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EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS Grão Chanceler Dom Washington Cruz, CP Reitor Prof. Wolmir Therezio Amado Editora da PUC Goiás Pró-reitora da Pós-Graduação e Pesquisa e Presidente do Conselho Editorial Profa. Milca Severino Pereira Coordenadora Geral da Editora da PUC Goiás Profa. Nair Maria Di Oliveira Conselho Editorial Edival Lourenço – União Brasileira de Escritores Getúlio Targino – Presidente da Academia Goiana de Letras Heloísa Helena de Campos Borges – Presidente da AFLAG Heloísa Selma Fernandes Capel – UFG Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante – Pontifícia Universidade Católica de Goiás Márcia de Alencar Santana – PUC Goiás Maria Luiza Ribeiro – Presidente da AGL Regina Lúcia de Araújo – Pesquisadora Roberto Malheiros – PUC Goiás Murilo Mendonça Oliveira de Souza Guido de Oliveira Carvalho Organizadores EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS Goiânia, 2016 Extensão Universitária Metodologia e Experiências © by Murilo Mendonça Oliveira de Souza, Guido de Oliveira Carvalho Organizadores Editora da Puc Goiás Rua Colônia, Qd. 240-C, Lt. 26-29 Chácara C2, Jardim Novo Mundo Cep. 74.713-200 – Goiânia – Goiás – Brasil Secretaria e Fax 62 3946-1814 – Revistas 62 3946-1815 Coordenação 62 3946-1816 – Livraria 62 3946-1080 www.pucgoias.edu.br/editora Comissão Técnica Biblioteca Central da PUC Goiás Normalização Anna Claudia Passani Ferreira Revisão Humberto Melo Editoração Eletrônica e Arte Final de Capa Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, GO, Brasil E96 Extensão universitária: Metodologias e experiências / Organizadores, Murilo Mendonça de Souza, Guido de Oliveira Carvalho. – Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2016. 224 p.: 21 cm ISBN 978-85-7103-906-3 1. Extensão universitária. I. Souza, Murilo Mendonça de (org.). II. Carvalho, Guido de Oliveira (org.). III. Título. CDU: 378.4-044.22 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, armazenada em um sistema de recuperação ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia, microfilmagem, gravação ou outro, sem escrita permissão do editor. Impresso no Brasil SUMÁRIO 7 PREFÁCIO 15 APRESENTAÇÃO 19 EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E CONTRIBUIÇÕES DO SEMINÁRIO PARA PROJETOS DE EXTENSÃO (SEMPE) Flávio Pereira Diniz, Dinalva Donizete Ribeiro 47 METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS EM EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: O DIAGNÓSTICO RURAL PARTICIPATIVO (DRP) Murilo Mendonça Oliveira de Souza 67 (RE) PENSANDO A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: UMA LEITURA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA EM EDUCOMUNICAÇÃO NO MUNICÍPIO DE GOIÁS/GO Robson de Sousa Moraes 91 INCONTORNÁVEL ARTICULAÇÃO: UMA ABORDAGEM ÉTICA SOBRE O INVESTIGAR E O INTERVIR NA FORMAÇÃO ACADÊMICA EM SERVIÇO SOCIAL Thiago F. Sant’anna 105 JUVENTUDE, CONTEMPORANEIDADE E DROGADIÇÃO: O CRR GOIÁS E SUAS CONTRIBUIÇÕES À TEMÁTICA PELA VIA DA ATUALIZAÇÃO DE UMA DISCUSSÃO DE VIÉS PSICANALÍTICO ACERCA DOS ASPECTOS QUE ENVOLVEM O ABUSO DE DROGAS NA JUVENTUDE Rosane Castilho 131 A CÂMERA COTIDIANA NA SALA DE AULA: O CELULAR COMO ALVO DA AÇÃO DIDÁTICA Euzébio Fernandes de Carvalho 153 INCLUSÃO DIGITAL E POSSIBLIDADES DE ENSINAR/ APRENDER: EXPERIÊNCIAS DE UM PROJETO DE EXTENSÃO COM PESSOAS ADULTAS Flávia Valéria C. Braga Melo, Diórgenes dos Santos, Junielson D. Barbosa 165 A UTILIZAÇÃO DO MATERIAL DIDÁTICO: MARCADOR TRIGONOMÉTRICO NA APRENDIZAGEM DE CONCEITOS E PROPRIEDADES DE TRIGONOMETRIA EM ESCOLAS DE EDUCAÇÃO BÁSICA Marcelo Henrique Belonsi, Estela Mara Cruz, Rogério Marques Nunes 185 205 CICLO DE ESTUDOS DE WILLIAM SHAKESPEARE: UM PROJETO DE EXTENSÃO PARA ESTUDAR ADAPTAÇÕES CINEMATOGRÁFICAS DA OBRA DO BARDO Guido de Oliveira Carvalho, Sirlene Antonia Rodrigues Costa O LETRAMENTO ACADÊMICO E O CURSO DE EXTENSÃO LEITURA DE TEXTOS ACADÊMICOS Cesar Augusto de Oliveira Casella PREFÁCIO Do começo dos anos sessenta para os anos de agora Carlos Rodrigues Brandão T antos anos depois, poucas pessoas recordam que Paulo Freire começou a sua vida de docente universitário não em algum curso de graduação ou de pós-graduação (muito raros nos anos sessenta), mas com um trabalho diretamente ligado à educação de adultos do mundo urbano e rural. Sua primeira “equipe nordestina” reuniu-se com ele no Serviço de Extensão Universitária (SEC) da, então, Universidade do Recife, hoje Universidade Federal de Pernambuco. Assim, foi pela porta da Extensão Universitária (então chamada “Extensão Comunitária”) que este mestre de todas e todos nós iniciou a sua vida de docente. Retomo um artigo meu sobre a criação do Sistema Paulo Freire de Educação para elaborar algo mais desta vivência quase esquecida de Paulo Freire. Com uma tese intitulada Educação e atualidade brasileira, Paulo Freire prestou concurso para a docência na então Universidade do Recife. Logo nos primeiros tempos de sua carreira, ele participou da criação do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife e ele foi o seu primeiro diretor. Foi através de seu trabalho junto ao Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, que Paulo Freire e sua equipe elaboraram um Sistema Paulo Freire de Educação. Assim, foi como uma atividade de extensão universitária que as primeiras ideias inovadoras de Paulo Freire sobre a educação foram geradas. O começo dos anos sessenta foi o início de tempos de uma intensa atividade inovadora no campo do que chamaríamos, hoje, de ação cultural. 7 8| Diante de um persistente domínio do poder hegemônico sobre o povo, uma ampla ação de algo mais do que apenas uma “contracultura” precisava, com urgência, ser criada e colocada em prática, como uma complexa, integrada e interativa atividade cultural através da educação e, por consequência, uma multi-ação política através da cultura. Paulo Freire viveu intensamente o tempo de instauração dos movimentos de cultura popular, junto com a sua primeira equipe no Nordeste. O que, com frequência, esquecemos, é que as ideias e propostas originais foram gestadas a partir do mundo universitário e da extensão universitária no Nordeste do Brasil. As experiências que foram inauguradas a partir da passagem de Paulo Freire e sua primeira equipe pelo Serviço de Extensão Comunitária da Universidade do Recife apareceram, pela primeira vez, por escrito, no número 4 da Revista de Cultura da Universidade do Recife, com a data de abril/junho de 1963. Paulo Freire e parte dos integrantes de sua equipe pioneira publicaram, então, uma série de artigos. Vale a pena relembrar seus títulos: Conscientização e Alfabetização: uma nova visão do processo, de Paulo Freire (p. 5-22); Fundamentação teórica do Sistema Paulo Freire de Educação, de Jarbas Maciel (p. 25 a 58); Educação de adultos e unificação da cultura, de Jomard Muniz de Brito (p. 61 a 69); Conscientização e alfabetização: uma visão prática do Sistema Paulo Freire, de Aurenice Cardoso (p. 71 a 79). 1 Em um documento em que a ideia central é a da inevitabilidade do “trânsito” em uma sociedade, como a brasileira, dos anos sessenta, e em que o homem aparecerá, não através de algum atributo de sua essência abstrata, mas como um ser que através 1 Na mesma sequência dos quatro artigos originais da equipe de Paulo Freire, foram republicados, no livro, Cultura popular, educação popular – memória dos anos 60, organizado por Osmar Fávero e publicado pela Editora Graal, do Rio de Janeiro, em agosto de 1983. Os quatro artigos saem na parte intitulada: Sistema Paulo Freire, e é justamente para a palavra “sistema” que quero chamar a atenção de quem me leia agora. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 9 do trabalho, intencionalmente realizado, em um mundo dado de natureza, cria cultura e, através dela, cria-se a si mesmo como serno-mundo e cria a sua história, é a própria cultura um campo de ação social transformadora. Daí, jamais admitirmos que a democratização da cultura fosse a sua vulgarização ou, por outro lado, a adoção, ao povo, de algo que formulássemos, nós mesmos, em nossa biblioteca, e que a ele doássemos. Foram as nossas mais recentes experiências, de há dois anos, no Movimento de Cultura Popular do Recife, que nos levaram ao amadurecimento de posições e convicções a que vínhamos tendo e alimentando, desde quando, jovens ainda, iniciamos os nossos contatos com proletários e subproletários, como educadores. Naquele Movimento, coordenávamos o projeto de Educação de Adultos, através do qual lançamos duas instituições básicas de educação e cultura popular - O Círculo de Cultura e o Centro de Cultura.2 O texto seguinte, da série de quatro, foi escrito por Jarbas Maciel. É ele quem discorre com mais dados e fatos sobre o que foi a experiência de extensão universitária da equipe. Maciel começa o seu artigo reconhecendo que foi através do “Método de alfabetização de adultos, o Método Paulo Freire”, que toda a iniciativa da equipe de educadores-autores tornou-se em pouco tempo conhecida. Mas, é a sua versão do que era, então, a própria proposta de outra extensão cultural (o nome antecedente de extensão universitária) o que importa aqui. Ela merece ser transcrita, aqui, na íntegra, porque este é um dos raros momentos em que uma alternativa concreta de realização de ações sociais, com a vocação dos movimentos de cultura popular dos anos sessenta, aparece associada, não a centros ou 2 CP/EP. p. 111. 10 | movimentos autônomos e nem ao movimento estudantil, mas à própria estrutura de uma universidade. Extensão cultural, para nós que compomos a equipe de trabalho do prof. Paulo Freire e que estamos mergulhados numa intensa atividade de democratização da cultura no seio do povo, significa algo mais do que aquilo que lhe é em geral atribuído nos centos universitários da Europa e dos EUA. A extensão é uma dimensão da prérevolução brasileira, desde que ela também - e não só o homem, na expressão feliz de Gabriel Marcel - é situada e datada. De fato, já não se pode mais entender no Brasil de hoje, uma universidade voltada sobre si mesma e para o passado, indiferente aos problemas cruciais que afligem o povo que ela deve servir. [...] No momento atual que vive o Nordeste, não teria sentido uma universidade alienada ao processo de desenvolvimento e, por isso mesmo, inautêntica e marginalizada. Para abri-la, para tirá-la de seu isolamento e inseri-la no trânsito brasileiro, para desmarginalizá-la, enfim, surge a extensão cultural, assestando suas baterias sobre os problemas mais urgentes do nosso hoje e do nosso amanhã. É neste sentido que ela representa uma contradição com a Universidade Brasileira, mas em realidade, reflete, reflete apenas um detalhe de uma contradição maior responsável pelo próprio processo histórico que estamos vivendo.3 Esta compreensão do que deveria ser o fundamento de uma extensão cultural e, depois da extensão universitária, veio a ser, por certo, uma afirmação de identidade e de projetos de ação bastante radical, em um tempo em que, no Brasil, a própria extensão universitária ensaiava primeiros e incertos passos. Tanto no texto, em sua sequência, quanto em outros documentos, a equipe pioneira de Paulo Freire exerce uma crítica dirigida a outras iniciativas que, justamente “naqueles anos”, começavam a ser implantadas no Brasil e em toda a América Latina. O que se propõe não é apenas um serviço estendido às camadas populares um tanto mais ativo e participativo, mas uma 3 MACIEL, Jarbas, Fundamentação teórica do Sistema Paulo Freire de Educação. CP/ EP, p. 127-128, grifos do autor. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 11 radical inversão. O “Serviço de Extensão” deixa de servir, sobretudo, aos interesses da própria universidade através de sua “extensão além-muros”, e passa a destinar-se a ele, ao povo, colocando-se a seu serviço. Isto implica estabelecer um diálogo aberto o suficiente para que a condição de vida e os projetos de sua transformação, tal como vividos e pensados por agentes populares, seja o fundamento de qualquer programa de extensão cultural, a começar pela própria alfabetização. Em seu artigo, Jarbas Maciel anuncia a extensão do método Paulo Freire a todo um Sistema Paulo Freire de educação. Um sistema gerado na universidade, e que deveria desaguar na criação de uma nova universidade popular. Vejamos como a proposta foi apresentada. Foi esse, portanto - e ainda está sendo -, o ponto de partida do SEC, ao lado de seu esforço em levar a Universidade a agir junto ao povo através de seus Cursos de Extensão nível secundário, médio e superior, de suas palestras e publicações e, por fim, de sua “Rádio Universidade”. Todavia o SEC não poderia fazer do Método de Alfabetização de Adultos do Prof. Paulo Freire sua única e exclusiva área de interesses e de trabalho. A alfabetização deveria ser - e é - um elo de uma cadeia extensa de etapas, não mais de um método para alfabetizar, mas de um sistema de educação integral e fundamental. Vimos surgir, assim, ao lado do Método Paulo Freire de Alfabetização de Adultos, o Sistema Paulo Freire de Educação, cujas sucessivas etapas - com exceção da atual etapa de alfabetização de adultos, começam já agora a ser formuladas e, algumas delas, aplicadas experimentalmente, desembocando com toda tranquilidade numa autêntica e coerente Universidade Popular4. Hoje, quando volta à baila a questão da “universidade popular”, é o momento de recordarmos que já no começo dos anos sessenta e através de um programa de extensão universitária, a 4 MACIEL, Jarbas, CP/EP, p. 129, grifos do autor. 12 | equipe de Paulo Freire, pioneiramente, lança a ideia de uma “universidade popular”. A proposta do Sistema Paulo Freire de Educação, a alfabetização de adultos através de seu conhecido Método Paulo Freire, era apenas um dos primeiros patamares. Estas eram, de acordo com o artigo de Jarbas Maciel, como o “sistema” proposto deveria se desdobrar. Primeira etapa - alfabetização infantil. Segunda etapa - alfabetização de adultos (em atividade no SEC, por ocasião da escrita dos textos da equipe pioneira). Terceira etapa - ciclo primário rápido (também com suas atividades iniciadas pelo SEC, em uma experiência na Paraíba, conduzida pelo CEPLAR). A quarta etapa do Sistema, juntamente com a anterior, marca o início da experiência de universidade popular propriamente dita, entre nós. Será a extensão cultural, em níveis popular, secundário, pré-universitário e universitário. Esta é a fase de trabalho atual do SEC, mas atingindo clientelas da área urbana recifense, de nível secundário em diante5. A quinta etapa do Sistema - já esboçada com suficiente profundidade para permitir a presente extrapolação - desembocará tranquila e coerentemente no Instituto de Ciências do Homem, da Universidade do Recife, com o qual o SEC trabalhará em íntima colaboração6. 5 MACIEL, Jarbas, CP/EP, p. 131, grifo do autor. 6 Op. cit. p. 131. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 13 Sexta etapa - a criação de um Centro de Estudos Internacionais (CEI), da Universidade do Recife. Este órgão havia já sido criado e previa uma “intensa transação com os países subdesenvolvidos num esforço de integração do chamado Terceiro Mundo”. Estas seriam as etapas de uma “extensão” de um serviço cultural de uma universidade dos anos sessenta, em direção à criação de alternativas de um trabalho não apenas “para o povo”, mas “com o povo”, como, reiteradamente, esta ideia aparece desde o texto de Paulo Freire. Esta “virada” que em outros momentos aparecerá, também, como uma recriação de cultura, “a partir do povo”, é construída a partir de fundamentos teóricos bastante conhecidos, pois desde o seu primeiro documento a respeito, eles retornaram ao longo de toda a obra escrita e praticada de Paulo Freire. Mais de cinquenta anos depois, podemos constatar, com alegria e esperança, que em diferentes recantos do Brasil – de que a mídia somente noticia com destaque as “crises” – experiências originadas de pioneiros de uma educação popular surgem nos mais diversos cenários universitários. A extensão universitária tem cumprido, aqui, um papel de extrema e crescente importância, como bem podemos ver e compreender ao longo dos artigos deste livro: Extensão Universitária – metodologia e experiências. Sempre defendi que no trinômio clássico: docência-pesquisa-extensão, a “extensão universitária”, em primeiro lugar, deveria mudar o seu nome. Ela nunca deveria ser pensada apenas como uma “extensão”, como um algo a mais, mesmo com o sentido de algo que sai da universidade em direção a comunidades de acolhida, de preferência populares. Acho que mais adequado seria o nome interação ou outro equivalente. No entanto, seja qual for o termo empregado, que a “extensão” deixe de ser a quase irmã caçula e pobre da “trindade universitária”, e venha a ocupar o lugar que uma universidade, de fato 14 | vocacionada a ser comunitária, democrática e popular, deveria assumir. Afinal, é para a sociedade, para o bem-comum (esta expressão esquecida na sociedade capitalista) e para a vida das comunidades, afinal são os lugares da vida de todas as pessoas, que a extensão universitária, a docência e a pesquisa deveriam servir antes de qualquer outra coisa. Em tempos em que cada vez mais se privatiza a universidade e a educação, em que a universidade se vê ameaçada, a cada dia, a tornar-se uma serva do mundo do mercado e das empresas do sistema capitalista em sua fase atual, é hora de nos voltarmos a ideias geradas por Paulo Freire e pelos pioneiros da educação popular. Assim, a universidade participará do árduo trabalho de transformação da sociedade brasileira e, por extensão, do mundo. Que as ideias, as propostas, as práticas e as experiências escritas neste livro sejam um passo a mais neste caminho que estamos sempre reiniciando. Campinas – São Paulo, abril de 2015. APRESENTAÇÃO O conhecimento não se estende do que se julga sabedor até aqueles que se julga não saberem; o conhecimento se constitui nas relações homem-mundo, relações de transformação, e se aperfeiçoa na problematização crítica destas relações. (Paulo Freire) A atividade extensionista representa a ligação mais direta entre Universidade e Sociedade. No entanto, as ações de extensão têm sido pouco valorizadas no contexto acadêmico. Esta realidade decorre, em especial, do entendimento histórico da Extensão Universitária em uma perspectiva assistencialista, o que a situa como categoria de segunda grandeza no “tripé” (Ensino, Pesquisa e Extensão) que sustenta a Universidade. Embora a Extensão Universitária tenha sido definida, no âmbito do I Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, já em 1987, como “processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre a universidade e a sociedade”7, entendemos que não se modificou a forma das instituições acadêmicas visualizarem sua imersão na realidade social. Continuamos a promover uma relação unidirecional, na qual os “detentores do conhecimento” (Universidade) ensinam e os “ignorantes” (Sociedade) aprendem. Sendo entendida de tal forma, a extensão não tem cumprido sua função no âmbito acadêmico e, menos ainda, no processo de transformação da realidade concreta. Este processo pouco dialógico passa, ainda, pela carência no debate que envolve a metodologia 7 FORPROEX. Fórum de Pró-reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras. Documento Final. Extensão Universitária: diretrizes conceituais e políticas, 1987. Disponível em: http://www.renex.org.br/documentos/Encontro-Nacional/ 1987-I-Encontro-Nacional-do-FORPROEX.pdf. Acesso em: 10 de março de 2014. 15 16 | da extensão, que tem sido pautada em uma perspectiva de registro mecânico das atividades desenvolvidas. É necessário que a forma pela qual se efetiva a extensão universitária seja repensada a partir de metodologias críticas e participativas. A coletânea de textos aqui apresentada tem como origem as ações de extensão desenvolvidas no âmbito da Universidade Estadual de Goiás (UEG), além de dois textos produzidos por autores convidados, da Universidade Federal de Goiás (UFG). O objetivo é o de promover uma reflexão inicial em torno da problemática da metodologia em extensão universitária e dispor experiências diversas de ação extensionista, possibilitando a construção de novos caminhos para a Extensão Universitária. Além do renovador prefácio, produzido por Carlos Rodrigues Brandão, que traz as luzes da perspectiva freireana de educação e extensão, o livro reúne dez textos que abrangem uma diversidade de temáticas e áreas do conhecimento, tendo na essencial práxis extensionista a argamassa que lhe fornece unidade. O capítulo de abertura apresenta uma reflexão que tem como base o Seminário para Projetos de Extensão (SEMPE), com debate sobre a emergência de valorização das metodologias participativas nas atividades de extensão universitária. O capítulo que o segue traz exemplo específico em torno do mesmo debate, partido de ações extensionistas em escolas no campo e assentamentos rurais, e apresenta a metodologia “Diagnóstico Rural Participativo (DRP)”. O terceiro capítulo, considerando discussões levadas a cabo em projeto de extensão, materializado em programa comunitário de rádio, analisa a extensão universitária a partir de uma perspectiva popular de sociedade, dialogando, também, sobre a educomunicação e o pensamento latino-americano. O capítulo quatro permite uma reflexão inicial sobre a questão da ética que envolve as atividades de extensão, tendo como ponto de partida para análise o Curso de Serviço Social. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 17 O quinto texto que compõe o livro apresenta, de forma aprofundada e partindo de curso de extensão sobre a temática, o importante debate que envolve a drogadição. Os capítulos seis e sete debatem, em diferentes perspectivas, a questão da tecnologia. O primeiro deles discute questões relacionadas ao uso de celular por alunos em sala de aula, apresentando o “Câmera Cotidiana”, que propõe a produção didática de vídeos, como possibilidade para utilização deste instrumental. O segundo, por sua vez, resulta de curso de extensão de inclusão digital para adultos e também traz reflexão sobre o uso da internet. O sétimo capítulo trabalha, em contexto escolar, com a produção de material didático para o ensino de trigonometria, tendo, na perspectiva construtivista, sua base de desenvolvimento. Os dois capítulos que encerram a coletânea apresentam, respectivamente, dois projetos de extensão: um ciclo de estudos acerca da obra de Shakespeare e um curso sobre a leitura de textos acadêmicos. O primeiro traz reflexões sobre as adaptações da obra do referido autor para o cinema e, o segundo, aborda questões relativas à dificuldade de leitura acadêmica. A partir da diversidade temática e metodológica, esperamos que o presente livro possa contribuir com discussões a respeito da Extensão Universitária, tendo como foco a construção de um processo extensionista popular e dialógico. E que, para além da formação de sujeitos críticos na Universidade, permita, também, a transformação da realidade social, política, econômica e cultural dos espaços, onde a extensão se efetiva cotidianamente. Os Organizadores EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E CONTRIBUIÇÕES DO SEMINÁRIO PARA PROJETOS DE EXTENSÃO (SEMPE) Flávio Pereira Diniz Dinalva Donizete Ribeiro Introdução A s metodologias participativas em extensão universitária estão relacionadas às práticas de pesquisa de intervenção social que se desenvolveram por meio de diferentes quadros teóricos e metodológicos, principalmente a partir da década de 1950. Em se tratando de pesquisa de intervenção social com caráter participativo, podemos afirmar a existência de três tradições: a europeia, a norte-americana e a latino-americana. No que se refere a esta última e ao caso brasileiro, fomos buscar nos trabalhos e publicações do Seminário de Metodologias para Projetos de Extensão (SEMPE) a atualização das discussões acerca de como a extensão universitária tem sido tratada e quais ferramentas têm sido utilizadas e (re)criadas. Nos anos de 2011 e 2013 analisamos as publicações das coletâneas originárias das oito edições do SEMPE (compostas pelos trabalhos apresentados pelos principais estudiosos do tema) e verificamos a hegemonia das experiências orientadas a partir da pesquisa participante e da pesquisa-ação (BRANDÃO, 1983, 1999 e 2006; THIOLLENT, 2007). Apesar de haver pontos de intersecção entre ambas, as mesmas não podem ser tratadas como sinônimo, pois apresentam características e particularidades que as distinguem, ora os seus pontos norteadores se aproximam ora se diferenciam. 19 20 | Pesquisa participante e pesquisa-ação A pesquisa participante de tradição latino-americana se desenvolveu entre os anos de 1970 e 1980. As primeiras elaborações e experiências desta prática estão relacionadas aos trabalhos de Orlando Fals Borda (cf. FALS BORDA, 1983) e Paulo Freire (cf. FREIRE, 1975). O primeiro é considerado pioneiro do que pode se chamar de uma vertente sociológica da pesquisa participante, enquanto o segundo desenvolveu suas contribuições numa perspectiva pedagógica (BRANDÃO, 2006). Brandão (2006), reconhecendo o pioneirismo de Fals Borda e Freire na construção de uma tradição latino-americana de pesquisa participante nas décadas de 1970 e de 1980, aponta a necessidade de considerar os contextos sociais e políticos daquele momento histórico. Esta tradição (a latino-americana), por mais que tenha se referenciado, também, nas tradições europeia e norte-americana, desenvolveu traços específicos, “a começar por sua vinculação histórica com os movimentos sociais populares e com seus projetos de transformação social emancipatória” (ibidem, p. 21). A pesquisa participante “surge mais ou menos ao mesmo tempo em diferentes lugares, origina-se de diversas práticas sociais, articula diferentes fundamentos teóricos e alternativas metodológicas e destina-se a finalidades desiguais” (ibidem, p. 22). A pesquisa participante na América Latina toma como um de seus princípios a crítica à neutralidade e objetividade científica, típicas da sociologia positivista. Conforme Brandão: A consequência deste ponto de partida da pesquisa participante é o de que a confiabilidade de uma ciência não está tanto no rigor positivo de seu pensamento, mas na contribuição de sua prática na procura de conhecimentos que tornem o ser humano não apenas mais instruído e mais sábio, mas igualmente mais justo, livre, crítico, participativo, corresponsável e solidário. Toda a ciência social de um modo ou de outro deveria servir à EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 21 política emancipatória e deveria participar da criação de éticas fundadoras de princípios de justiça social e de fraternidade humana (BRANDÃO, 2006, p. 24-25). Ainda, segundo este autor: Um traço comum à direita e à esquerda das inúmeras iniciativas de associação entre pesquisa e ação social situa-se em uma motivação a tornar as investigações em comunidades populares em algo mais do que um instrumento de coleta de dados. Em tornar o trabalho científico de pesquisa de dados uma atividade também pedagógica e, de certo modo, também assumidamente político (BRANDÃO, 2006, p. 27). No caso brasileiro, iniciativas nesta perspectiva mobilizaram práticas de educação popular ligadas à teologia da libertação e aos movimentos sociais populares. Tiveram influência também na criação e organização das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). A pesquisa vinculada à ação social adota uma via de mão dupla: “a participação popular no processo de investigação” por um lado; e por outro, “a participação da pesquisa no correr das ações populares” (BRANDÃO, 2006, p. 31). A pesquisa vinculada à ação social na tradição latino-americana partiu de diferentes teorias, propostas metodológicas e experiências práticas. Tal fato trouxe variadas formas de denominação e orientação, originando uma multiplicidade de nomes, tais como: pesquisa temática; pesquisa participante; pesquisa na ação; investigação-ação; pesquisa militante, pesquisa-ação; pesquisa popular; entre outras. O materialismo dialético-histórico é considerado o paradigma teórico fundador da tradição latino-americana, mas não deve ser considerado o único. Apesar de sua predominância, devem-se levar em conta outros paradigmas que tiveram influência nesta tradição, tais como o funcionalismo-estrutural, a etnometodolo- 22 | gia, a fenomenologia e o interacionismo simbólico (GABARRÓN; LANDA, 2006). Aqui, colocamos em destaque a pesquisa participante e a pesquisa-ação na América Latina e no Brasil, já que são estas as vertentes que mais influenciaram (e influenciam) as práticas de extensão universitária cunhadas numa perspectiva participativa e transformadora da realidade social. Uma das principais críticas que habitualmente é feita à pesquisa participante (comum também à pesquisa-ação) está vinculada às suas possíveis inconsistências em relação ao padrão científico convencional, sendo comumente consideradas como práticas ideologizadas e descompromissadas com o rigor científico e, por isso, não raro seus resultados são questionados. Em respostas a estas críticas, Brandão assinala: Deve-se reconhecer o caráter político e ideológico da atividade científica e pedagógica. A pesquisa participante deve ser praticada como um ato político claro e assumido. Não existe neutralidade científica em pesquisa alguma e, menos ainda, em investigações vinculadas a projetos de ação social. No entanto, realizar um trabalho de partilha na produção social de conhecimentos não corresponde, em princípio, a pré-ideologizar partidariamente os pressupostos da investigação e a aplicação de seus resultados (BRANDÃO, 2006, p. 43). De acordo com este autor, a pesquisa participante agrega quatro propósitos: objetivo prático (conhecimento das questões sociais que serão trabalhadas); predisposição educativa (estratégia dialógica de aprendizagem e formação política); dispositivo para criação de uma ciência popular (implantação de processos para a composição de uma saber popular); empoderamento dos movimentos sociais populares (processos de formação, objetivando uma transformação social emancipatória). O objetivo da pesquisa participante vai além da busca por melhorias pontuais para deter- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 23 minados grupos sociais, inserindo-se, assim, na luta por significativas mudanças estruturais (ibidem, 2006). A pesquisa-ação, por sua vez, mesmo que contendo algumas similitudes em relação à pesquisa participante (principalmente na crítica e na busca de alternativas às pesquisas convencionais), deve ser tratada de forma diferenciada em relação àquela. De acordo com Thiollent (2007, p. 9-10), “a pesquisa-ação, além de participação, supõe uma forma planejada de caráter social, educacional, técnico ou outro, que nem sempre se encontra em propostas de pesquisa participante” e considera que: A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo (THIOLLENT, 2007, p. 16). As experiências com pesquisa-ação no Brasil alcançam diferentes campos: educação, serviço social, comunicação, desenvolvimento rural, organização institucional, difusão de tecnologias, práticas sindicais, etc. Uma característica que explicita a diferenciação entre a pesquisa-ação e a pesquisa participante está no fato da primeira “focalizar ações ou transformações específicas que exigem um direcionamento bastante explicitado” (THIOLLENT, 2007, p. 80). Os chamados métodos participativos (BROSE, 2001), por muitas vezes inspirados nos pressupostos e experiências de pesquisa participante e pesquisa-ação, geralmente são aplicados em organizações públicas, comunidades rurais e urbanas, programas e projetos de extensão nas mais variadas áreas temáticas, sendo que as práticas de extensão universitária podem se dar a partir de diferentes referenciais metodológicos, dos mais tradicionais aos mais inovadores. 24 | Porém, é nas metodologias participativas que a extensão universitária encontra o arcabouço teórico-metodológico mais propício na busca de processos de interação dialógica entre universidade e sociedade. Verificam-se experiências com aporte destas metodologias em diversos campos e temáticas: trabalhos com populações rurais, tanto em comunidades tradicionais como em assentamentos de reforma agrária a partir de diferentes enfoques e objetivos; assessorias a cooperativas populares nas cidades, como de trabalhos com catadores de material reciclável; na área da saúde, como em atividades de prevenção das DST/HIV/AIDS; educação de jovens e adultos; no setor empresarial; agroindustrial, etc. Estas metodologias de caráter participativo possuem um fórum específico para serem expostas, socializadas e debatidas: o Seminário de Metodologia para Projetos de Extensão (SEMPE). O seminário de metodologia para projetos de extensão (SEMPE) O SEMPE teve sua origem a partir de uma iniciativa da área de Inovação Tecnológica e Organização Industrial, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE/UFRJ). De acordo com seu Projeto-Base8, sua criação foi estimulada a partir da constatação de uma demanda por formação na área de metodologia para projetos de extensão, em particular aquelas de caráter participativo. Caracterizado como espaço de debate que pretende extrapolar os limites institucionais do meio acadêmico, a ênfase constatada no SEMPE, desde sua origem, se refere às metodologias de pesquisa participativa e pesquisa-ação. Suas principais áreas 8 Disponível em: <http://www.itoi.ufrj.br/sempe/index.htm> Acesso em 30.11.2010. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 25 temáticas foram estabelecidas de acordo com o que se considera como questões sociais relevantes, tais como, por exemplo, saúde, educação, desenvolvimento rural, geração de trabalho e renda. Sendo realizado desde 1996, o SEMPE encontrava-se, em outubro de 2013, em sua oitava edição. Os dois primeiros eventos foram realizados pela COOPE/UFRJ, em abril de 1996 e dezembro de 1997. Enquanto o primeiro esteve mais restrito à UFRJ, o segundo contou, também, com a presença de estudantes e professores da Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Pró-Reitores de Extensão e pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), resultando na participação de, aproximadamente, 80 pessoas. O III SEMPE, realizado em agosto de 1999, na cidade de São Carlos-SP, foi organizado pela UFSCar, em parceria com a COPPE/UFRJ e UFF. Contando com professores, estudantes e representantes de Organizações Não Governamentais (ONGs), de estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Bahia, Santa Catarina, entre outros, esta edição alcançou uma participação significativamente maior que as duas anteriores, chegando ao número de 273 inscritos e com a apresentação de 28 trabalhos. A sistematização dos trabalhos deste seminário foi publicada na coletânea impressa, intitulada Metodologia e experiências em projetos de extensão (THIOLLENT; ARAÚJO FILHO; SOARES, 2000). O IV SEMPE, realizado em agosto de 2001, também ocorreu na cidade de São Carlos-SP. Sua realização contou com a parceria entre a UFSCar, UFRJ e a UNIRIO. Nessa edição, houve a apresentação de 46 trabalhos, distribuídos em oito sessões temáticas de comunicação, assim organizadas: saúde; direitos humanos, cidadania e etnia; educação e formação profissional; desenvolvimento local e sustentável; tecnologia e organização do trabalho; comunicação e cultura; cooperativismo e incubação de cooperativas populares. As metodologias em destaque foram: metodologia participativa/pesquisa-ação; 26 | metodologias qualitativas e quantitativas; métodos de diagnóstico; planejamento participativo; pedagogia para o ensino extracurricular; métodos para criação de cooperativas. O V SEMPE foi realizado na cidade de João Pessoa-PB, em outubro de 2003, numa parceria entre a UFPB, UFRJ, UFSCar e UNIRIO. Além das conferências, mesas-redondas, minicursos e oficinas, as sessões de comunicação oral foram organizadas nas seguintes temáticas: cultura e artes; educação; direitos humanos e cidadania; meio ambiente e desenvolvimento sustentável; desenvolvimento local e desenvolvimento de comunidades; tecnologia, questão agrária e cooperativismos; saúde. O VI SEMPE foi realizado na cidade de São Carlos, no mês de agosto de 2008, promovido pela UFSCar. Os trabalhos foram organizados de acordo com as seguintes áreas temáticas: concepção, gestão e avaliação de projetos de extensão; educação; saúde e nutrição; capacitação e gestão hospitalar; desenvolvimento local, design e cultura; agricultura; comunicação (ARAÚJO FILHO; THIOLLENT, 2008). A sétima edição do SEMPE foi realizada na cidade de Natal-RN, no período de 12 a 15 de abril de 2011. Foram aceitos 112 relatos de experiência para apresentação em oito áreas temáticas, assim definidas: comunicação; cultura; direitos humanos e justiça; educação; meio ambiente; saúde; tecnologia e produção; trabalho. A oitava edição do SEMPE ocorreu em Salvador – BA, de 18 a 20 de agosto de 2013. Os trabalhos aceitos (cuja quantidade ainda não tivemos acesso) foram apresentados nas seguintes áreas temáticas: comunicação; cultura; direitos humanos e justiça; educação; meio ambiente; saúde; tecnologia e produção; trabalho. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 27 Quadro 1 – Seminário de Metodologia para Projetos de Extensão (SEMPE) 1996 – 2011. Edição/Ano Local / Organizadores Anais I SEMPE/1996 Rio de Janeiro (RJ) – COPPE/UFRJ Relatório II SEMPE/1997 Rio de Janeiro (RJ) – COPPE/UFRJ Publicados pela COPPE/UFRJ, em 1998, sob o título “Extensão Universitária e Metodologia Participativa” III SEMPE/1999 São Carlos (SP) – UFSCar/COOPPE -UFRJ/UFF Metodologia e experiências em projetos de extensão (THIOLLENT; ARAÚJO FILHO; SOARES, 2000). IV SEMPE/2001 São Carlos (SP) – UFSCar/URFJ/ UNIRIO Extensão Universitária: conceitos, métodos e práticas (THIOLLENT; BRANCO; GUIMARÃES; ARAÚJO FILHO, 2003). V SEMPE/2003 João Pessoa (PB) – UFPB/UFRJ/UFSCar/UNIRIO http://www.prac.ufpb.br/anais/sempe/ vsempeanais/index.html VI SEMPE/2008 São Carlos (SP) – UFSCar Metodologia para projetos de extensão: apresentação e discussão (ARAÚJO FILHO; THIOLLENT, 2008). VII SEMPE/2011 Natal (RN) – UFRN Site do evento: http://www.sempe.ufrn.br/index.htm VIII SEMPE/ 2013 Salvador - BA Site do evento: http://viiisempe.blogspot.com.br/p/ anais.html Fonte: Seminário de Metodologias para Projetos de Extensão (SEMPE), 1996, 1997, 1999, 2001, 2003, 2008, 2011 e 2013. 28 | Contribuição teórico-metodológica do SEMPE à extensão universitária Considerando a amplitude das contribuições do SEMPE e por consequência a necessidade de definirmos uma amostra que fosse representativa das discussões originadas deste evento, priorizamos, para análise e reflexão, os textos teóricos em detrimento dos relatos de experiências. Dentre as publicações das oito edições, foram selecionados três textos do III SEMPE (THIOLLENT; ARAÚJO FILHO, SOARES, 2000); três da IV edição (THIOLLENT; BRANCO; GUIMARÃES; ARAÚJO FILHO, 2003) e duas contribuições do VI Seminário (ARAÚJO FILHO; THIOLLENT, 2008). A seleção deste material levou em consideração três critérios: acessibilidade aos referidos trabalhos; priorização de textos teóricos (relatos de experiência foram excluídos para fins de amostragem); aleatoriedade (os textos foram selecionados sem definição prévia). Apesar de considerável diversificação no campo das metodologias participativas, há uma perspectiva hegemônica no SEMPE: a pesquisa-ação. Neste caso, é preciso destacar o pioneirismo e as contribuições de Thiollent (2000; 2003; 2007; 2008) e sua participação na idealização e criação do evento, sendo perceptível sua influência nos demais trabalhos que compõem o quatro teóricoconceitual e metodológico de todas as edições do SEMPE. No III SEMPE, Michel Thiollent apresentou a comunicação intitulada A metodologia participativa e sua aplicação em projetos de extensão universitária (THIOLLENT, 2000, p. 19-28), apontando que A extensão concebida como campo de experimentação permite um trabalho de grupos universitários com bastante liberdade. Para se aproximar da complexidade das situações sociais em que interagem, esses grupos promovem projetos de caráter interdisciplinar. Sua identidade se define por meio de princípios ou critérios éticos. Entre os principais destacam-se a participa- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 29 ção, o auxílio não-impositivo, a devolução da informação aos interessados, alguma forma de emancipação ou empowerment9. As pessoas atendidas não são vistas como simples público-alvo e sim como atores em suas situações de vida e em suas interações com os grupos universitários (p. 20). Neste sentido, Thiollent propõe a adoção de metodologias participativas em contraposição às metodologias convencionais fundamentadas no positivismo científico, que segundo ele “leva a práticas educacionais diretivas, impositivas ou unilaterais” (ibidem, p. 23), Por sua vez, a metodologia participativa capacita os atores, implicando-os na construção do projeto e no seu desenrolar. Com ela, procura-se obter maior efetividade dos conhecimentos e soluções aos problemas detectados. Discussões e formas de atuação coletivas potencializam o espírito crítico. Criam-se também condições que possibilitam a melhor interação entre participantes de camadas populares e da universidade. (THIOLLENT, 2000, p. 23). Thiollent propõe alguns princípios básicos para a elaboração de projetos de extensão nesta perspectiva: interatividade entre os atores envolvidos; articulação entre os processos de investigação, educação, comunicação e organização; articulação entre conhecimento, informação e ação; produção de conhecimento e estimulação de novas pesquisas; envolvimento de metodologias de pesquisa, educação e comunicação; indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Este trabalho de Thiollent foi composto levando em consideração o tema “Redesenhando a extensão universitária à luz da metodologia participativa” (THIOLLENT; ARAÚJO FILHO, SOARES, 2000). Outros dois artigos compõem este tópico: Elementos para a competência pragmática de projetos participativos de extensão univer9 Tradução livre: empoderamento. 30 | sitária (CARNEIRO, 2000, p. 29-42) e Metodologias participativas para projetos educacionais e tecnológicos (SOARES, 2000, p. 43-54). No trabalho de Carneiro (2000), consta uma discussão a respeito da utilização da pesquisa-ação em projetos de extensão universitária numa perspectiva “lógico-discursiva”, considerando o “valor pragmático do texto (verbal e não verbal)” (CARNEIRO, 2000, p. 29). Neste sentido, propõe uma abordagem pragmática de interação pela linguagem, demonstrando suas potencialidades e apontando suas diretrizes. Segundo o autor: A adoção da pesquisa-ação em projetos de extensão, planejada e desenvolvida segundo os princípios e critérios das áreas interdisciplinares da cognição e da linguagem, propicia, efetivamente, a passagem da condição de indivíduos envolvidos numa situação-problema a sujeitos articulados, que assumem os rumos das ações no sentido da produção do conhecimento ou da resolução dos problemas. De acordo com essa dimensão interativa, a compreensão da linguagem não poderia ficar restrita a um mero instrumento de transmissão de informações, à representação de um sistema formal e abstrato, gerador das frases ou representações de significados virtuais desvinculados de qualquer contexto (CARNEIRO, 2000, p. 39). É o que o autor denomina de perspectiva interacional da linguagem no âmbito das ações de extensão universitária, podendo contribuir para uma maior produtividade e criatividade durante o processo de interlocução entre os sujeitos envolvidos nestas ações. Entre outras coisas, as práticas discursivas são consideradas fundamentais para o êxito dos projetos de extensão. Já no trabalho de Soares (2000), baseado em princípios da pesquisa participante, pesquisa-ação e pesquisa operacional qualitativa, propõe-se uma metodologia no contexto da pesquisa participativa aplicada à pesquisa sociotécnica, denominada provisoriamente de Metodologia para Projetação e Modelagem de Tecnologia com critérios de Sustentabilidade (MPMTS). EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 31 A autora aborda, sinteticamente, a pesquisa participante e dedica especial atenção à pesquisa-ação, referenciando-se nas elaborações de Michel Thiollent. Fundamentada neste autor, Soares explicita as fases pertinentes à concepção e organização da pesquisa: fase exploratória; tema da pesquisa; colocação dos problemas; teoria; hipótese ou diretriz; seminário; campo de observação, amostragem e representatividade qualitativa; coleta de dados; aprendizagem; saber formal/informal; plano de ação; divulgação externa (SOARES, 2000, p. 45-47). A MPMTS é considerada por sua autora como uma variante da Soft Systems Methodology (SSM), aliada às diretrizes da metodologia da pesquisa-ação. Segundo Soares: Essa metodologia deverá ser responsável pela projetação e modelagem de novos artefatos em contextos produtivos regionais, e abordará o conceito de tecnologia sustentável ou endógena [...] A metodologia tratará do projeto de inovações tecnológicas no sentido de que nem tudo que é inovação consistirá necessariamente no que há de mais adiantado em ciência e tecnologia (SOARES, 2000, p. 48-49). A autora descreve, esquematicamente, a proposta de abordagem desta metodologia da seguinte maneira: A MPMTS trata de diversos “mundos”, por exemplo, o mundo simbólico que permeia o mundo real para coleta de informações; o intermediário para análise de dados e momentos de reflexão; o mundo ideal para a projetação e modelagem dos artefatos (produtos e processos); e novamente o mundo intermediário que requer reflexão para adequação do pesquisador na utilização da linguagem adequada para a negociação do modelo projetado; e o mundo real novamente utilizando o processo de negociação para implementação do artefato possível e adequado à situação (SOARES, 2000, p. 50, grifos da autora). 