Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário

Transcrição

Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário
Organizadores
Márcio Iorio Aranha
Sebastião Botto de Barros Tojal
Curso de Especialização a
distância em Direito Sanitário para
Membros do Ministério Público e
da Magistratura Federal
Programa de Apoio ao Fortalecimento do Controle Social no
SUS
Colaboradores
Adalgiza Balsemão
Alexandre Bernardino Costa
Ana Maria Malik
André Gomma de Azevedo
Antonio G. Moreira Maués
Augusto Cesar de Farias Costa
Cláudia Lima Marques
Cristiano Heineck Schmitt
Dalmo de Abreu Dallari
Deisy de Freitas Lima Ventura
Ediná Alves Costa
Universidade de Brasília
Faculdade de Direito da UnB
Núcleo de Estudos em Saúde Pública da
UnB/CEAM
Ela Wiecko Volkmer de Castilho
Eleonor Minho Conill
Heleno Rodrigues Corrêa Filho
Hugo Nigro Mazzilli
José Marcelo Menezes Vigliar
Márcia Flávia Santini Picarelli
Marcos Oliveira Sabino
Paulo Eduardo Elias
Sandro Alex de Souza Simões
Sebastião Botto de Barros Tojal
Sueli Gandolfi Dallari
Vera Regina Lorenz
Escola Nacional de Saúde Pública
FIOCRUZ
2
Consórcio Executor do Projeto de Capacitação de Conselheiros Estaduais e Municipais de Saúde e
Formação de Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal no âmbito do Programa
de Apoio ao Fortalecimento do Controle Social no SUS a partir de financiamento do Banco
Interamericano de Desenvolvimento e do REFORSUS:
Fundação Universitária de Brasília – FUBRA
Fundação de Ensino, Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Cooperação à Escola Nacional de Saúde
Pública – FENSPTEC
Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa – FUNDEP
Fundação de Desenvolvimento da UNICAMP – FUNCAMP
Instituições partícipes da concepção e oferecimento do Curso de Especialização a distância em
Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal:
Fundação Universidade de Brasília – UnB
Faculdade de Direito da UnB em conjunto com o Núcleo de Estudos em Saúde Pública
Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ
Escola Nacional de Saúde Pública
Coordenação Regional da FIOCRUZ em Brasília
Universidade de Brasília
Reitor: Lauro Morhy
Decano de Pesquisa e Pós-Graduação: Noraí Romeu Rocco
Coordenador de Apoio a Pós-Graduação: Fernando Jorge Rodrigues Neves
Coordenadora de Pós-Graduação Lato-Sensu: Luzia Maria Dias Carneiro Rodrigues
Faculdade de Direito da UnB
Diretor: José Geraldo de Sousa Júnior
Coordenadora de Pós-Graduação: Loussia Musse Felix
Coordenadores do Curso: José Geraldo de Sousa Júnior e Márcio Iorio Aranha
Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da UnB
Diretor: Nielsen de Paula Pires
Núcleo de Estudos em Saúde Pública da UnB
Coordenador: Martin Alberto Ibánez-novion
Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário
Diretor-Geral: Eliseu Alves Waldman
1º Secretário: Sueli Gandolfi Dallari
2º Secretário: Sebastião Botto de Barros Tojal
Instituto de Direito Sanitário Aplicado
Presidente: Elba Mantovanelli
Presidente do Conselho Superior: Lenir Santos
Fundação Oswaldo Cruz
Presidente: Paulo Marchiori Bruss
Escola Nacional de Saúde Pública da FIOCRUZ
Diretor: Jorge Bermudez
Vice-Diretor: Antônio Ivo de Carvalho
Coordenação Regional da FIOCRUZ em Brasília
Coordenadora: Fabíola de Aguiar Nunes
Coordenadora-substituta: Denise Oliveira da Silva
3
NOTA DE ESCLARECIMENTO
Este manual conceitual do Curso de Especialização a distância em
Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal está
formatado em sua versão preliminar, haja vista a compreensão de que será da interação
e da construção conjunta de cultura em direito sanitário ao longo do curso que surgirá
uma versão definitiva de publicação aglutinadora dos aspectos centrais de estudo em
direito sanitário.
Os textos constantes deste manual foram elaborados antes da publicação
da Norma Operacional de Assistência à Saúde – NOAS-SUS 01/2002, aprovada pela
Portaria no 373, de 27 de fevereiro de 2002, que prevê, dentre outras coisas: ampliação
das responsabilidades dos municípios na Atenção Básica; e atualização dos critérios de
habilitação de estados e municípios no SUS.
4
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
12
ESTRUTURA DO MANUAL
12
SISTEMA DE TUTORIA DO CURSO E RESULTADOS ESPERADOS
21
A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE E O DIREITO REGULATÓRIO DO ESTADO
SOCIAL: O DIREITO SANITÁRIO (Sebastião Botto de Barros Tojal)
24
1. Direito constitucional e teoria constitucional: ponto de partida de uma
reflexão científica
24
2. A Constituição de 1988: uma Constituição dirigente
25
3. A Constituição econômica diretiva imprimindo o caráter dirigente à
Constituição
26
4. Conceito de Constituição econômica
26
5. A ordem econômica da Constituição de 1988
27
6. Conclusões preliminares
27
7. A ordem social como item da Constituição econômica
28
8. O conteúdo das imposições de uma Constituição dirigente
29
9. A inteligência de uma Constituição dirigente
29
10. A garantia do direito à saúde, a seguridade social e a nova ordem social da
Constituição dirigente de 1988
30
11. O moderno direito sanitário como expressão legítima de um direito
regulatório, cujo fundamento é a própria Constituição dirigente
31
12. Questões subjacentes ao reconhecimento do caráter regulatório do moderno
direito regulatório.
32
13. Advertência final
DIREITO SANITÁRIO (Sueli Gandolfi Dallari)
39
41
1. Conceito de saúde pública
41
2. Saúde como direito e direito à saúde
45
3. Do direito à saúde ao conceito de direito sanitário
49
4. Autonomia científica do direito sanitário e sua interação com outras áreas do
conhecimento
53
5. Direito sanitário e o direito regulatório
57
6. Advocacia em saúde
60
EPIDEMIOLOGIA E SISTEMAS DE SAÚDE (Eleonor Minho Conill)
64
1. Introdução
64
2. Trajetória histórico-social dos saberes e das práticas em saúde
66
3. Expansão, crise, mudanças no modelo explicativo do processo saúde/doença e
na organização dos serviços de saúde: a epidemiologia a serviço de quem?
69
5
4. A epidemiologia no acompanhamento e avaliação de sistemas de saúde
73
Conclusão
76
Bibliografia
77
POLÍTICAS DE SAÚDE (Paulo Eduardo Elias)
83
1. Modelos assistenciais na história brasileira
83
2. A contra-reforma
84
3. Reforma sanitária brasileira e o modelo da contra-reforma
85
4. Políticas sociais e o papel do Estado nas políticas de saúde
87
5. Políticas públicas de saúde no Brasil e o financiamento da universalização dos
serviços
90
6. Gestão descentralizada do Sistema Único de Saúde e o controle social
7. Bibliografia
97
104
ÉTICA SANITÁRIA (Dalmo de Abreu Dallari)
106
I . Ética e Saúde: uma reflexão necessária
106
II. Ética e eticismo: variações e simulações em torno da ética
108
III. Ética e Sociedade
114
IV. Ética e Saúde
120
DIREITO, SAÚDE MENTAL E REFORMA PSIQUIÁTRICA (Augusto Cesar de
Farias Costa)
126
I – Introdução
126
II – Evolução do conceito de doença mental
127
III – Políticas de saúde mental no Brasil: a psiquiatria brasileira – da assistência
leiga à psiquiatria médica
131
IV – Reforma Sanitária, SUS e Reforma Psiquiátrica
135
V – Reforma Psiquiátrica e Reforma da Assistência Psiquiátrica
140
VI – A Reforma Psiquiátrica e a Saúde Mental
141
VII – As Conferências Nacionais de Saúde Mental
142
VIII – Os serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico
145
IX – Reforma Psiquiátrica: percurso político-institucional
146
X – A relação entre a Psiquiatria, o Estado e a Sociedade
148
XI – Imputabilidade, inimputabilidade e periculosidade
151
XII – Capacidade civil dos doentes mentais
153
XIII – A Reforma Psiquiátrica e a Lei 10.216, de 06 de abril de 2001 – o papel do
Ministério Público
155
XIV – Bibliografia
158
XV – Anexos
160
6
DIREITO SANITÁRIO DO TRABALHO E DA PREVIDÊNCIA SOCIAL (Márcia
Flávia Santini Picarelli)
170
1. Conceitos Básicos
170
2. Medicina do trabalho. Segurança do trabalho. Saúde ocupacional. Saúde do
trabalhador
172
3. Meio ambiente do trabalho. Transdisciplinaridade. Interinstitucionalidade.
Interprofissionalidade
173
4. Política de saúde do trabalhador no Brasil
174
5. Indicadores epidemiológicos para a saúde do trabalhador
175
6. O universo do não-trabalho: responsabilidade pelos desempregados,
autônomos e pelas pequenas e micro-empresas
176
7. Saúde do trabalhador na área do trabalho (Lei nº 6.514/77 e Portaria n
3.214/78, do Ministério do Trabalho)
177
8. Saúde do trabalhador na área da previdência social (Lei n 8.213/91 e Decreto
n 3.048/99)
178
9. Vigilância em saúde do trabalhador no SUS
179
10. Princípio da prevenção e CIPA
180
12. Acidentes do trabalho, prejuízos sociais e fatores multiplicativos
180
13. Aposentadoria especial
184
14. O papel dos Sindicatos e do Ministério Público do Trabalho na defesa do
Direito Sanitário do Trabalho
187
15. Direitos reprodutivos e capacitação trabalhista da mulher
189
16. Doenças e agravos do trabalho de notificação compulsória
191
17. Agrotóxicos e resíduos tóxicos
191
18. Bibliografia
192
TÓPICOS SOBRE A SAÚDE DO TRABALHADOR PARA A ATUAÇÃO DA
PROMOTORIA (Heleno Rodrigues Corrêa Filho, Marcos Oliveira Sabino e Vera
Regina Lorenz)
194
Processo Saúde/Doença no Trabalho
194
Medicina do Trabalho, Segurança do Trabalho, Saúde Ocupacional, Saúde do
Trabalhador
196
Meio ambiente do trabalho
198
Transdisciplinaridade, interinstitucionalidade, interprofissionalidade
202
Política de saúde do trabalhador no Brasil
203
O universo do não–trabalho: responsabilidade pelos desempregados, autônomos
e pelas pequenas e micro-empresas
205
Saúde do trabalhador na área do trabalho (Lei nº 6.514/77 e Portaria nº 3.214/78
do Ministério do Trabalho)
207
7
Saúde do trabalhador na área da previdência social (Leis 8.213/91, 8.212/91 e
Decreto n. 3048/99)
210
Vigilância em saúde do trabalhador no SUS
212
Princípios da vigilância em saúde do trabalhador (Portaria nº 3.120/98 do
Ministério da Saúde) (7)
215
Objetivos (Portaria nº 3.120/98 do Ministério da Saúde)
215
Saúde do Trabalhador e Normas Operacionais Básicas do SUS
217
Indicadores Epidemiológicos para a Saúde do Trabalhador
218
Princípio da Prevenção e CIPA
221
Acidentes do trabalho: prejuízos sociais e fatores multiplicativos
223
Aposentadoria especial
224
O papel dos sindicatos na defesa do Direito Sanitário do Trabalho
225
Direitos reprodutivos e capacitação trabalhista da mulher
228
Doenças e agravos do trabalho de notificação compulsória
231
Notificação Compulsória de Acidentes de Trabalho - quanto à abertura de
CATS – Comunicação de Acidente do Trabalho
232
Conclusão sobre obrigações legais
237
Agrotóxicos e resíduos tóxicos
238
Anexo I: Code du Travail (Código de Trabalho Francês)
245
ANEXO II: Textos de apoio
245
Bibliografia
250
VISÕES SOBRE OS PLANOS DE SAÚDE PRIVADA E O CÓDIGO DE DEFESA
DO CONSUMIDOR (Cláudia Lima Marques e Cristiano Heineck Schmitt)
255
Parte I – Campo de aplicação do CDC e Direito à Saúde (por Cristiano Heineck
Schmitt)
255
Parte II - Análise da relação da legislação de Defesa do Consumidor e da
legislação especial sobre planos privados de assistência à saúde (por Cláudia Lima
Marques)
278
Parte III – A nova legislação e o combate às cláusulas abusivas
304
Bibliografia
328
VIGILÂNCIA SANITÁRIA E PROTEÇÃO DA SAÚDE (Ediná Alves Costa)
332
I - Conformação da Vigilância Sanitária
332
II - Importância da Vigilância Sanitária para a saúde da população, do
consumidor e do ambiente
337
III – Instrumentos para a efetividade das ações de vigilância sanitária na
proteção da saúde
341
IV – Objetivos e funções da Vigilância Sanitária
345
V – O Sistema Nacional de Vigilância Sanitária
347
8
VI – Vigilância Sanitária de produtos
350
VII – Vigilância Sanitária nos portos, aeroportos e fronteiras
353
VIII – Vigilância Sanitária de serviços direta ou indiretamente relacionados
com a saúde
354
IX – Vigilância Sanitária do meio ambiente e ambiente de trabalho
355
X – Perspectivas para a construção da Vigilância Sanitária como ação de saúde e
expressão de cidadania
356
XI – Referências bibliográficas
CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA (Ela Wiecko Volkmer de Castilho)
356
360
1. Introdução
360
2. Bem jurídico e os crimes contra a saúde pública
360
3. Crimes contra a saúde pública no Código Penal e em legislação especial
362
4. Responsabilidade criminal, civil, administrativa e ato de improbidade
363
5. Características gerais dos crimes contra a saúde pública
364
6. O objeto material
367
7. O dolo
367
8. Impropriedades e inadequações da lei
368
9. Concurso de normas
368
10. Conclusão
369
11. Bibliografia
369
SAÚDE PÚBLICA E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (José Marcelo Menezes
Vigliar)
371
I – Introdução
371
II – Saúde pública: aspectos relevantes para o presente estudo
373
III – Saúde pública e sua proteção jurídica contra a prática de atos de
improbidade administrativa
376
IV – Hipóteses que podem caracterizar a realização de atos de improbidade
administrativa pelos agentes públicos da área de saúde. As sanções previstas e a
natureza dessas sanções.
378
V – Defesa da probidade administrativa em juízo: em especial, o papel reservado
ao Ministério Público
381
OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS: SUA DEFESA JUDICIAL E
EXTRAJUDICIAL (Hugo Nigro Mazzilli)
388
1. A defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos na esfera
administrativa e judicial
388
2. O inquérito civil
389
3. A natureza jurídica do inquérito civil
402
9
4. O alcance das atribuições do Ministério Público na área da notificação e da
requisição
403
5. O compromisso de ajustamento: conteúdo e eficácia
404
6. A ação civil pública
406
7. A legitimação e o interesse de agir em defesa de interesses transindividuais 407
8. O litisconsórcio entre órgãos estaduais e federais do ministério público
408
9. A possibilidade de transação na ação civil pública
409
10. Os ônus e o custeio da prova
410
11. O controle externo dos atos administrativos: limites entre a
discricionariedade e a legalidade
411
12. Bibliografia
412
O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO: UMA BREVE APRESENTAÇÃO DE
INOVAÇÕES EPISTEMOLÓGICAS EM UM MEIO AUTOCOMPOSITIVO (André
Gomma de Azevedo)
413
I. Introdução
413
II. Negociação: Conceito.
415
III. Tipos de negociação
416
IV. Técnicas de negociação
417
V. Conclusão
420
VI. Bibliografia
421
DIREITO PÚBLICO SANITÁRIO CONSTITUCIONAL (Antonio G. Moreira Maués
e Sandro Alex de Souza Simões)
422
1. A constitucionalização do direito sanitário
422
2. Caracterização do direito à saúde
423
3. Princípios constitucionais do direito sanitário
427
4. O conceito de relevância pública e o papel do Ministério Público
429
5. Estrutura legal do sistema único de saúde: competências das três esferas de
governo
430
6. A Lei Orgânica da Saúde (lei 8.080/90)
435
7. Normas Operacionais Básicas e Norma Operacional de Assistência à Saúde
439
8. A Lei 8.142/90 (o controle social do SUS)
442
9. Agência Nacional de Vigilância Sanitária
444
10 – Agência Nacional de Saúde Complementar
450
Bibliografia
451
PLANEJAMENTO, FINANCIAMENTO E ORÇAMENTO DA SAÚDE (Ana Maria
Malik)
453
1. Introdução
453
10
2. Descentralização e mudanças no modelo de assistência
455
3. Alterações no financiamento da saúde
458
4. A regulação
460
5. Conclusão
464
6. Bibliografia
465
COMPETÊNCIAS E ROTINAS DE FUNCIONAMENTO DOS CONSELHOS DE
SAÚDE NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE DO BRASIL (Adalgiza Balsemão) 467
1. Apresentação
467
2. Considerações Gerais
468
3. Registro cronológico das Conferências Nacionais de Saúde do Brasil
468
4. Participação da Sociedade Civil Organizada na Saúde do Brasil antes do SUS
– (CIMS / SUDS)
469
5. O SUS é aprovado pela Sociedade Civil Organizada na 8ª Conferência
Nacional de Saúde
470
6. O Controle Social no SUS através dos Conselhos de Saúde
470
7. Organização e Funcionamento dos Conselhos de Saúde
471
8. Regimento Interno
471
9. Estrutura dos conselhos
471
10. Periodicidade das reuniões
472
11. Registros das Reuniões dos Conselhos de Saúde
472
12. Quem são os conselheiros e como são escolhidos
472
13. Presidências dos Conselhos de Saúde
473
14. Comissões
473
15. Resolução 33/92 do CNS
473
16. Plenária de Conselhos de Saúde
475
17. Capacitação de Conselheiros de Saúde
475
18. Projeto Nacional de Capacitação de Conselheiros de Saúde
476
19. Principais questionamentos dos Conselheiros de Saúde aos membros do
Ministério Público nas Plenárias de Conselhos, Conferências de Saúde e cursos
de capacitação de conselheiros
476
20. O que as Conferências Nacionais de Saúde tratam sobre o papel do
Ministério Público
477
21. Considerações Finais
478
Bibliografia
478
DIREITO INTERNACIONAL SANITÁRIO (Deisy de Freitas Lima Ventura)
480
1. A questão da saúde num sistema internacional doente
480
2. Os atores internacionais na área da saúde
482
11
3. Os atores do comércio internacional e a saúde
486
4. A linha tênue entre o interno e o externo: o princípio da precaução
490
5. Saúde e integração: o mercosul convalescente
494
DOCUMENTOS INTERNACIONAIS
498
Declaração de Alma Ata
498
Carta de Ottawa para a promoção da Saúde
501
Declaração de Jacarta sobre Promoção da Saúde pelo Século XXI adentro
506
Carta do Caribe para a Promoção da Saúde
511
Carta de Bogotá
515
XI CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE
518
METODOLOGIA DE PESQUISA E ENSINO EM DIREITO SANITÁRIO
(Alexandre Bernardino Costa)
598
1. Introdução
598
2. Conhecimento científico
599
3. A hipercomplexidade da sociedade contemporânea
601
4. Projeto de pesquisa
604
Questões para reflexão
624
5. Bibliografia básica em metodologia da pesquisa
624
12
APRESENTAÇÃO
O Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para
Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal, que ora se apresenta, integra
o Programa de Apoio ao Fortalecimento do Controle Social no SUS do Ministério da
Saúde, operacionalizado a partir de financiamento do Banco Interamericano de
Desenvolvimento e do REFORSUS.
O modelo de Curso a Distância orientado a resultados representa o
molde ideal para a convivência mutuamente enriquecedora entre professores-autores,
tutores, consultores e alunos-partícipes. Neste formato de curso, o presente Manual
Conceitual se habilita a servir como base de leitura e reflexão para identificação das
abordagens fornecedoras do instrumental teórico necessário para a solução das questões
enunciadas no final desta apresentação.
A par do Manual Conceitual, o Curso conta com Manual de Atuação
Jurídica em Saúde Pública, que é disponibilizado em versão preliminar para críticas e
sugestões no portal do Curso, fornecendo uma visão operacional-prática de itinerários a
serem seguidos pelo partícipe para perfeito equacionamento da questão da gestão em
saúde no âmbito do SUS, possibilitando, como conseqüência, a formulação de
propostas estratégicas de abordagem dos problemas que insistem em prejudicar o bom
funcionamento idealizado nos princípios e diretrizes da Constituição Federal de 1988 e
da Lei Orgânica da Saúde. Tais deficiências evidenciam a constatação de que a solução
unicamente pontual das questões de saúde pode, em muitos casos, resultar em prejuízo
do interesse público tutelado. Busca-se, com este curso, fornecer os elementos
conceituais e práticos de organização da gestão do sistema de saúde no Brasil e de
abordagem ampla do direito sanitário nos seus mais diversos temas, principalmente
ressaltando-se a mudança de enfoque do modelo de atenção à saúde, antes centrado
numa visão clínica de casos e demandas isoladas, mas que, a partir do movimento da
Reforma Sanitária e, principalmente, da Constituição de 1988, exige uma visão
sistêmica de um conjunto de ações e de serviços de saúde sob a responsabilidade das
três esferas federadas.
A partir desta mudança de enfoque, mais voltado à formatação
participativa e descentralizada do Sistema Único de Saúde, questionam-se as estratégias
mais adequadas para atuação do Ministério Público, desde o acompanhamento da
definição sobre a organização da gestão do sistema e dos modelos de atenção à saúde,
para que o Membro do Ministério Público e o Magistrado Federal, conscientes do
contexto da saúde, possam estar mais aparelhados para exercer sua função de otimizar
o Sistema, mediante a reconstrução das culturas institucionais dos partícipes na
concretização do direito à saúde, dentre eles, o próprio Ministério Público, a Sociedade
representada nos Conselhos da Saúde, o Ministério da Saúde, as Secretarias estaduais e
municipais de saúde, os Legislativos nacional, estaduais e municipais e os Judiciários
federal e estaduais.
ESTRUTURA DO MANUAL
O texto de abertura deste Manual Conceitual, de Sebastião Botto de
Barros Tojal, intitulado ―A Constituição Dirigente e o Direito Regulatório do Estado
Social: o Direito Sanitário‖, introduz o leitor no âmbito do direito sanitário a partir da
compreensão da Constituição de 1988 como Constituição Dirigente em nítida
13
contraposição à concepção de Constituição como mero estatuto organizatório ou como
instrumento de governo. O texto constitucional é compreendido a partir de seu caráter
prospectivo, que aspira ―transformar-se num plano normativo-material global que
determina tarefas, estabelece programas e define fins‖, principalmente visualizado na
Constituição Econômica diretiva voltada à implementação de uma nova ordem
econômica e social tanto no âmbito da prestação de serviços públicos quanto no de
exploração de atividade econômica, inviabilizando, assim, uma mera interpretação
autárquica do seu texto e abraçando a atualização das categorias normativas na
perspectiva de sua imanência política. Expõe-se, enfim, o direito sanitário, neste
contexto de concepção constitucional, como direito regulatório acompanhado, portanto,
de características próprias a esse enfoque: perda pelo Poder Legislativo do monopólio
da função normativa; conseqüente déficit democrático; atos normativos do Executivo.
Todos eles revelam como condição de compreensão do direito sanitário a postura de se
partir de sua dimensão material, pois esta impõe a renovação das categorias de
interpretação constitucional para sua plena implementação.
Também voltado ao intuito de situar a temática central do Curso, o artigo
intitulado ―Direito Sanitário‖, de Sueli Gandolfi Dallari, apresenta noções
propedêuticas de saúde pública, mediante enunciado detalhado de sua
institucionalização histórica por intermédio dos diversos significados incorporados
pelos termos que denotam saúde, principalmente em face de sua aproximação dos
conceitos de ginástica e dieta, desde a antigüidade grega até os dias de hoje. Salientando
a mudança de perspectiva social sobre a saúde, ao verificar que o risco de contrair
doenças se sobrepõe ao da própria moléstia, transformando-a, de episódio individual, a
objetivo coletivo em razão da disseminação dos meios estatísticos, enfim, visualizando
a proteção sanitária como política de governo representada nas três formas clássicas de
prevenção – primária, secundária e terciária –, chega-se à concepção predominante
atualmente de estabelecimento de prioridades pelas estruturas estatais de prevenção
sanitária não mais em decorrência de dados epidemiológicos, mas em virtude de análise
econômica de custo-benefício. O direito à saúde é inserido no contexto de sua
construção social consubstanciada no preâmbulo da Constituição da Organização
Mundial da Saúde (―saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e
não apenas a ausência de doença‖) e, a partir daì, são identificados os elementos
essenciais ao conceito de saúde no equilíbrio interno do homem e deste com o meio
ambiente. As várias facetas jurídicas da saúde são esmiuçadas a partir de sua
identificação como direito humano – direito à saúde – e como parte do direito
administrativo – direito à saúde pública. Da junção de ambos surge o conceito
abrangente de direito sanitário com enfoque no estudo amplamente referenciado e
sistematizado da legislação sanitária nos continentes europeu e americano. A par disso,
o direito sanitário é analisado como ramo do conhecimento jurídico-acadêmico, subcampo do conhecimento científico, com leis próprias derivadas dos agentes e das
instituições que o caracterizam, evidenciando a superação da divisão entre ciência pura
e aplicada. Ao identificar o direito sanitário e o direito regulatório do Estado
Contemporâneo, a autora salienta o caráter democrático de sua normatização a partir da
colaboração do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS), do
Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), da Comissão
Intergestores Tripartite (CIT), do Conselho Nacional de Saúde e das Conferências de
Saúde, como também do Ministério Público como interlocutor privilegiado para o
exercício da advocacia em saúde. Esta, por sua vez, é elucidada a partir da visão geral
que norteia este Manual de instrumentalização da argumentação ténico-jurídica apta à
efetivação do direito à saúde.
14
A compreensão do desenvolvimento histórico dos modos de tomar
coletivamente a questão da saúde é dada por Eleonor Minho Conill no seu texto sobre
―Epidemiologia e Sistema de Saúde: fundamentos históricos e conceituais para uma
discussão sobre o acompanhamento de direitos na prestação de serviços‖. A história
de explicação do processo saúde/doença elencada neste texto demonstra a tensão
permanente entre as abordagens da medicina individual e da medicina coletiva,
revelando-se, na atualidade, uma herança indesejada de abordagem do direito à saúde
sob o enfoque do modelo organicista unicausal ou biomédico, tudo isto influenciando e
sendo influenciado pelas políticas de saúde adotadas no país. Para melhor
enfrentamento das questões de saúde, é necessário o estudo do significado do
planejamento em saúde, em que o acesso aos serviços e à assistência deixam de ser
vistos como questão individual ou de filantropia e passam a ser encarados de modo
coletivo, por meio de formas de financiamento mais ou menos solidárias. Entretanto, o
fato de a saúde passar, em determinado momento histórico, a ser encarada como um
problema de macro-planejamento também não resolve a questão do direito à saúde,
pois, se num primeiro momento, o conhecimento sobre a doença torna-se mais
importante do que a cura, num segundo momento, o nascimento da clínica proclama a
supremacia do diagnóstico, e, num terceiro momento, a visão de planejamento
econômico-financeiro transforma a questão da saúde em mera medição de índices
estatísticos em prol de um agir mecânico do Estado. Portanto, o conhecimento de tais
fatores auxilia a determinação dos novos dilemas da atenção à saúde, que teve de voltar
seus olhos para a importância dos fatores comportamentais e ambientais, enfim, para
uma perspectiva multicausal, em virtude da chamada transição epidemiológica do
ocidente de substituição da predominância das doenças infecto-contagiosas por doenças
crônico-degenerativas. Agora, há um conjunto de múltiplos fatores que devem ser
levados em conta para a promoção de qualquer política de saúde, que, a partir daqui, é
chamada à busca da integralidade e intersetorialidade, aliando-se promoção, prevenção
e cura. Qualquer que seja a mecanismo de controle que o Membro do Ministério
Público pretenda utilizar em face de uma deficiência do sistema de saúde verificada por
intermédio de casos concretos, deve ter presente a influência das mudanças de visão
pública da saúde e a adequação dos modelos de assistência preconizados por cartilhas
internacionais frente às peculiaridades brasileiras. O texto de Conill elenca propostas
para garantia da continuidade do SUS centradas na municipalização e na consolidação
de Sistemas Locais de Saúde por intermédio da estratégia da saúde da família. Assim, o
estudo da epidemiologia fornece o instrumental para a avaliação do Sistema Único de
Saúde e o texto explica os perfis de análise, o significado dos principais indicadores de
saúde, os parâmetros, a situação das normas operacionais no contexto das tentativas
para melhor acompanhamento e controle do sistema público de saúde, lançando mão de
sistemas de informações (SIM, SINASC, SINAN, SISVAN, SIAB), cuja atualização de
dados tem por responsáveis os integrantes do setor de planejamento de saúde do
município, que os consolida e integra em programações com metas pactuadas com que
se compromete aquela esfera de Governo.
Dado este passo, o passo seguinte diz respeito à elucidação da Reforma
Sanitária brasileira no cerne do tema de ―Políticas de saúde: Reforma e ContraReforma: algumas reflexões sobre as políticas de saúde no Brasil‖ de Paulo Eduardo
Elias. Este texto é o contraponto crítico que não pode faltar e que não sugere a adesão
do leitor ou a rejeição a seus postulados, mas contribui para ampliar o conhecimento
sobre as correntes e formas de abordagem capazes de levantar duras críticas ao sistema
em progressiva institucionalização, tais como a defesa de maior atuação direta do
Estado em detrimento do modelo adotado de assistência à saúde centrado nos subsídios
15
públicos à esfera privada do Sistema, como também a deficiência da forma de
financiamento do SUS – assunto a ser esmiuçado em artigo posterior –, apontando o
caminho dirigido à necessidade de intensificação do planejamento em saúde, que
fulmine a lógica vigente privilegiadora das ações curativas, drenando recursos públicos
para os serviços privados de saúde, sobretudo os hospitalares. A crítica central neste
texto reside na inadequação da atuação meramente financiadora do Estado para a área
da saúde; um financiamento não-redistributivista ainda apegado ao tradicional modelo
previdenciário, principalmente na ótica de privilegiar a assistência mais sofisticada em
detrimento dos procedimentos mais simples com maiores possibilidades de
universalização e de custo significativamente menor. O histórico da Reforma Sanitária
e dos modelos de gestão descentralizada da saúde no Brasil configuram o pano de
fundo destas argumentações.
A visão de conjunto dos fundamentos de direito sanitário é fechada com
as considerações de Dalmo de Abreu Dallari, no seu texto intitulado ―Ética em
Saúde‖. Conjecturando sobre o ―transitório‖ e o ―real e permanente‖ na convivência
humana, o autor questiona o atributo de progresso dado às novas possibilidades de
influir na natureza, em especial quando se apontam os programas de governo de
equacionamento de gastos com o desenvolvimento científico e tecnológico frente ao
atendimento de demandas sociais. Visualiza um quadro de mudanças e contradições
encabeçado pelo processo de globalização e evidenciado pelo crescimento das
discriminações, identificando, enfim, o estudo da ética como a tentativa de reação ao
quadro de ações ―anti-humanas‖ presente na visão de mundo do economicista, que
transparece a submissão de valores do ser humano, dentre eles, a saúde, a postulados
distorcidos de progresso. A ética é aqui encarada como a medida nas ―discussões sobre
os critérios para o uso, público ou privado, dos recursos materiais e intelectuais, sobre a
presença do Estado e o estabelecimento de políticas públicas, bem como sobre os
poderes, deveres e responsabilidades dos que mantêm algum poder de decisão sobre os
assuntos e problemas de interesse comum, questões que têm influência imediata ou têm
reflexo, às vezes muito grave, na consideração da problemática da saúde individual ou
coletiva‖.
A análise da proteção da pessoa humana na área da saúde não pode ser
melhor evidenciada do que no tema de ―Direito, Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica‖
tratado com profundidade por Augusto César de Farias Costa a partir da visão de que
a história da relação do ser humano com a loucura apresenta-se como a história da
tolerância para com a diferença entre as pessoas. Nele, o autor perfaz análise crítica do
modelo assistencial psiquiátrico brasileiro, enunciando a necessária junção dos esforços
para a preservação do direito à singularidade, subjetividade ou diferença, situando a
saúde mental como disciplina integradora dos saberes relativos à condição humana em
uma abordagem necessariamente mais ampla, que revela as diversas faces dos
problemas do modelo assistencial psiquiátrico vivenciado no Brasil. Sua constatações
atribuem importância à visão de conjunto que as ações do Ministério Público devem
ter. Nas palavras do autor: ―Este módulo de Saúde Mental no Curso de Especialização
em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público não é um estudo de Direito
Civil, de Direito Penal, de Psiquiatria Clínica e muito menos de Psiquiatria Forense.
Contudo, mais que simplesmente repassar preocupações, informações e conhecimentos
existentes na interface entre esses campos de conhecimento, pretende fomentar
reflexões que promovam a mudança do olhar sobre o louco e dessa maneira fortalecer a
atitude dos agentes de transformação social oriundos do campo jurídico que o
freqüentarem.‖ A análise é rica em conceitos, fornecendo tratamento aprofundado de
temas, tais como: doença mental versus saúde mental; políticas de saúde mental no
16
Brasil (assistência leiga versus psiquiatria médica); processo de publicização da
assistência psiquiátrica no Brasil; assistência manicomial versus psiquiatria preventiva
norte-americana (visão crítica de ambos os modelos); doença mental versus distúrbio
emocional; interdisciplinaridade e transdisciplinaridade no tratamento psiquiátrico;
tratamento biomédico de polarização entre loucura e sanidade; história da publicização
do tratamento psiquiátrico no Brasil; atribuição histórica de qualificativos sociais aos
loucos expressos nos termos irresponsabilidade, incapacidade, periculosidade e, nas
décadas de 1960 e 1970, lucratividade; estudo da relação Reforma Sanitária
(Municipalização da Saúde) – Reforma Psiquiátrica – SUS – Redemocratização;
modelos assistenciais da histórica brasileira no lidar com a loucura e novos serviços
substitutivos; articulação das novas formas de atenção à Saúde Mental com os demais
programas e serviços de saúde do SUS (Programa de Saúde da Família – PSF,
Programa de Agentes Comunitários de Saúde – PACS); Reforma Psiquiátrica e
Reforma da Assistência Psiquiátrica; assistência hospitalar médico-psiquiátrica versus
modelo assistencial de base territorial, comunitário e aberto, com ações de importância
e amplitude significativas (Centro de Atenção Psicossocial – CAPS, Núcleo de Atenção
Psicossocial – NAPS, CAIS-Mental, CERSAM, Oficinas Terapêuticas, Hospitais-dia,
Serviços Residenciais Terapêuticos, Centros de Convivência, inclusão da saúde mental
na Atenção Básica, Projetos de Intervenção Cultural, criação de Comissões nacional e
estaduais de Reforma Psiquiátrica e de Saúde Mental vinculadas às instâncias de
Controle Social do SUS, Lei 9.867 e suas Cooperativas Sociais); III Conferência
Nacional de Saúde Mental (III CNSM), de dezembro de 2001; tramitação e conquistas
da Lei 10.216/2001; análise verdadeiramente multidisciplinar – Psiquiatria Forense –
da imputabilidade, periculosidade e capacidade civil do doente mental. Finalmente, o
autor analisa o papel do Ministério Público frente à Reforma Psiquiátrica e a Lei
10.216/2001, atentando para iniciativas como as de Minas Gerais, que previu a criação
de juntas revisoras para suprir a deficiência oriunda da redação aprovada na Lei
10.216/01 no que dizia respeito à atuação do Ministério Público na constituição de
equipe revisora multiprofissional de saúde mental em razão da posição fundamental
que ocupa o MP na superação da cultura manicomial.
Em continuidade à explanação sobre a tutela da pessoa humana no setor
saúde, noções básicas de direito ambiental do trabalho são abordadas por Márcia
Flávia Santini Picarelli no ―Direito Sanitário do Trabalho e da Previdência Social‖.
Evidencia a posição de preeminência das questões relativas às moléstias profissionais e
aos acidentes no campo do direito do trabalho, apontando os problemas decorrentes do
sistema de tutela da saúde do trabalhador estar assentado na tarifação por adicionais de
insalubridade e de periculosidade e por aposentadorias especiais. Sua contribuição de
fundo está na compreensão da necessidade de abordagem não só das condições do
trabalhador isoladamente considerado, mas do ambiente do trabalho, elevando à
categoria de disciplina jurídica a antiga preocupação pontual sobre a saúde do
trabalhador. Com esta visão de conjunto, tópicos específicos são esclarecidos, tratandose do direito tutelar do trabalho, da saúde ocupacional, do meio ambiente do trabalho e
sua transdisciplinaridade, da relação epidemiologia – saúde ocupacional, da vigilância
da saúde do trabalhador no SUS, das NOBs frente à saúde do trabalhador, do princípio
da prevenção das CIPAS, dos acidentes de trabalho, da aposentadoria especial, da
capacitação trabalhista da mulher e de seus direitos reprodutivos, das doenças e agravos
de notificação compulsória, dos agrotóxicos e resíduos tóxicos, tudo a ressaltar o
caráter nitidamente sanitário das normas trabalhistas referentes aos riscos inerentes ao
trabalho. Aborda-se também a compreensão de que o alcance do direito ambiental do
trabalho é mais amplo que os casos de relação de emprego, atingindo todos que
17
trabalham ou simplesmente circulam nesse ambiente, independentemente da relação
jurídica entre trabalhador e empreendedor. Como complementação à divisão conceitual
implementada no texto anterior, Heleno Rodrigues Corrêa Filho, Marcos Oliveira
Sabino e Vera Regina Lorenz aprofundam com carga bibliográfica, de referência
normativa e jurisprudencial, os ―Tópicos sobre a Saúde do Trabalhador para a
Atuação da Promotoria Pública‖, ressaltando as pontes entre saúde do trabalhador,
saúde ambiental, defesa dos direitos do consumidor e saúde pública.
O item de defesa do consumidor é aprofundado no artigo de Cláudia
Lima Marques e Cristiano Heineck Schmitt, intitulado ―Visões sobre os planos de
saúde privada e o Código de Defesa do Consumidor‖, encarando as discussões sobre o
alcance da proteção jurídica do consumidor mediante ampla exposição conceitual de
figuras da seara das relações de consumo, nelas inserindo a saúde como direito. Das
questões suscitadas, os temas de aquisição de saúde em relações privadas, de
responsabilidade civil por danos decorrentes de prestação de serviços médicos, de
cobertura de planos privados de saúde, da não-incidência do CDC sobre os serviços de
saúde pública, dentre outros, sofrem ampla referência jurisprudencial. Enfim, dedica
amplo capítulo à verificação das relações entre a legislação de defesa do consumidor e
a legislação especial sobre planos privados de assistência à saúde, antecipando sintética
análise dos meios de que o Ministério Público pode lançar mão para defesa dos direitos
do consumidor, assunto organizado no texto de Hugo Nigro Mazzilli.
Esmiuçada a contextualização da saúde por seus enfoques temático,
constitucional, político, ético, enfim, humano, promove-se à compreensão dos
mecanismos de implementação da saúde inaugurado pela abordagem esclarecedora e de
síntese hercúlea sobre o tema da ―Vigilância Sanitária e Proteção da Saúde‖, de Ediná
Alves Costa. Autora de renome na área da vigilância sanitária, expõe com propriedade
as características deste ramo de atuação das políticas públicas em saúde e elucida a
importância de seu estudo para que a atuação de controle sobre – e com – o SUS possa
levar em conta todos os aspectos do problema da saúde, que não se resumem à questão
da gestão, mas sofrem influência também do ambiente de ordenação administrativa,
enfim, do poder de polícia, ações de controle sanitário do ambiente, dos alimentos, do
exercício da medicina e farmácia, bem como da produção, comercialização e consumo
de produtos, tecnologias e serviços pertinentes ao complexo saúde-doença-cuidadoqualidade de vida. As fontes de visualização da questão da vigilância são identificadas:
a) na medicina de Estado, que se desenvolveu inicialmente na Alemanha, de onde se
originou o conceito de polícia médica, e, com ele, a sistematização das questões de
saúde sob a administração do Estado; b) na medicina urbana, que se desenvolveu
particularmente na França do século XVIII e deu origem à noção de salubridade; c) na
medicina da força de trabalho, que, sem excluir as demais, e tendo incorporado o
assistencialismo, desenvolveu-se na Inglaterra. A partir deste conhecimentos, a autora
mune o leitor do arsenal teórico necessário à visão crítica do modelo institucional
brasileiro de vigilância sanitária em face de seu histórico isolamento das demais ações
de saúde e de ações de outros âmbitos setoriais com os quais tem interface, reduzindo-a
indevidamente à mera fiscalização e à função normatizadora, fato que deve ser
mudado, pois a deficiência do modelo brasileiro de cisão entre vigilância
epidemiológica e vigilância sanitária faz com que a primeira atue somente nas doenças
transmissíveis, esquecendo-se de subsidiar a atuação estatal de dados de doenças
pertinentes à qualidade de alimentos e de produtos, que muito influenciam as políticas
de saúde dinamizadoras do SUS por intermédio de movimentos iatrogênicos
indevidamente monitorados. A efetividade das ações de vigilância sanitária na proteção
da saúde são estudadas em capítulo específico, situando-se o Sistema Nacional de
18
Vigilância Sanitária – SNVS no Sistema Único de Saúde – SUS, principalmente em
face da ausência efetiva de uma Política Nacional de Vigilância Sanitária que a
articulasse de forma mais orgânica com as demais políticas de saúde.
Ainda voltado à implementação do Direito Sanitário, dois textos
abordam o Direito Penal Sanitário e a Improbidade Administrativa. Ela Wiecko
Volkmer de Castilho, em seu artigo intitulado ―Crimes contra a Saúde Pública‖ expõe
a sistemática do ordenamento jurídico brasileiro quanto à proteção do bem jurídico
saúde em suas tipicidades, tanto no Código Penal, quanto em legislação especial,
anotando a raridade de condenações por dano ou perigo à saúde mental e demonstrando
a evolução na criação da categoria de crimes contra a saúde pública como subclasse dos
crimes contra a incolumidade pública. Os tipos penais contra a saúde pública são
minudenciados em algumas de suas características mais marcantes, às vezes, constantes
em relação ao sujeito passivo (crimes vagos) e à técnica de definição (normas penais
em branco; criminalização de condutas de perigo; qualificação pelo resultado). A
análise dos crimes contra a saúde pública apresenta, enfim, considerações sobre as
peculiaridades das tipificações penais referentes à saúde, com estudo pontuado nas
classificações dos crimes previstos a influenciar o tipo de prova a ser realizada no
competente processo penal, bem como estuda seus elementos e idiossincrasias, tais
como: objeto material; dolo; impropriedade e inadequação da lei; concurso de normas.
Dita visão do modelo legislado penal para a saúde pública é complementado pela
análise de Marcelo Vigliar, no seu artigo intitulado ―Saúde Pública e Improbidade
Administrativa‖, eminentemente qualificada pelo enfoque prático de como o Membro
do Ministério Público, vendo os problemas da área de saúde, pode resolvê-los,
formatado em linguagem de maior intimidade com o leitor confidente do itinerário a
seguir para a devida formatação de novas áreas de conhecimento jurídico como é a área
da saúde. Propõe o itinerário de detecção do significado da saúde pública, resultando na
compreensão íntima da relação existente entre saúde pública e o princípio da
improbidade administrativa, para, em seguida, estudar o bem jurídico saúde pública e
sua implicações com a prática de atos que venham a ferir o princípio ético da probidade
administrativa, mediante análise detalhada da Lei 8.429/92 e do papel do Ministério
Público, finalmente concluindo que temas como a gestão de recursos públicos para a
saúde, a necessidade de oferta do competente e eficaz serviço público de saúde, a não
omissão das políticas públicas em relação a epidemias, todos são temas afetos ao
campo da Lei 8.429/92.
Hugo Nigro Mazzilli aprofunda, em seguida, a precisão conceitual dos
interesses transindividuais ou coletivos em sentido amplo, esmiuçando os conceitos de
direitos coletivos em sentido estrito, de direitos difusos e de direitos individuais
homogêneos. Seu artigo, intitulado ―Os interesses transindividuais: sua defesa judicial
e extrajudicial‖, contempla, mediante ampla referência doutrinária e jurisprudencial, as
formas e limites de atuação do Ministério Público na ação civil pública, no inquérito
civil e no cabimento de compromisso de ajustamento, enfim, fornece base sólida de
análise dos mecanismos de defesa de quaisquer interesses transindividuais e das
peculiaridades de atuação e competência do Ministério Público nesta seara.
Como complemento da abordagem instrumental à atuação do Ministério
Público, o texto intitulado ―O processo de negociação: uma breve apresentação de
inovações epistemológicas em meios autocompositivos‖, de André Gomma de
Azevedo, situa o leitor no tema das técnicas de negociação para um setor cuja
complexidade institucional exige a interação de interesses protegidos pela atuação do
Ministério Público, abarcando os tipos e técnicas de negociação com intuito de solução
de disputas.
19
A questão do financiamento em saúde não pode deixar de vir inserido
em sua apresentação constitucional, que é dada por Antonio G. Moreira Maués e
Sandro Alex de Souza Simões no ―Direito Sanitário Constitucional‖ apoiado na
análise da eficácia constitucional da saúde, enriquecida por casos de acessos
particularizados a medicamentos e a procedimentos, ressaltando-se a relação entre o
direito à saúde (individualizado) e o planejamento orçamentário e sua efetivação. A
par dos princípios constitucionais de direito sanitário e do conceito de relevância
pública associados ao papel do Ministério Público, são analisadas as três esferas de
governo frente ao modelo do Sistema Único de Saúde, cujos avanços previstos na Lei
Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90, com as complementações da Lei 8.142/90), bem
como nas Normas Operacionais Básicas (NOBs) e da Norma Operacional de
Assistência à Saúde (NOAS), apresentam-se tributárias de um olhar histórico de
progressiva implementação do SUS e das disposições constitucionais pertinentes. O
direito à saúde é visto, neste contexto, como um direito de caráter meta-individual e
meta-familiar: um direito de caráter de política pública preventiva. Dá-se especial
atenção ao papel do Ministério Público na promoção dos mecanismos de controle,
principalmente dirigido à atuação dos Conselhos de Saúde, mediante incentivos à sua
organização nas diversas localidades do país e ao acompanhamento de suas atividades
por intermédio da utilização de procedimentos judiciais e extra-judiciais para o
cumprimento das decisões dos Conselhos pelos gestores do sistema, finalizando com a
recente abertura ao controle social nos campos de polícia sanitária e de saúde
suplementar, mediante as previsões legais de conselhos consultivos da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Lei 9.782/99) e da Agência Nacional de Saúde
Suplementar (Lei 9.961/00).
O texto de Ana Maria Malik intitulado ―Planejamento, financiamento e
orçamento da saúde: alterações no Sistema Único de Saúde nos Anos 90 – A Reforma
da Reforma‖ aprofunda, com seriedade e rica referência estatìstica, a mudança de
enfoque do Sistema de Saúde brasileiro com a Constituição Federal de 1988, avaliando,
passo a passo, as transformações das Normas Operacionais Básicas da Saúde frente ao
modelo de financiamento do SUS. A universalização é analisada sob um enfoque
responsável e detalhado de financiamento face à variação do modo de incentivo
financeiro adotado nas políticas de saúde das Normas Operacionais Básicas e da NOAS
(formas de repasses, suas condições e mudanças advindas da EC29/2000), bem como
frente ao instrumento de consórcio intermunicipal previsto nas Leis 8.080/90 e
8.142/90, voltado à viabilização da pretendida atuação integrada. A questão do repasse
fundo-a-fundo é inserida identificando-se a responsabilidade sobre a movimentação de
conta específica dos recursos do Sistema de Saúde pelo gestor em meio à fiscalização
do Conselho de Saúde pertinente. Toda a problemática de financiamento do SUS não
está, no entanto, restrita à visão de operacionalização do atendimento, abordando,
também, a política de financiamento a partir dos preços dos medicamentos e da política
de vigilância correspondente à introdução dos genéricos, bem como de outras
intervenções no mercado significativas para a saúde em relação às políticas de gastos
do SUS.
O artigo de Adalgiza Balsemão, intitulado ―Competências e rotinas de
funcionamento dos Conselhos de Saúde no Sistema Único de Saúde do Brasil‖,
apresenta ao leitor como o sistema de saúde interage no seu ideal de descentralização,
mediante histórico preciso da progressiva participação da Sociedade Civil Organizada
na promoção do sistema de saúde brasileiro a partir das conquistas das Conferências
Nacionais de Saúde, evidenciando a peculiaridade do subsistema jurídico da saúde em
face de sua produção envolvida no controle social implementado pelos Conselhos de
20
Saúde, bem como dos problemas verificados na viabilização da experiência dos
Conselhos em todo o país. O itinerário do funcionamento dos Conselhos é esmiuçado
por quem vivencia diariamente este desafio e, a par de fornecer ao jurista a
compreensão do funcionamento efetivo dos Conselhos, a autora faz transparecer aos
operadores jurídicos os principais questionamentos dos Conselheiros de Saúde aos
Membros do Ministério Público nas Plenárias de Conselhos e nas Conferências de
Saúde. Ao debruçar-se sobre este artigo, o jurista, e principalmente o Membro do
Ministério Público vê em que medida sua atuação é esperada e desejada por quem
operacionaliza um vasto e complexo sistema de saúde, cujos óbices podem ser, ao
menos em parte, superados por intermédio da atuação diligente do Ministério Público e
da receptividade destas questões pelo Judiciário.
