do livro completo

Transcrição

do livro completo
Olhares em
Análise de Discurso Crítica
Josenia Antunes Vieira • Regina Célia Pagliuchi da
Silveira • Célia Maria Magalhães • André Lúcio Bento
• Francisca Cordélia Oliveira da Silva • Georgina
Amazonas Mandarino • Harrison da Rocha • Janaína
de Aquino Ferraz • Joana da Silva Ormundo
• Walkyria Wetter Bernardes
© 2009, by Josenia Antunes Vieira
Regina Célia Pagliuchi da Silveira
Célia Maria Magalhães
André Lúcio Bento
Francisca Cordélia Oliveira da Silva
Georgina Amazonas Mandarino
Harrison da Rocha
Janaína de Aquino Ferraz
Joana da Silva Ormundo
Walkyria Wetter Bernardes
Reservam-se os direitos desta edição aos autores
Revisão: Harrison da Rocha, André Lúcio Bento,
Josenia Antunes Vieira e Cláudia Gomes Paiva
Supervisão de Editoração e de Revisão: Harrison da Rocha
E-mail: [email protected]
Projeto gráfico e capa: Iracema F. da Silva
Imagem da capa: Márcia Filippi
Ficha Catalográfica
Olhares em análise de discurso crítica. Editora: Josenia Antunes Vieira. Vieira, Josenia Antunes; Pagliuchi, Regina Célia
da Silveira; Magalhães, Célia Maria; Bento, André Lúcio; Silva,
Francisca Cordélia Oliveira da; Mandarino, Georgina Amazonas; Rocha, Harrison da; Ferraz, Janaína de Aquino; Ormundo,
Joana da Silva; Bernardes, Walkyria Wetter – Brasília: www.
cepadic.com, 2009.
236 p.
ISBN 978-85-909318-0-5
Inclui bibliografia.
1. Análise de discurso crítica. 2. Multimodalidade.
Olhares em
Análise de Discurso Crítica
Josenia Antunes Vieira • Regina Célia Pagliuchi da
Silveira • Célia Maria Magalhães • André Lúcio Bento
• Francisca Cordélia Oliveira da Silva • Georgina
Amazonas Mandarino • Harrison da Rocha • Janaína
de Aquino Ferraz • Joana da Silva Ormundo
• Walkyria Wetter Bernardes
Brasília, 2009
Sumário
apresentação...............................................................................7
Parte I – caminhos TeóricoS
percursos das abordagens discursivas associadas à
Lingüística Sistêmica Funcional
Célia Maria Magalhães (UFMG)......................................................17
Parte II – discurso e IDENTIDADE
O USO DE METÁFORAS E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ÉTNICAS
Francisca Cordélia Oliveira da Silva (UnB).......................................39
A SUPERMODERNIDADE: Cultura do Poder e do Consumismo
Georgina Amazonas Mandarino (CEPADIC).....................................59
PÓS-MODERNIDADE, MÍDIA E PERFIL IDENTITÁRIO FEMININO
Walkyria Wetter Bernardes (UnB)....................................................75
Parte III – discurso e Educação
Gramática tradicional e língua escrita: duas faces de um
mesmo poder
Harrison da Rocha (UnB) . ............................................................. 91
O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
Josenia Antunes Vieira (UnB)....................................................... 117
Parte IV – discurso e língua Portuguesa
A multimodalidade e a formação dos sentidos em português
como segunda língua
Janaína de Aquino Ferraz (UnB)................................................... 153
FORMAS DE SOLICITAÇÃO, AFIRMAÇÕES E RESPOSTAS DIALÓGICAS DO
PORTUGUÊS BRASILEIRO
Regina Célia Pagliuchi da Silveira (PUC/SP)................................... 177
Parte V – discurso e Multimodalidade
“E agora, Lula?”: a imagem intertextual em matéria do
Correio Braziliense
André Lúcio Bento (UnB)............................................................. 191
Parte VI – discurso e contextos on-line
A Dinâmica do Uso Social dos Diários On-line
Joana da Silva Ormundo (UNIP/CEPADIC)..................................... 203
apresentação
Esta obra é composta por uma série de artigos situados na Análise de Discurso
Crítica (ADC), que interpreta o discurso – o uso da linguagem na fala, na escrita
e na imagem – como uma forma de “prática social”.
O fato de analisar o discurso como prática social sugere uma dialética entre o
social e o particular. Nesse sentido, o social pode ser definido tanto como discursos
públicos institucionais quanto como eventos discursivos particulares. A dialética
entre o social e o particular é entendida à medida que o social guia o particular e
este modifica aquele.
De forma geral, a ADC está associada à Escola de Filosofia de Frankfurt e surge
devido à crescente importância, atribuída, contemporaneamente, à linguagem na
vida social e tem por ponto de partida que, geralmente, os indivíduos não têm
consciência de como o discurso intervém para controlar e moldar as cognições
sociais. Sendo assim, analisar o discurso de forma crítica é revelar o que não é
consciente para as pessoas em suas práticas sociais e denunciar quais estratégias
são utilizadas para o controle de suas mentes. Por essa razão, a ADC está envolvida com problemas sociais de forma a considerar que as expressões lingüísticas
são materializações da ideologia e que todo uso da linguagem é ideológico; dessa
forma, as expressões lingüísticas são “terreno de conflitos sociais”.
Fairclough e W. Wodak (no artigo “Análises Crítico del Discurso”, publicado
por Teun A. van Dijk, em março de 2000, trad. espanhola de Helena Amarengue,
Barcelona: Ed. Gedisa) comentam que os filósofos dessa escola sustentam que não
é possível tratar os produtos culturais como meros “epifenômenos” da economia,
tal qual o fizeram os filósofos marxistas, pois os conhecimentos são expressões
relativamente autônomas de contradições dentro do todo social, à medida que as
cognições sociais, de grupo para grupo, são conflitantes. Segundo os autores, o
pensamento de Bakhtin destaca as propriedades dialógicas dos textos, sua intertex-
Apresentação • ISBN 978-85-909318-0-5
tualidade, no sentido atribuído por Kristeva (1986), em sua obra World dialogue and
novel, que é a idéia de que qualquer texto está intertextualizado em uma cadeia
de texto, isto é, mantém relações de reação, de incorporação e de transformação
com outros textos. Tal concepção contribui para uma visão social do discurso, pela
dialética do social com o individual.
Segundo Fairclough e Wodak (2000), denomina-se Análise de Discurso Crítica a
análise crítica aplicada à linguagem que se desenvolveu no “marxismo Ocidental”.
De forma geral, o marxismo Ocidental deu ênfase maior do que as outras formas do
marxismo à dimensão cultural e deu relevância ao fato de que as relações sociais
capitalistas se estabelecem e se mantêm (reproduzem-se) em boa parte no seio da
cultura (por enfraquecimento da ideologia) e não somente, nem primordialmente,
na “base” econômica. Embora os analistas críticos do discurso nem sempre se
integrem explicitamente dentro dessa herança, principalmente no que se refere à
cultura e ideologia, ela, ainda assim, constitui o marco de seu trabalho.
O termo “crítico” está associado à Escola de Filosofia de Frankfurt. Os filósofos
dessa escola consideram que os produtos sociais são expressões relativamente autônomas de contradições dentro do todo social e propõem que as formas lingüísticas
de expressão (re)produzem, dinamicamente, o social no individual, embora este
altere aquele. Dessa forma, a ADC busca analisar o discurso com um interesse crítico
pela linguagem na sociedade contemporânea. Para tanto, busca uma consciência
crítica para tratar das práticas lingüísticas cotidianas que são responsáveis pelas
mudanças fundamentais nas funções que a linguagem cumpre na vida social.
Há diferentes vertentes para analisar o discurso sob a visão crítica, pois há
diferença na maneira pela qual essas vertentes interpretam a mediação entre o texto
e o social. Por um lado, considera-se que os processos sociocognitivos controlam
as relações discursivas; por outro, supõe-se que os mediadores entre o social e as
práticas discursivas são gêneros discursivos específicos. A ADC, devido a suas diferentes vertentes, privilegia tanto textos exclusivamente lingüísticos quanto textos
multimodais e, tendo por pressuposto, conforme Halliday, que os textos cumprem
e realizam várias funções ao mesmo tempo, analisar com visão crítica o discurso
é considerar as várias funções presentes ao mesmo tempo nos textos, tais como:
função ideativa, intertextual e textual.
Segundo as diferentes vertentes, a ADC privilegia:
1. A Lingüística Crítica Sistêmica – Esta vertente se desenvolveu na Grã-Bretanha, na década de 1980, e seus principais representantes são Fowler; Kress
e Hodge que estão intimamente ligados à Teoria Lingüística “Sistêmica” de
Halliday. Segundo essa vertente, as características gramaticais de um texto são
8 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Apresentação
escolhas significativas dentro de um conjunto de possibilidades disponíveis
nos sistemas gramaticais; assim, a gramática tem função ideológica, pois as
escolhas gramaticais significativas contribuem para a reprodução ideológica
de relações de dominação. Ainda, segundo essa vertente, é importante tratar
da significação ideológica da função sistêmica, de forma a examinar como
ela se encontra em textos que se transformam em outros textos no correr do
tempo. Os lingüistas críticos, também, chamam a atenção sobre o potencial
ideológico do sistema de categorização dos implícitos em vocábulos, ou
seja, as maneiras particulares de “lexicalizar”, social e institucionalmente,
a experiência nos dicionários.
2. A Semiótica Social – Esta vertente se preocupa com o caráter multissemiótico
da maior parte dos textos na sociedade contemporânea e explora métodos de
análise aplicáveis às imagens visuais assim como à relação existente entre
a linguagem verbal e as imagens visuais, tal como procedem Kress e van
Leeuwen, dentre outros. Os resultados obtidos da análise crítica das imagens
visuais têm propiciado repensar as teorias de base apenas lingüística. A vertente com base na Semiótica Social dá maior atenção do que a Lingüística
Crítica Sistêmica às práticas de produção e de interpretação relacionadas a
distintos tipos de textos com múltiplas modalidades semióticas.
3. A mudança sociocultural e mudança no discurso – Um dos principais
representantes desta vertente é Fairclough, que se dedica ao estudo das relações entre a mudança sociocultural e a mudança no discurso. A mudança
no discurso é analisada, com visão crítica, em termos da combinação de
discursos e de gêneros dentro de um texto, tendo como ponto de partida
que o tempo reestrutura as relações entre: a) distintas práticas discursivas
no seio das instituições; b) distintas instituições com suas práticas discursivas correspondentes a determinados domínios sociais. Fairclough e seus
colaboradores também trataram das implicações da ADC para a educação,
postulando uma “consciência crítica da linguagem” como componente-chave
do ensino da língua nas escolas e em outras instituições.
4. O exame sociocognitivo – Um dos principais representantes desta vertente
é van Dijk, que se dedica ao estudo da reprodução do preconceito étnico no
discurso e na comunicação. O autor descobriu que os temas mais freqüentes
na imprensa correspondem a preconceitos étnicos predominantes nas conversações cotidianas. Em seus trabalhos mais recentes, van Dijk voltou-se ao
estudo de questões mais gerais relativas ao abuso de poder e à reprodução
da desigualdade por meio da ideologia. Segundo ele, a cognição é uma das
categorias analíticas do discurso, com visão crítica, e postula uma inter-
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
9
Apresentação • ISBN 978-85-909318-0-5
relação entre as categorias sociedade, cognição e discurso, de forma a tratar
das representações sociais em suas funções discursivas nos diferentes grupos
sociais; dessa forma, tem se preocupado, mais recentemente, com as relações
entre cultura e ideologia para caracterizar os conhecimentos sociais.
5. O método histórico-discursivo – Uma das principais representantes desta
vertente é Ruth Wodak. Ela e seus colaboradores propõem um procedimento
que denominaram “método histórico-discursivo”. Este método é originado
na Sociolingüística, com base em Bernstein e recebe influência da Escola
de Frankfurt, principalmente, de Jürgeen Habermas, além de van Dijk, no
que se refere à existência de diferentes tipos de esquemas mentais que têm
importância para a produção e para a compreensão do texto. Um dos principais objetivos desse tipo de investigação crítica é a possibilidade de sua
aplicação. Um traço característico dessa vertente crítica consiste em integrar
sistematicamente toda informação disponível no contexto para a análise e
para a interpretação de textos falados ou escritos. A metodologia históricodiscursiva foi idealizada para tornar possível a análise de emissões verbais
que contêm valores preconceituosos implícitos e também para identificar e
para denunciar códigos e alusões contidas em discursos preconceituosos.
6. As análises da leitura – Um dos principais representantes desta vertente é
Utz Maas, que remete às principais idéias do pensamento de Michel Foucault
e combina-as com a metodologia hermenêutica que designa a análise da
leitura. Dessa forma, analisa, com visão crítica, o discurso, por formas lingüísticas em correlação com práticas sociais, investigadas de modo sociológico
e histórico, no contexto em que se manifestam. A análise do texto torna-se
análise do discurso, à medida que correlaciona o texto ao discurso, isto é,
por uma prática social formada historicamente. Nesse sentido, um discurso
não é um conjunto arbitrário de textos, definido pelo tempo e pelo espaço,
mas um discurso define-se, intencionalmente, pelo seu conteúdo, como,
por exemplo, discurso machista, discurso fascista. Cada texto remete-se a
outros textos tanto sincrônica quanto diacronicamente. Para o autor, analisar
o discurso com visão crítica é colocar, de forma explícita, as especificidades
dos discursos institucionalizados e públicos.
7. Escola Duisburg – Um dos maiores representantes desta vertente é Siegfried
Jäger, que, com a influência de Michel Foucault, trata das características lingüísticas icônicas do discurso e dos “símbolos coletivos” que desempenham
importantes funções no texto. Para Jäger, os discursos são modalidades de fala
institucionalizadas e convencionadas que têm relação com o comportamento
e com a dominação. O autor propõe uma metodologia explícita para analisar
sistematicamente fragmentos de discurso levando em conta a intertextuali-
10 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Apresentação
dade. O autor concentrou a micro-análise do texto no símbolo coletivo, nas
metáforas e nas estruturas agentivas e mostrou que, em diferentes jornais e
revistas publicadas, havia grande similitude entre os signos coletivos.
De forma geral, com suas diferentes vertentes, a ADC ocupa-se dos problemas
sociais e analisa, com visão crítica, os aspectos lingüísticos e semióticos dos processos e dos problemas sociais, de forma a propor que as mudanças sociais e políticas, na sociedade contemporânea, incluem, geralmente, um elemento discursivo
substancial de mudança cultural e ideológica.
Para os problemas sociais tratados, há privilégio da análise da ideologia. A
ADC sublinha o caráter fundamentalmente lingüístico e discursivo das relações
sociais de poder na sociedade contemporânea, o que resulta, em parte, de como
se exerce e negocia a relação de poder no interior do discurso. Privilegia, também,
o tratamento do poder dentro do discurso e o poder sobre o discurso, como uma
capacidade de controlar e de modificar as regras do jogo das práticas discursivas
e da ordem do discurso. A ADC trata, também, de como o discurso constitui a
sociedade e a cultura, da mesma forma que é constituído por ela. Isto implica que
toda instância de uso da linguagem dá sua própria contribuição à reprodução e/ou
à transformação da sociedade e da cultura, incluídas na relação de poder.
A presente obra dá importância às diferentes vertentes da ADC. Ela reúne um
conjunto de autores que apresentam os seguintes trabalhos:
1. Célia Maria Magalhães (UFMG) apresenta “Percursos das abordagens discursivas associadas à Lingüística Sistemática Funcional”, de forma a tratar das
diferentes abordagens da análise lingüística que têm por foco o discurso. Seu
artigo apresenta vertentes discursivas com base na Lingüística Sistêmica e
Funcional e objetiva o mapeamento das escolas inglesas conhecidas como
Análise de Discurso Crítica, além de divulgar um projeto de mapeamento de
trabalho de pesquisadores brasileiros e portugueses em ADC, a partir da última
década do século XX.
2. Francisca Cordélia Oliveira da Silva (UnB), em seu artigo “O uso de metáforas
em construção de identidades étnicas”, trata do uso de metáforas presentes
em textos que têm por tema cotas para negros nas universidades brasileiras.
Seus resultados obtidos indicam que as metáforas são usadas para constituir as identidades dos negros nos textos. A autora considera que o modo
como o negro é visto e representado pelo “outro” influencia o modo como
ele vê e representa a si mesmo, pois o “eu” do negro forma-se, em parte,
pelas representações que são feitas dele pela sociedade. Assim, para fugir
da auto-identificação, os informantes da pesquisa recorrem a metáforas para
representar a sua cor negra.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
11
Apresentação • ISBN 978-85-909318-0-5
3. Georgina Amazonas Madarino (CEPADIC), com o texto intitulado “A supermodernidade: cultura do poder e do consumismo”, objetiva examinar como
a mass media contribui para a construção identitária do sujeito. A autora
trata do símbolo da modernidade divulgado pela publicidade em geral, de
forma a comprovar a identidade e como os referidos símbolos autorizam
deslocamentos interpessoais. Seus resultados indicam que certos símbolos
da supermodernidade propiciam a identificação de territórios em constante
transformação e indicam, também, o resgate de multiplicidades sociais e
culturais.
4. Walkyria Weetter Bernandes (UnB) apresenta o artigo intitulado “Pós-modernidade, mídia e perfil identitário feminino”. O trabalho trata da investigação
do papel identitário da mulher e seu papel social no momento histórico da
Pós-Modernidade, segundo as relações existentes entre discurso, mídia e
poder por meio do texto midiático, em suas características intertextual e
multissemiótica. O resultado obtido indica que a construção da identidade
da mulher pela mídia impressa revela que ao mesmo tempo em que a mulher é construtora de seu espaço familiar e social, a ideologia dominante é
veiculada por um discurso ortodoxo e antilibertário do feminino.
5. Harrison da Rocha (UnB), em seu artigo intitulado “Gramática tradicional e
língua escrita: duas faces de um mesmo poder”, procura explicar algumas
causas do fracasso do ensino de Língua Portuguesa na escola brasileira. Dessa
forma, foca sua crítica no ensino apenas baseado na modalidade escrita, visto
que em sociedade as pessoas se comunicam por diferentes modos semióticos.
Para tanto, faz uma revisão do ensino de língua desde a antiguidade clássica,
berço do surgimento da gramática tradicional, que, sendo representativa das
elites, passa a ser norma imposta, ideologicamente, a todos. Percorre essa
mesma prática desde a Península Ibérica, passando pelo Brasil Colônia, até
nossos dias. Conclui que isso tem de ser repensado tendo em vista que a
escrita e a fala são importantes para o ensino, mas os docentes de língua
portuguesa precisam cortejar seus currículos com uma estrutura ampla que
dê conta de uma enorme variedade de práticas comunicativas – a escrita, a
fala e o visual.
6. Josenia Antunes Vieira (UnB), em seu artigo intitulado “O discurso mercantilista do ensino brasileiro” tem por objetivo discutir as mudanças no
discurso, relativas à educação brasileira, focalizada na sedução da clientela
aluno, que propiciaram profundas alterações nas práticas discursivas. A autora
considera que as mudanças no mundo e na atualidade brasileira contribuíram
para essas profundas alterações e conclui que, enquanto as universidades
federais pouco atuam para coibir as mudanças na educação superior, as
12 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Apresentação
universidades privadas multiplicam propagandas altamente agressivas para
o recrutamento de novos alunos e, para tanto, gastam expressivas somas de
seus orçamentos para construir anúncios que atraiam cada vez mais alunos
para seus cursos. O artigo apresenta resultados de análises de textos em
linguagem multimodal.
7. Janaína de Aquino Ferraz (UnB), em seu artigo “A multimodalidade textual
em materiais didáticos de português língua estrangeira” trata das mudanças ocorridas na configuração dos materiais didáticos nos últimos tempos,
tendo em vista a abertura para os diversos usos da linguagem. Neste artigo,
analisam-se, especialmente, sob à luz da Análise de Discurso Crítica e da
Semiótica Social, as mudanças nas construções de sentido nos livros didáticos
de português para estrangeiros.
8. Regina Célia Pagliuchi da Silveira (PUC/SP), em seu artigo intitulado “Formas
de solicitações, afirmações e respostas dialógicas do português brasileiro”,
trata dos implícitos culturais contidos no uso cotidiano de expressões lingüísticas do brasileiro, em turnos dialógicos, com o objetivo de focalizar aspectos
da cultura brasileira que participam da memória social, a fim de contribuir
com o ensino do português brasileiro para falantes de outras línguas. Os
resultados obtidos indicam que os implícitos culturais estão situados em
dimensão sociocognitiva, diferente da dimensão da língua, e que eles precisam ser considerados para a produção de sentidos por locutores de outras
línguas. A autora está fundamentada na ADC, com vertente sociocognitiva,
e situa os implícitos culturais nas cognições sociais de grupos específicos
de brasileiros.
9. André Lúcio Bento (UnB), em seu artigo “E agora, Lula?”: a imagem intertextual em matéria do Correio Braziliense, analisa o papel desenvolvido pela
imagem na condição de elemento central de intertextualidade, notadamente
em referência ao poema “José”, de Carlos Drummond. O exame levado a
efeito neste trabalho tem como base teórica a Análise de Discurso Crítica,
especialmente Fairclough (2001 e 2003), bem como alguns pressupostos da
denominada gramática ou sintaxe visual, na contribuição de Kress e van
Leeuwen (1996).
10.Joana da Silva Ormundo (UNIP/CEPADIC), em seu artigo “A dinâmica do
uso social dos diários: on-line” analisa o uso de linguagem nos blogs, como
uma prática social e discursiva. O texto tem por base teórica Fairclough. A
autora trata dos processos interativos e a constituição de uma comunidade
discursiva blog conforme a análise de gênero de Bakhtin e o conceito de
comunidade discursiva proposto por Swalles. Dentre os resultados obtidos
pela autora, estão: a prevalência inicial de usuários adolescentes foi cedendo
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
13
Apresentação • ISBN 978-85-909318-0-5
espaço para usuários mais adultos; a relevância da mudança das temáticas
publicadas indica também mudança no perfil do produtor e do leitor do
gênero blog; e a dinamicidade do uso das linguagens que aparece nos blogs
é caracterizada por uma escrita multimodal.
Espero que os leitores recebam excelentes contribuições para seus estudos e
investigações.
Regina Célia Pagliuchi da Silveira
14 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Apresentação
Parte I
caminhos Teóricos
Célia Maria Magalhães
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
15
Apresentação • ISBN 978-85-909318-0-5
16 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
Percursos das abordagens discursivas
associadas à Lingüística Sistêmica Funcional
Célia Maria Magalhães* (UFMG)
Resumo: São diversas as abordagens consolidadas de análise lingüística cujo foco de
interesse é o discurso. Este trabalho se propõe a fazer uma revisão das abordagens
discursivas que têm como teoria de base a Lingüística Sistêmica Funcional (LSF). Trata-se
de revisão sucinta cujo objetivo é mapear as publicações recentes e mais representativas
de teóricos destas abordagens de modo a orientar novos interesses de pesquisa nesta área.
A revisão parte de textos fundacionais, focalizando sucintamente alguns dos conceitos
básicos neles abordados, para fazer um mapeamento das escolas inglesas conhecidas como
Discourse Analysis (DA) e Critical Discourse Analysis (CDA) e, finalmente, divulgar um
projeto de mapeamento de trabalhos realizados por pesquisadores brasileiros e portugueses
em Análise Crítica do Discurso desde a última década do século passado.
Palavras-chave: Abordagens Discursivas; Análise Textual de Base Sistêmica; Análise
Crítica do Discurso (ACD).
Abstract: There is a variety of linguistic approaches whose research object is discourse.
This paper reviews some of the discourse approaches which stem from Systemic Functional
Linguistics (SFL). It is a concise review which aims at mapping the most recent and
representative theoretical work in the field. It also intends to guide new research interest
in the area in Brazil. The review sets out from foundational texts, focusing on some
of their basic concepts to include the English Schools of Discourse Analysis (DA) and
Critical Discourse Analysis (CDA). The review also briefly presents a project which
CDA research groups have been carrying out in Brazil and Portugal. This project aims
at mapping out research work carried out by Brazilian and Portuguese scholars in the
field of CDA from the nineties on.
Keywords: Discourse Approaches; Textual (Systemic-Functional) Analysis; Critical
Discourse Analysis (CDA).
* Célia Maria Magalhães é professora-adjunta de tradução e de Análise Crítica de Discurso na Faculdade de
Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Lingüística e Doutora em Literatura
Comparada pela UFMG, com estágios de pesquisa em University of Nottingham, UK; York University e na
University of British Columbia, Canadá. Tem pós-doutorado em Lancaster University, UK. Em conjunto com
Adriana Pagano e Fabio Alves, é autora de Traduzir com autonomia: estratégias para o tradutor em formação
(Contexto, 2000); é organizadora de Competência em tradução: cognição e discurso (Editora UFMG, 2005).
E-mail: [email protected].
Parte I – Caminhos Teóricos • Percursos das Abordagens Discursivas Associadas à Lingüística Sistêmica Funcional
Introdução
O
s rótulos “abordagens discursivas” e, em especial, “análise do discurso” (AD)
compreendem escolas teóricas e campos de estudo da linguagem os mais diversos, abrangendo diferentes grupos de pesquisadores franceses, americanos, ingleses
e australianos, para listar apenas aqueles cuja base é o pensamento ocidental.
Proponho-me, neste artigo, fazer uma revisão teórica das abordagens discursivas
que têm como teoria de base a Lingüística Sistêmica Funcional (LSF), referindo-me
a quatro décadas de publicações – desde a década de 1960, no Século XX, até os
primeiros anos do Século XXI. Embora a tentativa seja a de abranger um período
maior, a revisão a que me proponho é sucinta de modo a constituir um mapeamento
das referidas abordagens visando à orientação de pesquisadores interessados no
referido campo de estudo específico. Vale ressaltar que não levarei em conta as
abordagens de estudos da linguagem que são reconhecidas no âmbito acadêmico
anglo-americano, como Análise da Conversação (AC), Análise da Narrativa, Análise
de Gênero e Pragmática, Etnografia da Fala, dentre outras.
Meu trabalho divide-se em seis seções. Na primeira, abordo o que intitulo de
“textos fundacionais” das abordagens discursivas que têm como base a LSF; na segunda, abordo brevemente conceitos básicos usados nessas abordagens; na terceira,
pretendo constituir um mapa dessas abordagens de AD no âmbito internacional,
por meio de coletâneas de trabalhos editadas e/ou organizadas por autores de
renome e que levam o termo “discurso” no título; na quarta, o propósito é fazer
uma breve revisão de trabalhos que focalizam a Análise Crítica do Discurso (ACD)
como perspectiva relevante dentro da AD; na quinta, tento configurar um mapa
das abordagens contemporâneas de AD que têm como fundamento a LSF, como
a Análise Positiva do Discurso (APD), a ACD, a Análise Multimodal do Discurso
(AMD) e a Semiótica Social Crítica (SSC) e, finalmente, na sexta, termino o artigo
descrevendo um projeto interinstitucional que coordeno e cujo objetivo é mapear
os trabalhos que pesquisadores brasileiros e portugueses têm desenvolvido com
base na perspectiva de ACD desde a década de 1980 até os anos atuais.
Textos Fundacionais
Já há trabalhos no âmbito nacional (Pagano, no prelo, dentre outros) que fazem
uma revisão do trabalho do lingüista Michael Halliday, das décadas de 1960 e 1970,
com o propósito de verificar sua contribuição para os Estudos da Tradução. Tais
trabalhos do autor, juntamente com vários outros, culminaram em sua Introduction
to functional grammar, cuja primeira versão é publicada em 1985, reeditada em 1994
e revista e aumentada pelo próprio autor e Christie Matthiessen em 2004. Dentre
essas publicações, me referirei a duas apenas: o estudo dos recursos coesivos da
18 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Célia Maria Magalhães
língua inglesa (Halliday; Hasan, 1976) e a proposta de linguagem como semiótica social (Halliday, 1978). A primeira desenvolve e legitima a noção de texto
como “unidade semântica” e faz um estudo abrangente dos recursos coesivos da
língua inglesa, apresentando categorias úteis para nomear tais recursos e usando
exemplos variados de linguagem em uso para esse fim; a segunda apresenta a
proposta de Halliday de linguagem como semiótica social, meta funcional, usada
pelos seres humanos na sociedade para atingir três funções principais: falar de
suas experiências externas e internas do mundo ao seu redor; estabelecer relações
interpessoais na sociedade e organizar a mensagem de modo a poder, com ela,
agir e criar sentidos que serão entendidos por seus pares nas diversas instituições
sociais das quais participam.
Outros autores que, com base no trabalho de Halliday, constituem referência
no âmbito da AD inglesa são John Sinclair e Malcolm Coulthard. Estes autores,
juntos (Sinclair; Coulthard, 1975), publicam um estudo da interação em sala
de aula, descrevendo a interação oral entre professores e alunos, como unidade de
sentido composta por estágios previsíveis e prováveis; descrição, à época, considerada valiosa, ainda que hoje a perspectiva seja a de que representa apenas um
tipo de interação de um determinado contexto histórico-cultural da instituição
educacional. Coulthard (1977) também é uma referência importante para o grupo de estudiosos que se denominou escola de AD no contexto inglês. Essa breve
revisão já aponta para uma tendência das abordagens de estudos da linguagem,
cuja unidade mínima de análise deixa de ser a frase e passa a uma unidade maior,
de trabalhar, de um lado, com o texto escrito e, de outro, com o discurso oral. O
que, de certa maneira, pode ser entendido como uma associação dos conceitos de
“texto” e “discurso” com os modos escrito e oral da linguagem (ver o capítulo 1
de van Dijk, 1997, sobre o sentido dicionarizado da palavra “discurso”). Tratarei,
na próxima seção, do uso de conceitos básicos, como texto e discurso, além de
outros, no âmbito dessas abordagens.
Alguns Conceitos Básicos
Como exposto acima, de um lado, os teóricos da AD inglesa usavam o conceito
“discurso” e, conseqüentemente, a colocação “análise do discurso”, para significar
uma unidade maior da linguagem oral em uso e a proposta de abordagem para
análise desta unidade, respectivamente; de outro, usavam o conceito “texto” e
a colocação “análise de texto” ou “análise textual” para significar uma unidade
maior da linguagem escrita em uso e a proposta de abordagem para análise desta
unidade, respectivamente. Era o período em que os estudiosos, embora já houvesse abordagens dedicadas à análise de outros signos semióticos diferentes da
linguagem oral e escrita, concentravam-se na dicotomia oral/escrito, o que resul-
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
19
Parte I – Caminhos Teóricos • Percursos das Abordagens Discursivas Associadas à Lingüística Sistêmica Funcional
tou em vasta produção de trabalhos com descrição dos dois modos da linguagem.
Duas publicações que devem ser mencionadas para fazer jus a estes trabalhos são
aquelas editadas por Coulthard, Advances in spoken discourse analysis e Advances
in written text analysis, em 1992 e 1994, respectivamente. Estas duas obras são
coleções de artigos que replicam, com sucesso, os procedimentos e técnicas de AD
e de análise textual criados por teóricos, em sua maioria, com base na lingüística
sistêmico-funcional hallidayana. Também devem ser registrados aqui os quatro
volumes editados por van Dijk na década de 1980 e intitulados The handbook of
discourse analysis, sobre os quais não me estenderei tendo em vista o objetivo da
minha proposta de revisão, de focalizar a atenção em abordagens de discurso que
dialoguem com a lingüística sistêmica.
Os conceitos “texto” e “discurso” foram sendo usados ao longo destes trinta ou
quarenta anos de modo a criar significados diferentes, além de serem associados
a uma gama de outras noções que se fizeram necessárias quando a unidade de
interesse dos pesquisadores deixou de ser o texto oral ou escrito, conforme exposto
acima. Esta unidade é denominada de “texto”, agora entendido como unidade de
significado em que se faz uso de recursos semióticos verbais, orais ou escritos, e
não-verbais, como imagens, sons, gestos, dentre outros; analisado como um evento
num dado contexto sociocultural e histórico de produção, de distribuição e de consumo. É importante mencionar que Halliday (1978), em seu modelo de linguagem
como semiótica social, propõe um modelo de descrição da linguagem em uso,
abrangendo estratos de níveis diferentes, fonológico, léxico-gramatical e semântico
(este último compreendendo as três funções que o uso da linguagem pelos seres
sociais preenche, as funções “ideacional, a interpessoal e a textual”). Seu modelo
também contemplou o contexto social, em dois níveis diferentes, tendo como base
o trabalho do antropólogo Malinowski. O primeiro, o contexto específico de uso da
linguagem, denominado “contexto de situação” e relacionado por Halliday ao conceito abstrato de “registro” que abrange as variáveis de “campo, relações e modo”,
as quais, por sua vez, inter-relacionam-se com as funções do extrato semântico da
linguagem. O segundo, o contexto mais amplo das instituições sociais em que a
linguagem é usada, denominado “contexto da cultura”. O poder e a ideologia são
noções das quais o pesquisador não pode prescindir se pretende descrever o texto
de modo a abranger seu contexto de cultura e, para tanto, a noção de “gênero”
(para alguns do texto, para outros do discurso) se faz necessária (ver descrições
abrangentes de Halliday; Hasan, 1985, sobre registro e gênero).
Entender gêneros como “gêneros de texto” é focalizar as convenções mais ou
menos estáveis historicamente, atribuídas aos textos como eventos comunicativos
das práticas das instituições sociais de uma dada cultura. Já entender gêneros como
“gêneros de discurso” é privilegiar os discursos que são reproduzidos ou que se
20 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Célia Maria Magalhães
constroem nos textos. Para desfazer a circularidade desta definição, é preciso voltar
ao conceito de “discurso” que, por algum tempo, esteve sempre associado à “linguagem oral” nas abordagens de AD inglesas. A partir do final dos anos 1970, um
grupo de lingüistas da Universidade de East Anglia (ver Fowler; Hodge; Kress;
Trew, 1979; Kress; Hodge, 1979), afiliados a lingüística sistêmico-funcional, e
que se denominou “lingüistas críticos”, iniciou um diálogo com teóricos de outras
áreas de estudo, como o filósofo Habermas e, mais tarde, o filósofo Michel Foucault.
O contato com esses teóricos teve vários desdobramentos para as abordagens discursivas inglesas, dentre os quais destaco, nesta seção, a revisitação do conceito
de “discurso” que levou a uma distinção entre o uso do termo no singular e no
plural. “Discurso”, no singular, passa a significar a linguagem em uso (qualquer
modo e com qualquer recurso semiótico) em seu contexto de situação e de cultura.
O termo “discursos”, no plural, resgata e se apropria do conceito de “formações
discursivas” de Foucault, significando representações de mundo com base nas
perspectivas socioculturais particulares (ver, ainda, sobre gênero, Fairclough,
1989, 1992; Kress, 1985; Hodge; Kress, 1988). Tais desdobramentos propiciam
a criação de grupos ou escolas de pesquisadores em torno de abordagens de estudos da linguagem um pouco diferenciadas, variando o seu objeto de estudo entre
“discurso” e “discursos”.
Cumpre, ainda, destacar o conceito de estrato da linguagem, intitulado “semântica do discurso”, de Martin (1992), que, pode-se dizer, renomeia o estrato
semântico de Halliday, expandindo-o para além dos seus componentes, as funções
da linguagem, com as categorias de “relações lexicais”, “estrutura conversacional”, “referência e conjunção”, cada uma dessas categorias associadas às funções
ideacional, interpessoal e textual, respectivamente (sobre semântica do discurso,
ver também Eggins, 1994). Segundo Martin, em lugar de organizar um modelo
de análise da linguagem baseado em significados da oração (unidade mínima de
análise do modelo hallidayano) e que contrapõe gramática e coesão, seu modelo
contrapõe gramática e semântica e focaliza os significados no nível do texto, por
isso a necessidade de um estrato denominado “semântica do discurso”. O autor
faz, assim, uma conjunção de dois conceitos – semântica e discurso – associandoos ao significado do texto como unidade de análise. De qualquer forma, o termo
“discurso”, conforme usado pelo autor, parece ter uma configuração diferente
daquelas que o conceito têm ao ser apropriado pelas escolas de lingüistas críticos
e analistas críticos do discurso e coincide com uma noção de texto como unidade
semântica, mas já apontando para a sua vinculação a gêneros.
Finalmente, vale a pena ressaltar que, ao longo do desenvolvimento das abordagens discursivas contemporâneas, os analistas têm se voltado para a descrição de
gêneros e de discursos. Entretanto, há também um movimento recente de resgate do
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
21
Parte I – Caminhos Teóricos • Percursos das Abordagens Discursivas Associadas à Lingüística Sistêmica Funcional
conceito de “estilo”, antes reservado apenas para os gêneros literários e associado
a autores, épocas ou escolas literárias. Fowler (1966) já problematiza o conceito
conforme utilizado apenas para textos literários e Leech e Short (1981) instituem
a noção de “estilo do texto”. Mais recentemente, Fairclough (2000, 2003) associa
o estilo a traços pessoais de identificação dos usuários de textos. Do conceito,
conforme usado por Fairclough, van Leeuwen (2005) o expande, fazendo um percurso interessante pelas noções de “estilo individual”, “estilo social” e “estilos de
vida”. De qualquer modo, o movimento é interessante à medida que dois conceitos,
o de gênero e estilo, antes associados apenas aos textos literários, dessa forma,
tornando-os uma classe de textos especiais em relação aos outros, na contemporaneidade, mostram-se produtivos para a análise de qualquer outro texto/evento
de qualquer outra instituição social, o que parece reforçar a proposta de Fowler
(1981), da literatura como discurso social como qualquer outro. Talvez hoje, na era
dos conceitos de discurso(s) e poder, seja o momento de repensarmos a literatura
não mais como discurso, mas como instituição social, como a religião, o Estado,
a ciência, a mídia e o mercado, para falar apenas das cinco mais proeminentes
nas culturas, que teve muito poder com a invenção da imprensa e sua introdução
na instituição educacional ocidental e hoje tem seu poder dividido com outras
mídias produtoras de outros recursos semióticos. A questão merece mais espaço
para discussão do que aquele que tenho aqui, neste artigo de revisão teórica, por
isso, deixo-a, por enquanto, em suspenso.
No breve resumo acima sobre as concepções diferenciadas dos termos-chave
em uso nas abordagens discursivas sobre as quais o foco deste trabalho recai,
algumas vezes fiz referência a escolas e/ou grupos de pesquisadores que foram se
constituindo em torno do mesmo objeto de estudo, que varia do texto, passando
pelo texto em contexto e chegando ao discurso. Na próxima seção, volto-me para
uma breve revisão de coletâneas que trazem o rótulo de “discurso” e que foram
publicadas nos últimos dez anos.
Mapa da Pesquisa em AD Publicada em Língua Inglesa
por Pesquisadores de Background Inglês
Meu propósito nesta seção de revisão é bem focalizado. Não pretendo me referir
às inúmeras publicações de autores que se propõem a introduzir a proposta de AD,
geralmente intituladas An introduction to discourse analysis. Também não pretendo
fazer referência a obras como a de Schriffin (1994) ou de Mills (1997) ou, ainda,
o de Blommaert (2005), cada qual com sua especificidade de abordagem ao tema.
Volto-me para as coletâneas, como a de van Dijk (1997a, 1997b), Jaworski e Coupland (1999) e Schriffin, Tannen e Hamilton (2001) que, acredito, constituem por si
sós, um mapeamento de trabalhos cujo interesse de pesquisa pode ser considerado
22 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Célia Maria Magalhães
como sendo o discurso, embora parta de diversas perspectivas interdisciplinares
da lingüística e, simultaneamente, são um marco, ou a legitimação, do campo de
estudos no universo do mundo acadêmico, pelo menos, aquele que se expressa em
língua inglesa. Volto a frisar que não me proponho, contudo, a focalizar as escolas
ou grupo de pesquisadores americanos, embora todas as três coletâneas incluam
trabalhos os mais diversos de pesquisadores de língua inglesa ou não.
Ao analisar as coletâneas editadas por van Dijk em 1997, o que primeiro chama
a atenção é a distribuição dos trabalhos cujo interesse de pesquisa é o discurso em
dois volumes, cujos títulos são Discourse as structure and process e Discourse as
social interaction. Van Dijk parece organizar as diversas contribuições, tomando
como base as perspectivas por meio das quais o discurso está sendo abordado,
como “estrutura e processo” e como “interação social”, incluindo as múltiplas
possibilidades de diálogo entre a AD e outros campos disciplinares da Lingüística.
Tomando como base as definições dos conceitos contemporâneos de discurso(s),
acima expostas, pode-se dizer que esses dois aspectos são inerentes ao(s) discurso(s)
e que haveria, na organização dos trabalhos, uma tentativa de reunir os trabalhos
de acordo com seu foco de análise em apenas um dos aspectos, o que é perfeitamente admissível de acordo com as convenções acadêmicas. O primeiro volume
cobre trabalhos dentre os quais estudo e história do discurso, semântica do discurso, discurso e gramática, estilos de discurso, retórica, narrativa, argumentação,
gêneros e registros do discurso, semiótica do discurso, cognição, cognição social
e discurso. O segundo cobre pesquisas intituladas como discurso e interação na
sociedade; pragmática discursiva; AC e ação social como práticas de significação;
diálogo institucional; gênero social no discurso; discurso, etnia, cultura e racismo;
discurso organizacional; discurso e política; discurso e cultura; análise crítica do
discurso; análise do discurso aplicada. Os dois volumes constituem referência obrigatória para os interessados no campo da AD e os artigos ali reunidos constituem
ponto de partida para qualquer tipo de abordagem do discurso com as diferentes
possibilidades de entrecruzamento de teorias lingüísticas.
O volume Jaworski e Coupland (1999) intitula-se como reader e inclui teóricos
os quais, por assim dizer, podem ser tomados como precursores dos estudos de
discurso, como o filósofo da linguagem Austin, J. L., o lingüista Jakobson, R., e
o teórico e crítico dos estudos literários, Bakhtin, M. M. O volume tem uma introdução em que os autores descrevem as diversas perspectivas da AD, a partir
dos múltiplos significados do conceito discurso. Apesar dessa multiplicidade de
conceitos, pode-se dizer que afinal as perspectivas de AD se reúnem em torno de
três abordagens: a primeira que toma discurso como qualquer unidade maior que
a frase, a segunda como qualquer instância de linguagem em uso e a terceira como
qualquer instância de linguagem como prática social. Os autores também desta-
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
23
Parte I – Caminhos Teóricos • Percursos das Abordagens Discursivas Associadas à Lingüística Sistêmica Funcional
cam a AD como interdisciplinar, abrangem as noções de discursos multimodais e
multivozeados e chamam a atenção para as camadas de sentido social no discurso,
descrevendo brevemente, por fim, as seguintes tradições de AD: teoria de atos de
fala e pragmática, análise da conversação, psicologia discursiva, etnografia da comunicação, sociolingüística interacional, análise da narrativa e análise crítica do
discurso. O volume divide-se em seções temáticas voltadas para o foco de interesse
dos analistas que contribuem para a coletânea, com introdução explicativa dos
editores. A Parte I, intitulada Discurso: significado e contexto, a Parte II, Métodos
e recursos para análise de discurso, a Parte III, Seqüência e estrutura, a Parte IV, A
negociação de relações sociais, a Parte V, Identidade e subjetividade e, finalmente,
a Parte VI, Poder, ideologia e controle.
Vale a pena observar dois pontos. Primeiro, os autores incluem no volume textos
de sociólogos como Giddens e Bourdieu e do filósofo Foucault, cujos trabalhos se
voltam ou se voltaram para o discurso e têm sido usados como pontes interdisciplinares valiosas por analistas do discurso. Segundo, embora muitas das abordagens
de AD partam da LSF, Jaworski e Coupland (1999) não incluem a Semiótica Social
de Halliday neste reader nem as diversas abordagens de AD que têm como base a
teoria hallidayana. Entretanto, é reconhecido na comunidade acadêmica internacional
e nacional que Halliday elabora sua teoria de linguagem como Semiótica Social,
integrando noções de trabalhos sociológicos, como os de Bernstein, de estudos
antropológicos, como os de Malinowski, e da escola de lingüistas de Praga, para
citar apenas alguns. Essa perspectiva teórica de linguagem e sociedade, por si só,
já apontaria para a necessidade de incluir o trabalho de Halliday no reader dos
autores. Coupland e Jaworski (1997), entretanto, incluem as propostas de Halliday
(1978) e de Hodge e Kress (1988), uma expansão da noção de linguagem como
Semiótica Social para incluir outros recursos semióticos para além dos verbais, em
um reader de Sociolingüística em que, curiosamente, na contribuição de Halliday,
de saída, o autor já procure mostrar como seu trabalho se distingue do trabalho
dos Sociolingüístas.
Na introdução de Schriffin, Tannen, e Hamilton (2001), as autoras também
partem das três categorias conceituais que o termo “discurso” abrange e, conseqüentemente, organizam a publicação com uma gama de perspectivas de AD.
Tais perspectivas têm como escopo a gama de questões que a AD tem procurado
descrever, variando de fenômenos lingüísticos, passando por fenômenos interdisciplinares e chegando até questões sociais, como gênero social e discriminação.
As autoras dividem as contribuições do volume em quatro partes. A primeira dá
uma visão geral das questões especificamente lingüísticas para as quais a AD pode
contribuir para resolver, como coesão e textura, relevância, estrutura da informação, análise de registro, dentre outras. A segunda parte concentra-se nas práticas
24 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Célia Maria Magalhães
de análise, na relação dessas práticas ou metodologias com teorias. A terceira
focaliza os contextos de interação em que a linguagem é usada e subdivide-se em
duas seções: a primeira ressaltando os domínios políticos, sociais e institucionais
do uso da linguagem e os papéis dos interlocutores nesses domínios; a segunda,
embora não deixe de lado tais domínios, concentra-se em descrever o discurso de
determinados grupos de pessoas em relação a gêneros de discurso, a comunidades
e a culturas, em contextos de situação específicos. Finalmente, a quarta e última
parte, tenta dar conta das relações de interdisciplinaridade na AD, de como esta
pode se expandir com o contato com outras disciplinas bem como da função que
a AD pode ter na resolução de questões de outras disciplinas.
A preocupação, nesta seção, foi estabelecer uma revisão mínima de trabalhos
que se constituem na consolidação e na legitimação do campo de estudos da AD no
âmbito acadêmico de língua inglesa. Na próxima seção, volto-me para uma breve
revisão de obras que focalizam a ACD como escola de relevo dentro da AD.
A ACD: Teoria, Método, Escola de AD ou Campo de
Estudos Independente?
Não há, ainda, um reader reunindo trabalhos de ACD, o que pode ser uma
indicação de que não se trata, ainda, de um campo de estudos independente, mas
de escola ou abordagem consolidada dentro da AD e em destaque na contemporaneidade. A primeira obra que listo na minha revisão é Caldas-Coulthard e Coulthard (1996). Nesta obra, os editores reúnem, numa primeira parte, cinco textos
de teóricos proeminentes das escolas de Lingüística Crítica e de Análise Crítica do
Discurso, quatro dos quais têm como base ou fazem largo uso da teoria sistêmica hallidayana em sua abordagem discursiva (Fowler, Roger; Kress, Gunther;
van Leeuwen, Theo; Fairclough, Norman). Na segunda parte, os editores
reúnem trabalhos cuja prática é a abordagem crítica de textos, dentre eles artigos
dos próprios editores e de outros teóricos que usam a lingüística sistêmica como
ferramenta de análise (con)textual.
A segunda obra é de Wodak e Meyer (2001) que reúne trabalhos de autores
proeminentes cujos princípios teóricos de abordagem de discurso possibilitam configurá-los como parte de um terreno comum, ainda que seus métodos de descrição
do mesmo objeto de estudo sejam os mais diversos, variando de ferramenta dos
estudos cognitivos até as ferramentas de análise sistêmico-funcional. Vale a pena
iniciar a leitura deste volume pelos dois artigos iniciais, dos editores. O primeiro
deles, de Ruth Wodak, traça o desenvolvimento histórico da LC até tornar-se mais
conhecida como ACD, aborda os principais conceitos e faz considerações sobre os
desenvolvimentos desta abordagem. É curioso ressaltar as escolhas de itens lexicais,
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
25
Parte I – Caminhos Teóricos • Percursos das Abordagens Discursivas Associadas à Lingüística Sistêmica Funcional
usadas pela autora ao longo do artigo, para definir ou se referir à ACD: estas variam
de teoria, abordagem, escola, paradigma de AD, pesquisa, grupo, dentre outras. Para
além da instabilidade na representação da ACD, o que o artigo desenvolve muito
bem é a noção de que o interesse dos pesquisadores de ACD estabelece-se em torno
de questões sociais em que está envolvida a naturalização de ideologias e abuso
de poder e em torno de uma agenda de intervenção e mudança social por meio do
estudo das instâncias de discurso. O segundo, de Michael Meyer, parece reconhecer
a dificuldade de nomear a ACD como teoria, método ou política devido à diversidade
de teorias às quais os analistas se afiliam e de métodos que usam para atingir o seu
propósito de análise. O autor introduz os conceitos de posicionamento ou posição que
parecem contemplar a diversidade inerente da ACD sem, contudo, deixar de ressaltar
os princípios básicos e comuns que permitem o mapeamento de um terreno comum
para as diferentes abordagens.
Finalmente, a terceira obra, de Weiss e Wodak (2003), traz uma introdução dos
editores com reflexões sobre a formação de teorias em um nível mais geral e sobre
a formação da ACD como teoria multifacetada. Os autores também ressaltam a
multiplicidade de métodos usados pelos analistas para abordar suas três questões de
interesse principais: o discurso, a ideologia e o poder. O movimento interdisciplinar
da ACD para dar conta destas questões, terminando por propor uma abordagem
baseada num conceito de “contexto” com quatro níveis: o primeiro, de descrição
imediata da linguagem; o segundo, de relação intertextual e interdiscursiva entre
os textos, gêneros e discursos; o terceiro, das variáveis extralingüísticas sociais
relativas aos contextos de situação específicos das instituições onde a linguagem
é usada e, o quarto, os contextos sociopolíticos e históricos em que as práticas
discursivas institucionais se encaixam.
As coletâneas de Teun van Dijk e de Debora Schriffin, Debora Tannen e Heidi
Hamilton; o reader de Adam Jaworski e de Nicholas Coupland se preocupam em
reunir trabalhos visando à configuração e à legitimação do campo de AD, como
exposto acima, os quais têm como objeto de interesse quaisquer unidades maiores
que a frase e perspectivas as mais variadas em relação a estas unidades. As coletâneas que focalizam a ACD, dentro, ou talvez já constituindo um espaço que se
configura para além da AD, reúnem trabalhos de pesquisadores que se interessam
pelo discurso como prática social, que têm um posicionamento comum frente à
questão do discurso, mas que o abordam a partir das mais diversas combinações
teóricas interdisciplanares e usando os mais diversos métodos de análise textual. Na
próxima seção, volto-me para a revisão de publicações que se preocupam em reunir
trabalhos de AD que têm afiliação teórica explícita com a LSF e que a utilizam, em
graus variados, como teoria/método base para atingir seu objetivo acadêmico.
26 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Célia Maria Magalhães
Abordagens Discursivas e a SFL
Nesta seção, pretendo citar, ainda que brevemente, seis obras. Apenas uma
delas é uma coletânea de trabalhos de ACD com base sistêmica. As demais são
descrições de abordagens de AD que partem da sistêmica como teoria/método de
análise textual para expandir seus horizontes de análise, cada uma definindo muito
bem as especificidades do seu terreno dentro do mapa de AD.
Inicio com Kress e van Leeuwen (1996) que constroem, a partir da gramática
funcional, uma gramática do design visual, com foco na análise de imagens. Em
Kress e van Leeuwen (2001) os autores tratam de expandir o que antes denominaram
de gramática para o que chamam de discurso multimodal, focalizando os vários
modos e mídias da comunicação contemporânea. As duas obras e várias outras,
que não serão listadas aqui tendo em vista o escopo do artigo, concentram-se,
pois, nos mais variados “recursos semióticos” que reproduzem e simultaneamente
ajudam a construir significados no mundo contemporâneo das multimídias e são
reconhecidas no mundo acadêmico como Análise Multimodal do Discurso (AMD)
ou Teoria da Multimodalidade.
No ano de 2003, há, pelo menos, três publicações de relevo a listar. A primeira é
de Fairclough (2003), que descreve sua abordagem de linguagem como pesquisa de
cunho social, transdisciplinar, com teoria e métodos próprios, cujo interesse principal
é o discurso, e que, por isso, tem como base a análise textual fundamentada na LSF. A
segunda é de Kress (2003), a qual, com objetivos educacionais, volta-se para questões
do letramento, produção e compreensão de textos na escola numa época em que os
textos são cada vez mais multimodais. A proposta do autor inclui um quadro teórico
para o letramento na escola na era da multimodalidade e da multimídia, com foco
numa teoria social de gênero. A terceira é Working with discourse: meaning beyond
the clause, de Martin e Rose (2003), cuja preocupação é a interpretação do discurso
social por meio da análise de textos em contextos sociais. Os autores consideram,
de saída, tanto a oração, quanto o texto e a cultura como processos sociais que se
desenvolvem em diferentes momentos históricos. Sua proposta é, pode-se dizer, uma
expansão do modelo de Martin (1992) em direção a uma abordagem hoje já conhecida
como Análise Positiva do Discurso (APD), fortemente baseada na análise de registro,
gênero e contexto social. Os autores fecham o livro apresentando as diferenças de
posicionamentos de sua abordagem, da AMD e da ACD; entretanto, chamando muito
mais atenção para a possibilidade de conexões entre as abordagens.
Finalmente, antes de fechar esta seção, listo a edição de Young e Harrison
(2004) de uma coletânea de artigos cujo interesse de estudo é a mudança social.
Para abordar suas questões de pesquisa as quais envolvem o(s) discurso(s), os
autores ali reunidos fazem uso da escola de ACD que tem como base a teoria da
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
27
Parte I – Caminhos Teóricos • Percursos das Abordagens Discursivas Associadas à Lingüística Sistêmica Funcional
LSF para análise de textos em contextos sociais. O livro divide-se em três seções,
a primeira dedicada à teoria, incluindo variação discursiva, sistemas de avaliação
de sentido, representação de poder e base sociológica para a análise (con)textual
fundamentada na Sistêmica; a segunda e a terceira reunindo trabalhos que focalizam questões de identidade nacional e institucional, respectivamente. Por fim, van
Leeuwen (2005) é uma obra de introdução à Semiótica Social crítica que define
os princípios semióticos os quais norteiam a abordagem tais como os recursos, a
mudança, as regras e as funções (associadas às funções hallidayanas); as dimensões da análise semiótica, incluindo discurso, gênero, estilo e modalidade, além
de preocupar-se com recursos de coesão multimodal, como o ritmo, a composição,
a ligação de informação e o diálogo.
