Feios,sujos e malvados - Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos
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Feios,sujos e malvados - Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos
Por trás dos Muros – A vida dentro dos albergues e Núcleos de Serviços para população de rua em São Paulo - Cassio Giorgetti 1 Apresentação 4 Profissionais necessária 17 da miséria: uma introdução O Núcleo de Serviços com albergue “Casa Restaura-me” 22 Juventude Perdida 25 Os durões de rua 40 Por trás dos muros 74 Reação em Cadeia 94 Um barril de pólvora 118 Vigiar, Punir ou Cuidar 133 Cícero, o Macunaíma das ruas 152 2 Agradecimentos A Erika Vovchenco A meus queridos pais e irmãs, minha família e amigos Aos funcionários, ex-funcionários, missionários e voluntários da Casa Restaura-me, pela lealdade, amizade e dedicação A Cícero, Neuza, Alana, Marquinhos, Fabiano, Irandi (Tarú), Fabiana (Darling), Carioca e demais frequentadores da Casa Restaura-me, pelo carinho Em memória de Ivan 3 Apresentação Esta é uma história que conta histórias. Histórias de um punhado de gente que, por alguma razão, calhou de estar reunida dentro de um mesmo lugar numa cidade de caminhos e possibilidades infinitos. Histórias que se cruzaram com a minha história. Devo confessar que a proposta de gerenciar um Núcleo de Serviços com albergue para moradores de rua, cuja implementação se daria por meio de uma parceria firmada entre a Organização Aliança de Misericórdia e a Prefeitura de São Paulo, privou-me de algumas boas noites de sono. Ao mesmo tempo em que a idéia me atraía um bocado, as más recordações de minhas experiências anteriores em trabalhos aos quais estava vinculado o Poder Público me faziam titubear. Decidi aceitar esse novo desafio por três razões distintas. A primeira delas advinha do respeito e da amizade que cultivava pela Organização Social que me fizera o honroso convite. Conhecia a Organização Aliança de Misericórdia já há alguns anos e sempre a considerei uma das poucas que se propõem a desenvolver ações eficientes destinadas à população de rua. Suas ações se contrapõem firmemente às limitações do atendimento meramente assistencial e têm por finalidade reabilitar o cidadão de rua e reintegrá-lo processualmente à sociedade. 4 A segunda razão consistia no meu incomensurável desejo de, após dois longos anos, voltar a trabalhar formalmente com população de rua. A terceira e derradeira razão era a oportunidade que a experiência me concederia de confirmar algumas colocações apresentadas em meu trabalho anterior. Na ocasião, o contato com o mundo por trás dos muros, ou seja, com a realidade do morador de rua durante o período de sua permanência nos Núcleos e Centros de Serviços e Centros de Acolhimento não pôde ser alvo de um maior aprofundamento. Tal fato se deu em virtude de minhas visitas a estes estabelecimentos, apesar de diárias, acontecerem de maneira breve e emergencial ao passo que meu trabalho se restringia às ações de campo nas ruas, através da abordagem e do transporte de moradores de rua. As argumentações outrora apresentadas acerca das deficiências dos locais que atendem a população de rua foram elaboradas através da observação e análise de fatos vivenciados nos trabalhos de campo, bem como das relações profissionais com os seus funcionários e de depoimentos dos próprios moradores de rua. Por intermédio desses expedientes foi possível verificar alguns aspectos funcionais dos Núcleos de Serviços e albergues como a dificuldade de vinculação e permanência dos moradores de rua, a aleatoriedade e impessoalidade no atendimento, a prioridade de admissão para moradores de rua com autonomia individual e de comportamento estável e a ausência de intervenções e propostas específicas 5 para os problemas mais críticos da população de rua, dentre os quais se destacam o uso abusivo de álcool e drogas, a perda da capacidade de submissão às normas de convívio coletivo e alterações comportamentais. Essa nova experiência me propiciaria a chance de observar novamente a todos esses aspectos através de outro olhar - o olhar de quem está do lado de dentro do estabelecimento - e compreender melhor as razões que desencadeiam tais deficiências. Os fatos narrados nessa obra transcorreram entre os meses de maio e novembro de 2009, período no qual exerci a função de gerente no Núcleo de Serviços com Albergue para população de rua “Casa Restaura-me”. Anteriormente, creio ser oportuno fazer algumas considerações acerca da apatia e do desnorteamento que acometem os gestores das Políticas Públicas voltadas à população de rua no momento atual em São Paulo. De fato, as autoridades demonstram consternação com relação ao número de pessoas que vivem nas ruas – cujas estatísticas mais recentes apontaram um aumento de aproximadamente 10%. Acuados pela implacável pressão exercida pela imprensa, por políticos, pelo Ministério Público e pelos Movimentos de Defesa dos Direitos da População de Rua, dentre outros órgãos, precisam agir. Mostrar alguma atitude. Dar respostas. Como um bicho selvagem encurralado pelo seu predador, agem movidos pelo desespero, utilizando mecanismos de defesa puramente instintivos. 6 Esse jeito inábil de lidar com a pressão é percebido no lançamento de medidas estabanadas como o fechamento abrupto dos maiores albergues da cidade de São Paulo, extinguindo 1000 vagas para moradores de rua às vésperas da divulgação dos resultados do censo que indicaria a existência de 13.000 pessoas vivendo nas ruas. A substituição desses locais por pontos fixos de atendimento, denominados “tendas sociais”, também foi alvo de severas crítica dos movimentos representativos da população de rua. Não há como discordar que a permanência do morador de rua num espaço que se restringe à oferta de serviços básicos - e no qual inexistam quaisquer metodologias de intervenção - representa uma solução meramente paliativa para a sua condição de abandono. É precisamente nesse momento que o pânico se constitui no pior inimigo do Poder Público, pois o impede de ponderar suas ações. Há tempos urge a necessidade de modificações nas estruturas de funcionamento dos Núcleos de Serviços e albergues destinados à população de rua. Tais modificações transitam dos aspectos físicos como o atendimento de pessoas sob viadutos e em quantidades exorbitantes aos aspectos operacionais, observados na defasagem crônica dos recursos humanos e logísticos, culminando nos aspectos funcionais, caracterizados pela ausência de ações específicas que propiciem ao morador de rua o retorno ao convívio social e que o condenam a 7 viver eternamente institucionalizado e dependente de ações assistencialistas. No entanto, não se fará frente a essas deficiências com o ato de fechar repentina e precipitadamente as portas dos estabelecimentos. É conveniente lembrarmos que esse enorme contingente de seres humanos que hoje se amontoa pelas calçadas e marquises da cidade não se formou da noite para o dia. Para um problema que é consequente de décadas a fio de negligência e descaso, não há medidas drásticas que possam surtir efeitos imediatos. Em 1991, técnicos e estagiários da Secretaria do Bem Estar Social e das entidades que desenvolviam trabalhos junto à população de rua realizaram o que se denominou de “levantamento exploratório”. Trata-se de uma contagem censitária executada sem princípios metodológicos muito avançados e que se valeu muito mais da iniciativa e coragem daqueles que se dispuseram a fazê-la, uma vez que não havia em São Paulo, quiçá no Brasil, qualquer estimativa de quantificação da população de rua digna de confiabilidade. A descrição detalhada dos procedimentos utilizados e das importantíssimas informações obtidas no referido levantamento exploratório está contida no livro “População de Rua – Quem é, como vive e como é vista”, ao qual se recomenda firmemente a leitura. Realizado há quase duas décadas, esse trabalho de campo resultou na contagem de 3392 pessoas vivendo nas ruas. 8 A primeira lei de atenção aos direitos da população de rua, lei municipal 12316, foi criada em 1997 e regulamentada tão somente em 2002, através do decreto municipal 40232. Nessa época, precisamente onze anos após a realização do primeiro levantamento exploratório, o número de pessoas vivendo nas ruas já havia praticamente triplicado e atingia o expressivo número de 9000, segundo o primeiro censo oficial realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – FIPE, cujos dados estatísticos foram anunciados em 2000. Constata-se, através das informações apresentadas, que quando o Poder Público começou a demonstrar alguma preocupação com relação às questões inerentes à população de rua por meio da confecção de dispositivos legais dirigidos a esse segmento social, o problema já havia atingido proporções descomunais. Utilizando o linguajar coloquial, podemos dizer que “o caldo já havia entornado”. Trata-se de uma questão que permaneceu por anos à margem da atenção do Poder Público e, nesse exato momento, quando lhes parece algo fora de controle e estando sob o fogo das críticas, decidem pela implementação de medidas exageradas e despropositadas. Não há fórmulas milagrosas cujas propriedades sejam capazes de lhes retirar imediatamente esse incômodo peso que carregam sobre os ombros. Não se reverterá em meses, tampouco em um par de anos, um problema que se solidificou no 9 transcorrer de décadas. Mentem acintosamente aqueles que afirmam o contrário. Há algumas ações fundamentais que podem ser colocadas em prática prontamente e que produzirão algum efeito a curto e médio prazo. Sua adoção, contudo, não garantirá uma abrupta redução do número de moradores de rua, ainda que sejam implementadas imediatamente. Essas ações serão eficientes no sentido de iniciar o processo de descongestionamento gradativo dos Centros de Acolhimento e albergues que formam a rede sócioassistencial. Convém recordarmos que existem hoje na cidade de São Paulo 7000 vagas de acolhimento para 13000 moradores de rua. Uma dessas ações, talvez a mais urgente delas, consiste na conversão do modelo genérico aleatório de atendimento à população de rua atualmente vigente para um modelo profiláticopragmático. Isso significa desenvolver estratégias e propostas de intervenção de acordo com o diagnóstico do perfil de cada morador de rua, que poderá ser realizado não só pelas equipes técnicas e funcionários dos Centros de Acolhimento e Núcleos de Serviços, como também pelos educadores de rua. O perfil será estabelecido através de um acurado levantamento das informações da vida pregressa de cada cidadão. Deverão constar em seu prontuário informações referentes aos históricos pessoal, profissional, familiar e de saúde e outros dados importantes obtidos por meio da pesquisa de 10 fatores como tempo de exposição às ruas, grau de vulnerabilidade física e psíquica, comprometimento com álcool e outras drogas, nível de aptidão e disposição para o trabalho e existência ou ausência de vínculos familiares. A compilação dessas informações e o seu devido enquadramento no perfil adequado possibilitarão às equipes técnicas dos Núcleos de Serviços e albergues estabelecer metas e confeccionar planos de ações individuais a curto, médio e longo prazo. Há um grande número de vagas dentro dos Centros de Acolhimento e albergues atualmente ocupado por moradores de rua pertencentes a um perfil específico. São cidadãos que possuem uma curta experiência de vida nas ruas, com pouca instrução e baixa qualificação, desempregados, subempregados ou mesmo mal remunerados, impossibilitados de arcar com os custos de locação e manutenção de um imóvel e sem parentes próximos a quem possam se socorrer. A caracterização e a quantificação desse indivíduo dentro do universo da população de rua é de fundamental importância, pois diz respeito a um perfil cujos caminhos de reintegração social e saída das ruas podem ser encurtados, através da sua inserção em políticas de geração de trabalho e renda e de habitação. A criação de leis e projetos que estimulem ou mesmo determinem o aproveitamento dessa mão de obra por instituições privadas e públicas seria de grande utilidade. 11 Há pouco tempo, uma iniciativa semelhante foi implementada pelo Ministério Público tendo como beneficiários egressos do sistema prisional. Nesse sentido, também é fundamental a articulação do Poder Público por meio das Secretarias Municipais e Estaduais, afim de que seja efetivada a integração desses cidadãos aos Programas Habitacionais. Durante uma conversa com o presidente do Movimento Estadual pelos Direitos da População em Situação de Rua de São Paulo, Robson Mendonça, tomei conhecimento que a referida articulação entre as Secretarias Municipais de Habitação e Assistência Social já havia sido tramitada, mas estava esbarrando em celeumas de cunho burocrático. Inclusive, tratava-se essa questão de uma grande preocupação do presidente Robson pelo conhecimento que tinha da sua urgência para a população de rua. O encaminhamento rotativo de moradores de rua pertencentes a esse perfil mais autônomo liberaria uma quantidade substancial de vagas nos Núcleos de Serviços e albergues, que poderiam ser ocupadas por aqueles que necessitem de intervenções mais complexas. Com relação a esses casos mais críticos, requeremse igualmente modificações metodológicas no seu atendimento. No modelo atual, os moradores de rua considerados de difícil trato - caracterizados pelo comportamento rebelde e pela dificuldade de ajustamento às normas estabelecidas - são preventivamente 12 afastados dos Núcleos de Serviços e Centros de Acolhimento. Isso decorre da incapacidade e insegurança de seus reduzidos quadros de funcionários para lidar com situações conflituosas geradas por esse perfil de morador de rua mais arredio. Desprovidos de condições de trabalho adequadas, os educadores sociais e demais técnicos reagem reciprocamente às ações indevidas, respondendo intolerância com intolerância e desenvolvendo rigorosos e excludentes mecanismos de controle disciplinar. A superação desses “vícios” funcionais será propiciada por meio de duas ações distintas em caráter, porém, igualmente imprescindíveis. A primeira delas diz respeito à reestruturação dos quadros profissionais dos Núcleos de Serviços, Centros de Acolhimento e albergues, adequando-os quantitativa e qualitativamente às reais demandas. Essa ação não pode mais ser postergada pelas gestões públicas. Sua omissão e negligência ao longo dos últimos anos com relação a essa questão empurraram muitas Organizações Sociais literalmente para o buraco e contribuíram diretamente para a explosão demográfica da população de rua em São Paulo. A segunda ação é inerente à necessidade de submeter funcionários e quadros técnicos dos estabelecimentos que atendem a população de rua a uma “faxina conceitual”, através da qual seriam varridos os resquícios e as sequelas emocionais remanescentes do tempo em que moradores de rua 13 se transformavam em desafetos pessoais em razão dos problemas que causavam. Esse procedimento teria como objetivos fazer os educadores sociais baixarem a guarda e despertarlhes um olhar diferente para aquele perfil de morador de rua mais indócil e intempestivo - um olhar desprovido de mágoas, rancores ou ressentimentos – levando-os a compreender que a melhoria nas suas condições de trabalho lhe propiciará mais tempo, tranquilidade e disposição para notar nesse perfil de morador de rua algumas características que a visão turva pelo calor da emoção não o permitia. Assim, poderá empenhar esforços na investigação das propensões e capacidades mesmo daqueles cidadãos ariscos e pouco receptivos, estimulando seu desenvolvimento pessoal e buscando despertar sentimentos há muito tempo adormecidos como amor próprio e valorização pessoal. A capacitação das equipes técnicas, dos educadores e gestores dos estabelecimentos que desenvolvem ações destinadas à população de rua também é digna de atenção. Além da vocação inata, esses profissionais devem estar munidos de conhecimentos práticos e teóricos que os possibilitem exercer suas as atividades com eficiência e, acima de tudo, que lhes permitam repassar esses conhecimentos aos frequentadores dos estabelecimentos, enfatizando àqueles que concirnam aos direitos e garantias da população de rua. 14 Para tanto, é indispensável o entendimento das legislações específicas referentes à população de rua em seus diversos níveis, bem como das portarias normativas intersecretarias que direcionam as políticas de atendimento, além dos Estatutos da Criança e do Adolescente e do Idoso e das Leis Orgânicas de Assistência Social. Noções de direito constitucional, penal e primeiros socorros podem ser de grande utilidade. Finalizando essa breve divagação, aponta-se uma derradeira demanda que trataria de colocar o ambiente, a dinâmica operacional e as estruturas físicas dos Núcleos de Serviços e Centros de Acolhimento em conformidade às novas diretrizes dadas aos trabalhos técnicos e educacionais, diversificando a oferta de programas, serviços e atividades pelas quais os quadros profissionais fortalecerão os laços que os aproximam do morador de rua e amadurecerão como educadores sociais. Logicamente, a viabilização de tamanha sorte de modificações nas políticas de atendimento à população de rua só será possível com o aumento considerável de investimentos do Poder Público. Talvez o desalento decorrente do expressivo aumento do contingente e do clamor de alguns setores da sociedade encoraje as autoridades municipais a empenhar esforços na elaboração de projetos específicos e políticas públicas para a população de rua. No que se segue, apresento relatos de uma experiência reveladora que certamente me auxiliou na formulação de mais alguns argumentos e me 15 proporcionou, uma vez mais, a oportunidade de aprender importantes lições com alguns seres humanos de grande valor. Optei, ao contrário do que fiz no trabalho anterior, em não citar nominalmente colegas e funcionários que estiveram ao meu lado nessa empreitada, salvo raras e inevitáveis exceções. Dessa forma, apenas seus protagonistas de fato foram identificados, no caso, a população de rua. 16 Profissionais necessária da Miséria: uma introdução Trabalhadores sociais são profissionais que exercem atividades voltadas a minimizar ou amenizar as consequências da pobreza e da miséria a que um grande contingente de homens, mulheres e crianças está submetido. Tal fato torna os trabalhadores sociais uma categoria única e especial. Os trabalhadores sociais, dentre os quais me incluo, possuem incondicionalmente uma característica comum, com exceção dos missionários e voluntários, não importando para qual segmento ou em qual setor desenvolvam suas atividades, tampouco sua função, colocação ou nível hierárquico, seja na esfera pública ou privada: sobrevivem da existência da pobreza e da miséria . Quero dizer que se não houvesse pobreza e miséria haveríamos todos de fazer qualquer outra coisa de nossas vidas para ganharmos o pão de cada dia e que a remuneração mensal a qual fazemos jus em troca dos serviços prestados depende da existência de pessoas dormindo sob marquises e alimentandose de restos, de crianças e adolescentes que desperdiçam sua infância e energia trabalhando em semáforos ou prostituindo-se por míseros trocados e de famílias que vivem em barracos de madeira às margens de córregos imundos, vitimadas pelas 17 infecções que surgem do próprio esgoto que produzem. De fato, assim como todo e qualquer trabalhador, os trabalhadores sociais necessitam de recursos financeiros e materiais para arcar com seus custos de vida. Há uma diferença entre esses dois tipos de trabalhador, porém, que é crucial. O produto do trabalho realizado pelo trabalhador “convencional“ é imediato e material e suas relações de trabalho são programáticas e mercantilistas. Podemos tomar como exemplo um funcionário de um banco. Ele abre contas, deposita cheques e o seu relacionamento com as pessoas que atende é mecânico e só pode ocorrer dentro de horários rigorosamente estipulados. Já o produto das ações do trabalhador social é abstrato e circunstancial e suas relações de trabalho são imprevisíveis e idealistas. Assim, o resultado das ações desenvolvidas por um educador social dependerá da ocorrência ou não de uma série de outros fatores que independem da sua vontade – e ainda que os ventos soprem a seu favor - é provável que colha os frutos do seu árduo trabalho depois de muito tempo. Mesmo com a comunhão das forças de todos os trabalhadores sociais, considerando que estes sejam do tipo mais convicto e abnegado, ainda assim se moveria uma molécula do necessário para uma considerável redução dos níveis de pobreza existentes atualmente. Que o entusiasmo prematuro gerado pelos efeitos de programas sociais de 18 consistência e sustentabilidade relativas não nos tire os pés do chão. A linha imaginária que caracteriza a condição de miséria não poderá ser transposta pelas camadas da sociedade que dela fazem parte apenas com a oferta de subsídios materiais, passíveis de perderem seu efeito num período de tempo muito curto, tão logo sejam interrompidos. A forma mais nefasta de manifestação da miséria não pode ser combatida tão somente com medidas que visem o aumento do poder de compra e de renda da população. Trata-se da miséria intelectual, que flagela milhões de cidadãos renegando-os a um estado permanente de ignorância e inconsciência, desprovendo-os da capacidade de discernimento e transformando-os em títeres nas mãos de oportunistas de todas as espécies. Tampouco me convencem os convenientes e usuais argumentos de que a pobreza e a miséria são inevitáveis e sempre existirão, razões pelas quais, portanto, são imprescindíveis os trabalhadores sociais. As doenças são inevitáveis e sempre existirão, razões pelas quais os médicos são imprescindíveis. A pobreza e a miséria são produtos da ação e da omissão do homem. Tais afirmações não têm como objetivo criticar ou desmerecer a categoria de trabalhadores sociais, mesmo porque, como afirmei anteriormente, faço parte dela. O bom trabalhador social não se sentirá ofendido. 19 A intenção é que sirvam como um sonoro alarme embutido em nossas cabeças programado para acionar automaticamente entre breves períodos de tempo, estridente, incômodo, retumbando de maneira aguda e ecoando em nossos pensamentos, recordando-nos, independentemente de quaisquer justificativas que se possa retrucar: sobrevivemos da existência da pobreza e da miséria. Assim sendo, que tal fato implique em assumirmos de peito aberto as responsabilidades e os compromissos exigidos para o desempenho de nossas atribuições como trabalhadores sociais. Que faça com que o esforço no cumprimento dos nossos deveres seja espartano, quiçá trazendo à tona os limites das nossas capacidades física e intelectual e tornando indelével a busca pela perfeição funcional. Que nos estimule a abdicar voluntariamente de nossas vidas pessoais quando os rigores e as dificuldades inerentes à nossa profissão assim o exigirem, e a nos privarmos das necessidades humanas mais básicas como comer e dormir quando nossas obrigações não apenas profissionais, mas principalmente éticas e morais se fizerem prioritárias. Que nos impeça de aceitarmos a condição de miséria e pobreza como algo natural e inexorável, ajustando-nos confortavelmente a um estado de acomodação, complacência e desinteresse. Que fortaleça nossos corações e almas para que trabalhemos sempre objetivando a erradicação da 20 pobreza e da miséria, mesmo sabendo ser longo o caminho a ser percorrido . Façamos nós, trabalhadores sociais, essa reflexão e que cada um se entenda com sua própria consciência. 21 O Núcleo de Serviços com albergue “Casa Restaura-me” As linhas que se seguem têm por finalidade fornecer ao leitor, de forma muito breve, algumas referências descritivas do local que serviu como “palco” para os acontecimentos narrados nessa obra e, através delas, dar asas à sua imaginação. Anteriormente, porém, é importante esclarecer que o Núcleo de Serviços e o albergue eram dois tipos de atendimento distintos prestados à população de rua num mesmo espaço físico, no caso, a Casa Restaura-me. O que diferenciava um atendimento do outro eram suas características funcionais. O Núcleo de Serviços abrangia as atividades e os serviços oferecidos durante o dia, enquanto no albergue ocorria o atendimento noturno. O imóvel no qual funciona a Casa Restaura-me era uma antiga fábrica da região do Brás e se encontra na Rua Monsenhor de Andrade, próximo à Rua Oriente. A permissão de uso do prédio e do seu terreno foi concedida à Organização Aliança de Misericórdia no ano de 2002 pelo Governo do Estado de São Paulo, em regime de comodato. As dimensões do lugar são descomunais, medindo aproximadamente 3.500 metros quadrados. Em frente ao portão principal da Casa Restaura-me há uma pequena e arborizada praça, contornada por 22 tijolos caiados que se fundem às poucas residências de alvenaria envelhecida que restaram. Espremida entre o muro que separa a rua da linha férrea, essa paisagem bucólica, distante poucos metros de um dos maiores centros comerciais de São Paulo, concede àquele trecho o aspecto de uma típica vila das primeiras décadas do século passado. Ao lado do portão principal há outro grande portão de ferro - que permite o acesso para os fundos do prédio e também para uma fábrica de brinquedos, através de uma viela estreita coberta por paralelepípedos. Esse local também serve como estacionamento para os funcionários da fábrica e, eventualmente, para visitantes da Casa Restaurame. Entrando pelo portão principal, à esquerda, a imponente e suntuosa construção de tijolos com grandes janelas quadradas chama atenção. Do lado direito, se segue o muro que separa a linha férrea, cuja altura, embora considerável, não evitava que os frequentadores daquele lugar se arriscassem a escalá-lo. Continuando pelo chão de terra batida do jardim, depara-se na metade do terreno com uma frondosa goiabeira plantada rente ao muro, e no seu final, com os varais nos quais os frequentadores estendiam suas roupas após lavá-las nos tanques. Há vários bancos feitos de pedras sabão coladas com cimento fincados na terra por toda extensão do jardim. Os mais disputados para um descanso após o almoço eram os localizados próximos à goiabeira, pela sombra refrescante que a árvore oferece . 