrais. E-mail: [email protected]
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para a produção literária, sendo esses, respectivamente: Oásis (1894), a Revista do Rio Grande do Norte
(1898), A Tribuna (1897) e O Íris (1897). A cidade do Natal experimentou um ânimo intelectual com a
circulação dos periódicos literários e as reuniões e conferências literárias nos cantões, espaços onde os
letrados reuniam-se para discutir literatura e artes266.
No dia 10 de Março de 1898, o jornal A República publicou, em sua primeira página, a
Manifestação à Zola do Grêmio Polymathico. A associação literária iniciou o manifesto em apoio ao
romancista francês Émile Zola que estava envolvido no caso do capitão Alfred Dreyfus e vinha sendo
perseguido pelo governo republicano da França por crime de difamação. Os homens de letras da cidade
do Natal pertencentes ao grupo literário Polymathico difundiram seu manifesto no principal jornal em
circulação no estado: o periódico do Partido Republicano do Rio Grande do Norte fundado pelo exgovernador Pedro Velho267. Como podemos perceber, a declaração do Polymathico convoca a mocidade
“que se afirma tão sympathica e auspiciosamente a sua existencia nas letras” a fazer parte da
manifestação de intelectuais – movimento que aglutinou, e fez surgir, os autodenominados intelectuais
franceses que se colocaram contra a condenação “injusta” do capitão do exército francês, o judeu Alfred
Dreyfus.
O caso Dreyfus é como o evento ocorrido na França, no qual Alfred Dreyfus foi condenado por
traição do exército francês, no ano de 1894, por, supostamente, redigir uma carta endereçada ao tenentecoronel alemão Schwarzkopen – conhecida como Le Boreaus – contendo uma lista de recursos franceses
que poderiam ser concedidos à Alemanha em troca de recursos econômicos. Em novembro de 1897, o
irmão de Alfred Dreyfus, Mathieu Dreyfus, descobriu que o verdadeiro responsável pela carta foi
Charles-Ferdinan Walsin Esterhazy. O escritor francês Émile Zola, indignado com o erro da condenação,
expôs o caso no jornal literário francês L’Aurore. O protesto de Zola no jornal foi procedido de um
manifesto, no qual o escritor reuniu as assinaturas de outros escritores, professores, estudantes e artistas
266
Os cantões eram espaços destinados a reunir determinados grupos na cidade. Um dos cantões relatados era a residência de
Urbano Hermilo, empregado da Fazenda do Estado. Sua residência, localizada na Rua Nova – atual avenida Rio Branco –
servia de local de reunião destinado a discussão de arte e literatura. O cantão era frequentado por Alberto Maranhão, Henrique
Castriciano, Manoel Dantas e Pinto de Abreu. Um segundo cantão de que se têm relatos consistia no café Potyguarania,
propriedade de Ezequiel Wanderley. Este cantão contava com a frequência de Uldarico Cavalcanti, Antônio Marinho, Aurélio
Pinheiro, Alfredo Carvalho e os irmãos Wanderley (Renato e Segundo). “Cantão de gente moça, trocando ideias sobre
jornalismo, artes e letras, tudo quanto nesse momento atraia a atenção da cidade” Para mais informações sobre cantões na
República em Natal, conferir: MELO, Pedro de Alcântara Pessoa de. Natal de ontem: figuras e fatos de minha geração. Natal
/RN: Sebo Vermelho, 2006. P. 14-18.
267
A República foi um jornal fundado por Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, para servir de órgão divulgador das ideias
republicanas no Estado no ano de 1889. O primeiro número de A República circulou no dia 1º de Julho de 1889. Até a
proclamação da República espalharam-se vinte edições, todas à segunda-feira ao preço de cem réis. Com a chegada de Pedro
Velho ao poder, A República constituiu-se como o principal órgão do governo oligárquico natalense. Possuía oficina própria e
contava com a colaboração de personagens notáveis ligadas ao grupo dominante do governo do Estado. Para maiores
informações, conferir: FERNANDES, Luiz. A Imprensa periódica no Rio Grande do Norte (1832 a 1908). Fundação José
Augusto: Sebo Vermelho, 1998.
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em prol da inocência de Alfred Dreyfus. O manifesto de Zola foi intitulado de “Manifesto dos
intelectuais”. Em 1898, o governo francês perseguiu Émile Zola e “os intelectuais franceses” devido ao
movimento em apoio a Alfred Dreyfus (BEGLEY, 2010, p. 17-127).
