A Criação Coletiva: Tá Na Rua

Transcrição

A Criação Coletiva: Tá Na Rua
A Criação Coletiva: Tá Na Rua
Entrevista com o grupo “Tá Na Rua”, março de 1983.
por Lauro Góes
Esta entrevista foi realizada por Lauro Góes no segundo semestre do ano de 1983 e faz parte da sua dissertação
de mestrado apresentada a Escola de Comunicação da UFRJ. Ela nunca foi divulgada e, agora, a trazemos à
tona por entender que, o texto aponta todas as questões fundamentais que interessaram ao grupo nestes quase
trinta anos de existência, como a dramaturgia para espaços abertos, a música, o espaço, os figurinos, o contato
com a cultura popular, a relação ator-platéia e a idéia embrionária de um instituto, que só veio a se concretizar
em 1999. Outro fator fundamental é o valor histórico, uma vez que este número tem como tema central a
MEMÒRIA. Esta é, talvez, a única entrevista coletiva concedida pelos oito atores-fundadores do grupo sem
a presença de seu professor, diretor e mentor intelectual, Amir Haddad
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Arthur Faria – Que falta de informações?
Lauro Góes – Primeiro, essa dúvida: não sei o que vocês pensam de não fazer apenas
um texto sobre o trabalho de vocês, mas de fazer também uma apresentação e convidar
a banca pra ir ver. Eu queria brigar um pouco por isso, daí eu queria uma opinião pra
levar pra Heloisa e tentar defender isso junto com ela. Porque ela teria de defender
essa idéia junto aos outros professores, entende?
Arthur Faria – Que você quer saber? Qual é a nossa opinião?
Lauro Góes – É. Qual a posição de vocês sobre isso?
Ricardo Pavão – Eu acho uma ótima. É. Acho que é. Pra gente é fantástico. Acho que a melhor
maneira de resolver a coisa é eles irem lá ver. Agora, não sei se eles acham isso.
Arthur Faria – É. Não sei se isso é suficiente lá para os critérios deles. Isso que a gente vai
ter de ver. Agora, acho se eles verem, vai enriquecer qualquer critério de avaliação que eles
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tenham. Mesmo que você tenha de escrever alguma coisa depois ou que isso tenha de ser
registrado de alguma forma mais concreta. O fato de eles verem vai ser muito enriquecedor
até dos critérios de...
Lucy Mafra – Agora, tem de ver se dá pra eles concordarem, né? Porque eu acho uma loucura
eles não verem! É alguma coisa de comunicação, trata-se disso. No mínimo, vão ter de ver.
Ricardo Pavão – Só não imagino é a gente fazendo uma coisa especial pra banca; um dia
especial pra banca ir.
Lauro Góes – Não, porque aí também já foge à idéia, porque você não teria uma platéia
espontaneamente reunida pra isso.
Ricardo Pavão – Pois é. Exatamente. Agora, eles irem lá ver uma rua, ótimo! Ia enriquecer
tudo. Enriqueceria muito todo o conceito de tese também, não é?
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Arthur Faria - Também acho. E depois, todos os questionamentos que a banca pudesse
fazer sobre o trabalho, nos enriqueceriam também. É esse retorno seria muito interessante.
Porque certamente teriam pessoas contra, pessoas a favor, pessoas que questionaram sobre
um aspecto... Tudo isso enriqueceria as nossas próprias informações sobre o que a gente
faz. Seria bom.
Lauro Góes – É. Aumentaria essa discussão.
Arthur Faria – É. Aprofundaria.
Sergio Luz – E devia ser assim. Eu não sei como é esse negócio de tese numa faculdade de
comunicação, mas eu acho que se você faz, por exemplo, uma tese sobre Macunaíma, eles
têm de ler Macunaíma, não é? Então, se a tese dele é sobre o Tá Na Rua, eles vão ter de “ler”
o Tá Na Rua.
Arthur Faria – É. Têm de ler. Se não podem ler a gente, têm de ver a gente – que é a maneira
de nos “ler”, não é?
Lauro Góes – É o modo de ir ao encontro da linguagem específica que o trabalho de
vocês desenvolveu.
Arthur Faria – Claro. Senão, eles vão conhecer o objeto da sua tese apenas pela sua tese.
Lauro Góes – E por um filtro lingüístico, e não pela linguagem de rua.
Arthur Faria – Foi boa essa sua comparação. Se fosse uma tese sobre um livro, obviamente
toda a banca teria lido o livro. Então, à medida que é sobre um grupo de teatro, porque não
“ler” o grupo de teatro, vendo o trabalho desse grupo? Podia juntar os papéis que a gente tem
aqui, as nossas redações, as nossas anotações... Podia tudo ser material para discussão.
Sergio Luz – Material diversificado, que teria um núcleo na apresentação. Acho
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interessantíssimo. Você pode, no mínimo, renovar o método de avaliação dessas coisas.
Lauro Góes – Tem outra coisa que eu queria saber também uma opinião. O Sergio
tava falando da possibilidade de a tese ficar fechada demais no Tá Na Rua.
Sergio Luz – Não, eu me sinto homenageado. As outras pessoas todas aí... É que você toca no
ponto da criação coletiva e essa é a criação coletiva do Tá Na Rua, entendeu? É especificidade
do Tá Na Rua, que é diferente do Asdrúbal, diferente de todos os outros.
Lauro Góes – É. De cada um.
Lucy Mafra – É. Mas eu não sei. O Lauro falou uma coisa que eu acho que tema ver, porque
eu acho que é por aí a escolha dele. Quando ele falou sobre a necessidade das pessoas irem
ver a apresentação do grupo, ele fez referência à linguagem. E eu acho que quando ele fala
que vai pegar o Tá Na Rua, é uma coisa assim: é pegar essa discussão de linguagem. Por isso
ele quer que as pessoas vejam, por isso ele pega a nossa maneira de trabalhar, de ser formar,
de se juntar... É disso que ele tá falando, né? A discussão é de linguagem. Daí tem tudo a ver
ser o grupo da gente.
Sergio Luz – É. Eu acho até que o Asdrúbal também adquiriu a linguagem deles, mas eles
não pensaram uma linguagem, eles não tiveram essa preocupação no processo de trabalho
deles. Talvez, sabendo disso, a escolha é certa.
Ricardo Pavão – Eu acho que esse negócio deles irem ver ajuda principalmente nesse aspecto
da discussão. Porque se fosse uma tese sobre teatro de uma maneira geral, não precisaria ir
ver nada.
Arthur Faria – É. Porque tem o contexto teatral, né?
Ricardo Pavão – É. Tem o contexto. Tem o palco, tem a platéia, abre a cortina, ascende à
luz... Tudo pronto, morou?
Lauro Góes – Mas será que estaria tudo pronto mesmo no teatro, no teatrão? Você
acha?
Ricardo Pavão – Eu acho. Tem mil questões que se colocam, mas tá lá, tá mais acabado, mais
aferível, do que o nosso.
Lucy Mafra – Você pode levar o texto para eles lerem e o resto eles imaginam.
Ricardo Pavão – O que não é nenhum mérito nem demérito não, porque se você for pegar
algum povão, gente de alguns lugares onde a gente fez o trabalho, onde ninguém nunca foi
num teatro – teatro aí como edifício teatral – a coisa que a gente faz está mais pronta em
relação a eles, que um teatro. No teatro, ele fala no meio da cena. Quando o ator lá for matar
não sei quem, ele vai gritar, vai se meter no meio da cena. Porque isso acontece. Você ouve
até, às vezes, as pessoas falarem: “Ah! Fui fazer uma peça em Saracuruna ou sei lá onde, e de
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repente a platéia começou a falar!” É claro! Agora, eu imagino que a banca examinadora que
vai tratar a sua tese, esteja mais acostumada à relação do teatro burguês, né? A relação do teatro
dentro do edifício teatral. Ou, de repente, os caras já viram muito bumba-meu-boi por aí.
Arthur Faria – É, mas mesmo tendo visto tudo isto, ele nunca viu nada, nenhum trabalho,
como o nosso, porque é novidade. Não é bumba-meu-boi.
Lucy Mafra – É. É outra coisa.
Ricardo Pavão – Certo. A novidade ainda é maior do que essa, porque não é bumba-meuboi, nem reisado, nem nada disso.
Lauro Góes – Eu gostaria de saber, também, sobre os caminhos de você. Por onde
vocês já andaram? Ficam mais na periferia ou mais por aqui?
Artur Faria – Olha o mapa!
Ricardo Pavão – Aquele mapa ali não está atualizado, mas mostra bastante por onde a
gente andou.
Lucy Mafra – Sempre mais do centro para a periferia. Zona sul a gente quase não fez. Zona
sul a gente tem Ipanema, Aterro, Lago do Machado e Laranjeiras.
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Ricardo Pavão – E são todos considerados uma zona sul meio norte, né? Como exceção
de Ipanema.
Lauro Góes – E vocês adaptam o tipo de espetáculo, de texto de coisa a ser feita, em
função do local pra onde vocês estão indo?
Ricardo Pavão – Tem que adaptar, né?
Artur Faria – Adaptar não é bem o termo, né?
Lauro Góes – Como é? Qual é o termo?
Artur Faria – Como a gente tem um conjunto de números, uma variedade de material a
ser utilizado, dependendo do lugar em que a gente faz, a gente lança mão de alguns desses
números, entendeu?
Sérgio Luz – E às vezes usa até os mesmo números em todos, porque a resposta é sempre
diferente. E aí, como a resposta sendo diferente, a gente devolve diferente também, da outra
amplitude e aí fica completamente diferente.
Lucy Mafra – É, dependendo da classe, as coisas que eles colocam nos números são
diferentes.
Ricardo Pavão – É bom você saber que a gente não tem um espetáculo fechado. Então, como
não tem nenhum espetáculo fechado, cada lugar é um lugar. A gente tem, evidentemente,
uma base: alguns números, alguns personagens e alguns fenômenos, mas que entram de
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acordo com local. E ás vezes tem, também, um tema. Um tema, digamos assim, social; um
assunto social, da atualidade, forte, que está no ar da cidade, entendeu?
Artur Faria – Por exemplo, da última vez, quando você viu, foi o dinheiro. Emprego,
desemprego.
Marilena Bibas – O problema da maxi-desvalorização, que agente estava discutindo desde
da outra rua.