Chegado, enfim, ao último texto deste Manual, Deisy de Freitas Lima
Ventura, em artigo intitulado ―Direito Internacional Sanitário‖, assevera a evidência
do direito sanitário como ramo especialmente atingido pela internacionalização, por
isso demandando destaque ao direito internacional sanitário, que apresenta, em face da
complexidade e difusão do seu objeto, dificuldades de regulação por parte do modelo
tradicional e limitado do Estado-Nação. De forma percuciente, o estudo identifica os
atores internacionais na área da saúde – OMS, OIT, UNICEF, UNESCO, FAO –, bem
como em área correlata – OMC –, mediante análise dos principais tratados que
interessam à saúde e a análise, com profundidade, da constituição, funções, alcance e
formas de atuação daqueles organismos internacionais. Capítulo específico é destinado
ao esclarecimento do princípio da precaução e de sua adequação aos temas de saúde,
aplicando-se seu enunciado de que, frente à incerteza científica, poder-se-ia restringir o
comércio, tendo-se em vista a reação internacional à sua aplicação em face de narrativa
de incidentes envolvendo os Estados Unidos da América. O artigo finaliza com capítulo
dedicado a fornecer uma visão compreensiva e prospectiva do MERCOSUL e da
atuação da União Européia, revelando ao leitor os interesses dos blocos e as normas
pertinentes à saúde pública.
Seguem-se ao texto de Deisy Ventura os principais documentos
internacionais relativos à proteção da saúde, bem como uma leitura obrigatória para o
jurista seriamente compromissado em conhecer as atuais demandas de saúde no Brasil:
o relatório da XI Conferência Nacional de Saúde.
Finalmente, no texto intitulado ―Metodologia de Pesquisa e Ensino em
Direito Sanitário e Monografia‖, Alexandre Bernardino Costa enfatiza a relevância
da postura do pesquisador em face do ganho de complexidade da sociedade atual,
enfrentando, para tanto, o conceito de conhecimento científico, bem como propostas
como a de paradigmas, de Thomas Kuhn, dentre outros elementos básicos aptos a
auxiliar a elaboração do projeto de pesquisa e a redação da Monografia Final de Curso.
A compreensão de que a realidade científica, antes compartimentada e incomunicável,
gerando, com isso, a fragmentação do saber, não pode mais se furtar a conhecer o
mundo circundante social e plural é significativa no contexto do esforço de estudo das
realidades setoriais como a da saúde.
O seqüenciamento dos textos é abrangente e multifacetado para
possibilitar a visão de conjunto demandada pelo setor saúde e pelo Ministério Público,
sem se descuidar do fato de que tais textos fornecem uma visão de conjunto, que
situado meramente no plano teórico, é somente o primeiro passo à mudança de
perspectiva sobre a saúde. Dito desiderato somente pode ser alcançado mediante
instigação da reflexão por intermédio da busca de soluções para casos concretos,
procedimento que orienta a forma de interação partícipe-tutor e que contribuirá, em
face da qualificação específica do alunado, para o aprofundamento dos temas
21
levantados com base no Manual de Atuação Jurídica em Saúde Pública disponibilizado
na página de internet do curso.
SISTEMA DE TUTORIA DO CURSO E RESULTADOS
ESPERADOS
À semelhança dos cursos presenciais, o curso a distância não tem a
pretensão de esgotar o conteúdo da disciplina e o processo de enriquecimento do
conhecimento dos alunos e dos professores mediante as aulas aqui representadas pelos
artigos. Formatos tradicionais de ensino a distância produto de esquematização gráfica
voltada à salientar os conceitos mais relevantes e explicar os termos utilizados pelos
autores são mais adequados para um público neófito na área de estudo almejada. A
condição dos partícipes do curso – Membros do Ministério Público e Magistrados
Federais – revela que a abordagem mais adequada das didaticamente possíveis em
cursos a distância é a do direcionamento por resultados.
O modelo adotado do ensino a distância, conquanto permita maior
autonomia do partícipe na definição de horários, não perde sua característica de
exigência de esforços, que são medidos e incentivados por um grupo de tutores
especialistas em direito sanitário. Cada partícipe tem identificado um(a) tutor(a)
disponível nas salas de tutoria semanalmente e, sempre, do início ao fim do curso, por
via eletrônica, para a solução de questões referentes ao andamento do curso e instrução
da melhor forma de manuseio dos instrumentos de pesquisa disponibilizados no site do
curso.
Durante o Curso, as exigências de avaliação acadêmica consubstanciarse-ão em duas provas presenciais e na solução de casos a serem enviados, mediante
confirmação de recebimento, pela tutoria, até as datas máximas fixadas, que serão
julgados com base no sistema de menções da Universidade de Brasília, cuja média
mínima consiste em 50% de preenchimento das expectativas geradas. Ditos trabalhos
deverão ser elaborados a partir das seguintes questões enunciadas abaixo, consistindo
em argumentação que transpareça a troca de experiências com conselheiros de saúde e
gestores, visando, com isso, a identificação dos instrumentos jurídicos mais adequados
e a forma de abordagem mais coerente para solução do quadro diagnosticado. A par do
alcance da menção mínima em cada prova e nas questões respondidas sobre os textos
deste manual, caberá ao partícipe a defesa presencial de Monografia Final de Curso
sobre tema relevante de direito sanitário, que evidencie a aplicação do conhecimento
acumulado durante as interações entre alunos, consultores, orientadores e tutores na
formatação de estratégias de atuação do Ministério Público para otimização de sua
função no fomento do SUS.
A seguir, dois casos a serem construídos por cada partícipe ao longo do
curso e que serão complementados com outros exercícios a serem encaminhados pelos
tutores.
1) A partir da verificação freqüente em todo território brasileiro de deficiências no
âmbito da assistência à saúde, tais como problemas apontados nos
procedimentos, nos exames, nos atendimentos, na falta de medicamentos, de
leitos hospitalares, de insumos em geral, de higienização hospitalar adequada,
de profissionais de saúde ou de profissionais bem treinados, bem como de má
administração de escalas de funcionários, dentre outros, analise, a partir da
experiência vivida na sua região de atuação, os diversos pontos críticos a serem
22
enfrentados pelo Membro do Ministério Público sob o duplo enfoque –
individual e de saúde pública – tendo por itinerário mínimo exemplificativo os
seguintes tópicos: a) quem demanda? O indivíduo ou o conselho de saúde?; b)
há alguém claramente identificado como responsável pela saúde no Município?;
c) há plano municipal de saúde? Ele contempla estudos comparativos de
necessidades e de oferta de serviços de saúde?; d) há estudo epidemiológico no
Município não restrito à identificação das doenças, mas voltado também à infraestrutura e à organização do serviço?; e) há convênios de distribuição de
funções entre os Municípios?; f) há uma rede básica de atendimento com
sistema de referência e contra-referência para assistência de média e de alta
complexidade?; g) o problema enfrentado tem previsão de aplicações
correspondentes na LDO, na LO e no PPA?; h) como evitar a reincidência e a
conseqüente proliferação das demandas pontuais reveladora de persistência do
problema?; i) a questão colocada envolve outros níveis federados?; j) qual o
perfil do Município frente à distribuição de assistência? Por exemplo, o
Município é ativo ou passivo? Absorve demandas de assistência à saúde dos
Municípios vizinhos?; k) que tipo de coligação viável pode ser construída com a
atuação do Conselho de Saúde?; l) de que meios de atuação o Membro do
Ministério Público pode lançar mão, levando-se em conta o panorama geral
atingido a partir da verificação dos pontos precedentes?
2) A realidade da maior parte dos Municípios brasileiros, em geral de pequenas
dimensões, revela a convivência diária com o problema da inexistência de
assistência local de alta complexidade. Que exigência relativa à
operacionalização da transferência de seus munícipes podem ser apontadas
como deveres da Prefeitura? Que pontos devem ser enfrentados pelo Membro
do Ministério Público para o devido equacionamento da questão, levando-se em
conta, a título exemplificativo, a abordagem mínima dos seguintes tópicos: a)
Que tipos de atuação indevida são encontradas na prática? Exemplos:
fornecimento de vale-transporte para que o doente acesse o hospital da cidade
mais próxima; ambulância da Prefeitura depositando o doente na porta do
hospital da cidade com assistência de alta complexidade e abandonando-o lá; b)
Há unidade de saúde no Município?; c) Quais as iniciativas de gestão viáveis,
levando-se em conta também a hipótese do Município receptor de doentes ser
de outro Estado da Federação? (Abordagem das Câmaras de Compensação e
dos Consórcios entre Municípios); d) Que foros de negociação devem ser
pesquisados e em que situações? Por exemplo: hipóteses de malversação de
recursos da saúde, de boicote político de repasse de recursos, dentre outras; e)
Nas mesmas hipóteses, como articular a atuação do Ministério Público nas
unidades em que há divisão interna de funções entre órgãos encarregados da
saúde e da proteção do patrimônio público? f) Detectadas deficiências de
alocação orçamentária municipal na área da saúde, aborde a discussão de se o
Ministério Público pode interferir na discriminação orçamentária dadas as
peculiaridades da saúde, como, por exemplo, a autonomia de remanejamento de
parcela dos recursos orçamentários da saúde pelos Municípios.
Munido das fontes conceituais e operacionais de pesquisa e do arsenal
teórico-jurídico pressuposto a um Membro do Ministério Público e da Magistratura
Federal, espera-se que este passo de confluência de esforços para o fim comum de
promoção da saúde pública brasileira seja apenas mais um no caminho de uma efetiva
23
problematização deste tema fundamental. Boa sorte a todos nós, que caminharemos
juntos neste processo de aprendizado recíproco.
A Coordenação.
24
A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE E O DIREITO
REGULATÓRIO DO ESTADO SOCIAL: O DIREITO
SANITÁRIO1
(Sebastião Botto de Barros Tojal)
Sebastião Botto de Barros Tojal
Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP
ÍNDICE
1. Direito Constitucional e Teoria Constitucional: ponto de partida de uma
reflexão científica. 2. A Constituição de 1988: uma Constituição dirigente. 3.
A Constituição Econômica diretiva imprimindo o caráter dirigente à
Constituição. 4. O conceito de Constituição Econômica. 5. A ordem
econômica da Constituição de 1988. 6. Conclusões preliminares. 7. A ordem
social como item da Constituição Econômica. 8. O conteúdo das imposições
de uma Constituição dirigente: o caráter vinculante das constituições
dirigentes transcende a realização infraconstitucional das normas
programáticas constitucionais para acolher também a própria atuação
econômico-social do Estado. 9. A inteligência de uma Constituição dirigente.
10. A garantia do direito à saúde, a seguridade social e a nova ordem social
da Constituição dirigente de 1988. 11. O moderno direito sanitário como
expressão legítima de um direito regulatório, cujo fundamento é a própria
Constituição dirigente. 12. Questões subjacentes ao reconhecimento do
caráter regulatório do moderno direito regulatório. 13. Advertência final.
1. Direito constitucional e teoria constitucional: ponto de partida de
uma reflexão científica
Ensina o constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho que
a inteligência da Constituição deve buscar um ―conceito constitucionalmente
adequado‖. Nas suas próprias palavras, a ―compreensão de uma lei constitucional só
ganha sentido útil, teorético e prático, quando referida a uma situação constitucional
concreta, historicamente existente num determinado paìs.‖2
Note-se que semelhante abordagem não quer significar sob nenhuma
hipótese, como poderia passar aos menos avisados, uma leitura positivista, dogmática,
da Constituição, pois, em realidade, o que se busca é a Constituição real, expressão do
político, como, aliás, esclarece outro não menos emérito constitucionalista português,
Jorge Miranda.3
É o texto constitucional, por conseguinte, que deve guiar a construção do
conhecimento constitucional, cabendo à teoria da Constituição a função hermenêutica.4
1
Este texto foi escrito a partir de dois trabalhos de minha autoria, o primeiro intitulado ―Constituição
Dirigente de 1988 e o Direito à Saúde‖, in Os 10 anos da Constituição Federal, organizado por
Alexandre de Moraes, Editora Atlas, São Paulo, 1999 e ―Controle Judicial da Atividade Normativa das
Agências Normativas‖, a ser publicado proximamente.
2
Direito Constitucional, Coimbra, Almedina, 1991, p. 80.
3
Manual de Direito Constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, volume I, tomo II, 1981, p. 382.
4
José Joaquim Gomes Canotilho, op. cit., p. 80.
25
Mas, repita-se, a compreensão constitucional operada a partir de um texto positivo não
retira a imperiosa e inafastável necessidade de visualização do contexto social.
Dessa forma, para fins desta análise e parafraseando o mesmo José
Joaquim Gomes Canotilho, a referência constitucional há de ser a Constituição de 1988.
2. A Constituição de 1988: uma Constituição dirigente
Sobre a Constituição de 1988, o que se pode afirmar desde logo a
propósito de sua natureza é tratar-se ela, indubitavelmente, de uma Constituição
dirigente. Quem o diz, por exemplo, é Eros Roberto Grau em sua tese ―Contribuição
para a Interpretação e a Crìtica da Ordem Econômica na Constituição de 1988‖.
A noção de Constituição dirigente foi ela desenvolvida pelo já citado
José Joaquim Gomes Canotilho em sua tese de doutorado exata e precisamente
intitulada ―Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador – contributo para a
compreensão das normas constitucionais programáticas‖. Nesse trabalho, hoje visto
como paradigmático para a Teoria Constitucional, o constitucionalista português assim
situa a temática objeto de sua análise:
―O tema a abordar na presente investigação é,
fundamentalmente, o problema das relações entre a constituição e a
lei. O título – Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador –
aponta já para o núcleo essencial do debate a empreender: o que deve
(e pode) uma constituição ordenar aos órgãos legiferantes e o que
deve (como e quando deve) fazer o legislador para cumprir, de forma
regular, adequada e oportuna, as imposições constitucionais.(...) Com
efeito, perguntar pela ―força dirigente‖ e pelo ―caracter determinante‖
de uma lei fundamental implica, de modo necessário, uma indagação
alargada, tanto no plano teorético-constitucional como no plano
teorético-político, sobre a função e estrutura de uma constituição.(...)
Deve uma constituição conceber-se como ―estatuto organizatório‖,
como simples ―instrumento de governo‖, definidor de competências e
regulador de processos, ou, pelo contrário, deve aspirar a transformarse num plano normativo-material global que determina tarefas,
estabelece programas e define fins?‖.5
O que se conota, pois, a partir do conceito de ―Constituição dirigente‖ é o
sentido de um texto que objetiva a mudança social, indo além, por conseguinte, de
representar um simples elenco de ―instrumentos de governo‖ haja vista a enunciação de
fins, metas, programas a serem perseguidos pelo Estado e pela sociedade. Não se trata,
como se evidencia, de um ―estatuto jurìdico do polìtico‖ mas, como refere José Joaquim
Gomes Canotilho, um ―plano global normativo‖ endereçado ao Estado e à própria
sociedade.
Nesses termos e reafirmando o já assinalado, a Constituição de 1988 tem
por característica primordial, do que o seu artigo 170 é seguramente a mais forte
evidência, a condição de um ―plano global normativo‖. Em suma, cuida-se de uma
Constituição dirigente, cujo abrigo de normas programáticas torna justa a adoção de
remédios como a ação de inconstitucionalidade por omissão.
5
Op. cit., Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 11 e seguintes.
26
Desse entendimento não discrepa, é importante assinalar, o Professor de
Direito Constitucional Manoel Gonçalves Ferreira Filho.6
3. A Constituição econômica diretiva imprimindo o caráter dirigente à
Constituição
Do caráter dirigente da Constituição de 1988 se infere que a Constituição
Econômica que ela abriga é igualmente tributária dessa mesma característica. Aliás, não
seria propriamente errôneo afirmar que a Constituição é dirigente e não estatutária,
exatamente por também acolher ela uma Constituição Econômica diretiva, vocacionada,
portanto, para a implementação de uma nova ordem econômica e social.
A esse propósito, o citado Eros Roberto Grau informa: ―embora o
primeiro uso da expressão ―constituição econômica‖ remonte ao século XVIII – usada
por Badeau, para significar conjunto dos princípios jurídicos reguladores da ―sociedade
econômica‖ – o seu emprego, para designar o conjunto de normas constitucionais que
instrumentalizam, conformando-a, uma determinada ordem econômica (mundo do ser),
é coevo do surgimento das Constituições diretivas: caracteriza-se como diretiva, a
Constituição, por abranger uma Constituição Econômica diretiva.‖7
4. Conceito de Constituição econômica
Desde a sempre referida Constituição de Weimar, de 11 de agosto de
1919, que apresentava uma seção cujo tìtulo era ―Da vida econômica‖, que o
―econômico‖ passou a encontrar sede nos textos constitucionais.
Sobre a noção de Constituição Econômica, a doutrina portuguesa, ainda
que não isoladamente, tem contribuído a larga para o seu desenvolvimento. Hoje,
conceitua-se a Constituição Econômica como o ―conjunto de preceitos e instituições
jurídicas que, garantindo os elementos definidores de um determinado sistema
econômico, instituem uma determinada forma de organização e funcionamento da
economia e constituem, por isso mesmo, uma determinada ordem econômica; ou, de
outro modo, aquelas normas ou instituições jurídicas que, dentro de um determinado
sistema e forma econômicos, que garantem e (ou) instauram, realizam uma determinada
ordem econômica concreta.‖8
Vê-se, pois, que o traço definidor de uma Constituição Econômica,
material ou formalmente tomada, é a sua vocação para a institucionalização de uma
ordem econômica, mundo do ―dever ser‖ na dicção de Eros Roberto Grau. Daì, aliás,
falar-se de uma nova ordem econômica.
E, por isso mesmo, é de se supor que a Constituição Econômica,
precisamente por cuidar da realização de uma nova ordem econômica e social, deve
trazer a contemplação de um sistema econômico que a anime e, em corolário, o regime
econômico que o instrumentaliza.
6
Direito Constitucional Econômico, São Paulo, editora Saraiva, 1990, p. 76 e 77.
Op. cit., p. 80.
8
Vital Moreira, Economia e Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 2ª edição, p. 41.
7
27
5. A ordem econômica da Constituição de 1988
A definição do regime econômico da Constituição Econômica de 1988
surpreendentemente tem gerado inúmeras controvérsias no seio da doutrina mais
abalizada.
Com efeito, de Geraldo Vidigal a Raul Machado Horta, passando por
Miguel Reale, José Afonso da Silva, Manoel Gonçalves Ferreira Filho e outros, não é
possível descortinar em todos um ponto definitivamente de consenso a respeito do
regime econômico, ocorrendo manifestações que privilegiam uma postura liberal do
Estado até críticas fundadas no que se supõe tratar-se de um regime de ―estatolatria‖.
Sem embargo, a Constituição Econômica de 1988 não comporta tanta
celeuma. Em realidade, é de meridiana clareza que as normas constitucionais constantes
do título VII, especialmente no seu capítulo I, imprimem a realização de uma nova
ordem econômica e social cujo sistema econômico consagra a propriedade privada dos
meios de produção, afetada por um regime, que, se é aberto de modo a acolher uma
interpretação dinâmica e, principalmente, adequada à história do momento de sua
realização, de outra banda assegura o papel de integração do sistema econômico de que
é titular o Estado. Por tal integração deve-se entender, e a outra intelecção não conduz o
texto constitucional, a conformação das forças que interagem no mercado econômico
visando a realização da justa distribuição da riqueza social, como condição maior do
desenvolvimento estrutural do sistema e não apenas a sua modernização. É esse
compromisso, enunciado na Constituição mediante a consagração da fórmula expressa
no ―caput‖ do artigo 170, segundo a qual ―a ordem econômica, fundada na valorização
do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social‖, que faz do Estado, como da própria sociedade,
ambos destinatários das normas constitucionais, agentes de integração do sistema
econômico.
Não se cuida, destarte, de um regime em que o mercado operacionaliza o
jogo econômico por suas próprias e nem sempre racionais atitudes, nem tampouco um
regime que opere a substituição do mercado pelo Estado. Da mesma forma, não se
realiza na espécie a hipótese eclética, francamente carente de imaginação, que propugna
por um modelo comumente apelidado de neo-liberal, o que, a rigor, não diz
absolutamente nada.
A ordem econômica da Constituição de 1988, mundo do dever-ser, exige,
para sua realização, um processo dialético de implicação-conformação entre mercado e
Estado no sentido da preservação daquele, proporcionada pela sua permanente
transformação. Esta transformação não corresponde, sob hipótese alguma, a um
processo autárquico do próprio mercado, até porque a sua história depõe em contrário.
Ao revés, a contínua transformação do mercado, vetorialmente guiada para a realização
da nova ordem econômica e social, exige a atuação do Estado como agente integrador
desse processo, conferidor da necessária medida de racionalidade, que não é apenas
instrumental mas essencialmente substantiva, porque comprometida com a justa
distribuição da riqueza social, repita-se.
6. Conclusões preliminares
28
É, pois, a Constituição de 1988 uma Constituição dirigente, isto é, uma
Constituição que não se contenta em definir um estatuto de poder, atuando como
―instrumento de governo‖, mas, indo além, cuida de estipular programas e metas que
deverão ser realizados pelo Estado e pela sociedade.
A Constituição Econômica, por sua vez, que se acha contemplada na
Constituição de 1988, é a expressão máxima desse seu caráter dirigente. Cuida ela de
apontar uma nova ordem econômica e social que deseja ver implementada pelo Estado e
pela sociedade brasileira. Enquanto Constituição Econômica, traz ela de maneira
subjacente o sistema econômico capitalista, afetado, todavia, por um regime econômico
que faz do Estado o agente por excelência de integração do modelo econômico no
sentido de realização dos imperativos constitucionais da existência digna de todos os
que nos limites do território nacional vivam, conforme os ditames da justiça social. Em
outras palavras, o que se está a argüir, em síntese, é uma nova ordem econômica e
social que se assente na justa distribuição da riqueza social como fator fundamental de
seu desenvolvimento e, conseqüentemente, de seus atores.
7. A ordem social como item da Constituição econômica
A Constituição Econômica, como assinalado, enquanto expressão
máxima do caráter dirigente da Lei Fundamental, cuida de apontar uma nova ordem
econômica e social que deseja ver implementada pelo Estado e pela sociedade
brasileira.
Enquanto Constituição Econômica voltada para a realização de uma nova
ordem econômica, traz ela de maneira subjacente o sistema econômico capitalista,
afetado, todavia, por um regime econômico que faz do Estado o agente por excelência
de integração do modelo econômico no sentido de realização dos imperativos
constitucionais da existência digna de todos os que nos limites do território nacional
vivam, conforme os ditames da justiça social. Em outras palavras, o que se está a argüir,
em síntese, é uma nova ordem econômica que se assente na justa distribuição da riqueza
social como fator fundamental de seu desenvolvimento e, conseqüentemente, de seus
atores.
Mas, cuida também a Constituição Econômica de uma nova ordem
social, que na dicção do texto constitucional brasileiro, ―tem como base o primado do
trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.‖
Para logo se vê que a nova ordem desejada pelo texto constitucional se
afirma pela junção de suas duas dimensões fundamentais, econômica e social.
Essa nova ordem social tem na seguridade social, definida pelo próprio
texto constitucional como ―um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes
Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à
previdência e à assistência social‖ (artigo 194 da Constituição), o seu grande fator de
instrumentalização.
O regime econômico contemplado pela Constituição Econômica de 1988,
que faz do Estado o agente por excelência de integração do modelo econômico no
sentido de realização dos imperativos constitucionais da existência digna de todos os
que nos limites do território nacional vivam, conforme os ditames da justiça social,
encontra na seguridade social, destarte, o seu mais fundamental complemento, tudo na
busca da realização da nova ordem econômica e social.
29
8. O conteúdo das imposições de uma Constituição dirigente
O caráter vinculante das constituições dirigentes transcende a realização
infraconstitucional das normas programáticas constitucionais para acolher também a
própria atuação econômico-social do Estado
As conclusões que se vem de alinhavar, ainda que preliminares são
definitivas, exigindo, como condição de seu desenvolvimento, a caracterização do
conteúdo das imposições estabelecidas pelas Constituições dirigentes.
José Joaquim Gomes Canotilho assim situa o problema: ―A Teoria da
Constituição se pergunta em que medida pode uma lei fundamental transformar-se em
programa normativo do Estado e da sociedade.
A resposta, indubitavelmente, é afirmativa, observando mesmo o
constitucionalista que a ―definição, a nível constitucional, de tarefas econômicas e
sociais do Estado, corresponde ao novo paradigma da constituição dirigente‖.9
Tratam-se, destarte, de imposições constitucionais, consubstanciadas em
fins e tarefas que são cometidas ao Estado e à sociedade. É nesse sentido, aliás, que
deve ser orientada a atividade legislativa do Estado, inequívoco dever jurídico.
Todavia, a vinculação que a Constituição dirigente estabelece em relação
ao Estado não diz apenas com a sua atividade legislativa. Com efeito, o problema da
força vinculante das Constituições dirigentes transcende a realização infraconstitucional das normas programáticas constitucionais para acolher também a própria
atuação econômica social do Estado.
Em outras palavras, a atividade econômica do Estado, esteja ela
consubstanciada na prestação de serviços públicos ou na exploração de iniciativa
econômica, por imposição constitucional há de ser guiada no sentido de realização da
nova ordem econômica e social prevista no texto constitucional.
Nesses termos, o conteúdo da Constituição dirigente pode ser definido
pelo conjunto de Imposições constitucionais que é endereçado ao Estado e à sociedade,
materializado pela atividade normativa, econômica e social a que especialmente o
Estado está vinculado pelo seu dever jurídico de implementação de uma nova ordem
econômica e social.
9. A inteligência de uma Constituição dirigente
Vê-se, por conseguinte, que a atuação do Estado será instrumentalizada
pelo regime econômico e pela seguridade social consagrados na Constituição, cabendo,
no entanto, seu conteúdo ser precisado à luz do sistema econômico subjacente ao
modelo econômico e social que se deseja realizado.
Não cabe no espaço destas observações enveredar-se pela teoria de
interpretação das normas, especialmente constitucionais. Sem embargo, o que se pode e
deve ser afirmado é que a própria natureza da Constituição dirigente não permite uma
interpretação autárquica do seu texto, isto é, vinculada exclusivamente aos limites
impostos pelo próprio sistema de normas cuja inteligência é procurada.
9
Idem, p. 169.
30
Ao revés, a par da multiplicidade de métodos que devem ser invocados
pelo intérprete, é fundamental que a ideologia que informe o trabalho hermenêutico
esteja voltada para a atualização constante das categorias normativas na perspectiva de
sua imanência política. Cuida-se, como refere Jerzy Wróblewski, de tipo de ideologia de
interpretação que, nas suas próprias palavras, ―considera a la interpretación como
actividad que adapta el derecho a las necessidades presentes y futuras de la ―vida social‖
en el sentido más amplio de este término.‖10
A ilustrar o ora consignado é de se destacar a seguinte passagem da
monografia já citada de Eros Roberto Grau, onde o seu autor esclarece a correta noção
do princípio constitucional da livre iniciativa:
―No que tange ao primeiro dos princìpios que ora temos sob
consideração, cumpre prontamente verificarmos como e em que
termos se dá a sua enunciação no texto. E isso porque, ao que tudo
indica, as leituras que têm sido feitas do inciso IV do art. 1º são
desenvolvidas como se possìvel destacarmos de um lado ―os valores
sociais do trabalho‖, de outro a ―livre iniciativa‖, simplesmente. Não é
isso, no entanto, o que exprime o preceito. Este em verdade enuncia,
como fundamentos da República Federativa do Brasil, o valor social
do trabalho e o valor social da livre iniciativa.‖
E prossegue: ―Isso significa que a livre iniciativa não é tomada, enquanto
fundamento da República Federativa do Brasil, como expressão individualista, mas sim
no quanto expressa de socialmente valioso.‖11
Será, com efeito, apenas procedendo nestes termos que a adequação da
Constituição dirigente será reafirmada, até porque o seu dinamismo operacional exige
tal postura. Aliás, parenteticamente, é de todo oportuno salientar que muitas das críticas
lançadas sobre a atual Constituição, especialmente a sua propalada carência de lógica
interna, só se justificam pelo vício de uma ideologia estática de interpretação, batizada
por Jerzy Wróblewski de ―ideologia estática de interpretação legal‖, que ―toma como
valores básicos la certeza, la estabilidad y la predictibilidad‖.12
10. A garantia do direito à saúde, a seguridade social e a nova ordem
social da Constituição dirigente de 1988
As ponderações até aqui produzidas permitem adentrar no exame da
Constituição de 1988 naquilo que ela tem de especificamente relacionado com a ordem
social que, enquanto mundo do dever-ser, encontra na seguridade social um dos seus
fatores de realização.
Com efeito, a garantia do direito à saúde, expressamente referida no
artigo 196 da Constituição, inscreve-se exata e precisamente no rol daquele conjunto
integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos voltadas para a realização da nova
ordem social, cujos objetivos são o bem-estar e a justiça sociais.
Lê-se, efetivamente, no artigo 196 da Constituição Federal que a ―saúde é
direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas
10
Constitución y teoria general de la interpretación jurídica, Madri, Editorial Cívitas, p. 75.
Op. cit., p. 220 e 221.
12
Op. cit., p. 72.
11
31
que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.‖
Está, pois, o Estado juridicamente obrigado a exercer as ações e serviços
de saúde visando a construção da nova ordem social, cujos objetivos, repita-se, são o
bem-estar e a justiça sociais, pois a Constituição lhe dirige impositivamente essas
tarefas.
Note-se, a esse propósito, como, aliás, já assinalado, que a força
vinculante do Estado e da sociedade à Constituição dirigente transcende a realização
infra-constitucional das normas programáticas constitucionais, para acolher também a
própria atuação econômico-social do Estado, até porque é o Estado também o
destinatário por excelência das normas infra-constitucionais.
É bem de se ver neste passo, em conseqüência do acima estatuído, que
todos os Poderes Públicos e a sociedade, enfim o Estado, por todos os seus poderes e
órgãos e a sociedade estão vinculados aos objetivos constitucionais. Dito de outro
modo, não pode qualquer dos Poderes Constituídos colocar no oblívio as suas funções
constitucionais de realização da nova ordem econômica e social.
11. O moderno direito sanitário como expressão legítima de um direito
regulatório, cujo fundamento é a própria Constituição dirigente
Considerando, pois, que a Constituição de 1988 uma Constituição
dirigente, isto é, uma Constituição que não se contenta em definir um estatuto de poder,
atuando como ―instrumento de governo‖, mas, indo além, cuida de estipular programas
e metas que deverão ser realizadas pelo Estado e pela sociedade, cabe agora, por
derradeiro, compreender o impacto que provoca no processo de transformação do
Direito moderno.
A partir do momento em que se consolida o modelo do Estado Social, e a
sua evidência resta absolutamente clara entre nós, especialmente à luz das considerações
a propósito da ordem econômica da Constituição de 1988, o direito assume o papel de
fator implementador das transformações sociais, veiculando inclusive prestações
públicas. Por conseqüência, opera-se uma rematerialização da racionalidade legal.
Dito de outro modo, o caráter dirigente das modernas Constituições tem
igualmente influenciado todo o direito. Assim é que Gunther Teubner observa que
―comparado com o clássico Direito formal, o direito material
próprio da moderna era industrial assume desde logo uma nova função
social. Tal direito não se limita a satisfazer os imperativos de
resolução dos conflitos impostos pelo funcionamento de uma
sociedade de mercado, mas serve também os imperativos políticos de
intervenção e de direção próprios do moderno Estado-Social: quer
dizer, o direito é instrumentalizado em função dos objetivos e
finalidades do sistema político, que agora assume a responsabilidade
pela condução de certos processos sociais, e nomeadamente, na
definição dos objetivos a alcançar, na escolha dos instrumentos
normativos, no processo de formulação e de implementação de
normas.‖13
13
Juridificação - Noções, Características, Limites, Soluções, in Revista de Direito e Economia, Coimbra,
1988, p. 39.
32
Em suma, as mudanças de ordem estrutural e funcional decorrentes da
rematerialização da racionalidade do Direito contemporâneo, do que o caráter dirigente
das modernas Constituições é a sua mais expressiva evidência, exigem uma nova
postura não apenas por parte daqueles que elaboram o direito mas e em especial
daqueles que precisam operacionalizar suas missões transformadoras.
Especialmente no campo da saúde pública, é absolutamente imperativo
reconhecer que a sua proteção se faz exata e precisamente pela compreensão de que as
normas típicas do que já se definiu como o Direito Sanitário não se conformam aos
modelos clássicos de um Direito concebido à luz de paradigmas estatutários, informados
por princípios como certeza e segurança jurídicas, já que é inerente a esse processo de
rematerialização da racionalidade legal o particularismo, a legitimidade determinada
pela observância de critérios fundados numa ética de convicção, a partir da qual os fins
acabam definindo os meios necessários para a sua consecução, tudo perfeitamente em
consonância com os novos desígnios constitucionais já referidos.
Como refere Gunther Teubner, já citado,
―juridificação não significa apenas crescimento do Direito,
mas designa antes um processo no qual o Estado Social
intervencionista cria um novo tipo de Direito, o direito regulatório.
Apenas quando ambos estes elementos – materialização e finalismo
político-intervencionista – são tomados em atenção conjuntamente,
poderemos entender a verdadeira e específica natureza do
contemporâneo fenômeno da juridificação. Em suma, o direito
regulatório – que ―especifica coercitivamente a conduta social em
ordem à consecução de determinados fins materiais‖ – caracteriza-se
pelo primado da racionalidade material relativamente à racionalidade
formal e pode ser definido de acordo com os seguintes aspectos: no
plano de sua função, é um direito associado às exigências de direção e
conformação social, próprias do Estado Social; no de sua legitimação,
é um direito onde assumem fundamental relevo os efeitos sociais
despoletados pelas suas próprias regulações conformadoras e
compensadoras; finalmente, no plano de sua estrutura, o direito
regulatório afigura-se como um direito ―particularìstico‖,
finalisticamente orientado e tributários das ciências sociais.‖14
Assim são as normas que cuidam da saúde pública e assim devem ser
entendidas. Afirmar o contrário é desqualificar os objetivos últimos que justificaram a
sistematização do moderno Direito Sanitário.
12. Questões subjacentes ao reconhecimento do caráter regulatório do
moderno direito regulatório.
A perda pelo poder legislativo do monopólio da função normativa
As considerações até aqui elaboradas trazem diversas implicações da
mais alta relevância, algumas das quais exigindo exame de imediato.
Com efeito, o só fato de se reconhecer a inevitabilidade do direito
regulatório implica, por si só, em novas atitudes frente ao Estado e, especialmente, em
relação ao seu poder normativo.
14
Op. cit., p. 49.
33
Com efeito, trabalhos recentes apontam para um reconhecimento do
colapso do princípio da separação de poderes, admitindo a inevitabilidade do exercício
pelo Poder Executivo de função legislativa.
É que, como assinala Clèmerson Merlin Clève, ―está agonizando um
conceito de lei, um tipo de parlamento e uma determinada concepção do direito. O
parlamento monopolizador da atividade legiferante do Estado sofreu abalos. Deve
continuar legislando, é certo. Porém, a função legislativa será, no Estado
contemporâneo, dividida com o Executivo O parlamento não deve deixar de reforçar o
seu poder de controle sobre os atos, inclusive normativos, do Executivo. A crise do
parlamento burguês conduz ao nascimento do parlamento ajustado às profundas
alterações pelas quais passaram a sociedade e o Estado. Portanto, o declínio alcança um
determinado parlamento; não a instituição propriamente dita.‖15
Aqui, para que reste absolutamente claro, não se acredita que os novos
contornos da descentralização administrativa estejam restritos à conotação de um poder
normativo representado apenas e tão somente pela fixação de normas regulamentares
tradicionais, expressão do poder regulamentar clássico do Executivo, o que remeteria a
questão do controle dessa mesma atividade para os domínios clássicos do controle
judicial dos atos administrativos. A transferência operada para as agências reguladoras
tem por objeto atividades decisórias e regulatórias que extrapolam os limites
regulamentares tradicionais até porque conformam a independência desses novos órgãos
reguladores.
Esta é a questão fundamental. Enquanto não se reconhecer a real
abrangência dessa realocação de poderes normativos no âmbito do aparelho estatal,
necessária, inclusive, para a identificação do direito regulatório de que fala Teubner,
abandonando-se fórmulas como a da delegação legislativa, não se cuidará de
efetivamente estabelecer limites a essa mesma atuação, ficando a discussão no plano
meramente retórico.
Nesse sentido, pois, não aproveitam às formulações aqui tecidas as
seguintes observações de Alexandre de Moraes, para quem, ―a moderna Separação dos
Poderes mantém a centralização governamental nos Poderes Políticos – Executivo e
Legislativo-, que deverão fixar os preceitos básicos, as metas e finalidades da
Administração Pública, porém exige maior descentralização administrativa, para a
consecução desses objetivos. (...) Nesse contexto, o Direito brasileiro incorporou,
principalmente, do Direito norte-americano a idéia de descentralização administrativa
na prestação dos serviços públicos e, conseqüentemente, gerenciamento e fiscalização
pelas agências reguladoras. Assim, entendemos que as agências reguladoras poderão
receber do Poder Legislativo, por meio de lei de iniciativa do Poder Executivo, uma
delegação para exercer seu poder normativo de regulação, competindo ao Congresso
Nacional a fixação das finalidades, dos objetivos básicos e da estrutura das Agências,
bem como a fiscalização de suas atividades.‖16
E conclui o autor, para dizer que o ―Congresso Nacional permanecerá
com a centralização governamental, pois decidirá politicamente sobre a delegação e
seus limites às agências reguladoras, porém efetivará a descentralização administrativa,
permitindo o exercício do poder normativo para a consecução das metas traçadas em lei.
O Poder Legislativo deverá, nos moldes norte-americanos, estabelecer os parâmetros
básicos, na forma de conceitos genéricos – standards-, cabendo às agências reguladoras
a atribuição de regulamentação específica, pois passarão a exercer, de maneira
exclusiva, uma atividade gerencial e fiscalizatória que, tradicionalmente no Brasil,
15
16
Atividade Legislativa do Poder Executivo, Editora Revista dos Tribunais, 2ª edição, página 57.
Op. cit., páginas 743 e 744.
34
sempre correspondeu à administração direta, enquanto cedente dos serviços públicos
por meio de permissões ou concessões.‖17
O déficit democrático inerente à perda pelo Poder Legislativo do
monopólio da função normativa
Sucede, no entanto, que, se de um lado, desde que se passou a emprestar
à norma jurídica novas funções, claramente de natureza promocional, objetivando a
transformação do sistema social no sentido da construção de uma nova ordem
econômica e social, fato este, aliás, responsável pelo desenvolvimento do modelo
dirigente da várias constituições, o fato é que, por outro lado, as exigências políticas
que determinaram o advento do Estado Moderno Democrático remanescem
absolutamente íntegras.
Como conclui Marcus André Melo em trabalho sobre o tema, ―Delegação
e responsabilização são dois pólos de uma tensão irresolvida no funcionamento das
sociedades democráticas. Instituições que adquirem um papel cada vez mais importante
nessas sociedades, como as agências regulatórias e os bancos centrais, exigem
autonomia decisória para seu funcionamento efetivo. Como outras agências do aparato
burocrático do Estado, essa autonomia foi perseguida como um ideal normativo na
construção do Estado democrático. No entanto, a delegação implica crescente ―déficit
democrático‖ e insuficiente responsabilização de seus dirigentes.‖18
Este é, dessarte, o cerne do problema. Por detrás da pós-modernidade
representada pelo colapso dos paradigmas políticos e jurídicos (separação de poderes e
princípio da reserva legal, para referir alguns), resta a perenidade de exigências
modernas, fundamentalmente o controle do poder político pois se, com efeito, as
respostas institucionais do final do século XVIII estão em crise, as razões de suas
formulações restam na mais absoluta ordem do dia.
O Poder Legislativo, o ―poder dos poderes‖ na formulação clássica,
possuìa esse ―status‖ privilegiado por força de sua condição representativa. Daì
derivavam suas funções normativa e de controle do Executivo. O advento do Estado
regulador faz do Poder Executivo o novo ―poder dos poderes‖ e, mais recentemente, o
surgimento das agências reguladoras, com a sua situação de autarquias especiais,
dotadas de independência hierárquica e autonomia financeira, titulares de poderes
normativos, fiscalizatórios, sancionatórios e de promoção do contencioso, traz para
esses novos ―anéis burocráticos‖ a condição de ―locus‖ privilegiado não apenas da ação
especializada tecnocrática, mas também da própria mediação política, em detrimento do
Poder Legislativo.
Note-se, portanto, que não é mais o caráter representativo que define as
atribuições e, por conseguinte, o próprio destaque do órgão em relação aos demais mas,
num sentido inverso, são os poderes ou funções assumidos pelo Executivo que lhe
conferem uma posição assimétrica frente aos demais poderes institucionais.
Negar essa realidade, especialmente a partir de leituras desatualizadas
dos textos clássicos, é travar uma luta quixotesca contra a realidade, para o que, aliás, a
própria doutrina já não mais se sensibiliza.
Todavia, o reconhecimento dessa nova alocação de funções e papéis
entre os diferentes órgãos do aparelho estatal não elide a necessidade absolutamente
17
Idem, página 744.
A POLÍTICA DA AÇÃO REGULATÓRIA: responsabilização, credibilidade e delegação, in Revista
Brasileira de Ciências Sociais, volume 16, nº 46, páginas 55 e seguintes.
18
35
imperiosa de se cuidar do controle desse novo estado de coisas, como adverte Marcus
André Melo.
O controle das atividades das agências reguladoras, o estabelecimento
preciso e objetivo de limites à sua atuação é questão prioritária no atual estágio do
debate sobre a matéria. Eis aí, pois, o tema a ser tratado. Para logo se vê que variadas
serão as respostas na medida em que diversas sejam as compreensões desse processo em
virtude do qual o Poder Executivo assume funções legislativas. Com efeito, os
imperativos de prontidão de respostas, eficiência, descentralização administrativa
autorizariam essa realocação de funções, que estaria legitimada, para muitos, por uma
nova leitura da Separação de Poderes.
A natureza dos atos normativos que materializam o direito regulatório e a
noção clássica de regulamentos administrativos
A noção clássica de regulamentos administrativos acolhida pela doutrina
pátria, longe de perder utilidade para o direito administrativo moderno, merece uma
leitura cuidadosa quando aplicada ao plano do direito regulatório.
Pode-se vislumbrar na atividade regulatória a existência da chamada
regulação e fiscalização das atividades desenvolvidas pelo particular.19
A atividade fiscalizadora tem servido para a meditação doutrinária
(Direito Administrativo), especialmente no que se refere ao tema do ―Poder de Polìcia‖.
Contudo, o mesmo não pode ser dito à respeito da atividade regulatória.
É que a regulação como função estatal não se coaduna com a noção
clássica de competência regulamentar.
José Crettela Jr. atribui o seguinte significado ao poder regulamentar:
―(...) é a faculdade que tem o Executivo, para tornar mais intangível a regra jurídica
geral, de editar outras regras jurídicas que facilitem a aplicação da lei. A vantagem
dos regulamentos é ‗facilitar a aplicação das leis‘, fazendo com que sejam fielmente
executadas‖.20
Nenhum reparo merece a definição de poder regulamentar apresentada
pelo administrativista.
O problema, insista-se, repousa na infrutífera tentativa de se aplicar ao
novo paradigma do direito regulatório categorias jurídicas clássicas que não mais
guardam relação com o novo modelo que se avizinha.
Como entender, por exemplo, as atribuições das agências regulatórias,
órgãos que, em apertada síntese, assumem o papel de mediação política e regulação em
setores sensíveis à atividade privada emanando parcela substancial do direito regulatório
brasileiro atual, diante do caráter predominantemente executório do poder
regulamentar? Estariam as agências regulatórias tão-somente explicitando, ou seja,
dando mera execução à lei?
Algumas de suas relevantes atribuições podem auxiliar nas respostas às
indagações formuladas.
Tome-se,
exemplificativamente,
a
Agência
Nacional
de
Telecomunicações, ―órgão regulador das telecomunicações‖ (art. 8º, da Lei Federal
9.472/97), entre outras missões de destaque, detém competência (art. 19) para
―implementar, dentro de sua esfera de atuação, a política nacional de
19
Leila Cuéllar, As Agências Reguladoras e seu Poder Normativo, editora Dialética, São Paulo, 2001,
página 78.
20
Manual de Direito Administrativo, Forense, Rio de Janeiro, 1979, p. 151.
36
telecomunicações‖ (inciso I), ―administrar o espectro de radiofreqüências e o uso de
órbitas, expedindo as respectivas normas‖ (inciso X), ―expedir normas sobre prestação
de serviços de telecomunicações no regime privado‖ (inciso X), ―expedir normas e
padrões a serem cumpridos pelas prestadoras de serviços de telecomunicações quanto
aos equipamentos que utilizem‖ (inciso XII).
Note-se que as indigitadas competências projetam as iniciativas do Poder
Público para o futuro, na medida em que dizem respeito a objetivos, diretrizes, metas a
serem traçadas com vistas a consolidar o processo de intervenção estatal, ao contrário
do papel exercido pelos regulamentos administrativos cuja utilidade consiste,
fundamentalmente, em complementar a lei, facilitar a aplicação da lei, em suma, tornála útil facilitando a sua implementação.
A atividade regulatória, por sua vez, vai além da mera regulamentação.
Isto não implica em amesquinhar direitos e garantias individuais consagrados na
Constituição e nas Leis. Obviamente, existem limites, especialmente de ordem material,
de conteúdo mesmo e, portanto, o controle da atividade regulatória deverá zelar para a
observância dessa racionalidade material e não apenas formal, como tradicionalmente se
estabeleceu.
O que se convencionou denominar de materialização da norma jurídica
revela a existência de um conjunto de atividades estatais com feição jurídica voltada
para a implementação de objetivos e finalidades do sistema político21, o que autoriza o
reconhecimento do caráter normativo de que vêm revestidas, dissociado, portanto, da
simples repetição de proposições formais contidas na norma legal.
E, em assim sendo, impõe-se com toda clareza que se discuta a tensão
entre a inevitabilidade do poder normativo, pelo que ele significa em termos de
inovação do ordenamento jurídico, e a necessidade do controle dessa atividade, que não
se opera em função dos mecanismos clássicos de contenção do poder polìtico (o ―déficit
democrático‖ das agências regulatórias de que fala Marcus André Melo).
Não se trata, por conseguinte, de negar o reconhecimento do que se
denominou aqui de perda da centralidade política da produção normativa, enfim, da
perda pelo Poder Legislativo do monopólio da produção normativa. Nessa toada, é de se
reconhecer que a norma do artigo 5º, inciso II da Constituição Federal, em virtude da
qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei há de ser tomada como uma garantia constitucional de ninguém estar obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da ação normativa do Estado.
Nessa medida, salta a toda evidência que o que garante a legitimidade do comando
normativo não é a retórica da legalidade formal mas sim a materialidade desse mesmo
comando normativo. Pretender o contrário, isto é, que a lei, como tal formalmente
considerada, seja tomada como a única fonte primária legítima de direitos e obrigações
importa em desprestigiar o próprio texto constitucional, pelo que ele tem de mais caro,
vale dizer, a condução do Estado no sentido da edificação de uma nova ordem
econômica e social, legítima por seus próprios fundamentos e finalidades.
O controle dessa atividade regulatória estatal passa a exigir, então, uma
reformulação dos limites do controle jurisdicional da atividade estatal. Diante da
magnitude destes ―atos regulatórios‖ originários do chamado poder normativo, é
imprescindível que se reavaliem os limites da função jurisdicional de controle da
atividade normativa que no inìcio deste trabalho foi definida como ―direito regulatório‖.
Eis, por conseguinte, uma vez definidos os contornos do problema, a
perspectiva do seu equacionamento. O ―déficit democrático‖ das agências reguladoras
21
Gunther Teubner, Juridificação – Noções, Características, Limites, Soluções, Revista de Direito
Econômico, Coimbra, 1988, página. 39.
37
será superado não pelo restabelecimento da legalidade estatutária contemporânea a um
Estado minimalista, mas pela redefinição dos limites do controle da legalidade da
atividade normativa das agências.
O controle de constitucionalidade da materialidade do direito regulatório
É de meridiana clareza que a racionalidade material definidora dos atos
administrativos de regulação como expressão do direito regulatório, deve ser apreciada
e protegida pelo Poder Judiciário.
Vale dizer, o controle jurisdicional deve incidir sobre a apreciação da
consonância do agir das agências reguladoras (mediante a edição de atos
administrativos de regulação), portanto, da adequação da racionalidade material do
direito regulatório que expressa essa atividade normativa com o sistema constitucional.
Aliás, essa maior abrangência do controle jurisdicional aqui defendida já
foi reconhecida pelos tribunais norte-americanos ao exercerem o controle de suas
agências reguladoras. O exemplo norte-americano é de sumo interesse, pois aquele
direito se consubstanciou na fonte inspiradora da regulamentação no Brasil das agências
reguladoras.
Relata Maria Sylvia Zanella Di Pietro22 que naquele paìs ―o Judiciário
passou a examinar não apenas o procedimento, como também a razoabilidade das
decisões diante dos fatos e a proporcionalidade da medida em relação aos fins contidos
na lei. Para possibilitar esse controle jurisdicional, passou-se a entender como
necessária a ampla motivação dos atos das agências, a transparência, que não era
exigida anteriormente, por respeito e confiança na especialização das agências. Esse
tipo de controle de razoabilidade, inicialmente feito apenas em relação à adjucation,
passou-se a fazer também em relação ao rulemaking.‖
Aliás, é de se lembrar que mesmo a jurisprudência brasileira reconhece
uma tendência de ampliação do controle jurisdicional dos atos administrativos, como
evidencia trecho de voto proferido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso
de Mello, há mais de uma década:
―É preciso evoluir cada vez mais no sentido da completa justiciabilidade
da atividade estatal e fortalecer o postulado da inafastabilidade de toda e qualquer
fiscalização judicial. A progressiva redução e eliminação dos círculos de imunidade do
poder há de gerar como expressivo efeito consequencial, a interdição de seu exercício
abusivo.‖ ( MS n. 20.999, julgado em 21.03.1990, RDA 179-180/117, jan-jul / 1990).