Até aqui, meu propósito foi traçar brevemente um mapa para o campo de análise
do discurso, destacando a LSF como teoria precursora e alimentadora de novas
abordagens dentro desse campo, incluindo as abordagens iniciadas ou criadas por
pesquisadores, ou de “background” inglês, ou cuja língua habitual de publicação
seja o inglês, ou ainda outros pesquisadores que não se encaixem nas duas primeiras categorias, mas que já têm seus trabalhos aceitos no circuito acadêmico
internacional. Na próxima e última seção, tento explicar brevemente um projeto de
mapeamento e referenciação, iniciado por um grupo de pesquisadores brasileiros e
portugueses, de trabalhos de pesquisa cujo interesse seja o discurso como prática
social, publicados em Língua Portuguesa ou Inglesa.
Mapeamento e Referenciação de Trabalhos de
Brasileiros e Portugueses
Foi realizado, na UnB, em outubro de 2004, o VII Encontro Nacional de Interação em Linguagem Verbal e Não-Verbal e I Simpósio Internacional em Análise
de Discurso Crítica (sendo este o título usado pelo grupo de pesquisadore(a)s da
UnB que têm promovido o evento há sete anos), com a participação representativa de pesquisadore(a)s brasileiro(a)s, e de pesquisadores de Portugal, Espanha,
Inglaterra e Estados Unidos. Neste encontro, ficou evidenciado que, desde a publicação, no Brasil, dos primeiros trabalhos de pesquisadoras pioneiras da UnB e da
UFSC (Magalhães, I., 1986; Caldas-Coulthard, 1993), usando abordagens
de AD e/ou afiliadas à LSF, o número de trabalhos de brasileiros e portugueses,
orientados e publicados dentro do campo de estudos, em universidades diversas,
aumentou consideravelmente. Há diversos grupos de pesquisadores brasileiros no
contexto nacional, como é o exemplo da PUC/SP, da UFSC, da UNISUL, da UFRJ e
da UFMG. O grupo de pesquisa da UnB edita, há vários anos, a Revista linguagem
e sociedade, com amplo espaço para publicações do campo de estudos em questão,
28 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Célia Maria Magalhães
e lança agora o livro Olhares em análise de discurso crítica, em que ora publico este
trabalho. Para citar apenas as coletâneas cujo título inclui o rótulo “ACD” em Língua
Portuguesa, há a coletânea Pedro (1997), dividida em duas partes, a primeira com
tradução de textos fundacionais de ACD e a segunda com trabalhos de aplicação
da abordagem por pesquisadores portugueses; há, ainda, a coletânea Magalhães
(2001), com a tradução de um texto de Norman Fairclough e com aplicações de
abordagens de ACD por professores, doutorandos e mestrandos. Mais recentemente,
foram publicados dois volumes especiais de periódicos tematizados como ACD,
Caldas-Coulthard e Figueiredo (2004) e Magalhães, I. e Rajagopalan (2005), reunindo trabalhos de pesquisadores nacionais, além de traduções de outros textos
escritos originalmente em Língua Inglesa; e o volume do periódico organizado por
Heberle e Meurer (2004), reunindo trabalhos, a maioria de brasileiros, de afiliação
teórica com a LSF.
Na reunião de encerramento do Encontro, citado anteriormente, foi lançada
a idéia de integrarem-se o(a)s pesquisadore(a)s brasileiro(a)s e portuguese(a)s
em uma lista de discussão dos termos da área, com base em textos fundacionais
traduzidos no Brasil e em Portugal. Tal idéia se inspirou no trabalho da equipe da
PUC/SP e da Universidade de Lisboa, que fez o caminho inverso, criando uma lista
de discussão de termos na área da Lingüística Sistêmica, com o fim de padronizar
a terminologia e de traduzir a gramática funcional de Halliday (1985).
Em 2005, elaborei uma proposta de projeto de mapeamento e de referenciação cujo objetivo geral é o mapeamento do campo de estudos Análise Crítica do
Discurso, dentro do escopo do grupo de pesquisa Corpus Discursivo para Análises
Lingüísticas e Literárias (CORDIALL), da UFMG. Tal projeto focaliza trabalhos de
pesquisadores brasileiros e portugueses cujo interesse de pesquisa é o discurso
como prática social, que foi acolhido pelos demais grupos de pesquisadores. As
abordagens discursivas que o projeto tem em mente são aquelas afiliadas à LSF,
além de outras, cujo propósito de análise possa ser contemplado por sistemas
tridimensionais de discurso, representados nas Figuras 1 e 2, abaixo, idealizadas
com base em Hodge e Kress (1988) e Fairclough (1992):
Figura 1
Figura 2
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
29
Parte I – Caminhos Teóricos • Percursos das Abordagens Discursivas Associadas à Lingüística Sistêmica Funcional
Em ambas as representações, baseadas nos autores citados, é possível distinguir a
abordagem de análise em três dimensões, as dimensões do texto, gênero e discurso.
Na Fig. 1, todo evento em que a linguagem é usada como semiótica social há uma
mensagem que é produzida como texto, no plano da mímese, e interpretada como
discurso, no plano da semiose; o gênero representa uma dimensão de ligação entre
texto e discurso para permitir a interpretação desta última dimensão. Para o desenho
da Fig. 2, revisitei o quadro tridimensional de Fairclough (1992). Nesta representação, o interesse é muito mais sociológico do que semiótico, embora não se deixem
de lado os recursos semióticos usados para se construir o discurso. Por isso, temos
a dimensão do texto; a dimensão da prática discursiva, o reino das instituições e de
seus eventos discursivos que podem ser associados a gêneros, e a dimensão da prática social, o reino dos discursos, crenças, ideologias e poder. As representações de
Hodge e Kress e de Fairclough, ao fim e ao cabo, são apropriações e transformações
do modelo tripartite de Semiótica Social de Halliday em que a “linguagem” (texto)
é produzida em “contextos de situação” específicos em “contextos de cultura” mais
abrangentes, para criar “representações” e “relações interpessoais” por meio de
“mensagens”.
O projeto de mapeamento do campo de estudos no Brasil e em Portugal tem
como metas específicas:
1. A consolidação de uma lista consensual de termos, elaborada com base em
discussões de pesquisadore(a)s da UnB, PUC/SP, UFRJ, UNISUL, e UFSC
no âmbito nacional; do pesquisador Carlos Gouveia, da Universidade de
Lisboa, e da pesquisadora Carmen Rosa Caldas-Coulthard, da University of
Birmingham, no âmbito internacional, com base nos subsídios de traduções
já existentes para a Língua Portuguesa. Alguns exemplos da lista de termos
traduzidos até então levantados e que estarão disponíveis na lista de discussão no início do semestre letivo de 2006 são apresentados no Quadro 1,
abaixo:
Tradução
Original
“Aparelhos Ideológicos de Estado” (AIEs)
“Ideological State Apparatuses” (ISAs)
Agência
Agency
Agente
Agent
Agregação
Aggregation
Anacronismo
Anachronism
Análise da Conversação (AC)
Conversation Analysis (CA)
Análise de Discurso ”Abrangente”
“Comprehensive” Discourse Analysis
Apagamento
Deletion
Aspectos de polidez
Politeness features
30 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Célia Maria Magalhães
Assimilação
Assimilation
Associação
Association
Ator social
Social actor
Autonomização de enunciado
Uterrance autonomisation
Beneficiários
Beneficiaries
Categorização
Categorisation
Circunstância de acompanhamento
Circumstances of accompaniment
Circunstancialização
Circunstancialization
Classificação
Classification
Código elaborado
Elaborated code
Código restrito
Restricted code
Quadro 1. Lista bilíngüe de termos em ACD.
2. A compilação de resumos de dissertações, teses e artigos acadêmicos de
pesquisadore(a)s do Brasil e de Portugal no campo da ACD, com base nas
quais será gerada uma lista de termos que serão associados aos temas de
interesse dos referidos pesquisadores.
3. A criação de um banco de dados, a ser sediado pela FALE/UFMG, com um
diretório constituído pelos resumos e abstracts compilados, a lista de palavras-chave norteadora dos trabalhos de pesquisadore(a)s brasileiro(a)s e
portuguese(a)s e um diretório de textos que venham a ser publicados com
base no trabalho de mapeamento realizado e autorizados para divulgação na
página do projeto http://net.letras.ufmg.br/acd/. Conforme exposto acima, já
contamos com os periódicos e coletâneas citadas, dentre outras publicações
cujos resumos e termos serão referenciados.
Considerações Finais
Retomando a introdução deste trabalho, creio que os propósitos ali descritos
foram atingidos, pelo menos, dentro do escopo pretendido. Concentrei-me, em
primeiro lugar, nos textos fundacionais de Halliday e de outros seguidores de
sua teoria que contribuíram para difundir e criar escolas de análise do discurso
baseadas na LSF; fiz uma rápida descrição dos conceitos principais norteadores
dessas escolas; fiz uma breve revisão de coletâneas publicadas com trabalhos em
AD no âmbito acadêmico de Língua Inglesa; parti dessa revisão para apresentar,
de forma sucinta, algumas coletâneas que têm se concentrado na ACD como tema
e, ainda, abordagens de discurso de pesquisadores contemporâneos que têm como
teoria e método de análise textual a LSF. Por fim, relatei o esforço conjunto de
pesquisadores brasileiros e portugueses para iniciar o projeto de mapeamento e
referenciação dos trabalhos produzidos por seus grupos de pesquisadores, o qual
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
31
Parte I – Caminhos Teóricos • Percursos das Abordagens Discursivas Associadas à Lingüística Sistêmica Funcional
está em andamento e tem previsão para terminar ao final do ano de 2006. Como
todo trabalho de revisão teórica, o propósito é contribuir com os demais pesquisadores que se interessam pelo discurso com base nas perspectivas citadas, fazendo
referência a trabalhos e a termos-chave dessas perspectivas. Além disso, gostaria
de atingir o objetivo subsidiário de incentivar tais pesquisadores a participar do
projeto de mapeamento dos trabalhos brasileiros, incluindo no banco de dados os
seus resumos e abstracts e participando da lista de discussão dos termos traduzidos
para o português.
Referências Bibliográficas
BLOMMAERT, J. Discourse. Cambridge, UK: Cambridge University Press,
2005.
Caldas-Coulthard, C. R. From discourse analysis to critical discourse analysis:
theoretical developments. In: Trabalhos em lingüística aplicada, v. 21, jan./jun.
1993, p. 49-62.
Caldas-Coulthard, C. R.; COULTHARD, R. M. (Eds.). Texts and practices:
readings in critical discourse analysis. London, New York: Routledge, 1996.
CALDAS-COULTHARD, C. R.; FIGUEIREDO, D. C. (Orgs.). Análise crítica do
discurso. Linguagem em (dis)curso, v. 4, Número Especial, 2004.
COULTHARD, R. M. An introduction to discourse analysis. London: Longman,
1977.
COULTHARD, R. M. (Ed.). Advances in spoken discourse analysis. London, New
York: Routledge, 1992.
________________. (Ed.). Advances in written text analysis. London, New York:
Routledge, 1994.
COUPLAND, N.; JAWORSKI, A. Sociolinguistics: a reader and coursebook. St.
Martin’s Press, 1997.
EGGINS, S. An introduction to systemic functional linguistics. London, New
York: Continuum, 1994.
FAIRCLOUGH, N. Language and power. London, New York: Longman, 1989.
_______________. Discourse and social change. Oxford, UK; Cambridge, MA:
Polity Press and Blackwell, 1992.
_______________. New labour, new language? London: Routledge, 2000.
32 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Célia Maria Magalhães
_______________. Analysing discourse: textual analysis for social research. London, New York: Routledge, 2003.
FOWLER, R. et al. Language and control. London, Boston, Henley: Routledge
& Kegan Paul, 1979.
FOWLER, R. Essays on style and language: linguistic and critical approaches to
literary style. London: Routledge & K. Paul, 1966.
_________. Literature as social discourse: the practice of linguistic criticism.
Bloomington: Indiana University Press, 1981.
HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, R. Cohesion in english. London: Longman,
1976.
___________________. Language, text and context: aspects of language in a
social semiotic perspective. Australia: Deakin University Press, 1985.
HALLIDAY, M. A. K. Language as social semiotic: the social interpretation of
language and meaning. London, New York, Melbourne, Auckland: Edward Arnold, 1978.
_________________. An introduction to functional grammar. London: Edward
Arnold, 1985/1994.
HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. An introduction to functional grammar.
London: Edward Arnold, 2004.
HEBERLE, V.; MEURER, J. L. (Orgs.). Systemic Functional Linguistics in Action.
Revista Ilha do Desterro, Florianópolis, n. 46, jan./jun. 2004.
HODGE, R.; KRESS, G. Social semiotics. Ithaca, NY: Cornell University Press,
1988.
Jaworski, A.; Coupland, N. The discourse reader. London, New York: Routledge, 1999.
KRESS, G. Linguistic processes in sociocultural practice. Oxford, UK: OUP, 1985.
_________. Literacy in the new media age. London, New York: Routledge, 2003.
KRESS, G.; HODGE, R. Language as ideology. London, Boston, Henley: Routledge & Kegan Paul, 1979.
KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design.
London, New York: Routledge, 1996.
___________. Multimodal discourse: the modes and media of contemporary
communication. London, New York: Arnold, 2001.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
33
Parte I – Caminhos Teóricos • Percursos das Abordagens Discursivas Associadas à Lingüística Sistêmica Funcional
LEECH, G.; SHORT, M. Style in fiction: a linguistic introduction to english fictional prose. London; New York: Longman, 1981.
MAGALHÃES, Célia. Reflexões sobre a análise crítica do discurso. Belo Horizonte:
FALE-UFMG, 2001.
Magalhães, I. Por uma abordagem crítica e explanatória do discurso. Revista
Delta, v. 2, n. 2, 1986, p. 181-205.
MAGALHÃES, I.; RAJAGOPALAN, K. (Orgs.). Análise Crítica do Discurso. Revista
Delta, v. 21, Especial, 2005.
MARTIN, J. R. English text: system and structure. Philadelphia, Amsterdam:
John Benjamins, 1992.
MARTIN, J. R.; ROSE, D. Working with discourse: meaning beyond the clause.
London, New York: Continuum, 2003.
Mills, Sara. Discourse. London, New York: Routledge, 1997.
PAGANO, A. S. Abordagens sistêmicas da tradução. São Paulo: Contexto, no prelo.
PEDRO, E. R. (Ed.). Análise crítica do discurso. Lisboa: Editorial Caminho, 1998.
SCHRIFFIN, D.; TANNEN, D.; HAMILTON, H. E. (Eds.) The handbook of discourse
analysis. USA, UK e Australia: Blackwell Publishing, 2001.
SCHRIFFIN, D. Approaches to discourse. London: Blackwell, 1994.
SINCLAIR, J. McH.; COULTHARD, R. M. Towards an analysis of discourse: the
english used by teachers and pupils. Oxford, UK: OUP, 1975.
van Dijk, T. A. (Ed.). Handbook of discourse analysis: disciplines of discourse.
Academic Press, 1985.
_______________. (Ed.). Handbook of discourse analysis: dimensions of discourse. Academic Press, 1985.
_______________. (Ed.). Handbook of discourse analysis: discourse analysis in
society. Academic Press, 1985.
_______________. (Ed.). Handbook of discourse analysis: discourse and dialogue.
Academic Press, 1985.
_______________. (Ed.). Discourse as social interaction. London, Thousand Oaks,
New Delhi: Sage Publications, 1997a.
_______________. (Ed.). Discourse as structure and process. London, Thousand
Oaks, New Delhi: Sage Publications, 1997b.
34 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Célia Maria Magalhães
VAN LEEUWEN, T. Introducing social semiotics. London, New York: Routledge,
2005.
WEISS, G.; WODAK, R. (Eds.). Critical discourse analysis: theory and interdisciplinarity. London, New York: Palgrave MacMillan, 2003.
Wodak, R.; Meyer, M. (Eds.). Methods of critical discourse analysis. London,
Thousand Oaks, New Delhi: Sage, 2002.
YOUNG, L.; HARRISON, C. Systemic functional linguistics and critical discourse
analysis: studies in social change. London, New York: Continuum, 2004.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
35
Parte II
discurso e IDENTIDADE
Francisca Cordélia Oliveira da Silva
Georgina Amazonas Mandarino
Walkyria Wetter Bernardes
O USO DE METÁFORAS E A CONSTRUÇÃO
DE IDENTIDADES ÉTNICAS
Francisca Cordélia Oliveira da Silva* (UnB)
Resumo: O artigo trata de metáforas usadas em textos sobre cotas para negros nas
universidades brasileiras e do modo como essas metáforas são usadas para constituir
as identidades dos negros. As expressões metafóricas, em sua maioria, traduzem
idéias de inferioridade da etnia negra e expressam ideologias naturalizadas em nossa
sociedade.
Palavras-chave: Negros; Metáforas; Identidades; Análise de Discurso Crítica (ADC).
Abstract: The text deals with used metaphors in texts on quotas for blacks in the Brazilian
universities and the way as these metaphors are used to constitute the identities of the
blacks. In its majority, the metaphorical expressions translate ideas of inferiority of the
black etnia and express ideologies naturalized in our society.
Keywords: Blacks; Metaphors; Identities; Critical Discourse Analysis (CDA).
Apresentação de Idéias
A
s sociedades estruturam-se partindo de “idéias” que parecem naturais e que
parecem surgir do nada (ou de tudo) e que, por isso, geralmente, não são
questionadas. A ideologia é uma dessas “idéias” e sua manifestação ocorre por
meio de várias estratégias, como as metáforas.
Constituir-se como sujeito, ter e assumir identidades não é tarefa fácil, já que
implica aceitação e, algumas vezes, rejeição. Quando o sujeito pertence ao grupo
social majoritário, pode enfrentar barreiras e ter uma de suas identidades questionada. Entretanto, ao pertencer a um grupo minoritário, poderá encontrar barreiras em
vários momentos de sua constituição como sujeito. Surge dessa construção social
* Graduada em Letras, Mestre em Lingüística e Doutoranda em Lingüística pela Universidade de Brasília.
Atualmente ministra cursos de Graduação e de Pós-Graduação na área de Língua Portuguesa. E-mail:
[email protected].
Parte II – Discurso e Identidade • O Uso de Metáforas e a Construção de Identidades Étnicas
desigual a necessidade de pesquisar a construção da identidade de grupos minoritários, como negros e seus descendentes, objetivo desse artigo. Essas identidades
serão investigadas por meio das metáforas expressas em textos sobre o projeto de
cotas para negros nas universidades brasileiras. O corpus analisado circulou na
Internet nos momentos iniciais de debate sobre as cotas.
A análise empreendida responderá aos seguintes questionamentos:
• que metáforas são usadas em relação aos negros nos textos analisados?
• que identidades sociais essas metáforas constroem para os negros?
• que ideologias são reificadas com essas metáforas?
Como resultados, serão verificadas identidades socialmente enfraquecidas,
estigmatizadas, discriminadas, e o negro sendo representado como ser inferior,
submisso, subalterno e dominado.
O trabalho trata de uma perspectiva que se abre sobre a questão étnica no Brasil
e das relações identitárias e étnicas motivadas por questões históricas, por isso
provoca reflexões, ideologias naturalizadas.
Dos Caminhos Teórico-Metodológicos
Para empreender a análise e responder às questões propostas, alguns marcos
teóricos precisam ser balizados: o conceito de identidades, de ideologias, de metáforas e de Análise de Discurso Crítica (ADC).
A Análise de Discurso Crítica (ADC): um caminho a percorrer
A ADC apresenta vertentes críticas e não-críticas. Vieira (2002, p. 148) salienta
que os analistas do discurso, críticos ou não, têm em comum o fato de defenderem
“a inserção da linguagem em contextos sociais”. Na perspectiva crítica, Fairclough
(2001) propõe o uso da linguagem como prática social. Para tanto, devemos considerar que:
• o discurso é um modo de ação e um modo de representação;
• o discurso e a estrutura social têm relação dialética;
• o discurso é moldado pela estrutura social;
• os eventos discursivos variam segundo o domínio social em que são gerados;
• o discurso contribui para a constituição das dimensões da estrutura social;
• o discurso é uma prática de representação e de significação do mundo.
40 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Francisca Cordélia Oliveira da Silva
Para van Dijk (1997, p. 15-17), a ADC é um planejamento especial destinado a
estudar os textos orais e escritos. É uma área que apresenta princípios, práticas,
teorias e métodos de difícil delimitação. O autor apresenta alguns critérios que
caracterizam a ADC:
• trabalha mais com problemas socias relevantes que com paradigmas;
• é um posicionamento ou postura explicitamente críticos para estudar texto
escrito e falando;
• trabalha inter e multidisciplinarmente com a relação entre discurso e sociedade;
• é parte de amplo aspecto de estudos críticos sobre a humanidade e as ciências
sociais;
• não se limita ao estudo de discursos verbais;
• centra-se nas relações de poder, de dominação e de desigualdade e em suas
formas de reprodução ou de resistência;
• trabalha as estruturas e as estratégias discursivas de dominação e de resistência;
• estuda a ideologia e como ela reproduz a resistência, a dominação e a desigualdade;
• busca descobrir e divulgar as relações de dominação e as estratégias de manipulação, de legitimação e de criação de consenso;
• é uma postura de oposição ao poder e às elites;
• mantém postura solidária com relação aos grupos dominados.
Pedro (1998, p. 23) corrobora o pensamento de van Dijk (1997) ao apontar
que a ADC trabalha com a intelecção de textos social e culturalmente situados e
também com a “atenção a aspectos sociais, co-textuais e culturais que permitem a
garantia de categorias de explicação para a descrição de textos”.
Para Pedro (1998, p. 27-28), a ADC caracteriza-se pelos seguintes critérios:
• entender a linguagem como a mais importante prática social;
• entender o texto como resultado da ação dos falantes e escritores socialmente
situados, considerando as possibilidades de escolha que esses possuem, e o
poder e a dominação implícitos nessas escolhas;
• considerar que os participantes na produção dos textos desempenham papéis
desiguais;
• prever que os significados veiculados nos textos dependem da interação;
• mostrar que os traços lingüísticos são motivados socialmente;
• entender que a linguagem tem caráter histórico;
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
41
Parte II – Discurso e Identidade • O Uso de Metáforas e a Construção de Identidades Étnicas
• empreender análises baseadas na materialidade lingüística.
Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 3) reforçam a importância da perspectiva
crítica da linguagem na contemporaneidade e tratam do conceito de “modernidade
tardia”, que envolve uma série de mudanças sociais, políticas e econômicas que
afeta as sociedades. Traçam uma versão para a ADC batizada como “síntese mutante
de outras teorias”, a qual “enfatiza o discurso como elemento semiótico de prática
social, além de proporcionar uma crítica coerente da sociedade na modernidade
tardia e suas transformações, apontado na direção de uma complementação entre
a pesquisa social crítica e a ADC” (MAGALHÃES, 2001, p. 27). Ademais, os autores
apresentam a ADC como teoria e como método de análise das práticas sociais, o
que a diferencia das demais pesquisas sociais críticas.
Mais recentemente, Fairclough (2003, p. 3) aborda a linguagem como parte
irredutível da vida social, no entanto esclarece que não devemos reduzir a vida
social à linguagem, nem pensar que tudo é discurso, mas entender que a pesquisa
social tem a linguagem como foco e usa a ADC como método. Além disso, reitera
que a análise de textos é essencial para a área, uma vez que esses são eventos
sociais que geram mudanças em nossas crenças, atitudes, valores (FAIRCLOUGH,
2003, p. 8). Fairclough (2003) propõe-se a fornecer uma estrutura que seja útil às
pessoas envolvidas com as ciências sociais e humanas, de modo a sugerir como
desenvolver análises de língua e como melhorar as pesquisas sociais.
Fairclough, na mesma obra, oferece, ainda, introdução às análises sociais de
fala e de escrita, por considerar significativo o movimento em direção a estudos
da língua. Mas acredita que esses têm duas limitações: temas e tópicos de alcance
limitado. O autor pretende mostrar como um conjunto de análises lingüísticas pode
ser usado para investigar diversos temas de interesse dos estudos sociais.
Alguns pontos sobre ADC foram apresentados por serem essenciais para a análise
a ser empreendida, uma vez que essa ferramenta teórica e analítica sustentará a
análise. Interessa, especialmente, a noção de discurso como prática social, saber
que o discurso não é neutro, que é produto de situação histórico-social e produz
situação, também, histórica e social – o discurso molda a sociedade e é moldado
por ela.
Das identidades sociais
Para pesquisar e compreender como a identidade étnica tem sido construída
no Brasil, é preciso entender o que é identidade, qual a sua importância para os
indivíduos e para as coletividades sociais. Várias linhas de estudo procuram desvelar os meandros das identidades, buscando entendê-los e explicá-los, mas não
têm tido tarefa fácil.
42 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Francisca Cordélia Oliveira da Silva
Para entender alguns aspectos do conceito, principalmente sua relação com
o estabelecimento e a manutenção de identidades étnicas, uma pesquisa teórica
voltada para o conceito de identidades será apresentada, bem como sua relação
com as identidades étnicas.
Silva (2000, p. 74) entende identidades como “simplesmente aquilo que se é”.
Elas estabelecem-se principalmente por meio de diferenças, pois, para o autor, os
conceitos – identidades e diferença – têm relação direta, são inseparáveis, além de
serem social e culturalmente construídos por meio de atos de linguagem.
Para Torre (2002, p. 27), o conceito de identidades está relacionado com igualdade
e com diferença, com a possibilidade de identificar-se ou não. Para a autora:
... quando se fala da identidade de algo, faz-se referência a processos que nos
permitem supor que uma coisa, em um momento e contexto determinados, é
ela mesma e não outra coisa (igualdade relativa consigo mesma e diferença
– também relativa – com as outras), que é possível sua identificação e inclusão
em categorias e que tem uma continuidade (também relativa) no tempo.
Salienta, ainda, Torre (2002, p. 28) outra particularidade do conceito: as identidades podem ser consideradas em função de fronteiras e limites, de igualdades e de
diferenças que só têm sentido em determinado contexto. Tal fato ocorre, por exemplo,
quando as fronteiras e os limites, entre brancos, índios e negros, são fixados de modo
diferenciado em cada contexto cultural. Algumas culturas vão estabelecer limites
rígidos, com separações bem marcadas de ambientes e papéis; e outras, não.
No mundo contemporâneo, essas fronteiras estão cada dia mais fluidas, em
função das crises de identidades que caracterizam a pós-modernidade e das rápidas mudanças sociais que afetam as identidades sociais. Nesse sentido, Torre, na
mesma obra (p. 29), aponta que “os limites não são sempre essenciais, estáveis
ou totalmente objetivos, mas quase sempre relativos, cambiantes, emergentes e
socialmente construídos”. Além disso, eles podem ser mais ou menos objetivos e
reais ou mais ou menos subjetivos.
As identidades podem ser entendidas ainda como o elemento que dá ao indivíduo
um caráter de continuidade e que mantém um nível de integridade que o ajuda
a se diferenciar dos outros e a manter a estabilidade por meio de circunstâncias
diversas, de transformações e de trocas.
Seguindo outro ponto de vista, Woodward (2000, p. 38) aponta que as identidades podem ser entendidas como um núcleo essencial que distingue um grupo
do outro; ou como a intersecção de diferentes componentes (políticos, culturais
e históricos). Para a autora, erroneamente, as identidades são vistas como fixas e
móveis, como construto imutável. Corrobora o pensamento da autora o fato de as
identidades serem produzidas em momentos particulares no tempo.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
43
Parte II – Discurso e Identidade • O Uso de Metáforas e a Construção de Identidades Étnicas
Torre (p. 29), indo ao encontro do pensamento de Woodward, afirma que as
identidades não são para sempre, e que a diferença ocorre com relação aos outros
e com relação a elas mesmas, devido às transformações no tempo. Assim, para a
autora, “a continuidade e a ruptura são dimensões fundamentais das identidades”,
uma vez que trocas e mudanças sempre estão acontecendo.
Importa, ainda, pensar nas dicotomias ou nas oposições binárias que a construção
das identidades pressupõe, pois as identidades são estabelecidas pela constatação
de diferença, que ocorre por meio de sistemas simbólicos de representação, de
exclusão social e de oposição de um grupo a outros (WOODWARD, 2000, p. 39).
Um ponto consensual entre os pesquisadores é que as identidades não são um
processo acabado, elas estão, por meio da linguagem, em constante construção e
reconstrução. Assim, a linguagem é constitutiva do ser humano. E as identidades só
adquirem sentido pela linguagem e pelos sistemas simbólicos que as representam
(WOODWARD, 2000, p. 8).
O último ponto a observar é que as identidades não são unificadas, são fragmentadas e nelas podem ocorrer contradições, com as quais o sujeito precisa
lidar, aprendendo a negociar as diferentes identidades que exerce. Esses conflitos
de identidade podem desencadear crises de identidade, que se relacionam com a
fluidez dos papéis que desempenhamos ou tentamos desempenhar. Woodward
(2000, p. 19-20) aponta que as identidades passam por crises que afetam o âmbito
pessoal, o local, o global e o político.
As identidades são, ainda, conceitos culturalmente definidos, pois cada cultura
produz identidades individuais e sociais específicas. Essas representações incluem
as práticas de significação e os sistemas simbólicos, que produzem significados e
posicionam os sujeitos. Na modernidade, elas são perpassadas por fatores comuns
motivados pela Globalização, que, além de produzir novas identidades, provoca
mudanças nas existentes.
Quanto às identidades étnicas e culturais, elas formam-se e transformam-se pela
atribuição de etiquetas e do discurso narrativo próprio, em que as elites políticas
podem desempenhar um papel decisivo” (CHAVEZ, 2002, p. 47). Para corroborar
esse ponto de vista, West (2002, p. 9) aponta que o repúdio às minorias, diretamente
ligado ao discurso étnico, é secularmente manifestado pelas classes hegemônicas,
que tratam os membros das minorias como sendo seres degradados, odiados, oprimidos, explorados, marginalizados e desumanizados.
Além disso, as ideologias da supremacia branca atacam a inteligência, a beleza, a capacidade e o caráter do negro, que precisa fazer esforços persistentes para
reagir a essa construção social que ocorre por meio do discurso (WEST, 2002, p.
10). As práticas de supremacia branca, sustentadas pelas autoridades culturais da
44 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Francisca Cordélia Oliveira da Silva
igreja, pela mídia e pelos meios científicos, promoveram a inferiorização do negro e
constituíram-se em pano de fundo que levou às lutas dos negros por sua identidade
(respeito, confiança e estima) e por recursos econômicos.
Assim, as identidades culturais, nacionais, étnicas e sexuais são construídas por
meio de símbolos de unidade – cultura comum, linguagem, gênero. Tais elementos,
ao mesmo tempo que agrupam os indivíduos, também os dispersam, evidenciando
suas diferenças (KOUNDOURA, 2002, p. 16). Ao Concordar com esse ponto de
vista, é que pretendo verificar como metáforas usadas em textos sobre cotas nas
universidades ajudam a construir as identidades étnicas do negro no Brasil.
Da ideologia
A ideologia é um aspecto essencial para o entendimento da construção e da
representação das identidades. Entender o conceito de ideologia não é fácil, tanto
que Eagleton (1997, p. 15) afirma que “a palavra ideologia é, por assim dizer, um
texto, tecido com uma trama inteira de diferentes fios conceituais; é traçado por
divergentes histórias”. Entretanto, ao pesquisar identidades, é impossível fugir do
conceito de ideologia. Por isso, breve discussão sobre ela será apresentada.
O termo ideologia apareceu, em 1801, citado por Destutt de Tracy. O autor
pretendia “elaborar a ciência da gênese das idéias, tratando-as como fenômenos
naturais que exprimem a relação do corpo humano, enquanto organismo vivo, com
o meio ambiente” (CHAUI, 2001, p. 25).
Mais tarde, Marx (apud CHAUI, 2001, p. 25) afirma que ideólogo é “aquele que
inverte as relações entre as idéias e o real”. Atribui Marx ao termo sentido negativo, de ciência fora da realidade e postula que ela nasce da divisão entre trabalho
material e trabalho intelectual.
Chaui (2001, p. 82) considera que a ideologia é:
... um conjunto lógico e coerente de representações (idéias e valores) e de normas
ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade
o que devem pensar e como devem pensar, o que valorizar e como devem
valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como
devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático
(normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador.
Chaui (2001, p. 23-24) mostra que a ideologia é o ocultamento da realidade e
“por seu intermédio, os dominantes legitimam as condições sociais de exploração,
fazendo com que pareçam verdadeiras e justas”.
Outro enfoque sobre ideologia é mostrado por Althusser (2001, p. 67), que
define ideologia como “um sistema de idéias, de representações, que domina o
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
45
Parte II – Discurso e Identidade • O Uso de Metáforas e a Construção de Identidades Étnicas
espírito de um homem ou de um grupo social”. Aponta, ainda, Althusser (2001,
p. 67) a existência de aparelhos que fazem com que o Estado se perpetue como
força dominadora. São eles os Aparelhos Repressores do Estado (AREs) e os Aparelhos Ideológicos do Estado (AIEs) que agiriam pela força, eventualmente, e pela
ideologia (sempre).
É relevante mencionar que Althusser afirma que é nas instituições (AIE) que as
ideologias se realizam e se confrontam, mas elas ultrapassam essas, já que AIEs
não se originam nelas, mas nas classes que elas representam. A ideologia, para
Althusser, é um aprofundamento do que a ideologia era para Marx e Engels. Ambos
os autores pensam a ideologia pelo prisma da luta social, política e econômica que
envolve as classes sociais.
Seguindo outro caminho de análise, van Dijk (1998) apresenta algumas possíveis
concepções de ideologia:
• as ideologias1 são crenças falsas;
• as ideologias escondem as relações sociais verdadeiras e servem para enganar
os outros;
• as ideologias são crenças que têm os outros;
• as ideologias pressupõem definições de verdade e de mentira cuja natureza
serve social e politicamente a seus próprios interesses.
Em Racismo y análisis crítico de los medios (1997, p. 266), o autor aponta outras
tentativas de definição para ideologia:
• “as ideologias representam o conjunto de interesses variados dos grupos sociais, como sua ideologia, suas tarefas, objetivos, valores, posição e recursos
sociais”;
• “as ideologias são um conjunto de esquemas de que dispõe um grupo e que
trata de si mesmo e de suas posições na estrutura social”;
• “as ideologias apontam a base avaliativa das práticas sociais, incluindo o
discurso, ainda que sua influência seja, por definição, indireta”;
• “uma ideologia controla o desenvolvimento, a troca e a organização de um
conjunto de atitudes compartilhadas socialmente que, por sua vez, controla
opiniões sobre os eventos sociais representados por modelos pessoais dos
atores sociais”.
1
Em seus trabalhos, van Dijk usa o termo ideologia sempre no plural, por isso a mudança no uso do
termo nesta seção do artigo.
46 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Francisca Cordélia Oliveira da Silva
Nos vários enfoques, a ideologia associa-se com noções variadas de poder e
de dominação e van Dijk (1998, p. 18) acrescenta que uma teoria que trabalhe
com a ideologia deve ser multidisciplinar (uma vez que o conceito perpassa várias
áreas de estudo) e crítica (pois busca articular uma posição explicitamente fora
do debate acadêmico para explicar e para entender as relações de dominação e de
desigualdade social).
Para van Dijk (1998, p. 21), é essencial entender a ideologia com base em um
triângulo conceitual e disciplinar que envolve cognição, sociedade e discurso. Para
propor esse enfoque teórico, o autor considera que:
• as ideologias pertencem ao “campo simbólico do pensamento” e das crenças,
a que se associa a idéia de cognição;
• “as ideologias são indubitavelmente de caráter social e com freqüência estão
associadas com interesses, conflitos e lutas de grupos”;
• a ideologia é, modernamente, associada ao uso da linguagem e ao discurso,
visto que as funções primordiais das ideologias (ocultamento, legitimação e
outras) são práticas sociais discursivas.
Com base em outro prisma de análise, Thompson (1995) cria uma acepção “alternativa” de ideologia, porque se propõe a ultrapassar o caráter histórico de seu
estudo. O autor frisa que a Ideologia é “sentido a serviço do poder”. A concepção
de Thompson (1995, p. 76) é crítica, pois, para o autor, “estudar ideologia é estudar
as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação”. A visão do autor é, ao meu ver, a conjugação de aspectos das visões de
Althusser e Marx, mas, considerando pontos fundamentais da contemporaneidade
(mídia, globalização, pós-modernidade), é a visão que melhor se aplica à análise
aqui apresentada.
Como visto, o termo ideologia apresenta nuances diversificadas e até divergentes.
O conceito é terreno arenoso, no qual podemos afundar sem chegar a um conhecimento seguro e sistemático. No entanto, buscar entender como ela se manifesta,
se naturaliza, é essencial para entender o discurso étnico no Brasil.
Das metáforas
Lakoff e Johnson (2002, p. 45) afirmam que o senso comum trata a metáfora
como um recurso de linguagem extraordinariamente utilizado pelas pessoas, no
entanto, para os autores, “a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, não somente
na linguagem, mas no pensamento e na ação”. Assim, para os autores, “a essência
da metáfora é compreender e experienciar uma coisa em outra”.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
47
Parte II – Discurso e Identidade • O Uso de Metáforas e a Construção de Identidades Étnicas
Estruturamos nosso sistema conceptual partindo de metáforas. Ao mesmo tempo,
quando realizamos essa estruturação, estamos desprezando conceitos “que sejam
inconsistentes com essa metáfora” (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 53). Por isso,
“quando dizemos que um conceito é estruturado por uma metáfora, queremos
dizer que ele é parcialmente estruturada e que ele pode ser expandido de algumas
formas e não de outras” (idem, p. 57).
As metáforas podem ser denominadas, consoante Lakoff e Johnson (2002), como
metáforas estruturais, uma vez que um conceito é estruturado em termos de outros,
ou metáforas orientacionais, as quais se relacionam com orientação espacial. Os
autores apresentam uma série de metáforas estruturais, que são:
• feliz é para cima; triste é para baixo;
• consciente é para cima; inconsciente é para baixo;
• saúde e vida são para cima; doença e morte são para baixo;
• racional é para cima; irracional é para baixo;
• virtude é para cima; depravação é para baixo;
• bom é para cima; mau é para baixo;
• status superior é para cima; status inferior é para baixo;
• ter controle ou força é para cima; estar sujeito a controle ou força é para baixo;
• mais é para cima; menos é para baixo.
Os autores apontam que a construção desse sentido metafórico não é aleatória ou casual, ao contrário, é motivada, pois está enraizada na experiência física
e cultural, além de estar estabelecida sobre bases sociais, por isso afirmam que
“nenhuma metáfora pode ser empreendida ou até mesmo representada de forma
adequada, independentemente de sua base experiencial” (p. 68).
Pautados na relatividade cultural das metáforas, afirmam ainda que “os valores
fundamentais de uma cultura serão coerentes com a estrutura metafórica dos conceitos fundamentais dessa cultura.” Assim, as metáforas orientacionais ocorrerão,
de um modo geral, em todas as culturas, mas o modo como serão organizados e a
hierarquia que receberão variarão de uma realidade cultural para outra.
Voltando às metáforas orientacionais apresentadas acima, quatro delas chamam
a atenção quando pensamos na questão étnica no Brasil e, por isso, serão relacionadas aos textos analisados. São elas:
• racional é para cima; irracional é para baixo;
• ter controle ou força é para cima; estar sujeito a controle ou força é para baixo;
• mais é para cima; menos é para baixo.
48 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Francisca Cordélia Oliveira da Silva
Deter-me-ei nessas metáforas devido ao fato de elas estarem intimamente relacionadas ao corpus analisado e por, direta ou indiretamente, refletirem parte da
ideologia e da construção de identidades que procuro delinear.
Da metodologia de análise textual
Pensando na importância do ato de pesquisar e de mostrar resultados, a metodologia de base qualitativa será utilizada, uma vez que, desse prisma, é mais
viável interpretar a realidade social estampada nos textos.
Na coleta de dados, baseei-me nos passos detalhados a seguir:
• coleta de textos sobre as cotas nas universidades na Internet durante o segundo semestre de 2002 e durante todo o ano de 2003. A busca realizada nos
sites Google e Cadê;
• seleção para análise: dois artigos sobre o projeto de cotas para negros nas
universidades e de uma pesquisa na qual as pessoas podiam opinar sobre as
cotas.
Os textos selecionados para análise foram:
1 ou T1 – O meu sem quotas, por favor!
2 ou T2 – Entre quotas e piadas
Enquete: – “Você é a favor da reserva de vagas para negros nas universidades
brasileiras?”
Da análise qualitativa de dados
Bauer e Gaskell (2003, p. 19) apontam que, em pesquisa social, há quatro
dimensões possíveis de investigação, que descrevem o processo de pesquisa em
termos de combinações de elementos. São elas:
• os princípios de delineamento;
• a geração de dados;
• a análise de dados e os interesses de conhecimento.
Quanto aos tipos de dados, Bauer e Gaskell (2003, p. 21) afirmam que a pesquisa
social apóia-se em dados sociais, “dados sobre o mundo social”, que resultam na
construção de processos comunicativos, que podem ser formais (textos de jornais,
revistas; imagens de quadros; sons musicais) ou informais (entrevistas, desenhos
espontâneos, cantos). Nesta pesquisa, os dados são formais, uma vez que a análise
parte de textos formalmente estruturados.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
49
Parte II – Discurso e Identidade • O Uso de Metáforas e a Construção de Identidades Étnicas
Ao comparar pesquisa qualitativa com pesquisa quantitativa (idem, p. 23), os
autores estabelecem paralelo que aponta as principais diferenças entre as duas
modalidades. Os autores apontam a pesquisa quantitativa como uma pesquisa
hard, porque ela lida com dados numéricos e porque usa modelos estatísticos em
sua análise. A pesquisa qualitativa é considerada soft por evitar os números e por
interpretar realidades sociais.
Apesar de comparar e até de opor os dois métodos, os autores esclarecem que
“não há quantificação sem qualificação”, posto que, para quantificar, é necessário
primeiro qualificar os universos que serão quantificados. Afirmam, ainda, que “não
há análise estatística sem interpretação”, uma vez que os dados não falam por si
sós, pois precisam ser analisados e interpretados para gerar resultados.
Flick (2004, p. 20) aponta como aspectos essenciais da pesquisa qualitativa:
• a escolha correta de métodos e de teorias;
• o uso de diferentes perspectivas no reconhecimento e na análise e nas reflexões do pesquisador;
• a variedade de abordagens e de métodos.
Os métodos são variáveis e abertos, adaptando-se aos objetos de estudo, e não o
contrário. Além disso, a abordagem qualitativa considera a subjetividade do pesquisador e daqueles que, eventualmente, estejam sendo estudados. As reflexões do pesquisador são tão importantes que podem, inclusive, tornar-se dados de pesquisa.
O levantamento apresentado foi realizado como a intenção de mostrar o porquê
da escolha do método qualitativo de análise.
Das categorias analíticas
Após detalhar o método de análise, seguem as categorias analíticas trabalhadas.
Os textos escolhidos foram analisados à luz da teoria traçada por Fairclough (2001)
e Lakoff e Johnson (2002): a construção de metáforas. Partindo da linguagem e
dessas categorias analíticas, as identidades construídas para os negros e seus descendentes serão analisadas.
Sobre cotas e racismo
Primeiramente, precisamos considerar que o modo como o negro é visto e
representado pelo “outro” influencia o modo como ele vê e representa a si mesmo, pois o “eu” do negro forma-se, em parte, pelas representações que são feitas
dele pela sociedade. Isso fica evidente quando analisamos a forma como o negro
identifica-se nos Censos populacionais realizados no País. Em 1990, apenas 5%
50 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Francisca Cordélia Oliveira da Silva
da população entrevistada declarou-se negra. Em 2000, mais pessoas assumiram-se
negras, e o percentual aumentou para 6,2%. Entretanto, no Censo de 1980, houve
136 declarações diferentes de cor (CARONE; BENTO, 2002, p. 19), o que mostra a
dificuldade de nossa sociedade ver-se e identificar-se em uma etnia.
Assim, para fugir da auto-identificação, os entrevistados do Censo de 1980
recorreram a metáforas para representar a sua cor. A maioria dessas expressões
metafóricas é utilizada para representar a cor negra. Das 136 expressões usadas, 85
são listadas pelo site geocities.yahoo.com.br/zoiolou/formação. Dessas, apresento
aquelas que remetem, direta ou indiretamente, à etnia negra.
Quadro 1
A representação da população brasileira nos Censos
Acastanhada, alva escura, alvarenta, amarela queimada, amarelosa, amorenada, avermelhada,
azul, azul marinho, bem morena, branca melada, branca queimada, branca suja, melada,
mestiça, miscigenação, mista, morena bem chegada, morena bronzeada, morena canelada,
morena castanha, morena cor de canela, morenada, morena escura, morena fechada,
morenão, morena prata, morena roxa, morena ruiva, morena trigueira, moreninha, mulata,
mulatinha, negrota, parda, parda clara, pouco morena, preta, pretinha, quase negra,
queimada, queimada de praia, queimada de sol, retinta, rosa queimada, roxa, sapecada,
sarará,2 saraúba, tostada, trigo, trigueira,3 turva.
O uso de expressões metafóricas também ocorre quando, ao se referir ao negro,
as pessoas preferem usar a expressão “pessoa de cor” para mostrar uma “gentileza”, e silenciam sobre a forma negativa como a cor negra é vista pela sociedade.
Esse comportamento nos leva a constatar que a palavra “negro”, assim como o
que ela representa, é considerada “tão ruim que as pessoas sentem necessidade
de silenciar, amenizar o impacto causado por ela, por isso dizem que: “Ele não é
negro”, “É de cor” (BENTO, 1998, p. 48).
A cor negra é associada também a elementos negativos ou é usada para representá-los. Diz-se que “a coisa está preta” para representar uma situação difícil ou
problemática; “uma página negra da história” para representar um fato ruim ou
negativo; “período negro” para determinados períodos de nossa vida que foram
negativos; “mercado negro” para representar a venda ilegal de produtos.
Essas associações são encontradas ainda quando a cor negra é associada ao
mal, ao que é ruim; ou quando a figura do negro é associada a animais como o
macaco ou o gorila (BENTO, 1998, p. 48).
Diz-se da pessoa mestiça que, por pigmentação, tem o cabelo e a pele muito claros ou brancos; aço;
albino. (Rocha, 1996, p. 557).
3
Que tem a cor do trigo maduro; moreno (Rocha, 1996, p. 619).
2
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
51
Parte II – Discurso e Identidade • O Uso de Metáforas e a Construção de Identidades Étnicas
Vejamos como algumas metáforas aparecem nos textos analisados. Apresentarei
três conjuntos de metáforas, citados anteriormente, que aparecem nos textos com
maior incidência, são elas:
• racional é para cima; irracional é para baixo;
• ter controle ou força é para cima; estar sujeito a controle ou força é para baixo;
• mais é para cima; menos é para baixo.
“Racional é para cima; irracional é para baixo”
Uma das “justificativas” usadas para explicar a exploração do povo negro no
início do período de escravidão foi sua suposta inferioridade intelectual. Esse
pensamento balizava-se em avaliações que tomavam como referencial a cultura do
europeu branco e consideravam a cultura dos povos africanos subdesenvolvida.
A discriminação e o racismo são conceitos que apresentam variedade de uma
cultura para outra. “Cultura diz respeito à humanidade como um todo e ao mesmo
tempo a cada um dos povos, nações, sociedades e grupos humanos” (SANTOS,
1996, p. 8). Quando falamos em cultura, devemos pensar em grande variação,
em diversidade. No entanto, cada realidade cultural – mesmo diversa das demais
– faz sentido para aqueles que a vivem, pois cada uma delas tem lógica interna,
que se organiza por meio de suas práticas, costumes, concepções e eventuais
transformações.
Esse ponto é bastante relevante uma vez que a cultura é um conceito intimamente relacionado a poder, à ideologia e a identidades. Pois, como afirma ainda
Santos (p. 35), a cultura é uma marca das camadas dominantes da sociedade, logo
quem domina determina a cultura dominante.
Vejamos, agora, como a metáfora “Racional é para cima; irracional é para baixo”
aparece nos textos analisados:
1.Tal medida visa a selecionar os futuros portadores de diploma de nível
superior pelo seu desempenho intelectual e acadêmico. Na realidade,
o que se tem são universidades públicas altamente concorridas, cujas
vagas fatalmente vão aos egressos do melhor ensino médio, que não
raro está na rede privada. Portanto, a universidade pública tende a
servir aos estudantes de melhor renda. (T1)
O fragmento 1 justifica o vestibular por meio da primeira metáfora: o vestibular
selecionar os racionais, ou os intelectualmente preparados. Note-se que “superior”,
“desempenho”, “melhor” e “melhor” são usados para qualificar os estudantes
52 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Francisca Cordélia Oliveira da Silva
selecionados pelo vestibular sem a necessidade de cotas, tradicionalmente, os
brancos e a classe média e a média alta. Essa é a parcela da sociedade que tem
bom “desempenho intelectual e acadêmico”, logo é a parte racional, que está em
cima, é superior.
Por oposição, e por dedução, a parte que opta pelas cotas é “não-superior”,
“sem desempenho intelectual”, “egresso do pior ensino” e tem a “pior renda”. É a
parcela da sociedade que não é racional e está embaixo, na posição inferior.
Apresento, agora, três fragmentos que têm em comum o fato de a metáfora se
estabelecer de modo explícito, por meio de uma comparação:
2. O negro ainda hoje permite-se (sic) ser comparado a um ignorante que
só poderá passar na universidade se for pela porta dos fundos.
No exemplo 2, a metáfora ocorre quando o negro é comparado a um “ignorante”. Rocha (1996, p. 326) define como ignorância “falta de ciência, de letras ou de
informações. Estado de ignorante”. Bueno (1994, p. 583) apresenta, no verbete, a
seguinte acepção “desconhecimento, falta de estudos, ausência de conhecimentos”.
Logo o ignorante é “rústico, iletrado, inculto, bronco, rude”.
Como se pode ver, o uso do termo “ignorante”, conforme aparece no texto,
associa, diretamente, o negro a um ser pouco racional, que está “para baixo”, em
posição inferior. Além disso, preciso chamar a atenção para o uso de “pela porta
dos fundos”, expressão também negativa e que coloca, por meio da metáfora, o
negro em posição “para baixo”, pois, por oposição, os racionais entram “pela porta
da frente”, o que, em nossa cultura, é positivo.
3. ... como se os negros fossem incapazes de passar em um vestibular.
(T3)
4. O fato de reservar vagas para negros e pardos significa tratá-los como
seres diferentes do resto da humanidade, incapazes de competir em
posição de igualdade. (T3)
Nos trechos 3 e 4, o termo “incapazes” é usado para construir as metáforas.
Capaz é “competente, que desempenha bem os seus deveres, solerte, esperto”, segundo Bueno (1994, p. 225). Os textos apontam o termo “incapaz”, que é formado
pela adição do prefixo in- ao termo “capaz”, ou seja, compõem-se um termo que
nega o conceito de capaz, logo o negro é não-competente, não desempenha bem
seus deveres, não-solerte, não-esperto.
Temos, mais uma vez, a associação metafórica com a idéia de irracionalidade,
de não-capacidade, de estar “para baixo” que sugere a metáfora proposta por Lakoff
e Johnson (2002), citados anteriormente.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
53
Parte II – Discurso e Identidade • O Uso de Metáforas e a Construção de Identidades Étnicas
“Ter controle ou força é para cima; estar sujeito a controle
ou força é para baixo”
A metáfora de força e controle associa-se ao conceito de hegemonia. Ter força
e controle é ter poder e estar em cima na escala social. Não ter força e controle
é não ter poder e estar embaixo na escala social. Vejamos como essas idéias são
expressas por meio de metáforas nos textos:
5. O Quilombo dos Palmares sucumbiu às investidas do poder colonial
e com ele Zumbi, seu líder. (T1)
No fragmento (5), o verbo “sucumbiu” estabelece a relação metafórica ao colocar
de um lado o que tem força e poder, “o poder colonial”, e, de outro, o que não tem
força e poder, “O Quilombo de Palmares”, que, por isso, sucumbiu.
É relevante mencionar que ocorre no fragmento dois símbolos significativos
para brancos e para negros, usados para estabelecer a metáfora. De um lado, o
poder colonial, que era branco e que simboliza a chegada do branco ao Brasil e
que estava em posição de força e de poder; de outro, o Quilombo dos Palmares,
símbolo maior da luta e da resistência do negro à escravidão, e uma tentativa dos
negros de mostrar força.
Em seguida, o mesmo texto apresenta os seguintes trechos:
6. ... Zumbi e todos os seus companheiros que fugiam com custo da
opressão, eram escravos... (T1)
7. ... Escravos eram os africanos contrabandeados e comerciados, que,
uma vez adquiridos, prestavam-se ao trabalho pesado... (T1)
O ato de “fugir” demonstra que os negros não tinham força e poder, por isso não
podiam enfrentar seus opositores. A idéia de “opressão” está associada a ter força
e poder, já os negros eram os “oprimidos”, ou os que não tinham força e poder. A
idéia é corroborada pelo trecho seguinte. “Ser escravizado” e “prestar-se ao trabalho
escravo” é não ter força e poder; em contrapartida, escravizar e beneficiar-se do
trabalho escravo é ter força e poder, ou é ter hegemonia.
Vemos, portanto, que os vocábulos escolhidos (intencionalmente ou não) apontam posição social para o negro: uma posição para baixo.
“Mais é para cima; menos é para baixo”
Quanto à metáfora “bom é para cima; mau é para baixo”, pela similaridade
de argumento que emprega, será relacionada à outra metáfora “mais é para cima;
menos é para baixo”, considerando a relação bom = mais, e mau = menos, as
seguintes ocorrências foram encontradas.
54 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Francisca Cordélia Oliveira da Silva
8. Os negros ... recebem atualmente os menores salários e tem (sic)
menos direito à escolaridade. (T3)
9. Os brasileiros brancos, acostumados aos locais mais privilegiados
da sociedade, observam a primeira lei real que tenta tirar do limbo a
comunidade negra (T3)
O fragmento (8) associa ao negro à metáfora “menos é para baixo”: O negro
recebe os “menores” salários e tem “menos” direito à educação, logo está em
situação “para baixo” na escala social. Em oposição, no fragmento (9), o branco
ocupa lugares sociais “mais privilegiados”, ele está “para cima” na escala social.