32 | Este é o modelo proposto pela autora, que defende a utilização deste método em atividades de extensão universitária, podendo contribuir na identificação de novos problemas, na coleta de informações, na direção de pesquisas futuras e na ação em novas temáticas originadas deste processo. Estes três trabalhos discutidos no III SEMPE trazem reflexões e propostas acerca da aplicação de metodologias participativas em projetos de extensão universitária. A aplicação da pesquisa-ação à extensão, de Thiollent; a perspectiva interacional da linguagem, de Carneiro; e a MPMTS, de Soares. As duas últimas reúnem elementos da pesquisa-ação articulados com outros métodos e a proposição de um novo método. O ponto de convergência entre os três trabalhos é a adoção da pesquisa-ação como referencial norteador. O IV SEMPE originou a publicação da coletânea Extensão Universitária: conceitos, métodos e práticas (THIOLLENT; BRANCO; GUIMARÃES; ARAÚJO FILHO, 2003). Dos dez artigos publicados nesta edição, selecionamos três para analisar como a extensão universitária tem sido tratada na Universidade e naquele Seminário. São eles: Problematizando a sistematização dos modelos de extensão e de seus referenciais teóricos (BRANCO; GUIMARÃES, 2003, p. 29-44); Metodologia participativa e extensão universitária (THIOLLENT, 2003, p. 57-67); “Ferramentas de linguagem” para metodologias interativas de projetos de extensão (CARNEIRO, 2003, p. 69-87). O trabalho de Branco e Guimarães (2003, p. 29-44) resultou da oficina temática denominada “Referenciais Teóricos e Modelos de Extensão” (ibidem, p. 29), que discutiu o intercâmbio de experiências no intuito de sistematizar os exemplos com a finalidade de aumentar a comunicação entre os grupos de extensão (THIOLLENT; ARAÚJO FILHO, SOARES, 2000, p. 315). Buscou-se trazer à tona as “motivações, as preconcepções, as metodologias e as dificuldades” em torno das experiências em EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 33 atividades de extensão vividas pelos participantes (BRANCO; GUIMARÃES, 2003, p. 30). O texto traz, de forma elaborada, as contribuições provenientes desta atividade do Seminário. Foram feitas considerações a respeito da discussão de como fazer extensão universitária e, também, quais seus principais entraves. Segundo as autoras: As metodologias participativas foram apontadas como primordiais para o planejamento, organização, desenvolvimento e avaliação de atividades de extensão, sendo enfatizada a necessidade de preparação (capacitação) nessa área de conhecimento, bem como em outras que atendam às especificidades dos projetos [...] As atividades, também, devem estar orientadas pelos conhecimentos e diretrizes definidas pelas políticas públicas das áreas específicas aos projetos (BRANCO; GUIMARÃES, 2003, p. 33-34). Notam-se dois aspectos fundamentais, convergentes: a utilização das metodologias participativas nos diferentes processos de interação entre universidade e sociedade, neste caso levados a cabo, especificamente, por meio das ações de extensão universitária, e a orientação destas ações na direção das políticas públicas. Esta vinculação demonstra que o potencial do uso de metodologias participativas em extensão universitária pode contribuir na sua relação com o desenvolvimento de políticas públicas nas diferentes áreas temáticas previstas. Entre as dificuldades apontadas, destaca-se a insuficiência de informações básicas sobre a extensão universitária; o financiamento precário, descontínuo e incerto; e a pequena carga horária destinada às atividades de extensão nas universidades. As autoras, ao discutirem sobre a sistematização dos modelos de extensão e seus referenciais teóricos, remetem a documentos do FORPROEX, como o Plano Nacional de Extensão Universitária e a proposta de avaliação da extensão universitária, ainda em construção naquele momento. 34 | A sistematização dos modelos de extensão passa, também, pelas questões teórico-metodológicas, de gestão e de planejamento da ação [...] Também, precisam ser considerados: a gestão acadêmica e administrativa, no que se refere ao Projeto Político-Pedagógico da Universidade, e sua relação com as Políticas Públicas e aos Agentes Externos, definindo linhas programáticas vocacionadas (BRANCO; GUIMARÃES, 2003, p. 38). Percebemos, neste trabalho, uma explícita vinculação com o discurso extensionista do FORPROEX fundamentando a concepção de extensão universitária nele exposta. Vale destacar que, dentre os trabalhos investigados, este é o primeiro que faz referência direta a questões relacionadas com as políticas públicas. Estas ocupam um lugar específico na forma de fazer extensão universitária. A vinculação da extensão universitária com as políticas públicas, socialmente prioritárias, é uma das condições constantes no processo de sistematização de seus possíveis modelos. O trabalho apresentado por Thiollent no IV SEMPE, Metodologia participativa e extensão universitária (THIOLLENT, 2003, p. 57-67), traz apontamentos sobre procedimentos de metodologia participativa, indicando como ela está contribuindo naquilo que o autor denomina como renovação da extensão universitária. Segundo o autor: A extensão universitária é conduzida por meio de diversas metodologias, mas a metodologia participativa e a pesquisa-ação ocupam, tradicionalmente, um lugar importante em projetos de extensão, compromissada e mobilizadora, especialmente quando se destina às comunidades externas (THIOLLENT, 2003, p. 58). O autor enfatiza a pesquisa-ação, historicamente utilizada como metodologia em projetos de pesquisa, de ensino ou de planejamento (em universidades, movimentos sociais, ONG’s, órgãos governamentais, empresas etc.), como uma das possíveis formas de EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 35 facilitar ou mesmo ampliar a participação nos projetos de extensão universitária, contribuindo para a criação de espaços de interlocução entre comunidade acadêmica e comunidade externa. De acordo com Thiollent, 2003 (p.61), “nos projetos cuja metodologia é baseada na pesquisa-ação, a principal transformação que ocorre no decorrer do processo é a passagem da constatação de fatos observáveis na situação para uma ação transformadora apropriada”. Thiollent identifica as possíveis modalidades de participação em projetos participativos: “participação de atores limitada a uma composição de interesses, como no caso de parcerias; participação com adesão, envolvimento emocional, consenso; participação de atores com diálogo permanente e escolhas sempre negociadas” (ibidem, p. 62). Segundo este autor, esta participação pode ter uma intensidade flutuante no decorrer do processo, mas o seu crescimento é percebido quando ocorre alguma forma de empoderamento por parte dos grupos interessados: “A participação é viável em termos metodológicos, técnicos e operacionais e possibilita uma interlocução entre atores, da qual emergem significações nos planos: social, político, educacional, cultural, etc.” (ibidem, p. 66). No trabalho “Ferramentas de linguagem” para metodologias interativas de projetos de extensão (CARNEIRO, 2003, p. 69-87), o autor retoma e amplia a reflexão a respeito da questão da linguagem nas metodologias participativas em extensão universitária: Entre as várias metodologias participativas existentes, há em comum, princípios e critérios que orientam as ações de modo interativo [...]: métodos condicionados pela situação, com resultado aberto; compartilhamento do sentido e da finalidade por todos; abordagem da situação a partir de diferentes perspectivas; consenso partilhado em relação aos objetivos e às atividades [...] as técnicas recorrentes dessas metodologias são basicamente constituídas pela linguagem [...] resolvemos basear-nos em uma abordagem metodológica que pressupõe a linguagem como atividade interindividual e de caráter sócio-cognitivo (CARNEIRO, 2003, p. 71). 36 | O autor argumenta que em razão das metodologias participativas estarem abertas à alteridade, a linguagem constitui-se como instrumento fundamental para o planejamento, execução e avaliação de atividades de extensão universitária. O caráter dialógico contido nos pressupostos destas metodologias reforça este papel reservado à linguagem. Segundo o autor: Recursos linguísticos e semióticos tornam-se recorrentes de técnicas de projetos, pelo fato da linguagem humana constituir-se em uma instância de planejamento interativo. Essencialmente dialógica, ela se faz pela interpretação e construção de sentidos, implicando, pois, uma relação intersubjetiva. Os projetos de extensão hoje tendem a dar lugar a processos de raciocínio argumentativo, em substituição à tradição lógico-formal, ao permearem o gênero do discurso científico com múltiplas “vozes”, afastando-se, pois, de uma hermenêutica positivista, reificadora do texto (CARNEIRO, 2003, p. 72). Em decorrência desta constatação, Carneiro propõe a “síntese metodológica para projetos de extensão”, denominada por ele como “metodologia interativa”. “Essa proposição tem como estratégia o relacionamento conhecimento-ação e por princípio fundamental a autonomia dos atores no planejamento e no desenvolvimento de projetos” (ibidem, p. 72-73). Nesta perspectiva, as técnicas e seus respectivos processos interativos no decorrer de uma determinada ação de extensão universitária se constituem e se efetivam por meio da linguagem. Portanto, esta ocupa um lugar fundamental na efetiva interação entre universidade e sociedade (ibidem). Nas considerações finais desta publicação (THIOLLENT; BRANCO; GUIMARÃES; ARAÚJO FILHO, 2003) que reuniu trabalhos realizados no IV SEMPE, algumas prioridades (tratadas como objetivos de trabalho e reflexão para o futuro) foram colocadas: Ênfase nas metodologias participativas, em particular a de tipo pesquisa-ação; melhor conhecimento da metodologia de pla nejamento participativo e planejamento estratégico situacional; EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 37 ênfase nas concepções de extensão de finalidade conscientizadora, emancipatória, popular e mobilizadora; uso de recursos informacionais e comunicacionais para reforçar a efetividade das atividades de extensão; acoplamento das metodologias de pesquisa e de ensino às metodologias de planejamento e de gestão universitária (THIOLLENT; BRANCO; GUIMARÃES; ARAÚJO FILHO, 2003, p. 167). Observa-se que, em todos os trabalhos analisados no âmbito do SEMPE, há a presença hegemônica dos fundamentos da pesquisa-ação, inspirando a proposição de diferentes métodos de caráter participativo e fazendo parte da maioria das reflexões. Ao mesmo tempo, a questão da comunicação e a importância da linguagem (ou do discurso) nas atividades de extensão, na busca de uma efetiva interatividade entre os diferentes sujeitos envolvidos, também ocupam lugar de destaque. Por último, verificamos uma explícita vinculação dos trabalhos do SEMPE aos objetivos formulados no Plano Nacional de Extensão. Quanto à análise dos trabalhos discutidos no VI SEMPE/ 2008, nos apoiamos na coletânea (em formato e-book) Metodologia para projetos de extensão: apresentação e discussão (ARAÚJO FILHO; THIOLLENT, 2008). Deste, fizemos o recorte dos dois capítulos iniciais: Avanços da metodologia e da participação na extensão universitária, de Thiollent (2008, p. 1-7) e Metodologia Comunicativa-Crítica: avanços metodológicos e produção de conhecimento na extensão universitária, de Mello (2008, p. 8-39). Este teórico argumenta, em seu trabalho, que a extensão universitária passou, nos últimos anos, por importantes processos de estruturação, significando um real avanço em sua consolidação como prática acadêmica no campo universitário. Ele confere ao FORPROEX, aos grupos de extensão nas universidades e ao que ele chama de “melhor compreensão por parte de órgãos do governo”, a responsabilidade por tal avanço. “Na esfera de governo, de bastante desconhecida, a extensão passou a ser solicitada como 38 | instrumento de política pública, em projetos e programas sociais, principalmente voltados para as populações carentes” (THIOLLENT, 2008, p. 1, grifo nosso). Thiollent, ao mesmo tempo em que reconhece a existência de avanços no que se refere à metodologia participativa (com ênfase à pesquisa-ação) e sua inserção nas práticas de extensão universitária, também demonstra algumas preocupações. De acordo com o autor: Na extensão universitária a referência à metodologia participativa e à pesquisa-ação se tornou também mais frequente. Aparentemente, a nossa preferência por esse tipo de método, já declarada no passado, estaria então bem contemplada. No entanto, esse visível ganho de espaço dos métodos participativos na extensão não significa que sua aplicação sempre esteja correta e amparada em reais contribuições metodológicas. Devemos ficar atentos a possíveis exageros no discurso da participação, permeando as justificativas de projetos, sem obrigatoriamente satisfazer às exigências metodológicas das atividades das pessoas implicadas e dos resultados (THIOLLENT, 2008, p. 3). Neste sentido, e considerando também a inserção das metodologias participativas nas políticas públicas, o autor continua suas ponderações: No contexto autoritário do passado, a pesquisa que dava ênfase na participação tinha uma intencionalidade de oposição ao sistema, querendo dar voz às pessoas e grupos oprimidos. No contexto atual, uma vez inserida em políticas públicas, a participação ocorre em contexto diferente. Ela se torna às vezes uma condição formal, um requisito a ser satisfeito para atender a editais de certos programas sociais. Não se trata de “dar voz e vez” aos grupos carentes, mas de justificar, pela sua presença, projetos cujos objetivos e recursos adquirem regras de funcionamento próprio, independente dos referidos grupos assistidos (THIOLLENT, 2008, p. 4). EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 39 Para esse autor, se na década de 1990 a preocupação era dar maior visibilidade às metodologias participativas e suas possíveis aplicações no campo da extensão universitária (fato este que obteve relativo êxito, contando com a contribuição dos trabalhos do SEMPE), nos dias atuais a prioridade já é outra, deslocando-se para os cuidados em relação a prováveis usos inadequados de tais metodologias, às vezes meramente retóricos e formais. No passado, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980, as pesquisas de caráter participativo, do tipo pesquisa-ação ou pesquisa participante, colocavam-se no campo da contestação e oposição aos regimes ditatoriais, com discursos de transformação social e emancipação das classes sociais subalternas. Além disso, contrapunham-se aos modelos teórico-metodológicos positivistas. Por este motivo, eram marginalizadas e muitas vezes censuradas. Segundo Thiollent: Hoje, é diferente, a referência à ação está mais bem aceita, muitas vezes, explicitamente exigida pelas cláusulas de editais de projetos de pesquisa institucionalizada. Em vez de requerer engajamento, a ação de hoje está inserida numa perspectiva empírica, pragmática, de busca de eficácia e eficiência na obtenção de resultados (THIOLLENT, 2008, p. 5). Na atualidade, a ênfase não está mais em buscar transformações sociais de caráter radical, contestando a lógica do sistema capitalista e reivindicando sua superação, mas em mudanças pontuais cada vez mais específicas e circunstanciadas, com ênfase nas políticas públicas de inclusão social, econômica, cultural etc. Thiollent defende que na pesquisa-ação, em sua perspectiva crítica, deve-se preocupar em relacionar a ação social com “significações mais amplas de caráter histórico ou existencial e com fundamentos éticos do conhecimento” (ibidem, p. 6). Mello (2008), em seu trabalho intitulado Metodologia Comunicativa-Crítica: avanços metodológicos e produção de conheci- 40 | mento na extensão universitária (2008, p. 8-39), apresenta a proposta da metodologia comunicativa-crítica. Esta metodologia foi criada pelo Centro Especial e Investigação em Teorias e Práticas Superadoras de Desigualdades (CREA) da Universidade de Barcelona/Espanha e é praticada a partir de 2002, pelo Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa (NIASE) da UFSCar, com o qual compõe a referida autora: A metodologia comunicativa-crítica é entendida pelos membros do NIASE como caminho metódico de compreensão e de ação no mundo. Caminho metódico de estudo cuidadoso da realidade, buscando mirá-la e admirá-la de diversas perspectivas e, neste caso, caminho feito em diálogo entre pesquisadoras(es) e participantes da realidade investigada, para movermo-nos no mundo e transformar a realidade vivida. A teoria dialógica de Paulo Freire e a teoria da ação comunicativa de Habermas são as bases de tal metodologia de pesquisa e de ação social e educativa (extensão) (MELLO, 2008, p. 9). A autora apresenta a metodologia comunicativa-crítica como uma alternativa de trabalho na relação entre pesquisa e extensão universitária, ou em suas palavras: “entre produção e difusão de conhecimento científico” (ibidem, p. 22). A partir de Habermas, foram destacados os conceitos de mundo da vida e sistema, e de realidade formada por três mundos (linguagem, ação e comunicação); enquanto que de Freire foram destacados os conceitos de objetividade e subjetividade, intersubjetividade, diálogo e coerência como fundamentos centrais desta concepção metodológica (ibidem, p. 23). A respeito da investigação científica, a autora coloca: Com relação ao âmbito da pesquisa, como espaço de produção do conhecimento científico, rigoroso, a metodologia comunicativa-crítica respeita tanto a dimensão ontológica, como a epistemológica [...] Por isso, nela se entende que há uma experiência comunicativa entre falante e ouvinte no processo de EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 41 investigação. Tal compreensão é aprofundada em dois conceitos presentes na metodologia de investigação comunicativa-crítica: o de postura realizativa e o de ruptura do desnível interpretativo (MELLO, 2008, p. 27, grifos da autora). A postura realizativa está relacionada à tomada de posição do investigador frente às questões pesquisadas. Ele não omite sua opinião diante de determinados temas, chegando, em alguns casos, a se posicionar diante dos mesmos, porém, em condição de igualdade com os demais atores da pesquisa. O conceito de ruptura do desnível interpretativo trata do entendimento de que todos os participantes da pesquisa possuem capacidade de interpretar e explicar suas vivências. No entanto, a autora destaca que existem diferentes funções de interpretação entre pesquisadores e participantes. No aspecto operativo da investigação, a autora indica o uso de técnicas quantitativas, tais como questionários e entrevistas rápidas. Em relação às técnicas qualitativas, considerando a postura realizativa do pesquisador e a prática de ruptura do pressuposto de hierarquia interpretativa, são postos como sugestão: “grupo de discussão comunicativo, relatos comunicativos de vida cotidiana, entrevista em profundidade e observações comunicativas” (MELLO, 2008, p. 29). Para a autora (2008, p. 30): A principal preocupação com relação às técnicas de coleta de dados da metodologia comunicativa-crítica é que elas se constituem em espaço de diálogo entre iguais, onde as pretensões de validade, e não as de poder, estejam na base das relações. As intepretações são, assim, construídas comunicativamente. A autora considera que o envolvimento dos sujeitos participantes da investigação na esfera interpretativa eleva o rigor científico do trabalho, pois pode contribuir na “superação de fragilidades analíticas produzidas pela parcialidade de visão de mundo” dos pesquisadores envolvidos (ibidem, p. 30). Não há 42 | espaço para interpretações hegemônicas (na maioria das vezes, prevalecendo os especialistas), mas há a busca de uma construção coletiva a partir de processos comunicativos. Ainda, a autora relaciona a metodologia comunicativa-crítica à extensão universitária: Considerando os argumentos, os caminhos e os produtos da pesquisa comunicativa-crítica, tem-se que a extensão universitária, ligada diretamente ao processo de pesquisa, se dá como apresentação dos conhecimentos científicos e técnicos no processo de comunicação entre pesquisadores(as) e participantes, em comunicação e diálogo, para compreender e analisar determinado problema ou aspecto da realidade vivida pelo grupo. Posta no diálogo como argumentação, elas serão comunicativamente analisadas e validadas ou não. Nesta direção, é mais cabível falar-se em ação social, em educação e em comunicação, que em extensão universitária (MELLO, 2008, p. 31). Mello retoma a argumentação de Freire (1975), que considera mais adequada a denominação de comunicação entre conhecimentos (acadêmico e popular) e não de extensão de conhecimentos. Neste sentido, o diálogo ocupa um lugar central e potencialmente auxilia na produção de novos conhecimentos. Por outro lado, a ação social é realizada por participantes e pesquisadores de forma concomitante à investigação, implicando numa indissociabilidade entre pesquisa e comunicação. De acordo com Mello (2008, p. 32): A difusão de conhecimentos e resultados gerados no processo de comunicação e de pesquisa ganha aqui outra potencialidade: ela pode ser feita tanto por pesquisadores(as) como por participantes das pesquisa a outros coletivos cuja temática interessa diretamente, ou a governos que interferem em políticas públicas. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 43 A metodologia comunicativa-crítica apresenta-se, desta forma, como ferramenta potencialmente geradora de conhecimentos e ao mesmo tempo difusora dos mesmos em diferentes direções: da pesquisa, da ação social e no âmbito educativo. O mais importante, a nosso ver, é a perspectiva de indissociabilidade entre pesquisa e extensão universitária (ou comunicação, conforme sinalizado por Freire). Considerações finais O SEMPE constituiu-se, ao longo dos últimos 17 anos, em um importante espaço de debate e reflexão sobre as diversas possibilidades metodológicas que podem ser aplicadas no âmbito da extensão universitária. A pequena amostra que retiramos da extensa produção originada das suas oito edições, longe de representar a profundidade das contribuições deste evento, apresenta algumas concepções e reflexões esclarecedoras sobre o teor do que é tratado neste Seminário. Dentre elas, julgamos importante destacar o protagonismo e o potencial da pesquisa-ação em relação à extensão universitária; a tendência à consolidação da extensão universitária, como campo de experimentação, como um instrumento de política pública. Referências ARAÚJO FILHO, Targino; THIOLLENT, Michel Jean-Marie (Orgs.). Metodologia para Projetos de Extensão: apresentação e discussão. São Carlos, SP: Cubo Multimídia, 2008. BRANCO, Alva Lúcia Castelo; GUIMARÃES, Regina Guedes Moreira. Problematizando a sistematização dos modelos de extensão e de seus referenciais teóricos. In: THIOLLENT, Michel; BRANCO, Alba Lúcia Castelo; GUIMARÃES, Regina Guedes Moreira; ARAÚJO FILHO, Tar- 44 | gino de (Orgs.). Extensão universitária: conceitos, métodos e práticas. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sub-Reitoria de Desenvolvimento e Extensão, 2003. BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.) Repensando a pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1999. BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.). Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1983. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A pesquisa participante e a participação da pesquisa: um olhar entre tempos e espaços a partir da América Latina. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues; STRECK, Danilo Romeu (Orgs). Pesquisa participante: a partilha do saber. 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EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 45 MELLO, Roseli Rodrigues de. Metodologia Comunicativa-Crítica: avanços metodológicos e produção de conhecimento na extensão universitária. In: ARAÚJO FILHO, Targino; THIOLLENT, Michel Jean -Marie (Orgs.). Metodologia para projetos de extensão: apresentação e discussão. São Carlos, SP: Cubo Multimídia, 2008. SEMINÁRIO DE METODOLOGIA PARA PROJETOS DE EXTENSÃO, 5ª, 2003, João Pessoa. Anais do V SEMPE. João Pessoa: Ed. Universitária / UFPB / PRAC, 2004. SOARES, Virginia Maria Salerno. Metodologias participativas para projetos educacionais e tecnológicos. In: THIOLLENT, Michel; ARAÚJO FILHO, Targino de. SOARES, Rosa Leonôra Salerno (Orgs.). Metodologia e experiências em projetos de extensão. Niterói, RJ: EdUFF, 2000. THIOLLENT, Michel Jean-Marie. Avanços da metodologia e da participação na extensão universitária. In: ARAÚJO FILHO, Targino; THIOLLENT, Michel Jean-Marie (Orgs.). Metodologia para Projetos de Extensão: apresentação e discussão. São Carlos, SP: Cubo Multimídia, 2008. THIOLLENT, Michel. A metodologia participativa e sua aplicação em projetos de extensão universitária. In: THIOLLENT, Michel; ARAÚJO FILHO, Targino de. SOARES, Rosa Leonôra Salerno (Orgs.). Metodologia e experiências em projetos de extensão. Niterói, RJ: EdUFF, 2000. THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2007. THIOLLENT, Michel. Metodologia participativa e extensão universitária. In: THIOLLENT, Michel; BRANCO, Alba Lúcia Castelo; GUIMARÃES, Regina Guedes Moreira; ARAÚJO FILHO, Targino de (Orgs.). Extensão universitária: conceitos, métodos e práticas. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sub-Reitoria de Desenvolvimento e Extensão, 2003. 46 | THIOLLENT, Michel; ARAÚJO FILHO, Targino de. SOARES, Rosa Leonôra Salerno (Orgs.). Metodologia e experiências em projetos de extensão. Niterói, RJ: EdUFF, 2000. THIOLLENT, Michel; BRANCO, Alba Lúcia Castelo; GUIMARÃES, Regina Guedes Moreira; ARAÚJO FILHO, Targino de (Orgs.). Extensão universitária: conceitos, métodos e práticas. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sub-Reitoria de Desenvolvimento e Extensão, 2003. METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS EM EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: O DIAGNÓSTICO RURAL PARTICIPATIVO (DRP) Murilo Mendonça Oliveira de Souza Introdução A extensão universitária representa a possibilidade de instrumentalizar, dialeticamente, a participação popular no processo de construção do conhecimento científico-acadêmico e em sua consequente influência na transformação da realidade concreta. Ao contrário desta perspectiva, no entanto, a ações extensionistas levadas a cabo, nas universidades brasileiras, foram pautadas, historicamente, no assistencialismo e, nas últimas décadas, ainda têm aberto espaço para ações que visam trazer para as universidades, como ressalta Thiollent (2000, p. 19), “[...] recursos adicionais, por meio da prestação de serviços ou de cursos pagos”. No âmbito das instituições de ensino superior no país, com exceção de alguns guetos, não é possível visualizar, em momento algum da história, a construção de uma política extensionista que valorize ações que tenham, na práxis, a sua forma de diálogo/trabalho com a sociedade. Este método de interpretação/intervenção sobre a realidade cristalizou-se, por sua vez, em metodologias extensionistas positivistas, pouco críticas ou reflexivas, que impuseram o conhecimento científico-acadêmico sobre os conhecimentos históricos dos diferentes grupos sociais. As metodologias extensionistas se consolidaram, nas universidades e fora delas, em instrumentos unidirecionais de transmissão de conhecimento, como analisou Freire (1979) na crítica específica ao termo extensão, o qual, segundo este autor, promove 47 48 | uma divisão entre aqueles que sabem (universidade) e aqueles que não sabem (comunidade). Foram construídos, assim, entendimentos enviesados e equivocados sobre a realidade, promovendo políticas públicas inadequadas às demandas cotidianas da sociedade. E, nesse processo, os sujeitos da extensão têm sido privados de participar, efetivamente, da reflexão e da ação sobre sua realidade e seus problemas. É necessário, em tal contexto, que as práticas extensionistas sejam pautadas por metodologias participativas, que possibilitem a construção coletiva e popular do conhecimento e, consequentemente, de estratégias de transformação social. A participação popular, em termos igualitários, é essencial no desenvolvimento de ações extensionistas que abram as portas das universidades para a sociedade. Mais no âmbito dos Movimentos Sociais do que propriamente nas universidades, metodologias participativas têm sido amplamente desenvolvidas nas últimas décadas. Estas não têm, todavia, permitido a participação plena dos sujeitos das ações extensionistas. Como pensar, neste contexto, metodologias de extensão que valorizem a participação política plena dos diferentes grupos sociais nas intervenções universitárias? O presente texto, na intenção de apresentar reflexões sobre tal questão, tem como objetivo discutir as potencialidades das metodologias participativas de extensão universitária, tendo como foco o Diagnóstico Rural Participativo (DRP). O debate apresentado tem como origem experiências de utilização desta metodologia em escolas no campo e assentamentos rurais nos estados de Minas Gerais e Goiás. Pensamos tal metodologia, essencialmente, com base em um processo participativo e libertador. Desenvolvemos o texto trabalhando, inicialmente, a ideia/ conceito de participação popular e, em seguida, apresentamos diferentes instrumentos e possibilidades do DRP no fortalecimento crítico da extensão universitária. Neste sentido, esperamos contribuir com a construção de uma extensão universitária popular. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 49 Participação popular e extensão universitária A partir da década de 1980, com o processo de redemocratização do país, o termo participação passou a ser utilizado como palavra-chave, especialmente para dar legitimidade às ações realizadas por organizações e instituições políticas e sociais. Assim como outras, em seu devido tempo, passou a ser utilizada como palavra mágica. Aquela que serviria para qualquer ocasião e solucionaria qualquer problema. Esta dinâmica serviu, em primeira instância, para controlar a participação do povo nas decisões e debates mais importantes. Este tipo de participação insere-se em um processo de educação que não é libertador, que submete e domestica, não permitindo, de acordo com Freire (1979), a apreensão do conhecimento em questão. Educação e participação assumem nova roupagem, mantendo, contudo, a antiga estrutura política e social. A ideologia dominante objetivou manter a participação do indivíduo restrita aos grupos baseados em relações sociais primárias, como o local de trabalho, a vizinhança, as paróquias, as cooperativas, as associações profissionais, de modo a criar uma ilusão de participação política e social (BORDENAVE, 1983). E mesmo nas organizações locais, muitas vezes, a participação é ilusória. Por outro lado, não podemos negar que este processo ajudou a promoveu uma mudança entre as massas populares. Seja qual for a forma de participação, algumas lideranças populares têm estado mais no cenário político, regional e municipal. E, nos últimos anos, com as políticas de caráter territorial, também nos territórios, sejam institucionalizados ou não. Bordenave (1983) classifica a participação de forma geral em: imposta, voluntária, manipulada e concedida. Na participação imposta, o indivíduo é obrigado a fazer parte de grupos e realizar certas atividades consideradas indispensáveis. O voto obrigatório pode ser considerado um exemplo desta forma de participação. Na participação voluntária, o grupo é criado pelos próprios parti- 50 | cipantes, que definem sua própria organização e estabelecem seus objetivos e métodos de trabalho. São exemplos os sindicatos, as cooperativas, os partidos políticos, entre outros. Contudo, algumas vezes, esta forma de participação é provocada por agentes externos, o que constitui a participação manipulada. Neste caso, os agentes externos ajudam outros a realizarem seus objetivos ou os manipulam no sentido de atingir seus próprios objetivos, previamente estabelecidos. Tem-se ainda a participação concedida. Esse é o tipo de participação que ocorre na grande maioria das atividades de extensão universitária e, especificamente, nas ações de diagnóstico e planejamento participativo. Para Gomes et. al. (2001), o conceito de participação, no âmbito dos processos de diagnósticos e planejamentos participativos, pressupõe divisão de poder no processo decisório, passando pelo controle das partes sobre a execução e a avaliação dos resultados pretendidos. Ou seja, participar, neste caso, é tomar parte das decisões e ter parte dos resultados. Isto não é o que ocorre, cotidianamente, nas atividades de extensão universitária no país. Nas ações extensionistas desenvolvidas pelas universidades brasileiras, os sujeitos não tomam parte, assim como aconteceu historicamente, nem nas decisões nem nos resultados da extensão. Tais sujeitos, embora existam exceções pontuais10, são tratados, ainda, como objetos da experimentação acadêmico-científica, e a extensão universitária visualizada como possibilidade de acesso a recursos extras para a manutenção institucional. A extensão tende a ser conduzida principalmente no intuito de trazer recursos adicionais, por meio de prestação de serviços ou de cursos pagos. Perde-se de vista, com isso, a perspectiva de uma extensão ativa, participativa, capaz de contribuir para estudos, experimentações ou ações coletivas sobre questões sociais de maior relevância. (THIOLLENT, 2000, p. 19). 10Ver a experiência do Seminário para Projetos de Extensão (SEMPE), discutido no primeiro capítulo deste livro. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 51 A participação nos processos extensionistas, portanto, assumem, na melhor das hipóteses, uma perspectiva concedida. Não tem permitido, assim, a transformação coletivamente construída da realidade dos sujeitos da extensão universitária. Pontuais são as experiências levadas a cabo, no contexto universitário, que abrem espaço para a participação popular plena. É possível identificar, por outro lado, uma tentativa de adaptação de metodologias participativas populares, que passam a ser inseridas, pontualmente, na extensão das universidades brasileiras. As metodologias participativas, recentemente utilizadas no âmbito acadêmico, têm sido resgatadas, especialmente, dos movimentos sociais, organizações não governamentais, assim como, de experiências populares de participação na construção de políticas públicas. Neste contexto, tem sido apresentada uma infinidade de metodologias e instrumentos participativos para extensão universitária. Uma grande quantidade de siglas que representam novas metodologias surge a cada dia, e cada grupo defende sua técnica ou metodologia como sendo a mais perfeita e abrangente entre todas as outras (BROSE, 2001). Destacamos entre estas metodologias, para analisar, o Diagnóstico Rural Participativo (DRP), instrumento utilizado, destacadamente, em atividades de diagnóstico e planejamento. O DRP tem sido utilizado e adaptado para diferentes áreas do conhecimento. Especialmente na realização de ações extensionistas relacionadas às comunidades rurais, assentamentos, acampamentos rurais, entre outros, esta metodologia participativa tem representado, em alguns casos, uma perspectiva transformadora com relação aos instrumentos extensionistas e à promoção da participação crítica dos sujeitos do processo extensionista. A seguir, trazemos uma reflexão sobre o DRP e apresentaremos alguns instrumentos, que podem ser utilizados no trabalho com escolas no campo e comunidades rurais. Adaptados, contudo, tais instrumentos podem ser utilizados em variadas experiências extensionistas, no campo ou na cidade. 52 | Diagnóstico rural participativo (DRP): alguns instrumentos utilizados em escolas no campo e assentamentos rurais As metodologias participativas e sua utilização em atividades de extensão universitária têm crescido progressivamente no país. Destacamos, entre a diversidade de metodologias participativas, o Diagnóstico Rural Participativo (DRP)11. A metodologia propõe, além da maior rapidez na obtenção de dados importantes para a promoção do desenvolvimento socioeconômico de populações rurais e urbanas, a participação ativa dos beneficiários envolvidos no processo e uma multidisciplinaridade técnica. O DRP tem sido utilizado, cada dia mais, por diversas entidades e organizações em processos de diagnóstico e planejamento rural. Ganhou destaque, entretanto, com o advento da luta pela terra e o surgimento de uma infinidade de assentamentos rurais em todo o país, nos quais a metodologia se tornou quase que de utilização obrigatória para o diagnóstico e planejamento socioeconômico. Os instrumentos metodológicos do DRP têm sido utilizados, indiscriminadamente, em todo o país, com destaque para os assentamentos rurais em constituição. A utilização das metodologias participativas, em especial o DRP, representa um verdadeiro avanço para o processo de participação do povo e, consequentemente, para a construção de sua cidadania e protagonismo. Por outro lado, acredita-se que as técnicas desta metodologia devem ser utilizadas de forma criteriosa e realmente participativa. Em muitos casos, a participação promovida pelo DRP é apenas superficial. Ou seja, apresenta-se sob a forma de participação concedida, mencionada na seção anterior, onde a comunidade envolvida participa apenas dentro dos parâmetros que já foram anteriormente definidos pelas equipes técnicas responsáveis pela elaboração das atividades de extensão. 11 O DRP surgiu do Rapid Rural Appraisal (RRA), desenvolvido por Robert Chambers, nos Estados Unidos (GOMES et. al., 2001). EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 53 Um processo participativo deve proporcionar a oportunidade de autoavaliação do próprio processo e da cultura do grupo a que pertence, capacidade reflexiva sobre os efeitos de vida cotidianos, capacidade de criar e recriar não somente objetivos materiais, mas, também, e, fundamentalmente, criar e recriar formas novas de vida e de convivência social. Embora as técnicas de diagnóstico e planejamento participativo devam valorizar o processo de obtenção de informações, é importante que este processo seja, ele mesmo, um fator de formação e discussão política no seio da comunidade. Os dados devem ser utilizados, principalmente, pela própria comunidade. O DRP deve, também, valorizar o processo de execução das ações extensionistas propostas, mas, de acordo com Pretty et al. (1995), o DRP precisa respeitar, ainda, as seguintes características: o reconhecimento de que as populações excluídas são criativas e capazes, devendo os extensionistas agir como facilitadores; uso de técnicas que permitam maior visualização e um maior compartilhamento das informações, citando-se, como exemplo, a confecção de mapas e diagramas; a efetiva participação dos agricultores na pesquisa; a obtenção de informações sobre o meio rural a partir do conhecimento das comunidades, de uma maneira rápida e efetiva. Para Chambers e Guijt (1995), deve-se aprender a ver o processo como um dos produtos do DRP. Ele deve ser considerado mais que o simples exercício de diagnóstico e coleta de dados. O DRP não pode ser considerado apenas um pacote de técnicas para serem utilizadas acriticamente. Sua principal característica reside no fato de representar uma metodologia aberta, sobre a qual se pode construir novos caminhos, conhecimentos e instrumentos. No sentido de entender algumas das técnicas e sua real possibilidade de diagnosticar e planejar, de forma participativa e emancipatória, são destacados, a seguir, alguns instrumentos, a saber, o mapeamento participativo e a caminhada transversal. 54 | Lembramos que, como ressalta Gomes et al. (2001), estes instrumentos metodológicos não devem ser interpretados como um pacote fechado, pois sua simples aplicação não torna participativo o processo de levantamento da realidade. A partir do estudo e da vivência das técnicas, foi possível analisá-las de forma mais criteriosa, compreendendo suas reais possibilidades na promoção da educação e da participação popular. A análise foi direcionada para a observação das formas sob as quais as técnicas são compartilhadas com a comunidade. Entendemos, entretanto, que muitos destes instrumentos são desvirtuados no processo extensionista. Mapeamento participativo O processo de representação do espaço geográfico ou do espaço vivido pode se dar em diferentes perspectivas sociais, políticas ou ideológicas. Da mesma forma, tais representações podem ocorrer a partir de variadas escalas, seja de uma escola, de uma comunidade rural, de um bairro urbano ou de um município. Ainda, a disponibilidade atual de tecnologias/ferramentas que permitem uma visualização extremamente detalhada da superfície terrestre (como, por exemplo, o Google Earth ou o Veículo Aéreo Não Tripulado - VANT) possibilita a identificação de características físicas da paisagem local e regional com uma elevada qualidade de detalhes. No Mapeamento Participativo proposto no âmbito do DRP, embora possam ser utilizadas diferentes ferramentas, é mais importante o processo do que o resultado propriamente dito. Daí a relevância desta metodologia para a Extensão Universitária. A percepção do território onde se vive e convive, por parte dos próprios sujeitos, para além de uma representação, gera, também, reflexões e diálogos sobre o processo contínuo de formação deste território. Este processo consolida, por sua vez, a emancipação crítica dos diferentes grupos sociais. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 55 Esta dinâmica é construída a partir da coleta/reflexão de informações baseadas na percepção e no conhecimento que os sujeitos e grupos sociais têm do espaço em que vivem. É, portanto, essencial que os elementos responsáveis por fomentar o mapeamento sejam representativos da realidade, do território, da comunidade com a qual se realiza o processo de pesquisa participativa. A própria seleção, escolha dos elementos físicos que irão materializar o mapa devem representar a percepção dos sujeitos. Assim, na construção do mapa, podem ser utilizados materiais, como folhas, pedras, gravetos, tijolos, sementes, entre outros. A construção da equipe, incluindo extensionistas e comunidade, deve ser livre. É, contudo, recomendável que se incentive a participação diversa em gênero e idade. Comumente, os sujeitos já definem aqueles que participarão da atividade. Considerando a equipe extensionista, é importante destacar algumas pessoas que contribuirão para o desenvolvimento do mapa, dialogando com os participantes, assim como outras que ficarão responsáveis pelo registro escrito e pela representação do mapa. No processo de elaboração do mapa pelo grupo envolvido, vários questionamentos podem ser feitos. Por exemplo, caso a atividade esteja sendo desenvolvida em uma comunidade rural, questões sobre o problema ambiental, questão fundiária, as formas de ocupação da área, os tipos de solo presentes na área, as potencialidades e limitações, entre várias outras questões. O mais importante é permitir que a comunidade desenvolva a técnica sem muita interferência da equipe extensionista. Esta deve apenas fomentar a construção do mapa e o debate sobre as questões geradas pela atividade. Ressalta-se a importância da equipe de diagnóstico que deve estar sempre estimulando a construção do mapa e o debate dos temas. Os membros da equipe devem anotar, literalmente, as informações repassadas durante o desenvolvimento da técnica. Daí a importância de uma equipe multidisciplinar que tenha compre- 56 | ensões diversas da realidade e consiga captar diferentes perspectivas do contexto de cada território e/ou grupo, comunidade. Em atividade de Mapeamento Participativo, realizada em 2013, com alunos, comunidade e professores de Escolas no Campo, no município de Goiás, tivemos como resultado diferentes representações do território e, consequentemente, mapas com características diversas. A atividade de mapeamento foi desenvolvida nas Escolas Municipais Terezinha de Jesus Rocha e Holanda. Na primeira, o processo de formação do grupo responsável por construir o mapa não teve influência direta da equipe de extensionistas da universidade. Os próprios professores e alunos se organizaram e indicaram pessoas da comunidade do entorno da escola para contribuir com a atividade. Na Escola Municipal Holanda, por outro lado, alguns professores definiram que uma turma apenas da escola (nono ano) e alguns funcionários (que representavam a comunidade) iriam participar da atividade. No processo de escolha dos materiais para composição do mapa, foram múltiplos os elementos que atraíram os participantes. Na Escola Municipal Terezinha de Jesus Rocha, foram coletadas sementes, folhas secas, frutos do cerrado (Jatobá e Baru, por exemplo), gravetos, entre outros elementos relacionados ao processo produtivo ou ao ambiente natural (Foto 1). Para a construção do mapa na Escola Municipal Holanda, foram utilizadas, basicamente, pedras de diferentes tamanhos e folhas de uma árvore que também “forneceu” sombra para a atividade. Neste caso, destacamos, ainda, que foram utilizados itens do cotidiano escolar, como folhas de caderno, giz, entre outros (Foto 2). EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 57 Foto 1 – Organização de materiais Foto 2 – Mapa Participativo Escola para mapeamento participativo na Municipal Holanda, Goiás/GO, 2013. Escola Municipal Terezinha de Jesus Rocha, Goiás/GO, 2013. A discussão/reflexão da realidade territorial, da dinâmica que orienta o cotidiano do grupo envolvido na atividade deve ser considerada em todos os momentos, inclusive no processo de escolha dos materiais que instrumentalizarão a formatação do mapa. O que leva o grupo a selecionar alguns materiais e outros não? Qual a representatividade dos materiais escolhidos para a comunidade? Para além da construção direta do mapa, é relevante, também, envolver alguns participantes na representação do próprio mapa, o que resulta em novas visualizações da realidade do grupo. Nas atividades desenvolvidas nas escolas já citadas, a partir do entendimento do território pelos alunos, foram realizadas, também, representações do mapa e de realidades particulares suscitadas no processo de mapeamento. A foto 3, por exemplo, apresenta os jovens desenhando, coletivamente, a representação do mapa construído, participativamente, pelos alunos do nono ano, durante DRP realizado na Escola Municipal Holanda. 