Com efeito, em que pesem as manifestações contrárias23, o Poder
Judiciário está credenciado a adentrar a apreciação da atividade-fim das agências
reguladoras para que se restabeleça o equilíbrio democrático. Explica-se.
22
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Parcerias na Administração Pública, Atlas, 1999, 3ª edição, p.137.
Assevera Marcos Juruena Villela Souto em seu Desestatização, Privatização, Concessões,
Terceirizações e Regulação (Ed. Lumen Juris, 2001, 4ª edição, página 463) que ―é claro que, como dito, o
princípio é da Separação de Poderes, não podendo o Judiciário interferir em juízos privativos da
entidade legalmente competente para fiscalização e regulação dos setores da economia. Afinal, a lei que
cria tais entidades assegura-lhes autonomia administrativa, técnica e financeira‖. Por sua vez, Floriano
Azevedo Marques Neto, em seu texto ―A Nova Regulação Estatal e as Agências Independentes‖ inserto
na obra Direito Administrativo Econômico, Ed. Malheiros, 2000, p. 97, parece excluir o Poder Judiciário
do controle da atividade–fim das agências, ao afirmar que ―mais complexo se mostra o controle da
atividade-fim das agências, ou seja, o controle da própria atividade regulatória. Cremos que o controle,
aqui, deve ser triplo. O cumprimento de sua função de implementar os objetivos e metas da política
pública para o setor deve ser controlado pelo Poder Executivo, pelo Poder Legislativo e por instâncias
da Sociedade especificamente criadas para isso (por exemplo, conselhos de usuários, conselhos
23
38
Como anteriormente exposto, as agências reguladoras foram instituídas
em um contexto de reforma estatal, em que o Estado deixou de explorar diretamente a
atividade econômica e a prestação de serviços públicos, para assumir um papel
regulador e gerenciador.
Por óbvio, a finalidade de instituição dessas agências reguladoras foi a de
diminuir o aparato estatal em prol da melhoria da qualidade dos serviços públicos
ofertados aos administrados. Há aqui inequívocos contornos de políticas públicas por
detrás da materialização do direito regulatório de que é expressão o poder normativo das
agências reguladoras.
Por essa razão, as agências reguladoras detêm o poder normativo para a
edição de atos administrativos de regulação, fundamentalmente veículos de políticas
públicas.
Ao baixarem seus atos administrativos de regulação, as agências
reguladoras devem respeitar os princípios da legalidade, igualdade, moralidade,
publicidade e eficiência consagrados pelo artigo 37, ―caput‖ da Constituição da
República Federativa do Brasil, bem como os princípios da finalidade, da motivação,
da razoabilidade e da proporcionalidade expressamente previstos no artigo 2º , ―caput‖
da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1.999.
Portanto, reitere-se, as agências reguladoras estão adstritas também ao
dever de motivação de seus atos, bem como a obediência à finalidade para a qual foram
instituídas.
Assim, desde que provocado (princípio da inércia jurisdicional), o Poder
Judiciário poderá examinar todos estes aspectos dos atos administrativos de regulação,
apreciando desde os elementos formais como competência, forma e procedimento,
como também a subsunção aos princípios constitucionais e legais e sobretudo, a
correlação do ato praticado com a atividade-fim da agência reguladora.
Não se cuida, no entanto, como poderia parecer aos mais desavisados, de
apenas e tão-somente ampliar os limites do controle jurisdicional, para submeter por
completo à revisão judicial apenas os atos do Poder Público que materializam a
atividade normativa de que vem se ocupando este artigo.
O que se pretende é reconhecer a imprescindibilidade do juízo de
constitucionalidade do próprio conteúdo dessa atividade normativa, das políticas
públicas a que no limite corresponde a racionalidade material dessa função normativa.
Como estatuiu Fábio Konder Comparato24, ―o juìzo de validade de uma polìtica – seja
ela empresarial ou governamental – não se confunde nunca com o juízo de validade das
normas e dos atos que a compõem. Uma lei, editada no quadro de determinada política
pública, por exemplo, pode ser inconstitucional, sem que esta última o seja.
Inversamente, determinada política governamental, em razão da finalidade por ela
perseguida, pode ser julgada incompatível com os objetivos constitucionais que
vinculam a ação do Estado, sem que nenhum dos atos administrativos, ou nenhuma das
normas que a regem, sejam, em si mesmos, inconstitucionais.‖25
Admitido o controle judicial dos atos políticos, o que é aceito por Fábio
Konder Comparato26 como fato, impõe-se como derivação necessária o controle judicial
consultivos, organizações sociais)‖.
24
Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade das políticas públicas, in Revista dos Tribunais, volume
737, páginas 11 e seguintes.
25
Op. cit., página 18.
26
Consulte-se a esse propósito Cristina M. M. Queiroz, Os actos Políticos no Estado de Direito – o
problema do controle jurídico do Poder, Coimbra, Almedina, 1990.
39
do conteúdo do poder normativo das agências reguladoras para averiguação de sua
constitucionalidade à luz do conteúdo programático da Constituição dirigente de 1988.
Desse modo, será possível ao Poder Judiciário investigar se as metas e
diretrizes das agências reguladoras e protetivas dos direitos dos administrados estão
sendo implementadas com a edição desses atos administrativos de regulação. Caberá,
então, ao juiz determinar a imediata correção dos desvios daqueles atos que tiverem se
desbordado da atividade-fim da regulação.
Mais uma vez, como assevera Fábio Konder Comparato,
―o juìzo de constitucionalidade, nessa matéria, tem por objeto
o confronto de tais políticas, não só com os objetivos
constitucionalmente vinculantes da atividade de governo, mas também
com as regras que estruturam o desenvolvimento dessa atividade. Na
primeira hipótese, por exemplo, uma política econômica voltada
exclusivamente para a estabilidade monetária, interna e externa, pode
se revelar incompatível com várias normas-objetivo da Constituição,
notadamente com a de busca do pleno emprego, inscrita no art. 170,
VIII. Na segunda hipótese, o exemplo é, sem dúvida, o de uma
política municipal de saúde pública, desligada do sistema nacional
único, imposto pelo art. 198 da Constituição‖.27
O que se observa, pois, é que a revisão judicial dos atos administrativos
de regulação está a exigir a sistematização de uma nova compreensão da própria teoria
dos atos administrativos, de um lado, à luz da emergência do paradigma do direito
regulatório, e, de outra banda, requer ela, também, um esforço jurisprudencial que,
reconhecendo a minimização da discricionariedade administrativa em matérias como
tais28, avance por sobre os limites do controle de constitucionalidade da lei e dos atos do
Poder Público para alcançar o conteúdo desses mesmos dispositivos, sempre
reconhecendo que a única inteligência do artigo 5º, inciso II da Constituição Federal,
capaz de não jogá-lo no plano da retórica, é reconhecer que a única fonte primária de
deveres e obrigações é a capacidade normativa do Estado, venha ela veiculada
exclusivamente por lei, no seu sentido formal, ou na forma de um direito regulatório,
que não tem na lei seu exclusivo veículo de revelação.
13. Advertência final
De tudo quanto se discutiu a propósito do Direito Sanitário neste artigo
dessume-se que a discussão a propósito de sua natureza, sua autonomia científica, sua
aplicação pelos atores jurídicos trazem uma dimensão que não é meramente formal. Ao
revés, a evidência de um novo paradigma que significa o Direito Sanitário tem
implicações absolutamente fundamentais porque tratam de tornar efetivos os
mandamentos constitucionais de uma nova ordem econômica e social.
Este é o ponto: é preciso pensar e operar o Direito Sanitário no sentido de
concretizar a Constituição Federal, que antes de representar um dado da realidade,
vislumbra uma nova ordem que precisa ser construída. Para tanto, ou bem se renovam
27
Op. cit., página 20.
Sobre a discricionariedade mínima da Administração na implementação das políticas públicas
constitucionais, consulte-se Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Políticas Públicas – A responsabilidade
do administrador e o Ministério Público, Max Limonad, 2.000.
28
40
as categorias, exigência da qual é portadora a própria Constituição, ou se frustarão todos
os objetivos constitucionais.
41
DIREITO SANITÁRIO
(Sueli Gandolfi Dallari)
Sueli Gandolfi Dallari
Livre-docente em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo – USP
Professora do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário – CEPEDISA
ÍNDICE
1. Conceito de Saúde Pública. 2. Saúde como direito e direito à saúde. 3. Do
Direito da saúde ao conceito de direito sanitário. 4. Autonomia científica do
direito sanitário e sua interação com outras áreas do conhecimento. 5. Direito
Sanitário e o direito regulatório. 6. Advocacia em Saúde.
1. Conceito de saúde pública
A evolução histórica mostra que o atual conceito de saúde pública
começa a se delinear no Renascimento, correspondendo praticamente ao
desenvolvimento do Estado Moderno. É muito curioso – porque absolutamente
desprezado – verificar a aproximação histórica da idéia de saúde daquela de exercício
físico (ginástica) e dieta, isso porque a saúde não é originalmente um conceito
científico, mas uma idéia comum, ao alcance de todos. Para a antigüidade grega o termo
hygieia significa ―o estado daquele que está bem na vida‖ e tem um sentido
eminentemente positivo. Mesmo com a incorporação do sentido de cura e, portanto,
com a formação da medicina, ainda a higiene alimentar e o exercício físico são
caracterizados como importantes elementos de cura29. Platão alarga um pouco mais a
idéia de saúde acrescentando-lhe o campo da alma e a necessidade de que ele mantenha
relação adequada com o corpo30. Assim, o estado de equilíbrio interno do homem e dele
com a organização social e a natureza é sinônimo de saúde para a antigüidade grega.
Durante a Idade Média, o saber culto continua a privilegiar o equilíbrio na definição de
saúde31, tratados de ginástica e dietética são publicados como receitas de saúde para os
não-médicos32, mas a reação coletiva à epidemia é a imagem mais marcante desse
período. Assim aparecem os primeiros contornos da idéia de prevenção, implicando o
respeito seja aos signos do zodíaco, seja ao desenrolar das estações, seja ao
relacionamento adequado entre o clima e o corpo humano, mas, sobretudo, o
afastamento dos contactos impuros – a melhor forma de prevenção.
No Renascimento, um fato importante para a compreensão do conceito
de saúde pública foi a preocupação das cidades em prestar cuidados aos doentes pobres
em seus domicílios ou em hospitais, aumentando o poder das cidades em matéria de
higiene. Por outro lado, novas concepções de saúde favorecem a limpeza e os exercícios
corporais que evitam o recurso aos medicamentos33, enquanto outras tendem a
mecanizar o corpo, trabalhando com um conjunto de fatores que constituem a saúde
(eliminação dos resíduos, apetite, facilidade de digestão). E a valorização do exercício
29
A medicina hipocrática é formada pela dietética ou ciência dos regimes e pela ginástica ou ciência dos
exercícios.
30
Platão, A república, IV, 444b-c.
31
Como ensina, por exemplo, Maimonides.
32
Rauch, A. Histoire de la santé. Paris, PUF, 1995
33
Montaigne, Essais, II,37; II, 2.
42
como elemento essencial para uma vida saudável encontra reforço no romantismo, que
estimula maior aproximação da natureza. Entretanto, a experiência das epidemias
deixou sua marca, elaborando o conceito de perigo social, ―usado mais como pretexto
para um controle sobre as pessoas e não somente sobre as doenças do que para medidas
especìficas de prevenção‖34. É nesse período que, na Alemanha, se define a idéia de
polícia médica, em plena coerência com o cameralismo35. Não tendo os alemães
participado ativamente das grandes navegações e da colonização decorrente, o principal
objetivo do mercantilismo foi aumentar a força interna do Estado - particularmente
depois que o império germânico foi esfacelado nos Tratados de Paz da Westphalia
(1648) - para o que foi importante o conceito de polícia. Concordando com a ideologia
hegemônica na Alemanha no final do século XVII, que afirmava ser o crescimento
populacional a manifestação primeira da prosperidade e bem-estar de um povo e que,
portanto, um bom governo deve agir para proteger a saúde de seus súditos, Leibnitz
sugeriu, em 1680, ao imperador Leopoldo I, a criação de um órgão administrativo
encarregado dos assuntos de polícia, o que implicava a existência de um conselho de
saúde. Logo após (1685), Frederico-Guilherme de Hohenzollern – o Grande Eleitor de
Brandenburgo – cria, nos territórios que viriam a constituir o reino da Prússia, um
Collegium sanitatis, definindo uma autoridade médica para supervisionar a saúde
pública36.
Nesse período pode-se observar, também, que o ensino do cameralismo
na Universidade – iniciado sob o reinado do, então, imperador Frederico-Guilherme I –
favorecendo o desenvolvimento do ramo da Administração Pública conhecido como
ciência da polícia, forneceu as bases para a definição da polícia médica, a ele
estruturalmente vinculada. Assim, a teoria política do contratualista barão de Pufendorf
– revelada no Direito natural e direito das gentes, de 1672 – além de insistir em que ―a
força de um Estado consiste no valor e nas riquezas dos Cidadãos: ..(e que o Soberano,
portanto,).. não deve nada negligenciar, para promover o cuidado e o aumento dos bens
dos particulares‖37, dedica um capìtulo a ―Os deveres do homem com relação a ele
mesmo, tanto para o que respeita ao cuidado de sua alma, quanto para aquilo que
concerne ao cuidado de seu corpo e de sua vida‖38. Nesse trecho ele afirma ser
necessário ―trabalhar para ter a saúde com bom senso‖, lembrando que a saúde encerra
todos os outros bens39. E seus seguidores, como von Justi, escrevendo no auge do
despotismo esclarecido40 (exercido na Alemanha por Frederico II41), advogavam que o
soberano fizesse todo o possível para prevenir as doenças contagiosas e para, em geral,
diminuir as doenças entre os súditos. Para isso deveria, empregando o aparato
administrativo do Estado, estimular a prática da medicina, da cirurgia, do partejo, da
farmácia e regulamentar o exercício dessas atividades para evitar abusos e o
charlatanismo. Deveria, também, promover a pureza da água e dos alimentos, assim
34
Berlinguer, G. A doença. São Paulo, CEBES-HUCITEC, 1988, p.82
Ensinam os historiadores da civilização que o mercantilismo alemão, interessado sobretudo em
aumentar as rendas do Estado, ficou conhecido como ―cameralismo‖, uma vez que Kammer significa
tesouro real.
36
É o que nos ensina George Rosen na obra Da polícia médica à medicina social (Rio de Janeiro, Graal,
1980. p. 151-3
37
Cf. Pufendorf, S. Le droit de la nature et des gens L 6, cap. IX. Traduzido por Jean Barbeyrac 4ª ed.
Bâle, E.&J.R. Thourneisen, frères, 1732 Tomo 2, p.349
38
Cf. Pufendorf, S. op.cit. L2, cap. IV
39
idem ibidem p.244
40
Suas obras sobre a administração do Estado e os fundamentos da ciência da polícia datam de 1755 e
1756, respectivamente.
41
1740-86
35
43
como, assegurar a higiene do meio, regulando, inclusive, as edificações em solo
urbano42.
Fica claro que a sistematização da polícia médica resulta, especialmente,
da profunda influência exercida – durante todo o século XVIII – pela filosofia do
Iluminismo, que considera a razão o único caminho para a sabedoria. Assim, ao não
admitir as explicações sobrenaturais para os fenômenos naturais, o Iluminismo promove
a ampla aceitação da obrigação do Estado de controlar o exercício das práticas médicocirúrgicas e farmacêuticas, combatendo o charlatanismo. Do mesmo modo, por buscar
empregar o método científico na descrição das doenças e na determinação dos
tratamentos, essa filosofia eleva o exercício das ciências médicas (como das demais
profissões liberais) a uma condição de dignidade inimaginável na Idade Média, o que
justifica plenamente a regulamentação estatal do ensino médico. E, também, ao advogar
a possibilidade de planejamento da atividade estatal somada à exaltação crescente dos
direitos naturais do homem – que permitiu consagrar mais atenção aos infortúnios das
classes mais pobres – o Iluminismo estimulou a drenagem de pântanos, a abertura de
canais, favorecendo a prevenção de epidemias.
A noção contemporânea de saúde pública ganha maior nitidez de
contorno no Estado liberal burguês do final do século dezoito. A assistência pública,
envolvendo tanto a assistência social propriamente dita (fornecimento de alimentação e
abrigo aos necessitados) como a assistência médica, continuou a ser considerada matéria
dependente da solidariedade de vizinhança, na qual o Estado deveria se envolver apenas
se a ação das comunidades locais fosse insuficiente. Pode-se colocar nessa atuação
subsidiária do Estado um primeiro germe do que viria a ser o serviço público de saúde.
Entretanto, tomando-se o exemplo francês, verifica-se que a grande transição
revolucionária – que passa tanto pela supremacia dos jacobinos quanto pela
militarização napoleônica – retarda o início da instauração efetiva da assistência à saúde
como objeto do serviço público, para o período conhecido como Restauração43.
Por outro lado, a proteção da saúde é admitida no elenco das atividades
do Estado liberal e recebe, portanto, um status constitucional. Isso significa que, apesar
do empirismo que caracteriza a regulamentação das atividades de interesse para a
proteção da saúde, as medidas de polícia administrativa relativas a tal proteção devem
estar sob o manto da lei. Apareceram, assim, durante a Restauração (para ficar no
exemplo francês) as primeiras leis que tratavam organicamente da higiene urbana, da
noção de estabelecimento insalubre e do controle sanitário de fronteiras.44 Não se pode
ignorar, contudo, que, tanto o controle do ensino e do exercício da medicina e da
farmácia – profissões cuja regulamentação estatal era advogada há cerca de 50 anos –
quanto a manutenção dos hospitais pelas comunas, também, receberam acolhida
constitucional, uma vez que o Estado liberal e burguês daquele final de século legislou
sobre esses assuntos45. Em suma, as atividades do Estado relacionadas à vigilância
sanitária, durante a implantação do liberalismo, eram em tudo coincidentes com os
interesses da burguesia vitoriosa: valorizando sobremaneira o individualismo
42
Cf. Rosen, George op. cit. p. 159
1841 (1a queda de Napoleão) – 1830 (revolução de julho, queda de Charles X).
44
Ver o trabalho de Jean-Michel Lemoyne de Forges intitulado L‘intervention de l‘Etat en matière
sanitaire: quelques repères historiques, publicado no Rapport Public 1998 do Conseil d‘Etat (Paris,
La documentation Française, p.489-501)
45
Na França, leis de 10 de março (medicina) e 11 de abril (farmácia) de 1803 e a lei de 16 vendémiaire na
V, que introduz um modelo de gestão comunal (os diversos estabelecimentos e casas de caridade são
re-agrupados sob um estabelecimento público comunal, dirigido por uma comissão administrativa
municipal, destinado exclusivamente aos doentes locais)
43
44
dominante, limitá-lo apenas naquilo estritamente necessário à preservação da segurança
individual, com o mais absoluto respeito à lei – condição do Estado de Direito.
Entretanto, é apenas a partir da segunda metade do século dezenove que a
higiene se torna um saber social, que envolve toda a sociedade e faz da saúde pública
uma prioridade política. São desse momento as primeiras tentativas de ligar a saúde à
economia, reforçando a utilidade do investimento em saúde46. Por outro lado, inúmeros
trabalhos de pesquisa conformes ao paradigma científico vigente revelam claramente a
relação direta existente entre a saúde e as condições de vida. Assim, proteger a saúde
das camadas mais pobres, modificar-lhes os hábitos de higiene, passa a ser um objetivo
nacional, pois simultaneamente se estaria lutando contra a miséria que ameaça a ordem
pública. A idéia de prevenção encontra, então, ambiente propício à sua propagação.
Inicialmente fomentada por associações47, a prevenção se transforma tanto em objetivo
político quanto social. Tratava-se de encontrar os sinais precursores da doença para
evitá-la. Nesse sentido, a vacinação e a descoberta de Pasteur, com o posterior
isolamento do germe, provoca uma verdadeira revolução na prevenção de moléstias,
pois proteger contra a infecção permite simplificar a precaução. São criados os Comitês
de Vacinação e se verifica que, politicamente, o risco de contrair doenças se sobrepõe
ao da própria moléstia, transformando-a de episódio individual em objetivo coletivo,
principalmente por meio da disseminação dos meios estatísticos na avaliação da saúde.
O início do século vinte encontra instaurada a proteção sanitária como
política de governo. E são hierarquizadas três formas – hoje clássicas – de prevenção48:
a primária, que se preocupa com a eliminação das causas e condições de aparecimento
das doenças, agindo sobre o ambiente (segurança nas estradas, saneamento básico, por
exemplo) ou sobre o comportamento individual (exercício e dieta, por exemplo); a
secundária ou prevenção específica, que busca impedir o aparecimento de doença
determinada, por meio da vacinação, dos controles de saúde, da despistagem; e a
terciária, que visa limitar a prevalência de incapacidades crônicas ou de recidivas. O
Estado do Bem-Estar Social da segunda metade daquele século reforça a lógica
econômica, especialmente em decorrência da evidente interdependência entre as
condições de saúde e de trabalho, e se responsabiliza pela implementação da prevenção
sanitária. Instituem-se, então, os sistemas de previdência social, que não se limitam a
cuidar dos doentes, mas organizam a prevenção sanitária. Inicialmente eles
pressupunham uma diferenciação entre a assistência social – destinada às classes mais
desfavorecidas e baseada no princípio de solidariedade e, portanto, financiada por
fundos públicos estatais – e a previdência social, um mecanismo assecuratório restrito
aos trabalhadores. Entretanto, exatamente porque a prevenção sanitária era um dos
objetivos do desenvolvimento do Estado, logo se esclarece o conceito de seguridade
social, que engloba os sub-sistemas de assistência, previdência e saúde públicas49.
Trata-se, portanto, de identificar a responsabilidade a priori do Estado. Assim, mesmo
no que respeita aos estilos de vida, verifica-se um grande investimento estatal50.
Os últimos anos do século vinte, contudo, revelam uma nova concepção
da saúde pública, fortemente influenciada seja pelo relativo fracasso das políticas
46
Veja-se, por exemplo, o trabalho de Chadwick, E. Rapport sur la condition sanitaire des travailleurs en
Grande-Bretagne.
47
Tomando o exemplo francês, basta lembrar a Société française de tempérance, organizada em 1873,
para lutar contra o alcoolismo; a Société protectrice de l‘enfance, organizada em 1865, militando pela
alimentação com leite materno; ou o Comitê de défense contre la tuberculose, criado em 1896.
48
Veja-se, especialmente, a obra de Leavell & Clark, Medicina preventiva. (São Paulo, Mcgraw-Hill do
Brasil, 1976)
49
Modelo adotado, por exemplo, na Constituição federal brasileira de 1988 (art.195)
50
Considerem-se, por exemplo, os investimentos dos Estados contemporâneos na luta anti-tabagista.
45
estatais de prevenção, que não conseguiram superar os limites impostos pela exclusão
social, seja pela constatação – agora científica – da importância decisiva de
comportamentos individuais no estado de saúde. Por outro lado, o predomínio da
ideologia neo-liberal provocou uma diminuição do papel do Estado na sociedade em
favor dos grupos e associações e da própria responsabilidade individual. A evolução da
organização dos cuidados relativos à AIDS – na grande maioria dos Estados
contemporâneos – é um exemplo eloqüente dessa nova concepção. Com efeito,
prevaleceu a idéia de que a proteção contra a doença é responsabilidade individual e que
os grupos – de doentes ou de portadores do vírus ou de familiares ou amigos deles –
devem organizar a prestação dos cuidados de saúde, ficando o Estado subsidiariamente
responsável pelo controle da qualidade do sangue, fator importante na cadeia da
causalidade, mas, certamente, não o único. Reforça-se, assim, o papel dos
comportamentos individuais e não se questionam as estruturas econômicas e sociais
subjacentes. De fato, o que se verifica, então, é que as estruturas estatais de prevenção
sanitária passam a estabelecer suas prioridades, não mais em virtude dos dados
epidemiológicos, mas, principalmente, em decorrência da análise econômica de
custo/benefício. E isso, por vezes, acaba implicando a ausência de prevenção, elemento
historicamente essencial ao conceito de saúde pública.
2. Saúde como direito e direito à saúde
O reconhecimento do direito à saúde, nas sociedades contemporâneas,
tem sido objeto de polêmicas envolvendo políticos, advogados, cientistas sociais,
economistas e profissionais de saúde. Discute-se, especialmente, a eficácia do
argumento jurídico em relação aos direitos sociais e as externalidades que não podem
ser internalizadas na avaliação da saúde enquanto bem econômico. Entretanto, nos
novos Estados e naqueles radicalmente reformados51, assim como nas sociedades mais
tradicionais e desenvolvidas, existe interesse inafastável no tratamento da saúde como
direito. De fato, a universalização do acesso às ações e serviços de saúde – componente
essencial do direito à saúde – é tema da pauta de reivindicações populares e de fora
científicos, tanto nos Estados Unidos da América52 quanto na África do Sul53.
Para que se possa compreender a argumentação atual, distinguindo as
razões de ambos os lados – por vezes antagônicos – da polêmica, é preciso examinar o
aparecimento e a evolução do conceito de direito à saúde. Muito já se escreveu a
respeito da conceituação da saúde durante a história da humanidade. Entretanto, o
reconhecimento de que a saúde de uma população está relacionada às suas condições de
vida e de que os comportamentos humanos podem constituir-se em ameaça à saúde do
povo e, conseqüentemente, à segurança do Estado, presente já no começo do século
XIX, fica claramente estabelecido ao término da chamada ―II Guerra Mundial‖. Sem
dúvida, a experiência de uma guerra apenas vinte anos após a anterior, provocada, em
grande parte, pelas mesmas causas que haviam originado a predecessora e,
especialmente, com capacidade de destruição várias vezes multiplicada, forjou um
consenso. Carente de recursos econômicos, destruída sua crença na forma de
51
Veja-se, por exemplo, a Constituição portuguesa de 1972 e a Constituição da República do Gabão de
1975.
52
Freqüentemente referida nas reuniões anuais da American Public Health Association durante os últimos
decênios, foi concretizada no President‘s Report to the American People, de outubro de 1993.
53
Especialmente abordada durante as discussões da nova Bill of Rights sul-africana.
46
organização social, alijada de seus líderes, a sociedade que sobreviveu a 1944 sentiu a
necessidade iniludível de promover um novo pacto, personificado na Organização das
Nações Unidas. Esse organismo incentivou a criação de órgãos especiais destinados a
promover a garantia de alguns direitos considerados essenciais aos homens. A saúde
passou, então, a ser objeto da Organização Mundial de Saúde, que a considerou o
primeiro princìpio básico para a ―felicidade, as relações harmoniosas e a segurança de
todos os povos‖54. No preâmbulo de sua Constituição, assinada em 26 de julho de 1946,
é apresentado o conceito de saúde adotado: ―Saúde é o estado de completo bem-estar
fìsico, mental e social e não apenas a ausência de doença‖. Observa-se, portanto, o
reconhecimento da essencialidade do equilíbrio interno e do homem com o ambiente
(bem-estar físico, mental e social) para a conceituação da saúde, recuperando a
experiência predominante na história da humanidade, de que são reflexos os trabalhos
de Hipócrates, Paracelso e Engels, por exemplo.
O conceito de saúde acordado em 1946 não teve fácil aceitação. Diz-se
que corresponde à definição de felicidade, que tal estado de completo bem-estar é
impossível de alcançar-se e que, além disso, não é operacional. Vários pesquisadores
procuraram, então, enunciar de modo diferente o conceito de saúde. Assim, apenas
como exemplo, para Alessandro Seppilli saúde é ―a condição harmoniosa de equilíbrio
funcional, físico e psíquico do indivíduo integrado dinamicamente no seu ambiente
natural e social‖55, para John Last saúde é um estado de equilíbrio entre o ser humano e
seu ambiente, permitindo o completo funcionamento da pessoa56, e para Claude
Dejours, convencido de que não existe o estado de completo bem-estar, a saúde deve ser
entendida como a busca constante de tal estado57. Esses exemplos parecem evidenciar
que, embora se reconheça sua difícil operacionalização, qualquer enunciado do conceito
de saúde que ignore a necessidade do equilíbrio interno do homem e desse com o
ambiente, o deformará irremediavelmente.
É curioso notar a diferença essencial das declarações de direitos do
século dezoito, com seus antecedentes mais famosos (Magna Carta e a English Bill of
Rights). Com efeito, a justificativa para a declaração de direitos das revoluções
burguesas era a existência de direitos inerentes a todos os seres humanos e por isso
mesmo inalienáveis, que poderiam ser coerentemente enumerados e, portanto,
denominados ―direitos humanos‖. Não mais se tratava de concessões extorquidas do
governante, o que revelava disputa entre diferentes grupos de interesse. Assim, o
respeito aos direitos humanos tornava mais eficiente o governo da sociedade, evitandose a discórdia excessiva e, conseqüentemente, a desagregação da unidade do poder58.
Esse individualismo permaneceu a característica dominante nas sociedades reais ou
históricas que sucederam àquelas diretamente forjadas nas revoluções burguesas. Nem
mesmo o socialismo ou as chamadas ―sociedades do bem-estar‖ eliminaram a
predominância do individualismo, uma vez que são indivíduos os titulares dos direitos
coletivos, tais como a saúde ou a educação. Justifica-se a reivindicação encetada pelos
marginalizados de seus direitos humanos frente à coletividade, porque os bens por ela
acumulados derivaram do trabalho de todos os membros dessa coletividade. Os
indivíduos têm, portanto, direitos de crédito em relação ao Estado – representante
jurídico da sociedade política.
54
Cf. Constituição da Organização Mundial de Saúde, adotada pela Conferência Internacional da Saúde,
realizada em New York de 19 a 22 de julho de 1946.
55
Citado por Berlinguer, G. op.cit, 1988.p.34.
56
Cf. Last, J.M. Health. A dictionary of epidemiology. New York, Oxford University Press, 1983.
57
Cf. Dejours, C. Por um novo conceito de saúde. Rev.bras.Saúde ocup., 14(54):7-11, 1986.
58
Cf. Aron, R. Le spectateur engagé. Paris, Gallimard, 1981.p.289-91.
47
Embora o individualismo permanecesse como principal característica dos
direitos humanos enquanto direitos subjetivos, foram estabelecidos diferentes papéis
para o Estado, derivados da opção política pelo liberalismo ou pelo socialismo. De fato,
para a doutrina liberal o poder do Estado deve ser nitidamente limitado, havendo clara
separação entre as funções do Estado e o papel reservado aos indivíduos. Já o
socialismo, impressionado com os efeitos sociais da implementação do Estado liberal –
e do egoísmo capitalista que lhe serviu de corolário – magistralmente apresentados por
Charles Dickens59, por exemplo, reivindicava para o Estado papel radicalmente oposto.
Com efeito, os socialistas do século dezenove lutavam para que o Estado interviesse
ativamente na sociedade para terminar com as injustiças econômicas e sociais.
Entretanto, nem mesmo os socialistas ignoraram o valor das liberdades clássicas, do
respeito aos direitos individuais declarados na Constituição.
O mundo contemporâneo vive à procura do difícil equilíbrio entre tais
papéis heterogêneos, hoje, indubitavelmente, exigência do Estado democrático.
Todavia, o processo de internacionalização da vida social acrescentou mais uma
dificuldade à consecução dessa estabilidade: os direitos cujo sujeito não é mais apenas
um indivíduo ou um conjunto de indivíduos, mas, todo um grupo humano ou a própria
humanidade. Bons exemplos de tais direitos de titularidade coletiva são o direito ao
desenvolvimento60 e o direito ao meio-ambiente sadio61. Ora, a possibilidade de conflito
entre os direitos de uma determinada pessoa e os direitos pertencentes ao conjunto da
coletividade pode ser imediatamente evidenciada e, talvez, os totalitarismos do século
vinte, supostamente privilegiando os direitos de um povo e, nesse nome, ignorando os
direitos dos indivíduos, sejam o melhor exemplo de uma das faces da moeda. A outra
face pode ser retratada na destruição irreparável dos recursos naturais necessários à
sadia qualidade de vida humana decorrente do predomínio do absoluto direito individual
à propriedade.
Apesar do grande conteúdo político abrigado na expressão direitos
humanos – responsável pelo interesse primário dos filósofos – foi necessária a gradual
positivação desses direitos para torná-los eficazes. Assim, não se pôde prescindir do
estabelecimento do Estado de Direito, contemporâneo da adoção da Constituição –
limite para todas as atividades – públicas e privadas – que pudessem ser exercidas no
âmbito de atuação do poder estatal62. O Estado de Direito se consolida na doutrina
jurìdica clássica como ―um Estado cujos atos são realizados em sua totalidade com base
na ordem jurìdica‖63. Para a efetivação dos direitos humanos, a gradual positivação
acima referida envolveu, também, a criação de um sistema legal específico para a
proteção desses direitos. A obviedade de tal afirmação decorre do reconhecimento do
potencial conflituoso dos direitos envolvidos, já mencionado. Portanto, apenas se
poderá alcançar um equilíbrio entre os direitos humanos e o poder político quando todas
as partes estejam submetidas a reais limitações, que, sem dúvida, serão estabelecidas
pela autoridade política. A partir das revoluções liberais do século dezoito, houve,
então, uma introdução progressiva das declarações de direitos nos textos constitucionais
ao ponto em que a teoria constitucional passou a considerar que ―as Constituições dos ...
Estados burgueses estão ... compostas de dois elementos: de um lado, os princípios do
59
60
61
62
63
Como em Oliver Twist.
Objeto da Declaração sobre o direito ao desenvolvimento, adotada pela Assembléia Geral da ONU em
4 de dezembro de 1986.
Objeto da Declaração do Rio de Janeiro de 1992, da ONU.
Tal é a lição de Rousseau, no Contrato Social ( livro II, XII ), totalmente absorvida no processo de
elaboração e ratificação da primeira Constituição escrita: a Constituição dos Estados Unidos da
América, de 1787. Cf., especialmente, Hamilton, A., Madison, J., Jay, J. O Federalista ( artigo 27 )
Cf. Kelsen, H. Teoria General del Estado. Mexico, Editora Nacional,1959.p.120
48
Estado de Direito para a proteção da liberdade burguesa frente ao Estado; de outro, o
elemento polìtico do qual se deduzirá a forma de governo ... propriamente dita‖64.
A aceitação da existência de direitos que pertencem a toda a humanidade
ou a parte dela que não está contida em apenas um Estado fez com que a lei que abriga
os direitos humanos tivesse um caráter internacional. Contudo, não foi essa a origem
das normas internacionais de direitos humanos no século vinte. Szabo65 afirma que ―o
que conduziu finalmente à adoção ‗oficial‘ de medidas tendentes a assegurar a proteção
internacional dos direitos humanos foi a quantidade de atrocidades cometidas contra a
humanidade pelos poderes fascistas durante a segunda guerra mundial‖, referindo
expressamente a declaração do presidente Roosevelt66 que enumerava quatro liberdades
básicas: liberdade de opinião e expressão, liberdade de culto, direito a ser libertado da
miséria e garantia de viver sem ameaças. Dessa forma, quando na conferência de São
Francisco, em 1945, foi criada a Organização das Nações Unidas-ONU, ficou
estabelecida a necessidade de redigir um documento sobre os direitos humanos que
deveria expressar claramente todos os direitos humanos, inclusive os direitos
econômicos, sociais e culturais, e que se deveria criar uma Comissão de direitos
humanos como uma das principais da nova Organização.
Em 10 de dezembro de 1948 a 3ª Assembléia geral da ONU adotou a
Declaração Universal dos Direitos do Homem, que não tem, no sistema legal
internacional, caráter vinculante, tendo apenas valor moral. Entretanto, apesar da força
apenas moral, a Comissão de direitos humanos do Conselho econômico e social
reconheceu a necessidade de redigir um convênio sobre direitos humanos, onde os
Estados se comprometeriam a respeitar os direitos declarados, aumentando a força
vinculante do conteúdo daqueles direitos humanos. Em 1966 a Assembléia geral da
ONU aprovou dois pactos de direitos humanos: o Pacto de direitos civis e políticos e o
Pacto de direitos econômicos, sociais e culturais, curiosamente contrariando o
estabelecido pela própria Assembléia geral em sua primeira sessão. Com efeito, haviase decidido, em 1950, que ―o desfrute das liberdades civis e polìticas e dos direitos
econômicos, sociais e culturais são interdependentes‖ e que ―quando um indivìduo é
privado de seus direitos econômicos, sociais e culturais, ele não caracteriza uma pessoa
humana, que é definida pela Declaração como o ideal do homem livre‖67. É importante
observar que as convenções são, ainda, o modo mais eficaz para o estabelecimento dos
direitos humanos na esfera internacional. A saúde é indiretamente reconhecida como
direito na Declaração Universal de Direitos Humanos (ONU), onde é afirmada como
decorrência do direito a um nível de vida adequado, capaz de assegurá-la ao indivíduo e
à sua família(art.25). Entretanto, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais, que entrou em vigor em 3 de janeiro de 1976, dispõe que:
―1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa
ao desfrute do mais alto nível possível de saúde física e mental.
2. Entre as medidas que deverão adotar os Estados Partes no Pacto a fim de
assegurar a plena efetividade desse direito, figuram as necessárias para:
a) A redução da natimortalidade e da mortalidade infantil, e o desenvolvimento
saudável das crianças;
64
65
66
67
Cf. Schimitt, C. Teoría de la Constitución. Madrid, Editorial Revista de Derecho Privado, 1934. p.47
Cf. Szabo, I. Fundamentos históricos de los derechos humanos. In: Vasak, K. (ed.) Las dimensiones
internacionales de los derechos humanos. Barcelona, Serbal/UNESCO, 1984. V. I, p.50
Em 26 de janeiro de 1941
Assembléia Geral, resolução 543, 6
49
b) A melhoria em todos os seus aspectos da higiene do trabalho e do meio
ambiente;
c) A prevenção e o tratamento das enfermidades epidêmicas, endêmicas,
profissionais e de outra natureza, e a luta contra elas;
d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços
médicos em caso de enfermidade.‖ (art.12)
Pode-se verificar, portanto, que o conceito de saúde adotado nos
documentos internacionais relativos aos direitos humanos é o mais amplo possível,
abrangendo desde a típica face individual do direito subjetivo à assistência médica em
caso de doença, até a constatação da necessidade do direito do Estado ao
desenvolvimento, personificada no direito a um nível de vida adequado à manutenção
da dignidade humana. Isso sem esquecer do direito à igualdade, implícito nas ações de
saúde de caráter coletivo tendentes a prevenir e tratar epidemias ou endemias, por
exemplo.
3. Do direito à saúde ao conceito de direito sanitário
Atualmente a humanidade não hesita em afirmar – ainda que o matizando
– que a saúde é um direito humano e que, como os demais direitos humanos, exige o
envolvimento do Estado, ora para preservar as liberdades fundamentais, principalmente
por meio da eficiente atuação do Poder Judiciário, ora para eliminar progressivamente
as desigualdades, especialmente planejando e implementando políticas públicas68.
Trata-se, então, da reivindicação do direito à saúde. Por outro lado, tendo o Estado
assumido inicialmente a prestação de cuidados de saúde como prestação de um serviço
público, grande quantidade de textos legais rege a execução desse serviço. Isso porque
toda atividade administrativa do Estado moderno é realizada sob a lei. Com efeito,
sendo a administração pública nesse Estado limitada pelos princípios da supremacia do
interesse público sobre o privado e pela indisponibilidade dos interesses públicos e
sendo o interesse público definido pela própria sociedade, o administrador não pode
trabalhar senão com o conhecimento do interesse público que ele deve realizar. Ora, o
interesse público no moderno Estado de Direito, porque sob leis, é definido pela
sociedade em forma de textos legislativos que representam a vontade geral dessa
sociedade. Assim, o administrador público deve agir guiado por uma série de leis
orientadas para o perfazimento do interesse público que, no que respeita aos cuidados
sanitários, delimitam os objetivos da atuação do Estado na área da saúde e os meios a
serem empregados para atingi-los.
Contudo, como já se viu, a saúde não tem apenas um aspecto individual
e, portanto, não basta que sejam colocados à disposição das pessoas todos os meios para
a promoção, proteção ou recuperação da saúde para que o Estado responda
satisfatoriamente à obrigação de garantir a saúde do povo. Hoje os Estados são, em sua
maioria, forçados por disposição constitucional a proteger a saúde contra todos os
perigos. Até mesmo contra a irresponsabilidade de seus próprios cidadãos. A saúde
―pública‖ tem um caráter coletivo. O Estado contemporâneo controla o comportamento
dos indivíduos no intuito de impedir-lhes qualquer ação nociva à saúde de todo o povo.
68
Veja-se, por exemplo: Comparato, F,K. Direitos Humanos e Estado. In: Fester, A.C.R.(org.) Direitos
humanos e... São Paulo, Brasiliense,1989.p.93-105
50
E o faz por meio de leis. É a própria sociedade, por decorrência lógica, que define quais
são esses comportamentos nocivos e determina que eles sejam evitados, que seja punido
o infrator e qual a pena que deve ser-lhe aplicada. Tal atividade social é expressa em
leis que a administração pública deve cumprir e fazer cumprir. São, também, textos
legais que orientam a ação do Estado para a realização do desenvolvimento sócioeconômico e cultural. Conceitualmente, a sociedade define os rumos que devem ser
seguidos para alcançá-lo, estabelecendo normas jurídicas cuja obediência é obrigatória
para a administração pública69. E como a saúde depende também desse nível de
desenvolvimento, as disposições legais que lhe interessam estão contidas em tais planos
de desenvolvimento do Estado.
O direito da saúde pública é, portanto, parte do que tradicionalmente se
convencionou chamar de direito administrativo, ou uma aplicação especializada do
direito administrativo. É parte do direito administrativo porque refere sempre atuações
estatais orientadas, o mais exaustivamente possível, pela própria sociedade, por meio do
aparelho legislativo do Estado. Em termos práticos, ao direito da saúde pública assenta
perfeitamente o rótulo de direito administrativo porque se trata de disciplina normativa
que se caracteriza pelo preenchimento daqueles princípios básicos da supremacia do
interesse público sobre o particular e da indisponibilidade do interesse público70.
Entretanto, a referência ao direito administrativo não é suficiente, uma vez que na
aplicação peculiariza-se o direito da saúde pública: ora são as atuações decorrentes do
poder de polícia, ora a prestação de um serviço público, ora, ainda, um imbricamento de
ambos, como no caso da vacinação obrigatória realizada pelos serviços de saúde
pública, que visam, principal ou exclusivamente, promover, proteger ou recuperar a
saúde do povo71.
O direito sanitário se interessa tanto pelo direito à saúde, enquanto
reivindicação de um direito humano, quanto pelo direito da saúde pública: um conjunto
de normas jurídicas que têm por objeto a promoção, prevenção e recuperação da saúde
de todos os indivíduos que compõem o povo de determinado Estado, compreendendo,
portanto, ambos os ramos tradicionais em que se convencionou dividir o direito: o
público e o privado. Tem, também, abarcado a sistematização da preocupação ética
voltada para os temas que interessam à saúde72 e, especialmente, o direito internacional
sanitário, que sistematiza o estudo da atuação de organismos internacionais que são
fonte de normas sanitárias e dos diversos órgãos supra-nacionais destinados à
implementação dos direitos humanos. Afirmar que o direito sanitário é uma disciplina
nova não significa negar a existência de legislação de interesse para a saúde desde os
períodos mais remotos da história da humanidade ou a subsunção da saúde nos direitos
humanos, de reivindicação imemorial. Significa, porém, reconhecer que ―desde o fim do
século XIX e sobretudo nos últimos cinqüenta anos, as relações de direito público no
campo sanitário e social foram consideravelmente ampliadas, multiplicadas,
69
É o que afirma o artigo 174 da Constituição do Brasil, por exemplo: ―... o Estado exercerá, na forma da
lei, as funções de ... e planejamento, sendo este determinante para o setor público ...‖
70
Cf. Bandeira de Mello, C.A. Elementos de direito administrativo. São Paulo, Revista dos Tribunais,
1980.p.5
71
Veja-se Moreau, J. Droit administratif fondamental et droit administratif appliqué: l‘exemple du droit
de la santé publique. In: Truchet, D. (org.) Etudes de droit et d‘economie de la santé. Paris,
Economica, 1982
72
Veja-se, por exemplo, a freqüente publicação de livros dedicados aos dois temas, como: Hall, M.A. &
Ellman, I.M. Health care law and ethics. St. Paul., Minn., West Publishing Co., 1990 e Bourgeault,
G. L’éthique et le droit. Bruxelles, De Boeck-Wesmael, 1990.
51
enriquecidas a ponto de produzir esse ‗precipitado‘ que será ainda relativamente novo
em 1990‖73.
Há muito, a Organização Mundial de Saúde se interessa pelo direito e a
legislação sanitária, tanto no plano internacional como nos diferentes Estados. Todavia,
o desenvolvimento contemporâneo desse interesse é, também, recente. Apenas em 1977,
durante a 30ª Assembléia Mundial de Saúde, ficou resolvido que ―reconhecendo que
uma legislação sanitária adaptada aos imperativos nacionais tende a proteger e melhorar
a saúde do indivìduo e da coletividade‖ se ―pede ao Diretor Geral que reforce o
programa da OMS no campo da legislação sanitária para ajudar os Estados membros ...
estude e coloque em prática os melhores meios de difusão da informação legislativa nos
Estados membros objetivando inspirar a formulação ou a revisão de textos de leis
relativos à saúde‖74. Tal Resolução provocou a manifestação da 33ª Assembléia
Mundial de Saúde (1980) que, durante sua 17ª Sessão Plenária manifestou-se sobre o
―rapport‖ do Diretor Geral, nos seguintes termos: ―Notando que uma legislação sanitária
apropriada é um elemento essencial dos sistemas de serviços de saúde e de higiene do
meio ambiente‖, ―pede ao Diretor Geral ... a elaboração de um programa detalhado de
cooperação técnica e de transferência de informação em matéria de legislação
sanitária‖75.
O Escritório Regional para a Europa, da Organização Mundial de Saúde,
criou, em conseqüência dessas recomendações, um Comitê Consultivo de Legislação
Sanitária que, considerando que ―para atuar a polìtica de saúde que deseja, um governo
pode apoiar-se ... na legislação e regulamentação propriamente ditas‖, decidiu realizar
uma pesquisa sobre o ensino do tema. O estudo tinha os seguintes objetivos: ―rever e
analisar a situação européia concernente aos programas e meios de formação em direito
e legislação sanitária; comparar a situação nos diferentes países da Europa com relação
às instituições concernentes e os conteúdos dos programas de ensino; indicar as
tendências atuais na Europa quanto a esse ensino; formular as recomendações para
encorajar tal ensino e promover seu reconhecimento e sua utilização ótima pelos
Estados membros‖76. Os resultados dessa pesquisa apontam a existência de inúmeros
cursos, tanto em escolas de formação médica como jurídicas e mesmo em institutos de
nível superior agregados ou não às Universidades.
Em 1984 o direito sanitário era ensinado em todos os Estados da
Comunidade Econômica Européia de então, com a única possibilidade de exceção do
Luxemburgo (onde o Comitê não conseguiu a informação). Os mais amplos programas
de pós-graduação na matéria eram encontrados na Itália e na França. A Faculdade de
Direito da Universitá degli studi di Bologna organizou em 1962 um curso de
aperfeiçoamento em direito sanitário, que, em 1979, originou a Scuola de
Perfezionamento in Diritto Sanitário, agregada àquela Faculdade de Direito. Esse curso,
realizado em dois anos, com um mínimo de 110 horas, oferece um diploma de
aperfeiçoamento em direito sanitário, para graduados em várias áreas (direito, ciência
política, economia, medicina, veterinária, farmácia, engenharia, por exemplo), desejosos
de receber formação especializada em direito sanitário. Na França, o Centro de Direito
73
Cf. Moreau,J. & Truchet, D. Droit de la santé publique. 2ª ed. Paris, Daloz, 1990.p.6
Word Health Assembly, 30th, Geneva, May, 1977. [Resolution] WHA 30.44. In: World Health
Organization. Handbook of resolutions and decisions of the World Health Assembly and the
Executive Board: 1973-1984. Geneva, 1985. V.2
75
Word Health Assembly, 33rd , Geneva, May, 1980. [Resolution] WHA 33/17. In: World Health
Organization. Handbook of resolutions and decisions of the World Health Assembly and the
Executive Board: 1973-1984. Geneva, 1985. V.2
76
Cf. Auby, J-M. Legislation sanitaire: programmes et moyens de formation en Europe. Paris,
Masson, 1984.p.5-7
74
52
Sanitário, da Universidade de Bordeaux I, permite aos titulares de mestrado em direito
público ou privado ou graduados em medicina, farmácia, odontologia, entre outros,
conquistarem o Diploma de Estudos Especializados em Direito Sanitário que lhes dá o
direito de, após dois anos, obter o grau de doutor, pela redação de uma tese. O programa
tem a duração de um ano, com 145 horas.
Nas Américas, a Faculdade de Saúde Pública da Columbia University,
nos Estados Unidos, uma das primeiras escolas de saúde pública no mundo, mantém
regularmente disciplinas como: legislação de saúde pública, aspectos legais da
administração dos serviços de saúde, regulamentação dos cuidados de saúde e legislação
e política populacional. Nelas são abordados, por exemplo, os seguintes temas: direitos
humanos e aspectos legais do aborto, da esterilização compulsória e do acesso à
contracepção; análise jurídica do estado atual e das tendências observáveis da legislação
das organizações de prestação de cuidados de saúde. Também nos Estados Unidos da
América, o relatório da ―Comissão sobre Educação para Administradores de Saúde‖
incluiu como o primeiro elemento chave para a gerência administrativa em saúde e
atenção médica o conhecimento da ―legislação que envolve todos os tipos de
instituições, agências e programas de saúde e atenção médica‖77. E a Lei 94-484, de
1976, conhecida como ―The Health Profession Educational Assistance Act‖, orientou as
iniciativas do governo federal para incluìrem entre seus objetivos especìficos ―o apoio
ao desenvolvimento ou expansão do conteúdo ou linha mestra de programas
especializados em polìtica e legislação‖78.