Ana Carneiro – Às vezes, também, é um assunto mais ligado à comunidade aonde a gente
vai. Por exemplo, a única vez que a gente foi a Ipanema, à zona sul realmente, foi através da
associação de bairro. Eles iam fazer um dia da comunidade para ver se conseguiam congregar
mais as pessoas para o movimento da associação. Então a moça veio aqui, falou quais eram
os problemas que estavam tendo, tipo juntar pessoal da favela com o pessoal dos edifícios
na mesma associação, os assaltos, o policiamento do bairro, essa coisa toda. Aí, a gente foi
e levantou esse material em nós e ele fatalmente percorreu a apresentação toda, entendeu?
Então apareceram assaltos no meio da apresentação – um assalto que a gente criou – teve
desfile de modas... Já outra vez, a gente vai não sei onde aí pelo subúrbio e saem os assuntos
mais ligados a essa comunidade, ao nível econômico das pessoas, à situação social. A gente
tá sempre muito ligado aos lugares que a gente vai. Cada vez mais.
Artur Faria – E ao que acontece nesses lugares. Porque atua nos nossos números. Por
exemplo, aquela piada do namorado e da namorada. Tem a piada em si, né, como material
que a gente leva. Agora, a maneira como ela é desenvolvida, depende muito do local. Nessa
da feira de São Cristóvão, pintou um cara para fazer um namorado. Já pintou outras vezes,
mas no caso, não pintou qualquer cara. Era aquele cara, com aquele jeito dele, com uma
participação intensa, sem timidez, uma pessoa que fazia circo e, de repente, entrou na roda e
começou a trabalhar. Então aconteceu de uma maneira diferente. A gente pode ir mais longe
na brincadeira, na relação com a menina; o pai também pinto de outra maneira, entendeu?
Entendeu como é muito determinado pelos acontecimentos? A gente já fez em outros
lugares, completamente diferente.
Lucy Mafra – No Borel a gente fez com todos os três personagens levados por pessoas do
grupo. Mas as pessoas de fora deram tantos dados, que teve o casamento deles. Do casamento,
se viu como é que ficou, depois, a relação do namorado com a namorada – como é que ficou
a vida dela – toda a relação deles. Tudo porque, de repente, uma mulher do público falou
assim: - “Não casa, não. Não casa porque é pior”. Aí, a gente foi discutir porque é pior, pondo
toda informação que a gente tem. Porque a garota casou e pedia ajuda à mãe (a mulher que
tinha falado) e ela dizia: - “Eu não. Eu te disse pra não casar, casou porque quis. Agora agüenta”.
Aí, o marido punha ela pra lavar roupa pra cuidar da casa, chamava os amigos pra comer em
casa e ela ficava na cozinha... Então, deu pra discutir esse aspecto da realidade do casamento.
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A gente pode discutir a relação machista, a questão da dominação do homem sobre a mulher.
Ver como é que aquela menina foi forçada a casar e como, de repente, isso virou faca de dois
gumes. Porque o marido a maltratava e o pai dava força, dizendo que ela tinha que obedecer
porque o cara era o marido, porque ele era o homem da casa e tal. Então, a base é uma, mais
a maneira como ela se desenvolve, depende muito do momento em que se dá.
Sergio Luz – É. E também tem uma outra coisa. Adaptação se faz quando se tem um texto,
né? E nós não temos um texto. Eu acho, por exemplo, que tem uns números da gente que
são pra se saber como é que pensam as pessoas daquele lugar. O namorado e a namorada é
um deles. A gente leva pra qualquer lugar e eles revelam imediatamente o que pensam sobre
a relação sexual entre jovens e por ai vai. O material sempre dados por eles.
Artur Faria – É uma maneira que a gente tem de discutir as opiniões sobre determinado
assunto.
Sergio Luz – A gente não chega e diz: “Olha, a nossa opinião é essa”. Não. A gente vai
construindo em cima, vai produzindo isso junto.
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Lucy Mafra – Porque a gente pergunta; O que é que o Senhor faria se fosse o pai dela?” Mas
acontece que, na piada, o pai dela não faz nada. O cara é que dá uma boa resposta e sai bem.
É uma piada. Agora, a gente levanta a questão e eles discutem pra caralho. No final, a gente
vai e alivia - conta o final da piada, que é pra fechar. Mas sempre a tentativa do trabalho é de
levantar a discussão. Participar com num debate.
Lauro Góes – Agora uma coisa que eu fiquei muito encantado, gostei, foi que a todo
o momento vocês estão correndo o risco de explodir a própria situação. De repente,
pode acontecer qualquer coisa e aquilo desandar e vocês perderem o controle. Isso
já aconteceu em algum momento?
Artur Faria – Como assim? O que você chama de perder o controle?
Lucy Mafra – Perder o controle é o que agente mais gosta.
Lauro Góes – Eu falo de surgir alguma coisa absolutamente tão inesperada que paralise
todo o trabalho e vocês não saibam dar continuidade a ele.
Sergio Luz – Mas não nos paralisa. Acho que as coisas tomam outro movimento que não
o esperado. Só.
Lucy Mafra – A polícia uma vez nos parou. Mas foi integrada ao espetáculo.
Marilena Bibas – É. Foi integrada. Foi teatral até o fim. Mas mudou. Porque a partir da li tinha
entrado um dado novo que modificou o que vinha acontecendo.
Lauro Góes – Eu acho que vocês tão sempre no risco, sempre no limite da explosão:
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“Aqui vai parar. Não parou. Agora aqui vai parar, não vai dar pra continuar...” Aí, abraça
aquele elemento que chegou e que vai atrapalhar, e põe pra dentro.
Artur Faria – É. Exatamente.
Marilena Bibas – É integrada junto com o que a gente já tá levando, com a linha de raciocínio
que a gente já tá levando.
Ricardo Pavão – Tem um outro negócio que a rua ensinou pra gente – um critério eu, acho –
que é a calma. Calma. O caos é uma outra forma de organização, não é? Só isso. Então, quando
estoura, às vezes, a gente não tá calmo e fica maluco. Já aconteceu. Mas atualmente, quando
estoura – e estoura mesmo! Às vezes entra um bêbado assim aprontando, no meio de uma
estória. Fica a fim de entrar e entra - a gente dá um tempo pra ver o que é aquilo, né?
Artur Faria – E às vezes o bêbado se transforma em um ator. Às vezes ele já entrou porque
quer falar alguma coisa.
Lucy Mafra – É um trabalho, ás vezes, com o inconsciente do cara, ele trabalha limpidamente.
Na freqüência do grupo. E a gente fala: “Vem nessa”.E ele entra manso. Quando a gente vê,
tá fazendo maravilha, trabalhando solto o tempo todo.
Artur Faria – Agora, nunca a gente trabalha a um nível lógico, racional, entendeu? Então,
sempre tem um espaço pra entrar muita coisa.
Lucy Mafra – Se vem claro, forte, da pessoa, sempre tem; sempre dá pra entrar.
Ana Carneiro – Esse limite de poder estourar era muito mais sentido no começo do trabalho.
Atualmente a gente já tem uma elasticidade, uma calma, da um tempo.
Artur Faria – E não tem nenhuma estória que a gente não possa mexer, que não possa ser
diferente, que não possa ser entendida, mudada, ou ser o inverso do que ela sempre foi.
Ricardo Pavão – E também, agora, a gente teatraliza tudo. Porque a gente aprendeu que é
necessário. E aprendeu na rua. Nada disso a gente a inventou aqui pra fazer na rua. A gente
aprendeu lá. E uma das coisas que a gente aprendeu foi isso – se uma pessoa entra dentro
da roda, pra fazer qualquer coisa, é meter - lhe uma roupinha imediatamente. Uma roupa
teatral. Coloca o cara dentro do teatro. Põe ele pra trabalhar.
Lauro Góes – Sei. Transformar ele num ator.
Ricardo Pavão – E aí, ele distancia. Porque o povo sabe isso muito bem. O Amir fala e agente
sabe, que o povo é a vanguarda. A vanguarda da vanguarda é o povo, né? Então, se põe uma
roupinha de teatro neles, eles passam imediatamente a fazer teatro mesmo.
Lucy Mafra – E as vezes que a gente marcou e não botou roupa, eles pediram. Eles não
bobeiam. Pedem mesmo: “Põe um paninho em mim, põe um negocinho em mim”.
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Artur Faria – Que é pra quebrar o cotidiano.
Lucy Mafra – Pra quebrar. A gente já punha, mas como um dia a gente bobeou eles pediram, a
gente disse: “Pode criar, é isso mesmo. É um absurdo a gente não vestir o ator que entrou”.
Ricardo Pavão – Eles sacam. Eles sacam muito mais que a gente.
Sérgio Luz – E quando eles entram, já entram com vontade de brincar, sabendo que é
teatro.
Artur Faria – Entram porque têm alguma coisa pra dizer. Foi tocado por algum ponto
dele e ele quer botar isso pra fora. E se ele tem a possibilidade de entrar numa roda, ele vai
colocando tudo.
Ricardo Pavão – E coisas até de dizer o que a gente pode fazer pra crescer a brincadeira. Por
exemplo, aquele cara da bandida, lá de São Paulo, que pedia pro Amir botar dinheiro no
bolso dele. Tem um número que Marilena faz, que é o número da bandida: uma empregada
doméstica que é pega com a geladeira cheia de comida. Evidentemente ela roubou alguém
pra ter essa geladeira cheia. No caso, o patrão, ele tá dando queixa. A polícia vem e prende
ela. Começa a discussão. Roubou, não roubou...
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Marilena Bibas – O povo diz que não pode prender a mulher. Mas diz que roubou. O povo
sabe que ela roubou.
Sergio Luz – O povo não tem moralismo de dizer: “Não, ela não roubou”.
Ricardo Pavão – Ele é mais justo que isso. Sabe que ela roubou, mas é a favor. Ela tem que
roubar. Eles sabem que ela precisa.
Mas aí, lá em São Paulo, neste lesco-lesco, pintou o advogado de defesa da bandida. Um cara
entrou. Um criolão lá... “. Não, vou defender ela. Põe a julgamento”. Bem, foi a julgamento.
E ela tava no pau de arara, bicho, polícia sentando o pau nela. Quando surgiu o advogado
de defesa da bandida.
Artur Faria – E começou a argumentar muito bem, sobre as injustiças que ela tá sofrendo.
E isso aliviou o lado dela. Botou uma discussão lá.
Marilena Bibas – Começou a discutir quanto é que vale o trabalho dela, quanto é que não
vale.
