Protocolo 242.538 – Mandato – poderes especiais

Transcrição

Protocolo 242.538 – Mandato – poderes especiais
QUINTO REGISTRO DE IMÓVEIS DE SÃO PAULO
Sérgio Jacomino, Registrador
Protocolo 242.538
Interessado: VALTUIR BARBOSA FÉLIX.
Mandato – poderes especiais..
Para a alienação ou oneração de bens imóveis é necessário mandato com poderes expressos e especiais, nos termos do art. 661, § 1º do CC.
SÉRGIO JACOMINO, 5º Oficial de Registro de Imóveis da Capital de São Paulo, atendendo ao
requerimento formulado por VALTUIR BARBOSA FÉLIX, nos termos do art. 198 da Lei 6.015/73, vem suscitar
dúvida, pelos motivos e fundamentos seguintes.
Procedimentos preliminares
Em 26 de janeiro de 2011, este registro acolheu (em reingresso) o instrumento particular de
compra e venda com alienação fiduciária em garantia firmado entre RICHARD LEE HALVERSON e outros e
VALTUIR BARBOSA FÉLIX e sua mulher, tendo por objeto os imóveis matriculados sob números 31.856 e
31.857.
O título foi prenotado sob número 242.538, em data de 26 de janeiro, permanecendo a
prenotação válida até solução deste procedimento.
Examinado, o acesso do título esbarra no seguinte óbice:
Necessidade de mandato com poderes especiais para a alienação de bens imóveis (art. 661, § 1º do CC);
Passo a examinar a exigência, apresentando a Vossa Excelência o entendimento deste
Registrador.
Mandato – poderes especiais e expressos
Os vendedores MARA REGINA PIVA HALVERSON e seu marido RICHARD LEE HALVERSON são
representados por MARISABEL PALMA PIVA, que também comparece no instrumento como alienante, nos
termos da procuração lavrada em 28 de outubro de 2002 no 1º Tabelião de Notas de Assis, São Paulo
(livro 378, fls. 207).
A controvérsia cinge-se a definir a qualidade dos poderes conferidos pelo instrumento de
mandato conferido a MARISABEL PALMA PIVA.
Reza o art. 661 do vigente Código Civil:
Art. 661. O mandato em termos gerais só confere poderes de administração.
§ 1º Para alienar, hipotecar, transigir, ou praticar outros quaisquer atos que exorbitem da administração ordinária,
depende a procuração de poderes especiais e expressos.
A questão passa, portanto, por definir o que sejam poderes especiais e expressos e, ato
contínuo, verificar se a procuração outorgada preenche esta exigência legal.
Em primeiro lugar, destaque-se que a redação da procuração lavrada no 1º Tabelião de Assis
sugere mandato para simples administração: são conferidos “amplos e gerais e ilimitados poderes para
gerir, reger e administrar todos os bens móveis e imóveis”. Esta cláusula preliminar ilumina o contexto.
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A verba tabelioa incorre em certa imprecisão ao circunscrever os limites dos poderes no
âmbito da gerência e administração dos bens, atraindo, tal mandato, para a órbita do caput do art. 661
(“o mandato em termos gerais só confere poderes de administração”). Tal mandato pode ser expresso,
mas não é específico. Averbe-se que se não desconhece, em doutrina, a perfeita regularidade de atos de
alienação que são inerentes aos poderes de administração (por todos: CARVALHO SANTOS, J. M. de.
Código Civil brasileiro interpretado. Direito das Obrigações. Vol. XVIII, 12ª ed. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1993, 159-160 passim), que não se equivalem ao caso aqui discutido.
Para alienação ou oneração de bens imóveis a lei exige mandato com a conjugação de poderes
especiais e expressos. Poderes especiais, na lição de SERPA LOPES, consistem na “individualização de cada
um dos poderes conferidos, com um caráter de especificidade”. Já poderes expressos quer dizer que a
manifestação de tais poderes há de ser revelar “exteriormente de um modo a ser compreendida direta e
inequivocamente, não se permitindo uma interpretação por deduções”. (SERPA LOPES. Curso de Direito
Civil. Fontes das obrigações: contratos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, p. 250).
A procuração em tela de fato é expressa, isto é, revela claramente o seu âmbito de incidência,
mas peca pela sua inespecificidade, já que impera, aqui também, um princípio de especialidade dos
poderes, que devem incidir sobre bens perfeitamente especializados e individuados.