O caso Dreyfus representou a primeira vez em que o termo “intelectual” foi usado. O “intelectual”
de Zola e demais dreyfusard268 consistiram em homens de letras e da ciência em favor da causa justa,
defensores e denunciadores da injustiça que se posicionaram contra o poder do Estado da França
republicana. A repercussão transcontinental do “Manifesto dos intelectuais” atravessou o Atlântico e
contagiou os letrados da cidade do Natal. Mas como? Por que? O presente trabalho tem por objetivo
discutir a construção do intelectual natalense a partir do caso Zola-Dreyfus conduzida pelo grupo literário
Polymathico. Pretendemos analisar a adesão e a identificação dos homens de letras da capital potiguar ao
movimento francês, pontuando as contradições da apropriação dessa identidade no que diz respeito à
origem e condição social do grêmio Polymathico. O recorte temporal estabelecido nesse artigo (18981899) diz respeito ao período no qual o caso Dreyfus-Zola e o “Manifesto dos intelectuais” ganharam
visibilidade e apoio de todos os grupos literários na urbe natalense. Em outras palavras, pretendemos
discutir aqui a tentativa de construção da identidade de “intelectual de Natal”, a difusão desse discurso e
suas incoerências.
O “Manifesto dos Intelectuais”: da França para Natal
Nascido em Paris no dia 02 de Abril de 1840, Émile-Édouard-Charles-Antoine Zola ocupou
singular posição na vida literária da época. Após a morte do pai François Zola, Émile Zola passou por
complicações financeiras o que o levou a trabalhar em inúmeros escritórios parisienses ocupando cargos
de pouca influencia. No entanto, apesar das dificuldades financeiras, Zola tornou-se um romancista de
sucesso, sobretudo após a publicação da série Rougon-Macquart, composta por 20 romances que narram a
história da família Rougon-Macquart durante o segundo Império francês aprofundando o painel familiar,
isto é, um estudo fisiológico da família que combinava romance e suas teorias naturalistas. Escritor e
jornalista, Zola também atuou como chefe da Escola Naturalista, e presidente da Sociedade dos Homens
de Letras (1895). Depois da difícil infância, Zola atingiu prosperidade e tornou-se um consagrado
romancista francês (WINOCK, 2000, p.22-54).
Em dezembro de 1897, Émile Zola escreveu o primeiro artigo a favor de Alfred Dreyfus
identificando o militar como vítima de um erro judiciário na Revue Blanche. Zola também escreveu suas
268
Os dreyfusards consiste em uma denominação recorrente aos intelectuais franceses que se colocaram contra a condenação
de Dreyfus e o governo francês. Para consulta: WINOCK, Michel. O século dos intelectuais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil
2000, p. 13-198. Primeira parte: os anos barres.
378
ISBN: 978-85-425-0007-3
PEREIRA, Henrique Alonso de A. R., CARVALHO, Haroldo Loguercio, VARGAS
NETTO, Sebastião L. F. (orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional Estados
Americanos. Natal: UFRN, 2012.
impressões sobre o caso – e a defesa à Dreyfus – na revista Le Figaro. No ano de 1897, a discussão
acerca da possível inocência de Alfred Dreyfus ocupava as redações de jornais e os salões literários
parisienses. O descontentamento dos leitores de Le Figaro com os artigos de Zola resultaram no interdito
dos escritos do romancista francês para a revista. Três anos depois a condenação de Dreyfus, a opinião
pública francesa ainda estava condicionada pela imprensa nacionalista e antissemita que defendeu
fervorosamente a condenação do “traidor judeu” (BEGLEY, 2010, P. 54). Interditado em Le Figaro,
Émile Zola passou a editar um folheto que foi posto à venda em 14 de dezembro de 1897 intitulado de
“Carta à juventude”. Juntamente com o político socialista Georges Clemenceau, Zola organizou o círculo
dos dreyfusards – homens em apoio à verdade e à justiça no caso de Alfred Dreyfus – constituindo um
movimento em prol da revisão da decisão do tribunal que tinham condenado o capitão (WINOCK, 2000,
p.25-28).
Em 11 de janeiro de 1898, realizou-se a Corte Marcial para julgar a suposta culpa de CharlesFerdinan Walsin Esterhazy. Em voto unânime Estherzahy foi absolvido o que representou um golpe
abalável no movimento organizado pelos dreyfusards. Dois dias depois (13), Émile Zola public

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