No mesmo fragmento, o lugar social do negro é muito “para baixo”, pois, segundo
o depoimento dado, a comunidade negra encontra-se no “limbo”.
Temos a associação metafórica que se estrutura por meio da oposição: branco
= locais mais privilegiados; negro = limbo. O limbo é, segundo Bueno (1994, p.
659), “O lugar em que, segundo a crença cristã, estão as almas das crianças mortas
sem batismo ou as dos justos falecidos antes de Cristo; lugar para onde se deitam
as coisas inúteis”.
Segundo Chevalier e Gheerbrant (1992, p. 548), em seu Dicionário de símbolos, o limbo é um lugar controvertido, pois, para alguns, ele estaria na entrada
do inferno, principalmente para culturas não-cristãs; e, para outros – os cristãos
– seria a ante-sala do paraíso, local em que os natimortos, as crianças que morreram sem batismo e os bons que não foram beatificados esperam o início de uma
nova civilização.
Se o termo apresenta acepções positivas e negativas, parece-me claro que foi
usado em sua significação negativa, uma vez que está oposto a lugares “mais privilegiados do sociedade”. Esse limbo é um local não-privilegiado.
10. O negro é minoria em escolas públicas, multinacionais... (T3)
Para concluir, a idéia de “minoria” é associada ao negro. Giddens (1995) explica
que essa noção de minoria não é numérica, associa-se ao poder que determinada
parcela da população não possui. No caso, ser minoria é ser menos e estar para
baixo.
Como exposto anteriormente, o sentido metafórico, assim como o discurso,
não é construído ao acaso, está relacionado às experiências físicas e culturais
(LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 68). A análise mostrou que, em nossa cultura e nos
textos analisados, para representar o negro, seu papel social e suas identidades,
é comum o uso das metáforas: “racional é para cima”; “irracional é para baixo”,
“ter controle ou força é para cima; estar sujeito a controle ou força é para baixo”,
“mais é para cima; menos é para baixo”.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
55
Parte II – Discurso e Identidade • O Uso de Metáforas e a Construção de Identidades Étnicas
A Construção Identitária do Negro: Considerações
Finais
A análise apresentada explica a dificuldade que o negro tem de se auto-identificar como negro ou sua busca pelo “embranquecimento”, uma vez que ser negro
é estar sujeito a todas essas associações. É difícil se assumir como negro, ter uma
identidade negra fortalecida, porque é difícil ser negro em uma sociedade que não
aceita a diversidade.
Podemos agora responder que, por meio das metáforas, os textos desenham
para negro uma identidade de:
• minoria – uma vez que o negro é considerado como uma pequena parte da
sociedade e não como quase metade dela;
• passivo e submisso – uma vez que, no passado, aceitou a escravidão e, hoje,
deve aceitar a posição que lhe é determinada na sociedade;
• excluído – pois é alijado das benesses que a sociedade oferece aos seus
membros: boas moradias, boas escolas, boa educação, bons emprego, bons
salários;
• subalterno – uma vez que o seu lugar na sociedade é o lugar que o branco
não quer ocupar, o seu lugar é o que sobra, que não é desejado;
• o “outro” – visto que, para ele, é destinado tudo o que a sociedade branca
não quer para o “eu” e para seus pares.
Nesse processo de construção da identidade do negro, verifica-se a relação
entre os conceitos de identidade e de diferença (WOODWARD, 1997; SILVA, 2000;
FAIRCLOUGH, 2001), uma vez que a identidade enfraquecida que é atribuída ao
negro – minoria, passivo, subalterno, excluído, aproveitador, “outro” – é firmada
pela oposição à identidade branca – maioria, agente, superior, incluído, “eu”.
As metáforas associam o negro à inferioridade intelectual ou à irracionalidade,
a lugares sociais pouco privilegiados e à falta de força e de poder. Elas são uma
forma sutil de representar a identidade do negro e de lhe atribuir papéis sociais.
São também parte da cognição social, pois apelam para representações sociais que
são naturalizadas na e pela sociedade.
Embora consideremos, como propõe Silva (2000), Woodward (2000) e outros,
que as identidades são fluidas e que estão em constante processo de mudança,
não podemos negligenciar o fato de que uma identidade, não necessariamente, sobrepõe outra ou outras; e traços dessas identidades enfraquecidas, hoje atribuídas
aos negros, podem permanecer em suas vidas e como parte de suas identidades
indefinidamente, assim como podem contribuir para construir as identidades daqueles que estão nascendo e crescendo em meio a essas posturas.
56 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Francisca Cordélia Oliveira da Silva
Logo, aquelas identidades que, hoje, são atribuídas aos negros serão, de certo modo,
mantidas na sociedade ou, pelo menos, na vida desses por muito tempo. Como se vê
e, conforme aponta Fairclough, não há neutralidade alguma em nossos discursos, e
eles, sendo resultado de práticas sociais, são também determinantes delas.
Referências Bibliográficas
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. Lisboa: Presença
– Martins Fontes, 2001.
BAUER, M. W.; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um
manual prático. São Paulo: Editora Vozes, 2003.
BENTO, M. A. S. Cidadania em preto e branco. São Paulo: Ática, 1998.
BUENO, F. da S. Dicionário escolar da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Fundação de Assistência ao Estudante, 1994.
CARONE, I.; BENTO, M. A. S. Psicologia social do racismo. Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
CHAUI, M. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 2001.
CHAVEZ, E. R. Notas sobre la identidad cubana e su relación con la diáspora.
In: Revista Temas. Cultura, ideología e identidad, nº 28. Cuba: Nueva época:
2002.
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1992.
CHOULIARAKI, L; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity: rethinking
critical discourse analisys. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.
EAGLETON, T. Ideologia. São Paulo: Ed. Universidade Estadual Paulista: Editora
Boitempo, 1997.
FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London, New York: Routledge, 2003.
______________. Discurso e mudança social. Brasília: Editora da UnB, 2001.
FLICK, U. Uma introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Bookman,
2004.
GIDDENS, A. Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulberkian, 2000.
KOUNDOURA, M. Multiculturalismo o multinacionalismo? In: Revista Temas.
Cultura, ideología, sociedad. n. 28. Cuba: Nueva época, jan.-mar. 2002.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
57
Parte II – Discurso e Identidade • O Uso de Metáforas e a Construção de Identidades Étnicas
LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metáforas da vida cotidiana. São Paulo: Mercado
de Letras, 2002.
MAGALHÃES, C. (Org.). Reflexões sobre a análise crítica do discurso. Belo Horizeonte: UFMG, 2001.
____________. A análise crítica de discurso enquanto teoria e método de estudo.
In: MAGALHÃES, C. (Org.). Reflexões sobre a análise crítica do discurso. Belo
Horizeonte: UFMG, 2001.
PEDRO, E. R. Análise crítica do discurso: aspectos teóricos, metodológicos e
analíticos. In: PEDRO, E. R. Análise critica do discurso: uma perspectiva funcional e analítica. Lisboa: Editora Caminho, 1998.
ROCHA, R. Minidicionário enciclopédico escolar. São Paulo: Scipione, 1996.
SANTOS, J. L. dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996.
SILVA, T. T. da. Identidade e diferença. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos
meios de comunicação de massa. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
TORRE, C. de la. Identidad e identidades. In: Revista Temas. Cultura, ideología,
sociedad. n. 28. Cuba: Nueva época, jan.-mar. 2002.
van DIJK, T. A. Racismo y análisis crítico de los medios. Barcelona: Paidós,
1997.
_____________. Ideology: a multidisciplinary study. London: Sage, 1998.
VIEIRA, J. A. As abordagens críticas e não-críticas em análise de discurso. In:
SILVA, D. H. G. da; VIEIRA, J. A. (Orgs.). Análise do discurso: percursos teóricos e metodológicos. Brasília: UnB. Oficina Editorial do Instituto de Letras;
Editora Plano, 2002.
WEST, C. Las nuevas politicas culturales de la diferencia. In: Revista Temas.
Cultura, ideología, sociedad. n. 28. Cuba: Nueva época jan.-mar. 2002.
WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual.
In: SILVA, T. T. da (Org.). Identidade e diferença. São Paulo: Vozes, 2000.
58 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
A SUPERMODERNIDADE:
Cultura do Poder e do Consumismo
Georgina Amazonas Mandarino* (CEPADIC)
Resumo: O objetivo deste trabalho é examinar como a mass media contribui para a
construção identitária do sujeito. O corpus está nos símbolos da modernidade divulgados
pela publicidade em geral, abrindo novas perspectivas comportamentais perante o
mundo. A metodologia adotada é a qualitativa. Fairclough (2001) assinala a contribuição
das práticas discursivas em processos de transformação para mudanças na identidade
social. As posições teóricas de Stuart Hall (2004) e Marc Augé (2004) conduzem a
uma análise discursiva presente nos símbolos que comprovam identidade e autorizam
deslocamentos impessoais. Os resultados alcançados a partir do enfoque em alguns
símbolos da supermodernidade permitem a identificação de territórios em constante
transformação e a multiplicidade de identidades sociais e culturais.
Palavras-chave: Identidade; Supermodernidade; Discurso; Não-Lugar; Globalização.
Abstract: The objective of this work is to examine how mass media contributes to the
development of the individual identity. The corpus is in the modern symbols spread by
publicity in general, opening new behavioral perspectives to the world. The methodology
used is qualitative. Fairclough (2001) points out the contribution of the discursive practices
in transformation process for changes in the social identity. Stuart Hall (2004) and Marc
Auge´s (2004) theoretical positions lead to a discursive analysis that is present in the
symbols that prove identity and allow impersonal dislocation. The results reached from
the focus on some symbols of supermodernity permit the identification of territories that
are in constant transformation and the multiplicity of social and cultural identities.
Keywords: Identity; Supermodernity; Discourse; Non-Places; Globalization.
* Especialista em Língua Portuguesa (UniCEUB). Pesquisadora em Análise de Discurso Crítica e Membro
do Centro de Pesquisas em Análise Crítica de Discurso (CEPADIC) e da Asociación Latinoamericana de Estudios del Discurso (ALED) e da Associação Brasileira de Lingüística (ABRALIN). E-mail:
[email protected].
Parte II – Discurso e Identidade • A Supermodernidade: Cultura do Poder e do Consumismo
Introdução
A
naliso por meio deste trabalho as construções identitárias e a pretensa interação
social com base nas práticas sociais determinadas pelos símbolos da modernidade presentes nos estudos de Hall (2004) e nas considerações de Marc Augé
(2004) que chama de “não-lugar” aquele “espaço público de rápida circulação no
qual há relação contratual representada por símbolos da supermodernidade”, ou
aquele espaço sem raízes, em que interpretamos diferentes sujeitos, sem origem,
sem tradição.
Augé e Hall pregam a ocorrência de ruptura dos limites dos territórios, segundo
as mudanças sociais e os avanços tecnológicos diversos, fazendo com que outros surjam, moldados por novas práticas, e se construam novas identidades nacionais.
Nesse mundo em constante transformação, os limites territoriais expandem-se,
fazendo com que surja um grande território comumente denominado de aldeia global, segundo a chamada era dos media. Nessas aldeias globais, novas identidades
são construídas e novas práticas levam o indivíduo a abandonar sua história, suas
tradições, seus lugares.
Que símbolos da modernidade estão presentes no dia-a-dia da humanidade? Como
eles interferem nas relações sociais e que fenômenos sociais são desencadeados
pela tecnologização do indivíduo? Que discursos são produzidos na globalização?
Essas são algumas questões discutidas e que pretendo levar à reflexão.
Cartões de crédito, cheques, e-tickets, Internet, máquinas de acesso a estacionamentos, telefones celulares, e tantos outros símbolos da supermodernidade foram
instalados em nossas vidas e, conseqüentemente, influenciam nas identidades
sociais, criando o “eu múltiplo”.
Cultura e Consumismo
Segundo Hall (2004), identidade é “celebração móvel formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Isso significa que agimos de acordo
com o mundo que nos cerca, alterando nossa identidade, pois esta não é fixa, não é
estável, não é unificada e nem permanente. A identidade está sempre em construção
e mutação; é criação social e cultural. As práticas que as transformam são gradativamente absorvidas e, muitas vezes, não temos consciência dessa absorção.
Partindo da suposição de que “as identidades modernas estão sendo descentradas,
isto é, deslocadas ou fragmentadas” (Hall, 2004), tem sido identificada no sujeito
pós-moderno uma “crise de identidade” que abre campo para interpretações diversas.
60 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Georgina Amazonas Mandarino
Ocorre deslocamento ou descentralização do sujeito do seu lugar no mundo social
e cultural e de si mesmo, com significativa alteração nos discursos ou uma nova
ordem dos discursos de caráter global, identificação feita por Fairclough (1997),
que acredita que a globalização econômica, política e cultural é responsável pelas
mudanças sociais contemporâneas.
O ritmo e o alcance das mudanças por que passam as sociedades redimensionam as idéias de tempo e de espaço, provocam rupturas e fragmentações no que
diz respeito aos símbolos e às tradições; criam pluralidade de centros de poder
e geram “desalojamento do sistema social”, ou seja, provocam descentralização
e descontinuidade no interior do sujeito e do próprio entendimento do que seja
identidade nacional.
Os fluxos culturais e o consumismo global, mediados pelas imagens da mídia,
que fazem apelo a diferentes partes de nós, criam possibilidades de “identidades
partilhadas” e de “supermercado cultural”: consumidores para os mesmos bens,
clientes para os mesmos serviços, público para as mesmas mensagens e imagens.
Com isso, as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de “língua franca” internacional, fazendo
com que as identidades tornem-se cada vez mais desvinculadas, desalojadas de
tempos, lugares, histórias e tradições específicas.
Há alguns anos, os limites impostos ao homem significavam reconhecimento
do outro. Havia preocupação com cada membro da sociedade. O mundo, que se
limitava ao quintal de nossa casa e ao do vizinho, ampliou-se com as viagens
marítimas, cruzadas e inúmeras ações do homem, desejoso e curioso de conhecer
e se apoderar de mais espaços e bens.
Com a industrialização, com o comércio em expansão e finalmente com a globalização, o mundo ficou menor. Com a evolução da tecnologia, o homem pode, em
poucas horas, estar do outro lado do mundo, em terras nunca antes imaginadas,
e já não tão desconhecidas.
Nas sociedades pré-modernas, o espaço e o lugar eram amplamente coincidentes.
As dimensões espaciais da vida social eram dominadas pela presença. “O lugar
era específico, concreto, conhecido, familiar, delimitado, era o ponto de práticas
sociais específicas que moldavam e formavam a identidade cultural” (Giddens,
1990). Na modernidade, segundo Harvey (apud Hall, 2004), ocorre “a destruição
do espaço através do tempo”, em que os locais onde temos raízes permanecem
fixos, mas são inteiramente penetrados e moldados por influências sociais e bastante
distantes deles. É a “compressão espaço-tempo”, quer dizer, o mundo encolheu
(aldeia global) e horizontes temporais se encurtaram.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
61
Parte II – Discurso e Identidade • A Supermodernidade: Cultura do Poder e do Consumismo
A modernidade separa o espaço do lugar, reforçando relações entre outros
“ausentes”, distantes, sem interação face a face. O partilhar, o desfrutar junto
com alguém, desaparece na Internet, pois há a fuga dos encontros pessoais e das
identidades (por que conhecer alguém que pode não ser aquele que imaginamos
e que pode não ter a identidade apresentada a nós?).
Atento a isso, Giddens (1990) diz que “nas sociedades tradicionais, o passado é venerado, e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a
experiência de gerações”. Hoje, com os avanços tecnológicos, as práticas sociais
são reformadas e surgem necessidades diferentes de acordo com as informações
recebidas, alterando, assim, o caráter dessas mesmas práticas. Os símbolos se
modificam. O idoso de hoje, ao utilizar a Internet, interage com a máquina na
resolução de problemas comuns do dia-a-dia, na diversão e entretenimento e no
relacionamento que, agora, passa a ser apenas virtual.
Pesquisa realizada pela revista Veja digital em 2000 mostra que usuários
acima de 50 anos estão entre os mais ativos na Internet. 100% acessam a rede
diariamente, 51% já fizeram compras pela rede e são os que têm equipamentos
melhores e mais atualizados. Para eles, a Internet é fonte de lazer e facilidades.
Assim, foram-se os momentos de integração social, presenciais, tão importantes
para todos e principalmente para o idoso.
Hall, ainda na mesma obra, atribui a desvinculação ou desalojamento das
identidades do tempo, lugares, histórias e tradições, à mediação da vida social
pelo mercado global de estilos, lugares, viagens internacionais, pela mídia e pelos
sistemas de comunicação.
Reportagem da revista Superinteressante (2002) acerca do desenvolvimento
científico experimentado pela humanidade, afirma que:
Nunca o conhecimento humano foi tão veloz em desbravar não só o mundo
– mas todo o Universo. Neste ritmo em que muralhas da ciência e da tecnologia são derrubadas todos os dias, estão a caminho inovações no estilo de vida
das pessoas comuns que lembram as aventuras de heróis em quadrinhos... As
descobertas do mundo da computação, dos eletrônicos, e da comunicação farão
a humanidade interagir ao máximo seus desejos com a tecnologia.
Como chegam ao homem essas descobertas? É quando entram a mídia e a propaganda, levando o homem a “interagir seus desejos com a tecnologia”. Para nós
ocorre uma suposta interação, pois é sabido que é a mídia quem cria as necessidades, impulsiona-nos os desejos.
As sociedades pós-modernas são o mundo do simulacro no qual imperam as
sensações: sensação de beleza, de prazer, de poder. Somos direcionados para o
que desejam que sintamos, e não por nossas próprias emoções. A mídia nos faz
62 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Georgina Amazonas Mandarino
desejar sempre algo que foi determinado por terceiros. Ofertas de serviços e produtos e os não-lugares (Augé, 2004) como os shopping-centers, aliam prazer e
consumo, e são apresentados à exaustão. A disposição das mesas e cadeiras nas
áreas de refeição visa à utilização rápida e individual, sem interação dos usuários.
São cadeiras desconfortáveis, fixas (não podem ser alteradas para juntar mais as
pessoas) – você deve consumir imediatamente e dar lugar a outros.
A globalização, como fator preponderante no deslocamento das identidades
culturais nacionais, está relacionada, principalmente, à forma como a vida social
está ordenada ao longo do tempo e do espaço, isto é, de forma que o encurtamento
das distâncias e os acontecimentos ocorridos em um determinado lugar têm efeito
imediato sobre pessoas que estão distantes umas das outras.
Na cidade de Nova Mutum, interior do Mato Grosso, com densidade demográfica de 8.000 habitantes, muitas das transações financeiras são feitas via Internet,
inclusive no mercado internacional. Em Floriano, Piauí, apenas um provedor de
acesso à Internet tem oitenta assinantes e atende também a cidades vizinhas. Em
Oriximiná, a quatro dias e meio de barco a partir de Belém, com transporte feito
exclusivamente pela rede fluvial, foi criado um site para divulgação de informações
locais. Segundo um de seus moradores, “para a nossa pequena cidade, a Internet
abriu uma grande janela de onde podemos ver o mundo” (Veja, agosto de 2000).
Com o advento da Internet, em qualquer parte do mundo, o indivíduo tem
conhecimento do que se passa em outros lugares. É afetado, pois, pela cultura
consumista, e levado à homogeneização cultural. No interior do Brasil, encontramos jovens vestidos a exemplo das grandes cidades: tênis, calças jeans, blusas,
mochilas e bonés de grandes marcas, pois o consumo foi acirrado pela publicidade
na televisão ou mesmo facilitado pelas compras online, via Internet.
A rotina do indivíduo, hoje, é toda pautada pela máquina; utensílios domésticos
facilitam o trabalho, sem que tenha de depender de alguém. Pode sair de casa e
retornar do supermercado ou de uma grande viagem, interagindo o mínimo possível
com o outro. A máquina facilita sua vida: pelo computador ele pode adquirir bens,
pagar contas, estar ciente do que se passa ao redor do mundo, pode viajar retirar
as passagens (e-ticket) e fazer check-in em sua própria casa. Os estacionamentos
dispõem de equipamentos para ingresso, e o pagar, feito a pessoas que mantêm
rotina sem qualquer interação social ou emocional, configura-se como se feito
a uma máquina. Os saques bancários realizados nos equipamentos eletrônicos
demandam procedimentos como se fôssemos robôs: Insira o cartão/Aguarde/Bom
dia, fulano (a)/Você hoje só pode sacar R$.../Marque a opção desejada/Digite sua
senha/cartão mal introduzido/tente novamente/ Retire o seu cartão/Aguarde até
a finalização da operação.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
63
Parte II – Discurso e Identidade • A Supermodernidade: Cultura do Poder e do Consumismo
Para o comércio em geral, a identidade do consumidor está diretamente ligada
ao tipo de cartão que utiliza e, para as companhias aéreas, o cliente é identificado
como cliente ouro, prata, diamante – e nada mais que isso. Para manter-se no
patamar a que é alçado, conforme o número de viagens que faz, precisa manter
o padrão. Caso contrário é rebaixado e deixa de ter um cartão de maior status.
É, portanto, a cultura de poder: poder de conhecimento sobre os indivíduos
segundo as informações captadas e armazenadas pela máquina. A exemplo do
Panóptico descrito por Michael Foucault (2005), os poderes controladores mantém a disciplina por meio da ameaça de punição. A metáfora da vigilância aqui
se aplica, pois está presente em todas as áreas da nossa vida: nas informações
do cartão de crédito e seu uso, nos arquivos das companhias telefônicas, das
companhias aéreas, etc.
Mark Poster (2000), em ensaio sobre os bancos de dados eletrônicos, diz,
porém, que o armazenamento de informações, a cada ação do indivíduo, tem
grande diferença do Panóptico de Foulcaut, pois somos “voluntários da vigilância”,
buscando adquirir mais poder e, principalmente, a diferenciação dos demais.
Assim nossos discursos com a máquina são apenas de informação-ação ou
comando-ação: as máquinas de acesso ditam ordens e instruções; as estradas
comandam nossos procedimentos por meio de símbolos – é a semiose comandando os procedimentos (Reduza a velocidade, Curva perigosa à frente, Pista
escorregadia quando molhada...). Nossos atos deixam de nos oferecer prazer:
são racionais, práticos.
O computador leva o usuário a novos procedimentos, novas ações, comportamentos e, de acordo com a nova linguagem que se instaura com a sua utilização,
temos também novos discursos. Mais, acertadamente, o discurso do simulacro.
Nessa cultura do simulacro, a construção das identidades obedece a contextos
específicos dessa mesma cultura. No mundo mediado por computador, podemos
ter diferentes rotinas, diferentes amigos, diferentes nomes. O “eu” é múltiplo,
constituído na interação com a máquina e transformado pela linguagem dos diferentes “não-lugares” por onde passa cada uma de suas identidades.
Os ciberespaços, sem fronteiras, permitem que seja dada vazão às fantasias:
podemos falar, trocar idéias, assumir papéis e personalidades, fruto da criação
individual. Esses “não-lugares” constituem, hoje, parte da rotina da vida de cada
um. Neles, qualquer um participa de comunidades nas quais se encontram pessoas
de todo o mundo, cada uma deixando fluir toda a sua imaginação e criatividade
– é sua catarse pessoal e/ou social.
64 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Georgina Amazonas Mandarino
O Discurso e suas Relações de Sentido e de Poder
As ideologias são a base das representações mentais utilizadas e modificadas
socialmente e são usadas para levar a cabo as práticas sociais cotidianas. São sistemas de crenças sociais estudados sob um marco cognitivo e abrangem experiências
pessoais, conhecimentos e opiniões de membros de grupos específicos, integrando
o cognitivo e o social.
Fairclough (2001) vê as ideologias como construções de realidades em variadas
formas de práticas discursivas que contribuem para as relações de dominação.
Para ele, as ideologias assumem status de “senso comum” quando naturalizadas.
Naturalizou-se o uso do computador, da Internet, do celular, dos cartões de crédito
e tantos outros símbolos da modernidade. A ideologia está presente no uso e na
produção de cada um deles, seja pelo poder de persuasão que leva à sua aquisição e ao seu uso, ou seja pelo controle exercido sobre o usuário nas informações
armazenadas nos centros de poder das empresas em geral.
Por adquirirmos o objeto novo cuja necessidade nos foi imposta, estamos
sujeitos à máquina estatal que pode gravar nossas conversas, ler nossas mensagens, capturar nossas imagens. As operadoras têm todo nosso arquivo. Sabem
quem somos, quando e aonde vamos, com quem falamos. E nos oferecem cada
vez mais poder e adquirem também mais poder sobre nós.
A produção do discurso vale-se cada vez mais de diferentes modos de representação do texto, que sempre é multimodal, e, segundo Kress (2000), deve
ser lido em conjunção com todos os outros modos semióticos do discurso. Cada
significado do discurso é representado de maneira diferente pelo produtor do
discurso, sendo que a ideologia é amplamente difundida pela mídia sem que
tenhamos a mínima percepção.
Para Jean Baudrillard (2002), os objetos não são apenas elementos de satisfação das necessidades primárias, mas signos que se adaptam a uma ordem ou
sistema, sendo a funcionalidade a capacidade de se integrar em um conjunto. É
o indivíduo quem vai determinar a multiplicidade de funções e as necessidades
por meio de novos objetos.
Atenta a essas necessidades, a propaganda evoluiu em todos os aspectos:
psicológico, cultural e político. Ela fala sobre o mundo dos consumidores, sobre
todos os elementos presentes em sua cultura: desejos são criados e espelham o
comportamento da sociedade e criam este mesmo comportamento. Ela referencia
o indivíduo para aspirações que nem ele mesmo sabia existirem.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
65
Parte II – Discurso e Identidade • A Supermodernidade: Cultura do Poder e do Consumismo
A linguagem da propaganda, tipo de discurso de persuasão, é centrada no outro. Entretanto, é importante não nos esquecermos da tipologia para discurso de
Bronckart (apud Brandão, 2000) que afirma não haver relação simples e direta
entre a coisa e a palavra; que devemos distinguir o sentido primeiro (denotativo)
do sentido segundo – ligado às condições de funcionamento extralingüísticos tais
como o contexto e condições de produção, pois, além do verbal utilizado, concentramos nossa atenção nos demais elementos semióticos do texto que integram o
processo comunicativo e são parte da construção dos sentidos.
A partir dos anos 1970, a atenção da Semiótica separou-se do conceito de signo descrito por Saussure e concentrou-se no texto passando a significação a ser o
objeto de análise da Semiótica. Assim, baseados nas concepções sociointeracionais
da linguagem, em que os sujeitos dialogam com o texto, com o contexto e com a
língua, os recursos multimodais são elementos de análise na busca de significados e na construção dos sentidos deles decorrentes de forma a responder nossas
questões.
Imagem 1 – Superinteressante, 2003.
Os discursos publicitários aqui examinados compõem o que a Semiótica chama de
textos sincréticos, pois articulam o sistema semiótico verbal com o sistema semiótico
plástico. Sendo que toda imagem é polissêmica, deixando antever significados que
66 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Georgina Amazonas Mandarino
podem ser aceitos ou ignorados, a articulação da imagem com a palavra faz com
que as escolhas se voltem para a leitura do discurso em sua totalidade. Vejamos.
A imagem 1 (Superinteressante, 2003) mostra a publicidade de um modelo de
aparelho de telefone celular. O modelo do objeto tem a cor negra, tal como o fundo da imagem e se vê a maneira de utilização quando aberto e fechado. Ao lado,
a palavra-chave titânio, que representa o elemento químico de número atômico
22 e considerado metal leve. É a intertextualidade presente no discurso, pois nos
remete, pelo verbal, aos conhecimentos científicos adquiridos e pela imagem, ao
produto agora apresentado. Foi escolhida a cor preta tanto para o objeto ilustrativo
do produto quanto para o fundo da composição publicitária. A cor na mensagem
publicitária é recurso ou elemento do léxico visual de grande significação e ligada
a culturas e momentos históricos variados.
Há muito, a cor negra era associada a sentimentos desagradáveis: luto, tristeza,
problemas em geral. Na Idade Média, atribuía-se a cor negra às entranhas do indivíduo. Hoje, em nossa cultura, o negro é cor associada à formalidade, à padronização
que visa ao destaque. As mulheres vestem-se de negro como artifício de elegância:
jóias tais como relógios negros são alvo de cobiça; os carros das autoridades têm a
cor negra; os telefones – mesmo os antigos, com fio – tinham a cor negra.
O negro é usado em festas de gala; é também a cor da elegância, atributo apregoado nas relações sociais. Com o passar do tempo e em função de modificações
culturais, a cor negra passou a simbolizar status. Raros são os aparelhos celulares
negros. Assim o referente (coisa ou objeto extralingüístico caracterizado pela imagem)
simboliza algo novo, de classe, algo que destaca o seu possuidor dos demais.
À esquerda, temos dois textos, partes de discurso maior, em letras brancas: 1825:
o homem separa o titânio dos demais elementos; 2003: o titânio separa o homem
dos demais elementos. A idéia de separação está presente tanto no verbo separar,
conjugado duas vezes quanto na imagem visual, em que os textos são distintos. A
separação é evidenciada também na estrutura frasal segmentada.
O tempo histórico refere-se à descoberta do titânio como sendo 1825. O texto
verbal informa que, naquele ano, o homem separou, pelas suas pesquisas, o elemento titânio dos demais. Historicamente, o titânio é descoberta da modernidade;
é metal de alta resistência mecânica e térmica, é brilhante, leve e resistente à
corrosão. Essa parte do discurso utiliza-se de uma construção discursiva peculiar,
com três textos fragmentados, e o seu conteúdo é deixado à interpretação do interlocutor que precisa juntar todos os demais textos para compor os significados.
Mesmo assim, o discurso verbal deixa livre às inferências pessoais do interlocutor
que, somente após ler a imagem, conseguirá compor toda a significação presente
na peça publicitária.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
67
Parte II – Discurso e Identidade • A Supermodernidade: Cultura do Poder e do Consumismo
O mesmo texto mostra o seu uso, agora, de forma ambígua, pois o produto vira
produtor – o titânio age como sendo humano. É a personificação do elemento pela
atribuição de identidade. Temos uma metonímia, pois o titânio é componente do
celular. Valendo-se dessa informação, o agente produtor do discurso usa a parte que
compõe o todo para atingir o público. A função expressiva é intencionalmente colocada, pois dando o nome de Titânio ao novo aparelho, nos dá também a informação
de que ele se destaca dos demais por ser único, moderno, resistente e leve.
O termo elemento na segunda composição textual é aqui utilizado metaforicamente, fazendo com que consideremos o homem separado dos demais que participam de seu lugar social. Polissêmica, a palavra adquire múltiplas interpretações: o
titânio (celular) separa o homem dos demais? Ou dá a ele status, pois quem possui
o telefone com tal composição passa a ser alguém especial, diferente, raro? Creio
que as interpretações se completam reforçando nossa tese de que os símbolos da
modernidade levam o homem à solidão, para longe dos demais.
Não há, aparentemente, nenhum elemento ligando os três textos que compõem o
discurso maior. Veja-se, porém, que um fundo negro funde-os num só. Que relação
existe entre o texto escrito e a imagem? À direita, sobre a imagem, o terceiro texto
Nokia 8910i fala por você diz que não há necessidade de qualquer informação sobre o modelo apresentado pela imagem. Não há necessidade de situá-lo no tempo,
nem de falar sobre suas características, potência, alcance, tecnologia, estratégia tão
comum na publicidade do produto. Mas o “silêncio” que propõe a peça publicitária
é também informativo, pois nosso conhecimento de mundo e o contexto mostram
que é um telefone moderno, diferente dos primeiros aparelhos celulares, grandes,
pesados, sem contornos estéticos apreciáveis. A imagem do aparelho nos induz
a idéia de leveza oriunda do titânio que entra em sua composição, facilidade no
toque e, sendo que em nossa cultura, ter um porta-voz é símbolo de status e poder,
o aparelho funciona como tal, dando poder a quem o possui. É a ideologia caracterizada na significação contida na propaganda. Passemos à segunda imagem:
68 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Georgina Amazonas Mandarino
Imagem 2 – Publicidade de uma universidade virtual.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
69
Parte II – Discurso e Identidade • A Supermodernidade: Cultura do Poder e do Consumismo
A imagem 2 mostra a publicidade de uma universidade virtual na qual encontramos, além da junção com os elementos visuais num processo de multimodalidade, uma dimensão intergenérica (Brandão, 2000) em que dois gêneros
discursivos, o bilhete e o texto publicitário, compartilham o mesmo espaço com
um mesmo objetivo.
Escrito em caracteres semelhantes à escrita manual, o bilhete mostra a coloquialidade, a informalidade da mensagem: fui ao curso e volto já; é a primeira voz
do discurso, a que chama mais atenção, centralizada no texto. Já os produtores
do texto publicitário se fazem presentes com a mensagem complementar: a vida
não pode parar para você estudar, dirigindo-se agora a qualquer leitor do discurso.
É um discurso amplo, dirigido a todos, também num processo de singularizarão
pelo uso do pronome você, coloquial.
A ambigüidade é demonstrada pela oposição vida x estudar. A vida está diretamente ligada ao jogo de futebol em que ocorreu a ausência; estudar, ao curso, em
que alguém está agora presente. Da fusão dos dois textos escritos, depreende-se
que houve a troca de uma atividade socialmente integrativa para uma atividade
solitária: o estudante deixou o futebol de lado, atividade prazerosa para tantos,
representados pela imagem de fundo, na qual os espectadores lotam os lugares
da assistência e foi sozinho, estudar na universidade virtual.
Com as mudanças estruturais e institucionais, o processo de identificação
por meio do qual projetamos nossas identidades culturais tornou-se provisório,
variável e problemático. Temos, então, um novo paradigma de ensino que tira
o indivíduo do social para levá-lo a interagir com a máquina. Ele passa a ser,
ali, um número e uma senha. É a troca do social pelo isolamento. Por último,
examinemos a imagem 3:
70 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Georgina Amazonas Mandarino
Imagem 3 – Exemplo de crédito da CAIXA.
A imagem 3 nos traz exemplo da utilização de mais um símbolo da modernidade:
o cartão de crédito bancário, no exemplo examinado, da CAIXA. O verbal utiliza
a função apelativa, quando se refere ao “cantinho” – que nada tem de pequeno,
conforme o termo nos quer fazer supor, pois a imagem mostra uma profusão de
objetos os mais variados num amplo espaço. A função referencial evidencia-se pela
informação: Cartão de Crédito da CAIXA. É a apresentação do objeto que está sendo
vendido. E quais as vantagens que esse objeto oferece para que seja adquirido? A
aquisição ilimitada de bens, aqui representada pelo X. Sendo esse cartão de crédito
pertencente a uma empresa estatal, temos o poder do Estado levando o cidadão a
consumir indefinidamente, numa mudança de paradigma, pois ao Estado cabe educar
o cidadão, e não incitá-lo a práticas sociais que provoquem o consumo, haja vista
os altos custos dos produtos no mercado.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
71
Parte II – Discurso e Identidade • A Supermodernidade: Cultura do Poder e do Consumismo
Considerações Finais
O discurso da pós-modernidade reforça a posição dos autores diversos acerca
do conceito de identidade: a identidade social tem se multiplicado diariamente,
dependente da inserção do indivíduo nos diversos símbolos da modernidade.
Ao adquirir o computador e seus softwares, ao retirar o e-ticket, ao usar o cartão de crédito ou abrir uma conta bancária, o sujeito da pós-modernidade tem de
declinar sua identidade individual, fornecendo nome e demais dados pessoais. A
partir daí, passa a ser mais um dos inúmeros anônimos existentes em torno das
máquinas e a ser controlado pelos que gerenciam as práticas de que faz uso.
Esse anonimato é parte das relações sociais construídas na interação homemmáquina, mas é também parte das relações sociais construídas pelo homem-máquina-homem, nas quais, a partir da utilização de linguagem específica, criamos
discursos os mais variados visando acrescentar ao rol já disponível e utilizado,
inúmeras outras identidades.
As relações sociais hoje são relações de exploração, pois motivadas pelo capitalismo e seus símbolos, fruto do avanço tecnológico e dos meios de comunicação
que, além da função de entreter, divertir e informar inculcam também valores,
crenças e comportamentos de caráter eminentemente ideológico, desagregando o
homem de suas raízes e de seu lugar.
Temos presente uma linguagem própria num tempo também delimitado, pois,
conforme vemos nas chamadas salas de bate-papo, nos blogs ou quaisquer outros
locais de encontros cibernéticos, o que era verdadeiro hoje, já não é amanhã.
A violência e a morte, banalizadas na transmissão pela mídia, não provocam
emoções maiores do que a simples curiosidade. Seu compartilhamento nas páginas da Internet é exemplo da solidão que se instaurou no cotidiano do indivíduo
pós-moderno.
Com a indústria tecnológica moderna, o contexto em que se usa a máquina
mudou de configuração: esta é hoje usada apenas para o racional, o prático. Com
as máquinas modernas, busca-se a instauração de um novo tipo de necessidade:
aquela criada e imposta pelo poder vigente, ao tempo em que o indivíduo se desfigura continuamente.
Infelizmente, em que pese o fato do grande avanço do homem e facilidades
obtidas pelos símbolos da modernidade, resta-nos refletir sobre este novo sujeito
partilhando experiências com os demais, mas sem qualquer interação face a face
e buscar soluções para que o homem possa manter presentes suas emoções mais
íntimas, desvencilhando-se da máquina em que vem se transformando.
72 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Georgina Amazonas Mandarino
Referências Bibliográficas
AUGÉ, M. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.
São Paulo: Papirus, 2004.
BRANDÃO, et al. Gêneros do discurso nas escolas: mito, conto, cordel, discurso
político, divulgação científica. São Paulo: Cortez, 2000.
BAUDRILLARD, J. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2002.
FAIRCLOUGH, N. Critical discourse analysis in the 1990s: challenges and responses. In: PEDRO, E. R. (Org.). Discourse analysis of the 1st International
Conference on Discourse Analysis. Lisboa: Edições Colibri, 1997.
______________. Discurso e mudança social. Brasília: UnB, 2001.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2005.
GIDDENS, A. The consequences of modernity. Cambridge: Polity Press, 1990.
____________. O mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de
nós. Rio de Janeiro: Record, 2000.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A
Editora, 2004.
KRESS, L. G.; van Leeuwen. Semiótica discursiva. In: El discurso como estructura
y proceso. Teun, A. van Dijk (Comp.). Barcelona: Gedisa, 2000.
POSTER, M. A segunda era dos media. Oeiras: Celta, 2000.
Revista Superinteressante. ed. 176, 2002, p. 16 – Informe Publicitário da INTEL
INSIDE.
Revista Superinteressante. ed. 195- 2003. p. 9 – publicidade do aparelho celular.
Revista Superinteressante. ed. 182- 2002, p. 12 – publicidade do cartão de
crédito.
Revista Veja – Vida digital n. 3, ago. 2000, p. 35 – publicidade da universidade
virtual.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
73
PÓS-MODERNIDADE, MÍDIA E
PERFIL IDENTITÁRIO FEMININO
Walkyria Wetter Bernardes* (UnB)
Resumo: O presente trabalho investiga o perfil identitário da mulher e seu papel social
no momento histórico da pós-modernidade. Assim sendo, este artigo discute, à luz da
Análise de Discurso Crítica (ADC), os seguintes tópicos: modernidade, pós-modernidade,
identidade da mulher e seu papel social, e as relações existentes entre discurso, mídia e
poder. Estuda o texto midiático em suas características intertextuais e multissemióticas,
situa a construção do sentido no universo da heterogeneidade e traz para a análise
elementos lingüísticos e semióticos. O resultado dos procedimentos analíticos demonstra
que a construção identitária da mulher pós-moderna pela mídia impressa revela que, ao
mesmo tempo em que a mulher é apresentada como construtora de seu espaço familiar,
profissional e social, a ideologia dominante veicula um discurso extremamente ortodoxo
e antilibertário a seu respeito.
Palavras-chave: Pós-Modernidade; Mídia; Identidade Feminina; Análise de Discurso
Crítica (ADC).
Abstract: The aim of this article is to investigate the constitution of the woman´s identity
and her social function on postmodernity. Thus, this article, based upon Critical Discourse
Analysis (CDA), discusses the following issues: modernity, postmodernity, woman´s identity
and her social function and the relations between discourse, media and power. It studies
the media text through intertextual and multissemiotic characteristics and deals with the
meaning construction in the universe of heterogeneity, and brings semiotic and linguistic
elements to this analysis. The result of this investigation shows that the identity construction
of the postmodern woman by the printed media reveals that at the same time woman
is presented as someone that constructs her familiar, professional and social space, the
dominant ideology disseminates an extremely orthodox discourse about her.
Keywords: Postmodernity; Media; Female Identity; Critical Discourse Analysis (CDA).
* Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em Ensino
de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira pela Universidade de Caxias do Sul. Mestre em Lingüística pela UFRGS e Doutoranda em Lingüística pela UnB. Membro da Asociación Latinoamericana de
Estudios del Discurso (ALED) e pesquisadora do Centro de Pesquisa em Análise de Discurso Crítica
(CEPADIC). E-mail: [email protected].
Parte II – Discurso e Identidade • Pós-Modernidade, Mídia e Perfil Identitário Feminino
Introdução
O
presente artigo investiga o perfil identitário feminino traçado pelo discurso
midiático brasileiro e seu papel social no momento histórico da pós-modernidade. Busca essa constituição identitária pelo exame do discurso da mídia impressa
(jornais e revistas) e discute, inicialmente, no plano teórico, questões pertinentes
à modernidade e à pós-modernidade, à identidade da mulher e seu papel social,
e às relações existentes entre discurso, mídia e poder. Sua ancoragem teórico-metodológica fundamenta-se na Hermenêutica de Profundidade (THOMPSON, 1995)
e nos procedimentos analíticos sugeridos por Fairclough (2001, 2003). Opta pela
análise qualitativa dos dados da pesquisa e procura associá-la aos pressupostos da
teoria de discurso crítica. Fornece apenas a análise de uma amostra do discurso
midiático apresentada como exemplo de investigação que pode ser realizada a
respeito do perfil aqui buscado. Estuda o texto da mídia nas suas características
intertextuais e multissemióticas e situa a construção dos sentidos no universo da
heterogeneidade.1 Traz para a análise elementos lingüísticos e semióticos abordados como componentes de base para a compreensão da lógica que estrutura esse
universo textual.
O estudo que nos propomos realizar procura, por intermédio da lingüística,
especificamente pelo viés da Análise de Discurso Crítica (ADC), abordar a linguagem não apenas como representando importante papel na reprodução das práticas
sociais e das ideologias, mas, inclusive, como elemento poderoso para a transformação da sociedade.
1
A heterogeneidade dos textos, na concepção de Fairclough (2001, p. 137-8), é um modo analítico que
ressalta as linhas e os elementos diversos que contribuem para sua composição. A heterogeneidade
apresenta-se de várias formas, dependendo da complexidade ou não das relações intertextuais. Difere,
inclusive, à medida que seus elementos heterogêneos podem estar integrados e à medida que sua
heterogeneidade é evidente na superfície textual. As aspas e os verbos discendi são elementos de intertextualidade marcados na superfície linear do texto, mas, ao mesmo tempo, podem estar incorporados
estrutural e estilisticamente, talvez por nova formulação do original. Assim, os textos podem ou não
ser reacentuados, recorrendo ou não ao estilo ou ao tom predominante (irônico ou sentimental) do
texto circundante. Desse modo, a superfície dos textos heterogêneos apresenta-se acidentada ou relativamente regular.A intertextualidade instaura a ambivalência, uma vez que diversos sentidos podem
coexistir, dificultando o estabelecimento do sentido.
Assentando a interpretação analítica na materialidade lingüística, Authier-Revuz (1982) apresenta a heterogeneidade como constitutiva do discurso. O sujeito, projetado num espaço e num tempo e orientado
socialmente, situa seu discurso em relação ao discurso do outro, que envolve não apenas o destinatário, para quem planeja e ajusta sua fala, mas que encerra outros discursos anteriormente constituídos
(interdiscurso) e que emergem em sua fala, dividindo, assim, o espaço discursivo com outro. A autora
menciona a heterogeneidade mostrada, a qual se manifesta na própria superfície discursiva, e a heterogeneidade constitutiva, que se refere aos processos reais de constituição de um discurso, ancorando-se
em dois exteriores da Lingüística: o dialogismo bakhtiniano e a Psicanálise (por meio da releitura de
Freud feita por Lacan).
76 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Walkyria Wetter Bernardes
A condição feminina é questão social sobremaneira relevante e complexa, merece, portanto, análise aprofundada. Investigar o discurso midiático a esse respeito
nos possibilita reconhecer a natureza e a complexidade das questões relativas a
esse universo, bem como o pluralismo dos interesses sociais e das formas de poder
aí envolvidas. Dessa maneira, torna-se instigante questionar o modo pelo qual a
mídia contribui para a disseminação de informações a grandes audiências, como
também desvendar o seu real papel como elemento essencial na criação de um
espaço para constituições identitárias.
Pressupostos Teóricos
A ancoragem teórica será feita pela perspectiva da ADC, discutindo-se inicialmente
os conceitos de modernidade e pós-modernidade, apoiados preferencialmente em
Giddens (2000a; 2000b; 2002), Castells (2002), Rouanet (1993) e Fukuyama (1992),
para, a seguir, buscar-se o perfil identitário da mulher e seu papel social na pósmodernidade, em Chouliaraki e Fairclough (1999), Fairclough (1989; 2001), Talbot
(1998), Giddens (2002), Fairclough (2003) e Vieira (2003; 2004), investigando-se,
por último, o papel da mídia na produção e circulação dos sentidos e as relações
de poder aí imbricadas, dando-se primazia a Thompson (1995), Chouliaraki e Fairclough (1999), Kress (1996), Sgarbieri (2003), Kress e van Leeuwen (2001).
Modernidade e pós-modernidade: continuidades e rupturas
Procurando-se caracterizar inicialmente o período moderno, é necessário salientar-se a idéia de que a história da humanidade é marcada por determinadas descontinuidades, e não por uma forma homogênea de desenvolvimento. Estabelecendo-se
uma análise comparativa com os períodos precedentes, Giddens (2000a, p. 14)
afirma que, em termos de extensionalidade e intencionalidade, as transformações
ocorridas no período moderno são mais profundas do que a maioria dos tipos de
mudança que aconteceram nos períodos precedentes. Sobre o plano extensional,
elas serviram para estabelecer formas de interconexão social que cobrem o Globo;
em termos intencionais, elas vieram a alterar algumas das mais íntimas e pessoais
características de nossa existência.
O uso consolidado do poder político, principalmente aquele relativo a episódios
de totalitarismo, embora tivesse sido ligado a estados pré-modernos, estabeleceuse, inclusive, em episódios da história do século XX: o fascismo, o Holocausto, o
stalinismo e outros sistemas de despotismo.
Em uma perspectiva social, ainda segundo Giddens (op. cit.), a força transformadora principal que modela o mundo moderno é o capitalismo, tanto em referência a
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
77
Parte II – Discurso e Identidade • Pós-Modernidade, Mídia e Perfil Identitário Feminino
seu sistema econômico quanto em relação a suas outras instituições. É necessário,
no entanto, que não se esqueça da força do impacto da industrialização.
Torna-se relevante mencionar a perspectiva de Castells (2002) em relação a esse
período final do século XX. Para ele, esse momento é caracterizado pela transformação
de nossa cultura material, operada por um novo paradigma organizado em torno
das tecnologias de informação. Assim sendo, os contextos cultural e institucional,
bem como as situações de vida dos indivíduos, interagem de maneira decisiva com
esse sistema tecnológico.
Chegamos agora aos nossos questionamentos principais: quais são os desenvolvimentos relevantes que afetarão nossa vida nesse início do século XXI? Como
nomear e caracterizar esse período? De acordo com Giddens (2000b), vamos observar
três perspectivas sobre os questionamentos em causa: o fato de que vivemos em
uma sociedade pós-industrial, a idéia de que atingimos um período pós-moderno,
e a teoria a respeito do fim da história.
O início do século XXI é apontado por alguns observadores como um momento
de transição para uma nova sociedade, que coloca a antiga ordem industrial como
ultrapassada pelo desenvolvimento de uma nova ordem social baseada no conhecimento e na informação.
Os defensores da idéia da pós-modernidade acreditam que as sociedades modernas
se inspiravam na idéia de que a “história” ia em alguma direção e conduzia ao progresso e também que, nos primórdios do século XXI, essa noção entrou em colapso:
não há uma concepção unânime de progresso defensável, como já não existe algo que
se possa chamar de história. O mundo pós-moderno é fragmentado, diversificado e
plural. A imagem tornou-se poderosa, circulando pelo planeta em inúmeros filmes,
vídeos, programas de TV, Internet. Os valores e as crenças com os quais interagimos
pouco ou nada têm que ver com a história das áreas em que vivemos ou até mesmo
com nossa história particular. Estão em ascensão hoje a internacionalização, a flexibilidade, a comunicação, a descentralização. Com isso, a nossa própria identidade
está comprometida, localizando-nos em um momento de transição.
A expressão fim da história, atribuída ao escritor Francis Fukuyama (1992),
refere-se a esse período, que se baseia, não no colapso da modernidade, mas em
seu triunfo, em todo o planeta, caracterizado pelo capitalismo e pela democracia
liberal. O fim da história, segundo o autor, significa o ponto final do desenvolvimento da ideologia e da universalização da democracia ocidental como forma
última de governo da humanidade.
O mundo da alta modernidade, na visão de Giddens (2002, p. 19), vai além das
fronteiras das atividades pessoais e dos compromissos individuais, estando pautado
78 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Walkyria Wetter Bernardes
pelos riscos e perigos, os quais devem ser vistos não como um momento de crise,
mas como um estado de coisas mais ou menos permanentes.
Lima (1998, p. 57-8), citando o pensamento de Rouanet (1993), faz algumas
considerações a respeito da política no mundo pós-moderno. Afirma que ela está
voltada para a sociedade civil e busca a conquista de objetivos de grupos ou segmentos da sociedade, colocando-se, assim, em oposição à política moderna, que
atuava no Estado e buscava a conquista ou manutenção do poder estatal.
Sintetizando, na verdade, não há uma ruptura em relação à modernidade. Há,
de acordo com Rouanet (1993), em seu artigo Mal-estar na modernidade, um ressentimento moderno dirigido contra o modelo civilizatório que dá seus contornos
à modernidade: o Iluminismo, o qual, em síntese, visava à auto-emancipação de
uma humanidade razoável, por meio de valores e ideais consubstanciados em
tendências, como o racionalismo, o individualismo e o universalismo. O racionalismo implicava a fé na razão e na ciência, desse modo, deixando para trás
o obscurantismo, libertando a consciência humana do jugo do mito, usando a
ciência para tornar mais eficazes as instituições econômicas, sociais e políticas;
o individualismo buscava a emancipação do indivíduo por meio da individualização, o homem valia por si mesmo, e não pelo estatuto que a sociedade lhe
outorgava; o universalismo dirigia-se a todos os homens, independentemente de
raça, cor, religião, sexo, nação ou classe e combatia os preconceitos geradores
de guerra e de violência. Assim sendo, embora o projeto iluminista tivesse propostas emancipatórias, é óbvio, ainda segundo Rouanet (op. cit.), que, para sua
concretização, o Iluminismo teve de recorrer a métodos tão coercitivos quanto os
do passado. Portanto, poder-se-ia dizer que a pós-modernidade rebela-se contra
esse projeto iluminista fracassado.
A identidade da mulher neste período de transição e seu papel
social
As questões relativas à constituição das identidades estão, de acordo com Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 3), ligadas à chamada modernidade tardia, sendo que
os avanços nas tecnologias de informação, principalmente no que diz respeito aos
meios de comunicação de massa, influenciam sobremaneira na formação dessas
identidades.
Na alta modernidade, segundo Giddens (2002), os dois pólos do local e do
global são instaurados pelas transformações na auto-identidade relacionadas à
globalização, ou seja, mudanças nas questões íntimas da vida pessoal relacionamse diretamente ao estabelecimento de ligações sociais amplas.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
79
Parte II – Discurso e Identidade • Pós-Modernidade, Mídia e Perfil Identitário Feminino
Na discussão das questões relacionadas à identidade, é necessário considerar-se,
também, a abordagem do gênero como uma categoria social, pois, na perspectiva
de Talbot (1998), o gênero caracteriza uma importante divisão em todas as sociedades, afetando o modo de interagir no mundo.
As mulheres que adquirem posição de destaque em empresas, na política ou em
outras situações fora do lar, são, muitas vezes, condenadas por se comportarem
como homem, deixando de ser femininas, ou, então, são criticadas por não se masculinizarem, uma vez que aqueles que estão em posição de destaque (geralmente
os homens) devem todos ter o mesmo perfil. Ao analisarmos essas considerações de
Fairclough (2001), vemos que a ideologia machista, aí presente, vê a mulher como
ser incapacitado para o exercício do poder, seja porque sua condição de fêmea a
interdita para esse exercício, seja simplesmente porque a prática do poder faz com
que se esvazie sua essência, sua constituição identitária, masculinizando-a, isto é,
encaixando-a em uma outra identidade social.
Vieira (2004) ajuda-nos a discutir a construção social da identidade feminina,
chamando a atenção para o fato de que cada período influencia de maneira particular o sujeito na sua forma de pensar e agir. No entender da autora, ao encararmos a
globalização, temos de considerar uma nova ordem de discurso. Salienta que a pósmodernidade tornou o sujeito fragmentado e disperso, reduzindo a subjetividade a um
valor instrumental. Desse modo, a identidade feminina é concebida como produto da
negociação externa da diferença com outros sujeitos, estabelecendo um contínuo, nessa
negociação, cujo propósito é a constituição do “self” (VIEIRA, 2004, p. 4). O espaço
apropriado para essa negociação, então, é a heterogeneidade textual.
Finaliza esse item, apresentando a identidade do sujeito como aberta, formada pela incompletude, adotando traços pessoais, culturais e contextuais que se
confundem com sua própria história. Afirma, ainda, que a subjetividade implica
intersubjetividade. Nós acrescentamos que o sujeito se constitui também e essencialmente pelo olhar do outro.2
Dessas considerações, depreende-se, juntamente com Fairclough (2003, p. 2), que a
linguagem é uma parte irredutível da vida social, assim sendo, o estudo das identidades atinge uma significância maior se investigar sua relação com a linguagem.3
2
Citamos, como parte dessa perspectiva, o princípio bakhtiniano que privilegia a dimensão de outro,
de não-um, na sua abordagem do sentido, princípio esse colocado como constitutivo do sujeito e da
linguagem. O dialogismo, na perspectiva da inscrição do outro no um, refere-se ao plano da relação
interlocutiva e, no prisma de abordagem do outro relacionado ao já dito (antes, em outro lugar), diz
respeito aos outros discursos.
