Feios,sujos e malvados - Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos

Transcrição

Feios,sujos e malvados - Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos
Por trás dos Muros
– A vida dentro dos albergues e Núcleos de
Serviços para população de rua em São Paulo -
Cassio Giorgetti
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Apresentação
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Profissionais
necessária
17
da
miséria:
uma
introdução
O Núcleo de Serviços com albergue “Casa
Restaura-me”
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Juventude Perdida
25
Os durões de rua
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Por trás dos muros
74
Reação em Cadeia
94
Um barril de pólvora
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Vigiar, Punir ou Cuidar
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Cícero, o Macunaíma das ruas
152
2
Agradecimentos
A Erika Vovchenco
A meus queridos pais e irmãs, minha família e
amigos
Aos funcionários, ex-funcionários, missionários e
voluntários da Casa Restaura-me, pela lealdade,
amizade e dedicação
A Cícero, Neuza, Alana, Marquinhos, Fabiano,
Irandi (Tarú), Fabiana (Darling), Carioca e demais
frequentadores da Casa Restaura-me, pelo carinho
Em memória de Ivan
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Apresentação
Esta é uma história que conta histórias.
Histórias de um punhado de gente que, por alguma
razão, calhou de estar reunida dentro de um mesmo
lugar numa cidade de caminhos e possibilidades
infinitos.
Histórias que se cruzaram com a minha história.
Devo confessar que a proposta de gerenciar um
Núcleo de Serviços com albergue para moradores
de rua, cuja implementação se daria por meio de
uma parceria firmada entre a Organização Aliança
de Misericórdia e a Prefeitura de São Paulo,
privou-me de algumas boas noites de sono.
Ao mesmo tempo em que a idéia me atraía um
bocado, as más recordações de minhas experiências
anteriores em trabalhos aos quais estava vinculado
o Poder Público me faziam titubear.
Decidi aceitar esse novo desafio por três razões
distintas.
A primeira delas advinha do respeito e da amizade
que cultivava pela Organização Social que me
fizera o honroso convite.
Conhecia a Organização Aliança de Misericórdia já
há alguns anos e sempre a considerei uma das
poucas que se propõem a desenvolver ações
eficientes destinadas à população de rua.
Suas ações se contrapõem firmemente às limitações
do atendimento meramente assistencial e têm por
finalidade reabilitar o cidadão de rua e reintegrá-lo
processualmente à sociedade.
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A segunda razão consistia no meu incomensurável
desejo de, após dois longos anos, voltar a trabalhar
formalmente com população de rua.
A terceira e derradeira razão era a oportunidade que
a experiência me concederia de confirmar algumas
colocações apresentadas em meu trabalho anterior.
Na ocasião, o contato com o mundo por trás dos
muros, ou seja, com a realidade do morador de rua
durante o período de sua permanência nos Núcleos
e Centros de Serviços e Centros de Acolhimento
não pôde ser alvo de um maior aprofundamento.
Tal fato se deu em virtude de minhas visitas a estes
estabelecimentos, apesar de diárias, acontecerem de
maneira breve e emergencial ao passo que meu
trabalho se restringia às ações de campo nas ruas,
através da abordagem e do transporte de moradores
de rua.
As argumentações outrora apresentadas acerca das
deficiências dos locais que atendem a população de
rua foram elaboradas através da observação e
análise de fatos vivenciados nos trabalhos de
campo, bem como das relações profissionais com
os seus funcionários e de depoimentos dos próprios
moradores de rua.
Por intermédio desses expedientes foi possível
verificar alguns aspectos funcionais dos Núcleos de
Serviços e albergues como a dificuldade de
vinculação e permanência dos moradores de rua, a
aleatoriedade e impessoalidade no atendimento, a
prioridade de admissão para moradores de rua com
autonomia individual e de comportamento estável e
a ausência de intervenções e propostas específicas
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para os problemas mais críticos da população de
rua, dentre os quais se destacam o uso abusivo de
álcool e drogas, a perda da capacidade de
submissão às normas de convívio coletivo e
alterações comportamentais.
Essa nova experiência me propiciaria a chance de
observar novamente a todos esses aspectos através
de outro olhar - o olhar de quem está do lado de
dentro do estabelecimento - e compreender melhor
as razões que desencadeiam tais deficiências.
Os fatos narrados nessa obra transcorreram entre os
meses de maio e novembro de 2009, período no
qual exerci a função de gerente no Núcleo de
Serviços com Albergue para população de rua
“Casa Restaura-me”.
Anteriormente, creio ser oportuno fazer algumas
considerações acerca da apatia e do desnorteamento
que acometem os gestores das Políticas Públicas
voltadas à população de rua no momento atual em
São Paulo.
De fato, as autoridades demonstram consternação
com relação ao número de pessoas que vivem nas
ruas – cujas estatísticas mais recentes apontaram
um aumento de aproximadamente 10%.
Acuados pela implacável pressão exercida pela
imprensa, por políticos, pelo Ministério Público e
pelos Movimentos de Defesa dos Direitos da
População de Rua, dentre outros órgãos, precisam
agir. Mostrar alguma atitude. Dar respostas.
Como um bicho selvagem encurralado pelo seu
predador, agem movidos pelo desespero, utilizando
mecanismos de defesa puramente instintivos.
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Esse jeito inábil de lidar com a pressão é percebido
no lançamento de medidas estabanadas como o
fechamento abrupto dos maiores albergues da
cidade de São Paulo, extinguindo 1000 vagas para
moradores de rua às vésperas da divulgação dos
resultados do censo que indicaria a existência de
13.000 pessoas vivendo nas ruas.
A substituição desses locais por pontos fixos de
atendimento, denominados “tendas sociais”,
também foi alvo de severas crítica dos movimentos
representativos da população de rua.
Não há como discordar que a permanência do
morador de rua num espaço que se restringe à
oferta de serviços básicos - e no qual inexistam
quaisquer metodologias de intervenção - representa
uma solução meramente paliativa para a sua
condição de abandono.
É precisamente nesse momento que o pânico se
constitui no pior inimigo do Poder Público, pois o
impede de ponderar suas ações.
Há tempos urge a necessidade de modificações nas
estruturas de funcionamento dos Núcleos de
Serviços e albergues destinados à população de rua.
Tais modificações transitam dos aspectos físicos
como o atendimento de pessoas sob viadutos e em
quantidades exorbitantes aos aspectos operacionais,
observados na defasagem crônica dos recursos
humanos e logísticos, culminando nos aspectos
funcionais, caracterizados pela ausência de ações
específicas que propiciem ao morador de rua o
retorno ao convívio social e que o condenam a
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viver eternamente institucionalizado e dependente
de ações assistencialistas.
No entanto, não se fará frente a essas deficiências
com o ato de fechar repentina e precipitadamente as
portas dos estabelecimentos.
É conveniente lembrarmos que esse enorme
contingente de seres humanos que hoje se amontoa
pelas calçadas e marquises da cidade não se formou
da noite para o dia.
Para um problema que é consequente de décadas a
fio de negligência e descaso, não há medidas
drásticas que possam surtir efeitos imediatos.
Em 1991, técnicos e estagiários da Secretaria do
Bem Estar Social e das entidades que desenvolviam
trabalhos junto à população de rua realizaram o que
se denominou de “levantamento exploratório”.
Trata-se de uma contagem censitária executada sem
princípios metodológicos muito avançados e que se
valeu muito mais da iniciativa e coragem daqueles
que se dispuseram a fazê-la, uma vez que não havia
em São Paulo, quiçá no Brasil, qualquer estimativa
de quantificação da população de rua digna de
confiabilidade.
A descrição detalhada dos procedimentos utilizados
e das importantíssimas informações obtidas no
referido levantamento exploratório está contida no
livro “População de Rua – Quem é, como vive e
como é vista”, ao qual se recomenda firmemente a
leitura.
Realizado há quase duas décadas, esse trabalho de
campo resultou na contagem de 3392 pessoas
vivendo nas ruas.
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A primeira lei de atenção aos direitos da população
de rua, lei municipal 12316, foi criada em 1997 e
regulamentada tão somente em 2002, através do
decreto municipal 40232.
Nessa época, precisamente onze anos após a
realização do primeiro levantamento exploratório, o
número de pessoas vivendo nas ruas já havia
praticamente triplicado e atingia o expressivo
número de 9000, segundo o primeiro censo oficial
realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas
Econômicas – FIPE, cujos dados estatísticos foram
anunciados em 2000.
Constata-se, através das informações apresentadas,
que quando o Poder Público começou a demonstrar
alguma preocupação com relação às questões
inerentes à população de rua por meio da confecção
de dispositivos legais dirigidos a esse segmento
social, o problema já havia atingido proporções
descomunais.
Utilizando o linguajar coloquial, podemos dizer
que “o caldo já havia entornado”.
Trata-se de uma questão que permaneceu por anos
à margem da atenção do Poder Público e, nesse
exato momento, quando lhes parece algo fora de
controle e estando sob o fogo das críticas, decidem
pela implementação de medidas exageradas e
despropositadas.
Não há fórmulas milagrosas cujas propriedades
sejam capazes de lhes retirar imediatamente esse
incômodo peso que carregam sobre os ombros.
Não se reverterá em meses, tampouco em um par
de anos, um problema que se solidificou no
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transcorrer de décadas. Mentem acintosamente
aqueles que afirmam o contrário.
Há algumas ações fundamentais que podem ser
colocadas em prática prontamente e que produzirão
algum efeito a curto e médio prazo. Sua adoção,
contudo, não garantirá uma abrupta redução do
número de moradores de rua, ainda que sejam
implementadas imediatamente.
Essas ações serão eficientes no sentido de iniciar o
processo de descongestionamento gradativo dos
Centros de Acolhimento e albergues que formam a
rede sócioassistencial. Convém recordarmos que
existem hoje na cidade de São Paulo 7000 vagas de
acolhimento para 13000 moradores de rua.
Uma dessas ações, talvez a mais urgente delas,
consiste na conversão do modelo genérico aleatório de atendimento à população de rua
atualmente vigente para um modelo profiláticopragmático.
Isso significa desenvolver estratégias e propostas
de intervenção de acordo com o diagnóstico do
perfil de cada morador de rua, que poderá ser
realizado não só pelas equipes técnicas e
funcionários dos Centros de Acolhimento e
Núcleos de Serviços, como também pelos
educadores de rua.
O perfil será estabelecido através de um acurado
levantamento das informações da vida pregressa de
cada cidadão. Deverão constar em seu prontuário
informações referentes aos históricos pessoal,
profissional, familiar e de saúde e outros dados
importantes obtidos por meio da pesquisa de
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fatores como tempo de exposição às ruas, grau de
vulnerabilidade física e psíquica, comprometimento
com álcool e outras drogas, nível de aptidão e
disposição para o trabalho e existência ou ausência
de vínculos familiares.
A compilação dessas informações e o seu devido
enquadramento no perfil adequado possibilitarão às
equipes técnicas dos Núcleos de Serviços e
albergues estabelecer metas e confeccionar planos
de ações individuais a curto, médio e longo prazo.
Há um grande número de vagas dentro dos Centros
de Acolhimento e albergues atualmente ocupado
por moradores de rua pertencentes a um perfil
específico.
São cidadãos que possuem uma curta experiência
de vida nas ruas, com pouca instrução e baixa
qualificação, desempregados, subempregados ou
mesmo mal remunerados, impossibilitados de arcar
com os custos de locação e manutenção de um
imóvel e sem parentes próximos a quem possam se
socorrer.
A caracterização e a quantificação desse indivíduo
dentro do universo da população de rua é de
fundamental importância, pois diz respeito a um
perfil cujos caminhos de reintegração social e saída
das ruas podem ser encurtados, através da sua
inserção em políticas de geração de trabalho e
renda e de habitação.
A criação de leis e projetos que estimulem ou
mesmo determinem o aproveitamento dessa mão de
obra por instituições privadas e públicas seria de
grande utilidade.
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Há pouco tempo, uma iniciativa semelhante foi
implementada pelo Ministério Público tendo como
beneficiários egressos do sistema prisional. Nesse
sentido, também é fundamental a articulação do
Poder Público por meio das Secretarias Municipais
e Estaduais, afim de que seja efetivada a integração
desses cidadãos aos Programas Habitacionais.
Durante uma conversa com o presidente do
Movimento Estadual pelos Direitos da População
em Situação de Rua de São Paulo, Robson
Mendonça, tomei conhecimento que a referida
articulação entre as Secretarias Municipais de
Habitação e Assistência Social já havia sido
tramitada, mas estava esbarrando em celeumas de
cunho burocrático. Inclusive, tratava-se essa
questão de uma grande preocupação do presidente
Robson pelo conhecimento que tinha da sua
urgência para a população de rua.
O encaminhamento rotativo de moradores de rua
pertencentes a esse perfil mais autônomo liberaria
uma quantidade substancial de vagas nos Núcleos
de Serviços e albergues, que poderiam ser ocupadas
por aqueles que necessitem de intervenções mais
complexas.
Com relação a esses casos mais críticos, requeremse igualmente modificações metodológicas no seu
atendimento.
No modelo atual, os moradores de rua considerados
de difícil trato - caracterizados pelo comportamento
rebelde e pela dificuldade de ajustamento às
normas estabelecidas - são preventivamente
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afastados dos Núcleos de Serviços e Centros de
Acolhimento.
Isso decorre da incapacidade e insegurança de seus
reduzidos quadros de funcionários para lidar com
situações conflituosas geradas por esse perfil de
morador de rua mais arredio.
Desprovidos de condições de trabalho adequadas,
os educadores sociais e demais técnicos reagem
reciprocamente às ações indevidas, respondendo
intolerância com intolerância e desenvolvendo
rigorosos e excludentes mecanismos de controle
disciplinar.
A superação desses “vícios” funcionais será
propiciada por meio de duas ações distintas em
caráter, porém, igualmente imprescindíveis.
A primeira delas diz respeito à reestruturação dos
quadros profissionais dos Núcleos de Serviços,
Centros de Acolhimento e albergues, adequando-os
quantitativa e qualitativamente às reais demandas.
Essa ação não pode mais ser postergada pelas
gestões públicas.
Sua omissão e negligência ao longo dos últimos
anos com relação a essa questão empurraram
muitas Organizações Sociais literalmente para o
buraco e contribuíram diretamente para a explosão
demográfica da população de rua em São Paulo.
A segunda ação é inerente à necessidade de
submeter funcionários e quadros técnicos dos
estabelecimentos que atendem a população de rua a
uma “faxina conceitual”, através da qual seriam
varridos os resquícios e as sequelas emocionais
remanescentes do tempo em que moradores de rua
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se transformavam em desafetos pessoais em razão
dos problemas que causavam.
Esse procedimento teria como objetivos fazer os
educadores sociais baixarem a guarda e despertarlhes um olhar diferente para aquele perfil de
morador de rua mais indócil e intempestivo - um
olhar desprovido de mágoas, rancores ou
ressentimentos – levando-os a compreender que a
melhoria nas suas condições de trabalho lhe
propiciará mais tempo, tranquilidade e disposição
para notar nesse perfil de morador de rua algumas
características que a visão turva pelo calor da
emoção não o permitia.
Assim, poderá empenhar esforços na investigação
das propensões e capacidades mesmo daqueles
cidadãos ariscos e pouco receptivos, estimulando
seu desenvolvimento pessoal e buscando despertar
sentimentos há muito tempo adormecidos como
amor próprio e valorização pessoal.
A capacitação das equipes técnicas, dos educadores
e gestores dos estabelecimentos que desenvolvem
ações destinadas à população de rua também é
digna de atenção.
Além da vocação inata, esses profissionais devem
estar munidos de conhecimentos práticos e teóricos
que os possibilitem exercer suas as atividades com
eficiência e, acima de tudo, que lhes permitam
repassar esses conhecimentos aos frequentadores
dos estabelecimentos, enfatizando àqueles que
concirnam aos direitos e garantias da população de
rua.
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Para tanto, é indispensável o entendimento das
legislações específicas referentes à população de
rua em seus diversos níveis, bem como das
portarias
normativas
intersecretarias
que
direcionam as políticas de atendimento, além dos
Estatutos da Criança e do Adolescente e do Idoso e
das Leis Orgânicas de Assistência Social. Noções
de direito constitucional, penal e primeiros socorros
podem ser de grande utilidade.
Finalizando essa breve divagação, aponta-se uma
derradeira demanda que trataria de colocar o
ambiente, a dinâmica operacional e as estruturas
físicas dos Núcleos de Serviços e Centros de
Acolhimento em conformidade às novas diretrizes
dadas aos trabalhos técnicos e educacionais,
diversificando a oferta de programas, serviços e
atividades pelas quais os quadros profissionais
fortalecerão os laços que os aproximam do morador
de rua e amadurecerão como educadores sociais.
Logicamente, a viabilização de tamanha sorte de
modificações nas políticas de atendimento à
população de rua só será possível com o aumento
considerável de investimentos do Poder Público.
Talvez o desalento decorrente do expressivo
aumento do contingente e do clamor de alguns
setores da sociedade encoraje as autoridades
municipais a empenhar esforços na elaboração de
projetos específicos e políticas públicas para a
população de rua.
No que se segue, apresento relatos de uma
experiência reveladora que certamente me auxiliou
na formulação de mais alguns argumentos e me
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proporcionou, uma vez mais, a oportunidade de
aprender importantes lições com alguns seres
humanos de grande valor.
Optei, ao contrário do que fiz no trabalho anterior,
em não citar nominalmente colegas e funcionários
que estiveram ao meu lado nessa empreitada, salvo
raras e inevitáveis exceções.
Dessa forma, apenas seus protagonistas de fato
foram identificados, no caso, a população de rua.
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Profissionais
necessária
da
Miséria:
uma
introdução
Trabalhadores sociais são profissionais que
exercem atividades voltadas a minimizar ou
amenizar as consequências da pobreza e da miséria
a que um grande contingente de homens, mulheres
e crianças está submetido.
Tal fato torna os trabalhadores sociais uma
categoria única e especial.
Os trabalhadores sociais, dentre os quais me incluo,
possuem incondicionalmente uma característica
comum, com exceção dos missionários e
voluntários, não importando para qual segmento ou
em qual setor desenvolvam suas atividades,
tampouco sua função, colocação ou nível
hierárquico, seja na esfera pública ou privada:
sobrevivem da existência da pobreza e da miséria .
Quero dizer que se não houvesse pobreza e miséria
haveríamos todos de fazer qualquer outra coisa de
nossas vidas para ganharmos o pão de cada dia e
que a remuneração mensal a qual fazemos jus em
troca dos serviços prestados depende da existência
de pessoas dormindo sob marquises e alimentandose de restos, de crianças e adolescentes que
desperdiçam sua infância e energia trabalhando em
semáforos ou prostituindo-se por míseros trocados
e de famílias que vivem em barracos de madeira às
margens de córregos imundos, vitimadas pelas
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infecções que surgem do próprio esgoto que
produzem.
De fato, assim como todo e qualquer trabalhador,
os trabalhadores sociais necessitam de recursos
financeiros e materiais para arcar com seus custos
de vida. Há uma diferença entre esses dois tipos de
trabalhador, porém, que é crucial.
O produto do trabalho realizado pelo trabalhador
“convencional“ é imediato e material e suas
relações de trabalho são programáticas e
mercantilistas. Podemos tomar como exemplo um
funcionário de um banco. Ele abre contas, deposita
cheques e o seu relacionamento com as pessoas que
atende é mecânico e só pode ocorrer dentro de
horários rigorosamente estipulados.
Já o produto das ações do trabalhador social é
abstrato e circunstancial e suas relações de trabalho
são imprevisíveis e idealistas. Assim, o resultado
das ações desenvolvidas por um educador social
dependerá da ocorrência ou não de uma série de
outros fatores que independem da sua vontade – e
ainda que os ventos soprem a seu favor - é provável
que colha os frutos do seu árduo trabalho depois de
muito tempo.
Mesmo com a comunhão das forças de todos os
trabalhadores sociais, considerando que estes sejam
do tipo mais convicto e abnegado, ainda assim se
moveria uma molécula do necessário para uma
considerável redução dos níveis de pobreza
existentes atualmente. Que o entusiasmo prematuro
gerado pelos efeitos de programas sociais de
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consistência e sustentabilidade relativas não nos
tire os pés do chão.
A linha imaginária que caracteriza a condição de
miséria não poderá ser transposta pelas camadas da
sociedade que dela fazem parte apenas com a oferta
de subsídios materiais, passíveis de perderem seu
efeito num período de tempo muito curto, tão logo
sejam interrompidos.
A forma mais nefasta de manifestação da miséria
não pode ser combatida tão somente com medidas
que visem o aumento do poder de compra e de
renda da população.
Trata-se da miséria intelectual, que flagela milhões
de cidadãos renegando-os a um estado permanente
de ignorância e inconsciência, desprovendo-os da
capacidade de discernimento e transformando-os
em títeres nas mãos de oportunistas de todas as
espécies.
Tampouco me convencem os convenientes e usuais
argumentos de que a pobreza e a miséria são
inevitáveis e sempre existirão, razões pelas quais,
portanto, são imprescindíveis os trabalhadores
sociais. As doenças são inevitáveis e sempre
existirão, razões pelas quais os médicos são
imprescindíveis.
A pobreza e a miséria são produtos da ação e da
omissão do homem.
Tais afirmações não têm como objetivo criticar ou
desmerecer a categoria de trabalhadores sociais,
mesmo porque, como afirmei anteriormente, faço
parte dela. O bom trabalhador social não se sentirá
ofendido.
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A intenção é que sirvam como um sonoro alarme
embutido em nossas cabeças programado para
acionar automaticamente entre breves períodos de
tempo, estridente, incômodo, retumbando de
maneira aguda e ecoando em nossos pensamentos,
recordando-nos, independentemente de quaisquer
justificativas que se possa retrucar: sobrevivemos
da existência da pobreza e da miséria.
Assim sendo, que tal fato implique em assumirmos
de peito aberto as responsabilidades e os
compromissos exigidos para o desempenho de
nossas atribuições como trabalhadores sociais.
Que faça com que o esforço no cumprimento dos
nossos deveres seja espartano, quiçá trazendo à
tona os limites das nossas capacidades física e
intelectual e tornando indelével a busca pela
perfeição funcional.
Que nos estimule a abdicar voluntariamente de
nossas vidas pessoais quando os rigores e as
dificuldades inerentes à nossa profissão assim o
exigirem, e a nos privarmos das necessidades
humanas mais básicas como comer e dormir
quando nossas obrigações não apenas profissionais,
mas principalmente éticas e morais se fizerem
prioritárias.
Que nos impeça de aceitarmos a condição de
miséria e pobreza como algo natural e inexorável,
ajustando-nos confortavelmente a um estado de
acomodação, complacência e desinteresse.
Que fortaleça nossos corações e almas para que
trabalhemos sempre objetivando a erradicação da
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pobreza e da miséria, mesmo sabendo ser longo o
caminho a ser percorrido .
Façamos nós, trabalhadores sociais, essa reflexão e
que cada um se entenda com sua própria
consciência.
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O Núcleo de Serviços com albergue “Casa
Restaura-me”
As linhas que se seguem têm por finalidade
fornecer ao leitor, de forma muito breve, algumas
referências descritivas do local que serviu como
“palco” para os acontecimentos narrados nessa obra
e, através delas, dar asas à sua imaginação.
Anteriormente, porém, é importante esclarecer que
o Núcleo de Serviços e o albergue eram dois tipos
de atendimento distintos prestados à população de
rua num mesmo espaço físico, no caso, a Casa
Restaura-me. O que diferenciava um atendimento
do outro eram suas características funcionais.
O Núcleo de Serviços abrangia as atividades e os
serviços oferecidos durante o dia, enquanto no
albergue ocorria o atendimento noturno.
O imóvel no qual funciona a Casa Restaura-me era
uma antiga fábrica da região do Brás e se encontra
na Rua Monsenhor de Andrade, próximo à Rua
Oriente.
A permissão de uso do prédio e do seu terreno foi
concedida à Organização Aliança de Misericórdia
no ano de 2002 pelo Governo do Estado de São
Paulo, em regime de comodato.
As dimensões do lugar são descomunais, medindo
aproximadamente 3.500 metros quadrados.
Em frente ao portão principal da Casa Restaura-me
há uma pequena e arborizada praça, contornada por
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tijolos caiados que se fundem às poucas residências
de alvenaria envelhecida que restaram.
Espremida entre o muro que separa a rua da linha
férrea, essa paisagem bucólica, distante poucos
metros de um dos maiores centros comerciais de
São Paulo, concede àquele trecho o aspecto de uma
típica vila das primeiras décadas do século passado.
Ao lado do portão principal há outro grande portão
de ferro - que permite o acesso para os fundos do
prédio e também para uma fábrica de brinquedos,
através de uma viela estreita coberta por
paralelepípedos. Esse local também serve como
estacionamento para os funcionários da fábrica e,
eventualmente, para visitantes da Casa Restaurame.
Entrando pelo portão principal, à esquerda, a
imponente e suntuosa construção de tijolos com
grandes janelas quadradas chama atenção.
Do lado direito, se segue o muro que separa a linha
férrea, cuja altura, embora considerável, não
evitava que os frequentadores daquele lugar se
arriscassem a escalá-lo.
Continuando pelo chão de terra batida do jardim,
depara-se na metade do terreno com uma frondosa
goiabeira plantada rente ao muro, e no seu final,
com os varais nos quais os frequentadores
estendiam suas roupas após lavá-las nos tanques.
Há vários bancos feitos de pedras sabão coladas
com cimento fincados na terra por toda extensão do
jardim. Os mais disputados para um descanso após
o almoço eram os localizados próximos à goiabeira,
pela sombra refrescante que a árvore oferece .
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No limite do terreno, à esquerda, há uma rampa
com corrimãos de ferro que dá acesso a um longo e
estreito corredor localizado entre o prédio e o
jardim, elevado cerca de um metro em relação ao
nível do chão de terra e que acompanha o terreno
paralelamente.
Seguindo pelo corredor, passa-se pelos tanques de
lavar roupa dispostos bem em frente à goiabeira e
no seu final, encontram-se a quadra de esportes, os
banheiros e os escritórios de atendimento social e
psicológico.
Subindo a rampa, logo se tem acesso à entrada do
refeitório. Espalhadas entre as vigas de sustentação
e dispostas verticalmente, as mesas do refeitório
ocupam toda a sua extensão e por ele se tem acesso
à cozinha, através de uma porta –balcão, e à parte
inferior do prédio por uma daquelas portas que
abrem e fecham para os dois lados.
Na parte inferior, pela qual se chega descendo uma
rampa sinuosa, ficam o grande salão de eventos, a
capela, a sala a qual eu ocupava e também a sala
dos funcionários.
Há também na parte inferior uma porta corrediça
que dá acesso à viela de paralelepípedos lateral.
Essa porta era utilizada mais frequentemente por
entregadores e carteiros e vivia quebrada devido ao
seu peso. As travas enferrujadas de sua fechadura
permitiam que apenas alguns poucos funcionários,
dentre os quais eu não estava incluído, tivessem
habilidade para destrancá-la.
Subindo de volta ao refeitório, na sua outra
extremidade e quase em frente à porta que leva ao
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jardim e ao portão principal, ficam a biblioteca e a
sala de atividades.
Ao lado da biblioteca há uma pequena passagem
que dá em outra rampa, ainda mais sinuosa, pela
qual se pode subir ao último pavimento do prédio,
local onde foram instaladas as camas do albergue e
onde ocorriam também as atividades da oficina de
artes.
A existência de tantos corredores, portões, salas e
rampas em nenhum momento me causou sensação
de enclausuramento.
Apesar da frieza que a imensidão do local possa
denotar, entre seus muros e paredes havia uma
quantidade incomensurável de sentimentos diversos
que permeavam sua atmosfera e de calor humano
que emanava das pessoas que a frequentavam.
Havia dias em que era possível se respirar e sentir
uma paz reconfortante como se estivéssemos
envoltos por uma luz de brilho intenso e inspirador.
Em outros dias, o acúmulo de energias negativas
tornava o ambiente denso e pesado, fazendo com
que sentíssemos falta da luz e rogássemos para que
retornasse.
É um lugar onde apenas um elemento se fazia
incondicional e permanentemente presente, não
importando as circunstâncias : a vida.