Mais recentemente, a Organização Pan-americana de Saúde, escritório
regional para as Américas da Organização Mundial de Saúde, buscando contribuir para
a reorganização e reorientação do setor saúde, por meio da descentralização e da
participação social, publicou o documento ―Desenvolvimento e Fortalecimento dos
Sistemas Locais de Saúde: a Administração Estratégica‖, onde afirma ser a legislação
um dos meios para que a saúde se converta em ingrediente fundamental do processo de
desenvolvimento. Assim, considera que ―a legislação não é apenas o instrumento formal
por meio do qual se deve re-estruturar o setor saúde a fim de permitir seu adequado
funcionamento, senão, também, o marco adequado para gerar as condições de pleno
desenvolvimento físico e mental das pessoas e para que elas se integrem no processo
como atores e beneficiários‖, acrescentando que ela representa um meio para alcançar o
desenvolvimento, global e inter-relacionado, devendo, portanto, ser analisada no
contexto internacional, nacional e local79.
No Brasil deve-se reconhecer o pioneirismo de alguns estudiosos do
direito sanitário80 e do trabalho daquele grupo de professores e profissionais das áreas
do direito e da saúde pública que introduziram seu estudo sistemático como disciplina
do conhecimento na Universidade de São Paulo, a partir de 1987. As diferentes origens
acadêmicas geraram as sessões em que se discutiu em profundidade o conceito de saúde
e o conceito de direito, apresentados, respectivamente, por professores de saúde pública
e direito. Tais encontros foram o germe das Reuniões Científicas que caracterizaram os
77
Cf. W.K. Kellogg Foundation. Sumary and the report of the Comission on Education for health
Administration. Ann Arbor, Michigan, Health Administration Press, 1974
78
Hatch, T.D. & Holland, W.J. Education for health management: a federal perspective. In: Levey, S. &
McCarthy, T. Health management for tomorrow. Philadelphia, J.B.Lippincolt, 1980.
79
Organización Panamericana de la Salud. Desarollo y fortalecimiento de los sistemas locales de
salud: la administracón estratégica. Washington, 1992.p.27.
80
Veja-se Hélio Pereira Dias (Direito de saúde. Rio de Janeiro, ESESP,1979) e César Luiz Pasold
(Estudo evolutivo da legislação sanitária catarinense e suas repercussões na estrutura dos serviços de
saúde pública de Santa Catarina. São Paulo, 1978. [Dissertação de Mestrado – Faculdade de Saúde
Pública da USP]).
53
primeiros anos do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário-CEPEDISA81. A
partir daí, definiu-se o que deveria ser o currículo básico para um curso de
especialização82, que – discutido com professores estrangeiros com experiência no
ensino do direito sanitário – foi implantado regularmente na Universidade de São Paulo,
a partir de 1989. A necessidade de institucionalização de grupos interdisciplinares fez
com que a Universidade de São Paulo, ao reformar seus Estatutos em 1988, oferecesse
abrigo aos Núcleos de Apoio, criados ―com o objetivo de reunir especialistas de um ou
mais órgãos e Unidades em torno de programas de pesquisa ou de pós-graduação de
caráter interdisciplinar‖83. Por meio da primeira Resolução do Magnífico Reitor
destinada à criação de núcleos de apoio à pesquisa, foi criado o Núcleo de Pesquisas em
Direito Sanitário (Nap-DISA)84 destinado a dar apoio à pesquisa em Direito Sanitário85.
4. Autonomia científica do direito sanitário e sua interação com outras
áreas do conhecimento
Para que se possa discutir a eventual autonomia do direito sanitário como
ramo do conhecimento é necessário que se enfrente a enigmática e angustiante
experiência contemporânea do direito e das leis. Com efeito, constata-se, inúmeras
vezes, a existência de um conjunto de leis válidas e que exercitam o poder de império,
obrigando aos comportamentos que prescrevem, e que não guardam qualquer
vinculação com o sentimento de justiça preponderante entre as pessoas submetidas a
determinado sistema normativo. Talvez seja essa uma das razões a explicar a existência
de leis que – na linguagem popular brasileira – não pegam. E os estudiosos do direito
constroem, então, teorias para explicá-lo como um sistema fechado em si mesmo86,
permitindo que se continue cinicamente a explicar o funcionamento do sistema jurídico
no conforto proporcionado pela abstração dos constrangimentos éticos e políticos que
definem o direito de cada sociedade. Não se pode negar, contudo, a capacidade que têm
essas teorias para realizar a tarefa a que se propõem. Entretanto, compreender o sistema
jurídico responde apenas a um dos sentidos do termo direito, palavra analógica que
designa três realidades: o sistema normativo, as permissões dadas por meio de normas
jurídicas para a prática de atos (o chamado direito subjetivo) e a qualidade do que é
justo87.
Curiosamente, o sentido que primeiro se desenvolveu na civilização
ocidental é exatamente aquele para o qual os teóricos e profissionais do direito vêm
dedicando, historicamente, cada vez menos atenção: um ideal de comportamento social,
81
Órgão científico de apoio ao ensino, à divulgação, pesquisa e prestação de serviços à comunidade, tanto
da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, quanto da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (Estatuto do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito SanitárioCEPEDISA, art. 1º)
82
Introdução à Filosofia e à Sociologia do Direito Sanitário; Ética em Saúde; Meios de Controle em
Direito Sanitário; Direito Internacional Sanitário; Direito Sanitário do Trabalho e da Previdência
Social; Direito Público Sanitário; Direito Penal Sanitário; Direito Civil Sanitário.
83
Cf. Estatuto da Universidade de São Paulo, art.7º
84
Cf. Resolução nº 3.658, de 27 de abril de 1990, do Magnífico Reitor da Universidade de São Paulo
85
Regimento do Núcleo de Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo, art. 2º
86
É o caso, por exemplo, de uma corrente de teóricos do direito, originada na Alemanha na segunda
metade do século vinte, que tem como expoentes Niklas Luhmann e Gunther Teubner
87
Entre outras, na excelente lição de Goffredo Telles Júnior em Iniciação na ciência do direito (São
Paulo, Saraiva, 2001)
54
qualificado, então, como justo. De fato, para os gregos, o justo (o direito) significava o
que era visto como igual, mas na Roma Antiga já se podiam identificar duas palavras
para traduzir a mesma situação: jus e derectum e – como para reforçar o caráter
predominantemente prático daquela civilização – em pouco tempo o termo derectum se
sobrepôs ao jus. Afastavam-se, assim, os juristas romanos das teorias abstratas sobre o
justo em geral e construíam um modo operacional para examinar o que é justo. A
preocupação com a identificação do direito com a justiça passou a ser, então, interesse
do filósofo do direito e, com a afirmação do positivismo científico, eliminou-se mesmo
do curriculum dos cursos jurídicos a disciplina filosofia do direito, em alguns Estados
modernos88. Isso não foi suficiente, contudo, para que se afastasse o desconforto que
acomete toda a pessoa comum que deve definir o que seja o direito em uma dada
situação, uma vez que ele se pode examinar sob mais de um prisma, inclusive, sob a
ótica de sua correspondência ao senso comum de justiça.
Talvez a melhor forma de tornar clara a implicação semântica,
privilegiando-se o sentido dos direitos subjetivos, sejam os direitos humanos. Com
efeito, na lição de Goffredo Telles Júnior, – sempre que assegurados em normas
jurídicas – os direitos humanos configuram permissões para a fruição dos bens a que a
generalidade dos seres humanos atribui máximo valor. Ora, o elenco dos valores mais
importantes para cada sociedade é historicamente construído e comunga, em suas raízes,
com o sentido imperante de justiça. Trate-se, portanto, de defender – no sistema jurídico
vigente – a vida, a saúde ou a liberdade de reunião ou de associação, por exemplo,
sempre se estará atuando um direito subjetivo absolutamente permeado de valores
sociais. Esse sentido do direito é bastante explorado, hodiernamente, pela teoria da
argumentação jurídica. Os profissionais do direito empregam a argumentação jurídica
para construir uma verdade ideal, aceita pelas partes em conflito, fundando seu discurso
persuasivo naqueles valores.
As normas jurídicas podem ser examinadas, também, como objetos, uma
ordenação a que as pessoas devem se sujeitar. Aqui, apesar de serem muitas as fontes
dessas normas, sobressai em importância – especialmente a partir do liberalismo
político – a lei. Hoje é difícil compreender o verdadeiro culto à lei, que a humanidade já
praticou. Apenas para ilustrar, é conveniente lembrar que na Grécia Antiga (século IV
a.C.) havia uma ação nominada (graphè paranomon) para punir aquele que tivesse
proposto uma lei à Assembléia, que aprovada e implementada se revelasse nociva aos
interesses da cidade89. Para os revolucionários burgueses do final do século dezoito, a
forma ideal de oposição ao governo monárquico e absoluto era o estabelecimento da
democracia, onde a vontade do povo estaria representada na lei. E como só é lei aquilo
que interessa verdadeiramente à organização social e que é definido pelo povo,
encontrando-se um mecanismo que impeça a instauração de qualquer outra ordem que
não a legal se estará resolvendo o desafio formulado por Rousseau, ao iniciar o Contrato
Social: ―encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de
cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só
obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes‖90. As
revoluções burguesas procuraram essa fórmula no desenvolvimento da doutrina da
separação de poderes, na afirmação da Constituição como o mais importante documento
político de um povo, na formulação da doutrina do Estado de Direito e na idéia moderna
de democracia. Assim, o ensinamento da experiência – mostrando que a especialização
88
É o caso da França, por exemplo. (Cf. Garapon, A. La question du juge. in Pouvoirs (75):13-26. Paris,
Seuil, 1995)
89
Ver Ferreira filho, M. G. Do processo legislativo. São Paulo, Ed. do autor, 1968. pág.23
90
Cf. Rousseau, J.J. Op. cit. Livro primeiro, cap. VI
55
no exercício de qualquer função implica mais eficiência91 – foi associado à interdição
formal de que ―aquele que faz as leis as execute‖92 e erigido em verdadeiro dogma93. É,
igualmente, a origem revolucionária que permite compreender o grande valor que foi
dado à forma – muitas vezes em prejuízo do próprio conteúdo – na elaboração da
doutrina do Estado de Direito. Com efeito, aos líderes revolucionários bastava que se
declarassem extintos os privilégios e instituída a igualdade perante a lei para que a
burguesia vencedora fosse realmente livre. Isso porque os obstáculos até então postos
ao exercício da liberdade burguesa decorriam dos privilégios outorgados à aristocracia e
da insegurança dos direitos que tinham como única fonte a vontade do soberano (por
isso mesmo, dito absoluto) e não da falta de recursos materiais para tal exercício.
Instaurada a democracia liberal burguesa verificou-se – durante o século
dezenove, no mundo ocidental – que apenas a garantia de igualdade formal (perante a
lei), característica do Estado de Direito, não atendia ao anseio de liberdade real de todos
aqueles que haviam sido excluídos do processo de elaboração legislativa. De fato, já a
primeira Constituição francesa, ao estabelecer quem pode participar da feitura da lei,
tanto compondo o Parlamento como elegendo representantes para compor o Parlamento,
excluiu inicialmente todas as mulheres e em seguida os homens que não possuíssem
patrimônio ou renda superior a determinado valor94. Desenvolve-se, então, novo período
revolucionário, pois ficava claro que os assalariados da indústria nascente, por exemplo,
embora formalmente iguais aos proprietários, perante a lei, não possuíam as mesmas
condições materiais de exercício do direito à liberdade que seus patrões. Assim, as
revoluções operárias do final do século dezenove e começo do século vinte introduzem
o adjetivo social para qualificar o Estado de Direito. Buscava-se corrigir a deformação
do processo legislativo e, conseqüentemente, da idéia moderna de democracia, causada
pelo predomínio da forma. É importante notar que esses revolucionários continuaram a
valorizar a igualdade formal como uma conquista fundamental, que deveria, entretanto,
ser acrescida das possibilidades de sua efetiva realização. Tratava-se, portanto, de
reconhecer a existência de desigualdades materiais que inviabilizavam o gozo dos
direitos liberais e de responsabilizar o Estado pelo oferecimento – inicialmente aos
trabalhadores e, em seguida, a todos aqueles que necessitassem – daquelas condições
que permitissem a igualdade real, de oportunidades. Caracterizam as conquistas desse
período, a adoção do sufrágio universal95 (garantindo a todos o direito de participar no
processo de elaboração das leis, por meio da eleição de representantes), a inclusão de
um capítulo nas Constituições garantindo direitos trabalhistas96 e a implementação do
chamado ―Estado do Bem Estar Social‖, que presta serviços públicos para garantir
direitos97, entre outras.
A experiência do Estado Social de Direito revelou, contudo, que a
ampliação da participação no processo legislativo, de modo a garantir que todos tomem
91
É a conclusão de Aristóteles em A política, Livro III, cap. XI; John Locke, no Segundo tratado sobre
o governo, XII, XIII e XIV; e Montesquieu, nO espírito das leis, VI, entre outros.
92
Cf. Rousseau, J. J. Op.cit., livro terceiro, cap. IV
93
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da revolução francesa de 1789, afirmava, no artigo
16: ― Toda sociedade na qual a garantia de direitos não está assegurada, nem a separação dos poderes
determinada, não tem Constituição‖
94
Cf. La Constitution de 1791, Chapitre premier, Section II, Art.2 & Section III, Art.3
95
Introduzido na Constituição francesa de 1793, não foi praticado. Embora com menos restrições foi essa
a situação até 1919, na Inglaterra e 1920, nos Estados Unidos da América, com a admissão do voto
feminino.
96
Introduzido, pela primeira vez, na Constituição do México de 1917. Entretanto, com maior repercussão
doutrinária – porque buscou efetividade – assinale-se o Livro II da Constituição de Weimar
(Constituição alemã de 11 de agosto de 1919) dedicado aos ―Direitos e deveres do cidadão alemão‖
97
A expressão foi forjada na Inglaterra nos anos 1940.
56
parte na feitura da lei, não ―assegurou a justiça social nem a autêntica participação do
povo no processo polìtico‖98. Verificou-se que a exigência de formalidade combinada
com a grande ampliação das esferas de atuação do Estado, atingindo quase todos os
setores da vida social, colocou em risco a democracia. Já não era apenas a lei – fruto da
atividade dos Parlamentos – que regulava a vida social, mas, cada vez mais essa função
era realizada por atos normativos emanados pelo Poder Executivo. Observou-se,
sobretudo, que a forma da lei afastou-a de seu conteúdo ético. A lei passou a atender a
interesses de grupos, a partes da sociedade e não mais ao interesse público. Assim, o
papel que os fundadores dos Estados Unidos da América reservaram para o Poder
Judiciário (na determinação final da teoria da separação dos poderes) de controlar a
obediência à lei, que representava a vontade geral, tornou-se impossível de ser
cumprido: ora exigia-se a estrita observância da legalidade em casos onde a lei não mais
abrigava a idéia de justiça, ora deixava-se enredar pelos vários documentos normativos
que expressavam interesses particulares, tornando aleatória a obediência ao princípio da
legalidade. A lembrança da Alemanha nazista ou da Itália fascista é suficiente para
evidenciar que sem a ―efetiva incorporação de todo o povo nos mecanismos de controle
das decisões e a real participação de todos nos rendimentos da produção‖99 não se pode
adequar a idéia de democracia aos tempos de hoje.
Desse modo, o conceito de Estado Democrático de Direito reconhece,
respeita e incorpora as conquistas representadas pelo Estado de Direito e pelo Estado
Social de Direito, mas soma à igual possibilidade de participação na elaboração das
normas gerais que devem reger a organização social o controle de sua aplicação aos
casos particulares. Trata-se, enfim, de instaurar a cidadania, onde o ―cidadão é aquele
que tem uma parte legal na autoridade deliberativa e na autoridade judiciária‖, como
ensina Aristóteles100. Idealmente, portanto, supera-se a angústia e resolve-se o enigma
inicial, uma vez que as leis assim elaboradas e aplicadas se aproximam verdadeiramente
do sentido do justo imperante em uma sociedade.
Já se verificou, também, que dada a complexidade do conceito de saúde,
o estudo do direito sanitário envolve – necessariamente – seu exame sob várias óticas.
É, então, a partir dessas exigências contemporâneas que se deve discutir a eventual
autonomia do direito sanitário como ramo do conhecimento. Um exame, ainda que
superficial da doutrina sobre a classificação dos chamados ―ramos do direito‖, revela
que ela se aplica apenas ao direito compreendido como um objeto. É o sistema de
normas jurídicas que admite sejam divididos seus componentes em diversas partes. Ora,
todas as classificações dependem do interesse ou da necessidade do estudioso e a elas
não se aplica o qualificativo de falso ou verdadeiro, uma vez que são, somente, úteis ou
inúteis. Tradicionalmente os estudiosos dos sistemas jurídicos consideraram útil sua
divisão em partes bem discriminadas. A primeira divisão, sempre recordada, data dos
romanos, que o dividiram em direito público e privado101. Entretanto, os mesmos
autores que argumentam com a conveniência de tal método para tratar adequadamente
seu objeto de estudo verificam o aparecimento de ―ramos‖ que não são ou públicos ou
privados, mas ―baseados em normas parcialmente públicas e parcialmente privadas.‖102
98
Cf. José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo, Revista dos Tribunais,
1989. p. 105
99
Idem. Ibdem.
100
Cf. Aristóteles. Op.cit. Livro III, cap. I, § 8
101
Veja-se, entre outros, Reale, M. Lições preliminares de direito. 3a. ed. São Paulo, Saraiva, 1976 p.
335 e seg. ou Telles Jr., G. op. cit. p. 231 e seg.
102
Essa observação de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito administrativo. 12a. ed. São Paulo, Atlas,
2.000. p. 24) tratando do direito econômico é apenas um exemplo, entre vários outros que poderiam
ser citados..
57
Identifica-se, assim, uma crítica séria à classificação proposta, uma vez que dirigida
exatamente à sua utilidade. A maior crítica à árvore do conhecimento humano foi
trazida por Popper, no início dos anos sessenta do século vinte. Em uma conferência na
universidade de Oxford ele explicava que o crescimento do conhecimento humano tem
uma estrutura extremamente diferente e que sendo obrigado a manter a metáfora da
árvore, teria que ―representar a árvore do conhecimento como que brotando de
incontáveis raízes que crescem no ar em vez de embaixo e que, no fim de contas,
tendem a unir-se num tronco comum‖103. Pode-se dizer que essa teoria é ainda a que
melhor explica o conhecimento humano, levando o professor Boaventura de Souza
Santos, por exemplo, a afirmar que ―no paradigma emergente o conhecimento é
total‖104.
Por outro lado, contemporânea à crítica de Popper é a conclusão de Kuhn
sobre a estrutura das revoluções científicas, que ele afirma acontecerem quando os
especialistas não podem mais ignorar as anomalias que corrompem a tradição
estabelecida pela prática cientìfica, dando, assim, origem ―a investigações
extraordinárias que os conduzem finalmente a um novo conjunto de convicções‖105. Um
dos líderes dessas pesquisas que assinalam a mudança de paradigma é Pierre Bourdieu,
que introduziu, em 1975, a noção de campo científico, ou seja o espaço relativamente
autônomo no qual se inserem os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou
difundem a ciência. Essa compreensão do campo científico permite que se supere a
alternativa entre ―ciência pura, totalmente livre de toda necessidade social e ciência
aplicada, sujeita a todas as exigências político-econômicas‖106. Ora, o direito sanitário
representa, sem qualquer dúvida, uma evidência da mudança de paradigma no campo do
direito. Com efeito, para sua definição tanto é necessária a discussão filosófica ou
sociológica que permite afirmar a saúde como um direito (abarcando seus aspectos
individuais, os coletivos e, igualmente, aqueles difusos, derivados do desenvolvimento
social), como é indispensável que se dominem os instrumentos adjetivos que
possibilitam a realização efetiva do direito à saúde. Por isso, pode-se afirmar que o
direito sanitário expressa um sub-campo do conhecimento científico – dotado de leis
próprias, derivadas dos agentes e instituições que o caracterizam – que facilita a
superação da divisão (hoje inconveniente) entre ciência pura e aplicada.
5. Direito sanitário e o direito regulatório
Examinar a possível correspondência do direito sanitário ao direito
regulatório exige uma série de esclarecimentos iniciais, que se reportam aos diversos
significados hodiernos dos termos regulação, regulador e regulatório em sua relação
com o direito. Dada sua grande difusão, sendo largamente empregados nas ciências
sociais, sobretudo, na economia, na administração e no direito – configurando
verdadeiramente um novo paradigma científico – é necessário que se atente,
inicialmente, para a advertência conhecida como a lei de Aristóteles, segundo a qual a
extensão de um termo é inversamente proporcional à sua compreensão. Assim, é
conveniente uma rápida observação histórica de seu emprego. O conceito de regulação,
103
Cf. Popper, K. R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Belo Horizonte, Itatiaia,
1975. p.240
104
Cf. Santos, B. S. Um discurso sobre as ciências. Porto, Afrontamento, 1992
105
Cf. Kuhn, T. S. La structure des révolutions scientifiques. Flammarion, 1983 p.23
106
Cf. Bourdieu, P. Les usages sociaux de la science. Paris, INRA, 1997
58
no século dezoito, está ligado à técnica, expressando um sistema de comando destinado
a manter constante o valor de uma grandeza, quaisquer que sejam as perturbações que a
possam fazer variar, como, por exemplo, o termostato. No século dezenove, ele se
difunde pela fisiologia, significando os equilíbrios dinâmicos do corpo e assim,
definem-se seus traços essenciais: ―manter um ambiente equilibrado; apesar das
perturbações exteriores; graças a um conjunto de ajustamentos‖107. Seu uso só se
dissemina nas ciências sociais, entretanto, durante o século vinte, sob influência do
desenvolvimento da cibernética, que implica sempre um mecanismo de autoregulação,
permitindo aos sistemas organizados corrigir suas ações por meio das informações sobre
seus resultados recebidas do ambiente. É, então, a teoria dos sistemas que se introduzirá
na teoria das organizações, na economia, na sociologia, na ciência política e no direito.
O conceito de regulação, no direito, deve ser examinado sob duas óticas:
visto de fora, o direito será considerado um meio de regulação dos comportamentos;
internamente ao sistema (entendendo-se, portanto, o direito como um sistema), a
regulação se refere aos mecanismos destinados a eliminar as contradições eventuais e a
reforçar sua coerência. Procurando compreender quando se faz uso do termo regulação
em direito, pode-se verificar o seu emprego em períodos de crise, para remediar ou
propor uma solução para o disfuncionamento da ordem estabelecida, especialmente
quando os mecanismos corretores dessa ordem já não conseguem resolve-los. Buscamse, então, novos modos de regulação, desenvolvendo-se uma competição institucional
para conquistar novas posições de regulação, o que pode explicar o fato da ―autoproclamação do caráter regulador de alguns órgãos‖108. Fica claro, assim, que a grande
popularização do termo regulação no direito e na ciência política revela uma
inadequação geral dos fundamentos político-jurídicos do Estado moderno às
necessidades jurídicas e políticas do Estado contemporâneo (nomeado, por alguns,
Estado propulsivo).
Conforme se verificou acima, já a partir do século dezenove, com a
implementação do Estado do Bem-Estar Social, instaura-se um direito essencialmente
diferente daquele advogado pelos burgueses revolucionários: um direito público mais
amplo, porém menos coator (direito dos serviços públicos); misturando o público e o
privado; desigual (desprezando a igualdade formal em nome da igualdade material);
comportando direitos subjetivos ao recebimento de prestações; e cuja eficácia deve ser
avaliada (institucionaliza-se a avaliação da administração pública, que permite sua
fiscalização pelos parlamentos). Com a generalização do intervencionismo do Estado,
que se serve do direito para orientar outros sistemas sociais (economia, educação,
cultura, etc.) à conformidade com o interesse geral e não às exigências do mercado,
prevalece a idéia de regulamentar as políticas privadas, assinalando-lhes uma finalidade
(época áurea do planejamento). O direito passa a ser, então, bastante detalhado
(portarias e circulares destinadas ao público externo) e dirigido pela administração
pública (as agências independentes, nos Estados Unidos, reúnem o poder legislativo e o
executivo) e se caracteriza como um direito de princípios diretores, o que exige que seus
aplicadores realizem uma escolha entre os diversos interesses presentes no caso
concreto. Assim se pode afirmar que o planejamento introduz no direito uma lógica
diametralmente oposta àquela que caracteriza o direito moderno.
São os teóricos do direito como um sistema autopoiético que julgam
necessário identificar uma fase do desenvolvimento do direito – reflexivo – para
107
Na lição de Chevallier, J. De quelques usages du concept de régulation. in Miaille, M. La régulation
entre droit et politique. Paris, L‘Harmattan, 1995
108
Como sugere, Autin, J-L. Refléxions sur l‘usage de la régulation em droit publique. in Miaille, M. op.
cit.
59
descrever a operação do sistema social corporativo, que assegura a mediação entre o
Estado e a sociedade civil, no Estado Democrático de Direito. De fato, se observa que a
generalização dos mecanismos de democracia direta exige grande dose de concertação,
pois, incluindo os destinatários na formação e na aplicação das regras, os programas
compatibilizam os sistemas jurídico e regulado. O direito nesse período apresenta as
seguintes características: pouca transparência (a negociação não se submete à
publicidade do direito do Estado e seleciona as pessoas ou grupos que dela participam);
marcada setorialização (regulamenta parcelas que interessam a determinados grupos em
prejuízo do interesse de toda a sociedade); muita seletividade e desigualdade (privilegia
os grupos sociais organizados e os que têm interesses de curto prazo); necessidade de
uma disciplina para a elaboração e interpretação das normas (processos complexos de
formação das normas: informação, audiências e consultas públicas, além da
complexidade científica dos temas a serem legislados ou julgados)109. É a esse tipo de
Estado que assenta bem o rótulo de regulador, pois ele deve ―definir as regras do jogo e
harmonizar os comportamentos dos agentes econômicos e sociais‖110.
Alguns autores chamam de estimulador o Estado contemporâneo,
essencialmente implementador de políticas públicas. Tal denominação é bastante
atraente, pois, seus instrumentos de governo são, sobretudo, a persuasão e a informação
– que orientam a auto-organização da sociedade – empregando o constrangimento
apenas para garantir os valores fundamentais da sociedade e o respeito ao pactuado.
Entretanto, trata-se de uma idealização que tem por função realçar a introdução de um
quase-direito do Estado, que edita recomendações, faz acordos amigáveis, enuncia
princípios desprovidos de força decisória, somente para satisfazer a opinião pública,
uma vez que, sem dúvida, o Estado contemporâneo se baseia no emprego do direito,
ainda que se reconheça a influência crescente dos mecanismos de persuasão em sua
ação.
Desvendando-se o substrato ideológico da regulação (harmonia de
interesses, racionalidade da organização social e necessidade de que exista um terceiroárbitro, seja ele o Estado ou o mercado) e aceitando que a saúde pública não pode ser
adequadamente protegida pela mediação do mercado – conforme a experiência histórica
demonstrou – deve-se identificar o direito sanitário com o direito regulatório.
Entretanto, é indispensável que se tenha claro que essa adjetivação nada mais faz que
denominar todo o direito do Estado contemporâneo. Assim, a regulação que caracteriza
o direito no Brasil de hoje, pode ser encontrada, igualmente, no sistema de saúde
brasileiro. De fato, ele envolve a operação de autarquias que se auto-apresentam como
―agências reguladoras‖111; sua normatização é essencialmente derivada dos mecanismos
de democracia direta, servindo como exemplo ideal dessa afirmação a Norma
Operacional da Assistência à Saúde (NOAS-SUS 01/2001), fruto da colaboração do
Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde CONASS, do Conselho Nacional
de Secretários Municipais de Saúde CONASEMS e do governo e aprovada na Comissão
Intergestores Tripartite CIT e no Conselho Nacional de Saúde; a consulta pública faz
parte do cotidiano da ANS e da ANVISA; e as conferências de saúde servem de palco
para as reivindicações específicas de cada grupo de interesses. Portanto, apesar de não
se constituir numa característica peculiar ao direito sanitário, pode-se concluir que o
direito sanitário corresponde ao direito regulatório do Estado contemporâneo.
109
Os traços do direito em cada uma das fases apresentadas baseia-se, em grande parte na obra de
Morand, C.-A. Le droit néo-moderne des politiques publiques. Paris, L.G.D.J, 1999.
110
Cf. Chevallier, J. Institutions publiques. Paris, L.G.D.J, 1996. p.158
111
Agência Nacional de Saúde Suplementar (criada pela Lei federal n° 9.961/00) e Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (criada pela Lei federal n° 9.782/99)
60
6. Advocacia em saúde
A instauração do Estado Democrático de Direito, com a implementação
dos mecanismos de democracia direta é concomitante à disseminação das chamadas
organizações não-governamentais. Com efeito, a possibilidade de participar
efetivamente das decisões sobre a vida da cidade estimulou a organização de inúmeros
grupos de interesse, especialmente nos chamados países em desenvolvimento, que
haviam recentemente conquistado sua re-democratização. Entretanto, não se pode negar
que o ativo envolvimento das organizações sociais nas lutas contra as ditaduras militares
foi um dos fatores determinantes da queda desses regimes. Assim, é bastante difícil
precisar a influência exercida por modelos estrangeiros sobre tais grupos de interesse. O
fato é que, com a implantação generalizada do direito que acima se denominou reflexivo
e a conseqüente internacionalização das demandas sociais, as organizações nãogovernamentais passam a desempenhar uma função essencial à afirmação e à garantia
dos direitos.
No seio do movimento de retorno ao direito das duas últimas décadas do
século vinte, verifica-se um alargamento crescente do campo jurídico, pois, o direito é
visto como uma garantia e uma proteção, que dá segurança aos relacionamentos sociais.
Assim, parece lógico que as organizações sociais buscassem inicialmente a afirmação
legal de direitos e, em seguida, sua efetivação, exercendo a advocacia, como diziam
seus congêneres estadunidenses, com vinte ou trinta anos de antecedência. Ali, a
atividade de qualquer grupo de interesse visando influir na definição ou na
implementação de uma política pública é qualificada de advocacy ou lobby, conforme o
nível da renda tributável dessa organização. Fica claro, portanto, que uma organização
não-governamental que advoga uma causa tem por objetivo influir para que
determinado comportamento seja reconhecido e garantido como um direito. E grande
número desses grupos sociais – com atuação local, regional, nacional ou internacional –
têm definido entre seus objetivos a realização da advocacia, termo que tem figurado nas
resoluções dos últimos grandes encontros de tais organizações, realizados paralelamente
às Conferências das Nações Unidas112.
Em saúde, o exercício da advocacia foi recomendado expressamente pela
Associação Americana de Pediatria, em 1975. Esse documento113, além de apresentar
uma primeira conceituação, descreve as principais ações que devem caracterizar a
advocacia em favor da criança. No Brasil, a Revista de Saúde Pública publicou um
112
113
Apenas para exemplificar, informa o sr. Mark Malloch Brown (administrador do UNDP), que na
Conferência do Rio (1.992) foi determinado que o UNDP assumisse a liderança do desenvolvimento
de capacidades nos países em desenvolvimento e que durante os anos 1990, o UNDP ajudou mais de
160 países a ligar sua preocupação ambiental às suas necessidades de desenvolvimento sustentável,
governança democrática e eliminação da pobreza. Ele informa, também, que sendo uma respeitada
fonte de pareceres baseados no conhecimento e um advogado para uma economia global mais
inclusiva, o UNDP é a principal organização do sistema ONU voltada para o desenvolvimento de
capacidades. A função de sua agência em relação à próxima Conferência sobre o Desenvolvimento
Sustentável, que se realizará em Johannesburg de 26 de agosto a 4 de setembro de 2.002, é de
combinar a advocacia com os serviços de desenvolvimento de capacidades e de informação
estratégica para ajudar os países em desenvolvimento na implementação do desenvolvimento
sustentável (www.undp.org.wssd)
Khan, A. J.; Kamerman, S. B.; Mac, G.; Brenda, G. Child Advocacy: report of a national baseline
study. (DITEW publication N.O. (OCD) 73-18).p. 7-95
61
artigo, em 1996114, no qual se pretende sistematizar as características que permitem a
definição do termo: a existência de um direito ainda não positivado ou a ineficácia de
um direito legalmente reconhecido, seja por falta de regulamentação ou por falta de
execução material da prestação prevista, ainda que devida à existência de conflitos
culturais; a viabilidade ética da reivindicação desse direito; e o objetivo de advogá-lo,
com todas as conseqüências dele derivadas, tais como a previsão dos meios para apurar
o ambiente político e as razões técnicas envolvidas na disputa, para adequar a defesa às
esferas de atuação necessárias (legislativa, administrativa, judiciária ou cultural) e,
principalmente, para permitir a construção de uma sólida argumentação.
Quando se considera a grande quantidade de ações e serviços subsumida
na expressão direito sanitário e o alcance da advocacia em saúde, fica evidente o amplo
campo de intersecção desses saberes. De fato, o mesmo movimento que permitiu, no
Brasil, o reconhecimento expresso da saúde como direito de todos, criou vários
mecanismos constitucionais que viabilizam e mesmo estimulam o exercício da
advocacia em saúde. Assim, a Constituição federal afirmou que todas as normas que
definem direitos e garantias individuais têm aplicação imediata (C.F.art.5º,§ 1º),
implicando, inclusive, a possibilidade de ação especial junto ao Supremo Tribunal
Federal quando não houver aplicação de qualquer preceito legal cujo conteúdo ajude a
definir o direito a saúde, em qualquer esfera de governo (C.F. art.102,§1°). Para
operacionalizar a participação popular na gestão do Estado, previu-se que a capacidade
legislativa pertence aos representantes eleitos e a quem os elegeu, que pode propor
projetos de lei (C.F.art.61,§2º), participar de audiências para debatê-los
(C.F.art.58,§2º,II), referendar uma lei ou se manifestar – em plebiscito – sobre assuntos
considerados relevantes pelo Congresso Nacional (C.F.art.49,XV). Do mesmo modo, o
povo organizado em confederação sindical ou entidade de classe ou pertencendo a
partido político pode pedir a retirada do mundo jurídico de uma lei que contrarie o que
ficou estabelecido na Constituição (C.F.art.103,VIII e IX).
Também favorece a advocacia em saúde o funcionamento regular do
poder legislativo, representante tradicional do povo nas democracias liberais burguesas,
que – por meio dos Tribunais de Contas – mantêm uma ligação direta com o povo, pois
foi legitimada a capacidade do cidadão, dos partidos políticos, das associações e dos
sindicatos para, fiscalizando a contabilidade, os financiamentos, o orçamento das
entidades administrativas, denunciarem irregularidades aos Tribunais de Contas
(C.F.art.74,§ 2º). Além disso, é oportuno lembrar a importância da participação dos
parlamentares, não só nos parlamentos nacionais, como – de especial interesse para a
advocacia em saúde – nas Assembléias Legislativas estaduais e nas Câmaras de
Vereadores. Particularmente porque o tratamento simétrico dispensado à totalidade dos
Municípios e Estados-membros da Federação, supondo a homogeneidade deles, faz com
que a distribuição constitucional de competências e, portanto, de responsabilidades, que
trata igualmente entes políticos, cuja desigualdade de condições sócio-culturais e
econômicas é óbvia, e dificulta o emprego de instrumentos, em princípio, eficazes.
Portanto, é necessário que se reafirme a importância dos legislativos regionais e locais e
a possibilidade que detêm de adequar os mecanismos de controle social à realidade para
que sirvam efetivamente como instrumentos de garantia de direitos.
Os constituintes criaram também mecanismos de participação direta na
Administração Pública, instituindo órgãos populares com funções de direção
administrativa, como é o caso da participação popular no sistema de saúde
(C.F.art.198,III) ou da subordinação de todo o planejamento da atuação estatal no
114
Dallari, S. G. et all. Advocacia em saúde no Brasil contemporâneo. Rev.Saúde Pública, 30 (6):592601, 1996
62
Município a cooperação das associações (C.F.art.29,X). As Conferências de Saúde são
―instâncias colegiadas...(com)...a Representação dos vários segmentos sociais, para
avaliar e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis
correspondentes‖ (Lei nº 8 142 art.1º). Os Conselhos de Saúde são o outro mecanismo
previsto para assegurar o cumprimento do mesmo mandamento constitucional
(participação da comunidade na organização do sistema). Eles têm caráter permanente e
deliberativo e são órgãos colegiados integrados por representantes do governo, dos
prestadores de serviço, dos profissionais de saúde e dos usuários. Devem atuar na
formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde – inclusive nos
aspectos econômicos e financeiros – da esfera política correspondente e suas decisões
serão homologadas pelo chefe do Poder Executivo nessa esfera (Lei nº 8 142 art.1º, §5º).
Facilita, igualmente, a realização da advocacia em saúde a definição como crime de
responsabilidade do Presidente da República dos atos que atentem contra o ―exercìcio
dos direitos polìticos, individuais e sociais‖ (C.F.art.85,III).
O enorme alargamento das possibilidades de acesso ao Judiciário é outro
mecanismo que facilita e estimula a advocacia em saúde. Assim, de um lado, para
proteger direito desrespeitado por autoridade pública ou assemelhados previu-se o
mandado de segurança, que pode ser impetrado pelo indivíduo ofendido ou por partido
político, organização sindical, entidade de classe ou associação na defesa de seus
membros ou associados (C.F.art.5º,LXIX e LXX); e para garantir o acesso à informação
e o estabelecimento de sua veracidade permitiu-se apenas ao interessado o uso do
habeas data (C.F.art.5º,LXXII). Só o indivíduo é, também, legitimado para propor ação
que vise anular ato lesivo ao patrimônio publico amplamente considerado
(C.F.art.5º,LXXIII). O mandado de injunção poderia ser outro instrumento de grande
utilidade para os esforços da advocacia em saúde, pois permitiria que qualquer pessoa
pudesse pedir que o juiz fizesse valer o direito criado pelo constituinte e não
regulamentado pelo legislador ou nem aplicado pelo administrador (C.F.art.5º,LXXI).
Considerando que as associações também estariam legitimadas para utilizar tal
instrumento, é fácil imaginar sua utilidade. Entretanto, interpretação dada a esse
dispositivo pelo Supremo Tribunal Federal115 terminou por anulá-lo, ao menos nas suas
conformações iniciais.
Por outro lado, foram claramente definidas as funções do órgão
especialmente voltado para ―a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponìveis.‖ (C.F.art.127 a 130). Trata-se do
Ministério Publico que, junto a qualquer Juízo, é o advogado do povo na defesa dos
direitos assegurados na Constituição. Ele é, igualmente, um investigador privilegiado,
uma vez que ao Ministério Publico é garantido o acesso às informações necessárias ao
exercício de suas funções, mesmo quando elas estejam sob a guarda da Administração.
E foi, também, instituída a Defensoria Pública para a ―orientação jurìdica e a defesa, em
todos os graus dos necessitados‖ (C.F.art.134). Especialmente em virtude da expressão
constitucional ―relevância pública‖, o Ministério Público revela-se um interlocutor
privilegiado para o exercício da advocacia em saúde. Com efeito, em 4 de outubro de
1991, algumas das mais expressivas figuras do meio jurídico nacional assinaram um
documento externando seu entendimento da expressão ―relevância pública‖, adotada na
Constituição da República Federativa do Brasil em 1988. Eminentes professores de
Direito, dirigentes das Procuradorias da República e da Justiça do Estado de São Paulo e
115
Conforme o voto vencedor do Ministro Relator Moreira Alves, que – em síntese – afirma não deter o
Judiciário poder legislativo, devendo-se, portanto, entender que a concessão do mandado de injunção
implica apenas uma ordem ou recomendação dirigida à autoridade competente para que produza a
norma faltante.
63
da Associação dos Magistrados Brasileiros, juizes federais, desembargadores,
procuradores da República e promotores públicos concordaram que ―A correta
interpretação do artigo 196 do texto constitucional implica o entendimento de ações e
serviços de saúde como o conjunto de medidas dirigidas ao enfrentamento das doenças
e suas seqüelas, através da atenção médica preventiva e curativa, bem como de seus
determinantes e condicionantes de ordem econômica e social.‖. E que tem o Ministério
Publico ―a função institucional de zelar pelos serviços de relevância pública, dentre os
quais as ações e serviços de saúde, adotando as medidas necessárias para sua efetiva
Prestação, inclusive em face de omissão do Poder Público.‖116.
Verifica-se, portanto, examinando apenas o campo restrito da
formalização constitucional que já ocorreu no Brasil o reconhecimento da saúde como
um direito (C. F. art.6°), direcionando as ações de advocacia em saúde para a busca de
sua eficácia, existindo vários mecanismos capazes de viabilizar tal reivindicação junto
ao Poder Legislativo e junto à Administração Pública e mesmo no Judiciário.
Entretanto, as mudanças sociais não derivam apenas da criação constitucional dos
mecanismos que as possibilitem, mas, principalmente, do uso de tais instrumentos. A
capacitação das organizações sociais para exercerem com competência suas funções de
advogados da saúde pública e o efetivo envolvimento do Ministério Público na luta pelo
respeito aos direitos assegurados na Constituição podem conduzir à democracia,
instaurando efetivamente o Estado Democrático de Direito no Brasil.
116
Cf. DALLARI,S.G.et al. O conceito constitucional de relevância pública. Brasília: Organização
Panamericana da Saúde,1992. (Série direito e saúde,1)
64
EPIDEMIOLOGIA E SISTEMAS DE SAÚDE
(Eleonor Minho Conill)
Fundamentos históricos e conceituais para uma discussão
sobre o acompanhamento de direitos na prestação de serviços
Eleonor Minho Conill
Departamento de Saúde Pública
Núcleo de Apoio à Municipalização e Implementação do SUS
em Santa Catarina-NAM/SUS,
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
[email protected]
ÍNDICE
1. Introdução. 2. Trajetória histórico-social dos saberes e das práticas em
saúde. 3. Expansão, crise, mudanças no modelo explicativo do processo
saúde/doença e na organização dos serviços de saúde: epidemiologia a
serviço de quem? 4. A epidemiologia no acompanhamento e avaliação de
sistemas de saúde. 5. Conclusão. 6. Bibliografia.
1. Introdução
Este trabalho discute as relações entre epidemiologia e o sistema de
saúde mediada pelos modelos explicativos do processo saúde/doença e por modelos de
organização de serviços. Pretende-se embasar com isso o entendimento das atuais
propostas de mudanças, com ênfase no contexto brasileiro. Três indagações devem
orientar a leitura do texto:
1. como e porque surgem as idéias de organizar uma prestação de serviços
menos desigual e com práticas mais integrais?
2. os sistemas podem ser menos desiguais e mais abrangentes?
3. quais as contribuições da epidemiologia para esse processo?
Não há intenção de esgotar temática tão complexa sendo nosso objetivo
fornecer um panorama geral, pontuando conceitos básicos e questões que suscitem
curiosidade suficiente para seu aprofundamento. O argumento que o anima é de que as
práticas de saúde são o resultado de uma longa acumulação de saberes, técnicas e lutas
entre grupos de interesse. Os sistemas de saúde do mundo contemporâneo apresentam
aspectos convergentes do ponto de vista de políticas sociais mais inclusivas, difusão de
avanços tecnológicos e contradições geradas pela transformação da doença em
mercadoria altamente geradora de valor, com a reemergência mais recente de discursos
enfatizando a promoção e a prevenção.
Divergem no entanto esses sistemas, em seus formatos específicos e
quanto ao acesso das populações aos benefícios oferecidos, diferenças estas que
correspondem a particularidades das sociedades na qual se situam. São resultado de uma
complexa interação de elementos históricos, econômicos, políticos e culturais que se
expressam em movimentos sociais e em processos concretos na esfera jurídica, política
e administrativa através dos quais reside a possibilidade de que esses sistemas possam
ser modificados em direção a uma função social mais adequada.
65
Para Rouquayrol e Goldbaum (1999) uma definição precisa do termo
epidemiologia não é fácil, uma vez que sua temática é dinâmica e seu objetivo
complexo. A isso acrescentarìamos, o ―peso‖ da herança histórica do termo que surge
com estudos de epidemias117, predominando este entendimento até os dias de hoje.
Assim, enquanto a clínica preocupa-se com a doença em indivíduos, tratando caso a
caso, a epidemiologia trabalha problemas de grupos de pessoas, às vezes pequenos, mas
em geral numerosos.
Esses autores conceituam-na como “ciência que estuda o processo
saúde-doença em coletividades humanas, analisando a distribuição e os fatores
determinantes das enfermidades, danos à saúde e eventos associados à saúde coletiva,
propondo medidas específicas de prevenção, controle, ou erradicação de doenças, e
fornecendo indicadores que sirvam de suporte ao planejamento, administração e
avaliação de saúde‘‘ (Rouquayrol e Goldbaum 1999:15).
Está contido neste conceito, a concepção de um enfoque num conjunto de
pessoas, com o estudo de doenças infecciosas, crônico- degenerativas e de agravos à
integridade física (acidentes, homicídios, suicídios, etc), inseridos num conjunto de
processos sociais interativos que definem sua dinâmica, o que é denominado de
processo saúde/doença.
Embora seja a parte final do conceito a que mais nos interessa pois trata
das relações da epidemiologia com os sistemas de saúde, a noção de processo
saúde/doença precisa também ser destacada e compreendida. Segundo Laurell (1983
apud Rouquayrol e Goldbaum 1999), processo saúde/doença é o modo específico como
se dá nos grupos sociais o desgaste biológico e de reprodução das condições concretas
de existência, levando em determinados momentos a um funcionamento biológico
diferente com prejuízo de atividades cotidianas, conhecido por doença. Faz referência a
uma inserção social que determina e explica o modo específico da passagem de um
estado de saúde para um estado de doença e vice-versa. Ou seja, a saúde ou a doença
não ocorre ao acaso, de forma pontual e isolada e sua contextualização será sempre
necessária, conforme veremos a seguir, também para a compreensão das respostas
institucionais e sociais face a ela, ou seja, o tipo de política e o formato predominante do
sistema e serviços de saúde de cada país.
É preciso ressaltar um dos grandes objetivos da epidemiologia sobre o
qual não nos debruçaremos: a aplicação de metodologia específica para análise dos
fatores determinantes da saúde/doença. Muitas causas têm sido explicadas pelo uso do
método científico aplicado pela epidemiologia ao estudo de problemas de doença em
nível coletivo, identificando-se associações entre um ou mais fatores suspeitos.118
Na primeira parte deste texto, discute-se a trajetória histórico-social dos
saberes e das práticas em saúde com considerações sobre a conformação dos sistemas
contemporâneos. Em seguida, são abordados aspectos da crise desses sistemas
apontando-se os principais argumentos levantados, sócio-culturais, econômicofinanceiros, mudanças demográficas e epidemiológicas e os novos modelos propostos
para a organização de serviços. Finalizando, fornecemos um conjunto de elementos para
117
É no contexto da epidemia da cólera, que surge a London Epidemiological Society em 1850, na
Inglaterra. Mas, o termo epidemiologia já havia sido usado em trabalho sobre a peste escrito na
Espanha no séc. XVI, onde reaparece em 1802 como título de uma obra compilando as epidemias
conhecidas (Najer 1988 apud Rouquayrol e Goldbaum 1999).
118
A relação do câncer de pulmão com o tabagismo feita por Doll e Hill (1950) é um exemplo clássico e
mais recentemente, o reconhecimento da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida/SIDA/AIDS como
doença.
66
reflexão que podem orientar a avaliação dos serviços e o acompanhamento de direitos
em saúde, o que inclui o uso de indicadores epidemiológicos.
2. Trajetória histórico-social dos saberes e das práticas em saúde
A procura de respostas diante da dor e da incapacidade, se confunde com
a própria origem do homem. Os meios empregados variaram em cada época, conforme
o estágio do conhecimento acerca da doença, o grau da divisão do trabalho e da
delegação, maior ou menor dessa tarefa a especialistas. No que diz respeito ao acesso a
um conjunto de bens e serviços disponíveis, este depende das relações estabelecidas
entre as classes sociais (Hortale, et alii,1999).
Segundo o enfoque privilegiado, o estudo dessa trajetória das práticas em
saúde pode ser dividido em quatro grupos: histórico, priorizando os principais fatos de
cada momento; epistemológico, identificando os saberes predominantes e suas
transformações (Luz,1993); político, ao centrar-se nas intervenções do Estado
(Foucault, 1979); e econômico, ao identificar as relações com o modo de produção
(Breilh, 1978).
Utilizando a metáfora da sociedade como um corpo sobre o qual a
humanidade tem lançado olhares para interpretar a doença, Scliar (1987) identifica e
descreve numa abordagem histórica abrangente, cinco olhares a partir dos quais
trabalharemos: o olhar mágico, empírico, autoritário, científico (contábil,
epidemiológico, armado); e um olhar social que estaria ocorrendo nos dias atuais.
Primeiramente, as sociedades primitivas interpretam a doença de uma
forma mágica e sobrenatural. Embora haja empirismo com o uso terapêutico de plantas,
calor, trepanações, a cura é em geral ritualística, mediada por feiticeiros, pajés, xamãs.
Depois, tem-se um olhar mais empírico, com o surgimento na Grécia, no
Século V a.C., da escola de medicina de Hipócrates onde o fazer é registrado,
sistematizando-se e difundindo-se conhecimentos. Nota-se pelos casos que deixou
registrado, que Hipócrates desenvolveu em muito a observação empírica, já
demonstrando uma visão epidemiológica:
―A apoplexia (acidente vascular cerebral) é mais comum entre as
idades de quarenta e sessenta anos; a tísica (tuberculose) ocorre mais
freqüentemente entre os dezoito e os trinta e cinco anos...‖ (Colder
1958 apud Scliar,1987: 17).