Lucy Mafra – Aí, na hora que o patrão começou a ficar muito sem saída, por que os
argumentos do advogado de defesa eram muito bons e tinham a ver com a realidade da
vida de todo mundo ali, um cara entrou para ser o advogado do patrão. Um cara de terno,
que deveria ser advogado mesmo ou, pelo menos, era de nível universitário. Entrou lá. Ele
tava vendo desde o começo. Entrou. Entrou pra que a brincadeira continuasse e a discussão
fosse mais longe. Disse: “Eu sou o seu advogado de defesa”.E aí começou a defender o patrão
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com os argumentos tão bons quanto o do outro.
Ricardo Pavão – E com o saque teatral de chegar assim pro patrão e dizer: “põe um dinheiro
ai no meu bolso”. Entendeu? Ele defendia o patrão: “Porque ele é um homem muito bom!”
E o patrão enfiava o dinheiro no bolso dele assim, com todo mundo vendo. Aquele negócio
teatral mesmo. Tacava dinheiro no bolso dele. Quanto mais ele defendia o patrão, mais o
patrão dava dinheiro pra ele.
Artur Faria – Numa cena que ele criou. Ele entrou já pra fazer a cena do advogado corrupto
que defende com todos os argumentos, brilhantemente o patrão.
Ricardo Pavão – Falava que o patrão dava emprego!
Lucy Mafra – Falava bem dele, que ele era um homem bom. Perguntava: “O que seria dela
sem o patrão? Ela não teria emprego”.
Artur Faria – A gente vive dentro da realidade de um sistema e a gente nunca rompe com
isso, a gente nunca faz com que o teatro se transforme na realidade. O teatro é sempre uma
discussão da realidade que é a realidade. E isso é mágico.
A magia não é transformar o teatro em realidade. A mágica é transformar o teatro no meio de
buscar instrumentos para transformar a realidade. Mas buscar instrumentos lá na realidade.
Senão fica milagre. Então, como você tá ali balizado pela ideologia do sistema, da realidade
que todo mundo vive, a discussão vai sempre muito longe. E não tá resolvida nunca, por que
não tá resolvida isso na realidade. A gente nunca deixa que o teatro resolva os problemas
da realidade. O patrão, até hoje, levou a melhor sempre, levou a melhor sobre o empregado,
então no teatro da gente o patrão tem a força dele, que a realidade endossa. Não é mágico.
Então, a figura do patrão não é nunca uma figura fraca, entende? Porque não existe essa figura
do patrão fraca, em nível da discussão coletiva. Não existe. É um sistema que o patrão tem
uma figura forte, mesmo que tenha um patrão que seja uma figura fraca. Mas nunca nada é
particularizado a ponto de virar um caso específico.
Lucy Mafra – Ele pode mostrar toda a fragilidade dele, agora, ele não perde a força. O poder
é o poder.
Artur Faria – Ele é um ser humano, vivo, chora. Ele tem lá suas contradições, agora tem lá a
realidade: é o patrão. E a empregada, também a gente nunca deixa aflorar a sua heroína. Não,
ela tem lá as suas contradições também.
Lucy Mafra – Roubou mesmo.
Artur Faria – Em São Paulo, ela acabou fazendo um acordo com ele.
Marilena Bibas – Tem um negócio que eu queria falar sobre esse trabalho da bandida.
Algum tempo antes, a gente fez uma apresentação no Parque Lage, pra uma platéia de
estudante. E eles, no final, tornaram a bandida numa heroína. Fizeram a revolução invadiram
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a delegacia onde ela estava, bateram em todo mundo – nos guardas, no patrão – Viraram
super-heróis.
Lauro Góes – E vocês param aí ou continuaram?
Artur Faria – Não, aí acabou. Acabou tudo.
Lucy Mafra – A gente não vai resolver isso pra eles. A gente fez o final que eles fizeram.
Lauro Góes – Vocês fizeram o final digo, o trajeto dessa personagem aí sozinha, depois
do que aconteceu com ela?
Artur Faria – Não, não deu. No caso aí, não deu, porque virou um carnaval. Virou Zona
infernal. Não deu. Agora, o que você fala, tem a ver. Mas só daria se tivesse tido um mínimo
de teatralidade na ação. Mas não, a ação foi totalmente mágica.
Marilena Bibas – E também a gente não sabia muito sobre a bandida. A gente tava igual a
eles entendeu? Aí, a gente não sabia que a bandida tinha roubado mesmo. A gente não tinha
aprofundado mais na História, esse personagem, pra saber qual era dessa mulher, entendeu?
Então a gente tava lá igualzinho a eles, querendo salvar ela de qualquer maneira. A gente não
tava trabalhando com a realidade dela mesmo, tá entendendo?
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Ricardo Pavão – É, porque quem disse que ela tinha roubado mesmo foi o povo na rua e,
por acaso em São Cristóvão, na primeira vez que a gente foi lá.
Marilena Bibas – É. Foi na rua que a gente resolveu isso.
Ricardo Pavão – Eles disseram: “Ela roubou mesmo”.Agente é que não queria que ela tivesse
roubado. Se lembra dessa época? A gente ficava defendendo. É pobre, mais é honesta.
Propiciava esse tipo de movimento heróico. Mas depois a gente entendeu que ela entendeu
que ela roubou mesmo.
Marilena Bibas – E que roubou mesmo, porque a barra pesa. Aí, ficou muito mais fácil, mais
lúdico, muito mais fácil, muito mais na brincadeira.
A gente começou a discutir melhor porque essa mulher roubou. Deu pra discutir a mais –
valia geral, mesmo.
Artur Faria – A diferença entre o salário e o trabalho. Porque a gente perguntava: “Ela trabalha
o suficiente para ter a geladeira cheia?” “Trabalha”.Todo mundo repetia. “Mas ela ganha o
suficiente para ter a geladeira cheia?” “Não, não ganha”.
Marilena Bibas – Aí as pessoas começaram a dizer: “Mas ela não pode ser presa!” “Mas a
empregada pode ter a geladeira cheia? Alguém aqui tem a geladeira cheia? Ninguém”.E todo
mundo trabalha?”” Trabalha. “Então tá com geladeira cheia. Ela roubou!”.
Artur Faria – Aí começamos a ver a diferença entre trabalho e salário. Através deles, porque
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eles reclamavam: “Ela trabalha”.E é verdade, ela trabalha.
Marilena Bibas – Ela fala: “Eu trabalho o dia inteiro. Meu marido faz biscate”.E o patrão morria
de rir: “E biscate enche a geladeira de alguém?”.
Lucy Mafra – Falavam que o marido dela tinha sido visto pegando o frescão! O monte de
porrada que ela levava!
Artur Faria – A gente brinca com essas coisas. E com isso, agente vai aprofundando o nosso
conhecimento sobre a realidade e a nossa consciência sobre o momento.
Lauro Góes – E o trabalho vai se modificando com a contribuição, das participações,
né? E aquele lado que você falou, do ilusionismo teatral? Vocês nunca perceberam que
o público sentisse falta disso ou pedisse alguma mágica, uma intervenção mágica?
Artur Faria – Não, a mágica nunca pediram. Uma solução mágica, não. Nunca.
O que eles gostam muito que a gente faz – e que é uma coisa totalmente diferente do
ilusionismo – è poetizar a situação. Isso eles adoram. Se não ta poetizado, eles não acham
legal. É verdade! Eles não gostam de nada que seja naturalista, que seja dramático.
Ricardo Pavão – É. Não transam assim de jeito nenhum.
Artur Faria – Eles têm muito humor. Eles brincam: gostam de brincar mesmo. Eles sabem
que aquilo que está ali não é realidade e que é uma mera maneira deles brincarem.
Ricardo Pavão – Tanto que no nordeste eles chamam aquilo que a gente faz de “brincadeira”.
O termo, que inclusive que a gente achou melhor o que agente faz na rua é esse – brincadeira.
Eu não gosto de chamar de teatro não. Porque pra mim, mistura. Pra mim, particularmente.
Quando falo com as pessoas no meio da rua, pergunto: “Gostou da brincadeira?” Atualmente,
quando eu trato com eles, só chamo de brincadeira. E é uma brincadeira. E isso tem a ver
com as línguas internacionais todas. Em francês é jouer, em inglês é play...
Lauro Góes – Isso aconteceu no domingo, em São Cristóvão. Chegou um cara pra
mim e disse: “Que é que é isso aí?” Eu disse. “Eu não sei. Que você acha que é?” Ele
ficou parado. Aí eu quis ajudar e disse “Isso é teatro na rua”; Aí ele ficou me olhando
sério. Aí eu disse assim “É teatro de rua”.Eles não gostou das duas coisas e disse: “Não,
isso não é nada disso não. Não é nada disso não”.Não concordou com nenhuma das
duas proposta que eu tinha dado. Não era uma coisa, nem outra. Não aprovou nem
uma sugestão e nem outra.
Ricardo Pavão – Porque não é mesmo, não é mesmo.
Sergio Luz – Se você disse que era brincadeira, tava óbvio que era brincadeira.
Artur Faria – É porque o teatro já perdeu tanto o contato com a sua origem, com o que motivou
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o teatro, que de repente não é mais reconhecido como teatro, entendeu? O que é reconhecido
com teatro é o que é culturalmente estabelecido. Então, essa brincadeira, esse jogo essa troca
de idéias, de informação, tudo isso que se dá ali no meio da rua naquele momento, não é mais
identificado como teatro. Por que o teatro se faz dentro de uma sala fechada, que tem um
edifício, que têm as suas regras, a sua postura pra assistir, a sua reverencia ao assistir. Então,
uma coisa que é totalmente irreverente, que você pode meter o dedo, misturar, mexer, falar,
entrar, sair... Como é que isso pode ser teatro se o teatro que a gente conhece é esse teatro todo
formalizado? E o que a gente discute é que ele não foi sempre assim.
Lauro Góes – É verdade.
Sergio Luz – Mas a gente diz que é teatro porque é teatro.
Artur Faria – E quando a gente fala “teatro burguês”, é porque tem um teatro de uma burguesia
que organizou um teatro – colocou as paredes, as cadeiras, o palco...
Ricardo Pavão – Porque o teatro tem a ver, realmente, com o ator não com o edifício
teatral.
Artur Faria – Não é a arquitetura do teatro que conta. É o ator-teatro.
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Ricardo Pavão – E estão os livros todos ali pra provar, né? Tem um monte deles.
Artur Faria – Porque essa visão burguesa do teatro é uma coisa que os atores vão
internalizando. Afinal, nós somos dessa classe. A gente precisou muito tempo pra livrar dos
vícios do teatro burguês, como precisar de silêncio, ter de ser destacado... “Não, agora eu vou
falar, então o spot tem que estar encima de mim”.E, de preferência, que todo o resto esteja
escuro. Então, a gente teve de desmontar toda essa linguagem, teve de desmontando pra
deixar aflorar essa brincadeira da participação mais intensa, mais coletiva.