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Juventude Perdida
A falta de perspectivas aliada ao desejo natural de
possuir roupas, relógios e outros artigos conduzem
muitos jovens moradores de rua à prática habitual
de delitos, na maioria das vezes furtos, roubos e
tráfico de entorpecentes.
Muito frequentemente, eu recebia visitas em meu
escritório de jovens moradores de rua, homens e
mulheres, solicitando que eu confeccionasse
currículos profissionais para que distribuíssem nas
empresas e lojas da região.
Apesar de não me custar nada dar atenção aos tais
pedidos, muito pelo contrário, sentia prazer em
fazê-lo ao passo que percebia se tratar de uma boa
iniciativa, elaborar esses currículos era tarefa árdua
devido à ausência de informações que pudessem
ser anexadas aos documentos.
A grande maioria dos jovens que me pedia ajuda
não havia atingido sequer níveis elementares de
escolaridade, não possuía formação, especialização
ou prática em nenhum ramo específico, tampouco
registros de experiências profissionais anteriores.
Em posse de dados tão evasivos, era necessário que
eu preenchesse os currículos com informações
totalmente subjetivas, para que não lhes devolvesse
folhas em branco e jogasse um balde de água fria
em seu entusiasmo.
26
Ao mesmo tempo, tal situação conduzia a uma
imediata e inexorável reflexão.
O que poderia vislumbrar para o seu futuro esse
contingente de jovens moradores de rua que, além
dessa gama de circunstâncias comprometedoras
que limitava seu acesso ao mercado de trabalho,
estava desprovido de apoio familiar e, em muitos
casos, já sofria de complicações físicas e distúrbios
de comportamento decorrentes da exposição às ruas.
As opções restringiam- se a trabalhos exploratórios
eventualmente oferecidos por pulhas e oportunistas,
nos quais os garotos eram submetidos a jornadas
exaustivas, remunerações irrisórias, condições de
trabalho precárias e inobservância total de direitos.
Nesse contexto, as chances de se deixarem seduzir
pelas tentações e facilidades das ações ilícitas eram
muito grandes.
No caso das jovens mulheres de rua, na maioria das
vezes, a participação em atividades ilícitas era
indireta, ao passo que muitas delas eram amigadas
com aqueles que praticavam delitos.
Salvo exceções, não se envolviam na execução das
ações, razão pela qual a ocorrência de prisões
envolvendo jovens mulheres era verificada com
uma frequência muito menor.
A preocupação com o público feminino era de
outra natureza, contudo, não menos grave.
A incidência de adolescentes e jovens mulheres de
rua grávidas era assustadora e alarmante.
Durante os meses em que permaneci trabalhando
naquele estabelecimento pude acompanhar o início
da gravidez, o período de gestação e o nascimento
27
dos bebês de dezenas de mulheres que, de tão
imaturas, mais se pareciam crianças.
Muitas pessoas atribuíam a ocorrência desse fato à
promiscuidade e outras falhas de caráter das
meninas e jovens mulheres de rua.
Certa vez, perguntei a uma jovem e bonita
moradora de rua a razão de suas constantes trocas
de namorado e de nunca tê-la visto dormindo
desacompanhada na rua. Sua resposta me colocou
no meu devido lugar :
- Mulher que dorme ou vive sozinha na rua acorda
de manhã pelada e suja de sangue.
Em que pesassem as dramáticas razões que
estimulavam as jovens a procurarem companhia
nas ruas, o fato é que a grande maioria delas era
completamente inconsciente com relação ao uso de
métodos contraceptivos e às consequências de
trazer uma vida ao mundo nas condições em que se
encontravam.
As enfermeiras da Secretaria Municipal de Saúde
que atendiam nos Núcleos de Serviços e albergues
eram obrigadas a realizar um verdadeiro trabalho
detetivesco na intenção não apenas de identificar,
mas principalmente monitorar e acompanhar as
gestantes adolescentes.
A maioria das jovens manifestava total desinteresse
em realizar os exames de rotina e não comparecia
às consultas previamente marcadas.
A única forma de poupar as agentes de saúde de
passarem o restante de suas carreiras perseguindo
jovens gestantes dentro dos estabelecimentos de
atendimento à população de rua, ou ao menos
28
tornar seu trabalho menos desgastante, seria por
meio da adoção de medidas preventivas.
Uma das ações seria a mobilização de esforços dos
próprios agentes de saúde - e também das equipes
técnicas dos locais destinados ao atendimento da
população de rua - com a finalidade de divulgar
informações inerentes à sexualidade e a métodos
contraceptivos.
Fizemos uma tentativa de implementar um evento
com essa finalidade dentro do nosso Núcleo de
Serviços.
Tratava-se de um desafio, pois as assistentes sociais
simplesmente não conseguiam reunir as jovens
como sempre temerosas e receosas quando o
assunto em pauta era saúde. As reuniões eram
marcadas, mas quase ninguém comparecia.
Algumas mães eram tão precoces que os bebês
mais pareciam bonecas em seus braços. Tratava-se
de crianças cuidando de crianças.
O jovem de rua, assim como todo jovem, acha que
tem a vida inteira à sua frente e se preocupa quase
que unicamente com seus interesses imediatos, que
na grande maioria das vezes se caracterizam por
formas diversas de obter prazer e diversão.
Como estão afastados de suas famílias, a quem
caberia a devida orientação, ficam livres para
viverem suas vidas como acharem conveniente.
Quando alertado sobre a necessidade de pensar no
futuro, incentivado a retomar os estudos ou integrar
cursos de formação profissional, o jovem de rua,
salvo raras exceções, reage com zombaria, descaso
e ironia. Despreza completamente a opinião dos
29
educadores e assistentes sociais dos Núcleos de
Serviços.
Essa rebeldia, peculiar ao comportamento juvenil,
muitas vezes desestimula profissionais a investirem
tempo e recursos pedagógicos no seu atendimento,
por se sentirem menosprezados e por acharem que
seus esforços serão inócuos.
Contribui para aumentar o desinteresse das equipes
técnicas o fato dos jovens de rua serem muito mais
independentes comparativamente aos moradores de
rua mais idosos ou mais debilitados.
Essa condição lhes dá a sensação de autosuficiência.
Acreditam que não têm nada a perder e que não
necessitam do apoio institucional oferecido pelo
Núcleo de Serviços.
Isso os torna arrogantes e corrobora ainda mais
para o afastamento dos educadores sociais.
Maio de 2009. Ao iniciarmos os trabalhos no
Núcleo de Serviços com albergue “Casa Restaurame” foi necessário que eu me submetesse a um
breve período observatório, através do qual eu
procurava tomar contato com a realidade daquele
lugar.
Confesso que, nos primeiros dias, parecia um índio
recém chegado a uma metrópole tamanha era a
minha dificuldade em me localizar dentro de um
espaço físico tão imenso e repleto de acessos e
passagens por todos os lados.
Minha preocupação principal, no entanto, era tentar
me familiarizar o mais rapidamente possível com
seus frequentadores e com os funcionários que já
trabalhavam ali há algum tempo.
30
Para isso, era imprescindível que eu circulasse e
tentasse gravar os rostos dos mais assíduos, escutar
suas conversas e puxar papo ocasionalmente.
No meu quarto dia de trabalho, quando ainda me
esforçava em desbravar os intermináveis caminhos
daquele lugar, conheci um rapaz cujo nome era
Irandi.
Quase ninguém o conhecia ou o chamava por esse
nome, por ser difícil de memorizar e confesso que
eu mesmo tive lapsos que me impediram de
lembrá-lo em alguns momentos.
De fato, eu evitava me dirigir aos moradores de rua
chamando-os pelos apelidos.
Pensava que se ninguém os chamasse pelo
verdadeiro nome talvez um dia até esquecessem
que tinham um.
No caso de Irandí, contudo, não houve jeito e fui
obrigado a me juntar àqueles que o chamavam pelo
apelido de Tarú.
Tarú era um jovem de vinte e um anos, negro e
fisicamente muito forte.
Sua feição delicada e quase pueril contrastava com
seu porte avantajado. De fala mansa e sorriso fácil,
Tarú me foi apresentado quando solicitei a um
funcionário antigo que identificasse, dentre os
moradores de rua que frequentavam aquele
estabelecimento, algum que tivesse habilidade para
plantar no jardim algumas mudas que havíamos
recebido como doação.
Tarú se colocava incondicionalmente à disposição
para ajudar da forma que pudesse dentro do Núcleo
de Serviços e, além da jardinagem, possuía muitas
31
outras aptidões como marcenaria, desenho e até
boxe, cujo desempenho em campeonatos juvenis
lhe rendeu alguma fama no circuito amador desse
esporte.
Nunca houve qualquer reclamação por parte dos
funcionários acerca de seu comportamento.
Muito pelo contrário, era elogiado e estimado por
todos. Apesar do seu tamanho, jamais se envolvera
em qualquer tipo de briga ou confusão.
No entanto, Tarú vivia na rua e estava sujeito a
suas más influências como o uso de entorpecentes,
mas mesmo esses pequenos “deslizes“ ocorriam
sempre longe do alcance de nossas vistas. Seu
respeito pelos funcionários era exemplar.
Cruzei com Tarú na Rua Monsenhor de Andrade
certa ocasião, quando fazia o meu caminho matinal
em direção ao Núcleo de Serviços.
Acompanhado de uma garota ele vinha a passos
lentos e arrastados, completamente distraído. Notei
que ele se preparava para acender um baseado.
Quando me viu, seu rosto escuro empalideceu.
Minha reação não foi de desaprovação e sim de
espanto, uma vez que jamais o havia visto fumando
sequer cigarros comuns.
Tarú ficou demasiadamente constrangido. Guardou
o cigarro de maconha no bolso, balbuciou algo que
não consegui compreender e antes que eu pudesse
dizer qualquer coisa, se desvencilhou e continuou a
andar de cabeça baixa.
Segui meu caminho e instintivamente olhei para
trás, sem que essa ação tivesse alguma motivação
maior. Tarú havia parado na esquina da rua Oriente,
32
em frente a algumas barracas de camelôs. Parecia
desolado.
Balançava os braços e discutia com a garota, que
tentava a todo custo consolá-lo. Não acendeu o
baseado. Ficou alguns dias sem conseguir me
encarar até que percebeu que eu o culpava muito
menos do que ele próprio.
Tarú era próximo a um casal de moradores de rua
com quem dividia a entrada lateral do Núcleo de
Serviços, que dava acesso ao estacionamento e aos
fundos.
Aquele ponto de permanência era considerado
privilegiado pelo pessoal da rua, pois o grande
portão de ferro ficava exatamente entre duas
paredes nas quais era possível escorar as tábuas dos
barracos, tornando-os mais firmes e protegidos da
chuva.
Por ser um local menos visível, propiciava também
um pouco mais de privacidade e segurança aos
casais.
Seus poucos metros quadrados comportavam no
máximo seis ou sete pessoas, pois a parte frontal do
portão deveria permanecer desobstruída para o
acesso dos caminhões da fábrica de brinquedos.
Durante os seis meses em que trabalhei na Casa
Restaura-me vários grupos diferentes se alternaram
no “comando” daquele disputado espaço e em
todos os grupos havia sempre um líder. Ninguém se
instalava ali sem o consentimento do líder.
Naquele momento, quem ditava as regras ali era
justamente o melhor amigo de Tarú, um rapaz cujo
apelido era Carioca.
33
Tarú, Carioca e sua esposa Fabiana me procuraram
certa ocasião para me avisar que estavam deixando
a rua.Haviam conseguido alugar uma pequena casa
no Parque São Rafael, bairro periférico situado nos
confins da Zona Leste.
Embora as circunstâncias que possibilitaram a
efetivação da negociação imobiliária fossem
desconhecidas e de certa forma até suspeitas, uma
vez que nenhum dos três possuía trabalho ou renda
fixa, me comprometi a ajudá-los, disponibilizando
a perua Kombi da Organização para o transporte
dos seus pertences até a casa e doando alguns
utensílios para iniciarem a nova vida como um
bujão de gás e uma cesta básica. Eram pessoas por
quem nutríamos afeto e amizade e que se
esforçavam em busca de melhores condições de
vida, lutando com as armas que dispunham para
não se entregarem às mazelas da rua.
A situação do casal era mais crítica. Dificilmente
conseguiriam um trabalho formal, pois já não eram
jovens como Tarú e possuíam poucas qualificações.
Depois que se mudaram, raramente apareciam, em
razão da longínqua distância que separava o Núcleo
de Serviços do seu local de residência.
No entanto, fui surpreendido numa tarde pela visita
inesperada de Tarú que interceptou abruptamente
meu trajeto no momento em que eu me deslocava
da parte inferior do estabelecimento, onde ficavam
os escritórios e o salão de eventos, para o
pavimento superior.
34
Percebi que ele estava um tanto quanto ansioso e
seu olhar, sempre sereno, refletia dessa vez alguma
angústia.
Timidamente, Tarú cogitou a possibilidade de eu
lhe arrumar um emprego.
Pego de supetão e sem entender muito bem o que
acontecia, respondi que o quadro funcional do qual
dispunha para a execução dos trabalhos estava
completo naquele momento, o que de fato era
verdade.
Propus que ele trouxesse um currículo ou que
redigíssemos um naquela mesma hora, para que eu
pudesse tratar daquele assunto com outras pessoas
e em outros departamentos.
Tarú me respondeu que não poderia esperar, pois
necessitava resolver algumas questões pessoais as
quais não quis revelar.
Diante de sua inquietação e ansioso por ajudá-lo de
alguma forma, sugeri que fosse a uma serralheria
localizada numa rua próxima. Alguns moradores de
rua haviam comentado comigo dias atrás que
faziam trabalhos temporários nesse local, pelos
quais eram remunerados semanalmente.
Na verdade, era uma péssima sugestão. Tratava-se
logicamente de um subemprego.
O proprietário da serralheria, um chinês ou coreano
que sequer falava português, utilizava astutamente
da mão de obra de moradores de rua para burlar de
todas as maneiras possíveis as leis trabalhistas.
Reiterei a Tarú que esperasse alguns dias até que se
pudesse pensar em coisa melhor, mas não consegui
convencê-lo. Despediu-se rapidamente e disparou a
35
correr pelo salão dizendo que procuraria pela tal
serralheria.
Permaneci um bom período de tempo tentando
imaginar em que tipo de enrascada se metera
aquele rapaz.
Veio à minha cabeça uma série de possibilidades,
algumas mais outras menos preocupantes.
Talvez ele necessitasse de dinheiro para pagar sua
parte no aluguel da casa que dividia com Carioca e
Fabiana, o que era perfeitamente possível.
Ou poderia ter adquirido dívidas com traficantes no
Parque São Rafael.
Nesse caso, seria um desastre. De qualquer forma,
conhecendo seu temperamento e sua personalidade,
não esperava que Tarú se precipitasse a ponto de
cometer uma loucura.
No final daquela tarde, um grupo de moradores de
rua esbaforidos veio me comunicar que Tarú havia
acabado de ser preso com outras três ou quatro
pessoas. Haviam sido flagrados furtando peças de
roupa em alguma loja da rua Oriente. Quando me
relataram os nomes dos outros rapazes detidos em
companhia de Tarú, não me surpreendi.
Eram todos jovens moradores de rua conhecidos
pela prática contumaz de delitos e que já haviam
cumprido penas anteriormente. Mas não o Tarú.
Ele não possuía antecedentes criminais, tampouco a
malícia necessária para se envolver com furtos e
roubos. Certamente havia sido insuflado pelos
demais a participar dessa malfadada campanha e
seu desespero o induziu a correr tal risco.
36
Um sentimento de culpa me tomou instantânea e
avassaladoramente.
Poderia muito bem ter previsto a possibilidade de
aquilo acontecer, uma vez que havia compartilhado
da sua agonia. Deveria a todo custo tê-lo segurado,
acalmado e persuadido de que no estado emocional
em que se encontrava não conseguiria resolver
problema algum.
Na manhã seguinte, havia alguém à minha espera
no portão de entrada. Era o Carioca. Estava com
alguns documentos de Tarú.
Carioca me explicou as razões da afobação de Tarú
e da sua ansiedade em conseguir um emprego.
Tarú havia arrumado uma companheira, uma
menina na verdade, com recém cumpridos 17 anos.
Vim a saber, posteriormente, que era a mesma que
o acompanhava no episódio do cigarro de maconha
ocorrido algum tempo antes. Segundo informações
do Carioca, a menina pertencia a uma família de
boa situação financeira e havia fugido de casa para
viver com Tarú no Parque São Rafael. O caso era
que a jovem aventureira, antes de partir, furtou os
cartões de crédito da mãe e utilizou diversas vezes
em supermercados e lojas de departamento.
Carioca me disse que ele e sua mulher suspeitavam
que algo estivesse errado, pois a menina chegava a
casa diariamente carregada de compras e coisas.
No entanto, sua falta de experiência no ramo das
contravenções a delatou. Inconformados com sua
rebeldia, seus pais passaram a proferir ameaças a
ela e a Tarú indicando que denunciariam os dois à
37
polícia caso os gastos realizados com os cartões
surrupiados não fossem imediatamente ressarcidos.
Esse foi o motivo que levou Tarú a suplicar por um
emprego. Sabia que, indubitavelmente, a única
pessoa que acabaria encrencada naquela história
seria ele.
Um ato irresponsável de dois jovens imaturos pode
ter sido a causa de Tarú perder preciosos anos de
sua vida na cadeia, uma vez que os artigos penais
aos quais ele e os demais foram enquadrados eram
extremamente graves.
O grupo estava sendo acusado de furto qualificado,
formação de quadrilha e corrupção de menores (um
dos rapazes detidos era adolescente).
Foram encaminhados para o Centro de Detenção
Provisória, em Pinheiros.
Carioca, visivelmente abatido e preocupado,
naquele dia não ficou nem pra almoçar. Agora
corria o risco de voltar para rua, pois contava com a
contribuição de Tarú e também da garota para
conseguir custear o aluguel. Foi cuidar da vida e
tentar encontrar novas pessoas com quem pudesse
dividir os 300 reais mensais.
Nunca mais vi Tarú. Como muitos outros jovens de
rua com quem convivi naquele lugar, Tarú era um
currículo em branco exatamente como os que eram
entregues em minhas mãos. Nada constava em seu
passado e provavelmente nada constará em seu
futuro.
Os jovens de rua são como um talho largo e fundo,
cheio até a boca de energia e esperança e que é
desdenhosamente despejado no chão.
38
Apesar da pouca idade, a maioria desses rapazes e
moças não pode cultivar esperanças de dias
melhores, uma vez que são construídas mais
penitenciárias para mantê-los longe da sociedade
do que escolas para aproximá-los dela. Tarú
sentiria na própria pele os efeitos dessa retórica
cruel.
Tive notícias dele algum tempo depois, através de
outro frequentador do nosso Núcleo de Serviços
que acabara de ganhar o benefício da liberdade
condicional e afirmou tê-lo encontrado casualmente
no Centro de Detenção Provisória. Ainda
aguardava pelo julgamento.
Passados alguns meses após a sua prisão, eu era
acometido frequentemente da nítida sensação de têlo visto andando pelo jardim do Núcleo de Serviços,
com semblante tranquilo e simpático, exatamente
como quando fomos apresentados.
Em todas essas ocasiões eu poderia jurar que era
ele. Talvez eu quisesse tanto vê-lo, que via. Apenas
eu.
39
Os durões de rua
A chamada “lei da rua“ é de conhecimento
imprescindível para todos aqueles que vivem nela,
sejam homens, mulheres, adolescentes ou crianças,
solitários ou em grupos, “novatos” ou já escaldados.
A lei da rua nada mais é do que um código de ética
e conduta estabelecido pelos próprios moradores de
rua, que “funciona“ paralelamente às normas
convencionais vigentes na sociedade e compreende
desde pequenas ações que envolvem o convívio
coletivo e o respeito entre os indivíduos, até outras
de maior potencial ofensivo.
Encontrei o psicólogo Walter Varanda, velho
companheiro de incursões às ruas, numa tarde
quente de sexta –feira em dezembro de 2007.
Sentamos nos degraus da escadaria do monumento
posicionado defronte ao prédio do Tribunal de
Alçada Civil no Pátio do Colégio, região central de
São Paulo.
Por se tratar de uma parada certa para veículos de
entidades filantrópicas que distribuem comida no
período da noite, esse é um grande e conhecido
ponto de concentração de moradores de rua.
Sem que nos déssemos conta, em poucos minutos
já estávamos em companhia de um pequeno grupo,
todos visivelmente intrigados pela presença de dois
“estranhos” que discutiam despreocupadamente.
Não resistindo à curiosidade, logo encontraram
uma brecha para se infiltrarem cautelosamente no
40
nosso bate-papo, perguntando as horas ou
mencionando o calor exagerado daquele princípio
de verão.
Superados alguns instantes de natural desconfiança
em que tentavam se certificar de que não éramos da
polícia e que não estávamos ali com más intenções,
a conversa se tornou animada.
Não demorou muito para que começassem a falar
de suas vidas e de suas histórias pessoais.
Ficava claro para nós que, a partir do momento em
que havia se quebrado aquela barreira inicial de
suspeição quanto à nossa presença, passávamos a
ser vistos e tratados como visitas. Queriam nos
deixar à vontade como se estivessem recebendo
amigos, ou melhor, a visita de alguém importante
em suas casas, pois obviamente sabiam que não
éramos moradores de rua. Ofereceram-nos aquilo
que estavam comendo e bebendo e passaram a
controlar seus gestos e atitudes, o que denotava o
empenho de esforço em nos causar boa impressão.
Em um determinado momento, quando nos
encontrávamos ali já há um par de horas, um dos
moradores de rua imprudentemente infringiu a lei
da rua.
Ele se encontrava sentado nos degraus superiores
da escadaria do monumento - ao passo que
estávamos exatamente ao seu lado, na mesma altura.
O rapaz, logicamente desprovido de sobriedade e
maiores pudores em razão das incontáveis doses de
cachaça que havia ingerido, urinou pela abertura do
calção da posição em que estava e o líquido
escorreu de forma abundante escadaria abaixo.
41
A urina não atingiu ninguém - uma vez que todos
se encontravam praticamente no mesmo nível e
razoavelmente afastados - e tampouco eu e Walter
nos sentimos constrangidos ou ofendidos com a
ação.
A lei da rua, no entanto, é implacável e para os
demais moradores de rua ali presentes a atitude foi
inaceitável.
Na condição de “visitas”, não poderíamos ser
submetidos àquilo e a reação foi imediata.
Um deles, que aparentava ser um pouco mais velho
que os demais e provavelmente exercia alguma
liderança sobre o grupo, agarrou o “transgressor”
pela camisa e o arrastou violentamente pelos
degraus, de forma que todo o líquido impregnasse
em sua roupa, ensopando-a completamente.
Talvez a repressão tivesse sido menor se não
estivéssemos ali. Ou, por outro lado, talvez tivesse
sido maior. O rapaz que foi arrastado não ousou
esboçar qualquer revide. Já estava demasiadamente
embriagado e, acima de tudo, sabia que havia
infringido o código de conduta da rua.
O líder do grupo nos olhava como um pai que
acabara de corrigir um filho que quebrou uma
vidraça ou cometera uma travessura qualquer, num
misto de orgulho e satisfação.
Desconcertados, Eu e Walter tentávamos agir
naturalmente, mas sabíamos que de forma alguma
poderíamos demonstrar qualquer sinal de
solidariedade ao “infrator”.
O relato acima diz respeito a uma reação motivada
por um ato impróprio, quase involuntário,
42
impulsionado muito mais pela inconsciência e falta
de autocontrole decorrentes do consumo exagerado
da bebida - e que não pode ser caracterizado de
forma alguma como uma obscenidade.
Tratava-se, portanto, de uma contravenção banal às
leis da rua, cuja retaliação se devia à necessidade
da manutenção de uma ordem mínima em um
espaço onde se encontravam reunidos vários
moradores de rua. No entanto, as consequências
àqueles que infringem a lei da rua vão se tornando
mais graves à medida que a ação cometida também
se torna mais grave.
Junho de 2009, aproximadamente 11 horas da
manhã.
De dentro do refeitório, percebi um corre-corre no
jardim do Núcleo de Serviços. No exato momento
em que eu cruzava a porta que dava acesso ao
jardim, um vulto irrompeu refeitório adentro em
desabalada carreira, quase me derrubando.
Olhei para trás e vi a figura de um jovem branco
que eu nunca havia notado por ali, aos gritos,
apavorado.
Com um movimento rápido, quase um reflexo,
fechei a porta do refeitório ao perceber que um
grupo de quinze ou vinte moradores de rua estava
preparado para dar continuidade àquela impiedosa
perseguição. Não tinham boas intenções, uma vez
que a maioria carregava pedaços de pau e pedras
nas mãos.
Bloqueando a porta com o corpo e impedindo que a
pequena multidão invadisse o refeitório, por um
pequeno vão que me possibilitava ver apenas parte
43
de seus semblantes eu lhes perguntei a razão
daquele encalço frenético.
Ensandecidos, esbravejavam todos ao mesmo
tempo, com olhos e bocas escancarados :
- O cara é “Jack !“ , o cara é “Jack !”, você vai
“passar pano” pro cara !?
Jack é uma expressão utilizada pelo pessoal da rua
para identificar estupradores. Provavelmente essa
gíria faça uma alusão ou comparação vulgar ao
famoso criminoso e tema de filmes e livros “Jack, o
estripador”.
Foram necessários alguns minutos até que os
ânimos se acalmassem minimamente e as pessoas
me explicassem o que de fato estava ocorrendo.
Muito atabalhoadamente e usando mais gestos do
que palavras, o grupo se esforçava em me fazer
entender que aquele rapaz a quem perseguiam
havia tentado se aproveitar de duas mulheres na
noite anterior enquanto dormiam em frente à
Catedral da Sé.
As mulheres o reconheceram dentro do Núcleo de
Serviços enquanto ele lavava suas roupas nos
tanques do jardim e o delataram aos demais
frequentadores, que prontamente se mobilizaram no
intuito de submeterem-no a um corretivo.
A lei da rua não requer muitos argumentos ou
evidências para ser colocada em prática.
Deixei claro a todo o grupo que não poderia
permitir que cometessem tal ato dentro do Núcleo
de Serviços.
Os jovens, ainda nervosos e com pedaços de blocos
de concreto nas mãos, responderam que acatariam
44
minha orientação, mas que eu “entregasse“ o
suposto molestador para que lhe aplicassem o
devido castigo na rua .
Obviamente, um acordo dessa natureza estava fora
de cogitação. Como havia uma saída pelos fundos,
a qual o acesso era possível pelo refeitório, eu disse
aos “justiceiros” que o rapaz embrenhara fuga
durante o intervalo de tempo em que ficamos
discutindo no jardim. Exaltados, me acusavam de
ter “passado um pano“ para o “Jack”, o que
significava, segundo eles, que eu havia sido
conivente com a fuga do sentenciado.
Após mais alguns momentos de reclamações e
caras amarradas decidimos por liberar o almoço
mais cedo e, dessa forma, acalmar os ânimos do
pessoal.
Na verdade, o rapaz não havia conseguido escapar,
pois a rua já estava vigiada.
Sem que ninguém notasse, ficou escondido nos
banheiros da quadra de esportes por um período de
mais de três horas. Quando veio pedir ajuda, já
quase no final da tarde, estava tremendo de frio e
medo e tinha as roupas encharcadas de suor.
Sem termos condições ou subsídios para imputarlhe qualquer culpa, mesmo porque não se pretendia
tomar qualquer atitude nesse sentido e temendo que
seus algozes dessem conta de sua presença, numa
ação digna de filme policial rapidamente
embarcamos o rapaz na nossa Kombi e o motorista
foi orientado a deixá-lo em local seguro, bem
distante dali. Foram providenciadas roupas secas
para que se trocasse no veículo. Saiu abaixado
45
como um verdadeiro fugitivo. Culpado ou não,
também era conhecedor da lei da rua e sabia do
risco que corria. Nunca mais pôs os pés ali.
Não há qualquer exagero nos acontecimentos
narrados. Simplesmente mostram o quanto a vida
na rua é de fato violenta e que nela impera a lei do
mais forte.
Não se trata de afirmar que as pessoas da rua são
violentas ou agressivas, e sim, o meio em que
vivem.