23 No limite do terreno, à esquerda, há uma rampa com corrimãos de ferro que dá acesso a um longo e estreito corredor localizado entre o prédio e o jardim, elevado cerca de um metro em relação ao nível do chão de terra e que acompanha o terreno paralelamente. Seguindo pelo corredor, passa-se pelos tanques de lavar roupa dispostos bem em frente à goiabeira e no seu final, encontram-se a quadra de esportes, os banheiros e os escritórios de atendimento social e psicológico. Subindo a rampa, logo se tem acesso à entrada do refeitório. Espalhadas entre as vigas de sustentação e dispostas verticalmente, as mesas do refeitório ocupam toda a sua extensão e por ele se tem acesso à cozinha, através de uma porta –balcão, e à parte inferior do prédio por uma daquelas portas que abrem e fecham para os dois lados. Na parte inferior, pela qual se chega descendo uma rampa sinuosa, ficam o grande salão de eventos, a capela, a sala a qual eu ocupava e também a sala dos funcionários. Há também na parte inferior uma porta corrediça que dá acesso à viela de paralelepípedos lateral. Essa porta era utilizada mais frequentemente por entregadores e carteiros e vivia quebrada devido ao seu peso. As travas enferrujadas de sua fechadura permitiam que apenas alguns poucos funcionários, dentre os quais eu não estava incluído, tivessem habilidade para destrancá-la. Subindo de volta ao refeitório, na sua outra extremidade e quase em frente à porta que leva ao 24 jardim e ao portão principal, ficam a biblioteca e a sala de atividades. Ao lado da biblioteca há uma pequena passagem que dá em outra rampa, ainda mais sinuosa, pela qual se pode subir ao último pavimento do prédio, local onde foram instaladas as camas do albergue e onde ocorriam também as atividades da oficina de artes. A existência de tantos corredores, portões, salas e rampas em nenhum momento me causou sensação de enclausuramento. Apesar da frieza que a imensidão do local possa denotar, entre seus muros e paredes havia uma quantidade incomensurável de sentimentos diversos que permeavam sua atmosfera e de calor humano que emanava das pessoas que a frequentavam. Havia dias em que era possível se respirar e sentir uma paz reconfortante como se estivéssemos envoltos por uma luz de brilho intenso e inspirador. Em outros dias, o acúmulo de energias negativas tornava o ambiente denso e pesado, fazendo com que sentíssemos falta da luz e rogássemos para que retornasse. É um lugar onde apenas um elemento se fazia incondicional e permanentemente presente, não importando as circunstâncias : a vida. 25 Juventude Perdida A falta de perspectivas aliada ao desejo natural de possuir roupas, relógios e outros artigos conduzem muitos jovens moradores de rua à prática habitual de delitos, na maioria das vezes furtos, roubos e tráfico de entorpecentes. Muito frequentemente, eu recebia visitas em meu escritório de jovens moradores de rua, homens e mulheres, solicitando que eu confeccionasse currículos profissionais para que distribuíssem nas empresas e lojas da região. Apesar de não me custar nada dar atenção aos tais pedidos, muito pelo contrário, sentia prazer em fazê-lo ao passo que percebia se tratar de uma boa iniciativa, elaborar esses currículos era tarefa árdua devido à ausência de informações que pudessem ser anexadas aos documentos. A grande maioria dos jovens que me pedia ajuda não havia atingido sequer níveis elementares de escolaridade, não possuía formação, especialização ou prática em nenhum ramo específico, tampouco registros de experiências profissionais anteriores. Em posse de dados tão evasivos, era necessário que eu preenchesse os currículos com informações totalmente subjetivas, para que não lhes devolvesse folhas em branco e jogasse um balde de água fria em seu entusiasmo. 26 Ao mesmo tempo, tal situação conduzia a uma imediata e inexorável reflexão. O que poderia vislumbrar para o seu futuro esse contingente de jovens moradores de rua que, além dessa gama de circunstâncias comprometedoras que limitava seu acesso ao mercado de trabalho, estava desprovido de apoio familiar e, em muitos casos, já sofria de complicações físicas e distúrbios de comportamento decorrentes da exposição às ruas. As opções restringiam- se a trabalhos exploratórios eventualmente oferecidos por pulhas e oportunistas, nos quais os garotos eram submetidos a jornadas exaustivas, remunerações irrisórias, condições de trabalho precárias e inobservância total de direitos. Nesse contexto, as chances de se deixarem seduzir pelas tentações e facilidades das ações ilícitas eram muito grandes. No caso das jovens mulheres de rua, na maioria das vezes, a participação em atividades ilícitas era indireta, ao passo que muitas delas eram amigadas com aqueles que praticavam delitos. Salvo exceções, não se envolviam na execução das ações, razão pela qual a ocorrência de prisões envolvendo jovens mulheres era verificada com uma frequência muito menor. A preocupação com o público feminino era de outra natureza, contudo, não menos grave. A incidência de adolescentes e jovens mulheres de rua grávidas era assustadora e alarmante. Durante os meses em que permaneci trabalhando naquele estabelecimento pude acompanhar o início da gravidez, o período de gestação e o nascimento 27 dos bebês de dezenas de mulheres que, de tão imaturas, mais se pareciam crianças. Muitas pessoas atribuíam a ocorrência desse fato à promiscuidade e outras falhas de caráter das meninas e jovens mulheres de rua. Certa vez, perguntei a uma jovem e bonita moradora de rua a razão de suas constantes trocas de namorado e de nunca tê-la visto dormindo desacompanhada na rua. Sua resposta me colocou no meu devido lugar : - Mulher que dorme ou vive sozinha na rua acorda de manhã pelada e suja de sangue. Em que pesassem as dramáticas razões que estimulavam as jovens a procurarem companhia nas ruas, o fato é que a grande maioria delas era completamente inconsciente com relação ao uso de métodos contraceptivos e às consequências de trazer uma vida ao mundo nas condições em que se encontravam. As enfermeiras da Secretaria Municipal de Saúde que atendiam nos Núcleos de Serviços e albergues eram obrigadas a realizar um verdadeiro trabalho detetivesco na intenção não apenas de identificar, mas principalmente monitorar e acompanhar as gestantes adolescentes. A maioria das jovens manifestava total desinteresse em realizar os exames de rotina e não comparecia às consultas previamente marcadas. A única forma de poupar as agentes de saúde de passarem o restante de suas carreiras perseguindo jovens gestantes dentro dos estabelecimentos de atendimento à população de rua, ou ao menos 28 tornar seu trabalho menos desgastante, seria por meio da adoção de medidas preventivas. Uma das ações seria a mobilização de esforços dos próprios agentes de saúde - e também das equipes técnicas dos locais destinados ao atendimento da população de rua - com a finalidade de divulgar informações inerentes à sexualidade e a métodos contraceptivos. Fizemos uma tentativa de implementar um evento com essa finalidade dentro do nosso Núcleo de Serviços. Tratava-se de um desafio, pois as assistentes sociais simplesmente não conseguiam reunir as jovens como sempre temerosas e receosas quando o assunto em pauta era saúde. As reuniões eram marcadas, mas quase ninguém comparecia. Algumas mães eram tão precoces que os bebês mais pareciam bonecas em seus braços. Tratava-se de crianças cuidando de crianças. O jovem de rua, assim como todo jovem, acha que tem a vida inteira à sua frente e se preocupa quase que unicamente com seus interesses imediatos, que na grande maioria das vezes se caracterizam por formas diversas de obter prazer e diversão. Como estão afastados de suas famílias, a quem caberia a devida orientação, ficam livres para viverem suas vidas como acharem conveniente. Quando alertado sobre a necessidade de pensar no futuro, incentivado a retomar os estudos ou integrar cursos de formação profissional, o jovem de rua, salvo raras exceções, reage com zombaria, descaso e ironia. Despreza completamente a opinião dos 29 educadores e assistentes sociais dos Núcleos de Serviços. Essa rebeldia, peculiar ao comportamento juvenil, muitas vezes desestimula profissionais a investirem tempo e recursos pedagógicos no seu atendimento, por se sentirem menosprezados e por acharem que seus esforços serão inócuos. Contribui para aumentar o desinteresse das equipes técnicas o fato dos jovens de rua serem muito mais independentes comparativamente aos moradores de rua mais idosos ou mais debilitados. Essa condição lhes dá a sensação de autosuficiência. Acreditam que não têm nada a perder e que não necessitam do apoio institucional oferecido pelo Núcleo de Serviços. Isso os torna arrogantes e corrobora ainda mais para o afastamento dos educadores sociais. Maio de 2009. Ao iniciarmos os trabalhos no Núcleo de Serviços com albergue “Casa Restaurame” foi necessário que eu me submetesse a um breve período observatório, através do qual eu procurava tomar contato com a realidade daquele lugar. Confesso que, nos primeiros dias, parecia um índio recém chegado a uma metrópole tamanha era a minha dificuldade em me localizar dentro de um espaço físico tão imenso e repleto de acessos e passagens por todos os lados. Minha preocupação principal, no entanto, era tentar me familiarizar o mais rapidamente possível com seus frequentadores e com os funcionários que já trabalhavam ali há algum tempo. 30 Para isso, era imprescindível que eu circulasse e tentasse gravar os rostos dos mais assíduos, escutar suas conversas e puxar papo ocasionalmente. No meu quarto dia de trabalho, quando ainda me esforçava em desbravar os intermináveis caminhos daquele lugar, conheci um rapaz cujo nome era Irandi. Quase ninguém o conhecia ou o chamava por esse nome, por ser difícil de memorizar e confesso que eu mesmo tive lapsos que me impediram de lembrá-lo em alguns momentos. De fato, eu evitava me dirigir aos moradores de rua chamando-os pelos apelidos. Pensava que se ninguém os chamasse pelo verdadeiro nome talvez um dia até esquecessem que tinham um. No caso de Irandí, contudo, não houve jeito e fui obrigado a me juntar àqueles que o chamavam pelo apelido de Tarú. Tarú era um jovem de vinte e um anos, negro e fisicamente muito forte. Sua feição delicada e quase pueril contrastava com seu porte avantajado. De fala mansa e sorriso fácil, Tarú me foi apresentado quando solicitei a um funcionário antigo que identificasse, dentre os moradores de rua que frequentavam aquele estabelecimento, algum que tivesse habilidade para plantar no jardim algumas mudas que havíamos recebido como doação. Tarú se colocava incondicionalmente à disposição para ajudar da forma que pudesse dentro do Núcleo de Serviços e, além da jardinagem, possuía muitas 31 outras aptidões como marcenaria, desenho e até boxe, cujo desempenho em campeonatos juvenis lhe rendeu alguma fama no circuito amador desse esporte. Nunca houve qualquer reclamação por parte dos funcionários acerca de seu comportamento. Muito pelo contrário, era elogiado e estimado por todos. Apesar do seu tamanho, jamais se envolvera em qualquer tipo de briga ou confusão. No entanto, Tarú vivia na rua e estava sujeito a suas más influências como o uso de entorpecentes, mas mesmo esses pequenos “deslizes“ ocorriam sempre longe do alcance de nossas vistas. Seu respeito pelos funcionários era exemplar. Cruzei com Tarú na Rua Monsenhor de Andrade certa ocasião, quando fazia o meu caminho matinal em direção ao Núcleo de Serviços. Acompanhado de uma garota ele vinha a passos lentos e arrastados, completamente distraído. Notei que ele se preparava para acender um baseado. Quando me viu, seu rosto escuro empalideceu. Minha reação não foi de desaprovação e sim de espanto, uma vez que jamais o havia visto fumando sequer cigarros comuns. Tarú ficou demasiadamente constrangido. Guardou o cigarro de maconha no bolso, balbuciou algo que não consegui compreender e antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, se desvencilhou e continuou a andar de cabeça baixa. Segui meu caminho e instintivamente olhei para trás, sem que essa ação tivesse alguma motivação maior. Tarú havia parado na esquina da rua Oriente, 32 em frente a algumas barracas de camelôs. Parecia desolado. Balançava os braços e discutia com a garota, que tentava a todo custo consolá-lo. Não acendeu o baseado. Ficou alguns dias sem conseguir me encarar até que percebeu que eu o culpava muito menos do que ele próprio. Tarú era próximo a um casal de moradores de rua com quem dividia a entrada lateral do Núcleo de Serviços, que dava acesso ao estacionamento e aos fundos. Aquele ponto de permanência era considerado privilegiado pelo pessoal da rua, pois o grande portão de ferro ficava exatamente entre duas paredes nas quais era possível escorar as tábuas dos barracos, tornando-os mais firmes e protegidos da chuva. Por ser um local menos visível, propiciava também um pouco mais de privacidade e segurança aos casais. Seus poucos metros quadrados comportavam no máximo seis ou sete pessoas, pois a parte frontal do portão deveria permanecer desobstruída para o acesso dos caminhões da fábrica de brinquedos. Durante os seis meses em que trabalhei na Casa Restaura-me vários grupos diferentes se alternaram no “comando” daquele disputado espaço e em todos os grupos havia sempre um líder. Ninguém se instalava ali sem o consentimento do líder. Naquele momento, quem ditava as regras ali era justamente o melhor amigo de Tarú, um rapaz cujo apelido era Carioca. 33 Tarú, Carioca e sua esposa Fabiana me procuraram certa ocasião para me avisar que estavam deixando a rua.Haviam conseguido alugar uma pequena casa no Parque São Rafael, bairro periférico situado nos confins da Zona Leste. Embora as circunstâncias que possibilitaram a efetivação da negociação imobiliária fossem desconhecidas e de certa forma até suspeitas, uma vez que nenhum dos três possuía trabalho ou renda fixa, me comprometi a ajudá-los, disponibilizando a perua Kombi da Organização para o transporte dos seus pertences até a casa e doando alguns utensílios para iniciarem a nova vida como um bujão de gás e uma cesta básica. Eram pessoas por quem nutríamos afeto e amizade e que se esforçavam em busca de melhores condições de vida, lutando com as armas que dispunham para não se entregarem às mazelas da rua. A situação do casal era mais crítica. Dificilmente conseguiriam um trabalho formal, pois já não eram jovens como Tarú e possuíam poucas qualificações. Depois que se mudaram, raramente apareciam, em razão da longínqua distância que separava o Núcleo de Serviços do seu local de residência. No entanto, fui surpreendido numa tarde pela visita inesperada de Tarú que interceptou abruptamente meu trajeto no momento em que eu me deslocava da parte inferior do estabelecimento, onde ficavam os escritórios e o salão de eventos, para o pavimento superior. 34 Percebi que ele estava um tanto quanto ansioso e seu olhar, sempre sereno, refletia dessa vez alguma angústia. Timidamente, Tarú cogitou a possibilidade de eu lhe arrumar um emprego. Pego de supetão e sem entender muito bem o que acontecia, respondi que o quadro funcional do qual dispunha para a execução dos trabalhos estava completo naquele momento, o que de fato era verdade. Propus que ele trouxesse um currículo ou que redigíssemos um naquela mesma hora, para que eu pudesse tratar daquele assunto com outras pessoas e em outros departamentos. Tarú me respondeu que não poderia esperar, pois necessitava resolver algumas questões pessoais as quais não quis revelar. Diante de sua inquietação e ansioso por ajudá-lo de alguma forma, sugeri que fosse a uma serralheria localizada numa rua próxima. Alguns moradores de rua haviam comentado comigo dias atrás que faziam trabalhos temporários nesse local, pelos quais eram remunerados semanalmente. Na verdade, era uma péssima sugestão. Tratava-se logicamente de um subemprego. O proprietário da serralheria, um chinês ou coreano que sequer falava português, utilizava astutamente da mão de obra de moradores de rua para burlar de todas as maneiras possíveis as leis trabalhistas. Reiterei a Tarú que esperasse alguns dias até que se pudesse pensar em coisa melhor, mas não consegui convencê-lo. Despediu-se rapidamente e disparou a 35 correr pelo salão dizendo que procuraria pela tal serralheria. Permaneci um bom período de tempo tentando imaginar em que tipo de enrascada se metera aquele rapaz. Veio à minha cabeça uma série de possibilidades, algumas mais outras menos preocupantes. Talvez ele necessitasse de dinheiro para pagar sua parte no aluguel da casa que dividia com Carioca e Fabiana, o que era perfeitamente possível. Ou poderia ter adquirido dívidas com traficantes no Parque São Rafael. Nesse caso, seria um desastre. De qualquer forma, conhecendo seu temperamento e sua personalidade, não esperava que Tarú se precipitasse a ponto de cometer uma loucura. No final daquela tarde, um grupo de moradores de rua esbaforidos veio me comunicar que Tarú havia acabado de ser preso com outras três ou quatro pessoas. Haviam sido flagrados furtando peças de roupa em alguma loja da rua Oriente. Quando me relataram os nomes dos outros rapazes detidos em companhia de Tarú, não me surpreendi. Eram todos jovens moradores de rua conhecidos pela prática contumaz de delitos e que já haviam cumprido penas anteriormente. Mas não o Tarú. Ele não possuía antecedentes criminais, tampouco a malícia necessária para se envolver com furtos e roubos. Certamente havia sido insuflado pelos demais a participar dessa malfadada campanha e seu desespero o induziu a correr tal risco. 36 Um sentimento de culpa me tomou instantânea e avassaladoramente. Poderia muito bem ter previsto a possibilidade de aquilo acontecer, uma vez que havia compartilhado da sua agonia. Deveria a todo custo tê-lo segurado, acalmado e persuadido de que no estado emocional em que se encontrava não conseguiria resolver problema algum. Na manhã seguinte, havia alguém à minha espera no portão de entrada. Era o Carioca. Estava com alguns documentos de Tarú. Carioca me explicou as razões da afobação de Tarú e da sua ansiedade em conseguir um emprego. Tarú havia arrumado uma companheira, uma menina na verdade, com recém cumpridos 17 anos. Vim a saber, posteriormente, que era a mesma que o acompanhava no episódio do cigarro de maconha ocorrido algum tempo antes. Segundo informações do Carioca, a menina pertencia a uma família de boa situação financeira e havia fugido de casa para viver com Tarú no Parque São Rafael. O caso era que a jovem aventureira, antes de partir, furtou os cartões de crédito da mãe e utilizou diversas vezes em supermercados e lojas de departamento. Carioca me disse que ele e sua mulher suspeitavam que algo estivesse errado, pois a menina chegava a casa diariamente carregada de compras e coisas. No entanto, sua falta de experiência no ramo das contravenções a delatou. Inconformados com sua rebeldia, seus pais passaram a proferir ameaças a ela e a Tarú indicando que denunciariam os dois à 37 polícia caso os gastos realizados com os cartões surrupiados não fossem imediatamente ressarcidos. Esse foi o motivo que levou Tarú a suplicar por um emprego. Sabia que, indubitavelmente, a única pessoa que acabaria encrencada naquela história seria ele. Um ato irresponsável de dois jovens imaturos pode ter sido a causa de Tarú perder preciosos anos de sua vida na cadeia, uma vez que os artigos penais aos quais ele e os demais foram enquadrados eram extremamente graves. O grupo estava sendo acusado de furto qualificado, formação de quadrilha e corrupção de menores (um dos rapazes detidos era adolescente). Foram encaminhados para o Centro de Detenção Provisória, em Pinheiros. Carioca, visivelmente abatido e preocupado, naquele dia não ficou nem pra almoçar. Agora corria o risco de voltar para rua, pois contava com a contribuição de Tarú e também da garota para conseguir custear o aluguel. Foi cuidar da vida e tentar encontrar novas pessoas com quem pudesse dividir os 300 reais mensais. Nunca mais vi Tarú. Como muitos outros jovens de rua com quem convivi naquele lugar, Tarú era um currículo em branco exatamente como os que eram entregues em minhas mãos. Nada constava em seu passado e provavelmente nada constará em seu futuro. Os jovens de rua são como um talho largo e fundo, cheio até a boca de energia e esperança e que é desdenhosamente despejado no chão. 38 Apesar da pouca idade, a maioria desses rapazes e moças não pode cultivar esperanças de dias melhores, uma vez que são construídas mais penitenciárias para mantê-los longe da sociedade do que escolas para aproximá-los dela. Tarú sentiria na própria pele os efeitos dessa retórica cruel. Tive notícias dele algum tempo depois, através de outro frequentador do nosso Núcleo de Serviços que acabara de ganhar o benefício da liberdade condicional e afirmou tê-lo encontrado casualmente no Centro de Detenção Provisória. Ainda aguardava pelo julgamento. Passados alguns meses após a sua prisão, eu era acometido frequentemente da nítida sensação de têlo visto andando pelo jardim do Núcleo de Serviços, com semblante tranquilo e simpático, exatamente como quando fomos apresentados. Em todas essas ocasiões eu poderia jurar que era ele. Talvez eu quisesse tanto vê-lo, que via. Apenas eu. 39 Os durões de rua A chamada “lei da rua“ é de conhecimento imprescindível para todos aqueles que vivem nela, sejam homens, mulheres, adolescentes ou crianças, solitários ou em grupos, “novatos” ou já escaldados. A lei da rua nada mais é do que um código de ética e conduta estabelecido pelos próprios moradores de rua, que “funciona“ paralelamente às normas convencionais vigentes na sociedade e compreende desde pequenas ações que envolvem o convívio coletivo e o respeito entre os indivíduos, até outras de maior potencial ofensivo. Encontrei o psicólogo Walter Varanda, velho companheiro de incursões às ruas, numa tarde quente de sexta –feira em dezembro de 2007. Sentamos nos degraus da escadaria do monumento posicionado defronte ao prédio do Tribunal de Alçada Civil no Pátio do Colégio, região central de São Paulo. Por se tratar de uma parada certa para veículos de entidades filantrópicas que distribuem comida no período da noite, esse é um grande e conhecido ponto de concentração de moradores de rua. Sem que nos déssemos conta, em poucos minutos já estávamos em companhia de um pequeno grupo, todos visivelmente intrigados pela presença de dois “estranhos” que discutiam despreocupadamente. Não resistindo à curiosidade, logo encontraram uma brecha para se infiltrarem cautelosamente no 40 nosso bate-papo, perguntando as horas ou mencionando o calor exagerado daquele princípio de verão. Superados alguns instantes de natural desconfiança em que tentavam se certificar de que não éramos da polícia e que não estávamos ali com más intenções, a conversa se tornou animada. Não demorou muito para que começassem a falar de suas vidas e de suas histórias pessoais. Ficava claro para nós que, a partir do momento em que havia se quebrado aquela barreira inicial de suspeição quanto à nossa presença, passávamos a ser vistos e tratados como visitas. Queriam nos deixar à vontade como se estivessem recebendo amigos, ou melhor, a visita de alguém importante em suas casas, pois obviamente sabiam que não éramos moradores de rua. Ofereceram-nos aquilo que estavam comendo e bebendo e passaram a controlar seus gestos e atitudes, o que denotava o empenho de esforço em nos causar boa impressão. Em um determinado momento, quando nos encontrávamos ali já há um par de horas, um dos moradores de rua imprudentemente infringiu a lei da rua. Ele se encontrava sentado nos degraus superiores da escadaria do monumento - ao passo que estávamos exatamente ao seu lado, na mesma altura. O rapaz, logicamente desprovido de sobriedade e maiores pudores em razão das incontáveis doses de cachaça que havia ingerido, urinou pela abertura do calção da posição em que estava e o líquido escorreu de forma abundante escadaria abaixo. 41 A urina não atingiu ninguém - uma vez que todos se encontravam praticamente no mesmo nível e razoavelmente afastados - e tampouco eu e Walter nos sentimos constrangidos ou ofendidos com a ação. A lei da rua, no entanto, é implacável e para os demais moradores de rua ali presentes a atitude foi inaceitável. Na condição de “visitas”, não poderíamos ser submetidos àquilo e a reação foi imediata. Um deles, que aparentava ser um pouco mais velho que os demais e provavelmente exercia alguma liderança sobre o grupo, agarrou o “transgressor” pela camisa e o arrastou violentamente pelos degraus, de forma que todo o líquido impregnasse em sua roupa, ensopando-a completamente. Talvez a repressão tivesse sido menor se não estivéssemos ali. Ou, por outro lado, talvez tivesse sido maior. O rapaz que foi arrastado não ousou esboçar qualquer revide. Já estava demasiadamente embriagado e, acima de tudo, sabia que havia infringido o código de conduta da rua. O líder do grupo nos olhava como um pai que acabara de corrigir um filho que quebrou uma vidraça ou cometera uma travessura qualquer, num misto de orgulho e satisfação. Desconcertados, Eu e Walter tentávamos agir naturalmente, mas sabíamos que de forma alguma poderíamos demonstrar qualquer sinal de solidariedade ao “infrator”. O relato acima diz respeito a uma reação motivada por um ato impróprio, quase involuntário, 42 impulsionado muito mais pela inconsciência e falta de autocontrole decorrentes do consumo exagerado da bebida - e que não pode ser caracterizado de forma alguma como uma obscenidade. Tratava-se, portanto, de uma contravenção banal às leis da rua, cuja retaliação se devia à necessidade da manutenção de uma ordem mínima em um espaço onde se encontravam reunidos vários moradores de rua. No entanto, as consequências àqueles que infringem a lei da rua vão se tornando mais graves à medida que a ação cometida também se torna mais grave. Junho de 2009, aproximadamente 11 horas da manhã. De dentro do refeitório, percebi um corre-corre no jardim do Núcleo de Serviços. No exato momento em que eu cruzava a porta que dava acesso ao jardim, um vulto irrompeu refeitório adentro em desabalada carreira, quase me derrubando. Olhei para trás e vi a figura de um jovem branco que eu nunca havia notado por ali, aos gritos, apavorado. Com um movimento rápido, quase um reflexo, fechei a porta do refeitório ao perceber que um grupo de quinze ou vinte moradores de rua estava preparado para dar continuidade àquela impiedosa perseguição. Não tinham boas intenções, uma vez que a maioria carregava pedaços de pau e pedras nas mãos. Bloqueando a porta com o corpo e impedindo que a pequena multidão invadisse o refeitório, por um pequeno vão que me possibilitava ver apenas parte 43 de seus semblantes eu lhes perguntei a razão daquele encalço frenético. Ensandecidos, esbravejavam todos ao mesmo tempo, com olhos e bocas escancarados : - O cara é “Jack !