Lucy Mafra - É. Começou na gente mesmo, né? Aprendendo como é que um ator trabalha
com o outro, com é que os atores trabalhavam juntos, que o importante é “quem”, é “o que”,
quer dizer, o importante é “de que se trata” e não “quem sabe”. Não é teatro psicológico.
Todo esse trabalho, todo esse desmonte, a gente teve de sofrer enquanto pessoa, cada um,
e enquanto grupo. Uma coisa que agora esta muito distante da gente, mas que agente teve
de entender - o que é falar de um assunto, o que é pensar sobre um assunto. No domingo,
você viu uma grande parte do trabalho improvisada – toda aquela parte que aconteceu da
vedete, que a Maria fez; o lance do desemprego que o Artur colocou; o lance da bunda
que eu coloquei... Todos esses dados, todas essas coisas, foram improvisados. Pra poder
falar delas, a gente vinha pensando junto o tempo todo. A gente desenvolve um assunto e
quando ta lá com ele. A gente fez um trabalho no Largo do Machado, por exemplo, sobre a
maxi-desvalorização, que foi bem em cima desse acontecimento. Chegou agora, essa área
tava limpa, mas continua forte o assunto “dinheiro”.
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Lauro Góes - É, aí pintou o emprego, né?
Lucy Mafra – É, então a gente pegou e falou do emprego.
Marilena Bibas – E também porque tá maior desemprego, né?
Lucy Mafra – E ninguém disse assim: “Olha vai ser isso aqui: a gente vai falar de dinheiro,
vai ter um lance com dinheiro”.Não. Chegou lá e, quando surgiu à possibilidade, o assunto
começou a pintar.
Artur Faria – A gente conta muito, quando vai a um lugar, com a realidade das pessoas que
agente vai encontra naquele lugar. Por exemplo, se a gente vai num lugar popular como a feira
de São Cristóvão, a gente sabe qual é a realidade daquelas pessoas que estão ali na roda.
Marilena Bibas – Não dá pra falar no preço da gasolina, do aumento que ela teve. Eles não
têm carro! Não têm como pensar em grana pro carro!
Artur Faria - Não dá pra falar do preço da gasolina se os caras não têm onde botar gasolina.
Então, tem que se ver o que tá funcionando na cabeça das pessoas do público. Qual é a
realidade deles, pra saber qual o assunto que dá pra discutir com eles. Porque sempre tem
a ver com a realidade que ele tá vivendo. Um lugar popular como São Cristóvão é diferente
de quando agente vai a Laranjeiras discutir o problema das construções dos prédios, porque
essa é a preocupação que ocorre lá, entende?
Lauro Góes – Sei. E esse tipo de trabalho nunca leva as pessoas àquela coisa toda
que é meio forçação, meio forçada, no teatrão, “depois faremos um debate sobre o
espetáculo”, não é?
Marilena Bibas – Ah, não. O debate já foi feito.
Lauro Góes – Já foi feito, né? Já tá lá. O correu durante. E nunca tem ninguém que
queira discutir depois?
Lucy Mafra – Depois a gente toma uma cerveja junto e comemora, morre de rir de tudo
que aconteceu. Um bate – papo.
Lauro Góes – Não tem a crítica ou a reflexão crítica...
Artur Faria – Não, a crítica já foi feita na hora, durante.
Marilena Bibas – Tem é a cerveja depois. Aquilo tudo foi criando uma intimidade entre as
pessoas e a gente. Eles ficam carregados de coisas pra dizer, pra bater – papo, e sempre rola
esse papo depois. Sempre rola. Tomar uma cerveja, ou sentar num lugar e ficar batendo
papo... A gente nunca acaba e sai, vai embora.
Artur Faria – A maioria das pessoas que ficam no final, são as que participam, ficam mais
mobilizadas. Então eles discutem inclusive sobre a participação deles como ator. “Pô, eu tava
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bem?” “Pô, aquela hora... sabe, aquela hora que não dava pra fazer isso, não dava pra fazer
aquilo...” Eles discutem o espetáculo com a gente; avaliam. E eles tão preocupados com a
eficácia, com o rendimento da brincadeira, não é com a imagem deles, não. “Pó, foi legal aquela
hora que aconteceu tal coisa, foi bom”.Olha pra um, de repente, e começa a falar: “você, eu
me lembro. Você veio e me deu aquele empurrão...” Coisa assim do jogo. Que nem quando
acaba o jogo de futebol e a gente e avalia: “Aquele passe...” Igualzinho, como se fosse um jogo
que você estivesse avaliando como é que ele se desenvolveu. Esse é o negócio ótimo, por
que é um treino muito bom. Esse vídeo – tape é muito enriquecedor da pratica. A gente faz
isso lá com eles e depois faz o nosso aqui, aí já buscando aprofundar mesmo. Vai fazendo a
revisão da apresentação toda, parte por parte.
Lauro Góes – Como é a preparação de cada apresentação? Vocês disseram que tem
uma direção em função do local, dos temas que estão correndo na cidade. E aí?
Artur Faria – A gente vai antes ver o local. É importante isso. A gente vai lá, bate papo com
as pessoas. Sempre.
Lauro Góes – Ah! Vocês estão sempre no local, na hora em que a coisa vai acontecer,
é isso?
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Lucy Mafra – É, um dia ou outro antes, mais ou menos no mesmo horário.
Lauro Góes – Por exemplo, a feira de São Cristóvão – vocês teriam ido no domingo
anterior pra dar uma sacada?
Ricardo Pavão – É, seria isso. No caso a gente não foi, porque a gente já conhecia a feira. A
gente já fez duas vezes e estava fazendo a terceira. Mas digamos que a gente vai fazer num
local em que nunca se foi. Tem que ir lá, dar uma olhada, sacar, ver, bater papo com as pessoas,
tomar uma cerveja, ver quem é que freqüenta o local...
Marilena Bibas – Eles falam de coisas que acontecem lá, de como é o bairro...
Ricardo Pavão – A gente se impregna um pouco do bairro, fica sentindo com é que é. Volta
e conversa um pouco sobre isso. Pra não cometer gafes, que agente não é burro. Chegar lá
e falar de gasolina onde neguinho está preocupado com emprego, com o preço do feijão
e vice–versa.
Lucy Mafra – É, porque quando a gente está lidando com platéia de estudante, por exemplo,
e conta a piada do namorado e da namorada, as soluções que pintam são outras soluções.
Ricardo Pavão – Esse negócio de adaptação que se falou no início do papo, aliás, no caso
de São Cristóvão teve uma adaptação que a gente fez mesmo. Acho até que foi a primeira
vez que a gente fez isso. Adaptação ao pé da letra - que foi aquela piada do avião. A gente
fez especificamente. Porque aquela piada é feita com judeus e palestinos. E no final o judeu
nº 01 || 2008
grita “Viva Israel” e joga o Palestino. Lá o pernambucano gritou “Viva Pernambuco” e
jogou o paraibano, né? Foi uma adaptação mesmo, porque a gente sabia que lá só tem
nordestino mesmo. Como a gente tava nessa de brincar e sabe que existe essa coisa com
pernambucano,
Lá no nordeste, porque Pernambuco é um lugar mais rico, sempre tem mais verba, a Sudene
é lá... Então, a gente adaptou.
Lauro Góes – E a estrutura das coisas é sempre muito flexível pra que vocês possam
modificar de acordo com essas coisas, né?
Artur Faria – Sempre. Pra que agente possa desenvolver o que público quer discutir. Porque
a gente bota um tema lá e aí eles têm uma maneira de discutir esse tema. Sabe como? A
gente nunca tinha pensado em julgamento da bandida, por exemplo. Nunca. Nunca tinha
passado pela cabeça da gente: “Vamos fazer um julgamento em praça pública da questão da
relação da empregada com o patrão”. Eles é que propuseram pra gente. Então é que surgiu
uma proposta clara, também. É uma reunião de contribuições. Logo que pintou o primeiro
advogado, o outro teve espaço, na realidade, pra existir. É uma coisa que todo mundo sabe,
né? Tá na realidade aí. Lá em São Paulo teve, também duas bandidas: a do grupo e uma pessoa
do público, uma empregada doméstica que tava assistindo e entrou. Foi pro pau-de-arara
junto com a Marilena, entrou no cacete também.
Lucy Mafra – E ela falava: “roubei mesmo”. Lembra, Marilena? Falava: “Fico lavando as
calcinhas da sua mulher!”.
Ricardo Pavão – Ela era ótima. Apanhava mesmo. A gente batia nela legal mesmo. Quer
dizer, seguramos de jeito que não machuca ninguém, a gente tá brincando, mas ela apanhava,
gritava “socorro”, era ótima mesmo.
Lucy Mafra – E isso aconteceu por causa dessa coisa que o trabalho da gente tem, de trabalhar
com o inconsciente coletivo. Daí a gente começa a trabalhar e quase todas as coisas ficam
claras. Quando o cara entra, ele vai levando o raciocínio e vai tudo sendo levado assim, sem
atropelos. Quando por qualquer razão, agente tem uma recaída dessas de teatrão e faz uma
coisa linearmente, faz um raciocínio puramente psicológico eles dançam e dança todo
mundo. Porque faz funcionar tudo, é que tem um raciocínio sendo levado o tempo todo, que
as pessoas se identificam. Todas as pessoas estão sabendo do que se trata. Então, cada dado
se soma aquilo. São dados da realidade. Nós todos sabemos deles. Então, quando a gente vai
e da uma tirada do alto da cabeça, a gente perde a participação na hora.
Ricardo Pavão – E tem coisas mais sutis que a gente tem de destrançar no nosso ator. To me
lembrando aqui de uma vez, lá no Vidigal, em que disseram que “a mulher que grita, rodopia
e cai” fazia isso porque tava bêbada. Ai, a Lucy foi fazendo ela ficar bêbada. Esse negócio de
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transição que tem no teatro burguês. A pessoa tem de ficar bêbada; então, ela começa a beber,
vai bebendo, bebendo daqui a dez minutos a pessoa tá bêbada. Lá não. Na rua não tem esse
realismo não. “Tá sofrendo porque tá bêbada”. É um, dois, no outro minuto já tá bêbada; Não
precisa começar a beber pra ficar bêbada; não tem esse negócio.
Lucy Mafra – É outro tempo, né?
Marilena Bibas – É, porque tá tudo claro ali, você não tá, bebendo mesmo de verdade. Então,
pra que fazer uma gradação que também é uma mentira?