A vida nas ruas, assim como a vida de uma forma
geral no modelo social vigente, é permeada
permanentemente por uma competição voraz e
impiedosa.
As “pessoas comuns“ digladiam–se cotidianamente
por cargos e promoções, celulares sofisticados e até
vagas de estacionamento em supermercados.
Já no universo da população de rua as disputas
mais acirradas são por território, mulheres (ou
homens) e às vezes drogas. Água também é artigo
de luxo na rua. A possibilidade de um morador de
rua passar fome é muito menor do que a de passar
sede. Muitas organizações e grupos de voluntários
se mobilizam e realizam caravanas para distribuir
comida nas ruas. Mas quase ninguém distribui água.
A água era uma forte razão para que muitos
moradores de rua do centro da cidade se dirigissem
diariamente ao nosso Núcleo de Serviços, pois
podiam encher à vontade suas garrafas de plástico
com a água dos tanques dispostos no jardim.
Outro fato comum às vidas tanto das pessoas que
moram na rua como das que não moram é a
46
banalização de pequenas transgressões, usualmente
cometidas para a obtenção de algum benefício
pessoal.
A forma como são percebidas pela sociedade as
transgressões eventualmente cometidas por aquele
que mora na rua e pelo “cidadão de bem”, no
entanto, são bastante distintas.
O morador de rua que retira fios de cobre
pendurados em postes para vender em um ferro
velho e conseguir alguns trocados, se tiver má sorte
e for apanhado pela polícia, será indiciado por furto
qualificado (quando é cometido mediante escalada
ou destreza), preso e provavelmente levará alguns
cascudos.
Por outro lado, o “cidadão de bem” que foi
reprovado diversas e reiteradas vezes em um exame
que tem por finalidade avaliar sua aptidão para
dirigir um veículo automotor e que paga pra
conseguir retirar sua carteira de habilitação utilizando oportunamente as brechas encontradas
num sistema de administração pública corrompido permanecerá incólume, completamente à sombra da
lei.
A necessidade de se viver num meio violento
requer o desenvolvimento de estratégias.
Nesse contexto, a realidade da rua pode compelir o
indivíduo a interpretar um personagem ou
desempenhar um papel, através dos quais ele
deverá transmitir uma imagem dura, intimidatória e
que lhe garanta o respeito e a sobrevivência na rua.
A manutenção em tempo integral dessa postura
rígida exige muitas vezes que as emoções sejam
47
engolidas a seco. O morador de rua deve esconder
no lugar mais profundo da sua alma todos os
sentimentos que possam desencadear a exposição
das suas fragilidades e tristezas.
Por essa razão, os “durões“ das ruas raramente
compartilham suas amarguras com companheiros
de rua.
Também não falam sobre seus sofrimentos, a
saudade da família e do passado, pois tal ação
invariavelmente faz com que derrubem as máscaras
e vertam incontidas lágrimas, colocando em cheque
toda a sua valentia. O álcool também tem esse
efeito “libertador“ - por isso os durões evitam o
exagero, embora circunstancialmente possa ocorrer
nas comemorações de aniversários, despedidas de
parceiros de rua e desilusões amorosas.
Os durões de rua geralmente são jovens, gozam de
boa saúde e acumulam alguns anos de vivência e
experiência nas ruas. Passagens pelo sistema
prisional e por facções criminosas como P.C.C e
Comando Vermelho somam pontos ao currículo.
Apresentam características peculiares retratadas
pela manutenção quase que permanente de uma
expressão carrancuda e um ar empertigado, pelo
uso de correntes, pulseiras e outros adereços, por
um jeito de andar gingado e pelo hábito de manter
os braços cruzados de uma maneira que as mãos
ficam presas às axilas, formando um “w” sobre o
peito.
Os durões de rua costumam se utilizar apenas dos
itens básicos dos Núcleos de Serviços como
alimentação, banho e lavagem de roupa e muito
48
raramente dormem em albergues, salvo motivo de
força maior como ameaças e rixas.
Não se interessam por qualquer outra atividade seja
cultural, esportiva ou lúdica, ao passo que possuem
alguma fonte de renda que é proveniente de
pequenos bicos como guardar e lavar carros nas
ruas, mas que podem eventualmente extrapolar
para ações ilícitas como o trafico de entorpecentes,
furtos e roubos.
Por conta de sua natureza intempestiva, indomável
e em alguns momentos agressiva, os durões de rua
são abominados pelos funcionários e gestores da
maioria dos Núcleos e Centros de Serviços e
também dos albergues destinados à população de
rua. Isso ocorre por duas razões diferentes, porém
associadas.
São indivíduos que possuem fichas intermináveis
de transgressões disciplinares praticadas dentro dos
estabelecimentos como desacatar funcionários e
desrespeitar normas de funcionamento.
Os Núcleos e Centros de Serviços, em razão da
defasagem funcional ocasionada pelo restrito e
inadequado quadro de recursos humanos do qual
dispõem, não conseguem fazer frente às ações
indevidas cometidas pelos durões de rua e não
conseguem, mesmo mobilizando integralmente
seus escassos efetivos, mantê-los sob controle e
fazê-los cumprir as normas de convivência e de
utilização dos serviços.
A solução comumente colocada em prática como
pronta resposta às ocorrências de ordem disciplinar
49
é vetar sumariamente a entrada de seus causadores
por tempo indeterminado.
Nem sempre os durões de rua são pessoas do sexo
masculino. Existem também as “duronas de rua”.
Julho de 2009. Eu estava no refeitório quando, pela
primeira vez, pus meus olhos sobre Neuza.
O horário de almoço era o ponto crítico do nosso
dia, pois aglomerava sob um mesmo teto uma
quantidade muito grande de moradores de rua e os
tumultos eram inevitáveis.
Logo quando entrou, Neuza se fez perceber, através
de uma andar desafiador. Com a cabeça erguida e
os braços jogados para trás, arrastava os chinelos
de dedo produzindo um barulho irritante.
O modo pouco adequado como se vestia também
mereceu minha atenção. Seu figurino se resumia a
um short justíssimo e uma minúscula blusa de alças,
ostentando boa parte do seu corpo queimado pelo
sol e repleto de tatuagens rudimentares.
Como de costume naquele horário, eu estava na
entrada do refeitório auxiliando nosso funcionário a
organizar a enorme fila, que seguia porta afora pelo
longo corredor lateral anexo ao jardim.
As pessoas eram autorizadas a entrar em grupos de
dez.
Assim que retirou seu prato de comida e se
acomodou, Neuza começou a se estranhar com
outro frequentador daquele Núcleo de Serviços, um
jovem rapaz que se voluntariou a nos ajudar na
dura tarefa de manter as pessoas em ordem na fila.
Apesar da maioria das mesas do refeitório estarem
desocupadas, Neuza havia escolhido a que ficava
50
exatamente em frente ao local onde o rapaz se
encontrava e o provocou durante todo o horário do
almoço, com caretas e palavrões sussurrados.
Quando percebia que eu a encarava, retribuía
olhares indiferentes, não demonstrando qualquer
constrangimento ou preocupação quanto à minha
presença. Já tinha ouvido falar muito sobre ela, mas
jamais a havia visto “em ação“.
O fato é que Neuza estava diariamente envolvida
em brigas e discussões dentro daquele Núcleo de
Serviços e era causa de reclamações constantes dos
funcionários por não respeitar aos horários
estabelecidos para as atividades, principalmente
com relação ao banho.
Gostava de ficar sob o chuveiro escovando os
cabelos despreocupadamente, não se importando
com as manifestações de protesto proferidas por
dezenas de outras mulheres que esperavam a vez do
lado de fora.
Numa tarde qualquer, uma funcionária da equipe
me comunicou que Neuza estava já há algum
tempo aguardando para falar comigo no salão de
eventos.
Ocorreu-me subitamente que, em quase dois meses
de trabalho naquele lugar, nunca havíamos trocado
uma palavra sequer.
No dia a dia, nos observávamos a distância,
sondando e estudando cuidadosamente nossos
movimentos como em uma partida de xadrez.
A vaidade, contudo, impedia que ambos tomassem
a iniciativa da aproximação. Ela era uma espécie de
manda-chuva naquele lugar e impunha essa
51
condição pela rebeldia - eu era o gerente. Nenhum
dos dois queria dar o braço a torcer.
Fui tomado por um sentimento indefinido que
oscilava entre a curiosidade e a desconfiança.
Finalmente travaria um contato mais próximo com
aquela figura controversa, enigmática e impetuosa,
cuja fama de mau comportamento era legendária
até em outros albergues e Núcleos de Serviços para
moradores de rua da cidade.
Perguntei à funcionária qual seria o assunto em
pauta.
A moça, discretamente, preferiu não comentar,
mas percebei imediatamente que Neuza não havia
me procurado para elogiar a qualidade da comida
ou comentar como ficaram bonitos os arranjos
novos do jardim.
Naquele momento, eu estava na cozinha onde
acabara de almoçar. Com um palito crivado entre
os dentes, lentamente desci a rampa que dava
acesso ao salão de eventos na parte inferior do
Núcleo de Serviços.
Neuza me observou cruzar o salão e caminhar em
sua direção. Estava sentada em uma cadeira de
plástico que havia retirado de uma imensa pilha
amontoada junto à parede e sua postura era
explicitamente defensiva.
À medida que me aproximava percebia em seu
rosto as sobrancelhas cerradas e os olhos miúdos
que se espremiam sob as pálpebras, ficando quase
invisíveis. Seus braços e pernas cruzados eram
como um escudo de proteção e o balançar frenético
52
e repetitivo do seu pé esquerdo descalço tornava
nítida a sua ansiedade.
Joguei fora o palito e saquei outra cadeira da pilha,
sentando-me e apoiando os braços no encosto que
estava virado para frente. Uma vontade quase
irresistível de rir me acometeu naquele momento,
ao notar que parecia que protagonizávamos uma
cena num bar de filme de faroeste. Tratei então de
baixar a guarda. Cumprimentei-a de maneira
formal, apertando-lhe a mão e me ajeitei na cadeira
para ouvi-la melhor; fiz um gesto indicando que
começasse a falar. Neuza entortou levemente a
cabeça para o lado e franziu a testa. Suas palavras
começaram a sair em um tom de voz moderado,
mas que aumentava repentinamente, e então
tornava a baixar
O fato é que ela queria satisfações da minha parte,
pois ouvira comentários das bocas de outros
frequentadores segundo os quais eu havia dito que
proibiria sua entrada no Núcleo de Serviços, em
virtude dela ser portadora do vírus HIV.
Tratei de tranquilizá-la dizendo que, fosse ela
portadora ou não do vírus HIV, isso não seria
motivo para que se vetasse sua entrada e que não se
poderia cometer ali dentro um ato de explícita
discriminação.
Minha resposta instantaneamente a desarmou.
Aparentando estar aliviada, descruzou os braços e
descansou-os sobre as pernas.
Sentindo que Neuza já estava mais calma e à
vontade, aproveitei a oportunidade para lembrá-la
do seu excessivo e constante envolvimento em
53
desentendimentos com os demais frequentadores
daquele Núcleo de Serviços e também refrescar sua
memória acerca da necessidade de respeitar
minimamente as normas daquele estabelecimento,
principalmente quanto aos horários do banho, que
se tratava de uma das razões para suas assíduas e
calorosas altercações com os funcionários.
Senti que o momento se fazia propício para tocar
num assunto bastante delicado, que se referia ao
seu costume de andar com roupas exageradamente
curtas.
Solicitei, então, da forma mais polida possível, que
procurasse se vestir mais discretamente, evitando
shorts apertados, saias transparentes e decotes
exuberantes, mitigando as chances de confusões
com outras mulheres e crises de ciúmes de seu
namorado.
A razão desse pedido não envolvia qualquer falso
moralismo da minha parte, mesmo porque em dias
de calor excessivo recomendávamos o uso de
roupas mais leves. Tratava-se, na verdade, de uma
ação preventiva. Já havia presenciado ocorrências
não só envolvendo Neuza, mas também outras
mulheres dentro daquele Núcleo de Serviços, nas
quais o desfile de corpos sumariamente cobertos ou
seminus foi o estopim para discussões e brigas
generalizadas.
Falamos mais algum tempo sobre outros assuntos e,
daquele momento em diante, nossas conversas
aconteceriam cada vez mais frequentemente.
Neuza me procurava para contar fatos importantes
que aconteciam em sua vida como quando
54
fraquejava e sumia durante dias para usar drogas,
as brigas que tinha com o namorado, os encontros
com o filho mais velho de quem estava afastada há
algum tempo e os resultados de seus exames de
saúde.
Outras vezes, aparecia simplesmente por aparecer.
Queria mostrar coisas de pouca importância como a
cor do esmalte das unhas ou um rádio velho e
defeituoso que achara na rua.
Durante a noite, antes de ir embora, eu permitia que
ela acessasse a Internet pelo computador da minha
sala para que se comunicasse com o filho por
intermédio de e-mail e de comunidades virtuais.
Apesar da profunda e perceptível mudança na
maneira como Neuza me tratava, sua relação com
os demais funcionários, no entanto, não evoluía,
tampouco seu comportamento.
Seus atos de indisciplina, bem como as queixas
dos funcionários a seu respeito não deram
quaisquer sinais de trégua.
Parecia que quanto mais eu lhe dava atenção, mais
ela se sentia à vontade para agir da forma que bem
entendesse como se o fato de conversar diariamente
comigo lhe concedesse algum “status” ali dentro.
Neuza jamais concordava que tivesse cometido
qualquer uma das ações das quais era acusada e se
portava de maneiras diferentes quando estava na
minha presença. Tratava-me sempre com respeito e
cordialidade, embora não me poupasse de suas
críticas com relação ao funcionamento do serviço
quando achava oportuno fazê-lo, mas era grosseira
e petulante com a maioria da equipe.
55
Devo confessar que a personalidade forte e
irreverente de Neuza me despertava um estranho
interesse.
Queria a todo custo compreender o que motivava as
repentinas e explosivas crises nervosas que a
transfiguravam completamente, levando-a da calma
absoluta à histeria frenética em frações de segundos.
Nos dias em que estava bem ela chegava a ser uma
pessoa realmente agradável, de boa conversa e cuja
presença não era de forma alguma um fardo.
Neuza havia me confidenciado em uma de nossas
conversas que fazia visitas esporádicas a uma
médica psiquiatra em uma Unidade de Saúde
próxima dali. Confessou também que, apesar de
gostar da médica, o tratamento não lhe agradava,
pois recomendava a ingestão de remédios indicados
para o controle da ansiedade.
Neuza se recusava terminantemente a tomá-los, o
que justificava por não se achar suficientemente
“louca“ para necessitar de medicação.
Percebi em minhas perambulações pelo Núcleo de
Serviços que ela passava a maior parte do seu dia
no mais absoluto ócio, exposta ao sol no jardim,
sem qualquer ocupação senão envolver-se em
brigas.
Na ausência de outras e melhores alternativas, as
brigas se constituíam no seu único passatempo.
Neuza arrumava as próprias brigas e também se
imiscuía nas dos outros. Houve uma ocasião em
que ela saiu do Núcleo de Serviços para ir interferir
numa briga que estaria ocorrendo no Largo do
Arouche, no centro da cidade.
56
A verdade é que a grande maioria dos funcionários
não a suportava e manifestava abertamente o desejo
de vê-la longe dali.
Por conta de seu temperamento, Neuza já havia
sido expulsa de todos os Núcleos de Serviços pelos
quais já tinha passado. Não me agradava a idéia de
optar pelo jeito mais fácil de resolver as coisas e
simplesmente tocá-la dali, virar-lhe as costas sem
antes ao menos tentar ajudá-la de alguma maneira.
No entanto, não era justo que ela me tratasse de
uma forma diferente da dos demais. Exigia que
respeitasse a todos igualmente, mas não havia
como controlá-la em tempo integral.
Decidi então arriscar todas as fichas e enveredar
por outro caminho, que ia totalmente na contramão
dos anseios de todas as pessoas a quem Neuza
atormentava cotidianamente naquele Núcleo de
Serviços.
Minha idéia, muito simples por sinal, era canalizar
toda a carga de energia nela aflorada para uma
atividade que pudesse mantê-la ocupada, longe de
confusões e assim aplacar os ânimos dos
funcionários.
Como objetivos mediatos, almejava-se através da
ação que se colocaria em prática conquistar
gradativamente sua confiança e incentivá-la a lidar
de forma adequada com seu desequilíbrio
emocional, que indubitavelmente era a válvula
propulsora para todos os problemas
Confesso que, num primeiro momento, essa atitude
desencadeou certo mal estar na equipe.
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Sob efeito da mágoa pelos repetidos atos de
desrespeito cometidos por Neuza, os funcionários
esperavam de mim uma resposta mais rigorosa e
que lhes trouxesse algum conforto.
Embora eu compreendesse perfeitamente essa
reação e o sentimento de decepção que os acometia,
pensava que era necessário fazê-los perceber que
ela tinha também qualidades, as quais me era
possível enxergar pelas oportunidades que tive para
conhecê-la melhor.
O fato é que Neuza não conseguia fazer uso de suas
virtudes quando se encontrava sob a influência do
ambiente tenso e turbulento daquele Núcleo de
Serviços.
Nessa condição, estava sempre em estado de alerta
e na iminente expectativa para o surgimento
repentino de fofocas, brigas e confusões.
Todos concordavam que ela exercia uma liderança
natural sobre os demais moradores de rua. Muitas
vezes fora a porta –voz de reivindicações coletivas
ou tomara as dores daqueles a quem tinha
consideração. Era muito respeitada, inclusive pelos
mais durões do pedaço.
Neuza teria a oportunidade de treinar seu
autocontrole e perceber os malefícios que sua
ansiedade e impaciência lhe causavam, ao passo
que o desenvolvimento gradual de uma relação de
confiança poderia abrir espaço para tentarmos
convencê-la de que remédios não serviam apenas
para “loucos” e que, associados a uma ocupação
saudável e da qual gostasse, poderiam certamente
58
ajudá-la a se restabelecer pessoalmente e até
reconstruir os caminhos de sua vida.
Alguns meses antes havíamos inaugurado uma
biblioteca para usufruto da população de rua. Por
intermédio de campanhas de arrecadação e doações
foi possível reunir uma quantidade razoável de
exemplares de livros, enciclopédias, revistas e gibis.
Contudo, sem a devida fiscalização, os livros
estavam sumindo das prateleiras de maneira
incontrolável e não dispúnhamos de funcionários
suficientes para nos dar ao luxo de manter alguém
permanentemente na biblioteca.
Tal fato, que em outras circunstâncias muito
provavelmente seria encarado como um problema,
acabou se transformando na oportunidade ideal
para colocar Neuza à prova.
Num fim de tarde, solicitei a um funcionário que
avisasse Neuza para descer até meu escritório após
o jantar.
Como em todas as ocasiões em que a convidava
para conversar em minha sala, ao contrário das
vezes em que a iniciativa partia dela, chegou
receosa e questionando qual seria o motivo da
bronca que levaria daquela vez. Sorri e lhe pedi que
sentasse, o que só aumentou sua preocupação.
Para não prolongar seu sofrimento, fui direto ao
ponto e expus o meu desejo de que ela
desempenhasse um trabalho voluntário dentro do
Núcleo de Serviços e que, caso concordasse, a
incumbiria de cuidar da nossa biblioteca.
Suas atribuições principais se constituiriam em
organizar todo o acervo, controlar o acesso das
59
pessoas e zelar para que não desaparecessem livros,
revistas, gibis, enciclopédias, CDs e outros itens
que muito gentilmente haviam sido cedidos por
uma série de colaboradores.
Em contrapartida, em troca de seus préstimos, teria
prioridade para usar os serviços o que significava
que poderia fazer suas refeições e tomar banho
antes dos demais. Parecia-me um justo acordo, uma
vez que ela estaria trabalhando em benefício do
estabelecimento.
Neuza ouviu a tudo atentamente e seu olhar típico
deixava transparecer toda sua ansiedade.
Permaneceu alguns instantes em silêncio, girando
com as mãos o colar de pequenas pedras que tinha
no pescoço.
Quando se pôs a falar, trouxe à tona um sentimento
que é comum a grande maioria das pessoas que
vivem nas ruas: baixíssima autoestima.
Por trás daquela mulher quase sempre arisca, rude e
intempestiva e que impunha medo a valentões e
mesmo aos próprios funcionários daquele lugar,
havia um poço de insegurança contaminado pela
mais profunda falta de autoconfiança e valorização
pessoal.
Desanimada, Neuza respondeu que não se sentia
capaz e que não via em si própria qualidade alguma
para cumprir as tarefas que eu lhe propunha.
Acostumado com seu jeito destemido e petulante,
me surpreendi ao vê-la pela primeira vez receosa e
procurei incentivá-la.
Argumentei que, como qualquer ser humano, ela
possuía defeitos, mas também qualidades e que era
60
por enxergá-las que eu estava lhe fazendo aquela
proposta.
Neuza realmente era portadora de qualidades. Uma
delas, inclusive, seria bastante conveniente às suas
atribuições na biblioteca, que se tratava do gosto
pela leitura.
Eu já a havia observado folheando jornais antigos
na rua, precariamente iluminada pela lâmpada do
poste de eletricidade no local onde dormia, bem
como já tivera a oportunidade de constatar que ela
escrevia surpreendentemente bem, através de um
bilhete manuscrito que havia mandado alguém me
entregar e pelo qual se desculpava por alguma
confusão em que tinha se metido.
Após mais alguns momentos de hesitação, Neuza
acabou aceitando minha proposta e combinamos
que ela abriria a biblioteca ao término do café da
manhã, às 10 horas, fecharia ao meio-dia para o
almoço, reabriria às 14 horas e encerraria o
expediente às 16 horas, a tempo de tomar o seu
banho e jantar.
A carga horária seria, portanto, de quatro horas
diárias e o seu cumprimento não demandaria
esforço sobrehumano, tampouco comprometeria a
utilização dos serviços que Neuza necessitasse.
A reação da maioria dos funcionários à minha
decisão foi de absoluta incredulidade. Afirmavam,
categoricamente, que o meu arrependimento era
uma questão de tempo e que nas mãos de Neuza a
biblioteca estaria fadada a algum evento de
proporções catastróficas como um incêndio ou uma
explosão.
61
Restava-me apenas argumentar que o tempo
haveria de nos mostrar se realmente se tratava de
um devaneio da minha parte.
Neuza era uma pessoa que, aos 35 anos de idade e
no auge de sua capacidade produtiva, jamais havia
conseguido trabalhar, apesar de ter boa caligrafia e
capacidade cognitiva.
É fato que, para os padrões atuais de exigência, no
que diz respeito às qualificações e especializações
profissionais, suas habilidades não poderiam ser
consideradas de grande envergadura.
Por outro lado, seus defeitos não atingiam um nível
de gravidade tão agudo a ponto de se tornarem
causas de tantas provações.
Naquele momento de sua vida, Neuza era obrigada
a carregar em suas costas não apenas um, mas
vários estigmas como o de morar na rua e ser
portadora de uma doença incurável.
Não é possível afirmar concretamente que a difícil
condição na qual ela se encontrava era decorrente
da falta de oportunidades e não considerar as
inúmeras falhas que possa ter cometido em seu
passado.
No entanto, o fato de perceber que era merecedora
de um voto de credibilidade e confiança, apesar das
circunstancias, poderia surtir o efeito de fazê-la se
sentir, talvez pela primeira vez, útil e produtiva.
As primeiras semanas de Neuza como encarregada
da biblioteca transcorreram muito bem e foram, de
certa forma, animadoras.
Neuza cumpria rigorosamente com seus horários e
afazeres, vestia-se de maneira bastante adequada
62
usando calça comprida, prendia o cabelo e se
maquiava com esmero.
Alguns funcionários com quem ela havia tido sérias
desavenças se surpreendiam e vinham até mim
elogiá-la.
Também era uma forma de demonstrarem que
estavam ao meu lado naquela empreitada, o que me
causava um grande bem estar.
Outros, mais desconfiados, preferiam esperar mais
algum tempo antes de se manifestarem.
Várias vezes durante o dia, eu passava pela
biblioteca e a observava sentada de frente para a
porta, com os cotovelos apoiados sobre a mesa,
completamente absorta na leitura de algum livro ou
revista.
Em que pesasse o fato de que tudo aquilo era muito
recente, os objetivos prioritários e imediatos da
“contratação“ de Neuza haviam sido alcançados
com relativo êxito. A sequência de sucessivos e
diários desentendimentos entre ela e a equipe de
funcionários foi interrompida e, após um longo e
conturbado período, finalmente respirava-se um
pouco de paz naquele lugar.
Durante aquele curto espaço de tempo, Neuza se
manteve afastada das drogas - o que também se
caracterizava em um progresso. Essa informação
foi confirmada pelas únicas pessoas que conviviam
com ela fora do Núcleo de Serviços, que se
tratavam de seu namorado Fabiano e da sua filha
Alana.
Antes de se dedicar à biblioteca, ela sucumbia
constantemente às crises de abstinência e ficava
63
desaparecia por vários dias deixando –os
desesperados.
O vínculo de Neuza com o Núcleo de Serviços
estava se tornando cada vez mais intenso - o que
apesar de ser algo positivo acarretava algumas
consequências inesperadas.
Sua nova ocupação na biblioteca implicava em que
se deslocasse logo cedo pela manhã, do Largo
Francisco, onde dormia com a família, para o
Núcleo de Serviços.
O cumprimento desse trajeto demandava uma boa
caminhada que deveria ser refeita ao término do
expediente, no final da tarde.
Após algumas semanas de idas e vindas, Neuza
decidiu que queria morar mais perto do trabalho quem não quer, afinal. Empacotou seus pertences
que se resumiam a algumas sacolas de roupa, se
despediu do Largo São Francisco e partiu com sua
prole com destino ao Brás.
Instalaram-se definitivamente na entrada lateral do
nosso estabelecimento, em frente ao portão de ferro.
Como era um lugar concorrido, Neuza usou de sua
influência e amizade junto aos três casais que eram
os donos do pedaço naquele momento para
conseguir a parte que lhe cabia daquele latifúndio.
Durante muito tempo, tentei persuadi-la a ir para
um albergue, mesmo que provisoriamente, até que
se providenciasse uma alternativa melhor.
No meu esforço em convencê-la, argumentava de
forma apelativa que não cairia bem para ela, como
bibliotecária daquele estabelecimento, morar com a
família em um barraco montado na frente do portão.
64
A questão era que ela não queria dormir separada
do namorado Fabiano e, na maioria dos albergues,
não há vagas para casais, salvo aqueles que aceitem
dormir em alojamentos separados.
Não tardou muito, porém, para que Neuza nos
mostrasse que as coisas não seriam tão fáceis como
pensávamos e seu bom comportamento observado
nas primeiras semanas não era razão para maiores
comemorações.
Uma coisa que me causava estranhamento nas
oportunidades em que passava pela biblioteca era o
fato de imperar no ambiente e também entre os
frequentadores um silêncio soturno.
Mesmo considerando que o silêncio numa
biblioteca fosse algo conveniente, parecia que
havia certa tensão no ar. As pessoas mal se
olhavam e permaneciam estáticas com as caras
enfiadas nos livros, quase sem respirar.
Neuza estava sempre sentada no centro da mesa, de
forma que lhe era possível observar atentamente a
tudo e a todos.
Acabei descobrindo o motivo da excessiva quietude
na biblioteca por intermédio dos funcionários que
monitoravam as atividades. Segundo seus relatos,
Neuza impunha leis quase marciais dentro daquele
local.
Fazia ostensivas ameaças e intimidações àqueles
que se portassem, a seu ver, de maneira inadequada.
Em certa ocasião, um desavisado leitor saiu da
biblioteca com um livro na mão. Neuza havia sido
orientada a coibir a retirada de qualquer material da
biblioteca sem prévia autorização, para que se
65
evitassem extravios. A recomendação, no entanto,
foi levada até o último estágio do rigor. Acusado
impiedosamente de tentativa de furto, o rapaz
tentou se defender e retrucou algo que Neuza não
gostou. Enfurecida, arremeteu contra ele com uma
enciclopédia e foram necessárias três pessoas para
contê-la, dentre elas um funcionário.