58 | Foto 3 – Atividade de desenho, com representação do mapa construído, Escola Municipal Holanda, Goiás/ GO, 2013. Croqui 1 – Representação da parcela de assentamento de uma das participantes do mapeamento, Escola Municipal Holanda, Goiás/GO, 2013. Os desenhos representativos do mapa são uma oportunidade adicional para que ocorra a produção de conhecimento, tendo como base geradora a realidade concreta, a dinâmica territorial. Ao mesmo tempo, há a possibilidade de que sejam refletidas particularidades do território representado pelo mapa. O croqui 1 apresenta uma parcela do Projeto de Assentamento Holanda, onde são desenvolvidas atividades produtivas relacionadas à pecuária leiteira e à produção de carne suína. No processo de construção do croqui, várias questões relacionadas à dinâmica produtiva local foram dispostas por uma aluna do nono ano, da Escola Municipal Holanda. Caminhada transversal A Caminhada Transversal, a exemplo do mapeamento participativo, é um instrumento metodológico do DRP que deve ser utilizado a partir das demandas concretas da comunidade ou grupo social com o qual se desenvolve atividades extensionistas. A proposta consiste em percorrer, coletivamente, determinado trajeto. A utilização da metodologia esteve, a princípio, relacionada à EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 59 comunidade rural, sendo que a caminhada, comumente, abrange uma área que represente as diversidades de uma agroecossistema ou de uma comunidade rural. No entanto, nos últimos anos, esta técnica tem sido utilizada em variados locais e de variadas formas. Embora a Caminhada Transversal tenha se consolidado a partir de diagnósticos e atividades extensionistas realizadas com comunidades rurais, ela tem sido, com bons resultados, utilizada em espaços urbanos, com diagnóstico e reflexão crítica sobre questões que afetam, também, as áreas urbanas. No município de Goiás, por exemplo, em trabalho de campo, do Curso de Geografia, da Universidade Estadual de Goiás, realizamos, em 2014, Caminhada Transversal, congregando estudantes de diferentes cursos e pessoas da comunidade, no sentido de levantar informações e debater sobre os impactos ambientais que afetam o Rio Vermelho, que atravessa a área urbana deste município. A caminhada tem sido, ao mesmo tempo, realizada e representada de diferentes formas. Jardim e Pereira (2009), por exemplo, apresentam a ideia da “Cavalgada Transversal”, que permite a abrangência de área maior na atividade. É essencial, seja qual for o formato da caminhada, que a equipe seja composta por pessoas com conhecimentos e vivência diferenciada na comunidade, no local ou região, onde a metodologia será utilizada. Jovens, mulheres, idosos sempre têm percepções diferenciadas da paisagem e isto permite um processo mais sólido de representação da realidade concreta, possibilitando, consequentemente, uma maior quantidade de elementos para o debate e reflexão. Todo o percurso deve ser representado e anotado. Deve-se estar atento à paisagem e levantar questões aos participantes que sejam pertinentes àquele local: problemas ambientais, situação no passado, realidade presente, perspectivas, potencialidades e limitações. Em alguns casos, esta atividade pode ser útil, também, para coletar amostras de vegetação, solo, etc. Um gravador, desde que haja autorização prévia dos participantes, pode ser utilizado para que 60 | os técnicos não se preocupem com as anotações e as informações sejam mais fidedignas. Podem ser utilizados, também, esquemas ou desenhos representativos das características geomorfológicas da área, no sentido de instrumentalizar o debate durante a caminhada. Entre diferentes atividades extensionistas que desenvolvemos, utilizando a Caminhada Transversal, destacamos duas. A primeira realizada durante construção de Plano de Desenvolvimento do assentamento rural Paciência, no município de Uberlândia/MG (2007), e outra realizada com alunos, professores e comunidade da Escola Municipal Olympia Angélica de Lima, situada no Projeto de Assentamento União dos Buritis, no município de Goiás/GO (2013). Nas duas experiências, que tiveram como objetivo a realização de diagnóstico para ação posterior sobre a realidade, houve o levantamento quantitativo e qualitativo de informações sobre a realidade local que permitiram um diálogo e reflexão relevantes. No Projeto de Assentamento Paciência, além do levantamento florístico e faunístico, foram identificados e discutidos os principais limitantes ambientais. Durante a própria caminhada, discutiram-se, ainda, possíveis soluções para os problemas ambientais identificados. Durante esta atividade, especificamente, foi discutida, preliminarmente, a definição de áreas de reserva legal e preservação permanente do assentamento. A realização desta técnica tornou-se, sem dúvida, um momento extremamente rico, tanto em termos pedagógicos, como em termos práticos, para coleta de informações. A realização da caminhada transversal no Projeto de Assentamento Paciência teve como resultado, em especial, a definição das áreas de reserva legal, a identificação de áreas de preservação permanente e a eleição de áreas prioritárias para recuperação ambiental. Participaram da caminhada, no assentamento, aproximadamente 15 pessoas, incluindo agricultores assentados (jovens, mulheres, idosos etc.) e representantes da equipe extensionista. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 61 Cada um, com seu conhecimento, colaborou com a identificação de espécies, vegetais ou animais. Também, na determinação do uso (medicinal ou alimentar) de cada espécie identificada. Um dos assentados relatou, durante a caminhada, que “do cerrado a gente tira desde o alimento até o remédio”. Figura 1 - Representação da Caminhada Transversal, realizada no Projeto de Assentamento Paciência, Uberlândia/MG, 2008. Autor: Murilo Mendonça Oliveira de Souza, 2008. O registro e a representação da caminhada podem ser organizados, graficamente, (Figura 1), mas, também, a partir de documentação audiovisual. Quanto mais informações forem coletadas e reflexões levadas a cabo, mais possibilidades de transformação da realidade social concreta serão apresentadas. Desenvolvemos, também, a Caminhada Transversal com alunos da Escola Municipal Olympia Angélica de Lima, do Projeto de Assentamento União dos Buritis, no município de Goiás. Neste caso, tivemos como objetivo aproximar, reflexivamente, os estudantes e professores do cotidiano do território que congrega o espaço escolar. Ao mesmo tempo, a atividade foi pensada em 62 | uma perspectiva pedagógica. Participaram da caminhada, além de professores e pessoas do assentamento, aproximadamente 20 estudantes do 7º, 8º e 9º anos. Na organização da caminhada, é importante que o trajeto a ser percorrido seja coletivamente proposto e previamente acordado com o grupo. Tendo o trajeto definido, deve-se aproveitar ao máximo as experiências e conhecimentos das pessoas da comunidade. Nas atividades de caminhada desenvolvidas nas escolas do campo, normalmente, fazemos algumas paradas para que os participantes, incluindo a equipe extensionista, possam dialogar com a realidade produtiva da região (Fotos 4 e 5). No caso da Escola Municipal Terezinha de Jesus Rocha, realizamos uma parada em espaço de produção de leite de um dos agricultores, momento, este, que permitiu um compartilhamento de conhecimentos sobre o território onde está situada a escola em questão. Foto 4 – Agricultor assentado dialogando sobre produção de banana, com estudantes, durante caminhada transversal - Escola Municipal Holanda, Goiás/GO, 2013. Foto 5 – Parada durante caminhada transversal para diálogo com produtor de leite - Escola Municipal Terezinha de J. Rocha, Goiás/GO, 2013. Na atividade da Escola Olympia, especificamente, houve um foco no levantamento de elementos do bioma Cerrado. Como mostrado do quadro 1, os estudantes, durante a caminhada, no- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 63 mearam animais e plantas representativas do cerrado. Além disso, os jovens identificaram e definiram, indicando sua importância alimentar e medicinal, uma variedade de plantas deste bioma. PLANTAS DO CERRADO ANIMAIS DO CERRADO Cajuzinho, pequi, murici, cagaita, marmelada, mangaba, mamacadela, ananais, baru, ingá, goiabinha do cerrado, algodãozinho. Mateiro, tamanduá, veado, tamanduá bandeira, lontra, raposa, anta, capivara, quati, gambá, tatu, teiú, cobra (jaracuçu, cascavel, cipó, coral, caninana, jiboia), ema, seriema, gavião, mutum, perdiz, onça preta, jaguatirica, papagaio, canário da terra, arara, pássaro preto, piau, giripoca, papa terra, lambari, traíra, jacaré, jaboti, tilápia (represa). Quadro 1 – Plantas e animais do Cerrado, citados pelos alunos do 7º ano, da Escola Municipal Holanda, Goiás/GO, 09 de outubro de 2013. A representação da caminhada, como já mencionado, quando falamos das atividades nos assentamentos rurais, é central no processo de discussão posterior à ação metodológica. No caso das escolas, temos trabalhado com a representação, também, em desenhos (Desenho 1). 64 | Desenho 1 - Representação da Caminhada Transversal, realizada na Escola Municipal Olympia Angélica de Lima, Projeto de Assentamento União dos Buritis, Goiás/GO, 2013. Autora: Nathielly O. Silva, 2013. As representações e informações coletadas durante a atividade são, também, essenciais no sentido de instrumentalizar, em momento posterior, na “devolução” do conteúdo pesquisado/ dialogado para a comunidade, as reflexões e direcionamento das ações a serem planejadas a para transformação da realidade concreta. Ao mesmo tempo, o processo do refazer a caminhada estimula, em especial, no caso de jovens e crianças, o reconhecimento do território cotidiano de vivência. Valores do campo, neste caso, são identificados como importantes e fortalecidos como elementos significativos da formação de sujeitos críticos e atuantes. Considerações finais Uma postura mais dialética diante do trabalho com comunidades rurais nos remete a uma prática profissional e social me- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 65 nos alienada e um pouco mais consistente, tanto em seu processo como nos resultados obtidos. Para isso, é condição prévia a compreensão da educação como prática social de conscientização e libertação. Neste sentido, o ponto de partida é que busquemos entender a educação, dialeticamente, como um processo e não como algo estático e fixo. Este processo deve permitir que estejamos constantemente “aprendendo e reaprendendo”, “criando e recriando” nosso próprio processo de desenvolvimento e sobrevivência. No desenvolvimento de atividades extensionistas, no mesmo sentido, devemos entender a relação universidade e sociedade como momento essencial na transformação social. Por isso, metodologicamente, devemos desenvolver atividades com a comunidade e que possam transformar a realidade social, econômica, política e ambiental. A extensão universitária somente cumpre sua função, se desenvolvida de forma crítica e dialética, com a participação efetiva dos sujeitos de suas ações. Isto somente é possível se tivermos, como base, metodologias que, também, sejam participativas e libertadoras. Os instrumentos metodológicos dispostos pelo DRP, destacadamente o Mapeamento Participativo e a Caminhada Transversal, apresentam possibilidades para que a construção do conhecimento e sua utilização na transformação da realidade sejam, de fato, críticos e emancipadores. Esta metodologia permite a participação politicamente consciente e democrática dos envolvidos, pois o resultado principal obtido a partir de sua utilização é o próprio processo. O primeiro resultado da utilização do DRP são os diálogos, discussões e reflexões geradas durante seu desenvolvimento. Referências BORDENAVE, Juan Enrique Diaz. O que é participação. São Paulo: Brasilense, 1983. (coleção primeiros passos, n. 95). 66 | BROSE, Markus. Metodologia participativa: uma introdução a 29 instrumentos. Porto Alegre: Tomo editorial, 2001. CHAMBERS, Robert.; GUIJT, Irene. DRP: después de cinco años, em qué estamos ahora? Revista bosques, arboles y comunidades rurales, Quito, n. 26, p. 4-14. 1995. FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. GOMES, Marcos Affonso Ortiz; SOUZA, Alessandro Vanini Amaral de; CARVALHO, Ricardo Silveira de. Diagnóstico rápido participativo (DRP) como mitigador de impactos socioeconômicos negativos em empreendimentos agropecuários. In: BROSE, Markus (Org.). Metodologia participativa: uma introdução a 29 instrumentos. Porto Alegre: Tomo editorial, 2001. p. 63-78. JARDIM, Anna Carolina Salgado; PEREIRA, Viviane Santos. Metodologia qualitativa: é possível adequar as técnicas de coleta de dados aos contextos vividos em campo? In: 47º Congresso da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural. Porto Alegre/RS, julho de 2009. PRETTY, Jules; GUIJT, Irene; THOMPSON, John; SCOONES, Ian. Participatory learning and action: a trainer’s guide. London: IIED, 1995. THIOLLENT, Michel. A metodologia participativa e sua aplicação em projetos de extensão universitária. In: THIOLLENT, Michel; ARAÚJO FILHO, Targino de; SOARES, Rosa Leonôra Salerno (Orgs.). Metodologia e experiências em projetos de extensão. Niterói/RJ: EdUFF, 2000. p. 19-28. (RE) PENSANDO A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: UMA LEITURA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA EM EDUCOMUNICAÇÃO NO MUNICÍPIO DE GOIÁS/GO Robson de Sousa Moraes Introdução: a educomunicação A ação extensionista que apresentamos, neste texto, é resultante do esforço coletivo de construção permanente de um espaço de diálogo entre Universidade e Sociedade. Nesta perspectiva, organizamos e implementamos, a partir da Universidade Estadual de Goiás/Campus de Goiás e em parceria com a Rádio Treze de Maio, 105,9 FM, um Programa radiofônico (Voz Ativa: a UEG na Comunidade12), que permite e estimula a discussão de temas relevantes para o desenvolvimento social, econômico, político e ambiental em suas mais variadas escalas. Tal iniciativa13 busca valorizar, em especial, uma práxis comunicativa, destacando o aspecto Popular do ato comunicacional, mediado pela reflexão sugerida pelo Pensamento de Fronteira (GROSFOGUEL, 2010) e pelas dinâmicas da Filosofia da Liberação (DUSSEL, 2011). Para 12O Voz Ativa conta com a colaboração de vários Docentes da UEG, entre os quais se destacam: Murilo Mendonça Oliveira de Souza, Leandro Oliveira Lima; Rosivaldo Pereira de Almeida, César Augusto de Oliveira Casella e Paulo Sérgio Cantanheide Ferreira. Destaca-se ainda, a alegre e importante presença dos estudantes Bruno César, Tobias Bueno, Amanda de Brito Sá, Liliane de Almeida Pereira e Rodrigo Dias Azeredo. O Programa vai ao ar toda sexta feira das nove às onze horas da manhã, transmitido pela Rádio Treze de Maio, uma emissora educativa em funcionamento na Cidade de Goiás/GO. 13 O Programa Voz Ativa: a UEG na Comunidade, só pôde ser desenvolvido em função da determinante participação dos Radialistas Delcidério do Carmo e Orlando Silva Sá, que diante de sua indispensável ajuda técnica e bom humor, contribuíram, ainda, com o processo de formação dos alunos e de membros da comunidade que passaram pelo estúdio da Rádio 13 de Maio. 67 68 | isto, é necessário entendermos a comunicação, primordialmente, como um cimento social, uma argamassa criadora de discursos que legitimam e orientam as mais diversificadas práticas sociais. Em nossa contemporaneidade, marcada pela mercadorização de todos os elementos necessários para a reprodução da vida, o processo de comunicação acaba sendo deturpado pelos parâmetros da economia de mercado. Neste sentido: Ela nos une, já que, na sociedade contemporânea, só existimos na relação com o outro. O monopólio da palavra, porém, descaracteriza o que seria o princípio primeiro da comunicação – a troca – em prol da manutenção da lógica do capital e das estruturas (social, econômica e política) vigentes. A comunicação torna-se massiva e os veículos de comunicação de massa, agentes dessa deturpação dos processos comunicativos. (OLIVEIRA, 2010, p. 2). A troca, ou seja, a permuta entre produtos de valor de uso socialmente determinado, resultante do crescente processo de complexificação da Divisão Social do Trabalho, é substituída pela comercialização da mercadoria palavra, sendo os monopólios uma das principais características do mercado mundializado. Consumada esta alteração, a palavra e seu alcance, ampliados pelas ondas do rádio, perdem sua autenticidade e capacidade originária de meramente promover a inter-relação orgânica entre indivíduos, para se consolidar como forte instrumento de dominação. Em uma estrutura social permeada por abissais desigualdades e de brutal concentração de renda e da riqueza, o discurso legitimador do status quo ganha dimensão estratégica para a manutenção da ordem. No intuito de promover um processo de comunicação que permite, de fato, a troca, entendemos que a Comunicação Popular pode trazer uma real contribuição para o gradual amadurecimento de experiências emancipatórias e libertadoras dos limites EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 69 impostos pela sociedade produtora e consumidora de mercadorias. De acordo com Oliveira (2010), a Comunicação Popular surge como fruto da insatisfação em relação às desigualdades sociais e, por consequência da ampliação das precárias condições de vida, intimamente associada e atrelada à falta de liberdade de expressão, intrínseco aos meios de comunicação de massa. A Comunicação Popular resulta não de um tipo qualquer de mídia, mas da dinâmica e das demandas dos movimentos populares. A Comunicação Popular privilegia, especialmente, o processo educativo, estabelecendo, neste sentido, a ideia de educomunicação como instrumento de ressignificação da linguagem da produção de bens culturais e como forma de organização do poder das comunidades (SCHAUN, 2002). Nesse contexto, o processo de comunicação deve ser, a um só tempo, Popular e Educativo. Especialmente, quando pensamos na democratização da informação, estas perspectivas se tornam muito importantes. Este tipo de Comunicação, portanto, visualiza, primordialmente, a transformação social. O ato comunicativo, em sua dimensão Popular, tem a possibilidade de construir, também, a Autonomia, Autenticidade e a Soberania Popular. Como indicou Paulo Freire (2005), a Educação, mas, também, a Comunicação, deve dar ao povo Autonomia para pensar e estabelecer sua consciência como expressão de sua relação com o mundo. No mesmo sentido, a Comunicação deve libertar o povo das amarras em que vive entremeado. Neste horizonte, é relevante pensarmos, também, sobre a característica social e ideológica assumida por cada tipo de mídia. A televisão, a internet, o rádio, cada um a seu modo, influenciam o pensamento e as ações da sociedade de forma geral. Entre estes meios de comunicação, contudo, o rádio é certamente o que atinge um público mais específico, tendo, talvez, a maior popularidade. Especialmente em regiões com maior porcentagem de população rural, esta mídia assume importância incontestável: 70 | De pilha, à energia elétrica, grande ou pequeno, o rádio está nas mãos e nos ouvidos do povo brasileiro. Considerado o meio de comunicação de massa mais acessível, o rádio está presente na vida cotidiana, especialmente, nas camadas menos favorecidas, como a população rural. São vários os fatores que fazem a popularidade desse meio, a começar por sua linguagem oral. A questão a audição, que privilegia o fazer de outras atividades enquanto se escuta, dá ao rádio a praticidade necessária no dia a dia. Esse sentido aguça ainda nossas emoções, reflexões e criatividade, fazendo com que tenhamos com o rádio uma relação próxima e prazerosa. (OLIVEIRA, 2010, p. 5). Assim, o acesso ao rádio é facilitado, tornando este um meio muito acessível e passível de ser utilizado em processos educativos e culturais, favorecendo a construção de instâncias não formais de aprendizagem. Outro ponto que sugere o rádio como um instrumento educativo é a compreensão de que o receptor se torna ativo por meio da apropriação cultural que este faz das mensagens (OLIVEIRA, 2010). Desta forma, a Educação permitida, pelo rádio, possibilita uma relativa interação, um processo de duas vias, e não uma simples transferência de conhecimentos. A Educação, como tanto destacou Paulo Freire, é Comunicação. “A educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados” (FREIRE, 2005, p. 46). Uma breve história do rádio: do surgimento à era de ouro A radiodifusão como um serviço de transmissão regular apareceu nos Estados Unidos da América, no mês de novembro de 1920, sendo quase imediatamente seguido pela Inglaterra e França, com transmissões realizadas em 1922. A KDKA foi a primeira emissora de rádio e suas coberturas jornalísticas obtiveram um imenso sucesso, alavancando o surgimento de centenas de novos empreendimentos radiofônicos. No ano de 1925, já havia, só EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 71 nos E.U.A., 530 novas emissoras (AZEVEDO, 2002). No Brasil, a primeira transmissão ocorreu em 7 de setembro de 1922, com um discurso proferido pelo Presidente da República, Epitácio Pessoa, durante a Exposição Nacional em homenagem ao centenário da independência. Com uma estação montada no alto do Corcovado e com aparelhos espalhados pela cidade do Rio de Janeiro, Petrópolis, São Paulo e Niterói, foi transmitida, também, a ópera “O Guarani”, de Carlos Gomes. O Brasil dava sinal ao mundo de sua pretensão à modernidade. Com o apoio da Academia Brasileira de Ciências, presidida por Henrique Morize, catedrático da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, o médico e antropólogo Roquete Pinto funda a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, e a 23 de abril do ano de 1923, inicia suas atividades definidas como Cultural e Educativa. Inicialmente, o rádio era visto como uma espécie de propriedade de governo, que na ausência de uma lei regulatória, fez com que a polícia efetuasse prisões daqueles que, por força de vontade, fabricavam seus próprios aparelhos para capturar as ondas oriundas do Corcovado (ROQUETE-PINTO, 2003). Em 11 de agosto de 1923, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, depois de inúmeras conversas com o Ministro da Justiça e a apresentação de marco regulatório existente em países da Europa, recebe a permissão para transmitir e inscrever sócios. Em 7 de setembro deste mesmo ano, com o prefixo PRAA e utilizando antenas do Laboratório de Física, da Escola Politécnica, vai ao ar a primeira emissora de Rádio brasileira. O novo meio de comunicação despertava intenso debate na sociedade a respeito de qual deveria ser o a função do Rádio: se educativo, informativo ou simplesmente entretenimento. A adoção do Decreto Lei 20.047 de 27 de maio de 1931, alterou profundamente o caráter da radiodifusão no Brasil. Ao exigir a ampliação das potências das antenas, elevou, expressivamente, o custo de operação e manutenção, de tal forma que somente as emissoras organizadas em bases comerciais poderiam sobreviver diante da imposição do 72 | regime varguista. Inicia-se, neste período, uma longa tradição de centralização de atribuição e renovação de outorga (LOPES, 2011). Na impossibilidade de cumprir as determinações legais, os equipamentos da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro foram entregues ao Governo Federal, que criou o Serviço de Radiodifusão Educativa em 1936, tendo Roquete Pinto como seu primeiro diretor. Esta experiência foi antecedida pela Radio Escola Municipal (prefixo PRD5), a primeira emissora oficial com função unicamente educativa. Criada em 1934, por iniciativa do então Prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto, esta Rádio, posteriormente, passou a ser denominada de Roquete Pinto. Ainda na década de 1920, surgiu a Rádio Mayrink Veiga. Apesar de formalmente se apresentar como uma associação, esta tinha um perfil claramente comercial, sendo financiada por empresas de instalação e importação de receptores. Nos anos de 1930, já era a Rádio mais ouvida do país (AZEVEDO, 2002). No início dessa década, havia vinte e nove emissoras brasileiras, com uma programação que basicamente transmitia ópera, notícias e textos instrutivos (MADRIGAL, 2009). Só no estado de São Paulo, contabilizavam-se sessenta mil aparelhos. O Rádio começava a popularizar-se. As eleições Presidenciais de 1930, a revolução deflagrada nesse mesmo ano e a guerra constitucionalista, de 1932, tiveram participação ativa das emissoras de rádio, apresentando-se como excelentes instrumentos de convencimento ideológico. Cesar Ladeira, locutor da rádio Record em 1933, descreve, assim, sua participação na Revolta Constitucionalista: O rádio defendeu com energia a trincheira mais perigosa: a da opinião. Manteve sempre aceso o entusiasmo sagrado da gente de São Paulo. Foi uma arma manejada com inteligência. Era preciso servir. Servimos. E os ares desde cedo até de madrugada, encheram-se de afirmações patrióticas, de consciente entusiasmo, de comunicados e notícias. Combateu-se pelo ar. (LADEIRA, 1933 apud AZEVEDO, 2002, p. 61) EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 73 O rádio, decididamente, passa a fazer parte das estratégias políticas no Brasil. Em mensagem enviada ao Congresso Nacional, em 1º de maio de 1937, Getúlio Vargas enfatiza o papel deste instrumento de comunicação e aconselha a instalação de receptores providos de alto-falantes nos Municípios do país. Nas décadas de 1930 e 1940, o rádio viveu sua “época de ouro”, abandonando o caráter elitista de sua programação e renunciando a seu perfil educativo. A corrida e a disputa pelos anunciantes, a busca pela elevação da lucratividade, levou a massificação de sua grade de apresentações reduzindo, expressivamente, a qualidade da mesma. Em 1942, foi criada a primeira rádio novela, intitulada “Em busca da felicidade”, escrita pelo cubano, Leandro Blanco, e adaptada por Gilberto Martins, seguida de “O Direito de nascer”, escrita por outro cubano (Felix Caignet), de enorme sucesso, ficando três anos no ar (MAUAD, 2009). As radionovelas impulsionaram as audiências a patamares ainda não verificados. Na mesma década de 1940, surgem, nos Estados Unidos, as transmissões de Frequência Modulada (FM), com melhor qualidade sonora, porém, com menor amplitude do que as AM (Amplitude Modulada). As primeiras emissoras em FM começam a operar no Brasil após 1960 como fornecedoras de música ambiente para assinantes (ORTRIWANO, 1987). O advento da televisão e sua posterior massificação coloca em crise o sucesso da experiência radiofônica. Uma consequência imediata é a reestruturação da programação, tendo como objetivo sua redução de custos, tornando sua grade mais simples e barata. A Rádio Bandeirantes de São Paulo, em 1954, apresenta notícias em toda a sua programação e os serviços de utilidade pública viram o carro-chefe da programação (ORTRIAWANO, 1987). Neste período, inúmeros profissionais do rádio migraram para a televisão (Chico Anysio, Chacrinha, Mario Lago, Dias Gomes etc...). Uma das formas adotadas para a sobrevivência da radiodifusão comercial foi a segmentação das emissoras por especialidades de programação de acordo com o público alvo. Algumas emissoras 74 | se especializaram na divulgação de alguns gêneros musicais, outras deram ênfase ao jornalismo, algumas se tornaram divulgadoras de crenças religiosas. Apesar das mudanças de rumos, o rádio ainda se mantém como um importante veículo de comunicação de massa. Segundo a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), este aparelho está presente em 88,1% das residências em nosso país, somente perdendo para a televisão que se faz presente em 97% dos lares brasileiros. Ainda segundo a ABERT, o Brasil possui 9,4 mil emissoras, sendo quase o dobro de emissoras existentes há apenas dez anos. Existem 200 milhões de aparelhos convencionais de rádio, além de 23,9 milhões de receptores em automóveis. Somente no estado de Goiás, há registros de 63 emissoras FM, 3 de Ondas Curtas, 54 de Ondas Médias e 4 emissoras transmitindo em Ondas Tropicais. Há, ainda, 29 emissoras provisórias em funcionamento no estado (ABERT, 2012). Apenas 14 emissoras têm caráter educativo. Com a eclosão das novas tecnologias, 80% das emissoras transmitem sua programação pela rede mundial de computadores. O rádio está em plena funcionalidade e se reinventa diante dos novos tempos. Repensando a extensão universitária Desde as primeiras transmissões radiofônicas no Brasil, é possível perceber a aproximação existente entre as Instituições de Ensino e o Rádio. A antena que emitiu as primeiras ondas captadas pelos aparelhos receptores, em nosso país, era de propriedade da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Outro significativo elemento de aproximação entre Rádio e Ensino é o caráter educativo assumido pelas emissoras em seus primeiros momentos. Apresentar alguns aspectos históricos do conteúdo das Instituições de Ensino Superior, no Brasil, é peça-chave para resgatarmos a essência do ensino praticado, bem como para a compreensão das formas de sua relação comunicativa com a sociedade. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 75 A presença do saber acadêmico no continente latino americano é fruto do violento processo de colonização ibérica e, à sua maneira, objetivava contribuir com o processo civilizatório, desvalorizando e negando uma vasta e milenar experiência humana nesta parte do planeta. Vinculados aos projetos coloniais, as primeiras Universidades na porção Latina da América foram a Real Pontifícia Universidade do México e a Universidade de Lima, fundadas em 1551, e a Universidade de Córdoba, fundada em 1621. Na América portuguesa, o pacto colonial impedia a existência de vida acadêmica institucional, sendo o ensino limitado a poucos colégios de orientação religiosa jesuíta. No Brasil, o primeiro curso superior foi aberto somente depois da Independência. Os cursos de Direito, em São Paulo e Olinda, são datados de 1827 (PRADO, 1999). Os movimentos de independência, que culminaram com a estruturação dos Estados Nacionais na América, impulsionaram amplos questionamentos sobre o papel da educação e a própria concepção de Universidade até então existentes. O isolamento medieval da Universidade era duramente criticado pelos estudantes, o sistema de cátedra condenado e o anacronismo erudito entrava em franca contradição com as demandas de uma sociedade cada vez mais urbanizada. Em 21 de junho de 1918, em meio a uma onda de greves estudantis, foi divulgado o documento intitulado “la juventud argentina de Córdoba a los hombres libres de sudamérica”: a carta revelava o excessivo poder do professorado. Ao lado de reivindicações como a de assistência estudantil e a de Autonomia Universitária, encontra-se a ideia de Extensão como forma de superação do isolamento acadêmico. Universidade aberta ao povo era uma das insígnias do movimento de Reforma Universitária de Córdoba. Em 9 de setembro, com a renúncia do Reitor desta Universidade, diante da crescente pressão discente, os estudantes tomam a Universidade e através da pressão política conseguem que suas reivindicações sejam transformadas em projeto de lei e aprovadas, garantindo o sucesso do 76 | movimento reformador. Os estudantes argentinos foram fonte inspiradora para dezenas de propostas de reformulação da instituição universitária na América Latina. A história da Extensão Universitária está intimamente associada aos questionamentos provenientes do Movimento Estudantil Latino Americano frente às características conservadoras das Instituições de Ensino Superior no continente. As propostas de Reforma Universitária, originadas na Argentina, na segunda década do século XX, apontavam para a necessidade de alterar as bases institucionais da Universidade. O Manifesto de Córdoba, de junho de 1918, indicava o engessamento e as limitações das matrizes europeias do pensamento acadêmico em um meio social completamente distinto do existente no velho continente. No Brasil, o legado de Córdoba contribui para a ação política dos estudantes. Influenciado pela crescente urbanização e o surgimento de novas camadas médias urbanas, o movimento estudantil brasileiro passa a questionar a estrutura de ensino existente no país. Inseridos nas chamadas Reformas de Base, a democratização do acesso e a reformulação da estrutura organizativa das Universidades brasileiras são reivindicadas por vigoroso movimento. A greve do 1/3 é um marco da ação discente na luta em defesa de uma Universidade democrática. O avanço da caminhada pela Reforma Universitária é duramente travado pelo golpe militar de 1964. O Decreto Lei nº 252 consolida a concepção de Extensão Universitária como atividade subordinada e de mera complementação do Ensino e da Pesquisa, delegando a essa última o sentido de utilidade social da vida acadêmica (BOTOMÉ, 1996). Durante os chamados anos de chumbo, a Extensão Universitária não conseguiu desenvolver-se no país, limitando sua ação a programas e projetos governamentais de intervenção social de cunho autoritário e assistencialista. Com a redemocratização, o debate em torno da Extensão Universitária é retomado. A criação, em 1987, do Fórum Nacional EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 77 de Pró Reitores de Extensão das Universidades brasileiras apontava a Extensão como expressão do compromisso social da Universidade na busca de soluções mais urgentes da maioria da população, preconizando a indissociabilidade entre o Ensino, Pesquisa e Extensão, além do caráter interdisciplinar das ações extensionistas e do reconhecimento do saber popular como conhecimento estruturante da vida em sociedade. O Fórum apontava a necessidade de institucionalização das práticas extensionistas, tanto na academia como no Ministério da Educação, compreendendo, como primordial, o financiamento do estado para o pleno desenvolvimento e consolidação de uma Política de Extensão. Para Serrano (2010, página digital), a “Extensão Universitária é o processo educativo, cultural e científico que articula o Ensino e a Pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre Universidade e Sociedade”. Segundo o Fórum Nacional de Pró Reitores de Extensão (1987), “além de instrumentalizadora do processo dialético de teoria/prática, a Extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integrada do social”. Apesar dos avanços expressados no documento de 1987, as Instituições de Ensino Superior vivenciaram, ao longo de sua história recente, diferentes tipos de entendimento acerca do conceito de extensão, adotando diferentes abordagens e ferramentas analíticas. Uma das abordagens mais utilizadas pelas Instituições de Ensino Superior é a de orientação que se caracteriza, fundamentalmente, pela transmissão vertical do conhecimento. Sua origem remonta à experiência europeia, em particular à edificação da Universidade de Bolonha, que apresenta uma prática pedagógica verticalizada, percebendo a Universidade como local essencial da elaboração do saber, sendo a extensão uma oportunidade de mera transmissão do conhecimento por ela produzido. A sociedade seria um receptáculo do saber erudito, garantidora do progresso e do desenvolvimento social (ROCHA, 2001). Na Inglaterra do século XIX, este momento de contato com a comunidade ocorria 78 | com participação estudantil, como por exemplo, em campanhas de saúde pública (SERRANO, 2010). O desconhecimento da cultura adquirida pela população e a vastidão de seu conhecimento era renegada e desconsiderada. Nesta experiência da relação Universidade – Sociedade, a produção do saber é um monopólio da academia, não havendo construção coletiva e sim um repasse da erudição adquirida. É a Instituição de Ensino que, unilateralmente, define o que vai se conhecer, qual o método e a metodologia aplicada, sem levar em conta o universo de significados que compõem o cenário da ação. Os sujeitos, nesta perspectiva, são apassivados, coisificados e reduzidos a condição de objetos. (FREIRE, 2006). O Movimento Estudantil de Córdoba, em 1918, tece duras críticas ao modelo vertical-autoritário e preconiza uma nova forma na relação Universidade-Sociedade. Permeada de uma ideologia política de caráter nacionalista, é uma relação preocupada com as classes menos favorecidas. Os reformadores argentinos preconizam uma extensão universitária de caráter processual, vinculada a um amplo processo de transformação da estrutura social e econômica. A militância política de Professores e Estudantes é o centro gravitacional das propostas oriundas de Córdoba (SADER; GENTILI; ABOITES, 2008). Nesta perspectiva, a concepção de extensão passa a ser orientada pela preocupação com os problemas nacionais. A construção do saber universitário passa a ser estabelecido pelas dinâmicas da transformação da sociedade, procedimento que levaria à própria mudança no fazer acadêmico. A partir das experiências vivenciadas na Argentina, há uma tomada de consciência em escala continental, da necessidade de se pavimentar novos parâmetros na conflituosa relação entre I.E.S e a sociedade. Diversos grupos político-ideológicos vão se despertar para a importância da ação extensionista. O trabalho desenvolvido por anarquistas, comunistas, socialistas e liberais positivistas, vão colocar a Extensão Universitária em novo patamar, abrindo um novo momento, caracterizado pelo espontaneísmo e no vo- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 79 luntarismo sócio comunitário. Centrada nas atitudes de fundo ideológico, o voluntarismo não consegue constituir um método propositivo na investigação e intervenção da realidade, mas avançam expressivamente na capacidade de reconhecimento do outro como sujeito e produtor de conhecimento (SERRANO, 2010). Outra prática e abordagem da ação extensionista, pode ser chamada de sócio-comunitária-institucional. Nesta experiência os projetos de extensão se realizam através da oferta de cursos como forma da sociabilização da produção do saber. O monopólio do conhecimento volta a Instituição de Ensino, que propaga uma ciência dominante, com viés claramente manipulador (NOGUEIRA, apud SERRANO, 2010). No Brasil o Movimento da Escola Nova e o Estatuto das Universidades Brasileiras de 1931, instaura oficialmente essa compreensão sobre a ação extensionista. O “prolongamento” em benefício comunitário, da técnica e da ciência, seria o grande objetivo a ser alcançado. O sujeito formulador desta proposta não é a Universidade e nem a comunidade, mas o aparato estatal que percebe nas ações extensionistas uma possibilidade de aplacar as contradições existentes na sociedade. Três décadas mais tarde, esse entendimento seria aplicado pelos governos militares na criação do Projeto Rondon. Abandonando as preocupações reformadoras de Córdoba e o compromisso social da Extensão embasada pelo voluntarismo sócio comunitário, neste experimento, a relação Universidade-Sociedade volta a ser uma conduta conservadora de perfil marcadamente assistencialista (SERRANO, 2010). No início da década de 1960, alavancado pelo amplo movimento das Reformas de Bases, teve início, na cidade de Recife, um criativo e inovador movimento de Extensão Cultural, fonte das teorias que viriam a ser conhecidas como método Paulo Freire. Inspirada na Comunicação Dialógica (FREIRE, 2006) e na Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1987), esta prática extensionista retoma a necessidade do reconhecimento do outro. No entanto, há de se 80 | perceber que a voz das sociedades dependentes, majoritariamente marcada pelo silêncio, não é autêntica, mas claramente identificada como um eco das vozes metropolitanas colonizadoras e dominantes. Romper com a cultura do silencio e do “diálogo” vertical e unidirecional é uma tarefa fundamental para a busca da emancipação: O diálogo proposto pelas elites é vertical, forma o educandomassa, impossibilitando-o de se manifestar. Neste suposto diálogo, ao educando cabe apenas escutar e obedecer. Para passar da consciência ingênua a consciência crítica, é necessário um longo percurso, no qual o educando rejeita a hospedagem do opressor dentro de si, que faz com que ele se considere ignorante e incapaz. É o caminho de sua autoafirmação enquanto sujeito. (GADOTTI, 1996, p. 84). O pensamento freireano é a base de uma dinâmica das práticas extensionistas denominadas de acadêmico-institucional. Prematuramente abortada pelo golpe de 1964, esta perspectiva recupera sua intervenção nas Universidades brasileiras com o processo de redemocratização, fornecendo o substrato teórico-interpretativo do I Fórum de Pró Reitores de Extensão, em 1987. No entanto, a hegemonia neoliberal provoca um novo retroceder nas práticas e compreensão das ações extensionistas, hoje, claramente demarcadas como prestação de serviço e assistência. Após a década de 1990, a concepção e práticas de extensão são sistematicamente sequestradas pelos ideários de matriz neoliberal, que provoca uma grave crise institucional e de legitimidade nas Universidades brasileiras, diariamente ameaçadas em sua existência por um catastrófico estrangulamento financeiro. A diversificação das fontes de arrecadação das Instituições de Ensino Superior, orientados por Organismos Internacionais, tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, atinge a concepção de Extensão, adaptando-as à mera prestação de serviços a serem oferecidos e vendidos em um mercado de elevada competitividade. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 81 Seguindo a risca estas orientações, os governantes brasileiros, em consonância com inúmeras reitorias, começam a praticar cobranças de taxas como fonte de custear a atividade acadêmica. Operando com apoio e suporte das estruturas empresariais, as Instituições de Ensino Superior assimilam os elementos e critérios da decisão existente no âmbito do mercado (LESSA, 1999). Produto, empreendedorismo e competitividade são facetas da nova ideologia acadêmica de mercado e a dependência financeira do estado vista como algo negativo (SOARES, 2007). O mercado é apresentado como mecanismo regulador da vida social, as incubadoras de empresas e a consultoria de acadêmicos para a estruturação de pequenos negócios e microempresas são incorporadas como extensão universitária, no reforço da legitimação do dogma no qual as pessoas e comunidades são, no horizonte do mercado, responsáveis pela solução de problemas centenários da sociedade. Esta vertente atesta e convalida a vigente hegemonia da concepção neoliberal nas universidades brasileiras. As Instituições de Ensino Superior, hoje, são herdeiras de inúmeras contradições fomentadas por práticas autoritárias, não raramente paternalistas, clientelistas e dominadas pela ideologia do mercado, mesclado aos esforços para consolidação de uma cultura acadêmica, democrática e de qualidade. O debate em torno da extensão universitária é só um pequeno capítulo diante da necessidade de uma tomada de consciência, que conduza a um amplo e franco diálogo estruturador dos passos de nossa caminhada rica em possibilidades, mas permeado de incertezas, armadilhas e ciladas. O sujeito da extensão universitária A plena organização e consolidação de uma Política de Extensão Universitária pressupõe, obrigatoriamente, uma ampla discussão em torno do resgate da condição de Sujeito de uma ex- 82 | pressiva camada da população condenada ao silêncio e ao eco da voz dominante. Inferiorizado em sua existência e politicamente subalternizado, cabe às políticas extensionistas a formatação de um pensamento de fronteira que provoque a comunicação dialógica entre as dimensões da vida social, como forma de costurar a relação Universidade-Sociedade. A produção e a reprodução do saber são poderosos mecanismos do exercício do poder e do controle social, integrando uma Geopolítica do Conhecimento (DUSSEL, 2011). As críticas sociais e políticas necessitam, obrigatoriamente, de uma revisão epistemológica para além dos comprometimentos eurocêntricos de viés modernos ou pós-modernos, que possam resultar em opções políticas alternativas que formulem possíveis respostas viáveis às carências materiais de milhões de pessoas em todo o planeta. O Pensamento de Fronteira é uma tentativa de preparar uma vertente teórica crítica ao eurocentrismo, sem, no entanto, cair na abstrata e ineficiente negação de todo o pensamento ocidental. Sua proposta é a de (re)significar as retóricas emancipatórias da modernidade sob a luz da subalternidade dos oprimidos. A colonização de estruturas societárias em todo o continente foi e é realizada em nome da razão, da modernidade e do cristianismo. As práticas coloniais produziram uma dinâmica epistêmica centrada em categorias elaboradas na realidade e nas vivências do velho continente, elevadas a uma pretensa validade universal (CASTRO GOMES, 2000). A assimilação e aceitação inquestionável das matrizes do pensamento eurocêntrico é o que denominamos de colonialidade (MIGNOLO, 2005; QUIJANO, 2005), uma forma de continuidade na descontinuidade, provocada pelos processos políticos independentistas, que separaram, juridicamente, as antigas colônias das velhas metrópoles, criando uma estrutura estatal no novo continente, ao mesmo tempo em que busca como objetivo político e econômico a adoção de valores da modernidade colonizadora. Como EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 83 reflexo desta atitude, há uma supervalorização do pensamento elaborado na Europa, em alguns casos acompanhados de enorme e absurda negação das particularidades existentes. Em outras situações, conceitos como sincretismo, hibridismo e a miscigenação são apresentados para demonstrar a horizontalidade das misturas de povos como máquina da edificação modernista. Os movimentos pós-coloniais que resultaram na criação de novos estados nacionais, não foram capazes de recuperar suas matrizes epistemológicas, percebidas como atrasadas, superadas e inferiores à matriz moderna do saber. Nesta perspectiva, promoveram, no interior de seus respectivos estados nacionais, os mesmos erros e equívocos existentes na raiz do conhecimento eurocêntrico. A relação metrópole e colônia foram reutilizadas nas dinâmicas internas a cada estado nacional, respectivamente. Povos, hábitos, costumes e culturas não condizentes com a modernidade e seu projeto político e epistemológico foram taxados de atrasados e percebidos como obstáculos a plena realização de uma nacionalidade abstrata. A ausência de uma administração colonial não inviabilizou a colonialidade do pensamento. Um dos mais poderosos instrumentos político – ideológico do século XX foi a crença em um mundo pós-colonial, originado a partir da descolonização e do afastamento das antigas metrópoles dos limites territoriais das colônias. Esta perspectiva é a base do raciocínio terceiro mundista. Saímos, sem sombra de dúvida, de um mundo caracterizado pelas relações coloniais. No entanto, permanecemos a viver diante das mesmas matrizes do poder colonial (GROSFOGUEL, 2010). A atual mundialização capitalista, vulgarmente denominada de globalização, é reprodutora e amplificadora de uma colonialidade em escala global. Os preconceitos étnicos raciais, os machismos, as homofobias, os fundamentalismos pautados no hierarquizado pensamento ocidental continuam tão atuantes como antes nas formas de acumulação de capital, bem como na Divisão Internacional 84 | do Trabalho (QUIJANO, 2007). A mitologia da descolonização do mundo durante o século XX gera uma invisibilidade das formas de manutenção da colonialidade do momento presente. A consolidação do atual sistema – mundo (WALLERSTEIN, 2003) estabeleceu discursos fundamentados em categorias, como a de “identidade nacional”, “Desenvolvimento Nacional”, “Soberania Nacional”, fabricantes de uma ilusão de independência (GROSFOGUEL, 2010). O atual mito anglo-europeu advoga a tese de que presenciamos, com o fim dos impérios coloniais e descolonização do planeta, um mundo globalizado desprovido de centro e periferia, subjetivamente apreendido pelas leituras de caráter pós-modernas. A pós-modernidade é uma contundente crítica às antigas formas de legitimação da sociedade capitalista moderna, em um contexto, segundo o qual, a própria reprodução socioeconômica da estrutura societária capitalista necessita de interpretações e compreensões que neguem as metas narrativas e se concentrem na constituição das diferenças como condição elementar da produção de novos nichos de mercado. Neste sentido, as leituras pós-modernas são as expressões contemporâneas da legitimidade de um sistema-mundo produtor, reprodutor e consumidor de mercadorias. Repensando a metodologia em extensão universitária As práticas extensionistas não podem estar desassociadas do conteúdo das disciplinas ministradas nos diversos cursos de graduação e pós-graduação existentes no interior das Universidades. Tal qual a Pesquisa, o trabalho de Extensão ainda não se integra ao ensino, mostrando-se fragmentado e desconexo. Sua pouca disseminação contribui para uma formação profissional distante das necessidades fundamentais de nosso povo. A necessária aproximação com o Ensino se faz tão imperioso como a eliminação EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 85 do abismo que separa a Extensão da Pesquisa. As ações extensionistas têm o potencial de revelar o contexto da Pesquisa, sendo que, de forma ativa e participativa, pode descortinar e apresentar novos temas e problemas, bem como contribuir na indicação da superação dos mesmos (BEDIM, 2006). A metodologia de Pesquisa/Extensão nas Universidades brasileiras, gradativamente, vem apresentando uma inclinação para além do método positivista, que em seu pretenso empirismo, enquadrou as diferentes realidades às necessidades preconizadas pelo método, invertendo a relação necessária para a elaboração do saber, isto é, parte-se da realidade para o método e não o inverso. Em inúmeros casos, a complexidade fenomênica não emoldurada pelo método era, simplesmente, descartada, com sérios prejuízos ao pleno entendimento da realidade percebida. Na execução e elaboração de projetos de Extensão, a metodologia necessita ser participativa, para que, de forma consciente, seja emaranhada uma complexa trama coletiva que envolva diagnóstico, Ensino, Pesquisa, capacitação e comunicação, no intuito de alcançar um objetivo em comum (THIOLLENT, 2000). As metodologias de pesquisas participativas devem observar as características da ação extensionista (comunicativa, investigativa, educativa), para sua melhor adequação, além de estar condizente com o método trabalhado. Segundo Triviños (1987), o ecletismo teórico e a mistura desregrada de antagônicas correntes do pensamento acabam por revelar nossa fraqueza intelectual. As afinidades ideológicas dos Pesquisadores – Extensionistas não necessitam ser camufladas. O fundamento político é um dado significante no processo de elaboração do diagnóstico e na própria intervenção social. O Pesquisador – Extensionista, na metodologia participante, não é um objeto permeado do mito da neutralidade científica, que busca um distanciamento quase higienista na dicotômica relação sujeito – objeto. Pelo contrário, envolve-se, profundamente, nas práticas, hábitos e costumes 86 | dos grupos sociais que, por sua vez, posicionam-se ativa e criticamente em todos os momentos da prática de Extensão Universitária, sendo, ele próprio, um pesquisador de sua realidade, promovendo uma mudança epistemológica com fortes impactos na práxis social. É a partir desta perspectiva teórica e política que entendemos e percebemos a possibilidade de construção de uma experiência em Educomunicação, tendo como entidade parceira a Rádio 13 de Maio FM (município de Goiás – GO), estabelecendo um diálogo entre os conhecimentos acadêmicos e os saberes populares. Tal experiência vivenciada em um processo dialógico permite, além da discussão de temas importantes para o desenvolvimento da comunidade local e regional, um processo de formação para professores e alunos universitários, tirando das gavetas os estudos, pesquisas e propostas dispostas na universidade, transformandoos em pesquisas coletivas capazes de envolver, diagnosticar e elaborar conhecimentos condizentes com a realidade existente. Referências ABERT. Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão. Pesquisa sobre o rádio no Brasil. 2012. Disponível em: www.abert.org.br. Acesso em 23 de dezembro de 2013. AZEVEDO, Lia Calabre. No tempo do rádio: radiodifusão e cotidiano no Brasil 1923 – 1960. Tese de Doutorado. Niterói: UFF, 2002. BEDIM, Juçara Gonçalves Lima. Uma proposta de metodologias participativas na extensão universitária: o ensino de idiomas como uma vertente instrumental. 2006. Tese (Doutorado em Educação). 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A partir dessa hipótese, as problemáticas levantadas sobre a pesquisa na vida acadêmica do referido curso estão articuladas com as questões relacionadas com a extensão. O presente texto trata, justamente, dessa imbricada relação entre pesquisa e extensão, com um viés de aprofundamento na questão da ética. Como fazer pesquisa e extensão em Serviço Social de forma a considerar princípios éticos? Esta pergunta – que não é fácil de ser respondida – será o foco deste texto, haja vista que as atividades de pesquisa e de extensão, no âmbito do conhecimento do Serviço Social, são condições sine qua non para o alargamento dos horizontes profissionais e científicos atribuídos a essa profissão. Isso, porque acreditamos que dar relevo à dimensão da investigação e da intervenção nas atividades no serviço social possibilita superar um sentido atribuído a essa profissão – na qual, muitas vezes, a atividade dos assistentes sociais é sinônimo de uma atividade meramente pragmática (FRAGA, 2010). De acordo com a autora, a profissão do/a assistente social é “essencialmente interventiva” e não pode prescindir da realização de pesquisas so91 92 | bre a realidade que acerca o trabalho entre o assistente social e o usuário. Meu argumento é o de que, sendo interventivas, não são somente as atividades de pesquisa que possibilitam a formação dessa modalidade de profissional – interventivo. São, sobretudo, as atividades de extensão que pressupõem, inúmeras vezes, as atividades de investigação pautadas pela pesquisa – que permitem experiências de ensino-aprendizagem interventivas. Articuladas, a pesquisa e a extensão, ou seja, a formação investigativa e interventiva demanda recusar a prática de solucionar os problemas da sociedade de forma imediata, sem pensar ou refletir com densidade, e sem, inclusive, experienciar a extensão. Essas reflexões em torno da dimensão investigativa e extensionista do trabalho do Assistente Social nas Universidades rebatem na discussão sobre a natureza da formação para essa profissão, já que Serviço Social, para alguns, não é considerado uma ciência, apenas operando instrumentais teórico-metodológicos advindos de áreas externas, como, por exemplo, a Sociologia. Em outra direção, será possível ao graduando em Serviço Social encaminhar atividades de ensino-aprendizagem de cunho investigativo e interventivo, isto é, na pesquisa e na extensão. À/ao graduanda/o em Serviço Social, será possível ultrapassar a mera repetição de conhecimentos acadêmicos. Mas, de acordo com Fraga (2010, p. 43), isso possibilitará a construção de um conhecimento científico, já que: O Serviço Social é uma profissão reconhecida na sociedade na medida em que é socialmente necessária e exercida por um grupo social específico, uma categoria profissional que compartilha um sentimento de pertencimento e possui uma identidade profissional. Se a identidade é um construto social (HALL, 2002), não há como deixar de ressaltar que o sentimento de pertencimento à profissão da/o assistente social está ancorado no processo de ensino-aprendizagem confiado a alunas e alunos, e no trabalho EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 93 que abrange, no seu processo de construção de conhecimento científico, o forjamento de conceitos específicos à área. Como trabalho, o Serviço Social atua nas expressões da questão social, compreendida como as desigualdades resultantes da contradição básica da sociedade capitalista: a contradição entre capital e trabalho. Por questão social, compreende-se as “múltiplas formas de pressão social, de invenção e de re-invenção da vida construída no cotidiano” (IAMAMOTO, 2008, p. 28), as “múltiplas expressões coletivas inscritas na vida dos sujeitos” (IAMAMOTO, 2009, p. 343), as quais não se esquiva de tensões entre rebeldia e consentimento. Ao nutrirem-se de investigação científica e experiências extensionistas, estudantes e professores em Serviço Social aprimoram o manuseio de ferramentas metodológicas que lhes possibilitem lançarem mão de pesquisas quantitativas e qualitativas e experiências de prestação de serviços com a comunidade, na busca de conhecer, com mais fundamentação e densidade, o funcionamento da questão social e a realidade que cerca a experiência entre o profissional e o usuário. Não há como negar a importância dessas ferramentas, uma vez que o/a assistente social precisa aprender a “desvendar e problematizar a realidade social” além de “intervir” nessa realidade. (FRAGA, 2010, p. 46). Essas considerações confirmam-nos que, ao lado das experiências extensionistas, “a atitude investigativa torna possível a superação da visão pragmática na ação profissional, centrada na imediaticidade dos fatos e que privilegia sequências empíricas” (FRAGA, 2010, p. 47). Logo, não há como negar que o exercício profissional do/a assistente social é um exercício científico, que resulta na construção de um saber, tanto para aqueles/as que pensam quanto para os que executam a profissão. É essa atitude investigativa que, segundo Fraga (2010, p. 53), possibilita a “superação da visão pragmática na ação profissional, centrada na imediaticidade dos fatos e que privilegia sequências empíricas”. 94 | Tais considerações iniciais nos conduzem a reconhecer o desafio que é pensar acerca da questão que dá início a esse texto. Não se trata de uma pergunta fácil de ser respondida. Talvez ela não tenha mesmo uma resposta do tipo receituária, o que nos restringirá a apontar caminhos, sugerir reflexões. As reflexões sobre ética e ética profissional no âmbito do exercício de atividades de pesquisa e de extensão, nos cursos de formação acadêmica em Serviço Social, ancoram-se em discussões teóricas amplas e profissionais específicas do trabalho da/o assistente social. As concepções ali construídas estão imbricadas em um projeto ético-político que preside a regulamentação da profissão, por meio da qual as/os assistentes sociais passam a ter seu trabalho norteado por um Código de Ética. Ainda há pouco discutidas em termos de normativas específicas da profissão, as questões da Ética em pesquisa e, menos ainda, em extensão, têm sido apropriadas nos termos de outras legislações, que não os do Serviço Social. Discute-se muito sobre a ética profissional no âmbito da profissão, ao passo que a ética em pesquisa científica e, menos ainda, as atividades extensionistas no Serviço Social, ficam restritas, localmente, ao interior dos debates e encaminhamentos dos Comitês de Ética nas universidades, muitas vezes direcionados pelos parâmetros das ciências da saúde. Nesse espaço singular, entre as normativas da profissão e da prática da pesquisa científica, as questões éticas emergem pautadas nas regulamentações de outras ciências ou disciplinas. É nesse contexto que, em 1996, o Conselho Nacional de Saúde, no Brasil, aprovou a Resolução 196, de 10 de outubro de 1996, que estabelecia as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos. Posteriormente, entrou em vigor a Resolução 466, de 12 de dezembro de 2012, que atualizou as perspectivas da normativa anterior. Estas normativas estão ancoradas nos princípios dos principais documentos internacionais por meio das quais emanaram declarações e dire- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 95 trizes sobre pesquisas envolvendo seres humanos: o Código de Nuremberg (1947), a Declaração de Direitos do Homem (1948), a Declaração de Helsinque (1964, 1975, 1983 e 1989), o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966, aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992), dentre outros. Segundo as Resoluções, quatro referenciais básicos da Bioética são incorporados, sob a ótica do indivíduo e da coletividade: a autonomia, o princípio da não maleficência, a beneficência e a justiça, na busca por assegurar direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos de pesquisa e ao Estado. Não há como negar que estas diretrizes têm sido o caminho adequado para que as pesquisas e as atividades extensionistas oriundas das ciências da sociedade pudessem ser apreciadas com base nos parâmetros ético-político-científicos próprios deste campo de saber. Um pouco sobre ética em pesquisa e em extensão na formação em Serviço Social Para podermos tecer nossas considerações acerca da ética em pesquisa e extensão, em um curso de graduação em Serviço Social, torna-se fundamental navegarmos por algumas definições gerais acerca dos conceitos básicos que encampam esse campo de discussão. Segundo Vázquez (2003, p. 17), [...] os homens não só agem moralmente (isto é, enfrentam determinados problemas nas suas relações mútuas, tomam decisões e realizam certos atos para resolvê-los e, ao mesmo tempo, julgam ou avaliam de uma ou de outra maneira estas decisões e estes atos), mas também refletem sobre esse comportamento prático e o tomam com objeto da sua reflexão e de seu pensamento. Imaginemos que essa citação de Vázquez se referisse não aos homens [e mulheres] que vivem em uma sociedade em geral, 96 | mas que fosse atribuída aos homens [e mulheres] que fazem ciência na Universidade, em particular, nos cursos de Serviço Social. Poderíamos reler esse trecho na busca por considerar que assistentes sociais fazem pesquisas científicas e executam atividades de extensão dentro de um enquadramento de normas aceitas como morais (isto é, comprometidas com um Código de Ética Profissional do Assistente Social), de forma a possibilitar a elaboração de um saber particular a esse campo de trabalho, para além de reproduzirem uma mera operação técnica da profissão. Fazer pesquisa, nesse caso, implicaria analisar um objeto de investigação em face de problematizações oriundas de suas relações com o mundo a sua volta, a partir de escolhas teórico-metodológicas que possam se adequar às suas expectativas e às suas condições prévias, de forma a possibilitar conhecer, posteriormente, o trajeto percorrido. Da mesma forma, executar uma atividade de extensão universitária demanda circunscrever as atividades de prestação de serviços para a comunidade a um recorte político-ideológico, bem como a dimensões prático-operativas. Assim, tanto a prática de investigação no campo da pesquisa quanto da intervenção no campo da extensão não poderiam estar desvencilhadas de uma reflexão por parte das/os pesquisadoras/es e extensionistas em Serviço Social sobre o objeto escolhido, o trajeto percorrido, as ideologias alicerçadas e os instrumentos selecionados. Que recortes espaço-temporal seriam realizados? Que grupos da comunidade seriam beneficiados? Como a pesquisa e a extensão seriam delineadas? Que sujeitos seriam escolhidos para a submissão às pesquisas de campo e quais seriam atendidos pelas atividades de extensão? Quais instrumentos teórico-metodológicos seriam operados? Como os sujeitos seriam abordados, em que lugar, em que circunstâncias? Haveria a possibilidade de este sujeito, uma vez a pesquisa ou a extensão, iniciadas, recusar a continuidade do trabalho? Teriam a privacidade e a confidencialidade dos dados fornecidos pelo sujeito de pesquisa e da comunidade atendida, ga- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 97 rantidos? Em suma, estas são algumas questões que acenam para reflexões éticas que pesquisadores e extensionistas em Serviço Social poderiam levantar em suas investigações científicas e intervenções extensionistas. As reflexões aqui levantadas não estão circunscritas a situações concretas ou específicas propriamente ditas, apesar de eu não deixar de lançar mão de exemplos para substanciar minhas inquirições. São reflexões de caráter geral e, portanto, passíveis de serem atribuídas em diversos trabalhos de pesquisa e de extensão em Serviço Social, já que o próprio Vázquez (2003, p. 19) nos recorda que “os problemas éticos caracterizam-se pela sua generalidade”, já que a ética é uma “teoria, investigação ou explicação de um tipo de experiência humana ou forma de comportamento dos homens, o da moral, considerado, porém, na sua totalidade, diversidade e variedade” (VÁZQUEZ, 2003, p. 21). Não há, portanto, como deixar de definir, aqui, que entendemos ética como sendo ancorada na acepção de Vázquez (2003, p. 23), “a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade”. Em um universo como o da academia, a ética seria, parafraseando Vázquez, uma teoria sobre as condições morais da pesquisa científica. No caso da pesquisa e da extensão em Serviço Social, praticada no âmbito acadêmico, a reflexão ética poderia estar associada às considerações de Barroco (2010, p. 55), para quem esta forma de pensamento supõe uma “suspensão da cotidianidade” de forma a “sistematizar a crítica da vida cotidiana”; uma forma de “ultrapassar o conformismo”; e uma perspectiva voltada para “elevação aos valores humano-genéricos”. No Serviço Social, a reflexão ética caracteriza-se por ser um saber ontológico capaz de refletir sobre o ser na sua totalidade, em direção a “apreender criticamente os fundamentos dos conflitos morais e desvelar o sentido e determinações de suas formas alienadas” (BARROCO, 2010, p. 56); apreender a “relação entre a singularidade e a universalidade dos 98 | atos ético-morais”; responder aos “conflitos sociais, resgatando os valores genéricos” e ampliar a “capacidade de escolha consciente”, sobretudo, quando se indaga sobre “as possibilidades de realização da liberdade”. Em suma, a ética é uma prática de exercício da liberdade, estimuladora da criatividade, capaz de fazer do sujeito ético uma ponte para a constituição de um gênero humano “para si” (LUKÁCS apud BARROCO, 2010, p. 64). Submeter projetos de pesquisa e de extensão ao Comitê de Ética na Universidade Federal de Goiás Há 4 anos, estou como membro do Comitê de Ética em Pesquisa de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Federal de Goiás (CEP/UFG). Ali, desenvolvo atividades em formato de parecerista de projetos de pesquisa que apresentam, em suas propostas metodológicas, o uso de abordagens de pesquisa com sujeitos de pesquisa. O/a leitor/a já deve notar que o destaque dado à pesquisa é claro. No entanto, em minha opinião, os projetos de extensão e as atividades daí decorrentes não poderiam prescindir de apreciações do CEP/UFG, haja vista o fato de intervirem, diretamente, na vida das pessoas da comunidade. O uso da dicotomia investigação para pesquisa e intervenção para extensão foi proposital até aqui, usada como recurso discursivo voltado para acentuar a influência das atividades de extensão na vida das pessoas. Dessa forma, ao longo da explanação sobre as atividades ali desenvolvidas com relação aos projetos de pesquisa, farei algumas colocações e interrogações sobre como os projetos de extensão, também, poderiam ser apreciados pelo comitê. Semanalmente, nos reunimos nas dependências da Reitoria da UFG a fim de relatarmos e discutirmos projetos de pesquisa em ciências humanas e sociais que envolvam seres humanos como sujeitos de pesquisa. Para lá, nos são apresentados projetos de inúmeras áreas de conhecimento dentro do campo das ciências que EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 99 estudam as relações sociais, desde as áreas humanas propriamente ditas até as áreas da saúde que pesquisam seres humanos. Nessa perspectiva, um trabalho de pesquisa que se propõe a aplicar questionário a uma comunidade de ciganos, em Goiânia, possui tantas preocupações quanto um projeto de odontologia que vise aplicar teste nas arcadas dentárias de pessoas entre 18 e 45 anos. Em resumo, atividades de pesquisa de campo de aplicação de questionário, entrevistas semiestruturadas, realização de grupo focal compreendem métodos passíveis de uma reflexão ética pelo/a pesquisador, orientadas pelo parecer de um Comitê de Ética institucionalizado. Por que uma atividade extensionista que prevê prestação de serviço à comunidade, por meio de manuseio de instrumental profissional pertencente ao Serviço Social, não poderia ter a mesma apreciação que a pesquisa em um Comitê de Ética? Por que uma atividade de capacitação de agentes de saúde por extensionistas universitários não poderia ser submetida a um Comitê de Ética? Por que uma atividade de extensão em um presídio não poderia oferecer riscos aos re-educandos? Os projetos de pesquisa em Serviço Social, apresentados ao CEP/UFG, possuem, na maioria das vezes, uma proposta metodológica marcada por modalidades de investigação passíveis de oferecerem riscos aos sujeitos de pesquisa. De certa forma, projetos e atividades de extensão possuem métodos de intervenção passíveis de colocar o sujeito da extensão em algum tipo de risco, quando não são garantidos princípios como os de confidencialidade ou privacidade. Estariam os projetos de extensão eximidos dos riscos aos sujeitos da extensão? Teria a comunidade a garantia do sucesso das atividades de extensão? À luz das questões éticas, em minha opinião, pesquisadores e extensionistas precisam refletir eticamente sobre quem é o sujeito de sua pesquisa e da sua atividade de extensão. Isso, porque caso o sujeito seja menor de 18 anos, as pesquisas e as atividades de extensão em Serviço Social deverão seguir orientações éticas 100 | comprometidas com o resguardo e a proteção destes sujeitos, de forma a não ferir sua integridade, não produzir constrangimentos com os sujeitos. Por exemplo, pessoas menores de 18 anos somente podem participar de pesquisas científicas e atividades de extensão universitária no Serviço Social com a devida autorização de seus pais ou responsáveis. Outro ponto importante a ser considerado na realização de pesquisa em Serviço Social é com relação à definição clara dos critérios de participação, inclusão e exclusão na pesquisa e/ou na atividade de extensão, além da interrupção da mesma. Os sujeitos não podem ser submetidos à pesquisa e também não poderiam participar de uma atividade extensionista sem uma coordenação planejada na execução do projeto de pesquisa. Além disso, precisam ter garantidos seus direitos de se retirarem da pesquisa ou da atividade de extensão quando acharem necessário. O pesquisador e o extensionista em Serviço Social, da mesma forma, devem dar orientações seguras sobre quando a pesquisa e a atividade de extensão, praticadas com os sujeitos, poderão ser interrompidas. Em direção semelhante, os projetos de pesquisa e as atividades de extensão universitária em Serviço Social precisam apresentar uma descrição clara do desenho e metodologias adotados em adequação aos objetivos da pesquisa e da prática da extensão, de forma a não prejudicar o resultado feito a partir do levantamento de dados, dos serviços prestados, das metodologias aplicadas e dos instrumentos operados. Um resultado pode vir a ser fracassado caso produza uma desnecessária dilatação do tempo de exposição dos sujeitos à pesquisa ou à extensão. Assim, o sujeito precisa ter esclarecimentos sobre os possíveis riscos decorrentes de sua participação na pesquisa ou na extensão, haja vista que qualquer atividade acadêmica na comunidade – seja de pesquisa, seja de extensão – pode oferecer riscos, mesmo que os benefícios colhidos sejam grandiosos. Seria necessário obter consentimento para que usuários possam participar de atividades de pesquisa e de extensão uni- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 101 versitária em Serviço Social? Antes de iniciar a coleta de dados em uma pesquisa em Serviço Social, é comum que o pesquisador dê esclarecimentos suficientes ao sujeito de pesquisa, bem como ao Comitê de Ética, sobre as circunstâncias sob as quais o consentimento será obtido, quem tratará de obtê-lo, em que lugar. Este consentimento pode ser celebrado por meio da assinatura de um contrato entre o assistente social pesquisador e o sujeito de pesquisa: o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O TCLE deve informar, em linguagem clara, dados suficientes sobre a pesquisa, como a identificação do pesquisador, os objetivos e aspectos da metodologia da pesquisa. Este documento, também deve situar os sujeitos envolvidos na participação voluntária e os possíveis desconfortos, riscos e benefícios da participação na pesquisa. Ressalta-se que o documento deve encontrar-se devidamente adaptado para casos em que o sujeito de pesquisa for menor de 18 anos. Por último, o pesquisador em Serviço Social, por ser um profissional engajado politicamente, precisa pensar no tipo de “retorno” dos resultados da pesquisa para os sujeitos de pesquisa envolvidos. Seria necessário construir um documento semelhante para reger a relação entre extensionistas e membros da comunidade? Com que instrumentos extensionistas se celebraria a participação de usuários em atividades de extensão universitária? Seria imprescindível um Termo de Participação Livre e Esclarecido (TPLE)? Quais os limites e as possibilidades de um documento dessa natureza para que usuários possam participar, com segurança, de atividades de extensão, oferecidas em curso de graduação em Serviço Social? Considerações finais: a ética como liame entre a pesquisa e a extensão na formação em Serviço Social Penso que as perguntas e as considerações feitas nesse artigo não podem ser imediatamente respondidas, mas acenam para 102 | os limites e as possibilidades em torno das condições que pesquisadores e extensionistas em Serviço Social terão para construir suas investigações-intervenções. Assim, respeitar-se-ão aspectos morais da sociedade, sem cair na aceitação cega e desprovida de crítica, de normas de comportamento e valores da sociedade burguesa, além de fazer reflexões sobre suas condutas, sem emperrar o exercício da pesquisa e da extensão. A ética, aqui, não pode ser tomada como um conjunto de normas que norteia a prática universitária em curso de graduação em Serviço Social. Longe disso, a ética é uma reflexão sobre a prática, um exercício do pensamento sobre as atividades acadêmicas. A ética é uma abordagem sobre a experiência na vida. Em incontornável articulação à luz de uma reflexão ética, pesquisa e extensão, investigação e intervenção, uma contém e pressupõe a outra. Resultados de pesquisas produzidas por professores/as do curso de Serviço Social poderiam ser desdobrados em atividades de extensão. Extensionistas do curso de Serviço Social precisariam empreender outras pesquisas com o desdobramento de suas atividades de extensão. Provocaríamos, por fim, o/a leitor/a: seria possível pensar a extensão sem praticar a pesquisa? Seria possível pensar a pesquisa, sem praticar a extensão? Desafios à vista para a formação em Serviço Social... Referências BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. 8 ed. São Paulo: Cortez, 2010. BRASIL. Resolução 196/96, de 10 de outubro de 1996. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Disponível em: http://www.prppg.ufg.br/pages/14396. Acesso em 07 out. de 2012. BRASIL. Resolução 466/12, de 12 de dezembro de 2012. Disponível em: www.prppg.ufg.br Acesso em 09 out. de 2013. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 103 FRAGA, Cristina K. A Atitude Investigativa no trabalho do Assistente Social. Serviço Social e Sociedade. São Paulo, n. 101, p. 40-64, jan./ mar.2010. HALL, Stuart. A identidade cultura na pós-modernidade. (Trad. Tomaz Tadeu e Silva & Guacira Lopes Louro). 7 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. IAMAMOTO, Marilda. Os espaços sócio-ocupacionais do assistente social. In: CFESS; ABEPSS. Direitos sociais e competências profissionais. Brasília, 2009. p. 341-376. IAMAMOTO, Marilda. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 15 ed. São Paulo: Cortez, 2008. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 24 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. JUVENTUDE, CONTEMPORANEIDADE E DROGADIÇÃO: O CRR GOIÁS E SUAS CONTRIBUIÇÕES À TEMÁTICA PELA VIA DA ATUALIZAÇÃO DE UMA DISCUSSÃO DE VIÉS PSICANALÍTICO ACERCA DOS ASPECTOS QUE ENVOLVEM O ABUSO14 DE DROGAS NA JUVENTUDE Rosane Castilho Introdução A s discussões que deram forma a este trabalho foram realizadas por pesquisadores15 do grupo de estudos “Juventude, contemporaneidade e drogadição”, da Universidade Estadual de Goiás. Tiveram início em 2011, quando da entrada da Unidade Universitária de Goiás, no programa governamental “Plano integrado de enfrentamento ao crack e outras drogas”, contemplado pelo edital relativo à Implantação do Centro Regional de Referência para formação permanente dos profissionais que atuam nas redes de atenção integral à saúde e de assistência social com usuários de crack e outras drogas e seus familiares. Institucionalmente, o CRR Goiás inscreveu-se como um Projeto Extensionista da Universidade Estadual de Goiás e realizou-se entre os anos de 2011 e 2012, e cujas reuniões ocorreram sempre às quintas-feiras, entre 17h e 18h45 horas, no interior do Campus Cidade de Goiás, contando com docentes dos colegiados de Geografia, Letras, His14O termo “abuso” significa, neste contexto, um padrão mais grave de dependência, envolvendo complicações clínicas e consequências de ordem psicossocial e/ou legal ao usuário. 15Dentre eles, as contribuições dos docentes Angela Lapidus, psicóloga de formação, cuja atuação profissional voltou-se para a questão da aplicabilidade das políticas públicas no campo da saúde, e de Marcelo de Mello, Pós-Doutor em Geografia Urbana, cujas considerações se mostraram essenciais no encaminhamento da discussão sobre a temática, sugerindo novos olhares para além dos relativos aos campos da saúde, educação e sociologia. 105 106 | tória e Matemática, além dos bolsistas lotados no projeto. Sua reedição chegou a ser aventada pelo grupo, não sendo levada a cabo em função da mudança institucional da coordenação do Projeto CRR Goiás, que passou a ser coordenado pela Pró-Reitora de Extensão da UEG. Cabe-nos informar que a eleição da categoria social juventude como objeto/sujeito das reflexões travadas no Grupo de Estudos, acerca do fenômeno da drogadição, representou um recorte, dado o interesse particular desta pesquisadora em interpretar os discursos que trabalham a interface entre o abuso das drogas e a condição de vulnerabilidade, na qual os jovens têm sido, frequentemente, inscritos, aspecto que foi acordado com o grupo anteriormente ao início dos trabalhos. Neste sentido, o presente trabalho16 propõe-se a realizar uma atualização das discussões sobre a temática drogadição, abordando aspectos que impactam a constituição do sujeito contemporâneo: o imperativo da imagem, o paradigma do ‘ideal’, a não aceitação da falta como condição humana fundante e a insuficiência das figuras de autoridade no contexto familiar. Importante comentar que o ‘espírito dos tempos’ marca, com frequência considerável, a categoria social juventude por ser esta considerada, entre outras referências, como uma metáfora da permeabilidade. Neste sentido, os aspectos acima citados nos parecem cruciais para consubstanciar a discussão sobre a adição às drogas, comportamento observado por um grande número de pesquisadores, como representativo de um sintoma contemporâneo. As contribuições primeiras a que este trabalho se propõe são relativas ao enfoque teórico e conceitual, em uma perspectiva psicanalítica, utilizando quatro eixos referenciais: a contemporaneidade, a família e o esvaziamento de sua condição de autori16Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no V JUBRA (Simpósio Internacional sobre a Juventude Brasileira) realizado pela UFPE, em 2012, e cujo teor é objeto de um capítulo de obra “JUBRA: Territórios Interculturais de Juventude”. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 107 dade, as pulsões e suas possíveis formas de manejo e o processo de desinvestimento emocional, enquanto condições que se articulam no trabalho sobre a realidade psíquica na adição. A partir da sua problematização, tecem-se, aos poucos, os fios desta teia, cujo pressuposto básico é o lugar assumido pelo sujeito diante das excessivas demandas do mundo contemporâneo. Uma primeira versão sobre os pressupostos que envolvem esta discussão foi desenvolvida na obra “Réquiem para um sonho: entre a psicanálise e a cultura”, publicado por esta autora, em 2007. Nela, a proposta de abordar a questão, entre outras, da adição às drogas a partir do filme homônimo, deu-se em função da crença de que os filmes, como formas de expressão cultural, assumem importância destacada na formação das mentalidades em sociedades, cujo apelo visual mostra-se um imperativo. Nele, também se salientou a importância das experiências vividas em determinado contexto sócio-histórico-cultural na formação do sujeito e na constituição de subjetividades, já que estas impactam a produção de saberes, identidades, crenças e, mais além, impactam a construção de uma visão de mundo ancorada no que se pode chamar de “espírito dos tempos”. Assim, o presente trabalho busca atualizar a discussão sobre o abuso das drogas, trazendo em seu bojo uma reflexão sobre as características do cenário contemporâneo e sua contribuição na construção das subjetividades dos sujeitos marcados, sobretudo, pela instabilidade e insegurança propiciadas pela ênfase dada à flexibilidade, à pluralidade, à supervalorização do tempo presente e à fragilidade dos modelos disponíveis, visando contribuir na compreensão dos fatores que envolvem este fenômeno contemporâneo. Trata-se, ao fim e ao cabo, de compreender, à luz dos pressupostos psicanalíticos, as estratégias utilizadas pelo sujeito contemporâneo para lidar com o real marcado pela flutuação entre escassez e excesso, tédio e êxtase, solidão e pertencimento, corporeidade e anulação, examinados pelo prisma de um mal-estar que 108 | se inscreve com grande força na atualidade. Embora saibamos que os sujeitos que fazem uso abusivo de drogas não constituem um grupo homogêneo, diferenciando-se na escolha da droga, nos motivos e padrões de consumo e, ainda, nos perfis psicossocial, econômico, cultural e de gênero, cabe-nos buscar investigar alguns aspectos potencialmente influenciadores desta conduta que toma formas de epidemia social na contemporaneidade, atingindo, mais fortemente, uma categoria social específica: a juventude. Pistas para investigar a droga como fenômeno social de viés epidêmico A contemporaneidade e suas vicissitudes Iniciamos esta breve atualização retomando a ideia de que o abuso das drogas, visto como patologia social, pode ser pensado pela via das mudanças observadas a partir da irrupção de novos valores, crenças e sentidos, em um contexto de crise, enlaçado ao crescente valor da individualidade, a exacerbação do narcisismo e de um hedonismo ressignificado, sugerindo a análise de questões importantes que afetam as escolhas dos sujeitos (CASTILHO, 2011). Neste contexto, um aspecto que julgamos merecer atenção por influenciar, sobremaneira, as subjetividades, é o poder das mídias na constituição ou no que poder-se-ia chamar de um “poderoso processo de intervenção” nas formas de ser, pensar e agir na atualidade. Neste sentido, aponta-se para uma ferramenta potente do funcionamento psíquico que se coaduna com a lógica midiática: uma dada modalidade de funcionamento do imaginário que ignora as regras do pensamento crítico, pois o mesmo “só é convocado a operar quando falha a realização de desejos.” (KEHL, 2004b, p. 91). Neste sentido, a lógica midiática, trabalhando na promoção do rebaixamento da capacidade crítica dos sujeitos, promove a ascensão de um modo de vida alienado, já que, neste modo EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 109 paradigmático de comunicação de massas, há um discurso genérico endereçado a um sujeito igualmente genérico, com as características de um produto feito em série. Assim, o apelo às massas é destinado àquele que, na tentativa de tornar-se igual, torna-se ninguém e tem seu prazer realizado por procuração. De certa forma, pode-se dizer que a lógica televisiva (aqui representada pela maioria dos programas da televisão aberta, com seu usual apelo ao entretenimento vazio de conteúdos) convoca o sujeito a ‘atuar’ sobre seu cotidiano como se vivesse num contexto de puro entretenimento. Assim, a mídia de massa aplaca a angústia ao negar a dimensão subjetiva dos sujeitos, transportando-os a uma “dimensão espetacular”. Pela proposta de anulação desta capacidade crítica, entregam-se corpo, espírito e ideais na busca por um sentido de pertencimento. Neste sentido, Ianni (2000) nos informa que a televisão “registra e interpreta, seleciona e enfatiza, esquece e sataniza o que poderia ser a realidade e o imaginário” (p. 149). E vai mais além: “transforma a realidade, seja em algo encantado seja em algo escatológico, em geral virtualizando a realidade, em tal escala que o real aparece como forma espúria do virtual” (idem). Sob esta ótica, o referencial passível de subsidiar reflexões sobre a lógica midiática é o do espetáculo. Segundo Debord (1992), “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção apresenta uma imensa acumulação de espetáculos” (p. 23). Assim, o que se experiencia, a partir de um modo particular de funcionamento social, que o autor cunhou de ‘Sociedade do Espetáculo’, passa a ser vivido como representação. Neste sentido, o espetáculo seria uma relação social entre pessoas mediadas pelas imagens, cuja origem é a condição de alienação: “a abstração de todo trabalho particular e a abstração geral da produção com um todo se traduzem perfeitamente no espetáculo.” (idem). Neste sentido, o autor comunga com outros teóricos contemporâneos (BAUDRILLARD, 2001; FEATHERSTONE, 1997) 110 | quando associa a vida de consumo à espetacularização da vida: “o espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela” (DEBORD, 1992, p. 30). Há que se pensar que o tempo presente, caracterizado pela produção e manutenção das incertezas engendradas pela magnitude das mudanças paradigmáticas e pela ambivalência relativa a valores e representações sociais, gera, nos sujeitos, a sensação de um “vazio” que demanda preenchimento. Este mal-estar, encontrando eco na lógica do imaginário, viria a produzir “sujeitos-caricatura”, uma espécie de espectadores de si mesmos. Neste contexto, o sujeito, distante da condição de protagonista de sua história, rende-se ao modelo caricato das fantasias criadas pela vida de entretenimento proposta pelos ícones dos massmedia. Na esteira desta discussão, Kehl (2004a) distingue o momento presente de outros períodos da modernidade a partir da “espetacularização da imagem e seu efeito sobre a massa dos cidadãos diferenciados, transformados em plateia ou em uma multidão de consumidores da aparente subjetividade alheia” (p. 66). Desta forma, a busca da desvitalização da capacidade cognitiva dos sujeitos objetiva produzir, nos mesmos, uma incapacidade de identificar, em suas experiências cotidianas, mínimos vestígios de significação. Ao contrário, produz-se um padrão único de representação, a fim de que estes enxerguem em suas vivências - distintas do modelo - apenas fragilidade e fragmentação. Neste sentido, vale lembrar que a exacerbação dos planos individuais e privados desvitaliza, tanto as representações coletivas, quanto o lugar do outro como referência simbólica. Sobre este processo, Birman (2000, p. 188) comenta: Pelos imperativos da estetização de existência e de inflação do eu, pode-se fazer a costura entre as interpretações de Debord EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 111 [sociedade do espetáculo] e Lasch [cultura do narcisismo], já que a exigência de transformar os incertos percalços de uma vida em obra de arte, evidencia o narcisismo que o indivíduo deve cultivar [...]. As individualidades se transformam, pois, tendencialmente, em objetos descartáveis, como qualquer objeto vendido nos supermercados e cantado em prosa e verso pela retórica da publicidade. Pode-se depreender, com facilidade, que a alteridade e a intersubjetividade são modalidades de existência que tendem ao silêncio e ao esvaziamento. Outro aspecto que observamos como relevante é a organização do laço social contemporâneo, já que este se faz enxergar na atualidade, de acordo com os autores, como forma dominante, no binômio capitalismo-perversão. Em trabalho anterior, Castilho (2011) reflete sobre os tempos históricos e seus valores de referência: daí investigar as representações de um tempo “sólido”, no qual a tarefa do traçado de autoidentificação estava intrinsecamente ligada aos valores vigentes na cultura e, consequentemente, à confiança nas referências do grupo, que, tendo por base a força das estruturas sociais no cotidiano dos sujeitos, engendrava um sentido de pertencimento e proteção. E de outro tempo, este nomeado “líquido”17 onde a magnitude das mudanças no quadro de valores e referências promove rupturas nas concepções que sustentam os sujeitos em sua percepção de segurança, identidade e pertença. Assim, a consequente desvitalização das instituições como lugar de garantia dos marcos sociais, promoveu a derrubada das figuras de autoridade como referências estáveis. Sob este impacto está a família: instituição de socialização primária, cujas figuras representativas da condição de autoridade mostram-se, em geral, desvitalizadas, tanto pela força do discurso anônimo - na sustentação do primado da volatilidade das referências - quanto por cer17Acerca desta terminologia, consultar Bauman (2001). 