Ricardo Pavão – Pois é, não precisa disso. É um, dois pronto. É fantástico. Isso é uma das
coisas que eu gosto e que aprecio na rua. Você tá rindo e imediatamente você tá chorando
numa boa. Você ta amando, ta adorando uma pessoa aqui e daqui a pouco você tá aos tapas.
E faz o maior sentido. Contando parece coisa de louco.
Artur Faria – Porque não tem o psicólogo, pra ter passagem.
Lauro Góes – Fora do Rio existem outros grupos como o Tá na Rua?
Artur Faria – Existe um trabalho de rua. Agora mesmo, no Mambembão*, veio um grupo
de Aracajú (Imbuaça).
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Ricardo Pavão – Mas não é igual ao Tá Na Rua.
Lauro Góes – Nem um trabalho aproximado.
Ricardo Pavão – Não. É um trabalho de rua, mas eles trabalham só em cima do cordel.
Lucy Mafra – A gente não tem texto, não têm método. É bem diferente.
Lauro Góes – É o espetáculo deles têm texto, é fechado à participação do público, as
pessoas não entram pra jogar.
Artur Faria – Não, eles não têm espaço. As pessoas comentam e riem etc., mas não participam
diretamente.
Ricardo Pavão – Evidentemente que é mais aberto que um espetáculo num edifício teatral.
Tem esse espaço de você falar umas coisas, o ator responder, mas tem uma estória lá sendo
contada e o final dela não vai ser modificado por conta de alguém do público que entre ou
diga alguma coisa, né? Não vão receber uma coisa assim.
Artur Faria – Não é da natureza do trabalho deles.
Ricardo Pavão – Tão lá contando o lance deles. Agora, como esse que a gente faz. Eu não
conheço nem um outro não. É capaz até de ter, né?
Lauro Góes – Não, acho que não. Agora, nem vocês saíram do Rio, já?
*Projeto do SNT (atual Funarte) que trazia grupos de todo o país para o Rio.
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Marilena Bibas – Nós já! Muito.
Lauro Góes – Pra onde? São Paulo?
Lucy Mafra – São Paulo, Recife, Paraíba, Brasília, Estado do Rio – Angra dos Reis, Paraty,
Friburgo...
Artur Faria – Fizemos algumas viagens, principalmente em 81. A gente viajou muito. Viajamos
o ano inteiro, né?
Ana Carneiro – Eu estou ligada numa coisa que Lucy tava falando. Sobre a criação coletiva,
quando você começou a falar com ela no inicio do trabalho do grupo e, depois, como é
que foi mudando. Lembra que você começou a falar alguma coisa ligada a isso? O processo
mesmo do desenvolvimento do nosso trabalho.
Lucy Mafra – Eu tava falando do ator.
Ana Carneiro – É do ator.
Lucy Mafra – De qual foi a desmontada que a gente fez - de como o importante é o “que” em
vez de “quem”, de como levar um raciocínio claro em cima do assunto... É sobre isso Ana?
Ana Carneiro – É. Porque eu sinto que á medida que tendo essa desmontada, o trabalho
ficou tendo mais, realmente – e tende a ter cada vez mais – uma coisa de criação coletiva
mesmo, do grupo. Porque no início, tinha muito mais uma apresentação individual dos
atores alinhavada pelo Amir. Então, era um lance, inclusive, que a gente sabia pouco como
cada um participava enquanto o outro tava trabalhando. Atualmente, acontece cada vez
menos a apresentação individual de cada ator. Acontecem coisas em que o grupo participa
coletivamente – o grupo todo cria aquela brincadeira.
Artur Faria – É como se a dramaturgia estivesse se desenvolvendo – se você puder chamar isso
de dramaturgia. Como se a gente tivesse começado a escrever um monólogo, diálogos e agora
tivéssemos coletivo maiores, né? Vai se tornando mais complexo. Devido ao desenvolvimento
desse Know-how, dessa capacidade de racionar juntos, de trabalhar coletivamente.
Ana Carneiro – Um aprendizado mesmo.
Lucy Mafra – Aprendemos a ter cuidado em colocar qualquer dado, saber o que é um dado
coletivo, o que é um dado individual, no sentido de como atua uma interferência tua como
ator. Saber como é que você trabalha junto, como é que você interfere. Muitas vezes o que
fazia a gente não trabalhar enquanto o outro trabalhava, era ter medo de interferir. Por que
a gente não tinha o que somar. Quando entrava, dava diferença.
Sergio Luz – Agora, também é assim: quanto mais o ator se desenvolve individualmente,
mais ele sabe jogar no coletivo. É engraçado, mas é por aí.
Artur Faria – É. “O paradoxo do comediante”.
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Ricardo Pavão – Tem uma coisa sobre a qual eu queria falar também. A gente falou aqui,
até agora do espetáculo - dos números da bandida, da piada e tal. Do espetáculo e da
participação do público no espetáculo. Mas tem uma coisa que a gente, já percebia em nível
do inconsciente, mas começou a colocar á nível da discussão e da participação e um que é
um outro tipo de Know-how da roda, do espaço em que você trabalha. De certa maneira o
edifício teatral, né? A construção do nosso espaço mesmo. Como é que você faz uma roda, o
que é necessário pra uma roda se manter aberta, porque uma roda se fecha, porque de repente
se cria um bico numa roda... Tá entendendo? É esse tipo de coisa que a gente andou e anda
trabalhando bastante. E são coisas que não estão no espetáculo em si. São coisas do Knowhow mesmo, de técnica. Evidentemente, foi coisa tirada da prática, não foi uma técnica que
a gente inventou loucamente, e resolveu “vamos aplicar aqui nesse espaço”, mas são coisas
que a gente tá percebendo. Como é que você faz uma roda? Como é que você delimita um
espaço pra trabalhar? Faz um traçado de giz no chão e pede pro povo não passar? Como é que
é isso? Ou é sua energia que você projeta, lá? Você fala de pertinho pro cara ou você fala de
longe? Como é que uma hora é bom de um jeito e outra ora é bom do outro? Quem centra
essa roda – se ela tem um centro – como é que ocupa esse centro? E questões assim que se
colocam quando você vai pra rua, mas que se colocam mesmo, brabo. Se você não amar uma
roda direito logo que você começa, você tá fodido! Até conseguir engrenar o espetáculo, é
uma meleca. Lá em São Cristóvão a gente começou tendo problema na armação daquela
roda. Logo no início.
Marilena Bibas – É. Teve um problema e deu problema durante todo o espetáculo. Até o
fim.
Ricardo Pavão – Deu um bico! Ficou quase palco Italiano. Você tava lá desde do início. Se
lembra uma hora que pra baixo, do lado da rua, a roda não fechava? Pois é. Isto é um exemplo
de roda sem eixo.
Marilena Bibas – Ficou sem eixo. Ás as pessoas se formavam todas aqui de um lado, enquanto
o outro lado não tinha ninguém. O espetáculo ficava frontal o tempo todo. Pra conseguir
girar isso a gente teve de ir jogando energia pra lá, jogando o tempo todo, pra rodar. E teve
que mudar o centro da roda, também. Isso deu um desequilíbrio que ficou até o final. Até
que as pessoas começaram a fechar, entendeu? Porque de início ficou meio descentrada e,
aí eles ficaram sem referencia também.
Ricardo Pavão – E é uma coisa importante isso. Pra esse tipo de trabalho da gente e imagino
que pra todo mundo que trabalha na rua. Pro camelô, pra todo mundo. Lá em São Cristóvão
mesmo eu tive curiosidade de ir as outras rodas e ver como alguns resolviam isso. Uns
colocavam uma cordinha – o cara que tava tocando, colocou um barbante fazendo um
quadrado. Então, essa é uma coisa que você precisa resolver mesmo se você vai trabalhar na
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rua. Não dá pra fazer uma delimitação. Mas se você vai trabalhar, você precisa de um espaço.
Como é que você faz isso?
Marilena Bibas – Esse cara que você falou tava trabalhando com microfone, não tava?
Ricardo Pavão – Tava, com um microfone.
Marilena Bibas – Com microfone, eles ficam logo assim, desse jeito.
Ricardo Pavão – Nem sempre. Um outro que tava trabalhando com o microfone ali pertinho,
tocando violão e cantando, tinha gente colado nele. O microfone tava lá e o cara tava aqui,
grudadinho mesmo.
Se o cara tá cantando, eu to ligada nele. Se tem microfone, eu escuto beleza, escuto primeiro,
mas não é o microfone que faz eu ficar lá. De jeito nenhum.
Marilena Bibas – Ah, não, mas se você vai cantar num microfone no meio da rua, é mais difícil
você está transando direito com as pessoas pra organizar o espaço. Você tá ligado aqui, no
microfone. Você esta delimitando entendeu? Seu espaço, o que você atinge, não é atingido
só com a sua energia. Você tá com um microfone que dá dimensão, né?
Ricardo Pavão – Por isso que o cara põe a cordinha lá!
Marilena Bibas – Por isso que o cara põe a cordinha. Porque ele não consegue organizar
isso.
Ricardo Pavão – Claro. Porque se a roda fecha muito, rapaz, termina a gente não podendo
interpretar. Se a roda fecha, ou se ela esgarça. A tendência geral é fechar. Naturalmente ela
tente a fechar. Porque as pessoas vão chegando e vão empurrando... Agora, se abre muito
como já aconteceu algumas vezes, você não consegue fechar, de repente você tem um espaço
do tamanho de um campo de futebol, maior do que o espaço que você pode atuar. Uma
loucura!
Artur Faria – Afora que é um desgaste de energia enorme.
Explode a roda!
Lauro Góes – Que é o prédio do trabalho, né?
Artur Faria – É, a roda é o espaço do trabalho, a nossa arquitetura.
Marilena Bibas – Agora, em São Cristóvão também tinha a questão de que o Amir e o Ricardo
estavam numa situação que não acontece nunca. O Amir resolveu dessa vez, que ele ia pra
rua ficar sentado no meio da roda com Ricardo maquiando ele. Geralmente, chega todo
mundo e todos começam a por sua energia pra delimitar esse espaço. E têm também uma
coisa forte, que é o Ricardo quem bate o bumbo - que põe energia e leva o som – e o Amir
é a pessoa que faz o mestre de cerimônia, entendeu?
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Dessa vez, ficam os dois juntos lá no meio e então o resto do grupo tinha força, mas ao mesmo
tempo ficava faltando alguma coisa. Era como se tivesse desmontado esse universo, entendeu?