Em cada ato de deslize eu convocava Neuza para
uma reunião, na qual reiterava minhas súplicas para
que ela buscasse o autocontrole e não agisse
impensadamente. Explicava-lhe que também fazia
parte de suas atribuições orientar aos usuários da
biblioteca quanto às normas existentes, e não se
portar como um cão de guarda raivoso. Insistia na
necessidade de perceber que dentro dela habitavam
duas “Neuzas” com características completamente
distintas. Uma era responsável, cordial e confiável
e a quem as pessoas tinham apreço; a outra era o
avesso da primeira e despertava sentimentos como
medo e aversão.
Quando era repreendida, passava alguns dias sem
falar com ninguém, tampouco comigo. Era sua
forma de protestar e demonstrar discordância pela
advertência recebida.
As reclamações dos funcionários quanto à postura
de Neuza haviam voltado aos níveis habituais.
Eu tentava contemporizar alegando que seria uma
pretensão descomunal esperar que se transformasse
num modelo de comportamento em poucos meses.
Pedia-lhes mais tempo. Mas sabia que haveria um
limite.
66
Em uma de suas últimas e mais graves recaídas,
Neuza notou que seu par de chinelos havia sido
surrupiado de sob a mesa da biblioteca, sem que
percebesse. Acometida de um surto colérico, saiu
aos gritos pelo jardim em perseguição ao infrator e
rapidamente identificou as sandálias nos pés de um
adolescente de 15 anos, que estava sentado sob a
goiabeira em companhia de outros frequentadores
daquele estabelecimento.
Iniciou-se uma intensa e calorosa discussão.
Ensandecida, Neuza não se satisfez em recuperar o
que havia perdido e passou a agredir o adolescente
franzino com tapas e empurrões, no que foi quase
que instintiva e fulminantemente contragolpeada
com um cruzado certeiro no olho esquerdo, que a
levou ao solo.
O que era nervosismo e irritação transformou-se
instantaneamente em loucura. Eu já havia sido
alertado sobre o tumulto e corri em direção ao
jardim.
De pé ao seu lado, inutilmente tentava acalmá-la e
convencê-la a voltar para a biblioteca. Neuza não
sentia mais a pancada que recebera no olho e
parecia estar tomada por uma força maligna, pois
nem o esforço conjunto de quatro homens era
suficiente para impedi-la de tentar atacar o
adolescente com pedras, tijolos ou quaisquer outros
objetos que encontrasse no chão.
Numa tentativa desesperada de fazer cessar aquele
embate e evitar desdobramentos ainda mais
desagradáveis, solicitei ao garoto que fosse embora,
no que fui prontamente atendido.
67
Ao se dar conta que o adolescente saía pelo portão,
Neuza desvencilhou-se com um solavanco violento
das mãos que a seguravam e disparou a correr em
direção à rua. Seu nível de descontrole era tamanho
e de tal forma acentuado, que minha sensação era a
de que ela realmente mataria o menino por conta de
um par de hawaianas.
Naquele mesmo instante, do lado de fora, alguns
dos moradores de rua que viviam na calçada em
frente ao portão principal do Núcleo de Serviços
estavam cortando e limpando peixes, coisa que
faziam com certa assiduidade com o objetivo de
garantirem algum alimento para a noite
Neuza aproximou-se do grupo por trás, sem ser
notada, e tomou da mão de um dos homens a faca
com a qual tirava os espinhos dos peixes.
Armada, correu em direção ao menino e o atacou,
investindo-lhe contra a barriga.
Nessas horas, abre-se palco para um espetáculo
bárbaro e grotesco e a violência da vida na rua se
apresenta novamente de maneira impressionante.
A maioria da platéia incentivava a contenda com
gritos e manifestações de apoio a um ou a outro,
enquanto que um grupo menor tentava persuadir
Neuza a deixar o adolescente partir. O clima era de
uma disputa medieval.
Quanto a nós, apenas aguardávamos pelo desfecho
dos acontecimentos.
Tudo ocorreu em frações de segundo.
Não haveria tempo, tampouco maneira de interferir
numa situação como aquela. Na rua, nossas normas
e autoridade nada valiam e no calor absoluto dos
68
ânimos o risco que se correria numa tentativa de
intervenção seria muito grande.
Felizmente, a facada desferida por Neuza não teve
muita direção e só arranhou a pele do adolescente,
que fugiu se misturando à multidão nas calçadas
abarrotadas da Rua Oriente.
Um estado de desânimo e tristeza se instaurou em
mim imediata e profundamente.
Não haveria qualquer argumento que eu pudesse
fazer uso para justificar a atitude de Neuza.
Os funcionários já não falavam mais nada. Seus
olhares, no entanto, diziam muito.
Em qualquer outro Núcleo ou Centro de Serviços
sua exclusão já estaria decretada há muito tempo.
De volta ao jardim, Neuza se apressou em me
apresentar as mesmas explicações de sempre. Meu
atordoamento era tão grande que eu a ouvia falar,
mas era incapaz de manifestar qualquer tipo de
reação. Desci em direção ao escritório, onde ficaria
recluso por algum tempo tentando digerir esse novo
acontecimento e pensando na atitude que deveria
tomar.
No final da tarde, escuto batidas na porta e a voz
grave e rouca de Neuza chamando meu nome.
Apoiei a mão na maçaneta, mas não consegui girála. Minha cabeça doía. Naquele momento, pensei
que gostaria de ser dotado de poderes mágicos que
possibilitassem me transportar para qualquer outro
lugar, com o estalar dos dedos.
De volta à realidade, respirei fundo e abri a porta.
Neuza estava desfigurada.
69
Seu olho esquerdo lacrimejava, inchado e roxo pelo
golpe que recebera e havia ainda um pequeno corte
no lábio inferior.
Passadas duas horas do enfrentamento, a descarga
maciça e bombástica de adrenalina a que seu
cérebro fora submetido mantinha sua respiração
ofegante e suas veias salientes.
Percebendo minha fisionomia abatida e apática,
Neuza disse que já estava resignada com a minha
decisão de “demiti-la” da biblioteca, muito embora
eu ainda não a tivesse tomado, tampouco lhe
comunicado.
Ao comentarmos sobre a horrível briga em que se
envolvera instantes atrás, além de não demonstrar
nenhum arrependimento, disse que conhecia o
paradeiro do menino que a agredira e estava
planejando, naquela mesma noite, ir ao seu encalço
em companhia do seu namorado Fabiano.
Enquanto ela falava, muitas coisas se passavam
pela minha cabeça.
Martelava em minha mente a idéia de que, se
realmente eu decidisse por destituí-la de sua função
na biblioteca e vetasse sua entrada naquele Núcleo
de Serviços, estaria abandonando um processo ao
qual eu, deliberadamente, havia iniciado.
Certamente seria o mais conveniente para mim,
pois me livraria dos sofrimentos constantes a que
suas atitudes me sentenciavam, além de trazer
alívio e contentamento para uma boa parte dos
funcionários. Porém, estava ainda mais convicto de
que não seria o mais conveniente para ela, pois,
expurgando-a, estaria corroborando para reforçar
70
ainda mais os sentimentos negativos e pejorativos
que nutria por sua própria pessoa.
Longe da biblioteca e do Núcleo de Serviços e sob
influência do ambiente da rua é provável que
voltasse a ocupar o seu tempo com a violência e as
drogas.
Optei então por propor-lhe uma troca. Ela abdicaria
do desejo de vingança para com o adolescente e eu
permitiria que ela retomasse suas atividades na
biblioteca. Aceitou, sem aparentar qualquer sinal de
que estivesse completamente satisfeita com o
acordo feito.
Após esse episódio traumático, muitas ocorrências
envolvendo Neuza ainda se sucederiam no Núcleo
de Serviços.
Chegamos a aplicar-lhe rígidas sanções como a
suspensão de sua entrada, procedimento que eu
nunca havia tomado até então e pelo qual guardava
sérias ressalvas por duvidar da sua eficácia.
Experimentei outras pessoas para ocuparem sua
função na biblioteca, mas passados os períodos de
punição voltava atrás e restituía-lhe o cargo.
Efetivamente, me mantive firme no propósito de
não desistir de Neuza, apesar de todas as
consequências que minha insistência acarretavam.
Contudo, passados três meses do início do seu
voluntariado, ela espontaneamente solicitou uma
“licença“.
Estava grávida e queria se dedicar aos exames de
acompanhamento, ao enxoval e outras necessidades.
Não consigo avaliar qual o grau de benefício, se é
que houve algum, esse curto período de três meses
71
ocupando-se da biblioteca possa ter representado
para Neuza.
Talvez notar intimamente alguns aspectos de sua
natureza aos quais ela desconhecia completamente
e perceber que é capaz de exercer um trabalho,
desenvolver-se pessoalmente ou mesmo reunir
condições que lhe permitam deixar a rua.
Sair da rua, afinal, era o seu grande sonho.
Os sonhos de Neuza eram comuns aos de boa parte
das pessoas que vivem nas ruas como ter ou voltar
a ter um emprego, constituir ou reconstituir uma
família, construir ou reconstruir um lar.
Coisas simples que, na verdade, nada mais são do
que direitos a que todo cidadão faz jus.
No caso específico de Neuza, o sonho e a realidade
estão separados por alguns elementos, dentre os
quais se destacam com maior veemência sua
personalidade e seu comportamento.
O fato de ter vivenciado uma experiência na qual
tais aspectos influenciaram direta e negativamente
no seu desempenho funcional, dentro do que se
podia considerar um treino, um teste para uma
futura ocupação ou um futuro emprego, talvez
acenda uma luz no sentido de fazê-la perceber que
o alcance dos seus objetivos de vida dependerá do
alcance da sua estabilidade emocional e que
existem profissionais e procedimentos específicos
que podem tornar esse processo menos difícil.
Nesse sentido, a medicina e os medicamentos
serviriam como instrumentos auxiliadores para que
Neuza atingisse e mantivesse o autocontrole.
72
Seu “estágio“ na biblioteca pode ter tido outra
utilidade, que só será percebida em um prazo mais
longo de tempo. A de ser uma alavanca propulsora
ou o primeiro passo para a reconstrução da sua
autoestima.
A preocupação em vestir-se adequadamente e
cuidar da aparência durante o período em que
desempenhou suas funções dá sinais nesse sentido.
Mesmo inconscientemente, essa semente de
autovalorização e amor próprio plantada durante
esses três meses poderá brotar e aumentar sua
confiança, estimulando sua busca por um futuro
melhor.
73
Por trás dos muros
Reconheço que, em um determinado momento, foi
necessário tomar medidas para intermediar o acesso
dos durões de rua ao nosso Núcleo de Serviços.
A Casa Restaura-me era um Núcleo de Serviços
onde não havia qualquer procedimento de controle
ao acesso dos fequentadores e confesso que isso me
fazia orgulhoso. O amplo portão permanecia aberto
em tempo integral, permitindo a livre entrada e
saída das pessoas sem qualquer restrição.
Na verdade, tentamos manter esse procedimento
durante o maior tempo possível por entendermos
que era dessa maneira que deveriam funcionar
todos os estabelecimentos destinados à população
de rua.
Queria desvincular daquele espaço qualquer
imagem que pudesse denotar restrição no acesso,
pois é justamente o que o morador de rua encontra
em qualquer lugar público ou privado que tente
entrar. A liberdade total de acesso era um sinal de
que eram bem vindos àquele lugar.
O problema é que estávamos perdendo o controle.
Funcionando nesses moldes, os durões de rua que
eram proibidos de entrar na grande maioria dos
Núcleos e Centros de Serviços para população de
rua de São Paulo eram nossos clientes diários e
assíduos.
Por conta disso, as ocorrências de brigas, uso de
entorpecentes e furtos dentro do estabelecimento
atingiram um patamar que se tornou insustentável à
74
medida que mais deles passavam a utilizar nossos
serviços.
O portão escancarado também estimulava alguns
frequentadores a buscarem refúgio dentro do
Núcleo de Serviços após cometerem ações ilícitas
nas proximidades.
Foram várias as ocasiões em que policiais ou
guardas municipais viraram o local literalmente de
ponta cabeça à procura de algum infrator.
Nunca encontravam, uma vez que os supostos
delinquentes conheciam cada centímetro daquele
imenso lugar e despistavam facilmente os agentes
da lei, ganhando a rua sem serem notados.
A liberdade de acesso também era usufruída cada
vez mais de forma abusiva.
Um grupo de durões que vivia acampado em frente
ao Núcleo de Serviços - com quem tive inúmeras
altercações durante o período em que ali trabalhei se acostumou a encher galões com capacidade para
30 litros de água nas torneiras dos tanques de lavar
roupas e carregá-los para fora do estabelecimento.
Faziam isso várias vezes ao dia com o intuito de
usar a água para lavar os carros dos comerciantes
das redondezas e, dessa forma, conseguirem alguns
trocados.
Em que pesasse o fato de que estavam trabalhando,
essa prática fez com que o valor da nossa conta de
água rapidamente atingisse cifras exorbitantes.
Como bons e convictos durões de rua, receberam
muito mal a minha solicitação para que reduzissem
a quantidade de galões que retiravam, uma vez que
uma centena de outros moradores de rua dependia
75
daquela água para lavar suas roupas e para o seu
uso pessoal.
Cientes da nossa incapacidade de fiscalizá-los em
tempo integral, os durões se aproveitavam dos
portões abertos e do acesso irrestrito para agir
sorrateiramente e continuaram a retirar os galões na
mesma proporção de sempre, porém, utilizando-se
da estratégia de coagirem outras pessoas para
realizarem o transporte em seu lugar.
Era extremamente difícil para os funcionários lidar
diariamente com ocorrências dessa natureza, às
quais a defasagem do nosso quadro funcional não
nos permitia fazer frente.
No entanto, as ocorrências mais desgastantes e
traumáticas para a equipe eram, sem sombra de
dúvida, aquelas que produziam um desfecho
violento, tais como brigas e agressões entre os
frequentadores.
Esses conflitos ocorriam de forma abrupta e
imprevisível como a erupção de um vulcão.
Sem qualquer prévio aviso, num piscar de olhos
estávamos todos mobilizados para apartar
confrontos corporais em que muitas vezes ao
menos um dos envolvidos estava armado de facas,
estiletes, canivetes, cacos de vidro ou qualquer
outro objeto que pudesse causar ferimentos ao
adversário.
Por sermos poucos, a dura tarefa de interromper ou
controlar ocorrências de vias de fato ficava a cargo
de apenas um ou dois funcionários, tornando a
empreitada muito mais extenuante e aumentando
consideravelmente seu risco.
76
Com o transcorrer do tempo, o desgaste psicológico
dos funcionários ia aumentando perceptivelmente e
era necessário realizar reuniões diárias nas quais
discutíamos maneiras de enfrentarmos o problema.
A necessidade de estarem permanentemente em
prontidão - à espera de um embate que
inevitavelmente insurgiria a qualquer instante transformava o trabalho em um calvário.
Por meses suportamos a pressão atroz que vinha de
praticamente toda equipe para que estipulássemos o
fechamento do portão e passássemos a controlar a
entrada dos frequentadores.
Apesar de também sentir os efeitos daquela caótica
situação, a ponto de sofrer com crises de insônia e
dores musculares insuportáveis nos ombros e na
nuca, eu insistia em postergar uma decisão que, em
mais ou menos dias, teria que tomar.
Meu argumento era pouco convincente, apesar de
ser bem recebido pela maioria dos funcionários.
Eu tentava, a todo custo, fazer-lhes enxergar a
mensagem que estaria embutida no ato de
fecharmos o portão. Estaríamos estabelecendo uma
barreira, um obstáculo, uma fronteira física que
definitivamente separaria os bons dos maus e os
certos dos errados.
Para pessoas psicologicamente feridas por ações de
preconceito e rejeição colocadas em prática tácita
ou veladamente pela sociedade, tal fato poderia ser
interpretado ou subentendido como um convite de
boas vindas às avessas e os já fragilizados
sentimentos de aceitação e pertencimento com
77
relação ao nosso Núcleo de Serviços seriam
colocados à dura prova.
Além de tudo isso, ainda nos somaríamos àqueles
que simplesmente fecharam as portas para esse
grupo de pessoas do qual faziam parte os durões de
rua.
Seríamos mais um que desistiu, assim como o
fizeram em muitos casos suas famílias, outros
Núcleos de Serviços e a própria sociedade. Talvez
jamais alguém tenha se dado o trabalho (árduo,
logicamente) de insistir um pouco mais.
Concretamente, com um quadro funcional mais
ampliado e adequado trabalharíamos essa questão
das ocorrências violentas com muito mais
propriedade, dividindo seu ônus em parcelas iguais,
o que não só evitaria a sobrecarga física e
emocional dos funcionários como possibilitaria que
agissem como verdadeiros educadores.
Essa era outra séria questão. Não deixar que a
exposição às mazelas que inevitavelmente eram
trazidas da rua para dentro e a incapacidade
numérica de fazer frente a elas endurecessem os
funcionários a tal ponto que, num pequeno prazo de
tempo, se tornassem meros agentes fiscalizadores
prontos e ávidos para reprimir e perdessem a
verdadeira essência do trabalhador social: a
disposição permanente e incondicional para educar.
Por essas razões, a atenção ao comportamento do
funcionário era uma prioridade, no sentido de que
não se transpassasse a tênue linha que distingue um
educador de um leão de chácara.
78
O acúmulo diário de experiências desagradáveis, e
de certa forma traumáticas, ocorridas entre
funcionários e frequentadores dentro do Núcleo de
Serviços produzia o nefasto efeito de transformar
essa relação conflituosa em algo pessoal.
O morador de rua de comportamento problemático
passava a ser visto e tratado pelo funcionário como
inimigo, criando-se mecanismos de autodefesa que
impediam, uma vez estabelecida a antipatia, a
tentativa de qualquer reaproximação ou criação de
laços mais estreitos.
O grande problema é que as melhores e mais
valiosas ferramentas a serem utilizadas pelos
funcionários dos Núcleos de Serviços e albergues,
no estrito cumprimento do seu papel de educadores,
são justamente a aproximação e a criação de laços
mais estreitos com o morador de rua.
Quando se abre mão delas, em virtude de uma
desavença, assume-se claramente a postura de um
mero fiscalizador.
Obviamente, a tarefa de fiscalizar integrava o rol de
nossas atribuições, uma vez que era necessário
fixar normas e regras em um local que atendia
centenas de pessoas, mas esta tarefa não poderia
corresponder ao cerne de nossas atenções.
Após meses de vacilações inúmeras da minha parte,
o fechamento dos portões de entrada ocorreu no
instante em que percebemos a aproximação dos
limites nos níveis de estresse físico e psicológico
dos funcionários e a decisão foi tomada para evitar
um colapso geral.
79
A partir de então, um funcionário ficaria
encarregado de controlar a entrada e saída de cada
morador de rua que quisesse por os pés naquele
Núcleo de Serviços.
Foram confeccionadas carteirinhas de identificação
que deveriam ser apresentadas pelos frequentadores
na ocasião de sua entrada e as ocorrências de
indisciplina acarretariam no confisco da carteirinha,
impossibilitando os autores de utilizarem os
serviços temporariamente.
Abateu-se em mim após a viabilização de todas
essas medidas um desgosto profundo motivado
pelo sentimento que estava agindo contrariamente a
uma proposta ideológica a qual sempre defendi.
Pagariam os moradores de rua por uma grave e
crônica falha das Políticas Públicas voltadas a esse
segmento, que consiste na completa inadequação e
insuficiência dos recursos humanos destinados aos
estabelecimentos que atendem à população de rua.
Essa deficiência de ordem técnica desencadeia um
efeito colateral grave e inexorável, retratado pela
implacável dificuldade de seus profissionais em
lidar no dia a dia com moradores de rua
alcoolizados, rebeldes e insubordinados.
Há, contudo, outras consequencias negativas que
são produzidas pela mesma falha metodológica.
Uma delas é a transformação de espaços de
convívio comunitário destinados à população de
rua em masmorras munidas de grades, guaritas,
catracas e uma série de outros dispositivos de
contenção e fiscalização pelos quais o frequentador
do estabelecimento deve ultrapassar.
80
Há estabelecimentos que investem maciçamente na
modernização dos seus aparatos e mecanismos
reguladores de acesso, inovando e incrementando
tecnologicamente suas estratégias de controle a
ponto de promover a instalação de sensores de
leitura digital em suas entradas.
O risco que se corre com a adoção de tantos
procedimentos preventivos é a deterioração do
sentimento de prazer do morador de rua em estar
nos lugares que, ironicamente, foram criados para
ele estar, uma vez que sua presença é cada vez mais
indesejável na grande maioria dos outros lugares da
cidade.
Nesse sentido, os Núcleos e Centros de Serviços,
bem como os albergues devem empenhar esforços
incontidos no sentido de fazer frente aos atos de
injustiça e intolerância aos quais o morador de rua
é submetido cotidianamente.
A mecanicidade do atendimento e a utilização de
aparelhamentos de contenção de acesso quase
bélicos trazem à tona o fantasma da
institucionalização, que atemoriza particularmente
uma parcela considerável da população de rua
formada por cidadãos que já estiveram, em algum
momento de suas vidas, na condição de
institucionalizados seja em penitenciárias, clínicas
de recuperação ou hospitais psiquiátricos.
Outra consequencia maligna da precariedade
funcional é a adoção sistemática de um processo
seletivo pelos funcionários e gestores dos Núcleos
e Centros de Serviços destinados à população de
rua, através da qual passa a ser admitido
81
prioritariamente aquele indivíduo considerado
“bonzinho“, ou seja, o morador de rua que não se
envolve em brigas, não afronta funcionários, se
ajusta rigorosamente às normas estabelecidas e
nunca se apresenta embriagado.
A idealização de um padrão de perfil aceitável foi o
plano de defesa colocado em prática para que os
funcionários dos Núcleos e Centros de Serviços
conseguissem conviver com o problema da
insuficiência de recursos humanos, podendo assim,
mesmo em quantidades reduzidas, desempenharem
suas funções com um mínimo de segurança e
dignidade.
A questão é que, apesar de compreensível e essa
afirmação vem de alguém que sofreu literalmente
na pele as agruras dessa problemática, a ativação
dessa estratégia de autopreservação pelos
estabelecimentos que prestam atendimento aos
moradores de rua deixou de ser uma momentânea
conveniência para efetivamente se consolidar em
uma prática contumaz.
O hábito de preferir o “bonzinho” àquele que
certamente dará mais trabalho foi completamente
absorvido e atualmente é visto como algo natural.
Justificam-se os que adotam tais procedimentos
com uma famosa frase, a qual proclamam quase
como um modelo: ”deve-se ajudar àquele que quer
ser ajudado“.
Cometem, na minha humilde opinião, um grave
erro interpretativo. Entendem que o único indício
da disposição e do desejo do morador de rua em
buscar melhores condições de vida é o seu
82
ajustamento absoluto às condutas disciplinares que
lhe são impostas dentro do estabelecimento.
Considero, na verdade, que ocorre exatamente o
contrário.
Creio que todas as ações ostensivas de violência e
agressividade colocadas em prática pelo morador
de rua dentro do estabelecimento carregam um
velado e desesperado pedido de socorro.
São manifestações que têm por intuito chamar a
atenção de funcionários e educadores para o seu
sofrimento.
A exaltação e a hostilidade são formas de
externarem algo que os sufoca internamente e
precisa ser colocado pra fora.
Todas as vezes que me deparei com situações de
violência física ou mesmo verbal dentro do nosso
Núcleo de Serviços percebi que nada mais eram do
que um subterfúgio para pessoas que precisavam
desabafar. Mesmo aqueles moradores de rua
identificados pela extrema rebeldia, ao ficarem
frente a frente comigo em meu escritório após
praticarem alguma ação indevida, não tinham
qualquer outra reação senão chorar copiosa e
convulsivamente.
Percebendo-se sós, encontravam a oportunidade de
compartilhar seu sofrimento com alguém a quem
essa ação não representaria uma fraqueza.
Iniciava-se naqueles momentos um processo de
descarrego de sentimentos emaranhados dentro do
peito sabe-se lá há quanto tempo, através do qual o
durão de rua exorcizaria emoções que lhe rasgavam
a alma como uma lâmina afiada e que nas ruas
83
deveriam permanecer enclausuradas em nome da
sua honra e valentia.
Durante horas a fio falavam com saudade de suas
mães, mulheres, seus filhos e amigos, personagens
adormecidos em memórias que atormentam suas
mentes. Lembravam da terra natal para onde um
dia sonham retornar como se assim pudessem
voltar ao passado e reviver momentos felizes.
Quando saíam do escritório estavam flutuando. Já
mais leves e aliviados, instintivamente retomavam
a fisionomia sisuda habitual.
Era necessário que se recompusessem - pois a rua
os aguardava, implacável em sua realidade.
Por mais que o orgulho e a teimosia os impeçam de
pedir, não tenho dúvida de que são esses os
moradores de rua que mais necessitam de ajuda.
Agosto de 2009. Fui acordado numa manhã de
segunda-feira pela voz assustada da nossa
assistente administrativa ao telefone, informando
que um morador de rua frequentador do Núcleo de
Serviços havia arrombado a porta do escritório a
ponta pés e revirado os armários. Logo me ocorreu
que deveria ser obra do Paulinho.
Paulinho, ironicamente, era um homem de mais de
um metro e noventa de altura, magro, com veias
salientes e uma enorme aranha negra tatuada no
pescoço longo e branco.
Lembrei que, na sexta-feira anterior, no início da
tarde, Paulinho havia me procurado e solicitado que
eu guardasse no escritório alguns remédios que lhe
foram prescritos por conta de uma tuberculose
recentemente diagnosticada.
84
Orientei que ele guardasse os remédios em sua
mochila dentro do bagageiro, ou que em último
caso deixasse aos cuidados das assistentes sociais.
Minhas sugestões, no entanto, foram refutadas.
Segundo Paulinho, meu escritório era o único local
seguro naquele estabelecimento e ele não confiaria
os remédios a ninguém mais.
Seu discurso era carregado de certo apelo
melodramático e ficou óbvio para mim que, na
verdade, ele pretendia fazer chegar ao meu
conhecimento sua situação de saúde, o que de fato
já havia acontecido e queria de alguma maneira
contar com a minha solidariedade e compaixão.
Era compreensível, uma vez que qualquer ser
humano que se depare com alguma enfermidade
deseja ser confortado pelos seus próximos, sejam
familiares ou amigos. A questão era que Paulinho
não contava com nenhum dos dois.
Mesmo não sendo esse um procedimento
recomendável acabei consentindo em guardar os
remédios no armário de meu escritório, com a
ressalva de que Paulinho me procurasse no final da
tarde para que eu lhe entregasse a dosagem de
medicamentos adequada para o fim de semana, pois
eu trancaria o escritório ao término do expediente e
só reabriria na segunda-feira.
As sextas-feiras produziam efeitos milagrosos nas
vidas de algumas pessoas ali dentro.
Antes mesmo do sol se por, Paulinho já havia
esquecido completamente da doença, dos remédios
e demais problemas e caiu na estrada em busca de
entretenimento no centro da cidade.
85
Em virtude do cansaço acumulado da semana,
tampouco me ocorreu, antes de ir embora, deixar os
remédios ou ao menos uma quantidade deles com
algum educador do período noturno para que lhe
fossem entregues naquela mesma noite.
O resultado disso é que Paulinho deu trabalho aos
educadores sociais durante todo o fim de semana,
reclamando efusivamente e me culpando pelo fato
dos remédios terem ficado trancados no escritório.
Por tais razões, não me surpreendi com a notícia de
que a porta do escritório havia sido arrombada.
A funcionária também manifestou ao telefone sua
preocupação com relação à minha integridade física,
pois Paulinho, muito nervoso, jurou dar cabo da
minha vida tão logo eu cruzasse o portão de entrada
do estabelecimento naquela fatídica manhã de
segunda-feira.
Conhecia o Paulinho e sabia que, novamente, sua
intenção com todo aquele carnaval era chamar
minha atenção. Queria que eu me sentisse culpado
pelo fato de ter ficado sem remédios, apesar de ter
sido negligente naquilo que concernia à sua parte
no acordo.
Sabia também que, quando o encontrasse, ele
abdicaria da pose de durão que deveria manter
perante aos outros funcionários e demais moradores
de rua e assumiria o papel de vítima.