Suas observações não se limitavam aos pacientes, incluindo o ambiente.
Um tratado clássico escrito por ele, intitulado ―Ares, Águas, Lugares‖, assinala a
importância dos fatores ambientais, ou seja, um conceito ecológico e multicausal da
doença. Estas resultavam dos maus ares (miasmas), do desequilíbrio de humores
(líquidos) internos e entre os quatro elementos da natureza (ar, terra, fogo e água). Os
romanos também empreenderam obras de saneamento e drenagem de pântanos com um
esboço de administração sanitária e leis sobre inspeção de alimentos e de locais
públicos. Mas não existia saúde pública no sentido que hoje damos a palavra.
Em seguida, a Idade Média pode ser referida como ―uma grande
cegueira‖ tendo o regime feudal profundas e desastrosas conseqüências na conjuntura
de saúde: movimentos populacionais, miséria, promiscuidade e falta de higiene criam
condições para surtos epidêmicos principalmente de peste. Predominam práticas
supersticiosas sendo a ineficiência dos procedimentos mágicos ou religiosos
67
compensada com a caridade. É na Idade Média que surgem os primeiros hospitais ou
melhor, hospícios, asilos ou morredouros.
Em torno do séc. XIII a situação começa a mudar, com o ressurgimento
da medicina leiga com escolas médicas na Itália (Palermo, Bolonha), França (Sorbonne)
e Inglaterra (Oxford). A prática da quarentena é introduzida em Veneza, em 1348, de
forma empírica, sem que houvesse ainda uma noção exata de agentes infecciosos e
formas de contágio.
No séc. XVI, a sífilis acrescenta-se a lista de doenças que aterrorizavam a
Europa, tomando o lugar da lepra em importância. Corresponde a um novo período de
transformações sociais com valorização da liberdade, relaxamento dos costumes e
movimento de populações. Enquanto a peste era um mal coletivo ao qual se respondia
com medidas dessa ordem (quarentena, flagelos, massacres), a sífilis corresponde ao
espírito do renascimento: doença individual; punição do pecado pela cólera divina.
A renascença traz o início da modernidade e da era da razão na
interpretação da saúde/doença. O paradigma cartesiano passa a definir como real o que
pode ser explicado ou analisado mediante um conjunto de procedimentos que incluem a
experimentação e a quantificação.
Tudo isso corresponde a um período de transição social com superação
do mundo feudal em direção ao modo de produção capitalista inicialmente
manufatureiro e comercial. O conceito de corpo social ganha força ao mesmo tempo em
que o corpo individual é contado, medido e estudado. Há o desenvolvimento da
anatomia pela liberação da dissecação de cadáveres, sendo o corpo comparado à uma
máquina por Descartes, no qual a circulação do sangue ocorre graças à uma bomba, o
coração.
Paralelamente à emergência do modo de produção capitalista e ao
racionalismo científico, a conjuntura política é marcada pela aparição dos Estados
modernos, com diferentes tipos de intervenção estatal sobre a questão da saúde das
populações (Rosen, 1975).
Para Scliar, o que predominará é o olhar autoritário, cujo berço é a
Alemanha com o conceito de polícia ou política médica ou sanitária119, formulado em
1779. Baseava-se em medidas compulsórias de controle e vigilância de enfermidades,
com funcionários médicos responsáveis por distritos, além de imposição de regras de
higiene através de leis e regulamentos. As medidas diziam respeito à assistência médica,
prevenção de doenças contagiosas, parto e pré-natal, qualidade dos alimentos e do ar,
limpeza de ruas e combate ao charlatanismo.
Além desse modelo, denominado de medicina do Estado, Foucault
(1979), identifica duas outras formas de intervenção no nascimento da medicina social:
a medicina urbana na França e a medicina da força de trabalho na Inglaterra.
Na medida em que se desenvolve o tecido urbano no final do século
XVIII, aumenta a inquietude político-sanitária com o crescimento de populações em
cidades como Paris. As ações vão dirigir-se então para o saneamento, ventilação das
ruas e construções públicas, afastando-se para a periferia áreas consideradas
miasmáticas tais como matadouros e cemitérios. Além de ações urbanas o processo de
consolidação da autoridade sanitária vê nascer a superposição entre poder
revolucionário e poder médico na França de 1789. A autoridade médica é reforçada com
jurisprudência sobre tratamentos e até sobre livros a serem lidos. É introduzida nos
hospitais uma nova ordem, tal como nas fábricas, exércitos e escolas, novo jeito de
viver que gere agora a sociedade como um todo.
119
Advém da obra System einer Vollständigen medicinischen Polizei de Johan Peter Frank. Derivado do
grego politeia, a palavra polizei tem um sentido ambíguo, uma mescla de política e polícia.
68
Pertence a essa etapa, o nascimento da clínica (do grego klinos, cama)
inicialmente inspirada na botânica, buscando agrupar as manifestações mórbidas em
famílias com a nosologia ou ciência da classificação das doenças.
Se em 1700 os pobres não eram vistos como perigo executando pequenos
serviços nas grandes cidades, no séc. XIX representam uma ameaça, com lutas urbanas
e novas epidemias. A revolução industrial traz o fenômeno concreto da força de trabalho
e do desgaste da classe trabalhadora com deterioramento das condições de vida e de
saúde. Isto gera um número crescente de posicionamentos denunciando tal situação
entre os quais o célebre livro escrito por Engels intitulado ―As condições da classe
trabalhadora na Inglaterra em 1844‖, considerado decisivo para a formulação da
epidemiologia científica (Breilh,1978 apud Almeida Filho 1999). Surgem o termo e
projetos de medicina social para designar de forma genérica modos de tomar
coletivamente a questão da saúde120.
Os sanitaristas britânicos que não haviam participado desses movimentos
tentam integrar preocupações filantrópicas, técnicas e sociais, buscando transformações
políticas pela via legislativa. É promulgada em 1875 um ―Public Health Act‘‘,
garantindo assistência médica e serviços sanitários (registros, vacinas, educação em
saúde), com a institucionalização de médicos sanitaristas.
A passagem do século XVIII para o século XIX é marcada então pela
consolidação do poder político da burguesia emergente, com o Estado moderno
impondo sua autoridade frente às populações por intermédio de ações sanitárias no
espaço urbano e social.
No século XIX predominará um olhar científico, dividido em três
momentos: o olhar contábil da estatística e das medidas; o olhar epidemiológico, com o
desenvolvimento de estudos dessa ordem; e, finalmente, o olhar armado, que com o uso
do microscópio121 e a descoberta do germe inaugurará importante ruptura
epistemológica no campo da saúde.
O conhecimento sobre doenças transmissíveis cresce rapidamente entre
1860 e 1900, monopolizando o avanço do conhecimento epidemiológico, dirigindo-o
para os processos de transmissão a controle de epidemias de doenças infectocontagiosas. O grande avanço da fisiologia, patologia e bacteriologia tornaram menos
importante o conhecimento sobre a vertente social e política da saúde, instituindo a
supremacia da explicação unicausal do processo saúde/doença. A descoberta dos
microorganismos leva ao fortalecimento da medicina organicista e, uma vez que as
doenças de maior prevalência na época eram de natureza infecto-contagiosa, esse
modelo explicativo torna-se hegemônico.
O controle sobre a varíola, malária, febre amarela e outras doenças
chamadas ―tropicais‖ principalmente nos portos dos paìses colonizados e de ex-colônias
como o Brasil legitima-o ainda mais.
Para Almeida Filho (1999) pode-se localizar a tensão entre medicina
individual e medicina coletiva, desde os primórdios do pensamento ocidental, na Grécia
Antiga, expresso no antagonismo entre as duas filhas do deus Asclépios: Panacéia e
Higéia. Panacéia era a padroeira da medicina curativa, da prática de intervenção
individual baseada em manobras físicas, encantamentos, preces e uso do pharmakon
(medicamentos). Higéia, sua irmã, era adorada pelos que consideravam a saúde
120
Na Alemanha um jovem sanitarista chamado Virchow destaca-se na liderança do movimento médicosocial. Condenado a um exílio interno torna-se posteriormente o mais importante nome da patologia
moderna (Almeida Filho, 1999).
121
Interessante assinalar que a descoberta do microscópio data do séc. XVII, tendo sido necessário um
acúmulo no desenvolvimento histórico dos conhecimentos para que pudesse se tornar útil.
69
resultado da harmonia e do ambiente, promovendo-a através da prevenção e do
equilíbrio entre os elementos fundamentais da natureza (terra, fogo, ar, água).
Esse modelo organicista unicausal, pela ênfase na biologia e na
intervenção médica individual tornar-se-á conhecido como modelo biomédico
persistindo sua hegemonia até os dias atuais. Na gênese de sua construção, ―a
abordagem curativa individual, nova ―panacéia‖ agora cientifizada teria suplantado o
enfoque coletivo ―higiênico‖ no tratamento da questão saúde e seus determinantes‖
(Almeida Filho, 1999:5). O quadro 1 apresenta uma síntese da trajetória descrita,
segundo os enfoques dos principais autores citados.
Será possível que andem de mãos dadas Higéia e Panacéia? Discutiremos
essa questão no próximo tópico, no contexto do que para Scliar (1987) representa o
olhar social do mundo contemporâneo sobre seu corpo, marcado pela expansão dos
sistemas de proteção social e dos sistemas de saúde. Antes, no entanto, é útil apontar,
ainda que de forma breve, a influência da trajetória descrita sobre o contexto da saúde
brasileira e algumas de suas particularidades.
Nas populações indígenas e durante quase todo período colonial,
predomina uma visão mágica e empirista. Do contato com o branco surge uma gama
importante de novas doenças: varíola, sarampo, tuberculose, escarlatina, lepra, doenças
venéreas, parasitoses como a sarna (Pires, 1989). Mas a intervenção do Estado na saúde
é mínima sendo a assistência prestada por um conjunto diversificado de exercentes
(físicos, cirurgiões-barbeiros, barbeiros, boticários, etc.) e nas Santas Casas de
Misericórdias.
As políticas de saúde ocorrerão, na virada do século XIX para o século
XX com as mudanças no modo de produção, aliando autoritarismo ao nascente
cientificismo europeu. Oswaldo Cruz, oriundo do Instituto Pasteur, irá enfrentar as
epidemias da época (febre amarela e varìola) que ameaçam a ―saúde dos portos‖ e a
agro-exportação por meio de campanhas com vacinações e inspeções sanitárias. Com a
industrialização e a urbanização, os anos vinte verão surgir novas formas de proteção da
força de trabalho com as Caixas de Aposentadorias e Pensões. Passemos então a
examinar esse percurso no século XX.
3. Expansão, crise, mudanças no modelo explicativo do processo
saúde/doença e na organização dos serviços de saúde: a epidemiologia
a serviço de quem?
Ao longo da primeira metade do século XX expande-se a oferta de
serviços de saúde e políticas de proteção social. O modelo de sistema previdenciário
concebido na Alemanha por Bismarck influenciará outros países, inclusive o Brasil nos
anos 30-40, baseando-se em três fontes de contribuição: empresários, trabalhadores e
Estado. Mas, será no contexto do pós-guerra, dos anos 50 até meados de 1970 que esses
sistemas se expandirão de forma definitiva com o grande uso de tecnologia e a
importância dos cuidados hospitalares.
A criação, na Inglaterra, em 1948, de um Serviço Nacional de Saúde (o
National Health Service/NHS) garantindo acesso universal por meio de financiamento
público oriundo de fontes orçamentárias (impostos) representa um novo marco. O
direito à equidade em saúde dissociado do nível de renda passa gradativamente a ser
reivindicado: o acesso aos serviços e a assistência médica deixam de ser vistos como
70
questão individual ou de filantropia passando a serem enfrentados de modo coletivo por
intermédio de formas de financiamento mais ou menos solidárias.
Fleury (1994) nos fornece um bom resumo dos principais aspectos
constitutivos dos modelos de proteção social contemporâneos, que influenciam o tipo de
sistema de saúde e o acesso aos serviços: a assistência; o seguro; e a seguridade,
apresentados no quadro 2.
Essa fase de expansão do acesso vem ao encontro das pressões e anseios
populares, mas corresponde também a um novo momento de interação dos Estados,
particularmente dos países centrais, com o desenvolvimento das forças produtivas. Por
meio de políticas de proteção social (o ―welfare state‖) garante-se estabilidade de
rendas e de consumo. São subvencionados investimentos para construção ou reformas
de hospitais e a indústria farmacêutica e de equipamentos médicos floresce.
Até a primeira metade do século XX, a descoberta do germe e a teoria
unicausal da doença dominam a cena. Avanços importantes na área de equipamentos de
apoio diagnóstico e de medicamentos ocorrem somente após a segunda guerra
configurando-se então uma forte industrialização no setor, por intermédio de
financiamentos sob regulação estatal.
Rapidamente crescem os custos com o surgimento de um novo discurso
visando enfrentar a crise determinada, parcialmente, por um modelo que, centrado no
cuidado hospitalar e na crescente especialização do trabalho médico, além de caro
mostra-se pouco humanizado e gera insatisfação.
Luz (1993), ao analisar as mutações na racionalidade médica ocidental,
considera que a expansão ocorrida após 1950, configura um momento de crise pois a
interposição tecnológica das ―máquinas‖ leva à ruptura da relação médico-paciente.
Completam-se assim as crises que já haviam ocorrido ao longo do desenvolvimento
epistemológico da medicina: primeiro o conhecimento sobre a doença torna-se mais
importante do que curar; depois, com o nascimento da clínica, há a supremacia do
diagnóstico; agora, definitivamente selada em favor de um agir mecânico.
Além de argumentos financeiros ou da insatisfação de usuários, apontamse mudanças no contexto demográfico e epidemiológico, com queda da natalidade,
aumento da expectativa de vida, envelhecimento das populações e substituição de
doenças infecto-contagiosas pelas crônico-degenerativas122. Isto vem fortalecer outro
modelo explicativo do processo saúde-doença determinando novas formas de
intervenção.
No modelo epidemiológico vigente oriundo de um contexto onde
predominavam doenças infecciosas, a hipótese é ―causa única/efeito único‖, chegandose ao germe e sua erradicação sendo considerada a intervenção adequada. No caso de
doenças crônico-degenerativas (cardiovasculares, neoplasias), não há uma única causa e
a importância de fatores comportamentais e ambientais torna-se mais evidente.
O documento intitulado ―A New Perspective on the Health of
Canadians‖ (Lalonde, 1974 apud Dever, 1984), que servirá de base para as ações
governamentais nesse país a partir desta data, torna-se um marco dessa perspectiva
multicausal no campo das políticas de saúde. Nele, a saúde é determinada por um
conjunto de fatores agrupados em quatro grandes categorias: estilo de vida, ambiente,
organização dos cuidados e biologia humana.
O estilo de vida ou, mais exatamente, os riscos auto-criados, comportam
as atividades de lazer, os padrões de consumo e as atividades ocupacionais e de
participação na produção. Envolvem o conjunto de decisões tomadas pelos indivíduos
122
Este é o chamado modelo clássico ocidental de transição epidemiológica (Omran 1971 apud Minayo,
2000).
71
que afetam sua própria saúde. O ambiente é definido como evento externo ao corpo,
compreendendo as dimensões física, social e psicológica. Na biologia humana, influem
além da herança genética, situações tais como a maturidade e envelhecimento. Por
último, o sistema de organização dos serviços é dividido em serviços preventivos,
curativos e de recuperação.
Argumenta-se que o acesso aos serviços embora importante não tem o
maior peso na situação de saúde. Higéia e Panacéia são então convidadas a andar juntas:
as políticas e os serviços devem buscar a integralidade e a intersetorialidade aliando
promoção, prevenção e cura. Propõe-se uma racionalização da atenção que partindo de
comunidades geograficamente definidas permitiria um melhor conhecimento da
situação epidemiológica. Os cuidados devem ser organizados em níveis de
complexidade crescente de atenção mas a ênfase deve mudar do cuidado hospitalar de
nível terciário para a atenção primária e comunitária fornecida por equipes
multidisciplinares. A comunidade e os usuários são incentivados a controlarem e a
participarem dos serviços.
Este novo discurso, formulado em parte em Universidades norteamericanas no final da década de 60, marcará os anos 70 influenciando reformas com
esse conteúdo democrático racionalizador no Canadá (Québec), Inglaterra, Espanha e
Itália, entre outros.
Também para paìses periféricos, ―sub-desenvolvidos ou em
desenvolvimento‖, enfatiza-se através da Organização Mundial de Saúde/OMS a
importância de obter-se ―Saúde para todos até o ano 2000,‖ famosa meta transformada
em consenso internacional em reunião realizada em Alma-Ata, na Rússia, em 1978
(OMS, 1978).
Nos anos 80, no entanto, o discurso mudará adquirindo uma conotação
neo-liberal, com uma tendência a criação de mercados na assistência e uma ação
supletiva e focalizadora do Estado.
Em função da crise fiscal e desequilíbrios de contas públicas, as palavras
de ordem são ―menos Estado‖, privatização, flexibilidade e desregulação. Além disso,
há o argumento de que é preciso diminuir e controlar custos sociais em função da
competitividade de mercados no contexto da globalização. O objetivo de universalismo
da oferta é substituído pelo conceito de ―tratar desigualmente aos que são desiguais‖
pois a oferta homogênea favoreceria aos informados e organizados. Há estímulo ao cofinanciamento (―o que não custa, não vale‖ e ―quem pode deve pagar‖) e incentivo à
competição entre prestadores na distribuição dos recursos (Almeida, 1996).
Embora diversos países centrais tenham realizado reformas nessa
direção, sob a égide do controle de custos, é importante salientar que em nenhum deles,
houve um recuo importante nas diretrizes de universalização e de financiamento público
da saúde (Almeida, 1995, Giovanella, 1997, Conill,1999). Ainda que numa nova
conjuntura, continua-se a enfatizar a importância da atenção primária e da promoção da
saúde.
A OMS perde seu papel de criadora de consensos internacionais em favor
do Banco Mundial, cujas propostas expressas em relatório divulgado em 1993 marcam
as orientações para países periféricos sendo alvo de debates e controvérsias ao longo da
década de 90 (Banco Mundial, 1993). Neste documento, reconhece-se terem ocorrido
avanços mundiais na situação de saúde, mas estaria ocorrendo uma explosão de custos e
o uso ineficiente e desigual de recursos com mortalidade e deficiências prematuras.
Propõe-se uma ação focalizada do Estado em populações pobres, compensatória frente
ao mercado de seguros privados financiados sem subsídios por aqueles que possam
garanti-los.
72
A prioridade deve ser dada às intervenções com bons resultados em
termos de um indicador denominado de ANOS DE VIDA AJUSTADOS POR
INCAPACIDADE/AVAI, mais conhecido por sua sigla em inglês ―DALY/Disability
Adjusted Life Years‖. Assim, imunizações, saúde escolar, planejamento familiar e
nutrição, campanhas para suspensão do álcool e tabagismo e prevenção da AIDS, teriam
custo baixo em relação à esse indicador (oscilando entre US$ 50 e 150 por AVAI),
devendo ser priorizadas.
Em relação aos serviços clínicos, sugere-se a garantia por parte dos
governos, de um pacote mínimo de cuidados essenciais que, variando segundo
necessidades e recursos de cada país, devem priorizar cinco tipos de serviços:
atendimento à gestantes; planejamento familiar; tuberculose; doenças sexualmente
transmissíveis/DST; e doenças graves da infância (desnutrição aguda, infecções
respiratórias, diarréia).
A prestação de outros tipos de atendimentos, serviços de emergência ou
hospitalares estaria condicionada à existência de recursos e, nesse caso, incluiriam
fraturas, apendicectomias, métodos baratos de tratar cardiopatias, câncer do colo
uterino, tratamento medicamentoso de psicoses e remoção de cataratas.
Para países de renda média, no qual inclui-se o Brasil, o custo estimado do pacote de
saúde pública e de serviços clínicos essenciais é da ordem de US$21,5.
Coerente sob muitos aspectos (eficiência na alocação de recursos, ênfase
na educação, promoção e atenção primária) o documento encerra contradições que
tornam questionáveis suas propostas. É correta a explosão de custos no setor apontada
no início do documento, correspondendo hoje a 8% do produto mundial total. Mas
destes custos, 90% ocorrem nos países de alta renda sendo 41% nos Estados Unidos. A
média é de US$1.500 nos países desenvolvidos versus US$ 41 nos considerados em
desenvolvimento. Existem certamente importantes re-direcionamentos a serem feitos,
mas estimular o mínimo para quem já tem tão pouco é questionável do ponto de vista
técnico e ético.
A reforma sanitária brasileira pode ser considerada uma reforma tardia,
preconizando princípios democráticos racionalizadores com a formulação e
implementação do Sistema Único de Saúde/SUS numa conjuntura neoliberal. Apesar de
avanços nos plano político-administrativo, reconhecem-se dificuldades no plano
operativo e no modelo assistencial.
Nas últimas décadas, a problemática das políticas sociais e econômicas
no Brasil tem fortalecido a crise estrutural do setor público, ampliando a lacuna
existente entre os direitos sociais garantidos em lei e a capacidades efetiva de oferta dos
serviços públicos respectivos. O SUS está incluído nesta condição e, não obstante
avanços ocorridos, a sua consolidação continua em trânsito.
A reforma caracterizou-se também por um caráter particular, com um reordenamento de fatias do mercado de assistência e um importante crescimento do
subsistema de atenção médica supletiva – os planos de saúde. (Conill, 1993, Mendes
1993, Bus 1995).
Do ponto de vista macrossocial, as políticas de ajuste macroeconômico e
as dificuldades de financiamento estão nas raízes da explicação dessa tendência, entre
outros. É necessário considerar também as particularidades das políticas públicas do
país que se caracteriza por ser, segundo Fleury (1994) um ―Estado, sem cidadãos‖.
Segundo esta autora, as mudanças do modelo de seguridade social ocorrido a partir da
Constituição de 1988 levaram a uma reforma universal com inclusão segmentada, ou
seja, de diversos ―cidadãos‖, todos agora cobertos mas por diversos benefícios sociais,
com a convivência íntima e contraditória de sistemas públicos e privados.
73
Embora relacionadas, as questões, no âmbito microssocial, são de outra
ordem. Referem-se a organização das formas de trabalho, da educação médica e dos
demais profissionais de saúde, subjetividades de usuários e profissionais, numa
complexa interação entre as dimensões econômicas, políticas e culturais.
Atualmente, as duas principais propostas para garantir a continuidade do SUS, são a
descentralização, com a municipalização e a consolidação de Sistemas Locais de Saúde
por intermédio da estratégia da saúde da família (Ministério da Saúde, 1993, 1994,
1996, 1998, 2001).
A avaliação do SUS, tem evidentemente leituras diferenciadas conforme
o agente social que a faz e segundo a região geográfica do país. O objeto do próximo
item trata justamente sobre o papel que pode ter a epidemiologia na avaliação e no
acompanhamento dos serviços. Conforme apontou Breilh (1998), no V Congresso
Brasileiro de Epidemiologia, para além de uma função no ―cálculo do mínimo
necessário‖, é possìvel pensar que estudos e indicadores sobre a situação de saúde e dos
serviços podem contribuir para a construção de sociedades mais saudáveis e com maior
equidade.
4. A epidemiologia no acompanhamento e avaliação de sistemas de
saúde
Há um número grande de conceitos e metodologias no campo da
avaliação em saúde (Donabedian, 1984, Silva & Formigli, 1994, Hartz, 1997, Novaes,
2000). Uma definição adaptada de Silva et alii (1996:24) considera avaliação como:
―um processo destinado a determinar a qualidade e a pertinência dos
serviços prestados, comparando desempenho e resultados com
parâmetros definidos em função de metas. Compara o que está sendo
feito ou foi feito com o que deveria ter sido, ou seja, pode ser
realizada desde as decisões e/ou ações a tomar até aquelas já
tomadas‖.
Outros autores consideram que
―avaliar consiste fundamentalmente em fazer um julgamento de valor
a respeito de uma intervenção ou qualquer um de seus componentes,
com o objetivo de ajudar na tomada de decisões. Este julgamento pode
ser resultado da aplicação de critérios e de normas (avaliação
normativa) ou se elaborar a partir de um procedimento científico
(pesquisa avaliativa). (Contandriopoulos et alii, 1997:31).
Um agrupamento interessante é sugerido por Silva & Formigli (1994:81),
no qual os estudos avaliativos são divididos da seguinte forma: relacionados com a
disponibilidade e distribuição social dos recursos (cobertura, acesso, equidade);
relacionados com o efeito das ações (eficácia, efetividade, impacto); relacionados com
os custos (eficiência); relacionados com a adequação das ações ao conhecimento
técnico e científico vigente (qualidade técnico-científica); relacionados à percepção dos
usuários sobre as práticas (satisfação, aceitabilidade).
Do ponto de vista metodológico, o modelo de avaliação inspirado na
teoria sistêmica, proposto por Donabedian (1984), é um dos mais conhecidos na área,
74
composto pela análise da estrutura (recursos), dos processos (atividades) e dos
resultados, de um programa ou sistema de saúde, relacionando-os também entre si.
A estrutura diz respeito às características relativamente estáveis dos serviços, incluindo
os recursos disponíveis e o contexto físico e organizacional. Refere-se ao tipo e número
de trabalhadores de saúde, planta física, equipamentos, gama de serviços, enfim, às
características que determinam o acesso e a continuidade da assistência. A estrutura
determina o potencial do sistema. Já a avaliação do processo mostra como o sistema
realmente funciona, através da interação entre os prestadores e os usuários (Silver,
1992).
Conforme assinalado na definição apresentada no início deste texto, uma
das funções da epidemiologia é a de fornecer indicadores que sirvam de suporte ao
planejamento, administração e avaliação, o que inclui o acompanhamento das ações.
Este campo tem sido às vezes denominado de ―epidemiologia de serviços‖ e inclui
também estudos que possam relacionar ações com resultados.
De um modo genérico, indicador é uma qualidade numérica ou não que
permite apreciar características de um fenômeno de interesse. Em epidemiologia, os
indicadores são medidas quantitativas sendo expressos em geral, numa relação entre um
numerador (número de eventos) e um denominador (população exposta), multiplicado
por uma constante (1000, 10000 ou 100000) a fim de permitir comparações entre
populações de tamanhos diferentes.
São bastante difundidos os coeficientes de mortalidade, obtidos pela
divisão entre o número de óbitos e o número de expostos ao risco de morrer. Podem ser
categorizados segundo os critérios de interesse tais como, sexo, faixa etária, estado civil
e, classificados segundo causa ou lugar. Assim, o coeficiente de mortalidade infantil é
calculado dividindo-se o número de óbitos de crianças menores de um ano pelos
nascidos vivos naquele ano, em uma determinada área, multiplicando-se por 1000 o
valor encontrado.
Vejamos alguns exemplos de indicadores usados em avaliação de
sistemas de saúde. Podemos ter indicadores da estrutura ou dos recursos que dão idéia
da oferta potencial: profissionais/habitantes (em geral, usa-se o número de médicos ou
enfermeiros/10000), número de leitos/habitante, gasto per capita. Os indicadores de
processos mostram a produção, permitindo avaliar a utilização dos serviços (oferta real),
a integralidade e continuidade da atenção. Fazem parte desse grupo, as consultas e
internações/habitante, a distribuição das consultas por tipo ou grau de complexidade
(atenção básica versus especialidades, cuidados curativos versus preventivos), % de
encaminhamentos, de atendimentos de emergências, exames especializados, etc.
Para o acompanhamento de objetivos de equidade seria útil avaliar
barreiras no acesso, verificando-se por exemplo, o tempo de espera para obtenção de um
serviço considerado tecnicamente necessário. Este tipo de informação não faz parte da
rotina dos sistemas de informações, necessitando de estudos especiais.
Os indicadores de resultados medem efeitos no estado de saúde ou na
resolução de problemas e incluem incidências (casos novos) ou prevalência (casos
existentes) de doenças, coeficientes de mortalidade ou mesmo medidas de mudanças de
comportamentos de risco (tabagismo, por exemplo).
Um grande desafio no acompanhamento e avaliação de sistemas de saúde
é estabelecer julgamentos acerca de resultados, tendo em vista as características
multifatoriais do processo saúde/doença. A isto se agrega a ampliação do modelo
explicativo ao qual já nos referimos, que relativizou a importância dos serviços na
melhoria do estado de saúde das populações.
75
A fim de superar essa problemática, Contandriopoulos (1990) propõe um
modelo ampliado, em que interagem dois circuitos: o que determina o estado de saúde e
o circuito de cuidados. É possível, com esse modelo, identificar os componentes do
sistema com maior precisão, estabelecendo-se relações entre eles conforme apresentado
na figura 1.
Tem-se procurado estabelecer indicadores de resultados mais diretamente
relacionados com efeitos dos serviços, tais como, mortes infantis por causas preveníveis
por imunizações. O Programa de Saúde da Família tem uma lista de indicadores desse
tipo considerados marcadores da qualidade da assistência, tais como: acidentes
vasculares cerebrais; gravidez em menores de 20 anos; recém-nascidos com peso
inferior a 2.500g; hospitalizações por pneumonias; desidratação em menores de 5 anos;
hospitalizações por complicações de diabetes; fraturas de colo de fêmur em maiores de
50 anos; hanseníase com grau de incapacidade II e III.
Outra questão importante é que, para um julgamento sobre qualidade, é
preciso comparar resultados com parâmetros. Esses parâmetros advêm de normas
internacionais ou nacionais devendo, no entanto, serem relativizados nos contextos
locais.
Atualmente, dados sobre a estrutura (recursos), processos (consultas,
internações, outras atividades) e resultados (morbidade, mortalidade, condições dos
nascimentos) dos sistemas municipais (e também estaduais) não têm em geral um
acompanhamento integrado, estando dispersos em pelo menos, três setores.
Com o processo de implementação do SUS, vem se desenvolvendo um
conjunto de tentativas para um melhor acompanhamento do sistema público,
principalmente nos municípios.
Para repasse de recursos financeiros federais foram estabelecidas Normas
Operacionais Básicas (MS, 1993, 1996) conhecidas como NOB‘s, cuja última versão,
publicada em 26 de janeiro de 2001, foi denominada Norma Operacional da Assistência
à Saúde/NOAS (MS, 2001). Essas normas definiram uma série de condições regulando
a municipalização: modalidades de gestão; existência de Fundos Municipais; plano e
Conselho de Saúde; relatório de gestão; e comprovação de contrapartida municipal (MS,
1993). Nas versões mais recentes (MS, 1996, 2001) foram acrescentados requisitos
justamente no que se refere aos sistemas de informação sobre a situação de saúde e a
criação de estruturas municipais nas áreas de vigilância sanitária, vigilância
epidemiológica e de controle e avaliação.
Pela última regulamentação, os municípios podem habilitar-se a duas
modalidades de gestão para recebimento dos recursos federais: gestão plena da atenção
básica ampliada e gestão plena do sistema municipal. No primeiro caso, devem garantir
a existência de cadastro, auditoria, controle e avaliação dos serviços de atenção
básica123, no segundo, essas ações dizem respeito ao conjunto de prestadores de serviços
ambulatoriais e hospitalares.
Herdeira de uma cultura institucional do antigo INAMPS, a área de
controle e avaliação se ocupa então, de manter o cadastro de prestadores, verificar os
boletins de produção, enviando dados para níveis de gerência central e autorizando
pagamentos. O foco principal são as contas médicas, mas é também a área responsável
pela realização de auditorias e averiguação de denúncias. Gerenciam dois grandes
sistemas de informações: Sistema de Informação Ambulatorial/Sia-SUS e o Sistema de
123
Compreendem as seguintes ações: controle da tuberculose, hanseníase, hipertensão, diabetes, saúde
bucal (0-14 anos, gestantes), urgências odontológicas, saúde da criança (nutrição, imunização,
doenças mais prevalentes), pré-natal, planejamento familiar e cortes cérvico uterino (MS, 2001, anexo
1).
76
Informação Hospitalar/SIH-SUS organizado a partir das Autorizações de Internações
Hospitalares/AIH‘s, contendo dados sobre causas de internações, entre outros.
No setor de epidemiologia, além do monitoramento dos casos de
doenças, que podem assumir proporções epidêmicas, está sediada (num processo ainda
incompleto de descentralização), a gestão dos seguintes sistemas de informações sobre a
situação de saúde:
SIM – Sistema de Informação de Mortalidade;
SINASC – Sistema de Informação de Nascidos Vivos – fornece dados sobre o
acompanhamento pré-natal e condições dos nascimentos;
SINAN – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – fornece dados
sobre doenças de notificação compulsória como, por exemplo, cólera,
coqueluche, dengue, doença meningocócica, hepatite B, malária, AIDS, tétano,
tuberculose.
Esses sistemas podem ser acessados no site http://www.datasus.gov.br.
Além destes, existem outros sistemas de implantação mais recente, tais
como, o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional/SISVAN e o Sistema de
Informação de Atenção Básica/SIAB. Apesar de estarem em franco processo de
aprimoramento, todos estes bancos, incluindo os mais antigos, têm problemas de
subregistro (Carvalho, 1997).
Finalmente, o setor de planejamento é o local onde estes dados podem
(ou deveriam) ser encontrados consolidados e melhor integrados em programações
anuais com metas pactuadas que os municípios assumem o compromisso de cumprir e,
nos Planos Municipais.
Conclusão
A prestação de serviços no mundo ocidental contemporâneo é resultado
de uma longa trajetória histórica. Apesar de pressões no sentido de um recuo na
intervenção estatal, tende-se hoje a um olhar mais social, buscando-se, pelo menos no
discurso e no plano legal, um consenso em torno da solidariedade e da integralidade
como ideais regulatórios dos sistemas de saúde. Mas, os demais olhares, mágico,
empírico e o biologicista (ainda hegemônico), estarão também presentes, como parte da
construção dessa trajetória.
O modelo proposto por Contandriopoulos (1990) incorpora uma
concepção ampliada dos determinantes da saúde influenciada pelo modelo de Lalonde
(1974), chamando atenção para o papel limitado do subsistema de atenção. As
diferentes modalidades organizacionais nos diferentes países (responsabilidades dos
cidadãos e do Estado, regulamentação profissional, tipos de financiamento e pagamento
pelos serviços) podem explicar parte das principais diferenças entre os sistemas de
saúde, na medida em que influenciam os papéis dos diferentes atores repercutindo na
capacidade de gerir os gastos e na eficiência técnica e social dos serviços.
Aliás, é importante atentar para o fato de que a lógica que rege as
particularidades funcionais do sistema de saúde pode não necessariamente estar voltada
para o bem-estar da população, visto que o comportamento dos diversos (e muitas vezes
antagônicos) atores sociais dentro de tal sistema pode direcionar sua dinâmica para
outros fins.
77
No âmbito do que denomina uma democracia inconclusa, Gershman
(1995) considera que a reforma brasileira mostra-se ainda incompleta, campo de
permanente interação de atores sociais. Utiliza o conceito de regimes democráticos, que
se refere à capacidade que governo e sociedade possam ter para gerar comportamentos
democráticos para além do campo estritamente político. Significa o estabelecimento de
novas dimensões nas relações Estado-Sociedade, incluindo direitos e políticas sociais.
Considera possível expandir a reprodução da democracia por aproximações sucessivas.
A avaliação de resultados das políticas de saúde, que visam consolidar a
reforma, tem demonstrado avanços com maior oferta de serviços de atenção básica e
preventiva (MS, 1999, Vianna e Dal Poz, Conill, Freitas & Bacilieri, 2000, 2001), entre
outros. A construção de uma esfera pública democrática no setor através da
implementação e do fortalecimento de Conselhos de Saúde tem sido importante para
assegurar, ainda que num quadro de fortes restrições financeiras, direitos na cobertura
com serviços mais abrangentes, além de inovações na gestão (Fleury & Carvalho,
1997).
São vários os mecanismos de regulação existentes e as informações já
relativamente abundantes estão ainda dispersas. Há um papel importante da
epidemiologia no sentido de integrá-las numa perspectiva abrangente em direção à
proposta atual de vigilância da saúde. Esta é uma nova perspectiva de redefinição das
práticas, que faz a distinção e assume a importância do controle de determinantes, riscos
e danos, com a incorporação de um conjunto ampliado de sujeitos sociais (Teixeira et
alii,1998). Um esforço multidisciplinar e interinstitucional de controle e avaliação
podem então contribuir para que recuos sejam limitados e avanços mantidos e
ampliados.
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80
Figura 1: Modelo de Sistema de Saúde
Ambiente cultural, social político, econômico e
Modalidades organizacionais:
tecnológico
Responsabilidades dos cidadãos,
do governo;
Regulação em relação à
profissão;
Modalidades de financiamento;
Modalidades de pagamento
Problema
de saúde
Estilo de vida
genética
produtividade
saúde
Estado de saúde
dos indivíduos
na população
R
e
c
u
r
s
o
s
Utilização
de serviços
Modificação dos
problemas
efetividade
eficiência
Bem estar
Fonte:Contandriopoulos,A.P.,1990.
Prosperidade
econômica
h
u
m
a
n
o
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f
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r
81
Quadro1 – Comparação dos enfoques no estudo da trajetória históricosocial dos serviços de saúde
Enfoques
Período
Comunidades
primitivas
Antigüidade
clássica (400-200
a.C.)
Fim do
renascimento e
início do
classicismo (15001600)
Manufaturas
Indústrias (17001800)
Monopolização do
capital
Período formativo
(final de 18001900)
Imperialismo
(1920-1950)
Crise e novo
momento de
internacionalização
Olhar sobre o
corpo social
(Scliar, 1987)
Desenvolvimento
das forças
produtivas
(Breilh, 1998)
Intervenções do
Estado no tecido
social (Foucault,
1979)
Racionalidade
médica ocidental
(Luz, 1993)
mágico
empírico
Escola Hipocrática
1º momento:
sistematização do
saber / corporação
médica
primórdios do
olhar científico
polícia médica
polícia médica
alemã
2º momento: curar
menos importante
do que produzir
conhecimentos
sobre doenças
olhar contábil
epidemiológico e
armado
polícia médica
normatização
institucional,
medicina social,
medicina urbana
3º momento:
clínica, anatomiapatológica,
separação entre
medicina e arte de
curar
olhar armado
início do modelo
biomédico,
hospitalo-cêntrico
intracorpo
4º momento:
incorporação da
tecnologia,
completam-se as
cisões:
conhecimento x
arte de curar;
diagnose x
terapêutica; agir
clínico x relação
intensificação do
olhar social
recuo do olhar
social?
atenção primária:
nova polícia
médica?
epidemiologia do
cálculo do mínimo
necessário?
medicina
comunitária
82
Quadro 2 – Modelos de proteção social
Modalidades
Denominações
Ideologia
Princípio
Efeito
Status
Finanças
Atuária
Cobertura
Benefícios
Acesso
Administração
Organização
Referência
Cidadania
Fonte: Fleury,1994:108
Assistência
Seguro
Seguridade
Residual
Liberal
Caridade
Discriminação
Desqualificação
Doações
Fundo
Alvos
Bens/Serviços
Teste/ Meios
Filantrópico
Local
Poor Laws inglesas
Invertida
Meritocrático
Corporativa
Solidariedade
Manutenção
Privilégio
% Salário
Acumulação
Ocupacional
Proporc. Salarial
Filiação
Corporativo
Fragmentada
Bismarck
Regulada
Institucional
Social-democracia
Justiça
Redistribuição
Direito
Orçamento Público
Repartição
Universal
Mínimo Vital
Necessidade
Público
Central
Beveridge
Universal
83
POLÍTICAS DE SAÚDE
(Paulo Eduardo Elias)
Reforma ou contra-reforma: algumas reflexões sobre as
políticas de saúde no Brasil
Paulo Eduardo Elias
Professor do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP
Pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC)
E-mail: [email protected]
ÍNDICE
1. Modelos assistenciais na histórica brasileira. 2. A Contra-Reforma. 3.
Reforma Sanitária brasileira e o modelo da contra-reforma. 4. Políticas
sociais e o papel do Estado nas políticas de saúde. 5. Políticas públicas de
saúde no Brasil e o financiamento da universalização dos serviços. 6. Gestão
descentralizada do Sistema Único de Saúde. 7. Bibliografia.
1. Modelos assistenciais na história brasileira
No período que vai de meados da década de 60 até 1988 ocorreram
mudanças significativas no sistema de proteção social brasileiro. Esse movimento, é
paradoxal: acompanha o período do regime militar autoritário uma ampliação das
políticas sociais através de um processo acelerado de privatização nos setores de bens
de consumo coletivo, como é o caso da saúde e educação. Ao mesmo tempo, a partir de
meados da década de 70, o país assiste a um vigoroso movimento de setores da
sociedade civil para a democratização da saúde, entendida como direito universal
garantido pelo Estado e sob controle público. De fato, a partir do final da década de 60,
são instituídos vários programas de extensão de benefícios sociais aos trabalhadores
rurais, até hoje no entanto com escassa efetividade.
O período de 1964 a 1975 é marcado pelo que se poderia denominar de
desenvolvimentismo sem democracia, quando então tem início o processo de transição
democrática. Do ponto de vista econômico o modelo de acumulação, crescentemente
excludente, tem como base investimentos no setor de bens de capital, grande presença
do capital financeiro e crescentes empréstimos internacionais. À concentração de renda
associam-se a concentração de capital e uma pauta de exportações baseada em produtos
agrícolas e intermediários, produtos manufaturados e minérios. O regime autoritário
sustenta o milagre brasileiro (de 1968 a 1975) e a inserção da economia no mercado
mundial.
No que diz respeito às políticas sociais, acentua-se seu caráter
centralizado no âmbito federal, há uma expansão dos benefícios sociais a setores
informais, sendo assegurada, por exemplo, aposentadoria aos trabalhadores rurais e aos
idosos com mais de 70 anos independentemente de seu vínculo com o sistema de
proteção social, e aos profissionais liberais que quisessem se vincular ao sistema, dentre
outros setores. No entanto, essa expansão dos benefícios não é acompanhada da
ampliação da base de financiamento do sistema, que continua sendo fundamentalmente
contributiva. É um traço característico latino-americano e o Brasil não foge à regra de a
84
expansão de benefícios sociais ocorrer em períodos autoritários: foi assim nas décadas
de 20 e 30 e no período militar.
É nesse período – décadas de 60 e 70 – que se consolida no país a
privatização da assistência médica promovida pela atuação do Estado através do sistema
de proteção social. De fato, a previdência social passa a ofertar assistência médica aos
seus segurados fundamentalmente através da compra de serviços médicos do setor
privado, que tem assim garantido um mercado cativo. Calcula-se, hoje, que 75% da
assistência médica hospitalar ofertada pela previdência social é produzida pelo setor
privado, cabendo-lhe ainda cerca de 45% do atendimento ambulatorial.
Tem-se, em conseqüência, um sistema privado prestador de serviços de
saúde altamente complexo, com alta densidade tecnológica, e que progressivamente vai
se transformando num setor de acumulação de capital.
Existem os serviços credenciados – remunerados pelo critério de atos
médicos prestados; os serviços conveniados – remunerados pelo critério do custo
histórico do conjunto de atos médicos que configura os procedimentos médicos; os
seguros médicos de pré-pagamento – as empresas do setor econômico contratam
serviços médicos privados para atender seus empregados e dependentes, e o cálculo de
remuneração é feito com base na cobertura geral dessa população, excluídos os casos de
atos médicos de alta complexidade, doenças crônico-degenerativas, entre outras; as
cooperativas médicas – que sob a forma cooperada obedecem a mesma lógica de
funcionamento do caso anterior; e os seguros médicos privados – para pessoas físicas
ou jurídicas, no geral realizados pelo capital financeiro. Complementam esse quadro os
serviços médicos próprios das empresas privadas e estatais.
O apogeu desse processo de privatização ocorre na década de 70, quando
se assiste ao fenômeno do crescimento acelerado dos gastos com assistência médica no
interior do orçamento da previdência social. No final dessa década, esse sistema estatal
de proteção social passa a ser o segundo orçamento do país, sendo que um terço de sua
receita é gasta com a assistência médica. Mas é também no final dessa década que o
sistema de proteção social entra em crise: o fim do milagre econômico, a pressão das
dívidas externa e pública, as exigências do Fundo Monetário Internacional, a recessão
econômica e a pressão inflacionária, associados aos altos custos da assistência médica
previdenciária, provocam o colapso do sistema de proteção social.
2. A contra-reforma
A partir da década de 1960, começam a aparecer os primeiros sinais de crise
nos Sistemas de Bem-Estar Social e no paradigma econômico keynesiano que o
sustentava, resultando numa série de ajustes que, desde então, vêm sendo
implementados. Os anos 70 representam o ápice desse processo de ajustamento,
produzindo grandes ―reformas‖ neste Sistema, observando como principal diretriz a
estrita obediência aos princípios da racionalidade econômica, que desconsidera os
impactos sociais delas decorrentes. Neste momento, as forças políticas e econômicas
dominantes questionam intensamente algumas das importantes conquistas sociais do
período reformista do pós-guerra.
O processo descrito sob o enfoque histórico, que, em graus variáveis,
perpassa o capitalismo central, culminando com a crise dos Sistemas de Bem-Estar
Social da década de 1970, configura-se como um verdadeiro movimento de contrareforma voltado a subtrair direitos sociais consagrados no padrão do Welfare State.
85
Por outro lado, na periferia do capitalismo, que sequer chegou a constituir
algo assemelhado a um Estado de Bem-Estar Social, o impacto desta onda contrareformista se faz sentir somente na década de 80. Dadas as características sócioeconômicas vigentes nas sociedades capitalistas periféricas e as possibilidades que se
lhes apresentam para a inserção no processo de globalização em curso, os efeitos deste
movimento de contra-reforma social abalam profundamente as estruturas do mundo do
trabalho e dos sistemas de proteção social a eles associados. O objetivo último deste
concerto pretende atingir o padrão de proteção social fundado na solidariedade
redistributivista e na consagração de um patamar de acesso a um conjunto de bens
sociais identificados no mundo desenvolvido com padrões de cidadania.
Deste modo, no plano conceitual, o termo reforma, que desde o início do
século XX se constituía como um dos pólos do processo de mudança com vistas a
efetivar melhorias sociais sob o capitalismo, alcança um fim de século não só tendo
subtraído seu par antagônico – a revolução – mas sobretudo completamente esvaziado
em seu sentido inicial em prol da inclusão social, buscando minimizar os efeitos sociais
mais deletérios do capitalismo.
Neste sentido, a atualidade recoloca o sentido do termo reforma que passa a
apresentar conotação significativamente diversa daquela que lhe era atribuída no pósguerra. Assim, no plano das políticas sociais, reforma passa a significar a revisão radical
do acesso a certos bens sociais requeridos pela efetivação dos direitos sociais e em
benefício do império da racionalidade e da globalização das economias nacionais. Em
termos sociais mais estritos, este movimento se configura muito mais como uma contrareforma social do que propriamente como uma mobilização reformadora, pelo menos no
sentido político, histórico e social que ele apresentou no decorrer de grande parte desse
século, muito apropriadamente nominado por Hobsbawm em um dos seus livros como
―A Era dos Extremos‖.
3. Reforma sanitária brasileira e o modelo da contra-reforma
Em síntese, a leitura atenta das contribuições sobre o processo de reforma
sanitária brasileira permite apontar a dominância de um certo padrão de concepção do
Estado de tipo modernizador, com forte viés autoritário, com a área da saúde à frente do
sistema de seguridade social, e mais recentemente emergindo a nuança de um Estado
não necessariamente produtor de serviços, mas com forte traço regulador. Este tipo de
abordagem induz a questionamentos tais como sobre a base social de apoio de um
Estado assim concebido, bem como sobre quais os setores sociais que respondem pela
construção da hegemonia dessa concepção. No Estado nacional-desenvolvimentista
modernizador, esse papel é atribuído à burguesia industrial, enquanto, no caso
representado pela concepção reformista, este papel é reservado privilegiadamente à
tecnoburocracia estatal ―bem intencionada‖ e/ou ao poder dos movimentos sociais
organizados.
De outro modo diverso, no Brasil o discurso da Reforma Sanitária é
constituído, na década de 1970, a partir de uma pequena parcela de intelectuais
universitários da área da saúde, realizando suas primeiras experiências concretas através
de projetos institucionais bem delimitados voltados para a atenção primária para
populações rurais (tais como Montes Claros e PIASS). A difusão do ideário reformista
para a sociedade dá-se principalmente através do CEBES, entidade constituída a partir
da iniciativa do PCB, atingindo assim parte dos profissionais – aqueles mais
86
identificados com a temática sanitária – e, posteriormente, representantes das centrais
sindicais (quase exclusivamente profissionais de saúde) e alguns parlamentares (grande
parte deles vinculados profissionalmente à saúde). Convergem para estes setores
representantes dos movimentos populares de saúde, em geral dependentes da
permeabilidade do poder executivo à participação social para poderem manter-se
atuantes, e algumas entidades associativas de profissionais de saúde. São estes setores
que basicamente constituem o Movimento da Reforma Sanitária no Brasil, e que terão
grande atuação durante a VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, e no
período pré e pós-Assembléia Nacional Constituinte. Segundo TEIXEIRA (1988:201),
parte dos profissionais que se ―filiavam‖ ao Movimento da Reforma Sanitária ocuparam
postos importantes na estrutura do Ministério da Saúde e do Instituto Nacional de
Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) com o objetivo de implementar o
ideário da Reforma Sanitária.
O ideário da Reforma Sanitária consistia na proposta de um sistema de
saúde único, fundamentalmente estatal, sendo o setor privado suplementar àquele, sob
controle público, e descentralizado. O que estava em questão era a universalidade da
atenção à saúde, superando-se a histórica dicotomia entre assistência médica individual
e ações coletivas de saúde. A estratégia eleita para se conquistar a saúde como um
direito consistia na descentralização do sistema de saúde. E como já apontaram vários
autores o tema da descentralização tende a emergir nas conjunturas de transição e
consolidação democráticas124, hibernando nos períodos autoritários e ditatoriais. O que
se buscava, com a descentralização, era não só maior racionalidade do sistema de saúde,
mas fundamentalmente a valorização da criação de novos espaços institucionais de
participação, com poder deliberativo dos segmentos organizados da sociedade,
constituindo-se assim como uma estratégia de ampliar, no espectro social, as
oportunidades de acesso ao poder.