Demorou mais pra gente organizar. Começou a organizar a hora que eles se levantaram e ai
juntou todo mundo, se juntaram as forças mesmo. Aí gente começou a organizar. Mas aí, já
tinha dançado o início do trabalho.
Artur Faria – Foi uma desatenção da gente.
Marilena Bibas – Foi. Porque era uma coisa nova. Se fosse uma coisa que a gente já soubesse
trabalhar com ela, eles poderiam ficar lá no meio e a gente teria feito o resto, feito uma
compensação, sei lá. De alguma forma a gente saberia como lidar com isso. Mas, aí ficou
como se tivesse faltando alguma coisa o tempo todo. Um desequilíbrio. Essa é uma das
coisas que pode acontecer de dificuldade na roda.
Lauro Góes – Você não tem nenhuma relação de produção com a platéia não, né?
Vocês não passaram o chapéu...
Artur Faria – Depende. A maioria das vezes a gente passa. Agora, isso ainda é uma coisa
muito pouco resolvida.
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Lucy Mafra – E eu acho que tem a ver com esse lado de que a gente tá sempre sendo
financiado, né?
Artur Faria – É, na maioria das vezes a gente tá financiando. Porque quando a gente não tá
financiado, o chapéu passa muito bem. Passa na boa.
Lucy Mafra – Agora, se você tá ganhando vinte mil pra fazer na rua, pedir mil cruzeiros
seria desonesto.
Às vezes a relação da gente pedir dinheiro nas ruas da fundação Rio, é mais no sentido de
haver espaço pro cara trocar, devolver. Senão, fica muito mágico, entendeu ? Nessas vezes,
a gente não perde; recebe, entendeu? Pra não ficar gratuito. Agora, em Brasília, a gente tava
duro. Hospedado legal pelo Sesc, mas tava duro. Então, na rua o que a gente levantava era
pra comida do dia, pro lance que a gente fazia de noite, depois de fazer a apresentação no
teatro – as oficinas teatrais. Então, a gente pedia muito bem. E nós comemos muitas e muitas
noites com o dinheiro da nossa rua. Quer dizer: aí a gente sabia pedir. Cada um pegava um
chapéu e ia pedindo. Por que tinha a realidade. Agora, fora isso, a gente pede mais ou menos
simbolicamente, sabendo o que é “pra cerveja”. Aí, a gente recebe, não pede.
Lauro Góes – Quer dizer que você tem sido desses sempre financiados?
Lucy Mafra – Não!
Lauro Góes – Têm quanto tempo?
Artur Faria – Têm dois anos.
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Lauro Góes – É? E quanto tempo tem o grupo?
Artur Faria – Com essa formação têm três anos, mas no total tem oito anos.
Marilena Bibas – Tem algumas pessoas que já estão aí desde o começo. Outras entraram há
três anos, quando se formou o grupo Tá Na Rua. Antes, era o Grupo de Niterói.
Lucy Mafra – E tinha outro grupo Tá Na Rua, que foi formado por alunos do curso do Amir.
Ricardo Pavão – Isso aí é uma coisa muito ligada, talvez, ao desenvolvimento do trabalho
do Amir, né? Essa parte do pré-Tá Na Rua.
Lauro Góes – O Sérgio era do Grupo de Niterói?
Sergio Luz – Não, eu fui aluno do Amir. Eu vim exatamente de onde a Rosa Douat, a Marilena
e a Lucy vieram. Mas eu não fui o primeiro Tá... E nem de Niterói. Eu fui aluno do Amir.
Artur Faria – Isso é porque na época em que o grupo de Niterói se dissolveu, o Amir, através
das aulas, tinha um grupo já fazendo rua. Era, digamos o momento mais avançado do trabalho
de pesquisa que o Amir desenvolvia conosco.
Lucy Mafra – Era um grupo que já tava fazendo rua, vendendo as ruas. Só não era todo
mundo.
Artur Faria – Quando se dissolveu o Niterói, que vinha desenvolvendo essa pesquisa há uns
três ou quatros anos, a solução foi juntar os dois grupos. E, aí, surgiu o Tá Na Rua atual.
Lauro Góes – E como é absorção de novos elementos pelo grupo?
Artur Faria – Como assim? Em termos de que?
Lauro Góes – Com as pessoas novas. Por exemplo, esse rapaz – se ele quiser vir
trabalhar com vocês?
Sergio Luz - A gente manda ele vir nas oficinas, que acontecem sempre, todas as 2ª feiras. E
aí, pelo processo de trabalho, o entrosamento, ele fica em condições de fazer uma aula.
Artur Faria – Porque a gente não que o grupo seja um concentrador de energia. Quer que
seja um difusor.
Lauro Góes – Claro. Tem que ter até multiplicadores, né?
Artur Faria – Tem que ir espalhando, em vez de concentrar tudo aqui. Senão, todo mundo que
quiser fazer esse tipo de trabalho tem de entrar pro Tá Na Rua. Aí, o grupo incha e explode.
Então, ao invés disso, vai expandido.
Lauro Góes – E vocês já estão fazendo esse trabalho paralelo de criar outros
grupos?
Artur Faria – A gente faz o trabalho de treinamento. Não tem outros grupos ainda não.
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Lauro Góes – Como? Cada um tem o seu Tá Na Rua surgindo? Você tem o seu, ele
tem o dele?
Artur Faria – Não. Têm turmas, têm aulas. A Lucy, agora, começa a formar um grupo. Ela é
a primeira que tá tentando fazer isso aí. Um grupo para teatro de rua.
Lucy Mafra – A gente não para a rua ainda não. A gente tá trabalhando, tá calculando pelo
desenvolvimento do trabalho, vendo isso direito pra ver se dá pra rua ou não.
Artur Faria – Mas ela é a única que tem esse objetivo.
Marilena Bibas – Mesmo assim, as pessoas deste grupo dela, são todas alunas, fazem um
treinamento aqui com o Amir ou com o Artur. E fazem as oficinas com todos nós.
Lucy Mafra – É. Não são pessoas de fora, não. São pessoas daqui que to chamando. São
pessoas que tem pelo menos dois anos de trabalho que ficaram interessados em começar a
fazer alguma coisa. Eles vivam indo para a rua coma gente e ficando com vontade de fazer
rua também: são os alunos adiantados. Eles já têm tempo trabalho.
Artur Faria – E a Lucy tá aproveitando a mão de obra.
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Ricardo Pavão – Aí é bom explicar que a gente tem o Tá Na Rua, que é um grupo de teatro e
têm o Instituto, que é uma outra coisa, que envolve umas quarenta pessoas mais ou menos,
com aulas de teatro, oficinas teatrais, de corpo, de música.
Artur Faria - É. O Ricardo tá começando com a música, a Marilena com o corpo e a Lucy
com esse grupo.
Lucy Mafra – E ele e o Amir dão aula.
Artur Faria – O Amir dá aula há muito tempo e eu comecei já tem oito meses. O Instituto
começou a se formar ano passado. Começou a se configurar. A partir dessa necessidade
que você perguntou: como é que faz para responder ao interesse que as pessoas tem pelo
trabalho. Não é questão de entrar ou sair, mas de responder a esse interesse, satisfazer essa
vontade, essa curiosidade. É uma necessidade das pessoas e nossa também. Necessidade de
expandir, de divulgar o trabalho. Aí a se formar o Instituto.
A gente acabou um livro agora, também, que está sendo editado. Tudo em processo de
divulgação de disseminação do trabalho, na medida em que ele vai se consubstanciando, se
tornando mais forte, mais conseqüente.
Lauro Góes – Quer dizer que não teve nenhum momento em que tivesse havido uma
“fundação” do grupo, né? Ele não foi “fundado”, né?
Artur Faria – Não. Inclusive o nome é provisório. Aliás, o nome sempre foi provisório.
Lauro Góes – É. Permanentemente provisório. A gente nunca falou assim: “vamos
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fundar um grupo com tal nome. Esse é o melhor nome que porque a gente vai para a
rua e tal”. Não. Nunca teve isso.
Lucy Mafra – O nome que tinha mais tempo, antes, era o de “Niterói”, que tinha mais tempo
do trabalho e que era de onde vinha à base do trabalho. Que já tinha tido outros nomes antes,
também. O primeiro Tá... Era uma conseqüência do curso do Amir. Eu, a Rosa e a Marilena
fazíamos parte do antigo Tá... A gente vendia os espetáculos para pagar as aulas do Amir.
Marilena Bibas – Foi assim que nasceu o primeiro Tá Na Rua.
Lucy Mafra – A gente começou a vender pra pagar. Foi à primeira vez que a gente foi para
rua. A gente não tinha experiência. A gente subia morro, fazia espetáculo.
Aí, logo depois que o Niterói dançou, ia ter uma semana de teatro independente do
Cacilda Becker que o Amir chamou a gente para fazer um trabalho junto com o Niterói.
Aí encontramos no Asa, ensaiamos, foi legal. A gente chegou lá no Cacilda, fez o trabalho
depois então, disse: “bom, agora, vamos nos separar, né?”.
Artur Faria – É. Não tinha porque.
Lucy Mafra – Aí, continuamos trabalhando.
Marilena Bibas – É, porque tinha o Niterói e o Tá Na Rua e o Amir trabalhava nos dois. Ela
tava a fim de fazer teatro de rua, mas tinha o grupo dele aqui, que descobriu o trabalho com
ele e que, por isso, sabiam mais do trabalho do que nós. Então, como fazer? Ele não podia
continuar fazendo uma pesquisa e fazendo a prática lá. Então, juntou.
E lá também, o antigo Tá..., Era um grupo de treinamento de atores inicialmente, onde nem todo
mundo queria fazer teatro de rua. Então, só com as pessoas que sobraram lá, o Amir não tinha
como continuar o trabalhão de treinamento. Então, se juntou quem tava a fim de continuar com
o trabalho de rua e o pessoal de Niterói, pra ver se a gente levava adiante um trabalho. Foi o que
aconteceu. Todo mundo aqui do Niterói tava a fim de fazer rua, então juntou.
Artur Faria – A fim de fazer teatro.
Marilena Bibas – De fazer teatro, mas no momento o caminho era rua. Tinha dançado o
trabalho deles. O caminho que tava pintando era a rua mesmo. Então, foi todo mundo pra
rua e passou a ser só grupo Tá Na Rua.
Ricardo Pavão – E eu e o Sérgio entramos de pára –quedas. É que a gente é bem relacionado
com o homem, né?
Betina Weissman – Mas também a gente precisava do grupo, porque de repente tinha mulher
de montão. Então, a gente tava aceitando qualquer um que caísse de pára-quedas mesmo.