3
Desse modo, Fairclough (2003, p. 2) retoma a perspectiva de Benveniste (1989, p. 286), uma vez que
este considera que é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui em sujeito, porque só a
linguagem fundamenta na realidade, que é a do ser, o conceito de ego.
80 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Walkyria Wetter Bernardes
A interface linguagem-ideologia também deve ser considerada, uma vez que, de
acordo com Fairclough (2001, p. 121):
[...] as práticas discursivas são investidas ideologicamente à medida que incorporam significações que contribuem para manter ou reestruturar as relações
de poder. As questões de gênero, por sua vez, também devem ser abordadas,
preferencialmente no universo das relações sociais.
Discurso, Mídia e Poder
As transformações ocorridas no período da pós-modernidade são, em alto grau,
transformações na linguagem e no discurso. Uma importante característica das
mudanças que aconteceram na modernidade tardia é que elas existem tanto como
discursos quanto como processos que se realizam fora do discurso, no entanto
esses processos que tomam parte no exterior do universo discursivo por ele são
moldados.4 Por exemplo, no contexto nacional, já se fala das metáforas empregadas repetidamente pelo Presidente Lula em seus discursos, recurso esse que a
mídia incorpora e veicula. Essa mudança discursiva reflete e inspira a mudança
social, no caso, em termos de uma nova política brasileira. Ao examinarmos a correspondência entre mídia, discurso e prática social, temos de, indubitavelmente,
investigar as questões de poder que aí se inserem, pois há razões sociais, políticas
e econômicas interessadas na hegemonia de alguns discursos e na marginalização
de outros, ainda segundo Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 4).
Vale, ainda, ressaltar, juntamente com Sgarbieri (2003, p. 22), que atualmente
a imprensa escrita (jornais, revistas) e a oral (rádio e TV) são as principais maneiras de informar e entreter os vários segmentos sociais. As notícias representam
importante papel social na interpretação da realidade por meio das correções e
interpretações dos assuntos veiculados.
Efemeridade e volatilidade dos conceitos, das crenças, dos sentimentos e descartabilidade das mercadorias são elementos constitutivos do capitalismo pósmoderno. Em detrimento do ser, temos o parecer, ocasionando o culto à imagem,
à cultura do consumo de massa, da mídia. Nesse cenário, o texto multimodal se
inscreve, tornando impossível a interpretação voltada apenas para a palavra, pois
o significado estabelece-se pela combinação de vários modos semióticos.
Embora a escrita tenha reinado como o modo de comunicação mais comum nos
últimos séculos, Kress (1996, p. 369) chama a atenção para o fato de que outros
4
Traduzido de “It is an important characteristic of the economic, social and cultural changes of late
modernity that they exist as discourses as well as processes that are taking place outside discourse, and
that the processes that are taking place outside discourse are substantively shaped by these discourses.
Ver Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 4).
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
81
Parte II – Discurso e Identidade • Pós-Modernidade, Mídia e Perfil Identitário Feminino
meios semióticos existiram ao lado dela. Na verdade, a comunicação, para ele,
sempre foi multimodal. O atual poder de ressurreição do visual não deve ser encarado como algo novo, mas como algo redescoberto à luz de uma contemporânea
história da representação.
Essas considerações levam-nos a crer, acompanhando Kress e van Leeuwen
(2001, p. 111), que abordagens do passado e mesmo posturas atuais afirmando
que o significado reside apenas na linguagem, ou de outro modo, que a linguagem
é o meio central de representação e de comunicação, mesmo havendo elementos
extralingüísticos ou paralingüísticos, não são mais plausíveis. Fairclough (1989, p.
27-8) comunga com essas idéias e acrescenta que, em materiais escritos, impressos,
filmados ou televisionados, a significância de elementos visuais é extremamente
óbvia e, que, freqüentemente elementos visuais e verbais operam de modo tão
interativo que se torna difícil desvinculá-los.
Procedimentos Metodológico-Investigativos
Adotamos como procedimento metodológico, na perspectiva discursiva crítica,
o referencial analítico proposto por Thompson (1995) e denominado Hermenêutica de Profundidade (HP), conjugado ao método da abordagem crítica adequada à
análise de discurso desenvolvido por Fairclough (2001; 2003).
A metodologia proposta por Thompson (op. cit.) embasa nossos procedimentos
investigativos pelo fato de que a Hermenêutica de Profundidade, como referencial
metodológico geral para a análise das formas simbólicas, adapta-se à análise da cultura, da ideologia e da comunicação de massa, apresentando esses constituintes como
inter-relacionados em um núcleo comum de pensamento coerente.
A primeira fase da HP diz respeito à análise sócio-histórica e leva em consideração o fato de que as formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas
em condições sociais e históricas específicas. Investigando a organização interna
das formas simbólicas, temos a segunda fase interpretativa: análise formal ou
discursiva. Distinguem-se, nessa abordagem, cinco métodos analíticos dos quais
nos interessam três: análise semiótica, análise sintática e análise argumentativa.
A terceira fase de investigação, chamada de interpretação/re-interpretação, é o
momento em que se dá uma explicação interpretativa do que está representado ou
do que é dito (THOMPSON, op. cit., p. 375).
Ampara, também, nossa análise, a metodologia proposta por Fairclough (op. cit.),
uma vez que nos permite a investigação de textos como parte de eventos sociais
concretos, possibilitando, ao mesmo tempo, a abordagem da intertextualidade. Em
um segundo momento, nos fornece ancoragem para a investigação da estrutura
textual em relação ao gênero (reportagens) e, posteriormente, possibilita o estudo
82 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Walkyria Wetter Bernardes
do discurso como modo particular de representação do mundo e como elemento
para a prática política e ideológica. E, finalmente, nos capacita para o estudo do
estilo, ou seja, do modo como as pessoas constroem sua identidade e como são
identificadas pelos outros. É importante salientar que devemos considerar, nesse
processo investigativo, a concepção tridimensional do discurso: análises textual e
lingüística, da prática discursiva e da prática social.
Acreditamos, junto com Thomas (1993), que a investigação crítica, no momento
em que nos possibilita “pensar o mundo” e “agir sobre ele”, também nos capacita para a mudança da nossa subjetividade interpretativa, bem como das nossas
condições objetivas.
Entendemos, com Cameron et al. (1992), que, nesse percurso, a relação entre
pesquisador e pesquisado envolve a ética, a defesa e o fortalecimento.
Análise interpretativa de discurso midiático na perspectiva da
HP de Thompson (1995) e Fairclough (2001; 2003)
Análise sócio-histórica
O presente trabalho investiga um texto publicitário da Revista Veja de 31 de
março de 2004 pelo viés da HP. (ver anexo)
Situações espaço-temporais
O texto publicitário analisado destina-se a homens que moram em cidades
grandes e investiga o momento atual
Campos de interação
As formas simbólicas visam a homens pertencentes à classe média ou alta,
maduros e bem-sucedidos, provavelmente cultos e de bom gosto, que sabem viver
bem e apreciar o que é sofisticado, prazeroso e de qualidade.
Estrutura social
O texto publicitário investigado apresenta-nos uma estrutura social bastante
estratificada, uma vez que procura atingir apenas a classe média ou alta pelo seu
poder aquisitivo, dirigindo-se aos homens, mas apenas àqueles bem-sucedidos profissionalmente e, portanto, seguros, donos de condições financeiras invejáveis.
Meios técnicos de transmissão
O texto foi difundido na Revista Veja, de 31 de março de 2004, veículo de comunicação de massa, ao qual têm acesso as classes média e alta da população
brasileira.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
83
Parte II – Discurso e Identidade • Pós-Modernidade, Mídia e Perfil Identitário Feminino
Análise formal ou discursiva
Análise semiótica
Ao realizar-se uma leitura por meio da análise semiótica, observa-se que esse
texto publicitário oferece um campo de investigação particularmente rico, pois
está baseado na lógica da associação ou do deslocamento simbólico: a mercadoria
(no caso, a vodka Smirnoff) é qualificada por meio de sua associação a “objetos
desejáveis” e “a homens com autoridade e posição social invejável”. A associação
é estabelecida por intermédio de palavras e imagens que constituem esse texto
publicitário. Ao mesmo tempo em que se pode ver um homem e sua filha, também
é possível que se perceba o homem e sua amante. A imagem vem acompanhada de
duas alternativas (filha/amiga da filha), sendo que uma das opções (em destaque
no texto escrito) deve ser a escolhida (amiga da filha).
O elemento “cor” também torna-se essencial para o desencadeamento desse tipo
de análise. A imagem, em preto e branco, é representada ocupando duas páginas
da revista. Na página que fica à direita, sobressaem, no fundo preto e branco,
o logotipo Smirnoff, as alternativas a serem escolhidas (filha/amiga da filha) e
a garrafa de vodka, os três elementos em vermelho, destacando o produto a ser
consumido, ligando-o aos prazeres da vida (o homem e sua amante bela e jovem).
A cor vermelha é tida, na cultura popular, como a cor da paixão, dos sentimentos
arrebatadores, das experiências inesquecíveis. Por isso, o mundo em preto e branco parece torna-se colorido e extremamente interessante no momento em que a
mercadoria (vodka/mulher) é consumida.
Análise sintática
As frases são curtas, diretas e objetivas e enfatizam o universo das imagens
e o jogo das cores. Em termos de modalidade, a sua construção, no presente do
indicativo, salienta a veracidade e a atualidade dos fatos:
Você não precisa ser puro, sua vodka sim.
Smirnoff: 3 vezes destilada, 10 vezes filtrada.
Radicalmente pura.
Na última frase (Aprecie com moderação), o uso do imperativo é um recurso do
texto publicitário para induzir o leitor a comportamentos direcionados.
Interpretação/re-interpretação
Há todo um jogo que brinca com a ironia no momento da análise das formas
simbólicas: Você não precisa ser puro, sua vodka sim. Smirnoff: 3 vezes destilada,
84 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Walkyria Wetter Bernardes
10 vezes filtrada. Radicalmente pura. Por meio da análise semântica dos vocábulos puro/pura, observa-se o recurso da ironia usado para brincar com conceitos
morais: você, homem de meia-idade, inteligente, poderoso, bem-sucedido profissionalmente, tem o direito de desfrutar de uma bebida tão pura e refinada como a
vodka Smirnoff. Além disso, por fazer parte desse seleto grupo que consome esse
tipo de bebida, você também pode dar vazão ao seu gosto refinado pelas coisas
boas da vida (uma mulher jovem e bonita).
Ao pé da página localizada do lado esquerdo, abaixo da figura do casal, lê-se:
Aprecie com moderação. Essa expressão adverbial (com moderação), por intermédio
do jogo irônico, refere-se tanto à bebida quanto aos excessos que, por ventura, possam ser praticados pelo homem de meia-idade em relação ao sexo.
A análise das formas simbólicas nos permite a entrada no campo da ideologia, em que as relações de poder se estabelecem, possibilitando a explicitação da
ligação entre o sentido mobilizado por elas e as relações de dominação que esse
sentido ajuda a estabelecer e sustentar, conforme Thompson (1995). Assim sendo, apreende-se da análise da ideologia que o homem que tem dinheiro, projeção
social, inteligência, pode burlar as regras morais sem que isso seja visto como um
ato condenável. Na verdade, é encarado como um fato de direito desse tipo de
indivíduo. Em outra perspectiva, poder-se-ia afirmar que, se você também prefere
a referida vodka, você, com certeza, poderá usufruir as mesmas vantagens. A
mulher é vista, nessa perspectiva, como objeto de consumo. Ela oferece o mesmo
prazer veiculado pela bebida.
Considerações Finais
A análise elaborada sob a perspectiva da HP (THOMPSON, 1995), amparada
pelos pressupostos teóricos de Fairclough (2001; 2003), não objetiva esgotar as
possibilidades de investigação dessa tipologia textual. Ela apresenta, como propósito maior, a investigação do perfil identitário feminino pela perspectiva discursiva
crítica e procura, nessa abordagem, extrair das mensagens o caráter ideológico
com referência ao contexto sociohistórico específico em que essas mensagens são
produzidas, circulam e são recebidas, dentro de uma teoria social orientada para
a auto-reflexão crítica das pessoas que formam esse universo.
Apresenta o texto midiático marcado ideologicamente e engendrado por relações
de poder. Como texto pós-moderno, constitui-se no âmbito da multimodalidade,
sendo que desempenha importante papel no seu universo constitutivo não apenas
a palavra escrita, mas todo um aparato semiótico que permite o exame de diversos
elementos, desencadeado a partir da relação existente entre os aspectos textuais
e os sentidos sociais.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
85
Parte II – Discurso e Identidade • Pós-Modernidade, Mídia e Perfil Identitário Feminino
Na sociedade do capitalismo tardio, a mídia adquire importância econômica.
Os “produtos” apresentam um caráter lingüístico, porque são criados, desenvolvidos e divulgados em um contexto específico de linguagem. O principal produto
na sociedade consumista é o consumidor, envolto em sua própria imagem, que
o faz parecer extremamente poderoso e belo, cercado de ilusões de conforto e
grandiosidade. Esse ser, ávido por tudo aquilo que o mantenha no ápice: álcool,
cocaína, Prozac, Viagra, Lexotan, ecstasy, silicone, plásticas, roupas, carros, que
o exibam jovem, belo, poderoso, enfrenta diariamente o aflorar de seu mal-estar.
Na verdade, o que esse sujeito pós-moderno almeja e não atinge é transformar
em realidade a encenação que a mídia realiza de seu “eu”. O sujeito, nesse tipo
de texto publicitário, é abordado no contexto midiático como se fosse uma estrutura vazia, uma vez que é passível de diferentes preenchimentos identitários que
veiculam propósitos ideológicos específicos. Na verdade, na tipologia textual aqui
exemplificada, a mídia, ao vender produtos, constitui identidades.
Considerando-se a importância do texto midiático na veiculação de idéias, empreender a dissecação dessas relações existentes entre língua, sociedade pós-moderna
e mudança social nos possibilita, concomitantemente, a compreensão de questões
que dizem respeito à relação entre discurso e outras facetas extradiscursivas do
mundo social, estabelecendo-se um diálogo estreito entre teoria social crítica e
lingüística.
Referências Bibliográficas
AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogénéite montrée et hétérogénéite constitutive: éléments pour une approche de lautre dans le discours. D. R. L. A. V., n. 26, p.
91-151, 1982.
BAKHTIN, M. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
Hucitec, 1999.
BENVENISTE, É. Da subjetividade na linguagem. In: _________. Problemas de
lingüística geral I. São Paulo: Pontes, 1989.
CAMERON, D.; FRAZER, E.; HARVEY, P.; RAMPTON, M. B. H.; RICHARDSON,
K. Researching language: Issues of Power and Method. London and New York:
Routledge, 1992.
CASTELLS, M. A sociedade em rede. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2002.
CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity: rethinking
critical discourse analysis. Edinburg: Edinburg University Press, 1999.
86 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Walkyria Wetter Bernardes
FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledges, 2003.
______________. “Critical discourse analysis in the 1990s: challenges and responses”. In: Emilia, R. P. (Org.). Discourse analysis proceedings of the 1st
international conference on discourse analysis. Lisboa: Edições Colibri, 1997.
_______________. Discurso e mudança social. Magalhães, Izabel. (Coord.). da trad.,
rev. técnica e prefácio. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
______________. Language and power. Londres: Longman, 1989.
FUKUYAMA, F. The end of history and the last man. Londres: Hamish Hamilton, 1992.
GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. Trad. de Raul Fiker. São Paulo:
Ed. Unesp, 2000a
___________. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2002.
___________. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós.
Rio de Janeiro: Record, 2000b.
KRESS, G. Multimodal texts and critical discourse analysis. In: Proceedings of
the first international conference on discourse analysis. Compilado por Emília,
R. P. Universy of Lisbon, Portugal: Colibri, 1996.
KRESS, G.; van LEEUWEN, T. Multimodal discourse: the modes and media of
contemporary communication. London: Arnold, 2001.
_________________________. Reading images: the grammar of visual design.
Londres e Nova York: Routhedge, 1996.
LIMA, R. S. O dado e o óbvio: o sentido do romance na pós-modernidade. Brasília: EDU/Universa, 1998.
ROUANET, S. P. Mal-estar na modernidade: ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
SGARBIERI, A. Mídia, gênero e poder. In: MAGALHÃES, I.; LEAL, M. C. D. Discurso, gênero e educação. Brasília: Plano Editora; Oficina Editorial do Instituto
de Letras da UnB, 2003.
TALBOT, M. M. Language and gender: an introduction. Cambridge: Polity Press,
1998.
THOMAS, J. Doing critical ethnography. London: Sage Publication, 1993.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
87
Parte II – Discurso e Identidade • Pós-Modernidade, Mídia e Perfil Identitário Feminino
THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos
meios de comunicação de massa. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
VIEIRA, Josenia Antunes. “A identidade da mulher na modernidade”. In: MAGALHÃES, Isabel; RAJAGOPALAN, Kanavillil (Orgs.). DELTA. São Paulo, v. 21,
Especial, 2004.
VIEIRA, J. A.; SILVA, D. E. G. da (Org.). Práticas de análise do discurso. Brasília:
Plano Editora: Oficina Editorial do Instituto de Letras, UnB, 2003.
ANEXO: Texto publicitário investigado
Fonte: Revista Veja, 31 mar. 2004.
88 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
Parte III
discurso e educação
Harrison da Rocha
Josenia Antunes Vieira
Gramática tradicional e língua escrita:
duas faces de um mesmo poder*
Harrison da Rocha** (UnB)
(...) as classes gramaticais lhe são apresentadas (ao aluno) a partir de definições, sem que os critérios de classificação sejam explicitados e sem que
os objetivos da própria classificação sejam considerados. Aprende nomes de
classes, definições, faz exercícios, mas não consegue entender a razão de tais
classificações. Obviamente, a teoria gramatical tradicional que embasa os estudos
escolares não tem critérios muito precisos – ora os critérios são morfológicos,
ora semânticos, ora sintáticos. Além disso, toda classificação responde a algum
objetivo teórico (em língua não há classes naturais e aquelas que construímos
respondem a alguma necessidade do estudo teórico que as produziu), e este
objetivo nunca é explicitado no ensino da gramática (a classificação parece ter
um valor em si) (Geraldi, 1996).
Resumo: Neste artigo, procuro explicar as causas do fracasso do ensino de Língua Portuguesa
na escola. Chegaremos à conclusão de que as causas são várias, mas o ponto a ser discutido
serão aquelas que restringem o ensino apenas à modalidade escrita, tendo em vista que as
sociedades se comunicam por meio de vários modos semióticos. Para chegar a essa conclusão,
remontarei à Antiguidade Clássica, berço do surgimento da Gramática Tradicional, época em
que a modalidade escrita produzida pelas elites passou a ser norma de todos; depois veremos
como se situou essa prática na Península Ibérica, no Brasil Colônia e até os nossos dias. O
surgimento da Lingüística, das teorias sobre Letramento e sobre os Gêneros Discursivos e
as mudanças para o ensino apenas abalaram as bases da Gramática Tradicional.
Palavras-chave: Ensino de Língua Portuguesa; Gramática Tradicional; Gêneros Discursivos;
Letramento; Legislação.
Abstract: In this article I discuss the causes for students failure in education of Portuguese
Language at Brazilian schools. I conclude that the causes are several, but a point to
be argued is the focus of education: the written modality. The human communication
is produced in different semiotic ways. To conclude that I will retrace to the Classic
Antiquity, cradle of the sprouting of Traditional Grammar, time when the written modality
* Este artigo já foi publicado resumidamente em: ROCHA, Harrison da et al. Reflexões sobre a língua
portuguesa: uma abordagem multimodal. Petrópolis: Vozes, 2007.
**Mestre e Doutorando em Lingüística pela Universidade de Brasília (UnB); especialista em Língua
Portuguesa pela UnB; Especialista em Literatura Brasileira Moderna pelo Centro Universitário de
Brasília (UniCEUB); professor do UniCEUB de Língua Portuguesa e de Lingüística; membro da Asociación Latinoamericana de Estudios del Discurso (ALED) e da Associação Brasileira de Lingüística
(ABRALIN); pesquisador do Centro de Pesquisa em Análise de Discurso Crítica (CEPADIC). E-mail:
[email protected].
Parte III – Discurso e Educação • Gramática Tradicional e Língua Escrita: Duas Faces de um Mesmo Poder
was produced for the elites started to be norm for all; later we will see how this practice
was pointed out in the Iberian Peninsula, Brazil Colony until nowadays. The sprouting
of writings in Linguistics, theories of Literacy and Discursive Genders, the areas of
discourse based in verbal genders and changes for education had only affected the
bases of Traditional Grammar.
Keywords: Education of Portuguese Language; Traditional Grammar; Discursive Genders;
Literacy; Legislation.
Introdução
O
ensino da Língua Portuguesa-Padrão ainda é um fracasso em muitos contextos
escolares. Isso não é novidade para ninguém, seja aluno, seja especialista. O
tema vem sendo discutido por muitos estudiosos. Cada um desses expertos centrase na problemática de acordo com sua formação e perspectiva teórica.
Quem é o culpado do insucesso? Os alunos? Os professores? Os coordenadores?
As instituições de ensino? A política de ensino do Governo? As condições de trabalho a que os docentes são submetidos? O ensino calcado na modalidade escrita?
A Gramática Tradicional (GT)? Tudo isso tem um pouco de verdade, mas centrarei
o problema nestes dois últimos tópicos. Veremos que se instaurou um problema
à medida que a escrita, como objeto de ensino, norma de poucos, passou a ser
imposta a todos. Isso tem origem na Antiguidade Clássica. Desse modo, revelarei
os processos históricos, sociais e políticos que a adotaram como modelo a ser
seguido, começando pela Grécia, depois na Península Ibérica e Brasil nos séculos
XVI, XVII, XVIII e XIX.
Em seguida, situarei o ensino de Língua Portuguesa (LP) nos séculos XX e
XXI, para mostrar que, apesar dos muitos estudos sobre a linguagem humana e
de algumas mudanças ocorridas para o ensino, não surtiu muito efeito: continua
centrado no grafocentrismo, tendo a GT como a representante e a escola como
elemento mantenedor do poder das elites.
A oralidade raramente é vista como objeto de estudo e, quando se aplicam a
escrita e/ou a oralidade em sala de aula, o foco é quase sempre lingüístico, esquecendo-se de outros modos de representação. Para o tópico, alguns autores que se
têm dedicado a repensar o ensino de LP, independentemente da linha de pesquisa
adotada, serão citados, mas, dado o recorte para este artigo, privilegiarei o discurso. De outra parte, uma vez que minha abordagem é crítica, recorro à Análise
de Discurso Crítica (ADC), uma área interdisciplinar e transdisciplinar, o que me
possibilita dialogar com várias áreas, como História, Educação, Sociologia etc.
92 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Harrison da Rocha
Na seqüência, discutirei a contribuição ou não da Lingüística para o estudo das
línguas e para o ensino. Farei referência a muitas correntes da Lingüística e suas
subáreas a fim de mostrar que muitas delas, apesar do discurso científico, foram
similares, em parte, à abordagem mecanicista da linguagem.
Para contrapor, serão apresentadas, resumidamente, as novas áreas que têm
possibilitado o repensar do ensino de LP: a Teoria dos Gêneros Discursivos e a
Teoria do Letramento. Além dessas, citarei a legislação governamental, incluindo
os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que provocaram mudanças no ensino
de LP, até mesmo na maneira de se fazer o livro didático, mas veremos que estão
longe de atingir o ideal.
Descaminhos do ensino de Língua Portuguesa
Façamos uma incursão histórica a fim de buscar as origens de uma prática redutora
para denunciar de que modo a norma-padrão é um instrumento de manutenção de
poder. Remontarei a uma tradição milenar na Grécia antiga, berço do surgimento
da GT, depois, a Portugal, época de sua formação territorial, e, óbvio, momento de
constituição de sua identidade lingüística, ao Brasil Colônia até nossos dias.
Valorização de uma variedade de prestígio e o surgimento da
Gramática Tradicional
Na história do pensamento grego, verifica-se grande atenção aos fatos de linguagem. Em Crátilo, Platão trata mais dos problemas de linguagem. Vê-se, assim,
que a preocupação com a língua não é recente, e o ensino de língua distanciado da
realidade lingüística da sociedade teve seu início já com Platão, com Aristóteles,
e depois com os sofistas. Aqui me baseio em Neves (1987).
Ao tomar consciência da discrepância entre os padrões do grego clássico e da
linguagem corrente, contaminada por “barbarismos”, colocaram-se em exame os
autores cuja linguagem oferecia os padrões ideais que deveriam ser preservados.
Ao lado da crítica literária, desenvolveu-se a atividade filológica. Para alcançar
os objetivos, os estudiosos sistematizaram o estilo usado pelos grandes escritores
para que virasse norma.
Da situação cultural que cercou o nascimento dos estudos gramaticais, decorreram as características determinantes de sua natureza: limitação à língua escrita,
especialmente à língua literária, e exclusivamente à grega (...). O fato de os gregos
terem utilizado o termo grammatiké para designar a arte de ler e escrever para dar
nome ao estudo da língua costumava ser invocado para evidenciar a atenção que,
desde o início, foi dada à língua escrita. A gramática dos filósofos não era, pois,
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
93
Parte III – Discurso e Educação • Gramática Tradicional e Língua Escrita: Duas Faces de um Mesmo Poder
a gramática no sentido comum tradicional. A grammatiké, que correspondia ao
que comumente se chamava gramática e instrumento de cultivo e de preservação
de valores, era obra típica da cultura helenística.
Os gramáticos alexandrinos foram mais práticos. Codificaram a gramática grega
e lançaram o que seria o modelo da gramática ocidental tradicional. Dionísio o
Trácio foi o verdadeiro organizador da arte da gramática na Antiguidade, dandolhe forma que ainda hoje pode ser reconhecida em obras gramaticais do Ocidente.
Mas tal fato trouxe um erro fatal para os estudos lingüísticos.
John Lyons (1968) afirma que a abordagem dos fenômenos lingüísticos proposta
pelos gramáticos alexandrinos incorreu em “dois equívocos fatais”: a separação
rígida entre língua escrita e língua falada; a forma de encarar as mudanças das
línguas (que é simplesmente mudança e não “corrupção”, “ruína”, ou “decadência”, como eles acreditavam – e muitos até hoje acreditam). Para Lyons, esses dois
equívocos uniram-se para formar o “erro clássico” no estudo da linguagem, erro
que se perpetuou durante dois milênios e, somente no final do século XIX e início
do XX, começou a ser criticado e revisto.
E a história se repete na Península Ibérica
Como vimos, essa relação entre prestígio e poder em linguagem vem de longe e
pode ser observada desde as origens da Língua Portuguesa na Península Ibérica. No
século XII, Afonso Henriques proclamou-se rei, e Portugal tornou-se independente.
Esse rei residia ao Norte, mas posteriormente seus sucessores deslocaram suas residências para o Sul. Primeiramente para Coimbra e, finalmente, para Lisboa. Em
1255, o Rei Afonso III passou a residir em Lisboa, e a cidade, desde então, tornouse a capital de Portugal. Desse fato, surgiu o prestígio da língua falada em Lisboa
– o que ocorreu com todas as outras línguas –, em contraste com a desvalorização
de outras variedades, as do campo, por exemplo.
Em razão do poder da Corte, a variedade usada por aquela classe privilegiada
passou a ser mais valorizada. Portanto, uma variedade lingüística foi associada aos
poderes centrais de Portugal e a uma região econômica e politicamente mais forte.
Por exigências políticas e culturais, a variedade falada em Lisboa passou a ser associada à escrita. Esta conferia à variedade empregada maior prestígio, tornando-a
um parâmetro lingüístico a ser seguido.
Para dar maior legitimidade à variedade de prestígio, surgiram as gramáticas da
língua portuguesa baseadas na antiga gramática de Dionísio o Trácio. A primeira
foi a Grammatica da lingoagem portuguesa (1536), de Fernão de Oliveira; a segunda, Grammatica da língua portuguesa (1539-1540), de João de Barros; Regras que
ensinam a maneira de escrever e a ortografia da língua portuguesa, de Pedro de
94 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Harrison da Rocha
Gândavo, 1574; e, por último, Ortografia e origem da língua portuguesa, de Duarte
Nunes de Leão, 1576. Esses acontecimentos se devem a razões de ordem política
e envolvem também questões de poder. Vejamos a seguir.
A descrição gramatical da língua portuguesa foi um meio de elevar o prestígio
dessa língua ao padrão dos idiomas clássicos. Quando Antonio de Nebrija publicou, em 1492, a primeira gramática de uma língua românica, o Espanhol, mexeu
com o orgulho de Portugal. Além disso, o Espanhol era uma língua de prestígio
falada por muitas pessoas em Portugal. Assim, este País precisava firmar a língua portuguesa diante da espanhola. Outra razão foi a sistematização do idioma
“nacional” para que pudesse ser difundido e ensinado aos povos e suas regiões
recém-conquistadas, sobrepujando outras variedades do português e, em países
recém-conquistados, todas as variedades. Data, portanto, dessa fase histórica,
a elaboração do que hoje podemos chamar de norma-padrão clássica da língua
portuguesa. E foi, dessa forma, que esse idioma veio para nosso País no século
XVI. Assunto da próxima subseção.
Brasil: do “achamento” territorial a um “perdimento”
lingüístico
Segundo Orlandi (1993), os discursos fundadores funcionam como referência
básica no imaginário constitutivo de um país e estabilizam-se como referência na
construção da memória nacional. O que os caracteriza como fundador é que ele
cria uma nova tradição, ele resignifica o que veio antes e institui aí uma memória
outra (...). Uma marca muito importante do discurso fundador é a construção do
imaginário necessário para dar uma “cara” a um país em formação. Com o discurso
fundador “Terra à vista”, inicio esta subseção.
Nesse processo, não posso deixar de mencionar a ação dos jesuítas para o
discurso fundador, uma vez que veio carregada de uma prática moral e religiosa.
Mas, também, não posso deixar de mencionar o caos lingüístico a que eram submetidos os escravos. Em meados do século XVI, os jesuítas vieram para as terras
posteriormente chamadas Brasil. Tinham a missão, desde essa época, de realizar a
premissa medieval do primado da fé defendida pela Igreja e pela Coroa Portuguesa,
a qual sobrepõe os interesses político-religiosos aos interesses econômicos do lucro.
A imagem dos jesuítas é passada de forma positiva, destacando o jesuitismo como
“civilizador”, necessário. Mas isso não corresponde à realidade dos fatos.
Leiamos o que afirma, a esse respeito, Maestri (2004):
O trabalho deles na realidade foi uma tentativa de homogeneização lingüística do Brasil. A Companhia de Jesus apostou claramente na educação e na
escola como forma de disciplinar as consciências. É evidente que os jesuítas
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
95
Parte III – Discurso e Educação • Gramática Tradicional e Língua Escrita: Duas Faces de um Mesmo Poder
pretenderam desenvolver um sistema escolar tendo como objetivo inculcar a
sua doutrina, mas ele também correspondeu ao desejo de grande número de
pessoas, que viram nos seus colégios uma forma de adquirirem um saber que
lhes possibilitasse melhorar a sua condição social.
Educar significava, primeiramente, formar os índios na fé, nos bons costumes,
na virtude, na piedade, na religião. A cultura portuguesa era religiosa, logo a educação do colégio também o era. Assim foi a educação na Colônia. Nas aulas de
gramática, aprendia-se e recitava-se de cor a doutrina cristã.
Sempre se menciona a tentativa de educação dos índios. E os negros? Como
ficou a educação lingüística dos escravos a essa época? Desconhecia-se o cativo,
apesar de ser uma força de trabalho importante no início da colonização. O universo lingüístico em terras estranhas a que se submetia o escravo era de natureza
caótica. A mistura lingüística constituía uma verdadeira torre de Babel: o português,
as línguas indígenas, as diferentes línguas transplantadas da África. Desse modo,
o cativo tinha a sua frente um aprendizado sumário das línguas e falares locais
à medida que era fincado pelos sertões e pelos litorais. Não eram introduzidos à
prática do português. Eles tinham de aprender o conhecimento da língua dos senhores, mesmo que rudimentarmente.
Com o passar dos anos, o cativo poderia se tornar um negro ladino, ao ser
introduzido na Língua Portuguesa e demonstrar capacidade de aprender. Mas,
brutalizados pela escravidão, milhares de africanos jamais transitaram a essa situação. Ler, escrever e contar eram habilidades raríssimas entre os trabalhadores
feitorizados (Maestri, 2004).
No século XVIII, a ação dos jesuítas sofre golpe. Os propósitos entre a Coroa
Portuguesa e a Companhia de Jesus desabam-se em meio às transformações ocorridas em Portugal. Essa atitude acompanhou o que aconteceu em outros lugares,
pois o Iluminismo europeu deu-se entre 1740 e 1770. Os jesuítas passaram a ser
recusados pela parcela ilustrada da sociedade portuguesa não só como grupo pertencente à Igreja, mas também como colonizadores e educadores.
Em 1750, ocorre a expulsão dos jesuítas no Brasil e, no âmbito da educação escolar, a reformulação do sistema de ensino da metrópole e das colônias (Hilsdorf,
2003). A conseqüência mais imediata para a Colônia foi o fechamento dos colégios
jesuítas e a transferência do controle de suas missões. No caso do ensino, a opção
governamental foi a instalação de “aulas régias”, professores concursados de diferentes disciplinas, pagos pelo Estado, com o fim de substituir, em outras bases
filosóficas e curriculares, o trabalho dos jesuítas.
Assim, Marquês de Pombal impôs o uso da língua portuguesa no Brasil e proibiu
o uso de quaisquer outros idiomas. Isso implicou nova política lingüístico-cultural
96 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Harrison da Rocha
em que a língua portuguesa passa a ser obrigatória. Desse modo, o portuguêspadrão começa a se definir a partir da segunda metade do século XVIII, uma vez
que essa variante passa necessariamente por questões relativas à escolarização,
ao uso escrito e a sua normatização.
Embora esse ato tenha tido o objetivo de democratização da escola, esta continuou não sendo para todos. Mattos e Silva (2004) diz que a escola não teve vez de
se implantar efetiva e generalizadamente no Brasil, restringindo-se apenas a uma
minoria economicamente privilegiada e a alguns quantos seres excepcionais, que,
desde as origens coloniais, rompiam as limitações impostas pelo desenvolvimento
socioeconômico e cultural perverso. Ainda hoje, o povo brasileiro luta para ter acesso
à escola pública de boa qualidade. Segundo Houaiss (1985), até o século XVIII, havia
apenas 0,5% de letrados,1 taxa que aumenta de 20% a 30% ao longo do século XIX
até 1920 e que de resto se mantém.
No primeiro recenseamento geral, em 1872, entre os escravos, o índice de analfabetos atingia 99,9% e, entre a população livre, aproximadamente 80%, subindo para
mais de 86%, quando consideramos as mulheres (Fausto, 1994). Segundo ainda o
mesmo autor, 16,8% da população, entre 6 e 15 anos, freqüentavam escolas. Havia
apenas 12 mil alunos matriculados em colégios secundários. Calcula-se que chegava
apenas a 8 mil o número de pessoas com curso superior.
O século XIX, por sua vez, foi palco de fato histórico de grande relevância
política e lingüística. Houve transferência do Reino Unido de Lisboa para o Rio de
Janeiro. Isso significou mais um golpe nas variedades não-padrão. A nova capital
teve características do português europeu. Isso naturalizou mais ainda a variedade lusitanizante, antes reforçadas por Marquês de Pombal, no século XVIII, pelo
aumento da escolarização e pelo acesso ao ensino da população negra e afro-descedente recém-liberta etc.
A essa época, a primeira preocupação do Governo durante a primeira metade do
século XIX era a formação de uma elite dirigente. Isso implicou a concentração de
esforços no Ensino Superior e secundário. O primeiro Grau e o Técnico-Comercial
quase não receberam estímulos.
Na próxima subseção, mostrarei que muita coisa ainda não mudou nos séculos
XX e início do século XXI. O foco será dado à relação entre linguagem escrita e
poder e o ambiente escolar como local privilegiado de reificação do prestígio da
escrita.
1
O termo “letrado” empregado aqui se refere tão-somente ao letramento formal, aprendido nas escolas,
tendo a escrita como a modalidade privilegiada.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
97
Parte III – Discurso e Educação • Gramática Tradicional e Língua Escrita: Duas Faces de um Mesmo Poder
Ensino da Gramática Tradicional: Fracasso Anunciado
O ensino de LP-Padrão, através dos tempos, recebeu várias denominações:
Gramática Nacional, Língua Pátria ou Idioma Nacional, Comunicação e Expressão,
Português. Mas a mudança, em grande parte, só ficou restrita às denominações, pois
o privilégio à língua escrita, calcado em uma abordagem mecanicista e distante do
mundo de quem estuda, tem permeado todas essas nomenclaturas.
Guimarães (1996), apud Lagazzi-Rodrigues (2002), afirma que, para o processo
de institucionalização do movimento de gramatização brasileira do português, houve
quatro períodos: o 1º e o 2º caracterizam-se por debates sobre questões de língua
entre brasileiros e portugueses; o 3º é marcado pelo acordo ortográfico de 1943,
pelo debate sobre o nome a ser dado à língua falada no Brasil; e o 4º foi sobre a
obrigatoriedade da disciplina Lingüística no curso de Letras.
Com o crescimento da ciência lingüística, nunca houve tanta crítica sobre a
GT como agora. E essas críticas vêm não necessariamente de lingüistas preocupados com a relação entre linguagem, sociedade, poder e ensino, mas daqueles que
sempre estiveram interessados apenas na descrição do português. Desse modo,
esta subseção será atravessada por vários teóricos e seus pontos de vista sobre o
ensino de LP.
Perini (1997) apresenta proposta de renovação do ensino de GT nas escolas,
para tanto afirma que a gramática formalista, que nos foi ensinada na escola, é
composta de duas fases: na primeira aprendemos (ou mais precisamente, não aprendemos) uma nomenclatura complicada e confusa, uma selva de sujeitos, adjuntos,
advérbios, orações subordinadas, enfim, um palavrório que parece inventado de
propósito para esconder a falta de conteúdo da disciplina; e na segunda, somos
submetidos a uma série de ordens e de recomendações do tipo “nunca diga nem
escreva isto, porque o certo é aquilo”. E, piorando ainda mais a situação, paira a
idéia de que a gramática já estava pronta: obra de cérebros há muito extintos, não
muda nem pode mudar.
Rocha (2002), mais radical, defende a exclusão da GT do ensino de LP. Para ele,
o que deve ser ensinado é a língua pela prática, pelo desenvolvimento das diversas
competências lingüísticas dos alunos, em especial o domínio da norma-padrão,
sem o estudo da gramática. Segundo o autor, o objetivo das aulas de Português é
tornar o aluno proficiente: saber ler, interpretar, redigir os vários tipos de texto. O
autor propõe que a gramática fique restrita a estudo por especialistas – lingüistas
e estudantes universitários do curso de Letras. E afirma: “Se um aluno completa o
ensino médio sabendo redigir bem, para que lhe servirá aprender identificar uma
oração subordinada?”.
98 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Harrison da Rocha
Possenti (1996) afirma que devermos fazer com que o ensino de português deixe
de ser visto como a transmissão de conteúdos prontos e passe a ser uma tarefa de
construção de conhecimentos por parte dos alunos, uma tarefa em que o professor
deixa de ser a única fonte autorizada de informações, motivações e sanções.
De outra parte, Bagno (2001) lembra que se deve desenvolver a prática da leitura
e da escrita e da releitura e da reescrita, sem a necessidade de decorar nomenclaturas
(sejam elas as tradicionais ou as de alguma teoria moderna) nem de empreender
exercícios mal formulados e incongruentes de análise e de descrição mecânica dos
fatos gramaticais, exercícios baseados em definições imprecisas e em métodos mais
do que questionáveis (para não falar dos “truques” e “macetes” que não têm fundamentação teórica nenhuma!).
Radicalismos à parte, apesar de muitos terem escolhido a gramática como “saco
de pancada” e de terem razão em muitos pontos, é quase voz geral, inclusive
a minha, que a norma-padrão há de ser ensinada. Como se poderia abandoná-la,
se as instituições insistem em colocá-la como uma barreira para ascensão social
de segmentos que não dominam essa norma? Para que isso ocorra, deve existir
uma reformulação de currículos escolares e de mentalidade. Muitos concursos
públicos, vestibulares precisariam repensar suas práticas. Isso parece muito difícil
de ocorrer.
Além disso, a função precípua da escola é ensinar a norma-padrão, tendo em
vista que se deve ensinar algo que o aluno ainda não conhece. Além do mais, a GT
tem valores que não podem ser negados: ao acumular o testemunho de diferentes
épocas, desse modo seria, também, a história de uma variedade prestigiada. Mas
não concordo quando ela é escolhida como sendo a única forma de ensinar a língua
portuguesa, pois isso tem implicações políticas.
Nos trechos anteriormente citados, nenhum dos autores questionou as relações
de poder que se estabelecem nos ambientes escolares e sociais quando se escolhe
uma variedade de língua – e na modalidade escrita – de uma determinada classe
social para ser a norma de todos. Para mim, a GT contribui, e muito, para naturalizar e manter a discrepância social por meio da escrita. Como esta sempre teve
privilégios, uma frase isolada, tirada quase sempre de escritores famosos, era/é
analisada sob diferentes perspectivas imanentes, a frase pela frase. É assim que a
GT faz. A valorização da estrutura tem sido assim há séculos. Vamos analisar, de
agora em diante, a trilogia linguagem, escrita e poder.
Segundo Bourdieu (1998), em A economia das trocas lingüísticas, tratar as relações
sociais como interações simbólicas é legítimo, porém existem outras relações envolvidas no processo, como as de força entre os locutores e seus respectivos grupos.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
99
Parte III – Discurso e Educação • Gramática Tradicional e Língua Escrita: Duas Faces de um Mesmo Poder
Todo ato de fala é uma conjuntura: de um lado, existem as capacidades lingüísticas
que dão origem a infinitos discursos gramaticalmente aceitos para cada situação;
do outro, existem as estruturas lingüísticas como um sistema de sanções.
Para ele, a língua é imposição e objeto de dominação. Ela está enredada com
o Estado. Existe uma lei (língua oficial) que dispõe do seu corpo de juristas (gramáticos) e seus agentes de imposição e controle (professores); ela tem o poder de
submeter universalmente ao exame e às sanções do título escolar de desempenho
de seus falantes. O fato de erigir um determinado falar como norma de outra
existe para suprir a necessidade de intercompreensão entre as comunidades. Para
constituir uma nação, é indispensável a língua-padrão (código universal), esta é
impessoal e é um trabalho de normatização. Mas, segundo ele, as línguas só existem em estado prático.
É a escola que legitimará a língua oficial. Whorf, apud Bourdieu (1998), em sua
teoria da linguagem, vê a ação da escola como instrumento intelectual e moral. O
código que rege a língua escrita correta, em oposição à língua falada, “inferior”,
adquire força de lei na escola. Os falares populares são menosprezados.
Vejamos o que afirma Kleiman (1995) a respeito do ensino de LP nas escolas:
As práticas desmotivadoras, perversas até, pelas conseqüências nefastas que
trazem, provêm, basicamente, de concepções erradas sobre a natureza do
texto e da leitura, e, portanto, da linguagem. Elas são práticas sustentadas por
um entendimento limitado e incorreto do que seja ensinar português, entendimento este tradicionalmente legitimado tanto dentro como fora da escola. É
dessa legitimidade que se deriva um dos aspectos mais nefastos das práticas
limitadoras (...): elas são perpetuadas não só dentro da escola, o que seria de
se esperar, mas também funcionam como o mecanismo mais poderoso para
a exclusão fora da escola. Os diversos concursos para cargos públicos e para
vagas em colégios e universidades, sejam estes a nível federal, estadual ou
municipal, ou setor privado, exigem do candidato o conhecimento fragmentado e mecânico sobre a gramática da língua decorrente de uma abordagem
de ensino que é ativamente contrária a uma abordagem global, significativa,
baseada no uso da língua.
Segundo Leal (2003), nesse contexto, é claro que não se pode esperar do estudante o domínio da leitura e da interpretação de textos e muito menos que ele
tenha prazer em ler e desenvolver o hábito de ler. Mas como ter a expectativa de
que o estudante desenvolva uma habilidade que, muitas vezes, o próprio professor
não tem? Pergunta. Ainda segundo ela:
Entretanto, de nada adianta ficarmos criticando o(a) professor(a), é necessário, isto sim, que sejam oferecidas soluções para o problema, cujo centro está,
acredito, na falta de definição dos objetivos da educação nacional, na formação
do(a) docente e nas condições de trabalho. Considero que, no contexto histórico
em que vivemos, o(a) professor(a) deve ser um(a) profissional que, além da
100 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Harrison da Rocha
competência técnica, tenha consciência de que deve contribuir para a formação
de sujeitos críticos, conscientes dos problemas e necessidades do país e capazes
de poder transformar essa realidade, enfim, verdadeiros cidadãos.
Para Bernstein (1996), toda educação é intrinsecamente uma atividade moral que
expressa a ideologia do grupo dominante. A comunicação pedagógica se direciona
em favor dos interesses do grupo dominante, produzindo um viés para a desvalorização da cultura e consciência do grupo dominado. Os códigos de comunicação são
distorcidos em favor daquele grupo: a cultura, a prática e a consciência do grupo
dominado são representadas erroneamente, são distorcidas e recontextualizadas
como tendo menos valor.
Segundo Bourdieu (1998), existe uma política lingüística envolvida nesse processo, sugerindo lucro material e simbólico aos detentores da língua oficial. Fica
subentendido, portanto, que a língua é meio de ascensão social. Para mim, é nos
campos educacionais e do trabalho que o preconceito se mostra mais forte, eliminando os não-detentores da norma legitimada. Sobre isso Gnerre (1994) afirma: “Os
cidadãos, apesar de declarados iguais perante a lei, são, na realidade, discriminados
já na base do mesmo código em que a lei é redigida.”
No ambiente escolar e na sociedade, a escrita goza tanto de privilégios que sua
produção é permeada por mitos. Garcez (2001) diz que foram enraizados e configurados em nossa vida escolar, pelos pais, colegas, professores e até pelos livros
didáticos, como, por exemplo, que escrever é um dom. Há um conjunto equivocado
de influências nesta relação com os atos de escrever, e poucas pessoas conseguem
escapar dessas influências.
Marcuschi (2004) assevera que a apropriação da escrita é um fenômeno “ideologizável”. Isso pode ser observado ao passo que a alfabetização possui aspectos
contraditórios; ela pode ser útil ou preocupante aos governantes. Os que detêm o
poder pensam que ela deveria se dar de preferência sob o controle do Estado e das
escolas formalmente instituídas. Nesse caso, o controle e a supervisão do Estado
orientam o ensino para os propósitos objetivos dele. Contudo, mesmo em culturas
amplamente alfabetizadas, o ser humano é inevitavelmente oral nos dias atuais.
Ainda para Bourdieu (1998), o paradoxo de toda pedagogia é que ela pretende
instituir um trabalho de ensino da língua pelas regras de gramáticos do passado que
expõem as práticas de expressão escrita, e, mais uma vez, ele afirma que as regras
existem em estado prático. O uso legítimo da língua tem valor. Dias (1996), para
completar o raciocínio, diz que a língua-padrão é uma língua platônica, a norma
culta adquire uma fixação que faz parecer permanente, principalmente quando é
impressa. Os excluídos nesse discurso podem pertencer à “coletividade”, mas o
discurso predominante os apaga como membros históricos da nação.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
101
Parte III – Discurso e Educação • Gramática Tradicional e Língua Escrita: Duas Faces de um Mesmo Poder
Finalizo esta parte com Rajagopalan (2003) que caracteriza bem o tópico da
subseção:
A saúde de uma disciplina se mede pela presteza com a qual ela consegue
responder a novas realidades que surgem no mundo em que vivemos e pelo
interesse que ela evidencia em atender aos anseios e preocupações típicas de
cada época.
A Lingüística e o Compromisso com a Educação
Primeiramente, pergunto: a Lingüística tem vínculos com a educação ou pode
ajudar a educação? Antes de responder a essas questões, devo indagar: “Para que
serve a Lingüística?”. Vejamos algumas opiniões, antes de esboçar a minha, em
Xavier e Cortez (2003):
Acho que não serve para nada e serve para tudo. Para mim, ela serve para que
eu consiga ter um emprego para que eu consiga sustentar minha casa, criar os
meus filhos. Pelo menos, para isso ela serve (Borges Neto).
Mil e uma utilidades. É como aquele produto aí que se vende: mil e uma
utilidades. Quando a gente começa a estudar, a gente está mais atento às utilidades práticas. Então, você vai dar respostas que estão hoje nessa interface
da lingüística aplicada e da educação (Ataliba de Castilho).
(...) A lingüística ou a ciência que a suceder estudando os fenômenos da linguagem e dos processos sociais de constituição dos sujeitos e das suas consciências
sígnicas é fundamental para a compreensão do fenômeno humano. Incluída
esta questão na lingüística, questão que vem se desdobrando nos estudos da
aquisição da linguagem, da afasia, das relações entre discurso e poder, ampliase o campo da ciência lingüística (Geraldi).
Concordo com Ataliba de Castilho, quando afirma que a Lingüística tem mil
e uma utilidades. Para mim, ela serve para que eu reflita sobre a linguagem para
que eu conheça melhor a natureza do homem, uma vez que aquela é constituidora
deste. Serve-me para refletir sobre o que é língua, sobre suas manifestações, o que
está por trás disso, como eu posso entendê-la. E, nas áreas mais modernas, serveme para entender as relações entre discurso e poder no ensino. Passo às respostas
da primeira e da segunda perguntas.
Quase todos os especialistas concordam, e eu estou com eles. Os que discordam, o fazem em parte. Para Fiorin, os avanços da Lingüística podem ajudar a
educação. Para ele, divulgar o avanço dessa área é tão importante como fazer
avançar a ciência. Além disso, a Lingüística tem o papel de educar para a democracia, educar para a cidadania. Borges Neto afirma que não há compromisso
necessário, mas há um compromisso interessante que resulta de a educação ser
uma área em que temos o que dizer.
102 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Harrison da Rocha
Para Geraldi, compreender o homem é compreender que a linguagem é constitutiva da consciência dos sujeitos, de seus modos de pensar, isso compromete
necessariamente a Lingüística com a educação. Ilari responde: “Ah, sim. Sim, sim,
sim (...)”. Koch diz que há um vínculo importante entre Lingüística e educação,
principalmente do ponto de vista textual. Se eu fizer uma retrospectiva dos estudos
lingüísticos, será que todas as áreas da Lingüística tiveram preocupação com o
ensino ou foram aplicadas ao ensino? Façamos essa viagem.
No Estruturalismo, aplicaram as teorias emergentes às línguas e tentaram fazer
o mesmo ao ensino, porém consideraram apenas estruturas (Fonologia, Morfologia,
Sintaxe etc.), deixando de lado o social, apesar de Saussure ter afirmado que a
língua possuía sua contraparte social.
Para o Funcionalismo, surgido nos anos 1930, no seio do Estruturalismo, a
classificação dos componentes (fonológico, morfológico, sintático etc.) é feita com
base na função social que eles desempenham, e não na sua natureza física. As
décadas de 1950 e 1960 foram férteis para os estudos lingüísticos. Nos anos 1950,
surge a Gerativa. Com a Teoria do Inatismo, Chomsky explicou, do seu ponto de
vista, a aquisição e o desenvolvimento da linguagem e teve importância também
por considerar a criatividade e a produtividade das línguas naturais, aspecto não
considerado pelo movimento anterior, o Estruturalismo, mas continuou em sua
abordagem de análise valorizando estruturas.
Nos anos 1960, a Sociolingüística assumiu o lado social da linguagem. Uma de
suas propostas ainda é mostrar a covariação sistemática das variações lingüística e
social, por isso derruba muitos preconceitos lingüísticos arraigados sobre linguagem
e classe social e, com isso, a noção de erro, principalmente para o ensino, toma
nova direção. Nessa mesma década, surge também novo ramo da Lingüística, a
Lingüística Textual. Coube a ela investigar não apenas a palavra e a frase, mas o
texto e suas propriedades constituidoras, e assim chegar ao que seria textualidade.
A Pragmática, tendo seus pressupostos mais sistematizados a partir das décadas
de 1950 e 1960, estuda como os enunciados comunicam significados em um contexto. Interessa-se pelo significado que não é intrínseco à expressão lingüística,
mas resulta da soma desta com o contexto.
Na década de 1970, surge a Análise Conversacional. Apesar da flutuação de
sentido que o termo conversação carrega, seu objetivo era observar aquilo que os
falantes estão fazendo, e como estão fazendo, nos atos de fala, por meio de conceitos
e de termos derivados da observação.
Apesar da importância desses movimentos e das subáreas em Lingüística e, por
conseqüência, para o estudo da natureza da linguagem humana, não têm muito a dizer,
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
103
Parte III – Discurso e Educação • Gramática Tradicional e Língua Escrita: Duas Faces de um Mesmo Poder
mais uma vez, sobre a relação entre linguagem e poder, tampouco revelam o papel
da linguagem na reprodução da dominação em sala de aula, noções tão essenciais
para o ensino de LP. Ao contrário da GT, valorizam sobremaneira a fala. Além desse
fato, não questionam a restrição semiótica que se estabelece ao se escolher apenas a
modalidade escrita ou falada como as únicas formas de comunicar. A comunicação é
um mecanismo cujas capacidades geradoras são ilimitadas.
Para Bourdieu (1998), aquele que acredita que o valor está na complexidade da
estrutura sintática comete erro. Aqui, ele inclui Comte, Saussure e Chomsky, que
têm a língua como “tesouro universal”, possuído como propriedade indivisa por
todo o grupo. A língua é vista como um bem público. Erram também, segundo ele,
aqueles que acreditam que o uso dominante é o que é legítimo. Todos eles escamoteiam as questões econômicas e sociais da aquisição da competência legítima e da
constituição do mercado onde se impõe o legítimo sobre o ilegítimo. E continua sua
crítica: “Os lingüistas incorporam à teoria de difusão da língua apenas aspectos da
dinâmica interna desta, ocultando o processo propriamente político de unificação
pelo qual os falantes são obrigados a aceitar a língua oficial”.
Para reforço crítico, leiamos o que nos diz, a esse respeito, Garcez (1998):
A língua é produto de um trabalho coletivo e histórico, de uma experiência
que se multiplica de forma contínua e duradoura, assegurando intrinsecamente
uma margem de flexibilidade e indeterminação. Essa indeterminação provém
do fato de que nenhum enunciado tem em si mesmo, isoladamente, condições
necessárias e suficientes para permitir uma interpretação unívoca (...). A linguagem não existe no vácuo, mas imersa numa rede de valores discursivos de
vários níveis. Assim, todo o universo lingüístico constrói-se, existe e funciona
num universo social, coletivo, e não pode ser abstraído dessa condição.