A estratégia política adotada, no interior de um processo de transição
democrática conservadora, e bem ao gosto do partido que liderava o movimento
sanitário, foi a de ocupar postos centrais no aparato do Estado, em particular do sistema
de previdência social, promovendo reformas institucionais de cima para baixo, e que
caminhavam no sentido da descentralização, da participação da sociedade na gestão da
saúde - promovendo por essa via o controle público - e do fortalecimento e recuperação
dos serviços públicos de saúde.
De fato, várias experiências locais de gestão da saúde atestam avanços
significativos nesse sentido. Não obstante, as conquistas institucionais consagradas na
Constituição Federal de 1988, que contempla o ideário da Reforma Sanitária, não
conseguiram quebrar a lógica de articulação entre o capital privado e a base de
financiamento do sistema de proteção social. Em conseqüência, institui-se um sistema
de seguridade - e não mais de proteção social - fraturado: sua base de financiamento
continua obedecendo à mesma lógica anterior, fundamentada na economia formal e no
salário, ao mesmo tempo que se ampliam os direitos sociais a largos setores da
sociedade, desvinculados da capacidade de contribuição financeira desses setores.
Esse ―novo‖ sistema de seguridade social – seguro social, saúde e
assistência social – instituído em 1988, ao mesmo tempo que universaliza os direitos
sociais, segmenta os distintos setores da sociedade no acesso a benefícios e serviços.
Isso acontece porque se mantém a mesma lógica anterior de financiamento e são
preservados alguns dispositivos legais que orientam os setores de maior poder aquisitivo
124
Tobar, F. - "O Conceito de Descentralização: Usos e Abusos", Planejamento e Políticas Públicas, n.5,
junho de 1991, IPEA, DF pp.31-51.
87
para a busca de serviços e seguros privados, onerando o orçamento fiscal, como se verá
logo mais.
A Reforma Sanitária brasileira institucionaliza-se enquanto uma mitigada
política de governo restrita aos aparelhos institucionais da saúde, tendo o Ministério da
Saúde à frente. Conseqüentemente, torna-se uma ação de governo sujeita às vicissitudes
e constrangimentos comuns a esse tipo de situação, abrangendo desde aspectos mais
conjunturais, tais como o grau de prioridade política e a destinação de recursos
financeiros para o setor, até problemas de ordem mais estrutural do Estado brasileiro,
como as questões conexas referentes ao papel do Estado e ao pacto federativo vigente
(REIS F.W.,1993), temas que serão retomados em outra parte deste trabalho.
Em conseqüência, a condução das ações governamentais relativas à
saúde torna-se vulnerável à composição das forças políticas que momentaneamente
governam e dos interesses quase sempre mais imediatos que representam ou buscam
articular.
Nestes termos, a reforma sanitária brasileira, ao contrário do caso
italiano, não se configura como uma esfera de ação preferencial do Estado, e portanto
como uma política de Estado, mas sim como um ato de interesse dos governos. A
principal hipótese para explicar esta ocorrência remete ao tema recorrente da fragilidade
da participação política em nosso meio, do qual a fraqueza das estruturas partidárias é
decorrência e não causa, resultando na rarefação de partidos políticos mais orgânicos e
ideológicos (SOUZA,1976:33,34). Deste modo, a mediação entre Estado e sociedade
flui através de outros mecanismos, como por exemplo diretamente por determinados
segmentos sociais que, representando interesses setoriais, cumprem o papel de mediação
frente ao Estado e interferem na formulação e implementação das políticas de governo.
No caso das Políticas Sociais, e particularmente nas de saúde, contudo,
tais mecanismos não têm sido suficientes para conformar as demandas sociais em
políticas de Estado, isto é, políticas de natureza mais permanentes e estáveis, diversas
daquelas implementadas pelos governos, e que pela sua própria natureza temporal se
revelam instáveis e transitórias.
No caso do Brasil, a Constituição de 1988 contemplou a saúde como um
direito social a ser provido pelo Estado, e reconheceu a determinação social no risco de
adoecer e sofrer agravos à saúde. Nessa medida, pela primeira vez no texto
constitucional brasileiro, a saúde é concebida como um bem universal a ser provido para
todos os cidadãos, implicando o princípio da igualdade de cada cidadão frente às ações
e serviços requeridos para a manutenção/reparação da sua saúde. Entretanto, diante da
situação brasileira em que impera profunda desigualdade social (Relatório da Cúpula
Mundial), o preceito de igualdade para ser substancialmente aplicado exige o concurso
de eqüidade. Caso contrário, dada a profunda heterogeneidade dos padrões de
reprodução social, o tratamento apenas igualitário significará na prática a manutenção
das dinâmicas sociais iníquas. Deve-se ainda assinalar que o advento do binômio
igualdade/eqüidade implica a noção da solidariedade entre os diversos segmentos
sociais, em que as ações estatais orientam-se pela transferência de recursos financeiros e
materiais da parcela melhor aquinhoada para aquela mais excluída. E, deste modo,
busca-se, se não erradicar, pelo menos minimizar significativamente as desigualdades e
a exclusão sociais.
4. Políticas sociais e o papel do Estado nas políticas de saúde
88
No entanto, a onda econômica neoliberal, originada na década de 1980
nos países centrais – inicialmente na Inglaterra e Estados Unidos da América –
dissemina-se pelo mundo capitalista, alcançando os países periféricos, entre os quais o
Brasil, e promovendo a difusão de uma nova concepção de políticas públicas, em que
estas perdem suas identidades sob o domínio da política macroeconômica, resultando no
abandono de seus objetivos igualitários (FIORI,1995). Ao se referir a este processo nos
países capitalistas centrais, este autor assinala que, no plano moral e ideológico,
generalizou-se o abandono do welfare state pela eficiência, competitividade e equilíbrio
macro econômico, jogando-se pela janela qualquer princípio de solidariedade. Apesar
de traduzir-se diferentemente em cada um desses países – dadas as suas particularidades
sociais, políticas e culturais – considerando-se as concepções que a fundamentam,
dentre elas a rígida contenção de gastos pelo Estado, um de seus alvos mais freqüentes
tem sido as políticas sociais, entre as quais as de saúde. Em decorrência, no caso da
saúde, as formas de organização e de financiamento dos Sistemas Nacionais de Saúde
são eleitos como aspectos centrais destas políticas. Mais uma vez, as conseqüências da
adoção desse ideário frente às particularidades da situação brasileira, principalmente a
ausência de um welfare state que atue como um conjunto articulado de políticas sociais
de caráter redistributivo, amortecendo portanto os impactos socialmente devastadores
das políticas econômicas de corte neoliberal, resultam em situações extremamente
perversas em que a obsessão pelo equilíbrio fiscal sacrifica as políticas sociais.
Deste modo a temática da Saúde é re-universalizada, agora porém através
de uma vertente predominantemente economicista e no âmbito das mudanças da nova
ordem econômica mundial125, em que às políticas sociais resta apenas o caminho da
eficiência, da eficácia e da privatização (LAURELL;ARELLANO,1996).
Trata-se, portanto, de melhor caracterizar o papel reservado ao Estado na
organização dos serviços de saúde; isto significa evidenciar as relações público/privado
nas diferentes situações concretas que configuram os sistemas de saúde, e desvendar as
concepções de Estado a elas subjacentes. A título de ilustração, toma-se ainda Informe
do Banco Mundial de 1995 ao recomendar para os países em desenvolvimento a adoção
de um sistema de saúde em que compete ao Estado a responsabilidade pela
universalização da assistência básica à saúde, produzindo serviços ou em parceria com
Organizações Não-Governamentais (ONGs). E a assistência especializada dependente
da incorporação tecnológica de maior vulto seria prestada pelo setor privado, com
financiamento por modalidade de seguro privado do tipo pré-pagamento de serviços. À
operacionalização deste tipo de sistema, corresponderá a formulação e implementação
de uma política de saúde voltada para o desenvolvimento governamental na atenção
básica, seja através de serviços próprios ou em parceria com as ONGs, e de direcionar
incentivos de natureza diversa ao setor privado para que ele atue na atenção de maior
grau de especialização, mais dependente de incorporação tecnológica.
Esse exemplo tomado das orientações do Banco Mundial denota
claramente as relações de determinação entre as políticas de saúde, a organização de
serviços e as concepções subentendidas acerca do papel do Estado: a um Estado
provedor da assistência básica universalizada e incentivador do setor privado na
assistência especializada corresponde uma política de saúde que garanta serviços
básicos para toda a população, e serviços especializados na dependência de modalidades
de financiamentos individuais ou coletivas. A implementação desta política para o setor,
por sua vez, termina por delimitar as formas de organização dos serviços de saúde. E,
125
Para maior aprofundamento da relação entre economia e política e da emergência da nova ordem
econômica mundial consultar o notável trabalho de Karl Polany ―A grande transformação‖, especialmente
o capítulo 21.
89
ainda nesta situação, a regulação estatal se dá no sentido de resguardar os serviços
básicos frente ao processo de capitalização do setor saúde, reservando-os à produção
estatal ou não-lucrativa, e conservando a produção dos serviços especializados como
área de reprodução do capital.
Vale assinalar a engenhosidade política e econômica deste modelo
proposto pelo Banco Mundial, que ao contemplar um mix público/privado na sua
estruturação, garante simultaneamente a universalização dos serviços básicos –
satisfazendo minimamente parte das necessidades sociais de saúde – e a regulação de
mercado para o acesso aos serviços mais especializados, respondendo assim aos
interesses dos agentes econômicos. No entanto, um sistema com esta configuração
submete os serviços especializados às forças de mercado, e segmenta a sua oferta
segundo a capacidade de pagamento do usuário. Em relação a este tema, ao analisar a
situação chilena, VERGARA(1994:56) afirma que ―as forças de mercado, ainda que
num contexto de crescimento do produto e de desaceleração inflacionária, não logram
trazer uma contribuição efetiva para uma maior eqüidade social, na medida em que não
contribuem para reduzir as desigualdades sociais‖. Não obstante, este é o modelo
sutilmente sugerido pelo Banco Mundial em seu Informe como tecnicamente mais
adequado para a implementação de políticas de saúde, sobretudo nos países em
desenvolvimento.
No caso brasileiro o papel desempenhado historicamente pelo Estado no
Sistema de Saúde tem sido o de organizar os consumidores, direcionar o financiamento
e o de conciliar os interesses estruturados em torno da saúde, sobretudo daqueles
articulados com os produtores privados seja de serviços, insumos ou equipamentos. O
Estado brasileiro logrou apresentar grande competência no desenvolvimento das
políticas correspondentes ao seu papel no setor saúde. Não obstante as mudanças
ocorridas nos últimos anos, que, apesar das suas diversas repercussões, praticamente
não alteraram o modelo de Estado voltado para os interesses privados, e com baixa
capacidade de regulação, configurou uma (des)organização dos serviços de saúde com
distintas formas de articulação entre os setores público e privado direcionados para
ocuparem certos níveis da assistência. E desse modo, ao invés de um único sistema,
conformaram-se dois ou mais sistemas de saúde, que segmentam a assistência segundo
vários critérios, sendo o principal deles a forma de seu financiamento e a inserção do
usuário no sistema de produção econômica. Em relação a este último, ele resultou na
institucionalização de um modelo dual de bem-estar social (VERGARA,1994:46), em
que, de um lado, os trabalhadores dos setores econômicos de ponta, e partícipes do
processo de globalização econômica, ao lado das elites e dos setores dos estratos médios
e altos da sociedade são cobertos pelo sistema privado de saúde; e de outro lado, subjaz
uma ampla massa de trabalhadores vinculados aos setores economicamente atrasados, e
as camadas dos estratos médios empobrecidos, junto com os socialmente excluídos – os
desempregados e os subempregados –, dependentes de um sistema público de saúde
cada vez mais deficitário quanto ao atendimento e ao acesso, e, portanto, socialmente
injusto.
Quanto às bases de seu financiamento, verifica-se uma enorme
dependência dos fundos públicos, sendo que a esfera federal constitui-se como principal
provedor de recursos (pela arrecadação das contribuições compulsórias que incidem
sobre a folha de salários, a produção e o lucro empresarial), centralizando o seu
controle, apesar da reforma tributária advinda do novo pacto federativo consubstanciado
pela Constituição de 1988 (AFONSO,1995). Se na situação chilena ―os neoliberais não
lograram desmantelar nem privatizar os serviços estatais de educação e saúde ...‖
(VERGARA,1994:47), no caso brasileiro esta questão sequer se coloca, dada a
90
expressividade do setor privado da saúde na assistência hospitalar e o crescente grau de
dependência do Estado dos produtores privados de serviços de saúde, como será
detalhado mais adiante. Assim, da perspectiva de seu financiamento, configura-se uma
situação de indefinição em que o sistema vigente no Brasil não se caracteriza por
sustentar-se nos recursos fiscais (sistema público universalista) ou exclusivamente nas
contribuições calculadas sobre as folhas de salário (sistema de tipo seguro, segundo a
lógica de mercado, e portanto não universalista mas meritocrático). E, na prática, nem o
sistema público (SUS) comporta-se como universalista, dadas as enormes dificuldades
que enfrenta quanto à cobertura e ao acesso aos serviços, nem o sistema privado
(complementar/supletivo) comporta-se genuinamente como modalidade seguro, dados
os incentivos fiscais do Estado e os subsídios cruzados que recebe dos serviços
públicos, sobretudo nos procedimentos assistenciais de alto custo, como será retomado
mais adiante. Assim, a caracterização de um sistema de saúde seletivo na sua base de
adstrição de clientela é apontado como de difícil reversão por alguns estudiosos, e
compromete o princípio constitucional da universalização exigido na estruturação do
SUS (SILVA apud GUIMARÃES,1991:25).
Em suma, a organização dos serviços de saúde vigente no Brasil
configura uma situação de dualidade no interior da política de seguridade social em que
se apresentam duas institucionalidades distintas: uma, que assegura o acesso aos
serviços de saúde pela via do mercado aos estratos sociais de maior renda e aos
melhores situados no mercado de trabalho; e outra, dependente dos serviços públicos de
saúde, que os assegura aos estratos pior situados no mercado de trabalho e aos
excluídos. Segundo VIANNA(1989:7), o acesso aos serviços enquanto direito implica a
adoção de modelos de sistemas de saúde que se contraponha às modalidades
assistenciais organizadas por clientelas ou grupos sociais específicos como forma de
eliminar ou restringir acentuadamente o privilégio e a discriminação social. Para este
autor, as desigualdades sociais no campo da saúde manifestam-se basicamente através
das seguintes formas: no direito ao acesso; na distribuição dos recursos; na utilização
dos serviços; nos resultados das ações de saúde; e no financiamento. É justamente dessa
perspectiva que, a seguir, se analisará a organização dos serviços de saúde no Brasil e os
sistemas dela resultantes, do ponto de vista da desigualdade e da exclusão sociais.
5. Políticas públicas de saúde no Brasil e o financiamento da
universalização dos serviços
Apesar da capacidade de expressão do modelo proposto e do grande
poder racionalizador que parece sustentá-lo, em realidades concretas estes atributos não
se manifestam com a esperada intensidade. Não raras vezes, os hospitais especializados
absorvem importante quantidade de recursos sem a correspondente atuação na resolução
dos problemas de saúde mais demandados pela população. Nos países em
desenvolvimento, os estabelecimentos, equipamentos, recursos humanos e
medicamentos tendem a orientar-se para a ponta da pirâmide do sistema de saúde
(BANCO MUNDIAL,1993:138). Isto também ocorre com freqüência na situação
brasileira, principalmente em seus pólos economicamente mais dinâmicos, nos quais
geralmente o setor público subsidia o setor privado prestando a assistência que exige
pessoal altamente especializado, instalações e equipamentos de alto custo, para a
parcela da população vinculada aos planos de saúde do setor privado.
91
No nível internacional, o debate acerca da saúde dá-se em torno das
formas de reorganizar o setor, da repartição das responsabilidades entre os setores
público e privado, enfatizando-se a melhoria da eficácia dos serviços e a
descentralização como os melhores meios para concretizá-la. No Brasil, a este debate
têm sido agregados pelo menos dois outros problemas: aqueles relacionados ao
financiamento do setor saúde, envolvendo a definição dos recursos necessários e fontes
estáveis para seu provimento, e, não obstante o seu caráter crônico, aqueles relativos a
uma denominada ―crise da saúde entendida como crise no gerenciamento dos
serviços‖126 identificada como uma disfunção/incapacidade gerencial numa situação de
escassez de recursos.
Não obstante o arcabouço legal básico da área da saúde estar
praticamente concluído desde 1990, tornando-a a primeira, e até meados da década de
1990 a única dentre as áreas sociais a ter completa a sua regulamentação legal após a
promulgação da Constituição, suas conseqüências não surtiram os efeitos previstos e
desejados em grau e velocidade compatíveis com as exigências para a estruturação do
SUS. A situação extremamente grave que vem perdurando no sistema de saúde desde o
final dos anos oitenta, cuja face mais visível é a da permanente ameaça de colapso da
assistência médica, aliada às medidas que vêm sendo adotadas para promover o ajuste
da economia, obrigou diversos municípios a inovarem na busca de soluções para os
problemas de saúde, resultando em experiências criativas, algumas delas ocorrendo
totalmente à margem do SUS tal como oficialmente definido.
As questões relativas à estruturação e funcionamento do SUS são de
várias ordens: a descentralização ocorre de modo limitado e limitante; o financiamento
continua pendente em termos quantitativos (o montante de recursos disponíveis) e
qualitativos (estabilidade e tipo de fontes de recursos); o controle social busca abrir
caminhos em meio a uma sociedade desestimulada para as ações de cidadania e a um
Estado desacostumado a ter seus atos controlados pela sociedade, e portanto a um
Estado infenso ao controle social. Mas, sobretudo, o SUS carece, para a sua efetiva
implementação, da estruturação de um amplo projeto que contemple a desigualdade e a
exclusão social, de forma a orientar a operacionalização da descentralização em moldes
diversos daquele baseado apenas no financiamento.
Esse sistema de saúde, tal como configurado nesse estudo, abrange os
serviços públicos nas esferas de governo federal, estadual e municipal e os serviços
privados em suas várias modalidades de prestação – filantrópicos, lucrativos,
beneficentes, dentre outras. Seus principais traços são:
a) serviços públicos de saúde, operacionalizados por intermédio de serviços
próprios governamentais ou por compra de serviços de terceiros, para os
grupos sociais de renda média para baixo, e que são financiados
historicamente através de um fundo público administrado pelo Estado,
constituído principalmente por contribuições compulsórias dos
trabalhadores formais para o sistema de previdência social (NUNES;
BRAKARZ,1993:13). Mais recentemente, a partir da Constituição de
1988, ocorre a diversificação da base de financiamento desses serviços
com a incorporação de fontes da receita tributária vinculada ao orçamento
126
As aspas justificam-se pelo fato de que os problemas gerenciais dos serviços de saúde decorrerem em
grande parte do atual emaranhado normativo que caracteriza o Estado brasileiro, que ao lado da
inexistência de um sistema eficaz de prestação pública de contas pelos vários escalões do funcionalismo
público, são em grande medida responsáveis pela ineficácia e o estado de calamidade em que se encontra
a maioria dos serviços estatais.
92
da Seguridade Social, sendo as principais delas a Contribuição ao
Financiamento da Seguridade – COFINS (incidindo sobre o faturamento
bruto das empresas) e a Contribuição sobre o Lucro Líquido (incidindo
sobre o lucro líquido das empresas), ambas criadas a partir das novas
diretrizes constitucionais (VIANNA et al.,1991). Assim, a um sistema
constitucionalmente previsto para uma cobertura universal na prestação da
assistência à saúde corresponde um financiamento em moldes regressivos e
de seguro compulsório. MEDICI (1995b:11) a respeito assinala que: ―a
saúde, enquanto política universal, isto é, voltada para toda a população
composta de contribuintes e não-contribuintes, não deveria ser financiada
por recursos oriundos das contribuições sobre folha de salário, mas sim por
recursos que reflitam o esforço fiscal de toda a sociedade‖;
b) prestação privada de serviços e seguro privado para os grupos de renda
mais elevada e parcela dos trabalhadores urbanos das atividades industriais
e de serviços pertencentes ao setor mais dinâmico da economia
(exportador, automobilístico, bens de capital, petróleo, telecomunicações,
siderurgia, construção naval, etc.), que responde pela cobertura de cerca de
22% da população, grande parte dela residente nas regiões sul e sudeste do
país. O financiamento desses serviços provém de sistemas coletivos de prépagamento administrados por empresas privadas a partir do desembolso
majoritário das empresas, e ressarcidos através dos mecanismos de
renúncia fiscal do Imposto de Renda. Dessa forma, a um sistema
pretensamente regulado pelas forças de mercado corresponde um
financiamento fundado na renúncia fiscal pelo Estado, e portanto de base
não-redistributiva.
Essas características concorrem para a configuração de um tipo de
―sistema‖ segmentado na prestação da assistência e no acesso aos serviços, inìquo no
atendimento das necessidades sociais, desprovido de qualquer tipo de controle público,
desarticulado na prestação da assistência e indutor da separação entre as ações de saúde
nos planos da atenção individual e coletiva. Este ―sistema‖, reconhecido como tal a
partir da prática em que se dá a estruturação dos serviços, contraria em grande medida
os preceitos constitucionais e legais, tradicionalmente geradores de direitos sociais nos
países capitalistas centrais.
Vale destacar, ainda, a extrema versatilidade deste segmento privado de
saúde e as estratégias que utiliza para ampliação do mercado, entre elas a da oferta de
vários tipos de planos com preços diferenciados segundo as condições das acomodações
hospitalares e da abrangência da cobertura de procedimentos e das patologias. No
entanto, a regulamentação legal desse setor é praticamente inexistente. E, assim, apenas
as cooperativas e o seguro saúde encontram-se formalmente submetidos ao controle da
autoridade pública, respectivamente o Ministério da Agricultura e a Superintendência de
Seguros Privados do Ministério da Fazenda (SUSEP); no entanto, mesmo assim os
dispositivos legais existentes não alcançam os planos comercializados. E em que pese o
seu crescimento, esse setor tem sido alvo de numerosos questionamentos junto aos
organismos estatais de proteção aos consumidores, grande parte deles decorrentes de
pendências em relação aos procedimentos e patologias cobertos pelos contratos e aos
reajustes das mensalidades, a ponto de as entidades que congregam as empresas de
93
medicina de grupo editarem, de comum acordo, um código de auto-regulação
(ALMEIDA)127
Assim, as novas bases de financiamento do setor privado de saúde
rompem com o padrão historicamente vigente, isto é, o da dependência do setor privado
das transferências diretas do Estado, substituindo-o por um outro, mais complexo, em
que a nova articulação na relação Estado/setor privado se dá através de mecanismos de
renúncia fiscal. E, frente a este novo padrão de subsídio, é o Estado que passa a
depender do setor privado para prover os serviços de saúde (COHN,1995e).
Ademais, além da vitória inconteste da ideologia do individualismo no
plano internacional, os Estados perderam a capacidade de resposta frente ao avanço
vertiginoso dos problemas sociais, no sentido de que as políticas públicas e sociais
implementadas são incapazes de responder às necessidades e demandas sociais
(FIORI,1995).
No caso brasileiro, o crescimento do setor privado de saúde à margem e
independente de qualquer tipo de controle estatal, impõe-se como uma situação de fato
que concorre para minar as possibilidades da construção de um SUS universal,
igualitário e equânime, tal como previsto na Constituição. E aqui retomam-se as
diversidades intrìnsecas de um ―sistema de saúde‖ em que o setor privado goza de
autonomia ilimitada, tanto na produção de serviços como na alocação de equipamentos
tecnológicos dirigidos para os procedimentos de alto custo. Segundo informe em
reunião de especialistas para debater questões referentes à implantação do SUS
(GUIMARÃES,1991:23), o sistema privado, composto de inúmeros centros de decisão
autônomos entre si, não apresenta capacidade para realizar escolhas que não aquelas que
atendam ao seu próprio benefício.
Diante deste quadro, o Estado brasileiro mostra-se incapaz de esboçar
uma reação eficaz no âmbito das políticas sociais, cumprindo à política de saúde
praticamente manter o inìquo ―sistema de saúde‖ atual, em nome do equilìbrio fiscal das
contas públicas. E dessa forma constrói-se lentamente um novo postulado ideológico de
que ―o bem-estar social pertence em primeiro lugar ao âmbito do privado – o mercado, a
família, a comunidade – e somente quando nele não se resolve deve o Estado intervir e
garantir um mìnimo social mediante recursos públicos.‖ (LAURELL,1994:24).
Em suma, o conjunto dos dados aqui apresentados revela um padrão de
organização de serviços excludente, que qualifica o setor público como vocacionado
para responsabilizar-se pelos estabelecimentos de mais baixo custo, e portanto como
produtor por excelência de atendimento elementar, voltado para a atenção primária em
saúde. Já o setor privado concentra-se fundamentalmente na atividade hospitalar e nas
consultas médicas aos pacientes externos, isto é, àquela clientela que não se encontra
internada nos estabelecimentos hospitalares. E deste modo esboça-se um outro tipo de
dualidade na produção de serviços de saúde mas que obedece à mesma lógica daquela
referida por VERGARA(1994) em relação ao modelo de seguridade social chileno: a da
segmentação (focalização) e a da exclusão social. E assim afirma-se cada vez mais um
modelo de ―sistema de saúde‖ dual, e com o aprofundamento da divisão social do
trabalho em que ao setor público corresponde a ampla massa de excluídos e deserdados
sociais, enquanto ao setor privado compete aqueles socialmente melhor aquinhoados.
Em resumo, a organização dos serviços de saúde no Brasil expressa, quer
em termos de sua produção, quer em termos do acesso da população, uma lógica
fortemente influenciada pela acumulação do capital, e, portanto, mediada por
mecanismos de mercado, em detrimento de uma lógica de esforços recentes regida pelas
127
Segundo manifestação do Dr. Arlindo de Almeida, Presidente da ABRAMGE, em Seminário
promovido pelo CEDEC em 10/05/1995.
94
necessidades sociais básicas, aí incluídas as de saúde. E em decorrência, esta lógica
acaba por reproduzir de um modo perverso os mecanismos determinantes da exclusão
social e das desigualdades inter e intra regionais segundo o grau de desenvolvimento
econômico que apresentam, e deste modo por acentuar ainda mais o grau de
marginalização social de significativas parcelas da população.
Disso também resulta um ―sistema de saúde‖ restritivo quanto à
cobertura oferecida, extremamente segmentado na produção e no acesso aos serviços,
iníquo no atendimento das necessidades sociais, e absolutamente desigual no tratamento
dispensado aos usuários. Em conseqüência, na prática, transforma em letra morta os
preceitos constitucionais aprovados em 1988 e o conteúdo de boa parte da legislação do
SUS. Nesse sentido, a área da saúde também espelha, nas palavras do professor
Francisco de Oliveira, ―o Estado de Mal Estar Social‖ vigente no Brasil. De um lado
encontram-se os cerca de 40 milhões que constituem a parcela dos incluídos, com
acesso a uma rede de serviços de saúde subsidiada de várias formas pelo Estado, e que
nos segmentos de ponta é tecnicamente comparável à dos países desenvolvidos que
destinam muito mais recursos financeiros para o setor saúde. No outro extremo,
encontra-se a grande massa dos excluídos, com precário acesso a um sistema de saúde
já deteriorado em função do relativo desinvestimento público no setor e do desequilíbrio
entre a demanda e a oferta de serviços, e que também apresenta disparidades e
problemas na qualidade da assistência prestada. E isto significa a continuidade perversa
de um ―sistema de saúde‖ ainda fragmentado, que privilegia as ações curativas e drena
recursos do fundo público para os serviços privados de saúde, sobretudo para os
hospitalares (MARTINS,1995:319).
Diante dessa realidade, as políticas de saúde que vêm sendo
implementadas pelo Estado brasileiro tendem a manter, ou mesmo a reproduzir, a
histórica dualidade em seu ―sistema de saúde‖, apesar dos esforços empreendidos por
alguns governos, com êxitos variáveis, no sentido de melhorar a cobertura dos serviços,
e de enfrentar alguns problemas mais agudos de saúde pública, bem como a formatar
mais precisamente, em nível de regulamentação administrativa, a descentralização
preconizada na Carta de 1988. Dessa perspectiva, o caso brasileiro se assemelha ao
chileno, na medida em que configura a coexistência de dois sistemas de saúde que
segmentam a oferta segundo a capacidade de pagamento do usuário
(VERGARA,1994:42). Assim, na prática desconsideram-se as determinações
constitucionais da saúde como um direito e dever do Estado, na medida em que se
transforma o direito de todos em privilégio para os estratos sociais de maior renda e o
dever do Estado resume-se ao provimento para o seu financiamento. Some-se a isso a
tendência à remercantilização da saúde (LAURELL,1995) que crescentemente vem
ocorrendo quando das negociações trabalhistas entre os empresários e os empregados, e
dessa forma caminhando na direção radicalmente contrária a do Estado de Bem-Estar,
em que a desmercantilização das políticas sociais constitui uma significativa conquista
dos trabalhadores.
Isso ocorre porque um dos problemas centrais reside justamente no
financiamento do setor saúde, e não apenas pela sua face mais conhecida e apontada,
que é a da escassez de recursos, mas sobretudo pela forma historicamente dominante
desse financiamento, fortemente regressivo e com pequena participação dos recursos
fiscais frente às contribuições previdenciárias. Segundo afirma COHN(1994a:11), ―... as
políticas de previdência social e de saúde acabam por se configurar como políticas
fundamentalmente econômicas, mas com função de regulação social sobretudo das
classes assalariadas‖.
95
É necessário que se reverta a lógica de financiamento na relação do setor
público com o próprio setor público. O que está em questão aqui é o mecanismo de
repasse de recursos entre as três esferas de poder - nacional, estadual e municipal.
Embora uma das conquistas centrais do movimento sanitário tenha sido a
descentralização da saúde, tornando o nível municipal o principal responsável pela
atenção à saúde de sua população, a estratégia política de sua implementação, e que
precedeu a Constituição de 1988, configurou-se numa relação entre essas esferas de
governo caracterizada pelo pagamento por serviços prestados. Em conseqüência, tanto a
lógica da descentralização, de per si mais favorável à democratização da gestão pública,
vem se caracterizando mais como um processo de desconcentração - transferência de
encargos sem transferência de autonomia para a formulação e gestão da política de
saúde em nível local, associada a uma estreita dependência do nível central em termos
de financiamento - como o próprio setor público de saúde, já depauperado pela histórica
e crônica falta de financiamento dependente do orçamento fiscal - passa a atuar também
ele pela lógica da produtividade e da rentabilidade vinculada à assistência médica
individual.
Finalmente, cabe destacar que se a racionalização defendida pelo
Movimento da Reforma Sanitária foi capaz de barrar a continuidade do sistema de
assistência médica previdenciária tout court como vigente desde há muito, ela passou ao
largo das questões do seu financiamento. E assim, a par de o movimento reformista ter
conseguido viabilizar o conceito de seguridade social na Constituição de 1988, as bases
de seu financiamento não sofreram alterações de monta, e mantiveram-se inspiradas no
tradicional modelo previdenciário até então vigente, em que as contribuições sobre folha
de pagamentos compunham a parcela mais significativa dos recursos para o
financiamento da Previdência Social. E desse modo, institui-se um sistema de
seguridade fraturado, em que ―sua base de financiamento continua obedecendo à mesma
lógica anterior, fundamentada na economia formal e no salário, ao mesmo tempo que se
ampliam os direitos sociais a largos setores da sociedade, desvinculados da capacidade
de contribuição financeira desses setores‖ (COHN,1994a:9).
Entretanto, é verdade que o procedimento de vincular recursos fiscais a
determinadas ações estatais através de lei ou pela Constituição representa o
congelamento de uma decisão tomada num dado momento, e configura-se como uma
significativa restrição da liberdade dos poderes Executivo e sobretudo Legislativo na
distribuição e alocação dos recursos financeiros. Não obstante, esta mesma vinculação
constitui um mecanismo de defesa dos recursos públicos dos interesses subalternos e
momentâneos que pressionam tanto o Executivo quanto o Legislativo 128, o que faz com
que a sua adoção exija a sua vinculação às políticas de Estado que contemplem os
interesses gerais da sociedade e contenham um projeto mais duradouro e com grande
amplitude intersetorial. Vale destacar que a rejeição da proposta da vinculação
constitucional de um percentual do Orçamento Federal para a saúde é analisada como
uma significativa derrota para Movimento da Reforma Sanitária no processo
constituinte. E à época esta proposta do movimento reformista foi atacada por
economistas dos mais diversos matizes ideológicos, que esgrimiam argumentos muito
semelhantes aos dos gestores da política econômica (JORGE,1991:12).
Algumas das combinações resultantes dessas modalidades básicas
existem no Brasil sob a forma de transferência direta ou indireta de recursos públicos
para o setor privado. Trata-se dos diversos tipos de subvenções oferecidas pelo Estado
128
Para maiores informações sobre a natureza desses interesses bem como sobre seus principais
beneficiários, consultar os mais importantes órgãos da imprensa brasileira, como Folha de S.Paulo, O
Estado de S.Paulo, O Globo e Jornal do Brasil.
96
ao setor privado, abrangendo desde a transferência pura e simples de recursos
financeiros até a utilização de mecanismos mais sutis, tais como a renúncia fiscal, seja
por meio da isenção do pagamento, do todo ou de parte, de impostos, tributos,
contribuições, seja ainda por meio do abatimento dos gastos com saúde no cálculo do
Imposto de Renda das pessoas físicas (IRPF) e jurídicas (IRPJ). Vale mencionar que os
dois tipos de subvenção são bastante disseminados, o primeiro não se limitando apenas
ao setor privado não lucrativo, sobretudo às Santas Casas e hospitais de comunidade
como Sírio-Libanês, Einstein, Beneficência Portuguesa, dentre outros, mas até
recentemente alcançando as grandes empresas de medicina de grupo. O abatimento no
imposto de renda está praticamente consagrado em nosso meio, constituindo um
importante mecanismo de incentivo ao dinâmico setor privado da saúde, ao mesmo
tempo que recoloca, ainda que em outras bases, a centralidade da regulação estatal para
o desenvolvimento deste setor.
Essa estrutura brasileira de incentivos com as características apresentadas
resulta em subvenções altamente regressivas, destinando-se apenas às parcelas
minoritárias da população de maior poder aquisitivo. Desta maneira concorrem como
mais um mecanismo perverso de exclusão social do que propriamente uma ação voltada
para a melhoria das condições de acesso e do atendimento aos serviços de saúde. Vale
ainda salientar que mesmo nas situações de predomínio da produção privada em que
não haja uma ampla cobertura de serviços à população, quaisquer subvenções
governamentais serão inevitavelmente regressivas.
Vários autores apontam o sistema de financiamento vigente como um
obstáculo ao melhor desenvolvimento do SUS, e questão chave para o êxito do processo
de descentralização na saúde. Não obstante, demorou a se desenhar um consenso sobre
as alternativas ao perfil de financiamento tal como vinha sendo realizado no setor saúde
(MEDICI et al,1995:4-12). As divergências expressavam-se em vários aspectos
relacionados ao tema, mas a tendência ao desfinanciamento do setor saúde, que
crescentemente vinha ocorrendo na primeira metade da década de 1990, tornou o debate
excessivamente centrado na questão da disponibilidade dos recursos. Em conseqüência,
as questões relativas às lógicas que perpassavam o sistema de financiamento vis à vis os
modelos de proteção social ficavam em grande medida diluídas em meio à torrencial
discussão sobre os recursos, até porque, frente à situação extremamente grave do
―sistema de saúde‖, esta última questão apresenta maior apelo popular e nos meios de
comunicação.
Diante desta questão, identificavam-se duas principais tendências
analíticas entre os autores: aqueles que focavam a discussão em torno de maior volume
de recursos necessários ao financiamento do setor, e aqueles que enfocavam os
problemas relacionados ao processo de arrecadação e distribuição dos recursos que
compõem o fundo de financiamento da seguridade social. Segundo MUNHOZ(1994:5),
não ocorria falta de recursos para o setor saúde e nem mesmo existiam graves
problemas em relação ao montante de recursos transferidos da Previdência Social para a
Saúde. Para ele a grande questão constituía-se na adoção de um conceito
―excessivamente elástico‖ de seguridade, por parte das autoridades governamentais, que
ao incluir nesta rubrica uma série de ações não classificáveis como da seguridade,
subtraía recursos para o financiamento da seguridade. Também DAIN(1995:27)
apontava que o problema central do desequilíbrio dos gastos devia-se em grande medida
à incorporação dos Encargos Previdenciários da União nos gastos da Seguridade, e que,
em 1994, praticamente equivaliam ao montante gasto em saúde. Por outro lado,
COHN(1994b) elegia como questão a reversão das lógicas do financiamento e da
seletividade da saúde, sublinhando a necessidade de que esta reversão alcançasse
97
também a relação do setor público com o próprio setor público, isto é, nas formas de
repasse entre as esferas de governo para fazer frente ao gasto em saúde, objeto do
próximo tópico.
Em resumo, configurava-se um processo de descentralização da saúde
extremamente concentrado obedecendo à lógica do desenvolvimento econômico
regional, e acentuadamente débil na capacitação dos municípios pelas distintas
modalidades de gestão, em que a maior parte dos municípios exercia apenas a gerência
dos serviços públicos de saúde sob sua jurisdição, mas não a gestão da saúde no âmbito
local, conforme o disposto na Constituição Federal. Reproduzia, assim, o padrão de
acentuada desigualdade regional existente no país. Isto ocorria, principalmente, em
virtude de o processo de descentralização em curso ocorrer desacompanhado de um
projeto geral de implementação do SUS, sendo operado estritamente através do
financiamento do setor.
6. Gestão descentralizada do Sistema Único de Saúde e o controle
social
No desenrolar do processo de transição democrática no Brasil expoentes
do movimento sanitário brasileiro ocuparam postos-chaves no Executivo Federal, tanto
no Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) quanto no Ministério da
Saúde. Isso porque até 1988 o setor da saúde era vinculado a esses dois Ministérios,
cabendo ao primeiro financiar e regular exclusivamente a prestação de assistência
médica àqueles cobertos pela previdência social, e ao segundo exclusivamente as ações
de caráter coletivo (prevenção), mas crescentemente a partir de início da década de 80
também a prestação de assistência médica.
Em conseqüência, a assistência à saúde no Brasil era (como em grande
medida ainda hoje, apesar de todos os avanços desse processo) caracterizada por um
sistema dual, com traços e vinculações institucionais distintos: o primeiro estreitamente
vinculado ao setor privado de prestação de serviços comprados pelo Estado para atender
à demanda dos segmentos vinculados formalmente ao mercado de trabalho, e
financiados com recursos da previdência social, portanto de caráter contributivo; o
segundo, financiado com recursos do orçamento fiscal destinados ao Ministério da
Saúde, estreitamente vinculado aos serviços estatais de saúde, cobrindo os
procedimentos de menor densidade tecnológica - a atenção primária para a população
excluída do mercado - mas também aqueles de maior e mais complexa densidade
tecnológica, para os segmentos mais ricos da população, uma vez que os setores
privados de prestação de serviços médicos e de cobertura assistencial (diferentes formas
de seguro) não arcam com os custos desses procedimentos por serem extremamente
elevados.129
Não era portanto sem razão a defesa do SUS com comando único em
cada esfera de governo, a começar pelo nível federal. Nos níveis estadual e local,
tratava-se de garantir o comando único diante da tradição centralizadora do Estado
brasileiro, defendendo-se portanto a autonomia dos estados e municípios frente ao poder
central.
129
Elias Paulo E. M. "Estrutura e organização da atenção à saúde no Brasil". In: Cohn, A. e Elias, P. E.
M. Saúde no Brasil - Políticas e organização de serviços. São Paulo: Cortez Editora/Cedec, 1996, pp. 57117.
98
E foi exatamente através daquela estratégia política de se ocupar postoschaves no nível federal que desde o início dos anos 80 verifica-se no Brasil um processo
de desconcentração no setor da saúde através de convênios do MPAS com as
Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde130. Este processo ao mesmo tempo que
avança timidamente no sentido de uma futura descentralização do sistema de saúde já
prevê - em ambos os casos das AIS e do SUDS - Conselhos de Saúde em todas as
instancias de poder, com participação de representantes do governo, dos prestadores de
serviços e de distintos setores da sociedade. No entanto é somente a partir de 1988,
quando a Constituição é promulgada, que tem início a implantação do SUS, buscandose agora atribuir mais autonomia aos municípios na gestão do sistema local de saúde.
No entanto, é importante registrar que enquanto a descentralização como
mecanismo de se promover a eficácia e a eficiência do sistema de saúde, como aliás de
todos os demais sistemas de serviços da área social, fazendo com que ele se volte para
as reais necessidades de saúde da população, é um consenso, o mesmo não ocorre
quanto à lógica que deva permear esse processo. Isso porque, do ponto de vista do nível
central, descentralizar a saúde é entendido como um meio de desonerar as despesas
públicas, e portanto a dívida pública, para tanto tendo que se constituir num processo
estreitamente controlado pelas instancias federais, tendendo a se configurar como um
processo de desconcentração. E do ponto de vista dos níveis estadual e local, esse
processo significa a conquista de maior autonomia frente ao nível central, e no caso dos
municípios frente aos níveis estadual e federal, para definir e implementar políticas
locais de saúde, ficando no entanto esses níveis em grande medida na dependência do
governo central dada a lógica de repasse de recursos por produção de serviços.
O contrapeso para esse traço centralizador do Estado brasileiro é
colocado na participação, contemplada no texto constitucional como ―controle social‖ e
―participação da comunidade‖. Para tanto, estão previstos canais institucionalizados de
participação, que são os Conselhos, acima referidos. Cabe no entanto assinalar que esses
Conselhos, embora previstos com caráter deliberativo, variam quanto a isso e à sua
forma de composição de acordo com as distintas constituições estaduais e leis orgânicas
municipais. Assim, além de ser de iniciativa do Executivo, à heterogeneidade da
realidade brasileira corresponde uma heterogeneidade de situações que dizem respeito à
composição dos Conselhos em termos tanto da repartição dos números de
representantes entre governo, trabalhadores da saúde e sociedade, quanto em termos da
sua natureza deliberativa ou não, tanto no âmbito da regulamentação desses Conselhos
quanto no de sua dinâmica de funcionamento.
No que diz respeito à relação administração local/cidadãos, no geral
consagra-se a ênfase nos canais institucionalizados de participação regulamentados por lei, como os Conselhos Municipais de Saúde, e nos municípios onde isto está previsto,
nos Conselhos de Gestão das unidades de saúde. Embora não se tenha evidenciado
mecanismos explícitos de cooptação dos setores populares por parte das distintas
administrações (governadas por partidos diferentes, mas comungando da proposta de
privilegiar investimentos de saúde para os segmentos mais pobres da população), o
maior ou menor grau de participação dos distintos setores organizados da sociedade
guarda neste caso estreita relação com o ideário de cada gestão. Retorna, aqui, o peso da
―vontade polìtica‖ dos governantes no incentivo à participação da sociedade na gestão
130
Em 1983 são implementadas as Ações Integradas de Saúde (AIS), pelas quais estados e municípios
recebem recursos da previdência social para atender à população previdenciária; e a partir de 1987
começa a ser implementado nos estados o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), com a
mesma lógica de repasse de recursos baseados em convênios de prestação de serviços.
99
local, configurando um jogo extremamente delicado entre clientelismo, cooptação,
cumplicidade e autonomia desses setores sociais frente ao poder instituído.
Cabe, neste ponto, chamar a atenção sobre uma especificidade brasileira
frente aos demais países latino-americanos. O Brasil não conta com a tradição de
participação da sociedade, vale dizer dos segmentos populares, trabalhando para o
Estado, ou substituindo o Estado, no sentido de prestarem serviços ―voluntários‖. Os
movimentos sociais no Brasil caracterizam-se por serem reivindicativos junto ao
Estado, demandando serviços ou acesso a bens de consumo coletivos. Dessa forma,
mesmo nos casos em que a participação nessas instancias colegiadas tem o caráter
deliberativo, há resistência por parte dos representantes dos movimentos populares em
assumir a co-responsabilidade junto com o poder público: esta continua sendo uma
tarefa do ―governo‖, no geral personalizado no ―prefeito‖, no ―secretário de saúde‖, no
―diretor ou chefe do serviço de saúde‖.
Outro ponto que merece registro, e agora não é específico somente do
Brasil, é que constatou-se uma correlação estreita entre organização e consolidação dos
movimentos sociais e disponibilidade para participar nos órgãos colegiados de gestão
governamental. E isso é decorrente, de um lado, pelo receio de ser cooptado pelo
governo, sobretudo no caso dos movimentos sociais ainda incipientes, e de outro pela
baixa capacidade dos governos de responderem às demandas das lideranças desses
movimentos, o que abala suas bases de sustentação na qualidade de liderança. Um
terceiro fator, também de peso, diz respeito ao fato de a participação ter custos - desde
custos com transporte até custos de jornada de trabalho, o que se agrava quando se leva
em conta que a imensa maioria desses representantes é composta de mulheres, que em
geral já são submetidas a uma dupla jornada de trabalho.
Dados esses fatores, entende-se por que o aumento verificado na oferta
de serviços de saúde não se traduz de modo imediato em maior equidade no acesso.
Essas experiências demonstram existir uma relação estreita entre capacidade de
mobilização e de pressão política - o que no geral não está presente nos setores mais
despossuídos da sociedade - e atendimento das demandas. Assim, mesmo naqueles
governos em que os setores mais pobres são definidos como prioridade constata-se
também um certo grau de reprodução das desigualdades a favor dos segmentos mais
organizados.
Mas, para além dos ganhos em termos de no geral a descentralização ir
imprimindo maior eficiência às políticas de saúde, com todas as restrições anteriormente
apresentadas, deve-se assinalar que a análise dessas experiências mostra que a maior
contribuição da descentralização da gestão da saúde reside num fator básico na
construção de uma sociedade democrática: através da criação de canais,
institucionalizados ou não, de participação tais como Conselhos e formas colegiadas ou
cooperadas de gestão, o nível local constituir-se progressivamente num espaço
privilegiado do exercício da aprendizagem da cidadania, sem no entanto postergar a
cidadania social. Apesar do equilíbrio altamente delicado entre autonomia e
dependência dos setores organizados da sociedade com relação ao Estado, não resta
dúvida que essas experiências trazem consigo a potencialidade de construção de
identidades e de novos sujeitos sociais, ampliando o leque de possibilidades de criação
de novos espaços de participação e de práticas sociais. Sem dúvida, aí reside a maior
contribuição dessas experiências de descentralização, independentemente de serem mais
ou menos exitosas quanto à realização das metas e dos objetivos setoriais propostos.
Dessa forma, em que pese o fato de a descentralização ter sido assumida
como um mecanismo que por si só traria consigo a democratização da gestão da saúde,
porque prevê a participação da sociedade na gestão dos sistemas e dos serviços de
100
saúde, e conseqüentemente maior adequação das políticas locais às necessidades de
saúde da população, esse processo vem se dando de forma bastante diferenciada,
questionando portanto aquela premissa - a da descentralização como sinônimo de
democratização.
Os anos 90 serão marcados pela disputa entre diferentes concepções
sobre as mudanças no sistema de saúde brasileiro, tendo como referência o processo de
implementação dos preceitos da Constituição de 1988 incorporados ao Sistema Único
de Saúde (SUS). Contudo, a necessidade da racionalização do sistema de saúde emerge
como consenso, elegendo-se a descentralização como pedra de toque para a
reformulação do SUS.
No entanto, o processo de globalização em curso aliado às políticas de
ajuste econômico implementadas pelo Estado (equilíbrio das contas públicas e o
pagamento do serviço das dívidas externa e interna), repercutem intensamente na área
da saúde envolvendo os princípios e diretrizes constitucionais do SUS, tais como a
universalidade, a igualdade e a eqüidade, ou seja a efetivação da saúde como um direito
social.
O período aberto com a posse do Governo Fernando Henrique Cardoso
(FHC) se caracterizará pela promoção de alterações substantivas no processo de
reformulação do sistema de saúde. Radicalizam-se algumas diretrizes e são introduzidas
novas concepções, estas mais claramente identificadas com as prescrições do Banco
Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento para os países capitalistas
periféricos.
Desta forma a descentralização da saúde passa a ser enunciada mais por
seu componente racionalizador, freqüentemente entendido como diminuição de custos,
do que propriamente pelas suas potencialidades no incremento da democratização da
instância municipal. No plano discursivo, esta nova postura encontra-se de pleno acordo
com os preceitos prescritos pelo Banco Mundial para a reformulação dos sistemas de
saúde dos países da periferia capitalista.
Assim, se o Governo Itamar, através da implementação da Norma
Operacional Básica 01-93 marca o início da descentralização e do repasse financeiro
direto (sem a intermediação da esfera estadual) no setor saúde, o Governo FHC, através
da NOB-96, centra fogo no modelo de gestão da saúde. Neste novo desenho, o
município ganha responsabilidade na atenção básica, a esfera estadual ganha poder na
distribuição das verbas federais e a União fica com a coordenação e a regulação do
SUS.
A NOB-96 apresenta como principal novidade para os municípios a
remuneração per capita dos serviços de saúde, com o repasse de R$ 10,00 por
habitante/ano para custear todos os procedimentos de assistência básica a ser oferecido à
população, tais como atendimento ao pré-natal e ao parto, atendimento às doenças mais
freqüentes (hipertensão, diabetes, diarréia infantil). Os principais problemas da NOB/96
residem, inicialmente, na persistência da concepção de descentralização tutelada pela
esfera federal e operada através do financiamento, esta uma das principais
características das políticas de saúde que mantém-se desde 1930. Em segundo lugar, a
manutenção praticamente intocada da sistemática de remuneração mercantilizada dos
procedimentos hospitalares, ou seja, pagamento por produção através da Tabela SUS.