A lição de PONTES DE MIRANDA, sempre relembrada, merece ser transcrita por sua clareza e
precisão:
“Mandato expresso e mandato com poderes especiais são conceitos diferentes. É expresso o mandato em que se diz:
‘com poderes para alienar, hipotecar, prestar fiança’. Porém não é especial. Por conseguinte, não satisfaz as duas
exigências do artigo 1.295, parágrafo 1º, do Código Civil que fala de ‘poderes especiais e expressos’. Cf. Código
Comercial, artigo 134, in fine. Poderes expressos são os poderes que foram manifestados com explicitude. Poderes
especiais são os poderes outorgados para a prática de algum ato determinado ou de alguns atos determinados. Não
pode hipotecar o imóvel “a” o mandatário que tem procuração para hipotecar, sem se dizer qual o imóvel: recebeu
poder expresso, mas poder geral, e não especial. Cf. 4ª; Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 20 de abril
de 1944 (R. dos T., 151, 651).” (Tratado. T. XLIII, Rio de Janeiro: Borsoi, 1963, p. 35, § 4.679, n. 3).
O próprio CLÓVIS remarcou sua posição de maneira clara ao comentar o art. 1.295 do código de
1916 (com a mesma redação agora reproduzida no art. 661 do vigente):
O mandato geral, ainda que declare que o mandante terá todos os poderes, libera administratio, somente confere os
da administração ordinária. O mandato para conferir direitos, que excedam da administração ordinária, deve ser
especial, isto é, devem os poderes referir-se, expressa e determinadamente, ao negócio jurídico.
1.a – O mandato relativo a todos os negocios do mandante, omnium rerum não se restringirá aos atos de simples
administração, desde que expressamente conferir poderes para os diferentes atos que os exigem especiais”.
(BEVILAQUA. Clóvis. Código Civil comentado. Vol. V, 2º tomo – obrigações, São Paulo: Francisco Alves, 1926, p. 41).
CARVALHO SANTOS acompanha a doutrina. Diz o grande advogado e tratadista que a questão da
exigência de mandato com podres expressos e especiais não apresenta tão grande dificuldade:
O Código exige não só poderes expressos, mas também especiais, o que vale dizer: para que o mandatário possa
alienar bens do mandante faz-se mister que expressamente a procuração lhe confira poderes para tanto, com
referência a determinado ou determinados bens especializados, ou concretamente mencionados na mesma
procuração (op. cit. p. 165).
Como se vê, a necessidade de conferência de poderes expressos e específicos é da tradição do
direito brasileiro. Mesmo quando se admita procuração em que todos os imóveis do mandante
autorizadamente possam ser alienados, tal circunstância especial deverá ser apontada no instrumento
(cfr., a propósito, as observações de CARVALHO SANTOS, op. cit., p. 163 e 164).
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Jurisprudência
O Conselho Superior da Magistratura enfrentou a questão, tendo o V. Órgão decidido pela
negativa do registro nos casos em que o alienante terá sido representado por procuração com poderes
expressos, porém inespecíficos.
Trata-se da Ap. Civ. 524-6/3. O eminente relator destacou que o art. 661 exige a conjugação
cumulativa de poderes especiais e expressos para alienação de imóveis. Citando a lição de PONTES DE
MIRANDA, acima transcrita, remata:
Conclui-se, pois, que os poderes especiais e os poderes expressos, referidos no § 1º do artigo 661 do Código Civil,
têm significados diversos.
Estes últimos são os referidos no mandato (exemplo: poderes para vender, doar, hipotecar, etc). Já aqueles
correspondem à determinação específica do ato a ser praticado (exemplo: vender o imóvel 'A', hipotecar o imóvel
'B', etc). E o ordenamento jurídico, como já visto, exige a presença de ambos na procuração com o escopo de se
alienar bens.
Isso mais se avulta quando a hipótese envolve a venda de imóveis, cujo alto valor que, em regra, tais negócios
encerram, já impõe, por si só, redobrada cautela, ainda que outorgante e outorgado sejam entre si casados.
Daí decorre o entendimento de CARVALHO SANTOS, citado por ARNALDO MARMITT:
Da necessidade dos poderes expressos e especiais para poder o mandatário alienar bens de propriedade do
mandante resulta, também, a necessidade de constarem na procuração os bens a serem vendidos,
devidamente individualizados, a não ser que os poderes abranjam todos os bens do mandante (Mandato,
Aide Editora, 1ª edição, 1992, p. 182.3).