“ , o cara é “Jack !”, você vai “passar pano” pro cara !? Jack é uma expressão utilizada pelo pessoal da rua para identificar estupradores. Provavelmente essa gíria faça uma alusão ou comparação vulgar ao famoso criminoso e tema de filmes e livros “Jack, o estripador”. Foram necessários alguns minutos até que os ânimos se acalmassem minimamente e as pessoas me explicassem o que de fato estava ocorrendo. Muito atabalhoadamente e usando mais gestos do que palavras, o grupo se esforçava em me fazer entender que aquele rapaz a quem perseguiam havia tentado se aproveitar de duas mulheres na noite anterior enquanto dormiam em frente à Catedral da Sé. As mulheres o reconheceram dentro do Núcleo de Serviços enquanto ele lavava suas roupas nos tanques do jardim e o delataram aos demais frequentadores, que prontamente se mobilizaram no intuito de submeterem-no a um corretivo. A lei da rua não requer muitos argumentos ou evidências para ser colocada em prática. Deixei claro a todo o grupo que não poderia permitir que cometessem tal ato dentro do Núcleo de Serviços. Os jovens, ainda nervosos e com pedaços de blocos de concreto nas mãos, responderam que acatariam 44 minha orientação, mas que eu “entregasse“ o suposto molestador para que lhe aplicassem o devido castigo na rua . Obviamente, um acordo dessa natureza estava fora de cogitação. Como havia uma saída pelos fundos, a qual o acesso era possível pelo refeitório, eu disse aos “justiceiros” que o rapaz embrenhara fuga durante o intervalo de tempo em que ficamos discutindo no jardim. Exaltados, me acusavam de ter “passado um pano“ para o “Jack”, o que significava, segundo eles, que eu havia sido conivente com a fuga do sentenciado. Após mais alguns momentos de reclamações e caras amarradas decidimos por liberar o almoço mais cedo e, dessa forma, acalmar os ânimos do pessoal. Na verdade, o rapaz não havia conseguido escapar, pois a rua já estava vigiada. Sem que ninguém notasse, ficou escondido nos banheiros da quadra de esportes por um período de mais de três horas. Quando veio pedir ajuda, já quase no final da tarde, estava tremendo de frio e medo e tinha as roupas encharcadas de suor. Sem termos condições ou subsídios para imputarlhe qualquer culpa, mesmo porque não se pretendia tomar qualquer atitude nesse sentido e temendo que seus algozes dessem conta de sua presença, numa ação digna de filme policial rapidamente embarcamos o rapaz na nossa Kombi e o motorista foi orientado a deixá-lo em local seguro, bem distante dali. Foram providenciadas roupas secas para que se trocasse no veículo. Saiu abaixado 45 como um verdadeiro fugitivo. Culpado ou não, também era conhecedor da lei da rua e sabia do risco que corria. Nunca mais pôs os pés ali. Não há qualquer exagero nos acontecimentos narrados. Simplesmente mostram o quanto a vida na rua é de fato violenta e que nela impera a lei do mais forte. Não se trata de afirmar que as pessoas da rua são violentas ou agressivas, e sim, o meio em que vivem. A vida nas ruas, assim como a vida de uma forma geral no modelo social vigente, é permeada permanentemente por uma competição voraz e impiedosa. As “pessoas comuns“ digladiam–se cotidianamente por cargos e promoções, celulares sofisticados e até vagas de estacionamento em supermercados. Já no universo da população de rua as disputas mais acirradas são por território, mulheres (ou homens) e às vezes drogas. Água também é artigo de luxo na rua. A possibilidade de um morador de rua passar fome é muito menor do que a de passar sede. Muitas organizações e grupos de voluntários se mobilizam e realizam caravanas para distribuir comida nas ruas. Mas quase ninguém distribui água. A água era uma forte razão para que muitos moradores de rua do centro da cidade se dirigissem diariamente ao nosso Núcleo de Serviços, pois podiam encher à vontade suas garrafas de plástico com a água dos tanques dispostos no jardim. Outro fato comum às vidas tanto das pessoas que moram na rua como das que não moram é a 46 banalização de pequenas transgressões, usualmente cometidas para a obtenção de algum benefício pessoal. A forma como são percebidas pela sociedade as transgressões eventualmente cometidas por aquele que mora na rua e pelo “cidadão de bem”, no entanto, são bastante distintas. O morador de rua que retira fios de cobre pendurados em postes para vender em um ferro velho e conseguir alguns trocados, se tiver má sorte e for apanhado pela polícia, será indiciado por furto qualificado (quando é cometido mediante escalada ou destreza), preso e provavelmente levará alguns cascudos. Por outro lado, o “cidadão de bem” que foi reprovado diversas e reiteradas vezes em um exame que tem por finalidade avaliar sua aptidão para dirigir um veículo automotor e que paga pra conseguir retirar sua carteira de habilitação utilizando oportunamente as brechas encontradas num sistema de administração pública corrompido permanecerá incólume, completamente à sombra da lei. A necessidade de se viver num meio violento requer o desenvolvimento de estratégias. Nesse contexto, a realidade da rua pode compelir o indivíduo a interpretar um personagem ou desempenhar um papel, através dos quais ele deverá transmitir uma imagem dura, intimidatória e que lhe garanta o respeito e a sobrevivência na rua. A manutenção em tempo integral dessa postura rígida exige muitas vezes que as emoções sejam 47 engolidas a seco. O morador de rua deve esconder no lugar mais profundo da sua alma todos os sentimentos que possam desencadear a exposição das suas fragilidades e tristezas. Por essa razão, os “durões“ das ruas raramente compartilham suas amarguras com companheiros de rua. Também não falam sobre seus sofrimentos, a saudade da família e do passado, pois tal ação invariavelmente faz com que derrubem as máscaras e vertam incontidas lágrimas, colocando em cheque toda a sua valentia. O álcool também tem esse efeito “libertador“ - por isso os durões evitam o exagero, embora circunstancialmente possa ocorrer nas comemorações de aniversários, despedidas de parceiros de rua e desilusões amorosas. Os durões de rua geralmente são jovens, gozam de boa saúde e acumulam alguns anos de vivência e experiência nas ruas. Passagens pelo sistema prisional e por facções criminosas como P.C.C e Comando Vermelho somam pontos ao currículo. Apresentam características peculiares retratadas pela manutenção quase que permanente de uma expressão carrancuda e um ar empertigado, pelo uso de correntes, pulseiras e outros adereços, por um jeito de andar gingado e pelo hábito de manter os braços cruzados de uma maneira que as mãos ficam presas às axilas, formando um “w” sobre o peito. Os durões de rua costumam se utilizar apenas dos itens básicos dos Núcleos de Serviços como alimentação, banho e lavagem de roupa e muito 48 raramente dormem em albergues, salvo motivo de força maior como ameaças e rixas. Não se interessam por qualquer outra atividade seja cultural, esportiva ou lúdica, ao passo que possuem alguma fonte de renda que é proveniente de pequenos bicos como guardar e lavar carros nas ruas, mas que podem eventualmente extrapolar para ações ilícitas como o trafico de entorpecentes, furtos e roubos. Por conta de sua natureza intempestiva, indomável e em alguns momentos agressiva, os durões de rua são abominados pelos funcionários e gestores da maioria dos Núcleos e Centros de Serviços e também dos albergues destinados à população de rua. Isso ocorre por duas razões diferentes, porém associadas. São indivíduos que possuem fichas intermináveis de transgressões disciplinares praticadas dentro dos estabelecimentos como desacatar funcionários e desrespeitar normas de funcionamento. Os Núcleos e Centros de Serviços, em razão da defasagem funcional ocasionada pelo restrito e inadequado quadro de recursos humanos do qual dispõem, não conseguem fazer frente às ações indevidas cometidas pelos durões de rua e não conseguem, mesmo mobilizando integralmente seus escassos efetivos, mantê-los sob controle e fazê-los cumprir as normas de convivência e de utilização dos serviços. A solução comumente colocada em prática como pronta resposta às ocorrências de ordem disciplinar 49 é vetar sumariamente a entrada de seus causadores por tempo indeterminado. Nem sempre os durões de rua são pessoas do sexo masculino. Existem também as “duronas de rua”. Julho de 2009. Eu estava no refeitório quando, pela primeira vez, pus meus olhos sobre Neuza. O horário de almoço era o ponto crítico do nosso dia, pois aglomerava sob um mesmo teto uma quantidade muito grande de moradores de rua e os tumultos eram inevitáveis. Logo quando entrou, Neuza se fez perceber, através de uma andar desafiador. Com a cabeça erguida e os braços jogados para trás, arrastava os chinelos de dedo produzindo um barulho irritante. O modo pouco adequado como se vestia também mereceu minha atenção. Seu figurino se resumia a um short justíssimo e uma minúscula blusa de alças, ostentando boa parte do seu corpo queimado pelo sol e repleto de tatuagens rudimentares. Como de costume naquele horário, eu estava na entrada do refeitório auxiliando nosso funcionário a organizar a enorme fila, que seguia porta afora pelo longo corredor lateral anexo ao jardim. As pessoas eram autorizadas a entrar em grupos de dez. Assim que retirou seu prato de comida e se acomodou, Neuza começou a se estranhar com outro frequentador daquele Núcleo de Serviços, um jovem rapaz que se voluntariou a nos ajudar na dura tarefa de manter as pessoas em ordem na fila. Apesar da maioria das mesas do refeitório estarem desocupadas, Neuza havia escolhido a que ficava 50 exatamente em frente ao local onde o rapaz se encontrava e o provocou durante todo o horário do almoço, com caretas e palavrões sussurrados. Quando percebia que eu a encarava, retribuía olhares indiferentes, não demonstrando qualquer constrangimento ou preocupação quanto à minha presença. Já tinha ouvido falar muito sobre ela, mas jamais a havia visto “em ação“. O fato é que Neuza estava diariamente envolvida em brigas e discussões dentro daquele Núcleo de Serviços e era causa de reclamações constantes dos funcionários por não respeitar aos horários estabelecidos para as atividades, principalmente com relação ao banho. Gostava de ficar sob o chuveiro escovando os cabelos despreocupadamente, não se importando com as manifestações de protesto proferidas por dezenas de outras mulheres que esperavam a vez do lado de fora. Numa tarde qualquer, uma funcionária da equipe me comunicou que Neuza estava já há algum tempo aguardando para falar comigo no salão de eventos. Ocorreu-me subitamente que, em quase dois meses de trabalho naquele lugar, nunca havíamos trocado uma palavra sequer. No dia a dia, nos observávamos a distância, sondando e estudando cuidadosamente nossos movimentos como em uma partida de xadrez. A vaidade, contudo, impedia que ambos tomassem a iniciativa da aproximação. Ela era uma espécie de manda-chuva naquele lugar e impunha essa 51 condição pela rebeldia - eu era o gerente. Nenhum dos dois queria dar o braço a torcer. Fui tomado por um sentimento indefinido que oscilava entre a curiosidade e a desconfiança. Finalmente travaria um contato mais próximo com aquela figura controversa, enigmática e impetuosa, cuja fama de mau comportamento era legendária até em outros albergues e Núcleos de Serviços para moradores de rua da cidade. Perguntei à funcionária qual seria o assunto em pauta. A moça, discretamente, preferiu não comentar, mas percebei imediatamente que Neuza não havia me procurado para elogiar a qualidade da comida ou comentar como ficaram bonitos os arranjos novos do jardim. Naquele momento, eu estava na cozinha onde acabara de almoçar. Com um palito crivado entre os dentes, lentamente desci a rampa que dava acesso ao salão de eventos na parte inferior do Núcleo de Serviços. Neuza me observou cruzar o salão e caminhar em sua direção. Estava sentada em uma cadeira de plástico que havia retirado de uma imensa pilha amontoada junto à parede e sua postura era explicitamente defensiva. À medida que me aproximava percebia em seu rosto as sobrancelhas cerradas e os olhos miúdos que se espremiam sob as pálpebras, ficando quase invisíveis. Seus braços e pernas cruzados eram como um escudo de proteção e o balançar frenético 52 e repetitivo do seu pé esquerdo descalço tornava nítida a sua ansiedade. Joguei fora o palito e saquei outra cadeira da pilha, sentando-me e apoiando os braços no encosto que estava virado para frente. Uma vontade quase irresistível de rir me acometeu naquele momento, ao notar que parecia que protagonizávamos uma cena num bar de filme de faroeste. Tratei então de baixar a guarda. Cumprimentei-a de maneira formal, apertando-lhe a mão e me ajeitei na cadeira para ouvi-la melhor; fiz um gesto indicando que começasse a falar. Neuza entortou levemente a cabeça para o lado e franziu a testa. Suas palavras começaram a sair em um tom de voz moderado, mas que aumentava repentinamente, e então tornava a baixar O fato é que ela queria satisfações da minha parte, pois ouvira comentários das bocas de outros frequentadores segundo os quais eu havia dito que proibiria sua entrada no Núcleo de Serviços, em virtude dela ser portadora do vírus HIV. Tratei de tranquilizá-la dizendo que, fosse ela portadora ou não do vírus HIV, isso não seria motivo para que se vetasse sua entrada e que não se poderia cometer ali dentro um ato de explícita discriminação. Minha resposta instantaneamente a desarmou. Aparentando estar aliviada, descruzou os braços e descansou-os sobre as pernas. Sentindo que Neuza já estava mais calma e à vontade, aproveitei a oportunidade para lembrá-la do seu excessivo e constante envolvimento em 53 desentendimentos com os demais frequentadores daquele Núcleo de Serviços e também refrescar sua memória acerca da necessidade de respeitar minimamente as normas daquele estabelecimento, principalmente quanto aos horários do banho, que se tratava de uma das razões para suas assíduas e calorosas altercações com os funcionários. Senti que o momento se fazia propício para tocar num assunto bastante delicado, que se referia ao seu costume de andar com roupas exageradamente curtas. Solicitei, então, da forma mais polida possível, que procurasse se vestir mais discretamente, evitando shorts apertados, saias transparentes e decotes exuberantes, mitigando as chances de confusões com outras mulheres e crises de ciúmes de seu namorado. A razão desse pedido não envolvia qualquer falso moralismo da minha parte, mesmo porque em dias de calor excessivo recomendávamos o uso de roupas mais leves. Tratava-se, na verdade, de uma ação preventiva. Já havia presenciado ocorrências não só envolvendo Neuza, mas também outras mulheres dentro daquele Núcleo de Serviços, nas quais o desfile de corpos sumariamente cobertos ou seminus foi o estopim para discussões e brigas generalizadas. Falamos mais algum tempo sobre outros assuntos e, daquele momento em diante, nossas conversas aconteceriam cada vez mais frequentemente. Neuza me procurava para contar fatos importantes que aconteciam em sua vida como quando 54 fraquejava e sumia durante dias para usar drogas, as brigas que tinha com o namorado, os encontros com o filho mais velho de quem estava afastada há algum tempo e os resultados de seus exames de saúde. Outras vezes, aparecia simplesmente por aparecer. Queria mostrar coisas de pouca importância como a cor do esmalte das unhas ou um rádio velho e defeituoso que achara na rua. Durante a noite, antes de ir embora, eu permitia que ela acessasse a Internet pelo computador da minha sala para que se comunicasse com o filho por intermédio de e-mail e de comunidades virtuais. Apesar da profunda e perceptível mudança na maneira como Neuza me tratava, sua relação com os demais funcionários, no entanto, não evoluía, tampouco seu comportamento. Seus atos de indisciplina, bem como as queixas dos funcionários a seu respeito não deram quaisquer sinais de trégua. Parecia que quanto mais eu lhe dava atenção, mais ela se sentia à vontade para agir da forma que bem entendesse como se o fato de conversar diariamente comigo lhe concedesse algum “status” ali dentro. Neuza jamais concordava que tivesse cometido qualquer uma das ações das quais era acusada e se portava de maneiras diferentes quando estava na minha presença. Tratava-me sempre com respeito e cordialidade, embora não me poupasse de suas críticas com relação ao funcionamento do serviço quando achava oportuno fazê-lo, mas era grosseira e petulante com a maioria da equipe. 55 Devo confessar que a personalidade forte e irreverente de Neuza me despertava um estranho interesse. Queria a todo custo compreender o que motivava as repentinas e explosivas crises nervosas que a transfiguravam completamente, levando-a da calma absoluta à histeria frenética em frações de segundos. Nos dias em que estava bem ela chegava a ser uma pessoa realmente agradável, de boa conversa e cuja presença não era de forma alguma um fardo. Neuza havia me confidenciado em uma de nossas conversas que fazia visitas esporádicas a uma médica psiquiatra em uma Unidade de Saúde próxima dali. Confessou também que, apesar de gostar da médica, o tratamento não lhe agradava, pois recomendava a ingestão de remédios indicados para o controle da ansiedade. Neuza se recusava terminantemente a tomá-los, o que justificava por não se achar suficientemente “louca“ para necessitar de medicação. Percebi em minhas perambulações pelo Núcleo de Serviços que ela passava a maior parte do seu dia no mais absoluto ócio, exposta ao sol no jardim, sem qualquer ocupação senão envolver-se em brigas. Na ausência de outras e melhores alternativas, as brigas se constituíam no seu único passatempo. Neuza arrumava as próprias brigas e também se imiscuía nas dos outros. Houve uma ocasião em que ela saiu do Núcleo de Serviços para ir interferir numa briga que estaria ocorrendo no Largo do Arouche, no centro da cidade. 56 A verdade é que a grande maioria dos funcionários não a suportava e manifestava abertamente o desejo de vê-la longe dali. Por conta de seu temperamento, Neuza já havia sido expulsa de todos os Núcleos de Serviços pelos quais já tinha passado. Não me agradava a idéia de optar pelo jeito mais fácil de resolver as coisas e simplesmente tocá-la dali, virar-lhe as costas sem antes ao menos tentar ajudá-la de alguma maneira. No entanto, não era justo que ela me tratasse de uma forma diferente da dos demais. Exigia que respeitasse a todos igualmente, mas não havia como controlá-la em tempo integral. Decidi então arriscar todas as fichas e enveredar por outro caminho, que ia totalmente na contramão dos anseios de todas as pessoas a quem Neuza atormentava cotidianamente naquele Núcleo de Serviços. Minha idéia, muito simples por sinal, era canalizar toda a carga de energia nela aflorada para uma atividade que pudesse mantê-la ocupada, longe de confusões e assim aplacar os ânimos dos funcionários. Como objetivos mediatos, almejava-se através da ação que se colocaria em prática conquistar gradativamente sua confiança e incentivá-la a lidar de forma adequada com seu desequilíbrio emocional, que indubitavelmente era a válvula propulsora para todos os problemas Confesso que, num primeiro momento, essa atitude desencadeou certo mal estar na equipe. 57 Sob efeito da mágoa pelos repetidos atos de desrespeito cometidos por Neuza, os funcionários esperavam de mim uma resposta mais rigorosa e que lhes trouxesse algum conforto. Embora eu compreendesse perfeitamente essa reação e o sentimento de decepção que os acometia, pensava que era necessário fazê-los perceber que ela tinha também qualidades, as quais me era possível enxergar pelas oportunidades que tive para conhecê-la melhor. O fato é que Neuza não conseguia fazer uso de suas virtudes quando se encontrava sob a influência do ambiente tenso e turbulento daquele Núcleo de Serviços. Nessa condição, estava sempre em estado de alerta e na iminente expectativa para o surgimento repentino de fofocas, brigas e confusões. Todos concordavam que ela exercia uma liderança natural sobre os demais moradores de rua. Muitas vezes fora a porta –voz de reivindicações coletivas ou tomara as dores daqueles a quem tinha consideração. Era muito respeitada, inclusive pelos mais durões do pedaço. Neuza teria a oportunidade de treinar seu autocontrole e perceber os malefícios que sua ansiedade e impaciência lhe causavam, ao passo que o desenvolvimento gradual de uma relação de confiança poderia abrir espaço para tentarmos convencê-la de que remédios não serviam apenas para “loucos” e que, associados a uma ocupação saudável e da qual gostasse, poderiam certamente 58 ajudá-la a se restabelecer pessoalmente e até reconstruir os caminhos de sua vida. Alguns meses antes havíamos inaugurado uma biblioteca para usufruto da população de rua. Por intermédio de campanhas de arrecadação e doações foi possível reunir uma quantidade razoável de exemplares de livros, enciclopédias, revistas e gibis. Contudo, sem a devida fiscalização, os livros estavam sumindo das prateleiras de maneira incontrolável e não dispúnhamos de funcionários suficientes para nos dar ao luxo de manter alguém permanentemente na biblioteca. Tal fato, que em outras circunstâncias muito provavelmente seria encarado como um problema, acabou se transformando na oportunidade ideal para colocar Neuza à prova. Num fim de tarde, solicitei a um funcionário que avisasse Neuza para descer até meu escritório após o jantar. Como em todas as ocasiões em que a convidava para conversar em minha sala, ao contrário das vezes em que a iniciativa partia dela, chegou receosa e questionando qual seria o motivo da bronca que levaria daquela vez. Sorri e lhe pedi que sentasse, o que só aumentou sua preocupação. Para não prolongar seu sofrimento, fui direto ao ponto e expus o meu desejo de que ela desempenhasse um trabalho voluntário dentro do Núcleo de Serviços e que, caso concordasse, a incumbiria de cuidar da nossa biblioteca. Suas atribuições principais se constituiriam em organizar todo o acervo, controlar o acesso das 59 pessoas e zelar para que não desaparecessem livros, revistas, gibis, enciclopédias, CDs e outros itens que muito gentilmente haviam sido cedidos por uma série de colaboradores. Em contrapartida, em troca de seus préstimos, teria prioridade para usar os serviços o que significava que poderia fazer suas refeições e tomar banho antes dos demais. Parecia-me um justo acordo, uma vez que ela estaria trabalhando em benefício do estabelecimento. Neuza ouviu a tudo atentamente e seu olhar típico deixava transparecer toda sua ansiedade. Permaneceu alguns instantes em silêncio, girando com as mãos o colar de pequenas pedras que tinha no pescoço. Quando se pôs a falar, trouxe à tona um sentimento que é comum a grande maioria das pessoas que vivem nas ruas: baixíssima autoestima. Por trás daquela mulher quase sempre arisca, rude e intempestiva e que impunha medo a valentões e mesmo aos próprios funcionários daquele lugar, havia um poço de insegurança contaminado pela mais profunda falta de autoconfiança e valorização pessoal. Desanimada, Neuza respondeu que não se sentia capaz e que não via em si própria qualidade alguma para cumprir as tarefas que eu lhe propunha. Acostumado com seu jeito destemido e petulante, me surpreendi ao vê-la pela primeira vez receosa e procurei incentivá-la. Argumentei que, como qualquer ser humano, ela possuía defeitos, mas também qualidades e que era 60 por enxergá-las que eu estava lhe fazendo aquela proposta. Neuza realmente era portadora de qualidades. Uma delas, inclusive, seria bastante conveniente às suas atribuições na biblioteca, que se tratava do gosto pela leitura. Eu já a havia observado folheando jornais antigos na rua, precariamente iluminada pela lâmpada do poste de eletricidade no local onde dormia, bem como já tivera a oportunidade de constatar que ela escrevia surpreendentemente bem, através de um bilhete manuscrito que havia mandado alguém me entregar e pelo qual se desculpava por alguma confusão em que tinha se metido. Após mais alguns momentos de hesitação, Neuza acabou aceitando minha proposta e combinamos que ela abriria a biblioteca ao término do café da manhã, às 10 horas, fecharia ao meio-dia para o almoço, reabriria às 14 horas e encerraria o expediente às 16 horas, a tempo de tomar o seu banho e jantar. A carga horária seria, portanto, de quatro horas diárias e o seu cumprimento não demandaria esforço sobrehumano, tampouco comprometeria a utilização dos serviços que Neuza necessitasse. A reação da maioria dos funcionários à minha decisão foi de absoluta incredulidade. Afirmavam, categoricamente, que o meu arrependimento era uma questão de tempo e que nas mãos de Neuza a biblioteca estaria fadada a algum evento de proporções catastróficas como um incêndio ou uma explosão. 61 Restava-me apenas argumentar que o tempo haveria de nos mostrar se realmente se tratava de um devaneio da minha parte. Neuza era uma pessoa que, aos 35 anos de idade e no auge de sua capacidade produtiva, jamais havia conseguido trabalhar, apesar de ter boa caligrafia e capacidade cognitiva. É fato que, para os padrões atuais de exigência, no que diz respeito às qualificações e especializações profissionais, suas habilidades não poderiam ser consideradas de grande envergadura. Por outro lado, seus defeitos não atingiam um nível de gravidade tão agudo a ponto de se tornarem causas de tantas provações. Naquele momento de sua vida, Neuza era obrigada a carregar em suas costas não apenas um, mas vários estigmas como o de morar na rua e ser portadora de uma doença incurável. Não é possível afirmar concretamente que a difícil condição na qual ela se encontrava era decorrente da falta de oportunidades e não considerar as inúmeras falhas que possa ter cometido em seu passado. No entanto, o fato de perceber que era merecedora de um voto de credibilidade e confiança, apesar das circunstancias, poderia surtir o efeito de fazê-la se sentir, talvez pela primeira vez, útil e produtiva. As primeiras semanas de Neuza como encarregada da biblioteca transcorreram muito bem e foram, de certa forma, animadoras. Neuza cumpria rigorosamente com seus horários e afazeres, vestia-se de maneira bastante adequada 62 usando calça comprida, prendia o cabelo e se maquiava com esmero. Alguns funcionários com quem ela havia tido sérias desavenças se surpreendiam e vinham até mim elogiá-la. Também era uma forma de demonstrarem que estavam ao meu lado naquela empreitada, o que me causava um grande bem estar. Outros, mais desconfiados, preferiam esperar mais algum tempo antes de se manifestarem. Várias vezes durante o dia, eu passava pela biblioteca e a observava sentada de frente para a porta, com os cotovelos apoiados sobre a mesa, completamente absorta na leitura de algum livro ou revista. Em que pesasse o fato de que tudo aquilo era muito recente, os objetivos prioritários e imediatos da “contratação“ de Neuza haviam sido alcançados com relativo êxito. A sequência de sucessivos e diários desentendimentos entre ela e a equipe de funcionários foi interrompida e, após um longo e conturbado período, finalmente respirava-se um pouco de paz naquele lugar. Durante aquele curto espaço de tempo, Neuza se manteve afastada das drogas - o que também se caracterizava em um progresso. Essa informação foi confirmada pelas únicas pessoas que conviviam com ela fora do Núcleo de Serviços, que se tratavam de seu namorado Fabiano e da sua filha Alana. Antes de se dedicar à biblioteca, ela sucumbia constantemente às crises de abstinência e ficava 63 desaparecia por vários dias deixando –os desesperados. O vínculo de Neuza com o Núcleo de Serviços estava se tornando cada vez mais intenso - o que apesar de ser algo positivo acarretava algumas consequências inesperadas. Sua nova ocupação na biblioteca implicava em que se deslocasse logo cedo pela manhã, do Largo Francisco, onde dormia com a família, para o Núcleo de Serviços. O cumprimento desse trajeto demandava uma boa caminhada que deveria ser refeita ao término do expediente, no final da tarde. Após algumas semanas de idas e vindas, Neuza decidiu que queria morar mais perto do trabalho quem não quer, afinal. Empacotou seus pertences que se resumiam a algumas sacolas de roupa, se despediu do Largo São Francisco e partiu com sua prole com destino ao Brás. Instalaram-se definitivamente na entrada lateral do nosso estabelecimento, em frente ao portão de ferro. Como era um lugar concorrido, Neuza usou de sua influência e amizade junto aos três casais que eram os donos do pedaço naquele momento para conseguir a parte que lhe cabia daquele latifúndio. Durante muito tempo, tentei persuadi-la a ir para um albergue, mesmo que provisoriamente, até que se providenciasse uma alternativa melhor. No meu esforço em convencê-la, argumentava de forma apelativa que não cairia bem para ela, como bibliotecária daquele estabelecimento, morar com a família em um barraco montado na frente do portão. 64 A questão era que ela não queria dormir separada do namorado Fabiano e, na maioria dos albergues, não há vagas para casais, salvo aqueles que aceitem dormir em alojamentos separados. Não tardou muito, porém, para que Neuza nos mostrasse que as coisas não seriam tão fáceis como pensávamos e seu bom comportamento observado nas primeiras semanas não era razão para maiores comemorações. Uma coisa que me causava estranhamento nas oportunidades em que passava pela biblioteca era o fato de imperar no ambiente e também entre os frequentadores um silêncio soturno. Mesmo considerando que o silêncio numa biblioteca fosse algo conveniente, parecia que havia certa tensão no ar. As pessoas mal se olhavam e permaneciam estáticas com as caras enfiadas nos livros, quase sem respirar. Neuza estava sempre sentada no centro da mesa, de forma que lhe era possível observar atentamente a tudo e a todos. Acabei descobrindo o motivo da excessiva quietude na biblioteca por intermédio dos funcionários que monitoravam as atividades. Segundo seus relatos, Neuza impunha leis quase marciais dentro daquele local. Fazia ostensivas ameaças e intimidações àqueles que se portassem, a seu ver, de maneira inadequada. Em certa ocasião, um desavisado leitor saiu da biblioteca com um livro na mão. Neuza havia sido orientada a coibir a retirada de qualquer material da biblioteca sem prévia autorização, para que se 65 evitassem extravios. A recomendação, no entanto, foi levada até o último estágio do rigor. Acusado impiedosamente de tentativa de furto, o rapaz tentou se defender e retrucou algo que Neuza não gostou. Enfurecida, arremeteu contra ele com uma enciclopédia e foram necessárias três pessoas para contê-la, dentre elas um funcionário. Em cada ato de deslize eu convocava Neuza para uma reunião, na qual reiterava minhas súplicas para que ela buscasse o autocontrole e não agisse impensadamente. Explicava-lhe que também fazia parte de suas atribuições orientar aos usuários da biblioteca quanto às normas existentes, e não se portar como um cão de guarda raivoso. Insistia na necessidade de perceber que dentro dela habitavam duas “Neuzas” com características completamente distintas. Uma era responsável, cordial e confiável e a quem as pessoas tinham apreço; a outra era o avesso da primeira e despertava sentimentos como medo e aversão. Quando era repreendida, passava alguns dias sem falar com ninguém, tampouco comigo. Era sua forma de protestar e demonstrar discordância pela advertência recebida. As reclamações dos funcionários quanto à postura de Neuza haviam voltado aos níveis habituais. Eu tentava contemporizar alegando que seria uma pretensão descomunal esperar que se transformasse num modelo de comportamento em poucos meses. Pedia-lhes mais tempo. Mas sabia que haveria um limite. 