Em que momento a relação entre linguagem e poder foi abandonada pelos
estudos lingüísticos? Nos poemas homéricos, já se associam o falar e o agir (...).
O poder ligava-se diretamente à ação, mas a palavra era participante. Assim, no
poder de Zeus, pai dos deuses e dos homens, manifesta-se a complementaridade
da ação e da palavra; representado o ideal humano, Zeus fala forte e age eficazmente (Neves, 1987). Mas essa relação entre linguagem e ação, entre linguagem e
poder, tem sido valorizada por áreas da Lingüística mais modernas, como veremos
na próxima subseção.
Para um Novo Paradigma no Ensino de Língua
Portuguesa
Desde os anos 1980, vêm surgindo muitas concepções para o estudo do discurso
em áreas da linguagem: Letramento, Teoria dos Gêneros, Análise de Discurso Crítica
e Multimodalidade etc. Segundo Charaudeau e Maingueneau (2004), “isso é sintoma
104 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Harrison da Rocha
de uma modificação no modo de conceber a linguagem” e, por conseqüência, um
sintoma de mudança para o ensino. Vejamos duas dessas áreas resumidamente.
Teoria dos gêneros discursivos
Os gêneros discursivos, segundo Bakhtin (1997), têm íntima relação com a noção
de estilo. De acordo com possibilidades lingüísticas, o falante realiza escolhas e
imprime sua marca para o contexto e para o interlocutor; em relação aos gêneros
discursivos, a situação é semelhante, mas o estilo é coletivo. Determinada cultura
possui seus gêneros situados historicamente.
Ele afirma que é muito provável que os enunciados produzidos por diferentes
locutores, em circunstâncias diferentes, em um determinado domínio de atividade,
apresentem soma de traços recorrentes, indicando que pertencem a um mesmo
tipo. Assim, podemos afirmar, então, que cada um desses enunciados é a realização
individual do estilo geral ao qual ele pertence. Leiamos o mesmo autor:
O enunciado, em sua singularidade, apesar de sua individualidade e de sua
criatividade, não pode ser considerado como uma combinação absolutamente
livre das formas da língua (...) pode-se ler no texto, mas é em função de nosso
domínio dos gêneros que os usamos com desenvoltura, que descobrimos depressa e melhor a nossa individualidade (...), que realizamos com um máximo
de perfeição o projeto discursivo que concebemos livremente.
Para ele, existem dois tipos de gêneros discursivos: os primários e os secundários. Os gêneros primários correspondem uma diversificação da atividade lingüística
humana relacionada com os discursos da oralidade em seus mais variados níveis
(diálogos, discurso pedagógico, filosófico etc.). Aos segundos agregam-se os gêneros
socialmente mais restritos (Literatura, Filosofia, ciência, política etc.).
Fairclough (2003) amplia a noção de estilo não só para caracterizar os gêneros
discursivos, mas também as identidades pessoais. Por isso é interessante vermos,
segundo ele, que os estilos estão ligados à identificação, ou seja, como as pessoas
se identificam e são identificadas pelas outras. Os estilos são realizados em uma
série de aspectos lingüísticos. Primeiro, aspectos fonológicos: pronúncia, entonação,
acento tônico, ritmo. Segundo, vocabulário e metáfora – uma área de vocabulário
que varia com a identificação e que intensifica com advérbios, como, por exemplo,
“pavorosamente”, “terrivelmente” e “espantosamente”, assim como palavras de insulto, que funcionam de uma forma similar (“ensangüentado”, “irritante” etc.).
Para ele, estilos são também aspecto discursivo das formas de ser, identidades.
Quem você é, em parte, uma questão de como você fala, como você escreve, assim
como é uma questão de incorporação – como você olha, a forma de parar, como
se move, e assim por diante. Mensagens tanto sobre identidade social (e.g. classe
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
105
Parte III – Discurso e Educação • Gramática Tradicional e Língua Escrita: Duas Faces de um Mesmo Poder
social) como sobre personalidade são conduzidas pelas seleções variáveis feitas
pelas pessoas de palavras etc.
Isso tudo é o que Coroa (2005) chama de “trabalho simbólico”:
(...) E chamamos de trabalho simbólico aquele que utiliza como ferramenta
– como instrumento – os signos ou símbolos. E os signos lingüísticos são as
palavras. Nesse sentido de simbólico nada mais eficiente do que a palavra. É
pelas palavras que o homem constitui sua atividade lingüística. E é pela atividade lingüística que o homem se constitui como sujeito social e se distingue dos
demais animais do planeta.
Para Marcuschi (2002), “os gêneros textuais são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social (...) apresentando alto poder preditivo
e interpretativo das ações humanas em qualquer contexto discursivo”. Desse modo,
todo gênero discursivo deve ser visto como um produto do seu tempo e analisado
como tal.
Em aulas de português de produção e de recepção de texto, é importante que se
compreenda a distinção entre gêneros e tipos textuais. A contraparte dos gêneros é
a tipologia textual, a matéria-prima lingüística. Segundo Maingueneau (2002), são
recursos da gramática, situados no interior dos gêneros, que nos possibilitam criações
discursivas concretas, e são classificadas como narração, argumentação, descrição,
injunção e exposição. Já os gêneros discursivos são formas verbais de ação social
relativamente estáveis realizadas em momentos situados em comunidades de práticas
sociais e em domínios discursivos específicos.
Para aprofundar-me mais sobre essa questão, Faïta (1997) e Coroa (2005)
também têm algo a dizer. Para o primeiro, os gêneros do discurso mostram-se
ao locutor como recursos para pensar e dizer. Mas podemos, simulando uma
atividade em outra, desviar um gênero de seu destino e contribuir assim, em um
determinado momento da história, para novas formas de estratificação discursiva, conseqüentemente para o aparecimento de novas variedades entre infinitas
variedades de gêneros. Para Coroa (2005), as tipologias textuais, ou “mescla”
como ela chama, servem não só para caracterizarmos os estilos pessoais, mas
também os literários. Tudo que depende das escolhas do falante, ao produzir seus
textos, tem um componente histórico – porque resulta de experiências pessoais e
coletivas – e um componente individual de “intenção” de fazer – um componente
de trabalho lingüístico.
Letramento
Antes, preciso fazer a distinção entre os campos do Letramento, da alfabetização e da escolarização. Para Marcuschi (2004), o primeiro é um processo de
106 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Harrison da Rocha
aprendizagem social e histórica da leitura e da escrita em contextos informais e
para os usos utilitários. O segundo pode dar-se à margem da instituição escolar;
trata-se de um aprendizado mediante o ensino e compreende o domínio ativo e
sistemático das habilidades de ler e de escrever. O último, por sua vez, refere-se à
prática formal e institucional de ensino que visa à formação integral do indivíduo.
A escola tem projetos educacionais amplos, ao passo que a alfabetização é uma
habilidade restrita.
Desde a Antiguidade Clássica, como vimos, a linguagem escrita sempre teve
privilégio social e histórico. Esse grafocentrismo provocou o distanciamento entre
a fala e a escrita e implicou estudo de linguagem em termos da dicotomia oral/
escrito. No Estruturalismo, houve uma inversão de valores: apenas à modalidade
oral era atribuído o status de língua (Vieira, 2003).
As restrições a esse modelo dicotômico, ainda segundo Vieira (2003), provocaram
o surgimento de novos estudos – intitulados de Letramento. Desse modo, houve
mudanças significativas no modo de encarar as práticas de escrita, opondo-se aos
estudos da Lingüística sistêmica que considera a escrita apenas como ferramenta ou
mero instrumento. Barton (1994) menciona tipos diferentes de letramento, que, de
algum modo, ajudam o indivíduo a interagir com outros membros da coletividade.
Tal dicotomia foi substituída, na década de 1980, pela noção de continuum (Chafe, 1982). Naquela década, a tese do continuum logrou êxito, uma vez que ocorreu
a superposição do oral e do escrito, porém Street (1993) critica essa abordagem,
tratando-a como inadequada para o problema, pois, segundo ele, a diferença entre o
oral e o escrito só poderá ser compreendida plenamente à luz do contexto social.
Sobre isso Marcuschi (2004) afirma:
(...) a oralidade e a escrita são práticas e usos da língua com características
próprias, mas não suficientemente opostas para determinar dois sistemas lingüísticos nem uma dicotomia. Ambas permitem a construção de textos coesos e
coerentes, a elaboração de raciocínios abstratos e exposições formais e informais,
variações lingüísticas, sociais, dialetais, etc. Em certas situações, percebe-se
que a oralidade sobrepõe a escrita; entretanto, numa dada sociedade, a escrita
pode impor-se e adquirir um valor superior à oralidade. Vê-se, então, que são
as práticas sociais que determinam o lugar, o papel e o grau de relevância da
oralidade e do letramento numa sociedade.
Apesar da controvérsia do termo “letramento”, Kleiman (1995) afirma que
o Letramento é mais bem compreendido como um conjunto de práticas sociais,
coincidindo com Marcuschi (2004). Ela sustenta, ainda, que o termo “letramento” é usado em vez de “alfabetização” por causa de, em certos grupos sociais, as
crianças serem letradas por possuírem estratégias orais letradas, antes mesmo de
serem alfabetizadas.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
107
Parte III – Discurso e Educação • Gramática Tradicional e Língua Escrita: Duas Faces de um Mesmo Poder
Da mesma forma que há sobreposição entre o oral e o escrito em contextos
socialmente situados, há também entre as práticas e os eventos de Letramento.
Que diferenças há entre eles? As práticas envolvem valores, atitudes, sentimentos e
relações sociais. Elas são atualizadas por eventos, que são ocorrências individuais
e imediatas da vida social. As práticas são padronizadas pelas instituições e pelas
relações de poder; têm propósito determinado e estão inseridas em práticas culturais
e metas sociais mais amplas; elas mudam, e novas são freqüentemente adquiridas
por meio de processos informais de aprendizagem e de produção de sentidos.
Street (1984) estabelece dois modelos, o modelo Autônomo e o modelo Ideológico. Ele classifica como modelo Autônomo as atividades de uso da escrita na
escola, que subjazem à concepção de Letramento dominante na sociedade. No
segundo modelo, os estudos sobre Letramento são utilizados atualmente em pesquisas sociais que permitem descrever e entender os microcontextos em que se
desenvolvem as práticas, procurando determinar em detalhe como elas são. Esse
modelo é também chamado de modelo Alternativo, pois destaca explicitamente
o fato de que todas as práticas são aspectos, não apenas da cultura, mas também
das estruturas de poder em uma sociedade.
A respeito do Letramento, já se sabe que é caracterizado assim: lida necessariamente com texto e discurso, podendo associar outras formas semióticas; está associado
a diferentes domínios sociais; é historicamente situado; é constituído por meio de
práticas sociais e de eventos de Letramento; se as práticas de Letramento mudarem,
novas serão freqüentemente construídas por meio de processos informais de aprendizagem e de produção de sentidos; destaca-se explicitamente o fato de que todas as
práticas são aspectos, não apenas da cultura, mas também das estruturas de poder em
uma sociedade; há diferentes letramentos associados a diferentes domínios da vida;
o Letramento extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições
que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos nesse mundo.
Hamilton et al. (1998) retomam a primeira característica do Letramento no parágrafo anterior, ampliam, assim, as noções de Letramento e discutem, também, o
papel de dados visuais na pesquisa social. Em particular, informações que podem
ser oriundas de imagens da mídia. O principal ponto dos autores a ser estudado
é mostrar que as práticas de Letramento não estão presas somente a eventos de
ações situadas, mas a momentos de práticas capturadas pela fotografia. Para ela,
as fotografias são particularmente apropriadas para documentação de aspectos do
Letramento desde que estejam associadas a textos.
Essa passagem da autora abre as possibilidades de um Letramento para além do
texto escrito ou falado. Mas ainda está muito restrita para representar toda gama
de sentidos produzidos socialmente. O Letramento é um processo de construção de
108 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Harrison da Rocha
sentidos, individual e socialmente. E, como todo grupo social é complexo, as práticas de Letramento são também um complexo semiótico. Desse modo, justifica-se
falar em Multiletramentos, que englobaria todos os modos de representação social.
Depois do surgimento dos novos estudos lingüísticos, de abordagens discursivas e
críticas, está havendo mudanças para o ensino de LP – nosso próximo assunto.
Algumas mudanças para o ensino de Língua Portuguesa
No contexto educacional brasileiro, tem havido mudanças. A nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB, Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), que estabelece as
diretrizes da educação nacional; a Resolução CNE/CP nº 01, de 18 de fevereiro de
2002, que institui diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores
da educação básica, em nível superior, curso de licenciatura de graduação plena;
e os PCN, surgidos depois da lei citada, são elementos orientadores da melhoria
da qualidade do ensino brasileiro e devem, portanto, ser observados criticamente
quando se busca promover mudanças em processos voltados para o trabalho da
escola. O ponto positivo delas é levar o aluno à cidadania pela criticidade e pelo
espírito investigativo, científico. Vejamos.
A LDB, no seu art. 32, I e II, Ensino Fundamental, reza que este nível de ensino tem como objetivo desenvolver a capacidade de aprender, tendo como meios
básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo. Para o Ensino Médio,
art. 35, III, o objetivo é o aprimoramento do educando como pessoas humanas,
incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do
pensamento crítico.
Para o nível superior, art. 43, I e VI, a finalidade é estimular a criação cultural
e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo e estimular
o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e
regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta
uma relação de reciprocidade.
Os PCN sugerem que o trabalho com textos deve ser feito na base dos gêneros
discursivos, sejam eles orais ou escritos. Pois, segundo eles, a perspectiva dos estudos gramaticais na escola, até hoje, centra-se, em grande parte, no entendimento
da nomenclatura gramatical como eixo principal: descrição e norma se confundem
na análise da frase, essa deslocada do uso, da função e do texto.
O Projeto Gestar (MEC), cujo objetivo é ajudar, a distância, na formação de
professores de LP em regiões carentes no Brasil na aplicabilidade dos PCN, está
tendo muita aceitação. Inicialmente, o Projeto foi implantado nas regiões Norte,
Nordeste e Centro-Oeste. Passa por reformulação e uma dessas mudanças é atingir
todas as regiões do País.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
109
Parte III – Discurso e Educação • Gramática Tradicional e Língua Escrita: Duas Faces de um Mesmo Poder
Além desse projeto, há outros programas que visam à melhoria do ensino.
O Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), por exemplo, instituído em
1997, cujo objetivo é democratizar o acesso de alunos e professores à cultura e à
informação para contribuir para o fomento à prática da leitura e à informação de
alunos e professores leitores. O PNBE/2003, assim como o PNBE/2002, ampliaram o atendimento, atingindo não só alunos de 4ª Série, mas também da 8ª e da
Educação de Jovens e Adultos.
Quanto aos reflexos nos livros didáticos, Rojo e Batista (2003) afirmam que,
no campo da produção editorial, o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) delineou o “norte” para a qualidade dos livros didáticos. Desse modo, o percentual de
livros recomendados tem aumentado, vem contribuindo para o ensino de melhor
qualidade e possibilitando reformulação dos padrões do manual escolar e criando
condições adequadas para a renovação das práticas de ensino nas escolas.
Algumas observações
Apesar da importância inegável da Teoria dos Gêneros Discursivos e da Teoria
do Letramento para o ensino de LP, algumas observações podem ser feitas. Afirmase muito que os gêneros são o resultado de seqüências textuais, matéria-prima
lingüística; denomina-se o gênero como “x”, mas não se levantam os muitos
recursos que concorreram para formá-lo, não se valoriza o hibridismo; consideram-se como construtos sociais, mas as imagens ou outras forma simbólicas
ficam de fora. Quanto ao Letramento, confunde-se apenas a perspectiva formal,
valorizando-se, quase sempre, o que se adquire nos bancos escolares, a escrita; e,
mais uma vez, ficam de fora outros modos de representação.
Quanto à legislação, apesar de ser erga omnis, ainda é muito desconhecida de
muita gente. De outra parte, há uma multidão de pós-graduados, bacharéis em
Letras, sem nenhuma formação na legislação, sem formação discursiva, sem conhecimento dos PCN, sem experiência de sala de aula, dando aulas como se fosse
para bacharelado, e não para Licenciatura. A proposta dos PCN é muito boa, mas
ainda não conseguiu atingir a parcela significativa de professores desejada.
No tocante à política do livro didático, segundo ainda Rojo e Batista (2003),
precisa passar por reformulações, seja em razão da própria dinâmica do processo
de avaliação, aquisição e distribuição, tendo em vista as alterações ocorridas nos
últimos anos. Além disso, precisa priorizar os conteúdos em relação às novas mudanças ocorridas no cenário comunicacional, Internet etc. É necessário considerar
outras formas de representação fazendo seu trabalho simbólico por meios de outros
modos semióticos, além da fala e da escrita.
110 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Harrison da Rocha
Se não houver a formação adequada, teremos muitos equívocos. Muitas escolas, tentando fugir do paradigma de insucesso do ensino de LP e dando-se ares de
modernidade, quando se aventuram a ensinar fatos de língua por meio de textos,
ainda o fazem como pretexto para pinçar categorias lingüísticas, separando-se, quase
sempre, ou de estudos literários, ou de gramática ou de leitura. Quando estudam
o discurso, baseiam-se apenas em textos orais ou escritos.
Não questionam as relações de poder no interior na linguagem, não consideram
a comunicação fazendo seu trabalho para além de frases isoladas, fossilizadas, diacrônicas, pinçadas de escritores famosos (repito), importantes como testemunhos
de uma época, mas inúteis para representar todo o colorido da língua. Não levam
o aluno a refletir, interagir, eliminando sua subjetividade ou sua intersubjetividade
e conduzindo-o a reproduzir leituras padronizadas e “autorizadas”, eliminando sua
potencialidade simbólica e sua criticidade.
Quando os gêneros discursivos são empregados, não se vislumbra mudança,
consciência crítica, mas pretexto para trazer o social para a sala de aula – processo
apenas de cima para baixo (top-down). Quando se ensina discurso, quase sempre
reduzem-se as possibilidades semióticas. Isso se caracteriza como um processo de
verdadeira política de exclusão lingüística e, por conseqüência, social. E as instâncias
de poder agem, também, por meio de imagens, sons, cores, diagramação etc.
Considerações Finais
Neste artigo, meu objetivo foi procurar as causas do fracasso do ensino de Língua Portuguesa (LP). Esse intento levou-me a várias causas, porém escolhi aquelas
milenares que restringiam o ensino apenas à modalidade escrita cujo representante
oficial é a Gramática Tradicional (GT), tendo o ambiente escolar como contexto ideal
para reificar e naturalizar tal prática. Vimos que esta quase nada mudou, apesar
das mudanças da política educacional, do surgimento da Lingüística, das teorias
lingüísticas modernas e das teorias discursivas, como veremos a seguir.
Mesmo depois de tantas mudanças para o ensino de LP, como leis, resoluções,
Planos Curriculares Nacionais (PCN) e teorias modernas que influenciaram o ensino, como as Teorias dos Gêneros Discursivos e do Letramento, projetos voltados
para o ensino ou especificamente para o ensino de LP, o ensino quase nenhuma
influência sofreu.
Nem o surgimento da Lingüística com seus quase 100 anos não tem ajudado
muito para mudar essa realidade perversa, pois, valorizando a fala, achou que
apenas descrever as línguas era o suficiente. Privilegiar o oral é um grande avanço.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
111
Parte III – Discurso e Educação • Gramática Tradicional e Língua Escrita: Duas Faces de um Mesmo Poder
Mesmo assim, ainda é uma restrição às maneiras com que as pessoas comunicamse diariamente. Por último, muitas áreas que valorizam o discurso, apesar de ser
uma prática da hora, também cometem seus pecados, pois se baseiam, em grande
parte do trabalho, em gêneros orais e escritos.
Vi que o ensino de Língua Portuguesa baseado na escrita era reducionista por
vários motivos. A escolha da modalidade escrita tem implicações políticas, pois
privilegia a variedade que é utilizada pela elite que usa e quer ver usada. O estilo
literário é quase sempre escolhido como modelo a ser seguido, mas não é a linguagem
corrente no dia-a-dia das pessoas. Saber falar e escrever só são válidos nos moldes
da GT – isso já dura mais de 2 mil anos! Além disso, os gêneros discursivos são
empregados considerando-se quase sempre as tipologias textuais, deixando de lado
a função social. Valorizam-se sobremaneira os gêneros construídos por seqüências
lingüísticas, fechando-se outras possibilidades semióticas que ajudaram a construir
a peça discursiva. Por último, a valorização de gêneros apenas visuais e dos multiletramentos ainda está muito longe de ser aceita.
A fala e a escrita diferenciam as possibilidades de comunicação como também
as suas conseqüências cognitivas culturais e sociais, pois se, por exemplo, as possibilidades de comunicação são mais limitadas para uma pessoa em relação àqueles
que a rodeiam, então, sua oportunidade de participar plenamente na vida política,
social, cultural são limitadas. Em conseqüência, os sentidos produzidos por aqueles que dominam sua produção continuarão dominando. Dessa forma, se os seres
humanos produzem e negociam sentidos em vários modos, somente as línguas não
são o bastante para concentrar a atenção de quem esteja interessado na produção e
na reprodução de sentidos. Assim, se os gêneros são sempre multimodais, a leitura
do modo apenas lingüístico resulta problemática e insuficiente.
O mundo letrado exerce grande influência sobre as pessoas. As sociedades, sempre
multissemióticas, tornaram-se mais complexas, principalmente com o advento tecnológico que imprimiu maior velocidade na produção, na distribuição e no consumo
de textos/gêneros discursivos/práticas sociais. O mundo contemporâneo também
força-nos a viver imersos em imagens visuais. Com isso, as atividades de escrita e
os gêneros mais canônicos passaram a ter nova roupagem, tiveram de ser revistos à
luz dessa tecnologia emergente. Por isso, é imprescindível que a escola considere o
estudo de outras formas semióticas para o contexto escolar.
Desse modo, não basta mais aos alunos a capacidade de desenhar o nome em
cima de uma linha no papel para se considerar alfabetizado, ou virar-se entre o
sistema fônico e o sistema gráfico, ou ser muito bom apenas em textos escritos ou
em discursos baseados em estruturas lingüísticas. As escolas precisam adaptar-se
112 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Harrison da Rocha
às exigências da Pós-Modernidade para preparar os aprendizes para lidar com essas
mudanças e, por conseqüência, levá-los aos multiletramentos e torná-los eficientes
em várias instâncias dentro e fora de sala de aula.
Leiamos o que nos afirma Vieira (2004) sobre isso:
As habilidades textuais atuais devem acompanhar os avanços tecnológicos. No
momento, a qualidade mais valorizada nos sujeitos letrados é a capacidade de
mover-se rapidamente entre os diferentes letramentos, compostos pela fala e
escrita, pelas linguagens visuais e sonoras, além de todos os recursos computacionais e tecnológicos, mostrando competência na produção e na interpretação
de textos de diferentes gêneros discursivos.
O docente a fim de preparar os alunos para participarem efetivamente dessa nova
ordem, os docentes de LP precisam conscientizar-se e conscientizar os discentes do
âmbito semiótico explícito e/ou implícito em uma variedade de práticas comunicativas. Eles precisam conceber o currículo com uma estrutura ampla que dê conta
de uma enorme variedade de práticas comunicativas. Para serem bem instruídos,
sem dúvida, os alunos terão de entender mais do que já sabem atualmente sobre
as escolhas comunicativas disponíveis – linguagem oral e escrita – para o uso e
sobre os gêneros de comunicação de massa, por exemplo, e quais formas são mais
apropriadas em um contexto particular.
Referências Bibliográficas
BAGNO, M. Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola, 2001.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Galvão Gomes
Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BARTON, D. Literacy: an introduction to ecology of written language. London:
Blackwell, 1994.
BERNSTEIN, B. A estruturação do discurso pedagógico: classe, códigos e controle.
Petrópolis: Vozes, 1996.
BOURDIEU, P. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.
CHAFE, W. Integration and involvement in speaking, writing and oral literature.
In: TANNEN, D. (Ed.). Spoken and written language: exploring orality and
­literacy. New Jersey and Ablex: Norwood, 1982.
CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso. São
Paulo: Contexto, 2004.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
113
Parte III – Discurso e Educação • Gramática Tradicional e Língua Escrita: Duas Faces de um Mesmo Poder
COROA, M. L. A inter-relação entre gêneros e tipos textuais. Projeto Gestar,
TP3. MEC, 2005.
DIAS, L. F. Os sentidos do idioma nacional: as bases enunciativas do nacionalismo lingüístico no Brasil. Campinas: Pontes, 1996.
FAÏTA, D. A noção de “gênero discursivo” em Bakhtin: uma mudança de paradigma. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido: São
Paulo: Unicamp, 1997.
FAUSTO, B. História do Brasil. São Paulo: Edusp/Fundação para o Desenvolvimento da Educação, 1994.
GERALDI, J. W. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. São
Paulo: Mercado e Letras, 1996.
GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
HISLDORF, M. L. S. História da educação brasileira: leituras. Sao Paulo: Thomson, 2003.
HOUAISS, A. O português no Brasil. Rio de Janeiro: Unibrade, 1985.
KLEIMAN, Â. B. (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva
sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
LAGAZZI-RODRIGUES, S. A língua portuguesa no processo de institucionalização da lingüística. In: ORLANDI, E. P.; Guimarães, E. Institucionalização dos
estudos da linguagem: a disciplinarização das idéias lingüísticas. Campinas:
Pontes, 2002.
LYONS, J. Introduction to theoretical linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, 1968.
MAESTRI, M. A pedagogia do medo: disciplina, aprendizado e trabalho na
escravidão brasileira. In: STEPHANOU, M.; BASTOS, M. H. C. Histórias e memórias da educação no Brasil. v. I, – séculos XVI-XVIII. Petrópolis: Vozes, 2004.
LEAL, M. C. D. Consciência lingüística crítica e mudança nas características
da identidade docente. In: MAGALHÃES, I.; LEAL, M. C. D. (Orgs.). Discurso,
gênero e educação. Brasília: Plano, 2003.
MAINGUENEAU, D. Análise de texto de comunicação. São Paulo: Cortez, 2002.
MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO,
Â. P. et al. (Orgs.). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.
MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São
Paulo: Cortez, 2004.
114 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Harrison da Rocha
MATTOS e SILVA, R. V. Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro.
São Paulo: Parábola, 2004.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC). Lei de diretrizes e bases, n. 9.394, de 20
de novembro de 1996.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC). Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN).
Salvador: Governo da Bahia, 2000.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC). Resolução CNE/CP 01, de 18 de fevereiro
de 2002.
NEVES, M. H. de M. Vertente grega da gramática tradicional: uma visão do
pensamento grego sobre linguagem. São Paulo: Unesp, 1987.
ORLANDI, E. P. (Org.). Discurso fundador: a formacão do país e a construção
da identidade nacional. Sao Paulo: Pontes, 1993.
PERINI, M. A. Sofrendo a gramática. Belo Horizonte: Ática, 1997.
POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. São Paulo: Mercado
de Letras, 1996.
ROCHA, L. C. de Assis. Gramática: nunca mais. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
ROJO, R.; BATISTA, A. A. G. (Orgs.). Livro didático de língua portuguesa:
letramento e cultura da escrita. Campinas: Mercado de Letras/EDUC, 2003.
STREET, B. Cross-cultural approaches to literacy. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
_________. Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University
Press, 1984.
XAVIER, A. C.; CORTEZ, S. (Orgs.). Conversas com lingüistas: virtudes e controvérsias da lingüística. São Paulo: Parábola, 2003.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
115
O Discurso Mercantilista do Ensino
Brasileiro*
Josenia Antunes Vieira** (UnB)
Resumo: Este artigo discute as mudanças no discurso no que concerne à educação
brasileira com enfoque nas transformações das práticas discursivas que ensejaram
profundas alterações no discurso educacional. Para isso, contribuíram principalmente
as mudanças no mundo globalizado e a mercantilização da educação brasileira, sem
contar os reflexos da tecnologização que invandiram o discurso das instituições de Ensino
Superior, em particular das instituições privadas. A metodologia adotada foi a qualitativa,
a análise concentrou-se no estudo de outdoors usados nas campanhas publicitárias,
buscando identificar, nas construções discursivas, pistas desses fenômenos sociais que
passaram a permear o discurso da educação no cenário nacional contemporâneo.
Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica (ADC); Educação; Práticas Discursivas;
Ideologia.
Abstract: The idea behind this article is that in complex societies like our own there
are many aspects in discourse to be investigated. This article focuses particularly on the
changes of the discursive practices responsible for deep transformations in educational
discourse. For this, there are some points to be considered like the phenomenon of
globalization and the mercatilization verified in the brazilian education through to the
reflexes of technological means used extensively by private educational institutions and
some public ones too. The adopted methodology was the qualitative, the analysis focused
on the study of outdoors used in publicity campaigns of educational institutions in at
temptation to verify in discursive constructions some clues of these social phenomenon
that perpass the educational discourse in contemporary national scenery.
Keywords: Critical Discourse Analysis (CDA); Education; Discursive Practices;
Ideology.
* Este trabalho foi apresentado na International Conference on Critical Discourse Analysis, de 5 a 8
de maio de 2004, em Valencia, Espanha, com o apoio financeiro da Fundação de Empreendimentos
Científicos e Tecnológicos (FINATEC) e da CAPES.
**Pós-Doutora em Lingüística pela Universidade de Lisboa, Mestrado e Doutorado PUC/RS; Professora do
Programa de Pós-Graduação em Lingüística da UnB; Coordenadora do Centro de Pesquisa em Análise
de Discurso Crítica (CEPADIC); autora de diversos livros e artigos em Análise de Discurso Crítica.
E-mail: [email protected].
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
Introdução
E
ste artigo pretende discutir as mudanças no discurso no que concerne à educação
brasileira. As transformações no discurso e na maneira de falar da educação
ensejaram profundas alterações nas práticas discursivas. Para isso contribuíram as
mudanças no mundo e na atualidade brasileira. A tecnologização que nos circunda
no dia-a-dia invade todo o discurso, incluindo aí o discurso das instituições de
Ensino Superior, em particular as do Ensino Superior privado.
Para que possamos compreender essas mudanças, é pertinente examinarmos o
seu percurso no passado recente de nossa educação.
Um Rápido Olhar sobre a Educação Brasileira
É distante o tempo em que as instituições de ensino formavam efetivamente
os seus alunos, concebendo-os como um ser indivisível que carecia tanto de
conhecimentos como de formação moral e religiosa. Essa tarefa era sagrada e
revestia-se de características sacerdotais. Por essa razão, a maioria das instituições de ensino compunha-se de religiosos. Ser professor consistia em tarefa
extremamente respeitada. O trabalho de ensinar era digno de consideração e
distinção, e o que havia de melhor no ensino concentrava-se nos educandários
de formação religiosa.
Toda cidade possuía um colégio de freiras, destinado a moças de boa família
cujo principal propósito consistia em preparar as filhas para serem boas esposas
e donas de casa. Ao mesmo tempo, havia outro educandário, também religioso,
inteiramente dedicado ao ensino dos rapazes. Nessas instituições, moças e rapazes
desvendavam o conhecimento, aprendiam fundamentos do cristianismo, e sobretudo boas maneiras.
As moças aprendiam, além de literatura dos clássicos, a bordar, a pintar e a
tocar algum instrumento que, dependendo da época, podia ser piano ou acordeon.
Também gastavam muitas horas de seu currículo escolar com aulas de economia
doméstica, puericultura e com canto orfeônico.
Os rapazes, por sua vez, tinham aulas de física, química e matemática. Além
disso, participaram de muitas horas de aula de latim, grego e, em determinados
horários semanais, aprendiam os rudimentos de jardinagem e de horticultura, que
os capacitava a iniciar uma pequena horta ou jardim. Nos intervalos, jogavam muito
futebol. Aprendiam a ler partituras e a apreciar os clássicos. Aprendiam também
a dançar e a como se comportar com as moças de família.
118 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
Por anos a fio, moças e rapazes freqüentavam os mesmos educandários. Os
colégios não eram mistos e eram especializadas para trabalhar com determinado
sexo. Os alunos ali permaneciam por longos anos. Só saiam da instituição por
ocasião da formatura, momento solene e especial para a vida de todos eles. Os
alunos formavam-se mais velhos do que atualmente, tendo muitos deles até bigodes e barbas cerradas. As festas de colação de grau eram pomposas e todos os
formandos compareciam de terno escuro e gravata.
As escolas, como essas que estou descrevendo, não se preocupavam com o
recrutamento de seus alunos. O número de boas escolas era reduzido. As vagas nesses educandários eram muito disputadas. Mas tudo isso é passado. Essa
descrição foi para o meu leitor avaliar mais adiante o quanto a nossa realidade
educacional mudou.
O quadro do ensino não é mais o mesmo. As escolas hoje se multiplicam
vertiginosamente, distanciando-se cada vez mais do quadro descrito acima. Os
educandários religiosos ainda existem, mas não desfrutam mais de poder hegemônico absoluto na educação brasileira. É verdade que as escolas surgem em grande
quantidade, mas já não pertencem a determinadas confissões religiosas. Hoje,
empresários altamente competitivos buscam uma fatia desse mercado promissor.
O recrutamento de alunos que no passado era inexistente, agora é promovido por
eficientes e atraentes campanhas publicitárias.
O ensino virou objeto de desejo do mercado capitalista. O currículo esvaziou-se
das disciplinas formadoras do caráter e da cidadania. Todas foram sobrepujadas
pelas necessidades contemporâneas e pela necessidade de cortar gastos. Os cursos
tiraram gorduras e com elas desaparecem os diferenciais da educação formativa.
As turmas duplicaram em tamanho. A meta é o lucro. Não importa se o professor
dará aula com microfone, ou se não souber os nomes de seus alunos. Afinal, a
formação do aluno é responsabilidade das famílias. Elas que cuidem disso. As
escolas devem se preocupar com o conhecimento.
As escolas hoje são mistas: jovens rapazes e moças dividem o mesmo espaço. Mas, mesmo assim, o fator economia fala mais alto. Turmas com 50 alunos,
miraculosamente, transformam-se em turmas com 100. No papel, nos “Projetos
Pedagógicos”, o tamanho das turmas, a qualidade dos laboratórios de línguas,
de informática e até os próprios currículos recebem cores e contornos que, em
verdade, na maioria dos casos, não existem.
A maquiagem do Ensino Superior está sendo bem feita, mas, em geral, ocorrem excessos em todo o ensino. E, desse modo, ao lado do aumento do número
de alunos por turma, há também o decréscimo da qualidade de ensino. Com
essa reflexão, não pense o leitor que desejo macular o ensino brasileiro, estou,
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
119
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
apenas, pintando-o com uma demão de tinta com cores leves. É bem pior. Pelas
razões aqui apontadas, quero examinar nesta discussão a mudança do discurso da
educação no Brasil, mostrando, por meio da análise de nove outdoors sobre ensino,
como a educação passou de bem público, voltado para o social, a mero produto de
mercado.
A Educação como Bem de Mercado
Para entendermos como a educação se transformou em bem de mercado, é essencial que nos reportemos ao período depois da Segunda Grande Guerra, tempo
em que os Estados Unidos, sob os auspícios de um capitalismo extremamente exacerbado, conquistaram a hegemonia mundial, principalmente após o fim da Guerra
Fria. O aumento desse poder tem sido marcante notadamente na área econômica,
política, social e cultural, com ênfase na esfera educacional.
Nesse sentido, nossa convivência com poderes hegemônicos, como o dos americanos, incita-nos a buscar uma identidade que nos diferencie nesse contexto
global. Uma vez que não possuímos a liderança, devemos nos notabilizar pela
diferença. Tememos, porém, não possuir tempo suficiente para isso, tendo em
vista que as mudanças em curso no Ensino Superior deixam-nos apreensivos e
soam como uma ameaça.
A educação, um dos pilares da ideologia liberal, com as discussões em andamento na Organização Mundial de Comércio (OMC), incorre em grave perigo de
transformar-se em mais uma mercadoria no setor de serviços. Assim, a educação
está na iminência de perder o seu caráter de bem social para se transformar apenas
em um serviço do setor terciário.
A educação como legado legítimo terminou no primeiro dia de 2005, considerando que os Países-Membros da OMC concordaram com a inclusão de todos os
serviços no Acordo por eles firmado, entrando aí a educação. As conseqüências
do que aconteceu, se a educação tornar-se o equivalente a qualquer outro tipo de
serviço, pode atentar contra a soberania e a cultura de muitos países, em especial a do Brasil, além de ser um assalto comercial à Educação Superior brasileira,
haja vista que perderemos a propriedade da educação, particularmente a de nível
Superior e junto com ela a identidade nacional, para incorporar uma identidade
transnacional. A figura abaixo é reveladora nesse sentido, pois apela para um
ensino globalizado.
120 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
Figura 1 – Ensino globalizado.
Vale destacar que a formação de nível superior, própria da pós-modernidade,
do capitalismo tardio (Fairclough, 2001) constitui direito do cidadão. Mas, especialmente, no caso brasileiro, é fundamental chamar a atenção para a reforma
da Educação Superior que está em fase de discussão. O Governo brasileiro defende
mudanças profundas principalmente no que toca ao número de vagas oferecidas
pelas instituições particulares, pois enquanto as vagas oferecidas pelas instituições
públicas são extremamente reduzidas, as entidades privadas duplicam o número
de suas vagas.
Entendemos que existe atualmente na educação um processo perverso, mais
preocupado com o aspecto mercantil e gerencial do ensino do que com o aluno
propriamente dito. Assim, sob o impacto de forte globalização e mercantilização
por que passa o ensino, o Governo Federal tem demonstrado certa resistência para
essas negociações com a OMC.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
121
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
A iminente mudança de nossa identidade na Educação Superior brasileira devido à adoção de novo paradigma mercantil com acentuada ênfase no lucro e no
consumo de mercado, como defende a essência do capitalismo, traz preocupações
de toda ordem, entre elas, a de como lidar com essa nova realidade da educação
brasileira. A ameaça de perda de traços da identidade particular em função de
uma nova identidade transnacional, ao lado da proposta de tratar a educação
como um serviço, é algo próximo que não pode ser desconsiderado e carece de
medidas para o seu enfrentamento.
Embora a OMC tenha discutido o problema da educação, tratando-a como um
bem para todos, em verdade, o que ela pretende é incluir a educação como um
dos setores de serviços no Acordo Geral sobre Comércio de Serviços.
No artigo “Diploma com sabor de Big Mac”, Guilherme Macedo, Giovana
Perfeito e Thiago Silveira discutem, no jornal Campus, uma das conseqüências
dessas mudanças: a equivalência de diplomas, a validação de títulos estrangeiros
e a certificação de competências que passariam a obedecer a legislações internacionais de importação e de exportação. Tal fato equivale a dizer que qualquer
universidade estrangeira poderia, em tese, oferecer seus cursos no Brasil.
Na matéria, os autores relatam como surgiu essa discussão. Segundo assessor
da Universidade das Nações Unidas, Marcos A. Dias, essa discussão surgiu em
1998, quando a UNESCO promoveu em Paris uma conferência mundial sobre o
tema.
Vejamos textualmente:
As 180 delegações presentes aprovaram o documento da “Declaração Mundial
sobre a Educação Superior no Século XXI” que definia a educação como um
serviço público baseado nas necessidades sociais. (...) a OMC criava, sigilosamente, uma proposta diferente da aprovada em Paris, defendendo a tese
de que o Ensino Superior é um serviço comercial.
O alcance dessa Declaração é de que qualquer grupo ou instituição estrangeira
poderá vir para o Brasil e implantar um pacote educacional. O perigo imediato
desse projeto é o reconhecimento oficial da mercantilização da educação. Passaríamos a oferecer cursos com logomarca de grandes e famosas instituições, os
quais não estariam projetados com base em diferenças multiculturais. O único
ponto comum desses cursos seria o conhecimento. As singularidades de cada
cultura, suas necessidades e anseios não seriam consideradas.
122 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
Os países em desenvolvimento estariam sujeitos a se tornarem verdadeiras
fábricas de diplomas cuja qualidade dos cursos nem sempre seria a mais adequada
para a sua realidade. No Brasil, já estão ocorrendo essas investidas dos diplomas
enlatados de outros países. Os mais comuns têm sido os cursos oferecidos por
algumas universidades da Europa, como é o caso de cursos trazidos por instituições
de Portugal e da Espanha, principalmente nas áreas de Direito e de Educação.
O Ministério de Educação e Cultura (MEC), reage dizendo que não validará
tais diplomas, mas, mesmo assim, inúmeros cursos de Mestrado e de Doutorado têm sido oferecidos por instituições internacionais. Qual é a saída? Se essas
ofertas tornarem-se legais, podemos fazer muito pouco no momento, mas, ainda
assim, resta-nos buscar respaldo na própria lei. Cremos que, se leis internacionais, baseadas em leis de reciprocidade, regulam tais ofertas, podemos também
oferecer cursos lá fora. Além disso, cumpre-nos também a tarefa de levar a sério
a revalidação desses cursos para que não sejam reconhecidos títulos de doutores
e de mestres que, pelas facilidades, validem a incompetência e o despreparo.
Nesse sentido, vale ainda mencionar que muitos países da América Latina,
entre eles, o Brasil, desenvolveram, nas últimas décadas, cursos de pós-graduação que em nada ficam a dever a programas internacionais de pós-graduação.
Ao contrário, atendem com mais especificidade às nossas necessidades locais
e regionais. Assim, devemos, de modo consciente, reagir a essa usurpação dos
nossos direitos na Educação Superior.
Enquanto as universidades federais pouco fazem para coibir essas mudanças
na Educação Superior, as universidades privadas esbanjam nova cara em propagandas extremamente agressivas, direcionadas ao recrutamento de novos alunos.
A seguir, podemos ver um tímido movimento da Universidade de Brasília no uso
de recursos midiáticos. Jamais vemos campanhas de cooptação de alunos por
parte das universidades federais, como cartazes, outdoors e panfletos. Elas não
carecem de mais alunos. O seu objetivo não é o lucro, nem aumentar o número
de alunos.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
123
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
Figura 2 – Identidade estudantil da UnB.
Em contrapartida, as instituições particulares gastam expressivas somas de seus
orçamentos para atrair cada vez mais alunos para os seus cursos. A caça a clientes
(aluno, agora, virou cliente) tem sido intensa. As instituições privadas não medem
esforços para alcançar esse propósito. A competição em torno da inovação e do
diferencial no ensino é traduzida por campanhas desenvolvidas nos jornais, nas
ruas e, principalmente, na interação face a face.
Na propaganda a seguir, é apresentado, em primeiro plano, um painel de fotos de
alunos que supostamente são vencedores, pois foram aprovados em cursos superiores
específicos. Junto com o argumento escrito sobre o curso, estão alinhadas as fotos
dos jovens. A linguagem da imagem toma praticamente todo o espaço da propaganda,
mostrando efetivamente uma mudança no valor do discurso, que deixa de se concentrar
apenas na linguagem verbal em si mesma, para avançar no uso de uma linguagem
multimodal, como defendem Kress e van Leeuwen (2001).
124 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
Figura 3 – Jovens aprovados em vestibular.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
125
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
Por oportuno, citamos o que Vieira (2007, p. 5) diz sobre a linguagem e a mutimodalidade:
Em muitos casos, a linguagem mostra-se impotente para descrever certas situações, se comparada à imagem que é global e extremamente mais rápida do
que a linguagem, para transmitir significado. Uma foto, por exemplo, de um
acontecimento sangrento, de um episódio de guerra, choca mais o telespectador do que a notícia veiculada e descrita apenas por recursos lingüísticos.
Assim, literalmente, uma imagem vale por mil palavras. Adorno, na metáfora
dos campos de concentração de Auschwitz, denunciou o enfraquecimento
comunicativo da linguagem diante do poder da imagem. Falar ou escrever sobre Auschwitz provoca impacto comunicativo menor do que mostrar imagens
sobre o holocausto.
Com base nesses conhecimentos, as instituições têm lançado mão de estratégias atraentes para vender seus produtos. A imagem é o recurso mais requisitado
para esse propósito. A seguir, vemos uma propaganda extremamente criativa dos
cursos Positivo. O texto escrito é minúsculo, e a imagem toma conta de toda a
propaganda. O texto diz: “Se você quer oferecer uma educação de qualidade para
seu filho, procure uma escola conveniada Positivo. Em nossas escolas promovemos
o encontro da educação com a vida”. No centro da imagem está escrito: “Ensinar
é promover encontros. Da gente com as nossas raízes”. Redundantemente, a idéia
de raízes é reforçada pela imagem que retrata uma pessoa jovem com o rosto
dividido ao meio. Um lado americano – com um menino índio, outro europeu
– com uma menina loira de olhos azuis. A imagem retrata nossas origens.
O que nos chama atenção é que a propaganda compõe com a imagem, as cores
e o escrito um excelente texto, de fácil leitura, que promove, com argumentos
convincentes, os cursos Positivo.
126 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
Figura 4 – Propaganda cursos Positivo.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
127
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
A Pós-Modernidade como Agente de Tecnologização
do Discurso
Se, de um lado, presenciamos as mudanças no contexto da economia e da política internacional, de outro, a própria linguagem registra em forma de discurso e
de práticas discursivas o mundo circundante. Passaremos a examinar agora como
essas mudanças têm influenciado o discurso da educação.
Para isso convém passar os olhos pela história recente da sociedade da informação, que teve seu apogeu na década de 1970, sem nos esquecermos, no entanto,
de que a década de 1960 foi a antevéspera da grande explosão da sociedade informacional. Um bom exemplo desse fenômeno é a nação americana que, no estado
da Califórnia, abrigou a construção desde o primeiro computador Apple até os
ultramodernos e sofisticados computadores.
Ao falarmos de sociedade de informação, não podemos nos furtar de examinar
o poder político que ensejou o desenvolvimento dessa mesma sociedade. Sabemos
que o Estado pode promover o desenvolvimento de uma nação, contê-lo ou até
mesmo sustá-lo. Um exemplo pertinente é o da China antiga, a mãe do conhecimento milenar, descobriu a pólvora, o papel e muitas outras coisas importantes,
mas, mesmo sendo a detentora de relevantes conhecimentos, paralisou no tempo,
e a sua epopéia de descobertas e conquistas não se repetiu nas questões tecnológicas e na informação.
Afortunadamente, foi na Ásia, que o Japão, sem contar com um percurso brilhante no mundo dos descobrimentos e das invenções, ultrapassou a corrida tecnológica e hoje reina de modo absoluto no mercado sofisticado da informação.
Destacamos que o Estado esteve presente na história das duas grandes potências.
Na China, entretanto, o Estado entravou o desenvolvimento nacional no âmbito
da informação e da tecnologia. Desse modo, a China pode ter glórias passadas, as
quais devemos respeitar, mas, no campo dos avanços tecnológicos, o Japão, uma
nação com destacada liderança internacional no mundo da informação, deve todo o
seu avanço tecnológico ao Estado, que financiou e incentivou as grandes pesquisas
da área, como reporta muito bem Giddens (2002).
Mesmo a América do Norte não tendo o mesmo passado da China, legou-nos a
Internet. Hoje, graças ao Departamento de Defesa americano, o mundo comunicase em tempo real. Essa conquista marcou a participação do Estado americano nas
conquistas tecnológicas e ensejaram o início das primeiras redes de comunicação
mediadas por computador. Deve-se à participação indireta do Estado, ao lado de
grandes universidades da Califórnia, como o Stanford e a UCLA, e aos cérebros de
professores e de alunos, dos Think-Tank (os pensadores-tanques) do conhecimento
128 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
de ponta dos inventos tecnológicos, a ciência da informação avançou e garantiu,
para os americanos, a liderança da sociedade da informação.
Se a modernidade trouxe a máquina a vapor, revolucionando aquela época, a
pós-modernidade, ou a modernidade tardia, como prefere Giddens (1990), legounos o computador. E o percurso do conhecimento, que foi lento e gradual em todo
o período da modernidade, na pós-modernidade, explode celeremente. O progresso
que levou séculos para ser conquistado, a sociedade da informação alcançou-o
em menos de trinta anos. A compressão e a velocidade do tempo e do espaço são
características marcantes da pós-modernidade. O tempo muda a sua característica
principal, mas eterniza-se em sua efemeridade, como diz Castells (2002).
Todos esses avanços e mudanças na sociedade contemporânea trouxeram mudanças fundamentais no discurso da educação. Houve, sem dúvida alguma, forte
tecnologização do discurso, que não poderia ficar imune a todas essas mudanças
no discurso.
A Nova Morfologia da Sociedade: a Sociedade em
Rede
A década de 1990 assistiu à ampla reestruturação de mercados em todo o mundo.
Experienciamos desregulamentações, privatizações, concentrações de propriedade,
comercialização e – por fim, mas não menos importantes – avanços tecnológicos.
No centro de tudo isso está o processo de globalização. Mercados nacionais estão
se tornando cada vez mais integrados em uma única estrutura de poder global e as
fronteiras nacionais estão perdendo seu significado em muitos aspectos.
As mudanças do mundo contemporâneo não têm desempenho solo, vêm acompanhadas de profundas mudanças que nos induzem a uma nova leitura. Castells
(2002, p. 605) fala de uma nova sociedade – a sociedade em rede. Vejamos o que
ele diz:
As funções e os processos dominantes, na Era da Informação, organizam-se,
cada vez mais, em torno de redes e isto representa o auge de uma tendência
histórica. As redes constituem a nova morfologia das sociedades e a difusão da
sua lógica modifica substancialmente as operações e os resultados dos processos
de produção, experiência, poder e cultura. Embora a organização social, sob a
forma de rede, tenha existido noutros tempos e lugares, o novo paradigma da
tecnologia de informação fornece as bases materiais para a expansão da sua
penetrabilidade em toda a estrutura social.
O que Castells diz sobre o poder dessa nova sociedade informatizada é verdadeiro, e a instância que essa presença é mais palpável é no discurso, o qual é
perpassado por toda a modificação lexical que o mundo novo da Era da Informação
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
129
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
requer e registra com prodigalidade nos eventos discursivos. Castells (2002, p. 607)
diz que a morfologia da rede é também uma fonte extraordinária de reorganização
das relações de poder e declara:
Firmas de negócios e, cada vez mais, organizações e instituições, organizam-se
em redes de geometria variável cuja interação supera as tradicionais diferenças
entre empresas e pequenos negócios, atravessando setores e espalhando-se por
diferentes agrupamentos geográficos de unidades econômicas. (...) essa evolução
para as de gestão e produção em rede não implica o fim do capitalismo. A sociedade em rede, nas suas várias expressões institucionais é, por enquanto, uma
sociedade capitalista. Para, além disso, pela primeira vez na história, a forma
capitalista de produção modela as relações sociais em todo o planeta.
Desse modo, toda a alteração nas tecnologias da sociedade provoca construção
hegemônica de novos discursos com novas ordens do discurso no âmbito das instituições e das organizações públicas e privadas. Entretanto, essas mudanças nas
práticas discursivas não são pacíficas e, ao serem construídas, deixam um rastro de
mudança. O resultado mais visível dessas mudanças é no léxico empregado aos discursos, fenômeno nomeado por Fairclough como “tecnologização do discurso”.
A tecnologização do discurso, segundo Fairclough (1992), sintetiza nos textos
as mudanças nas práticas discursivas, combinando-se às mudanças nas práticas
culturais. Essas mudanças no discurso, no trato das questões universitárias, também foram estudadas por Fairclough (2001, p. 47), que estudou a mercantilização
do discurso nas universidades públicas inglesas. Reporto aqui o que esse analista
do discurso afirma sobre o assunto:
O caso que vou focalizar é a mercantilização das práticas discursivas nas universidades britânicas contemporâneas; estou me referindo à reestruturação da
ordem do discurso no modelo de organização de mercados mais centrais. Ao que
parece, pode parecer excessivamente introspectivo para um acadêmico analisar
universidades como exemplo de mercantilização, mas não acredito que seja; as
mudanças recentes que afetam a educação superior são um caso típico e, sem
dúvida, um bom exemplo de processos de mercantilizção e comodificação no
setor público em geral (Fairclough, 2001, p. 47).
Fairclough concentrou-se nesse estudo em alguns gêneros discursivos que são
usuais no discurso acadêmico, como os prospectos que são destinados à chamada
de novos alunos, os anúncios para cargos acadêmicos e um extrato de seu próprio
Curriculum vitae.
Diz ele ainda nesse estudo:
A mercantilização das práticas discursivas das universidades é uma dimensão
da mercantilização da educação superior num sentido mais geral. As instituições
de educação superior vêm cada vez mais operando (sob pressão do governo)
como se fossem negócios comuns competindo para vender seus bens de consumo aos consumidores (Fairclough, 2001, p. 47).
130 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
Assim é que todas as alterações no segmento de uma cultura ficam registradas nas
suas práticas culturais e, sobretudo, nos seus eventos discursivos. A tecnologização
do discurso acontece em todas as áreas, mas é mais nítida nas instâncias do mercado, nos mídias e, principalmente, no discurso governamental e institucional.
Fairclough (2001, p. 48) também fala sobre essas mudanças em seu estudo:
…as instituições estão fazendo mudanças organizacionais importantes que
estão de acordo com um modo mercadológico de operação, tais como a introdução de mercado “interno” ao tornar os departamentos financeiramente mais
autônomos, o uso de abordagens “gerenciais” em, por exemplo, avaliação e
treinamento de pessoal, a introdução de planejamento institucional, e a maior
atenção que é dada ao mercado. Tem havido também pressão para os acadêmicos verem os alunos como “clientes” e dedicarem mais energias ao ensino
e ao desenvolvimento de métodos de ensino centrados no aprendiz.
No Brasil, de igual modo, as mudanças nas práticas discursivas ocorrem de modo
natural, entretanto essa praxis tem sido acelerada por meio de encontros, cursos e
reciclagens, visando à uniformização desse discurso. Não é incomum treinamentos de
todos os funcionários de determinado ministério ou órgão do Governo ou de empresa
privada com o propósito de uniformizar a prática discursiva e de buscar a eficiência
no alcance e na realização de objetivos e de metas. A pretensão com essas práticas é
estabelecer um discurso comum para atender o cliente, o consumidor final, o públicoalvo (léxico tecnologizado das novas práticas discursivas), buscando desempenho
cada vez maior e melhor na interação com o sujeito desse consumo.