Cheguei ao trabalho normalmente e tão logo pus
meus olhos no desajeitado e retorcido corpanzil de
Paulinho precariamente acomodado na pequena
cadeira da sala das assistentes sociais, desabou a
chorar.
86
Lembrei-lhe do compromisso que havia assumido
comigo na sexta-feira, através do qual prometera se
apresentar no escritório até o final do meu
expediente para pegar a medicação necessária para
o final de semana.
Entre soluços, Paulinho justificou suas ações
agressivas pelo fato de terem ficado trancados,
junto com os remédios para a tuberculose, alguns
ansiolíticos
que
também
deveria
tomar
regularmente.
Logicamente não se podia fazer vistas grossas aos
danos materiais que ele havia causado no escritório,
mas não me agradava a idéia de agir com Paulinho
de maneira que soasse como um revide, uma
retaliação à sua atitude intempestiva. Simplesmente
bani-lo do estabelecimento ou proibir sua entrada
teriam essa conotação.
Em que pesasse o fato de sua crise de abstinência
ter sido causada pela sua própria irresponsabilidade,
era perceptível que sua agressividade advinha do
seu descontrole emocional e de sua frágil condição
psíquica, cujas causas poderiam ser a dosagem
inadequada dos ansiolíticos que tomava e a
dificuldade de lidar com o aparecimento de uma
moléstia de gravidade considerável como a
tuberculose.
No entanto, sua primeira ação naquele dia deveria
ser consertar o que havia quebrado, o que não lhe
tomou mais do que um par de horas. Era habilidoso
com as ferramentas.
Sugeri a ele que nos permitisse encaminhá-lo a um
hospital especializado no atendimento psiquiátrico,
87
onde pudesse ser submetido a exames e cuidados
mais específicos e se fizesse uma melhor análise do
seu caso clínico.
Paulinho ficou internado no hospital Major
Malagliano na Vila Mariana por algumas semanas,
recebeu alta médica e não apareceu no Núcleo de
Serviços por vários meses.
Quando retornou, sua aparência era mais saudável,
vestia roupas pretas de couro e tinha novas
tatuagens. Relatou ter vivido esse tempo todo em
que esteve ausente em Brasília, sabe-se lá em que
circunstâncias.
Desde então, passou a alternar algumas visitas com
longos períodos de ausência até que não tive mais
notícias de seu paradeiro. De qualquer forma, era
conhecido pelos demais como um durão de rua
errante e aventureiro.
O episódio de Paulinho nos permite introduzir uma
questão importante, que diz respeito à aplicação de
sansões disciplinares dentro dos estabelecimentos
de atendimento à população de rua.
Em muitas situações, essas medidas são colocadas
em prática de forma indiscriminada e sua aplicação
é desprovida de caráter educativo. Têm como único
intuito manter os moradores de rua problemáticos
longe dos Núcleos e Centros de Serviços.
Nessas circunstâncias, as medidas punitivas perdem
seu valor como instrumento pedagógico e passam a
ter caráter aleatório.
Não visam mais ao frequentador, e sim, à pessoa.
Suspensões e exclusões são consumadas em nome
do bem estar dos demais frequentadores, no caso,
88
os “bonzinhos” e também da preservação moral,
física e psicológica dos funcionários, que tomados
pela emoção e exaustão face às recorrentes
situações de conflito com que se deparam
cotidianamente, tendem a fazer uso equivocado das
sansões, utilizando-as como um mero instrumento
repressivo e deixando de colocar em prática ações
que objetivem conscientizar o indivíduo punido
acerca do ato cometido.
A principal delas seria a de dar voz ao “acusado”
de maneira imparcial para que possa apresentar sua
defesa e perceber que não está sendo submetido a
uma sumária condenação. Uma vez decidido o
veredicto, é imprescindível justificar de forma
cristalina ao penalizado as razões de sua aplicação
e quais normas ou regulamentos foram infringidos.
Gestores e equipes técnicas devem agir com
critério na estipulação de prazos de punição
oferecendo ao infrator, após o seu cumprimento, a
oportunidade de retomar suas atividades dentro do
estabelecimento e a chance de refletir sobre as
ações cometidas.
Fundamentalmente, que se policie a determinação
de penas perpétuas e que renegam o morador de rua
à condição de excluído dentre os excluídos,
reforçando tão somente o estigma de marginalidade.
Logo nos primeiros dias após a adoção dos
procedimentos de controle de acesso no nosso
Núcleo de Serviços, um acontecimento corroborou
para aumentar o meu mal estar.
89
Eu conversava com um morador de rua no jardim e
subitamente me dei conta que estávamos separados
pela grade do portão.
Pelo lado de fora, suas mãos agarravam firmemente
as barras de ferro e seus braços e tórax
permaneciam inclinados, apoiados no portão. Tive
a terrível sensação de estar vendo alguém enjaulado
ou dentro de uma cela.
O fechamento do portão e a fixação de um controle
de acesso acarretaram numa abrupta diminuição do
número de moradores de rua que frequentava
aquele Núcleo de Serviços.
Arrisco dizer, sem medo de errar, que esse número
caiu pela metade.
As brigas e ocorrências envolvendo uso de drogas
dentro do estabelecimento também se encerraram.
A intenção de tirar dos ombros dos funcionários a
sobrecarga a qual estavam submetidos teve efeito
imediato e em poucos dias já se notava uma
mudança nos ânimos da equipe.
As consequências do esvaziamento parcial do
Núcleo de Serviços foram tão severas que aquilo
que deveria ser um alívio momentâneo, um
relaxamento comum após um período de tensão,
estava começando a enveredar pelo caminho da
acomodação.
Assim como era necessário que estivéssemos
permanentemente atentos para que a corda não
apertasse o pescoço dos funcionários, por conta dos
níveis de estresse elevados, era mais necessário
ainda percebemos se a corda não havia se
90
afrouxado em demasia, deixando de ser um alerta
acerca de nossas obrigações profissionais.
O que ocorreu com nossos funcionários é algo que
se encontrava muito facilmente nos demais Núcleos
e Centros de Serviços para população de rua.
Uma vez livres dos durões de rua e demais
moradores de rua vistos como “malvados“, os
funcionários experimentaram o que eu chamo de
“zona de conforto”.
O bem estar e a sensação de tranquilidade a que
puderam desfrutar após o fechamento do portão se
instauraram de forma a tornar as coisas
extremamente convenientes.
Cumpria-se o horário estabelecido não havendo no
seu transcorrer quaisquer ocorrências desagradáveis,
uma vez que os moradores de rua que optaram em
permanecer no estabelecimento sob as novas regras
eram do tipo “bonzinhos”, cujo trato era
absolutamente razoável e que não davam maiores
trabalhos.
Cabia a mim, naquele momento, chamar-lhes a
atenção para alguns fatos importantes que o
contentamento gerado pela calmaria não os
permitia enxergar.
Nosso estabelecimento estava praticamente vazio, o
que não me agradava em nada.
Por várias vezes pude percorrer as dependências
daquele Núcleo de Serviços e contar nos dedos o
número de moradores de rua que ali se encontrava
praticando alguma atividade.
Nessas ocasiões, eu provocava a equipe com o
intuito de fazê-los sair da sua zona de conforto.
91
Era imprescindível, naquele momento, chacoalharlhes e despertá-los para outra realidade, cuja visão
o portão fechado nos poupava, mas que ainda
estava bem ali.
Havia uma multidão de moradores de rua em
frente ao nosso portão entregue ao mais profundo e
nocivo ócio, se embriagando com litros e mais
litros de pinga, usando drogas e apenas aguardando
o horário das refeições para alimentar seus corpos.
Aquelas pessoas optavam em permanecer do lado
de fora por conta do fechamento do portão e da
adoção de regras mais severas.
Preferiam ficar bebendo nas calçadas, uma vez que
não podiam fazê-lo lá dentro. Preferiam o ócio e a
liberdade do lado externo às atividades vigiadas do
lado interno.
Não obstante tais constatações, não voltaríamos
atrás. O que estava feito, estava feito, mesmo por
que foi necessário que assim se procedesse em um
determinado momento. Mas não podia admitir que
achássemos tudo aquilo conveniente e confortável.
Uma vez que aquele contingente de moradores de
rua concentrado em frente à nossa calçada não viria
para dentro espontaneamente, era necessário que
passássemos a ir lá fora e tentássemos diária e
exaustivamente convencê-los a entrar.
Que reforçássemos a idéia de que eram muito bem
vindos e que as regras existiam para tornar o lugar
mais seguro e o serviço mais eficiente.
Corresponderia a uma omissão da nossa parte se
nos contentássemos em esperar que cidadãos
submersos nos falsos prazeres e nas armadilhas da
92
rua como o usufruto da liberdade integral, a
ausências das normas e regras convencionais e o
livre uso de bebidas alcoólicas e entorpecentes
fossem subitamente acometidos pelo desejo de
abandonar hábitos que cultivam há anos e viessem
manifestar deliberadamente a intenção de mudar de
vida da noite para o dia.
Agindo dessa forma, estaríamos nos colocando
num patamar de superioridade e exalando
arrogância.
Continuaríamos por anos a fio acomodados em
nossa zona de conforto e alimentando nossos egos
com uma falsa sensação de dever cumprido.
A atitude de descer do pedestal e sair às ruas
representa muito pouco esforço.
O morador de rua não é uma máquina inanimada
programada para funcionar de acordo com a
vontade alheia. Cada indivíduo traz consigo sua
personalidade e manifestará (se é que o fará um dia)
o seu desejo de mudar de vida ou deixar para trás
as agruras da rua cada qual a seu tempo. Esse
tempo é completamente imprevisível. Qualquer
prognóstico nesse sentido se converte em mera
loteria.
A única ferramenta para que se tente fazer frente à
imprevisibilidade ou adiantar minimamente esse
processo é a motivação.
Deve- se estimular diária e incansavelmente a saída
das ruas de todo o indivíduo que se encontra nessa
condição, despindo-se o educador social de
vaidades e orgulhos que o impeçam de sair de trás
dos muros.
93
Reação em Cadeia
Assim como hospitais, escolas e quaisquer outros
serviços de utilidade pública, os estabelecimentos
que prestam atendimento à população de rua
necessitam dispor de recursos logísticos e humanos
adequados às suas respectivas demandas.
As consequências geradas pela incapacidade
técnica do Poder Público em perceber esse fato
serão inexoravelmente sentidas na pele por aqueles
que usufruem os estabelecimentos - no caso, a
população de rua, - e também pelos profissionais
que neles trabalham.
Nesse sentido, urge a necessidade das entidades,
associações e organizações contratadas por
intermédio do firmamento de convênios com o
Poder Público, através de seu Fórum, exigirem a
imediata atualização e adequação das portarias que
delimitam a contratação dos profissionais que
atuarão na execução dos trabalhos.
O aumento sucessivo e ininterrupto do contingente
de moradores de rua na cidade de São Paulo fez
com que as organizações adequassem suas
metodologias de atendimento às novas demandas, o
que obviamente lhes gerou mais custos.
No entanto, tais custos jamais foram ressarcidos
proporcionalmente pelo Poder Público, cabendo às
entidades arcar com despesas que ano após ano se
tornavam maiores.
94
Em decorrência disso, mesmo defasados e
insuficientes, os recursos financeiros oriundos do
Poder Público ainda são imprescindíveis para a
sobrevivência das organizações, o que torna a
questão um impasse.
Esse modelo feudal de relação de trocas reverte
completamente a essência e o fundamento da
formação de parcerias entre o Poder Público e as
instituições em uma mera formalidade burocrática.
Por meio das parcerias, cuja iniciativa de
implementação foi da ex-prefeita Luíza Erundina e
a quem se deve fazer menção pelos ideais que a
motivaram na ocasião, o Poder Público manifesta
sua intenção de buscar apoio junto à sociedade civil
para responder a demandas e arcar com
responsabilidades que constitucionalmente são de
sua competência, mas que não consegue dar conta.
Nesse contexto, o Poder Público deveria garantir
condições plenas às organizações fornecendo
subsídios materiais, estrutura física, recursos
humanos, logísticos e operacionais suficientes para
o desempenho adequado das ações.
Deveria ainda cumprir com a obrigação, acima de
tudo ética e moral, de compartilhar com seus
parceiros as dificuldades relativas aos trabalhos de
forma absolutamente direta e solidária, sentindo
como em si próprio quaisquer consequências
oriundas da negligência e das falhas na condução
das políticas públicas.
O que ocorre na verdade é o extremo inverso.
Os representantes do Poder Público responsáveis
pela supervisão técnica dos convênios assistem
95
passivamente a deteorização da qualidade dos
serviços, não se sensibilizando com a precária
condição de trabalho a que estão submetidos
funcionários e educadores dos estabelecimentos
conveniados, tampouco demonstrando preocupação
com aqueles que mais sofrem as consequências
dessa aviltante situação - que são as pessoas que
vivem nas ruas.
Igualmente, transferem para as organizações toda a
responsabilidade pelos “efeitos colaterais“ gerados
por suas ações, tais como a morte de moradores de
rua dentro dos próprios estabelecimentos ou em
seus arredores e a aglomeração de grupos
instalados ou acampados na porta dos Núcleos,
Centros de Serviço e albergues.
A ocorrência destes dois fatos, aliás, é motivo de
terror para o Poder Público, pois são os únicos que
causam alarde na imprensa e comoção na
população de maneira geral.
Em decorrência disso, as recomendações são
constantes e severas para que as organizações não
permitam que moradores de rua se instalem em
seus portões, pois na hipótese de um falecimento,
ficaria patente a negligência do Poder Público
estando a vítima do lado de fora de um espaço
destinado ao seu acolhimento.
Em contrapartida, a preocupação e o zelo para com
essa vida humana em qualquer outro lugar que não
seja a porta do estabelecimento, inclusive em seu
interior, parecem não ser tão rigorosos.
Isso significa que, na hipótese do morador de rua
morrer sob um viaduto, uma marquise ou qualquer
96
logradouro público afastado um quarteirão que seja
do estabelecimento, a culpa pelo falecimento será
lançada ao morador de rua, a quem se atribuirá uma
suposta aversão a albergues ou um provável
desinteresse pelos serviços de acolhimento
oferecidos pela Prefeitura.
Como os mortos não falam, a imprensa, o
Ministério Público e a própria sociedade acabam
por aceitar tal versão como verdadeira.
É fato que, poucos meses após o firmamento do
convênio com a prefeitura de São Paulo o número
de moradores de rua que dormia e acampava na
porta do nosso Núcleo de Serviços aumentou
vertiginosamente.
Anteriormente ao convênio, apenas o espaço em
frente ao portão de ferro lateral era ocupado por um
pequeno grupo de seis ou sete pessoas.
Com o início das novas ações, porém, a entrada
principal, as calçadas das casas de alvenaria e até a
pequena praça foram gradativamente tomadas por
um contingente de aproximadamente 40 pessoas
que amontoavam colchões, barracas de lona e
cobertores nesses locais.
Contudo, não se podia considerar esse crescimento
populacional um fenômeno imprevisível ou mesmo
anormal. Anteriormente à consolidação da parceria
com a prefeitura, aquele Núcleo de Serviços
funcionava algumas horas no período da tarde de
segunda a sexta –feira, servindo apenas uma
refeição.
O termo de convênio elaborado pela Prefeitura
estabelecia, a partir de sua efetivação, que o Núcleo
97
de Serviços passasse a funcionar em período
integral durante toda a semana, inclusive domingos
e feriados e que oferecesse ao morador de rua uma
pensão completa com quatro refeições diárias e a
possibilidade de uma vaga para dormir.
Esse último benefício dependeria de alguma sorte,
uma vez que o número de leitos era muito inferior à
demanda.
Além dessa abundante e diversificada oferta de
serviços e benfeitorias, outro fato contribuía para
aumentar a conglomeração de moradores de rua em
nossa porta. O Núcleo de Serviços se situava em
um local ermo e relativamente isolado no final da
Rua Monsenhor de Andrade, cujos limites físicos
eram um grande muro que dividia a rua em duas e a
separava da linha do trem.
Era estratégico, pois havia pouquíssima circulação
de transeuntes e apenas algumas poucas casas.
O refúgio permitia que os moradores de rua
ficassem menos suscetíveis à ação da polícia e
também do rapa, propiciando, ao menos por um
período de tempo, mais liberdade para a armação
dos chamados “mocós” (barracos improvisados de
madeira e lona) e também para algumas ações
ilícitas como o uso de entorpecentes e pequenos
furtos.
Com tantos atrativos, foi questão de pouco tempo a
instalação de um pequeno contingente naquele
lugar - o que para nós não significou novidade
alguma, haja vista o aumento considerável da gama
de serviços ofertados.
98
A rápida e eficiente divulgação entre o pessoal da
rua - noticiando a abertura de uma nova “boca de
rango” - tratou de fazer com que cada vez mais
fregueses se apresentassem, oriundos em sua
maioria da região central da cidade.
No entanto, o que não era surpresa para nós se
tornou motivo de curiosidade e consternação para
os representantes do Poder Público.
Parecia que não haviam em nenhum momento
previsto ou sequer imaginado que aquilo pudesse
acontecer. O raciocínio era bastante simples e
quase intuitivo. Se um morador de rua precisa
perambular por várias regiões diferentes e distantes
uma das outras para conseguir fazer cada uma das
suas refeições diárias, o que certamente lhe toma
algum tempo e demanda algum esforço, é
plenamente compreensível a sua fixação em um
local onde o cumprimento diário de tais rituais
deixe de ser uma preocupação e até um
constrangimento.
Na Rua Monsenhor de Andrade, número 746, todos
os meios materiais para a manutenção da sua
sobrevivência estavam facilmente acessíveis,
bastando que cruzasse de uma calçada para outra.
A permanência daquele grupo de moradores de rua
vivendo em frente ao nosso Núcleo de Serviços
rapidamente se transformou na mais prioritária
preocupação do Poder Público, representado pelos
técnicos supervisores do convênio.
Posso afirmar que durante os seis meses em que
estive à frente daquele estabelecimento recebíamos
99
a visita dos técnicos supervisores, em média, uma
vez a cada mês.
Essa visita tinha como finalidade verificar as
condições de funcionamento do estabelecimento e a
qualidade dos serviços e do atendimento que
estavam sendo oferecidos à população de rua com
os recursos gerados pela Prefeitura.
Cabia a mim, como gestor, percorrer todas as
dependências do estabelecimento em companhia do
técnico supervisor que ia verificando os aspectos de
higiene, manutenção, ordem e conservação do
espaço físico, ao passo que fazia anotações e
comentários quando julgava necessário.
No transcorrer dessas visitas de monitoramento,
tampouco após a ocorrência delas, jamais recebi
resposta ou ao menos um sinal de solidariedade
com relação às dificuldades referentes à
insuficiência do nosso quadro funcional e às
consequências diretas que esse fato acarretava na
qualidade e no desenvolvimento dos trabalhos.
Entendíamos que talvez não estivesse ao alcance
dos técnicos supervisores tratar de tal problema,
mas jamais se acenou sequer com a possibilidade,
se levantou a hipótese ou se criou uma molécula
que fosse de expectativa de que a questão pudesse
ser levada ao conhecimento de alguém ou alguma
autoridade com poder para intervir.
No entanto, em absolutamente todas as visitas de
supervisão, encontrou-se tempo e disposição para
se comentar sobre os moradores de rua acampados
em frente ao portão do nosso Núcleo de Serviços.
100
O terrorismo psicológico estava lançado e junto
dele uma pressão atroz para que encontrássemos
maneiras de evitar que permanecessem ali.
Relatórios contendo dados e informações sobre o
grupo de moradores de rua eram pedidos à exaustão.
Os supervisores técnicos nos orientavam a acionar
a Subprefeitura imediatamente, solicitando que
viessem retirar as barracas, madeiras e demais
objetos que ali empilhados.
Absolutamente tudo que se propunha como solução
era inadmissível.
Uma vez que as pessoas estavam em um
logradouro público, não tínhamos autoridade para
ordenar que se retirassem - e se estavam abusando
de um direito juntando materiais e praticando ações
indevidas, não era nosso papel coibi-las ou
fiscalizá-las.
Se acatássemos as sugestões e acionássemos a
Subprefeitura, estaríamos declarando guerra aos
moradores de rua e se consolidaria definitivamente
um estado de animosidade.
Como educadores sociais, as únicas ações com as
quais poderíamos nos envolver efetivamente seriam
as que objetivassem integrá-los às nossas atividades,
detectar suas aptidões e habilidades e reforçar laços
de confiança.
A obstinação obstruía completamente a visão dos
técnicos supervisores, a ponto de não deixá-los
perceber que a solução para o problema que
apontavam dependia diretamente da melhoria das
condições de funcionamento do nosso Núcleo de
Serviços.
101
Nesse sentido, o aumento do efetivo de educadores
e assistentes sociais seria crucial para colocarmos
em prática um trabalho contínuo de argumentação e
convencimento junto àquele contingente de pessoas
desinteressadas, que convenientemente passava a
maior parte do seu tempo deitado em colchões e
bebendo cachaça em frente ao portão de entrada.
Não menos imprescindível para o cumprimento de
nossas funções seria fornecer aos educadores e
equipes técnicas as “armas” necessárias para
aumentar o seu poder de persuasão, o que
implicava na necessidade iminente de tornar aquele
Núcleo de Serviços um local realmente atrativo
para população de rua, no qual se oferecessem
ilimitadas alternativas de atividades artísticas,
culturais, esportivas, musicais e lúdicas.
Nas conversas cotidianas com o pessoal da rua, eu
percebia que muitos deles manifestavam interesse
ou gosto por algum assunto ou afirmavam possuir
alguma habilidade, não importando em que
condição de vulnerabilidade se encontravam.
Era possível identificar, em poucos minutos,
habilidades que variavam de uma maneira infinita
como a construção de brinquedos com folhas de
coqueiro (um coqueiro especial que, segundo o
artesão, só havia nas praias de Santos), a fabricação
de sabão caseiro (que nos propiciou uma economia
substancial de dinheiro) e a confecção de colares
com lacres de lata de refrigerante.
No entanto, não havia como competir com as
tentações da rua dispondo tão somente da restrita
grade de atividades que oferecíamos até então no
102
nosso Núcleo de Serviços, cuja programação se
resumia basicamente à televisão e à quadra de
esportes.
A televisão, diga-se de passagem, é um mal a ser
combatido dentro dos Núcleos de Serviços para
população de rua.
Por seu efeito hipnótico e paralisante, é utilizada
por funcionários e educadores como mecanismo de
controle disciplinar, uma vez que é possível manter
os frequentadores catatônicos por horas em frente à
tela bastando apenas que a televisão permaneça
ligada em algum canto, mitigando as chances de
ocorrências desagradáveis como brigas e
altercações.
Por outro lado, o fato de muitos moradores de rua
estarem fisicamente debilitados e cansados em
razão das noites mal dormidas acaba por tornar a
televisão conveniente.
Se não houver a iniciativa por parte dos educadores
no sentido de estimular sua integração a atividades
mais construtivas, permanecerão estirados em
frente ao aparelho em tempo integral, simplesmente
vendo a vida passar.
Era justamente o que ocorria naquele Núcleo de
Serviços quando iniciei meus trabalhos.
A sala de televisão e a quadra de esportes se
transformavam em grandes dormitórios diurnos
onde pessoas se empilhavam pelo chão, embaixo de
cobertores, levantando apenas para se alimentar.
Esse hábito se modificou gradativamente à medida
que reforçávamos junto aos educadores e aos
próprios frequentadores a idéia de que, se os
103
espaços e dependências fossem utilizados com a
única finalidade de acomodar as pessoas para
dormir, aquele Núcleo de Serviços seria uma mera
extensão da rua, uma vez que se praticariam lá
dentro as mesmas ações da rua.
Reiterávamos que os Núcleos e Centros de
Serviços deviam ser uma alternativa para as ruas e
não um prolongamento delas.
Tentávamos a todo custo implementar atividades
diversas que pudessem estimular a permanência das
pessoas dentro daquele Núcleo de Serviços, mas
esbarrávamos na controversa e obtusa burocracia
pública, que se opunha a qualquer ação construtiva
ou educativa.
A compreensão das normativas de funcionamento
dos Núcleos de Serviços ditadas pela prefeitura era
um desafio à parte, ao passo que a intenção de se
desenvolver qualquer programa que fugisse ao
elementar
e
convencional
inevitavelmente
emperrava em algum dispositivo administrativo.
Durante aquele momento de turbulência decorrente
do número excessivo de moradores de rua
acampado em nosso portão, percebemos que alguns
deles, inclusive uma mulher, costumavam formar
rodas de samba e utilizavam latas, baldes e pedaços
de pau como instrumentos.
Observamos naquela ação uma oportunidade de
convencê-los a vir para dentro do Núcleo de
Serviços.
Para que isso acontecesse de fato, seria necessário
que oferecêssemos algo diferente, chamativo e que
valesse a pena, mesmo momentaneamente, ser
104
trocado pela liberdade e pelos pequenos prazeres
exteriores como a bebida e as drogas.
Compramos uma série de instrumentos musicais e
de percussão novos em folha como surdo, pandeiro,
chocalho, tamborim, violão e cavaquinho e os
convidamos para que formassem a roda de samba
dentro do Núcleo de Serviços.
O resultado foi imediato. Sete homens e uma
mulher que passavam as tardes batucando do lado
de fora não resistiram à oportunidade de largar as
latas e baldes que produziam sons rudimentares e
machucavam as mãos para utilizarem instrumentos
de boa qualidade.
Essa ação foi a prova cabal de que a “limpeza” pura
e simples da calçada como queriam os supervisores
técnicos da Prefeitura - empurrando cidadãos de
rua como sujeira para baixo do tapete e
dispersando-os para qualquer outro lugar onde seria
mantida sua situação de degradação física e moral poderia ser combatida com procedimentos mais
dignos e eficientes.
Muitas pessoas não conseguem compreender a
metodologia incutida nesse tipo de “estratégia de
atração” , utilizada com o intuito de despertar a
curiosidade pelos estabelecimentos de atendimento
à população de rua. Chamam a atenção para o fato
de que tais intervenções não modificam drástica e
imediatamente os maus hábitos.
Lembremos, contudo, que os maus hábitos foram
desenvolvidos no transcorrer de anos, às vezes
décadas de vivência nas ruas. Mentem aqueles que
afirmam que as consequências dessa exposição
105
prolongada às inúmeras mazelas da rua podem ser
revertidas em poucas semanas ou meses.
No que concerne aos trabalhos desenvolvidos nos
estabelecimentos de atendimento, o primeiro e
fundamental passo consiste em despertar no
morador de rua uma centelha de perspectiva quanto
à existência de possibilidades e caminhos de
reconstrução de vida. Essa ação inicial preconiza a
alimentação diária e gradual da sua famigerada
autoestima, através da redescoberta e estimulação
de seus interesses e habilidades.
A consolidação do sentimento de bem estar do
indivíduo com o ambiente, a aproximação e o
desenvolvimento das relações pessoais com seus
educadores e funcionários também têm papel
fundamental dentro desse processo.
Introduzem-se assim as condições necessárias para
que educadores, equipes técnicas e o morador de
rua iniciem conjuntamente a construção de um
projeto de vida.
De fato, a nossa estratégia em nada combinava com
a cartilha regimental a que estávamos submetidos e
percebi o quão penoso seria o nosso caminho.
No final daquele mês, durante a reunião destinada à
prestação das contas realizada no departamento
administrativo da Prefeitura, fui avisado pelos
técnicos supervisores que o valor que havíamos
gastado com os instrumentos musicais não poderia
ser incluído nas despesas, o que significava que a
Organização Social deveria arcar com o custo de
todo os equipamentos.
106
Argumentei que aquele custo havia sido incluído
num campo específico que constava no termo
contratual de convênio, no qual havia o registro de
um valor a ser gasto pela Organização Social com
“recursos materiais para o trabalho sócioeducativo
e pedagógico”.
Os técnicos da prefeitura se olharam por um
instante e me pareceu que nenhum deles estava
inclinado a esclarecer aquele entrave absurdo.
Num ato de bravura, o funcionário mais experiente
assumiu a responsabilidade e sacou de uma gaveta
uma pasta repleta de documentos e ordens de
serviço.