66 Em uma de suas últimas e mais graves recaídas, Neuza notou que seu par de chinelos havia sido surrupiado de sob a mesa da biblioteca, sem que percebesse. Acometida de um surto colérico, saiu aos gritos pelo jardim em perseguição ao infrator e rapidamente identificou as sandálias nos pés de um adolescente de 15 anos, que estava sentado sob a goiabeira em companhia de outros frequentadores daquele estabelecimento. Iniciou-se uma intensa e calorosa discussão. Ensandecida, Neuza não se satisfez em recuperar o que havia perdido e passou a agredir o adolescente franzino com tapas e empurrões, no que foi quase que instintiva e fulminantemente contragolpeada com um cruzado certeiro no olho esquerdo, que a levou ao solo. O que era nervosismo e irritação transformou-se instantaneamente em loucura. Eu já havia sido alertado sobre o tumulto e corri em direção ao jardim. De pé ao seu lado, inutilmente tentava acalmá-la e convencê-la a voltar para a biblioteca. Neuza não sentia mais a pancada que recebera no olho e parecia estar tomada por uma força maligna, pois nem o esforço conjunto de quatro homens era suficiente para impedi-la de tentar atacar o adolescente com pedras, tijolos ou quaisquer outros objetos que encontrasse no chão. Numa tentativa desesperada de fazer cessar aquele embate e evitar desdobramentos ainda mais desagradáveis, solicitei ao garoto que fosse embora, no que fui prontamente atendido. 67 Ao se dar conta que o adolescente saía pelo portão, Neuza desvencilhou-se com um solavanco violento das mãos que a seguravam e disparou a correr em direção à rua. Seu nível de descontrole era tamanho e de tal forma acentuado, que minha sensação era a de que ela realmente mataria o menino por conta de um par de hawaianas. Naquele mesmo instante, do lado de fora, alguns dos moradores de rua que viviam na calçada em frente ao portão principal do Núcleo de Serviços estavam cortando e limpando peixes, coisa que faziam com certa assiduidade com o objetivo de garantirem algum alimento para a noite Neuza aproximou-se do grupo por trás, sem ser notada, e tomou da mão de um dos homens a faca com a qual tirava os espinhos dos peixes. Armada, correu em direção ao menino e o atacou, investindo-lhe contra a barriga. Nessas horas, abre-se palco para um espetáculo bárbaro e grotesco e a violência da vida na rua se apresenta novamente de maneira impressionante. A maioria da platéia incentivava a contenda com gritos e manifestações de apoio a um ou a outro, enquanto que um grupo menor tentava persuadir Neuza a deixar o adolescente partir. O clima era de uma disputa medieval. Quanto a nós, apenas aguardávamos pelo desfecho dos acontecimentos. Tudo ocorreu em frações de segundo. Não haveria tempo, tampouco maneira de interferir numa situação como aquela. Na rua, nossas normas e autoridade nada valiam e no calor absoluto dos 68 ânimos o risco que se correria numa tentativa de intervenção seria muito grande. Felizmente, a facada desferida por Neuza não teve muita direção e só arranhou a pele do adolescente, que fugiu se misturando à multidão nas calçadas abarrotadas da Rua Oriente. Um estado de desânimo e tristeza se instaurou em mim imediata e profundamente. Não haveria qualquer argumento que eu pudesse fazer uso para justificar a atitude de Neuza. Os funcionários já não falavam mais nada. Seus olhares, no entanto, diziam muito. Em qualquer outro Núcleo ou Centro de Serviços sua exclusão já estaria decretada há muito tempo. De volta ao jardim, Neuza se apressou em me apresentar as mesmas explicações de sempre. Meu atordoamento era tão grande que eu a ouvia falar, mas era incapaz de manifestar qualquer tipo de reação. Desci em direção ao escritório, onde ficaria recluso por algum tempo tentando digerir esse novo acontecimento e pensando na atitude que deveria tomar. No final da tarde, escuto batidas na porta e a voz grave e rouca de Neuza chamando meu nome. Apoiei a mão na maçaneta, mas não consegui girála. Minha cabeça doía. Naquele momento, pensei que gostaria de ser dotado de poderes mágicos que possibilitassem me transportar para qualquer outro lugar, com o estalar dos dedos. De volta à realidade, respirei fundo e abri a porta. Neuza estava desfigurada. 69 Seu olho esquerdo lacrimejava, inchado e roxo pelo golpe que recebera e havia ainda um pequeno corte no lábio inferior. Passadas duas horas do enfrentamento, a descarga maciça e bombástica de adrenalina a que seu cérebro fora submetido mantinha sua respiração ofegante e suas veias salientes. Percebendo minha fisionomia abatida e apática, Neuza disse que já estava resignada com a minha decisão de “demiti-la” da biblioteca, muito embora eu ainda não a tivesse tomado, tampouco lhe comunicado. Ao comentarmos sobre a horrível briga em que se envolvera instantes atrás, além de não demonstrar nenhum arrependimento, disse que conhecia o paradeiro do menino que a agredira e estava planejando, naquela mesma noite, ir ao seu encalço em companhia do seu namorado Fabiano. Enquanto ela falava, muitas coisas se passavam pela minha cabeça. Martelava em minha mente a idéia de que, se realmente eu decidisse por destituí-la de sua função na biblioteca e vetasse sua entrada naquele Núcleo de Serviços, estaria abandonando um processo ao qual eu, deliberadamente, havia iniciado. Certamente seria o mais conveniente para mim, pois me livraria dos sofrimentos constantes a que suas atitudes me sentenciavam, além de trazer alívio e contentamento para uma boa parte dos funcionários. Porém, estava ainda mais convicto de que não seria o mais conveniente para ela, pois, expurgando-a, estaria corroborando para reforçar 70 ainda mais os sentimentos negativos e pejorativos que nutria por sua própria pessoa. Longe da biblioteca e do Núcleo de Serviços e sob influência do ambiente da rua é provável que voltasse a ocupar o seu tempo com a violência e as drogas. Optei então por propor-lhe uma troca. Ela abdicaria do desejo de vingança para com o adolescente e eu permitiria que ela retomasse suas atividades na biblioteca. Aceitou, sem aparentar qualquer sinal de que estivesse completamente satisfeita com o acordo feito. Após esse episódio traumático, muitas ocorrências envolvendo Neuza ainda se sucederiam no Núcleo de Serviços. Chegamos a aplicar-lhe rígidas sanções como a suspensão de sua entrada, procedimento que eu nunca havia tomado até então e pelo qual guardava sérias ressalvas por duvidar da sua eficácia. Experimentei outras pessoas para ocuparem sua função na biblioteca, mas passados os períodos de punição voltava atrás e restituía-lhe o cargo. Efetivamente, me mantive firme no propósito de não desistir de Neuza, apesar de todas as consequências que minha insistência acarretavam. Contudo, passados três meses do início do seu voluntariado, ela espontaneamente solicitou uma “licença“. Estava grávida e queria se dedicar aos exames de acompanhamento, ao enxoval e outras necessidades. Não consigo avaliar qual o grau de benefício, se é que houve algum, esse curto período de três meses 71 ocupando-se da biblioteca possa ter representado para Neuza. Talvez notar intimamente alguns aspectos de sua natureza aos quais ela desconhecia completamente e perceber que é capaz de exercer um trabalho, desenvolver-se pessoalmente ou mesmo reunir condições que lhe permitam deixar a rua. Sair da rua, afinal, era o seu grande sonho. Os sonhos de Neuza eram comuns aos de boa parte das pessoas que vivem nas ruas como ter ou voltar a ter um emprego, constituir ou reconstituir uma família, construir ou reconstruir um lar. Coisas simples que, na verdade, nada mais são do que direitos a que todo cidadão faz jus. No caso específico de Neuza, o sonho e a realidade estão separados por alguns elementos, dentre os quais se destacam com maior veemência sua personalidade e seu comportamento. O fato de ter vivenciado uma experiência na qual tais aspectos influenciaram direta e negativamente no seu desempenho funcional, dentro do que se podia considerar um treino, um teste para uma futura ocupação ou um futuro emprego, talvez acenda uma luz no sentido de fazê-la perceber que o alcance dos seus objetivos de vida dependerá do alcance da sua estabilidade emocional e que existem profissionais e procedimentos específicos que podem tornar esse processo menos difícil. Nesse sentido, a medicina e os medicamentos serviriam como instrumentos auxiliadores para que Neuza atingisse e mantivesse o autocontrole. 72 Seu “estágio“ na biblioteca pode ter tido outra utilidade, que só será percebida em um prazo mais longo de tempo. A de ser uma alavanca propulsora ou o primeiro passo para a reconstrução da sua autoestima. A preocupação em vestir-se adequadamente e cuidar da aparência durante o período em que desempenhou suas funções dá sinais nesse sentido. Mesmo inconscientemente, essa semente de autovalorização e amor próprio plantada durante esses três meses poderá brotar e aumentar sua confiança, estimulando sua busca por um futuro melhor. 73 Por trás dos muros Reconheço que, em um determinado momento, foi necessário tomar medidas para intermediar o acesso dos durões de rua ao nosso Núcleo de Serviços. A Casa Restaura-me era um Núcleo de Serviços onde não havia qualquer procedimento de controle ao acesso dos fequentadores e confesso que isso me fazia orgulhoso. O amplo portão permanecia aberto em tempo integral, permitindo a livre entrada e saída das pessoas sem qualquer restrição. Na verdade, tentamos manter esse procedimento durante o maior tempo possível por entendermos que era dessa maneira que deveriam funcionar todos os estabelecimentos destinados à população de rua. Queria desvincular daquele espaço qualquer imagem que pudesse denotar restrição no acesso, pois é justamente o que o morador de rua encontra em qualquer lugar público ou privado que tente entrar. A liberdade total de acesso era um sinal de que eram bem vindos àquele lugar. O problema é que estávamos perdendo o controle. Funcionando nesses moldes, os durões de rua que eram proibidos de entrar na grande maioria dos Núcleos e Centros de Serviços para população de rua de São Paulo eram nossos clientes diários e assíduos. Por conta disso, as ocorrências de brigas, uso de entorpecentes e furtos dentro do estabelecimento atingiram um patamar que se tornou insustentável à 74 medida que mais deles passavam a utilizar nossos serviços. O portão escancarado também estimulava alguns frequentadores a buscarem refúgio dentro do Núcleo de Serviços após cometerem ações ilícitas nas proximidades. Foram várias as ocasiões em que policiais ou guardas municipais viraram o local literalmente de ponta cabeça à procura de algum infrator. Nunca encontravam, uma vez que os supostos delinquentes conheciam cada centímetro daquele imenso lugar e despistavam facilmente os agentes da lei, ganhando a rua sem serem notados. A liberdade de acesso também era usufruída cada vez mais de forma abusiva. Um grupo de durões que vivia acampado em frente ao Núcleo de Serviços - com quem tive inúmeras altercações durante o período em que ali trabalhei se acostumou a encher galões com capacidade para 30 litros de água nas torneiras dos tanques de lavar roupas e carregá-los para fora do estabelecimento. Faziam isso várias vezes ao dia com o intuito de usar a água para lavar os carros dos comerciantes das redondezas e, dessa forma, conseguirem alguns trocados. Em que pesasse o fato de que estavam trabalhando, essa prática fez com que o valor da nossa conta de água rapidamente atingisse cifras exorbitantes. Como bons e convictos durões de rua, receberam muito mal a minha solicitação para que reduzissem a quantidade de galões que retiravam, uma vez que uma centena de outros moradores de rua dependia 75 daquela água para lavar suas roupas e para o seu uso pessoal. Cientes da nossa incapacidade de fiscalizá-los em tempo integral, os durões se aproveitavam dos portões abertos e do acesso irrestrito para agir sorrateiramente e continuaram a retirar os galões na mesma proporção de sempre, porém, utilizando-se da estratégia de coagirem outras pessoas para realizarem o transporte em seu lugar. Era extremamente difícil para os funcionários lidar diariamente com ocorrências dessa natureza, às quais a defasagem do nosso quadro funcional não nos permitia fazer frente. No entanto, as ocorrências mais desgastantes e traumáticas para a equipe eram, sem sombra de dúvida, aquelas que produziam um desfecho violento, tais como brigas e agressões entre os frequentadores. Esses conflitos ocorriam de forma abrupta e imprevisível como a erupção de um vulcão. Sem qualquer prévio aviso, num piscar de olhos estávamos todos mobilizados para apartar confrontos corporais em que muitas vezes ao menos um dos envolvidos estava armado de facas, estiletes, canivetes, cacos de vidro ou qualquer outro objeto que pudesse causar ferimentos ao adversário. Por sermos poucos, a dura tarefa de interromper ou controlar ocorrências de vias de fato ficava a cargo de apenas um ou dois funcionários, tornando a empreitada muito mais extenuante e aumentando consideravelmente seu risco. 76 Com o transcorrer do tempo, o desgaste psicológico dos funcionários ia aumentando perceptivelmente e era necessário realizar reuniões diárias nas quais discutíamos maneiras de enfrentarmos o problema. A necessidade de estarem permanentemente em prontidão - à espera de um embate que inevitavelmente insurgiria a qualquer instante transformava o trabalho em um calvário. Por meses suportamos a pressão atroz que vinha de praticamente toda equipe para que estipulássemos o fechamento do portão e passássemos a controlar a entrada dos frequentadores. Apesar de também sentir os efeitos daquela caótica situação, a ponto de sofrer com crises de insônia e dores musculares insuportáveis nos ombros e na nuca, eu insistia em postergar uma decisão que, em mais ou menos dias, teria que tomar. Meu argumento era pouco convincente, apesar de ser bem recebido pela maioria dos funcionários. Eu tentava, a todo custo, fazer-lhes enxergar a mensagem que estaria embutida no ato de fecharmos o portão. Estaríamos estabelecendo uma barreira, um obstáculo, uma fronteira física que definitivamente separaria os bons dos maus e os certos dos errados. Para pessoas psicologicamente feridas por ações de preconceito e rejeição colocadas em prática tácita ou veladamente pela sociedade, tal fato poderia ser interpretado ou subentendido como um convite de boas vindas às avessas e os já fragilizados sentimentos de aceitação e pertencimento com 77 relação ao nosso Núcleo de Serviços seriam colocados à dura prova. Além de tudo isso, ainda nos somaríamos àqueles que simplesmente fecharam as portas para esse grupo de pessoas do qual faziam parte os durões de rua. Seríamos mais um que desistiu, assim como o fizeram em muitos casos suas famílias, outros Núcleos de Serviços e a própria sociedade. Talvez jamais alguém tenha se dado o trabalho (árduo, logicamente) de insistir um pouco mais. Concretamente, com um quadro funcional mais ampliado e adequado trabalharíamos essa questão das ocorrências violentas com muito mais propriedade, dividindo seu ônus em parcelas iguais, o que não só evitaria a sobrecarga física e emocional dos funcionários como possibilitaria que agissem como verdadeiros educadores. Essa era outra séria questão. Não deixar que a exposição às mazelas que inevitavelmente eram trazidas da rua para dentro e a incapacidade numérica de fazer frente a elas endurecessem os funcionários a tal ponto que, num pequeno prazo de tempo, se tornassem meros agentes fiscalizadores prontos e ávidos para reprimir e perdessem a verdadeira essência do trabalhador social: a disposição permanente e incondicional para educar. Por essas razões, a atenção ao comportamento do funcionário era uma prioridade, no sentido de que não se transpassasse a tênue linha que distingue um educador de um leão de chácara. 78 O acúmulo diário de experiências desagradáveis, e de certa forma traumáticas, ocorridas entre funcionários e frequentadores dentro do Núcleo de Serviços produzia o nefasto efeito de transformar essa relação conflituosa em algo pessoal. O morador de rua de comportamento problemático passava a ser visto e tratado pelo funcionário como inimigo, criando-se mecanismos de autodefesa que impediam, uma vez estabelecida a antipatia, a tentativa de qualquer reaproximação ou criação de laços mais estreitos. O grande problema é que as melhores e mais valiosas ferramentas a serem utilizadas pelos funcionários dos Núcleos de Serviços e albergues, no estrito cumprimento do seu papel de educadores, são justamente a aproximação e a criação de laços mais estreitos com o morador de rua. Quando se abre mão delas, em virtude de uma desavença, assume-se claramente a postura de um mero fiscalizador. Obviamente, a tarefa de fiscalizar integrava o rol de nossas atribuições, uma vez que era necessário fixar normas e regras em um local que atendia centenas de pessoas, mas esta tarefa não poderia corresponder ao cerne de nossas atenções. Após meses de vacilações inúmeras da minha parte, o fechamento dos portões de entrada ocorreu no instante em que percebemos a aproximação dos limites nos níveis de estresse físico e psicológico dos funcionários e a decisão foi tomada para evitar um colapso geral. 79 A partir de então, um funcionário ficaria encarregado de controlar a entrada e saída de cada morador de rua que quisesse por os pés naquele Núcleo de Serviços. Foram confeccionadas carteirinhas de identificação que deveriam ser apresentadas pelos frequentadores na ocasião de sua entrada e as ocorrências de indisciplina acarretariam no confisco da carteirinha, impossibilitando os autores de utilizarem os serviços temporariamente. Abateu-se em mim após a viabilização de todas essas medidas um desgosto profundo motivado pelo sentimento que estava agindo contrariamente a uma proposta ideológica a qual sempre defendi. Pagariam os moradores de rua por uma grave e crônica falha das Políticas Públicas voltadas a esse segmento, que consiste na completa inadequação e insuficiência dos recursos humanos destinados aos estabelecimentos que atendem à população de rua. Essa deficiência de ordem técnica desencadeia um efeito colateral grave e inexorável, retratado pela implacável dificuldade de seus profissionais em lidar no dia a dia com moradores de rua alcoolizados, rebeldes e insubordinados. Há, contudo, outras consequencias negativas que são produzidas pela mesma falha metodológica. Uma delas é a transformação de espaços de convívio comunitário destinados à população de rua em masmorras munidas de grades, guaritas, catracas e uma série de outros dispositivos de contenção e fiscalização pelos quais o frequentador do estabelecimento deve ultrapassar. 80 Há estabelecimentos que investem maciçamente na modernização dos seus aparatos e mecanismos reguladores de acesso, inovando e incrementando tecnologicamente suas estratégias de controle a ponto de promover a instalação de sensores de leitura digital em suas entradas. O risco que se corre com a adoção de tantos procedimentos preventivos é a deterioração do sentimento de prazer do morador de rua em estar nos lugares que, ironicamente, foram criados para ele estar, uma vez que sua presença é cada vez mais indesejável na grande maioria dos outros lugares da cidade. Nesse sentido, os Núcleos e Centros de Serviços, bem como os albergues devem empenhar esforços incontidos no sentido de fazer frente aos atos de injustiça e intolerância aos quais o morador de rua é submetido cotidianamente. A mecanicidade do atendimento e a utilização de aparelhamentos de contenção de acesso quase bélicos trazem à tona o fantasma da institucionalização, que atemoriza particularmente uma parcela considerável da população de rua formada por cidadãos que já estiveram, em algum momento de suas vidas, na condição de institucionalizados seja em penitenciárias, clínicas de recuperação ou hospitais psiquiátricos. Outra consequencia maligna da precariedade funcional é a adoção sistemática de um processo seletivo pelos funcionários e gestores dos Núcleos e Centros de Serviços destinados à população de rua, através da qual passa a ser admitido 81 prioritariamente aquele indivíduo considerado “bonzinho“, ou seja, o morador de rua que não se envolve em brigas, não afronta funcionários, se ajusta rigorosamente às normas estabelecidas e nunca se apresenta embriagado. A idealização de um padrão de perfil aceitável foi o plano de defesa colocado em prática para que os funcionários dos Núcleos e Centros de Serviços conseguissem conviver com o problema da insuficiência de recursos humanos, podendo assim, mesmo em quantidades reduzidas, desempenharem suas funções com um mínimo de segurança e dignidade. A questão é que, apesar de compreensível e essa afirmação vem de alguém que sofreu literalmente na pele as agruras dessa problemática, a ativação dessa estratégia de autopreservação pelos estabelecimentos que prestam atendimento aos moradores de rua deixou de ser uma momentânea conveniência para efetivamente se consolidar em uma prática contumaz. O hábito de preferir o “bonzinho” àquele que certamente dará mais trabalho foi completamente absorvido e atualmente é visto como algo natural. Justificam-se os que adotam tais procedimentos com uma famosa frase, a qual proclamam quase como um modelo: ”deve-se ajudar àquele que quer ser ajudado“. Cometem, na minha humilde opinião, um grave erro interpretativo. Entendem que o único indício da disposição e do desejo do morador de rua em buscar melhores condições de vida é o seu 82 ajustamento absoluto às condutas disciplinares que lhe são impostas dentro do estabelecimento. Considero, na verdade, que ocorre exatamente o contrário. Creio que todas as ações ostensivas de violência e agressividade colocadas em prática pelo morador de rua dentro do estabelecimento carregam um velado e desesperado pedido de socorro. São manifestações que têm por intuito chamar a atenção de funcionários e educadores para o seu sofrimento. A exaltação e a hostilidade são formas de externarem algo que os sufoca internamente e precisa ser colocado pra fora. Todas as vezes que me deparei com situações de violência física ou mesmo verbal dentro do nosso Núcleo de Serviços percebi que nada mais eram do que um subterfúgio para pessoas que precisavam desabafar. Mesmo aqueles moradores de rua identificados pela extrema rebeldia, ao ficarem frente a frente comigo em meu escritório após praticarem alguma ação indevida, não tinham qualquer outra reação senão chorar copiosa e convulsivamente. Percebendo-se sós, encontravam a oportunidade de compartilhar seu sofrimento com alguém a quem essa ação não representaria uma fraqueza. Iniciava-se naqueles momentos um processo de descarrego de sentimentos emaranhados dentro do peito sabe-se lá há quanto tempo, através do qual o durão de rua exorcizaria emoções que lhe rasgavam a alma como uma lâmina afiada e que nas ruas 83 deveriam permanecer enclausuradas em nome da sua honra e valentia. Durante horas a fio falavam com saudade de suas mães, mulheres, seus filhos e amigos, personagens adormecidos em memórias que atormentam suas mentes. Lembravam da terra natal para onde um dia sonham retornar como se assim pudessem voltar ao passado e reviver momentos felizes. Quando saíam do escritório estavam flutuando. Já mais leves e aliviados, instintivamente retomavam a fisionomia sisuda habitual. Era necessário que se recompusessem - pois a rua os aguardava, implacável em sua realidade. Por mais que o orgulho e a teimosia os impeçam de pedir, não tenho dúvida de que são esses os moradores de rua que mais necessitam de ajuda. Agosto de 2009. Fui acordado numa manhã de segunda-feira pela voz assustada da nossa assistente administrativa ao telefone, informando que um morador de rua frequentador do Núcleo de Serviços havia arrombado a porta do escritório a ponta pés e revirado os armários. Logo me ocorreu que deveria ser obra do Paulinho. Paulinho, ironicamente, era um homem de mais de um metro e noventa de altura, magro, com veias salientes e uma enorme aranha negra tatuada no pescoço longo e branco. Lembrei que, na sexta-feira anterior, no início da tarde, Paulinho havia me procurado e solicitado que eu guardasse no escritório alguns remédios que lhe foram prescritos por conta de uma tuberculose recentemente diagnosticada. 84 Orientei que ele guardasse os remédios em sua mochila dentro do bagageiro, ou que em último caso deixasse aos cuidados das assistentes sociais. Minhas sugestões, no entanto, foram refutadas. Segundo Paulinho, meu escritório era o único local seguro naquele estabelecimento e ele não confiaria os remédios a ninguém mais. Seu discurso era carregado de certo apelo melodramático e ficou óbvio para mim que, na verdade, ele pretendia fazer chegar ao meu conhecimento sua situação de saúde, o que de fato já havia acontecido e queria de alguma maneira contar com a minha solidariedade e compaixão. Era compreensível, uma vez que qualquer ser humano que se depare com alguma enfermidade deseja ser confortado pelos seus próximos, sejam familiares ou amigos. A questão era que Paulinho não contava com nenhum dos dois. Mesmo não sendo esse um procedimento recomendável acabei consentindo em guardar os remédios no armário de meu escritório, com a ressalva de que Paulinho me procurasse no final da tarde para que eu lhe entregasse a dosagem de medicamentos adequada para o fim de semana, pois eu trancaria o escritório ao término do expediente e só reabriria na segunda-feira. As sextas-feiras produziam efeitos milagrosos nas vidas de algumas pessoas ali dentro. Antes mesmo do sol se por, Paulinho já havia esquecido completamente da doença, dos remédios e demais problemas e caiu na estrada em busca de entretenimento no centro da cidade. 85 Em virtude do cansaço acumulado da semana, tampouco me ocorreu, antes de ir embora, deixar os remédios ou ao menos uma quantidade deles com algum educador do período noturno para que lhe fossem entregues naquela mesma noite. O resultado disso é que Paulinho deu trabalho aos educadores sociais durante todo o fim de semana, reclamando efusivamente e me culpando pelo fato dos remédios terem ficado trancados no escritório. Por tais razões, não me surpreendi com a notícia de que a porta do escritório havia sido arrombada. A funcionária também manifestou ao telefone sua preocupação com relação à minha integridade física, pois Paulinho, muito nervoso, jurou dar cabo da minha vida tão logo eu cruzasse o portão de entrada do estabelecimento naquela fatídica manhã de segunda-feira. Conhecia o Paulinho e sabia que, novamente, sua intenção com todo aquele carnaval era chamar minha atenção. Queria que eu me sentisse culpado pelo fato de ter ficado sem remédios, apesar de ter sido negligente naquilo que concernia à sua parte no acordo. Sabia também que, quando o encontrasse, ele abdicaria da pose de durão que deveria manter perante aos outros funcionários e demais moradores de rua e assumiria o papel de vítima. Cheguei ao trabalho normalmente e tão logo pus meus olhos no desajeitado e retorcido corpanzil de Paulinho precariamente acomodado na pequena cadeira da sala das assistentes sociais, desabou a chorar. 