112 | ta resistência das figuras parentais em assumir este lugar ditado pela tradição. É neste cenário que se desvelam as discussões sobre a drogadição e seus atravessamentos. A juventude como categoria social Cremos que a história da juventude pode ser definida como a história dos modos como esta tem sido pensada e construída historicamente. Assim, é possível deduzir que os conceitos engendrados no processo histórico têm por objetivo localizar determinados fenômenos sociais, delimitando, inclusive, as bases a partir das quais se possa construir um discurso sobre a juventude. (CASTILHO, 2009). Ao longo do século XX, foi possível identificar pressupostos de distintas correntes de pensamento que defenderiam uma “base natural” sobre a qual se assentariam as características comuns a uma faixa populacional específica, denominada “juventude”. Cremos ser necessário, para além dos discursos correntes, analisar as formas a partir das quais se constroem e se reproduzem estes modelos/categorizações que empobrecem suas perspectivas de compreensão. Uma investigação mais aprofundada deve, em nosso entendimento, questionar as implicações impostas por modelos (viés reducionista) e, ainda, apontar para as consequências sociais do processo de legitimação dos discursos que têm por base o controle e a regulação social desta população em particular. Desta forma, não obstante o seu caráter de complexidade, a juventude tem sido entendida e explicada a partir de distintas instituições: a família, a escola, a igreja, o Estado, a mídia. A Academia, como lócus relativo à instituição educativa, é reconhecida, socialmente, como um espaço de construção de saberes que, por seu caráter de cientificidade e por sua suposta neutralidade, colabora na construção dos elementos que compõem o universo simbólico que referencia as ideias sobre a temática da juventude. Porém, há que se comentar que a produção científica também re- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 113 presenta os embates políticos no interior do campo acadêmico, onde cada pesquisador, ou grupo, luta por posicionar referenciais específicos, relativos a uma elaboração científica particular em uma espécie de pódio, onde possa ser admirado e legitimado em seu campo. Este quantum de exibicionismo, tão facilmente observável no campo acadêmico, influencia as leituras relativas à temática da juventude e, de acordo com Bonder (apud CASTILHO, 2009), “expressam os medos, a inveja, o voyeurismo, a idealização e a nostalgia dos adultos que se vinculam com este estágio de idade simultaneamente estranho e familiar”. (p. 22). Ao discutir a temática da drogadição, há que se comentar que a juventude, independentemente das discussões de viés epidemiológico, é uma categoria social fortemente associada ao abuso de substâncias psicoativas em função da manutenção de um discurso que a relaciona a “um período de crise” e de incapacidade, ainda que momentânea, de discriminar e refletir, com profundidade, sobre demandas internas e externas, sendo, assim, classificada como uma população “frágil”, e assumindo, por conseguinte, o estigma da vulnerabilidade no cenário social. De nossa parte, pensamos ser questionável a “eleição” de uma categoria social específica para condensar o espírito dos tempos atuais, já que as estratégias eficazes na metabolização das vertiginosas mudanças que assolam o cotidiano, ainda estão por ser identificadas, não escapando, a nenhuma categoria social definida sociologicamente, esta sensação de insegurança generalizada. A Psicanálise como ferramenta de leitura do real De acordo com a Teoria Psicanalítica, a constituição do sujeito passa por sua relação com a família de origem, já que, desde a tenra infância, o sujeito é afetado pelo cuidado da mãe (ou de quem faça a sua função), podendo este ser sentido como continente, afetuoso, intrusivo ou distante. Assim, de acordo 114 | com esta base teórica, os cuidados recebidos pelo sujeito serão fundamentais na construção de seu psiquismo, bem como nas estratégias utilizadas na busca por aquilo que lhe faltou (seja pela privação, seja pelo excesso). Assim, o cuidador seria, então, testemunha do desamparo original de um ser, cuja existência presentifica-se a partir da construção de uma imagem singular, gerada a partir de seu olhar. Importante salientar a função estruturante da figura paterna na interdição da relação fusional mãe-filho, fundante nesta matriz relacional, encaminhando-o ao mundo da cultura, apresentandolhe a lei e possibilitando a ele o encontro com sua autonomia. Parece simplista apresentar assim estas funções, materna e paterna, mas não o é pelo fato de que nem sempre aqueles responsáveis pelos cuidados, afeto e apresentação das regras e normas de conduta, dispõem dos recursos necessários para assumir esta condição de autoridade. Neste sentido, Freud salienta que o desejo mais intenso e mais importante nos primeiros anos de vida é igualar-se aos pais, sendo que, posteriormente, pelo contato com a cultura, o sujeito virá a por em dúvida as qualidades extraordinárias que chegaram a lhe atribuir, “o que constitui um dos mais necessários, ainda que dolorosos, resultados do curso de seu desenvolvimento”. (FREUD, 1914, p. 243). Se, apesar de reconhecer o valor da autonomia como componente de saúde psíquica, Freud (1914) considerou a existência de uma classe de sujeitos, cujo psiquismo é marcado pela falha nesta tarefa, por outro lado, salientou que seja possível que este fracasso deva-se ao grau de hostilidade dirigido aos pais, quando da tarefa de firmarse com certa autonomia, da culpa sentida pelo abandono dos mesmos (que não raramente é incentivada pelos pais) ou até por uma dor extrema relativa ao processo de separação. Neste contexto, a família, além de desempenhar um papel primordial na repressão das pulsões18, 18 A pulsão é um conceito-fronteira entre o somático e o psíquico. De acordo com Hanns (1999), através do termo Trieb, Freud procurou estabelecer uma correspondência en- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 115 na aquisição da língua e na organização inicial das emoções e sentimentos, transmite padrões de comportamento e representações que perpassam os limites da consciência e racionalidade. Necessário lembrar que, na contemporaneidade, o movimento de institucionalização (ou terceirização) do cuidado desde a tenra infância, tem gerado sérias discussões sobre a insuficiência da família como instituição social responsável pela formação ética do sujeito. Esta condição de insuficiência possibilita uma “reorganização” dos sistemas de autoridade, que interfere, em maior ou menor grau, no psiquismo dos sujeitos. O pressuposto psicanalítico que coloca a infância como base do psiquismo, apresenta como principal referência, neste processo, o que Freud (1914) denominou “investimento narcísico”, processo a partir do qual os pais depositam nos filhos toda a sorte de positivos sentimentos, cujo eco na criança seria o potencial gerador da estima e confiança em si e no mundo. O processo de “desinvestimento”, observado a partir da perda da valência das funções de autoridade no interior da família, por sua vez, poderia ser elencado como a importante referência, para este campo de saber, nas investigações sobre as patologias psíquicas que eclodem na atualidade, dentre elas, a drogadição. Sobre o Narcisismo, cabe ressaltar que foi apenas a partir de 1914 que, adquirindo status de conceito, possibilitou a primeira reformulação da teoria das pulsões: as pulsões do eu e do objeto. Estas categorias psicanalíticas são aqui citadas a fim de consubstanciar a reflexão sobre as raízes da formação do eu quando da experiência relacional inicial do sujeito. Relação esta permeada, segundo este viés, por uma condição de angústia que, por vezes, ao invés de acompanhar o sujeito em sua trajetória, permitintre o mundo das ideias (psíquico) e o mundo dos processos energético-econômicos (fisiologia). Tendo esbarrado em dificuldades metodológicas e limites impostos pelo padrão científico, o termo apresenta-se como um conceito obscuro na teoria psicanalítica, tendo sido reelaborado (como teoria pulsional) por diversas vezes. 116 | do ao mesmo enfrentar as vicissitudes de sua condição humana, aterroriza-o. Neste sentido, os distintos lutos vividos pelo sujeito não são percebidos como perdas naturais do fluxo da vida, mas como a perda da “possibilidade de abertura do sujeito para o outro enquanto tal, de abertura para sua própria realidade interna” (PRADO, 1999, p. 19). Ao reconhecer que nem sempre a introjeção dos pais da infância se solidifica de forma a permitir a escolha de novos caminhos construídos pelo sujeito, cremos que a escolha de um “destino” ocorre tanto em função das determinações inconscientes, - representações engendradas - quanto da conjuntura à qual o sujeito se enlaça pela via da realidade. Assim, sob o viés psíquico, pela identificação desta insuficiência e na tentativa de preencher sua falta original no outro, haverá uma demanda por completude, que virá a intervir, em maior ou menor grau, tanto nas bases de seu relacionamento com o outro e com o mundo, quanto nos objetos que elegerá para “amenizar” o desconforto gerado por esta sensação de incompletude. A pulsão, processo psíquico fundamental na discussão da drogadição, é um conceito complexo, e cabe lembrar que Freud, ao longo dos textos de metapsicologia, enfatiza seu caráter incômodo intrínseco. A mesma pode ser assim descrita: uma tensão (estímulo) emitida pela fonte somática que vai ganhando intensidade até se fazer notar pela psique como uma sensação carregada de afeto. É pela pulsão que o sujeito é provocado para a ação, cujo objetivo primordial é fazer cessar a tensão, eliminando os estímulos internos desagradáveis através de uma descarga geradora de prazer e alívio. Assim, a pulsão, ao se manifestar através do estímulo, cujo acúmulo é desagradável, pode circular sob o signo do prazer em formas diversas (pulsões parciais) ligando-se a um órgão específico ou colando-se a um determinado objeto, demandando descarga imediata. Em determinados casos, o afeto preponderante no EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 117 círculo pulsional poderá ser apenas o prazer de descarga quando houver ainda alguma soma de estímulos passíveis de serem descarregados a tempo de não ultrapassarem determinado limiar, protegendo o sujeito de uma angústia torturante. Quanto ao desenvolvimento deste conceito tão caro às discussões sobre a drogadição, faz-se necessário frisar que no texto Além do princípio do prazer (1920), Freud promove um giro em sua compreensão sobre o processo, já que não mais entende o princípio do prazer como um mecanismo que leva à descarga que reduz a zero a energia pulsional: este processo passa a ser vinculado ao princípio de Nirvana (cujo objetivo é o retorno ao estado inorgânico), própria de uma modalidade específica: a pulsão de morte, da qual trataremos, especificamente, em um segundo momento. Assim, neste processo, o princípio da realidade diante da pressão gerada pelo acúmulo de estímulos exige que o sujeito retenha a realização imediata do desejo, buscando objetos mediatizados. Desta forma, o estado de tensão, em função da demanda do meio por negociação, transforma-se em indisposição e mal-estar, sendo que o sujeito sente, somaticamente, o estímulo como pressão e, psiquicamente, como ânsia, ímpeto na direção de um objeto (nem sempre identificado imediatamente) que lhe permita descarga. Sente-se, simultaneamente, ameaçado pela angústia e convocado a ir ao encontro do desejo, podendo, de acordo com os recursos de que dispõe, sucumbir à angústia diante da impossibilidade de encontro do objeto/atividade. Outro caminho poderá ser vislumbrado ao perseguir o objeto que o atrai como possibilidade na direção do prazer, do encontro com o desejo. Vale lembrar que, segundo a teoria psicanalítica, não há conflito psíquico sem desejo e não há desejo sem pulsão. Segundo Freud (1915), a matriz psíquica que decodifica e regula as pulsões estaria organizada em dois diferentes tipos de funcionamento, denominados processos primário e secundário. Assim, a pulsão originada do patamar somático e, portanto, sujei- 118 | ta à lógica mais imediata de descarga, penetra as esferas psíquicas pela via dos processos primário e secundário, onde o quantum energético deverá sujeitar-se à lógica que rege as relações entre as representações e os afetos (próprias do primeiro), e às palavras, o simbólico (próprias do segundo). Desta forma, o processo primário refere-se a um estado, onde o aparato psíquico restringe-se a dotar os estímulos de imagens (representação) e associá-los aos afetos de prazer ou desprazer. Neste estágio arcaico há pouca ou nenhuma retenção de energia. Nota-se uma espécie de memória rudimentar que consiste de uma sequência de eventos que se inscrevem no psiquismo como um ritual que pode ser ativado a partir do estímulo, com o objetivo de produzir sua descarga. Cada vez que surge aquilo que poderíamos nomear, aqui, de necessidade, o sistema psíquico é invadido pela carga pulsional que aciona o arcabouço de imagens armazenadas que, no passado, conduziu à descarga. Este efeito é o que pode ser observado na alucinação dos bebês. No entanto, a alucinação por si só não produz saciedade, ao contrário, gera frustração como resultado final: daí o surgimento do desejo. Necessário lembrar que as memórias armazenadas no aparelho psíquico não são evocadas conscientemente pelo sujeito, são, isto sim, lembranças que o afloram e o invadem, por assim dizer, involuntariamente. Se há algo a partir do qual se possa pensar analogamente este processo, o estado de desamparo de bebê é uma referência, por sua vulnerabilidade ou insuficiente proteção, tanto contra os estímulos sentidos como invasivos, quanto no que se refere aos recursos para antecipar ou evitar seus efeitos. Quanto ao encaminhamento da pulsão, sabe-se que o mecanismo que rege o processo primário é reativo. Contudo, ao promover rearranjos, há que se pensar na configuração de um mundo psíquico singular, cujas marcas prevalecerão no sujeito. Assim, os limites estreitos do processo primário só serão ultrapassados na medida em que o sujeito puder inibir os excessos de estímulos, criando EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 119 mecanismos para reter, distribuir e conduzir a energia psíquica, permitindo lidar com os estímulos de maneira mais elaborada. Este estado psíquico mais complexo é nomeado por Freud de processo secundário e, nesta modalidade, “as pulsões passam a assumir formas mais estáveis no âmbito representacional” (HANNS, 1999, p. 91). Assim, a passagem do processo primário para o secundário poderia ser explicada pela complexidade e abrangência do aparelho psíquico, ocasionada pela conjunção entre a maturação neuronal e o acúmulo de vivências do sujeito, que a partir de um quantum de experiências formaria um arcabouço cognitivo e afetivo, cujos dados estariam sempre disponíveis e em prontidão para operar e empreender no cotidiano, ações necessárias à manutenção de sua subsistência. A vinculação da pulsão a uma função, finalidade ou meta é que garantirá a produção de um sentido, sendo que, as funções de conexão presentes nas pulsões desembocarão na maturação das capacidades psíquicas fundamentais: pensamento, reconhecimento do princípio da realidade, integração. Neste sentido, pode-se dizer que as pulsões de vida estão operando com maior impacto. Cabe lembrar que a teorização sobre a formação do eu conhece várias formulações na obra psicanalítica. Uma delas é que a mesma se dá quando da entrada do sujeito no processo secundário, quando é possível perceber certa autonomia diante do mundo externo. Pode-se afirmar, com base nestes pressupostos, que o modelo freudiano de circulação pulsional mostra-se bastante plástico, já que as vivências singulares do sujeito, estando sempre em atividade, apresentam novas versões e interagem, entre si e com as pulsões, de modo a reconfigurar o aparelho psíquico. Assim, demandam-se ações em outros moldes e, estes momentos de redirecionamento, em geral bastante conflituosos, convocam o sujeito a trabalhar no encontro de novas saídas para o impasse vivido. Neste sentido, a intervenção do Outro pela via simbólica, a palavra, própria do processo secundário, pode se configurar em 120 | um recurso, já que é somente quando o pensamento se conecta à linguagem que adquire qualidades perceptíveis à consciência. Assim, o conflito psíquico, base da teoria freudiana, sempre se apresentará ao sujeito pelo impasse entre prazer e desprazer, já que o desejo e o medo arcaico (derivado da experiência primordial de dor e desamparo) sempre serão uma possibilidade de entrave. Retomando a cronologia da construção da teoria psicanalítica, observa-se que, até 1920, os conflitos psíquicos ligados ao medo desenrolam-se no campo de luta entre o prazer (pulsões sexuais) e o princípio da realidade que barraria a sua imediata satisfação. Freud (1915) afirma que a resistência, seja consciente ou inconsciente, tem o princípio de prazer como fonte e o evitar do desprazer como função. Assim, de acordo com o autor, os esforços “dirigem-se no sentido de conseguir a tolerância desse desprazer por um apelo ao princípio da realidade” (p. 33). Mais tarde, ao introduzir a noção de pulsão de morte, Freud (1920) reformula esta questão, trazendo a ideia de luta de forças entre as pulsões eróticas integrativas (Eros) e as pulsões destrutivas e desintegradoras (Tânatos). Assim, tanto o desejo e o prazer, quanto medo e desprazer movem o sujeito, desde o nascimento, com vistas a buscar uma forma representável aos objetos e, posteriormente, à construção do pensamento, que tanto deverá servir para evitar o contato intenso com o desprazer quanto antecipar-se a ele. Desta forma, frente às pulsões ameaçadoras, o aparelho psíquico lançará mão de um recurso, um mecanismo defensivo que permita bloquear as representações de objetos externos ameaçadores antes que estes atinjam a consciência. Instala-se aí o mecanismo do recalque, gerador do sintoma, de onde a pulsão tende a retornar. Embora a tarefa de defesa contra os estímulos ameaçadores seja comum e razoavelmente natural, o circuito pulsional (fonte-estímulo-acúmulo-pressão-descarga) desemboca na satisfação, onde a pulsão entraria em um estado de repouso. A partir destas proposições, uma das tarefas da psicanálise caminha no sentido de investigar os recursos que o sujeito lançará EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 121 mão na obtenção da satisfação diante de toda sorte de contingências culturais que se interpõem na consecução de seu objetivo, sendo que um grau de satisfação não significa, absolutamente, um grau de satisfação plena. Esta satisfação virá, parcialmente, por outras vias – que não a realização literal do desejo –, que o realimentam. Assim, conectada a Eros, a pulsão de morte atuaria no sentido do retorno a uma estabilidade. Poderíamos dizer que o que move o sujeito no cotidiano é a busca do prazer e o evitar da dor. Porém, para além dos pressupostos do binômio prazer/desprazer, desvela-se uma determinação maior: a busca do estado de plenitude, onde a descarga definitiva representa a suspensão total da necessidade e do desejo. Daí a incidência clínica da teoria freudiana, em seu contexto pulsional, no avanço da construção teórica de temas como o masoquismo, a compulsão à repetição, a destrutividade, tão presentes na discussão sobre a drogadição. Importante lembrar que Freud nos alertou sobre a inexistência de um estado pulsional puro, seja ele atrelado às pulsões de vida, seja ele atrelado às pulsões de morte. Portanto, não há como pensar em pulsões puras, mas em processos psíquicos como movimentos pulsionais fusionados. Dado o seu caráter de complexidade, o autor comentou que esta construção (a teoria das pulsões) tem, na teoria psicanalítica, um caráter de “mitologia”. Freud, ainda nos alertou sobre os possíveis métodos para evitar o sofrimento. Em O mal estar na civilização, comentou a eficácia do método químico de influência, o caráter ‘amortecedor de preocupações’ a que se prestam, mas advertiu sobre o seu poder destruidor. Advertiu, ainda, sobre a forma extrema da tarefa de dominar as fontes internas de necessidade: a ocasionada pelo aniquilamento das pulsões, que levada a êxito, sacrificaria a vida com um todo, esvaziando o sujeito, exaurindo-o de suas energias vitais. O desinvestimento das relações de objeto mostraria, assim, a partir dos exemplos evocados por Freud, o caráter mimético da 122 | libido que retornaria ao seu âmbito narcísico, inviabilizando os arranjos necessários, levando o sujeito a renunciar aos mecanismos de ligação tão necessários à manutenção do processo vital: a sustentação da atividade psíquica. Neste sentido, o eu confrontado com a dor e a angústia pode, por um lado, ativar seus recursos no alcance do prazer, no encontro com o seu desejo e, por outro, pela via de um sofrimento reconhecido como não metabolizável (negando-se enquanto experiência passível de elaboração), produzir no aparelho psíquico uma brecha, uma fenda, um vácuo. Nele não há luto possível, há apenas a manifestação do trauma. Freud descreveu esta relação como conflitual, embora, no texto de 1929, a tenha reconhecido como estrutural, sendo o conflito gerado por este campo de forças jamais ultrapassado. Assim, caberia ao sujeito humano a tarefa de gestão interminável de suas pulsões, reconhecendo seu desamparo original enquanto condição irremediavelmente intrínseca a si. Pode-se afirmar que teoria freudiana sofreu, no que diz respeito a um destino possível para o desamparo, um giro sobre o conceito de sublimação: em um primeiro momento, seria o domínio das pulsões sexuais pela via da transformação de seu alvo, empobrecendo-se de seu conteúdo erótico. Em 1932, Freud apresenta uma mudança neste conceito-chave, que não mais se encontraria em oposição com a sexualidade, mas na transformação das pulsões a fim de que o erotismo e o trabalho de criação se tornassem possíveis. No bojo desta discussão, pode-se afirmar que “a gestão do desamparo toma uma direção bem precisa para o sujeito, diferente, pois, da versão freudiana inicial sobre a sublimação” (BIRMAN, 2000, p. 132). Assim, embora a relação conflituosa entre pulsão e civilização não seja ultrapassada nos textos freudianos, uma vez que ela é de ordem estrutural, vale lembrar que o autor sustenta que o discurso freudiano sobre a modernidade constitui um questionamento do discurso psicanalítico ao afirmar que “o pensamen- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 123 to psicanalítico colocou a psicanálise à prova do social, o que a obrigou a se reconstituir sobre novas bases e outros fundamentos” (BIRMAN, 2000, p. 134). Portanto, ao retomar a condição faltante do sujeito, Freud convocou-nos a refletir sobre o manejo interminável do conflito humano. Talvez seja esta possível “acomodação final no indivíduo” que nos permita arriscar respostas subjetivantes, sustentando a condição de sujeito, apesar dos perigos do mundo externo, tão grandemente potencializados. Em tempos não muito alentadores, onde a ordem cultural insiste em desqualificar os projetos coletivos que ameacem as respostas estrategicamente construídas, à lógica das relações fragmentadas, das identidades partidas no espelho, da invisibilidade dos sujeitos, cabe a busca por possíveis saídas, ainda que demandem grande esforço e não envolvam soluções mágicas e totais. Mesmo em seus momentos mais realistas quanto ao futuro da humanidade - Reflexões em tempos de guerra e morte, O mal-estar na civilização, O futuro de uma ilusão - Freud não se furtou à possibilidade de entrever uma saída, mesmo que de maneira contundente tenha, também, se proposto a explorar a oposição entre natureza e cultura e seus efeitos no campo relacional humano. Aproximações deste campo de saber à temática da Drogadição Pode-se afirmar que, em uma leitura psicanalítica, na droga, a viagem em busca do prazer dá-se pelo afastamento da realidade, pela “criação” de uma realidade outra, de onde os sujeitos vão costurando a sua realidade particular. Assim, a busca pelo prazer, nesta modalidade de atuação, parece sinalizar tanto o desejo quanto sua realização a partir de uma lógica própria de um modelo infantil: o pensamento mágico. Como já dito, o que, também, parece peculiar na drogadição é a substituição do pensamento e da linguagem pela ação. Observa-se que o abuso das drogas ocorre com sujeitos que parecem 124 | incapazes de codificar uma tensão sentida em termos verbais e satisfazê-la pela via simbólica, o que possibilitaria uma relação mais organizada com o meio, embora, em função do princípio da realidade, mostre-se menos satisfatória, já que também responde às exigências sociais. Na condição de uso abusivo, a busca constante por solucionar demandas internas a partir de objetos externos gera, por sua ineficiência, frustração e sofrimento e, em função de seu efeito transitório, a renovação continuada envolve um processo de compulsão que termina por “retirar” do sujeito as condições de desvencilhamento deste percurso mortífero. Neste modelo de funcionamento, ao lidar com a angústia, o processo gira em torno da eleição de objetos imaginários que, compulsivamente, retornam aos sujeitos, remetendo-os à condição de desamparo sempre que o efeito corporal do objeto droga se dilui, mantendo, assim, a circularidade do vazio. Desta forma, a relação simbiótica com o objeto, na droga, embutiria, no limite, a expressão de um conflito entre dependência e independência. Há que se pensar que a diferenciação eu/objeto mostra-se como possibilidade para investigar os aspectos psíquicos e conjunturais dos sujeitos que ‘aderem’ à droga como parceira imprescindível no enfrentamento do cotidiano. Desta forma, ao pensar numa ‘colagem’, a droga, travestida de fantasia de liberdade, de descolamento do outro, poderia, aqui, ser incluída na categoria de sintoma social contemporâneo. Para tanto, esta seria, atualmente, revestida por estereótipos imaginários a partir dos quais o usuário é levado a reivindicar, na ordem do imaginário, o lugar de dono de sua identidade, de seus sentidos e de suas formas de ‘produzir’ uma realidade particular. Há aí, também, um viés para se discutir o desejo de onipotência como mecanismo de defesa. Neste sentido, segundo Gurfinkel (1995), a hipótese da drogadição como atividade auto-erótica remonta a uma tentativa do sujeito de tornar-se independente, de uma não oposição ao desejo, de um controle onipotente do objeto. Talvez algo passível de EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 125 estar sempre à mão, disponível ao desejo. Esta metáfora nos remete, invariavelmente, à relação mãe-bebê (ou pelo menos à relação fantasística, fusional entre ambos). Importante comentar que o autor adverte-nos da necessidade de distinguir o prazer obtido com o consumo da droga do prazer narcisista de transformar o objeto em uma parte de si mesmo. Sendo o objeto-droga um falso objeto, já que não dispõe de características de independência e exterioridade, seu uso sugere uma fantasia de onipotência em função dos fenômenos alucinatórios que proporciona. Sendo assim, a droga poderia ser encarada como um objeto narcísico, em que a captura pelo mesmo (a não escolha), explicaria esta dinâmica, regada a um profundo desejo regressivo, onde as angústias persecutórias são diluídas. Assim, alguns pesquisadores (KALINA et al., 1999) articulam a toxicomania a um suposto ‘psiquismo fetal’, remontando-a a um momento pré-natal do sujeito, onde o estado de nirvana dar-se-ia pela ausência absoluta de demandas, condições estas às quais o adicto tenderia a retornar. Assim, “o poder sinistro de escravidão está no sujeito, no objeto ou em algum ‘espaço intermediário’ entre os dois”. (GURFINKEL, 1995, p. 39). Desta forma, o desejo narcísico de onipotência é renovado compulsoriamente na experiência fugaz da droga, onde as fantasias de onipotência dão suporte ao consumo e este, por sua vez, renovalhe a experiência de onipotência em sua fantasia. Este círculo vicioso sustentaria a condição de aprisionamento, pois, coincidentemente ou não, as aquisições próprias da submissão ao princípio da realidade são, analogamente, as funções psíquicas deficientes na drogadição. Pensando a relação primeira do sujeito como referência, um perfil da família do drogadito foi apresentado por Palatnick (apud PEREIRA, 2004) a partir do relato das mães de usuários. Nele, há uma aposta no sintoma familiar, onde o sujeito se envolveria em uma condição de abuso na tentativa inconsciente de denunciar os conflitos familiares, cuja vivência é angustiante. Neste sentido, 126 | apresenta o pai como uma figura normalmente ausente, distante ou omissa diante de suas funções no campo familiar. A mãe, superprotetora, não enxerga o filho como sujeito e está frequentemente colada a ele, ligada a ele, sem, contudo, enxergá-lo. O terceiro elo desta corrente, o filho, neste contexto, o “eterno problemático”, apresenta comportamentos desviantes desde a infância, certa letargia relativa às responsabilidades escolares, bem como uma desobediência frequente à autoridade dos pais. Assim, o autor sustenta que a dependência às drogas é uma resposta direta à insuficiência paterna, bem com a atenção sufocante (embora vazia) da mãe. Assim, No adicto, a insuficiência e inadequação das funções parentais, a falta de um bom e gradual desprendimento da mãe e a carência de uma figura paterna valorizada, com a qual rivalizar e identificarse, deixam-no prisioneiro num universo narcisista materno [...] Como saldo desta experiência restaram zonas de silêncio, lacunas, buracos, nos quais faltam representação de um mundo simbólico estruturado sobre o eixo da Lei Paterna. (PEREIRA, 2004, p. 334). Retomando a ideia de regressão, condição trabalhada, aqui, sob distintos aspectos, há que se pensar que o “prazer” na droga arrasta consigo os investimentos e as ligações, e esta forneceria, assim, um apoio externo como ramificação de um suporte psíquico parental falho e que demanda suplência. A experiência da droga, também análoga à condição do retorno ao zero, parece relativa a uma ação eficaz da pulsão de morte, que atingindo estruturas do funcionamento psíquico de forma devastadora, geraria a perda dos limites do eu por uma regressão ao narcisismo primário, bem como o desaparecimento dos referenciais a partir do abandono dos ideais éticos, dos objetivos a alcançar, do próprio sentido da vida. Uma hipótese a aventar é a de que, na atualidade, a exigência do prazer imediato, proporcionada pelos mecanismos disponibilizados no aqui e agora, cria a demanda pelo prazer instantâneo, compulsivo e de caráter autoerógeno. Assim, não haveria lugar EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 127 para a angústia, já que esta apresenta ao sujeito o avesso do êxtase de excitação, que em grande carga, é sentida como insuportável. No limite, o fenômeno da drogadição leva-nos a pensar sobre a relação com a falta – aquilo que demanda suplência – e que, em determinada estrutura psíquica, provoca um rombo de tal magnitude que o sujeito não se vê em condições de enfrentá-la, buscando o embuste como forma de proteção. Leva-nos, também, a refletir sobre o desmantelamento da estruturação de referências, valores e, por assim dizer, de um ideal, de um projeto de vida identificado como próprio, permitindo a ação livre de uma compulsão que o leva a colocar-se, repetitivamente, em uma condição de assujeitamento. Cremos que uma saída no enfrentamento deste processo seja permitir ao sujeito reconstruir sua relação com a linguagem, espaço simbólico por excelência, a fim de que o mesmo encontre, à sua maneira particular, os recursos necessários para que o luto possa ser autorizado e as perdas serem reconhecidas, vividas e elaboradas como experiências próprias da condição humana. Assim, pensar possibilidades de enfrentamento do fenômeno da drogadição, complexo e multifacetado, significa pensar possibilidades de equilibrar-se sobre a linha tênue que separa e une êxtase e destruição. Considerações finais O trabalho desenvolvido a partir das discussões no Grupo de Estudos “Juventude, contemporaneidade e drogadição”, permitiram-nos ampliar os horizontes acerca da temática. As reflexões aqui trabalhadas em torno do abuso de drogas buscaram realizar um recorte relativo às formas utilizadas pelo sujeito para lidar com o que chamaríamos de “sofrimento existencial”. Neste sentido, cremos que há que se pensar neste enfrentamento da angústia, observando os excessos corporais como tributários de uma inibição da palavra, pois a dissociação entre corpo e palavra tem sido objeto de inúmeros debates, envolvendo o amplo leque de patologias contemporâneas. 128 | Também, poderíamos afirmar que os percursos circulares aos quais o sujeito se enlaça, na atualidade, inibem movimentos que promovam o resgate da corporeidade, o que viria a inviabilizar a emergência de uma palavra encarnada, corporificada. Neste caso, o corpo físico prestar-se-ia apenas a realizar uma modalidade de prazer, sempre insuficiente em sua função, que, ao impedir a representação das impressões não nomeadas, abriria espaço ao ato. Neste sentido, vale salientar que distintos estudos com dependentes de drogas apontam para o uso inicialmente característico da “busca pelo prazer”, mas, dada a complexidade de processo, observa-se que as razões para o uso/abuso modificam-se e o uso se transforma em uma forma de suportar a frustração e os conflitos de toda ordem enfrentados pelos sujeitos. Assim, como abuso pode ser observado tanto pela frequência de uso quanto pelo tempo de utilização, sugere-se que, para além do estudo sobre a etiologia da farmacodependência, dedicar atenção ao aspecto da psicodependência. No limite, a face de um fenômeno coletivo marcado, essencialmente, pelo esvaziamento da condição desejante, do apelo ao Outro, da sujeição a um objeto total adotado como escudo contra o mal-estar, coloca-nos diante de sujeitos exauridos de recursos para lidar com as condições de existência que se apresentam. Neste sentido, a psicanálise, como campo de saber, nos mostra que a condição para o enfrentamento da pulsão é a quebra do registro narcísico do eu. Tarefa complexa, já que este “estado de narcisismo”, tanto é constitutivo de nosso psiquismo, quanto é considerado um “valor” dos tempos atuais. Uma possível saída no enfrentamento deste sofrimento existencial, que demanda inigualável quantidade de energia, seria, como já apontamos, a revitalização das ferramentas do simbólico. Daí a crença na força terapêutica da palavra, gerando possibilidades de criação de grupos, nos quais o sujeito possa objetivar sua subjetividade e compartilhar/ressignificar as dores em seus sentidos e significados. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 129 Referências BAUDRILLARD, Jean. A ilusão vital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BIRMAN, Joel. Mal estar na atualidade. 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Nessa direção, o celular poderia, de alguma forma, mobilizar a sedução e o poder do cinema? A câmera que levamos no bolso, no dia a dia que se repete, pode constituir uma forma de expressão e de criação cinematográfica? Poderia a magia do cinema encantar nossas câmeras cotidianas e fazer de nós, professoras e alunas, professores e alunos, criadores cinematográficos? O poder que o cinema exerce em nossas mentes e corações poderia ser alcançado pelos vídeos de bolso? Assim como o cinema, conseguirá o celular o mesmo espaço no interior das salas de aula? Se deslocarmos o foco dessas perguntas dos objetos (o celular, a câmera e o cinema) para as pessoas (que se fabricam e são fabricadas num processo cultural, inserido na história e nas relações econômico-sociais) há grande possibilidade das respostas serem positivas. É sobre essas possibilidades que falaremos aqui. Neste texto, objetivamos mostrar algumas possibilidades de se ensinar e 131 132 | aprender com as câmeras dos celulares que trazemos conosco em todos os momentos e espaços da vida cotidiana. Especialmente, no chão da sala de aula, entre os muros e grades das escolas. Antes de passarmos, pontualmente, para a discussão do vídeo de bolso e de suas potencialidades no interior das relações de ensino/aprendizagem, é importante caracterizarmos a linguagem cinematográfica, ressaltando suas especificidades e, a partir delas, suas potencialidades. A linguagem cinematográfica O surgimento da “linguagem cinematográfica” (a partir daqui utilizaremos o termo audiovisual como equivalente) é posterior ao surgimento da “técnica cinematográfica”. Segundo Edgar Morin, entre 1895 e 1910, temos a “[...] fase de descoberta e definição de uma nova técnica reprodutiva utilizada para fins espetaculares” por meio de um “puro e simples aparelho de fazer tomadas e projeção de fotografias animadas” (MORIN apud COSTA, 1987, p. 58-59). A imagem em movimento foi projetada pela primeira vez em 28 de dezembro de 1895, em Paris, pelos irmãos Lumière. Contudo, foi após a intervenção do mágico, Georges Méliès, que se iniciou uma nova linguagem para a comunicação humana (COSTA, 1987, p. 58). À nova tecnologia de sua época, o ilusionista acrescentou suas habilidades artísticas e, então, a magia encontrou um novo terreno cultural (e comercial). A partir de então, a ilusão e o cinematógrafo tornaram-se gêmeos siameses. O sucesso da nova arte foi tão grande que logo impulsionou a constituição de verdadeiros parques industriais em diferentes lugares do mundo. Nos EUA, o cinema tornou-se um poderoso produto comercial, movimentando uma riquíssima indústria de entretenimento. Paulatinamente, a grande quantidade de filmes produzidos acabou por constituir uma gramática específica para essa arte/ EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 133 técnica. O acúmulo de experimentações contribuiu para o nascimento da nova linguagem. Conforme aponta Antônio Costa, na segunda década do século XX, alguns elementos específicos dessa linguagem já eram de domínio corrente entre os realizadores, como por exemplo, a articulação de planos por meio da edição; a variação de ângulo e os movimentos de câmera; a dialética entre real e fantástico e, talvez, o principal: o desenvolvimento narrativo (COSTA, 1987, p. 59-60). O público que participou dos primeiros espetáculos cinematográficos foi atraído por uma curiosidade divertida por fotografias que se movimentavam e por truques de transformação que aconteciam, magicamente, diante de seus olhos. Para nosso tempo, contudo, tais filmes, com sua perspectiva frontal, com seus planos sem articulação e sem variação de ângulo, logo se revelam uma experiência monótona. Teríamos, então, alguma dificuldade para nos concentrar sobre o que é mostrado. Por que isso acontece? Para nós, cinema é algo diferente do que foi para aquelas pessoas do final do século XIX. Concordando com Edgar Morin, o cinema, como o conhecemos, atualmente, surgiria apenas na segunda década do breve século XX. É por isso que o autor usa o termo “cinematógrafo” para o primeiro período e “cinema” para o posterior. Somente a partir de 1910 (um curto, mas relativo acúmulo de experiências), foi historicamente possível o surgimento de um “complexo dispositivo expressivo-espetacular capaz de articular uma linguagem própria” (MORIN apud COSTA, 1987, p. 60). Em nosso espaço e tempo sociocultural, é isso a que chamamos “cinema”. Contudo, como demonstrado, até ele se constituir, foram necessárias experimentações, realizações e invenções. O acúmulo histórico desses elementos constituiu, pela primeira vez, e de forma autônoma, certos signos que passaram a ser utilizados para a comunicação humana: nascia a linguagem cinematográfica. 134 | Enquadramentos, planos, plano-sequência, encenação, duração, movimento de câmera, ângulo de filmagens, montagem/ edição, narrativa fílmica são os signos de um sistema “que permitem a reversibilidade entre emissor e receptor”, isto é, permitem o diálogo entre realizadores de cinema e seus espectadores (ODIN, 2006, p. 183). “Uma linguagem é um instrumento intencional de comunicação e expressão”, nos diz Odin (2006, p. 185). Para o autor, a intencionalidade19 reside não no conteúdo comunicado, mas no próprio ato de comunicação. Por isso, ao assistir a um filme, mesmo sozinhos, na sala escura do cinema, diante da TV ou da telinha do celular estamos, sobremaneira, inseridos numa relação dialógica e social! Por isso, nos emocionamos; por isso, somos afetados pela linguagem audiovisual. Independente do assunto abordado, do seu impacto em nós, de nossa filiação estética, de nossa empatia ou repulsão, apesar do simples (e muitas vezes leviano) juízo de valor, o filme nos fala em nossa humanidade. Mas, por que o celular? Ao longo do século XX, o cinema passou a abarcar “produções que mobilizam imagens que têm a ver com diversas matérias de expressão: os filmes integram cada vez mais imagens filmadas em vídeo, imagens digitais, etc.” (ODIN, 2006, p. 189). É no interior desse processo que, hoje, podemos falar de cinema por meio do curta metragem, do vídeo de bolso (pocket film) ou do live cinema, por exemplo. Trazendo o cinema para as relações de ensino/aprendizagem, alguns autores defendem que a função educacional do cinema é possibilitar a criação de um mundo mais significativo. A tecnologia audiovisual possibilita que cada pessoa observe a si 19 E algumas vezes, “a intencionalidade está do lado do destinatário que resolve ler qualquer coisa como linguagem, ou seja, algo que me fala” (ODIN, 2006, p. 185). EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 135 em ação, historicamente. Além disso, ela aumenta a capacidade de perceber novas imagens, bem como perceber novas dimensões da realidade física20 e psicológica21. O progresso científico e o avanço tecnológico do aparelho celular integraram, de forma simples e acessível, os três elementos básicos que possibilitaram o surgimento do cinema: a máquina filmadora (a câmera para captação), o suporte físico das imagens (a película de celulóide)22 e a máquina de projeção. Tudo isso reunido num pequeno aparelho que pesa menos de 100 gramas e com custo de acordo com as possibilidades financeiras do interessado. Nos dias atuais, é possível adquirir um celular do tipo smartphone23 mediano por, aproximadamente, R$ 900,00. No mercado paralelo, podemos comprar o mesmo aparelho por metade desse valor. Isso aumentou, relativamente, o acesso a essa possibilidades audiovisuais. Por que o smartphone? Pela primeira vez, esse tipo de celular reuniu: 1) tecnologia suficiente para a gravação audiovisual em extensão universal (o que facilitou o compartilhamento de 20 Por exemplo, que o cavalo voa, isto é, que ao correr há momentos em que as quatro patas estão fora do chão. Há ainda outro elemento fisiológico similar àquele. As imagens permanecem na retina por um tempo mínimo. Assim, a substituição de imagens com a velocidade variando entre 0,20 e 0,10 segundos provoca na retina humana a “fusão” entre uma imagem e a sua sucessora, produzindo a ilusão do movimento. 21 A percepção que as imagens projetadas não são a realidade em si, mas que, além de representá-la, também a institui. Por conta desse aprendizado psicológico e cultural, hoje, quando vimos imagens vindas em nossa direção, nos filmes, não saímos correndo da sala de cinema, como aconteceu com os primeiros espectadores. Em salas 3D ainda nos assustamos bastante, desviando dos objetos que nos são lançados. 22 Até bem pouco tempo antes da democratização das câmeras digitais, usávamos a palavra “filme” para nos referir à película. O filme sensibilizado pela luz era retirado da máquina fotográfica e levado para ser “revelado” em alguma loja especializada. “Revelar” o filme, na linguagem comum, significava, portanto, transferir as imagens da película para o papel fotográfico. Na verdade, a revelação era o processo de fixação das imagens por meio da utilização de químicos. A passagem dessas imagens para o papel era chamada de “ampliação”. Na linguagem corrente, contudo, não havia distinção entre “revelação” e “ampliação”. 23 “Smartphone” em oposição aos “featurephone” (celulares comuns, que não possuem essa quantidade de recursos). 