Revirando os papéis, encontrou uma normativa que
discorria sobre aquele assunto e leu em voz alta um
trecho do texto recheada de termos técnicos e
arcaicos, através do qual pude compreender que
instrumentos musicais não poderiam ser incluídos
no item que havíamos assinalado por não serem
considerados materiais educativos, tampouco
pedagógicos, e sim, “bens permanentes”.
Respondi que, a meu ver, não havia nada mais
sócioeducativo e pedagógico do que a música e
quis saber quais eram, então, os materiais que
poderíamos adquirir com os recursos previstos
naquele item.
Recebi o golpe de misericórdia.
Visivelmente constrangido, o técnico supervisor me
elucidou que, no entendimento da prefeitura,
materiais pedagógicos se restringiam a papel sulfite,
lápis coloridos, giz de cera, cartolinas, canetinhas
esferográficas, entre outras.
107
Repetia-se, mais uma vez, o velho, batido e não
mais aceitável hábito da infantilização do morador
de rua. Até quando homens e mulheres, muitos dos
quais com documentos e profissão, serão tratados
pelo Poder Público como completos incapacitados.
Quanto às normativas burocráticas da prefeitura
para a aquisição de “materiais pedagógicos“, tais
procedimentos contribuem para que as atividades
desenvolvidas nos Núcleos e Centros de Serviços
se restrinjam a passatempos, recreações e trabalhos
meramente ocupacionais instituídos com a
finalidade de manter moradores de rua
minimamente entretidos e temporariamente sob um
teto, mesmo que esse teto seja um pedaço de lona
ou plástico, escondendo-os dos olhares críticos,
piedosos e acusadores da sociedade.
Coube à Organização Aliança de Misericórdia, da
qual eu era funcionário, cobrir integralmente os
custos de aquisição dos instrumentos musicais em
decorrência da minha falta de sensatez e memória.
Havia passado por essa experiência anteriormente e
deveria estar prevenido.
Para finalizar esta fase negra, depressiva e de
absoluta desilusão a que estávamos passando o
Poder Público resolveu finalmente agir ao seu
modo com relação aos moradores de rua
acampados em nosso portão.
Passava das 10 da noite quando visualizei, do
portão principal do Núcleo de Serviços, luzes
vermelhas giratórias que anunciavam um
verdadeiro comboio vindo em nossa direção.
108
Já sabia do que se tratava, porém, me impressionou
o número de veículos entre viaturas de polícia
militar, caminhões e carros da subprefeitura que
participavam da ação.
Ao atingirem o limite da rua, iniciou-se
imediatamente uma intensa movimentação de
funcionários da subprefeitura e em poucos minutos
as barracas feitas de madeira, tábuas e lonas
instaladas em frente ao Núcleo de Serviços se
encontravam sobre as carrocerias dos caminhões.
A reação dos moradores de rua era de indiferença,
pois já estavam acostumados com a ocorrência
sazonal desse tipo de abordagem. Alguns poucos
que já estavam dormindo esboçavam alguma
reclamação, porém de forma contida.
No comando da operação estava uma bem vestida e
aprumada funcionária da Subprefeitura regional da
Mooca, para quem certamente população de rua era
algo que conhecia através de relatórios e conversas
de gabinete.
Identifiquei-me como gerente do estabelecimento,
com a intenção de tentar sensibilizá-la e evitar que
levassem documentos e objetos pessoais dos
cidadãos que estavam alojados ali, haja vista que
conhecia o modo de atuação desse tipo de força
tarefa.
Apesar de ter alcançado tal objetivo, uma vez que a
funcionária atendeu aos meus apelos e orientou aos
carregadores que poupassem tudo que não fosse
entulho, fui submetido a uma sabatina fantástica de
questionamentos que colocaram sistematicamente à
prova o meu cavalheirismo.
109
Do alto de seus sapatos de salto que combinavam
harmoniosamente com o restante do figurino,
aquela funcionária da subprefeitura que jamais
havia colocado seus bem tratados pés naquele
Núcleo de Serviços com albergue solicitou
explicações e justificativas categóricas sobre a
permanência daquele grupo de moradores de rua
em frente ao estabelecimento e as razões de
“permitirmos” que ficassem ali.
Engajei-me firmemente na tentativa de lhe explicar
todas as dificuldades que faziam parte do nosso dia
a dia e apontar algumas falhas nas políticas
públicas de atendimento à população de rua que
contribuíam para aquela situação. À medida que
minhas colocações eram retrucadas com as falácias
e os discursos decorados típicos de funcionários
públicos preocupados com suas carreiras, percebi
que estava conversando com um robô programado
para repetir ordens superiores e incapaz de
desenvolver um raciocínio próprio.
Resignado, gentilmente pedi licença e fui conversar
com a nossa “bibliotecária” Neuza, que cuidava
para que não levassem seus pertences mais valiosos
e a quem, sinceramente, apesar das instabilidades
emocionais, eu atribuía mais inteligência e simpatia.
Empregou-se naquela ação, que não durou mais do
que 40 minutos, um efetivo de aproximadamente
25 agentes públicos.
Cerca de 10 policiais militares, incluindo um oficial,
permaneceram durante todo esse tempo desviados
de sua real atribuição e deixando de atender
110
ocorrências de maior gravidade, socorrer pessoas e
combater efetivamente à criminalidade.
Outra peculiaridade desse tipo de operação que
leva a uma reflexão acerca de sua transparência é o
fato de serem realizadas invariavelmente na calada
da noite.
Se tais ações são realmente de interesse público e
têm como finalidade a adequada conservação dos
logradouros públicos, conforme justificam seus
idealizadores e executores, qual seria a razão para
transcorrerem no exato momento em que a maioria
dos cidadãos dorme, quando os estabelecimentos
de comércio não estão funcionando e é quase
indetectável a presença de um transeunte que
eventualmente testemunhe seu desenrolar.
Em última, porém não menos grave instância, se
registrou como resultado de toda essa somatória de
recursos logísticos e esforços de vários órgãos
públicos distintos a importância de duas caçambas
de caminhões empilhadas de materiais inutilizáveis,
uma funcionária pública aliviada pela sensação de
dever cumprido e absolutamente mais nada.
Passadas 24 horas da realização da operação, as
barracas, colchões e tudo o mais que havia sido
retirado já haviam sido substituídos e tomavam
novamente boa parte dos arredores do Núcleo de
Serviços, assim como se encontravam no mesmo
lugar algo que simplesmente passou despercebido
aos enviesados olhos dos encarregados daquela
ação: as pessoas.
Outros aspectos das diretrizes de funcionamento
impostas aos Núcleos de Serviços revelavam, em
111
seus pequenos detalhes, que se priorizava a
manutenção de sua fachada em detrimento ao que
se passava do lado de dentro do estabelecimento.
Quando iniciei meus trabalhos na Casa Restaurame, naturalmente me ocorreu chamar o Sebastião
Nicomedes para fazer parte da equipe.
Conheci Tião no ano de 2005, talvez 2006, época
em que ele liderava o Movimento Nacional pelos
Direitos da População de Rua.
Quando o encontrei pela primeira vez estava
acorrentado a outros moradores de rua em protesto
por melhorias no atendimento oferecido pelos
albergues à população de rua, em plena Praça do
Patriarca.
Permaneceram assim por quatro ou cinco dias,
apenas bebendo água, até conseguirem uma
audiência com o Secretário de Assistência Social.
Duas eram as características do Tião que mais
reforçavam o meu pensamento de integrá-lo ao
quadro funcional do nosso Núcleo de Serviços.
A primeira era que se trata de um homem que já
viveu nas ruas, sofreu suas agruras e por essas
razões possui algo que eu, por mais que me
esforçasse, jamais possuiria justamente pelo fato de
nunca ter enfrentado o desafio de dormir ao relento:
a perspectiva da rua - a capacidade de se colocar
no lugar do morador de rua e entender seus
pequenos sinais e gestos que englobam uma
infinidade de mensagens sublinhares, cujos
significados apenas os possuidores dessa
sensibilidade muito apurada conseguiam captar.
112
Tião se tornou rapidamente o termômetro medidor
de sentimentos daquele Núcleo de Serviços,
identificando como que pelo olfato o estado de
ânimo dos frequentadores daquele lugar.
A segunda característica que fazia do Tião uma
pessoa especial era a de que se tratava de um artista
- e ninguém melhor do que um artista para me
ajudar a transformar aquele Núcleo de Serviços
num grande centro de arte e cultura para a
população de rua.
Inúmeros são os talentos e habilidades de que
dispõe. É como um mágico que pode tirar uma
incontável quantidade de objetos de dentro de uma
cartola, sob o olhar atônito de expectadores que
sequer imaginam de onde estão surgindo tantas
surpresas.
Quando chamei Sebastião para trabalharmos juntos
ele já havia atingido o status de celebridade.
Era conhecido pela imprensa e pelos movimentos
ligados à população de rua.
Já havia apresentado peças e monólogos teatrais de
sua autoria para multidões. Já tinha escrito livro,
manifestos, instituído um blog na rede virtual e sua
arte já havia sido escancarada aos olhos do público
em rede nacional em diversos e renomados
programas de televisão.
No Núcleo de Serviços, desenvolveu de maneira
impressionante aquele que, para mim, é seu maior
dom: conseguir entrar no âmago da alma humana e
fazer aflorar suas vocações.
Como um minerador, garimpou, lapidou e poliu
com a sua personalidade um grupo de moradores de
113
rua que logo se tornou assíduo e como um
jardineiro, regou e fez desabrochar em cada um
deles o que guardavam de melhor dentro de si.
Começaram a despontar artigos aos quais realmente
se podia agregar valor como bolsas, almofadas,
brinquedos, esculturas e vários outros. Criou aquilo
que batizou de “Oficina de Sonhos“, transformando
o que nas mãos de outra pessoa se tornaria um
espaço destinado a modorrentas e previsíveis aulas
de artesanato, nas quais homens e mulheres
apáticos costurariam panos de prato, em uma real
oportunidade de geração de renda para os
moradores de rua participantes.
Tião foi responsável pela gestação e concepção da
calorosa vida que preenchia toda a atmosfera da sua
Oficina de Sonhos.
Conseguiu incluí-la em feiras e eventos de
economia solidária e empreendimentos sociais em
Praças no Centro da Cidade e implementou um
espaço para a comercialização dos produtos dentro
da própria oficina.Também fez contatos e formou
parcerias trazendo para dentro daquele Núcleo de
Serviços voluntários da Universidade de São Paulo,
da Ordem dos Músicos do Brasil, da Secretaria de
Cultura e vários outros departamentos. Tirou a
oficina do anonimato e tornou-a pública, através de
exposição em galerias, na mídia e em outros
espaços de repercussão.
As realizações e o valor profissional de Tião faziam
justiça a todas as manifestações de reconhecimento
e apoio que recebia de vários setores da sociedade.
114
Por mais incrível que isso possa parecer, o único
setor da sociedade que não o reconhecia e não o
apoiava era o Poder Público, a quem Tião prestava
valorosos préstimos através da sua Oficina de
Sonhos.
Sebastião era um dos profissionais que mais
trabalhavam naquele Núcleo de Serviços.
Sua carga horária prevista no termo de convênio
era de três horas diárias, no entanto, ele se dedicava
oito, às vezes nove horas por dia na execução de
suas atividades. Trabalhava voluntariamente aos
sábados, uma vez que não precisaria abrir a oficina
aos finais de semana.
Tião adentrava noites engajado nos preparativos
para os eventos artísticos e culturais que
realizávamos no Núcleo de Serviços e não se
contentava com nada menos do que a perfeição,
pois acreditava fielmente que a população de rua
merecia o melhor.
Apesar de tudo isso, Tião não era reconhecido pelo
Poder Público sequer como um funcionário.
A importância que davam ao seu trabalho era
tamanha que os recursos para o pagamento de seus
honorários não estavam registrados junto aos dos
demais funcionário no termo de convênio e vinham
especificados em um quadro a parte, denominado
“outras despesas“, no qual constavam gastos
relativos a coisas como lavanderia, gás e luz.
Esse era o valor dado pela Secretaria Municipal de
Assistência Social de São Paulo ao trabalho do
Sebastião, equiparando sua importância a de um
bujão de gás ou uma máquina de lavar roupas.
115
As consequencias dessa desconsideração eram
nocivas e causavam-lhe vários contratempos.
O seu salário era o único que atrasava, pois
dependia da improvável pontualidade da prefeitura
na efetivação do depósito da verba de convênio na
conta da organização - o que invariavelmente
tornava seu pagamento um calvário. Era necessário
confeccionar vales com valores picados para que
Tião pudesse quitar suas contas.
As demais consequências Tião sentiria a médio e
longo prazo. Era o único funcionário que, por ser
enquadrado na categoria de prestador de serviços e
não de trabalhador formal e seu cargo não constar
no quadro de recursos humanos estabelecido no
termo de convênio, estava desprotegido de todas as
leis trabalhistas vigentes.
Isso significava que não possuía registro em
carteira, direito a férias e décimo terceiro salário e
tampouco aquele tempo de serviço contribuiria
futuramente para sua aposentadoria.
Chateado e constrangido, uma vez que Tião aceitou
trabalhar sob tais condições para atender a um
convite meu, em todas as oportunidades e reuniões
eu denunciava essas falhas contratuais aos técnicos
supervisores do convênio para que se tentasse
repará-las na ocasião da renovação da parceria com
a Organização.
Colocava-os a par, através dos relatórios mensais,
de todas as benfeitorias que Tião havia realizado e
da importância do seu trabalho e da sua presença
para aquele Núcleo de Serviços.
116
Contudo, o contrato de parceria foi renovado
alguns meses depois e sequer uma linha foi alterada
do regimento original.
Sempre considerei Tião um funcionário formal
daquele Núcleo de Serviços e tentava fazê-lo se
sentir dessa maneira.
Ele ostentava seu crachá de identificação com um
aparente orgulho, mas na verdade estava alheio a
esses procedimentos protocolares.
Sebastião era movido pela disposição indelével em
pastorear seu rebanho de artistas de rua e pelos
sonhos de sua oficina.
Nem mesmo a desconsideração do Poder Público
por seu trabalho poderia desanimá-lo.
Que fiquem aqui registradas minha admiração e
amizade por Sebastião Nicomedes, um verdadeiro
educador social.
117
Um barril de pólvora
O atendimento noturno - no qual funcionava o
serviço de acolhimento aos moradores de rua por
meio do nosso albergue - é digno de um capítulo à
parte.
Como afirmado em passagens anteriores, a maior
preocupação dos técnicos da prefeitura com relação
à aglomeração de moradores de rua na portas dos
estabelecimentos que oferecem atendimento social,
é a possível ocorrência de mortes, principalmente
no inverno.
A capacidade de atendimento do nosso albergue era
reduzida – o que implicava em sérios problemas
nas noites gélidas.
Mesmo depois de atingida a capacidade máxima de
atendimento, era inevitável que um grande número
de moradores de rua permanecesse do lado de fora
do estabelecimento, na esperança de conseguir uma
vaga para dormir
Nessas circunstâncias, deveriam ser colocadas em
prática algumas medidas emergenciais que haviam
sido previamente transmitidas pelos supervisores
técnicos.
O primeira delas determinava o acionamento da
CAPE (Central de Atendimento Permanente e
Emergências), pois esse setor da Secretaria de
Assistência Social gerenciava as vagas de
acolhimento na cidade e trataria de redirecionar o
contingente que não pôde ser absorvido pela
118
insuficiência de vagas para outro estabelecimento,
além de providenciar também os veículos para o
transporte das pessoas.
O segundo procedimento instruía que se autorizasse
a entrada provisória do contingente excedente para
que aguardasse em segurança a chegada dos
veículos da CAPE.
Ambos os procedimentos faziam parte de uma
cartilha de orientações e recomendações entregue a
todos os Centros de Acolhimento e albergues na
forma de uma ordem interna, despachada pelo
gabinete da Secretaria de Assistência Social e
publicada em Diário Oficial do Município no dia
27 de maio de 2009.
Pareciam medidas simples, justas e que seriam
viabilizadas sem maiores desdobramentos.
Ao mesmo tempo, a leitura do referido documento
transmitia a sensação de que tudo estava sob
controle e que o planejamento das ações havia sido
conduzido de maneira sistemática.
O caso é que, dentro da esfera pública, a teoria e a
prática são como dois planetas separados por
milhares de anos luz e tempestades cósmicas de
distância e nem mesmo a efetivação de um
mecanismo elementar de pronta resposta a um
entrave que de maneira nenhuma poderia causar
surpresa, uma vez que fora prevista sua provável
ocorrência, se conseguia colocar em prática
adequadamente.
Desencontro de informações, má organização,
falhas de comunicação e ausência de infraestrutura
estouravam como uma bomba nas mãos dos
119
educadores noturnos de plantão, a quem caberia
executar ações de verdadeira superação humana
para que desfechos realmente graves não viessem a
ocorrer dentro do nosso Centro de Acolhimento.
Julho de 2009. Noite fria e chuvosa, típica de
inverno paulistano.
O frio, por si só, já se constituía em uma forte razão
para que aumentassem consideravelmente nossa
preocupação e atenção. O frio acrescido de chuva
fazia com que a noite tomasse ares de filme de
terror, haja vista o aumento expressivo do número
de pessoas que manifestavam o desejo de serem
abrigadas.
As condições de trabalho não eram nada favoráveis.
Contávamos com dois funcionários, que ficavam
responsáveis pelo atendimento e monitoramento de
50 pessoas.
Os educadores deveriam se dividir entre uma série
de atribuições como organizar a entrada dos
acolhidos, guardar os pertences pessoais de cada
um deles no bagageiro, providenciar e servir
alimentação, distribuir individualmente toalhas,
lençóis, cobertores e utensílios de higiene pessoal,
liberar o acesso aos banheiros e dormitórios,
contabilizar o contingente que excedia o limite da
capacidade de atendimento e acionar a CAPE para
solicitar o seu transporte para outro local de
acolhimento.
Além de tais atribuições, que considerávamos
convencionais, estavam sujeitos a uma série de
outras eventuais e corriqueiras como socorrer
pessoas acometidas de mal súbito, intervir em
120
ocorrências de brigas e atender campainhas e
telefones.
O caso é que os funcionários eram seres humanos e
estavam sujeitos a adoecer ou a algum contratempo
que os impossibilitasse de trabalhar.
Foi o que aconteceu justo naquela noite.
Por alguma razão, um dos educadores noturnos não
pôde comparecer ao trabalho.
Todas as intermináveis e exaustivas atribuições que
descrevi anteriormente ficariam, naquele fatídico
plantão, a cargo de um único funcionário .
Por conta do frio e da chuva, além das 50 pessoas
que correspondiam ao limite da nossa capacidade
de atendimento, havia outras 30, molhadas,
famintas e ávidas para se abrigar das intempéries.
Eram quase 9 horas da noite.
Logicamente, eu havia ficado para auxiliar o único
educador de plantão, que embora fosse um rapaz
muito esforçado, não conseguiria de forma alguma
dar conta de tantas e variadas demandas.
Decidimos cumprir à risca as orientações contidas
na cartilha e na ordem interna que tínhamos em
mãos.
Providenciamos a entrada dos 30 moradores de rua
que esperavam do lado de fora - que se somaram
aos 50 que ali já estavam.
Tratei de acionar a CAPE e informar nossa situação.
Requisitei que transferissem o grupo de pessoas
que não conseguiríamos atender para outro local de
acolhimento e fui informado pela atendente que,
devido ao acúmulo de demandas a que aquele setor
estava submetido naquela noite de frio intenso, não
121
havia veículos suficientes para se realizar o
transporte das pessoas, tampouco prazo para que tal
situação pudesse se normalizar.
Entendíamos perfeitamente a difícil situação na
qual se encontrava a funcionária da CAPE, que
apesar da boa vontade em ajudar, pouco podia fazer,
em razão da frágil estrutura operacional de que
dispunha.
Eu havia dirigido aquele departamento há cerca de
três anos e me deparava, na época, com as mesmas
limitações.
Recordei as inúmeras noites em que recebíamos
chamadas dos Centros de Acolhimento e albergues
solicitando a transferência de pessoas para outros
estabelecimentos e não conseguíamos atendê-los de
maneira eficiente.
Por ironia do destino, eu me encontrava, naquele
momento, na outra ponta do cordel de desesperados.
Quando estava na CAPE, não conseguia sequer
imaginar o tamanho da encrenca em que estavam
metidos os funcionários dos albergues quando nos
acionavam requerendo apoio.
É fato que as condições estruturais que possuíamos
não nos permitiam intervir adequadamente, assim
como ocorre nos dias atuais.
Na verdade, os funcionários e educadores noturnos
dos albergues e Centros de Acolhimento se
deparavam há três anos com o mesmo impasse que
estávamos vivendo naquela noite. O que dizer,
naquele momento, para os 30 moradores de rua que
excediam nossa capacidade de abrigamento e que
aguardavam por um local para dormir.
122
Logicamente, a aglomeração de quase 90 pessoas
confinadas em um único espaço físico e a nossa
total incapacidade de administrá-lo resultaram em
inúmeros problemas.
Pessoas entravam e saiam livremente de todas as
dependências, desciam e subiam as rampas de
acesso, pediam coisas, passavam mal.
Havia cachorros trazidos pelos moradores de rua
circulando pelo refeitório. Acrescente-se a tudo
isso doses consideráveis de ansiedade, exaltação e
exaustão decorrentes da demora no atendimento e
nos víamos agarrados a um barril de pólvora
prestes a explodir.
Não se cogitava dispensar os moradores de rua
excedentes - o que se converteria num ato de atroz
desumanidade.
Tampouco haveria condições de acomodá-los em
algum espaço improvisado, uma vez que não havia
colchões, cobertores e outros materiais suficientes.
Da mesma forma, não poderíamos garantir a
mínima segurança de uma centena de pessoas
distribuídas aleatoriamente por várias dependências
diferentes.
Contudo, era necessário tomar medidas imediatas
para restabelecer a ordem e restava –nos recorrer
aos meios de fortuna.
Havia uma Kombi estacionada na área da entrada
lateral. Esse carro havia sido doado tempos atrás à
Organização Aliança de Misericórdia por uma
empresa ou um benfeitor e era de uma serventia
incomensurável, pois nos permitia socorrer
123
moradores de rua acometidos de doenças e mal
súbito, buscar doações e fazer as compras do mês .
Decidi então tornar a contatar a CAPE e solicitar
àquele órgão, como controlador das vagas de
acolhimento em toda a cidade, que simplesmente
me informasse em quais outros estabelecimentos
havia disponibilidade de vagas e nós mesmos
realizaríamos o transporte das pessoas.
Satisfeita pela possibilidade de aliviar sua extensa
lista de chamadas, a funcionária da CAPE me
autorizou a transportá-las para um albergue situado
na região da Vila Alpina, próximo ao crematório.
Tratamos, então, de dividir as tarefas.
O funcionário de plantão permaneceria no nosso
albergue dando continuidade aos afazeres habituais
como a distribuição de materiais e roupas de cama
e a liberação dos dormitórios para os que quisessem
se acomodar, coisa que ainda não havia sido feita
pela indefinição quanto ao destino daqueles 30
moradores de rua.
Da minha parte, me encarreguei da missão de
transportar os 30 moradores de rua para um Centro
de Acolhimento na Vila Alpina com a nossa Kombi
- o que demandaria certa dose de paciência, pois a
o veículo comportava no máximo oito passageiros
Outro problema me afligia.
Eu não conhecia a localização do Centro de
Acolhimento para onde deveria levar todas aquelas
pessoas. Na época em que trabalhava na CAPE
suas instalações ainda funcionavam na Avenida
Paes de Barros, na Vila Prudente.
124
Para meu azar, haviam se transferido há pouco
tempo para o novo endereço que, naquele preciso
momento, era do meu total desconhecimento. Não
havia sequer um guia de ruas no veículo, coisa que
tratei de providenciar na manhã do dia seguinte.
Precisamente às 10 horas da noite eu partia como
um marinheiro sem destino, em minha primeira
viajem, conduzindo oito moradores de rua do nosso
Centro de Acolhimento, no Brás, para outro na Vila
Alpina.
O que deveria ser um trajeto de vinte minutos se
transformou em uma saga com direito a incontidas
manifestações dos passageiros - algumas de cunho
jocoso e descontraído, em virtude das inúmeras
vezes em que perdi completamente a rota nas mal
sinalizadas e labirínticas pontes de acesso que
ligavam as Avenidas do Estado, Avenida Juntas
Provisórias e Avenida Anhaia Melo - outras de
caráter mais reivindicatório, porém nunca hostil,
motivadas certamente pelo cansaço.
Após alguns desencontros e algumas paradas para
localização, finalmente chegamos ao nosso destino.
Faltavam poucos minutos para as 11 horas da noite.
Foram necessárias mais três viagens de Kombi para
que conseguíssemos cumprir nossa obrigação e
garantir algumas horas de descanso para aquelas
dezenas de pessoas.
Como consolo, as viagens subsequentes não
proporcionaram maiores aventuras, zombarias ou
descontentamentos, uma vez que já havia me
familiarizado com o caminho.
125
Eu e o educador noturno pudemos considerar a
situação sob controle precisamente às duas e meia
da madrugada do outro dia, quando todos já haviam
se recolhido e a profunda escuridão que tomava o
amplo salão inferior permitia refletir suavemente
em seu pavimento um fragmento de luar espremido
entre as nuvens carregadas.
Conversamos um pouco sobre o apuro que
havíamos passado naquela noite, justamente por
termos cumprido rigorosamente as recomendações
contidas na ordem interna e exaustivamente
reiteradas pelos supervisores técnicos.
Comentamos a insensatez da portaria pública que
estabelecia um efetivo de dois funcionários para
atenderem não só os 50 moradores de rua que
representavam o limite da nossa capacidade de
acolhimento, mas também às dezenas de outros que
eventualmente pudessem bater em nossas portas e a
quem deveríamos providenciar alternativas de
abrigamento.
Exaustos, não falamos mais nada.
Eu ainda alimentava alguma esperança de que os
entraves que ocasionaram a falha absoluta dos
procedimentos orientados se restringiriam àquela
noite e que teriam ocorrido devido a uma série de
fatalidades como a combinação de dois fatores
climáticos - no caso a chuva e o frio - além da
incapacidade operacional da CAPE de cumprir com
o seu papel, o que, inocentemente, também julgava
ser algo circunstancial.
No entanto, eu descobriria nos dias, semanas e
meses subsequentes que a inocuidade de toda
126
aquela operacionalização se tornaria permanente e
haveríamos de lidar com ela durante o resto do
inverno.
O fato é que a CAPE não estava minimamente
estruturada para desempenhar a difícil missão de
remanejar os moradores de rua que não pudessem
ser atendidos pelos Centros de Acolhimento para
outros menos lotados.
Não contava com veículos, tampouco funcionários
suficientes para realizar esse trabalho com
dinamismo e eficiência.
Ninguém da equipe de gestão do gabinete da
Secretaria de Assistência Social se ateve a esse
importante detalhe no momento em que faziam o
planejamento das ações.
Essa disfunção no mecanismo operacional que
haviam planejado obrigava os albergues e Centros
de Acolhimento a absorverem o contingente de
pessoas que extrapolava o limite de sua capacidade
de atendimento.
Isso significa que um estabelecimento que dispunha
de uma estrutura de recursos humanos e logísticos
que já era precária e insuficiente para acolher 50
moradores de rua, acabava acolhendo dezenas de
outros mais em razão do compromisso moral e
humanitário de não deixar de prestar auxílio em
quaisquer circunstâncias.
Esse é momento em que o Poder Público age mais
perversamente com as Organizações conveniadas.
Em sua maioria, as organizações são instituições
com vocações e origens religiosas, movidas por
fundamentos missionários.
127
Conscientes disso, as autoridades se acomodam
contando maquiavelicamente com a certeza de que,
em razão de suas ideologias, seus princípios e
valores, as Organizações não deixarão de acolher
pessoas além da sua capacidade regulamentar e que
não permitirão que moradores de rua morram em
sua porta por falta de atendimento.
Igualmente, é nesse preciso momento que a relação
entre o Poder Público e a Sociedade Civil deixa de
ser uma parceria, no sentido amplo e ideológico da
palavra, passando a ser uma relação escravista, na
qual o sentimento humanitário das Organizações se
transformará nas correntes que as prenderão
firmemente aos punhos e sob o total controle do
seu “senhor”.