86 Lembrei-lhe do compromisso que havia assumido comigo na sexta-feira, através do qual prometera se apresentar no escritório até o final do meu expediente para pegar a medicação necessária para o final de semana. Entre soluços, Paulinho justificou suas ações agressivas pelo fato de terem ficado trancados, junto com os remédios para a tuberculose, alguns ansiolíticos que também deveria tomar regularmente. Logicamente não se podia fazer vistas grossas aos danos materiais que ele havia causado no escritório, mas não me agradava a idéia de agir com Paulinho de maneira que soasse como um revide, uma retaliação à sua atitude intempestiva. Simplesmente bani-lo do estabelecimento ou proibir sua entrada teriam essa conotação. Em que pesasse o fato de sua crise de abstinência ter sido causada pela sua própria irresponsabilidade, era perceptível que sua agressividade advinha do seu descontrole emocional e de sua frágil condição psíquica, cujas causas poderiam ser a dosagem inadequada dos ansiolíticos que tomava e a dificuldade de lidar com o aparecimento de uma moléstia de gravidade considerável como a tuberculose. No entanto, sua primeira ação naquele dia deveria ser consertar o que havia quebrado, o que não lhe tomou mais do que um par de horas. Era habilidoso com as ferramentas. Sugeri a ele que nos permitisse encaminhá-lo a um hospital especializado no atendimento psiquiátrico, 87 onde pudesse ser submetido a exames e cuidados mais específicos e se fizesse uma melhor análise do seu caso clínico. Paulinho ficou internado no hospital Major Malagliano na Vila Mariana por algumas semanas, recebeu alta médica e não apareceu no Núcleo de Serviços por vários meses. Quando retornou, sua aparência era mais saudável, vestia roupas pretas de couro e tinha novas tatuagens. Relatou ter vivido esse tempo todo em que esteve ausente em Brasília, sabe-se lá em que circunstâncias. Desde então, passou a alternar algumas visitas com longos períodos de ausência até que não tive mais notícias de seu paradeiro. De qualquer forma, era conhecido pelos demais como um durão de rua errante e aventureiro. O episódio de Paulinho nos permite introduzir uma questão importante, que diz respeito à aplicação de sansões disciplinares dentro dos estabelecimentos de atendimento à população de rua. Em muitas situações, essas medidas são colocadas em prática de forma indiscriminada e sua aplicação é desprovida de caráter educativo. Têm como único intuito manter os moradores de rua problemáticos longe dos Núcleos e Centros de Serviços. Nessas circunstâncias, as medidas punitivas perdem seu valor como instrumento pedagógico e passam a ter caráter aleatório. Não visam mais ao frequentador, e sim, à pessoa. Suspensões e exclusões são consumadas em nome do bem estar dos demais frequentadores, no caso, 88 os “bonzinhos” e também da preservação moral, física e psicológica dos funcionários, que tomados pela emoção e exaustão face às recorrentes situações de conflito com que se deparam cotidianamente, tendem a fazer uso equivocado das sansões, utilizando-as como um mero instrumento repressivo e deixando de colocar em prática ações que objetivem conscientizar o indivíduo punido acerca do ato cometido. A principal delas seria a de dar voz ao “acusado” de maneira imparcial para que possa apresentar sua defesa e perceber que não está sendo submetido a uma sumária condenação. Uma vez decidido o veredicto, é imprescindível justificar de forma cristalina ao penalizado as razões de sua aplicação e quais normas ou regulamentos foram infringidos. Gestores e equipes técnicas devem agir com critério na estipulação de prazos de punição oferecendo ao infrator, após o seu cumprimento, a oportunidade de retomar suas atividades dentro do estabelecimento e a chance de refletir sobre as ações cometidas. Fundamentalmente, que se policie a determinação de penas perpétuas e que renegam o morador de rua à condição de excluído dentre os excluídos, reforçando tão somente o estigma de marginalidade. Logo nos primeiros dias após a adoção dos procedimentos de controle de acesso no nosso Núcleo de Serviços, um acontecimento corroborou para aumentar o meu mal estar. 89 Eu conversava com um morador de rua no jardim e subitamente me dei conta que estávamos separados pela grade do portão. Pelo lado de fora, suas mãos agarravam firmemente as barras de ferro e seus braços e tórax permaneciam inclinados, apoiados no portão. Tive a terrível sensação de estar vendo alguém enjaulado ou dentro de uma cela. O fechamento do portão e a fixação de um controle de acesso acarretaram numa abrupta diminuição do número de moradores de rua que frequentava aquele Núcleo de Serviços. Arrisco dizer, sem medo de errar, que esse número caiu pela metade. As brigas e ocorrências envolvendo uso de drogas dentro do estabelecimento também se encerraram. A intenção de tirar dos ombros dos funcionários a sobrecarga a qual estavam submetidos teve efeito imediato e em poucos dias já se notava uma mudança nos ânimos da equipe. As consequências do esvaziamento parcial do Núcleo de Serviços foram tão severas que aquilo que deveria ser um alívio momentâneo, um relaxamento comum após um período de tensão, estava começando a enveredar pelo caminho da acomodação. Assim como era necessário que estivéssemos permanentemente atentos para que a corda não apertasse o pescoço dos funcionários, por conta dos níveis de estresse elevados, era mais necessário ainda percebemos se a corda não havia se 90 afrouxado em demasia, deixando de ser um alerta acerca de nossas obrigações profissionais. O que ocorreu com nossos funcionários é algo que se encontrava muito facilmente nos demais Núcleos e Centros de Serviços para população de rua. Uma vez livres dos durões de rua e demais moradores de rua vistos como “malvados“, os funcionários experimentaram o que eu chamo de “zona de conforto”. O bem estar e a sensação de tranquilidade a que puderam desfrutar após o fechamento do portão se instauraram de forma a tornar as coisas extremamente convenientes. Cumpria-se o horário estabelecido não havendo no seu transcorrer quaisquer ocorrências desagradáveis, uma vez que os moradores de rua que optaram em permanecer no estabelecimento sob as novas regras eram do tipo “bonzinhos”, cujo trato era absolutamente razoável e que não davam maiores trabalhos. Cabia a mim, naquele momento, chamar-lhes a atenção para alguns fatos importantes que o contentamento gerado pela calmaria não os permitia enxergar. Nosso estabelecimento estava praticamente vazio, o que não me agradava em nada. Por várias vezes pude percorrer as dependências daquele Núcleo de Serviços e contar nos dedos o número de moradores de rua que ali se encontrava praticando alguma atividade. Nessas ocasiões, eu provocava a equipe com o intuito de fazê-los sair da sua zona de conforto. 91 Era imprescindível, naquele momento, chacoalharlhes e despertá-los para outra realidade, cuja visão o portão fechado nos poupava, mas que ainda estava bem ali. Havia uma multidão de moradores de rua em frente ao nosso portão entregue ao mais profundo e nocivo ócio, se embriagando com litros e mais litros de pinga, usando drogas e apenas aguardando o horário das refeições para alimentar seus corpos. Aquelas pessoas optavam em permanecer do lado de fora por conta do fechamento do portão e da adoção de regras mais severas. Preferiam ficar bebendo nas calçadas, uma vez que não podiam fazê-lo lá dentro. Preferiam o ócio e a liberdade do lado externo às atividades vigiadas do lado interno. Não obstante tais constatações, não voltaríamos atrás. O que estava feito, estava feito, mesmo por que foi necessário que assim se procedesse em um determinado momento. Mas não podia admitir que achássemos tudo aquilo conveniente e confortável. Uma vez que aquele contingente de moradores de rua concentrado em frente à nossa calçada não viria para dentro espontaneamente, era necessário que passássemos a ir lá fora e tentássemos diária e exaustivamente convencê-los a entrar. Que reforçássemos a idéia de que eram muito bem vindos e que as regras existiam para tornar o lugar mais seguro e o serviço mais eficiente. Corresponderia a uma omissão da nossa parte se nos contentássemos em esperar que cidadãos submersos nos falsos prazeres e nas armadilhas da 92 rua como o usufruto da liberdade integral, a ausências das normas e regras convencionais e o livre uso de bebidas alcoólicas e entorpecentes fossem subitamente acometidos pelo desejo de abandonar hábitos que cultivam há anos e viessem manifestar deliberadamente a intenção de mudar de vida da noite para o dia. Agindo dessa forma, estaríamos nos colocando num patamar de superioridade e exalando arrogância. Continuaríamos por anos a fio acomodados em nossa zona de conforto e alimentando nossos egos com uma falsa sensação de dever cumprido. A atitude de descer do pedestal e sair às ruas representa muito pouco esforço. O morador de rua não é uma máquina inanimada programada para funcionar de acordo com a vontade alheia. Cada indivíduo traz consigo sua personalidade e manifestará (se é que o fará um dia) o seu desejo de mudar de vida ou deixar para trás as agruras da rua cada qual a seu tempo. Esse tempo é completamente imprevisível. Qualquer prognóstico nesse sentido se converte em mera loteria. A única ferramenta para que se tente fazer frente à imprevisibilidade ou adiantar minimamente esse processo é a motivação. Deve- se estimular diária e incansavelmente a saída das ruas de todo o indivíduo que se encontra nessa condição, despindo-se o educador social de vaidades e orgulhos que o impeçam de sair de trás dos muros. 93 Reação em Cadeia Assim como hospitais, escolas e quaisquer outros serviços de utilidade pública, os estabelecimentos que prestam atendimento à população de rua necessitam dispor de recursos logísticos e humanos adequados às suas respectivas demandas. As consequências geradas pela incapacidade técnica do Poder Público em perceber esse fato serão inexoravelmente sentidas na pele por aqueles que usufruem os estabelecimentos - no caso, a população de rua, - e também pelos profissionais que neles trabalham. Nesse sentido, urge a necessidade das entidades, associações e organizações contratadas por intermédio do firmamento de convênios com o Poder Público, através de seu Fórum, exigirem a imediata atualização e adequação das portarias que delimitam a contratação dos profissionais que atuarão na execução dos trabalhos. O aumento sucessivo e ininterrupto do contingente de moradores de rua na cidade de São Paulo fez com que as organizações adequassem suas metodologias de atendimento às novas demandas, o que obviamente lhes gerou mais custos. No entanto, tais custos jamais foram ressarcidos proporcionalmente pelo Poder Público, cabendo às entidades arcar com despesas que ano após ano se tornavam maiores. 94 Em decorrência disso, mesmo defasados e insuficientes, os recursos financeiros oriundos do Poder Público ainda são imprescindíveis para a sobrevivência das organizações, o que torna a questão um impasse. Esse modelo feudal de relação de trocas reverte completamente a essência e o fundamento da formação de parcerias entre o Poder Público e as instituições em uma mera formalidade burocrática. Por meio das parcerias, cuja iniciativa de implementação foi da ex-prefeita Luíza Erundina e a quem se deve fazer menção pelos ideais que a motivaram na ocasião, o Poder Público manifesta sua intenção de buscar apoio junto à sociedade civil para responder a demandas e arcar com responsabilidades que constitucionalmente são de sua competência, mas que não consegue dar conta. Nesse contexto, o Poder Público deveria garantir condições plenas às organizações fornecendo subsídios materiais, estrutura física, recursos humanos, logísticos e operacionais suficientes para o desempenho adequado das ações. Deveria ainda cumprir com a obrigação, acima de tudo ética e moral, de compartilhar com seus parceiros as dificuldades relativas aos trabalhos de forma absolutamente direta e solidária, sentindo como em si próprio quaisquer consequências oriundas da negligência e das falhas na condução das políticas públicas. O que ocorre na verdade é o extremo inverso. Os representantes do Poder Público responsáveis pela supervisão técnica dos convênios assistem 95 passivamente a deteorização da qualidade dos serviços, não se sensibilizando com a precária condição de trabalho a que estão submetidos funcionários e educadores dos estabelecimentos conveniados, tampouco demonstrando preocupação com aqueles que mais sofrem as consequências dessa aviltante situação - que são as pessoas que vivem nas ruas. Igualmente, transferem para as organizações toda a responsabilidade pelos “efeitos colaterais“ gerados por suas ações, tais como a morte de moradores de rua dentro dos próprios estabelecimentos ou em seus arredores e a aglomeração de grupos instalados ou acampados na porta dos Núcleos, Centros de Serviço e albergues. A ocorrência destes dois fatos, aliás, é motivo de terror para o Poder Público, pois são os únicos que causam alarde na imprensa e comoção na população de maneira geral. Em decorrência disso, as recomendações são constantes e severas para que as organizações não permitam que moradores de rua se instalem em seus portões, pois na hipótese de um falecimento, ficaria patente a negligência do Poder Público estando a vítima do lado de fora de um espaço destinado ao seu acolhimento. Em contrapartida, a preocupação e o zelo para com essa vida humana em qualquer outro lugar que não seja a porta do estabelecimento, inclusive em seu interior, parecem não ser tão rigorosos. Isso significa que, na hipótese do morador de rua morrer sob um viaduto, uma marquise ou qualquer 96 logradouro público afastado um quarteirão que seja do estabelecimento, a culpa pelo falecimento será lançada ao morador de rua, a quem se atribuirá uma suposta aversão a albergues ou um provável desinteresse pelos serviços de acolhimento oferecidos pela Prefeitura. Como os mortos não falam, a imprensa, o Ministério Público e a própria sociedade acabam por aceitar tal versão como verdadeira. É fato que, poucos meses após o firmamento do convênio com a prefeitura de São Paulo o número de moradores de rua que dormia e acampava na porta do nosso Núcleo de Serviços aumentou vertiginosamente. Anteriormente ao convênio, apenas o espaço em frente ao portão de ferro lateral era ocupado por um pequeno grupo de seis ou sete pessoas. Com o início das novas ações, porém, a entrada principal, as calçadas das casas de alvenaria e até a pequena praça foram gradativamente tomadas por um contingente de aproximadamente 40 pessoas que amontoavam colchões, barracas de lona e cobertores nesses locais. Contudo, não se podia considerar esse crescimento populacional um fenômeno imprevisível ou mesmo anormal. Anteriormente à consolidação da parceria com a prefeitura, aquele Núcleo de Serviços funcionava algumas horas no período da tarde de segunda a sexta –feira, servindo apenas uma refeição. O termo de convênio elaborado pela Prefeitura estabelecia, a partir de sua efetivação, que o Núcleo 97 de Serviços passasse a funcionar em período integral durante toda a semana, inclusive domingos e feriados e que oferecesse ao morador de rua uma pensão completa com quatro refeições diárias e a possibilidade de uma vaga para dormir. Esse último benefício dependeria de alguma sorte, uma vez que o número de leitos era muito inferior à demanda. Além dessa abundante e diversificada oferta de serviços e benfeitorias, outro fato contribuía para aumentar a conglomeração de moradores de rua em nossa porta. O Núcleo de Serviços se situava em um local ermo e relativamente isolado no final da Rua Monsenhor de Andrade, cujos limites físicos eram um grande muro que dividia a rua em duas e a separava da linha do trem. Era estratégico, pois havia pouquíssima circulação de transeuntes e apenas algumas poucas casas. O refúgio permitia que os moradores de rua ficassem menos suscetíveis à ação da polícia e também do rapa, propiciando, ao menos por um período de tempo, mais liberdade para a armação dos chamados “mocós” (barracos improvisados de madeira e lona) e também para algumas ações ilícitas como o uso de entorpecentes e pequenos furtos. Com tantos atrativos, foi questão de pouco tempo a instalação de um pequeno contingente naquele lugar - o que para nós não significou novidade alguma, haja vista o aumento considerável da gama de serviços ofertados. 98 A rápida e eficiente divulgação entre o pessoal da rua - noticiando a abertura de uma nova “boca de rango” - tratou de fazer com que cada vez mais fregueses se apresentassem, oriundos em sua maioria da região central da cidade. No entanto, o que não era surpresa para nós se tornou motivo de curiosidade e consternação para os representantes do Poder Público. Parecia que não haviam em nenhum momento previsto ou sequer imaginado que aquilo pudesse acontecer. O raciocínio era bastante simples e quase intuitivo. Se um morador de rua precisa perambular por várias regiões diferentes e distantes uma das outras para conseguir fazer cada uma das suas refeições diárias, o que certamente lhe toma algum tempo e demanda algum esforço, é plenamente compreensível a sua fixação em um local onde o cumprimento diário de tais rituais deixe de ser uma preocupação e até um constrangimento. Na Rua Monsenhor de Andrade, número 746, todos os meios materiais para a manutenção da sua sobrevivência estavam facilmente acessíveis, bastando que cruzasse de uma calçada para outra. A permanência daquele grupo de moradores de rua vivendo em frente ao nosso Núcleo de Serviços rapidamente se transformou na mais prioritária preocupação do Poder Público, representado pelos técnicos supervisores do convênio. Posso afirmar que durante os seis meses em que estive à frente daquele estabelecimento recebíamos 99 a visita dos técnicos supervisores, em média, uma vez a cada mês. Essa visita tinha como finalidade verificar as condições de funcionamento do estabelecimento e a qualidade dos serviços e do atendimento que estavam sendo oferecidos à população de rua com os recursos gerados pela Prefeitura. Cabia a mim, como gestor, percorrer todas as dependências do estabelecimento em companhia do técnico supervisor que ia verificando os aspectos de higiene, manutenção, ordem e conservação do espaço físico, ao passo que fazia anotações e comentários quando julgava necessário. No transcorrer dessas visitas de monitoramento, tampouco após a ocorrência delas, jamais recebi resposta ou ao menos um sinal de solidariedade com relação às dificuldades referentes à insuficiência do nosso quadro funcional e às consequências diretas que esse fato acarretava na qualidade e no desenvolvimento dos trabalhos. Entendíamos que talvez não estivesse ao alcance dos técnicos supervisores tratar de tal problema, mas jamais se acenou sequer com a possibilidade, se levantou a hipótese ou se criou uma molécula que fosse de expectativa de que a questão pudesse ser levada ao conhecimento de alguém ou alguma autoridade com poder para intervir. No entanto, em absolutamente todas as visitas de supervisão, encontrou-se tempo e disposição para se comentar sobre os moradores de rua acampados em frente ao portão do nosso Núcleo de Serviços. 100 O terrorismo psicológico estava lançado e junto dele uma pressão atroz para que encontrássemos maneiras de evitar que permanecessem ali. Relatórios contendo dados e informações sobre o grupo de moradores de rua eram pedidos à exaustão. Os supervisores técnicos nos orientavam a acionar a Subprefeitura imediatamente, solicitando que viessem retirar as barracas, madeiras e demais objetos que ali empilhados. Absolutamente tudo que se propunha como solução era inadmissível. Uma vez que as pessoas estavam em um logradouro público, não tínhamos autoridade para ordenar que se retirassem - e se estavam abusando de um direito juntando materiais e praticando ações indevidas, não era nosso papel coibi-las ou fiscalizá-las. Se acatássemos as sugestões e acionássemos a Subprefeitura, estaríamos declarando guerra aos moradores de rua e se consolidaria definitivamente um estado de animosidade. Como educadores sociais, as únicas ações com as quais poderíamos nos envolver efetivamente seriam as que objetivassem integrá-los às nossas atividades, detectar suas aptidões e habilidades e reforçar laços de confiança. A obstinação obstruía completamente a visão dos técnicos supervisores, a ponto de não deixá-los perceber que a solução para o problema que apontavam dependia diretamente da melhoria das condições de funcionamento do nosso Núcleo de Serviços. 101 Nesse sentido, o aumento do efetivo de educadores e assistentes sociais seria crucial para colocarmos em prática um trabalho contínuo de argumentação e convencimento junto àquele contingente de pessoas desinteressadas, que convenientemente passava a maior parte do seu tempo deitado em colchões e bebendo cachaça em frente ao portão de entrada. Não menos imprescindível para o cumprimento de nossas funções seria fornecer aos educadores e equipes técnicas as “armas” necessárias para aumentar o seu poder de persuasão, o que implicava na necessidade iminente de tornar aquele Núcleo de Serviços um local realmente atrativo para população de rua, no qual se oferecessem ilimitadas alternativas de atividades artísticas, culturais, esportivas, musicais e lúdicas. Nas conversas cotidianas com o pessoal da rua, eu percebia que muitos deles manifestavam interesse ou gosto por algum assunto ou afirmavam possuir alguma habilidade, não importando em que condição de vulnerabilidade se encontravam. Era possível identificar, em poucos minutos, habilidades que variavam de uma maneira infinita como a construção de brinquedos com folhas de coqueiro (um coqueiro especial que, segundo o artesão, só havia nas praias de Santos), a fabricação de sabão caseiro (que nos propiciou uma economia substancial de dinheiro) e a confecção de colares com lacres de lata de refrigerante. No entanto, não havia como competir com as tentações da rua dispondo tão somente da restrita grade de atividades que oferecíamos até então no 102 nosso Núcleo de Serviços, cuja programação se resumia basicamente à televisão e à quadra de esportes. A televisão, diga-se de passagem, é um mal a ser combatido dentro dos Núcleos de Serviços para população de rua. Por seu efeito hipnótico e paralisante, é utilizada por funcionários e educadores como mecanismo de controle disciplinar, uma vez que é possível manter os frequentadores catatônicos por horas em frente à tela bastando apenas que a televisão permaneça ligada em algum canto, mitigando as chances de ocorrências desagradáveis como brigas e altercações. Por outro lado, o fato de muitos moradores de rua estarem fisicamente debilitados e cansados em razão das noites mal dormidas acaba por tornar a televisão conveniente. Se não houver a iniciativa por parte dos educadores no sentido de estimular sua integração a atividades mais construtivas, permanecerão estirados em frente ao aparelho em tempo integral, simplesmente vendo a vida passar. Era justamente o que ocorria naquele Núcleo de Serviços quando iniciei meus trabalhos. A sala de televisão e a quadra de esportes se transformavam em grandes dormitórios diurnos onde pessoas se empilhavam pelo chão, embaixo de cobertores, levantando apenas para se alimentar. Esse hábito se modificou gradativamente à medida que reforçávamos junto aos educadores e aos próprios frequentadores a idéia de que, se os 103 espaços e dependências fossem utilizados com a única finalidade de acomodar as pessoas para dormir, aquele Núcleo de Serviços seria uma mera extensão da rua, uma vez que se praticariam lá dentro as mesmas ações da rua. Reiterávamos que os Núcleos e Centros de Serviços deviam ser uma alternativa para as ruas e não um prolongamento delas. Tentávamos a todo custo implementar atividades diversas que pudessem estimular a permanência das pessoas dentro daquele Núcleo de Serviços, mas esbarrávamos na controversa e obtusa burocracia pública, que se opunha a qualquer ação construtiva ou educativa. A compreensão das normativas de funcionamento dos Núcleos de Serviços ditadas pela prefeitura era um desafio à parte, ao passo que a intenção de se desenvolver qualquer programa que fugisse ao elementar e convencional inevitavelmente emperrava em algum dispositivo administrativo. Durante aquele momento de turbulência decorrente do número excessivo de moradores de rua acampado em nosso portão, percebemos que alguns deles, inclusive uma mulher, costumavam formar rodas de samba e utilizavam latas, baldes e pedaços de pau como instrumentos. Observamos naquela ação uma oportunidade de convencê-los a vir para dentro do Núcleo de Serviços. Para que isso acontecesse de fato, seria necessário que oferecêssemos algo diferente, chamativo e que valesse a pena, mesmo momentaneamente, ser 104 trocado pela liberdade e pelos pequenos prazeres exteriores como a bebida e as drogas. Compramos uma série de instrumentos musicais e de percussão novos em folha como surdo, pandeiro, chocalho, tamborim, violão e cavaquinho e os convidamos para que formassem a roda de samba dentro do Núcleo de Serviços. O resultado foi imediato. Sete homens e uma mulher que passavam as tardes batucando do lado de fora não resistiram à oportunidade de largar as latas e baldes que produziam sons rudimentares e machucavam as mãos para utilizarem instrumentos de boa qualidade. Essa ação foi a prova cabal de que a “limpeza” pura e simples da calçada como queriam os supervisores técnicos da Prefeitura - empurrando cidadãos de rua como sujeira para baixo do tapete e dispersando-os para qualquer outro lugar onde seria mantida sua situação de degradação física e moral poderia ser combatida com procedimentos mais dignos e eficientes. Muitas pessoas não conseguem compreender a metodologia incutida nesse tipo de “estratégia de atração” , utilizada com o intuito de despertar a curiosidade pelos estabelecimentos de atendimento à população de rua. Chamam a atenção para o fato de que tais intervenções não modificam drástica e imediatamente os maus hábitos. Lembremos, contudo, que os maus hábitos foram desenvolvidos no transcorrer de anos, às vezes décadas de vivência nas ruas. Mentem aqueles que afirmam que as consequências dessa exposição 105 prolongada às inúmeras mazelas da rua podem ser revertidas em poucas semanas ou meses. No que concerne aos trabalhos desenvolvidos nos estabelecimentos de atendimento, o primeiro e fundamental passo consiste em despertar no morador de rua uma centelha de perspectiva quanto à existência de possibilidades e caminhos de reconstrução de vida. Essa ação inicial preconiza a alimentação diária e gradual da sua famigerada autoestima, através da redescoberta e estimulação de seus interesses e habilidades. A consolidação do sentimento de bem estar do indivíduo com o ambiente, a aproximação e o desenvolvimento das relações pessoais com seus educadores e funcionários também têm papel fundamental dentro desse processo. Introduzem-se assim as condições necessárias para que educadores, equipes técnicas e o morador de rua iniciem conjuntamente a construção de um projeto de vida. De fato, a nossa estratégia em nada combinava com a cartilha regimental a que estávamos submetidos e percebi o quão penoso seria o nosso caminho. No final daquele mês, durante a reunião destinada à prestação das contas realizada no departamento administrativo da Prefeitura, fui avisado pelos técnicos supervisores que o valor que havíamos gastado com os instrumentos musicais não poderia ser incluído nas despesas, o que significava que a Organização Social deveria arcar com o custo de todo os equipamentos. 106 Argumentei que aquele custo havia sido incluído num campo específico que constava no termo contratual de convênio, no qual havia o registro de um valor a ser gasto pela Organização Social com “recursos materiais para o trabalho sócioeducativo e pedagógico”. Os técnicos da prefeitura se olharam por um instante e me pareceu que nenhum deles estava inclinado a esclarecer aquele entrave absurdo. Num ato de bravura, o funcionário mais experiente assumiu a responsabilidade e sacou de uma gaveta uma pasta repleta de documentos e ordens de serviço. Revirando os papéis, encontrou uma normativa que discorria sobre aquele assunto e leu em voz alta um trecho do texto recheada de termos técnicos e arcaicos, através do qual pude compreender que instrumentos musicais não poderiam ser incluídos no item que havíamos assinalado por não serem considerados materiais educativos, tampouco pedagógicos, e sim, “bens permanentes”. Respondi que, a meu ver, não havia nada mais sócioeducativo e pedagógico do que a música e quis saber quais eram, então, os materiais que poderíamos adquirir com os recursos previstos naquele item. Recebi o golpe de misericórdia. Visivelmente constrangido, o técnico supervisor me elucidou que, no entendimento da prefeitura, materiais pedagógicos se restringiam a papel sulfite, lápis coloridos, giz de cera, cartolinas, canetinhas esferográficas, entre outras. 