136 | aparelho para aparelho, por meio da tecnologia Bluetooth, por exemplo); 2) possibilitou o acesso à internet para socialização dos arquivos na rede (por meio de up/downloads); 3) algum recurso de edição de vídeos, mesmo que bastante limitado, por meio de softwares e aplicativos integrados no próprio celular; 4) tela com tamanho minimamente confortável para reprodução de vídeos entre outros elementos. Uma das dificuldades do uso do cinema em sala de aula é a discrepância entre o pouco tempo da aula e a duração do filme. Nesse caso, o vídeo de bolso na sala de aula apresenta uma enorme vantagem sobre o cinema. Geralmente, a duração desses vídeos não ultrapassa o tempo de cinco minutos. As temáticas, assuntos e situações condensados nesse pouco tempo de narrativa podem ser associados a outras dinâmicas (como debates e diálogos) dentro de uma única aula, favorecendo o desenrolar do currículo escolar. “Atrapalhar o andamento dos conteúdos curriculares” é o argumento que muitos professores e gestores escolares utilizam contra o uso do cinema na sala de aula. Por uma função (também) didática do celular A simples comunicação talvez seja o sentido mais restrito (e tradicional) vinculado ao celular. Contudo, em nossa década, o desenvolvimento da tecnologia digital transformou o aparelho, ampliando suas funções. O celular se tornou, seguramente, uma das principais fontes de entretenimento da vida contemporânea: recebe sinal de TV, reproduz arquivos de vídeos, de áudio (gravações de voz e músicas), acessa a internet (conectando-nos às mais diferentes redes sociais), possui uma infinidade de aplicativos (inclusive, que controlam nosso sono, a quantidade de calorias que ingerimos, o peso físico, os lugares aonde vamos, as pessoas com quem falamos...). No celular, temos jogos eletrônicos que antes somente eram possíveis em consoles específicos. E, por isso, os EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 137 celulares contemporâneos contribuíram para a aposentadoria de uma série de consoles portáteis, cuja única função era nos distrair com desafios eletrônicos (como o famoso “game boy”, por exemplo, e sua infinidade de imitações asiáticas, que constituiu o desejo de consumo de grande parte da população juvenil da década de 1990). De onipresente aparelho de comunicação portátil, a partir do final dos anos 2000, o celular também se transformou em forte instrumento da indústria cultural. E essa tendência só se confirma nos dias atuais. Por todos esses fatores, o celular se tornou um dos principais objetos de desejo da população, independente de idade e geração (como acontecia antes, quando ele era vinculado apenas ao público juvenil ou aos altos empresários do capital). O celular virou tema de filme24, transformou desconhecidos em celebridades (inter)nacionais. Pautou, por várias vezes, desde as matérias dos mais assistidos jornais televisivos às conversas de mesa de bar. Expôs intimidades sexuais, destruindo a tranquilidade anônima de seus protagonistas. Produziu microescândalos e macrodebates públicos, constituindo referências repetidas em gestos por milhares de pessoas. O celular é certamente o artefato tecnológico que conseguiu a maior intimidade com os corpos humanos em toda a nossa história. Tornou-se o principal coadjuvante biônico da “divina comédia humana”. Desgraças alheias e glórias pessoais via Bluetooth (ficcionais ou não). Boas novas e fofocas por mensagens de texto (pela bagatela diária de R$ 0,50). Registros fotográficos e lixo eletrônico como se nunca produziu antes na história da humanidade. Giga demandas virtuais por espaço, em cartões cada vez menores e com cada vez maior capacidade de armazenamento... Com o celular é possível arquivar a nossa própria vida e, “o que é mais interessante”, dirão alguns, a dos outros. 24Viva voz, comédia brasileira dirigida por Paulo Morelli, em 2003. 138 | Por suas consideráveis capacidades de entretenimento, de socialização e conectividade, o celular acabou se tornando o principal vilão... dentro das escolas. Em alguns estados brasileiros25 , como no caso de Goiás, a partir de 2010, o seu uso foi proibido por lei: LEI Nº 16.993, DE 10 DE MAIO DE 2010. Dispõe sobre a proibição do uso de telefone celular na sala de aula das escolas da rede pública estadual de ensino. A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE GOIÁS, nos termos do art. 10 da Constituição Estadual, decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º Fica proibido o uso de telefone celular na sala de aula das escolas da rede pública estadual de ensino. Parágrafo único. Cabe às escolas definirem as medidas disciplinares aplicáveis aos alunos que infringirem o disposto no caput. Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. PALÁCIO DO GOVERNO DO ESTADO DE GOIÁS, em Goiânia, 10 de maio de 2010, 122o da República. ALCIDES RODRIGUES FILHO (D.O. de 14-05-2010). Sempre é bom ressaltar que a proibição foi motivada pelo uso e não por causa do aparelho em si. Extraio uma parte do depoimento de uma aluna: “O professor também falou da importância do celular no nosso dia a dia. Isso é legal, pois, hoje, a maioria das pessoas, principalmente os jovens, o usam de forma errada. Motivo pelo qual, nas escolas, é proibida a entrada de celular” (Aluna 4). Talvez essa lei seja um documento a provar o quanto a concepção de escola, dominante entre nós, está distante dos processos de produção das subjetividades contemporâneas. Na contramão da conectividade que marca o tempo presente, declarando guerra aos celulares nas salas de aula, a escola torna-se cada vez mais desconectada de seu contexto histórico-cultural. Comunica cada vez menos com os indivíduos a que se destina: as crianças e os adolescentes. É a chamada “geração Z”, “povoada de jovens 25 Alguns exemplos: em Santa Catarina, lei 14.363 de 25/06/2008; na Paraíba, lei 8.949 de 11/2009; em Goiás, lei 16.993 de 10/05/2010 etc. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 139 profundamente envolvidos com mídias digitais e integralmente conectados à internet. É preciso também pensar em alternativas práticas, para não dispersá-los rapidamente” (PORTAL TELA BRASIL, 2013). Sob a hegemonia dos dabliús (a sigla “WWW”, da “rede mundial de computadores”, é cada vez mais presente entre nós), se a escola não reverter seu isolamento surdo e covarde, ela terá cada vez menos condições de formar pessoas capacitadas para a produção e para a gestão de informações. Em tempo de sociedade em rede, conectada virtual e digitalmente, acreditamos ser um dos papeis fundamentais da escola formar pessoas com condições de entender o processo de produção e circulação da informação. A escola é uma instituição pública voltada para a formação humana e deve se comprometer com a promoção da equidade de oportunidades. Portanto, é sua função primordial criar condições para que as pessoas possam se posicionar diante da “hegemonia da informação”, de forma autônoma e independente. Mais que isso: a escola deve proporcionar condições para que todos os seus alunos avancem para além da condição de passivos consumidores de informação. A escola precisa criar condições para que o aluno entenda a produção dessas informações, faça a sua crítica e, talvez o principal, que essas pessoas tornem-se também criadoras de conteúdo informativo. Para além da dicotomia do “a favor” modernoso e empolgado versus o “eu sou contra” dos conservadores, a argumentação que constituiremos nas linhas seguintes procura evidenciar o grande potencial do celular para a produção e a socialização de conteúdo audiovisual e, portanto, para o seu forte potencial de ensino/aprendizagem. Nesse sentido, partimos das experiências vivenciadas no interior do Projeto Circuito Câmera Cotidiana (doravante, PCCC). 140 | A câmera cotidiana Como falamos, aqui, das possibilidades didáticas do celular, convidamos o leitor a explorar mais uma de suas funções. Procure em seu aparelho um aplicativo que faça a leitura dos chamados “QR code”26. Acione o aplicativo27 e dirija a câmera de seu celular para a imagem ao lado (esse processo o levará ao domínio www.cameracotidiana.com.br)28 . Assista, então, ao vídeo promocional do projeto. O vídeo distingue as pessoas em dois conjuntos: as que buscam e as que produzem informação e “fazem a história”, argumenta o narrador infanto-juvenil. No primeiro grupo, estão a quase totalidade da população: pessoas que somente consomem, passivamente, os conteúdos produzidos por outros. Já o segundo grupo, será aquele formado pelo PCCC, isto é, pessoas criadoras de conteúdo audiovisual e, por conseguinte, com condições de se posicionar de forma crítica e autônoma perante qualquer produção. A argumentação do vídeo institucional do projeto recai so26 Um QR Code (sigla do inglês Quick Response Code) é um processo mecânico similar a um link. Ele oferece ao celular ou tablet, de forma automática, uma URL que conduz a navegação pela internet. É uma espécie de código de barras bidimensional. No processo de produção da imagem QR Code, associamos a ela determinado domínio na internet. Assim, quando o aplicativo específico de nosso celular a reconhece (a câmera do celular funciona como um scanner) o código é convertido em texto interativo e somos levados aquele domínio (endereços URLs). No Brasil, desde 2007, torna-se cada vez mais utilizado em campanhas publicitárias. 27 Se o seu celular não possuir, vá até a loja “Play Store” do Google, por exemplo, e instale um aplicativo para a leitura dos “QR codes”. 28 Se estiver lendo a versão digital desse texto, saberá que basta clicar sobre esse link para acessar o referido sítio. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 141 bre o poder da câmera do celular: “em muitos lugares, um poder grande demais”, com clara referência às situações sociais e aos regimes que censuram a ação popular e a livre divulgação de informações na rede mundial de computadores. A câmera do celular “é tudo o que você precisa para exercitar a sensibilidade do olhar e fazer poesia, ficção, documentário, experimentação, videoclipe, arte, televisão, jornalismo...” defende o vídeo institucional com sua narrativa ágil, colorida, simples e eficiente na apresentação do projeto (FRACTAL FILMES, 2012, 0’33’’). Realizado pela Fractal Filmes29, em 2013, o projeto Câmera Cotidiana está em seu segundo ano de realização e se estenderá até 2016, quando objetiva constituir uma rede com mais de vinte cidades e 75 multiplicadores ensinando produção de vídeo com tecnologia acessível para mais de 4.500 beneficiados diretos (FRACTAL FILMES, 2012, 0’44’’). A cada edição, o projeto é constituído por três etapas. A primeira é o momento da seleção de multiplicadores em escolas públicas e pontos de cultura para a capacitação em forma de imersão num curso de produção audiovisual. A segunda etapa é a criação de novos polos com a realização de oficinas locais e produção de vídeos nas cidades dos multiplicadores. Por fim, a última etapa é a realização do Festival Câmera Cotidiana, pela internet. Nesse momento, no sítio do projeto, os vídeos produzidos em todas as oficinas concorrem entre si. “Os criadores dos vídeos vencedores e seus respectivos multiplicadores ganham novas oportunidades de aprendizado em intercâmbios em centros de referência nacional” na produção de audiovisual (FRACTAL FILMES, 2012, 1’27’’). 29Financiado com recursos do Governo Federal, por meio do Ministério da Cultura e da Lei de Incentivo à Cultura, o PCC tem como patrocinadores a Pousada Monjolo e SAMA Minerações Associadas e conta com o apoio da Lei Goyazes, lei estadual de Incentivo à cultura, Governo de Goiás. Conta ainda com a colaboração Ciranda da Arte – Centro de Estudo e Pesquisa Secretaria da Educação do Estado de Goiás, Caravídeo e Lab Ficticia. 142 | Figura 1. Cartaz do Projeto Câmera Cotidiana (edição 2013). A partir desse ponto, traçamos um relato da realização da oficina do Circuito Câmera Cotidiana, no Campus de Goiás, da Universidade Estadual de Goiás (UEG). O celular como alvo da ação didática Durante o mês de junho de 2013, quarenta e cinco educadores se inscreveram no projeto. Desse total, foram selecionados quinze, formando uma turma com pessoas oriundas dos municípios de Alto Paraíso, Goiás, Goiânia, Pirenópolis e Trindade. Então, participamos do Curso de Qualificação dos Multiplicadores entre os dias 29 de julho e 02 de agosto de 2013, na pousada Monjolo, no município de Nerópolis, Goiás. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 143 No mês seguinte, nas tardes dos dias 9, 10 e 11 de setembro, foi realizada a Oficina Câmera Cotidiana, no laboratório de informática da UEG/Campus Goiás. A oficina contou com a participação de doze pessoas entre discentes da licenciatura em História, Letras, Geografia e de funcionários técnico-administrativos do Campus. “Além de formação técnica e conceitual o curso oferece, também, planejamento pedagógico das oficinas a serem ministradas”, observou uma das alunas participantes30. O Curso foi planejado para 12h, distribuídas nas três tardes de atividades. Foi fundamental para o sucesso da tematização dos conteúdos, a apostila feita pelo Projeto e disponibilizada on-line no sitio do projeto. Uma versão resumida foi impressa e distribuída para todos os inscritos. Na esperança de que o relato da nossa experiência possa estimular outras pessoas na realização de atividades que usem a câmera do celular, descrevemos o primeiro dia de atividades da oficina. Como relatou um dos participantes: “fomos para a sala de informática aprender a editar vídeos. Foi legal, deu medo por não ter experiência. Nunca tinha feito nada assim, mas é sempre bom aprender algo novo. Gostei!” (Aluna 4). De acordo com o nosso planejamento, dedicamos o primeiro dia à apresentação do Projeto por meio do seu “vídeo institucional”, referido antes. Pedimos que ele fosse assistido diretamente pelo celular depois de compartilhá-lo entre todos os presentes via Bluetooth. De início, essa metodologia já promove a aproximação do usuário com o aparelho, otimizando o uso de suas potencialidades31. 30Solicitei a alguns alunos que fizessem uma narrativa por escrito, avaliando o curso. Uso alguns trechos dessas avaliações no presente texto. Identifico esses relatos por números. 31Uma ideia para o uso didático na sala de aula é no início do ano letivo quando pedimos a apresentação dos alunos. Em vez de pedir que os alunos se apresentem da forma tradicional, podemos sugerir a gravação de um vídeo no qual cada um diz seu nome, idade e interesses, por exemplo. Quando ministrava essa oficina para minha 144 | Na sequência dessa atividade, discorremos sobre os motivos para usar a câmera cotidiana32. Depois, identificamos as características do vídeo de bolso (mobile video ou pocket vídeo). O vídeo de bolso tem se afirmado como um gênero audiovisual entre, por exemplo, a animação, a aventura, o musical, o documentário, a ficção etc. O gênero é assim definido na apostila do curso: A expressão “pocket video” ou “vídeo de bolso” é usada para nomear um gênero de produção que se popularizou com as chamadas câmeras de mão, celulares e, principalmente, com os sites de compartilhamento tipo Vimeo e Youtube. É difícil precisar com clareza as características desse gênero: pode ser ficção ou não ficção; é feito por profissionais, mas também por amadores, são publicitários, de arte, de humor, educativos, de protesto, são até versões moderninhas dos antigos vídeos de aniversário ou casamento (PROJETO CÂMERA COTIDIANA, 2013, p. 40). Para ilustrar as potencialidades de produção de vídeos usando o celular, apresentamos os três vídeos vencedores da edição PCCC 2012: O passo da monotonia (5’10’’), Action Figure Death Note (2’36’’) e Vou continuar jogando (4’38’’). Na sequência, continuamos a ver alguns vídeos com o objetivo de estimular a criatividade dos alunos e mostrar as diversas possibilidades para o uso criativo da câmera do celular33. turma de “Estágio em História 1”, de 2013, foi bastante produtivo o emprego dessa metodologia. Além de divertida por si mesma, tornou-se um forte elemento de criação de vínculo entre os presentes. 32Nesse contexto, exibimos o vídeo feito com celular “Zé Ninguém/Zé Alguém”, produzido pela Casa da Árvore (Goiânia, 2012), no interior do Projeto Telinha de Cinema (da UEG/Campus Laranjeiras). Divertido, esse vídeo apresenta as possibilidades e algumas dicas para fazer vídeos com o celular. 33 Assistimos aos vídeos: “Bullying” (3’05’’), de 2009, do projeto Telinha de Cinema do Instituto Vivo e Casa da Árvore; o videoclipe “Demonstração”, do músico Toroká (2’13’’), dirigido por Nacho Durán; o filme “O paradoxo da espera do ônibus” (3’), dirigido por Christian Caselli, produzido para uma vídeo-instalação; o filme “On line” (2’26) também do projeto Telinha de Cinema do Instituto Vivo e Casa da Árvore; o “Reverse Graffiti” (3’22’’), EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 145 A exibição de vídeos, numa espécie de pequena mostra, ao mesmo tempo em que favorece a construção de uma cultura audiovisual nos alunos, também apresenta as diversas possibilidades de uso do celular. O momento de assistência de outros vídeos é muito importante na formação dos alunos para estimular a produção audiovisual. Além de servir de inspiração para produzir outros vídeos, a mostra também promove a formação cultural dos alunos, aproximando-os de problemas sociais, questões existenciais, possibilidades estéticas e de realidades culturais diferentes e distantes das vividas por eles. Durante a oficina, depois da pequena mostra de filmes, voltamos nossa atenção para o processo de captação, problematizando a fonte de som, o ângulo da luz, entre outras preocupações básicas que devemos ter quando fazemos a captação do material audiovisual34. Um importante elemento da captação das imagens é a estabilização da câmera. Ela é importante para garantir a melhor qualidade de imagem possível35. Falamos, ainda, sobre os recursos da câmera na mão, sobre o uso do zoom (privilegiar a aproximação/distanciamento mecânico em detrimento do digital). Alertamos para alguns cuidados para a captação de áudio: proximidade da fonte produtora, cuidado com o vento, com fontes de ruídos, cuidado com gravações em ambientes abertos etc. Depois disso, apresentamos alguns vídeos sobre gêneros audiovisuais. Priorizamos alguns formatos que podem ser assofilme de alto teor crítico dirigido por Alexandre Orion; “Sequência” (1’22’’), de G Saavedra e, por fim, exibimos a chamada para o quadro Outro olhar (0’17’’) do telejornal da TV Brasil, o primeiro programa brasileiro a abrir espaço para os vídeos amadores feitos em celulares. Nos dias atuais, o vídeo de bolso tem espaço garantido em qualquer programa televisivo. Recentemente, o Jornal Anhanguera lançou o quadro “Sem noção” em que chama a população para denunciar a falta de bom senso de muitos cidadãos metropolitanos. 34 Exibimos o pequeno filme “Dicas”, produzido pelo sítio Tecmundo que informa sobre produção de vídeo com o celular. 35 Utilizamos um trecho da entrevista concedida por Nacho Durán ao programa CliqueLigue, da tvt.org.br sobre a construção de estabilizadores (stedy cam) caseiros. 146 | ciados com algumas atividades didáticas dentro da sala de aula. Como exemplo, apresentamos os gêneros reportagem, a videorreportagem36 e o jornalismo “estilo gonzo”37. Apresentamos também o movimento “pósTV” e a “Mídia NINJA”. Finalizando o primeiro dia de oficina, abordamos os elementos narrativos do cinema, exibindo pequenos materiais didáticos audiovisuais que tematizam o plano-sequência. Refletimos sobre voz over, a dublagem e o uso de microfones. Vimos alguns exemplos de captação como o timelapse, stop motion feita a partir de grafite e utilização de slider de mesa, por exemplo. Algo muito positivo na metodologia utilizada e uma potencialidade implícita ao celular é poder praticar tudo o que se discute durante a aula. Nesse sentido, há infinitas possibilidades de exercícios práticos. No final do primeiro dia de oficina, a nossa atividade prática foi produzir um plano-sequência com o celular. Deveríamos “contar” uma história com o celular com o mínimo de cortes possível e usando os movimentos do celular de forma criativa e interessante. Os alunos deveriam se organizar em grupo para isso. Segundo o relato de uma das participantes, [...] foi um momento de descontrair com os colegas. Foi ótimo, porque brincamos com aquele momento de fazer o vídeo. Gostei muito. As aulas têm que ser diferentes de vez em quando, porque senão cansa[m] muito e fica[m] muito chata[s] (Aluna 1)38. Particularmente, apesar de não acreditar que a aula deva ser pautada unicamente pela expectativa de diversão dos alunos, 36 Com a exibição do filme “Manual de reportagem” (2’54’’), com Rafinha Bastos. 37 Exibimos um programa especial sobre o personagem Ernesto Varela, criado nos anos 80, por Fernando Meirelles e Marcelo Tas. 38Retirado do Diário de Campo de Estágio de uma aluna do “Estágio em História 1”, da turma de 2013, que também participou da oficina. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 147 concordo com a observação supracitada. As atividades usando o celular favorecem a socialização e a interação afetiva entre os alunos. Outras pessoas assim se manifestaram sobre o primeiro dia: [...] tivemos a oportunidade de conhecer vídeos ganhadores, aprendemos como gravar um vídeo com alta qualidade, tivemos oportunidade de colocar em prática tudo que aprendemos (Aluna 3). Nesse dia foi surpreendente. Estávamos muito empolgados. Até fizemos nosso primeiro vídeo. Foi muito bom. As dicas que tivemos nos ajudou a fazer um vídeo melhor (Aluno 1). Para encerrar e verificar a aprendizagem fomos gravar um vídeo em grupo com um roteiro produzido de última hora, mas até que as ideias fluíram bem (Aluna 4). O uso de vídeo na sala de aula estimula a capacidade narrativa dos alunos. A produção de pequenos roteiros estimula a criatividade e a organização lógica de ideias. Apresento um exemplo de roteiro produzido na oficina: [vamos] começar filmando a secretária na mesa de uma sala de computação. Depois a filmagem seguirá para a porta se abrindo e um aluno entrando, este sendo representado pelo nosso colega [...], a câmera dará um zoom no [...] assinando o livro de presença da secretaria. Nesse momento, a [...] também minha colega que está comandando a câmera, se afastará para que eu (secretária) e [...] fique enquadrado no vídeo. Depois, eu me retiro da sala, o [...] levanta vai até a porta olha se realmente eu sai e volta para o computador. Nesse momento, dá um close na tela do computador entrando no facebook depois vai mudando a câmera para um cartaz dando um zoom, onde está informando: proibido acessar redes sociais (Aluna 4). Um gosto de sol Existe um recurso, em alguns vídeos a que assistimos pela 148 | internet, que nos mostra trechos de outros episódios, enquanto são apresentados os créditos do vídeo a que acabamos de assistir. É este o nosso objetivo nesta sessão. Apesar da existência da lei que proíbe o uso do celular na sala de aula, esse aparelho está ao alcance da mão de qualquer pessoa em idade escolar. Mesmo proibido, o celular está dentro da sala de aula e é usado. Qualquer visita e observação mais delongada, feita na escola, constatará que é bastante difícil afastar o celular dos corpos dos estudantes. Então, em vez de cobrir a questão da presença e do uso do celular nas escolas atrás de uma puída cortina de hipocrisia (travestida em lei), não seria mais produtivo para todos (escola, professores e alunos) inventar novas formas de uso para esse tão poderoso aparelhozinho? A mudança de postura em relação à presença do celular nas salas de aula é urgente. E talvez definidora de novas relações de aprendizagem. Em vez de ponte para a fuga do aluno, o celular pode potencializar a aprendizagem em qualquer disciplina escolar. Basta para isso abertura para o diálogo, uma atitude sincera e responsável por parte de todos os envolvidos. Vejamos o que disseram alguns futuros professores, após participarem da oficina do Projeto Câmera Cotidiana: Eu aprendi que com uma câmera de celular podemos fazer muitas coisas, que para mim o celular não tinha uma boa utilidade, dentro de uma sala de aula [...] É algo muito novo pra mim que não tenho muito contato com esse mundo virtual... tentando colocar o vídeo no youtube, fazendo um login e uma senha para poder ter acesso (Aluna 1). Percebo que é possível sim utilizar o celular em sala de aula. Tenho certeza de que os alunos vão gostar bastante dessa oficina. Estão surgindo várias ideias para todos nós (Aluna 2). Hoje encerra o projeto e para isso vamos aprender a editar vídeos, cada um com o que já tem, ou gravou ontem. Já comecei errando, não consegui de forma alguma mandar meu vídeo do celular para o computador. Ótimo, desisti e fui fazer com a [...] EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 149 e a [...]. Primeiro aprendemos a adicionar os vídeos na barra. Depois fazer título, alterná-los, acho que é isso mesmo. Assistimos vídeos novos para aprender a fazer animação, adicionar som. Foi bom, mas estou com medo de chegar no dia do projeto e não conseguir fazer nada, ainda mais que os alunos são todos pequenos (Aluna 4). Há uma música39 da década de 1980 que recentemente emprestou seu nome para o título de um documentário40 sobre alguns dilemas das escolas brasileiras. O filme apresenta estudantes de diferentes realidades educacionais. Tangencia o fosso produzido na educação em decorrência da concentração de renda em nossa sociedade. Processo esse que tornou tão distantes as escolas públicas das particulares. Tal fosso encastelou a elite, protegendo-a na situação de protagonista das principais questões do país. De outro lado, o fosso solapou o restante da população, condenando-a a trabalhar por salários minguantes. Convido o leitor a conhecer ambas as criações: veja o filme, ouça a música e venha comigo para construirmos o fim deste texto (não, necessariamente, nessa mesma ordem). “Me dê de presente teu bis” A cada dia, o trabalho do professor é menos valorizado socialmente. As licenciaturas estão em crise em todo o país: vagas ociosas, cursos sem demandas, formação profissional vazia de sentido (e de pessoas verdadeiramente interessadas). Nesse cenário, as condições de trabalho se tornam cada vez mais difíceis. As perdas salariais não compensam os desgastes emocionais enfrentados a cada dia. Indisciplina, violência (verbal e física), desinteresse, desilusão geral... O mal estar da civilização somatizou-se no 39 Pro dia nascer feliz é a sétima faixa do disco “Barão Vermelho 2”, lançado em 1983, pela Som Livre. A música foi composta por Frejat e Cazuza. 40 Pro dia nascer feliz, dirigido por João Jardim, em 2006. 150 | útero de sua principal instituição: a escola. Diante desse cenário escatológico, paradoxalmente, a escola ainda se mantém como uma das maiores instituições da sociedade moderna. Tão forte quanto inerte. Tão grande quanto ignorada. Claro que esse maltrato favorece (e enriquece) uma meia dúzia de gente. Numa sociedade historicamente autoritária como a nossa, onde o estado de direito e a equidade social são valores distantes da vida prática, a escola é uma das poucas aliadas que temos para construir um futuro mais justo e feliz. É sempre preciso lembrar: ela é descuidada, porque poderosa; maltratada, porque decisiva. Enfrentemos o dilema da escola no Brasil! Embalados no ritmo, sigamos empurrados pelos riffs da guitarra da canção jovial. Não podemos deixar que a “insônia” do nosso tempo faça “tudo ficar infinito”. Nadar contra a corrente é cansativo, mas exercita nossos corpos. O enrijecimento também nos traz a consciência corporal da nossa força e potência. O enfrentamento deixa nossos músculos retesados. Prontos, tanto para a luta, quanto para o amor. “Nadando contra a corrente” de todos esses processos excludentes, mais que nunca, é a hora de fazermos da aula uma experiência exitosa e substantiva para a formação da criança e do adolescente: “todo dia é dia”, nos lembra a canção. A escola precisa fazer sentido na vida dos alunos e o celular é apenas uma das formas de manter a comunicação com essa geração Z. O nosso lugar de fala (e de existência) é a escola, a partir da qual levantaremos nossos corpos (“todo o músculo que sente”) como nos versos esperançosos, cantados por um jovem músico gay: “agora vam’bora / estamos, meu bem, por um triz / pro dia nascer feliz / o mundo acordar”. Referências COSTA, Antônio. Compreender o cinema. Rio de Janeiro: Globo, 1987. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 151 FRACTAL FILMES. Circuito Câmera Cotidiana [Vídeo institucional do projeto]. Disponível em www.cameracotidiana.com.br Acessado em 13/10/2013. ODIN, Roger. A abordagem da linguagem das imagens. In: GARDIES, René (Org.). Compreender o cinema e as imagens. Lisboa: Edições Texto e Grafia, 2006. PROJETO CÂMERA COTIDIANA. Apostila. Goiânia: Fractal Filmes, 2013. PORTAL Tela Brasil. Disponível em http://www.telabr.com.br/em-salade-aula Acessado em 31/10/2013. 152 | INCLUSÃO DIGITAL E POSSIBLIDADES DE ENSINAR/ APRENDER: EXPERIÊNCIAS DE UM PROJETO DE EXTENSÃO COM PESSOAS ADULTAS Flávia Valéria C. Braga Melo, Diórgenes dos Santos Junielson Dias Barbosa Introdução E ste texto pretende discutir a questão da exclusão de pessoas, em geral, especialmente acima dos quarenta anos de idade, do mundo digital e do mundo do trabalho informatizado. O tema em questão refere-se ao Projeto de Extensão realizado no Campus de Aparecida de Goiânia, da Universidade Estadual de Goiás (UEG), no ano de 2013, intitulado “Inclusão Digital e Assessoria de Emprego” para pessoas acima de quarenta anos de idade. O objetivo foi o de oferecer curso de informática básica, palestras e assessoria, no intuito de auxiliar o público alvo na recolocação no mercado de trabalho, visando, assim, a qualificação destas pessoas a fim de que sejam aumentadas as oportunidades de gozar de melhores condições de vida. Incialmente, este artigo aborda o mundo do trabalho globalizado e competitivo, além da necessidade do conhecimento sobre informática básica para se obter qualificação profissional. Ao mesmo tempo, busca-se apresentar as principais dificuldades dos brasileiros com idade madura para conseguir emprego, quando esses fazem parte do grupo de trabalhadores sem qualificação. Haverá, ainda, sob a forma de relato, a descrição de algumas experiências de ensino e aprendizagem vivenciadas no Projeto de Extensão, no sentido de expor algumas dificuldades e êxitos que foram percebidos pelos acadêmicos extensionistas no decorrer das aulas e palestras à comunidade convidada. Assim, o artigo 153 154 | discorre sobre a execução e trajetória dessas aulas, pelo desejo de se obter respostas para uma variedade de questões que aguçaram a curiosidade dos acadêmicos que, mesmo antes do projeto se encerrar, começaram a buscar respostas e novas discussões. Novas tecnologias e exclusão digital Há, no país, um significativo número de pessoas sem acesso digital. Apesar de a pesquisa não ser recente, mas apenas para termos uma ideia, de acordo com divulgação da UNESCO (2008), mais da metade dos brasileiros (54,4%) nunca havia usado um computador. Menos de 20% tinha o equipamento em casa e apenas 14,5% dos domicílios com computador estavam ligados à rede mundial. Estes são os dados apresentados pela Pesquisa sobre o Uso Domiciliar das Tecnologias de Informação e Comunicação – a chamada TIC Domicílios – realizada pelo Instituto Ipsos Opinion, a pedido do Comitê Gestor da Internet (CGI) em 2005 e 2006. Promover e tornar acessíveis as novas tecnologias representa um dos objetivos da Organização das Nações Unidas (ONU), para o desenvolvimento e bem-estar dos povos no século XXI. A ONU estabeleceu oito metas (até o ano de 2015) que visam erradicar a pobreza extrema e amenizar problemas sociais graves, como fome, incidência de doenças, analfabetismo, dentre outros. Assim, a inclusão digital faz parte do oitavo objetivo estabelecido como Meta para o Milênio, que é: “avançar no desenvolvimento de um sistema comercial e financeiro aberto, previsível e não discriminatório [...], tornar acessíveis os benefícios das novas tecnologias, em especial de informação e de comunicações.” (ONU, 2013, página digital). A acessibilidade na internet é uma das formas de garantir a cidadania das pessoas. De acordo com o Programa Nacional de Inclusão Social (BRASIL, 2013, página digital), EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 155 [...] a inclusão digital é um dos caminhos para atingir a inclusão social. Por meio dela, as camadas mais carentes da população podem se beneficiar com novas ferramentas para obter e disseminar conhecimento, além de ter acesso ao lazer, à cultura e melhores oportunidades no mercado de trabalho. De acordo com Viana (2009), a informatização dos serviços sociais é uma consequência crescente do capitalismo em expansão. Assim, a informatização amplia a camada de trabalhadores que já passaram pelo processo de inclusão digital, que exige cada vez mais a incorporação do saber técnico no processo produtivo, embora esteja contribuindo para a produção de mais-valor capitalista. De acordo com Cantú (2003), para alcançar a qualificação por meio da educação profissionalizante, o Brasil tem se apoiado no engajamento institucional de algumas entidades públicas e privadas, visando uma efetiva oferta de formação profissional, com o intuito de desenvolver a massa de trabalhadores aptos às novas tecnologias e demandas organizacionais. Ainda, a autora explica que a preocupação com a qualificação profissional faz parte do sindicalismo brasileiro desde os anos 1990. Dentre elas, estão elencadas: formação continuada para trabalhadores desempregados; iniciativas de reciclagem de trabalhadores; cursos técnicos para filhos e associados abertos à comunidade; cursos de formação profissional para a população adulta de baixa renda; alfabetização de jovens e adultos e, ainda, formação profissional de dirigentes. Para fazer comparação entre o tempo de escolaridade dos brasileiros e o acesso digital, tem-se o levantamento do IBGE (2010) que aponta que o nível de instrução dos usuários da Internet foi, acentuadamente, mais elevado que o das pessoas que não utilizaram esta rede. O número médio de anos de estudo dos usuários da Internet foi de 10,7 anos, enquanto o das pessoas que não utilizaram esta rede ficou em 5,6 anos. Observa-se, portanto, que quanto maior o tempo de escolaridade dos brasileiros, maior 156 | o acesso à internet. Logo, a escolaridade de uma pessoa está intrinsecamente vinculada ao conhecimento, habilitação para o mercado de trabalho, capacidade de dominar as ferramentas da informática e o aumento da perspectiva de vida do indivíduo em relação ao futuro. Embora certas dificuldades de trabalho e qualificação profissional façam parte daquelas pessoas consideradas maduras, numa faixa etária acima de quarenta anos de idade, um estudo realizado pelo Ministério da Previdência (BRASIL, 2008) observou que o emprego com carteira assinada aumentou nas duas pontas: entre os mais jovens e os que têm acima de 50 anos. O levantamento sugere que houve uma mudança no comportamento das empresas: em 2007, houve um crescimento do número de jovens que conseguiram o primeiro emprego e de trabalhadores com mais de cinquenta anos que voltaram ao mercado de trabalho formal. Entre as pessoas que tinham entre dezesseis e dezenove anos, foram contratados quase 1,9 milhão de jovens, um aumento de 20,54% em relação a 2006. Entre os trabalhadores com mais de cinquenta anos, o maior crescimento foi na faixa dos cinquenta e cinco aos cinquenta e nove anos: mais de 2,1 milhões de pessoas conseguiram emprego, 11% acima do ano anterior. Isto aponta que há mais vagas de emprego no Brasil para pessoas mais maduras do que antes. Este levantamento sugere, portanto, que é possível aumentar esse percentual de pessoas adultas e não mais consideradas jovens, no mercado de trabalho, se estas pessoas fossem mais qualificadas. E, ainda, supõe que boa parte destas pessoas encontra-se fora do mercado em decorrência de fatores, como: idade, baixa escolaridade, exclusão digital, longo período de desemprego e dificuldades financeiras em procurar qualificação profissional. Segundo o IBGE (2010), a maioria dos profissionais brasileiros tem entre vinte e cinco a quarenta e nove anos de idade, o que compõe 62,5% dos trabalhadores no país. A pesquisa revelou, EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 157 também, que o mercado brasileiro registrou aumento de profissionais com cinquenta anos ou mais, representando um grupo de 21,5 % do total de pessoas que trabalham. Segundo Malaquias (2003), hoje, “navegar” é imprescindível, sobretudo, dominar as tecnologias de informação. Sem embargos, informação é poder. O analfabetismo digital é um grande fator de exclusão, que resulta em sérias implicações sociais, políticas, jurídicas e econômicas. Logo, a inserção de um público, que até certo ponto possui pouca ou nenhuma afinidade com o mundo virtual, é algo que atualmente se faz extremamente necessário, para sua integração junto à sociedade em nível pessoal e profissional. As pessoas da terceira idade necessitam de um tempo maior e seguem um ritmo mais lento para aprender a manipular e assimilar os mecanismos de funcionamento desses artefatos (KACHAR, 2003). Sendo assim, ao propiciarmos um ambiente amigável, onde possam se sentir seguros, permitimos que eles se familiarizem e consigam ampliar seus horizontes, com relação a este novo mundo. Ainda, segundo Kachar (2003), o uso dessa ferramenta permite a pessoas com mais idade, uma melhora das condições de interação social e estímulo à atividade mental. Malaquias (2003) afirma que nosso país não pode perder essa chance histórica e singular que é a de se desenvolver, concomitantemente, com o desenrolar da revolução da Informática. De forma que se faz necessário, consequentemente, que seja dada a oportunidade de acesso aos brasileiros à educação, visando a inclusão digital, no sentido que de só assim haverá o exercício democrático da cidadania plena. É a partir desta perspectiva que desenvolvemos o projeto de extensão, aqui apresentado, assim como, discutimos e refletimos, criticamente, sobre a inclusão digital entre adultos. A seguir, são dispostas informações mais especificadas sobre o projeto. 158 | Descrição sobre a experiência do projeto de extensão O avanço da tecnologia cresce a cada dia e a ausência desse conhecimento nos deixa alheios ao mundo digital e globalizado. Segundo Carreazo (2010), a tecnologia é uma necessidade absoluta; dela não podemos escapar. Ela tem um papel muito grande na maioria dos aspectos de nossas vidas. Em outras palavras, ela responde a maioria dos problemas da humanidade. A importância da tecnologia está, de forma geral, apontando para maior conforto de utilização em qualquer forma. Ela, comumente, orienta para a facilidade na vida. Nesse sentido, o conhecimento da informática se tornou algo indispensável, tanto para atender às necessidades do mercado de trabalho, quanto para atender às necessidades pessoais. Porém, a falta do conhecimento da informática na educação fez com que parte da população brasileira chegasse à fase adulta ou madura, sem ao menos “tocar” em um computador. Pensando neste desafio, na tentativa de inserir pelo menos uma pequena parte desta população no mundo da tecnologia, o projeto foi planejado. Inicialmente, é importante descrever algumas informações relevantes sobre o Projeto de Extensão “Inclusão Digital e Assessoria de Emprego”. Com a finalidade de promover inclusão digital e assessoria de emprego para pessoas a partir de quarenta anos de idade, ele possui a participação de 11 acadêmicos extensionistas, pertencentes aos cursos de Administração de Empresas e Ciências Contábeis do Campus de Aparecida de Goiânia e assiste um total de 18 pessoas da comunidade, com apenas duas desistências ao longo do semestre. Iniciado em setembro de 2013, o projeto ocorre duas vezes na semana, com carga horária de 2h/a por dia, no período vespertino. Os encontros são intercalados: uma aula de informática básica e na outra ocorre uma assessoria de emprego (com palestras sobre empregabilidade, dicas e noções de EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 159 como procurar emprego e nele se manter). Por esse motivo, os acadêmicos extensionistas dividem-se em duas equipes e fazem revezamento entre as aulas, embora boa parte desses alunos tenha optado pela participação e atuação nos dois encontros semanais, situação gerada pelo envolvimento ativo deles no projeto e pela percepção da necessidade da presença de um grupo maior de monitores para alcançar a demanda dos aprendizes. São os próprios acadêmicos que, na condição de monitores, fazem a pesquisa bibliográfica, elaboram as aulas, criam os slides, organizam teatros e dinâmicas motivacionais e preparam o lanche nos intervalos das aulas (a intenção do café com biscoitos é de promover um ambiente mais acolhedor para aliviar a tensão no momento do aprendizado). Observou-se, durante as aulas que já foram ministradas, uma grande dificuldade entre as pessoas que estão aprendendo informática básica: muitas delas não sabiam sequer ligar um computador e chegaram a relatar que nunca haviam feito isso anteriormente. Foram detectadas algumas dificuldades consideradas simples, tais como: manusear o mouse, posicionar as mãos no teclado, minimizar ou fechar um arquivo que esteja sendo utilizado, etc. A necessidade de acompanhamento destas pessoas de forma individualizada era e ainda continua sendo constante. Dentre os membros da comunidade que participam do projeto, estão pessoas com idade acima de sessenta anos, que embora possuam muita dificuldade, não demonstram resistência em aprender. E por isso, para alcançar a aprendizagem de todos, os monitores realizam sucessivas pausas até que todos confirmem que conseguiram executar a atividade sugerida e, ainda, algumas atividades ficam pendentes para a próxima aula. Todavia, o declínio de algumas atividades não inviabiliza a apropriação e o domínio do recurso tecnológico, mas exige um contexto educacional específico que atenda às condições de aprender sobre a máquina e por meio dela explorar outras possi- 160 | bilidades de desenvolvimento do indivíduo. As pesquisas sobre a aprendizagem e utilização do computador, por idosos, no Brasil, são ainda escassas, por isso a metodologia de ensino e aprendizagem específica, para eles, apresenta muitos aspectos ainda a serem estudados (KACHAR, 2003). As pessoas com uma maior idade, como é o caso de nossos alunos, apresentam uma maior dificuldade com relação ao manuseio, visualização e memorização das informações que dizem respeito ao computador. Porém, o ambiente que é proporcionado durante as aulas permite uma interação entre os alunos e o estabelecimento de uma amizade entre eles e os tutores. Assim sendo, as dificuldades que foram apresentadas ao longo do tempo acabaram diminuídas ou até sanadas. Entretanto, alguns autores salientam a necessidade de se planificar propostas metodológicas direcionadas para a população idosa, tendo em atenção o seu processo cognitivo, o ritmo que é mais lento, os recursos que se tornam mais limitados e as restrições sensoriais próprias do envelhecimento. Mais especificamente, no que concerne ao ensino das TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação) a idosos, é necessário promover um ambiente de aprendizagem próprio para os indivíduos em questão, que passa pela criação de uma interação com a máquina de acordo com as suas necessidades e condições físicas (PEREIRA; NEVES, 2011). Foi criado um ambiente onde podemos corroborar para a diminuição das dificuldades dos alunos e também foi elaborada uma metodologia de ensino participativa e com uma interação aluno-professor muito grande, de modo que conseguimos trazer uma segurança aos alunos, para apresentarem suas dificuldades e aceitarem nosso auxilio. Observou-se que, durante o semestre, a assiduidade e envolvimento dos acadêmicos, no projeto, foram acima do esperado. Dentre alguns relatos feitos pelos alunos monitores, podemos mencionar: EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 161 [...] fui um dos primeiros acadêmicos a fazer a inscrição neste projeto, confesso que me inscrevi com muita insegurança pois sempre fui tímido, calado, nunca fui de interagir com pessoas que não conhecia. [...] posso afirmar que este projeto também mudou a minha vida, no sentido de me ajudar a falar em púbico, hoje consigo falar com segurança com as pessoas que estão olhando para mim. [...] Me sinto honrado de fazer parte deste projeto, fico realizado de ver estas pessoas com o sorriso no rosto pela satisfação de aprender algo novo, isso não tem preço, este projeto da professora me fez perceber que podemos mudar o mundo algum dia. (Relato do acadêmico JFP no dia 13 de dezembro de 2013, atua como monitor do Projeto de Extensão Inclusão Digital e Assessoria de Emprego). O projeto de extensão – Inclusão Digital é uma experiência que levarei comigo para a vida toda. Não sabíamos que ajudar as pessoas é tão bom, o mais legal é que são coisas simples que modificam a vida das pessoas. [...] O projeto ajudou os acadêmicos da universidade a se desenvolverem na apresentação em público e no diálogo com as pessoas. E, sem contar que ajudamos a população que nunca nem teve contato com o computador a manuseá-lo apesar das dificuldades por ser o primeiro contato com o mesmo. Mais que no final deu tudo certo e os alunos adoram sentar em frente o computador e usá-lo. Foi uma coisa tão interessante, que nunca tinha vivenciado. No percorrer das aulas criamos muito afeto e carinho uns pelos outros, isso foi incrível a relação entre aluno e professor em sala de aula motiva nós acadêmicos participantes do projeto e aos alunos da região que estão aprendendo de forma básica a mexer e manusear um computador. [...]