Essas mudanças no discurso, com o intuito de homogeneizar as práticas discursivas, visam à obtenção de melhores resultados nas transações comerciais e nas
relações interpessoais. Todas essas alterações são frutos da tecnologização do discurso. Como exemplo de tecnologização do discurso, temos no Brasil a implantação
do ISO 9000. Com esse programa de qualidade total, as empresas do Governo e as
empresas privadas passaram por rigoroso treinamento com características altamente
homogeinizadoras, cujo propósito é o alinhamento com o mercado internacional
As empresas públicas e de natureza mista estão empenhadas em conquistar novos
consumidores. Os usuários de qualquer serviço público passam a ser considerados
clientes. O discurso contempla e incorpora, em seu léxico, expressões típicas do
mercado privado.
Fairclough (2001) atribui à tecnologia do discurso cinco características:
1. O surgimento de peritos em tecnologia do discurso.
2. A mudança no policiamento das práticas discursivas.
3. A concepção e a projeção de técnicas discursivas descontextualizadas.
4. A simulação discursiva com fundamentos estratégicos.
5. A pressão no sentido de uniformizar as práticas discursivas.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
131
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
Com relação ao surgimento de peritos em tecnologia do discurso, Fairclough
(2001) declara que existem manipuladores e especialistas persuasivos em discurso. Para que os especialistas de fato possam ser chamados de tecnólogos do
discurso devem apresentar qualificações diferenciadas, como a de serem ligados a
determinadas áreas do saber que, por essa razão, qualificam as suas intervenções,
atribuindo-lhes veracidade, ao mesmo tempo, que as legitimam pelo uso em seus
espaços discursivos.
Esses especialistas são em geral cientistas sociais, peritos ou consultores com
acesso a informações privilegiadas. Também, pela notoriedade de seu conhecimento,
quando usam rotineiramente certa prática discursiva, fazem escola, sendo as suas
práticas discursivas repetidas por outros sujeitos. O tecnólogo em discurso, pelo seu
conhecimento na área, pode dar inestimável contribuição quer oferecendo cursos,
seminários, entrevistas, quer prestando consultorias sobre determinadas práticas
discursivas, como o discurso político, publicitário, midiático, entre outros.
A mudança no policiamento das práticas discursivas é outra característica da
tecnologização do discurso defendida por Fairclough (2001). É verdade que toda
prática discursiva sofre policiamento constante. Hoje em dia, entretanto, esse policiamento estendeu-se para fora das instituições e transformou-se em policiamento
trans-institucional.
Os tecnólogos do discurso exercem posição de policiamento particular, apoiando-se em seu conhecimento científico e em seus títulos acadêmicos dos quais lhes
advém certo poder. Também o fato de serem peritos externos garante-lhes certa
isenção em seus julgamentos, conferindo-lhes grande poder para interferir, formulando e reformulando as práticas discursivas de qualquer instituição. Um bom
exemplo desse procedimento é quando um especialista do discurso valida técnicas
de escrita muitas vezes descontextualizadas, mas passíveis de serem utilizadas em
qualquer contexto como é o caso de instruções normativas, práticas auditoriais e
pareceres entre outras peças escritas.
Outra característica da tecnologização do discurso é a simulação discursiva
com fundamentos estratégicos, conforme defende Fairclough (2001). A prática do
simulacro é largamente usada no discurso com o intuito de gerar certa aproximação entre os sujeitos. Desse modo, a simpatia demonstrada pelo sujeito com
maior poder na entrevista, por exemplo, é o típico caso de simulação discursiva.
Segundo Fairclough (1992, p. 265), a simulação e a informalidade nas questões de
simetria de poder institucional são amplamente usadas pelos sujeitos que estão
no poder. Tal prática discursiva gera um espaço para lutas de poder nesse tipo de
discurso, pois essa mudança não se sustenta nas práticas reais de conversação,
gerando certa contradição.
132 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
A pressão no sentido de uniformizar as práticas discursivas é outra marcante
característica da tecnologização do discurso. No momento em que a instituição
homogeneíza suas práticas discursivas, criando normas discursivas em diferentes
campos institucionais, ela fortalece a idéia de que a tecnologização do discurso
ajuda a manter a coesão do discurso de poder institucional que favorece os laços
nos vínculos dialógicos de trabalho, além de facilitar e acelerar a comunicação
como um todo.
Assim, se o sujeito desconhecer esse universo discursivo, se não o dominar,
certamente desfrutará de menor poder nas instâncias de lutas diárias. Um exemplo marcante dessa uniformização, dessa normalização discursiva, é o que ocorre
nos grandes jornais nos quais há normas rígidas quanto à extensão dos títulos
das matérias, e quanto à sua natureza. Do mesmo modo, quase todos os grandes
jornais dispõem de manuais que procuram orientar os jornalistas da casa no modo
de grafar, abreviar ou escolher o seu léxico.
O serviço público também, a seu modo, está procurando homogeneizar as suas
práticas discursivas. O Manual da Presidência, para a Correspondência Oficial, tem
essa finalidade. Procura orientar os seus usuários, funcionários públicos do Poder
Executivo principalmente, o modo adequado de comportar-se discursivamente nas
práticas oficiais. Recomenda, por exemplo, que não seja usado na correspondência oficial o tratamento de doutor, dizendo que é um título acadêmico, e não um
pronome de tratamento. De semelhante modo, ensina a que autoridades atribuir o
título de Vossa Excelência. Segundo o Manual, vereadores de câmaras legislativas
não devem ser tratados por Excelência.
A tecnologização do discurso segue a tendência do discurso de alguns especialistas
ou tecnólogos e não se importa de romper a tradição discursiva. De certo modo, a
tecnologização do discurso confronta-se com a prática social. Na verdade, a práxis
discursiva está representada nas práticas sociais e, quando ocorre a tecnologização
do discurso, a prática social é desprezada em função das mudanças pretendidas. O
que queremos dizer é que a tecnologização do discurso intervém na prática social,
pensando no consumo e no consumidor final, confrontando-se com a prática social
e com a cultura, alterando-a. No exemplo dado, no caso do vereador, a tecnologização do discurso não está preocupada em romper uma tradição secular de tratar
todos os vereadores de municípios grandes ou pequenos por Vossa Excelência, ou
no caso anterior de tratar todas as autoridades do Executivo por doutor.
Discutindo o fato com altos assessores do Senado Federal, disseram-nos ser impossível atribuir outra forma de tratamento para um vereador de cidade pequena que
não a de Excelência, sob pena de o Senador não receber apoio do referido Vereador
nas eleições subseqüentes. A bem da verdade, a tecnologização do discurso age
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
133
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
como rolo compressor, escondendo valores, lutas de poder e a verdadeira simetria
e dissemetria das relações de poder presentes no discurso.
Portanto, do mesmo modo que a tecnologização do discurso age como prática
homogeinizadora, há quem resista a essa prática por entender que ela trabalha
no sentido contrário das práticas discursivas. Por essa razão, defendem a idéia de
opor resistência a esse tipo de prática discursiva, que é artificial e revela apenas
um modismo de determinada época ou de determinado povo ou instituição. É nesse sentido que Habermas (1984) fala em colonização do discurso pelos sistemas
de Estado e Fairclough (1992) trata desse traço particular da tecnologização do
discurso como comodificação, ou seja, a colonização das diferentes ordens dos
discursos institucionais, tanto públicos como privados, com o intuito de produzir
discursos organizacionais, pretendendo aumentar a produção, a distribuição e o
consumo de mercadorias.
Fairclough (1992) ilustra a comodificação do discurso com as alterações do
discurso educacional, cuja pretensão é alcançar o consumidor final dos produtos
da educação. As mudanças nas práticas discursivas identificadas por Fairclough
vêm ao encontro do que identificamos no discurso da educação brasileira, notadamente da Educação Superior, que não economiza estratégias de marketing
para atingir ao seu público-alvo. Neste artigo queremos analisar exatamente essas
práticas utilizadas na tecnologização do discurso educacional e, principalmente, o
das universidades públicas e privadas de Brasília, Brasil. Focalizaremos aqui sete
outdoors com propagadas de diferentes cursos.
Antes de iniciarmos a análise, queremos mencionar que a lexicalização do discurso comodificado contemporâneo é a característica marcante da tecnologização
do discurso. Um inventário de determinadas lexias é bastante previsível. Afirma
Fairclough que o campo semântico da palavra habilidade, por exemplo, vem reforçado por um novo léxico em que são comuns termos como competência, aptidão,
desempenho, melhoria. No nosso estudo, termos como economizar e ganhar tempo
aparecem ao lado de promessas de sucesso e de altos ganhos financeiros em cursos
realizados em reduzido espaço de tempo. Estudar hoje se aproxima mais a uma
promessa fantasiosa de que o futuro universitário deverá pagar muito pouco para
realizar um curso que terá curtíssima duração, além de promessas de ser bemsucedido na área profissional escolhida, com garantia de empregos promissores
com elevados salários.
Tecnologização do Discurso: uma Nova Tendência
A tecnologização do discurso é a expressão de mudanças acentuadas na linguagem que afetam diretamente a vida em sociedade e a cultura de determinado
134 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
grupo social. As novas tendências englobam a democratização, a comodificação,
ambas voltadas para as mudanças que ocorrem nas práticas discursivas, e a tecnologização do discurso, que se manifesta pela alteração das ordens do discurso,
implicando intervenção consciente na prática discursiva.
A respeito de como são constituídas e se alteram as ordens de discurso Fairclough (2001, p. 3) declara:
A ordem do discurso de um domínio social é a totalidade de suas práticas discursivas, e as relações (de complementaridade, inclusão/exclusão, oposição)
entre elas – por exemplo nas escolas, as práticas discursivas de sala de aula,
da avaliação escrita, da área recreativa, e da sala dos professores. E a ordem
do discurso de uma sociedade é o conjunto dessas ordens de discurso mais
“locais”, e as relações entre elas (por ex., a relação entre a ordem do discurso
da escola e as de casa ou da vizinhança). As fronteiras e segregações entre
e dentro das ordens de discurso podem ser pontos de conflito e contestação
(Bernstein, 1990), abertas ao enfraquecimento ou fortalecimento, como parte
de conflitos e lutas sociais mais amplas.
Fairclough (1996, p. 76) afirma que a tecnologização do discurso ocorre em
redes e práticas discursivas institucionais, reunindo três domínios específicos: a
pesquisa de práticas discursivas de instituições e de locais de trabalho, a modelagem
de práticas discursivas em conformidade com metas e objetivos institucionais e o
treinamento dessas práticas discursivas resultantes da modelagem.
As tecnologias do discurso atuam como uma forma de poder, como um recurso
de fiscalização, de policiamento e de dominação. Mas tais procedimentos podem ser
aceitos de modo passívo, ou recebidos com resistência, ou ainda podem ser rejeitados. Desse modo, a tecnologização do discurso influencia a construção de novos
gêneros, pois a sua atuação passa pela prática social e pelas práticas discursivas.
A tecnologização do discurso tem provocado relevantes mudanças nos gêneros
do discurso. Entre eles, destacamos o gênero dos outdoors, no qual encontramos
mais de uma linguagem, o que constitui um gênero híbrido. Além da imagem e das
cores, utiliza um modo especial de organizar a informação. Passa pela argumentação e pela persuasão, tornando a publicidade por meio de outdoors um gênero
de prestígio, dando suporte para o discurso comodificado da educação que, dia a
dia, torna-se mais naturalizado e lugar comum.
Os cursos superiores privados, mais que os cursos estatais, têm amplo arsenal
publicitário para travar verdadeira batalha com a concorrência. O embate envolve
desde cartazes, panfletos, prospectos, malas diretas, outdoors até a luta travada
corpo a corpo na disputa pelos futuros alunos. Nesses casos entram as entrevistas
individuais, orientações vocacionais e palestras nas escolas no final do segundo
grau.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
135
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
O discurso dos outdoors
Procuramos selecionar oito outdoors, considerando os seguintes aspectos: a multimodalidade, o teor comunicado e o paradigma para enquadrar as recorrências em
termos de fins publicitários. Os outdoors analisados, aqui, foram colocados nas ruas
e avenidas de Brasília nos meses de novembro e dezembro do ano de 2003. Essa data
foi escolhida estrategicamente por anteceder o ano letivo de 2004.
Justificamos a escolha desses outdoors por considerar a possibilidade favorável
de uma análise crítica de discurso desse material publicitário. Também porque
acreditamos que a vertente da análise de discurso crítica enseja uma análise das
práticas sociais e das mudanças discursivas que estão ocorrendo nas instituições.
Além da análise da tecnologização do discurso na propaganda do discurso publicitário que trata da educação brasileira, é nosso desejo verificar analiticamente que
relações de poder sustentam essas propostas.
A força da imagem na propaganda da educação
Ao iniciarmos nossa análise, devemos considerar o poder da imagem na comunicação contemporânea. É inegável a existência atualmente de um império
comandado pelas imagens. Elas invadem o dia-a-dia das pessoas. É a linguagem
mais utilizada para vender e para provocar desejos de toda ordem e natureza.
Prestes (2000) afirma que:
Dos vários signos para a comunicação, os visuais parecem ser os mais fortes.
Prova disso é que, na observação do crescimento intelectual da criança, se nota
que seu primeiro gesto é elaborar imagens pictóricas (com desenhos, garatujas,
círculos, traços e rabiscos), para só depois aprender a escrever. (Prestes, 2000,
apud Dalmo, de O. S. e Silva, 2001).
A força das imagens e das artes visuais é decorrência da sociedade de informação do século XXI. É herança histórica de milênios o prestígio e a posição que
ocupa hoje. É inegável a preponderância da imagem na comunicação atual. Do
mesmo modo, é inquestionável o papel desempenhado pelas imagens no contexto
do capitalismo tardio (Fairclough, 2001). Nesse sentido, Silva declara:
As sociedades modernas são quase que essencialmente visuais. A todo momento, as pessoas são invadidas por imagens que mostram uma infinidade de
mensagens, deixando brechas para uma apreensão subliminar de conteúdos.
O recebimento dessas mensagens necessita de um reordenamento. O processo
de alfabetização visual ainda é um movimento acanhado. A quantidade de
imagens recebidas é enorme, mas a apreensão de seus significados por parte
do receptor é pequena. (2001, p. 102).
Entendemos nesta análise que a ideologia é categoria preponderante para a
compreensão dos sentidos dos outdoors. O sentido veiculado por este gênero discursivo indica estereótipos sobre a concepção da educação brasileira, mostrando as
136 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
mudanças discursivas de senso comum. A multimodalidade presente nos outdoors
legitima a mensagem veiculada.
No outdoor, e também na propaganda panfletária abaixo, a instituição, denominada JK, captou o espírito de mudança que está em andamento no mundo atual.
A pretensão é tornar a educação só uma mercadoria, um produto. O educandário
contra-ataca usando essa mesma concepção ideológica para garantir que ela, como
instituição, preocupa-se com a individualidade de cada um de seus alunos e não deseja que seus alunos sejam apenas mais um produto do mercado consumidor. A idéia
veiculada pelo produto é firmada com a figura de um jovem que aparece de costas
com o cabelo raspado. Em seu pescoço aparece a figura de um código de barras. Esse
código fala muito forte contra a idéia de tornar os estudantes produtos de um ensino
de consumo. O fato de o garoto estar de costas, sem nome e sem rosto, ratifica a idéia
de anonimato, de perda de identidade. Sendo apenas mais um na multidão.
A mesma idéia repete-se nos outdoors expostos em toda a cidade de Brasília,
mais especificamente no Plano Piloto, a zona central da capital brasileira. Esse fato
se entende por se tratar de propaganda direcionada a público consumidor de nível
econômico mais elevado. Novamente, o apelo aos pais para que não deixem que as
instituições de ensino similares tratem os filhos como mero produto do mercado.
Figura 5 – Propaganda da instituição JK.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
137
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
Bem, o recado midiático é extremamente claro: somente a escola JK não trata
o seu filho como um produto de fábrica. Essa idéia é percebida pela quantidade
enorme de latinhas de refrigerante que estão saindo para o consumo final, cuja
imagem ocupa todo o espaço central do outdoor.
A frase usada tanto nos panfletos da escola JK, como nos outdoors, “NÃO DEIXE
SEU FILHO SER TRATADO COMO UM PRODUTO”, assume tom conversacional,
pois dirige-se diretamente aos pais, como estivesse dando um conselho, no qual
os adverte do perigo que os seus filhos correm de ser tratados como mercadoria
produzida em série, sem identidade e sem qualquer traço de individualidade e
subjetividade.
O outdoor analisado traz em sua composição as características do gênero híbrido, que combina um número variado de outros discursos e gêneros, como o da
propaganda e o da promoção, simulando, por meio da conversação entabulada com
os pais, uma intimidade que de fato não existe. Mas, esses recursos, aqui usados,
são um estratagema promocional para chamar a atenção sobre o produto oferecido,
que no caso é a instituição JK.
O emprego da logomarca da instituição JK, colocada em evidência à esquerda
do outdoor, faz parte do discurso autopromocional dessa Instituição de Ensino.
Em vermelho, com fundo azul e com cores fortes, a logomarca é circundada por
discurso impessoal e formal que caracteriza o gênero administrativo, cujo teor
chama atenção, apenas, do possível candidato para o fato de que as matrículas
estão abertas. Ao mesmo tempo, traz, em números destacados, o telefone do JK.
138 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
Desse modo, a mistura bem dosada de gêneros da propaganda, da conversação e
da autopromoção compõe um outdoor bastante sugestivo, para convencer os pais
a matricularem os seus filhos no JK.
Analisaremos agora mais dois outdoors que fazem parte de uma campanha promocional temática que foi apresentada em toda a Capital Federal na época anterior
às matrículas. Nesses outdoors surge outra maneira bastante freqüente para chamar
a atenção dos prováveis “clientes”. É a estratégia de desqualificar, desmerecer indiretamente os cursos opositores e similares em suas ofertas.
Nos outdoors apresentados a seguir, vemos, em primeiro plano, com letras todas
em versais, o texto: “TEORIA SEM PRÁTICA DÁ NISSO”. A linguagem multimodal,
como a imagem e a cor, nesses outdoors, está em segundo plano, sem deixar, no
entanto de legitimar o texto escrito, cuja construção centraliza a informação. Todo
o argumento da mensagem publicitária é construído sobre o texto: “TEORIA SEM
PRÁTICA DÁ NISSO”. As imagens do super-homem e do pára-quedista, usadas
respectivamente nos dois outdoors, são colocadas em tamanho menor, e o seu
papel é mais o de reforçar, de validar o que havia sido dito a respeito do papel da
teoria e da prática em cursos superiores.
No primeiro outdoor, é explorada a imagem do super-homem; no segundo, é
usada a imagem de um pára-quedista. Em ambos, as imagens são negativas, pois
eles não são bem-sucedidos em seus intentos de voar ou de lançar-se de pára-quedas. Essas imagens servem de contra-exemplo para dizer o que não deve ser feito.
O resultado para tais ações, se imitadas, será o fracasso.
No outdoor em que é usada a figura do super-homem, a imagem mostra que
esse super-herói, ao voar, choca-se no outdoor. O recado midiático defende o
pressuposto de que, se o candidato buscar ou cursar qualquer curso que seja só
teórico, poderá fracassar como o super-herói, que não logrou sucesso no intento de
voar mais alto e teve de agarrar-se ao outdoor para não cair. O que a propaganda
defende é que o aluno só alcançará sucesso se buscar o curso certo que combine
TEORIA e PRÁTICA.
Esse super-homem do outdoor só aprendeu teoria; não tem prática, não é como
o super-homem dos filmes americanos, ou das revistas em quadrinhos, que sempre obtém sucesso. Essa versão do super-homem é falsa, como muitos cursos que
andam surgindo atualmente: só têm teoria, não têm prática.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
139
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
Outdoor do IESB.
O uso da imagem do super-homem na propaganda apela para o inconsciente
coletivo que conhece a figura mágica de elevado poder, com quem o aluno poderá
identificar-se, para escolher o curso certo.
A instituição, IESB, aparece de modo muito discreto, no canto, à direita com a
logomarca, em tom vermelho, uma cor promocional. Abaixo, é colocado também
o endereço eletrônico e, por último, em tamanho pequeno, o grande argumento do
outdoor: a teoria e a prática juntas. Tudo o que foi construído no outdoor se resume
nessa frase, cujo teor ratifica que a IESB é a Instituição que oferece em seus cursos
a TEORIA e a PRÁTICA JUNTAS, logo não tem como o futuro aluno fracassar.
No outdoor sobre o pára-quedista, que examinaremos a seguir, a mensagem
temática se repete: curso bom, somente aquele que associar teoria e prática, no
caso, só IESB.
Outdoor do IESB.
140 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
A mesma temática utilizada no outdoor do super-homem (TEORIA SEM PRÁTICA DÁ NISSO) compõe o outdoor do pára-quedista. Ele, do mesmo modo que o
super-homem, só tem teoria, nada de prática e daí o seu insucesso. Ao lançar-se
de pára-quedas, enrolou-se nas cordas, enganchando-se no próprio outdoor. Como
a campanha é temática, novamente a logomarca em vermelho aparece acima do
endereço eletrônico e, por último, novamente o outdoor repete o argumento: a “teoria
e a prática juntas”. O que diferencia este do outro outdoor é a imagem e a cor
do fundo que neste é verde, no outro é amarelo.
Prosseguindo em nossa análise, examinaremos mais dois outdoors que apelam
para consumidores que consideram a educação um quinhão para ser usufruído
por toda a vida. Essas duas chamadas são clássicas e vão ao encontro do senso
comum, das crenças das famílias de classe média. Elas costumam declarar a respeito de educação: “Nós não somos ricos, e a única herança que vamos te deixar
são os teus estudos”. As duas propagandas são do Centro Universitário de Brasília
(UniCEUB).
A mesma instituição oferece, em vários níveis, cursos que contemplam o ensino Fundamental e Médio, podendo se estender até a cursos superiores. Mas, em
qualquer grau de ensino, a mesma crença permanece: EDUCAÇÃO COMO UM BEM,
COMO UM LEGADO PARA A VIDA TODA.
Outdoor do Colégio CEUB.
A diferença entre as duas propagandas concentra-se na faixa etária dos alunos
alcançados pelo outdoor. Na primeira, está em destaque uma menina, pequena, loira
e bonita que aparece debruçada sobre os livros. Entende-se que esse outdoor destinase para estudantes do Ensino Fundamental (no Brasil, isso quer dizer ensino para
crianças até a nona série). Na segunda, é um casal de jovens que toma o primeiro
plano da propaganda, dirigido para o Ensino Médio (curso que antecede o curso
superior). Em resumo, Colégio CEUB é bom para qualquer idade e contribui para a
construção dessa bagagem cultural que é para toda a vida.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
141
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
Outdoor do Colégio CEUB.
O fato em comum entre as duas propagandas do CEUB é que em ambas há um
fundo com desenhos. Infantis no primeiro, fórmulas matemáticas no segundo,
mas nos dois aparece uma frase logo abaixo do grande argumento: “Crianças
precisam de modelos mais do que de críticas”. Mesmo que no segundo
outdoor o motivo seja direcionado para os jovens, a frase de aconselhamento sobre
as crianças é a mesma e direciona-se à família.
O gênero conversacional presente estabelece uma conversação direta com os
pais. Um tom de admoestação fica no ar, as crianças precisam de modelos dos pais
e não de suas críticas. Entendo que a frase acima também permite uma leitura com
ambigüidade: quem critica as crianças? os pais ou as demais escolas?
Com o exame desses outdoors, podemos dizer que os cursos mudaram, os tipos
de escolas também e com eles uma gama de aspectos como currículo e extensão
dos cursos. A duração dos cursos é encurtada cada vez mais. Os cursos superiores, em tese, duravam em média quatro anos. Hoje, o mercado compete para ver
que curso dura menos. Os anúncios oferecem cursos em dois e três anos. É foco
publicitário de outdoor explicitar a duração dos cursos em anos. O mercado exige
cursos rápidos, com currículos extremamente enxutos, diretamente ligados à atividade profissional.
Os tempos mudaram, e o custo do ensino privado aumentou demasiadamente.
Assim, as instituições de ensino fazem guerra de preços, disputando palmo a palmo
o mercado. Inundam as cidades em pontos estratégicos outdoors com anúncios de
escolas de ensino Fundamental e Médio, e, principalmente, de cursos superiores,
em que o mote principal da propaganda é o baixo preço do curso. A disputa do
mercado é tão acirrada que as vantagens financeiras são a chamada principal para
atrair novos alunos.
142 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
Vejamos a propaganda do curso da União de Estudantes de Brasília, UNEB, que,
em primeiro plano, no centro do outdoor, em tamanho gigante, aparece o valor do
curso. Nada mais importa, apenas o preço da mensalidade. Não é feito nenhum
tipo de apelo aos possíveis consumidores do curso no que toca à qualidade de
ensino, nem aos cursos oferecidos. O centro de toda a ação midiática concentra-se
no valor, que supomos seja convidativo para o mercado consumidor.
Ao lado do preço cobrado, aparece também, com muita ênfase, o anúncio do
1º vestibular simplificado, que no outdoor é chamado de “processo seletivo”. A
leitura do outdoor nos diz que todos os que puderem pagar os R$ 260,00 estão
convidados a participar do processo “seletivo” da instituição (tendo dinheiro, não
haverá complicações).
A pista deixada pelo anúncio é de que certamente todos os candidatos que
preencherem esse requisito financeiro serão aprovados. Se não fosse o preço das
mensalidades dos cursos no primeiro plano, poderíamos dizer que esse anúncio
é bem tradicional, impessoal, não adotando o gênero conversacional como os demais. Aparece também, em primeiro plano, a imagem de uma jovem descontraída
e sorridente que não tem nada a ver com a mensagem veiculada pelo outdoor. O
seu papel é apenas o de ilustrar o texto promocional da UNEB, fugindo do que é
defendido por Kress e van Leeuwen (2001) sobre o texto multimodal, no qual a
imagem deve, em primeira instância, compor o texto e não apenas ilustrá-lo.
Outdoor promocional da UNEB.
Por último, encontramos uma propaganda que faz uso da metáfora do crescimento, em uma dupla alusão que só cresce quem faz cursos superiores na IESB.
De todo o modo, ainda é uma propaganda calcada no concorrente. Se não for IESB,
o aluno não cresce, não obtém sucesso na vida profissional. É um discurso que se
concentra nas qualidades da instituição.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
143
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
O outdoor é composto em dois planos: um deles pintado de azul em que aparece
o céu, e o outro, em vermelho, que imita o tamanho do painel do outdoor. Dele
parece sobressair a imagem de uma jovem que tem a metade do corpo no espaço
azul o que dá-nos a ilusão de que a jovem está com metade do corpo no espaço.
Parece que cresceu tanto que passou do outdoor. É essa relação analógica e metafórica que estabelece o argumento de que só quem faz IESB cresce.
Outdoor promocional do IESB.
Considerações Finais – É Hora da Resistência
Um dos pontos preponderantes para o enfrentamento de uma sociedade mediada
deve ser a preocupação com a construção da sua identidade. Segundo Thompson (2002,
p. 181), nas sociedades modernas, a natureza do EU, do self, num mundo mediado,
torna-se mais reflexivo e aberto. Concordamos com Thompson quando declara:
...os indivíduos dependem cada vez mais dos próprios recursos para construir
uma identidade coerente para si mesmos. (...) o processo do self é cada vez
mais alimentado por materiais simbólicos mediados, que se expandem num
leque de opções disponíveis e enfraquecem – sem destruir – a conexão entre a
formação e o local compartilhado. Esta conexão é enfraquecida à medida que
os indivíduos têm acesso a formas de informação e comunicação originárias de
fontes distantes, que lhes chegam através de redes de comunicação mediada
em crescente expansão.
Giddens (2002) diz que as mudanças nas sociedades modernas projetam um novo
tipo de self que gera outros tipos de intimidade. As formas mediadas de comunicação
aceleram essas transformações da intimidade. A interação mediada, por telefone
ou por Internet, constrói e solidifica um novo self que tem de aprender a filtrar nas
avalanches de informações mediadas aquelas que efetivamente são significativas
para si. Em suma: o homem contemporâneo deve tornar-se mais reflexivo.
144 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
Felizmente, a dificuldade que tínhamos no passado de buscar informações legítimas, como livros e cursos avançados, estão distantes. Hoje abundam na telinha
de nossos computadores, nos folhetos, nos outdoors e em tantas outras formas de
acesso. O excesso de informação a que estamos expostos nos sufoca e, obrigatoriamente, devemos nos tornar mais seletivos.
A noção de tempo e espaço, nesse contexto, perdeu seu significado. Vivemos um
tempo atemporal, em uma sociedade transnacional em que as distâncias equivalem,
apenas, o tempo de escrevermos o endereço eletrônico da informação desejada
no nosso computador pessoal. O tempo e o espaço transgridem definitivamente o
significado dos dicionários e tornam-se, como diz Catells (2002), uma efemeridade
eterna.Vejamos o que diz o sociólogo a esse respeito: O espaço de fluxos dissolve
o tempo, desordenando a seqüência dos acontecimentos, tornando-os simultâneos,
instalando assim a sociedade na efemeridade eterna.
A ADC permite o exame profundo deste novo gênero do discurso aqui examinado: o outdoor, que envolve a multimodalidade dos textos, usando cores, imagens
arrojadas, além da análise das cadeias lexicais que organizam e formam sentidos
manipuladores em direção ao consumidor, procurando aliciá-lo a cursos de graduação e de pós-graduação. Cursos de mestrados em ciências humanas ao lado de
doutorados fantasmas tanto nacionais como internacionais são freqüentes. É sabido que certas instituições têm dificuldades até para oferecer cursos de graduação
simples, que dirá da oferta de cursos de doutoramento.
É hora da resistência. Cursos de graduação e de pós-graduação devem ser oferecidos com base em suas qualidades acadêmicas, como organização curricular e
corpo docente, programas de pesquisa, nível de publicações e prestígio institucional, e não por serem rápidos como café instantâneo, baratos como feira popular e
descompromissados como convite para um dia no parque.
Ao falar em resistência, faço minhas as palavras de Kanavillil Rajagopalan (2002,
p. 204), que, com propriedade, diz:
Não há sentido em falar em resistência sem se referir, no mesmo ato, a forças coercitivas que, num dado momento histórico, estejam atuando sobre
um sujeito, acuando-o de forma cerrada com intuito de sufocá-lo, esmagá-lo
ou, no mínimo, domesticá-lo ou neutralizá-lo. Isto é, a resistência é sempre
resistência a algo, via de regra uma força opressora poderosa demais para ser
repelida de uma só vez.
A questão da resistência desperta cada vez mais interesse na discussão da chamada empowerment education, que trata da possibilidade de criar condições para que
educadores que atuam em situações marginais desenvolvam formas de resistência
para o enfrentamento das injustiças sociais a que os alunos estão sujeitos.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
145
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
Fairclough (2001, p. 69) defende também a resistência nos seguintes termos:
Acredito que a análise de discurso é um recurso importante, embora relativamente negligenciado, ( …) a análise do discurso também tem a capacidade
de ser um recurso para aqueles engajados em lutas dentro das instituições.
Para muitos membros de instituições de educação superior, por exemplo, as
mudanças dramáticas da última década têm sido profundamente alienantes;
contudo sua capacidade de resistir a elas tem sido enfraquecida por sua relutância em recorrer a práticas e estruturas que têm sido amplamente criticadas
pela esquerda e pela direita e que tem sido o alvo da mudança.
Entendo que uma maneira saudável de resistência a essas nefastas mudanças no
discurso da educação seria procurar desenvolver condições favoráveis para esses
sujeitos que, fortalecidos por uma consciência crítica, estariam em condições de
competir por um espaço legítimo na sociedade.
Estamos no início de novo milênio e no meio de um turbilhão de mudanças.
Nesse sentido, podemos falar de uma nova ordem do discurso, a ordem do discurso dos mídias – o poderoso discurso midiático. Quem não estiver preparado
criticamente para lidar com esses novos discursos não tem como opor resistência
a esses momentos críticos que estamos vivendo.
A Unesco, por meio da publicação A criança e a mídia: imagem, educação e
participação, organizada por Cecília von Felitzen e Ulla Carlsson, traz excelente
contribuição para a discussão do preparo da criança para o enfrentamento da força
dos mídias, pois a informação flui de forma cada vez mais livre, e a nova ordem
possibilita que pessoas de todo o mundo compartilhem sons e imagens. Para podermos lidar com todas essas mudanças no mundo da informação, os sujeitos do
discurso têm de estar preparados.
A esse respeito, Cecília von Felitzen (2002, p. 20) declara:
Naturalmente, a educação para a mídia e a participação das crianças na mídia
não são os únicos meios de criar um ambiente melhor para a mídia e certamente não constituem o único meio de criar condições sociais mais razoáveis
para as crianças. Ao contrário, também são necessários esforços importantes
da parte da mídia na forma de, por exemplo, auto-regulamentação e produção de programas de rádio e TV de alta qualidade, que satisfaçam as várias
necessidades infantis.
Outra maneira de opormos resistência a esse discurso contrário à excelência
da educação em todas as instâncias do Ensino Fundamental ao Ensino Superior,
é preparamos um currículo que permita ensino que enseje o preparo do aluno
para lidar com as mídias e com os mídias e com a multimodalidade do discurso
contemporâneo. Rocha (2007, p. 72), situando a questão no ensino de Língua
Portuguesa, afirma:
146 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
A fim de preparar os alunos para participarem efetivamente dessa nova ordem,
os professores de LP, precisam conscientizar-se e conscientizar os discentes
do âmbito semiótico explícito e/ou implícito em uma variedade de práticas
comunicativas. Eles precisam conceber o currículo como uma estrutura ampla
que dê conta de uma enorme variedade de representações. Para serem bem
instruídos, sem dúvida os alunos terão de entender mais do que já sabem
atualmente sobre as escolhas comunicativas disponíveis – linguagem oral e
escrita – para o uso e sobre os gêneros de comunicação de massa, por exemplo,
e quais formas são mais apropriadas em um contexto particular.
Keval J. Kumar (2002, p. 285), sobre a questão da educação para a mídia hoje,
afirma:
A educação para a mídia ainda tem que se firmar como tema de aprendizagem
nos sistemas de educacionais formais tanto dos países industrializados como
dos não industrializados. As autoridades escolares públicas e privadas, embora
estejam preocupadas com o crescimento e influência da mídia de massa, não
vêem necessidade em sobrecarregar os alunos com um novo assunto, cujo
conteúdo e metodologia não se encaixam nas práticas educativas tradicionais.
As tentativas vigorosas da UNESCO, por mais de uma década, para promover
o assunto nos vários níveis de educação, tiveram muito pouco sucesso, exceto
alguns países do Ocidente (especialmente Austrália, Grã-Bretanha e Canadá)
e na América Latina.
A verdade é que os sujeitos do discurso, sejam crianças ou adultos, devem estar
preparados para um mundo multissemiótico, povoado de imagens e de sons, para
poderem desvendar a sua mensagem. Quem não souber ler esse tipo de discurso
estará em séria desvantagem, pois facilmente poderá ser manipulado por toda sorte
de informação que use esses recursos multimodais. A resistência efetiva é saber
lidar criticamente com a natureza desse tipo de discurso. É pertinente trazer o que
Barbosa (1984, p. 25) diz:
Falta uma alfabetização visual, o visual está dominando o mundo contemporâneo. Precisamos aprender a ler a imagem. Para não sermos presa fácil de
um conhecimento subliminar. Segundo uma pesquisa francesa, 82% do que
nós aprendemos é através do visual, desses 82%, 51% se aprende inconscientemente.
O que temos de fazer com a emergente força da imagem no momento atual de
nossa história é voltarmo-nos para a educação como um meio legítimo de transformar as classes populares em verdadeira massa crítica de nossa sociedade. Afinal,
a efetiva e completa ação cidadã deve passar pelo papel de desconstrutora da ação
alienadora da imagem para uma avaliação crítica de tudo o que vemos. Aprender a
lidar com o excesso de informações do mundo mediado das sociedades modernas
é outro portentoso recurso de resistência.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
147
Parte III – Discurso e Educação • O Discurso Mercantilista do Ensino Brasileiro
Tornar os alunos seletivos em matéria de informação é outro aspecto que deve
também ser considerado com especial atenção. Nem tudo o que é visto deve ser
considerado informação útil e digna de registro nos arquivos de memória. A saturação visual é tão assustadora como a auditiva. É bom vivermos em um mundo
midiatizado, mas devemos saber lidar com toda essa gama de informações, para
que nossas escolhas (e aqui incluímos os cursos superiores e o ensino em geral)
não sejam conduzidas por propagandas manipuladoras de nossa vontade.
Por fim, a maioria dos outdoors analisados revelou que eles foram concebidos
com o propósito de vender imagens de cursos cujo propósito principal é o de ser
um produto barato, de rápido consumo e de fácil circulação. A preocupação com
a titulação dos docentes que ministram tais cursos sequer foi mencionada pelas
ofertas dos cursos. De igual modo também não servem para chamada de outdoors
atributos como qualidade de ensino, grades curriculares especiais e contemporâneas
que contemplem as necessidades locais e que atendam a nossa cultura regional.
A discussão do tema não se esgota aqui e poderia ser ainda amplamente discutida, mas, para os propósitos do artigo, entendemos que chamamos atenção para
o fato de que a educação brasileira tornou-se mais uma mercadoria na sociedade
mediada do mundo contemporânea. Acreditamos que a profundidade, a relevância
e a abrangência do assunto provoquem a atenção de outros pesquisadores.
Referências Bibliográficas
CASTELLS, M. A sociedade em rede. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2002.
DURAN, M. C. G.; ALVES, M. L.; NETO, E. dos S. (Org.). Educadores: memórias,
imagens, vozes e saberes. Educação e Linguagem. Pós-Graduação em Educação,
Faculdade de Educação e Letras. São Bernardo do Campo/SP: UNESP ano 4, n.
4, jan.-dez., 2001.
FAIRCLOUGH, N. A análise crítica do discurso e a mercantilização do discurso
público: as universidades. In: Magalhães, C. M. (Org.). Reflexões sobre a
análise crítica do discurso. Belo Horizonte: FALE-UFMG, 2001.
_______________. Discurso e mudança social. (Coord.). trad. téc e prefácio profa. Izabel Magalhães do original. Inglês Discourse and social change. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2001.
GIDDENS, A. Conversas com Anthony Guiddens. O sentido da modernidade.
Rio de Janeiro: Editora FGV. 2002.
148 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Josenia Antunes Vieira
____________. Sociology. London: Polity Press, 2002.
_____________. The consequences of modernity. London: Polity Press, 1990.
HABERMAS. Mudança estrutural na vida pública. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 1984.
KRESS, G.; van LEEUWEN, T. Multimodal Discourse – The modes and media of
contemporary communication. London: Arnold, 2001.
MACEDO, G.; PERFEITO, G.; SILVEIRA, T. CAMPUS, n. 268, primeira quinzena
de agosto, 2002.
RAJAGOPALAN, K. Teorizando a resistência. In: Garcia, D. H. da S.; Vieira,
A. J. Análise do discurso percursos teóricos e metodológicos. Brasília: Oficina
Editorial Instituto de Letras e Editora Plano, 2002.
ROCHA, Harrison da. Repensando o ensino de língua portuguesa: uma abordagem
multimodal. In: VIEIRA, Josenia A. et al. Reflexões sobre a língua portuguesa:
uma abordagem multimodal. Petrópolis: Vozes, 2007.
SILVA, D. de O. S. Artes visuais e imagens: ler e educar, In: Duran, M. C. G.;
Alves, M. L.; Neto, E. dos S. (Org.). Educadores: memórias, imagens, vozes
e saberes. Educação e Linguagem.Pós-Graduação em Educação, Faculdade de
Educação e Letras. São Bernardo do Campo/SP: UNESP, ano 4, n. 4, jan.-dez.
2001.
THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade uma teoria social da mídia. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
VON FEILITZEN C.; CARLSSON, U. A criança e a mídia imagem, educação e
participação. São Paulo: Cortez Editora, 2002.
VIEIRA, J. A. Novas perspectivas para o texto: uma visão multissemiótica. A Multimodalidade Textual a Serviço do Ensino, Projeto de Pesquisa, Capes, 2007.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
149
Parte IV
discurso e língua portuguesa
Janaína de Aquino Ferraz
Regina Célia Pagliuchi da Silveira
A multimodalidade e a formação dos sentidos
em português como segunda língua
Janaína de Aquino Ferraz* (UnB)
Resumo: Nos últimos anos, houve grande abertura para a pluralidade de usos da
linguagem no contexto escolar. Como conseqüência direta desse fenômeno houve mudança
significativa na configuração dos materiais didáticos. Com isso, o objetivo principal
deste artigo é analisar o conteúdo de livros didáticos de português para estrangeiros,
no intuito de verificar quais são as mudanças na construção dos sentidos segundo
os textos apresentados nesses materiais sob a luz da Análise de Discurso Crítica e da
Semiótica Social.
Palavras-chave: Discurso; Multimodalidade; Imagens.
Abstract: In recent years, it had great opening for the plurality of language uses in
the pertaining to school context. As a direct consequence of this phenomenon, it had
significant changes in the configuration of didactic materials. For this reason, the
main goal of this article is to analyze contents of didactic books of Portuguese for
Foreigners, in intention to verify what are the changes in the meanings construction
in texts presented in these materials, according to the directions of Critical Discourse
Analysis and Social Semiotics.
Keywords: Discourse; Multimodality; Images.
* Professora da Universidade de Brasília; ministra disciplinas na área de Lingüística; mestre em Lingüística pela mesma instituição; membro da Asociación Latinoamericana de Estúdios del Discurso (ALED),
da Associação Brasileira de Lingüística (ABRALIN) e do Centro de Pesquisa em Análise de Discurso
Crítica (CEPADIC); realiza pesquisas na área de Português Língua Estrangeira sob enfoque da Análise
de Discurso Crítica a da Multimodalidade. E-mail: [email protected].
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • A Multimodalidade e a Formação dos Sentidos em Português como
Segunda Língua
A Modalidade Escrita na Atualidade
M
últiplas semioses sempre coexistiram, mas assumi-las como objeto de estudo é ainda algo muito novo. A linguagem do mundo atual privilegia outras
modalidades diferentes da escrita, portanto os eventos de escrita devem ser vistos,
hoje, sob nova perspectiva. Essa modalidade torna-se, cada vez mais, apenas um dos
modos de representação cultural. Mesmo ao constatar a pluralidade de linguagens,
em termos de estudos lingüísticos, o que se verifica é o enfoque na escrita, que não
basta mais para revelar a totalidade dos usos da língua e de seus fenômenos.
Essas mudanças significativas trazem à tona um novo tipo de texto, que se
mostra bastante recorrente nas práticas sociais pós-modernas: o texto multimodal.
Para a Teoria da Multimodalidade, o texto multimodal é aquele cujo significado se
realiza por mais de um código semiótico, conforme Kress & van Leeuwen (1996).
Ainda segundo esses, um conjunto de modos semióticos está sempre envolvido
em toda produção ou leitura dos textos; cada modalidade tem suas potencialidades
específicas de representação e de comunicação, produzidas culturalmente; tanto os
produtores quanto os leitores têm poder sobre esses textos; o interesse do produtor implica a convergência de um complexo conjunto de fatores; histórias sociais
e culturais, contextos sociais atuais, inclusive perspectivas do produtor do signo
sobre o contexto comunicativo.
O constante surgimento de avanços tecnológicos confere às práticas sociais mais
diversas, novas configurações lingüísticas, que lançam mão de multisemioses. Os
reflexos dessas mudanças apontam novos direcionamentos para disciplinas críticas,
como a Análise de Discurso Crítica (ADC), que, hoje, reconhece a importância da
análise da comunicação visual.
Visualização: Novo Enfoque para Estudos Discursivos
A Análise de Discurso Crítica (ADC) tem se concentrado não mais apenas em
análises textuais baseadas na linguagem escrita, mas também em amplas tendências na comunicação pública. Isso porque as mudanças na linguagem direcionam
os estudos do discurso e impulsionam as transformações de todas as formas de
comunicação. A grande utilização de imagens para a comunicação atesta que, cada
vez mais, o texto multimodal figura como fonte essencial de investigação para a
ADC, isso porque esta pretende mostrar, dentre outras coisas, como esses textos
podem de fato reproduzir atitudes ideológicas e como a linguagem é usada para
veicular poder na interação social pós-moderna. Dessa forma, considero a abrangência dada ao termo discurso que também é utilizado para referir-se a “elementos
semióticos das práticas sociais” (Chouliaraki e Fairclough, 1999, p. 38) como
154 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Janaína de Aquino Ferraz
reflexo da inclusão de outras modalidades semióticas de discurso não-verbal por
parte da ADC.
De acordo com a Semiótica Social, a linguagem tende a se adequar às linhas
seguintes, segundo Kress e van Leeuwen (1996):
a) a comunicação exige que os participantes elaborem suas mensagens maximamente compreensíveis num contexto particular. Para isso eles procuram
formas de expressão que eles acreditam ser maximamente transparentes para
os outros participantes;
b) a comunicação determina lugares na estrutura social que são inevitavelmente marcados pelas diferenças de poder, e isso afeta o modo como cada
participante compreende a noção de entendimento máximo;
c) os participantes em posição de poder podem forçar outros participantes a um
maior esforço de interpretação, diferenciando sua noção de entendimento
máximo;
d) a representação requer que o criador dos signos procure formas para a
expressão do que eles têm em mente, formas que eles vêem como as mais
aptas e plausíveis em dado contexto;
e) o interesse dos criadores dos signos, no momento da criação, guia-se para
procurar um aspecto ou o conjunto de aspectos do objeto a ser representado como sendo característico, naquele momento, para representar o que
eles querem representar, e daí procurar a mais plausível, a mais apta forma
para sua representação. Isso se aplica também ao interesse das instituições
dentro das quais as mensagens são produzidas, e lá se faz a formação de
convenções e constrangimentos.
Nesse âmbito de mudanças, o ensino de línguas mostra-se como uma das áreas
que mais sofreu influência das novas tecnologias. O apelo visual deixa de ser exclusivo do discurso publicitário, materiais didáticos também passam a apresentar
maior quantidade de imagens e de cores. O texto, no qual predomina um único
modo semiótico, não atende mais às novas necessidades da sociedade atual, que
pede maior quantidade de informação. A famosa frase “uma imagem vale mais que
mil palavras” ganha força e direciona a configuração dos discursos.
Com base nessas afirmações, teço considerações a respeito de textos multimodais
presentes em livros didáticos de português para estrangeiros, segmento que aponta
de forma significativa para uma nova configuração na sua forma, condizente com
o uso da imagem como recurso argumentativo para a transmissão de mensagens.
Passo, agora, a apresentação desses materiais didáticos.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
155
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • A Multimodalidade e a Formação dos Sentidos em Português como
Segunda Língua
Os Materiais Didáticos de Português Língua
Estrangeira
O ensino de línguas estrangeiras sempre teve como característica o emprego
de multimeios para a aplicação de atividades diversificadas, mas o que procuro
ressaltar é como o emprego dos modos semióticos, como cores e imagens aplicadas
em materiais didáticos direcionam a representação dos signos selecionados pelo
produtor. Dessa forma, pretendo elucidar o verdadeiro papel dos textos multimodais, compostos por linguagem verbal e não-verbal presentes em livros didáticos
de português para estrangeiros, com o objetivo de verificar como a organização
dos vários modos semióticos presentes nesses textos contribui para a construção
de significados aos olhos do aluno estrangeiro, seu principal leitor.
É corrente dizer que um dos objetivos dos cursos de língua estrangeira é ativar
a competência comunicativa consciente na língua-alvo em uso concreto por parte
do aluno, mas, como em grande parte dos casos, o processo de aprendizagem não
se dá em ambiente de imersão, essa competência é trabalhada em ambiente de sala
de aula e com a utilização de um livro didático – base para o curso. É desse livro,
portanto, que se retiram as situações-alvo para o desenvolvimento das habilidades
lingüísticas necessárias no desempenho das tarefas exigidas. Tais necessidades são
comumente estabelecidas em termos de objetivos, canais, ambientes de comunicação, habilidades lingüísticas, funções e estruturas.
Para que as habilidades lingüísticas sejam desenvolvidas, mesmo em ambiente
formal, é importante proporcionar ao aluno melhor conhecimento da cultura dos
falantes nativos da língua-alvo, de forma que ele possa ter o domínio crítico necessário dos vários modos semióticos que o cercam, em outras palavras, prepará-lo
para uma interpretação eficiente de textos multimodais em outra língua.
Por considerar o processo de aprendizagem uma negociação entre os participantes, não só em relação ao conteúdo a ser estudado, mas também em relação a sua
implementação em sala de aula, vejo o livro didático como uma conseqüência de
todas as escolhas oriundas de uma idéia de planejamento que nele se refletem, um
lugar repleto de pistas significativas sobre a formação discursiva de conceitos.
O livro didático é, portanto, elemento “provocador” que pode abrir pontos
para a troca de idéias, de opiniões, de pontos de vista, pois carrega em si eventos
e situações que buscam retratar cultura. Coloca o aluno estrangeiro em contato
com visões de mundo e com parâmetros culturais diferentes dos de sua origem
156 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Janaína de Aquino Ferraz
e como um dos veículos de um discurso permeado por crenças e valores sociais.
Por tudo isso, o livro didático figura de forma eficiente como objeto de estudos
discursivos.
O ponto de partida para o conhecimento crítico dos vários modos semióticos
que envolvem a produção de textos multimodais em português reside em investigar
as conseqüências da perspectiva do produtor dos signos, que busca representar
a realidade por meio das formas simbólicas que considera mais plausíveis para
determinado contexto. Dessa forma, os textos multimodais apresentados em materiais didáticos de língua estrangeira passam a ser reflexo de posicionamentos
ideológicos. Portanto, é do livro didático que proponho iniciar meu trabalho, pois
o considero fonte essencial de subsídios para a compreensão da ideologia contida
em seus textos, e da percepção das origens sociais em que se deu sua produção.
Cumprida a tarefa de apresentar a importância dos materiais didáticos de língua
estrangeira, nesse momento procedo à apresentação de mudanças significativas
nesses materiais, nos últimos anos.
As Mudanças Significativas em Materiais Didáticos de
Língua Estrangeira
Anteriormente, mencionei, de forma breve, as mudanças pelas quais passaram
os materiais didáticos de língua estrangeira nas últimas décadas. Tais mudanças
trouxeram reestruturações quanto à composição textual das partes constitutivas
das capas de livros didáticos, que por apresentarem estruturas fixas, podem ser
consideradas um gênero discursivo, bem como de seus textos internos.
A comprovação da existência de um “código de integração” que implica sincronização de elementos por meio de um ritmo comum (van Leeuwen 1985, apud
Kress & van Leeuwen, 2001), pode ser vista, por meio dessas estruturas fixas. Dessa
forma, meu enfoque, para o momento, volta-se ao conjunto dos modos semióticos
envolvidos na produção de duas capas, o que levará ao entendimento das mensagens
nelas contidas, para, posteriormente, proceder ao exame de textos multimodais de
cada um dos livros selecionados para essa discussão.
Passo à apresentação sucinta das partes fixas constitutivas do gênero em questão, de modo a explicitá-las de acordo com as modalidades envolvidas em sua
produção. Observemos as duas capas seguintes:
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
157
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • A Multimodalidade e a Formação dos Sentidos em Português como
Segunda Língua
Capa de Lima & Iunes (1990).
158 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Janaína de Aquino Ferraz
Ao analisar a capa selecionada, verifico a apresentação padrão de alguns itens
significativos nesse gênero, e que passam a ser as partes fixas de composição
textual, são elas:
I.Título da série: Via Brasil;
II. Nome dos autores: Emma Eberlein O. F. Lima e Samira Abirad Iunes;
III.Título do livro: Português: um curso avançado para estrangeiros;
IV.Editora: EPU.
Em primeiro plano, temos o título da obra “VIA BRASIL PORTUGUÊS: um curso
avançado para estrangeiros” com destaque para as palavras Via Brasil e Português. Os nomes das autoras, apesar de aparecerem antes do título, encontram-se
em segundo plano, juntamente com o nome da editora. Esses elementos revelam
o objetivo de uma capa: apresentar ao leitor uma idéia geral sobre o que vai ser
abordado naquela obra.
Na modalidade visual, existem poucos elementos representativos ou formas de
expressão que remetam ao conjunto de aspectos que será apresentado no interior
do livro. O que destaco nessa modalidade são as cores do segundo plano: verde e
preto que remetem à vegetação do Brasil como país tropical, as folhas e as árvores
sombreadas reforçam a presença de florestas no País.
O número reduzido de formas de expressão nessa capa leva a concluir que não
houve preocupação do produtor dos signos quanto à representatividade de imagens, ou mesmo com os efeitos de composição de sentido entre linguagem verbal
e não-verbal, ficando a encargo da parte escrita a veiculação da mensagem sobre
os conteúdos a serem tratados. Apesar de haver a presença de mais de um modo
semiótico para a produção dessa capa, como cores e outras formas que remetem
à vegetação, a composição desses modos não necessariamente leva o aluno estrangeiro a um entendimento maior do conjunto de aspectos que será apresentado
no livro. O fato de o livro datar de 1990 aponta para o fato de a obra ser parte de
uma época e que não se refletia de forma sistematizada sobre os vários modos de
significação do discurso.
Para demonstrar a ocorrência de reestruturação no emprego de imagens com
valor argumentativo no espaço de quinze anos, passo, neste momento, à apresentação da segunda capa:
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
159
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • A Multimodalidade e a Formação dos Sentidos em Português como
Segunda Língua
Capa de Henriques e Grannier (2001).
160 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Janaína de Aquino Ferraz
A segunda capa mencionada, de Henriques & Grannier, apresenta as seguintes
partes fixas de composição textual:
I. Nome das autoras: Eunice Ribeiro Henriques e Daniele Marcelle Grannier;
II.Título da obra: Interagindo em português: textos e visões do Brasil;
III.Nome da editora: Thesaurus;
IV.Volume: I.
As informações em primeiro plano estão assim organizadas: o nome das autoras
em letras reduzidas; o título da obra com destaque para a frase “INTERAGINDO EM
PORTUGUÊS: textos e visões do Brasil” seguida do restante do título; as informações
sobre o nome da editora e o volume da obra em mesmo nível.
Na modalidade imagética, destacam-se os seguintes elementos:
a) cor do segundo plano: azul que remete a uma das cores da bandeira;
b) pessoas em uma feira livre;
c) espontaneidade da conversação entre os participantes;
d) autenticidade da cena escolhida: o hábito do brasileiro de ir à feira compõe
o sentido do título da obra;
e) itens simbólicos: os feirantes, as frutas e hortaliças, os compradores ou
“clientes” da feira, as bancas.