Era só cair aqui no alvo e ó...
Marilena Bibas – Teve um, que era o Gondim, que saiu depois. Ficou um ano.
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Ricardo Pavão – Eu já tinha trabalhado com o Amir no Somma, em 74.
Sergio Luz – Eu caí de pára-quedas porque fui aluno do Amir em todos os cursos que ele
deu.
Lauro Góes – E o Godim foi para aonde?
Lucy Mafra – Trabalhava com bioenergética. Não fez teatro não.
Artur Faria – Faz teatro a nível terapêutico.
Marilena Bibas – Que esse trabalho se presta muito pra isso, também.
Lucy Mafra – É. A gente tem uns três ou quatro loucos que a gente trata.
Marilena Bibas – Tem gente fazendo terapia com a gente há um bocado de tempo.
Betina Weissman – Porque a gente trabalha com pessoas que não necessariamente querem
ser atores, entendeu? No sentido de fazer carreira. São pessoas interessadas na expressão,
né? Então, fica sendo mais terapêutico. Daí tem muitas pessoas trabalhando com a gente há
anos e que nunca vão fazer teatro porque não é essa a delas. É mais uma coisa do exercitar,
de exercer uma expressão.
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Artur Faria – É, porque um dos males da nossa época é a dificuldade de expressão.
Lauro Góes – Você já trabalharam com textos, peças de teatro?
Marilena Bibas – Texto é uma questão. Abre um parênteses.
Artur Farias – O nosso trabalho de treinamento foi, durante muito tempo. Texto de todos
os autores que possa imaginar. Desde autores brasileiros contemporâneos até os clássicos. A
gente conhece cenas, pedaços de texto, desenvolvendo trabalho de treinamento. Aí, depois
– final do ano retrasado e ano passado – a gente começou a trabalhar com perspectiva de
montar um texto de autor brasileiro. Mas ainda era muito misturado com o processo de
treinamento dos atores também. Acabou não resultando como montagem.
Betina Weissman - O texto é uma questão de caminho. Acho, que o que é importante nessa
questão do texto é que o trabalho de desenvolvimento de linguagem foi feito através do texto.
O início de todo esse questionamento de linguagem foi através do texto, que é essencial
enquanto uma linguagem característica, definida. A gente não foi um grupo de pessoas que
se reuniu pra começar a trabalhar, a improvisar pra ver o que acontecia. A gente começou
a trabalhar em cima de texto, buscando não o entendimento de uma dramaturgia. Não era
um trabalho do texto, visando unicamente uma montagem. Era um estudo de dramaturgia.
De linguagem dramaturgica burguesa.
Artur Faria – Dos último duzentos, trezentos anos. Desenvolvida a partir da ascensão da
burguesia. Então, ela é uma dramaturgia com essas características. A gente começou a
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trabalhar isso. Foi a fase de Niterói.
Inclusive, a gente nunca com seguiria fazer o que você viu a gente fazer com as piadas – essa
dramaturgia aberta nunca poderia ter surgido – se não fosse através de uma crítica a uma
dramaturgia fechada. Porque a gente fala: “é uma piada que a gente dramatiza” - mas por
baixo disso, tem todo um estudo, um aprofundamento.
Betina Weissman – Tem uma abordagem de texto. Porque bem ou mal a gente vê essas coisas
como texto. É uma compreensão de o que é texto.
Marilena Bibas – O nosso texto é esse.
Ricardo Pavão – Agora, em relação a texto mesmo, a gente espera um dia montar uma
coisa. É dentro do caminho natural da gente. Pelo menos a gente acha isso hoje, no nível do
desenvolvimento teatral do grupo. A gente pretende mostra um negócio num edifício teatral
mesmo, com bilheteria, com tudo.
Artur Faria – Investigar essa linguagem aberta num espaço fechado. A gente sente que o
grupo pode amadurecer com isso.
Lauro Góes – Que você tá chamando de teatro burguês? Você localiza como texto
do século XVI para cá. Texto do teatro fechado, do renascimento para cá. Quando o
“Teatro” entra.
Artur Faria – Só passou a ser burguês quando começou a discutir as questões particulares,
os afetos, as relações dessa classe que ascendeu, entendeu? Aí, vai cair no realismo, no
naturalismo, no psicologismo, essas correntes aí. Até o Brecht rompendo.
Ricardo Pavão – E paralelo a isso de construir a dramaturgia foram eles também que
inventaram o edifício teatral. A burguesia inventou o edifício teatral.
Lauro Góes – O caixão.
Ricardo Pavão – É. Foi cercando a rua.
Lauro Góes – E texto mesmo, assim como você diz: “um dia nós vamos trabalhar com
texto mesmo”.O que é isso?
Artur Faria – Seria a dramaturgia de autor. De autores que tenham a ver com a gente.
A gente, especificamente, para dar nomes aos bois, pensa em colocar um texto de Vicente
Pereira. Tem essa idéia hoje. Mas a gente sempre trabalhou com texto que não são
considerados “bons texto”. Por exemplo, esse texto de Vicente que a gente trabalha com ele,
têm uma característica dramatúrgica que leva, segundo os critérios tradicionais, a avaliá-lo
como mau texto de teatro. Ele não tem densidade dramatúrgica.
Betina Weissman – É mais cinematográfica no desenvolvimento da narrativa. Ele tem
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cortes de cinema. Qualquer um pega e diz: “ah, isso não é teatro!” Acha que é bom pra fazer
pornochanchada e coisas assim. Durante muitos anos a gente trabalhou com texto integralista,
que era o oposto desse texto do Vicente, no sentido de que ele era perfeito de acordo com
as regras do bem escrever - preâmbulo, clímax, unidade de tempo, espaço e ação. Agora, o
conteúdo, era o pior possível; porque era um conteúdo de direita. Então, o teatro brasileiro
de esquerda lê e fala: “Essa não é uma boa peça, não é uma boa dramaturgia. Não é montável”.
Porque o conteúdo é ruim. O outro não é uma boa dramaturgia porque não tem estrutura.
Uma contradição do teatro. E a gente começou a analisar, a avaliar, o quanto uma coisa
determinava a outra. Com essa necessidade de escrever segue cânones.
Lauro Góes – É, porque a esquerda nunca vai montar um texto de direita.
Artur Faria – Não, mas aí é que a gente discute. Porque não é só a questão do conteúdo, não;
é questão da forma também.
Vocês vê os textos que a esquerda produziu e você não pode dizer que tenham um bom
texto. A não ser o do Vianinha. De resto, pouquíssimo.
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Lauro Góes – É, você sempre tem que mexer nos textos, que romper com eles,
aniquilar. Re-escrever.
Artur Faria – É. Você não aceita o texto. É como se estivéssemos sem dramaturgia no
momento.
Sergio Luz – Têm uma coisa que ele falou que eu acho engraçado, - a esquerda não montaria
uma peça de direita. Por que não?
Lauro Góes – Acho que ela temeria, não?
Artur Faria – É porque a linguagem dela não conseguiria revelar o conteúdo daquilo. O
medo é esse - ser confundido com aquele conteúdo.
Lauro Góes – Ela não conseguiria fazer uma critica daquilo, não conseguiria se
desentender com aquilo Ia acabar se identificando.
Betina Weissman – Foi mais ou menos que a gente tentou fazer. A gente foi procurar
discutir.
Ricardo Pavão – Porque a linguagem da esquerda é identificada com a linguagem da direita.
É igualzinha. O que vale é a mensagem.
Betina Weissman – É igualzinha. Senão, teria condições. O Brecht faz isso. O Shakespeare. Eles
falam tranqüilamente da direita. Não têm medo disso. O Brecht têm personagem capitalista.
Era o capitalismo que ele queria revelar.
Sergio Luz – Ele escreveu sobre Hittler!
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Artur Faria – E sem botar nariz postiço.
Betina Weissman – Isso, sem ter de transformar ele num monstro. Esse era um texto que a
gente pegava. Nessa época que a gente pegava texto horrorosos, de vez em quando a gente
pegava um texto desses – Brecht, uma coisa assim – pra desafogar, para exercitar. Pra se
realimenta com outra linguagem. Porque tinha hora que o nosso material de trabalho era
tão árido, que ficava, muito seco parecia que não íamos conseguir. Só ficava nos sugando
tirando energia.
Artur Faria – Porque a gente estava num momento de investigação.
Betina Weissman – E porque a gente ainda era muito misturado com isso.
Sergio Luz — É. A gente tem sempre a consciência desarmada, mas têm sempre uma
armadilha no pé. Tem mesmo. Você fala a linguagem igual à de seu opositor. É impossível
não se misturar.
Artur Faria – Principalmente porque de repente, em nível do afeto, você tem tantas coisas
em comum com ele! Um gosta da mãe tanto quanto o outro, respeita o pai...
Lauro Góes – É, o negócio mistura mesmo a cabeça.
Betina Weissman – E você fica vivendo essas contradições aí, profundamente. Então, se você
resolve discutir isso é uma energia enorme que você desprende para transar isso dentro e
fora de você o tempo todo.
Por isso, de vez em quando a gente precisava ser alimentado. Aí, usava muito o Brecht. E
começamos a ver coisas mais populares, também. A ver a diferença que era. Me lembro de
vez em quando a gente lia umas burletas, umas coisas de revista, umas coisas mais populares.
Teve uma época que a gente fez uma pesquisa de textos pro projeto memória, do SNT e a
gente leu uma porrada de texto pra fazer sinopse. E aí pintou uma coisa de linguagem mais
popular, tipo burleta, revista, ceninhas, crônicas que saiam em jornais antigamente, comédias.
A gente começou a brincar com esse material.
Eu sinto que a partir daí a gente começou a se interessar e a se aproximar um pouco mais dessa
linguagem mais popular. Depois, os cordéis. A gente pegou os cordéis ainda em Niterói. Eu
me lembro lá em Volta Redonda, um trabalho que o Amir fez com o pessoal de lá – filhos
de operários, pessoas assim. Ele fez um curso rápido e a gente foi no último dia de trabalhar
com eles. E foi um trabalho desenvolvido com esse material do cordel que a gente hoje em
dia voltou a usar com o Tá Na Rua. Então, lá em Niterói já começou a pintar essa relação com
o teatro mais popular. Só que não era esse o nosso material básico. Era uma coisa esporádica.
Mas já tinha o contato com isso. Uma perspectiva de querer chegar nesse tipo de expressão.
Só que através de outro tipo de material.
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Marilena Bibas – O primeiro Tá..., quando foi à rua, foi usando um texto de cordel. Já era
isso voltando.