. (Relato da acadêmica LX no dia 15 de dezembro de 2013, atua como monitora do Projeto de Extensão Inclusão Digital e Assessoria de Emprego). Em adição, a utilização de computadores e das tecnologias de informação e comunicação a eles agregados abrem uma nova perspectiva de resgate e inclusão social, por contribuírem para o aumento da autoestima das pessoas idosas, pois, além de ampliar os horizontes da comunicação, aumenta sua interação social e independência, como também a legitimação do idoso como cidadão crítico e reflexivo. (SALES; XAVIER; BAYER, 2003). Com o projeto, pretendia-se trazer um novo leque de informações aos alunos que, agora, têm um maior conhecimento sobre 162 | essas novas tecnologias e podem se inserir de uma maneira mais acentuada nesse novo ambiente. Permite-se, assim, um aumento da interação social com os demais usuários da rede, pois se tornaram mais independentes com relação ao manuseio da máquina. Assim, possibilitando às pessoas que fazem parte de uma faixa etária mais madura, meios de se familiarizam com as novas tecnologias, estima-se que consigam acompanhá-las. Podemos, então, demonstrar esses mecanismos de uma forma participativa e acolhedora, transformando e dando novos horizontes aos alunos. Considerações finais Embora o desemprego seja um fator preocupante para todas as faixas etárias, ele é mais grave entre as pessoas que já passaram dos 40 anos de idade. Entretanto, adequadamente preparadas, as pessoas desempregadas que se encontram no universo da faixa etária proposta, certamente terão reduzido o tempo de desemprego. É sabido que sem a devida qualificação, elas possuem um tempo maior que aquelas consideradas jovens para conseguir um novo trabalho. Por este motivo, é que emerge a necessidade de viabilizar, o mais rápido possível, oportunidade de trabalho a essas pessoas. É indubitável que, mesmo em proporção pequena, este projeto esteja alcançando essa possibilidade. Por isso é que a extensão numa Instituição de Ensino Superior é considerada um de seus pilares. Tem-se observado maior autonomia dos alunos inscritos, não somente no uso do computador, como também no manuseio de caixas eletrônicos, celulares e outros aparelhos eletrônicos. Assim, a experiência do projeto faz-se satisfatória. Essa autonomia é libertadora, gera sentimento de pertencimento à sociedade em sua era pós-moderna e torna a ação extensionista relevante. Os relatos deixados neste texto não são conclusivos, por isso, ficam as considerações de que a inclusão digital é necessária e viável e, principalmente, desejada por aqueles que não se sentem EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 163 aptos a manusear uma simples operação num computador. Por isso, fica, aqui, a descrição de alguns relatos e discussões, como possibilidade de reflexões, sugestões, mudanças e retomadas de posições. Referências BRASIL. Ministério da Previdência. 2008. Disponível em: http://www. mpas.gov.br/buscaGeral.php. Acesso em: 15 abr. 2013. BRASIL. Programa de inclusão social. Disponível em: http://www.brasil. gov.br/sobre/educacao/acesso-a-bibliotecas-publicas-na-rede. Acesso em 01 mai. 2013. CANTÚ, Margarete. Qualificação profissional, inserção, reinserção e permanência no mercado de trabalho: os egressos do programa Integrar. UFRS: 2003. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/2057/000363361.pdf?sequence=1. Acesso em: 02 mai. 2013. CARREAZO, Diana Isabel. A importância da tecnologia em nossas vidas. 2010. Disponível em: <http://looscarvalho.blogspot.com.br/2010/10/ importancia-da-tecnologia-em-nossa-vida.html >. Acesso em: 05 dez 2013. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=987. Acesso em: 19 abr. 2013. KACHAR, Vitória. Terceira idade e Informática: aprender revelando potencialidades. São Paulo: Cortez, 2003. MALAQUIAS, Bruno Pires. O analfabetismo digital. Disponível em: <http://www.ibdi.org.br/site/artigos.php?id=159>. 2003. Acesso em: 05 dez 2013. 164 | ONU. Organização das Nações Unidas. Disponível em: http://www.onu. org.br/a-onu-em-acao/a-onu-em-acao/a-onu-e-o-desenvolvimento/. Acesso em: 21 mai. 2013. PEREIRA, Cláudia; NEVES, Rui. Os idosos e as TIC – competências de comunicação e qualidade de vida. Revista Kairós Gerontologia, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 05-26, mar. 2011. SALES, Márcia Barros; XAVIER, André; BAYER, J. Metáfora e dinâmicas de grupo em oficina de internet para idosos. In: Conferência Ibero-Americana www/Internet. Algarve/Portugal, 2003, p. 175-178. UNESCO. Tecnologia, informação e inclusão. 2008. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001585/158502por.pdf. Acesso em: 15 out. 2013. VIANA, Nildo. O capitalismo na era da acumulação integral. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2009. A UTILIZAÇÃO DO MATERIAL DIDÁTICO: MARCADOR TRIGONOMÉTRICO NA APRENDIZAGEM DE CONCEITOS E PROPRIEDADES DE TRIGONOMETRIA EM ESCOLAS DE EDUCAÇÃO BÁSICA41 Marcelo Henrique Belonsi Estela Mara Cruz Rogério Marques Nunes Introdução P ara facilitar a compreensão dos conceitos, muitas vezes faz-se importante levar em consideração a necessidade de utilização de tais conceitos no desenvolvimento científico natural, entender sua aplicação no cotidiano, compreendendo seu papel histórico na evolução da humanidade. Assim, as teorias são construídas, em geral, a partir de conceitos já presentes nas teorias existentes, segundo Boyer (2010, p. 193) que, em seu livro, cita uma frase que Issac Newton escreveu a seu contemporâneo Robert Hooke “[...] se eu enxerguei mais longe que Descartes é porque me sustentei sobre ombros de gigantes”. Newton associa o seu desenvolvimento e as descobertas teóricas graças às teorias e conceitos pré-existentes à sua época. Nesse sentido, busca-se refinar as técnicas e/ou ferramentas metodológicas com a finalidade de que o estudante sinta a necessidade e o prazer de assimilar e dominar os conteúdos e técnicas relacionados, traçando um paralelo com nossas necessidades fisiológicas, assim buscamos nos alimentar para garantir as necessidades energéticas diárias para manutenção da sobrevivência. Nesse mesmo sentido, deseja-se que os alunos busquem pelos meios de 41 Este artigo foi produzido a partir dos resultados de experimentação de projeto de extensão desenvolvido no ano de 2012 junto à Pró Reitoria de Extensão da Universidade Estadual de Goiás. 165 166 | alimentar os anseios da construção do autoconhecimento. Dessa forma, os operadores da educação devem estar numa contínua e crescente busca de novos e aprimorados recursos facilitadores necessários ao aprendizado. Na teoria piagetiana, o sujeito (aluno) é um ser ativo que estabelece relação de troca com o meio-objeto (físico, pessoa, conhecimento) num sistema de relações vivenciadas e significativas, uma vez que este é resultado de ações do indivíduo sobre o meio em que vive, adquirindo significação ao ser humano quando o conhecimento é inserido em uma estrutura, denominando-se a isto de assimilação (PIAGET, 1999). Nessa perspectiva, a aprendizagem desse sujeito ativo exige sempre atividades organizadoras na interação estabelecida entre ele e o conteúdo a ser aprendido, além de estar vinculada sua aprendizagem ao grau de desenvolvimento já alcançado. Na busca da excelência no processo de ensino-aprendizagem, esta é uma temática fundamental em padrões de ensino nos dias atuais; sabe-se que este é um processo de aprimoramento. Assim sendo, deve ser tratado de forma contínua, gradativa e permanente. Dessa forma, busca-se contribuir para com as metodologias já desenvolvidas e amplamente disseminadas no que diz respeito ao tema abordado. Por outro lado, a matemática, quando tratada de forma contextualizada e por meio de ferramentas e/ou materiais didáticos adequados, torna-se prazerosa e eficiente, pois possibilita a experimentação e a estruturação do pensamento lógico, garantindo o aparecimento dos elementos esseciais de uma aprendizagem de qualidade, pois, segundo Freire (1996, p. 52): “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a construção”. Nessa direção, cabe ao professor, enquanto organizador e facilitador da aprendizagem, buscar alternativas e meios diferentes de ensino, propiciando uma readequação das práticas pedagógicas, de forma a superar as dificuldades de aprendizagem apre- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 167 sentadas pelos alunos. Diante disso, a assimilação do conteúdo, por parte do aprendiz, dá-se em melhor qualidade e intensidade quando o aprendiz se coloca em uma posição de protagonista no processo de ensinoaprendizagem. Dessa forma, este processo, além de estar vinculado ao grau de aprendizado já alcançado, propicia sempre uma atividade de interação entre o aprendiz e o conteúdo a ser compreendido. Intensionando-se buscar as condições para que o aprendiz seja um sujeito ativo no processo ensino-aprendizagem, contrastando com a condição passiva, ou como sujeito coadjuvante neste processo, este trabalho busca promover um material didático, com fins de manipulação e experimentação, estimulante necessário para que o aprendiz sinta disposição e interesse pelo conteúdo de trigonometria a ser abordado: Os professores devem promover a educação participativa. Os alunos devem ser estimulados de todas as maneiras a deixarem de ser espectadores passivos que se sentam em suas carteiras e ouvem inerte a transmissão do conhecimento. Esse tipo de passividade esmaga a criatividade, a liberdade e o espírito empreendedor (CURY, 2007, p. 62). Corroborando com o exposto, projeta-se este material como um meio facilitador na aquisição e assimilação dos conceitos e/ ou propriedades inerentes ao conteúdo de trigonometria, pois foi pensado de forma em que este seja capaz de lidar com o aspecto analógico da marcação de ângulos e não apenas de representação discretas dos mesmos, desdobrando-se na continuidade das funções seno e cosseno, facilitando, assim, a visualização por meio da manipulação experimental, e, enquanto ferramenta, tornando possível a visualização e organização do raciocínio lógico abstrato, tanto na contextualização da resolução de problemas, quanto na resolução de exercícios de fixação. Um pouco de história 168 | A Trigonometria, assim como outras áreas da matemática, não foi criada por uma só pessoa ou por um só povo. Não se sabe, precisamente, ou sabe-se muito pouco sobre sua origem. Alguns livros atribuem os primeiros relatos associados aos conteúdos trigonométricos à matemática grega. A origem do aparecimento dos tratados envolvendo trigonometria é incerta. No entanto, as primeiras evidências de seu desenvolvimento remonta aos séculos IV e V a.C. Tais evidências podem ser observadas e constatadas nos trabalhos desenvolvidos, principalmente, pelos egípcios e babilônicos, quando estes se dispuseram a resolver seus problemas relacionados à Astronomia, Agrimensura e Navegações. Nesse mesmo sentido, podem-se encontrar problemas envolvendo a cotangente no Papiro Rhind42 (Figura 1) e, também, uma notável tábua de secantes representada em escrita cuneiforme babilônica, impressa na tableta, denominada Plimpton 32243 (Figura 2). 42 Papiro de Rhind ou papiro de Ahmes é um documento egípcio de cerca de 1650 a.C., quando um escriba, de nome Ahmes, detalha a solução de 85 problemas de aritmética, frações, cálculo de áreas, volumes, progressões, repartições proporcionais, regra de três simples, equações lineares, trigonometria básica e geometria. É um dos mais famosos antigos documentos matemáticos que chegaram aos dias de hoje, juntamente com o Papiro de Moscou. O nome Rhind é devido ao escocês Alexander Henry Rhind que o adquiriu em 1858. Fonte: UL, 2013. 43Plimpton 322 é uma tableta de argila em escrita cuneiforme com registros da matemática babilônica. De aproximadamente meio milhão de tabletas de argila babilônicas escavadas desde o início do Século XIX, milhares são de natureza matemática. Provavelmente o mais famoso destes exemplos de matemática babilônica seja a tableta Plimpton 322, referindo-se ao fato de ter o número 322 na coleção G.A. Plimpton da Columbia University. Esta tableta, que se acredita ter sido escrita no Século XVIII a.C., possui uma tabela de 4 colunas e 15 linhas de números em escrita cuneiforme do período. Fonte: UBC, 2013. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 169 Figura 1 – Papirus Rhind. Fonte: UL, 2013. Figura 2 – Tableta Plimpton 322. Fonte: UBC, 2013. Por outro lado, a palavra trigonometria (do grego: trigos = triângulo; metria = medida) significa medida das partes de um triângulo. Dessa forma, pode-se perceber, por meio de relatos encontrados, que a trigonometria teve seu surgimento motivado por problemas relacionados à Astronomia, tendo como foco os problemas relacionados à esfera temporal, bem como relatos que nos mostram que alguns conceitos trigonométricos se fizeram necessários na resolução de problemas relacionados à Navegação e a Geografia. A princípio era feito um estudo da trigonometria esférica, que estuda triângulos esféricos, isto é, os triângulos sobre a superfície de uma esfera. É possível observar nos triângulos da trigonometria plana que os lados são segmentos, diferente da trigonometria esférica, onde eles são definidos por arcos. Assim, devido ao desenvolvimento da Mecânica e da Física, tornou-se necessário desenvolver partes da trigonometria plana, tendo sido esta a forma que a trigonometria plana passou ao primeiro plano dos estudos da Matemática. 170 | Nesse sentido, encontram-se, também, relatos de que Euclides44 deixou sua contribuição ao desenvolvimento da trigonometria em seu tratado intitulado Os fenômenos. Neste tratado, acredita-se que Euclides discorreu sobre a Geometria esférica para fins de utilização dos astrônomos da época. Da mesma forma, percebem-se contribuições à trigonometria com Teodósio, em seu livro sobre a esfera, bem como por Aristarco45, em seu livro sobre as distâncias do sol e da lua e, posteriormente, com os tratados de Apolônio46, donde se pode observar inúmeros estudos relevantes, dentre eles a apresentação de uma aproximação melhor do valor da constante π (pi) em relação ao apresentado por Arquimedes. Por outro lado, uma boa parte dos autores considera Hi47 parco como sendo o fundador da astronomia científica e pai da trigonometria, isso se deve ao fato de ter sido, ele o primeiro a construir uma tabela trigonométrica, com valores de uma série de ângulos, utilizando a idéia pioneira de Hipsicles48. 44Euclides de Alexandria foi um dos mais proeminentes matemáticos da Antiguidade. É conhecido pelo seu tratado matemático - Os Elementos - que é a obra matemática mais duradoura de todos os tempos, utilizada até os dias de hoje. Fonte: USP, 2012. 45Aristarco de Samos, astrônomo grego (310 a.C. – 230 a.C.) foi o primeiro cientista a propor que a Terra gira em torno do Sol (sistema heliocêntrico) e que a Terra possui movimento de rotação. Apenas uma obra sua é conhecida: Sobre os tamanhos e distâncias entre o Sol e a Lua. Fonte: SOMATEMÁTICA, 2013. 46Apolônio de Perga (262 a.C. – 190 a.C.) nascido em Perga, cidade da Anatólia, atual Turquia. Sua vocação para a Geometria foi digna de nota. Ele usava modelos geométricos para explicar a teoria planetária e deve-se a ele o modelo matemático favorito da antiguidade para representação do movimento dos planetas. Fonte: USP, 2012. 47Hiparco de Nicéia, em grego Hipparkhos (190 a.C. – 120 a.C.), foi um astrônomo, construtor, cartógrafo e matemático grego da escola de Alexandria nascido em 190 a.C. em Nicéia, na Bitínia, hoje Iznik, na Turquia. Viveu em Alexandria, sendo um dos grandes representantes da Escola Alexandrina, do ponto de vista da contribuição para a mecânica. Fonte: USP, 2012. 48Hipsicles de Alexandria (240 a.C. – 170 a.C) astrônomo e geômetra grego nascido em Alexandria, Egito, especialista em estudos de sólidos regulares e suposto autor de uma obra de astronomia, De ascensionibus. Fonte: USP, 2012. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 171 O que se sabe sobre Hiparco de Nicéia é devido a Ptolomeu49, o qual menciona, em seus trabalhos, vários resultados de Hiparco sobre Trigonometria e Astronomia. Outra fonte de informação sobre Hiparco aparece em algumas descrições de trabalhos de autores gregos. Provavelmente, a divisão do círculo em 360° tenha sido originada por Hiparco através da sua tabela de cordas, inspirado no trabalho de Hipsicles que, baseado na Astronomia babilônica, dividiu o dia em 360 partes. Logo após, tivemos a contribuição de Menelau50 de Alexandria com o livro Geometria Esférica e Cláudio Ptolomeu em seu tratado sobre astronomia, denominado Almagesto. Os árabes beneficiaram-se do desenvolvimento da trigonometria grega e hindu, porém deixaram, também, contribuições no sentido de seu desenvolvimento e aprimoramento, quando estes introduziram os conceitos associados à tangente, cotangente, secante e cossecante, no sentido de facilitar seus os cálculos. Um elemento curioso é a forma de surgimento da representação da palavra seno para a palavra meia-corda. Esta última utilizada pelos gregos em seus tratados sobre a trigonometria. Os árabes traduziram inúmeros textos de trigonometria do sânscrito. Assim, a partir do nome “ardha-jiva”, ou simplesmente “jiva” que significava “meia-corda” foi transliterada pelos árabes por “jiba”, como na língua árabe era comum escrever apenas as consoantes, deixando que o leitor introduzisse mentalmente as vogais. Diante disso, os árabes registraram em seus transcritos a palavra “jiba” 49Cláudio Ptolomeu ou Ptolomeu (90 - 168) nasceu em Ptolemaida Hermia, no Egito, Ptolomeu foi o último dos grandes sábios gregos e procurou sintetizar o trabalho de alguns estudiosos da época. Fonte: E-BIOGRAFIAS/PORTAL DAS BIOGRAFIAS, 2013. 50Menelau de Alexandria (70 – 130) astrônomo e geômetra nascido em Alexandria, Egito, que não só continuou os trabalhos de Hiparco em trigonometria, mas demonstrou interessantíssimo teorema, que leva o seu nome. Ardente defensor da geometria clássica e criador do tradicional teorema de Menelau, escreveu várias obras de trigonometria e geometria. Suas principais obras foram Cordas em círculo, em seis volumes, Elementos de geometria, com vários teoremas, e Sphaera, em três livros sobre esféricos. Fonte: UFCG, 2013. 172 | como “jb”, tendo esta sido entendida pelos tradutores em latim pela palavra árabe “jaib” e, assim sendo traduzida pela palavra “sinus”, que em latim significa “baía” ou “enseada”. A função tangente era conhecida como função sombra, a qual continha conceitos associados às sombras projetadas por uma vara colocada na vertical (Figura 3). A variação na elevação do Sol causava uma variação no ângulo que os raios solares formavam com a vara e, portanto, modificava o tamanho da sombra. Figura 3 - Ilustração de uma formação de sombra e penumbra a partir dos raios solares. Organização: Marcelo H. Belonsi, 2013. Em decorrência disso, a tangente e a cotangente tiveram sua origem um pouco diferente daquelas relacionadas ao seno e cosseno. Diferentemente do que muitos pensam, a tangente e cotangente não originaram da decorrência direta entre as razões, entre as funções seno e cosseno. Estas surgiram, assim como muitos outros conceitos, como uma forma de solução a um problema ou para justificarem algum conceito natural. Foram conceitos desen- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 173 volvidos juntos e não foram primeiramente associados a ângulos, sendo importantes para o cálculo do comprimento da sombra produzida por um objeto. Tal fenômeno também foi de suma importância na construção do relógio de sol. Tales de Mileto51 usou os comprimentos das sombras para calcular as alturas das pirâmides através da semelhança de triângulos. O ciclo trigonométrico (círculo trigonométrico) Por círculo trigonométrico ou ciclo trigonométrico entende-se, de forma resumida, uma circunferência, cujo raio é unitário (Figura 4). É possível observar uma divisão do plano em quatro regiões denominadas quadrantes e representadas pelos algarismos romanos I, II, III e IV. Dessa forma, podemos observar, na figura 4, a ilustração dos quatro quadrantes: 51 Tales de Mileto foi o primeiro matemático grego, nascido por volta do ano 640 e falecido em 550 a.c., em Mileto, cidade da Ásia Menor. Tales foi incluído entre os sete sábios da antiguidade. Estrangeiro rico e respeitável, o famoso Tales durante a sua estadia no Egito estudou Astronomia e Geometria. Fonte: Instituto de Educação – Universidade de Lisboa. 174 | Figura 5 - Ciclo trigonométrico. Figura 4 - Ciclo trigonométrico. Organizador: Marcelo H. Belonsi, Organizador: Marcelo H. Belonsi, 2013. 2013. Uma questão advinda dos estudantes quando se deparam com o ciclo trigonométrico é a razão de trabalhar com um circulo de raio unitário, muitas vezes indagando sobre o porquê de não trabalhar com círculos de raio diferentes do unitário. Bem, a resposta é bem simples, conforme veremos sua justificativa a partir da ilustração na figura 5: consideremos dois círculos concêntricos de raios OA e OA’, respectivamente. Assim, projetando-se os pontos A e A’ sobre o eixo das abscissas, encontra-se os pontos B e B’, respectivamente. A partir da construção realizada identificam-se dois triângulos, . Vejamos: De acordo com a construção ilustrada na figura 5, é possível concluir que os triângulos e são semelhantes, critério de semelhança (AAA). Logo, de acordo com a definição de semelhança de triângulos (ROCHA, 2012), escreve-se: EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 175 Dessa última equação, podemos escrever: Por outro lado, de acordo com a definição de cosseno de um ângulo em triângulos retângulos, podemos escrever que: Dessa forma, o valor do cosseno de um ângulo é sempre o mesmo, independentemente do comprimento do raio da circunferência. Então, para facilitar os cálculos, toma-se para o circulo trigonométrico a circunferência de raio unitário. A construção do marcador trigonométrico Antes de adentramos no tocante ao desenvolvimento propriamente dito, vale esclarecer o processo de elaboração e contrução do protótipo do material didático para fins de sua utilização como ferramental de auxílio ao estudos de trigonometria. Assim, para o desenvolvimento das ações práticas, foi necessário procedermos a elaboração e confecção de um material didático para fins de estímulo e facilitador do estudo do conteúdo de trigonometria. Tal material foi denominado Marcador Trigonométrico. Assim, este vislumbra ser um ferramental facilitador na compreenção dos conceitos e propriedades inerentes aos conteúdos trigonométricos. Dessa forma, para desenvolver tal ferramenta, utilizou-se um circulo, em madeira, com diâmtero igual a 30 cm, onde realizou-se um furo em seu centro, conforme podemos observar na 176 | figura 6. Construiu-se, também, três varetas, onde, uma serviria como ponteiro marcador do ângulo e as outras duas como identificador dos valores do seno e cosseno (Figura 7). Figura 6 - Bandeja de metal cir- Figura 7 - Pseudo marcador trigonomécular. trico. Organizador: Marcelo H. Belonsi, Organizador: Marcelo H. Belonsi, 2013. 2013 Vale ressaltar que a presente construção teve por finalidade auxiliar na construção do material didático em estrutura metálica, permeando seu manuseio e otimizando seu potencial didático. Por motivos de melhor visualização, suprimiu-se a haste de identificação do valor do seno. De acordo como foi construído (Figura 8), ao se deslocar o ponteiro marcador de ângulo, de forma a aumentar ou diminuir o ângulo, θ (téta), a vareta, em vermelho, tende sempre a se manter na posição vertical. Dessa forma, é possível identificar o valor do cosseno, de um certo ângulo, sobre o eixo horizontal, graduado com alguns valores pré-estabelecidos entre 0 (zero) e 1 (um). EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 177 Figura 8 - Foto do protótipo do marcador trigonométrico em madeira. Organizador: Marcelo H. Belonsi, 2013. Para estabelecer as marcações, usou-se o fato de que o ciclo trigonométrico está dividido em quatro quadrantes e, da mesma forma, o medidor trigonométrico, também, estará dividido em quatro quadrantes (Figura 8). Como, a partir da construção o medidor trigonométrico possui raio 15 cm, e, convencionalmente utiliza-se o raio do ciclo trigonométrico de medida igual a 1 (uma unidade). Dessa forma, estabeleceu-se uma relação no sentido de unitarizar52 a unidade de medida do medidor trigonométrico. Assim, para uma melhor visualização, estabeleceram-se marcações essenciais no sentido de facilitar a leitura e a determinação de alguns valores de arcos notáveis. Marcações essas que se fazem possível por meio de uma regra de três, simples. Na figura 8, é possível observar a imagem de uma graduação angular com marcação de 1 em 1 grau, iniciando em 00 (ou 0 rad) até 3600 no sentido anti-horário. Após esse breve relato sobre a elaboração e construção do marcador trigonométrico faz-se necessá52 Unitarizar é o processo no qual se dá para a transformação de uma grandeza finita em um intervalo de norma unitária. 178 | rio, agora, transcrever um registro da aplicação do Marcador trigonométrico em uma escola de Ensino Básico município de Goiás. Aplicação em sala de aula Na oportunidade, vale dizer que tal instrumento foi aplicado a duas turmas de matemática do segundo ano do ensino médio, em momento ímpar, específico, onde se deu o início do desenvolvimento do conteúdo de trigonometria, conforme programado no plano de curso do professor titular das turmas, momento este, que se fez propício à aplicação do marcador trigonométrico por se tratar de um momento onde não existe qualquer tipo de vício ou espúrio advindo de uma forma metodológica de ensino-aprendizagem, diferente da que hora é apresentada. Vale dizer que tal aplicação se deu por um período de duas horas aulas, sendo a mesma iniciada por um breve diálogo histórico do surgimento da trigonometria, assim como foi levantado no inicio deste trabalho, bem como uma breve revisão do conteúdo de trigonometria em triângulos retângulos, conteúdo este tratado no ensino fundamental. Dessa forma, em um segundo momento foi apresentado o marcador trigonométrico aos alunos e então foi abordado o conteúdo de trigonometria com o material didático, na expectativa de que sua utilização despertasse nos educandos um estimulo à aprendizagem, facilitando, assim, a assimilação do conteúdo. No sentido de melhor operacionalização do trabalho, solicitou-se dos aprendizes a organizarem-se em grupos de cinco pessoas, onde cada grupo recebeu uma apostila, contendo uma breve história do surgimento da trigonometria e algumas atividades para serem resolvidas, além de um Marcador trigonométrico com fins de manipulação para resolução das atividades propostas. Cada grupo se organizou de forma que seus membros pudessem fazer as manipulações necessárias no Marcador trigonométri- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 179 co, tendo como princípio transcender a compreensão da trigonometria por meio do exercício da manipulação via material didático. Dessa forma, cada grupo, a seu contento, pode utilizar o Marcador trigonométrico, com a finalidade direta ou indireta à obtenção das respostas e soluções das atividades propostas, atividades estas que versavam sobre a determinação de ângulos, senos, cossenos e tangentes de ângulos, esboço de gráficos, identificação e prospecção de propriedades fundamentais, bem como resolução de exercícios e problemas de aplicações clássicos em provas de concursos diversos. Vale ressaltar que o material possibilitou o estudo dos conteúdos das funções trigonométricas inversas, evidenciando que, devido ao tempo escasso disponibilizado, tornouse exímio o tratamento de tal propriedade de conteúdo. Nesse contexto, é importante ressaltar que tal metodologia propiciou a observação e identificação de elementos de aprendizagem que, inicialmente, não foram objetos centrais de estudo, contudo, forneceram elementos importantes quanto à qualificação da utilização do marcador trigonométrico. Dessa forma, a partir da subdivisão dos aprendizes (em grupos) e da escolha (a critério do próprio grupo) dos sujeitos responsáveis pela manipulação, com fins de utilização do marcador trigonométrico, tornou-se evidente e fundamental para a aprendizagem, pois se percebeu, de forma não registral, mas, de forma observativa, o fato de que os aprendizes que tiveram maior contato com o material didático tiveram, também, maior assimilação e um nível de compreensão de conteúdo mais apurado em relação aos aprendizes que não tiveram ou tiveram pouco contato com o Marcador trigonométrico. Isso se deve ao fato da posição de sujeito ativo ou passivo - como cada aprendiz se portou frente ao estudo. É importante destacar, ainda, a dificuldade inicial, por parte dos estudantes, na manipulação efetivamente produtiva, ou seja, manipulação em que o aprendiz consegue inferir a equalização do conteúdo trabalhado no sentido de obter os elementos de solução 180 | das atividades. Porém, tornou-se evidente a facilidade de resolução das atividades a partir do instante em que o grupo, em especial o aprendiz, adquiria, com o passar do tempo, as habilidades manipulativas do Marcador trigonométrico. Um indicativo que evidencia de forma qualitativa a aprendizagem pode ser expresso no comentário de um integrante da experimentação, comentário este que se sucedeu de uma afirmação de que se fosse possível tal utilização, o quantitativo numérico da nota ocorreria na sua totalidade. Vale dizer que tal comentário foi corroborado pelos demais integrantes, participantes da experimentação. Outro fato que vale incorporar a este tópico de resultado, e que não podemos caracterizá-los como quantitativo, mas que elucida a qualidade da utilização de materiais didáticos de uma forma geral e, em particular do marcador trigonométrico, foi a oportunidade de alguns integrantes recorrerem, de forma espontânea, ao regente da experimentação, buscando retomar a manipulação do Marcador trigonométrico, pois perceberam a correlação direta da real necessidade da manipulação para com a assimilação da compreensão dos conceitos trabalhados. Nesse momento, tornou-se evidente a importância do Marcador trigonométrico, pois despertou o interesse desses alunos na busca pela compreensão do conteúdo, ora intrínseco à aprendizagem. No sentido de corroborar com tais resultados e, inferirmos a viabilidade e a necessidade do desenvolvimento de tal material didático, realizou-se uma pequena aplicação (aula piloto) do referido material, envolvendo discentes do primeiro ano, de graduação em Matemática, da Universidade Estadual de Goiás, no âmbito do Campus de Goiás. Percebeu-se, por meio de comentários e considerações feitas pelos discentes, que o material didático tornou possível, por parte do discente, a compreensão e assimilação do conceito da função cosseno, no tocante ao seu estudo direto, tal como: domí- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 181 nio, imagem e gráfico; bem como da compreensão do conceito e elementos fundamentais da sua função inversa. Tais comentários estiveram sempre no sentido de que tal ferramenta lhes proporcionou uma visão clara e fácil da função cosseno e sua inversa. De forma que a compreensão e a resolução dos exercícios tornaram-se menos difíceis e, apesar das dificuldades, os discentes se sentiram mais atraídos para resolvê-los. Externaram, ainda, não com estas palavras, mas com este significado, que o material possui um potencial de motivação lúdica para com o ensino-aprendizagem dos conceitos da função cosseno. Isso evidencia uma forma de tratamento do estudo das funções trigonométricas que vem ao encontro com a facilitação da aprendizagem por meio de um material de manipulação capaz de inserir o aluno como protagonista de seu aprendizado. Como meio de obtermos uma forma não meramente de percepção dos proponentes autores deste trabalho, inferiu-se aos participantes sobre sua avaliação quanto à aprendizagem da trigonometria por meio do Marcador trigonométrico, obtendo um quantitativo de respostas de 69% para o conceito ótimo, 19% e 12% para o conceito bom e regular, respectivamente, o que demonstra uma aprovação de forma satisfatória por pelo menos 88% dos participantes pesquisados, como pode ser evidenciado no Gráfico 1: 182 | Gráfico 1 - Resultados da autoavaliação realizada pelo público participante da atividade de extensão. Organizador: Marcelo H. Belonsi, 2013. Considerações finais O presente trabalho desenvolvido junto à Pró Reitoria de Extensão da Universidade Estadual de Goiás possibilitou a elaboração e o desenvolvimento de um material didático que objetiva auxiliar e facilitar a compreensão, por parte dos discentes, em relação ao estudo da trigonometria. Este conteúdo, geralmente, é tratado de forma abstrata, tonificado apenas por representações geométricas, com fins de ilustração didática, voltado a auxiliar e facilitar a compreensão dos conceitos relacionados. Todavia, percebe-se que tais elementos de ilustração são caracterizados de forma discretizadas. Aludindo à concepção do processo de construção das representações geométricas dos aprendizes, de forma manipulável, teve seu cume com o desenvolvimento e a aplicação do marcador trigonométrico junto aos alunos da Escola de Educação Básica. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 183 Espera-se, ainda, realizar a elaboração e produção de um manual de orientações de utilização e sugestões de atividades com fins de facilitação e apoio pedagógico aos professores quanto ao ensino-aprendizagem da trigonometria durante as aulas expositivasdialogadas. Outro ponto que devemos explicitar se refere à aplicação da ferramenta didática em sala de aula. Aplicação esta, que, além do viés da credibilidade e da sustentabilidade, possibilitou os meios necessários para propiciar descobertas dos meios de utilização mais adequados aos estudos dos conteúdos de trigonometria. Porém, percebe-se que esse material didático atenderá aos anseios de aprendizagem devido ao fato de ser um ferramental manipulável, propício a experimentações. É fato que o estudante possui uma visível dificuldade no tratamento de questões e aplicações do conteúdo de trigonometria. Assim, espera-se que este trabalho possa auxiliar no resgate do tratamento do referido estudo. Dessa forma, encorajamos os leitores a serem colaboradores, desenvolvendo esta ferrramenta didática, buscando refazer as experiências, dando continuidade e aprimoramento ao marcador trigonométrico como material didático, visando o desenvolvimento de todo o potencial primazmente projetado, propiciando, assim, um produto motivador e estimulante da aprendizagem do conteúdo de trigonometria. Referências BOYER, Carl B.. História da Matemática. 3 ed. São Paulo: Edgard Blücher, 2010. CURY, Augusto. Treinando a emoção para ser feliz. Rio de Janeiro: Sextante, 2007. 184 | FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. Tradução Maria Alice M. D’Amorim e Paulo Sérgio L. Silva. 24 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. ROCHA, Silvia. Semelhança de triângulos. 2012. Disponível em: <http:// cmup.fc.up.pt/cmup/mecs/Geometria/semelhanca%20de%20triangulos.pdf>. Acesso em: 22 de Ago. de 2012. USP. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SÃO PAULO. E-cálculo. Disponível em: <http://ecalculo.if.usp.br/historia>. Acesso em 16 de abril de 2012. UFCG. UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE. Biografias – Menelau de Alexandria. Disponível em: <ww.dec.ufcg.edu.br/ biografias/MenelauA.html>. Acesso em: 17 de abril de 2012. UBC. University of British Columbia. Mathematics Department. Disponível em: http://www.math.ubc.ca/~cass/courses/m446-03/pl322/ pl322.html. Acesso em: 10 de abril de 2013. UL. Universidade de Lisboa. Departamento de Educação. Disponível em: http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/rhind/inicio.htm. Acesso em: 10 de abril de 2013. CICLO DE ESTUDOS DE WILLIAM SHAKESPEARE: UM PROJETO DE EXTENSÃO PARA ESTUDAR ADAPTAÇÕES CINEMATOGRÁFICAS DA OBRA DO BARDO Guido de Oliveira Carvalho Sirlene Antonia Rodrigues Costa Introdução D iversos críticos se referem às obras de Shakespeare como sendo um grande tesouro cultural deixado para a humanidade (veja, por exemplo, HELIODORA, 2004; LÍSIAS, 2007; LEÃO, 2009: RESENDE, 2009). Para alguns, uma afirmação que denota certa dose de exagero. Para outros, estudiosos e amantes da arte, a afirmação procede. O que se sabe é que, em seu tempo e em tempo atuais, a poesia e a dramaturgia de Skakespeare influenciaram e continuam influenciando gerações após gerações mundo afora. Tendo isto em mente, em 2006 decidimos promover um evento de extensão voltado para a apresentação da vida e obra do dramaturgo, por meio, principalmente, de adaptações cinematográficas de suas obras. Uma vez que o curso de Letras da UEG conta com duas licenciaturas – Português e Inglês –, e em uma delas, a Literatura Inglesa e Norte-Americana são estudadas, consideramos pertinente tal estudo. Assim, o Ciclo de Estudos sobre William Shakespeare se propôs a fornecer aos alunos da UEG-Itapuranga e à comunidade atendida por ela um momento para entrar em contato, de maneira mais profunda, com a obra de um autor tão conhecido mundialmente. Nas próximas seções, apresentaremos aspectos sobre a importância de Shakespeare para a cultura, o conceito de adaptações, como o evento ocorreu e seus resultados. 185 186 | A biografia e a importância de Shakespeare Em seu tempo, William Shakespeare soube cativar com maestria toda uma sociedade complexa e heterogênea que compunha a Inglaterra do século XVI, no período renascentista, mais especificamente no período do reinado de Elisabeth I. Nota-se que o dramaturgo desenvolveu, sabiamente, uma habilidade singular para dialogar, por meio da arte, com os mais diversos interlocutores: políticos influentes, pessoas da alta sociedade inglesa, críticos, escritores, poetas e pessoas comuns, simples e humildes, que lotavam os teatros ingleses para assistirem aos desfechos dramáticos e inusitados das suas peças trágicas. Ou rirem das trapalhadas dos personagens que saltitavam em suas peças cômicas. Ou ainda, e também, para se contagiarem com a poesia tecida em seus sonetos. Para a Heliodora (2004, p. 241), Shakespeare foi, acima de tudo, um homem de seu tempo, e eu, aliás, sempre tive a maior convicção de que ele só continua vivo para nós exatamente por ter sempre concentrado sua atenção, bem como sua imaginação, no mundo em que vivia – e o viveu tão profundamente que alcançou, por assim dizer, a essência daquilo que continua a caracterizar o ser humano até hoje. Segundo nos informa Galvão (2011), é comum as peças de Shakespeare serem reencenadas todos os anos na Inglaterra. O autor apresentou a informação por ocasião do lançamento de um dos livros sobre o dramaturgo, As Guerras de Shakespeare, de Ron Rosenbaum, mais um a compor a extensa bibliografia de estudo do autor. Puhl (2003, p. 11) ressalta, ainda, que “Shakespeare foi um dos maiores representantes da arte que conseguiu levar aos palcos e à Literatura temas que se transformaram em universais.” Foi irônico, dramático, extrovertido, um escritor que, literalmen- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 187 te, brincou com temáticas que compõem os sentimentos e as emoções diversamente antagônicos, presentes na essência de homens e mulheres de antes e de agora. Enalteceu e platonizou o amor romântico, transgrediu fronteiras de tempo e espaço. Relatou sobre as diversas formas de disputas, de interesses que entranham as relações humanas. Discorreu sobre os mais diversos conceitos de valores, crenças e comportamentos, dos mais nobres aos mais criticados. Foi dinâmico e atemporal. Tudo isso faz com que, até hoje, Shakespeare seja tão diversamente referenciado por escritores e poetas de todo o mundo. Em tempos atuais, William Shakespeare continua exercendo sua influência em produções culturais, como cinema, literatura, teatro, novelas e quadrinhos, como veremos na próxima seção. Adaptações das peças para outras mídias Nos primórdios do cinema, quando ainda não havia som, a literatura já chamava a atenção para adaptações. Contudo, nesse período inicial, a crítica cobrava fidelidade dessas adaptações (NUNES, 2006; FEITOSA, 2008). Com o passar o tempo, uma nova visão passa a vigorar: a de que a adaptação é uma tradução intersemiótica, ou seja, a “tradução de um determinado sistema de signos para outro sistema semiótico” (DINIZ, 1998, p. 313). Desta forma, evidenciam-se as diferenças entre o teatro e o cinema: enquanto no primeiro predomina a linguagem verbal, no segundo predomina a linguagem visual. A adaptação é, pois, um processo de reescrita que, embora possa ser associado ao textofonte a qualquer momento (BERTIN, 2008), apresenta transformações de linguagem em que o diretor deve escolher aquilo que considera importante no texto-fonte para se adequar à sua obra cinematográfica (NUNES, 2006). De acordo com Magnani (2012), com informações baseadas no site “Revista Monet”, Shakespeare é o escritor com mais textos 188 | adaptados para obras cinematográficas. As adaptações totalizaram 891 (entre filmes, curta-metragens e documentários), enquanto o segundo colocado, Anton Chekhov alcança o número de 342, ou seja, menos da metade. Leão (2009) informa que a primeira adaptação da obra de Shakespeare para o cinema ocorreu em 1907, na França, com direção de George Méliès. Trata-se de La Mort de Jules César, um filme de 8 minutos. Como já apontado, desta data em diante, mais de 800 obras cinematográficas já vieram à luz. Tal informação comprova o interesse mundial no que Shakespeare tinha a dizer, mesmo passados quatro séculos de seu nascimento. Segundo Puhl (2003, p. 30), O Cinema percebeu que não existem tantas ideias originais e decidiu não fazer rodeios e levar às telas paixões e conflitos universais. Este fato confirma que existem mais possibilidades entre Shakespeare e a sétima-arte do que mostra a sua vã filmografia. Nenhuma outra dramaturgia se mostrou tão moderna e eterna num pleonasmo que entra em cartaz a cada nova temporada. A esse respeito, Mendes (2011, p. 107-108) acrescenta, ainda, que “todas essas adaptações demonstram a pluralidade de leituras das peças de Shakespeare e a flexibilidade do cinema em tratar a dramaturgia do autor inglês.” Além do cinema, outras mídias também se interessaram pelo bardo: a literatura, a televisão e os quadrinhos, para citar alguns exemplos. Na literatura, Vieira (2007) nos conta que Machado de Assis tinha o hábito de recorrer a Shakespeare em suas obras. Como exemplo, o autor cita que a peça Otelo se faz presente nas histórias A mão e a luva, Helena e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Outro exemplo é a abertura do conto A cartomante, em que Machado cita Hamlet. Veira (2007) destaca, ainda, que em Quincas Borba, o romancista utiliza-se de uma estratégia narrativa em que mescla o EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 189 trágico e o cômico, como é característico de Shakespeare. Araújo (2012) cita outra obra literária, o Manifesto Antropófago, no qual há um trocadilho com a frase “ser ou não ser” (to be or not to be), transformando-a em “tupi or not tupi”. O manifesto foi lançado em 1928, pelo Movimento Pau-Brasil, do qual fazia parte Oswald de Andrade. Leão (2009) relata, ainda, que o conto La Memoria de Shakespeare, de Jorge Luis Borges traz a história de um pesquisador que perde sua própria memória e identidade ao embarcar na memória do poeta. A televisão, também, produziu seu quinhão nas adaptações das peças. Resende (2009) informa que a TV Globo adaptou Romeu e Julieta e Hamlet para o programa Caso Especial. A primeira, com a ação transposta para Minas Gerais ao invés de Veneza, foi ao ar em 24 de dezembro de 1980, dirigida por Walter George Dust, com direção de Paulo Afonso Grisolli. Nos papéis principais, Fábio Júnior e Lucélia Santos. A segunda foi ao ar em 9 de março de 1983, com roteiro de Aguinaldo Silva e direção de Paulo Afonso Grisolli. O cenário muda da ilha de Capri para o Rio de Janeiro e o contexto militar original é transferido para uma escola de samba. No elenco: Roberto Bonfim, Júlia Lemmertz e Milton Ribeiro. Nas novelas, Suave Veneno (1999) foi influenciada por Rei Lear, enquanto o tema de Romeu e Julieta (o amor de dois jovens de família rivais) perpassa O Rei do Gado (1996-1997) e Pedra sobre Pedra (1992), para citar algumas. Essas novelas foram exibidas pela Rede Globo, que também apresentou uma obra livremente inspirada em A Megera Domada: O Cravo e a Rosa, exibida entre 2000 e 2001. Ainda na televisão, quando a obra O auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, foi adaptado por Guel Arraes para um microseriado, em 2000, havia a inserção de um trecho em que o pagamento de uma dívida seria através de “uma tira de couro”, todavia quando ela é cobrada, a solução é a mesma de O mercador de Veneza, ou seja, o sangue não pode ser tirado (PAULA, 2009). De acordo com Scott (2010), Shakespeare é bem popular no mundo dos quadrinhos americanos. Por exemplo, na série Clas- 190 | sics Illustrated, publicada pela editora americana Gilbert Company por um longo período desde os anos 1950, algumas obras de Shakespeare foram adaptadas para os quadrinhos: Sonho de uma noite de verão, Júlio César, Hamlet, Romeu e Julieta e Macbeth. Essas adaptações foram publicadas no Brasil pela Editora Brasil -América (EBAL) em três edições da série Edição Maravilhosa: no. 60, em 1952, com adaptações de três peças de Shakespeare: Hamlet, Macbeth e Romeu e Julieta; no. 161, em 1957, com uma adaptação de Sonho de uma Noite de Verão; e no. 192, em 1961, com uma segunda versão de Romeu e Julieta. A série Ken Parker faz menção às obras de Shakespeare em dois momentos. A edição 33, publicado pela Editora Vecchi em julho de 1981, mostra um trecho de Romeu e Julieta, enquanto a edição especial Um Príncipe para Norma, publicado pela CLUQ em 2000, apresenta uma trupe de atores que encena Hamlet. A obra Sandman, de Neil Gaiman, edição 19 (Editora Globo, junho de 1991), traz uma interpretação toda particular da obra do bardo em relação ao senhor dos Sonhos, Morfeus. Os quadrinhos Disney também tiveram sua cota de adaptação da obra do bardo. Em “Mickey Shakespeare”, publicado em Mickey 387 (Editora Abril, dezembro de 1984), o famoso personagem Disney protagoniza uma história em que citações famosas