107 Repetia-se, mais uma vez, o velho, batido e não mais aceitável hábito da infantilização do morador de rua. Até quando homens e mulheres, muitos dos quais com documentos e profissão, serão tratados pelo Poder Público como completos incapacitados. Quanto às normativas burocráticas da prefeitura para a aquisição de “materiais pedagógicos“, tais procedimentos contribuem para que as atividades desenvolvidas nos Núcleos e Centros de Serviços se restrinjam a passatempos, recreações e trabalhos meramente ocupacionais instituídos com a finalidade de manter moradores de rua minimamente entretidos e temporariamente sob um teto, mesmo que esse teto seja um pedaço de lona ou plástico, escondendo-os dos olhares críticos, piedosos e acusadores da sociedade. Coube à Organização Aliança de Misericórdia, da qual eu era funcionário, cobrir integralmente os custos de aquisição dos instrumentos musicais em decorrência da minha falta de sensatez e memória. Havia passado por essa experiência anteriormente e deveria estar prevenido. Para finalizar esta fase negra, depressiva e de absoluta desilusão a que estávamos passando o Poder Público resolveu finalmente agir ao seu modo com relação aos moradores de rua acampados em nosso portão. Passava das 10 da noite quando visualizei, do portão principal do Núcleo de Serviços, luzes vermelhas giratórias que anunciavam um verdadeiro comboio vindo em nossa direção. 108 Já sabia do que se tratava, porém, me impressionou o número de veículos entre viaturas de polícia militar, caminhões e carros da subprefeitura que participavam da ação. Ao atingirem o limite da rua, iniciou-se imediatamente uma intensa movimentação de funcionários da subprefeitura e em poucos minutos as barracas feitas de madeira, tábuas e lonas instaladas em frente ao Núcleo de Serviços se encontravam sobre as carrocerias dos caminhões. A reação dos moradores de rua era de indiferença, pois já estavam acostumados com a ocorrência sazonal desse tipo de abordagem. Alguns poucos que já estavam dormindo esboçavam alguma reclamação, porém de forma contida. No comando da operação estava uma bem vestida e aprumada funcionária da Subprefeitura regional da Mooca, para quem certamente população de rua era algo que conhecia através de relatórios e conversas de gabinete. Identifiquei-me como gerente do estabelecimento, com a intenção de tentar sensibilizá-la e evitar que levassem documentos e objetos pessoais dos cidadãos que estavam alojados ali, haja vista que conhecia o modo de atuação desse tipo de força tarefa. Apesar de ter alcançado tal objetivo, uma vez que a funcionária atendeu aos meus apelos e orientou aos carregadores que poupassem tudo que não fosse entulho, fui submetido a uma sabatina fantástica de questionamentos que colocaram sistematicamente à prova o meu cavalheirismo. 109 Do alto de seus sapatos de salto que combinavam harmoniosamente com o restante do figurino, aquela funcionária da subprefeitura que jamais havia colocado seus bem tratados pés naquele Núcleo de Serviços com albergue solicitou explicações e justificativas categóricas sobre a permanência daquele grupo de moradores de rua em frente ao estabelecimento e as razões de “permitirmos” que ficassem ali. Engajei-me firmemente na tentativa de lhe explicar todas as dificuldades que faziam parte do nosso dia a dia e apontar algumas falhas nas políticas públicas de atendimento à população de rua que contribuíam para aquela situação. À medida que minhas colocações eram retrucadas com as falácias e os discursos decorados típicos de funcionários públicos preocupados com suas carreiras, percebi que estava conversando com um robô programado para repetir ordens superiores e incapaz de desenvolver um raciocínio próprio. Resignado, gentilmente pedi licença e fui conversar com a nossa “bibliotecária” Neuza, que cuidava para que não levassem seus pertences mais valiosos e a quem, sinceramente, apesar das instabilidades emocionais, eu atribuía mais inteligência e simpatia. Empregou-se naquela ação, que não durou mais do que 40 minutos, um efetivo de aproximadamente 25 agentes públicos. Cerca de 10 policiais militares, incluindo um oficial, permaneceram durante todo esse tempo desviados de sua real atribuição e deixando de atender 110 ocorrências de maior gravidade, socorrer pessoas e combater efetivamente à criminalidade. Outra peculiaridade desse tipo de operação que leva a uma reflexão acerca de sua transparência é o fato de serem realizadas invariavelmente na calada da noite. Se tais ações são realmente de interesse público e têm como finalidade a adequada conservação dos logradouros públicos, conforme justificam seus idealizadores e executores, qual seria a razão para transcorrerem no exato momento em que a maioria dos cidadãos dorme, quando os estabelecimentos de comércio não estão funcionando e é quase indetectável a presença de um transeunte que eventualmente testemunhe seu desenrolar. Em última, porém não menos grave instância, se registrou como resultado de toda essa somatória de recursos logísticos e esforços de vários órgãos públicos distintos a importância de duas caçambas de caminhões empilhadas de materiais inutilizáveis, uma funcionária pública aliviada pela sensação de dever cumprido e absolutamente mais nada. Passadas 24 horas da realização da operação, as barracas, colchões e tudo o mais que havia sido retirado já haviam sido substituídos e tomavam novamente boa parte dos arredores do Núcleo de Serviços, assim como se encontravam no mesmo lugar algo que simplesmente passou despercebido aos enviesados olhos dos encarregados daquela ação: as pessoas. Outros aspectos das diretrizes de funcionamento impostas aos Núcleos de Serviços revelavam, em 111 seus pequenos detalhes, que se priorizava a manutenção de sua fachada em detrimento ao que se passava do lado de dentro do estabelecimento. Quando iniciei meus trabalhos na Casa Restaurame, naturalmente me ocorreu chamar o Sebastião Nicomedes para fazer parte da equipe. Conheci Tião no ano de 2005, talvez 2006, época em que ele liderava o Movimento Nacional pelos Direitos da População de Rua. Quando o encontrei pela primeira vez estava acorrentado a outros moradores de rua em protesto por melhorias no atendimento oferecido pelos albergues à população de rua, em plena Praça do Patriarca. Permaneceram assim por quatro ou cinco dias, apenas bebendo água, até conseguirem uma audiência com o Secretário de Assistência Social. Duas eram as características do Tião que mais reforçavam o meu pensamento de integrá-lo ao quadro funcional do nosso Núcleo de Serviços. A primeira era que se trata de um homem que já viveu nas ruas, sofreu suas agruras e por essas razões possui algo que eu, por mais que me esforçasse, jamais possuiria justamente pelo fato de nunca ter enfrentado o desafio de dormir ao relento: a perspectiva da rua - a capacidade de se colocar no lugar do morador de rua e entender seus pequenos sinais e gestos que englobam uma infinidade de mensagens sublinhares, cujos significados apenas os possuidores dessa sensibilidade muito apurada conseguiam captar. 112 Tião se tornou rapidamente o termômetro medidor de sentimentos daquele Núcleo de Serviços, identificando como que pelo olfato o estado de ânimo dos frequentadores daquele lugar. A segunda característica que fazia do Tião uma pessoa especial era a de que se tratava de um artista - e ninguém melhor do que um artista para me ajudar a transformar aquele Núcleo de Serviços num grande centro de arte e cultura para a população de rua. Inúmeros são os talentos e habilidades de que dispõe. É como um mágico que pode tirar uma incontável quantidade de objetos de dentro de uma cartola, sob o olhar atônito de expectadores que sequer imaginam de onde estão surgindo tantas surpresas. Quando chamei Sebastião para trabalharmos juntos ele já havia atingido o status de celebridade. Era conhecido pela imprensa e pelos movimentos ligados à população de rua. Já havia apresentado peças e monólogos teatrais de sua autoria para multidões. Já tinha escrito livro, manifestos, instituído um blog na rede virtual e sua arte já havia sido escancarada aos olhos do público em rede nacional em diversos e renomados programas de televisão. No Núcleo de Serviços, desenvolveu de maneira impressionante aquele que, para mim, é seu maior dom: conseguir entrar no âmago da alma humana e fazer aflorar suas vocações. Como um minerador, garimpou, lapidou e poliu com a sua personalidade um grupo de moradores de 113 rua que logo se tornou assíduo e como um jardineiro, regou e fez desabrochar em cada um deles o que guardavam de melhor dentro de si. Começaram a despontar artigos aos quais realmente se podia agregar valor como bolsas, almofadas, brinquedos, esculturas e vários outros. Criou aquilo que batizou de “Oficina de Sonhos“, transformando o que nas mãos de outra pessoa se tornaria um espaço destinado a modorrentas e previsíveis aulas de artesanato, nas quais homens e mulheres apáticos costurariam panos de prato, em uma real oportunidade de geração de renda para os moradores de rua participantes. Tião foi responsável pela gestação e concepção da calorosa vida que preenchia toda a atmosfera da sua Oficina de Sonhos. Conseguiu incluí-la em feiras e eventos de economia solidária e empreendimentos sociais em Praças no Centro da Cidade e implementou um espaço para a comercialização dos produtos dentro da própria oficina.Também fez contatos e formou parcerias trazendo para dentro daquele Núcleo de Serviços voluntários da Universidade de São Paulo, da Ordem dos Músicos do Brasil, da Secretaria de Cultura e vários outros departamentos. Tirou a oficina do anonimato e tornou-a pública, através de exposição em galerias, na mídia e em outros espaços de repercussão. As realizações e o valor profissional de Tião faziam justiça a todas as manifestações de reconhecimento e apoio que recebia de vários setores da sociedade. 114 Por mais incrível que isso possa parecer, o único setor da sociedade que não o reconhecia e não o apoiava era o Poder Público, a quem Tião prestava valorosos préstimos através da sua Oficina de Sonhos. Sebastião era um dos profissionais que mais trabalhavam naquele Núcleo de Serviços. Sua carga horária prevista no termo de convênio era de três horas diárias, no entanto, ele se dedicava oito, às vezes nove horas por dia na execução de suas atividades. Trabalhava voluntariamente aos sábados, uma vez que não precisaria abrir a oficina aos finais de semana. Tião adentrava noites engajado nos preparativos para os eventos artísticos e culturais que realizávamos no Núcleo de Serviços e não se contentava com nada menos do que a perfeição, pois acreditava fielmente que a população de rua merecia o melhor. Apesar de tudo isso, Tião não era reconhecido pelo Poder Público sequer como um funcionário. A importância que davam ao seu trabalho era tamanha que os recursos para o pagamento de seus honorários não estavam registrados junto aos dos demais funcionário no termo de convênio e vinham especificados em um quadro a parte, denominado “outras despesas“, no qual constavam gastos relativos a coisas como lavanderia, gás e luz. Esse era o valor dado pela Secretaria Municipal de Assistência Social de São Paulo ao trabalho do Sebastião, equiparando sua importância a de um bujão de gás ou uma máquina de lavar roupas. 115 As consequencias dessa desconsideração eram nocivas e causavam-lhe vários contratempos. O seu salário era o único que atrasava, pois dependia da improvável pontualidade da prefeitura na efetivação do depósito da verba de convênio na conta da organização - o que invariavelmente tornava seu pagamento um calvário. Era necessário confeccionar vales com valores picados para que Tião pudesse quitar suas contas. As demais consequências Tião sentiria a médio e longo prazo. Era o único funcionário que, por ser enquadrado na categoria de prestador de serviços e não de trabalhador formal e seu cargo não constar no quadro de recursos humanos estabelecido no termo de convênio, estava desprotegido de todas as leis trabalhistas vigentes. Isso significava que não possuía registro em carteira, direito a férias e décimo terceiro salário e tampouco aquele tempo de serviço contribuiria futuramente para sua aposentadoria. Chateado e constrangido, uma vez que Tião aceitou trabalhar sob tais condições para atender a um convite meu, em todas as oportunidades e reuniões eu denunciava essas falhas contratuais aos técnicos supervisores do convênio para que se tentasse repará-las na ocasião da renovação da parceria com a Organização. Colocava-os a par, através dos relatórios mensais, de todas as benfeitorias que Tião havia realizado e da importância do seu trabalho e da sua presença para aquele Núcleo de Serviços. 116 Contudo, o contrato de parceria foi renovado alguns meses depois e sequer uma linha foi alterada do regimento original. Sempre considerei Tião um funcionário formal daquele Núcleo de Serviços e tentava fazê-lo se sentir dessa maneira. Ele ostentava seu crachá de identificação com um aparente orgulho, mas na verdade estava alheio a esses procedimentos protocolares. Sebastião era movido pela disposição indelével em pastorear seu rebanho de artistas de rua e pelos sonhos de sua oficina. Nem mesmo a desconsideração do Poder Público por seu trabalho poderia desanimá-lo. Que fiquem aqui registradas minha admiração e amizade por Sebastião Nicomedes, um verdadeiro educador social. 117 Um barril de pólvora O atendimento noturno - no qual funcionava o serviço de acolhimento aos moradores de rua por meio do nosso albergue - é digno de um capítulo à parte. Como afirmado em passagens anteriores, a maior preocupação dos técnicos da prefeitura com relação à aglomeração de moradores de rua na portas dos estabelecimentos que oferecem atendimento social, é a possível ocorrência de mortes, principalmente no inverno. A capacidade de atendimento do nosso albergue era reduzida – o que implicava em sérios problemas nas noites gélidas. Mesmo depois de atingida a capacidade máxima de atendimento, era inevitável que um grande número de moradores de rua permanecesse do lado de fora do estabelecimento, na esperança de conseguir uma vaga para dormir Nessas circunstâncias, deveriam ser colocadas em prática algumas medidas emergenciais que haviam sido previamente transmitidas pelos supervisores técnicos. O primeira delas determinava o acionamento da CAPE (Central de Atendimento Permanente e Emergências), pois esse setor da Secretaria de Assistência Social gerenciava as vagas de acolhimento na cidade e trataria de redirecionar o contingente que não pôde ser absorvido pela 118 insuficiência de vagas para outro estabelecimento, além de providenciar também os veículos para o transporte das pessoas. O segundo procedimento instruía que se autorizasse a entrada provisória do contingente excedente para que aguardasse em segurança a chegada dos veículos da CAPE. Ambos os procedimentos faziam parte de uma cartilha de orientações e recomendações entregue a todos os Centros de Acolhimento e albergues na forma de uma ordem interna, despachada pelo gabinete da Secretaria de Assistência Social e publicada em Diário Oficial do Município no dia 27 de maio de 2009. Pareciam medidas simples, justas e que seriam viabilizadas sem maiores desdobramentos. Ao mesmo tempo, a leitura do referido documento transmitia a sensação de que tudo estava sob controle e que o planejamento das ações havia sido conduzido de maneira sistemática. O caso é que, dentro da esfera pública, a teoria e a prática são como dois planetas separados por milhares de anos luz e tempestades cósmicas de distância e nem mesmo a efetivação de um mecanismo elementar de pronta resposta a um entrave que de maneira nenhuma poderia causar surpresa, uma vez que fora prevista sua provável ocorrência, se conseguia colocar em prática adequadamente. Desencontro de informações, má organização, falhas de comunicação e ausência de infraestrutura estouravam como uma bomba nas mãos dos 119 educadores noturnos de plantão, a quem caberia executar ações de verdadeira superação humana para que desfechos realmente graves não viessem a ocorrer dentro do nosso Centro de Acolhimento. Julho de 2009. Noite fria e chuvosa, típica de inverno paulistano. O frio, por si só, já se constituía em uma forte razão para que aumentassem consideravelmente nossa preocupação e atenção. O frio acrescido de chuva fazia com que a noite tomasse ares de filme de terror, haja vista o aumento expressivo do número de pessoas que manifestavam o desejo de serem abrigadas. As condições de trabalho não eram nada favoráveis. Contávamos com dois funcionários, que ficavam responsáveis pelo atendimento e monitoramento de 50 pessoas. Os educadores deveriam se dividir entre uma série de atribuições como organizar a entrada dos acolhidos, guardar os pertences pessoais de cada um deles no bagageiro, providenciar e servir alimentação, distribuir individualmente toalhas, lençóis, cobertores e utensílios de higiene pessoal, liberar o acesso aos banheiros e dormitórios, contabilizar o contingente que excedia o limite da capacidade de atendimento e acionar a CAPE para solicitar o seu transporte para outro local de acolhimento. Além de tais atribuições, que considerávamos convencionais, estavam sujeitos a uma série de outras eventuais e corriqueiras como socorrer pessoas acometidas de mal súbito, intervir em 120 ocorrências de brigas e atender campainhas e telefones. O caso é que os funcionários eram seres humanos e estavam sujeitos a adoecer ou a algum contratempo que os impossibilitasse de trabalhar. Foi o que aconteceu justo naquela noite. Por alguma razão, um dos educadores noturnos não pôde comparecer ao trabalho. Todas as intermináveis e exaustivas atribuições que descrevi anteriormente ficariam, naquele fatídico plantão, a cargo de um único funcionário . Por conta do frio e da chuva, além das 50 pessoas que correspondiam ao limite da nossa capacidade de atendimento, havia outras 30, molhadas, famintas e ávidas para se abrigar das intempéries. Eram quase 9 horas da noite. Logicamente, eu havia ficado para auxiliar o único educador de plantão, que embora fosse um rapaz muito esforçado, não conseguiria de forma alguma dar conta de tantas e variadas demandas. Decidimos cumprir à risca as orientações contidas na cartilha e na ordem interna que tínhamos em mãos. Providenciamos a entrada dos 30 moradores de rua que esperavam do lado de fora - que se somaram aos 50 que ali já estavam. Tratei de acionar a CAPE e informar nossa situação. Requisitei que transferissem o grupo de pessoas que não conseguiríamos atender para outro local de acolhimento e fui informado pela atendente que, devido ao acúmulo de demandas a que aquele setor estava submetido naquela noite de frio intenso, não 121 havia veículos suficientes para se realizar o transporte das pessoas, tampouco prazo para que tal situação pudesse se normalizar. Entendíamos perfeitamente a difícil situação na qual se encontrava a funcionária da CAPE, que apesar da boa vontade em ajudar, pouco podia fazer, em razão da frágil estrutura operacional de que dispunha. Eu havia dirigido aquele departamento há cerca de três anos e me deparava, na época, com as mesmas limitações. Recordei as inúmeras noites em que recebíamos chamadas dos Centros de Acolhimento e albergues solicitando a transferência de pessoas para outros estabelecimentos e não conseguíamos atendê-los de maneira eficiente. Por ironia do destino, eu me encontrava, naquele momento, na outra ponta do cordel de desesperados. Quando estava na CAPE, não conseguia sequer imaginar o tamanho da encrenca em que estavam metidos os funcionários dos albergues quando nos acionavam requerendo apoio. É fato que as condições estruturais que possuíamos não nos permitiam intervir adequadamente, assim como ocorre nos dias atuais. Na verdade, os funcionários e educadores noturnos dos albergues e Centros de Acolhimento se deparavam há três anos com o mesmo impasse que estávamos vivendo naquela noite. O que dizer, naquele momento, para os 30 moradores de rua que excediam nossa capacidade de abrigamento e que aguardavam por um local para dormir. 122 Logicamente, a aglomeração de quase 90 pessoas confinadas em um único espaço físico e a nossa total incapacidade de administrá-lo resultaram em inúmeros problemas. Pessoas entravam e saiam livremente de todas as dependências, desciam e subiam as rampas de acesso, pediam coisas, passavam mal. Havia cachorros trazidos pelos moradores de rua circulando pelo refeitório. Acrescente-se a tudo isso doses consideráveis de ansiedade, exaltação e exaustão decorrentes da demora no atendimento e nos víamos agarrados a um barril de pólvora prestes a explodir. Não se cogitava dispensar os moradores de rua excedentes - o que se converteria num ato de atroz desumanidade. Tampouco haveria condições de acomodá-los em algum espaço improvisado, uma vez que não havia colchões, cobertores e outros materiais suficientes. Da mesma forma, não poderíamos garantir a mínima segurança de uma centena de pessoas distribuídas aleatoriamente por várias dependências diferentes. Contudo, era necessário tomar medidas imediatas para restabelecer a ordem e restava –nos recorrer aos meios de fortuna. Havia uma Kombi estacionada na área da entrada lateral. Esse carro havia sido doado tempos atrás à Organização Aliança de Misericórdia por uma empresa ou um benfeitor e era de uma serventia incomensurável, pois nos permitia socorrer 123 moradores de rua acometidos de doenças e mal súbito, buscar doações e fazer as compras do mês . Decidi então tornar a contatar a CAPE e solicitar àquele órgão, como controlador das vagas de acolhimento em toda a cidade, que simplesmente me informasse em quais outros estabelecimentos havia disponibilidade de vagas e nós mesmos realizaríamos o transporte das pessoas. Satisfeita pela possibilidade de aliviar sua extensa lista de chamadas, a funcionária da CAPE me autorizou a transportá-las para um albergue situado na região da Vila Alpina, próximo ao crematório. Tratamos, então, de dividir as tarefas. O funcionário de plantão permaneceria no nosso albergue dando continuidade aos afazeres habituais como a distribuição de materiais e roupas de cama e a liberação dos dormitórios para os que quisessem se acomodar, coisa que ainda não havia sido feita pela indefinição quanto ao destino daqueles 30 moradores de rua. Da minha parte, me encarreguei da missão de transportar os 30 moradores de rua para um Centro de Acolhimento na Vila Alpina com a nossa Kombi - o que demandaria certa dose de paciência, pois a o veículo comportava no máximo oito passageiros Outro problema me afligia. Eu não conhecia a localização do Centro de Acolhimento para onde deveria levar todas aquelas pessoas. Na época em que trabalhava na CAPE suas instalações ainda funcionavam na Avenida Paes de Barros, na Vila Prudente. 124 Para meu azar, haviam se transferido há pouco tempo para o novo endereço que, naquele preciso momento, era do meu total desconhecimento. Não havia sequer um guia de ruas no veículo, coisa que tratei de providenciar na manhã do dia seguinte. Precisamente às 10 horas da noite eu partia como um marinheiro sem destino, em minha primeira viajem, conduzindo oito moradores de rua do nosso Centro de Acolhimento, no Brás, para outro na Vila Alpina. O que deveria ser um trajeto de vinte minutos se transformou em uma saga com direito a incontidas manifestações dos passageiros - algumas de cunho jocoso e descontraído, em virtude das inúmeras vezes em que perdi completamente a rota nas mal sinalizadas e labirínticas pontes de acesso que ligavam as Avenidas do Estado, Avenida Juntas Provisórias e Avenida Anhaia Melo - outras de caráter mais reivindicatório, porém nunca hostil, motivadas certamente pelo cansaço. Após alguns desencontros e algumas paradas para localização, finalmente chegamos ao nosso destino. Faltavam poucos minutos para as 11 horas da noite. Foram necessárias mais três viagens de Kombi para que conseguíssemos cumprir nossa obrigação e garantir algumas horas de descanso para aquelas dezenas de pessoas. Como consolo, as viagens subsequentes não proporcionaram maiores aventuras, zombarias ou descontentamentos, uma vez que já havia me familiarizado com o caminho. 125 Eu e o educador noturno pudemos considerar a situação sob controle precisamente às duas e meia da madrugada do outro dia, quando todos já haviam se recolhido e a profunda escuridão que tomava o amplo salão inferior permitia refletir suavemente em seu pavimento um fragmento de luar espremido entre as nuvens carregadas. Conversamos um pouco sobre o apuro que havíamos passado naquela noite, justamente por termos cumprido rigorosamente as recomendações contidas na ordem interna e exaustivamente reiteradas pelos supervisores técnicos. Comentamos a insensatez da portaria pública que estabelecia um efetivo de dois funcionários para atenderem não só os 50 moradores de rua que representavam o limite da nossa capacidade de acolhimento, mas também às dezenas de outros que eventualmente pudessem bater em nossas portas e a quem deveríamos providenciar alternativas de abrigamento. Exaustos, não falamos mais nada. Eu ainda alimentava alguma esperança de que os entraves que ocasionaram a falha absoluta dos procedimentos orientados se restringiriam àquela noite e que teriam ocorrido devido a uma série de fatalidades como a combinação de dois fatores climáticos - no caso a chuva e o frio - além da incapacidade operacional da CAPE de cumprir com o seu papel, o que, inocentemente, também julgava ser algo circunstancial. No entanto, eu descobriria nos dias, semanas e meses subsequentes que a inocuidade de toda 126 aquela operacionalização se tornaria permanente e haveríamos de lidar com ela durante o resto do inverno. O fato é que a CAPE não estava minimamente estruturada para desempenhar a difícil missão de remanejar os moradores de rua que não pudessem ser atendidos pelos Centros de Acolhimento para outros menos lotados. Não contava com veículos, tampouco funcionários suficientes para realizar esse trabalho com dinamismo e eficiência. Ninguém da equipe de gestão do gabinete da Secretaria de Assistência Social se ateve a esse importante detalhe no momento em que faziam o planejamento das ações. Essa disfunção no mecanismo operacional que haviam planejado obrigava os albergues e Centros de Acolhimento a absorverem o contingente de pessoas que extrapolava o limite de sua capacidade de atendimento. Isso significa que um estabelecimento que dispunha de uma estrutura de recursos humanos e logísticos que já era precária e insuficiente para acolher 50 moradores de rua, acabava acolhendo dezenas de outros mais em razão do compromisso moral e humanitário de não deixar de prestar auxílio em quaisquer circunstâncias. Esse é momento em que o Poder Público age mais perversamente com as Organizações conveniadas. Em sua maioria, as organizações são instituições com vocações e origens religiosas, movidas por fundamentos missionários. 