Ricardo Pavão – Eu queria falar sobre uma coisa que eu ainda não falei, que é sobre o
bumbo. A gente usa um bumbo na rua; usa um instrumento de percussão. Eu acho que é o
instrumento praquele trabalho que a gente faz na rua. Porque eu me lembro quando eu fui
pela primeira vez na rua, quando ainda era o primeiro Tá Na Rua, que tinha música também,
mas era violão. Umas coisas assim.
Marilena Bibas – Violão, acordeom e umas percussões.
Betina Weissman – O acordeom era legal.
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Ricardo Pavão – É, mas não é uma coisa consagradora. Ele é uma coisa muito acompanhadora,
não congrega. Esse instrumento de agora, ele congrega, ele organiza muito a roda; atrai,
enquanto que o acordeom, um violão, ajudam a mostrar uma bela canção, a cantar uma
coisa. Ele te ajuda, te acompanha e te prende. Você jamais poderá cantar uma música com
a harmonia do momento, com o sentimento que surgiu no momento, porque ele tem a
harmonia presa, entende? Se na hora que você ensaia você canta a música em Mi Maior, você
vai cantar a música em Mi Maior eternamente. Ao passo que se você canta com o surdo, hoje
você canta em Lá, amanhã você canta em Sol, você canta de acordo com o sentimento que
você tem na hora. E isso organiza muito, ajuda a gente demais. É o instrumento certo pra
esse trabalho da gente. Tem outros agora, também. Ontem mesmo a gente fez um trabalho
e a Betina saiu tocando tarol.
Marilena Bibas – Tarol é um instrumento legal.
Ricardo Pavão – É legal, mas é um instrumento marcado.
Betina Weissman – E é mais difícil que o bumbo. Muito mais difícil. Porque ele também não
leva a melodia e o bumbo leva. Dá o chão. O tarol é uma coisa que ilustra o bumbo, mas ele
não leva. É o instrumento que colore.
Ricardo Pavão – Ele repica o bumbo.
Betina Weissman – Ele cria colorido, mas ele não leva. Ele cria clima, faz diálogos, tensões,
mas não organiza. Ele não é aquele chão, aquela base em que você vai em cima. Não é mesmo.
Acho que mesmo que eu soubesse tocar, não era isso.
Ricardo Pavão – Não, não é não. Eu to falando isso, porque a gente tá descobrindo uma
sonoridade para o nosso espetáculo. É uma questão de som. Não é uma questão de som
musical só, não. E como você fala calmamente com as pessoas, sem se violentar. Porque às
vezes a gente terminava rouco, o Amir terminava babando; aí tem que tomar água... E agora a
gente começou a usar menos o surdo, pra não excitar muito e não levar a uma superatuação.
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Procurando usar mais para juntar, pra pontear. É uma coisa de som que, esse ano, a gente tá
investigando. De acústica.
Betina Weissman – É. Porque rouquidão, esse troços, não é só, problema pessoal do ator não.
Pode ter, também, mas não é só. É uma coisa também do todo, da harmonia coletiva. Que
às vezes você pode ter uma voz ótima e de repente dançar tudo. É uma coisa mais de todo
mesmo, da harmonia daquele grupo.
Ricardo Pavão – E nós já usamos outros instrumentos na rua. A gente já tentou usar corneta,
usar várias coisinhas. Mas disso tudo, o que vai ficando mesmo é o surdo. Acho que foi uma
escolha muito boa, acertada. Eu to falando isso porque você vê, por exemplo. O espetáculo de
Aracajú – tinha uma bandinha que tocava, uma excelente bandinha, mas é diferente, porque
ela não é usada na estruturação do espaço.
Eu acho que o uso do surdo não é uma coisa de não ter outro instrumento, é uma opção
mesmo. Legal. E que tem haver ainda mais com a coisa carioca, de Rio de Janeiro.
Marilena Bibas – Dá o ritmo, né?
Ricardo Pavão – E a gente não usa ele, também, só fazendo samba. Você viu lá, né? A gente
não faz samba.
Betina Weissman – A gente não usa ele nos intervalos. Porque eu sinto que esse trabalho de
Aracajú que você falou, que é um trabalho muito popular, usava a bandinha nas ligações de
uma cena pra outra, nos intervalos. Eu sinto que a diferença que você fala é que pra gente
ele é uma coisa estrutural, pra organizar.
Ricardo Pavão – É, no caso da gente, ele organiza mesmo. Você viu um espetáculo, exatamente,
em que a gente não fez isso porque eu fiquei maquiando o Amir – o que era uma novidade,
porque geralmente a gente vai dançando e rodando e forma a roda, entendeu? Então, voltando
àquele papo que a gente tava conversando, de roda, esse surdo atua nessa estruturação do
espaço, na formação da roda, do espaço em que nós vamos atuar. É aí que ele atua. Tanto
que se você gravar um espetáculo da gente – Nós temos um espetáculo gravado em São
Paulo, quando o surdo era pior do esse que a gente tem agora – quando você vai escutar, é
um horror! É um tum, tum, tum, uma coisa que parece DKV – lembra como ele fazia um
esporro tremendo? Agora lá, na hora, ao vivo, ele é fantástico para organizar. Eu às vezes
me espanto.
Betina Weissman – Há pouco a gente tava falando de texto, sobre usar texto. Eu fiquei me
lembrando de uma coisa que pinta mesmo no nosso trabalho e que eu acho que pinta na
classe média, que é assim: desde Niterói e, depois, no Tá Na Rua também, desde de que a
gente começou a trabalhar em cima de linguagem e a conseguir alguma coisa e a mostrar
o trabalho ao nível que ele se achava, como nos ensaios abertos, e a gente mostrava pra
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classe média, sempre tinha alguém que achava que tava tudo marcado, que achava: “Vocês
combinaram tudo”; olhava e dizia: “Ah, isso foi tudo combinado; ele olhou para ela, ela olhou
para ele... tudo combinado, ensaiado”.E desde aquela época, apesar do trabalho não ser em
cima de material popular, a maneira de trabalhar já vinha sendo essa que foi dar nisso, na rua.
Mas começou lá. Aí, eu fico pensando, por exemplo, na rua, quando a gente trabalha com
público popular, ninguém nunca fala nisso. Então, eu acho que essa coisa do acontecimento
espontâneo, do improviso, é tão importante, é tão real, tão concreto pra eles, que ninguém
diz: “vocês combinaram”, sabe?
Artur Faria – É muito mais importante do que o fato de como é que se deu. Não importa.
Eles não se sentem usados, enganados.
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Betina Weissman – “Ah, artista ensaia tudo, chega e faz”. Eles não pensam mesmo; Eles aceitam
espontaneamente o que a gente está colocando espontaneamente. E eu acho que é uma
coisa de linguagem. A linguagem deles também é essa, então a maneira que eles recebem é
essa. Eu fiquei lembrando daquele ensaio aberto que a gente fez em Belo Horizonte, em que
tinha gente que insistia nisso; para a maioria da platéia, a discussão sobre trabalho foi “Vocês
ensaiaram esse ensaio antes de vir pra cá”.Isso virou um papo, as pessoas não acreditavam, não
queriam de jeito nenhum aceitar, que a gente não tinha ensaiado, que era um ensaio aberto.
E, hoje em dia, a classe média quando vê, também acha isso. Agora, isso nunca veio de um
popular. Então, eu acho que tem haver com essa coisa fechada da linguagem.
Ricardo Pavão – Ainda mais quando eles se metem mesmo lá, né?
Lauro Góes – Aí é que o pessoal da classe média acha que já tá tudo preparado
mesmo.
Betina Weissman – Porque a classe média não consegue fazer isso.
Marilena Bibas – Esse que é o problema: eles não podem achar que foi preparado, porque
eles tão fazendo junto com a gente.
Lauro Góes – Mas eles pensam que você já passou uma nota pro cara antes, pra ele
fazer.
Betina Weissman – Porque a classe média só consegue entrar se ela tiver um papel definido. É
muito raro, no nosso espetáculo, alguém de classe média entrar solto como entra um popular.
Eles entram quando já tem um papel muito claro. Claro que quem entra sempre entra pra
seguir a brincadeira, nunca tá solto geral. Mas classe média entra muito pouco pra brincar
solto. E quando eles entram com um papel, também, não largam o papel de jeito nenhum.
É um horror. Eles encarnam o papel. Acho que é por isso que tem a linguagem fechada no
texto, como é a dramaturgia que a gente chamou de burguesa. Acho que tem haver com isso,
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sabe? Fica difícil a concepção de uma coisa aberta, espontânea, acontecer profundamente.
Ricardo Pavão – Acho que isso tem haver com o profissional em geral. Sério. A gente pergunta
assim: “Quê que você é?”, o cara diz: “Sou engenheiro, médico, mãe, pai...” Tem sempre um
papel que o cara é. Ele só é aquilo. Ele é um profissional liberal. Já o povo, é biscateiro, entendeu?
Faz de tudo, se vira, dá nó em pingo d’água pra viver. Então, é diferente, né? “Ce é o que?” Quê
que ele é? E vai poder disser em sã consciência “eu sou contínuo”. Acontece dele estar sendo
servente ou contínuo, mas antes de mais nada, ele é outra coisa, né?
Betina Weissman – Acho que de alguma maneira, bem ou mal, é um pouco por isso que
a esquerda não monta um texto de direita, sabe? Não tem linguagem para isso, porque
também pensam assim. Quer dizer: a linguagem burguesa de uma maneira geral seja de que
tendência política ela for, parece que é assim. Eu tenho a impressão de que é assim. Não dá
conta de uma coisa mais aberta porque não tem uma perspectiva de tudo mais aberto. Vive
dessa maneira as coisas. Quando pinta umas coisa mais abertas, não acredita, não pode ser.
É todo trabalho que você tem de fazer pra se destituir disso. Nós, atores de classe média. Eu
vivi isso, acho que nós todos. Se destituir dessa coisa linear.
Marilena Bibas – Eu não.
Betina Weissman – Porque não é de classe média, é de outra origem. Então, é uma coisa como
se a gente não pudesse fazer todos os papéis. Cada papel fica sendo apropriado pelas pessoas
da nossa classe e não pela nossa expressão como ser humano. Então, tem todo um trabalho
de se destituir dessa prisão para poder fazer os papéis sem estar sempre se apropriando deles.
A gente enquanto classe. A Mari, por exemplo, não sofre desse mal.
Artur Faria – Sofre de outros.
Betina Weissman – De outros, claro, mas esse é um.
Artur Faria – Esse é o mal da nossa época, da nossa sociedade.
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