A NOB-96 começa a ser implantada num cenário em que a área da saúde
sente intensamente os reflexos das políticas de ajuste adotadas pelo governo federal para
combater o déficit público e promover o pagamento do serviço das dívidas interna e
externa. Em conseqüência verifica-se uma intensa retração do Estado como produtor de
serviços de saúde, ensejando a busca de parcerias com a iniciativa privada.
101
Concomitantemente, ensaiam-se os primeiros acordes da orquestração em torno da
suposta necessidade de se promover a focalização das ações de saúde, isto é, direcionálas predominantemente para os mais pobres dentre os pobres, contrapondo-se à
concepção de um só sistema de saúde para todos os brasileiros. Ao mesmo tempo, dá-se
o crescimento vertiginoso do setor privado de saúde, sobretudo no segmento de seguros
saúde, aprofundando-se cada vez mais a dualidade do sistema de saúde e a lógica da
mercantilização na produção dos serviços.
A aprovação da NOAS-2001 e o processo a ela associado, definido como
―regionalização da saúde‖, em que pese promoverem modificações importantes nas
relações entre os diversos gestores do SUS – estaduais e municipais, mantêm o fio
condutor clássico de se viabilizar a política de saúde por meio do financiamento. São os
incentivos financeiros (piso da atenção básica ampliada e limites financeiros para a
média e alta complexidade) que continuam determinando a configuração das políticas
de saúde e reforçando a centralização do sistema de saúde, expressando-se em
constrangimentos ao exercício da autonomia local. A NOAS-2001 resgata o papel de
coordenação do governo estadual no SUS principalmente na atenção da média
complexidade. No âmbito estadual, os instrumentos chaves de viabilização da
regionalização estão ancorados na operacionalização da PPI (Programação Pactuada
Integrada) – pactuada entre as diferentes esferas de governo estaduais e municipais e
integrada entre os diferentes gestores do sistema – e na elaboração do Plano Diretor de
Regionalização do Estado, incluindo a definição das microrregiões131. Vale dizer, é
reduzido o número de estados em estágio avançado na implementação da PPI e
significativo os estados que nem sequer iniciaram a implantação da pactuação.
Dessa forma, frente às potencialidades que a descentralização pode
apresentar, o processo em curso na saúde se apresenta como algo que está por se fazer.
Em conseqüência, uma descentralização que busque enfrentar a exclusão de imensos
segmentos da população com eficácia social - este de longe um dos problemas de maior
relevância para o País -, deve pautar-se pela flexibilização e adequação à
heterogeneidade de situações que se apresentam nas regiões brasileiras. Isto implica no
abandono de dogmas e principismos na condução desse processo, implementando-o de
modo a contemplar e estimular a negociação entre as esferas de governo, inclusive com
a criação de novos instrumentos jurídico-legais capazes de lhe dar estabilidade frente às
mudanças de governo.
131
Segundo Lucchesi (1996), baseada em relatórios do Ministério da Saúde, os diferentes modelos de
gestão descentralizada em implementação nos estados podem são descritos por; a) modelo de gestão
centralizada – a gestão do sistema permanece com o estado, centralizando os instrumentos de
planejamento, programação, controle e avaliação da rede de serviços, mesmo que a gerência de unidades
estaduais tenha sido transferida aos municípios; b) modelo descentralizado por partillha – a gestão do
sistema é fragmentada, pois a gerência das unidades é estabelecida por partilha através de interesses
específicos, sem que se utilize uma racionalidade técnica para a organização do sistema, definida em
parceria pelo gestor estadual e gestores municipais; c) modelo municipalizado atomizado – a gestão do
sistema é descentralizada para o município, sem que o estado assuma suas funções de coordenação e
regulação, afim de garantir a regionalização da assistência e a organização de sistema de referência que dê
consistência à gestão estadual do SUS; d)modelo municipalizado com ênfase na regionalização – a gestão
do sistema é descentralizada para o município que assume o comando único sobre as ações e serviços em
seu território, existindo uma significativa participação do estado no desempenho de suas funções de
coordenação e regulação das relações intermunicipais, estabelecendo mecanismos de avaliação e controle
de sistemas municipais de saúde; e) modelo descentralizado por nível de hierarquia – o sistema é
organizado com base na hierarquia das ações e serviços de saúde. Ao estado cabe a gestão do sistema de
referência regional, gerenciando as unidades de maior complexidade, enquanto aos municípios a gestão
da assistência ambulatorial e hospitalar de menor complexidade.
102
Em suma, a despeito da introdução do conceito de Seguridade Social na
Constituição Federal, na prática ele deixa de vigorar, já que o sistema de saúde
brasileiro encontra-se fortemente influenciado pelo seu congênere norte-americano,
centrado no seguro saúde e na relação de trabalho. Desta forma, o crescimento do
Sistema Supletivo de Assistência Médica além de sinalizar para a regulação da saúde
através do mercado, traz consigo a tendência à formação de oligopólios no setor de
intermediação de serviços (seguro-saúde e empresas médicas) com as conseqüentes
repercussões no sistema de formação de preços dos serviços. Isto acarreta o incremento
do grau de dependência dos produtores de serviço (hospitais, laboratórios e consultórios
conveniados/associados) aos interesses e ditames dessas empresas, sobretudo em
relação à fixação da remuneração dos procedimentos médicos e hospitalares.
A discussão sobre as alternativas viáveis para a reversão deste quadro em
prol de um sistema de saúde voltado ao enfrentamento da exclusão social, apresentam
algumas exigências de ordem geral, dentre a quais, destacamos a necessidade de se
estabelecerem Políticas de Saúde como Políticas de Estado (à semelhança do que ocorre
nos países Europeu), a busca da estabilidade do financiamento no setor ( cujo passo
inicial foi dado com a recente aprovação da PEC-Saúde pelo Congresso nacional) e
sobretudo pela desmercantilização da produção dos serviços de saúde, isto através do
estímulo à produção privada de serviço sob modalidades não mercantis, tal como ocorre
em grande parte dos países que efetivamente tratam a saúde como um direito de todos e
um dever do Estado.
Dentre os temas relevantes para um debate que tivesse como objetivo a
reversão da lógica do processo de descentralização da saúde incluem-se, principalmente,
a restauração/conformação do pacto federativo no país, através da distribuição dos
encargos governamentais e a definição de diretrizes básicas que orientem a definição de
competências, de modo a opor-se à formulação de uma lista de competências
racionalmente distribuídas, solução que seria desastrosa frente a heterogeneidade do
país (LOBO,1993:123).
Em suma, as características da relação público/privado vigente no
sistema de saúde brasileiro e o padrão relativamente complexo da organização de
serviços, sobretudo nas regiões economicamente mais desenvolvidas, aliado ao modelo
de assistência à saúde adotado e às expectativas dos segmentos sociais (camadas médias
e altas) com poder de influenciar o tipo de assistência médica prestada, acabam
pressionando de modo insuportável o frágil e instável sistema de financiamento da
saúde, com fortes repercussões em seu componente público.
Este quadro é responsável pela situação atual de quase colapso do setor
público na assistência médica, em virtude do excesso de demanda e insuficiência de
serviços para atendê-la e, também, pela maior procura do Sistema Supletivo de
Assistência Médica em suas várias modalidades. Paradoxalmente, eis aí uma situação
propícia para o crescimento desmesurado dos custos em saúde, gerando uma lógica de
financiamento que privilegia a assistência mais sofisticada, que demanda procedimentos
de grande complexidade tecnológica, e portanto de custo elevado, em detrimento
daqueles mais simples, com maiores possibilidades de universalização e de custo
significativamente menores como se verá a seguir.
Em 1995, realizou-se um evento patrocinado por várias instituições
nacionais e internacionais para discutir o financiamento da saúde.132 Esta reunião contou
com a participação de técnicos e gestores das três esferas de governo e apontou em seu
Relatório Final algumas medidas necessárias à consolidação do SUS, dentre elas
132
Reunião realizada em Maceió-AL, de 17 a 19 de maio de 1995, patrocinada pelo CONASS;
CONASEMS; OPAS/OMS; ABrES; ABRASCO; CEBES; IDISA.
103
salientam-se: alocação para a saúde de pelo menos 30% dos recursos da Previdência
Social e de 10% a 15% dos orçamentos dos Estados e municípios; eliminação dos
mecanismos de renúncia fiscal do Imposto de Renda incidentes sobre os gastos privados
com saúde; reembolso financeiro ao SUS pelo atendimento na rede pública a usuários
dos serviços privados, estipulando-se por estimativa a parcela a ser repassada
automaticamente a título de compensação pela prestação de serviços; criação de
mecanismos de taxação fiscal sobre o consumo de tabaco e bebidas (alcoólicas e
refrigerantes), vinculando-se as receitas obtidas ao gasto com a seguridade social
(CONASS; CONASEMS; ABrES; ABRASCO; CEBES; IDISA, 1995).
VIANA(1994a:180) afirma que, apesar do aporte de recursos através dos
orçamentos municipais, o SUS está limitado pelo volume de atendimento e pela forma
de seu financiamento. E que a tendência é a do aumento dos custos assistenciais devido
ao envelhecimento da população e da segmentação na prestação de serviços, em que se
reserva ao setor público os serviços básicos e de alto custo. A análise da autora,
portanto, aponta para a manutenção/radicalização do atual padrão de produção de
serviços e de financiamento na saúde.
Segundo COHN(1994a:14), a questão ainda pendente na saúde diz
respeito à reversão da lógica de seu financiamento e da sua seletividade. E há um
consenso entre vários especialistas, entre os quais a própria autora, de que a busca da
universalidade e da eqüidade pressupõe um sistema público com um perfil de
financiamento que combine várias fontes de recursos mas que a principal delas seja
constituída por recursos fiscais (GUIMARÃES,1991:24) (MEDICI,1996).
Finalmente, vale destacar algumas das iniciativas governamentais na
saúde que, inspiradas no ideário neoliberal do capitalismo central, tem transferido
equipamentos governamentais para o setor privado (LAURELL,1995). E isto ocorre
sem no entanto substituir o Estado pelo mercado, uma vez que para o seu financiamento
o setor privado depende direta ou indiretamente do Estado. Além disto, a mudança não
se dá pela maior vantagem dos serviços privados sobre os públicos, mas sim com base
numa supremacia ideologicamente construída do privado sobre o estatal, auxiliada pelos
modernos meios de comunicação de massa.
Disto freqüentemente resulta o afastamento do Estado das suas
responsabilidades políticas e sociais, e na maioria das vezes deixando-as à cargo de
instituições (como o setor privado), que, dada a sua natureza, são incapazes de
minimamente desempenharem as atribuições requeridas por um ente público.
Por outro lado, grande parte das modalidades estatais de gerenciamento e
administração vigentes no setor público de saúde encontram-se esgotadas do ponto de
vista de obter um mínimo de eficácia social na prestação de serviços. E assim
permanecerão enquanto não se proceder a uma ampla reforma do Estado brasileiro, para
além de seus aspectos meramente administrativos e de pessoal (recursos humanos), mas
que toquem nas questões centrais, dentre elas a da (re)construção de novas bases da
relação sociedade/Estado (REIS,F.W.,1994).
Sem essas mudanças de fundo no funcionamento do Estado brasileiro
não há meios para transformar em virtuosas as atuais modalidades estatais de produção
e gerenciamento da saúde, o que também constitui uma outra face, invisível, da crise
por que passa a saúde no Brasil, e particularmente o SUS.
Por tudo o que se afirmou até aqui, os dilemas da saúde não se encontram
na antinomia Estado/mercado ou mesmo no público/privado, mas em revestir a ação
política na saúde de um projeto capaz de efetivamente enfrentar a desigualdade e
exclusão sociais, e que introduza mecanismos reais de controle social sobre os serviços
de saúde, sejam eles estatais ou privados.
104
Naturalmente que uma ação política desse tipo não prospera
isoladamente na saúde, e faz-se indispensável a construção de suas bases sociais de
apoio para que estas orientem a ação do Estado nas demais políticas sociais. Ademais,
uma ação com estes horizontes exige sua articulação com as políticas econômicas, pois
como afirma TAVARES(1993:22) ―evidentemente falamos é da necessidade de um
novo padrão de desenvolvimento que permita incluir os excluídos e tornar virtuoso o
novo paradigma‖.
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(Documento de Política/ n. 3).
106
ÉTICA SANITÁRIA
(Dalmo de Abreu Dallari)
Dalmo de Abreu Dallari
Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
ÍNDICE
I. Ética e Saúde: uma reflexão necessária. II. Ética e Eticismo: variações e
simulações em torno da ética. II(a). Ética e Moral: Aristóteles, Kant e o
moralismo. II(b). Pluralismo ético e ética universal. II(c). O relativismo ético
e os eticistas. III. Ética e Sociedade. III(a). Prioridade da pessoa humana e
sua dignidade. III(b). Globalização e marginalização da ética. III(c). O
Código de Nuremberg, a Bioética e a manipulação da genética: progresso e
retrocesso. IV. Ética e Saúde. IV(a). Definição de saúde e implicações éticas.
IV(b). ―Globalização sanitária‖: o homem ―meio‖ e o homem ―fim‖. IV(c).
Ética, Saúde e Dignidade Humana: a relação necessária.
I . Ética e Saúde: uma reflexão necessária
O início do século vinte e um deverá ter, na história da humanidade, o
mesmo significado renovador que se verificou na passagem do século dezoito para o
século dezenove. Não é necessário um exame aprofundado para se perceber que as
concepções sobre a pessoa humana e os padrões de convivência, herdados do final do
século dezoito e mantidos, em suas linhas gerais e apesar de inúmeras conturbações, até
à primeira metade do século vinte, já não se sustentam. Ainda não estão claros – e talvez
faltem ainda algumas definições importantes – quais serão os novos padrões, em que
medida a pessoa humana terá preponderância sobre outros valores, se a eliminação de
antigos privilégios e antigas discriminações dará lugar a novas formas de diferenciação
entre pessoas e grupos sociais ou se expressões como liberdade e igualdade terão o
mesmo sentido para todos os seres humanos.
Como acontece em todas as épocas de transição, há muitos conflitos e
contradições, colocando-se a necessidade de discernir entre o que é real e permanente,
ou pelo menos duradouro, e o que é transitório ou apenas a expressão de um progresso
ilusório ou superestimado. Assim é que se tem agora a sensação de extraordinários
avanços científicos e tecnológicos – o homem chegou à lua, os meios de transporte e
comunicação atingiram velocidades nunca antes imaginadas, a capacidade dos
instrumentos de morte e destruição em massa, como os armamentos atômicos, atingiu
um ponto em que já se pensa na hipótese de um conflito armado que termine com a
destruição do planeta Terra. A par disso, inovações espetaculares abalam verdades
científicas e parecem abrir possibilidades ilimitadas para o avanço das ciências, como
acontece no âmbito da genética.
Ao mesmo tempo e nesse mesmo quadro de transformações e aparente
progresso, verifica-se que cada um desses avanços traz consigo uma caudal de agressões
e ameaças a milhões de seres humanos, o que provoca uma série de questionamentos. Se
essas novas possibilidades de influir sobre a natureza são realmente progressos, será
107
razoável estabelecer limites para novas experiências científicas – que podem, inclusive,
acarretar vantagens econômicas – em nome da proteção da pessoa humana ou do meio
ambiente? E quanto à destinação de recursos para pesquisas e experiências, bem como
relativamente aos programas de governo, será razoável aceitar que o desenvolvimento
científico e tecnológico não tenha prioridade ou sofra limitações, a fim de que haja
dinheiro para o atendimento de demandas sociais que não acarretam o aumento da
riqueza ou a criação de conhecimentos?
No campo das relações políticas e econômicas também surgem inovações
e questionamentos. A partir da auto-dissolução da União Soviética, que desapareceu por
causa de suas contradições e injustiças internas e não por ter sido derrotada num
confronto com outra grande potência – o que deve servir de advertência aos mais
poderosos –, as elites políticas, econômicas e sociais sentiram-se livres de ameaças e
encorajadas para acentuar seus privilégios tradicionais. Foi assim que surgiu a idéia de
globalização, implicando a existência de um mundo sem fronteiras, a supremacia das
leis do mercado nas relações sociais, a redução dos direitos dos trabalhadores e, para
diminuição dos encargos sociais e aumento da área de exploração econômica, a
privatização de todas as atividades que pudessem ser economicamente rentáveis. Tudo
isso acompanhado de uma explosão de nacionalismos, oposto à globalização pretendida
pelos senhores da economia, e da manutenção de práticas protecionistas mantidas e
acentuadas pelos países mais desenvolvidos, negando na fonte o pretexto do livremercado, que pretendem impor aos menos desenvolvidos.
Coroando esse quadro de mudanças e contradições verifica-se o
crescimento evidente das discriminações, sobretudo a partir de dados econômicos,
aumentando a concentração da riqueza nas mãos de minorias e a expansão da pobreza,
atingindo a miséria e implicando várias espécies de discriminação e marginalização,
impedindo a sobrevivência em condições dignas de milhões de seres humanos.
Completando esse quadro, verifica-se que, pela imposição das prioridades de minorias
econômica ou politicamente fortes ou pela falta de escrúpulos de indivíduos que
ocupam posições privilegiadas, a corrupção campeia nos âmbitos público e privado. São
fatos públicos e freqüentes a gestão desonesta de recursos, a ausência de políticas
sociais, mesmo onde isso deveria ser prioridade, a deterioração da qualidade dos
serviços públicos, bem como a utilização de conhecimentos científicos e de tecnologia
avançada com absoluto desprezo pela pessoa humana, que é degradada à condição de
―coisa‖, objeto de comércio ou de experimentação.
Como reação, ou tentativa de reação, a essas ações anti-humanas, ganha
força a necessidade de consideração da ética, não apenas por motivos de consciência
mas também por se verificar que a deterioração dos padrões de convivência humana
acarreta problemas extremamente graves, que atingem a todos. De um ponto de vista
imediato são prejudicados, em todos os sentidos, milhões de seres humanos, que têm
dificuldade para a sobrevivência física e a preservação da dignidade. Mas também se
verifica, como já está evidente, que o abandono da ética representa, inevitavelmente, um
sério prejuízo para todos, mesmo para os mais privilegiados, pelo grave
comprometimento da harmonia nas relações sociais, pela perda da noção de dignidade
humana, o que abre as comportas para todas as indignidades, pelo estímulo ao
sentimento de revolta, propício à prática de violências, pelo comprometimento da
segurança das pessoas e dos patrimônios, pelo indisfarçável agravamento das injustiças,
o que significa, para todos, a impossibilidade de viver em paz.
Por todos esses motivos a ética passou a ser, e precisa ser, efetivamente,
um tema constante nas discussões sobre os critérios para o uso, público ou privado, dos
recursos materiais e intelectuais, sobre a presença do Estado e o estabelecimento de
108
políticas públicas, bem como sobre os poderes, deveres e responsabilidades dos que
mantêm algum poder de decisão sobre assuntos e problemas de interesse comum,
questões que têm influência imediata ou têm reflexo, às vezes muito grave, na
consideração da problemática da saúde individual ou coletiva. Numa perspectiva mais
direta e específica, relacionada com a saúde, tornaram-se freqüentes as discussões sobre
a necessidade ou conveniência de se fixarem limites para os experimentos científicos,
bem como sobre a utilização de técnicas sofisticadas para intervenção no corpo humano,
desde a preparação para o início da vida e o condicionamento artificial de seu posterior
desenvolvimento, passando pela manipulação e utilização de componentes do corpo
humano segundo critérios de conveniência prática, e chegando até à preparação ou
promoção da morte.
Assim, pois, na realidade do início do século vinte e um a reflexão sobre
a ética sanitária é uma necessidade óbvia e irrecusável. A saúde, reconhecida e
proclamada como direito fundamental da pessoa humana, é necessidade essencial de
todos os indivíduos e também de todas as coletividades. A consideração de critérios
éticos torna-se absolutamente necessária, para que a saúde de todos os seres humanos
esteja entre as prioridades na utilização dos recursos disponíveis, bem como para que os
avanços da ciência e da tecnologia, quando verdadeiros, tenham como parâmetro de
validade o benefício da pessoa humana. Só o relacionamento da saúde com a ética
poderá impedir que, sob pretexto da promoção ou do aproveitamento daqueles avanços
técnicos e científicos, sejam impostos graves prejuízos à saúde de milhões de seres
humanos ou sejam efetivadas práticas contrárias à saúde que levem à degradação de
toda a humanidade.
II. Ética e eticismo: variações e simulações em torno da ética
a. Ética e Moral: Aristóteles, Kant e o Moralismo
São muitas as noções de ―Ética‖, fixadas pelos estudiosos do assunto em
diferentes épocas, todas assinalando a origem grega da expressão mas com várias
divergências quanto ao seu significado preciso, sobretudo por tomarem como base o
sentido encontrado em textos diversos, de diferentes autores gregos ou até do mesmo
autor mas com diferença de sentido. É o mesmo fenômeno que ocorre com línguas
modernas, como, por exemplo, o português, onde se encontram muitas palavras com
vários sentidos, às vezes bem diferentes. Tome-se, por exemplo, a palavra ―campo‖, que
poderá ser usada para significar a zona rural, em oposição à cidade, ou, diferentemente,
o campo cirúrgico, ou o campo de visão, ou o campo de trabalho, ou o lugar onde se
praticam alguns esportes, como o campo de futebol, ou ainda um tipo de atividade
intelectual, que é a pesquisa de campo, além de outros sentidos. Apesar das
divergências entre os estudiosos, existe predominância quanto à aceitação de que ―ética‖
tem a ver com os comportamentos humanos ou com valores que informam esses
comportamentos.
Um dos autores gregos que mais se referiram à ética é Aristóteles, em
cuja obra os estudiosos do tema sempre buscaram apoio para suas reflexões e
conclusões. Em minucioso estudo sobre a Ética a Nicômaco, publicado como
introdução a uma das mais recentes edições francesas dessa obra de Aristóteles, J. F.
Balandé chama a atenção para a existência de dois termos gregos muito semelhantes:
109
―ethos‖, significando ―o costume‖, e ―éthos‖, que se refere ao ―caráter‖. Observa,
também, que Aristóteles dá grande importância à aproximação entre o caráter e o
costume, considerando que a virtude do caráter, que é virtude ética, não se adquire por
meio de lições, mas pela prática e repetição, ou seja, pelo costume133.
Ainda segundo Aristóteles, o ser humano tem duas características que o
fazem diferente dos outros animais: uma delas é a noção do bem e do mal, do justo e do
injusto; outra é a natureza associativa, ou seja, a caracterização do ser humano como
―animal polìtico‖, um ente que por natureza necessita da convivência com os
semelhantes. Essas características são fundamentais para que se defina uma ética, que
sempre será, ao mesmo tempo, individual, por decorrer das práticas reiteradas de cada
um, mas também social, pois essas práticas só podem ocorrer na convivência, no meio
social. Assim, portanto, a ética implica uma seleção de comportamentos, informados
por valores, ligados à busca do bom e do justo. Tal seleção não se faz arbitrariamente ou
por um processo meramente intelectual, mas ocorre a partir da prática reiterada, ou seja,
é resultante do costume.
Retomando essa temática no século dezoito, mas já influenciado pelas
circunstâncias ligadas às revoluções burguesas, de que foi contemporâneo, Emmanuel
Kant irá fixar algumas idéias que se tornarão fundamentais para a noção moderna de
ética. Evidenciando, sobretudo, a importância dada à liberdade da pessoa , sem perder
de vista o conjunto de características do ser humano, mas também a preocupação como
o sentido prático e utilitarista que se procurava imprimir às relações sociais, Kant
retoma algumas conclusões de Aristóteles e adiciona elementos inspirados nos
conhecimentos e nas reflexões de sua época. Assim é que reconhece como uma das
características do ser humano a natureza associativa, que define como socialidade e que
seria decorrente da percepção de que cada um necessita do outro, mas acrescenta que
existe, na realidade, uma ―insociável socialidade‖, pois o ser humano tem também um
egoísmo essencial, tendendo sempre a colocar seus interesses acima dos interesses dos
demais, o que provoca conflitos e tem efeito desagregador.
Em duas de suas obras fundamentais, Crítica da Razão Pura, aparecida
em 1781, e Crítica da Razão Prática, publicada em 1788, foi desenvolvida a idéia de
uma moral do dever, o ―imperativo categórico‖, fundada na autonomia da vontade
humana e no respeito pela lei universal. É oportuno lembrar aqui as idéias de Kant,
porque elas tiveram influência especial na área da Saúde, como assinala Axel Kahn,
eminente geneticista francês, em obra notável sobre os problemas do humanismo,
recentemente publicada: ―A referência principal do discurso ético aplicado à biologia e
à medicina é, pelo menos na Europa Continental, Emmanuel Kant, para quem a ética
consiste na livre aceitação de um dever que a razão representa à vontade como
necessário. Assim emerge a idéia de uma lei moral, que encontra suas fontes na própria
razão pura, a priori, e que se exprime em imperativos categóricos, ou seja,
incondicionais‖. Em seguida, Kahn enuncia um preceito derivado desse imperativo,
deixando bem claro o efeito prático dessas idéias: ―Aja de tal modo que tu trates a
humanidade, tanto em tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre, ao
mesmo tempo, como um fim e jamais como um simples meio‖134.
Há duas decorrências importantes das idéias kantianas que é oportuno
ressaltar. Uma delas é o requisito da livre aceitação de um dever, o que exclui a
possibilidade de imposição de uma ética à consciência individual. Outra decorrência é o
reconhecimento de que, assim como existe liberdade para que o indivíduo aceite o dever
133
J. F. BALANDÉ, Éthique à Nicomaque (Introdução), Paris, Les Livres de Poche, 2001,pags.13, 17, 28
e 29.
134
Axel KAHN, Et l‘Homme dans tout ça ? , Paris, NIL Éditions, 2000, pág. 65
110
que a razão representa à vontade como necessário, o indivíduo é livre para não aceitar
esse dever. A consciência do bom e do justo pode influir sobre as decisões individuais,
mas não determina tais decisões, o que significa que um indivíduo pode optar,
conscientemente e espontaneamente, por um comportamento anti-ético. Assim, pois, a
transmissão de ensinamentos sobre a ética pode não ter qualquer significado prático,
sendo irrelevante falar de ética, escrever sobre ética, simular respeito à ética, se não
houver um comportamento ético.
Uma questão que se coloca freqüentemente é o relacionamento entre
ética e moral. Em parte, pode-se dizer que se trata de um falso problema, pois o que
ocorreu foi que do grego ―ethos‖, costume, derivou a palavra ―ética‖, tendo derivado do
latim ―mores‖, costumes, a palavra ―moral‖. Entretanto, por circunstâncias históricas,
sobretudo pelo predomínio político romano, prevaleceu a forma latina e depois, a partir
do século quinto, a Igreja Católica, institucionalizando o cristianismo e estabelecendo
sua sede em Roma, criou também o que denominou ―moral cristã‖, abrindo caminho
para que a partir daí muitos grupos humanos proclamassem ―a sua moral‖ respectiva.
Disso resultou a ambigüidade da expressão ―moral‖, que pode significar
um conjunto de preceitos, informado por valores consagrados pelo costume, podendo-se
dizer que nesse caso ética e moral seriam sinônimos. Entretanto, o que predominou foi a
moral como expressão de parâmetros fixados por comandos radicais e opressores,
geralmente estabelecendo limitações e restrições rigorosas, identificando-se a moral
com determinados agrupamentos humanos, mais ou menos numerosos, constituídos em
torno de objetivos religiosos, políticos, econômicos ou sociais. Foi isso que se
caracterizou como
―moralismo‖, significando a exigência de obediência à moral
formalmente imposta, institucional, sem considerar a exigência de livre adesão das
consciências. Essa ambigüidade e o uso malicioso que se tem feito da palavra ―moral‖,
para justificar a imposição de regras inspiradas no fundamentalismo religioso, político,
econômico, ecológico ou de outra espécie, todas essas distorções levaram alguns
teóricos, preocupados com a ética, à conclusão de que a moral é ―formal, instituìda‖,
como afirma Henrique Dusserl, não sendo a expressão de decisões livres tomadas no
plano da consciência, razão pela qual deve ser evitada.
Por tudo o que foi exposto, verifica-se que, dependendo do sentido que se
dê a cada uma delas, ética e moral podem ser tratadas como expressões sinônimas,
refletindo a preocupação de buscar o bom e o justo, em benefício da pessoa humana e
da humanidade em seu conjunto. Entretanto, como reação aos excessos do moralismo
criou-se uma resistência à exigência de respeito à moral, enquanto, ao contrário, ganhou
prestígio e se generalizou a busca da ética, expressão que também já vem sofrendo
distorções, que deverão ser percebidas e evitadas para que não se caia novamente no
mero formalismo.
b. Pluralismo ético e ética universal
Se a humanidade é uma só, se a natureza humana é sempre a
mesma, se a preocupação ética implica a procura do bom e do justo para a pessoa
humana, para todas as pessoas humanas, por que motivo não existe, e muitos não
acreditam que possa existir, uma ética universal ? Ou será que já existem preceitos
éticos que podem ser afirmados como verdadeiramente universais ?
Como já foi observado, a ética se define pelo costume, informado
por valores, mas também foi ressaltado que o ser humano é associativo por natureza.
Ora, tendo em conta a extraordinária quantidade e diversidade dos grupos humanos e a
111
extrema variedade de condições de vida e de convivência, não é necessário qualquer
esforço para se concluir que haverá, forçosamente, grande diversidade de costumes, o
que, em princípio, deverá gerar uma pluralidade ética.
Mais do que isso, os próprios indivíduos são diferentes entre si e sempre
se diferenciam em função de múltiplos fatores, como bem observa Lucien Sève no
Prefácio à obra de Axel Kahn anteriormente referida:―O que há de mais humanamente
evoluído na humanidade de hoje, e que não foi adquirido se não no curso dos últimos
milênios, não está de modo algum inscrito no interior dos indivíduos, em seu genoma,
mas no exterior, na sua sociedade, sob a forma indefinidamente cumulativa e
complexificada dos instrumentos e sinais, relações e instituições, saberes e valores de
essência histórico-social‖135. Essa possibilidade, quase inexorabilidade, de diferenciação
é justamente uma expressão da superioridade do animal humano e de sua liberdade
essencial, é a base de sua individualidade. A preservação dessa característica não seria
um obstáculo até à formação de uma ética comunitária ?
A observação dos indivíduos e dos grupos humanos através da história
mostra que existe, efetivamente, uma diversidade extraordinária. Embora exista uma
igualdade essencial de todos os seres humanos, cada um tem sua individualidade.
Entretanto, podem-se identificar, também, características, necessidades e possibilidades
que são comuns a todos os seres humanos, de todas as épocas e de todos os lugares.
Assim, por exemplo, para ficar num dos exemplos mais óbvios, sempre existiu e sempre
existirá o costume de viver em grupos, embora variem as formas de organização e as
regras de convivência dentro do grupo. A vida em grupo é um bem para a pessoa
humana e por isso o favorecimento de sua existência faz parte da ética. Do mesmo
modo, os costumes de dormir e de se alimentar correspondem à busca de satisfação de
necessidades essenciais de todos os seres humanos e são benéficos para a pessoa, razão
pela qual sempre existiram e continuarão existindo. Nessa mesma linha, em todos os
grupos humanos, sejam eles considerados mais ou menos evoluídos, existe o costume
de, como regra, respeitar a vida dos outros seres humanos, ou pelo reconhecimento de
que a vida é um bem essencial ou, talvez, pela percepção de que sem esse respeito todos
acabarão desaparecendo.136
Dessa forma vão-se definindo costumes, que podem mudar de
configuração com o passar do tempo, em função de mudanças no meio ambiente, ou de
inovações proporcionadas pela criatividade humana, como também pela aproximação
entre dois ou mais grupos ou pelas migrações de indivíduos ou grupos que se integram a
um grupo diferente e acabam influindo sobre os costumes. Assim se mantém
essencialmente o costume, mas vão sendo introduzidas alterações em sua configuração.
Como fica demonstrado, nada impede o reconhecimento da existência de normas éticas
135
136
Lucien SÈVE, Prefácio à obra de Axel KAHN, Et l ‗ Homme dans tout ça ? , Paris, NIL Éditions,
2001, pág. 11
Vale a pena registrar uma observação, aparentemente simplória, mas revelando as limitações de
raciocício do cientista altamente ―especializado‖, feita pelo biólogo, Prêmio Nobel, James Watson,
sobre os Direitos Humanos e as necessidades humanas fundamentais. Em trabalho intitulado
―Biotechnology and Humanism‖, diz o premiado biólogo que ―os seres humanos não têm direitos, mas
necessidades elementares, como a nutrição, a educação e a saúde. As necessidades não mudam mas o
que nós referimos como Direitos Humanos variam, não apenas de uma região do mundo para outra
mas também no curso da história. Asim, é necessário ser prudente na referência aos Direitos Humanos
e ao seu caráter intangìvel‖ (in La Proprieté intellectuelle dans le domaine du vivant, Paris, Technique
et Documentation, 1995, pág.283 a 285). O que não consegui perceber o premiado biólogo é que, em
muitos lugares e muitas épocas, o direito fundamental das pessoas de terem atendidas suas
necessidades fundamentais não tem sido e não é assegurado para muitos, o que não significa que não
tenham esse direito mas que são injustamente discriminadas. Negando que os discriminados tenham o
direito ficou mais fácil para o biologista ―não ver‖ a injustiça e ofensa à ética.
112
comuns a toda a humanidade e, portanto, universais, ao mesmo tempo em que
permanecem outras que são características de grupos determinados, mais ou menos
numerosos. Pode ser que haja conflito entre a ética universal e a de um certo grupo ou
então entre as éticas de dois grupos diferentes, mas a própria ética, que implica a busca
do bom e do justo para a pessoa humana, deverá inspirar a busca de harmonização,
prevalecendo sempre, obviamente, a ética universal como parâmetro superior.
c. Relativismo ético e Eticismo
Em nosso tempo o mundo vem presenciando – e vem sendo
minuciosamente informado disso, graças aos avanços na tecnologia das comunicaçõestremendas agressões à pessoa humana, que são mais ruidosas e espetaculares quando
praticadas com o uso de armas mas que são igualmente graves quando levadas a efeito,
com maior ou menor sutileza, através da imposição de sistemas políticos, econômicos,
jurídicos e sociais discriminatórios e marginalizadores. A par disso aumentaram muito
as informações sobre corrupção em quase todos os campos das relações humanas, o que
também acaba contribuindo para a concretização e o aumento das violências contra
seres humanos. As notícias e imagens dos efeitos dessas violências acabaram
provocando um despertar de consciências, sendo muitas as pessoas e muitos os
movimentos organizados exigindo que se observe a ética em todas as relações sociais.
Uma das mais importantes expressões dessa reação a favor da
ética é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Organização das
Nações Unidas em 1948. Essa Declaração tem sido a base e inspiração para muitos
documentos internacionais fixando exigências éticas, geralmente identificadas com
direitos fundamentais da pessoa humana, bem como para a criação de movimentos
sociais organizados e de instituições públicas voltadas para a defesa e efetivação da
ética. É tamanha a força desse movimento universal em favor da ética, que nem os
governos nem organizações privadas podem ignorá-lo.
Entretanto, apesar da aparência de geral adesão aos compromissos
éticos, um exame cuidadoso das iniciativas, proposições e ações revela que, na
realidade, há muitas resistências, de parte de governos, grupos e pessoas que não
querem abrir mão de suas posições privilegiadas e que não admitem que, por motivos
éticos, sejam impostas limitações ao seu poder político, ao uso incondicionado de seu
poder econômico e aos seus privilégios sociais, mesmo que sejam manifestamente
injustos. E há pessoas que se opõem aos compromissos com a ética porque reconhecem
que são beneficiárias de atividades inegavelmente anti-éticas, que pretendem continuar
desenvolvendo, e por isso têm medo da perda de suas posições ou, mais ainda, de
sofrerem eventual punição. Essa resistência à ética raramente é expressada de modo
direto, mas pode ser identificada através de palavras e atos, que às vezes se ocultam
atrás da fachada de argumentos sofisticados e outras vezes aparentam adesão
incondicional à ética e até mesmo iniciativas eficientes em seu favor.
Uma das resistências à ética universal vem sendo manifestada em
trabalhos teóricos, em decisões de governos ou pela palavra de políticos e intelectuais,
sob o rótulo de ―relativismo ético‖. Em sìntese, o que dizem os adeptos dessa posição
restritiva é que a ética sempre reflete as circunstâncias históricas, culturais, políticas e
sociais de um povo ou grupo humano. Por esse motivo ela nunca poderá ser universal,
ou, pelo menos, sempre existirão éticas particulares, mesmo que se admita a existência
de uma ética universal. Isso, segundo os adeptos dessa teoria, leva à conclusão de que
deve ser sempre respeitado o direito de cada grupo de agir segundo sua ética, ainda que
113
em alguns casos isso tenha como conseqüência a ofensa a preceitos éticos
universalmente reconhecidos.
Um exemplo muito expressivo da utilização desse argumento é a
oposição dos Estados Unidos e de alguns líderes islâmicos à criação do Tribunal Penal
Internacional, pois dizem que o reconhecimento de um fato como crime pode ser
influenciado pela ética do lugar em que ocorreu o fato, bem como pela ética do juiz que
participar do julgamento. Muito significativamente, essa argumentação é utilizada por
quem vem cometendo crimes contra a humanidade e tem a intenção de continuar a
cometê-los. O relativismo ético tem sido invocado também para negar o caráter antiético de tremendas discriminações, ou mesmo violências físicas, sofridas pelas
mulheres, como ocorre em lugares em que a lei dá ao marido o direito de espancar a
esposa ou em países da África negra em que ainda se pratica a anfibulação sob pretexto
de evitar excessos sexuais das mulheres. Em todos esses casos há uma recusa ao
compromisso com a ética universal, embora se procure disfarçar essa recusa.
Por outro lado, entretanto, verifica-se que a aproximação maior entre os
povos,a universalização -que tem fundamentos humanistas e não se confunde com a
globalização econômica, que é essencialmente anti-ética- já tem inspirado mudanças
culturais, com o abandono de práticas tradicionais contrárias à dignidade humana, o que
significa uma caminhada rumo à ética universal. Um caso muito expressivo foi relatado
em reunião da Anistia Internacional realizada em Amsterdam no ano de 1998,
envolvendo um sério problema de natureza ética, provocado por mudança na cultura
tradicional do Sudão. Vigorava naquele país, de maioria islâmica, a regra determinando
a amputação da mão dos ladrões, feita publicamente por um carrasco. Evolui-se no
sentido de restringir a pena à amputação de alguns dedos, feita por médico. Houve,
então o caso de uma jovem médica, que concluiu seu curso de medicina e entrou para o
serviço público, tendo sido designada para fazer essas amputações, o que ela aceitou
tranqüilamente, porque isso fazia parte de sua cultura.
Poucos anos depois, tendo ido para a Inglaterra com o objetivo de fazer
um curso, o contacto com os colegas ingleses e com os padrões éticos da medicina
inglesa fez com que a jovem médica sudanesa concluísse que era contra a ética médica a
amputação de dedos que não estavam doentes, pois isso significava uma ofensa à
integridade física das pessoas, que o médico tem a obrigação de preservar. Voltando ao
Sudão ela se negou a continuar fazendo aquele trabalho e por isso foi punida pelo
governo, o que gerou intensa discussão, tendo havido muitas adesões à sua posição. É a
evolução para a ética universal.
Outra restrição disfarçada à ética universal é a que teve origem nos
Estados Unidos da América e hoje encontra seguidores em várias partes do mundo,
usando o rótulo de ―Eticismo‖, que seria o equivalente, relativamente à ética, da fixação
do ―politicamente correto‖. A criação da profissão de ―eticista‖ à primeira vista aparenta
maior cuidado com a ética mas, na realidade, é uma forma sutil de aplicar o relativismo
ético simulando preocupação com a ética. Essa corrente é criticada com muita
propriedade por Axel Kahn, na obra anteriormente referida. Depois de observar que foi
nos Estados Unidos que se criou a profissão de ―eticista‖, que designa o profissional da
ética, escolhido por estruturas acadêmicas, governamentais e industriais para dar um
atestado de boa qualidade ética a atividades que poderiam sofrer restrições à luz da ética
universal, Kahn manifesta a esperança de que isso seja repudiado e faz a seguinte
ponderação: ―É importante que se faça cada vez mais o contrário, que as questões sejam
submetidas ao debate pela cidadania, que não deve deixar de buscar a indispensável
harmonização através do ―enfoque plural dos problemas éticos‖. Tomara que os poderes
públicos e os que detêm poder de decisão no plano internacional meditem sobre esta
114
advertência muito salutar contra a institucionalização generalizada, pelo alto, de um
―eticamente correto‖137.
III. Ética e Sociedade
a. Prioridade da pessoa humana e sua dignidade
A pessoa humana é o primeiro dos valores da humanidade. Isso
parece óbvio, mas deve ser entendido e aceito com todas as suas implicações de ordem
prática, pois se for admitida, numa situação concreta, outra prioridade fica aberto o
caminho para a própria eliminação da pessoa, desde que aquela outra prioridade o exija.
Pelas lições da história, é ingênuo uma pessoa julgar que pode aderir sem risco à
admissão de outras prioridades que não a pessoa humana, pensando que no ponto
extremo, se ocorrer a hipótese da eliminação, o eliminado seria ―outro‖, porque aquele
que está admitindo a eliminação do outro detém o poder ou é protegido por ele.
A história de Robespierre, o ―guilhotinador guilhotinado‖ da Revolução
Francesa, é muito expressiva. Numa perspectiva mais ampla e tomando um fato atual,
pode-se dizer que a violência terrorista praticada contra os Estados Unidos em 11 de
setembro de 2001 é também uma demonstração de que, eliminados os padrões éticos, a
violência pode voltar-se contra o violento, por mais poderoso que seja.
O fato é que, apesar das lições da história e de afrontar o óbvio -a pessoa
humana é o primeiro dos valores-, muitas pessoas, levadas pelo egoísmo essencial
referido por Kant, dominadas pela ambição de mais poder, mais riqueza ou mais
prestìgio polìtico e social, agem como se a pessoa humana fosse apenas um ―meio‖, que
se pode utilizar para a consecução de algum fim eleito como prioritário.
São muitos os questionamentos a respeito da dignidade humana e
das razões pelas quais a pessoa humana deve ter prioridade sobre qualquer outro valor.
Nos tempos modernos essa discussão chegou aos meios acadêmicos através da análise
dos textos de autores católicos, que consideraram o homem a primeira das criaturas, por
ser dotado de alma e por ter sido feito à semelhança de Deus. Essa argumentação, na
realidade, nunca foi a única, entretanto os que pretendem defender outras prioridades
apegam-se a essa forte participação de pensadores católicos na proclamação do valor
superior da pessoa humana para afirmar a inconsistência e falta racionalidade e
embasamento científico de tal posição, que só se apoiaria em argumentos de
fundamento teológico, em dogmas de fé. E assim dizem que a afirmação da prioridade
da pessoa humana é uma posição ―católica‖, pretendendo com essa qualificação
demonstrar que não existem argumentos objetivos, baseados na realidade concreta, para
sustentar tal prioridade, ficando, portanto, aberta a possibilidade de dar prioridade a
outros valores.
Essa maneira de enfocar o problema, enfatizando e isolando, para
rejeitar, o argumento ―católico‖ e dando por encerrada a discussão, como se não
houvesse outros argumentos, é produto de malícia ou ignorância, pois na realidade
desde os pensadores gregos antigos, como, por exemplo, Aristóteles, no tratado da
Política, a questão vem sendo objeto de reflexões. Afirmando como características
diferenciadoras do animal humano a consciência do bem e do mal, do justo e do injusto,
137
Axel KAHN, op. cit., pág.17 e 18
115
Aristóteles ressalta esse atributo como fator de superioridade. Para muitos autores
modernos -e aqui se pode ir de Emmanuel Kant ao contemporâneo Axel Kahn- o senso
ético, a capacidade intelectual, o cultivo de valores espirituais, a aptidão para
transformar a natureza e para desenvolver atividade criadora nos domínios da ciência e
da arte, tudo isso expressa as características superiores do ser humano e integra sua
dignidade.
Vem também a propósito rememorar que no período do Renascimento
vários autores se ocuparam do tema, que mereceu especial atenção de Pico de la
Mirandola, devendo-se ressaltar que a designação de ―humanistas‖ dada a grandes
pensadores dos séculos dezessete e dezoito decorreu, precisamente, da afirmação da
superioridade da pessoa humana, livre e racional. Aliás, vem a propósito lembrar aqui
uma expressiva afirmação de Jean-Paul Sartre, em seu Plaidoyer pour les Intelectuels,
quando, falando do Racionalismo, de suas características e dos efeitos que ele produziu,
observa enfaticamente: ―O Racionalismo expulsou Deus da Terra‖. O que fizeram os
racionalistas, e essa expressão deixa bem evidente, foi a afirmação da superioridade do
ser humano por sua racionalidade. E isso foi feito com base na observação da história da
humanidade e dos comportamentos humanos, pondo de lado a teologia e os argumentos
―católicos‖ a que se referem os atuais defensores da prioridade de outros valores ou,
simplesmente, propugnadores da inexistência de qualquer barreira ética para as ações
humanas, sejam quais forem os seus efeitos.
A proclamação da superioridade da pessoa humana, com sua dignidade,
está expressa na Declaração Universal de 1948, em seu artigo 1º., segundo o qual ―todos
os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos‖, havendo depois
muitas outras referências à dignidade humana, como um valor que não tem superior, em
Declarações, Pactos, Convenções e outros documentos relacionados com os Direitos
Humanos. Foi precisamente com base no reconhecimento universal da dignidade
humana como valor superior os constituintes brasileiros de 1988, à semelhança do que
fizeram os constituintes em outras partes do mundo, na segunda metade do século vinte,
proclamaram expressamente, no artigo 1º da Constituição, que um dos fundamentos da
República brasileira é ―a dignidade da pessoa humana‖.
Assim, portanto, objetivos econômicos, políticos, científicos, sociais ou
de qualquer outra espécie, que afetem os seres humanos, deverão ser considerados
sempre ―meios‖, subordinados ao fim que é a pessoa humana com sua dignidade
Jamais se poderá admitir como ético o comportamento de quem inverte os valores e dá à
pessoa humana a simples condição de ―meio‖, que poderá ser utilizado para a
consecução de qualquer fim. Isso não se anula pela afirmação de que a utilização da
pessoa como ―meio‖ poderá trazer futuros benefìcios à humanidade, pois não se poderá
dizer que houve benefício para a humanidade se alguns, ou mesmo muitos seres
humanos, receberam algum bem que só foi obtido graças à anulação da dignidade de
outros seres humanos.
b. Globalização e marginalização da ética
Com o nome de ―globalização ‖ desenvolveu-se, na última década do
século vinte, uma intensa atividade promovida pelos mais poderosos grupos econômicos
e financeiros do mundo, que decidiram aproveitar a liberdade de movimentos que se
estabeleceu após o desmoronamento da União Soviética. Nesse ambiente
desencadearam uma ação intensa, visando a expansão de seus negócios mediante a
utilização dos recursos materiais e humanos existentes em qualquer parte do mundo,
116
bem como a livre circulação e aplicação de capitais, sem as barreiras representadas pela
soberania dos Estados e pelas fronteiras físicas. Como base dessa pretensão alegou-se
que existia uma situação nova, pois os avanços da tecnologia permitiam, a partir de
então, a extensão das atividades econômicas ao âmbito mundial, tornando obsoletas as
limitações impostas mediante regras jurídicas, devendo-se subordinar tais atividades,
daqui por diante, apenas às ―leis do mercado‖. Com isso, segundo alegam os defensores
da globalização, toda a humanidade será beneficiada, pois o dinamismo econômicofinanceiro acarretará maior produção de riquezas e, portanto, a possibilidade de
aumentar as oportunidades de trabalho, bem como de crescimento econômico de todos
os povos e de todas as pessoas.
Não há dúvida de que a moderna tecnologia de transportes e
comunicações permitiu a aceleração das atividades humanas, embora se deva lembrar
que a extensão do comércio para o âmbito mundial já foi estabelecida pelos
navegadores portugueses, no final do século quinze. A par disso, há vários pontos,
alguns tremendamente negativos, que precisam ser ressaltados, para que se perceba que,
entre outras coisas, a pretendida globalização já acarretou e vem acarretando
gravíssimas agressões à pessoa humana. Bastaria esse ponto para que se percebesse o
efeito negativo da globalização, que coloca a obtenção de vantagens econômicas e
financeiras como fim, relegando a pessoa humana à condição de ―meio‖, através do qual
se procura atingir aquele fim.
A par disso, verifica-se que esse dinamismo econômico vem produzindo
benefícios econômicos para alguns, justamente para aqueles que já são ricos, enquanto
vem semeando miséria e marginalização, agredindo a dignidade de milhões de seres
humanos, em todas as regiões com menor desenvolvimento econômico. Com efeito,
subordinando-se apenas às leis do mercado, que não têm qualquer conteúdo ético, os
detentores da riqueza procuram sempre o maior lucro com o menor custo, e para isso
retiram seus investimentos de um lugar que se tornou menos lucrativo, de um momento
para outro e sem qualquer responsabilidade, deixando um rastro de desemprego e
miséria. Seguindo essa mesma lógica, expandiram suas atividades econômicas para
todos os campos em que pode haver a possibilidade de ganho econômico-financeiro.
Isso atingiu, por exemplo, de maneira dramática, a saúde e a integridade física de
milhões de seres humanos, além de sua dignidade, por esses e outros prejuízos..