127 Conscientes disso, as autoridades se acomodam contando maquiavelicamente com a certeza de que, em razão de suas ideologias, seus princípios e valores, as Organizações não deixarão de acolher pessoas além da sua capacidade regulamentar e que não permitirão que moradores de rua morram em sua porta por falta de atendimento. Igualmente, é nesse preciso momento que a relação entre o Poder Público e a Sociedade Civil deixa de ser uma parceria, no sentido amplo e ideológico da palavra, passando a ser uma relação escravista, na qual o sentimento humanitário das Organizações se transformará nas correntes que as prenderão firmemente aos punhos e sob o total controle do seu “senhor”. O cumprimento dos compromissos morais e éticos das Organizações, no entanto, tem um preço. Esse preço não é pago pelo Poder Público, satisfeito pelo fato de que, mesmo precária e muitas vezes indignamente acolhido, as possibilidades de um morador de rua morrer de frio dentro do estabelecimento são reconhecidamente menores do que na rua e isso já lhes bastava. Da mesma forma, não se abatem com o fato de pessoas serem carregadas em peruas madrugadas adentro para que possam desfrutar do “privilégio” de dormir sob um teto por um par de horas. Uma parcela menor, porém significativa deste preço é paga pela Organização conveniada e pelos funcionários dos albergues e Centros de Acolhimento, que inexoravelmente ficam sujeitos a 128 sobrecargas de trabalho descomunais e seus inevitáveis e já comentados desdobramentos. Infelizmente, como de costume, a parcela maior desse preço é paga pelos próprios moradores de rua, que são obrigados, em virtude da improvisação de meios para que o albergue consiga atender ao contingente excedente, a se exporem a situações que pouco diferem das enfrentadas cotidianamente nas ruas. Tais situações são inerentes à falta ou ao fornecimento precário de refeições noturnas e café da manhã, de materiais de higiene pessoal como toalhas e sabonetes e à indisponibilidade de camas e beliches. Para o Poder Público, toda essa sorte de limitações na oferta dos serviços se torna plenamente aceitável. O argumento escutado da boca de muitos técnicos e funcionários da prefeitura é de que não há qualquer inconveniência no fato de um morador de rua dormir sujo, de barriga vazia, em um colchonete estendido no chão de um Centro de Acolhimento, pois isso ainda é melhor do que na rua, exposto ao frio. É a triste constatação que se faz acerca do modelo ideológico cruel adotado pelas autoridades públicas com relação não só aos serviços oferecidos à população de rua, mas à pobreza de uma forma geral, que se traduz no conceito autoritário da “imposição demeritória“ ou, traduzindo – se para o coloquial, “pra pobre qualquer coisa serve”. A qualidade das camas - se é que se pode chamálas assim - nas quais dormiam os 50 moradores de 129 rua que preenchiam a capacidade regulamentar do nosso albergue dava provas disso. Esses leitos nos foram enviados pela prefeitura juntamente com lençóis, toalhas e demais materiais às vésperas da abertura do Centro de Acolhida. Tratava-se de leitos a que se chama de “campana”. São macas dobráveis como aquelas vistas em filmes de guerra, sem qualquer sustentação para as costas e de uma fragilidade indescritível. Sequer foram enviados travesseiros o que obrigava os moradores de rua a usarem suas mochilas como apoio para as cabeças, até que a Organização contratada tomasse a iniciativa de providenciar sua aquisição. Os casos e reclamações de dores nas costas, torcicolos e outras contusões ocasionadas pela péssima qualidade das camas e pela falta de travesseiros chegavam ao conhecimento das assistentes sociais diariamente. No nosso Centro de Acolhimento, a maneira que encontramos para atender os moradores de rua que excediam o limite da capacidade foi utilizar nosso próprio veículo para transportá-los para outros locais. Esse procedimento foi colocado em prática à exaustão durante todo o inverno. Os educadores do plantão noturno se revezavam no cumprimento das demandas. Um deles permanecia no albergue realizando as funções ordinárias, enquanto o outro deveria realizar várias viagens transportando dezenas de pessoas para outros estabelecimentos, exatamente como eu havia feito nos primeiros dias do inverno. 130 A utilização dessa estratégia alternativa acarretava na permanência quase em tempo integral de apenas um funcionário dentro do estabelecimento - o que implicava sérios riscos aos próprios funcionários e também aos moradores de rua. A adoção desse procedimento também exigiu que incluíssemos no item “outras despesas“ da nossa prestação de contas realizada mensalmente junto à prefeitura os valores referentes aos gastos com combustível realizados nos transportes noturnos. Lembremos uma vez mais que efetuávamos os transportes com nossa Kombi para não deixar moradores de rua desabrigados numa noite de frio, ao passo que o planejamento feito pela prefeitura para o remanejamento do público excedente dos Centros de Acolhimento era um verdadeiro fiasco e que o veículo utilizado para a realização dos transportes era patrimônio da Organização, sendo de sua inteira responsabilidade arcar com os custos referentes à manutenção do veículo, documentação e aos demais encargos administrativos. Ainda assim, o técnico supervisor do convênio me advertiu que os gastos realizados com combustível estavam muito elevados e que seria estabelecido um limite de valor a ser coberto pela prefeitura. Na hipótese desse valor ser ultrapassado, não haveria qualquer ressarcimento. Nenhum dos argumentos anteriormente citados dos quais me utilizei para justificar os gastos com combustível sensibilizou o técnico supervisor, tampouco meus apelos em nada contribuíram para um desfecho menos melancólico daquela discussão. 131 Aquele assunto foi encerrado e imediatamente se introduziu outro, que tratava de alguma banalidade. Emudeci. Senti como se estivesse amordaçado, com os pés e as mãos amarrados. Senti-me como um escravo. 132 Vigiar, punir ou cuidar No nosso trabalho anterior, tratamos de criticar em diversas passagens a indiferença com que as equipes técnicas da maioria dos Núcleos de Serviços, Centros de Acolhimento e albergues tratavam o grave problema do uso abusivo de bebidas alcoólicas pela população de rua. Na época em que eu conduzia moradores de rua alcoolizados para os albergues, através da CAPE, constatava que a estratégia dos estabelecimentos para fazer frente a essa situação era a mesma utilizada para todos as outras com as quais tinham dificuldade em lidar: a mera repressão. Assim, os moradores de rua que chegavam espontaneamente ou conduzidos pelos educadores de rua aos estabelecimentos sócioassistenciais tinham sua entrada automaticamente vetada, ainda no portão, caso fosse constatada sua embriaguez pelo educador do estabelecimento. Da mesma forma, a reincidência era causa de exclusão compulsória por tempo indeterminado. O caso é que, na maioria das situações, a punição era aplicada sem que tivesse sido apresentada ao morador de rua qualquer alternativa de atendimento apropriado e que pudesse auxiliá-lo a controlar o hábito de beber. A metodologia utilizada pelos profissionais dos estabelecimentos para estimular o autocontrole do 133 morador de rua com relação à bebida era questionável e pouco didática. Presumiam que o “castigo” de ser compelido a dormir na rua o conscientizaria da necessidade de moderar o consumo do álcool. A consistência desse argumento é frágil, pois a ação de submetê-lo deliberadamente ao sofrimento, mesmo com intuito corretivo, não possuía qualquer valor pedagógico, ao passo que a justificativa para a punição não poderia ser compreendida em virtude dos efeitos da embriaguez, e por conseguinte, não produzia o resultado regenerativo que os profissionais do estabelecimento esperavam. Contudo, as experiências vivenciadas no albergue foram fundamentais para que eu passasse a compreender com mais clareza as causas do rigor no tratamento dispensado aos beberrões contumazes pelos educadores sociais e funcionários dos estabelecimentos. De fato, as razões que motivavam os educadores sociais noturnos do nosso albergue a adotarem medidas intransigentes eram as mesmas verificadas no período diurno. O pequeno efetivo de educadores escalado para o trabalho noturno - por sinal ainda mais restrito se comparando aos outros períodos, em razão dos encargos salariais adicionais previstos na legislação trabalhista - não conseguia fazer frente ao comportamento inadequado dos moradores de rua alcoolizados. Além da sobrecarga de trabalho a que estavam submetidos em suas tarefas usuais, os educadores 134 noturnos ficavam incumbidos de apartar brigas envolvendo indivíduos alcoolizados, socorrer àqueles que sofriam quedas e desmaios por conta da embriaguez e eram acometidos de um desgaste psicológico muito intenso, pois se tornavam alvos dos atos de hostilidade e desrespeito cometidos pelos beberrões. Nesse contexto dramático, a ação dos educadores noturnos de barrar a entrada de moradores de rua alcoolizados nos estabelecimentos é compreendida, porém, não concebida, uma vez que pagam novamente os moradores de rua pelas falhas do sistema de atendimento. Mesmo conhecendo e presenciando as dificuldades de se lidar com pessoas alcoolizadas nas condições funcionais que estávamos submetidos, a orientação dada aos educadores do período noturno alertava para a necessidade do critério. O fato é que de cada dez moradores de rua que dormiam no nosso Centro de Acolhimento, nove bebiam exageradamente. Por conta disso, era imprescindível que se avaliasse o grau de embriaguez do morador de rua no momento da sua entrada, para que não se cometessem exageros com relação à restrição ao seu acesso. A inflexibilidade inexoravelmente acarretaria no esvaziamento do Centro de Acolhimento ou faria com que as vagas fossem ocupadas por pessoas que não eram realmente moradores de rua. A atenção também era requerida no sentido de despertar junto aos educadores a capacidade de 135 compreender o uso abusivo do álcool como uma estratégia utilizada pelo morador de rua para aplacar seu sofrimento físico e psíquico, evitando assim que desenvolvessem um olhar policial, moralista e estigmatizado acerca dessa questão. Eu manifestava abertamente a minha contrariedade com relação às punições aleatórias - dentre as quais se destacavam as suspensões e fundamentalmente as exclusões sumárias - e que anteriormente à aplicação de qualquer medida repressiva contra os bebedores contumazes lhes fossem apresentadas propostas de orientação e ajuda. Manter essa posição exigia doses cavalares de esforço, pois a recorrência de fatos desagradáveis desencadeados por moradores de rua alcoolizados contribuía para o aumento da insatisfação dos funcionários. As manifestações de descontentamento dos educadores noturnos às assistentes sociais - a quem os primeiros remetiam os relatórios queixosos acerca das confusões causadas pelos moradores de rua embriagados – aconteciam cada vez mais frequentemente. Uma vez que a pressão aumentava para que medidas enérgicas e exemplares fossem tomadas para com os beberrões do período noturno, era necessário diversificar as formas de intervenção ao problema. Até então, se contava com uma única alternativa de auxílio aos moradores de rua usuários de álcool e drogas. 136 Essa alternativa, apesar de reconhecidamente eficaz, atraía a um perfil específico da população de rua, cujos efeitos do uso prolongado da bebida já haviam desencadeado sucessivas complicações físicas e psicológicas. A condição desse morador de rua se apresentava de tal maneira crítica, que seu mal estar o convencia da necessidade de buscar ajuda, ao passo que percebia em risco sua própria vida. A esse morador de rua se oferecia como proposta de atendimento o que chamávamos de “Casas de Acolhida“. Eram locais mantidos pela própria Organização Aliança de Misericórdia nos quais o morador de rua permaneceria acolhido por um período de tempo indeterminado com a finalidade de desintoxicar seu organismo, controlar o uso do álcool e readaptá-lo ao convívio coletivo A metodologia utilizada era baseada na laborterapia e na terapia ocupacional. A questão com relação a esse tipo específico de encaminhamento era que, de fato, ficava restrito àqueles que reconheciam os prejuízos e danos causados pelo uso do álcool ou das drogas e manifestavam espontaneamente desejo de aderirem a um programa de reabilitação. Trocando em miúdos, esse tipo de intervenção serviria àqueles que chegaram ao fundo do poço. Moradores de rua que não se encontravam nessa condição de vulnerabilidade extrema tendiam a repudiar esse modelo de atendimento, pois sua metodologia exigia o afastamento imediato das 137 pessoas, hábitos e ambientes a que estavam acostumados. No entanto, a maioria dos moradores de rua usuários de álcool e drogas ainda não atingiu a um estágio de consciência que lhe motive buscar ajuda deliberadamente e é provável que somente dê conta dos malefícios da bebida quando as consequências desse hábito já lhe infligirem sérios danos à saúde. O fato de ainda conseguirem manter certo grau de autonomia física em virtude do uso da bebida ainda não interferir em seus afazeres habituais, faz com que ignorem seus efeitos degenerativos e não percebam os prejuízos gradativos e cumulativos que produz. Por essa razão, negam que o uso da bebida ou da droga esteja fora de controle e tendem a desprezar as ofertas de auxílio. É justamente para esse perfil formado por moradores de rua inconscientes das consequências da bebida em suas vidas que se requerem propostas de atendimento mais adequadas e abrangentes. O simples fato de não aceitar sua própria condição - o que muitas vezes requer tempo - desestimula educadores e funcionários de Núcleos de Serviços, Centros de Acolhimento e albergues a investirem tempo e atenção nesses indivíduos. Consideramnos casos perdidos, indignos de maiores esforços. Na verdade, ocorre exatamente o contrário. O quanto antes esse morador de rua atingir o nível de consciência que lhe moverá a buscar melhorias em sua condição de vida, mais será poupado das sequelas físicas e psíquicas geradas pelo uso do álcool. 138 Nesse sentido, a motivação é uma ferramenta que poderá adiantar tal processo. Esse trabalho, que não apresentará resultados imediatos e que requer doses maciças de paciência e persistência dos educadores sociais e quadros técnicos, deve ser implementado com urgência nos locais que atendem à população de rua, ocupando o lugar das medidas repressivas ou ao menos sendo conciliado a elas. No nosso Núcleo de Serviços com albergue foram implementadas intervenções variadas voltadas à questão do uso do álcool. Essas intervenções visavam atingir a um grande número de moradores de rua que, como explicado, fazia uso recorrente dessa substância, porém, com consequências eventuais e passageiras. Por essa razão, quaisquer propostas de atendimento que apresentássemos deveriam considerar o fato de que não se sujeitariam a elas espontaneamente, tampouco sem uma forte motivação. Nos casos diagnosticados de maior gravidade, nos quais percebíamos que a vida do morador de rua estava em risco ou que a bebida instigava seu mal comportamento, a utilização dos serviços de alimentação, banho e abrigamento passava a ser condicionada à participação nos programas de reabilitação oferecidos, evitando-se assim a aplicação de punições ou sansões disciplinares desvinculadas de propostas de atendimento. É importante ressaltar, no entanto, que apesar do esforço empenhado em diversificar o número de programas voltados ao controle do uso de álcool e 139 substâncias químicas, poucos demonstraram ser efetivos para população de rua. Algumas constatações sobre programas tradicionais apresentadas em nosso trabalho anterior, bem como incompatibilidades funcionais com características e hábitos próprios da população de rua, puderam ser confirmadas empiricamente no Núcleo de Serviços com albergue. Além das Casas de Acolhida - cujas peculiaridades metodológicas já foram comentadas - as assistentes sociais da nossa equipe apresentavam ao morador de rua a proposta de encaminhamento para o CRATOD (Centro de Referência de Álcool,Tabaco e Outras Drogas). Trata-se de um órgão ligado à Secretaria Municipal de Saúde, de fácil acesso para o morador de rua e que não requer sua internação. Dentre as qualidades do CRATOD, destaca-se a desburocratização do atendimento. Não é necessário agendar consulta ou marcar hora. O encaminhamento por escrito do morador de rua feito pela equipe técnica do estabelecimento ao qual está cadastrado já é suficiente. Também são dignas de elogios a receptividade no atendimento e a forma humana com que tratam o morador de rua, algo raro de se verificar em órgãos e serviços públicos. As intervenções são realizadas por profissionais da área médica, psicólogos e assistentes sociais e a frequência às consultas dependerá das avaliações e da complexidade diagnosticada em cada caso. 140 A questão que torna o encaminhamento de moradores de rua para o CRATOD discutível quanto à sua funcionalidade é a utilização de medicamentos. As cartelas de comprimidos são distribuídas gratuitamente aos pacientes com a finalidade de auxiliá-los dentro do processo de abstinência. Trata-se de remédios potentes, de efeito calmante e prolongado e que são fornecidos logo nas primeiras consultas. É necessário observar que, por se tratar de uma intervenção que preconiza a interrupção abrupta e imediata do hábito de beber, é quase impossível para o morador de rua manter-se sóbrio, à medida que sua rotina, suas companhias e os locais que frequenta permanecem inalterados. Considerando todos esses fatores, que são inerentes às estratégias de sobrevivência e relações sociais estabelecidas pela população de rua , coloca-se em debate se o modelo de atendimento utilizado pelo CRATOD é apropriado para esse segmento social especificamente. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, considerando também que o uso abusivo de álcool pela população de rua é um sedativo para traumas emocionais causados pelas rupturas dos vínculos familiares, decepções, desilusões e frustrações vivenciadas no passado, é improvável que uma intervenção medicamentosa radical consiga desenrolar esse emaranhado de sentimentos tão profundos num curto espaço de tempo. 141 Obviamente, a intenção da equipe médica e dos profissionais do CRATOD é a melhor possível, não temos dúvida quanto a isso, haja vista a maneira como tratam a população de rua e a simpatia unânime que as pessoas que encaminhávamos para lá manifestavam pelo lugar O fato é que a ingestão concomitante da bebida e a medicação fornecida nas consultas culminava em reações extremamente desagradáveis manifestadas pelos moradores de rua que encaminhávamos para atendimento nesse órgão. Outra proposta de encaminhamento que apresentou poucos resultados efetivos foi a implementação de um grupo de alcoólicos anônimos (A.A.) no nosso Centro de Acolhimento. É importante, no entanto, que se faça justiça aos representantes dessa irmandade. Durante os seis meses em que estiveram conosco, os palestrantes dos alcoólicos anônimos aplicaram esforços ilimitados na tentativa de conduzir moradores de rua à abstinência, através de seus exemplos e, principalmente, da crença indelével quanto à efetividade de seus métodos. A certeza e a confiança que trazem dentro de si acerca do poder regenerador da metodologia de alcoólicos anônimos são dignas de admiração. As reuniões de alcoólicos anônimos ocorriam às sextas-feiras no Centro de Acolhimento, das 8 às 9 horas da noite. Nesse dia, exclusivamente, a participação nas reuniões era obrigatória para os que desejassem dormir no nosso albergue. 142 A despeito da conotação despótica e coercitiva que esse tipo de estratégia possa carregar, alguns argumentos justificam, ao menos parcialmente, sua adoção. Invariavelmente às sextas -feiras, o anoitecer trazia terríveis expectativas para todos os funcionários do Centro de Acolhimento. Os tradicionais bailes e forrós do Largo da Concórdia - sempre fervilhando e empilhados de gente - e o fato de sexta-feira ser o dia em que muitos recebiam o pagamento pelos bicos realizados durante a semana eram fatores que contribuíam para triplicar o número de moradores de rua que chegava ao albergue num estado de embriaguez lastimável. Consequentemente, sexta-feira também era o dia em que ocorriam mais tumultos, brigas, desacatos e toda sorte de contravenções que levavam os educadores do período da noite literalmente à loucura. A opção de realizar a reunião dos alcoólicos anônimos na noite de sexta-feira não foi, por assim dizer, aleatória. A verdade é que não era nenhum sacrifício para os moradores de rua acompanharem, uma única vez na semana, a uma palestra cuja duração prevista era de sessenta minutos. Nas preleções que precediam às reuniões, reiterávamos que a participação no evento nada mais era do que uma contrapartida, uma vez que diariamente tolerávamos ocorrências causadas por frequentadores alcoolizados e que em qualquer outro albergue da cidade a grande maioria muito 143 provavelmente estaria excluída em virtude de tais transgressões. A intenção era que, com o passar do tempo e das reuniões, as pessoas pudessem se habituar e quem sabe até despertasse em alguma delas o estímulo para a abstinência. Devo confessar, no entanto, que nós mesmos não acreditávamos muito nisso. A metodologia de alcoólicos anônimos apresenta em alguns dos seus princípios e fundamentos básicos fortíssimas contraposições às características do morador de rua usuário de álcool. Desde o primeiro encontro, os palestrantes incentivavam os ouvintes a declarar, em alto e bom tom, sua condição de bebedores compulsivos, bem como reconhecerem a bebida como causadora do seu sofrimento. O estímulo a essa autoreflexão faz parte do “programa dos doze passos“, um dos pilares da metodologia de intervenção desenvolvida pelo A.A e que consiste no seguimento de doze diretrizes doutrinárias. A questão é que não passava pela cabeça de nenhum daqueles moradores de rua que o álcool representasse um problema em sua vida.Para eles, o uso da bebida era recreativo. Na verdade, aquela platéia não era composta por bebedores compulsivos - a que os palestrantes denominavam “alcoólatras” e que constitui a maior parte dos adeptos e seguidores da doutrina de alcoólicos anônimos - tampouco eram bebedores 144 típicos de uma “happy hour” de fim de tarde como convenientemente se julgavam ser. Outro recurso comumente utilizado nas reuniões e que inexoravelmente conduzia à frustração era o testemunho individual. Os palestrantes discorriam de maneira desenvolta e entusiástica acerca de suas histórias pessoais, das razões pelas quais se entregaram à bebida e de que forma angariaram a força de vontade que os libertou. Os testemunhos pessoais eram o componente didático principal das reuniões. Os palestrantes se esmeravam na declamação de seus depoimentos com a clara intenção de estimular junto aos moradores de rua o desejo de falar e compartilhar suas amarguras. Contudo, nem os mais inflamados e emocionados discursos motivavam qualquer manifestação da platéia. Nenhum aplauso, grito de incentivo, sequer uma piscada de olhos. Absolutamente nada acontecia. Costumeiramente, eu acompanhava tão somente a abertura das reuniões nas noites de sexta-feira como maneira de expressar meu apoio ao evento e deixar os palestrantes e participantes à vontade. Algumas vezes fazia uma pequena preleção ou reiterava alguns avisos. Passado esse momento, na maioria das vezes me recolhia ao meu escritório para assinar documentos, organizar gavetas e me dedicar a outros afazeres menos importantes e interessantes que usualmente eu deixava para o final do dia. 145 Como mantinha a porta do escritório sempre aberta enquanto as reuniões aconteciam, não podia deixar de reparar que os palestrantes dos alcoólicos anônimos repetiam seus depoimentos praticamente em todas as reuniões e que eram muito raras as intervenções dos participantes, salvo algumas discussões e desentendimentos que eventualmente ocorriam entre eles mesmos. Abordei esse assunto enquanto tomávamos um café ao final de uma das reuniões e com uma entonação de voz que misturava desânimo e resignação, um dos palestrantes exclamou, como uma desabafo : - Essas pessoas possuem uma enorme dificuldade para expressar seus sentimentos. O bem intencionado e prestativo amigo palestrante havia constatado algo muito relevante e que comprovava empiricamente a principal razão pela qual os métodos de alcoólicos anônimos não atingem agudamente à população de rua. Como já mencionado anteriormente, não é hábito comum entre moradores de rua desabafarem sobre seus passados e sua história com os companheiros, com exceção, talvez, àqueles mais próximos e com maior tempo de convivência. Para a maioria, contudo, a ação de falar de suas vidas pregressas traz à tona emoções incontroláveis, torna-os vulneráveis e expõe seu lado sensível e frágil. Fazer isso perante a uma platéia de 50 moradores de rua como se sugeria nas reuniões de alcoólicos anônimos significava um risco incomensurável e 146 poderia por em cheque a arduamente conquistada fama de durão.Era algo quase inconcebível. Como essa era uma situação que definitivamente não evoluía, com o decorrer do tempo as reuniões das sextas –feiras se tornaram falaciosas e um tanto quanto modorrentas. O fato de não haver qualquer indício de que alguém do grupo de moradores de rua se disporia a dar seu testemunho obrigava os palestrantes dos alcoólicos anônimos a repetirem os seus. As reclamações dos ouvintes eram calorosas, através das quais muitos deles expunham com veemência sua contrariedade em continuar comparecendo aos encontros . Os palestrantes dos alcoólicos anônimos manifestaram sua crença de que o silêncio que acometia os moradores de rua nas reuniões era proveniente do sentimento de desconfiança que nutriam para com eles, em razão de serem pessoas estranhas e que não faziam parte do seu ciclo de convívio cotidiano. Apesar de tal argumento não ser completamente desprovido de sentido, não correspondia, no entanto, à realidade. No intuito quase desesperado de fazer com que as reuniões apresentassem alguma efetividade, os representantes do AA recomendaram a inclusão de uma assistente social do Núcleo de Serviços, a quem os moradores de rua estavam completamente familiarizados e em quem os palestrantes depositavam a esperança - em vão como se pôde verificar logo em sua primeira participação – de 147 que alguma mudança ocorresse na introspectiva dinâmica dos eventos. A finalidade da implementação de um grupo de alcoólicos anônimos no Centro de Acolhimento não era a de ser uma penitência, implacavelmente imposta àqueles que se apresentassem para dormir embriagados, uma vez que funcionando nesses moldes em nada diferiria esse método de outras formas de castigo, provavelmente mais rudimentares, mas igualmente inócuas. A metodologia de alcoólicos anônimos, no que tange sua eficácia para população de rua, esbarra em outra questão crucial ocorrendo da mesma forma com o modelo de atendimento anteriormente analisado, o Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas. Trata-se da ausência de laços familiares. A família desempenhará junto ao indivíduo participante dos programas de reabilitação a fundamental tarefa de motivá-lo, enaltecendo seus avanços e conquistas, estimulando-o nos momentos mais difíceis, demonstrando confiança na sua capacidade de reabilitação e, principalmente, acolhendo-o numa eventual e provável recaída. Indivíduos que possuem o privilégio de contar com esse apoio indubitavelmente terão maiores chances de alcançar seus objetivos.Infelizmente, esse não é o caso da maioria da população de rua. Agregamos às alternativas de programas voltados ao controle do uso abusivo de álcool no Núcleo de Serviços uma abordagem de caráter experimental, que propunha trabalhar essa questão apresentando 148 estratégias metodológicas que fizessem frente às dificuldades observadas nas demais intervenções. Essa proposta havia sido desenvolvida pelo psicólogo Walter Varanda. Alguns anos antes, havíamos apresentado essa idéia na forma de um pequeno projeto a um departamento da Faculdade de Saúde Pública de São Paulo, mas não obtivemos retorno. Tanto sua implementação como sua execução, contudo, eram bastante simples, demandando um orçamento relativamente baixo e poucos recursos humanos e logísticos. O escopo do projeto preconizava a formação de um grupo pequeno de moradores de rua usuários de álcool ou drogas. Esse grupo seria estimulado a participar de um encontro semanal que ocorreria em um local de fácil acesso, preferencialmente na região central. Na reunião, o tema relacionado ao uso abusivo de bebidas alcoólicas e drogas seria abordado de uma maneira informal, deixando as pessoas à vontade e evitando que se confrontassem com o sentimento de culpa pelo uso da bebida, tampouco pressionando – as a se tornarem abstêmias da noite para o dia. As discussões deveriam ser abertas e poderiam ser debatidos quaisquer temas de interesse dos participantes, cabendo aos mediadores direcionálos oportunamente para o foco da intervenção. Tratava-se de um trabalho processual e gradativo, através do qual se vislumbraria acender centelhas 149 de consciência na mente do morador de rua acerca do problema. Recordemos que tal proposta pretendia desenvolver um trabalho específico junto a moradores de rua usuários de álcool ou drogas que não possuíam consciência dos malefícios desse hábito para suas vidas, justamente pelo fato de ainda estarem incólumes aos danos físicos e psicológicos mais sérios. Por essa razão, tratava-se de pessoas que julgavam não necessitar de qualquer tipo de orientação quanto a esse assunto e a quem a introdução demasiadamente direta de propostas que visassem sugerir a suspensão abrupta do uso da bebida seria certamente retaliada. Uma vez que as intervenções que haviam sido implementadas no Núcleo de Serviços e no albergue não atingiam a um determinado grupo de moradores de rua, era necessário introduzir outras. As reuniões de acompanhamento terapêutico foram introduzidas às quintas – feiras, no período da tarde, e foram convocados a participar alguns moradores de rua já bastante conhecidos por todos nós funcionários e cujo perfil entendíamos se enquadrar naquele descrito como o apropriado para esse tipo de abordagem. Por mais que a rejeição de muitos moradores de rua às intervenções apresentadas estivesse ligada diretamente ao não reconhecimento da sua própria condição de usuário abusivo de álcool ou drogas, alguns deles caminhavam lenta e inexoravelmente 150 para estágios mais avançados de degradação física e psíquica. O acompanhamento e monitoramento desses casos específicos pelos profissionais do nosso Núcleo de Serviços e albergue eram os principais objetivos das reuniões, mesmo que não preconizassem a reversão imediata de sua condição e de seus hábitos. Em que pesassem a resistência e a dificuldade de adaptação desse perfil de morador de rua às propostas apresentadas, o fato de frequentarem assiduamente nosso estabelecimento imputava a todos nós funcionários a obrigação de não sermos coniventes com sua autodestruição. 