No mesmo sentido, decidiu o TRF da 5ª Região:
O mandato, para conferir poderes que ultrapassem a simples administração ordinária, deve ser outorgado
em termos especiais, isto é, os poderes devem referir-se, especificamente, determinadamente, ao negócio
jurídico que se tem em mira.
(...)
Os poderes conferidos sempre se interpretam restritivamente. Incidência, na hipótese, dos arts. 145, III, e
1.295, § 1º, do Código Civil, anterior às alterações introduzidas pela Lei 10.406/2002 (Apelação Cível nº
303.001-PB, Relator Desembargador Federal Frederico Azevedo, julgada em 11 de dezembro de 2003, por
unanimidade).
O mandato, assim, embora contenha poderes expressos para alienar, não atribui poderes especiais para a transação
em questão. (Ap. civ. 524-6/3, Serra Negra, rel. Gilberto Passos de Freitas, j. 3.8.2006).
O STJ vem sustentando o entendimento que se fez majoritário na doutrina e na jurisprudência.
O mais recente dos acórdãos foi relatado pelo Ministro LUÍS FELIPE SALOMÃO, cuja ementa (parte) é a
seguinte:
“3. Para realização de negócio jurídico que transcende a administração ordinária, tal qual a alienação de
bens imóveis, exigi-se a outorga de poderes especiais e expressos, com a respectiva descrição do objeto a
ser negociado. Precedentes”. (REsp. 262.777-SP, j. 5.2.2009, rel. min. LUÍS FELIPE SALOMÃO).
Além desse recente julgado, podem ser consultados os seguintes arestos: REsp 79.660-RS, rel.
Min. WALDEMAR ZVEITER, j. 25.11.1996, assim ementado:
CIVIL E PROCESSUAL - ALIENAÇÃO DE IMOVEL - PODERES ESPECIFICOS E EXPRESSOS - MATERIA DE FATO.
I - Tratando-se de ato típico de alienação, que transcende da administração ordinária, a cessão de uso exige
a outorga de poderes especiais e expressos.
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II - A matéria fática da lide, em que se ancorou o aresto recorrido, não pode ser revista em sede de especial
(Sum. 7/STJ).
III - recurso não conhecido.
Vários outros julgados antecedentes trilharam a mesma senda, valendo citar os seguintes:
REsp 31.392-SP, rel. Min. Waldemar Zveiter, j. 25.8.1997; REsp 98.143-PR, rel. min. Carlos Alberto
Menezes Direito, j. 19.2.1998; REsp 170.294-PA, rel. min. Waldemar Zveiter, j. 9.6.1998.
No bojo desses arestos há referência a precedente do Supremo Tribunal Federal (RE 90.779RJ), da relatoria do ministro CORDEIRO GUERRA, assim ementado:
Não nega vigência ao art. 1.295, 1º, do Código Civil, o acórdão que anula doação feita com procuração que
não especifica o bem a ser doado, nem o donatário, quando o mandatário, às vésperas do desquite, usando
procuração genérica com poderes para alienar os bens do casal, doa parte do imóvel da esposa ao filho, à
revelia da mandante, com quem era casado pelo regime da sepração absoluta de bens. (RTJ 96/806, RE
90.779-RJ).
Essa orientação jurisprudencial é longeva. Acrescento, para arrimo das teses, o decido pelo STF
no antigo Recurso Extraordinário 25.851, de São Paulo, rel. min. LUIZ GALLOTTI, assim ementado:
Procuração. Hipoteca. Poderes expressos.
Para hipotecar, exigem-se poderes especiais e expressos. Art. 1295, § único do Código Civil.
Os poderes impressos constantes de instrumento do mandato só valerão, se forem ratificados pelo
outorgante.
Em respeito à lealdade no debate, registro que há precedente do Egrégio Conselho Superior da
Magistratura em que o tema do mandato expresso, porém com cláusula geral e inespecífica, foi
enfrentado e de passagem aparentemente superado. Trata-se da Ap. Civ. 982-6/2, da comarca da
Capital, em que foi relator o des. LUIZ TÂMBARA. Tratava-se de conferência de bens com integralização no
capital social com a subscrição de novas ações ordinárias, o que modula, em parte, a abrangência do
precedente.
Em conclusão, entendo que a procuração apresentada não preenche os requisitos legais para
sustentar a alienação do bem imóvel objeto do contrato privado anexo.
Devolvo a qualificação do título a Vossa Excelência para que possa apreciar soberanamente o
caso concreto e lhe dar o deslinde adequado.
Com os nossos cordiais cumprimentos.
São Paulo, 11 de fevereiro de 2011.
SÉRGIO JACOMINO
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