Uma das maneiras de ativar a competência comunicativa consciente na língua
em uso concreto por parte do aluno, é explorar diferentes temáticas nos materiais
didáticos. Como se pode observar pelo conjunto dos modos semióticos envolvido na
produção dessa capa, o produtor dos signos demonstra preocupação com a composição de sentidos entre o título e as imagens selecionadas como forma de expressão,
o que está de acordo com a proposta da Semiótica Social. Para elucidar essa relação
motivada entre os signos empregados nessa última capa, recorro à aplicação de categorias analíticas da Gramática Visual de Kress e van Leeuwen.
A Proposta Analítica de Kress e van Leeuwen
As categorias a seguir emergem de uma gramática de construção sintático-visual.
Os estudos de Kress e van Leeuwen (1996) serviram de base para os caminhos que
tomei em minha análise, pois os processos de representação dos signos selecionados
por seus produtores revelam pistas sobre o contexto sócio-histórico no qual esses
signos são produzidos. Assim, as categorias selecionadas que tomei por minhas
ferramentas de trabalho constituem uma espécie de guia na orientação do leitor
na interpretação e na busca do(s) significado(s) do texto.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
161
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • A Multimodalidade e a Formação dos Sentidos em Português como
Segunda Língua
A categoria dos participantes
Na capa de Henriques & Grannier, temos na categoria dos participantes representados, que corresponde aos objetos da comunicação, sobre os quais se produz
mensagem, o brasileiro, falante nativo da língua-alvo dos alunos estrangeiros. Como
o título do livro é Interagindo em português: textos e visões do Brasil, é pressuposto
que os participantes representados indicam quais elementos da cultura do Brasil
serão tratados e servirão como tema para o estudo do português. Assim, nessa
categoria temos:
a) participantes representados: pessoas em uma feira livre e os elementos da
feira, frutas, hortaliças, bancas, sacolas, carrinhos de compras;
b) participantes interativos: a interação é realizada entre os clientes e os feirantes.
No caso dessa capa, o brasileiro é retratado em uma cena cotidiana, não há
alusão aos estereótipos relacionados ao País, apenas a elementos que retratam o
dia-a-dia no Brasil, o que não significa neutralidade na escolha desses participantes,
uma vez que se parte do princípio de que o produtor dos signos faz a seleção das
formas de expressão de acordo com crenças e valores.
Dessa forma, o título Interagindo em português: textos e visões do Brasil apresenta relação semântica motivada com os modos semióticos envolvidos na produção da capa, assim, o que está verbalizado é também constituído por meio das
imagens empregadas, uma vez que os participantes representados encontram-se
em situação cotidiana de interação da língua em ambiente natural, a feira livre,
o que demonstra a intencionalidade de evidenciar ao aluno uma “visão” do país.
Todas essas escolhas comprovam que o conjunto dos modos semióticos utilizados
na produção dessa capa carrega em si várias pistas significativas.
A categoria dos processos narrativos
Na capa de Henriques & Grannier, os participantes representados têm a vetorização dos olhares voltada não para o leitor/viewer, mas sim realizada entre si, o
que demonstra o processo de ação como fator de composição de sentido.
Nesse mesmo processo, está inserida a idéia de transitividade visual por meio da
qual o reacter direciona o olhar para outro agente, ou seja, os sintagmas envolvidos
na produção da capa têm relação motivada entre si, nessa imagem os sintagmas,
162 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Janaína de Aquino Ferraz
ou participantes representados são os feirantes e os clientes. A interação entre
eles feita por meio do olhar, revela o processo reacional em duas situações: na
de conversação entre os clientes e na situação de compra e venda, ambas com os
reacters (clientes) direcionando suas ações aos agentes (feirantes).
O processo simbólico nessa capa reside, em parte, nos tipos de personagens.
Digo em parte, por ter de levar em conta outros elementos significativos que fornecem pistas sobre a construção dos sentidos da capa. O propósito dos modos
semióticos envolvidos nessa produção textual é retratar uma “visão do Brasil”, o
brasileiro é representado por meio do cidadão comum em situação de seu cotidiano,
os participantes eleitos, os feirantes, as pessoas que freqüentam a feira têm em si
a carga simbólica da figura do brasileiro.
Vejamos essas relações sintagmáticas visuais no esquema abaixo:
1. Feirante
2. Cliente
3.Vetorização
dos olhares
4. Sintagmas
visuais
relativos ao
ambiente da
feira
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
163
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • A Multimodalidade e a Formação dos Sentidos em Português como
Segunda Língua
A categoria da composição espacial do significado
Como mencionei na seção anterior, existem outros elementos significativos que
devem ser levados em conta em processos narrativos de imagens. A composição
espacial dos significados pode revelar pistas da representatividade e da interatividade. Vejamos esses processos aplicados à capa:
a) valor da informação: os personagens principais são os brasileiros nas figuras
de clientes e feirantes, enquanto o restante dos elementos representativos
figura como compositor de significado para o cotidiano do brasileiro, o ambiente da feira;
b) saliência: a projeção dos elementos em primeiro e em segundo plano também
se faz presente nessa capa, os brasileiros (clientes e feirantes) à frente das
bancas são os principais personagens que servem como foco de atenção em
meio ao ambiente da feira.
A categoria do dado e o novo
Nesta categoria, a disposição dos elementos na composição dos modos semióticos
é tomada como fator de valorização da informação que cada forma de expressão possui. Assim, o que está posicionado à esquerda é considerado o “dado”, já conhecido
pelo viewer/leitor, o que está posicionado à direita é considerado o “novo”, ao qual
se deve prestar maior atenção. No caso das capas analisadas, essa categoria aparece
da seguinte forma: à esquerda, temos os brasileiros interagindo na feira, por sua
disposição na imagem entram como elemento “dado”, conhecido pelo viewer/leitor.
À direita, temos o próprio ambiente da feira que figura como elemento “novo”, o
qual deverá ser apresentado ao viewer/leitor.
A aplicação dessas categorias revela que essa constituição identitária se estabelece
no universo do texto multimodal, no interior do qual, os signos são estabelecidos
por relações motivadas entre significado e significante. Examinar a multimodalidade como característica constitutiva do texto é prerrogativa para elucidação das
maneiras como as formas simbólicas são lidas e compreendidas por quem as produz
e as recebe no seu decurso de vida.
A análise elaborada sob a perspectiva da Teoria da Semiótica Social retoma
conceitos relativos à formação de identidade em contextos específicos da pósmodernidade. Extrai das mensagens o caráter ideológico referente à perspectiva
sócio-histórica específica em que essas mensagens são produzidas, circulam e são
recebidas, no contexto de uma teoria social.
164 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Janaína de Aquino Ferraz
O sentido nos textos pós-modernos é constituído num universo entrelaçado de
palavras, imagens, cores e padrões sintáticos descomplicados, permitindo compreensão rápida e global, refletindo o ritmo acelerado da vida pós-moderna bem como
as formas de interconexão social que cobrem o globo. Para verificar a existência de
relação motivada entre os elementos das capas dos livros e os textos multimodais
internos, passo a análise desses últimos.
Categorias Analíticas de Fairclough Aplicadas aos
Textos Multimodais
As categorias provêm da proposta de Fairclough (1999, 2001, 2003) de direcionar o trabalho dos analistas do discurso de especificação das práticas sociais
de produção e consumo do texto associadas ao gênero do discurso que a amostra
representa, o que implica a interpretação da ação estratégica em textos. O emprego
dessas categorias auxilia no entendimento de como os elementos se relacionam,
assim como quais conhecimentos culturais são exigidos a fim de se ler o material.
Antes da aplicação das categorias de Fairclough, faço breves considerações a respeito da configuração do texto selecionado.
O primeiro texto de título Miami, Caribe, Nordeste, a bordo do Bohème foi retirado
do livro de Lima e Iunes (1990, p. 149), e pertence à seção Trocando em Miúdos, na
qual o aluno deve responder a perguntas de interpretação relativas ao texto. Cabe
ressaltar que meu objetivo não é discutir a qualidade do exercício empregado, mas
sim focar a composição de sentidos entre os modos verbal e visual empregados e
que tornem a produção da mensagem coerente tanto interna como externamente,
com aspectos relevantes do entorno semiótico (o chamado contexto).
O material aqui escolhido é originalmente anúncio publicitário e ganha em seu
novo contexto objetivos didáticos, baseados no pressuposto de que os signos da
publicidade são intencionais e serão, por isso, claramente definidos, ou “compreendidos”. Para que cada elemento de composição textual seja contemplado, passo
à descrição das partes fixas de composição textual do gênero nesse texto que são
as seguintes:
I.Título da seção: Trocando em Miúdos;
II.Título do texto: Miami, Caribe, Nordeste. A bordo do Bohème;
III.Corpo do texto: somente língua escrita;
IV.Imagem: coqueiro.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
165
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • A Multimodalidade e a Formação dos Sentidos em Português como
Segunda Língua
Lima e Iunes, 1990.
Na modalidade verbal, para compreender as condições da prática discursiva, é
preciso responder a duas perguntas:
a) o texto é produzido (consumido) individual ou coletivamente?
b) que tipos de efeitos não-discursivos possui essa amostra?
166 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Janaína de Aquino Ferraz
Quanto à primeira pergunta, como o texto encontra-se no livro didático, o
público-alvo pode ser de apenas um aluno ou um grupo de alunos, o produtor ou
produtores do texto são desconhecidos, mas o conteúdo da mensagem, propaganda
sobre o navio Bohème, é carregada de marcas de transitividade (escolha da voz
ativa) como nos seguintes trechos:
“Você sai por via aérea no dia 5 de julho, fica 4 dias em Miami, hospedado
em hotéis de primeira e depois pega o Bohème para a viagem dos seus sonhos.” (l.6)
Há também marcas de processo relacional, pelo qual o produtor do texto procura
interagir com o leitor, e marcas de processo mental, no qual o produtor procura
condicionar a opinião do leitor. Tais processos são estratégias típicas do discurso
publicitário, e podem ser vistas em diversas passagens ao longo do texto por meio
do emprego do imperativo e do pronome “você” que conferem ao texto uma proximidade com o leitor. Vejamos as seguintes:
•“O Bohème é um privilégio do qual você não pode abrir mão”;
•“Não fique a ver navios! Decida-se logo!”.
Quanto à segunda pergunta sobre os efeitos não-discursivos da amostra, ela nos leva,
mais uma vez, ao direcionamento de opinião do leitor. Nesse ponto, devo considerar
a modificação do objetivo original do texto. O conhecimento cultural e os valores que
se pressupõe que o leitor possua podem ser usados para “reconstruir” o leitor “ideal”.
No caso de leitores brasileiros, o efeito não-discursivo, direcionamento de opinião,
está diretamente ligado ao conhecimento profundo do português. A língua escrita não
representa dificuldade de entendimento para esses leitores.
Em se tratando de alunos estrangeiros que não têm o mesmo domínio do português, o efeito não-discursivo é perpassado por uma dificuldade de entendimento da
língua escrita, que limita o entendimento dos significados do texto, como também
perpassa pela procura de outras modalidades, como as imagens, que serviriam de
suporte para composição de significados e conseqüentemente propiciar melhor
compreensão do texto.
Outra categoria presente nesses trechos é a do significado cultural das expressões.
“abrir mão” e “ficar a ver navios” são exemplos dessa categoria. Tais expressões
seriam de mais fácil entendimento se contassem com outros modos semióticos de
composição de sentido. Como o texto serve de base para exercício de interpretação, uma das perguntas propostas é “Você gostaria de passar 16 dias em um navio
com o conforto do Bohème?”, a qual o aluno estrangeiro é levado a responder de
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
167
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • A Multimodalidade e a Formação dos Sentidos em Português como
Segunda Língua
acordo com as expectativas do produtor do texto, devido ao emprego de uma linha
argumentativa direcionadora de opinião.
Aspecto relevante a ser considerado é a presença de uma única imagem no texto, que não atua como elemento semiótico constitutivo de sentido, está ali apenas
como figurante, com valor apenas ilustrativo, não chegando a ser fator decisivo
para o entendimento da mensagem apresentada no texto. O que reforça o fato de
o leitor-alvo, o aluno estrangeiro, não poder contar com a utilização eficaz da
imagem como elemento compositor em seu processo de leitura da língua escrita
em português.
O papel de principal modalidade lingüística ainda é o da língua escrita. Assim,
posso concluir que o leitor desses textos, o aluno estrangeiro, dificilmente poderá
recorrer à imagem como componente de significado, tendo de despender um esforço
redobrado para a compreensão do texto, o que torna seu processo de aprendizagem
de segunda língua uma tarefa muito mais árdua do que poderia de fato ser. Passo
agora à análise do próximo texto.
O texto de título “Uma família brasileira” foi retirado do livro de Henriques e
Grannier (2001) e pertence à seção Situações, que, como o próprio título sugere, é
destinada a propagandas, figuras e/ou textos mais ou menos formais, curtos que
reportem situações do cotidiano do brasileiro focadas em questões culturais. Serve
de base para atividades em que o aluno deve responder a perguntas relacionadas
ao texto proposto.
A exemplo dos outros textos selecionados, “Uma família brasileira” é um texto
composto por modalidade verbal e visual e, portanto, trata-se de texto multimodal.
Quanto às partes fixas de composição textual desse gênero, temos:
I.Título da seção: Situações;
II.Título do texto: Uma família brasileira;
III.Modalidade verbal: texto escrito localizado à esquerda;
IV.Modalidade visual: imagem de uma família, localizada à direita.
168 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Janaína de Aquino Ferraz
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
169
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • A Multimodalidade e a Formação dos Sentidos em Português como
Segunda Língua
Originalmente, o texto é da revista Veja, de grande circulação nacional, e traz
como tema a descrição de uma família brasileira de classe média alta. Devo atentar
para a intencionalidade de sua inclusão no livro didático o que demonstra como
dados formais podem reconstruir as maneiras como a realidade pode ser representada por um grupo social, uma vez que revistas e outros meios de comunicação
representam, em parte, um grupo de pessoas.
Por ser texto originalmente informativo, já que esta é a proposta da Revista Veja,
“informar” de maneira “isenta”, é possível verificar, a tentativa de escolha despretensiosa, livre de julgamentos de valor quanto ao conteúdo a ser tratado. Mas há
claramente um recorte na caracterização da “típica” família brasileira que pode ser
inferida por meio das informações apresentadas tanto na modalidade escrita como
na imagética. Para abordar esses aspectos na modalidade verbal recorro, mais uma
vez, a alguns dos modos de operação da ideologia de Thompson (1995) presentes
nesse texto: a unificação por meio da simbolização da unidade e da padronização
e da fragmentação por meio da diferenciação.
A escolha dos tópicos Renda, Urbanização, Mulher, Educação e Lazer para a
descrição da família revela a unificação por meio das estratégias da simbolização
da unidade e da padronização. Por meio da aplicação desse modo de operação da
ideologia, é possível verificar que as características da família descrita passam a
ser comuns a qualquer família brasileira.
Outro ponto a ser abordado diz respeito à escolha do produtor do texto na apresentação da família por meio da figura masculina, Ricarte, o que denota o homem
como figura principal, o provedor ou “chefe da casa”, ficando a identidade de Rosângela, em patamar secundário, como um dos tópicos posteriores – podemos ver
seu esforço em se enquadrar no erro da câmara fotografica; ao contrario o marido
e o vetor seus braços, erga ommis domina e proteje toda a família. Essa escolha
determina a fragmentação por meio da estratégia da diferenciação, pois ao enfatizar a diferenças e as divisões de papéis entre pessoas, no caso as diferenças entre
o casal Ricarte e Rosângela, o produtor do texto define identidades culturalmente
construídas, ao mesmo tempo em que as fortalece e as torna legítimas, o que remete
à categoria de identidade, o ethos, proposta por Fairclough, a qual envolve não
apenas o discurso, mas todo o contexto social ao qual o texto faz referência.
Além da escolha de tópicos, a disposição entre eles também constitui uma
pista significativa na parte escrita: o tema, pois há preocupação em estabelecer
um padrão discernível na estrutura temática do texto por meio das escolhas dos
temas das orações. Ao apresentar como informação inicial a renda familiar, a suposição subjacente a essa estrutura temática é de que há a intenção em se definir
a identidade social da família brasileira por meio de sua classe social e de seu
170 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Janaína de Aquino Ferraz
poder aquisitivo. Todas as outras informações subseqüentes, o lugar onde moram,
os negócios da família, as expectativas em relação à educação dos filhos e o tipo
de lazer giram em torno dessa primeira. Vejamos de maneira esquematizada essa
construção discursiva:
Os temas
remetem
à figura
de Ricarte
como
principal
membro da
família
Quanto à modalidade imagética, há uma diferença em relação aos textos anteriores: a disposição da imagem à direita do texto escrito. De acordo com as
categorias da Gramática visual propostas por Kress e van Leeuwen, dentro da
categoria do dado e do novo, o que está disposto à esquerda é considerado como
“dado” ou já conhecido, enquanto o que se encontra à direita representa o “novo”
ou desconhecido do leitor. O texto escrito, portanto, é a informação antiga, que
no caso pode estar ligada à idéia de entendimento gramatical das estruturas e não
necessariamente conhecimento cultural, uma vez que o leitor é o aluno estrangeiro.
A imagem representa a informação nova e da mesma forma que acontece com o
texto escrito exige leitura crítica, pois, para responder a perguntas sobre o texto,
é usada como elemento de composição de significado.
O efeito de composição da imagem pode ser esclarecido ao se aplicar em outras
categorias da Gramática visual. Na categoria dos participantes representados, temos
a imagem da família de Ricarte, composta por ele, sua esposa e os dois filhos, em
composição com o título Uma família brasileira. Outra categoria a ser contemplada
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
171
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • A Multimodalidade e a Formação dos Sentidos em Português como
Segunda Língua
é a da composição espacial do significado, que diz respeito aos significados representacionais e interativos da imagem. Os participantes representados, componentes
da família, estão localizados ao centro, em primeiro plano, o que demonstra serem
eles os elementos principais, com maior valor de informação. Como o vetor do
olhar dos participantes representados é direcionado ao leitor, posso afirmar que a
família faz o papel de reagente, enquanto os leitores passam a ser os participantes
interativos. Essa disposição dos elementos e de seus processos de interação passam
a ser julgados pelos leitores de forma não-linear como acontece na modalidade
escrita, de acordo com o destaque dado a cada um.
Outros elementos de composição da imagem encontram-se em segundo plano,
de acordo com a projeção/saliência, mas desempenham papel de composição de
significado ao colaborarem para a conexão dos elementos da imagem. Esses elementos secundários determinam o cenário em que a família está, uma sala confortável. Ser representada em um lugar que passe a idéia de bom gosto e conforto
compõe o sentido da mensagem sobre a classe social apresentada no texto escrito
e acrescenta a idéia de estabilidade ao núcleo familiar.
A leitura da imagem em conjunto com o texto escrito determina lugares na estrutura social que são inevitavelmente marcados pelas diferenças de poder. Apesar
de haver núcleos familiares de diversos tipos, como os chefiados por mulheres,
a família apresentada ainda faz referência ao modelo tradicional, no qual o pai é
a figura de maior projeção, pois é ele quem sustenta a casa, a esposa ainda desempenha um papel social de menor prestígio, sua identidade depende da figura
de seu marido, ela é mulher de Ricarte como vemos no trecho “Na foto à direita,
Ricarte aparece com sua mulher e filhos”. Esse tipo de construção afeta o modo
como cada participante compreende a mensagem do texto.
Cosiderações Finais
Pelas análises realizadas dos textos de português para estrangeiros e tendo em
vista os dois tipos de semioses que os compõem, a modalidade escrita e a imagética, pude verificar as peculiaridades do processo de composição de sentidos nesses
textos e suas implicações para a formação da identidade do brasileiro por parte de
seu leitor-alvo, o aluno estrangeiro.
Busquei interpretar textos multimodais levando em conta o discurso verbal e
não-verbal por acreditar que a composição de sentidos entre essas modalidades
poderiam revelar pistas significativas sobre o processo de formação de identidades. Pude verificar que, assim como a modalidade verbal, a modalidade imagética
compõe significados mediante uma sintaxe visual, o que configura a existência de
uma nova gramática que exige nível de leitura crítico. Além disso, pude ver que,
172 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Janaína de Aquino Ferraz
dependendo do gênero, a semiose verbal, ou a visual, é mais utilizada. Constatei,
dessa forma, que, no gênero capa, os significados são construídos predominantemente pela modalidade visual. A modalidade lingüística é menos proeminente.
Já nos textos multimodais internos dos livros didáticos, a imagem tem o papel de
chamar a tenção do leitor para pontos que o produtor considera relevantes, mas
assume papel secundário.
Pude demonstrar que os produtores dos textos deixam pistas significativas para
que os leitores as construam de forma direcionada, alguns exemplos dessas pistas
são as estruturas sintáticas, as escolhas vocabulares, que configuram recursos
lingüísticos utilizados pelos produtores nos textos verbais e que funcionam como
estratégias de manipulação. Constatei que a construção do texto imagético pode
ser feita pela composição espacial, pela escolha das cores e do processo narrativo,
uma vez que o discurso é um conjunto de práticas que estão armazenadas numa
memória coletiva, social, institucionalizada. Portanto, há de se pensar nas várias
maneiras de significar um texto, uma vez que são múltiplos os significados que se
escondem na não-transparência da linguagem e fazem parte de uma movimentação
contínua. É preciso ressaltar que o sentido não está no texto, mas na relação que
este mantém com quem produz, com quem lê, com outros textos e com outros
discursos possíveis.
Outra constatação surgiu a partir da análise apresentada: os textos que envolvem
as modalidades verbal e visual podem ser lidos de várias maneiras, configurando o
que Kress e van Leeuwen (1996) chamam de leitura não-linear, que se caracteriza
por ser determinada pelo leitor, o qual pode iniciar a leitura da esquerda para a
direita, de cima para baixo, linha por linha. A leitura pode ser circular, diagonal
ou em espiral. Com a composição multimodal, aumentaram-se as possibilidades
aos receptores e, conforme Kress e van Leeuwen (1996, p. 223), enquanto os textos
lineares impõem uma estrutura sintagmática para o leitor – as imagens, mediante
a seqüência da conexão entre os elementos que podem ser vistos e apresentados
de acordo com uma lógica paradigmática, a lógica do centro – margem, do dado
– novo, deixam para o leitor a maneira seqüencial de conectá-los. Dessa forma,
quem realiza a relação entre as semioses, a conexão entre o verbal e imagético é
o leitor.
Em uma área como a do ensino de línguas estrangeiras, que prima pelo emprego
de multimeios, é com facilidade que reafirmo minha posição no tocante aos modos
de representação cultural, apesar de a comunicação sempre ter sido semiótica,
como já havia referendado anteriormente, assumi-la de forma crítica e consciente
ainda é algo novo. O livro de Lima & Iunes que data de 1990 comprova que a
utilização argumentativa de modos semióticos variados em material didático de
línguas estrangeiras no âmbito escolar ainda é recente e o seu uso como objeto de
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
173
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • A Multimodalidade e a Formação dos Sentidos em Português como
Segunda Língua
pesquisa lingüística no sentido de levar o leitor-aprendiz a uma educação visual da
informação. Pude verificar que a composição das linguagens verbal e não-verbal
desencadeia os seguintes fatos:
a) a linguagem visual constitui discurso autônomo, com sintaxe própria;
b) a identidade é constituída por meio de características selecionadas como as
mais relevantes em determinado contexto.
Tais constatações são determinantes no que diz respeito a uma das linhas da
Teoria da Semiótica Social (Kress & van Leeuwen) que afirma serem os participantes
em posição de poder (produtores dos signos) os que levam os outros participantes
(leitores) a um maior esforço de interpretação, e diferenciam a noção de entendimento do receptor da mensagem.
Assim, as considerações aqui apresentadas podem ser vistas como uma contribuição para o trabalho docente, a fim de alertar sobre a mudança dos modos
discursivos de significar o texto na sociedade contemporânea, sendo necessária
uma mudança nos paradigmas de ensino de língua portuguesa apenas voltada ao
ensino da modalidade verbal.
Referências Bibliográficas
CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity: rethinking
critical discourse analysis. Edinburg University Press,1999.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. (Coord.). da trad. Izabel
Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
____________________. Analysing discourse: textual analysis for social research.
London: Routledge, 2003a.
FOWLER, R.; HODGE, B.; KRESS, G.; TREW. T. Language and control. Londres:
Routlege, 1979.
HENRIQUES, E. R.; GRANNIER D. M. Interagindo em português: textos e visões
do Brasil. Brasília: Thesaurus, 2001.
KRESS, G.; LEITE-GARCÍA, R.; van LEEUWEN, T. Semiótica Discursiva. In: El
discurso como estructura y processo. Estudios del discurso: introducción multidisciplinaria. v. 1. Barcelona: Gedisa editorial, 2000.
KRESS, G. R.; van LEEUWEN, T. Reading images: a Grammar of Visual Design.
Londres: Routledge, 1996.
___________. Multimodal discourse: the modes and media of contemporary
communication. London: Arnold, 2001.
174 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Janaína de Aquino Ferraz
LATHROP T.; DIAS. E. Brasil! língua e cultura. 3. ed. USA: Editora Linguatext,
2002.
LIMA E. E. O. F.; IUNES A. S. Português via Brasil: um curso avançado para
estrangeiros. 1. ed. São Paulo: EPU, 1990.
THOMPSON, J. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era da comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.
VIEIRA, Josenia A. Novas perspectivas para o texto: uma visão multissemiótica.
In: A multimodalidade textual a serviço do ensino, 2006 (no prelo).
VILCHES, Lorenzo. Teoría de la imagen periodística. Barcelona: Paidós Comunicación, 1997.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
175
FORMAS DE SOLICITAÇÃO, AFIRMAÇÕES E
RESPOSTAS DIALÓGICAS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Regina Célia Pagliuchi da Silveira* (PUC/SP)
Resumo: Este trabalho tem por objetivo examinar diferentes expressões lingüísticas,
em turnos dialógicos, como forma de solicitação, refuta e ordem, usadas efetivamente
por brasileiros. Os resultados obtidos indicam que os implícitos culturais constituem
uma dimensão diferente da dimensão da língua e que precisam ser considerados para
a produção de sentidos. Conclui-se que o brasileiro tem dificuldades de dizer “não” e
de dar ordens, devido a uma de suas características culturais, a cortesia.
Palavras-chave: Português Brasileiro; Expressões Lingüísticas da Negação e da Ordem;
Conteúdos Lingüísticos e Implícitos Culturais em Turnos Dialógicos.
Abstract: The purpose of this paper is to examine differents expressions linguistics, in
dialogic times, as a solicitation form, refute and order, used effectively by brazilians.
The results got appoint that the implicit culture be part of a different of language and
that need to be considered to production of meanings. Finally that the brazilian has
difficulties to use the answer no and to give orders because of on of basic characteristics
culture, the cortesy.
Keywords: Brazilian Portuguese; Expressions Lingustics of Denied and Order; Content
Linguistics and Implicits Culturals in Dialogics Times.
* Mestre em Lingüística pela Universidade de São Paulo (USP); Doutora em Letras pela PUC/SP; Professora
Titular do Departamento de Português da PUC/SP; Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Língua Portuguesa (Mestrado e Doutorado); e Coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Ensino de
Português Língua Estrangeira (NUPPLE) do IP-PUC/SP.
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • Formas de Solicitação, Afirmações e Respostas Dialógicas do
Português Brasileiro
Introdução
E
ste texto está situado na vertente sociocognitiva da Análise Crítica do Discurso
(ACD) e tem por tema as expressões de solicitação e negação do português
brasileiro, em seu uso efetivo por falantes nativos, do ponto de vista cultural, de
forma a situar a cultura, na intersecção das categorias analíticas discurso, sociedade
e cognição.
Entende-se que a cultura é definida por um conjunto de normas, tradições e
crenças, formas de conhecimentos avaliativos, que são veiculadas por meio do uso
da língua, no discurso, dependendo dos grupos sociais em interação simbólica, de
forma a criar novas significações. Dessa forma, os implícitos culturais constroem
uma outra dimensão semântica para a língua em uso, diferente daquela dos conteúdos lingüísticos do sistema da língua. Essa outra dimensão precisa ser considerada
na atual descrição lingüística.
Ao se focalizar a descrição como atividade do cientista, situa-se um processo
analítico aplicado a um todo-objeto, de forma a segmentá-lo em partes, dependendo
de uma escolha do pesquisador. Cada parte, por sua vez, é segmentada em outros
segmentos, até se obterem unidades mínimas indivisíveis, de forma a atender a
escolha feita.
Nesse sentido, de forma geral, o termo descrição, na pesquisa científica, é relativo a uma metodologia analítica (qualitativa e quantitativa) e serve para designar
o essencial da atividade científica, em sua busca do saber. Como a segmentação
científica é um procedimento metodológico, requer (como qualquer procedimento
científico) um critério decorrente de uma teoria, para realizar, metodologicamente,
tal segmentação e, após, classificá-la, a partir das predicações obtidas de cada segmento. Para tanto, é necessário considerar que o critério aplicado, para se realizar
a segmentação, propicia a seleção de elementos, conforme se pretenda situar e
focalizar o objeto a ser descrito.
Por essa razão, a descrição da língua varia, dependendo do paradigma científico
em vigor. Como se sabe, a preocupação dos lingüistas estruturalistas e gerativistas
foi diferenciar a descrição gramatical tradicional, da descrição lingüística. Esta, para
os estruturalistas, busca as relações das unidades no sistema da língua; já para os
gerativistas a descrição lingüística é uma atividade que objetiva a construção de
uma linguagem descritiva, ou seja, uma metalinguagem. Tanto os estruturalistas
quanto os gerativistas trataram a língua fora de seu uso, no nível frasal, com uma
visão unidisciplinar. Porém, tratar da língua em uso requer visão inter e multidisciplar; assim, a pesquisa realizada tem enfoque sociocognitivo-discursivo.
178 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Regina Célia Pagliuchi da Silveira
Como a questão da descrição lingüística está relacionada a modelos teóricos e
metodológicos diferentes, devido a momentos diferentes que propiciaram visões
diversificadas para a pesquisa lingüística, inicialmente, serão revistas algumas
questões teóricas para após apresentar os resultados obtidos que decorrem de uma
outra perspectiva descritiva.
A pesquisa realizada compreende o levantamento de formas, no uso efetivo do
português brasileiro, que expressam solicitações e negações, tanto em contexto
zero quanto em contextos textuais-discursivos.
Dessa forma, tem-se por objetivo a descrição de segmentos lingüísticos, usados
por brasileiros e considerados, de maneira geral, expressões da língua portuguesa,
guiadas por formas de avaliação sociocognitiva. Logo, busca-se a relação que se
estabelece entre expressões lingüísticas e seus respectivos implícitos culturais.
Pressupõe-se que esses implícitos têm raízes históricas, embora haja modificações avaliativas em cada contemporaneidade, de forma a articular Memória Social
e o imaginário do brasileiro.
Discurso, Sociedade e Cognição
Há uma intersecção entre estas categorias, à medida que uma se define pela
outra. Entende-se que o discurso é uma interação social, decorrente de uma prática
sociocognitiva e ligada a convenções sociais; já o texto é sua expressão verbal que
traz representado em língua, as representações mentais, vistas como formas de
conhecimento do mundo e modificadas pelas intenções do enunciador.
A cognição implica formas de conhecimento que são transmitidas no e pelo
Discurso em Sociedade. Os conhecimentos humanos são caracterizados por decorrerem da projeção de um ponto de vista para captar o referente no mundo, e,
ao focalizá-lo, cria para ele um certo estado de coisas, tematizando-o. O ponto de
vista é projetado, a partir de objetivos, interesses e propósitos e pode ser tanto
individual quanto social. Há uma dialética entre eles, pois o social guia o individual
e este modifica o social. Dessa forma, os pontos de vista sociais variam de grupo
para grupo, de forma a produzir conflito intergrupal, devido a diferenças de suas
cognições sociais, uma vez que cada grupo social tem um ponto de vista específico
e que só é comum, para seus membros, intragrupo.
A sociedade define-se como um conjunto de grupos sociocognitivos de pessoas
e elas se reúnem em grupos, por terem o mesmo ponto de vista, para focalizar o
que acontece no mundo e, conseqüentemente, as mesmas cognições sociais. Estas
constituem o marco das cognições sociais que diferem, conflitantemente, de grupo
para grupo, embora, ao mesmo tempo, identifique, culturalmente, cada grupo por
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
179
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • Formas de Solicitação, Afirmações e Respostas Dialógicas do
Português Brasileiro
suas normas, tradições e crenças. Logo, segundo van Dijk (2000), entende-se que
as formas de conhecimento sociais, representações mentais, variam de grupo para
grupo e são transmitidas no e pelo Discurso em Sociedade.
Todavia, na diversidade intergrupal, há uma unidade imaginária extragrupal,
relativa à Memória Social de uma nação, construída por discursos institucionais,
tais como o da escola, o da igreja e o da empresa.
Os Conhecimentos Sociais
Os conhecimentos sociais são definidos como representações mentais-tipo, por
serem mais persistentes, e estão armazenados na memória social de longo prazo dos
membros do grupo social. Muitos estudiosos trataram das formas de conhecimento
humano e, numa breve síntese, poder-se-ia dizer que eles foram diferenciados em
dois tipos básicos: episteme e doxa.
Episteme é um conhecimento factual, decorrente da observação e, por essa razão,
o seu valor de verdade/falsidade é comprovável e conferível, no mundo. A doxa é a
opinião pública e define-se por ser um conhecimento avaliativo social, ou seja, uma
representação mental para a qual houve a projeção de uma escala de valores que
percorre do pólo positivo ao negativo; por essa razão, a opinião tanto individual,
quanto social, não pode ser comprovada no mundo e simplesmente, acatada.
Van Dijk (1997) discute essa diferença, a partir dos seus resultados de pesquisa.
Para o autor, qualquer forma de conhecimento é avaliativa, mesmo sendo episteme.
Ele propõe que os conhecimentos sejam opiniões, sendo que estas são adquiridas
e usadas em sociedade; as suas funções são sociais e expressivas, na maioria das
vezes, no e pelo discurso pois há muitas opiniões que não são expressas verbalmente e só pensadas.
Para o autor, a opinião situa-se, inicialmente, na mente e pressupõe que, quando
se tem uma opinião a respeito de X, é necessário que já se tenha uma representação
mental de X; caso contrário, não seria possível avaliar X. Em outros termos, na
memória de trabalho, a pessoa constrói opiniões de X e, para tanto, é necessário
que esta já tenha armazenada, na sua memória de longo prazo, uma representação
de X, a fim de ativá-la para a memória de trabalho. A memória de longo prazo é
tanto social quanto individual: a social compreende o arquivo de conhecimentos
transmitidos e processados socialmente, ou seja, o marco das cognições sociais;
a individual armazena as formas de conhecimento construídas por experiências
pessoais com o que acontece no mundo.
Como já foi referido, anteriormente, para que se tenha qualquer representação
mental, como forma de conhecimento, é necessário que se projete um ponto de
180 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Regina Célia Pagliuchi da Silveira
vista para captar o referente no mundo o que, conseqüentemente, implica uma dada
focalização da qual resulta um conhecimento avaliativo, pois tal focalização não é
ingênua, mas guiada por interesses, objetivos e propósitos específicos. Assim, por
exemplo, alguém diz: “Maria é professora”. As formas de representar “professora”
variam, socialmente. Para o grupo social que focaliza “professora” como estando
sempre presente, dedicada ao aluno, sábia, compreensiva, preocupada em ensiná-lo,
a designação “professora” contém uma avaliação positiva que pode diferir de um
outro grupo social que focaliza “professora” como estando freqüentemente ausente,
descompromissada com o aluno e sempre atribuindo notas altas para aprová-lo, sem
se preocupar em ensinar. Assim, quando alguém diz: “Maria é ótima professora”,
está manifestando uma opinião a respeito de X, e é a sua representação mental
social de X, “professora”, que guia a sua fala, de forma a interagir o individual
com o social, cognitivamente.
Nesse sentido, para se entender o Discurso como uma interação social, diferenciam-se duas formas de conhecimento que se interacionam: representação
mental-tipo e representação mental-ocorrente. Aquela está armazenada na memória
social e caracteriza a cultura do grupo, de forma a construir dinamicamente novas
significações; essa, ao ser ativada para a memória de trabalho, guia a construção
da representação-ocorrente que, aí, é construída pelo processador da informação,
como forma nova de conhecimento.
Implícitos Culturais e Expressões Lingüísticas
Durante o estruturalismo lingüístico, como os estudiosos estiveram preocupados com o sistema, a língua foi descrita de forma ideal e abstrata; por essa razão,
não trataram do uso efetivo dessa língua. Assim sendo, tais estudos são realizados com a crença no significado unitário do signo, ou seja, para cada significante
corresponde um significado lingüístico. Mais tarde, a partir da década de 1960,
as insatisfações existentes propiciaram que os estudos lingüísticos, com enfoque
pragmático, passassem a privilegiar a fala. As contribuições dadas permitiram que o
objeto de estudo passasse a ser o texto e o discurso e, para tanto, fez-se necessário
considerar a noção de implícito.
Questões relativas a implícitos foram tratadas por diferentes lingüistas, dentre eles
Ducrot e Mainguenau. Ducrot (1987), ao tratar da língua em uso, diferencia “o que
se disse” de “o que se quis dizer com o dito”. O autor situa o dito no componente
lingüístico, sustentado pela Semântica da Língua, ou seja, os conhecimentos que os
interlocutores têm de significados lingüísticos; e o não-dito, no componente retórico,
com a semântica argumentativa que trata de conhecimentos relativos à argumentação, de forma a tratar das intenções de quem fala, dependendo da situação e do
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
181
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • Formas de Solicitação, Afirmações e Respostas Dialógicas do
Português Brasileiro
contexto social, a partir de escalas e classes argumentativas. Assim visto, o autor
postula que o EU usa a língua como uma forma de ação sobre o OUTRO.
As bases teóricas da Semântica Argumentativa consideram as noções de posto,
pressuposto e subentendido. Após várias investigações, Ducrot propõe que o posto
e o pressuposto são formalizados, no dito, pelo componente lingüístico. Para o
autor, o pressuposto evidencia a natureza de um elemento semântico, veiculado
pelo enunciado, de forma a estabelecer relações com as funções sintáticas gerais.
Nessa acepção, o pressuposto constitui-se como elemento do universo do discurso,
cujas idéias pertencem ao domínio do locutor-interlocutor, numa cumplicidade
fundamental para ligar entre si os participantes do ato de comunicação. O posto
é o que o locutor afirma e apresenta, simultaneamente ao ato de comunicação,
como se houvesse surgido pela primeira vez, no momento da realização desse ato.
Em síntese, em relação aos dêiticos discursivos, Ducrot propõe que o pressuposto
implica o NÓS, e o posto, o EU; já o subentendido é o repassado ao TU e ocorre em
momento posterior ao ato de fala, como se tivesse sido acrescentado, a partir da
interpretação do interlocutor. Para que o subentendido seja bem sucedido, é preciso
que o TU esteja atento ao que o EU permite que ele conclua, de forma que este
acrescente algo ao que foi dito, sem dizê-lo, ao mesmo tempo em que ele é dito.
Segundo Maingueneau (1996), um implícito é construído como um jogo, entre
o dito e o não dito – um jogo que se realiza na fronteira dos mesmos – e, por essa
razão, é normal que se passe sem cessar de um para o outro. Assim, para o autor,
os pressupostos e subentendidos são tipos de conteúdos implícitos, pois tanto
estes quanto aqueles permitem que o locutor diga sem dizer, de forma a antecipar
um determinado conteúdo sem, todavia, assumir essa responsabilidade, uma vez
que um mesmo enunciado, dependendo da contextualização feita, poderá liberar
subentendidos diferentes.
A questão dos implícitos culturais tem-se tornado uma das questões cruciais
para o analista do discurso, pois apenas o conhecimento do sistema da língua,
das relações texto e contexto, discurso e enunciação não podem dar conta dos
marcos de cognições sociais, em que se situa a cultura, e suas relações intra, inter
e extragrupos sociocognitivas.
Formas de Negação e Implícitos Culturais no Uso do
Português Brasileiro
Os resultados apresentados são relativos às formas de negação, usadas por
informantes brasileiros e argentinos, tanto em contexto zero quanto em contexto
discursivo.
182 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Regina Célia Pagliuchi da Silveira
Em contexto zero
Foram apresentadas dez orações afirmativas, construídas com a alternância nominal e verbal, para que os informantes as transformassem em negação. Enquanto
regra gramatical da língua portuguesa, a negação é construída com os morfemas
“não, nunca, jamais; ninguém, nenhum e nada” que têm correspondentes em língua
espanhola. De forma geral, os argentinos negam, seguindo a regra gramatical.
Os brasileiros têm dificuldade para dizer “não” a seu interlocutor e preferem
não aplicar a regra gramatical. Dessa forma, modificam a oração afirmativa e usam
lexemas e outros morfemas, atribuindo a eles a expressão da negação. Quando usam
“não”, este não tem a função de se opor ao turno dialógico anterior.
A título de exemplificação, apresentam-se as expressões de negação, relativas
a uma das orações propostas aos informantes:
1. Oração afirmativa: “ele nadou”
Formas de negar usadas pelos brasileiros:
– Ele sempre nadou, – Ele nada;
– Ele mentiu que nadou, – Ele disse que ia nadar;
– Ele falou que não nadou;
– Ele só disse que não nadou;
– Ele ficou sem nadar;
– Ele ficou de nadar, – Ele ia nadar;
– Ele negou que não nadou;
– Eles não falam que nadaram;
– Ele não foi nadar, – Ele não vai nadar, – Ele não nadará;
– Ele não havia nadado;
– Ele não quis nadar;
– Ele não pode nadar, – Ele não nada, – Nenhuma vez ele nadou;
– Ele não sabia nadar; – Ele de jeito nenhum nada;
– Ele não nadou ontem, – Ele nadará amanhã;
– Ele nadou de manhã, – Ele não nadou hoje;
– Ele não nadou no clube, – Ele nadou na piscina, – Ele nadou perto de
casa, – Ele nadou no rio;
– Ele nadou bem – Ele nadou mal, – Ele jamais nadou como deveria;
– Ele ainda não falou como foi que nadou;
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
183
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • Formas de Solicitação, Afirmações e Respostas Dialógicas do
Português Brasileiro
– Ele nadou junto com seus amigos;
– Ele já nadou, – Ele ainda nadou;
– Ele quase nadou; – Ele saiu para nadar e não nadou, – Ele parou e não
nadou;
–Todos eles não nadaram;
– Ele deixou de nadar, – Ele nunca mais nadou;
– Ele não nadou de medo da água fria, – Estava chovendo e ele não nadou,
– Ele não nadou porque não quis.
Como se pode verificar, os brasileiros, também, podem expressar a negação
com “não, nunca e jamais”; porém, usando ou não os morfemas de negação, eles
modificam a oração afirmativa por:
a) mudança do aspecto verbal (concluso: “nadou”, do 1º turno dialógico):
– com forma afirmativa: ele sempre nadou, – ele ficou sem nadar ontem,
ele ficou de nadar, ele deixou de nadar, ele já nadou, ele nada, ele ainda
nadou, ele quase nadou;
– com forma negativa: ele não foi nadar, ele não nada, ele nunca mais
nadou, ele parou e não nadou, ele que saiu para nadar não nadou.
b) mudança do tempo verbal (passado: nadou, do 1º turno dialógico):
– com forma afirmativa: ele ia (iria) nadar, ele nada, ele vai nadar, ele
nadará amanhã;
– com forma negativa: ele não vai nadar, ele não nadará, ele não havia
nadado.
c) acréscimo de elementos, na oração do 1º turno dialógico:
– com forma afirmativa: ele nadou com seus amigos, ele não nadou no
clube, ele não nadou ontem, ele nadou de manhã, ele não nadou ontem,
ele nadou de manhã, ele nadou bem;
– com forma negativa: ele não nadou no clube, ele não nadou ontem, ele
não nadou hoje, ele não nadou no clube (não nadou na piscina, não nadou perto de casa, não nadou no rio), ele de jeito nenhum nada, ele não
nadou porque não quis.
d) mudança da modalidade:
– com forma afirmativa: ele mentiu que nadou, ele disse que ia nadar;
– com forma negativa: ele falou que não nadou, ele negou que não nadou, ele
só disse que não nadou, ele não queria (quis) nadar, ele não pode nadar, ele
não sabia nadar, nenhuma vez ele nadou, ele jamais nadou como deveria,
ele ainda não falou como foi que nadou.
184 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Regina Célia Pagliuchi da Silveira
e) mudança de modalidade e de sujeito com forma negativa:
– Eles não falam que não nadaram.
f) duas negações:
– Ele negou que não nadou;
– Ele não nadou porque não quis.
g) mudança de sujeito com forma afirmativa:
–Todos eles nadaram.
Os dados apresentados indicam que o brasileiro tem dificuldade de dizer “não”
às pessoas, fato que não ocorre com os argentinos. Silveira (1998), ao tratar de
traços da cultura brasileira, apresenta a cortesia como uma característica do brasileiro, que, para não se opor a seu interlocutor, muda a construção afirmativa do
turno dialógico 1, para expressar sua negação.
Em contexto discursivo
A título de exemplificação, são apresentados casos coletados em situações conversacionais reais:
1. Quando alguém não quer contrariar um amigo:
• Você gostou da nova fachada da minha casa?
– Passei por lá muito rápido e nem reparei;
–Um outro dia nós conversamos sobre isso, agora preciso sair.
2. Quando não se quer aceitar o que lhe é oferecido:
• Fiz um chá preto maravilhoso para você. Posso servir?
– Obrigada, já tomei o meu hoje;
– Chá? Que pena, estou proibido pelo médico;
– Acabei de almoçar, só se for bem mais tarde;
– Estou com problemas de estômago, só tenho bebido água;
– Que ótimo! Mas tenho tido muita insônia;
– Sabe, chá me dá alergia;
– Só se for muito pouquico;
– Eu passo;
–Depois, obrigado;
– Você é muito gentil, mas deixa para outro dia.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
185
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • Formas de Solicitação, Afirmações e Respostas Dialógicas do
Português Brasileiro
3. Quando não se quer aceitar um convite:
• Vamos ao cinema hoje, à noite?
– Que pena! Hoje tenho muitos problemas para resolver;
– Logo hoje? Prometi levar o cachorro da vizinha ao veterinário;
– Hoje eu fui ao médico e ele me proibiu de sair à noite;
– Preciso fazer algumas coisas, mas depois telefono;
– Valeu! Mas amanhã tenho de levantar cedo;
– Fico devendo; vamos deixar para outro dia?
– Logo hoje? Eu prometo que irei outro dia.
4. Quando o convite feito é desinteressante:
• Espero você na cerimônia de formatura de minha filha?
– Vou fazer o possível e o impossível para ir, mas ando muito atarefado;
– Vou fazer força para ir, tomara que consiga;
–Tenho um compromisso inadiável, depois passo para cumprimentar todos;
– Se der, sem dúvida;
– Gostei muito da lembrança, parabéns, só que estou com hérnia de disco;
– Ligo para você depois.
5. Quando não quer atender a um pedido:
• Você pode me emprestar seu carro?
– Claro! Só que está quebrado;
– Já havia prometido emprestá-lo antes;
– O mecânico disse que está com graves problemas no motor;
– Eu perdi a chave, preciso procurá-la.
Como se pode verificar, o brasileiro evita dizer não porque é guiado, culturalmente, pela cortesia; por essa razão, emprega a interrogação, a afirmação e a
exclamação o que produz, para estrangeiros, outros sentidos. Eles, ao conviverem
com brasileiros, desconhecem os implícitos culturais contidos em suas expressões
de negação; por essa razão, há choque cultural.
Formas de Dar Ordens e Implícitos Culturais no Uso
do Português Brasileiro
O uso do modo imperativo é freqüente em diversas línguas. Os brasileiros têm
dificuldades para dar ordens, à medida que representam essa atitude como forma
de imposição, de descortesia.
186 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Regina Célia Pagliuchi da Silveira
A título de exemplificação, apresentam-se casos, coletados em situações dialógicas
reais, em que o uso do imperativo é substituído por outras expressões lingüísticas,
como as de interrogação e/ou as verbais, como o futuro do pretérito.
6. Você poderia levar esta correspondência ao correio?
7. Você gostaria de me ajudar nesta tarefa?
8. Vocês podem me atender, agora?
9. Eu gostaria que você saísse imediatamente para levar esta encomenda.
10.Alô! Eu gostaria de falar com Maria.
11.É possível marcar minha hora de consulta? Preciso que seja hoje.
12.Por favor, poderia vir bem depressa?
13.Será que posso lhe pedir o favor de cortar estas cebolas, agora mesmo?
Em síntese, a seleção enunciativa das expressões lingüísticas exemplificadas é
guiada por traços culturais que merecem ser tratados na descrição do português
brasileiro, em uso por falantes nativos.
A negação, no diálogo, evento discursivo particular, é representada com valor
cultural negativo, pois expõe o EU como opositor do TU, o que é visto como grosseria. O brasileiro é caracterizado pela cortesia, como já havia dito, dessa forma, o
valor positivo é atribuído ao ocultamento do EU, que se manifesta com dificuldades
para negar com o uso de “não, nunca, jamais, ninguém, nada”, a fim de não se
opor, frontalmente, ao TU. (cf. Silveira, 2004). O mesmo ocorre com a dificuldade
de uso do modo imperativo, para dar ordens. No uso efetivo de muitas línguas,
dá-se preferência para o uso das formas de negação explícitas, assim como para
o uso do imperativo. Essa preferência, de forma geral, para brasileiros, é avaliada
respectivamente como grosseria e autoritarismo.
À Guisa de Conclusão
Ao se observar o português brasileiro, em uso por falantes nativos, verificase que a sua descrição não pode ficar restrita às categorias gramaticais de nossa
gramática tradicional nem nas categorias gramaticais da descrição lingüística do
sistema. Há, hierarquicamente, outras categorias semânticas que assumem funções
gramaticais, dependendo do nível que se quer descrever. Assim, ainda que de forma provisória, propõe-se que para se descrever aspectos culturais implícitos, em
expressões lingüísticas, no uso efetivo de uma língua, faz-se necessário considerar
uma hierarquia de categorias analíticas que vai do lingüístico ao sócio-interacional,
de forma a percorrer diferentes dimensões.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
187
Parte IV – Discurso e Língua Portuguesa • Formas de Solicitação, Afirmações e Respostas Dialógicas do
Português Brasileiro
A dimensão lingüística é relativa ao sistema da língua; a dimensão enunciativa
decorre das intenções do EU e manifesta-se, no texto, como aquilo que é representado em língua, pela construção enunciativa, a partir de uma seleção de um
sujeito que age conforme suas intenções, embora guiado, socialmente, pela cultura.
A dimensão discursiva é sócio-interacional e implica uma prática que pode ser
definida por esquemas mentais (participantes, suas ações e funções), dependendo
das convenções sociais culturais. Em todas essas dimensões, há categorias que
merecem ser consideradas, para a descrição.
Estas agrupam elementos em dimensões diferentes, como por exemplo: os tempos
verbais são categorias gramaticais, no nível lingüístico do sistema; o tempo verbal
futuro do pretérito é uma forma de negar, na dimensão enunciativa.
É a intersecção entre sociedade, cognição e discurso que propicia a inserção
da categoria cultura para a descrição da língua em uso. Dessa forma, a cultura é
uma categoria que agrupa relações, no eixo semântico, entre conhecimentos intra,
inter e extragrupal, a partir da relação entre discursos institucionalizados/eventos
discursivos particulares.
Logo, a descrição da língua em uso trata tanto de categorias gramaticais quanto
de categorias cognitivas, sociais e discursivas, à medida que os elementos lingüísticos passam a ter outras funções textual-discursivas que requerem a exame dos
implícitos culturais.
Referências Bibliográficas
DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas, São Paulo: Pontes, 1987.
MAINGUENEAU, D. Pragmática para o discurso literário – leitura e crítica. São
Paulo: Martins Fontes, 1996.
SILVEIRA, R. C. P. da (Org.). Português língua estrangeira – perspectivas. São
Paulo: Cortez, 1998.
______________________. “Implícitos culturais, ideologia e cultura em expressões
lingüísticas do português brasileiro”. BASTOS, N. B. (Org.). Língua portuguesa
em calidoscópio. São Paulo: EDUC, 2004.
VAN DIJK, T. A. Racismo y análises crítico de los medios. Barcelona: Paidós,
1997.
_______________. (Org.). Ideologia un enfoque multidisciplinario. Barcelona:
Gedisa, 2000.
188 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
Parte V
discurso e Multimodalidade
André Lúcio Bento
“E agora, Lula?”: a imagem intertextual em
matéria do Correio Braziliense
André Lúcio Bento* (UnB)
Resumo: Este trabalho tem o objetivo de analisar a imagem na condição de elemento
central de intertextualidade, na reportagem “E agora, Lula?”, do jornal Correio Braziliense.
Para tanto, tomamos como base teórica alguns pressupostos da Análise de Discurso
Crítica (ADC), particularmente na contribuição de Fairclough (2003), bem como algumas
categorias da denominada gramática visual, na proposta de Kress e van Leeuwen
(1996).
Palavras-chave: Discurso; Imagem; Intertextualidade.
Abstract: This paper has the purpose of analyze the image in the condition of central
fact of intertextually in article “E agora, Lula”, from the journal Correio Braziliense.
That’s why we took as teoric basis some previous allegeds of the Critical Analysis of
the Discourse (CAD), particularly on the contribution of Fairclough (2001 e 2003), and
the same way some categories of the visual grammar, in the purpose of Kress e van
Leeuwen (1996).
Keywords: Discourse; Image; Multimodality.
*Doutorando e Mestre em Lingüística pela Universidade de Brasília (UnB); membro colaborador da
Associação Brasileira de Lingüística (ABRALIN); Professor da Secretaria de Estado de Educação do
Distrito Federal; autor do capítulo Em outros livros, da obra Histórias de leitores, organizada pela professora Dra. Hilda Lontra, lançada pela Editora UnB em 2005. E-mail: [email protected].
Parte V – Discurso e Multimodalidade • “E agora, Lula?”: a imagem intertextual em matéria do Correio Braziliense
Considerações Iniciais
A
tradição da análise lingüística, e também discursiva, demonstra particular
predileção pelo aparato verbal. Pouca atenção se dá ao conjunto de todos os
elementos capazes de significar e, conseqüentemente, de constituírem sentidos.
Nessa direção, refiro-me ao privilégio dado aos estudos do texto escrito, a Lingüística tem avançado, especialmente a partir da última década de 1980, quando
Beuagrande e Dressler especificaram, de forma mais derradeira, as propriedades
que fazem do texto um texto: os chamados fatores de textualidade.