151 Cícero, o Macunaíma das ruas Nesse preciso momento, surge a oportunidade propícia para introduzirmos certo morador de rua conhecido como Cícero. Cícero cumprirá o importante papel de subsidiar todas as constatações sobre os programas de controle do uso abusivo de álcool e drogas anteriormente mencionados, já que se submeteu sistematicamente a todos eles em um período de seis meses. Cícero era a personificação de um ”Macunaíma das Ruas” com seu jeito debochado, malandro e acima de tudo autêntico. Tratava-se de um rapaz com pouco mais de trinta anos, negro de pele bem escura, dentes alvos apesar do hábito quase incontrolável do fumo, esquálido e de estatura mediana. Sempre que me via dentro do Núcleo de Serviços gritava meu nome, mesmo que não tivesse nada para falar. Era sua maneira de mostrar apreço. A questão era que Cícero bebia com uma intensidade que impressionava até mesmo seus companheiros de rua. Permanecia alcoolizado praticamente o tempo inteiro, diuturnamente. Não consigo me lembrar de encontrá-lo sóbrio em nenhuma ocasião, em seis meses de convivência quase diária. 152 A bebida já lhe infligia consequências. Seus olhos amarelados sugeriam alguma alteração hepática e era acometido de tremores constantes. Quando se embriagava excessivamente, envolvia – se em brigas que resultavam em olhos roxos e galos na cabeça, uma vez que seu porte físico não lhe ajudava muito nessas ocasiões. Em praticamente todos os relatórios de ocorrências do período noturno, nos quais constavam as aventuras vivenciadas pelos educadores que trabalhavam no albergue, Cícero era protagonista. Chegava sempre atrasado e discutia com os funcionários, levando-os quase à loucura com as mais inacreditáveis e insólitas justificativas e uma insistência perturbadora. Cícero imputava a culpa pelos seus atrasos a acidentes de trânsito, encontros casuais com parentes e até entidades sobrenaturais. Quando era pontual, metia-se em confusões. Em uma das mais memoráveis, arquitetou uma “tocaia noturna“ do lado externo do estabelecimento em parceria com outros dois beberrões. A intenção do trio era agredir com pedaços de pau um funcionário com que tinham tido algum tipo de altercação durante o dia. Coincidentemente, quando o funcionário passou por minha sala para se despedir, ao término do seu turno de trabalho, olhei para o relógio e percebi o adiantar das horas. Resolvi, então, acompanhá-lo. No exato momento em que abri o portão de ferro da entrada lateral, notei os três rapazes, liderados por Cícero,vindo em direção ao funcionário com tocos 153 de madeira nas mãos. Na verdade, me deparava com uma cena tragicômica. Os três estavam tão alcoolizados que os pedaços de madeira pesavam em suas mãos e faziam com que se desequilibrassem. Trôpegos, cambaleavam no asfalto molhado pela chuva fina que caia. Sequer foi necessária qualquer intervenção para cessar à tentativa de agressão, pois a própria condição em que se encontravam os agressores os impossibilitaria de concretizá-la. Por outro lado, foi necessário conter o funcionário, indignado por ser alvo de uma emboscada premeditada e repentina. Reconheço a abnegação dos educadores sociais do período noturno, que por meses suportaram as incontáveis transgressões de Cícero em respeito e solidariedade a uma proposta ideológica que priorizava o princípio de uma maior tolerância. Houve um período, no entanto, que Cícero estava na berlinda. As assistentes Sociais convocaram uma reunião, na qual estariam informando Cícero acerca do seu desligamento do albergue, uma vez que seu mau comportamento havia ultrapassado os limites aceitáveis e o fato de se apresentar todas as noites embriagado já implicava em riscos a sua própria segurança e a dos demais frequentadores. A minha participação nessa reunião deveria ser coadjuvante e tinha por finalidade dar respaldo à decisão das assistentes sociais. 154 No entanto, como em muitos outros momentos, frustrei às expectativas e declinei daquilo que, teoricamente, seria meu dever. Na sala das assistentes sociais, Cícero ouviu calado a tudo que lhe foi dito. Quando tomou a palavra, respondeu que não aceitava o fato de estar sendo acusado de beber demais e que fazia uso da bebida esporadicamente. Observei que ele dizia isso de forma convicta e segura, sem claudicar em nenhum momento, apesar de todas as “provas” que recaíam sobre ele como os relatórios que continham a descrição sumária de suas bebedeiras e a própria condição de embriaguez em que se encontrava naquele exato momento. Não se tratava de uma mera encenação, pois em momento nenhum se desculpou ou lamuriou como faziam quase todos quando se encontravam em situação semelhante. Contudo, demonstrava indignação e perplexidade, e parecia acreditar piamente que estava sendo vítima de um ato de injustiça. Ficava claro para mim que Cícero não tinha a menor consciência das implicações do álcool em sua vida. Como forma de remediar sua situação e tentar “salvá-lo” - considerando também que seria necessário e inevitável aplicar-lhe alguma medida disciplinar - propus às assistentes sociais que o mantivéssemos no nosso estabelecimento, caso ele concordasse em se integrar imediatamente a um programa de reabilitação. 155 Apresentamos a primeira das quatro intervenções a que Cícero se submeteria com o objetivo de controlar o uso abusivo do álcool. Embora contrariado, foi sensível em perceber que, na verdade, não teria muita escolha e que eu me esforçava para evitar o seu desligamento. Tratamos de acordar com ele sua permanência no albergue “em troca” da sua pronta adesão a sessões de atendimento no CRATOD. Seu ticket para entrar no albergue seria o atestado carimbado pelo médico daquele órgão confirmando sua presença. Esse arranjo foi feito sob os olhares afiados das assistentes sociais, que desejavam naquele momento consolidar o desligamento de Cícero e poupar os educadores noturnos dos tormentos causados pelas suas incontroláveis bebedeiras. Cícero passou então a frequentar o CRATOD da Bela Vista. Seguia para lá logo cedo, após o café, percorrendo a pé um trajeto que abrangia as ruas São Caetano, Senador Queirós, avenida Ipiranga, até chegar à rua Maria Paula, passando em frente à Câmera Municipal. Permanecia o dia inteiro sendo acompanhado pela equipe de assistentes sociais, médicos e psicólogos. No CRATOD, foi presenteado com um conjunto de calça e blusa de agasalho tingidos em um tom de verde fluorescente que o destacava da multidão a quilômetros de distância, dando-lhe a aparência de um vaga-lume ou um ser interplanetário. Cícero não tirava esse agasalho por nada e fazia questão de lavá-lo nos tanques do jardim do Núcleo 156 de Serviços três vezes por semana, deixando-o cada vez mais ofuscante pela ação da cândida. Todos as noites, após o horário de janta, Cícero passava pela minha sala para entregar o atestado carimbado pelo médico do CRATOD. Não dizia uma palavra. Simplesmente sacava o papel amarrotado do bolso da calça e entregava em minha mão. Através de seus olhos, porém, eu compreendia seu orgulho por ter conseguido manter sua palavra por mais um dia. Por mais que eu sugerisse que ele entregasse esse papel às assistentes sociais para que fossem anexados ao seu prontuário, não havia jeito. O acúmulo daqueles atestados me obrigou a separar um espaço dentre a bagunça das minhas gavetas para guardá-los. Apesar de Cícero gostar do CRATOD, o tipo de intervenção colocada em prática na tentativa de auxiliá-lo a controlar o uso de bebidas alcoólicas estava causando sérias alterações em seu organismo. Cícero recebia várias cartelas de comprimidos, cuja administração era feita por ele próprio no transcorrer dos dias. Certamente, os médicos lhe recomendavam que evitasse o consumo de bebida juntamente com a medicação e é provável que o alertassem sobre as consequências dessa perigosa combinação. No seu trajeto de retorno do CRATOD para o albergue, Cícero inevitavelmente se deparava com uma infinidade de bares, botecos e biroscas onde se pode adquirir uma pequena dose de pinga por 20 centavos, bem como encontrava com conhecidos 157 que não se furtavam em oferecer-lhe um gole ou uma rodada. Tais circunstâncias tornavam sua abstinência mais do que um desafio - consolidavam-na em uma injusta empreitada - e resistir a essa gama de explícitas tentações, naquele momento, era uma tarefa árdua demais para Cícero. A mistura do álcool com a medicação tinha um efeito nefasto e transformava-o num títere, impossibilitando-o de se locomover e falar e deixando-o num estado de prostração quase mórbido. A diferença para o seu habitual de embriaguez era que nessa condição não tinha forças para insultar ou para brigar. Arrastava-se pelas dependências do Núcleo de Serviços, balbuciava palavras incompreensíveis e chegava até a babar. Sua debilidade não o impedia, contudo, de escorarse nas paredes até alcançar o salão de eventos onde ficava minha sala e entregar - como um troféu - o atestado de presença do CRATOD. Tanto eu quanto os próprios educadores do período noturno, a quem Cícero tanto atormentara nos últimos tempos, concordávamos que preferíamos vê-lo sem o efeito dos remédios, por mais que nosso trabalho fosse redobrado. Observávamos que a intervenção colocada em prática pelo CRATOD não estava funcionando, uma vez que era impossível para ele ficar sem beber durante o tratamento. 158 Após algumas semanas, foi necessário que conversássemos com Cícero e o convencêssemos a interromper o tratamento no CRATOD, ao passo que lhe seria apresentado outro tipo de proposta mais adequado. Não foi tarefa fácil, pois, na sua cabeça, o tratamento estava surtindo efeito e ele não admitia em hipótese alguma que estivesse fazendo uso de álcool e medicamentos simultaneamente. Talvez não fosse conveniente para ele - ou realmente não fosse possível – recordar-se dos efeitos que o remédios misturados à bebida causavam em seu organismo. Como das vezes anteriores, Cícero só pôde ser convencido do contrário por conta de suas próprias e inadequadas ações. Em uma noite, mesmo sorumbático e entorpecido por conta dos coquetéis químicos que havia ingerido, Cícero foi capaz de agredir a outro morador de rua com uma cadeira de plástico em pleno refeitório do Núcleo de Serviços, causando lhe ferimentos de gravidade moderada. Por essa razão, seu nome voltou para a lista negra e mais uma vez ele estava na berlinda, sendo que uma nova assembléia foi convocada pelas assistentes sociais com a finalidade de decidir o seu futuro. Pela manhã, repetiram-se as formalidades e Cícero se encontrava novamente sentado na sala de atendimento social cercado por mim e pelas duas assistentes sociais. 159 Como um réu em um tribunal, ele estava postado de frente para o júri e para o homem de toga preta, apenas aguardando o pronunciamento de sua sentença. Nessa nova audiência, lhe expusemos a idéia de encaminhá-lo para uma “Casa de Acolhida”, uma Comunidade Terapêutica de longa permanência na qual ele passaria algum tempo participando de atividades de desintoxicação e cultivando hábitos mais saudáveis. Nesse local, não se utilizavam medicamentos, tampouco havia médicos ou outros profissionais de saúde. A indisposição de Cícero em aderir a essa nova proposta, no entanto, foi severa e imediata. Não queria de maneira nenhuma, mesmo que temporariamente, se afastar do círculo social e dos lugares com os quais estabelecera vínculos, ainda que perniciosos. Como sempre, no entanto, sua posição não era das mais favoráveis e coube a Cícero novamente se resignar e aceitar passar algum tempo numa Comunidade Terapêutica situada em uma fazenda na cidade de Jarinú , distante 140 km de São Paulo. Combinamos que ele seria levado no veículo da nossa Instituição na manhã do dia seguinte. O encaminhamento de Cícero para a Comunidade Terapêutica não seguia os princípios metodológicos adequados, uma vez que nem eu, muito menos as assistentes sociais, percebíamos nele a real intenção de se submeter a uma proposta daquela natureza. 160 Nas circunstâncias acima descritas, o procedimento de atendimento se assemelhava muito mais a uma punição do que uma intervenção propriamente dita, mas considerávamos que o caso de Cícero era de uma gravidade tão extrema que mesmo mediante tal constatação deveríamos colocá-lo em prática. Da maneira como se portava em relação à bebida, sua vida estava em risco permanente e o fato de morrer fora do Núcleo de Serviços em uma briga, uma queda ou um atropelamento não nos eximiria de responsabilidade. Vislumbrávamos a possibilidade de que ele se adaptasse rapidamente ao local, às pessoas e ações propostas e desfrutasse os benefícios que os novos hábitos iriam lhe propiciar. Na manhã em que foi encaminhado, provavelmente movido pela ansiedade e pelo temor em saber que seria levado para um lugar novo e desconhecido, Cícero consumiu uma quantidade tão grande de bebida que adormeceu profundamente no banco de trás da Kombi, permanecendo inconsciente durante todo o trajeto até a cidade de Jarinú. Três dias depois, recebi um telefonema interurbano no Núcleo de Serviços. Era o coordenador da Comunidade Terapêutica perguntando se Cícero havia ingerido alguma medicação antes ser encaminhado, pois mesmo após chegar ficou desacordado por mais de 48 horas. Seu sono era tão profundo que foi necessário que os funcionários do local se mobilizassem para o banharem e trocar suas roupas, sem que ele desse o menor sinal de vida. 161 Quando acordou - completamente confuso e desorientado - não fazia a mais remota idéia de onde estava. Desse jeito pouco usual iniciou-se o período de permanência de Cícero na Comunidade Terapêutica, que durou exatos cinco dias. Quando decidiu partir, também o fez em grande estilo. Cícero definitivamente era avesso a qualquer tipo de convenção ou vulgaridade. Voltou sozinho, com uma passagem de trem paga pela Comunidade Terapêutica. Num fim de tarde, eu o ouvi gritando meu nome pelo salão de eventos como sempre fazia e não me surpreendi. Era algo pelo qual eu já esperava. Quando perguntei o que havia motivado sua desistência prematura da Comunidade Terapêutica, Cícero não pestanejou: cigarro. Cintilando em seu inconfundível agasalho verde fluorescente, disse num tom sarcástico e pouco convincente que suportaria tranquilamente ficar mais alguns dias, talvez até algumas semanas, sem beber. Mas não sem fumar. Segundo ele, a abstinência decorrente da falta de nicotina estava lhe causando dores de cabeça insuportáveis e no local não davam aspirinas. Na mesma noite em que retornou de Jarinú, Cícero foi comemorar com os amigos e apareceu bêbado feito um gambá na entrada do albergue. Abraçado a dois comparsas, os mesmos que o acompanhavam quando planejou e executou a tocaia ao incauto funcionário algumas semanas antes, cantava animada e incessantemente o refrão 162 da mesma música, que soava como uma provocação aos educadores noturnos : - Eu voltei, agora pra ficar...Por que aqui, aqui é o meu lugar... O caso é que eu me encontrava de mãos atadas. Não se podia afirmar que Cícero não aderia às propostas de intervenção de controle do uso da bebida que lhe eram apresentadas, pois de fato isso não ocorria. Ele havia se submetido às duas propostas que lhe foram sugeridas e não houve resultados positivos em ambas as tentativas. No entanto, Cícero sabia muito bem como tirar proveito dessa situação. Era perspicaz em “jogar“ com essa justificativa quando cometia infrações influenciado por fartas doses de bebida. Dizia que havia feito tudo que fora orientado a fazer e absolutamente não era sua culpa se continuava a beber. Essa alegação lhe era muito conveniente, ao passo que não havia argumento contra ela e ao mesmo tempo lhe suprimia qualquer peso da consciência quando se embriagava. Cícero andava pelo Núcleo de Serviços orgulhoso, com ar empertigado e cheio de certa empáfia. Por conta disso, retomou rapidamente sua rotina de atrasos noturnos e brigas no albergue O terceiro programa de controle do uso de bebidas alcoólicas apresentado a Cícero foi provavelmente o que menos surtiu efeito e também o que mais lhe desagradou. 163 Era necessário agir, pois a situação estava se tornando incontrolável. Cícero não só passou a delegar autoridade à sua bebedeira como também tomava as dores dos demais beberrões. Se transformou em um porta-voz da categoria dentro do albergue. Eu percebia que, por trás de suas ações, havia também uma satisfação egoísta por finalmente gozar de algum prestígio e ser considerado popular pelos outros moradores de rua. Além das surras que levava constantemente, as bebedeiras acarretavam na exposição a situações de escárnio e constrangimento na rua. Numa delas, completamente embriagado, Cícero foi amarrado por outros moradores de rua a um poste de luz e por horas seu corpo foi utilizado como alvo para arremessos de garrafas de água, pedras e até sacos com urina. Apesar de compreendermos as razões que o levavam a agir com petulância era necessário interceder prontamente, antes que o seu comportamento abusivo contaminasse de tal forma os outros frequentadores a ponto de sermos obrigados a decretar estado de sítio naquele estabelecimento. Chamei Cícero para uma conversa, dessa vez sem a presença das assistentes sociais e em minha sala. Critiquei ostensivamente sua postura, ao passo que ele era plenamente consciente da minha intenção em ajudá-lo e se utilizava astuta e indevidamente da minha simpatia por ele. 164 Sem dar ouvidos às costumeiras ladainhas que ele retrucava, convoquei-o literalmente a participar das reuniões de sexta-feira à noite dos alcoólicos anônimos. Cícero detestava a idéia de falar em público. Tampouco com as assistentes sociais ou mesmo comigo se abria demasiadamente. Falar de seu passado, sua família e principalmente do seu pai, a quem demonstrava muito apego, era como cutucar feridas abertas e muito doloridas e isso lhe causava um sofrimento atroz. Por isso, Cícero odiava as reuniões noturnas das sextas-feiras. No entanto, fiz questão de deixar claro que a causa da obrigatoriedade da participação coletiva na reunião era o seu comportamento. Devo aqui reiterar a minha própria discordância com relação a esse tipo de imposição, mas as circunstâncias exigiam que se colocasse em prática alguma ação que fizesse Cícero descer do seu pedestal e recolocar os pés no chão. Para Cícero, frequentar as palestra dos alcoólicos anônimos era como caminhar descalço sobre brasas incandescentes. Ele me importunava terrivelmente desde a segunda –feira reclamando da reunião, que só aconteceria na sexta. Quando percebeu que suas lamentações não surtiriam efeito, começou a fazer uso de artimanhas de sabotagem dolosa e deliberada aos eventos. Nas reuniões, fazia galhofas e promovia tumultos durante a exposição dos testemunhos, além de 165 desafiar os palestrantes de punho em riste quando estes repetiam suas histórias de vida. De dentro da minha sala, furioso, eu podia ouvir seus disparates e incitamentos. Por outro lado, ao menos às sextas-feiras, tanto ele quanto os demais beberrões passaram a fazer uso mais moderado da bebida, pois sabiam que se chegassem excessivamente embriagados, a ponto de causarem transtornos, não assistiriam à reunião e automaticamente não poderiam dormir no albergue. Antes das reuniões iniciarem, eu e os palestrantes do AA cultivávamos o hábito de nos reunirmos em minha sala para discutir questões relativas ao andamento do programa, enquanto nos servíamos de café. Numa dessas ocasiões, Cícero invadiu intempestiva e inesperadamente a sala. Apoplécticos, os palestrantes ouviram-no bradar que não toleraria “enrolação“ na reunião daquela noite, e que se retiraria sem aviso prévio caso os palestrantes repetissem as mesmas “historinhas” de sempre. Da mesma forma que havia entrado, deu meia volta e seguimos com os olhos sua figura verde fluorescente cruzar a porta, a passos firmes e apressados. O recinto foi imediatamente tomado por um silêncio constrangedor. Ainda atônito, ofereci-lhes outro café. Para a felicidade de Cícero, as reuniões do AA se encerraram ao final do prazo de quatro meses conforme havia sido previamente combinado com os cavalheiros daquela irmandade. 166 As sessões prosseguiriam em outros locais para os poucos a quem essa metodologia de autocontrole surtiu algum efeito. Como derradeira alternativa de intervenção a ser apresentada a Cícero, restava justamente a que ele mais se adaptaria, e a meu ver, a única que gerou algum benefício, considerando as complexidades do seu caso. As reuniões de acompanhamento terapêutico ancoradas por Walter Varanda pressupunham a reversão de todos os princípios metodológicos que haviam falhado com Cícero. Pretendíamos que sua participação se tornasse espontânea à medida que percebesse que não seria cooptado a dar testemunhos, seguir regras, se afastar das pessoas e lugares aos quais estava acostumado ou mesmo abandonar o hábito da bebida da noite para o dia. A intenção, tampouco, era admoestá-lo, mas tentar compreender a natureza dos sentimentos que o compeliam a beber tão compulsivamente a ponto de não conseguir desfrutar de um momento sequer de lucidez. Cícero era um homem atormentado por lembranças e o álcool era um analgésico de ação instantânea para sua aflição. Não foi preciso muito esforço para convencê-lo a participar das reuniões, pois ocorriam dentro do Núcleo de Serviços e contavam com a participação de alguns poucos moradores de rua conhecidos por Cícero. 167 Walter iniciava a reunião abordando um assunto aleatório, que não tivesse qualquer relação com a bebida, e simplesmente intermediava os debates entre os participantes. A liberdade que tinham para falar e se expressar criava uma atmosfera amistosa no ambiente. A sensibilidade de Walter lhe indicava o momento exato de introduzir o assunto da bebida e, quando o fazia, já estavam todos tão descontraídos que a discussão prosseguia normalmente. Cícero era o que mais falava nas reuniões. Vez por outra descia ao jardim para fumar ou ficava algum tempo batucando na roda de samba. Mas sempre voltava. E a intenção naquele momento era precisamente essa. Que voltasse. O caso de Cícero ilustra de forma cristalina a complexidade da questão do uso de álcool e drogas dentro do universo da população de rua. É dever do Poder Público – e também das instituições – desenvolver trabalhos que estimulem a integração de moradores de rua a programas de controle do uso de bebidas alcoólicas e outras drogas. Cícero foi incentivado a aderir a diversos tipos de programas, até que se identificasse aquele que lhe fosse mais adequado, mesmo considerando que não seriam observados resultados em curto prazo. Não obstante o fato de apresentar resistência às intervenções propostas e manifestar sentimentos que indicavam a negação à sua própria condição de bebedor contumaz, as informações obtidas através 168 do seu diagnóstico social possibilitaram às equipes técnicas “garimpar” alternativas de atendimento que estivessem de acordo com sua condição. Tal fato reforça a importância do diagnóstico social minucioso e detalhado de cada indivíduo vinculado aos Núcleos de Serviços e albergues para a população de rua. Trata-se do mapa, do norte a ser seguido na elaboração de propostas de intervenção. Da mesma forma, o caso de Cícero demonstra que os vínculos afetivos desenvolvidos entre o morador de rua e a instituição se sobressaem às ações punitivas. Cícero não era uma pessoa ruim e distinguir caráter de comportamento era o grande desafio a ser vencido pelos educadores e técnicos que com ele conviviam. Tentávamos evitar que os atos de indisciplina desencadeados por suas bebedeiras acabassem por impedir que conseguissem separar o homem Cícero do frequentador Cícero. Cícero foi inúmeras vezes repreendido. Chegou a ter sua entrada suspensa em ocasiões nas quais suas ações transcenderam níveis aceitáveis. Mas em nenhum momento foi tratado como um “inimigo”, excluído, banido ou execrado pelo estabelecimento com o qual criara fortes vínculos emocionais. Talvez esse fato venha a se transformar, algum dia, no seu maior estímulo para conseguir controlar a bebida. 169 Nota final do autor Poucos dias antes da publicação dessa obra, chegou ao meu conhecimento uma triste e trágica notícia que me levou a inserir esse adendo em forma de nota final. Numa tarde de sábado, enquanto participava de um evento no albergue Estação Vivência, no Pari, Cícero sentiu-se mal e foi socorrido a um hospital da região por uma ambulância do SAMU. Infelizmente, não resistiu e faleceu na mesma noite. Seu sepultamento ocorreu no domingo e contou com a presença de seus familiares, inclusive de seu pai a quem ele tanto amava. Segundo depoimentos de pessoas que conviveram com ele em seus últimos dias, Cícero estava inchado e com dores generalizadas pelo corpo, consequências do consumo exagerado de bebidas alcoólicas. Cícero é apenas mais um dentre milhares de “Cíceros” que morrem diariamente, abandonados à própria sorte e vitimados pela negligência e omissão das autoridades com relação à questão do uso do álcool pela população de rua. Sua morte não causou alarde na imprensa e não chegou ao conhecimento da sociedade. No entanto, deixo aqui registrada sua rápida e sofrida passagem por esse mundo injusto. 170 Na última vez que o vi, sete meses após a minha saída do Núcleo de Serviços Casa Restaura-me, Cícero se aproximou sem que eu percebesse, quando eu chegava àquele lugar para uma visita. Encostou a boca bem perto da minha orelha e gritou meu nome, quase me causando um infarto. Quando me virei, deu uma gargalhada e me abraçou.Eu o abraçaria mais forte se soubesse que aquela seria a última vez. 171 Cícero, o Macunaíma das Ruas 172