O cumprimento dos compromissos morais e éticos
das Organizações, no entanto, tem um preço.
Esse preço não é pago pelo Poder Público,
satisfeito pelo fato de que, mesmo precária e muitas
vezes indignamente acolhido, as possibilidades de
um morador de rua morrer de frio dentro do
estabelecimento são reconhecidamente menores do
que na rua e isso já lhes bastava.
Da mesma forma, não se abatem com o fato de
pessoas serem carregadas em peruas madrugadas
adentro para que possam desfrutar do “privilégio”
de dormir sob um teto por um par de horas.
Uma parcela menor, porém significativa deste
preço é paga pela Organização conveniada e pelos
funcionários dos albergues e Centros de
Acolhimento, que inexoravelmente ficam sujeitos a
128
sobrecargas de trabalho descomunais e seus
inevitáveis e já comentados desdobramentos.
Infelizmente, como de costume, a parcela maior
desse preço é paga pelos próprios moradores de rua,
que são obrigados, em virtude da improvisação de
meios para que o albergue consiga atender ao
contingente excedente, a se exporem a situações
que pouco diferem das enfrentadas cotidianamente
nas ruas.
Tais situações são inerentes à falta ou ao
fornecimento precário de refeições noturnas e café
da manhã, de materiais de higiene pessoal como
toalhas e sabonetes e à indisponibilidade de camas
e beliches.
Para o Poder Público, toda essa sorte de limitações
na oferta dos serviços se torna plenamente aceitável.
O argumento escutado da boca de muitos técnicos e
funcionários da prefeitura é de que não há qualquer
inconveniência no fato de um morador de rua
dormir sujo, de barriga vazia, em um colchonete
estendido no chão de um Centro de Acolhimento,
pois isso ainda é melhor do que na rua, exposto ao
frio.
É a triste constatação que se faz acerca do modelo
ideológico cruel adotado pelas autoridades públicas
com relação não só aos serviços oferecidos à
população de rua, mas à pobreza de uma forma
geral, que se traduz no conceito autoritário da
“imposição demeritória“ ou, traduzindo – se para o
coloquial, “pra pobre qualquer coisa serve”.
A qualidade das camas - se é que se pode chamálas assim - nas quais dormiam os 50 moradores de
129
rua que preenchiam a capacidade regulamentar do
nosso albergue dava provas disso.
Esses leitos nos foram enviados pela prefeitura
juntamente com lençóis, toalhas e demais materiais
às vésperas da abertura do Centro de Acolhida.
Tratava-se de leitos a que se chama de “campana”.
São macas dobráveis como aquelas vistas em
filmes de guerra, sem qualquer sustentação para as
costas e de uma fragilidade indescritível. Sequer
foram enviados travesseiros o que obrigava os
moradores de rua a usarem suas mochilas como
apoio para as cabeças, até que a Organização
contratada tomasse a iniciativa de providenciar sua
aquisição. Os casos e reclamações de dores nas
costas, torcicolos e outras contusões ocasionadas
pela péssima qualidade das camas e pela falta de
travesseiros chegavam ao conhecimento das
assistentes sociais diariamente.
No nosso Centro de Acolhimento, a maneira que
encontramos para atender os moradores de rua que
excediam o limite da capacidade foi utilizar nosso
próprio veículo para transportá-los para outros
locais.
Esse procedimento foi colocado em prática à
exaustão durante todo o inverno.
Os educadores do plantão noturno se revezavam no
cumprimento das demandas.
Um deles permanecia no albergue realizando as
funções ordinárias, enquanto o outro deveria
realizar várias viagens transportando dezenas de
pessoas para outros estabelecimentos, exatamente
como eu havia feito nos primeiros dias do inverno.
130
A utilização dessa estratégia alternativa acarretava
na permanência quase em tempo integral de apenas
um funcionário dentro do estabelecimento - o que
implicava sérios riscos aos próprios funcionários e
também aos moradores de rua.
A adoção desse procedimento também exigiu que
incluíssemos no item “outras despesas“ da nossa
prestação de contas realizada mensalmente junto à
prefeitura os valores referentes aos gastos com
combustível realizados nos transportes noturnos.
Lembremos uma vez mais que efetuávamos os
transportes com nossa Kombi para não deixar
moradores de rua desabrigados numa noite de frio,
ao passo que o planejamento feito pela prefeitura
para o remanejamento do público excedente dos
Centros de Acolhimento era um verdadeiro fiasco e
que o veículo utilizado para a realização dos
transportes era patrimônio da Organização, sendo
de sua inteira responsabilidade arcar com os custos
referentes à manutenção do veículo, documentação
e aos demais encargos administrativos.
Ainda assim, o técnico supervisor do convênio me
advertiu que os gastos realizados com combustível
estavam muito elevados e que seria estabelecido
um limite de valor a ser coberto pela prefeitura. Na
hipótese desse valor ser ultrapassado, não haveria
qualquer ressarcimento.
Nenhum dos argumentos anteriormente citados dos
quais me utilizei para justificar os gastos com
combustível sensibilizou o técnico supervisor,
tampouco meus apelos em nada contribuíram para
um desfecho menos melancólico daquela discussão.
131
Aquele assunto foi encerrado e imediatamente se
introduziu outro, que tratava de alguma banalidade.
Emudeci. Senti como se estivesse amordaçado,
com os pés e as mãos amarrados.
Senti-me como um escravo.
132
Vigiar, punir ou cuidar
No nosso trabalho anterior, tratamos de criticar em
diversas passagens a indiferença com que as
equipes técnicas da maioria dos Núcleos de
Serviços, Centros de Acolhimento e albergues
tratavam o grave problema do uso abusivo de
bebidas alcoólicas pela população de rua.
Na época em que eu conduzia moradores de rua
alcoolizados para os albergues, através da CAPE,
constatava que a estratégia dos estabelecimentos
para fazer frente a essa situação era a mesma
utilizada para todos as outras com as quais tinham
dificuldade em lidar: a mera repressão.
Assim, os moradores de rua que chegavam
espontaneamente ou conduzidos pelos educadores
de rua aos estabelecimentos sócioassistenciais
tinham sua entrada automaticamente vetada, ainda
no portão, caso fosse constatada sua embriaguez
pelo educador do estabelecimento.
Da mesma forma, a reincidência era causa de
exclusão compulsória por tempo indeterminado.
O caso é que, na maioria das situações, a punição
era aplicada sem que tivesse sido apresentada ao
morador de rua qualquer alternativa de atendimento
apropriado e que pudesse auxiliá-lo a controlar o
hábito de beber.
A metodologia utilizada pelos profissionais dos
estabelecimentos para estimular o autocontrole do
133
morador de rua com relação à bebida era
questionável e pouco didática.
Presumiam que o “castigo” de ser compelido a
dormir na rua o conscientizaria da necessidade de
moderar o consumo do álcool.
A consistência desse argumento é frágil, pois a
ação de submetê-lo deliberadamente ao sofrimento,
mesmo com intuito corretivo, não possuía qualquer
valor pedagógico, ao passo que a justificativa para
a punição não poderia ser compreendida em virtude
dos efeitos da embriaguez, e por conseguinte, não
produzia o resultado regenerativo que os
profissionais do estabelecimento esperavam.
Contudo, as experiências vivenciadas no albergue
foram fundamentais para que eu passasse a
compreender com mais clareza as causas do rigor
no tratamento dispensado aos beberrões
contumazes pelos educadores sociais e funcionários
dos estabelecimentos.
De fato, as razões que motivavam os educadores
sociais noturnos do nosso albergue a adotarem
medidas intransigentes eram as mesmas verificadas
no período diurno.
O pequeno efetivo de educadores escalado para o
trabalho noturno - por sinal ainda mais restrito se
comparando aos outros períodos, em razão dos
encargos salariais adicionais previstos na legislação
trabalhista - não conseguia fazer frente ao
comportamento inadequado dos moradores de rua
alcoolizados.
Além da sobrecarga de trabalho a que estavam
submetidos em suas tarefas usuais, os educadores
134
noturnos ficavam incumbidos de apartar brigas
envolvendo indivíduos alcoolizados, socorrer
àqueles que sofriam quedas e desmaios por conta
da embriaguez e eram acometidos de um desgaste
psicológico muito intenso, pois se tornavam alvos
dos atos de hostilidade e desrespeito cometidos
pelos beberrões.
Nesse contexto dramático, a ação dos educadores
noturnos de barrar a entrada de moradores de rua
alcoolizados nos estabelecimentos é compreendida,
porém, não concebida, uma vez que pagam
novamente os moradores de rua pelas falhas do
sistema de atendimento.
Mesmo conhecendo e presenciando as dificuldades
de se lidar com pessoas alcoolizadas nas condições
funcionais que estávamos submetidos, a orientação
dada aos educadores do período noturno alertava
para a necessidade do critério.
O fato é que de cada dez moradores de rua que
dormiam no nosso Centro de Acolhimento, nove
bebiam exageradamente.
Por conta disso, era imprescindível que se avaliasse
o grau de embriaguez do morador de rua no
momento da sua entrada, para que não se
cometessem exageros com relação à restrição ao
seu acesso.
A inflexibilidade inexoravelmente acarretaria no
esvaziamento do Centro de Acolhimento ou faria
com que as vagas fossem ocupadas por pessoas que
não eram realmente moradores de rua.
A atenção também era requerida no sentido de
despertar junto aos educadores a capacidade de
135
compreender o uso abusivo do álcool como uma
estratégia utilizada pelo morador de rua para
aplacar seu sofrimento físico e psíquico, evitando
assim que desenvolvessem um olhar policial,
moralista e estigmatizado acerca dessa questão.
Eu manifestava abertamente a minha contrariedade
com relação às punições aleatórias - dentre as quais
se destacavam as suspensões e fundamentalmente
as exclusões sumárias - e que anteriormente à
aplicação de qualquer medida repressiva contra os
bebedores contumazes lhes fossem apresentadas
propostas de orientação e ajuda.
Manter essa posição exigia doses cavalares de
esforço, pois a recorrência de fatos desagradáveis
desencadeados por moradores de rua alcoolizados
contribuía para o aumento da insatisfação dos
funcionários.
As manifestações de descontentamento dos
educadores noturnos às assistentes sociais - a quem
os primeiros remetiam os relatórios queixosos
acerca das confusões causadas pelos moradores de
rua embriagados – aconteciam cada vez mais
frequentemente.
Uma vez que a pressão aumentava para que
medidas enérgicas e exemplares fossem tomadas
para com os beberrões do período noturno, era
necessário diversificar as formas de intervenção ao
problema.
Até então, se contava com uma única alternativa de
auxílio aos moradores de rua usuários de álcool e
drogas.
136
Essa alternativa, apesar de reconhecidamente eficaz,
atraía a um perfil específico da população de rua,
cujos efeitos do uso prolongado da bebida já
haviam desencadeado sucessivas complicações
físicas e psicológicas. A condição desse morador de
rua se apresentava de tal maneira crítica, que seu
mal estar o convencia da necessidade de buscar
ajuda, ao passo que percebia em risco sua própria
vida.
A esse morador de rua se oferecia como proposta
de atendimento o que chamávamos de “Casas de
Acolhida“.
Eram locais mantidos pela própria Organização
Aliança de Misericórdia nos quais o morador de rua
permaneceria acolhido por um período de tempo
indeterminado com a finalidade de desintoxicar seu
organismo, controlar o uso do álcool e readaptá-lo
ao convívio coletivo
A metodologia utilizada era baseada na laborterapia
e na terapia ocupacional.
A questão com relação a esse tipo específico de
encaminhamento era que, de fato, ficava restrito
àqueles que reconheciam os prejuízos e danos
causados pelo uso do álcool ou das drogas e
manifestavam espontaneamente desejo de aderirem
a um programa de reabilitação.
Trocando em miúdos, esse tipo de intervenção
serviria àqueles que chegaram ao fundo do poço.
Moradores de rua que não se encontravam nessa
condição de vulnerabilidade extrema tendiam a
repudiar esse modelo de atendimento, pois sua
metodologia exigia o afastamento imediato das
137
pessoas, hábitos e ambientes a que estavam
acostumados.
No entanto, a maioria dos moradores de rua
usuários de álcool e drogas ainda não atingiu a um
estágio de consciência que lhe motive buscar ajuda
deliberadamente e é provável que somente dê conta
dos malefícios da bebida quando as consequências
desse hábito já lhe infligirem sérios danos à saúde.
O fato de ainda conseguirem manter certo grau de
autonomia física em virtude do uso da bebida ainda
não interferir em seus afazeres habituais, faz com
que ignorem seus efeitos degenerativos e não
percebam os prejuízos gradativos e cumulativos
que produz. Por essa razão, negam que o uso da
bebida ou da droga esteja fora de controle e tendem
a desprezar as ofertas de auxílio.
É justamente para esse perfil formado por
moradores de rua inconscientes das consequências
da bebida em suas vidas que se requerem propostas
de atendimento mais adequadas e abrangentes.
O simples fato de não aceitar sua própria condição
- o que muitas vezes requer tempo - desestimula
educadores e funcionários de Núcleos de Serviços,
Centros de Acolhimento e albergues a investirem
tempo e atenção nesses indivíduos. Consideramnos casos perdidos, indignos de maiores esforços.
Na verdade, ocorre exatamente o contrário.
O quanto antes esse morador de rua atingir o nível
de consciência que lhe moverá a buscar melhorias
em sua condição de vida, mais será poupado das
sequelas físicas e psíquicas geradas pelo uso do
álcool.
138
Nesse sentido, a motivação é uma ferramenta que
poderá adiantar tal processo.
Esse trabalho, que não apresentará resultados
imediatos e que requer doses maciças de paciência
e persistência dos educadores sociais e quadros
técnicos, deve ser implementado com urgência nos
locais que atendem à população de rua, ocupando o
lugar das medidas repressivas ou ao menos sendo
conciliado a elas.
No nosso Núcleo de Serviços com albergue foram
implementadas intervenções variadas voltadas à
questão do uso do álcool.
Essas intervenções visavam atingir a um grande
número de moradores de rua que, como explicado,
fazia uso recorrente dessa substância, porém, com
consequências eventuais e passageiras.
Por essa razão, quaisquer propostas de atendimento
que apresentássemos deveriam considerar o fato de
que não se sujeitariam a elas espontaneamente,
tampouco sem uma forte motivação.
Nos casos diagnosticados de maior gravidade, nos
quais percebíamos que a vida do morador de rua
estava em risco ou que a bebida instigava seu mal
comportamento, a utilização dos serviços de
alimentação, banho e abrigamento passava a ser
condicionada à participação nos programas de
reabilitação oferecidos, evitando-se assim a
aplicação de punições ou sansões disciplinares
desvinculadas de propostas de atendimento.
É importante ressaltar, no entanto, que apesar do
esforço empenhado em diversificar o número de
programas voltados ao controle do uso de álcool e
139
substâncias químicas, poucos demonstraram ser
efetivos para população de rua.
Algumas constatações sobre programas tradicionais
apresentadas em nosso trabalho anterior, bem como
incompatibilidades funcionais com características e
hábitos próprios da população de rua, puderam ser
confirmadas empiricamente no Núcleo de Serviços
com albergue.
Além das Casas de Acolhida - cujas peculiaridades
metodológicas já foram comentadas - as assistentes
sociais da nossa equipe apresentavam ao morador
de rua a proposta de encaminhamento para o
CRATOD (Centro de Referência de Álcool,Tabaco
e Outras Drogas).
Trata-se de um órgão ligado à Secretaria Municipal
de Saúde, de fácil acesso para o morador de rua e
que não requer sua internação.
Dentre as qualidades do CRATOD, destaca-se a
desburocratização do atendimento.
Não é necessário agendar consulta ou marcar hora.
O encaminhamento por escrito do morador de rua
feito pela equipe técnica do estabelecimento ao
qual está cadastrado já é suficiente.
Também são dignas de elogios a receptividade no
atendimento e a forma humana com que tratam o
morador de rua, algo raro de se verificar em órgãos
e serviços públicos.
As intervenções são realizadas por profissionais da
área médica, psicólogos e assistentes sociais e a
frequência às consultas dependerá das avaliações e
da complexidade diagnosticada em cada caso.
140
A questão que torna o encaminhamento de
moradores de rua para o CRATOD discutível
quanto à sua funcionalidade é a utilização de
medicamentos.
As cartelas de comprimidos são distribuídas
gratuitamente aos pacientes com a finalidade de
auxiliá-los dentro do processo de abstinência.
Trata-se de remédios potentes, de efeito calmante e
prolongado e que são fornecidos logo nas primeiras
consultas.
É necessário observar que, por se tratar de uma
intervenção que preconiza a interrupção abrupta e
imediata do hábito de beber, é quase impossível
para o morador de rua manter-se sóbrio, à medida
que sua rotina, suas companhias e os locais que
frequenta permanecem inalterados.
Considerando todos esses fatores, que são inerentes
às estratégias de sobrevivência e relações sociais
estabelecidas pela população de rua , coloca-se em
debate se o modelo de atendimento utilizado pelo
CRATOD é apropriado para esse segmento social
especificamente.
Seguindo essa mesma linha de raciocínio,
considerando também que o uso abusivo de álcool
pela população de rua é um sedativo para traumas
emocionais causados pelas rupturas dos vínculos
familiares, decepções, desilusões e frustrações
vivenciadas no passado, é improvável que uma
intervenção medicamentosa radical consiga
desenrolar esse emaranhado de sentimentos tão
profundos num curto espaço de tempo.
141
Obviamente, a intenção da equipe médica e dos
profissionais do CRATOD é a melhor possível, não
temos dúvida quanto a isso, haja vista a maneira
como tratam a população de rua e a simpatia
unânime que as pessoas que encaminhávamos para
lá manifestavam pelo lugar
O fato é que a ingestão concomitante da bebida e a
medicação fornecida nas consultas culminava em
reações extremamente desagradáveis manifestadas
pelos moradores de rua que encaminhávamos para
atendimento nesse órgão.
Outra proposta de encaminhamento que apresentou
poucos resultados efetivos foi a implementação de
um grupo de alcoólicos anônimos (A.A.) no nosso
Centro de Acolhimento.
É importante, no entanto, que se faça justiça aos
representantes dessa irmandade.
Durante os seis meses em que estiveram conosco,
os palestrantes dos alcoólicos anônimos aplicaram
esforços ilimitados na tentativa de conduzir
moradores de rua à abstinência, através de seus
exemplos e, principalmente, da crença indelével
quanto à efetividade de seus métodos.
A certeza e a confiança que trazem dentro de si
acerca do poder regenerador da metodologia de
alcoólicos anônimos são dignas de admiração.
As reuniões de alcoólicos anônimos ocorriam às
sextas-feiras no Centro de Acolhimento, das 8 às 9
horas da noite.
Nesse dia, exclusivamente, a participação nas
reuniões era obrigatória para os que desejassem
dormir no nosso albergue.
142
A despeito da conotação despótica e coercitiva que
esse tipo de estratégia possa carregar, alguns
argumentos justificam, ao menos parcialmente, sua
adoção.
Invariavelmente às sextas -feiras, o anoitecer trazia
terríveis expectativas para todos os funcionários do
Centro de Acolhimento.
Os tradicionais bailes e forrós do Largo da
Concórdia - sempre fervilhando e empilhados de
gente - e o fato de sexta-feira ser o dia em que
muitos recebiam o pagamento pelos bicos
realizados durante a semana eram fatores que
contribuíam para triplicar o número de moradores
de rua que chegava ao albergue num estado de
embriaguez lastimável.
Consequentemente, sexta-feira também era o dia
em que ocorriam mais tumultos, brigas, desacatos e
toda sorte de contravenções que levavam os
educadores do período da noite literalmente à
loucura.
A opção de realizar a reunião dos alcoólicos
anônimos na noite de sexta-feira não foi, por assim
dizer, aleatória.
A verdade é que não era nenhum sacrifício para os
moradores de rua acompanharem, uma única vez na
semana, a uma palestra cuja duração prevista era de
sessenta minutos. Nas preleções que precediam às
reuniões, reiterávamos que a participação no evento
nada mais era do que uma contrapartida, uma vez
que diariamente tolerávamos ocorrências causadas
por frequentadores alcoolizados e que em qualquer
outro albergue da cidade a grande maioria muito
143
provavelmente estaria excluída em virtude de tais
transgressões.
A intenção era que, com o passar do tempo e das
reuniões, as pessoas pudessem se habituar e quem
sabe até despertasse em alguma delas o estímulo
para a abstinência.
Devo confessar, no entanto, que nós mesmos não
acreditávamos muito nisso.
A metodologia de alcoólicos anônimos apresenta
em alguns dos seus princípios e fundamentos
básicos fortíssimas contraposições às características
do morador de rua usuário de álcool.
Desde o primeiro encontro, os palestrantes
incentivavam os ouvintes a declarar, em alto e bom
tom, sua condição de bebedores compulsivos, bem
como reconhecerem a bebida como causadora do
seu sofrimento.
O estímulo a essa autoreflexão faz parte do
“programa dos doze passos“, um dos pilares da
metodologia de intervenção desenvolvida pelo A.A
e que consiste no seguimento de doze diretrizes
doutrinárias.
A questão é que não passava pela cabeça de
nenhum daqueles moradores de rua que o álcool
representasse um problema em sua vida.Para eles, o
uso da bebida era recreativo.
Na verdade, aquela platéia não era composta por
bebedores compulsivos - a que os palestrantes
denominavam “alcoólatras” e que constitui a maior
parte dos adeptos e seguidores da doutrina de
alcoólicos anônimos - tampouco eram bebedores
144
típicos de uma “happy hour” de fim de tarde como
convenientemente se julgavam ser.
Outro recurso comumente utilizado nas reuniões e
que inexoravelmente conduzia à frustração era o
testemunho individual.
Os palestrantes discorriam de maneira desenvolta e
entusiástica acerca de suas histórias pessoais, das
razões pelas quais se entregaram à bebida e de que
forma angariaram a força de vontade que os
libertou.
Os testemunhos pessoais eram o componente
didático principal das reuniões. Os palestrantes se
esmeravam na declamação de seus depoimentos
com a clara intenção de estimular junto aos
moradores de rua o desejo de falar e compartilhar
suas amarguras.
Contudo, nem os mais inflamados e emocionados
discursos motivavam qualquer manifestação da
platéia. Nenhum aplauso, grito de incentivo, sequer
uma piscada de olhos.
Absolutamente nada acontecia.
Costumeiramente, eu acompanhava tão somente a
abertura das reuniões nas noites de sexta-feira
como maneira de expressar meu apoio ao evento e
deixar os palestrantes e participantes à vontade.
Algumas vezes fazia uma pequena preleção ou
reiterava alguns avisos.
Passado esse momento, na maioria das vezes me
recolhia ao meu escritório para assinar documentos,
organizar gavetas e me dedicar a outros afazeres
menos importantes e interessantes que usualmente
eu deixava para o final do dia.
145
Como mantinha a porta do escritório sempre aberta
enquanto as reuniões aconteciam, não podia deixar
de reparar que os palestrantes dos alcoólicos
anônimos repetiam seus depoimentos praticamente
em todas as reuniões e que eram muito raras as
intervenções dos participantes, salvo algumas
discussões e desentendimentos que eventualmente
ocorriam entre eles mesmos.
Abordei esse assunto enquanto tomávamos um café
ao final de uma das reuniões e com uma entonação
de voz que misturava desânimo e resignação, um
dos palestrantes exclamou, como uma desabafo :
- Essas pessoas possuem uma enorme dificuldade
para expressar seus sentimentos.
O bem intencionado e prestativo amigo palestrante
havia constatado algo muito relevante e que
comprovava empiricamente a principal razão pela
qual os métodos de alcoólicos anônimos não
atingem agudamente à população de rua.
Como já mencionado anteriormente, não é hábito
comum entre moradores de rua desabafarem sobre
seus passados e sua história com os companheiros,
com exceção, talvez, àqueles mais próximos e com
maior tempo de convivência.
Para a maioria, contudo, a ação de falar de suas
vidas pregressas traz à tona emoções incontroláveis,
torna-os vulneráveis e expõe seu lado sensível e
frágil.
Fazer isso perante a uma platéia de 50 moradores
de rua como se sugeria nas reuniões de alcoólicos
anônimos significava um risco incomensurável e
146
poderia por em cheque a arduamente conquistada
fama de durão.Era algo quase inconcebível.
Como essa era uma situação que definitivamente
não evoluía, com o decorrer do tempo as reuniões
das sextas –feiras se tornaram falaciosas e um tanto
quanto modorrentas.
O fato de não haver qualquer indício de que alguém
do grupo de moradores de rua se disporia a dar seu
testemunho obrigava os palestrantes dos alcoólicos
anônimos a repetirem os seus.
As reclamações dos ouvintes eram calorosas,
através das quais muitos deles expunham com
veemência sua contrariedade em continuar
comparecendo aos encontros .
Os palestrantes dos alcoólicos anônimos
manifestaram sua crença de que o silêncio que
acometia os moradores de rua nas reuniões era
proveniente do sentimento de desconfiança que
nutriam para com eles, em razão de serem pessoas
estranhas e que não faziam parte do seu ciclo de
convívio cotidiano.
Apesar de tal argumento não ser completamente
desprovido de sentido, não correspondia, no
entanto, à realidade.
No intuito quase desesperado de fazer com que as
reuniões apresentassem alguma efetividade, os
representantes do AA recomendaram a inclusão de
uma assistente social do Núcleo de Serviços, a
quem os moradores de rua estavam completamente
familiarizados e em quem os palestrantes
depositavam a esperança - em vão como se pôde
verificar logo em sua primeira participação – de
147
que alguma mudança ocorresse na introspectiva
dinâmica dos eventos.
A finalidade da implementação de um grupo de
alcoólicos anônimos no Centro de Acolhimento não
era a de ser uma penitência, implacavelmente
imposta àqueles que se apresentassem para dormir
embriagados, uma vez que funcionando nesses
moldes em nada diferiria esse método de outras
formas
de
castigo,
provavelmente
mais
rudimentares, mas igualmente inócuas.
A metodologia de alcoólicos anônimos, no que
tange sua eficácia para população de rua, esbarra
em outra questão crucial ocorrendo da mesma
forma com o modelo de atendimento anteriormente
analisado, o Centro de Referência de Álcool,
Tabaco e Outras Drogas.
Trata-se da ausência de laços familiares. A família
desempenhará junto ao indivíduo participante dos
programas de reabilitação a fundamental tarefa de
motivá-lo, enaltecendo seus avanços e conquistas,
estimulando-o nos momentos mais difíceis,
demonstrando confiança na sua capacidade de
reabilitação e, principalmente, acolhendo-o numa
eventual e provável recaída.
Indivíduos que possuem o privilégio de contar com
esse apoio indubitavelmente terão maiores chances
de alcançar seus objetivos.Infelizmente, esse não é
o caso da maioria da população de rua.
Agregamos às alternativas de programas voltados
ao controle do uso abusivo de álcool no Núcleo de
Serviços uma abordagem de caráter experimental,
que propunha trabalhar essa questão apresentando
148
estratégias metodológicas que fizessem frente às
dificuldades observadas nas demais intervenções.
Essa proposta havia sido desenvolvida pelo
psicólogo Walter Varanda.
Alguns anos antes, havíamos apresentado essa
idéia na forma de um pequeno projeto a um
departamento da Faculdade de Saúde Pública de
São Paulo, mas não obtivemos retorno. Tanto sua
implementação como sua execução, contudo, eram
bastante simples, demandando um orçamento
relativamente baixo e poucos recursos humanos e
logísticos.
O escopo do projeto preconizava a formação de um
grupo pequeno de moradores de rua usuários de
álcool ou drogas. Esse grupo seria estimulado a
participar de um encontro semanal que ocorreria
em um local de fácil acesso, preferencialmente na
região central.
Na reunião, o tema relacionado ao uso abusivo de
bebidas alcoólicas e drogas seria abordado de uma
maneira informal, deixando as pessoas à vontade e
evitando que se confrontassem com o sentimento
de culpa pelo uso da bebida, tampouco
pressionando – as a se tornarem abstêmias da noite
para o dia.
As discussões deveriam ser abertas e poderiam ser
debatidos quaisquer temas de interesse dos
participantes, cabendo aos mediadores direcionálos oportunamente para o foco da intervenção.