de Shakespeare são colocadas nas falas dos personagens durante toda a história. Em Grandes Clássicos da Literatura Disney edição 3, publicada em junho de 2010 pela Editora Abril, são apresentadas adaptações de três obras: Hamlet, Otelo e A Megera Domada. A edição 38 da mesma série, lançada em março de 2011, traz adaptações das peças Romeu e Julieta, O Mercador de Veneza e Sonho de uma Noite de Verão. Como se trata de quadrinhos voltados para o público infanto-juvenil o final sanguinolento das tragédias foi modificado. Tal modificação do final também ocorre com a adaptação de Romeu e Julieta feita por Maurício de Sousa. A peça virou um EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 191 musical com os personagens da Turma da Mônica em 1978. Logo em seguida vieram os quadrinhos nas edições de Mônica e Cebolinha publicados pela Editora Abril. A adaptação em quadrinhos teve boa repercussão e já foi republicada ao longo dos anos por outras duas editoras: Globo e Panini. Os personagens de Romeu e Julieta são interpretados pelos garotos e garotas do bairro do Limoeiro. Assim, Mônica é Julieta, Cebolinha é Romeu, Cascão é Frei Cascão, Magali é Amagali, entre outros personagens. Na história, Mônica se recusa a ter um final triste e o modifica de modo que os dois enamorados acabem juntos. Há também adaptações com uma aproximação mais fidedigna aos quadrinhos. A série Shakespeare em Quadrinhos, publicada pela Editora Nemo entre 2011 e 2013 apresenta seis adaptações da obra do bardo: Romeu e Julieta, Sonho de uma Noite de Verão, Otelo, A Tempestade, Macbeth e Rei Lear. A série Classics Illustrated, publicada pela Editora Abril, trouxe na edição 2 (dezembro de 1990) uma adaptação da peça Hamlet realizada por Tom Mandrake e Steven Grant. Shakespeare foi adaptado também para o formato mangá: a série Shakespeare em Mangá teve cinco edições publicadas: Hamlet, Romeu e Julieta, A Tempestade, Ricardo III e Sonho de uma Noite de Verão. Com tantas adaptações para outras mídias, optamos pelas adaptações cinematográficas para a divulgação da obra de Shakespeare. Objetivo do evento O Ciclo de Estudos sobre William Shakespeare teve como propósito promover, com alunos do Curso de Letras da UEG-Itapuranga e a comunidade local, estudos sobre a vida e a obra do famoso dramaturgo inglês Willian Shakespeare. Atrelados a este objetivo maior, o evento teve, ainda, outras metas específicas, como de exibir filmes baseados na obra do autor, promover a prática da pesquisa literária e possibilitar 192 | discussões acadêmicas acerca da contextualização sociocultural e politico que o envolveram. A realização do evento O Ciclo de Estudos sobre William Shakespeare consistiu de um projeto ligado à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Estadual de Goiás, no período de maio a novembro de 2006, coordenado por nós, autores deste artigo, na época, docentes do curso de Letras da Universidade, Unidade de Itapuranga, e ministrados por acadêmicos do 1º ao 4º ano do curso de Letras, daquela Unidade Universitária. Como o propósito do projeto era desenvolver estudos sobre a vida e a obra do dramaturgo, tornou-se necessária a realização de atividades acadêmicas bastante diversificadas, envolvendo desde pesquisas, leituras, produções de textos, exibições e debates de filmes baseadas em algumas obras de Shakespeare. Para tanto, foram realizados oito encontros presenciais, previamente agendados, com a presença de acadêmicos da Unidade Universitária, do curso de Letras e de outros cursos da Instituição, professores e pessoas da comunidade. Ao todo, estiveram envolvidas no projeto 73 pessoas, entre os coordenadores, palestrantes, debatedores dos filmes e ouvintes. É importante ressaltar que as palestras e os debates foram conduzidos por acadêmicos do curso de Letras, sob a orientação dos coordenadores do projeto. Os encontros foram realizados aos sábados, no período vespertino, nas dependências da UEG-Itapuranga, e consistiu basicamente em três atividades em cada encontro. Primeiro era realizada uma palestra, por cerca de 50 minutos, ministrada por dois acadêmicos, detalhando um determinado aspecto da vida e obra de Shakespeare, contextualizando o dramaturgo e sua produção. Em seguida, era projetado um filme baseado na obra do autor. Durante os oito encontros, foram exibidos os filmes: Hamlet, A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 193 Megera Domada, Ricardo III, Othelo, Macbeth, Sonho de Uma Noite de Verão, Muito Barulho Por Nada e Shakespeare Apaixonado. Após a exibição do filme, outros três acadêmicos promoviam um seminário, debatendo as ideias e as características da obra de Shakespeare presentes no filme. Dentre as temáticas discutidas nas palestras estão a vida e a obra de Shakespeare, as peças trágicas, cômicas e históricas e os sonetos escritos pelo autor, as características do teatro elisabetano e a influência de Shakespeare na Literatura Inglesa e na cultura mundial. Como se tratou de um evento cultural, não houve avaliação de seus participantes, exceto no que tange à presença, uma vez que os ouvintes receberam certificados de acordo com o número de horas-aula que estiveram efetivamente presentes nos encontros. Cada encontro correspondeu a 5 horas-aula, totalizando, para aqueles que participaram de todos os encontros, 40 horas-aula. Filmes exibidos no evento Shakespeare apaixonado (Shakespeare in love) – lançado em 1998, o filme foi escrito por Marc Norman e Tom Stoppard, com direção de John Madden. No elenco: Joseph Fiennes, Gwyneth Paltrow, Judi Dench, Geoffrey Rush, Tom Wilkinson e Imelda Staunton. O filme narra o momento da vida de Shakespeare em que ele está prestes a escrever Romeu e Julieta. Contudo, um bloqueio criativo o coloca em dificuldades: é quando ele conhece e se apaixona por Lady Viola, o que o inspira a escrever a peça. A partir daí, o filme traça um paralelo entre o desenvolvimento da paixão de Shakespeare e Lady Viola e o surgimento da peça Romeu e Julieta em um divertido jogo de metalinguagem, em que sobram referências ao teatro elisabetano, autores da época, contexto histórico e menções a outras peças do bardo. Por conta dessas referências, o filme serviu para fazermos uma introdução a Shakespeare, suas obras, seu teatro e seu contexto histórico-social, como sugere 194 | Scheidt (2006), pois segundo ela, o filme derruba o mito de inacessível que alguns podem ter com relação ao bardo. O mercador de Veneza (The Merchant of Venice) – esta adaptação roteirizada e dirigida por Michal Radford foi lançada em 2004. O elenco teve nomes como: Al Pacino, Jeremy Irons, Joseph Fiennes, Lynn Collins e Zuleikha Robinson. Esta tragicomédia ocorre na cidade de Veneza, no século XVI. Bassânio pede ao amigo, Antonio, ajuda financeira para cortejar sua amada, Portia. Contudo, Antonio está sem acesso a seu dinheiro no momento. Ele, então, pede um empréstimo ao judeu Shylock, que concorda, desde que ao final de três meses, se o empréstimo não for pago, Antonio terá que lhe ceder um pedaço de sua carne. Infelizmente, Antonio perde todo seu dinheiro e o caso vai parar na corte, onde Portia, disfarçada de advogado, o defende: assim, Shylock pode retirar a libra de carne que deseja, contudo sem derramar uma gota de sangue. Como tal ação seria impossível, Shylock acaba preso por atentar contra a vida de um Veneziano e, sua riqueza, confiscada. Peça apresentada, inicialmente, em 1596. Othelo – filme lançado em 1995, com roteiro e direção de Oliver Park e elenco constituído de Laurence Fishburne, Irène Jacob, Kenneth Branagh e Nathaniel Parker. É uma história de amor, ciúme, preconceito e inveja. Iago, invejoso da promoção de Cássio por Otelo, arquiteta um plano de vingança em que induz o mouro a pensar que Desdemôna, sua fiel esposa, tem um caso com Cássio. Como resultado, Otelo mata Desdêmona e, ao descobrir a verdade, mata Iago e comete suicídio. A peça foi apresentada, inicialmente, em 1603. Ricardo III (Richard III) – roteirizado por Ian McKellen e Richard Loncraine, este filme foi lançado em 1995. A direção é de Richard Loncraine. O elenco é constituído por Ian McKellen, EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 195 Annete Bening, Jim Broadbent, Robert Downey Jr., Kristin Scott Thomas, Maggie Smith, Adrian Dunbar e Dominic West. O ambiente original da história é transposto para a Inglaterra dos anos 30, mas mantém o retrato do vilão Ricardo III, deformado fisicamente e sem caráter. Ambicioso e desejoso de se apossar da coroa, o vilão não hesita em matar adversários e familiares para chegar ao poder. Esta peça histórica foi apresentada entre 1592 e 1593. Muito barulho por nada (Much Ado about Nothing) – adaptado e dirigido por Kenneth Branagh, o filme foi lançado em 1993. No elenco, além do próprio diretor, Emma Thompson, Denzel Washington, Robert Sean Leonard, Kate Beckinsale, Keanu Reeves e Michael Keaton. A história cômica gira em torno de dois casais: Benedito e Beatriz, Cláudio e Hero. A chegada de Dom Pedro à casa de Leonato, pai de Hero, dá início a ação. Benedito e Beatriz são pessoas céticas e aparentemente se odeiam. Dom Pedro e os amigos decidem juntar os dois e, assim, dizem a Benedito que Beatriz o ama e, em outra ocasião, informam à Beatriz que Benedito a ama. Estimulados pela brincadeira, os dois acabam se entregando ao amor que sentem um pelo outro. Enquanto isso, o irmão bastardo de Dom Pedro, Dom João, interfere no relacionamento de Cláudio e Hero, fazendo o primeiro acreditar que Hero não é uma mulher honrada. Assim, Cláudio ofende Hero em público. Ela, então, finge a própria morte. Quando Cláudio descobre a verdade, que Hero era uma pessoa correta, aceita se redimir do mal feito, casando-se com uma prima de Hero, que, na verdade, é a própria disfarçada, com a intenção de lhe ensinar uma lição. Dom João é preso e a história acaba com os casais juntos e felizes. A primeira apresentação da peça data, provavelmente, de 1598 e 1599. Henrique V (Henry V) – outra adaptação de Kenneth Branagh, lançada em 1989. O elenco: Kenneth Branagh, Emma Thompson, Paul Scofield, Derek Jacobi, Ian Holm, Alec McCow- 196 | en, Judi Dench e Christian Bale. Esta obra histórica conta um período da vida do reinado de Henrique V, um dos mais famosos monarcas ingleses, o momento em que ele invade a França. São representadas duas batalhas, as de Harfleur e Azincourt, em 1415, sendo que na segunda, Henrique V profere um famoso discurso para incitar os homens à batalha. A peça foi representada em 1599. A megera domada (The taming of the shrew) – dirigido por Franco Zeffirelli e roteirizado por Paul Dehn, o filme foi lançado em 1967, contando em seu elenco com nomes famosos do cinema: Elizabeth Taylor, Richard Burton, Natash Pyne e Michael Hordern. A comédia narra os problemas de Bianca, que deseja se casar. Contudo, seu pai, Batista, estabeleceu que ela só se casaria após sua irmã, Catarina, ter feito o mesmo. Ocorre que Catarina tem um gênio forte, o que afasta qualquer pretendente. A situação muda quando chega à cidade Petrucchio. Também de gênio forte, ele decide casar e domar Catarina. Para realizar tal objetivo, ele utiliza vários truques, como tratar Catarina ora bem, ora mal. No final, o intento é conseguido e Bianca pode se juntar a seu amado, Lucêncio. A peça foi apresentada, inicialmente em 1596. Hamlet – filme lançado em 1990, com direção de Franco Zeffirelli e roteiro do diretor e de Christopher De Vore, estrelado por Mel Gibson, Glenn Close, Alan Bates, Paul Scofield, Ian Holm e Helena Bonham Carter. Trata-se das transposições, para a tela, da clássica história em que Hamlet, filho do rei da Dinamarca, que descobre, através do fantasma do pai, que este fora morto por seu tio, que se casou com Gertrude, a mãe de Hamlet. A partir daí, o príncipe tenta realizar sua vingança. Porém, seu objetivo é retardado por suas dúvidas pessoais sobre o acontecido e em como proceder para se vingar. A peça foi, originalmente, apresentada entre 1599 e 1601. Avaliação do evento EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 197 Ao final do evento, distribuímos um questionário aos presentes para que eles pudessem apontar os pontos positivos, os pontos negativos e fazer sugestões para outras edições do ciclo de estudos. Trinta e seis pessoas responderam. A seguir, apresentamos os pontos positivos e comentários a respeito deles. Tabela 1 – Pontos positivos do evento Pontos positivos Número de menções Apresentação dos alunos 23 Contribuição do evento para ampliação do conhecimento 18 Coordenação e planejamento do evento 17 Uso de handout durante as apresentações 14 Uso (e escolha) dos filmes 12 Planejamento de datas e horários 12 Participação do público nas discussões 11 Como pudemos perceber através da tabela, os objetivos do ciclo de estudo foram alcançados. 18 respondentes informaram que houve contribuição para que seus conhecimentos fossem ampliados: No decorrer dos eventos, a maioria das apresentações foram boas, pois nos ajudou a ter mais conhecimentos sobre Shakespeare, visto que no 3º. ano temos a disciplina de Literatura Inglesa. (Acadêmico 23) 198 | A maioria das apresentações foi ótima. Serviram muito para mim, visto que este ano têm a disciplina de Literatura Inglesa, o ciclo de estudos serviu como base e instrução, facilitou meu desempenho nesta disciplina. (Acadêmico 25) A proposta de convidar os acadêmicos para participar, ativamente, do evento, fazendo pesquisas e apresentando-as, também, foi bem recebida: Os pontos positivos sem dúvida são muitos: começando pelo esforço dos colegas que se apresentaram muito bem, mostrando que estudaram e dando a perceber que todos somos capazes quando queremos. (Acadêmico 18) As apresentações foram boas, pois mesmo com o nervosismo dos alunos, todos conseguiram transmitir o conteúdo de forma objetiva. (Acadêmico 30) Outro objetivo do evento, o de atrair interesse para a literatura pela projeção dos filmes, realizou-se, efetivamente, como comprovam as falas dos acadêmicos: O uso de filmes no ciclo de estudos dinamiza e atrai a todos, atentamente. (Acadêmico 3) Os filmes escolhidos foram bons para ampliar meus conhecimentos, pois fizemos um estudo mais aprofundado sobre Shakespeare com ótimas discussões. (Acadêmico 11) Os outros pontos positivos apresentados servem para destacar que a preocupação com a boa condução de um evento, com detalhes (como uso de handouts para conduzir as discussões) e a busca pela efetiva participação dos envolvidos fazem diferença na realização bem sucedida de um projeto de extensão como esse. Tabela 2 – Pontos negativos do evento EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 199 Pontos negativos Número de menções O filme Ricardo III 11 Algumas apresentações deixaram a desejar 6 Pouca participação do público nas discussões 5 Falta de apostilas em alguns encontros 5 Conversas paralelas durante os encontros 5 Filmes legendados 4 Falta de intervalo 4 Horário inadequado 4 Henrique V 2 Poucas vagas 2 Alguns filmes chatos 2 Discussões superficiais 2 Otelo 1 A Megera Domada 1 Os pontos negativos destacados pelos acadêmicos que responderam ao questionário apresentam, em primeiro lugar, uma questão de gosto, como a preferência por filmes dublados, a escolha de alguns filmes, e o repúdio ao filme Ricardo III. Contudo, segundo Lísias (2007), as peças históricas nunca foram as preferidas do público. Em segundo lugar, convém destacar problemas que, inevitavelmente, aparecem em um evento de tal porte: nem todas as apresentações acadêmicas, horários e discussões agradaram. Os participantes reconhecem a importância da participação do público (5 relataram como ponto negativo a pouca participação do público nas discussões e 5 destacaram as conversas parale- 200 | las que atrapalharam os encontros) e a boa preparação (5 apontaram que a falta de apostila foi um descuido dos apresentadores): Alguns alunos deixaram a desejar em suas apresentações e apenas leram seus resumos. (Acadêmico 9) Houve apresentações em que não ganhamos apostilas. Alguns alunos mostravam insegurança quando apresentavam, pode ser que estavam nervosos. Outros somente leram e não olhavam para nós. (Acadêmico 23) No meu modo de ver as aulas seriam mais interessantes (com filmes dublados), pois com legenda muitas vezes os atores conversam rápido e a gente não consegue acompanhar perdendo detalhes importantes. (Acadêmico 33) Um dos pontos negativos é o atraso e as conversas paralelas. Embora as conversas tenham sido cortadas pelos coordenadores do evento, muitas ainda insistiam em permanecê-las. (Acadêmico 31) O festival foi ótimo, mas por não ter um intervalo, se torna exaustivo. (Acadêmico 12) Tabela 3 – Sugestões apresentadas Sugestões Número de menções Mais vagas 14 Que todos os cursos participem 7 Retirar o filme Ricardo III da programação 5 Fazer intervalo 4 Fazer o ciclo de estudo com outros autores famosos 2 EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 201 Preparar melhor alunos apresentadores do evento 2 Usar datashow nas apresentações 2 Assistir os filmes em círculo 1 Apresentar filmes dublados 1 Lanche no final dos encontros 1 Prosseguir com o horário de sábado 1 Prosseguir com os mesmos coordenadores 1 Colocar um aluno para participar da coordenação do evento 1 Apostila com todo o conteúdo das apresentações 1 Quanto ao tópico das sugestões, evidencia-se que o filme Ricardo III, realmente, não agradou aos participantes: 5 participantes sugeriam retirá-lo da programação. As demais sugestões são importantes a serem analisadas para outras possíveis edições de um evento dessa natureza. Considerações finais Este projeto de extensão mostrou-se vitorioso em divulgar cultura e em contar com a participação dedicada dos alunos que mostrarem seu espírito acadêmico ao produzirem pesquisas valiosas para a realização do Ciclo de Estudos. Como pudemos ver na seção de avaliação do evento, a ideia de divulgar a obra de Shakespeare através dos filmes foi bem recebida. Os filmes atraíram a atenção dos alunos e as discussões envolverem os presentes em sua maioria. Os participantes, em especial aqueles que fizeram apresentações, tomaram para si um papel ativo no evento e na meta de ampliar os conhecimentos literários e da obra de Shakespeare. Consideramos o evento bem sucedido e sugerimos que ele seja realizado por professores e alunos desta ou de outras instituições. 202 | Referências ARAÚJO, Carla Cristina de. Shakespeare na cultura brasileira. Em Tese, v. 18, n. 2, maio/ago 2012. 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O LETRAMENTO ACADÊMICO E O CURSO DE EXTENSÃO LEITURA DE TEXTOS ACADÊMICOS Cesar Augusto de Oliveira Casella Achar a porta que esqueceram de fechar. O beco com saída. A porta sem chave. A vida. (LEMINSKI, 2013, p. 23) O letramento acadêmico O ingresso do aluno na universidade é, também, o seu ingresso em uma rede de discursos científicos, com suas formas próprias de produção e seus meios típicos de divulgação, ou seja, o ingresso na universidade é o ingresso no Letramento Acadêmico. No entanto, o conceito de Letramento Acadêmico não deve levar a entender, apressadamente, que haveria a necessidade de uma espécie de alfabetização do ensino superior para o alunado novo. Os alunos ingressantes são sujeitos letrados que trazem consigo concepções de leitura e de escrita que foram construídas ao longo de seus estudos, nos ensinos fundamental e médio. E estas concepções e conhecimentos têm de ser mobilizados quando do ingresso no universo acadêmico. O que ocorre, como alerta Oliveira (2009, p. 3), é que “nem sempre, essas concepções são suficientes para que eles se engajem de modo imediato nas práticas letradas do domínio acadêmico”. Nesse novo contexto, os alunos ingressantes são “obrigados a ler e produzir textos que não lhes foram ensinados ou apresentados de forma sistemática nas séries anteriores” (OLIVEIRA, 2009, p. 3). As práticas sociais de leitura e escrita mudam, não são mais as mesmas do costume do aluno, não são mais as que ele aprendeu na sua vida escolar pregressa. 205 206 | O que indicaria – na perspectiva do modelo ideológico de letramento – que a leitura e escrita devem ser entendidas como práticas sociais e não como meras habilidades técnicas e neutras. Assim, conforme escreve Eliane Feitoza Oliveira (2009, p. 4), “o letramento não se desvincula do contexto cultural e social no qual é construído, bem como do significado que as pessoas atribuem à escrita e das relações de poder que regem os seus usos”. A união de tantos fatores resulta em “letramentos múltiplos, que variam de comunidade para comunidade, por conta das condições socioeconômicas, culturais e políticas que as influenciam” (OLIVEIRA, 2009, p. 4). Assim, a prática de leitura de textos acadêmicos, de artigos científicos, resenhas, ensaios e outros, é específica e precisa ser ensinada aos alunos ingressantes. Porém, este é um ensino que não deve ser entendido como transmissão de normas e regras de redação e dicas de leitura, ou seja, este não é um ensino de habilidades técnicas. Compreende-se – também a partir do modelo ideológico de letramento – que a universidade é formada por diversas práticas sociais que envolvem sujeitos letrados, professores e alunos, e que nestas práticas e nesta interação se revelam as relações de uso e poder da escrita. Estas relações devem ser explicitadas para os alunos, visando levá-los a interagir – e a se engajar – conscientemente com o universo discursivo acadêmico. De modo que O letramento acadêmico pode ser visto como um processo de desenvolvimento de habilidades e conhecimentos sobre as formas de interagir com a escrita para os fins específicos desse domínio, sem, contudo, desconsiderar, nessas interações com a escrita, a história de letramento dos alunos. (OLIVEIRA, 2009, p. 5) EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 207 O quadro do letramento dos alunos egressos do ensino médio Antes de relatar a nossa experiência de letramento acadêmico com uma turma extensionista, em um curso intitulado Leitura de textos acadêmicos, ministrado no Campus de Goiás da Universidade Estadual de Goiás (UEG/Campus Goiás), gostaríamos de tentar traçar um quadro do letramento médio dos alunos ingressantes neste campus. Para isto, utilizaremos os dados sobre alfabetismo funcional, divulgados pelo Instituto Paulo Montenegro (IPM), uma entidade sem fins lucrativos, vinculada ao Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística (IBOPE), e os dados de desempenho no ensino médio, divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), a partir do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Os dados do IPM nos permitem olhar, com amplitude, para a sociedade brasileira e suas carências de letramento, enquanto os dados do INEP são mais focalizados, direcionados para o ensinoaprendizagem de língua portuguesa. O IPM utiliza o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), um índice que pretende revelar os níveis de alfabetismo funcional da população brasileira adulta e que tem por objetivo principal, como se lê em sua página na internet, “fornecer informações qualificadas sobre as habilidades e práticas de leitura, escrita e matemática dos brasileiros entre 15 e 64 anos de idade”, visando “fomentar o debate público, estimular iniciativas da sociedade civil, subsidiar a formulação de políticas públicas nas áreas de educação e cultura, além de colaborar para o monitoramento do desempenho das mesmas”. Ele foi criado em 2001 e é bienal. Abaixo, podese ver uma tabela (Tabela 1) que mostra a evolução do indicador nestes dez anos de pesquisas. 208 | Tabela 1 - Evolução do Indicador de Alfabetismo Funcional População de 15 a 64 anos (em %) 2001 2002 2002 2003 2003 2004 2004 2011 2007 2009 2005 2012 Analfabeto 12 13 12 11 9 7 6 Rudimentar 27 26 26 26 25 21 21 Básico 34 36 37 38 38 47 47 Pleno 26 25 25 26 28 25 26 39 38 37 34 27 27 61 62 63 66 73 73 Analfabetos funcionais 39 (Analfabeto e Rudimentar) Alfabetizados funcional61 mente (Básico e Pleno) Adaptado de INAF BRASIL 2001 a 2011 (www.ipm.org.br) Segundo a análise do próprio IPM, também publicada em sua página na internet, esses dados mostram que o Brasil avançou nos níveis iniciais de alfabetismo, já que o índice de analfabetos funcionais, que inclui os analfabetos e os alfabetizados rudimentarmente, caiu de 39% para 27%. Note-se que houve uma redução pela metade do percentual de analfabetos, ainda que o índice atual continue alto – e longe dos índices dos países chamados ‘desenvolvidos’ – e que – triste cálculo – em números absolutos, represente algo como 12 milhões de brasileiros. O avanço registrado ocorreu em função da universalização do acesso à escola e do aumento do número de anos de estudo. Entretanto, o país, segundo o sítio eletrônico do IPM: “não conseguiu progressos visíveis no alcance do pleno domínio de habilidades que são hoje condição imprescindível para a inserção plena na sociedade letrada”. Vê-se, na tabela 1, que apenas 26% dos brasileiros adultos são plenamente alfabetizados. A chave de leitura dos níveis, também publicada na página eletrônica do IPM, indica que os alfabetizados em nível pleno são EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 209 aqueles que não possuem nenhuma restrição em compreender e interpretar textos, eles – segundo esta chave de leitura dos níveis – “leem textos mais longos, analisam e relacionam suas partes, comparam e avaliam informações, distinguem fato de opinião, realizam inferências e sínteses”. Os alfabetizados em nível básico, por sua vez, são aqueles – também segundo a chave de leitura dos níveis – que “leem e compreendem textos de média extensão, localizam informações mesmo com pequenas inferências”. Assim, grosso modo, apenas um em cada quatro brasileiros adultos é capaz de, efetivamente, ler um texto longo, compreendendo-o e interpretando-o, utilizando-se dele para reflexão e informação. A tabela 2 relaciona os níveis de alfabetismo/analfabetismo com a escolarização. Tabela 2 - Níveis de alfabetismo da população de 15 a 64 anos por escolaridade (em %) Níveis Analfabeto Rudimentar Básico Pleno Alfabetizado Funcionalmente (Analfabeto e Rudimentar) Funcionalmente Alfabetizado (Básico e Pleno) Ensino Fundamental I Ensino Fundamental II Ensino Médio Ensino Superior 20012002 30 44 22 5 21 44 32 3 20012002 1 26 51 22 1 25 59 15 20012002 0 10 42 49 73 65 27 26 27 35 73 74 2011 2011 0 8 57 35 20012002 0 2 21 76 10 8 2 4 90 92 98 96 2011 Adaptado de INAF BRASIL 2001 a 2011 (www.ipm.org.br) 2011 0 4 34 62 210 | Assim, relativamente ao que nos interessa – os índices do ensino médio que representam os percentuais dos possíveis alunos ingressantes na universidade e na teia textual e discursiva da Academia – podemos ver que, em 2011, apenas 35% dos brasileiros com esta escolaridade, isto é, com o ensino médio completo, podem ser considerados plenamente alfabetizados e que 57% deles apresentam uma alfabetização básica. Lembremos, a partir da chave de leitura do IPM, que os alfabetizados de nível básico não conseguem ler textos mais longos, não conseguem analisar e relacionar suas partes, nem comparar e avaliar as informações trazidas na leitura. Eles não conseguem distinguir ‘fato’ de ‘opinião’ e não conseguem realizar inferências e sínteses. Pensemos em quantas destas ações são a base da leitura acadêmica: ler textos longos, analisar e relacionar partes de um texto, comparar e avaliar informações na leitura, inferir e sintetizar. Note-se que os números melhoram bastante quando se trata do nível superior: 62% dos brasileiros com esta escolaridade são plenamente alfabetizados. Infelizmente, somente uma pequena parte da população adulta brasileira possui o ensino superior. Também, há que se notar – ainda que não possamos desdobrar as consequências do fato, aqui neste trabalho – que as noções que embasam o conceito de letramento ideológico não coincidem com os níveis do INAF, ou seja, a teoria do letramento não opera integralmente, ou pacificamente, com as categorias de alfabetizado funcional, alfabetizado pleno, etc. De todo modo, queremos chamar a atenção para o fato de que a maioria dos alunos ingressantes na universidade não apresenta um letramento pleno, isto é, a maioria dos alunos egressos do ensino médio, estatisticamente falando, não domina plenamente as práticas de leitura e escrita esperadas para o seu nível, a maioria não domina – nem na leitura, nem na escrita – os gêneros textuais e as práticas discursivas esperadas para a sua escolarização. E isto tem de ser levado em conta quando do letramento aca- EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 211 dêmico, tem de ser problematizado e inserido como componente social e cultural no novo engajamento discursivo exigido na esfera universitária. Podemos completar estes dados com os números referentes ao desempenho dos alunos no Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Segundo o sítio eletrônico do INEP, o SAEB oferece aos pesquisadores dados e indicadores que ajudam na compreensão do estado atual do ensino-aprendizagem nesta etapa educacional. O SAEB é constituído por três avaliações de larga escala: 1. A Avaliação Nacional da Educação Básica (ANEB); 2. A Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC), também conhecida como Prova Brasil; 3. A Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA). Bianualmente são realizadas a ANEB e a ANRESC, anualmente se realiza a ANA. Centraremos o nosso foco nos dados da ANRESC/Prova Brasil, a qual, segundo a página eletrônica do INEP, é “uma avaliação censitária envolvendo os alunos da 4ª série/5ºano e 8ªsérie/9ºano do Ensino Fundamental das escolas públicas das redes municipais, estaduais e federal, com o objetivo de avaliar a qualidade do ensino ministrado nas escolas públicas”. O SAEB nos permite montar os resultados em um recorte, por região e por estado, no caso do Ensino Médio. Separamos os dados referentes às regiões Centro-Oeste, Sudeste e Norte, aos Estados de Goiás, São Paulo e Acre, visando contrastar as diferentes realidades brasileiras. Nosso recorte se volta para os índices referentes ao Ensino Médio, para as notas referentes à Língua Portuguesa e para o ano de 2011: 212 | Tabela 3 - Comparativo das notas SAEB: Ensino Médio – Língua Portuguesa – 2011 Dependência administrativa localização Estadual Rural Região Centro -Oeste 244,6 Estado Região Estado Região Estado Goiás Sudeste São Paulo Norte Acre 261,4 244,4 237,3 241,5 247,7 Estadual Urbana 265,2 262,8 269,7 272,6 250,8 253,4 Estadual Total 264,5 262,7 269,3 272,1 249,9 252,7 Federal 332,0 - 324,3 - 320,5 - Pública 264,8 262,7 269,7 272,1 250,1 252,7 Privada 307,7 304,0 317,4 317,2 301,4 287,2 Total 272,0 269,2 276,9 278,6 254,2 254,7 Fonte: INEP (http://sistemasprovabrasil2.inep.gov.br/resultados/) Para a leitura da tabela 3, é preciso que recorramos à Escala de Desempenho de Língua Portuguesa, disponível em: http://portal.inep.gov.br/web/saeb/escalas-da-avaliacao. O nível mais baixo, entre 150-175 pontos, indica que os alunos apenas “localizam informações explícitas em fragmentos de textos narrativos simples”. Entre 250 e 300, os alunos estão aptos a, por exemplo, inferir “o sentido de palavras de uso cotidiano em provérbios, notícias de jornal” e o “sentido em textos narrativos simples (relatos jornalísticos, histórias e poemas)”, também estão aptos a identificar a “informação implícita em textos narrativos simples” e a estabelecer “relações entre tese e argumentos em pequenos textos jornalísticos de baixa complexidade”. Todas as regiões e estados tabulados acima encontram-se neste nível. É um nível médio, com viés para baixo, se considerarmos que a escala é qualitativa e tem como nível máximo a pontuação de 375 para cima. Neste último nível, segundo a Escala de EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 213 Desempenho de Língua disponível na página eletrônica no INEP, além de todas as competências e habilidades dos níveis anteriores, os alunos mostram-se aptos, por exemplo, a reconhecer “diferentes formas de tratar a informação em texto sobre o mesmo tema em função das condições de sua produção e daquelas em que será recebido”, a estabelecer “relações entre tese e argumentos em textos mais longos e complexos” e a identificar “efeitos de ironia ou humor em textos variados como poemas e cartuns”. Cremos que é possível dizer, com base nos índices acima, que não existem grandes diferenças entre os estados e as regiões colocados em contraste. Assim, o problema no ensino-aprendizagem de língua portuguesa é partilhado por estados tão diferentes quanto São Paulo, Goiás e Acre. E, para atentarmos apenas para um único elemento, dado o espaço de que dispomos aqui, observe-se que o aluno brasileiro, oriundo do Ensino Médio, na média, não é capaz de ler textos longos. É o que mostram os dados do INAF, em que vemos 57% de alfabetizados básicos, os que só lidam bem com textos de média extensão, e os da Prova Brasil, que mostra uma média de 267,6 para o aluno brasileiro, portanto na mesma faixa dos índices da Tabela 3. São estes alunos, que ao ingressarem na Universidade, terão de ler livros de teoria em suas áreas específicas, muitos artigos científicos, resenhas críticas, etc. O que não significa que os alunos ingressantes na universidade não saibam ler. O curso de extensão Leitura de textos acadêmicos Cientes da necessidade de letrar, academicamente, os alunos ingressados na UEG/Campus Goiás, desenvolvemos um curso voltado para a leitura de artigos científicos. O curso, intitulado Leitura de textos acadêmicos, teve como objetivos específicos: 1. Mostrar que o artigo científico é um tipo de texto ligado ao discurso científico; 2. Mostrar a importância dos elementos para-tex- 214 | tuais para este tipo de texto; 3. Mostrar como se estabelece a coesão e a coerência em um texto científico; 4. Explicitar as relações entre o discurso que se veicula e o texto que se constrói. Estes objetivos específicos se abrigavam dentro de um objetivo geral: Auxiliar na melhora da leitura de textos acadêmicos, especificamente de artigos científicos, por parte dos alunos dos cursos do Campus Goiás. Assim, explicita-se que o público-alvo eram os alunos do Campus. Foram abertas vinte vagas exclusivas para eles, mais dez voltadas para a comunidade, pensando-se nos alunos egressos. Houve onze inscrições, todas de alunos do Campus, do curso de Letras. O curso teve 32 (trinta e duas) horas/aula, em 8 (oito) encontros de 4 (quatro) horas/aula. Os encontros foram às Sextas-feiras, das 8h30 às 12h30, entre 13 de setembro de 2013 e 22 de novembro de 2013. Neste período, tivemos uma aula expositiva inicial e fizemos a leitura de 3 (três) artigos científicos. A escolha dos artigos foi debatida com os alunos e tentou seguir o interesse acadêmico dos mesmos. Apresentamos, a seguir, a lista de textos trabalhados: Tabela 4 - Textos lidos no curso Leitura de textos acadêmicos BERTOLUCI, K. N. Letramento acadêmico: leitura(s) em um curso de pedagogia. Revista Ao Pé da Letra, Americana/SP, v. 11.2, p. 105-124, 2009. MAZIERO, E.; NIEDERAUER, S. H. Literatura infanto juvenil: dos contos de fadas às narrativas contemporâneas. Disc. Scientia, Série: Artes, Letras e Comunicação, Santa Maria/RS, v. 10, n. 1, p. 111-128, 2009. SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação, n. 25, p. 5-17. Janeiro-Abril, 2004. Relatamos que os encontros foram ricos em debates e discussões sobre os temas trazidos por cada um dos textos escolhidos. Buscou-se, mais do que ensinar técnicas de reconhecimento EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 215 da estrutura textual do artigo científico ou instrumentais congêneres, fazer ver, aos participantes, a espessura histórica e discursiva dos textos, a intertextualidade, a filiação ao gênero. Buscou-se, ainda, dar voz aos alunos, partindo-se sempre das interpretações e questionamentos destes quando da discussão dos artigos. Ao término do curso, apresentamos um questionário de avaliação a ser preenchido pelos participantes. Este questionário de avaliação se compôs de 12 assertivas que deveriam ser julgadas de 0 (zero) a 10 (dez), sendo que 0 (zero) representaria total discordância e 10 (dez) representaria total concordância com a assertiva em análise. Além disto, havia espaço para comentários específicos. Não se pediu a identificação do aluno, obviamente, para que este se sentisse à vontade em seu julgamento. Oito alunos responderam o questionário, o que representa 72,73% do total de participantes do curso. Trazemos, abaixo, a descrição das assertivas e seus resultados brutos: 1. A primeira assertiva era ‘O curso é relevante para a formação acadêmica’. Houve unanimidade em marcar a nota 10 (dez), isto é, houve total concordância com a assertiva. 2. A segunda assertiva era ‘A Unidade Goiás ofereceu todas as condições para a execução do curso’. Houve três marcações 10 (dez), duas marcações 9 (nove), uma marcação 8 (oito), uma 7 (sete) e uma 2 (dois). 3. A terceira assertiva era ‘A duração do curso foi adequada’. Houve três marcações 10 (dez), quatro marcações 9 (nove) e uma marcação 8 (oito). 4. A quarta assertiva era ‘A quantidade de alunos foi adequada’. Houve sete marcações 10 (dez) e uma marcação 9 (nove). 5. A quinta assertiva era ‘A quantidade de textos lidos e debatidos foi adequada’. Houve cinco marcações 10 (dez), duas marcações 9 (nove) e uma marcação 8 (oito). 216 | 6. A sexta assertiva era ‘Houve um aprofundamento nos temas tratados’. Houve cinco marcações 10 (dez) e três marcações 9 (nove). 7. A sétima assertiva era ‘O professor que ministrou o curso demonstrou um domínio suficiente dos assuntos abordados’. Houve oito marcações 10 (dez), isto é, total concordância. 8. A oitava assertiva era ‘Houve uma sequência no desenvolvimento dos temas, facilitando o entendimento por parte dos alunos’. Houve oito marcações 10 (dez). 9. A nona assertiva era ‘As técnicas de ensino utilizadas foram adequadas aos objetivos propostos’. Houve sete marcações 10 (dez) e uma marcação 9 (nove). 10.A décima assertiva era ‘Depois do curso, a leitura de artigos científicos ficou mais fácil’. Houve seis marcações 10 (dez) e duas marcações 9 (nove). 11.A undécima assertiva era ‘Depois do curso, o interesse por artigos científicos aumentou’. Houve três marcações 10 (dez) e cinco marcações 9 (nove). 12.A duodécima assertiva era ‘ O curso deveria ser oferecido de novo’. Houve sete marcações 10 (dez) e uma marcação 9 (nove). Houve, além disto, três manifestações por escrito, na parte de comentários específicos. Duas foram manifestações de elogio ao curso e uma foi uma sugestão de que se faça um curso de produção de textos. Para o que nos interessa, aqui, separamos três das assertivas, que dizem respeito ao engajamento do participante ao discurso científico. Partimos do pressuposto, exposto na primeira parte deste trabalho, de que o Letramento Acadêmico deve incluir a assunção e o conhecimento do discurso científico. Cremos, fortemente, que o problema de leitura e da escrita, no nível acadêmico, EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 217 deve-se, principalmente, ao desengajamento e à falta de compreensão daquilo a que se está vinculando. As três assertivas selecionadas tratam da percepção que o participante tem do auxílio que o curso pode prestar neste sentido. Pensamos que ao responderem que o curso foi relevante para a formação acadêmica, os participantes estão refletindo sobre a leitura de artigos científicos e a sua validade no âmbito da inserção na chamada ‘vida acadêmica’. Assim, demonstram que é pertinente estudar os aspectos históricos e discursivos que envolvem a leitura de artigos científicos. Ao responderem que, após o curso, a leitura de artigos científicos ficou mais fácil, cremos que os participantes estão refletindo sobre a possibilidade de apreender os modos de leitura exigidos pela universidade. O que se presume, com as respostas dadas, é que os alunos se conscientizaram de que podem se letrar academicamente. Cremos que a diminuição na concordância total, ainda que não seja drástica, reflete uma pequena insegurança no engajamento ao discurso científico. Pensamos que este é um ponto a ser melhor trabalhado para a execução de novas edições do curso. Considerações finais Há, obviamente, muitos pontos fracos que deixamos de fora deste breve relato. O número reduzido de participantes no curso é um deles, a título de exemplificação. Outro é a pequena quantidade de textos lidos. Por fim, sabemos que o universo pesquisado é pequeno, não permitindo um bom tratamento quantitativo, e sabemos, também, que a metodologia pode deixar a descoberto o pesquisador. No entanto, a opção por dar um tom positivo ao relato foi algo consciente. Tentamos registrar as nossas preocupações com o tema e o quão gratificante foi partilhar leituras e ver crescer o in- 218 | teresse e o engajamento crítico ao discurso científico. O curso de extensão, por sua estrutura e pelo modo como foi encarado pelos participantes, permitiu uma integração que não é a da sala de aula e nem a da relação pesquisador-pesquisados. Resta, ao final, agradecer aos alunos participantes do curso a oportunidade de ouvi-los – interpretando, criticando, desabafando... – e de refletir sobre o letramento acadêmico. Foto 1. Participantes do curso Leitura de textos acadêmicos. Referências INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Saeb. Disponível em: <portal.inep. gov.br/web/saeb/aneb-e-anresc>. Acesso em: 30/09/2013. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 219 INSTITUTO PAULO MONTENEGRO (IPM). Instituto Paulo Montenegro e Ação Educativa mostram evolução do alfabetismo funcional na última década. Disponível em: <www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.01.00.00&ver=por>. Acesso em 16/10/2013. INSTITUTO PAULO MONTENEGRO (IPM). O que é o Inaf. Disponível em: <www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.00.00.00&ver=por >. Acesso em 16/10/2013. LEMINSKI, P. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. OLIVEIRA, E. F. Letramento acadêmico: principais abordagens sobre a escrita dos alunos no ensino superior. Comunicação apresentada no II Encontro Memorial do Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Mariana/MG, Novembro de 2009. Disponível em: www.ichs.ufop.br/memorial/trab2/l113. pdf. Acesso em 15/10/2013. Autores César Augusto de Oliveira Casella Professor do Curso de Licenciatura em Letras, da Universidade Estadual de Goiás/Campus Goiás. Doutorando em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: [email protected] Dinalva Donizete Ribeiro Professora da Escola de Agronomia/Setor de Desenvolvimento Rural, da Universidade Federal de Goiás, Setor de Desenvolvimento Rural. Doutora em Geografia Agrária. E-mail: [email protected]. Diórgenes dos Santos Acadêmico do Curso de Administração de Empresas, da Universidade Estadual de Goiás/Campus de Aparecida de Goiânia. Estela Mara Cruz Professora do Ensino Básico no Colégio Marista/Unidade de Uberlândia/MG. E-mail: [email protected] Euzébio Fernandes de Carvalho Professor de Didáticas, Práticas e Estágios em História, da Universidade Estadual de Goiás/Campus de Goiás. Mestre em história. Pesquisador do grupo de pesquisa Didática da História e Educação Histórica Diretório CNPq dos Grupos de Pesquisa no Brasil. E-mail: [email protected] 221 222 | Flávia Valéria C. Braga Melo Professora de Sociologia da Universidade Estadual de Goiás/Campus de Aparecida de Goiânia. Mestre em Ciências da Religião. E-mail: [email protected] Flávio Pereira Diniz Técnico em Assuntos Educacionais, da Universidade Federal de Goiás. Mestre em Sociologia. E-mail: [email protected] Guido de Oliveira Carvalho Professor do Curso de Licenciatura em Letras, da Universidade Estadual de Goiás/ Campus Goiás. Mestre em Letras. E-mail: [email protected] Junielson Dias Barbosa Acadêmico do Curso de Administração de Empresas, da Universidade Estadual de Goiás/Campus de Aparecida de Goiânia. Marcelo Henrique Belonsi Professor do Curso de Licenciatura em Matemática, da Universidade Estadual de Goiás/Campus Morrinhos. Doutorando em E-mail: [email protected] Murilo Mendonça Oliveira de Souza Professor do Curso de Licenciatura Plena em Geografia e do Mestrado em Recursos Naturais do Cerrado (RENAC), da Universidade Estadual de Goiás. Doutor em Geografia. E-mail: [email protected] EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA METODOLOGIA E EXPERIÊNCIAS | 223 Robson de Sousa Moraes Professor do Curso de Licenciatura Plena em Geografia, da Universidade Estadual de Goiás/Campus de Goiás. Mestre em Geografia. E-mail: [email protected] Rogério Marques Nunes Graduado pelo Curso de Licenciatura Plena em Matemática, da Universidade Estadual de Goiás/Campus Goiás. E-mail: [email protected] Rosane Castilho Professora de Psicologia da Educação da Universidade Estadual de Goiás. Doutora em Educação. E-mail: [email protected] Sirlene Antonia Rodrigues Costa Professora de Linguística e Língua Portuguesa, na Universidade Estadual de Goiás/ UNUCSEH. Mestre em Letras. E-mail: [email protected] Thiago F. Sant’anna Professor do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal de Goiás/Regional Cidade de Goiás e do Programa de Pós-graduação em Artes e Cultura Visual. Doutor em História. E-mail: [email protected] Os textos conferem com os originais, sob responsabilidade dos autores. ESTA PUBLICAÇÃO FOI ELABORADA PELA EDITORA DA PUC GOIÁS E IMPRESSA NA DIVISÃO GRÁFICA E EDITORIAL DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS Rua Colônia, Qd. 240-C, Lt. 26 a 29, Chácara C2, Jardim Novo Mundo. CEP. 74.713-200, Goiânia, Goiás, Brasil. Secretaria e Fax (62) 3946-1814. Livraria (62) 3946-1080