O fato é que, além do verbo, existem outras fontes aptas a compor uma unidade
de sentido. Muitas vezes, aliás, o principal papel da interação sóciocomunicacional não está na palavra, mas justamente nas cores, nas texturas, nos gráficos, nas
imagens. Outras vezes, o sentido construído só se estabelece como tal por meio da
indissociável relação entre imagens e palavras. Ampliar a dimensão do texto para
além do universo verbal, acrescentando à sua possível composição outros modos
semióticos, é o que constitui a Multimodalidade.
A aceitação de que o não-verbal também “fala” e exerce papel muito mais importante do que um simples acessório estético é o que Kress e van Leeuwen (1996)
postulam, ao estabelecerem que as imagens representam “não somente estética
e expressão, mas também estrutura social, política e dimensões comunicativas”.
Mais que isso, acrescentamos ao espectro multimodal um viés ideológico, uma
vez que as escolhas de determinadas semioses, em detrimento de outras, dar-se-ão
conforme intenções, também, ideológicas.
De algum modo, afirmamos que as escolhas entre os diversos modos semióticos
possíveis de participarem da configuração textual não são arbitrárias, devendo,
pois, estar de acordo com os diversos contextos sociais em que se constituem. Ou
melhor, as imagens também são uma forma de prática social, da mesma forma que
os textos escritos, e isso nos exige um outro tipo de letramento.
A Questão Multimodal
Kress e van Leeuwen (1996), baseados na Lingüística Sistêmico-Funcional (LSF),
propõem a chamada gramática visual, que corresponde, em termos gerais, à organização dos diversos elementos não-verbais (cores, imagens, fotografias, texturas,
sons) com o propósito de constituírem sentidos, o que exige dos diversos leitores,
os viewers, um letramento diferenciado.
No que corresponde à função textual de Halliday, a gramática ou sintaxe visual
cuida especialmente das seguintes categorias:
192 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • André Lúcio Bento
• Valor da informação: baseado nos elementos dado/novo, eixo horizontal – em
geral numa posição mais à direita (dado) e à esquerda (novo); e ideal/real, eixo
vertical – em geral numa posição mais ao alto (ideal) e mais abaixo (real). Além
de representar a relação ideal/real, o eixo da verticalidade pode expressar as
relações de poder, estando o elemento representativo dessas relações localizado
mais ao alto, o que é o caso, por exemplo, da disposição das imagens sacras nas
igrejas (num plano mais elevado) em relação ao plano ocupado pelos fiéis;
• Saliência: baseada no grau de destaque dado a certos elementos composicionais, por exemplo, o tamanho e a localização reservados para uma foto
no espaço gráfico de uma reportagem;
• Moldura: baseada na maneira como elementos estão conectados nas imagens.
Quanto à função interpessoal da linguagem, a análise dos componentes não-verbais de um texto levará em conta, entre outros fatores, a categoria da modalidade,
em que serão expressos os valores de verdade. Nesse caso, a função das cores e
das texturas será essencialmente relevante. No que tange à função ideacional, a
análise dos aspectos não-verbais recairá sobre a sua transitividade, sendo elementos muito importantes o olhar dos atores representados e o olhar entre os atores
representados e os leitores.
Análise
Apresentamos nesta seção uma breve análise de como imagem e palavras podem compor um todo significativo. Mais: como a imagem, especificamente, pode
constituir-se elemento central do fenômeno da intertextualidade, remetendo o leitor
para diversas leituras anteriores e exigindo-lhe um certo grau de conhecimento
compartilhado.
Antes, porém, convém-nos apontar uma característica importante do gênero que
ora se analisa: a matéria jornalística. Sabemos que o jornalismo é uma prática social
e, como tal, insere-se na esfera discursiva. Conforme Fairclough (2001):
A análise de um discurso particular como exemplo de prática discursiva focaliza os processos de produção, distribuição e consumo textual. Todos esses
processos são sociais e exigem referência aos ambientes econômicos, políticos
e institucionais particulares nos quais o discurso é gerado.
A matéria jornalística é um dos gêneros do discurso cujos produtores, geralmente, não são individualizados, estando a sua elaboração a cargo de um conjunto de
membros que envolvem as fontes, os jornalistas, a empresa de comunicação, etc.
Também o consumo de matérias jornalísticas pode possuir caráter coletivo, sendo,
de certo modo, direcionado para mais de um “tipo” provável de leitor.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
193
Parte V – Discurso e Multimodalidade • “E agora, Lula?”: a imagem intertextual em matéria do Correio Braziliense
A reportagem a seguir ilustra os modos como a Multimodalidade realiza sentidos
que o mero suporte verbal não conseguiria fazer, bem como mostra de que maneira
a imagem pode se configurar como elemento intertextual:
Análise da manchete e da imagem central
Imagem do Presidente Lula no Correio Braziliense, 24 de junho de 2005.
194 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • André Lúcio Bento
As mais evidentes fontes de intertextualidade do texto que ora analisamos estão relacionadas com a manchete “E agora, Lula?” e com a imagem ao centro do
Presidente da República. Consideramos este conjunto multimodal – a junção da
manchete e da imagem – um exemplo do que Fairclough (2003) estabelece como
sendo a intertextualidade não-atribuída: as vozes presentes podem ser identificadas,
porém, não há menções ou marcas explícitas (aspas, citações, por exemplo) que as
distingam. É o caso de “E agora, Lula?”, cuja forma remete o leitor imediatamente
para o universo de sentidos construído em outro texto: o poema “José”, de Carlos
Drummond de Andrade,1 que possui como personagem principal um homem desolado e solitário, aparentemente sem saída. O contexto em que a presente matéria foi
veiculada, julho de 2005, auge da maior crise política do Governo de Luiz Inácio,
permitiu a produção de uma matéria que, por extensão, identificasse o Presidente
nas mesmas condições do personagem de Drummond: solidão e desolação.
É esperado por parte do leitor um repertório mínimo de conhecimento da temática abordada pelo poeta no referido poema, uma vez que o título da matéria (“E
agora, Lula?”) não coincide com o título do poema, mas, sim, com o seu primeiro
verso (“E agora, José?”), exatamente o trecho capaz de remeter o leitor para o viés
de sentido que se quis projetar no texto em análise.
Outro fator interessante no que toca à intertextualidade é o papel exercido pela
imagem do Presidente, disposta ao centro da página. No que se refere ao contorno
de sentidos atribuídos a Lula da Silva, em função do contexto político da ocasião,
temos outro diálogo não-atribuído com o poema “José”, agora com referência ao
seu terceiro verso: “a luz apagou”. Há por atrás do Presidente uma luz rarefeita que
ofusca a sua imagem, evidentemente prejudicada pelos rumores de instabilidade
política verificada naquele momento. Não temos, ao centro, posição de saliência,
nos termos de Kress e van Leeuwen (1996), a imagem que se espera de um estadista. Temos, ao contrário, o retrato de um presidente de algum modo instável. Tal
configuração é possível por meio do papel exercido pela luz de fundo da imagem,
que confere ao seu plano central (o presidente) uma modalidade diversa daquela
prevista para um chefe de estado.
Mas o que queremos frisar é a natureza intertextual da imagem em questão.
Sua relevância para a construção do sentido final desta matéria jornalística reside
1
O poema José, de Carlos Drummond de Andrade, foi escrito em 1942. José Saramago, assim se refere
ao poema de Drummond, na crônica intitulada E agora, José?: “Considero privilégio meu dispor deste
verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: “E agora José?” Foram
aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em
que as mãos ficaram vazias e atônitas. “E agora José?” Grande, porém, é o poder da poesia para que
aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como um tônico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo de interminável ladainha que é piedade por nós
próprios”.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
195
Parte V – Discurso e Multimodalidade • “E agora, Lula?”: a imagem intertextual em matéria do Correio Braziliense
na sua configuração intertextual, uma vez que ela (a imagem), não apenas ilustra,
mas dialoga com outro texto, ou mais especificamente, com o terceiro verso do
referido poema, o que prova que o papel exercido pela imagem não se restringe ao
mero ilustrar, ela possui, sobretudo, uma função semiótica e ideológica.
O enquadramento de vozes
Sabemos que os textos não se constituem de forma a inaugurar total ineditismo.
Antes, eles participam de uma cadeia discursiva, configurando-se como parte de
uma grande orquestração discursiva. Por isso, não é rara a presença de diversas
vozes na composição final de determinados textos ou discursos. Contudo, a inserção de outras vozes ao texto não ocorre aleatoriamente, o que se afirma com base
em Fairclough (2003):
Uma questão é o “enquadramento”: quando a voz de um outro é incorporada
no texto, há sempre escolas de como “enquadrá-Ia”, como contextualizá-la, nos
termos das outras partes do texto sobre relações entre relato e autoria.
O enquadramento será efetivado por meio de escolhas lexicais, ordenamento
das vozes dentro do texto, saliência (destaque dado a manchetes, por exemplo),
conectores frasais, modalização, entre outros. No texto verbal da matéria “E agora,
Lula?”, temos como principais vozes, dispostas de forma explícita, as declarações de
quatro especialistas (vozes atribuídas) que buscam analisar os rumos do Governo e
do Presidente em função da crise política. Porém, há outras vozes, não-atribuídas,
que também estabelecem central relevância para a construção argumentativa do
texto.
As vozes não-atribuídas
Consideremos o seguinte trecho da matéria “E agora, Lula?”:
1. “Houve uma época na qual investidores e empresários torciam
o nariz contra o Partido dos Trabalhadores. A visão futura de Luiz
Inácio Lula da Silva no poder despertava temores de radicalização
social e heterodoxia na gestão econômica”.
Embora não se tenha, de forma explícita, quem sejam os citados “investidores”
e “empresários”, podemos afirmar que, em pleitos anteriores, o então candidato
e sindicalista Lula da Silva não contava com a simpatia de boa parte do mercado
econômico, realidade que mudou mediante a sua ascensão ao poder. Com isso,
para enquadrar as vozes dos “investidores” e “empresários” que, outrora, não admitiam a ocupação do Palácio pelo sindicalista, utilizou-se da expressão “Houve
uma época”, cujo tempo verbal já aponta para uma realidade que não se verifica
196 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • André Lúcio Bento
mais. Sendo assim, constata-se que, além de marcar a inserção de vozes no texto,
o enquadramento as contextualiza.
Outro exemplo nessa direção pode ser ilustrado pelo seguinte excerto:
2. “Está em dissolução o núcleo dirigente que impôs a ‘Carta aos
Brasileiros’ e seus compromissos de moderação e equilíbrio na
economia”.
Em (2), temos referência ao conjunto de assessores (“núcleo dirigente”) do
então candidato Lula, grupo responsável pelo seu programa e pela elaboração
da referida “Carta”. A forma usada para enquadrar todas essas vozes foi o termo
“Está em dissolução” que, além de inserir tais vozes, contextualiza o leitor para
uma realidade atual (verbo no presente) de fragilidade, de instabilidade. Ou seja,
o grupo responsável por transmitir tranqüilidade ao povo, na ocasião do pleito
eleitoral, agora está em vias de se desfazer.
As vozes atribuídas
O enquadramento também se refere aos relatos que são feitos para marcar a
presença de outras vozes no texto. Fairclough (2003) estabelece quatro tipos de
relato:
• Relato direto: citação em que se procura transcrever as palavras realmente
usadas. Presença de marcas de citação;
• Relato indireto: resumo do conteúdo do que foi dito, sem uso das marcas
de citação;
• Relato indireto livre: intermediário entre o direto e o indireto. Não apresenta a oração de relato;
• Relato narrativo de ato de fala: relato de um ato de fala sem relatar seu
conteúdo.
No presente artigo, consideraremos a forma como se procedeu para marcar os
relatos diretos dos quatro especialistas em consultoria política, citados na constituição da matéria em análise:
Modalização
Um recurso bastante produtivo para marcar o relato direto na presente matéria é a modalização. O uso dos verbos no indicativo (“concorda”, “acredita”,
“aposta”) para enquadrar os relatos de Luciano Dias (IBEP) e Chistopher Garman
(Eurásia Group), respectivamente, atribuem aos referidos especialistas um grau
de comprometimento elevado com aquilo que eles disseram, sendo que isso pode
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
197
Parte V – Discurso e Multimodalidade • “E agora, Lula?”: a imagem intertextual em matéria do Correio Braziliense
não corresponder à verdade. Ou seja, não se pode afirmar que, ao tecer certos
comentários acerca do futuro político do Presidente, Chistopher Garman tenha
usado, de fato, o verbo “acreditar’:
3. “Chistopher acredita também que a ‘agenda de reforma estreitouse dramaticamente’”.
O verbo “acreditar’ e o seu uso no modo indicativo foram as maneiras utilizadas pelos produtores da matéria para marcar o enquadramento do relato disposto
em (3).
Ordenamento de vozes
A ordem como os relatos são apresentados no texto também constitui uma
forma de enquadramento. Na matéria que ora se analisa, os relatos são dispostos,
na maioria das vezes, como se a captação deles tivesse sido realizada em tempo
concomitante, dado o uso de expressões como “diz”, “Por outro ângulo”, “é o mais
reticente” e “completa” presentes no trecho seguinte:
4. “A separação entre Lula e o PT não é factível no médio e longo
prazos. Falta muito tempo até a eleição e o desgaste do partido
fatalmente vai contaminar o Lula”, diz Luciano Dias. Por outro
ângulo, Rogério Schmitt observa que “só um Lula forte pode dar
esperança eleitoral ao PT em 2006”. Carlos Pio é o mais reticente: “Acho que interessa à própria oposição preservar de alguma
maneira o presidente”. Chistopher Garman completa: “Lula pode
estar forte junto à opinião pública, mas terá boas perspectivas
eleitorais se o PT estiver fraco”.
Considerações Finais
É fundamental o entendimento de que a composição de sentidos em um dado
texto reside além do que se encontra nos seus limites verbais; há outras fontes de
sentido que reclamam a nossa devida atenção. É o caso da imagem, outrora considerada simples aparato estético, sem função semiótica e ideológica.
As novas práticas discursivas, advindas em função das recentes tecnologias,
conferem à imagem um papel de absoluta relevância na configuração dos textos
e, conseqüentemente, na produção dos sentidos. Muitas vezes, é o não-verbal a
grande nascente dos significados imbricados nos textos, outras vezes é a indissolúvel junção entre imagem e texto escrito a responsável por incitar nos leitores as
mais diversas atribuições de sentidos.
198 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • André Lúcio Bento
O mais que se deve salientar é que os variados modos semióticos que perfazem
a constituição dos textos são, sobretudo, capazes de exercerem funções, da mesma forma que o material de ordem verbal também o é. Nesse sentido, a imagem
deixa, ao menos teoricamente, o lugar de acessório para ocupar uma posição de
importância, dado o papel que pode exercer em termos semânticos, discursivos e
ideológicos.
Referências Bibliográficas
FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse. Textual analysis for social research. London, New York: Routlede, 2003
_______________. Discurso e mudança social. Brasília: UnB, 2001
KRESS, G.; van LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design.
Londres, New York: Routlede, 1996
Correio Braziliense, 24 de julho de 2005.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
199
Parte VI
discurso e contextos on-line
Joana da Silva Ormundo
A Dinâmica do Uso Social dos
Diários On-line
Joana da Silva Ormundo* (CEPADIC)
Resumo: Este trabalho analisa as práticas de linguagem que ocorrem nos blogs. A
perspectiva teórica que orienta a análise tem como base os estudos que tratam a
linguagem como prática discursiva e social. Interessam os estudos desenvolvidos pela
Análise de Discurso Crítica (Fairclough, 2001; 2003). O objetivo é analisar as práticas
discursivas em contextos on-line. Os processos interativos e a constituição de uma
comunidade discursiva nos blogs serão examinados de acordo com a análise de gêneros
desenvolvida por Bakhthin (1997) e o conceito de comunidade discursiva desenvolvido
por Swales (1998).
Palavras-chave: Linguagem; Comunidade Discursiva; Gênero.
Abstract: This paper examines the language of the blogs from the point of view of
Critical Discourse Analysis as it is conceived by Norman Fairclough (2001; 2003). The
main aim is to analyse discourse practices in the on line context. The interactive process
and the constitution of discourse community in blogs will be examined according to
the genre analysis approach developed by Bakhtin (1997) and the concept of discourse
community developed by Swales(1998).
Keywords: Language; Discourse Community; Genre.
*Doutora em Lingüística pela Universidade de Brasília (UNIP/cepadic); Mestre em Comunicação e
Semiótica (PUC/SP); professora Universitária; membro do Centro de Pesquisa em Análise de Discurso
Crítica (CEPADIC) e da Asociación Latinoamericana de Estudios del Discurso (ALED) e da Associação
Brasileira de Lingüística (ABRALIN). E-mail: [email protected].
Parte VI – Discurso e Contextos On-Line • A Dinâmica do Uso Social dos Diários On-Line
Introdução
E
ste artigo analisa as formas de Comunicação Mediadas pelo Computador (CMC),
enfocando, especificamente, a tendência ao uso social dos blogs. Meu objetivo é
verificar, por meio dos estudos bakhtinianos (1997) sobre transmutação de gêneros,
no meu caso, como os blogs, também conhecidos como diários on-line, reconfiguram
o gênero diário e transformam as características já estabelecidas socialmente dos
diários off-line, em uma nova reconfiguração das práticas sociais da linguagem no
contexto do ciberespaço, o que possibilita uma compreensão maior das práticas
de linguagem utilizadas com base nos gêneros que as representam.
Portanto, contextualizarei o leitor no universo das práticas de comunicação global
mediada por computador. No primeiro momento, traço um breve histórico sobre o
desenvolvimento da Internet, tendo como base os estudos de Castells (2003). No
segundo momento, discutirei o gênero discursivo segundo os estudos de Bakhtin
(1997) e de Norman Fairclough (2003); o contexto do ciberespaço será abordado
por meio dos estudos de Pierry Lévy (1999), Lúcia Santaella (2004), André Lemos
(2004) e de Denise Schittine (2004). Por último, mostrarei a dinâmica dos processos
interativos e dialógicos que envolvem as condições de produção das linguagens
praticadas nos blogs, correlacionando-as com os estudos de Bakhtin sobre a transmutação dos gêneros discursivos, com os estudos de Swales sobre comunidade
discursiva e com os estudos dos autores que discutem sobre o ciberespaço.
O Avanço da Internet nas Sociedades Pós-Modernas
As práticas sociais de linguagem mediadas pelo computador têm crescido consideravelmente. Se considerarmos os dados dos estudos realizados por Castells
(2003), no período de 1999 até 2003, sobre o impacto da Internet na sociedade pósmoderna, que traz novas formas de organização social com a inserção das novas
tecnologias, veremos a velocidade da expansão do uso da Internet na sociedade,
comparando o impacto da inserção dessa nova tecnologia com o ocorrido com
outros meios de comunicação. Castells aponta que, desde a sua criação até atingir
o número de usuários na escala de 60 milhões de pessoas, o rádio precisou de 30
anos, entretanto a televisão necessitou de 15, e a Internet atingiu esse número em
apenas três anos de uso.
Apesar desse crescimento acelerado, há desigualdade entre os usuários da rede,
conforme demonstra a análise de Castells. O quadro de usuários da rede acompanhou o seguinte perfil: predomínio em países industrializados; predomínio de
usuários com nível superior (61,6%); probabilidade 20 vezes maior de usuários
204 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Joana da Silva Ormundo
com renda mais alta do que os de renda mais baixa; maior número de homens, de
faixa etária média de até 36 anos nos EUA e abaixo de 30 anos em países como a
Rússia e China.
Com o crescimento acelerado da Internet, surge processo diferenciado das práticas comunicativas por meio da inserção dessa nova tecnologia. Há um processo
interativo nas relações comunicativas muito mais evidenciado do que em outros
contextos midiáticos. O autor associa esse processo interativo ao formato da World
Wide Web (WWW) que estabeleceu a rede de alcance mundial, uma rede flexível
formada por redes dentro da Internet, possibilitando que instituições, empresas,
associações e pessoas físicas criassem os próprios sítios (sites). O formato da rede
WWW permite que todos os indivíduos com acesso à rede possam produzir sua
homepage e outras ferramentas disponíveis na Web.
Com isso, foram surgindo outras formas de estabelecer o processo comunicativo,
por meio do uso dos chats (canais de bate-papo sincrônico), dos sites (conjunto
de páginas da Internet), dos blogs, que surgem no final da década de 1990, dandonos a impressão inicial, por meio dos mecanismos de formatação apresentados, de
serem uma prática discursiva como a de diários pessoais. E, mais recentemente,
surge o Messenger (MSN), que possibilita uma interação imediata – comunicação
em tempo real – na rede, o Orkut, para aqueles que aderem a um determinado
grupo; e o Fotolog, com características semelhantes ao blog, mas que privilegia a
publicação de fotos e de pequenos textos.
Ao comparar as páginas de cunho pessoal, temos uma diferenciação daquilo
que se iniciou com a criação dos sites pessoais e os textos produzidos e postados pelo novo gênero – o blog. A criação dos primeiros sites, especificamente as
páginas pessoais, apresentava um formato centrado na intencionalidade de seu
produtor. As condições de produção dos sítios estavam vinculadas às pessoas que
possuíam conhecimento técnico para a criação de páginas na Internet. Ao acessar
essas páginas, não era permitido ao usuário interagir diretamente com o produtor.
A interação entre o dono do site, e seu visitante só era concretizada por meio de
um endereço eletrônico, se estivesse disponível na página.
Já no blog, o processo se diferencia, pois, entre as ferramentas disponíveis
para uso, encontra-se uma que efetiva a constituição do processo interativo entre
os usuários dessa nova prática e que consiste na inserção de comentários. Essa
ferramenta exerce papel importante no desenvolvimento das narrativas publicadas
nos blogs; uma vez que o visitante da página, ao inserir seu comentário e enviá-lo,
terá a sua publicação em tempo real, desde que o produtor do blog tenha deixado
acessível à opção “inserção de comentário”.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
205
Parte VI – Discurso e Contextos On-Line • A Dinâmica do Uso Social dos Diários On-Line
Portanto, com o desenvolvimento dessas novas práticas de linguagem, o blog,
que inicialmente teve como grupo majoritário de usuários o público adolescente,
sofreu, no decorrer desses cinco anos de uso, reconfiguração do público usuário:
há uma tendência maior de inserção do público adulto, como se evidencia pelo
número de blogs produzidos por professores, jornalistas, médicos, políticos, músicos, entre outros. Concomitantemente com essa mudança no perfil de usuários,
aparecem outras práticas de comunicação na Internet, tais como o Orkut, Messenger, Fotolog e outros.
Pode-se observar que, atualmente, o grupo de adolescentes aparece majoritariamente nas formas de comunicação pós-blogs, o que não traduz um abandono
total dos adolescentes na publicação dos blogs. Esse fato pôde ser evidenciado pela
experiência que tenho com o grupo de usuários. Em 2000, tive contato com os
blogs por meio do grupo de alunos da Universidade em que leciono e, desde então,
acompanho o interesse desse público pelas linguagens advindas das novas tecnologias. Há tendência desses usuários em escolher as formas de comunicação que
são praticadas no Messenger (em tempo real), no Orkut, que possibilita ao usuário
a sensação de ser membro de uma determinada comunidade e também possibilita
o encontro de pessoas de convívio já afastado; e no fotolog, com a predominância
da linguagem não-verbal por meio das fotos publicadas.
A verificação da diversidade de textos publicados nos blogs e nas outras formas
de publicação indica que cada processo de publicação pressupõe uma função social
diferenciada, que é determinada pelas reconfigurações das práticas sociais advindas
dos gêneros discursivos em que ocorrem. A dinamicidade e a mutação que essas
práticas têm processado no decorrer do uso possibilitam inferir que aquilo que é
explicitado neste artigo pode mudar até a chegada ao leitor, por se tratar de um
processo dinâmico, flexível. Desse modo, é importante ter esse esclarecimento no
decorrer da leitura deste artigo.
Contextualizando os Blogs: a Constituição de um
Diário Interativo
Os blogs podem ser considerados como um sistema padronizado de publicação
na Internet. Há padronização na publicação de narrativas, a ordenação cronológica, razão pela qual o formato desse gênero permite que os produtores dos textos
atualizem os fatos de forma rápida. Como não há necessidade de conhecimento
técnico para a formatação e para a criação dessas páginas, percebe-se a popularização desse tipo de publicação de textos. E o fato de as narrativas publicadas terem
como temática acontecimentos pessoais, de forma cronológica, possibilita associar
os blogs como uma reconfiguração do gênero diário pessoal.
206 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Joana da Silva Ormundo
Uma das características das linguagens dos blogs é o processo interativo, que
aparece como intenção do seu produtor em compartilhar as experiências pessoais
com todos que visitam o seu blog, o que é muito diferente da prática tradicional de
diários em que os segredos eram trancados, escondidos. Entende-se por experiências
pessoais aquilo que, além de vivenciado por uma pessoa, também se relaciona com
as suas escolhas, seu posicionamento ideológico, que vem marcado, também, pela
prática de linguagem de sujeitos que escrevem sobre temáticas voltadas a interesses
profissionais (professores, jornalistas, cineastas, escritores, médicos etc.).
Outro fator a ser considerado é o fato de os textos publicados nos blogs caminharem para a desconstrução de abordagens narrativas situadas no universo da
modernidade, com a mudança de paradigma no trato com a linguagem, que se dá
pelo abandono das narrativas lineares e aponta para um formato mais fragmentado, hipertextual, ou seja, uma reconfiguração da linguagem com características
próprias das linguagens que estão emergindo nas sociedades pós-modernas. Tal
tema será discutido mais adiante.
Conceituando Gênero Discursivo
O conceito de gênero adotado neste trabalho difere das definições de gênero
como modalidade da escrita e vinculada às tipologias textuais. Tratarei a questão do
gênero como aquela associada às esferas da atividade humana como apresentadas
nos estudos bakhtinianos (1997). A relevância do trabalho de Bakhtin consiste na
relação que ele estabelece entre a heterogeneidade e a dinamicidade dos gêneros.
É na dinâmica de um processo comunicativo, situado em determinado contexto
social, que se percebe a interação de um gênero com outro(s). Para Bakhtin, os
gêneros do discurso são tipos relativamente estáveis de enunciados. Uma vez que
as esferas sociais são heterogêneas e dinâmicas, os gêneros discursivos também
refletem essa heterogeneidade e dinamismo.
Bakhtin também define os gêneros como categorias históricas, aparentemente
estáveis, mas sujeitas a um processo de transformação contínua. Nesse sentido,
entendo que os gêneros existentes mudam conforme as configurações determinadas
por situações sociais, nas quais exercem função ou novos gêneros surgem de transformações dos gêneros já existentes. Portanto, há tipos de enunciados padronizados,
empregados em determinadas situações, e não ocorre a recriação de forma e de
conteúdo toda vez que se enuncia uma situação comunicativa nova. Isso implica
analisar os blogs como um gênero discursivo com características próprias que advêm
das condições de produção inerentes à prática social que representam.
Fairclough (2003), ao tratar da “estrutura genérica”, já aponta para essa dinamicidade de compreensão dos novos gêneros no contexto do novo capitalismo.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
207
Parte VI – Discurso e Contextos On-Line • A Dinâmica do Uso Social dos Diários On-Line
Segundo o autor, as mudanças nos gêneros são decorrentes do modo como diferentes
gêneros são combinados e também da forma como novos gêneros aparecem por
meio da combinação de gêneros já existentes. Desse modo, respalda a definição
de Bakhtin sobre transmutação de gênero.
Assim, não se pode apenas catalogar a prática social das linguagens existentes
nos blogs como sendo um novo formato do gênero diário, mas, sim, como uma
criação de um novo gênero, que, apesar de trazer na sua natureza dados que fazem
lembrar o modelo tradicional do diário off-line, apontam para aquilo que Fairclough
(2003) define como duas preliminares sobre gênero. A primeira preliminar é relativa
ao fato de vivermos um período de rápidas e profundas transformações sociais,
em que ocorre uma tensão entre a estabilização e a consolidação da nova ordem
social; e a segunda, relativa à inexistência de terminologia para gêneros, sendo
que alguns apresentam de forma imparcial uma classificação definida segundo a
prática social em que ocorrem, e outros não. O autor chama a atenção para que
tratemos com cuidado aqueles que apresentam essa definição, porque o projeto de
classificação que o originou pode apresentar uma imagem enganosa.
Dois pontos apresentados por Fairclough (2003) são importantes para este artigo:
primeiro, a relação entre mudanças sociais e mudanças tecnológicas, em que as
novas tecnologias da comunicação estão associadas e apontam para a emergência
de novos gêneros; e segundo, na discussão de novas narrativas. Para vislumbrar
minha compreensão do que o autor quer dizer, considerarei esses pontos para
compreender as práticas de linguagens advindas dos blogs.
Outro aspecto relevante para a nossa análise, consiste naquilo que Swales (1998)
caracterizou como importante para definir se uma prática social com a linguagem
pode ser definida como gênero discursivo. Para isso, o autor estabeleceu seis características que permitirão identificar se um grupo de indivíduos, em determinada
atividade com a linguagem, constitui uma comunidade discursiva. Nesse momento,
farei um ensaio dessas características com as práticas de linguagem dos blogs.
A primeira está voltada para a necessidade de terem objetivos comuns, que
podem vir explicitados em contratos institucionais, tais como clubes, associações
e instituições. Mas o fato de os indivíduos se agruparem em uma mesma instituição não significa, necessariamente, que os seus membros devam compartilhar
os mesmos objetivos. Um bom exemplo exposto por Swales consiste no fato de
determinados representantes partidários fazerem parte de uma mesma instituição,
tais como o Senado ou o Parlamento, e, nesse mesmo contexto, coexistirem membros de grupos adversários em que, em algum momento, compartilhem objetivos
comuns, mas não em todos.
208 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Joana da Silva Ormundo
Conforme discussão acima, posso inferir que o blog como gênero discursivo
não se constitui, por si só, uma comunidade discursiva, dada a natureza híbrida
dos interesses pessoais que motivam seus participantes. Mas identifico, no universo dos blogs, indivíduos que se agrupam por temas de interesses similares, tais
como: narrativas de viagens, universo do mundo adolescente, discussões políticas,
acadêmicas e matérias jornalísticas, assunto de saúde, grupos literários e assim
por diante.
De outro modo, se considerarmos esses agrupamentos como motivados por
temáticas de interesse do grupo, podemos inferir, dessa forma, a existência de
uma comunidade discursiva no universo dos blogs. A comunidade discursiva não
aparece como usuário da ferramenta que coloca à disposição os mecanismos necessários para a organização do grupo, mas como prática social com a linguagem
nos agrupamentos temáticos dos usuários do gênero blog. Nesse caso, o agrupamento das pessoas on-line ocorre por meio de valores e interesses comuns, o que
confirma uma comunidade discursiva virtual que se traduz por uma rede eletrônica
autodefinida de comunicações interativas e organizadas ao redor de interesses ou
com fins em comum.
A segunda característica formulada por Swales consiste na obtenção de mecanismos de intercomunicação próprios dos membros que compartilham uma determinada
comunidade discursiva. Esses mecanismos variarão de acordo com os interesses do
grupo e são utilizados nos processos interativos dos seus participantes, na relação
que estabelecem uns com os outros, permitindo o reconhecimento de seus papéis
sociais. Esse ponto reafirma a questão da heterogeneidade constitutiva do discurso,
pois os mecanismos de intercomunicação entre os membros de uma determinada
comunidade discursiva são regidos por interesses individuais dos sujeitos que
interagem nesse grupo específico.
A terceira característica consiste no uso de mecanismos participativos com o
intuito de produzir informações e respostas. Está diretamente ligada à organização e
à atuação dos indivíduos por meio dos mecanismos organizados socialmente. Nesse
sentido, todo usuário da Internet tem a possibilidade de acessar ou não determinado gênero discursivo que se encontra disponível na rede. O que determinará o
fato de um sujeito compartilhar determinada comunidade discursiva dentro dessa
rede será a sua disponibilidade de se conectar e de agir para tomar a iniciativa de
participação de um determinado grupo.
No caso dos blogs, temos um usuário da rede que tem como provedor uma empresa x, ao entrar na página do seu provedor, é convidado a participar dos serviços
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
209
Parte VI – Discurso e Contextos On-Line • A Dinâmica do Uso Social dos Diários On-Line
oferecidos, dentre eles, o link que o convida a criar o seu blog. Nesse caso, ele precisa
ter a motivação para acessar o link e seguir as orientações para a criação do blog.
Não basta só criar, é preciso uma participação efetiva no grupo.
A quarta característica consiste na utilização de um ou mais gêneros para
estabelecer a eficácia do processo comunicativo a fim de atingir seus objetivos.
Segundo Swales, a intenção do processo de comunicação é desenvolver determinadas expectativas discursivas. Com esse propósito, os indivíduos apropriar-se-ão de
determinados mecanismos, formatos e modelos em funcionamento na comunidade
discursiva. Exatamente, nesse ponto, há a correlação entre gêneros discursivos e a
comunidade discursiva. É também nesse ponto que o trabalho de Swales aproximase da definição de gênero bakhtiniana, quando se refere ao fato de que a formação
de uma nova comunidade discursiva empresta gêneros de outras comunidades
discursivas para testar a assimilação deles no novo contexto.
Ao correlacionar essa definição com a organização dos blogs, podemos perceber
claramente o movimento de empréstimo. O aspecto formal da organização da página,
a diversidade de gêneros que ocorre nessa prática social com a linguagem, confirmam a análise sobre a relação de empréstimo de gêneros explicitado por Swales.
A quinta característica consiste no fato de que não basta a posse de determinados gêneros, é necessária a aquisição de léxicos específicos. Esse ponto é muito
evidenciado na nova prática social com as linguagens praticadas em contextos da
Internet. O processo de criação de novos léxicos tem perpassado toda a rede nas
novas tecnologias da informação. Há uma dinâmica para compartilhar a terminologia
especializada com o desenvolvimento de abreviaturas específicas, termos novos
da comunidade na Web, caracteres próprios para serem usados nas práticas de
linguagens midiáticas, entre outros. No caso dos blogs, aparecem algumas escolhas
lexicais que se configuram como forma-padrão nesse contexto de uso da língua,
tais como: post, comentários, link.
Por último, Swales define o interesse dos membros em compartilhar o grau de
conteúdo relevante de uma habilidade discursiva. A dinâmica das mudanças na
sociedade é muito grande, logo o que determinará a sobrevivência de uma comunidade dependerá da força que exerce entre aquele que inicia no grupo e aquele
que já possui larga experiência dentro do grupo.
210 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Joana da Silva Ormundo
O Perfil do Usuário e o Surgimento de uma Função
Social do Blog
Como já explicitado neste artigo, na publicação dos blogs, a prevalência inicial
de usuários adolescentes foi cedendo espaço para um grupo mais adulto. A observação inicial desse novo grupo que utiliza o blog como forma de construção das
narrativas tem permitido categorizar esses usuários como profissionais de determinadas áreas de conhecimento, tais como jornalistas, médicos, músicos etc. Essa
mudança no perfil dos usuários trouxe aspecto novo na linguagem usada para a
construção das narrativas, pois os textos desse novo grupo apresentam preocupação
social muito grande, tanto por meio de textos que apresentam discussões políticas,
como, também, por meio daqueles esclarecedores de problemas sociais ligados à
saúde física e mental da população.
A relevância da mudança das temáticas publicadas indica também mudança no
perfil do produtor e leitor do gênero blog. Esse movimento indica que os antigos
usuários se aproximaram mais dos gêneros fotolog, do Messenger e do Orkut, como
já mostrei neste trabalho, e que os novos usuários estão mais vinculados a uma
atitude profissional, usando os blogs com uma função social específica.
A Natureza Híbrida das Linguagens dos Blogs
Verifica-se uma dinamicidade muito grande no uso das linguagens que aparecem nos blogs, por meio da Multimodalidade que constitui os textos publicados.
O seu produtor utiliza as várias linguagens (oral, escrita, foto, voz, música, ruído,
movimento) para construir sua narrativa.
Tal Multimodalidade permite posicionar os blogs como gêneros que estão longe
de serem exclusivamente escritos. A dinamicidade da forma como a escrita é apresentada nas narrativas construídas aponta para uma reconfiguração da linguagem
escrita, que vem marcada pela inserção de emoticons, fotos, som, marcas de oralidade e, principalmente, do aspecto interativo que essa escrita desencadeia. Não é
a escrita que estamos habituados a perceber em outros gêneros discursivos.
Verifica-se, além da caracterização de uma escrita multimodal, também um
hibridismo de gêneros discursivos tanto nos textos publicados como na própria
estrutura da página que remete a outros gêneros (artigos publicados sobre as temáticas julgadas interessantes e divulgadas pelo produtor do blog) em forma de
link ou até mesmo no corpo do texto publicado. Tal característica está configurada
hipertextualmente, como pode ser conferido no texto extraído do blog do jornalista
Mosca.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
211
Parte VI – discurso e Contextos On-line • A Dinâmica do Uso Social dos Diários On-line
Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação
Hein? Cúpula de quê?
Ora, não seja por isso. tem um livrinho aqui que vai ajudar um bocado a entender.
# zumbido por Fausto: Segunda-feira, Maio 03, 2004
[1] comentárioAdicione um coment&aacuterio
29.4.04
A natureza híbrida da linguagem usada no exemplo acima aponta para a multimodalidade que aparece na escrita dos textos publicados no blog, que se apresenta
por meio das marcas de oralidade e o estabelecimento do processo interativo do
texto publicado como podemos depreender na seguinte estrutura frasal: Hein? Cúpula de quê? Em seguida, Ora, não seja por isso. Ao mesmo tempo em que elabora
a pergunta, deixa implícita a imagem de um leitor em dúvida e constrói estrutura
que indica esclarecimento do assunto.
E também por meio da hipertextualidade que vem marcada na seguinte frase:
Tem um livrinho aqui que vai ajudar um bocado a entender. Caso tenha interesse em
desvendar o mistério marcado pela pergunta: Cúpula Mundial sobre a Sociedade da
Informação, ilustrado na foto do livro que está apresentada no exemplo, o visitante
do blog deverá seguir o conselho do seu produtor, por meio de um clique na palavra
aqui. Essa ação permitirá que o leitor entre em uma outra página da Internet, que
possibilitará a interação com um outro gênero discursivo, diferente ou até igual
aquele do blog. As escritas marcadas traduzem a dinamicidade apresentada neste
exemplo e permitem inferir que a linguagem escrita em contextos do gênero blog
recebe configuração própria da prática social com a linguagem advinda deste gênero discursivo, que não permite caracterizá-la como um formato-padrão de uso da
linguagem escrita. É preciso compreender a linguagem escrita por meio do gênero
discursivo em que ela aparece e as várias formas em que ela será constituída.
212 • Olhares em Análise de discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Joana da Silva Ormundo
Construindo o Sentido da Estrutura Frasal
Outro aspecto relevante nas práticas das linguagens que ocorrem nos blogs
consiste na construção de sentido de determinadas estruturas frasais. O exemplo
retirado do blog da jornalista Elis Monteiro expõe como a construção de sentido
está vinculada às condições de produção, aos aspectos históricos e políticos, em
que o discurso foi produzido. Vejamos o exemplo:
Novembro 10, 2004
Sandra Cohen, editora da Internacional daqui do Globo, não agüenta mais
responder a mesma pergunta a toda hora: “Arafat morreu?”
Desesperada, ela colocou em sua mesa o recado abaixo (foto do chefinho
Nelson Vasconcelos)
por elis monteiro 10.11.04
Comentários [10]Adicione um coment&aacuterio
Comente aqui:
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
213
Parte VI – Discurso e Contextos On-Line • A Dinâmica do Uso Social dos Diários On-Line
A construção de sentido da estrutura frasal Ainda não só é possível pelo conhecimento das condições de produção explicitada no blog e daquilo que era divulgado
na imprensa no momento histórico em que Arafat estava prestes a morrer. Isso confirma a necessidade de contextualização na construção de sentido dos enunciados
que ocorrem nas práticas sociais de diversos gêneros discursivos.
Qualquer tipo de julgamento das práticas de linguagens, situadas no meio midiático, deve estar atrelado ao gênero discursivo em que essas linguagens aparecem.
Não é possível analisá-las tendo como base outros gêneros, tais como resumo,
monografias, resenhas, fichamentos.
As Narrativas Construídas nos Blogs
Os textos construídos nos blogs apontam para uma desconstrução de abordagens
narrativas situadas no universo da modernidade, o que impõe mudança de paradigma no trato da linguagem, com as novas formas de organização das linguagens
no contexto da pós-modernidade.
As narrativas publicadas nos blogs expõem fatos do cotidiano, vida pessoal,
preferência musical, cinema, teatro, textos literários, poesias, crônicas, comentário
de livros, situações polêmicas, relatos de acontecimentos íntimos e assim por diante,
por meio de um processo dialógico e uma pluralidade de uso da linguagem.
Neles, o processo interativo que permeia todo o espaço de construção da narrativa possibilita ao leitor verificar os caminhos e formatos que a narrativa publicada
vai tomando no decorrer do tempo e espaço. A visão do leitor é marcada pelos
comentários disponibilizados na página do blog que foi acessado. A inserção do
comentário possibilita caracterizar o processo narrativo como algo compartilhado,
que confirma o aspecto dialógico do gênero em análise. Cabe discutir como se dá
tal processo neste contexto. Para isso, discutirei dois aspectos das narrativas dos
blogs.
O primeiro aspecto refere-se ao posicionamento do seu produtor em concordar
ou não com o que foi comentado. A percepção de tal posicionamento do blog virá
na observação cronológica daquilo que foi publicado, explícita ou implicitamente,
no pós-comentário. Para que o leitor tenha maior clareza sobre o posicionamento
do produtor do blog, deverá correlacionar o texto publicado pós-comentário com o
que estava disponível na janela dos comentários enviados. Como se pode verificar
no exemplo extraído do blog do jornalista Ricardo Noblat.
214 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Joana da Silva Ormundo
01/06/2005 19:15
Aos amáveis petistas
O titular deste blog saúda a volta em grande estilo dos petistas ao debate
em torno das notícias aqui postadas. Eles haviam sumido do espaço dos
comentários.
Voltaram pintados para a guerra.
São bem-vindos - como, de resto, os simpatizantes de todos os partidos e
aqueles que não simpatizam com nenhum.
enviada por Ricardo Noblat
(comentar mensagem | 39 comentários)
O segundo aspecto consiste na narrativa que se constrói na janela que disponibiliza os comentários recebidos. As narrativas compartilhadas nos comentários
apresentam caráter interativo entre os seus usuários. A análise dessa interatividade
confirma aquilo que Castells (2003) define como características de penetrabilidade,
descentralização multifacetada e flexibilidade. Há avanço rápido que reflete os interesses pessoais, comerciais, institucionais na esfera da comunicação, conforme
aponta o autor. Também possuem propriedades de interatividade e individualização tecnológica embutidas. É nesse universo que se faz necessário compreender
esta nova tecnologia e a rapidez com que ela tem evoluído, que em tempos atuais,
impõe novos padrões de comunicação que reconfiguram as linguagens existentes.
Vejamos algumas narrativas a partir dos comentários que foram enviados ao blog
de Ricardo Noblat no dia 10 de junho de 2005.
enviado por: Curioso
Todos que sabem de mais neste Pais tem um destino,,,,,,,, e O RF sabe bem
disso.....ele foi adovgado criminalista no Rio....... Sabe muito bom como a
coisa evolue,,,,veja os casos PC Farias,,,,, Celso Daniel e Toninho do Pt calados
pelos Bérias da vida brasileira.......
enviado por: Extra Terrestre
Peguem leve com o Allan,coitado. Deve ter algum cargo comissionado em
algum órgão federal e foi incumbido de encher o saco neste blog. É apenas
um p.au mandado.
Alias, uma coisa que eu percebo é que todos os que maldizem o molusco
bisonho são cidadãos comuns indignados sem qualquer filiação, ou tendência
partidária doentia e religiosa, já os que os defendem são sempre os tais
PTelhos insanos.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
215
Parte VI – Discurso e Contextos On-Line • A Dinâmica do Uso Social dos Diários On-Line
enviado por: Contribuinte Otário
NÃO É POSSÍVEL
Faz umas quatro horas que eu me afastei. Agora que eu volto ainda está ai
essa figura es.crota do Allan.
O bichão ! Você não trabalha não?
Os exemplos acima demonstram o aspecto interativo das narrativas publicadas
no tópico “comentários”, confirmado segundo estruturas do tipo: todos que sabem
de mais neste pais tem um destino...., e, também em: Peguem leve com o Allan...
foi incumbido de encher o saco neste blog ou na seguinte estrutura: ...ainda está
ai essa figura es.crota do Allan. A verificação dessas estruturas permite inferir
que, paralelamente ao que foi exposto pelo produtor do blog, um outro ambiente
narrativo se instaura com os comentários enviados.
Os Usos Sociais dos Blogs
Os blogs com estrutura temática com base nos assuntos políticos contribuem
para a formação de uma linha discursiva no âmbito da política. Esse gênero aponta
para uma reconfiguração da linguagem jornalística, como muito bem explicitada
nas práticas de linguagens do blog do jornalista Ricardo Noblat. Uma análise mais
aprofundada dos blogs produzidos por jornalistas possibilitará tanto a análise de
como essa comunidade está estruturando as formas de publicação dos textos jornalísticos, como do ambiente das redações desde as percepções de seus produtores.
10/06/2005 14:52
Jefferson aceita proteção oferecida pela Câmara
O deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) aceitou ser protegido por agentes
de segurança da Câmara. “Estou comovido e agradecido”, disse ele por
telefone ao chefe do setor.
Fez uma única exigência: que a segurança se restrinja ao andar onde ele
mora - sexto de um bloco de apartamentos da 302-Norte. Ele é o único
morador do bloco que pertence à Câmara.
Os demais apartamentos estão abandonados porque seus eventuais ocupantes
preferem receber ajuda de custo em dinheiro para morar em hotéis.
Na próxima terça-feira, quando Jefferson sair da toca para ir depor no
Conselho de Ética, será escoltado por agentes de segurança da Câmara.
enviada por Ricardo Noblat
(comentar mensagem | 144 comentários)
A publicação dos textos com data e hora marcadas tanto contextualiza o leitor
ao que ocorre em um contexto histórico específico, como, também, disponibiliza
216 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Joana da Silva Ormundo
informações que estabelecem posicionamento crítico sobre o assunto discutido, como
pode ser percebido no exemplo acima sobre a moradia dos deputados federais.
Na mesma linha de despertar a consciência social da população, podemos encontrar blogs que têm como temática tratar de questões vinculadas à área da saúde, o
que demonstra uma preocupação social de democratizar as informações que antes
eram restritas a um determinado grupo de profissionais. A matéria publicada no
site do jornal Folha de São Paulo em 5 de junho de 2005, intitulada Blog esclarece
dúvidas sobre saúde mental, divulga o blog do psiquiatra da Universidade de São
Paulo (USP), Dr. Joel Rennó Junior, sobre o lançamento do blog Mental Health. Esse
blog pode ser classificado entre aqueles que têm como propósito exercer função
social. Na reportagem, temos a explicação de que o objetivo do médico é, por meio
de uma linguagem acessível à população em geral, orientar e esclarecer as pessoas
sobre a saúde mental. A reportagem traz uma citação do médico sobre a existência
de poucos recursos visuais e enfatiza a função social do blog como um serviço
de utilidade pública, o qual visitamos, cujo endereço é www.saudementalmulher.
blogspot.com, e identificamos os seguintes temas: Saúde Mental Sem Preconceitos,
publicado em 28 de maio de 2005. É a matéria que inaugura o gênero on-line, e fala
sobre a importância do diagnóstico e tratamento precoces dos transtornos mentais,
com o propósito de propiciar uma melhor qualidade de vida às pessoas.
Já em Terapias Alternativas Têm Riscos? publicado em 30 de maio de 2005, o
autor termina o texto com o seguinte alerta:
O objetivo de tal artigo é, portanto, propor, de forma cristalina e flexível,
apenas cautela e bom senso na aplicação responsável e limitada de tais métodos, o que, na prática, infelizmente, ainda não ocorre por todos aqueles que
praticam os mesmos.
posted by Prof. Dr. Joel Rennó – MD, PhD @8:42PM0 comments.
Os textos citados ilustram aquilo que defini como blogs que exercem função
social e confirmam a mudança no perfil dos produtores deles, no decorrer destes
cinco anos de existência.
Considerações Finais
Os usuários da Internet ingressam na rede ou formam agrupamentos on-line com
base em interesses comuns. Além disso, dentro do segmento de usuários regulares
da CMC, tudo indica que esse veículo propicia a comunicação mais fluida e desinibida, fato confirmado pelas estratégias comunicativas analisadas nos blogs.
No contexto aqui apresentado, essas comunidades discursivas e virtuais criam
seus próprios códigos de linguagem e formas de organização dos grupos, com a
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
217
Parte VI – Discurso e Contextos On-Line • A Dinâmica do Uso Social dos Diários On-Line
utilização de gêneros já existentes e a recriação de outras formas de gêneros marcados pelos contextos históricos, sociais, temporais que representam. Com isso, não
se pode afirmar que as narrativas publicadas nos blogs constituem forma restrita
de diário. Podem ter surgido da idéia inicial de um diário, mas o desenvolvimento
dessa prática, assim como o seu uso constante por meio de interesses diversificados constitui, por sua natureza, uma característica própria do meio em que essa
prática com a linguagem ocorre.
Posicionamentos de que a prática social da linguagem em contextos da Internet
contribuirá para o fim da língua portuguesa, demonstram simplismo no trato com
a língua e com as linguagens que circulam nas sociedades em geral, pois o entendimento das construções de linguagens na Internet é plausível nesse contexto,
vinculada ao gênero que representa. Qualquer leitor e/ou produtor de textos que
não possui vivência em todas as instâncias sociais que o mundo pós-moderno lhe
propicia terá restrições para usar as várias linguagens que permeiam os vários
gêneros. Exemplo disso é o que acontece com alguém que, habituado a escrever
textos escolares, acadêmicos, resumos, monografias, ao entrar num grupo do Orkut,
vai postar textos com a mesma formatação do que está habituado no seu mundo
acadêmico e vice-versa.
Uma forma não acaba com a outra, uma vez que são usadas em gêneros discursivos diferenciados. É necessária a inserção no gênero para apropriar-se das
“normas” determinadas pelo grupo usuário do gênero em uso e, com isso, desenvolver a competência e habilidade de produzir mensagens na formatação que o
gênero em uso exige.
Outro aspecto importante do avanço da Internet consiste nas formas de narrar.
A narrativa há muito perdeu a linearidade e aproxima-se com aquilo que Marshall
McLuhan a definiu como estruturas mosaicas, tanto na organização das muitas
histórias que há nas páginas jornalísticas, como na influência do controle remoto
para a construção desse mosaico ou dessa fragmentação na construção das narrativas pós-modernas. Ver e construir narrativas nesse modelo delineiam uma forma
de pensar diferenciada, pois como a cognição sofre influência social, a organização
mental também apresentará essa fragmentação advinda daquilo que se vivencia
socialmente no mundo pós-moderno. Não é diferente nas práticas de linguagens
vindas do computador.
218 • Olhares em Análise de Discurso Crítica
ISBN 978-85-909318-0-5 • Joana da Silva Ormundo
Um usuário da Internet em uma situação comunicativa diante da tela tende a
organizar suas ações em formas de janelas. Ao mesmo tempo em que escrevo esse
artigo, estou com minha caixa de email aberta, logo passível de um novo contato;
o meu MSN pode estar on-line, o Orkut pode mandar um recado para a minha
caixa de e-mail, a televisão na sala está ligada; o telefone pode tocar a qualquer
momento, posso atendê-lo e, ao mesmo tempo, continuar meu trabalho diante da
tela de computador.
Há um mundo social de várias janelas interconectadas, há muitas informações
disponibilizadas e, com isso, novas formas de construção das narrativas, das linguagens, do conhecimento, tudo determinado pelas circunstâncias sociais que nos
rodeia e que fomos capazes de acompanhá-las, não é possível descartar o desejo,
interesse e conhecimento do sujeito que está aberto a participar desse novo ritmo
social.
Quando o sujeito não compartilha desse novo modo de organização social, quando
escolhe, por opção ou até mesmo por falta de conhecimento, não compartilhar essas
experiências vindas da pós-modernidade, ele passa a não ter autoridade suficiente
para dizer quem é diferente da sua forma de pensar e para ver que o mundo está
contribuindo para que o seu mundo desmorone. Porque não participo do mundo
virtual e dos avanços que a tecnologia impõe, isso não me dá o direito de travar o
desenvolvimento do mundo, alegando que o meu basta. Por isso, reforço a idéia
de que o mundo virtual, o avanço tecnológico, as linguagens da pós-modernidade
não acabam com nada, apenas trazem novas formas de organização social. Se isso
vai acabar ou não, não depende da minha vontade e, sim, dos caminhos que as
coisas tomarão em conformidade com as necessidades das pessoas.
O fato de o blog ser transmutação do gênero diário off-line não significa que
este terminou em detrimento do outro, ou que a escrita deste tenha que seguir o
modelo da escrita do outro. São usuários que têm a competência de usar um gênero ou ambos, e em cada gênero que estiver inserido, irá configurar seu texto em
conformidade com a linguagem que a prática social daquele gênero lhe possibilita.
O mesmo ocorre com o fotolog, que também vejo como uma reconfiguração do
gênero álbum de fotografia, do MSN, o Orkut e outras comunidades que surgiram
e surgirão até a publicação deste texto, dada a dinamicidade de trocas e inovações
vindas por meio da Internet.
Olhares em Análise de Discurso Crítica •
219
Parte VI – Discurso e Contextos On-Line • A Dinâmica do Uso Social dos Diários On-Line
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. M. E. G. Pereira. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
CASTELLS, M. A sociedade em rede. Trad. Majer, R. V. São Paulo: Paz & Terra,
2003.
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. (Coord.). Trad., revisão. E pref. à
ed. bras. Magalhães, I. Brasília: Editora UnB, 2001.
______________. Analysing discourse textual analysus for social research. London: Routledge, 2003.
LEMOS, A. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea.
Porto Alegre: Sulina, 2004
SANTAELLA, L. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo.
São Paulo: Palus, 2004
SCHITTINE, D. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004.
SWALES, J. M. Genre analysis. Cambridge: Cambridge: Polity Press, 1998.
VERSIGNASSI, A. Weblogs reinventam o uso da Internet. Folha de São Paulo.
In: <http://www.uol.com.br, 24/01/2001>.
<http://www.elismonteiro.blogspot.com/>.
<http://www.mosca.blogspot.com>.
<http://noblat.blig.ig.com.br/>.
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0506200525>.
<htm http://www.saudementalmulher.blogspot.com>.
220 • Olhares em Análise de Discurso Crítica