Tratava-se de um trabalho processual e gradativo,
através do qual se vislumbraria acender centelhas
149
de consciência na mente do morador de rua acerca
do problema.
Recordemos que tal proposta pretendia desenvolver
um trabalho específico junto a moradores de rua
usuários de álcool ou drogas que não possuíam
consciência dos malefícios desse hábito para suas
vidas, justamente pelo fato de ainda estarem
incólumes aos danos físicos e psicológicos mais
sérios.
Por essa razão, tratava-se de pessoas que julgavam
não necessitar de qualquer tipo de orientação
quanto a esse assunto e a quem a introdução
demasiadamente direta de propostas que visassem
sugerir a suspensão abrupta do uso da bebida seria
certamente retaliada.
Uma vez que as intervenções que haviam sido
implementadas no Núcleo de Serviços e no
albergue não atingiam a um determinado grupo de
moradores de rua, era necessário introduzir outras.
As reuniões de acompanhamento terapêutico foram
introduzidas às quintas – feiras, no período da tarde,
e foram convocados a participar alguns moradores
de rua já bastante conhecidos por todos nós
funcionários e cujo perfil entendíamos se enquadrar
naquele descrito como o apropriado para esse tipo
de abordagem.
Por mais que a rejeição de muitos moradores de rua
às intervenções apresentadas estivesse ligada
diretamente ao não reconhecimento da sua própria
condição de usuário abusivo de álcool ou drogas,
alguns deles caminhavam lenta e inexoravelmente
150
para estágios mais avançados de degradação física
e psíquica.
O acompanhamento e monitoramento desses casos
específicos pelos profissionais do nosso Núcleo de
Serviços e albergue eram os principais objetivos
das reuniões, mesmo que não preconizassem a
reversão imediata de sua condição e de seus hábitos.
Em que pesassem a resistência e a dificuldade de
adaptação desse perfil de morador de rua às
propostas apresentadas, o fato de frequentarem
assiduamente nosso estabelecimento imputava a
todos nós funcionários a obrigação de não sermos
coniventes com sua autodestruição.
151
Cícero, o Macunaíma das ruas
Nesse preciso momento, surge a oportunidade
propícia para introduzirmos certo morador de rua
conhecido como Cícero.
Cícero cumprirá o importante papel de subsidiar
todas as constatações sobre os programas de
controle do uso abusivo de álcool e drogas
anteriormente mencionados, já que se submeteu
sistematicamente a todos eles em um período de
seis meses.
Cícero era a personificação de um ”Macunaíma
das Ruas” com seu jeito debochado, malandro e
acima de tudo autêntico.
Tratava-se de um rapaz com pouco mais de trinta
anos, negro de pele bem escura, dentes alvos apesar
do hábito quase incontrolável do fumo, esquálido e
de estatura mediana.
Sempre que me via dentro do Núcleo de Serviços
gritava meu nome, mesmo que não tivesse nada
para falar. Era sua maneira de mostrar apreço.
A questão era que Cícero bebia com uma
intensidade que impressionava até mesmo seus
companheiros de rua.
Permanecia alcoolizado praticamente o tempo
inteiro, diuturnamente. Não consigo me lembrar de
encontrá-lo sóbrio em nenhuma ocasião, em seis
meses de convivência quase diária.
152
A bebida já lhe infligia consequências. Seus olhos
amarelados sugeriam alguma alteração hepática e
era acometido de tremores constantes.
Quando se embriagava excessivamente, envolvia –
se em brigas que resultavam em olhos roxos e galos
na cabeça, uma vez que seu porte físico não lhe
ajudava muito nessas ocasiões.
Em praticamente todos os relatórios de ocorrências
do período noturno, nos quais constavam as
aventuras vivenciadas pelos educadores que
trabalhavam no albergue, Cícero era protagonista.
Chegava sempre atrasado e discutia com os
funcionários, levando-os quase à loucura com as
mais inacreditáveis e insólitas justificativas e uma
insistência perturbadora. Cícero imputava a culpa
pelos seus atrasos a acidentes de trânsito, encontros
casuais com parentes e até entidades sobrenaturais.
Quando era pontual, metia-se em confusões. Em
uma das mais memoráveis, arquitetou uma “tocaia
noturna“ do lado externo do estabelecimento em
parceria com outros dois beberrões.
A intenção do trio era agredir com pedaços de pau
um funcionário com que tinham tido algum tipo de
altercação durante o dia.
Coincidentemente, quando o funcionário passou
por minha sala para se despedir, ao término do seu
turno de trabalho, olhei para o relógio e percebi o
adiantar das horas. Resolvi, então, acompanhá-lo.
No exato momento em que abri o portão de ferro da
entrada lateral, notei os três rapazes, liderados por
Cícero,vindo em direção ao funcionário com tocos
153
de madeira nas mãos. Na verdade, me deparava
com uma cena tragicômica.
Os três estavam tão alcoolizados que os pedaços de
madeira pesavam em suas mãos e faziam com que
se desequilibrassem.
Trôpegos, cambaleavam no asfalto molhado pela
chuva fina que caia.
Sequer foi necessária qualquer intervenção para
cessar à tentativa de agressão, pois a própria
condição em que se encontravam os agressores os
impossibilitaria de concretizá-la. Por outro lado, foi
necessário conter o funcionário, indignado por ser
alvo de uma emboscada premeditada e repentina.
Reconheço a abnegação dos educadores sociais do
período noturno, que por meses suportaram as
incontáveis transgressões de Cícero em respeito e
solidariedade a uma proposta ideológica que
priorizava o princípio de uma maior tolerância.
Houve um período, no entanto, que Cícero estava
na berlinda.
As assistentes Sociais convocaram uma reunião, na
qual estariam informando Cícero acerca do seu
desligamento do albergue, uma vez que seu mau
comportamento havia ultrapassado os limites
aceitáveis e o fato de se apresentar todas as noites
embriagado já implicava em riscos a sua própria
segurança e a dos demais frequentadores.
A minha participação nessa reunião deveria ser
coadjuvante e tinha por finalidade dar respaldo à
decisão das assistentes sociais.
154
No entanto, como em muitos outros momentos,
frustrei às expectativas e declinei daquilo que,
teoricamente, seria meu dever.
Na sala das assistentes sociais, Cícero ouviu calado
a tudo que lhe foi dito.
Quando tomou a palavra, respondeu que não
aceitava o fato de estar sendo acusado de beber
demais e que fazia uso da bebida esporadicamente.
Observei que ele dizia isso de forma convicta e
segura, sem claudicar em nenhum momento, apesar
de todas as “provas” que recaíam sobre ele como os
relatórios que continham a descrição sumária de
suas bebedeiras e a própria condição de embriaguez
em que se encontrava naquele exato momento.
Não se tratava de uma mera encenação, pois em
momento nenhum se desculpou ou lamuriou como
faziam quase todos quando se encontravam em
situação semelhante.
Contudo, demonstrava indignação e perplexidade, e
parecia acreditar piamente que estava sendo vítima
de um ato de injustiça.
Ficava claro para mim que Cícero não tinha a
menor consciência das implicações do álcool em
sua vida.
Como forma de remediar sua situação e tentar
“salvá-lo” - considerando também que seria
necessário e inevitável aplicar-lhe alguma medida
disciplinar - propus às assistentes sociais que o
mantivéssemos no nosso estabelecimento, caso ele
concordasse em se integrar imediatamente a um
programa de reabilitação.
155
Apresentamos a primeira das quatro intervenções a
que Cícero se submeteria com o objetivo de
controlar o uso abusivo do álcool.
Embora contrariado, foi sensível em perceber que,
na verdade, não teria muita escolha e que eu me
esforçava para evitar o seu desligamento.
Tratamos de acordar com ele sua permanência no
albergue “em troca” da sua pronta adesão a sessões
de atendimento no CRATOD. Seu ticket para entrar
no albergue seria o atestado carimbado pelo médico
daquele órgão confirmando sua presença.
Esse arranjo foi feito sob os olhares afiados das
assistentes sociais, que desejavam naquele
momento consolidar o desligamento de Cícero e
poupar os educadores noturnos dos tormentos
causados pelas suas incontroláveis bebedeiras.
Cícero passou então a frequentar o CRATOD da
Bela Vista.
Seguia para lá logo cedo, após o café, percorrendo
a pé um trajeto que abrangia as ruas São Caetano,
Senador Queirós, avenida Ipiranga, até chegar à rua
Maria Paula, passando em frente à Câmera
Municipal. Permanecia o dia inteiro sendo
acompanhado pela equipe de assistentes sociais,
médicos e psicólogos.
No CRATOD, foi presenteado com um conjunto de
calça e blusa de agasalho tingidos em um tom de
verde fluorescente que o destacava da multidão a
quilômetros de distância, dando-lhe a aparência de
um vaga-lume ou um ser interplanetário.
Cícero não tirava esse agasalho por nada e fazia
questão de lavá-lo nos tanques do jardim do Núcleo
156
de Serviços três vezes por semana, deixando-o cada
vez mais ofuscante pela ação da cândida.
Todos as noites, após o horário de janta, Cícero
passava pela minha sala para entregar o atestado
carimbado pelo médico do CRATOD.
Não dizia uma palavra. Simplesmente sacava o
papel amarrotado do bolso da calça e entregava em
minha mão.
Através de seus olhos, porém, eu compreendia seu
orgulho por ter conseguido manter sua palavra por
mais um dia. Por mais que eu sugerisse que ele
entregasse esse papel às assistentes sociais para que
fossem anexados ao seu prontuário, não havia jeito.
O acúmulo daqueles atestados me obrigou a separar
um espaço dentre a bagunça das minhas gavetas
para guardá-los.
Apesar de Cícero gostar do CRATOD, o tipo de
intervenção colocada em prática na tentativa de
auxiliá-lo a controlar o uso de bebidas alcoólicas
estava causando sérias alterações em seu organismo.
Cícero recebia várias cartelas de comprimidos, cuja
administração era feita por ele próprio no
transcorrer dos dias.
Certamente, os médicos lhe recomendavam que
evitasse o consumo de bebida juntamente com a
medicação e é provável que o alertassem sobre as
consequências dessa perigosa combinação.
No seu trajeto de retorno do CRATOD para o
albergue, Cícero inevitavelmente se deparava com
uma infinidade de bares, botecos e biroscas onde se
pode adquirir uma pequena dose de pinga por 20
centavos, bem como encontrava com conhecidos
157
que não se furtavam em oferecer-lhe um gole ou
uma rodada.
Tais circunstâncias tornavam sua abstinência mais
do que um desafio - consolidavam-na em uma
injusta empreitada - e resistir a essa gama de
explícitas tentações, naquele momento, era uma
tarefa árdua demais para Cícero.
A mistura do álcool com a medicação tinha um
efeito nefasto e transformava-o num títere,
impossibilitando-o de se locomover e falar e
deixando-o num estado de prostração quase
mórbido.
A diferença para o seu habitual de embriaguez era
que nessa condição não tinha forças para insultar
ou para brigar.
Arrastava-se pelas dependências do Núcleo de
Serviços, balbuciava palavras incompreensíveis e
chegava até a babar.
Sua debilidade não o impedia, contudo, de escorarse nas paredes até alcançar o salão de eventos onde
ficava minha sala e entregar - como um troféu - o
atestado de presença do CRATOD.
Tanto eu quanto os próprios educadores do período
noturno, a quem Cícero tanto atormentara nos
últimos tempos, concordávamos que preferíamos
vê-lo sem o efeito dos remédios, por mais que
nosso trabalho fosse redobrado.
Observávamos que a intervenção colocada em
prática pelo CRATOD não estava funcionando,
uma vez que era impossível para ele ficar sem
beber durante o tratamento.
158
Após algumas semanas, foi necessário que
conversássemos com Cícero e o convencêssemos a
interromper o tratamento no CRATOD, ao passo
que lhe seria apresentado outro tipo de proposta
mais adequado.
Não foi tarefa fácil, pois, na sua cabeça, o
tratamento estava surtindo efeito e ele não admitia
em hipótese alguma que estivesse fazendo uso de
álcool e medicamentos simultaneamente.
Talvez não fosse conveniente para ele - ou
realmente não fosse possível – recordar-se dos
efeitos que o remédios misturados à bebida
causavam em seu organismo.
Como das vezes anteriores, Cícero só pôde ser
convencido do contrário por conta de suas próprias
e inadequadas ações.
Em uma noite, mesmo sorumbático e entorpecido
por conta dos coquetéis químicos que havia
ingerido, Cícero foi capaz de agredir a outro
morador de rua com uma cadeira de plástico em
pleno refeitório do Núcleo de Serviços, causando lhe ferimentos de gravidade moderada.
Por essa razão, seu nome voltou para a lista negra e
mais uma vez ele estava na berlinda, sendo que
uma nova assembléia foi convocada pelas
assistentes sociais com a finalidade de decidir o seu
futuro.
Pela manhã, repetiram-se as formalidades e Cícero
se encontrava novamente sentado na sala de
atendimento social cercado por mim e pelas duas
assistentes sociais.
159
Como um réu em um tribunal, ele estava postado
de frente para o júri e para o homem de toga preta,
apenas aguardando o pronunciamento de sua
sentença.
Nessa nova audiência, lhe expusemos a idéia de
encaminhá-lo para uma “Casa de Acolhida”, uma
Comunidade Terapêutica de longa permanência na
qual ele passaria algum tempo participando de
atividades de desintoxicação e cultivando hábitos
mais saudáveis.
Nesse local, não se utilizavam medicamentos,
tampouco havia médicos ou outros profissionais de
saúde.
A indisposição de Cícero em aderir a essa nova
proposta, no entanto, foi severa e imediata.
Não queria de maneira nenhuma, mesmo que
temporariamente, se afastar do círculo social e dos
lugares com os quais estabelecera vínculos, ainda
que perniciosos.
Como sempre, no entanto, sua posição não era das
mais favoráveis e coube a Cícero novamente se
resignar e aceitar passar algum tempo numa
Comunidade Terapêutica situada em uma fazenda
na cidade de Jarinú , distante 140 km de São Paulo.
Combinamos que ele seria levado no veículo da
nossa Instituição na manhã do dia seguinte.
O encaminhamento de Cícero para a Comunidade
Terapêutica não seguia os princípios metodológicos
adequados, uma vez que nem eu, muito menos as
assistentes sociais, percebíamos nele a real intenção
de se submeter a uma proposta daquela natureza.
160
Nas circunstâncias acima descritas, o procedimento
de atendimento se assemelhava muito mais a uma
punição do que uma intervenção propriamente dita,
mas considerávamos que o caso de Cícero era de
uma gravidade tão extrema que mesmo mediante
tal constatação deveríamos colocá-lo em prática.
Da maneira como se portava em relação à bebida,
sua vida estava em risco permanente e o fato de
morrer fora do Núcleo de Serviços em uma briga,
uma queda ou um atropelamento não nos eximiria
de responsabilidade.
Vislumbrávamos a possibilidade de que ele se
adaptasse rapidamente ao local, às pessoas e ações
propostas e desfrutasse os benefícios que os novos
hábitos iriam lhe propiciar.
Na manhã em que foi encaminhado, provavelmente
movido pela ansiedade e pelo temor em saber que
seria levado para um lugar novo e desconhecido,
Cícero consumiu uma quantidade tão grande de
bebida que adormeceu profundamente no banco de
trás da Kombi, permanecendo inconsciente durante
todo o trajeto até a cidade de Jarinú.
Três dias depois, recebi um telefonema interurbano
no Núcleo de Serviços.
Era o coordenador da Comunidade Terapêutica
perguntando se Cícero havia ingerido alguma
medicação antes ser encaminhado, pois mesmo
após chegar ficou desacordado por mais de 48
horas. Seu sono era tão profundo que foi necessário
que os funcionários do local se mobilizassem para
o banharem e trocar suas roupas, sem que ele desse
o menor sinal de vida.
161
Quando acordou - completamente confuso e
desorientado - não fazia a mais remota idéia de
onde estava.
Desse jeito pouco usual iniciou-se o período de
permanência de Cícero na Comunidade Terapêutica,
que durou exatos cinco dias.
Quando decidiu partir, também o fez em grande
estilo. Cícero definitivamente era avesso a qualquer
tipo de convenção ou vulgaridade. Voltou sozinho,
com uma passagem de trem paga pela Comunidade
Terapêutica.
Num fim de tarde, eu o ouvi gritando meu nome
pelo salão de eventos como sempre fazia e não me
surpreendi. Era algo pelo qual eu já esperava.
Quando perguntei o que havia motivado sua
desistência prematura da Comunidade Terapêutica,
Cícero não pestanejou: cigarro.
Cintilando em seu inconfundível agasalho verde
fluorescente, disse num tom sarcástico e pouco
convincente que suportaria tranquilamente ficar
mais alguns dias, talvez até algumas semanas, sem
beber. Mas não sem fumar.
Segundo ele, a abstinência decorrente da falta de
nicotina estava lhe causando dores de cabeça
insuportáveis e no local não davam aspirinas.
Na mesma noite em que retornou de Jarinú, Cícero
foi comemorar com os amigos e apareceu bêbado
feito um gambá na entrada do albergue.
Abraçado a dois comparsas, os mesmos que o
acompanhavam quando planejou e executou a
tocaia ao incauto funcionário algumas semanas
antes, cantava animada e incessantemente o refrão
162
da mesma música, que soava como uma
provocação aos educadores noturnos :
- Eu voltei, agora pra ficar...Por que aqui, aqui é o
meu lugar...
O caso é que eu me encontrava de mãos atadas.
Não se podia afirmar que Cícero não aderia às
propostas de intervenção de controle do uso da
bebida que lhe eram apresentadas, pois de fato isso
não ocorria.
Ele havia se submetido às duas propostas que lhe
foram sugeridas e não houve resultados positivos
em ambas as tentativas.
No entanto, Cícero sabia muito bem como tirar
proveito dessa situação.
Era perspicaz em “jogar“ com essa justificativa
quando cometia infrações influenciado por fartas
doses de bebida. Dizia que havia feito tudo que fora
orientado a fazer e absolutamente não era sua culpa
se continuava a beber.
Essa alegação lhe era muito conveniente, ao passo
que não havia argumento contra ela e ao mesmo
tempo lhe suprimia qualquer peso da consciência
quando se embriagava.
Cícero andava pelo Núcleo de Serviços orgulhoso,
com ar empertigado e cheio de certa empáfia.
Por conta disso, retomou rapidamente sua rotina de
atrasos noturnos e brigas no albergue
O terceiro programa de controle do uso de bebidas
alcoólicas apresentado a Cícero foi provavelmente
o que menos surtiu efeito e também o que mais lhe
desagradou.
163
Era necessário agir, pois a situação estava se
tornando incontrolável.
Cícero não só passou a delegar autoridade à sua
bebedeira como também tomava as dores dos
demais beberrões. Se transformou em um porta-voz
da categoria dentro do albergue.
Eu percebia que, por trás de suas ações, havia
também uma satisfação egoísta por finalmente
gozar de algum prestígio e ser considerado popular
pelos outros moradores de rua.
Além das surras que levava constantemente, as
bebedeiras acarretavam na exposição a situações de
escárnio e constrangimento na rua.
Numa delas, completamente embriagado, Cícero
foi amarrado por outros moradores de rua a um
poste de luz e por horas seu corpo foi utilizado
como alvo para arremessos de garrafas de água,
pedras e até sacos com urina.
Apesar de compreendermos as razões que o
levavam a agir com petulância era necessário
interceder prontamente, antes que o seu
comportamento abusivo contaminasse de tal forma
os outros frequentadores a ponto de sermos
obrigados a decretar estado de sítio naquele
estabelecimento.
Chamei Cícero para uma conversa, dessa vez sem a
presença das assistentes sociais e em minha sala.
Critiquei ostensivamente sua postura, ao passo que
ele era plenamente consciente da minha intenção
em ajudá-lo e se utilizava astuta e indevidamente
da minha simpatia por ele.
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Sem dar ouvidos às costumeiras ladainhas que ele
retrucava, convoquei-o literalmente a participar das
reuniões de sexta-feira à noite dos alcoólicos
anônimos.
Cícero detestava a idéia de falar em público.
Tampouco com as assistentes sociais ou mesmo
comigo se abria demasiadamente.
Falar de seu passado, sua família e principalmente
do seu pai, a quem demonstrava muito apego, era
como cutucar feridas abertas e muito doloridas e
isso lhe causava um sofrimento atroz.
Por isso, Cícero odiava as reuniões noturnas das
sextas-feiras.
No entanto, fiz questão de deixar claro que a causa
da obrigatoriedade da participação coletiva na
reunião era o seu comportamento.
Devo aqui reiterar a minha própria discordância
com relação a esse tipo de imposição, mas as
circunstâncias exigiam que se colocasse em prática
alguma ação que fizesse Cícero descer do seu
pedestal e recolocar os pés no chão.
Para Cícero, frequentar as palestra dos alcoólicos
anônimos era como caminhar descalço sobre brasas
incandescentes.
Ele me importunava terrivelmente desde a segunda
–feira reclamando da reunião, que só aconteceria na
sexta.
Quando percebeu que suas lamentações não
surtiriam efeito, começou a fazer uso de artimanhas
de sabotagem dolosa e deliberada aos eventos.
Nas reuniões, fazia galhofas e promovia tumultos
durante a exposição dos testemunhos, além de
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desafiar os palestrantes de punho em riste quando
estes repetiam suas histórias de vida. De dentro da
minha sala, furioso, eu podia ouvir seus disparates
e incitamentos.
Por outro lado, ao menos às sextas-feiras, tanto ele
quanto os demais beberrões passaram a fazer uso
mais moderado da bebida, pois sabiam que se
chegassem excessivamente embriagados, a ponto
de causarem transtornos, não assistiriam à reunião e
automaticamente não poderiam dormir no albergue.
Antes das reuniões iniciarem, eu e os palestrantes
do AA cultivávamos o hábito de nos reunirmos em
minha sala para discutir questões relativas ao
andamento do programa, enquanto nos servíamos
de café.
Numa dessas ocasiões, Cícero invadiu intempestiva
e inesperadamente a sala.
Apoplécticos, os palestrantes ouviram-no bradar
que não toleraria “enrolação“ na reunião daquela
noite, e que se retiraria sem aviso prévio caso os
palestrantes repetissem as mesmas “historinhas” de
sempre. Da mesma forma que havia entrado, deu
meia volta e seguimos com os olhos sua figura
verde fluorescente cruzar a porta, a passos firmes e
apressados. O recinto foi imediatamente tomado
por um silêncio constrangedor. Ainda atônito,
ofereci-lhes outro café.
Para a felicidade de Cícero, as reuniões do AA se
encerraram ao final do prazo de quatro meses conforme havia sido previamente combinado com
os cavalheiros daquela irmandade.
166
As sessões prosseguiriam em outros locais para os
poucos a quem essa metodologia de autocontrole
surtiu algum efeito.
Como derradeira alternativa de intervenção a ser
apresentada a Cícero, restava justamente a que ele
mais se adaptaria, e a meu ver, a única que gerou
algum benefício, considerando as complexidades
do seu caso.
As reuniões de acompanhamento terapêutico
ancoradas por Walter Varanda pressupunham a
reversão de todos os princípios metodológicos que
haviam falhado com Cícero.
Pretendíamos que sua participação se tornasse
espontânea à medida que percebesse que não seria
cooptado a dar testemunhos, seguir regras, se
afastar das pessoas e lugares aos quais estava
acostumado ou mesmo abandonar o hábito da
bebida da noite para o dia.
A intenção, tampouco, era admoestá-lo, mas tentar
compreender a natureza dos sentimentos que o
compeliam a beber tão compulsivamente a ponto
de não conseguir desfrutar de um momento sequer
de lucidez.
Cícero era um homem atormentado por lembranças
e o álcool era um analgésico de ação instantânea
para sua aflição.
Não foi preciso muito esforço para convencê-lo a
participar das reuniões, pois ocorriam dentro do
Núcleo de Serviços e contavam com a participação
de alguns poucos moradores de rua conhecidos por
Cícero.
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Walter iniciava a reunião abordando um assunto
aleatório, que não tivesse qualquer relação com a
bebida, e simplesmente intermediava os debates
entre os participantes.
A liberdade que tinham para falar e se expressar
criava uma atmosfera amistosa no ambiente.
A sensibilidade de Walter lhe indicava o momento
exato de introduzir o assunto da bebida e, quando o
fazia, já estavam todos tão descontraídos que a
discussão prosseguia normalmente.
Cícero era o que mais falava nas reuniões.
Vez por outra descia ao jardim para fumar ou
ficava algum tempo batucando na roda de samba.
Mas sempre voltava.
E a intenção naquele momento era precisamente
essa. Que voltasse.
O caso de Cícero ilustra de forma cristalina a
complexidade da questão do uso de álcool e drogas
dentro do universo da população de rua.
É dever do Poder Público – e também das
instituições – desenvolver trabalhos que estimulem
a integração de moradores de rua a programas de
controle do uso de bebidas alcoólicas e outras
drogas.
Cícero foi incentivado a aderir a diversos tipos de
programas, até que se identificasse aquele que lhe
fosse mais adequado, mesmo considerando que não
seriam observados resultados em curto prazo.
Não obstante o fato de apresentar resistência às
intervenções propostas e manifestar sentimentos
que indicavam a negação à sua própria condição de
bebedor contumaz, as informações obtidas através
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do seu diagnóstico social possibilitaram às equipes
técnicas “garimpar” alternativas de atendimento
que estivessem de acordo com sua condição.
Tal fato reforça a importância do diagnóstico social
minucioso e detalhado de cada indivíduo vinculado
aos Núcleos de Serviços e albergues para a
população de rua. Trata-se do mapa, do norte a ser
seguido na elaboração de propostas de intervenção.
Da mesma forma, o caso de Cícero demonstra que
os vínculos afetivos desenvolvidos entre o morador
de rua e a instituição se sobressaem às ações
punitivas.
Cícero não era uma pessoa ruim e distinguir caráter
de comportamento era o grande desafio a ser
vencido pelos educadores e técnicos que com ele
conviviam.
Tentávamos evitar que os atos de indisciplina
desencadeados por suas bebedeiras acabassem por
impedir que conseguissem separar o homem Cícero
do frequentador Cícero.
Cícero foi inúmeras vezes repreendido. Chegou a
ter sua entrada suspensa em ocasiões nas quais suas
ações transcenderam níveis aceitáveis.
Mas em nenhum momento foi tratado como um
“inimigo”, excluído, banido ou execrado pelo
estabelecimento com o qual criara fortes vínculos
emocionais.
Talvez esse fato venha a se transformar, algum dia,
no seu maior estímulo para conseguir controlar a
bebida.
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Nota final do autor
Poucos dias antes da publicação dessa obra, chegou
ao meu conhecimento uma triste e trágica notícia
que me levou a inserir esse adendo em forma de
nota final.
Numa tarde de sábado, enquanto participava de um
evento no albergue Estação Vivência, no Pari,
Cícero sentiu-se mal e foi socorrido a um hospital
da região por uma ambulância do SAMU.
Infelizmente, não resistiu e faleceu na mesma noite.
Seu sepultamento ocorreu no domingo e contou
com a presença de seus familiares, inclusive de seu
pai a quem ele tanto amava.
Segundo depoimentos de pessoas que conviveram
com ele em seus últimos dias, Cícero estava
inchado e com dores generalizadas pelo corpo,
consequências do consumo exagerado de bebidas
alcoólicas.
Cícero é apenas mais um dentre milhares de
“Cíceros” que morrem diariamente, abandonados à
própria sorte e vitimados pela negligência e
omissão das autoridades com relação à questão do
uso do álcool pela população de rua.
Sua morte não causou alarde na imprensa e não
chegou ao conhecimento da sociedade.
No entanto, deixo aqui registrada sua rápida e
sofrida passagem por esse mundo injusto.
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Na última vez que o vi, sete meses após a minha
saída do Núcleo de Serviços Casa Restaura-me,
Cícero se aproximou sem que eu percebesse,
quando eu chegava àquele lugar para uma visita.
Encostou a boca bem perto da minha orelha e
gritou meu nome, quase me causando um infarto.
Quando me virei, deu uma gargalhada e me
abraçou.Eu o abraçaria mais forte se soubesse que
aquela seria a última vez.
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Cícero, o Macunaíma das Ruas
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