A busca de maior ganho, sem qualquer limitação ética, observando
apenas as leis do mercado, transformou em mercadoria a própria pessoa humana, seus
órgãos e seus componentes, fazendo-se também o comércio, sem considerações éticas,
dos cuidados de saúde, dos medicamentos e de tudo o que é fundamental para a
preservação da integridade física e mental da pessoa humana. Assim, em última análise,
a globalização decretou a marginalização da ética, substituída pelas leis do mercado.
Outro dado muito importante, que também deve ser ressaltado, é que os que comandam
o processo de globalização valem-se do poder econômico para influenciar, ou mesmo
determinar, decisões políticas. Desse modo, e por não terem limitações éticas, agem
como verdadeiros farsantes, quando, por exemplo, exigem a liberdade de mercado para
os seus produtos mas impõem graves limitações à exportação de produtos dos países
mais pobres para os mais ricos, a fim de impedir a concorrência e controlar o mercado,
garantindo, assim, obviamente, os seus altos lucros. Nesse momento fazem valer a
soberania do Estado e as barreiras alfandegárias, impostas através de regras jurídicas,
não deixando que prevaleçam as leis do mercado. É a mais completa marginalização da
ética, com gravíssimos prejuízos para a humanidade.
117
c. O Código de Nuremberg, a Bioética e a manipulação da Genética:
progresso e retrocesso
Durante a segunda guerra mundial, cientistas ligados ao nazismo
fizeram experiências científicas, inclusive no campo da genética, utilizando como
cobaias prisioneiros indefesos colocados em campos de concentração. Informações
precisas e minuciosas sobre muitas dessas experiências foram reveladas durante os
julgamentos de criminosos de guerra, efetuados pelo tribunal militar instalado em
Nuremberg nos anos de 1945 e 1946. O conhecimento das barbaridades cometidas, que
afrontavam gravemente a dignidade humana, horrorizou os julgadores e para que não se
perdesse a memória das atrocidades, bem como para servir de alerta contra o risco de
repetição daqueles fatos, foi publicado em 1947 um extrato dos julgamentos, que ficou
conhecido como Código de Nuremberg.
Esse documento é extremamente importante para a ética na área
da Saúde, porque a partir das informações sobre as violências cometidas contra seres
humanos, por cientistas e pesquisadores que, colocando a busca de novos
conhecimentos e o avanço da Ciência como prioridade absoluta, promoveram a
degradação de seres humanos, que foram tratados como coisas ou como simples meio
para a busca de resultados. Foi justamente para alertar quanto ao risco desse gravíssimo
desvio ético, que muitos são tentados a cometer para satisfazer sua vaidade ou seus
interesses, usando o pretexto de progresso da Ciência e benefício para a humanidade, foi
para prevenir esse risco que se publicou o Código de Nuremberg. Reconhecido como
documento fundamental para a ética da pesquisa com seres humanos, o Código de
Nuremberg estabelece diretrizes e aponta as exigências básicas que devem ser
observadas na promoção de pesquisas.
A primeira exigência colocada pelo Código é o consentimento
voluntário da pessoa que vai ser submetida à pesquisa. Mas além de se verificar se essa
pessoa tem capacidade legal para consentir, é fundamental que o consentimento seja
livre e esclarecido. Obviamente, não se pode dizer que o consentimento é livre quando
obtido em circunstâncias em que a pessoa está fragilizada, como acontece com o
presidiário condenado a uma pena muito longa, ou com alguém que esteja sofrendo
graves privações por seu estado de pobreza, ou então por uma pessoa acometida de
moléstia que provoque grande sofrimento ou esteja traumatizada por alguma ocorrência
recente, ou, ainda, por alguém que, por sua situação de dependência hierárquica,
econômica ou afetiva, teria extrema dificuldade para negar o consentimento. A par
disso, a pessoa que consente deve estar plenamente esclarecida quanto aos objetivos,
peculiaridades e riscos da pesquisa, sem o que o consentimento não pode ser
considerado voluntário.
Além desse, vários outros requisitos foram estabelecidos pelo
Código de Nuremberg, visando impedir que por conveniência ou leviandade sejam
utilizadas pessoas humanas em pesquisas que poderiam ser realizadas de outra forma,
ou que não tenham sólido embasamento em conhecimentos já obtidos por outros meios,
bem como em pesquisas de duvidosa necessidade ou de discutível proveito para a
humanidade. A par dessas e de outras exigências, o Código ressalta a necessidade de se
evitar que a pesquisa acarrete qualquer sofrimento ou dano físico ou moral à pessoa a
ela submetida. Em síntese, pode-se dizer que o Código de Nuremberg afirma
enfaticamente a exigência ética de se dar absoluta prioridade à pessoa humana e sua
dignidade. Ele não proíbe nem impede a realização de pesquisas com pessoas humanas,
para provável futuro benefício da saúde da humanidade, mas impõe o respeito aos
valores éticos.
118
Apesar dessa advertência, graves agressões à dignidade humana
continuaram a ocorrer nessa área, pelas ações de cientistas e pesquisadores limitados ao
círculo estreito de seus conhecimentos técnicos e científicos, incapazes de atingir a
dimensão do humanismo. Desprovidos de consciência ética e, por isso mesmo,
incapazes de compreender que seus conhecimentos são apenas um dos meios que se
podem utilizar para buscar benefícios para a pessoa humana, continuaram a cometer
barbaridades, tratando a pessoa humana como coisa, utilizada para simples satisfação de
sua curiosidade de pesquisadores ou, na melhor das hipóteses, achando que isso poderia
ter alguma utilidade para a ampliação de conhecimentos.
Um dos casos mais brutais, bastante conhecido por ter sido muitas vezes
referido em trabalhos sobre ética em pesquisa, ocorreu nos Estados Unidos da América
e vale a pena ser lembrado aqui. Entre os anos de 1932 e 1972, sob patrocínio do
Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos da América (USPHS) foi feita a
observação constante e minuciosa da evolução da sífilis em 399 negros norteamericanos pobres, originários de Tuskegee, no Estado e Alabama. A finalidade desse
estudo era a ampliação dos conhecimentos sobre a evolução da sífilis, moléstia crônica
sexualmente transmissível, que se sabia que após alguns anos de evolução acarretava
males de extrema gravidade, sobretudo de natureza neurológica. A partir de 1940, com
o aparecimento da penicilina e sua utilização em muitos casos, sob estrita observação
médica, verificou-se que esse novo medicamento era de grande eficiência no tratamento
da sífilis, obtendo-se com ele a completa cura dos doentes. Com isso, nos países mais
desenvolvidos a sífilis foi praticamente eliminada. Entretanto, as autoridades sanitárias
dos Estados Unidos, bem como os cientistas e pesquisadores envolvidos na observação
do grupo de Tuskegee, não quiseram perder a oportunidade de chegar ao fim de sua
experiência, que era inédita. Por isso aqueles negros não foram tratados com penicilina
e, obviamente, acabaram morrendo, muitos deles após terem apresentado os mais
terríveis sintomas da moléstia. Aí está um caso de brutal agressão à ética, que nenhuma
busca de progresso da Ciência e nenhum pretexto de crença num futuro benefício para a
humanidade poderiam justificar.
Casos como os anteriores e a continuação dos abusos ―em nome da
Ciência‖ levaram a Organização das Nações Unidas a aprovar, em 10 de Novembro de
1975, uma ―Declaração sobre a utilização do progresso cientìfico e tecnológico no
interesse da paz e em benefìcio da humanidade‖. Nesse documento é reiterada a
advertência, no sentido de que existem barreiras éticas que nem os cientistas, nem os
governos, nem as instituições públicas ou privadas empenhadas no desenvolvimento da
Ciência e da Tecnologia podem ultrapassar. Isso tem aplicação às experiências com
seres humanos e também à produção e ao uso de substâncias ou instrumentos que
possibilitam interferências graves na natureza ou nas relações sociais, afetando
seriamente a pessoa humana, pondo em riso ou prejudicando sua integridade física e
psíquica e sua dignidade, ou mesmo a integridade e o patrimônio ético de toda a
humanidade.
Outro risco que merece advertência é a utilização, distorcida por
despreparo ou malicia, dos conceitos da Bioética. Na realidade, a expressão ―bioética‖
sugere a consideração com a ética em toda intervenção nos fenômenos ligados ã vida,
especialmente a vida humana, desde sua origem até seu fim. Em nome do benefício à
pessoa humana, muitos ―bioéticos‖ (expressão que alguns já utilizam como
especialidade profissional) vêm utilizando, distorcidamente, argumentos de conotação
ética, para defesa de posições extremamente antiéticas, como a defesa do direito de
matar, que muitas vezes permeia as discussões sobre a eutanásia.
119
A respeito desse risco são muito expressivas e merecem especial atenção,
pela riqueza do conteúdo, bem como por refletirem uma longa experiência sempre
pautada pela ética, as observações feita pelo eminente sanitarista italiano Giovanni
Berlinguer, na obra Ética da Saúde. Entre os temas, todos de grande atualidade,
enfocados em seu livro, encontram-se muitas observações críticas sobre o uso de
conhecimentos da genética e das possibilidades de interferência do médico no início e
no fim da vida humana. Tratando da eutanásia, Berlinguer fala da coação, que é a
imposição de uma vontade, disfarçada em consentimento de quem na realidade está
sendo coagido, e faz a seguinte ponderação : ―Temo, sobretudo, que na prática e nas leis
ocorra um lento desvio da vontade própria para a coação, que é uma grande tentação,
uma vez superado o limiar do primum non nocere - antes de tudo, não causar dano- que
é um princípio ético tradicional (e espero eterno) para os médicos; e também o limiar do
―não matar‖, que é válido para qualquer um‖138.
Esse temor do notável sanitarista não é infundado, podendo-se mencionar
como exemplo desse desvio ético o fato de existirem no Brasil professores de Medicina
que argumentam com a Bioética para sustentar que o médico deve ter o direito, mais do
que isso, deve ter mesmo o dever, de matar um doente terminal que esteja sofrendo, a
fim de lhe proporcionar uma morte digna. E consideram que assim estará sendo
atendido o princípio do benefício, por ser mais benéfico para o doente morrer sem a
perda da dignidade que poderá decorrer do excessivo sofrimento. Simulando o cuidado
com a ética ressaltam que o médico só deve matar naquela circunstância se o paciente
pedir para morrer, enquadrando-se aí, rigorosamente, a hipótese do desvio da vontade
própria, livremente formulada, para a coação, pois o médico desejoso de apressar a
morte do doente terminal não se esforçará para reduzir seu sofrimento e lhe dar alívio
físico e conforto psicológico ou espiritual, resguardando assim sua dignidade.
Outro caso de ofensa à ética, disfarçada em benefício, ocorre com a
manipulação da genética, seja para satisfazer a vaidade do médico, que se apresenta
como um cientista de vanguarda, seja para a obtenção de vantagens econômicas ou de
outra natureza. Não se pode negar que em muitos casos existe realmente o benefício
para quem se vale do auxílio dos médicos para objetivos ligados à reprodução, mas a
par disso existe intensa exploração econômica desses recursos, com evidente desvio dos
rumos admitidos pela ética. Exemplo muito eloqüente desse desvio é a comercialização
da pessoa humana, através da fabricação de crianças, como vem ocorrendo em larga
escala, sob pretexto do benefício aos casais que não conseguem procriar e sem nenhuma
consideração pelos aspectos éticos envolvidos na produção de um ser humano mediante
artifícios e nas condições de vida que terá essa criança. Um exemplo trágico dessa
manipulação foi registrado por Axel Kahn, que é um eminente geneticista e que,
justamente pelo que tem visto e sabido através de sua experiência profissional, mostrase alarmado com os abusos da engenharia genética e com as tremendas agressões à
ética levadas a efeito graças à colaboração de geneticistas. Trata-se do registro de um
fato real, ocorrido nos Estados Unidos e relatado pela imprensa em 1997, e cujos dados
são muito claros:
Um homem e uma mulher, casados, eram ambos estéreis, mas queriam
um filho, o que, em princípio, é legítimo e eticamente inatacável. Em lugar de
procurarem o caminho da adoção preferiram recorrer à assistência médica à procriação,
iniciando-se aí um processo com toques surrealistas, com forte conotação de tragédia e
com absoluto desprezo pela ética. Como os interessados eram muito ricos e o
especialista procurado tinha capacidade técnica e uma clínica de reprodução assistida
138
Giovanni BERLINGUER, Ética da Saúde, São Paulo, Hucitec, 1996, pág.17
120
bem organizada, além de nenhum escrúpulo ético, a clínica providenciou a compra de
óvulos e espermatozóides no mercado e um especialista efetuou a fecundação in vitro.
Em seguida, como era necessário um ventre feminino para o desenvolvimento do
embrião, foi alugado o útero de outra mulher, que hospedou o nascituro até o fim da
gravidez, em 1995, quando nasceu uma menina perfeitamente sadia.
Pouco depois do nascimento da criança o casal que havia encomendado
sua fabricação se desfez pelo divórcio e o marido não quis reconhecer a criança como
seu filho, que efetivamente não era, nem concordava em destinar qualquer pensão para
sua manutenção. A mulher, que não era a mãe biológica da criança e nem a tinha
abrigado em seu útero, chegou a pensar na hipótese de adotá-la, o que acabou não
fazendo porque o marido, de quem se estava separando, disse que não lhe daria qualquer
pensão se ela ficasse com a criança. E assim, com todos os requintes dos avanços
científicos e da mais avançada tecnologia a ética foi para o lixo, sobrando um ser
humano absolutamente desprovido de meios materiais, de apoio psicológico e afetivo,
de um ambiente familiar e de tudo o mais necessário para garantia de sua sobrevivência,
seu desenvolvimento e sua dignidade139.
Como se vê, a obtenção de novos conhecimentos científicos e a invenção
de tecnologias mais sofisticadas podem ser úteis à humanidade, mas é indispensável
afirmar e reafirmar as exigências da ética, para que os benefícios teóricos e potenciais
não sejam substituídos por uma degradação prática. Não se pode admitir que sob
pretexto de busca do progresso sejam abandonados os padrões éticos, pois mesmo os
avanços científicos e o aperfeiçoamento tecnológico formalmente inegáveis não
poderão ser considerados fatores de progresso, mas de retrocesso, se forem utilizados
para degradar a pessoa humana, para aumentar as discriminações entre pessoas, grupos
sociais e povos. Não se pode falar com propriedade em progresso da humanidade
quando só um pequeno número de pessoas recebe os benefícios das inovações, que, na
realidade, só se tornam possíveis graças aos meios que, direta ou indiretamente, são
fornecidos por muitos. E haverá evidente agressão à ética se tais progressos forem
obtidos à custa da sonegação dos recursos indispensáveis para que uma grande parcela
da humanidade possa sobreviver de maneira digna.
IV. Ética e Saúde
a. A definição de Saúde e suas implicações éticas
A saúde das pessoas e dos povos tem sido preocupação constante
da humanidade, desde os tempos mais remotos, sendo recente apenas a consciência mais
nítida de seu relacionamento com outros aspectos da vida social e o estabelecimento de
ações sistemáticas visando a proteção e a melhoria das condições de saúde. Examinados
atentamente, muitos costumes e crenças, muitos preceitos de vida e de convivência de
povos da antigüidade estavam ligados a cuidados de saúde, aí se incluindo modos de
vida, hábitos alimentares, a utilização de certos vegetais e outros recursos naturais, bem
como exigências e restrições com influência nas condições físicas das pessoas e que
decorriam de conhecimentos e de experiência acumulada. Em várias épocas da história
139
Axel KAHN, op. cit. págs. 338 e 339
121
humana as condições de saúde da população adquiriram importância fundamental,
como, por exemplo, nas ocasiões em que uma epidemia dizimava populações.
Tudo isso influiu para que a humanidade fosse tomando
consciência da extraordinária importância da saúde, até reconhecê-la como necessidade
fundamental da pessoa humana. Começa aí a percepção da existência de preceitos éticos
ligados à saúde, uma vez que a ofensa à saúde ou a falta de sua proteção poderão
significar substancial enfraquecimento da pessoa, uma redução grave de suas
capacidades, a ocorrência de grandes sofrimentos e, no limite extremo, a morte da
pessoa. Assim, pois, a saúde passa a ser reconhecida como um dos aspectos mais
importantes da vida humana, uma necessidade essencial dos seres humanos e, por isso,
finalmente, um direito fundamental da pessoa humana. Ao lado disso, vão sendo
reconhecidos deveres e responsabilidades dos governos e de todos os que poderiam
influir sobre a saúde, isso implicando, entre outras coisas, a constante busca de novos
conhecimentos, o incessante aperfeiçoamento do instrumental técnico, uma permanente
ação educativa , a destinação de recursos públicos e a criação de serviços especiais,
reconhecidos como indispensáveis, para cuidar da saúde.
Tudo isso culminou com a necessidade de se definir ―saúde‖, para
que se tenha precisão quanto a direitos e responsabilidades a ela relacionados. Essa
necessidade ficou ainda mais evidente após a publicação da Declaração Universal de
Direitos Humanos, de 1948, cujo artigo 28 estabelece que todos os seres humanos têm
―direito a um padrão de vida que assegure saúde e bem estar‖. O que é assegurar a
saúde ? Quando é que se pode dizer que estão atendidas as condições necessárias para
que esteja atendido o direito de ter a saúde assegurada ? Em outras palavras, o que é o
direito à saúde ?
Numa visão muito simplista, alguns pretenderam definir saúde
como ―ausência de doença‖. Entretanto, muitos opositores dessa conceituação
lembraram que a pessoa humana pode viver numa situação em que não se reconhece
que ela tenha alguma doença definida e no entanto ela pode estar apresentando
limitações físicas ou mentais que a impedem de desenvolver e utilizar as aptidões e
capacidades que são atributos dos seres humanos em geral. Além disso, uma pessoa
pode estar sendo constrangida a viver em condições em que suas necessidades
essenciais, de natureza física, psíquica e afetiva, não estão sendo atendidas e por esse
motivo tal pessoa sofre muitas limitações e pode mesmo sofrer a limitação ou perda de
algumas faculdades, sem que ainda se caracterize uma doença definida. Pode ainda
ocorrer que alguém seja forçado a viver ou trabalhar em condições tais que suas
condições físicas ou mentais estão sendo perturbadas e enfraquecidas, ou em que a
pessoa corre permanente risco de sofrer um dano ou de contrair uma doença.
Por todos esses motivos, logo após o término da segunda guerra
mundial, representantes de um grande número de países, assistidos por alguns
especialistas em Saúde Pública, decidiram criar uma organização internacional
especializada em saúde. Nos debates para consecução daquele objetivo consideraram
que, pelos ensinamentos da história, antiga e recente, é mais do que evidente que
pobreza, discriminação e marginalização social, más condições de habitação e de
trabalho, práticas de violências físicas, tudo isso afeta gravemente a saúde dos seres
humanos e assim compromete sua integridade física e psíquica e sua própria dignidade.
Consideraram, também, ser necessário um esforço permanente, em escala mundial, para
que a todos os seres humanos, ―iguais em direitos e dignidade‖ segundo a Declaração
Universal, seja assegurado o direito à saúde, condição indispensável para a preservação
e o desenvolvimento da pessoa humana e para a harmonia social e a paz. Tendo em
122
conta esses pressupostos, em 22 de julho de 1946 foi aprovada a Constituição da
Organização Mundial de Saúde.
No Preâmbulo dessa Constituição foi inserida a seguinte definição: ―A
saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consiste apenas na
ausência de doença ou de enfermidade‖. Tendo consciência da grande e difìcil
caminhada necessária para que todos os seres humanos adquiram esse estado favorável
à saúde e sabendo das resistências de pessoas e grupos tradicionalmente privilegiados à
extensão desse direito a todos, os redatores da Constituição deixaram expresso que não
pode haver qualquer espécie de discriminação na extensão, promoção e garantia do
direito à saúde. Além disso, tornaram expresso que a saúde de todos os povos é uma das
condições fundamentais para a paz no mundo e a segurança, assinalando que a
consecução dos objetivos da Organização Mundial de Saúde depende da estreita
colaboração entre indivíduos e Estados. Advertiram, ainda, que a desigualdade entre os
países, no que concerne à melhoria das condições de saúde e à luta contra as doenças,
particularmente das doenças transmissíveis, é um perigo para todos. Essa advertência
teve recentemente uma confirmação trágica através da disseminação da AIDS, que
atingiu com mais dureza alguns países pobres, mas que se disseminou também em
países ricos.
A definição de saúde como estado de completo bem-estar físico, mental e
social e o reconhecimento do direito à saúde como universal tem claras e imediatas
implicações éticas, pois onde não estiver sendo feito um real e significativo esforço para
que todos os seres humanos gozem, efetivamente, do direito à saúde estará havendo
discriminação, ofensa à integridade física e mental de seres humanos, degradação da
dignidade das pessoas excluídas. Assim, pois, é indispensável que todas as pessoas e
todos os governos, que todos aqueles que atuam no âmbito público ou privado, na
prestação de serviços, no comércio ou na indústria, estejam conscientes de sua
responsabilidade ética relativamente à saúde.
As implicações éticas da definição de saúde consagrada pela Organização
Mundial de Saúde atingem também os campos político, econômico e social. Com efeito,
sendo muito mais do que a ausência de doença e compreendendo também o completo
bem-estar físico, mental e social, a saúde exige que os sistemas políticos reconheçam e
procurem tornar efetiva a igualdade de todos, desde o nascituro até àquele que está em
seus últimos momentos de vida, relativamente ao acesso às medidas preventivas, aos
cuidados médicos, aos recursos hospitalares e aos equipamentos, bens e serviços
relacionados com a saúde. É também indispensável que a utilização dos recursos
econômicos disponíveis, assim como o estabelecimento das condições de vida e de
trabalho, tenham como prioridade a busca do bem-estar para todos. Em síntese, da
definição de saúde decorre, uma vez mais, a exigência ética de se dar prioridade à
pessoa humana e às exigências de sua dignidade, sem qualquer espécie de discriminação
e dando sentido prático a essa prioridade.
b. “Globalização Sanitária”: o homem “meio” e o homem “fim”
A criação da Organização Mundial de Saúde ocorreu num
momento de grande otimismo, quando, com a proclamação da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, estavam sendo lançados os fundamentos de uma nova sociedade,
fundada no humanismo, disposta a corrigir as tremendas injustiças sociais e violências
contra a pessoa humana, que no século vinte haviam provocado duas guerras mundiais
com extremos de barbaridade. Reconhecia-se que sem justiça não pode haver paz.
123
Muito cedo, entretanto, verificou-se que uma parcela da
humanidade iria resistir à efetivação universal dos direitos proclamados pela
Organização das Nações Unidas. Entre os que logo revelaram sua resistência estavam
os que, embora representando uma pequena parcela da humanidade, eram poderosos
porque tinham situação política e social privilegiada e não estavam dispostos a abrir
mão de seus privilégios. Outros, inclusive alguns especialistas da área de saúde,
resistiam e continuam resistindo por darem prioridade a objetivos econômicos e à
satisfação de interesses pessoais, colocando a pessoa humana em nível secundário.
Apesar dessas resistências, os fatos das últimas décadas demonstram que
houve grandes avanços, sendo interessante observar a ambigüidade, quanto a esses
avanços, na utilização dos principais meios de comunicação de massa, especialmente os
jornais e a televisão. Sendo organizações empresariais, as empresas de difusão e
comunicações orientam-se, primordialmente, pelo objetivo da obtenção de lucro e
mesmo quando recusam reconhecer esse fato ou procuram diminuir a influência desse
objetivo, não podem adotar diretrizes prejudiciais à obtenção de resultados econômicos,
pois na lógica do sistema capitalista a acumulação de perdas econômicas levaria ao seu
desaparecimento. Entretanto, por atuarem em ambiente de competição, devem operar
com dinamismo e diversidade, procurando atingir todas as camadas sociais e o maior
número possível de pessoas, para que os anunciantes, privados e públicos, ostensivos ou
disfarçados, queiram utilizá-los como veículos de divulgação e assim lhes garantam a
renda necessária.
Pela conjugação desses motivos, os veículos de comunicação de massa
acabam sendo instrumentos de divulgação das grandes injustiças existentes no mundo e,
mesmo quando apresentam os fatos de maneira distorcida, acabam revelando a
existência de conflitos, bem como de organizações e movimentos sociais que trabalham
e lutam por justiça. Desse modo, não apenas divulgam esses dados mas estimulam,
indiretamente, o despertar das consciências e a ampliação do movimento mundial pela
correção das injustiças e pela efetivação dos Direitos Humanos. Uma das conseqüências
disso é que no mundo contemporâneo não há situação de grave injustiça social que não
seja divulgada e nenhum grupo injustiçado permanece inerme e passivo, conformado
com a injustiça e adaptado a ela. Isso vem ocorrendo, também, em relação aos
problemas de saúde, sendo muito grande o número de organizações sociais que atuam
denunciando a negação do direito à saúde ou as deficiências graves em sua garantia e
efetivação.
Entretanto, apesar dos avanços verificados, os detentores do poder
econômico no mundo não estão inertes e procuram por todos os meios converter em
proveito econômico os resultados científicos e os avanços tecnológicos relacionados,
direta ou indiretamente, com a saúde. Como parte do movimento identificado como
―globalização‖, que procura sobrepor as leis do mercado às exigências éticas, verifica-se
que também na área da saúde vêm-se multiplicando as iniciativas e atividades, de várias
naturezas, visando a redução da influência das exigências éticas ou, mais diretamente,
buscando tirar proveito das novas possibilidades criadas pela ciência e pela tecnologia,
com absoluto desprezo pela ética. Uma rápida enumeração de alguns fatos e algumas
práticas será suficiente para evidenciar essas investidas.
A intensificação das atividades econômicas atingiu fundamente a
área da saúde, adquirindo enorme importância a obtenção de patentes, que asseguram
aos seus detentores a possibilidade de manipulações especulativas. Isso tem efeitos
gravíssimos e é o túmulo da ética quando se verifica que envolvem muitos aspectos
relacionados à saúde, incluindo conhecimentos científicos e procedimentos técnicos, a
pesquisa científica, a utilização de substâncias, a produção e comercialização de
124
equipamentos e insumos e de medicamentos. Um dado importante é que o uso dos
direitos sobre tudo isso é feito, muito freqüentemente, mediante critérios que só
consideram a pessoa humana enquanto ―meio‖ para obtenção de lucro. Desse modo, a
sonegação e o jogo de mercado, os preços exorbitantes, as mentiras sobre as qualidades
dos produtos, as falsificações, a propaganda enganosa ou inadequada visando estimular
o consumo mesmo que inadequado, o suborno direto ou indireto de autoridades
públicas, de empresários e profissionais da saúde e tudo o mais que faz parte da
competição econômica está muito presente na área da saúde. Evidentemente, nesse jogo
ninguém leva em conta a existência da ética.
Além dessas práticas que acabam de ser referidas, podem ser lembradas
outras que também revelam o mais absoluto desprezo pela ética. Assim, em termos de
pesquisa científica, especialmente quando envolve a pessoa humana, é muito freqüente
a realização de trabalhos em que a pessoa humana aparece claramente como simples
―meio‖, sem nenhuma consideração por sua dignidade. Em nome do progresso
científico utilizam-se ―cobaias humanas‖, muitas vezes prevalecendo de uma situação
de fragilidade da pessoa ou de sua ignorância. Um caso extremo desse comportamento é
a corrupção de governantes e o aproveitamento da situação de pobreza do povo, em
países menos desenvolvidos, para a realização de experiências com seres humanos, as
mesmas experiências que são proibidas nos países de origem das empresas e dos
pesquisadores, que promovem e realizam as pesquisas. Essa afronta à pessoa humana,
que Axel Kahn denominou, com muita propriedade, ―turismo médico-experimental‖, é
mais uma agressão à ética na área da saúde.
A lista de infrações éticas em atividades relacionadas com a saúde seria
enorme. Para não alongar demais a reflexão sobre o tema, será suficiente enumerar mais
algumas práticas muito comuns em nosso tempo. De modo geral, verifica-se facilmente
que a prestação de serviços de saúde passou a ser um negócio altamente rendoso e
ganhou grande impulso com algumas inovações recentes, como as manipulações
possíveis para a produção de óvulos fecundados e os transplantes de órgãos, conquistas
importantes para a humanidade mas que, entre outras coisas, já produziram um
comércio muito ativo de fecundações assistidas e de compra e venda de órgãos
humanos. Não há dúvida de que os avanços ocorridos nessas áreas poderão ser
benéficos para muitas pessoas, mas a par disso abriram-se imensas possibilidades para a
comercialização mais desenfreada e anti-ética, o que é um malefício para a humanidade.
Um exemplo muito expressivo dessa distorção é um projeto de lei
proposto no Parlamento brasileiro no ano de 2001, autorizando a criação de empresas
especializadas em promover a fabricação de crianças. A empresa contratada, formada
por profissionais de alto nível técnico-científico, teria uma equipe de fornecedores de
esperma e de óvulos, todos fornecedores profissionais e com os quais os consumidores
(essa expressão, muito reveladora, está no projeto de lei) não teriam qualquer contacto,
não conhecendo mesmo sua identidade. Quando do interesse dos consumidores, a
empresa forneceria úteros de aluguel e entregaria a ―mercadoria‖, ou seja, a criança, um
ser humano,
já pronta e acabada, poupando os consumidores de todos os
inconvenientes da gestação. O projeto não diz o que deverá acontecer se os compradores
não gostarem do ―produto‖, se existe a possibilidade de devolução se for constado
algum defeito, como também não prevê o destino da criança se os consumidores supondo-se que seja um casal- decidirem divorciar-se, como também não trata das
responsabilidades pelo desenvolvimento e pela dignidade do ser humano fabricado nos
estabelecimentos da empresa.
Um dado positivo é que essa proposta, afrontosa de todos os princípios
éticos, não conseguiu tramitar no Legislativo com a discrição pretendida pelos seus
125
autores e já vem sendo objeto de discussões públicas, recebendo, invariavelmente, a
mais veemente repulsa. Mas a existência da proposta é um sinal dos tempos, é
reveladora de que há muitas pessoas, inclusive cientistas e profissionais de saúde, para
quem a pessoa humana não é um ―fim‖, que deve condicionar seus objetivos e suas
atividades, mas simples ―meio‖, que procuram utilizar sem qualquer escrúpulo de
natureza ética, para satisfação de seus interesses.
c. Ética, Saúde e Dignidade Humana: a relação necessária
A pessoa humana, sua vida, sua integridade física e mental, sua
dignidade, são valores universais e as normas que impõem seu respeito integram o
patrimônio ético da humanidade. Existe, pois, uma ética universal, que não exclui um
pluralismo ético mas se coloca como parâmetro superior, com o qual todas as éticas
particulares devem ser coerentes e ao qual todas devem tender.
Pela importância fundamental da saúde para a preservação desses
valores pode-se e deve-se falar numa Ética da Saúde, que tem como prioridade a pessoa
humana e que deve ser a diretriz básica para os Estados e governos, para os que têm
alguma influência nas decisões sobre políticas públicas e na sua aplicação, para todos os
profissionais que atuam na área da saúde, tanto aqueles que exercem atividades
científicas ou de alta tecnologia quanto os que se relacionam com o cotidiano das
pessoas. A ética da saúde deve aplicar-se também ao setor privado, cuja participação na
área da saúde será legítima e poderá ser altamente benéfica desde que, em qualquer
circunstância, reconheça como prioridade a pessoa humana, sem qualquer espécie de
privilégio ou discriminação, jamais vislumbrando-a como simples ―meio‖, que pode ser
usado como coisa ou objeto, para a satisfação de interesses de grupos ou de pessoas.
Vem a propósito lembrar as observações de Giovanni
BERLINGUER, sobre o que deve ser a Ética da Saúde: ―Ela não pode ser concebida
apenas da mesma forma que um sistema de regras profissionais, isto é, uma deontologia
médica atualizada; e nem mesmo como um subproduto automático da reflexão -que é
certamente necessária- a respeito das fronteiras extremas da vida e da morte, sobre as
quais o pensamento filosófico e o debate moral vão sendo cimentados de forma extensa
e profunda. No entanto, perduram o silêncio e a incerteza sobre a macroética, isto é, em
relação aos princípios diretivos que possam ser válidos para todos que se ocupam ou
que se preocupam, por si ou pelos outros, da saúde cotidiana‖140
Como bem assinala o eminente sanitarista italiano, e procuramos
demonstrar ao longo deste trabalho, Ética da Saúde não significa um conjunto de regras
formais, prontas e acabadas, que todos devem obedecer, nem deve ser entendida como
um corpo de preceitos, no qual se faz a enumeração de atividades dando resposta para
cada dúvida e apontando a melhor solução para cada caso. A Ética da Saúde é, antes de
tudo, a convicção de que a pessoa humana é a prioridade e, conseqüentemente, a busca
da resposta mais adequada a esse pressuposto, sempre que for necessário praticar atos
ou tomar decisões que possam afetar a vida, a integridade física e mental ou o bem-estar
social da pessoa humana. O respeito à Ética da Saúde exige uma reflexão permanente,
atenta à ética universal e aos valores sociais vigentes, harmonizando atividades,
buscando conciliar interesses, mas sempre tendo como objetivo superior a pessoa
humana e sua dignidade.
140
Giovanni BERLINGUER, op. cit., pág. 20
126
DIREITO, SAÚDE MENTAL E REFORMA
PSIQUIÁTRICA
(Augusto Cesar de Farias Costa)
Augusto Cesar de Farias Costa
Médico-Psiquiatra, Psicoterapeuta
Coordenador do Programa de Saúde Mental – NESP/CEAM/UnB
ÍNDICE
I. Introdução. II. Evolução do conceito de doença mental. III. Políticas de
saúde mental no Brasil – A psiquiatria brasileira (Da assistência leiga à
psiquiatria médica – Dos asilos aos hospícios). IV. Reforma Sanitária, SUS e
Reforma Psiquiátrica. V. Reforma Psiquiátrica e Reforma da Assistência
Psiquiátrica. VI. A Reforma Psiquiátrica e a Saúde Mental. VII. As
Conferências Nacionais de Saúde Mental. VIII. Os Serviços Substitutivos ao
Hospital Psiquiátrico. IX. Reforma Psiquiátrica: percurso políticoinstitucional. X. A relação entre a psiquiatria, o Estado e a Sociedade. XI.
Imputabilidade e periculosidade. XII. Capacidade civil dos doentes mentais.
XIII. A Reforma Psiquiátrica e a Lei 10.216, de 6 de abril de 2001 – o papel
do Ministério Público. XIV. Bibliografia. XV. Anexos.
I – Introdução
O modelo assistencial psiquiátrico difundido pelo mundo, desde o final
da década de 1940 vem recebendo rigorosas críticas em função do seu anacronismo e
improdutividade. Concomitantemente, o crescente clamor social causado pelas
recorrentes denúncias de violência e outras variadas formas de desrespeito aos Direitos
Humanos, vem gerando uma consciência crescente acerca da importância de se lutar
pela preservação do direito à singularidade, à subjetividade e à diferença.
Nesta perspectiva e na elaboração de ações abrangentes voltadas para a
garantia a esses direitos, o hospital psiquiátrico tornou-se um emblema da exclusão e
seqüestro da cidadania e, até mesmo, da vida dos padecentes de transtornos mentais ao
longo dos últimos duzentos anos.
O percurso cartesiano-positivista que fomentou o falso antagonismo entre
a Ciência e a Tradição e a superespecialização está em fase de esgotamento. A cada dia,
maior é a necessidade de superação do modelo multidisciplinar em direção a
interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade.
Nesta perspectiva vemos a emergência da Saúde Mental como uma
interdisciplina integradora de saberes relativos à condição humana que se fragmentaram
ao longo dos últimos dois séculos. Especialmente no caso da loucura, a compreensão da
alma humana foi empanada por uma concepção que, a partir de representações mentais
apriorísticas, impregnou nosso imaginário, terminando por nos distanciar até de nós
mesmos.
Este módulo de Saúde Mental no Curso de Especialização em Direito
Sanitário para Membros do Ministério Público não é um estudo de Direito Civil, de
Direito Penal, de Psiquiatria Clínica e muito menos de Psiquiatria Forense. Contudo,
mais que simplesmente repassar preocupações, informações e conhecimentos existentes
127
na interface entre esses campos de conhecimento, pretende fomentar reflexões que
promovam a mudança do olhar sobre o louco e dessa maneira fortalecer a atitude dos
agentes de transformação social oriundos do campo jurídico que o freqüentarem.
II – Evolução do conceito de doença mental
“Lugar de louco é no hospício”
(dito popular)
A humanidade vem pautando a orientação do seu desenvolvimento a
partir do domínio e controle daquilo que lhe é desconhecido, intrigante e ameaçador. A
história da relação do ser humano com a loucura é, desde os primórdios da civilização, a
história da tolerância para com a diferença entre as pessoas. Dessa maneira, as
sociedades ditas mais primitivas consideravam os indivíduos que apresentavam
transtornos mentais como emissários da divindade e assim portadores de poderes
sobrenaturais. A inserção da sua diferença numa perspectiva religiosa proporcionava ao
louco um lugar contextualizado dentro da comunidade, fazendo com que a sua
singularidade, ao invés de ser excluída, fosse assimilada como uma contribuição e não
como uma subtração ao bem-estar comum. Assim, já na antiga Mesopotâmia, no Egito
antigo, entre os hebreus e os persas e até no extremo Oriente, a loucura era entendida
como uma condição especial que conferia ao indivíduo que a apresentasse uma feição
próxima ao divino.
A trajetória da intolerância para com os loucos, os mais frágeis e as
mulheres tem na Idade Média o seu marco referencial. A queda do poder dos senhores
feudais pelo fortalecimento do poder centralizador dos monarcas aliado ao ascendente
poder da burguesia, a descoberta da pólvora, a invenção da imprensa, proporcionando a
auto-educação, o acesso aos conhecimentos e o fluir das informações, as epidemias de
peste, que ceifaram a vida de cinqüenta por cento da população da Europa, tudo isso
agregado à crise dentro da Igreja Católica, após a frustrada tentativa de inibição da
sexualidade de monges e freiras pelo celibato compulsório, enfim, todo esse
emaranhado de tensões, desaguou num descontentamento político e religioso que, além
de levar à Reforma Protestante e à Renascença, passou a ameaçar o sistema de poder
vigente. No seio do ‗consórcio‘ formado pela Igreja Católica, pelos monarcas e pelos
senhores feudais originou-se a necessidade de criar um bode expiatório que pudesse
justificar e neutralizar toda aquela onda contestatória, uma Contra-Reforma.
Nesse contexto foi convocado o Concílio de Trento que, além de manter
os dogmas católicos e rejeitar todas as idéias protestantes, tratou de encaminhar
reformas no interior da Igreja mediante ações que disciplinaram o clero, fomentaram a
criação de mais Seminários para aprimoramento da doutrina católica dentro de um
código moral e religioso mais rígido e promoveram o enfrentamento com as heresias
determinando a elaboração do ‗Index‘ (lista de livros proibidos aos católicos), a
restauração dos Tribunais do Santo Ofício e a fundação da Companhia de Jesus, os
jesuítas.
Essa organização com o lema "Lutar por Deus e pela cruz", rapidamente
se transformou no principal instrumento de controle ideológico da Igreja Católica, à
época. Foi concebida por um grupo extremamente místico da Universidade de Paris que,
organizado em uma disciplina militar e sob a liderança de Ignácio de Loyola,
128
monopolizaram o ensino das elites e trataram de difundir a fé católica (catequese) em
todos os lugares onde a expansão colonial européia chegasse.
Configurado o palco e sob a referência misógina de que ―A mulher é um
templo construìdo sobre uma cloaca‖ e por fomentar paixões nos homens "devia ser
transmissora do demônio", instalou-se na humanidade, por meio do obscurantismo e da
ameaça, uma era de trevas. O emblema maior desse período ficou referido ao livro
Maleus Maleficarum (Martelo das Feiticeiras) escrito em 1485 por dois monges
dominicanos alemães Johann Sprenger e Heinrich Kraemer, e consagrado como a Bíblia
da Santa Inquisição.
Este verdadeiro "Manual da Inquisição" – com a característica de que, se
fosse lido e não entendido ou ao menos criticado, era prova de possessão demoníaca –
foi aprovado pelo papa Inocêncio VIII, em seguida pelo rei de Roma Maximiliano I em
1486 e, finalmente, em 1487, pela faculdade de Teologia da Universidade de Colônia.
Ou seja, ao ser assumido publicamente pela Igreja, Monarquia e Universidade, estava
assim configurada e legitimada "com a benção de Deus" a reação dos detentores do
poder frente àquela ingovernabilidade.
Nesse cenário, homens e mulheres, crianças, adolescentes, adultos e
idosos, pessoas com limitações físicas, perturbados ou somente hereges e contestadores,
perseguidos por uma população manipulada pela ignorância e tomada pelo medo,
torturados nos porões dos Tribunais da Inquisição, com pouco ou nenhum controle
quanto as suas subjetividades, com suas fantasias sexuais explicitadas em atitudes,
sentimentos e verbalizações, reagindo com violência ou sucumbindo à perseguição da
qual eram alvo, dessa maneira sem condições de inserção numa atividade minimamente
produtiva e regular, constituíram-se no substrato ideal para o estabelecimento dos três
grandes eixos de preconceito, exclusão e intolerância por onde é vista a loucura até os
nossos dias:
 O LOUCO DITO INCAPAZ,
 O LOUCO DITO IRRESPONSÁVEL,
 O LOUCO DITO VIOLENTO.
Com a Renascença, o progresso que a humanidade conseguiu no campo
dos conhecimentos voltados aos valores herdados dos gregos (à época reabilitados) e ao
entendimento do mundo, da natureza e da condição humana de maneira realística e
menos vulnerável aos humores dos deuses, fez com que houvesse uma reação e um
enfrentamento com a magia. Contudo esta manteve-se forte como antes o fora. A
manutenção e o crescimento em práticas como a Astrologia e a Quiromancia, esta
levando a se construir um conhecimento da pessoa por aspectos da anatomia do seu
corpo, manteve acesa a noção da influência mágica na gênese dos males do corpo e da
alma humanas.
Contudo, no período seguinte, durante o século XVII que ficou
conhecido como a "Era da Razão e da Observação", o mundo presenciou o
enfrentamento entre os praticantes do raciocínio dedutivo, analítico e matemático e
aqueles perfilados com método empírico e indutivo. René Descartes em seu "Discurso
sobre o método‖ de 1637 e seu enunciado "cogito ergo sunt" (penso logo existo) lançou
as bases do moderno racionalismo e forneceu a tônica do encaminhamento para a
compreensão do mundo e para a abordagem da natureza, da vida e do homem que ainda
hoje prevalecem. Para ele, a razão teria uma tal força e importância, que, por intermédio
dela, o conhecimento poderia controlar a natureza. Foram dessa forma semeadas idéias
que, ao se enfrentarem com o pensamento oriundo da Tradição, foram potencializadas e
129
tornaram possível, no período seguinte, a emergência dos postulados fundamentadores
do Iluminismo, segundo o qual a crença na razão substituiria a tradição e a fé.
Durante esse período, na busca da expansão dos conhecimentos, período
este notável pelos avanços em praticamente todos os campos da atividade humana,
foram promovidas as grandes classificações. A Química foi sistematizada for Antoine
Lavoisier e Carolus Linnaeus, ao escrever o Systema Naturae e classificar as plantas e
as espécies animais, colocou o homem na ordem Primatae, batizando-o com o título de
Homo Sapiens. Seguindo essa tendência, na França do final do Século XVIII, no
período que logo se seguiu à Revolução, um médico chamado Philippe Pinel foi
incumbido pela Assembléia Francesa de realizar um ordenamento em dois locais onde
se misturavam excluídos de toda ordem.
Chegando em Bicêtre (1793) e Salpêtrière (1795), desacorrentando e
alimentando os internos, Pinel passou a discriminar os casos eminentemente sociais dos
casos que julgava anomalias. Tratou de observar e descrever os tipos humanos que se
lhe apresentavam, estabelecendo assim uma sistematização de fácil manejo onde
figurava a seguinte classificação:
1234-
Melancolias;
Manias Sem Delírio;
Manias Com Delírio;
Demências.
Essa ordem fundada por Pinel representou o marco inaugural do
surgimento da Medicina Mental ou Psiquiatria, que transformou a diferença humana em
patologia. Dessa maneira, a repercussão dessa apropriação da loucura pela ciência fez
do louco um "doente" e da loucura uma doença a ser "tratada", no caso, com
ocultamento e exclusão, com vistas a uma "cura". Além disso, baseado na compreensão
de que a loucura era proveniente de uma lesão no cérebro e sob a influência do
Iluminismo, que pregava o zelo pela reforma social e elevação moral, considerou que as
manifestações da loucura eram provenientes de um caráter mal formado e desenvolvido.
O demônio criado pela ―Contra-Reforma‖ finalmente saiu do corpo
humano e a loucura tornou-se algo entendido como uma ―doença‖ e assim passìvel de
obter ―tratamento e cura‖. Partindo dessas referências, Pinel cria o Tratamento Moral,
primeiro método terapêutico para a loucura na modernidade, baseado em
confinamentos, sangrias e purgativos e, finalmente, consagra o hospital psiquiátrico,
hospício ou manicômio como o lugar social dos loucos.
Ao longo do século XIX, a busca de explicações para a loucura por meio
de pesquisas baseadas em circulação sangüínea e dissecação de cérebros tomou conta da
recém-nascida Psiquiatria. Esta, habitando um terreno formado na interface entre as
Ciências Naturais e as Ciências Humanas, buscava e ainda busca encontrar uma razão
biológica para o fenômeno da loucura, como uma forma de tornar mais consistente e
convincente sua inserção no campo das Ciências Naturais, no caso, a Medicina.
Consubstanciando essas idéias, Durkheim ao definir a loucura como ―anomia social‖
fornece substância e consistência teórico-ideológica, fortalecendo a perspectiva que
passou a ser utilizada pela Sociologia positivista quanto às doenças mentais e pela
Psiquiatria, especialmente a norte-americana.
A exclusão e os maus tratos fomentados pelo hospital pineliano com sua
rigorosa administração e, da mesma forma, a exposição pública das sofridas condições
de vida dos internados nas instituições psiquiátricas, já à época, gerou
concomitantemente pesadas críticas pelos defensores de formas não-violentas no trato
130
com os loucos. Dessa maneira, no final do mesmo século XIX, começaram a ser criados
espaços fora das grandes cidades onde, em grandes fazendas nas zonas rurais, os loucos,
―anomistas sociais‖, continuando ocultos e excluìdos, pudessem circular com mais
―liberdade‖ podendo ser ―tratados e recuperados‖ mediante o artesanato e o trabalho
agro-pastoril.
A crescente contestação do hospital pineliano, além de levar a criação de
novos espaços fora dos limites das cidades, onde o internado dispusesse de melhores
condições de habitabilidade, também deu origem à busca de outras concepções que
pudessem trazer maior clareza sobre a natureza humana e sua subjetividade.
Uma nova proposição, que dizia existir uma outra dimensão
(inconsciente) na condição humana, começou a se manifestar. Sigmund Freud, médico
austríaco, iniciou a formulação da Psicanálise, estabelecendo em relação às ciências
biológicas uma polaridade que se mantém e se intensificou a partir de alguns dos seus
seguidores e praticantes até os dias de hoje. Contudo, apesar de sua genialidade, Freud
não conseguiu romper com a referência mecanicista de seu tempo, pois construiu um
sistema de compreensão entendido com um ―aparelho‖ mental composto por id, ego e
superego.
Apesar da importante contribuição ao pensamento humano e à
compreensão da loucura desenvolvida por Freud e pelos que o sucederam no percurso
da Psicanálise, o hospital psiquiátrico permanecia como locus social dos loucos e dos
seus padecimentos. A exclusão e a submissão às regras do ainda presente hospício
pineliano eram, por conseguinte, na prática, o único método ―terapêutico‖ praticado.
Partindo dessas críticas e das contribuições provenientes de outros
referenciais teóricos que não a Biologia, mas especialmente o Marxismo e a Psicanálise,
a partir dos quais a subjetividade e a relação capital-trabalho passaram a ser
consideradas como relevantes no surgimento e manutenção de quadros de alteração do
comportamento, ao longo do século XX buscou-se alterar essa realidade mediante o
desenvolvimento de outras formulações e modelos que passaram a tentar promover,
basicamente, um maior grau de interação e democracia nas relações existentes entre os
profissionais e internados no interior da instituição psiquiátrica. As experiências
propostas mais significativas foram:

A COMUNIDADE TERAPÊUTICA
T.H.Main-Bion-Reichman - Monthfield Hospital - Birmingham (1946)
Maxwell Jones - Inglaterra 1959

A ANÁLISE INSTITUCIONAL
François Tosquelles Hospital Saint-Alban - França (1940) DaumezonKoechlin (1952)

A PSIQUIATRIA DE SETOR
Bonnafé - França (1960)

A PSIQUIATRIA COMUNITÁRIA
J.F.Kennedy - Gerald Caplan EUA (1963)

A ANTIPSIQUIATRIA
Ronald Laing-David Cooper-Thomas Szasz-Alan Watts Inglaterra / EUA
(1966)
131

A PSIQUIATRIA DEMOCRÁTICA (REFORMA PSIQUIÁTRICA)
Franco Basaglia - Itália (1969)
De todos esses modelos implementados ao longo do século XX, apenas
no último é que, de fato, se efetivou a ruptura com o hospital psiquiátrico. O psiquiatra
italiano Franco Basaglia, nos hospícios das cidades de Gorízia e depois Trieste, no norte
da Itália, conseguiu superar o modelo asilar/carcerário herdado dos séculos anteriores e
substituí-lo por uma rede diversificada de Serviços de Atenção Diária em Saúde Mental
de Base Territorial e Comunitária. Finalmente o futuro tornou-se presente e o hospício
pineliano passou a ser uma página virada da História.
III – Políticas de saúde mental no Brasil: a psiquiatria brasileira – da
assistência leiga à psiquiatria médica
Podemos caracterizar a sociedade brasileira no tempo do Império como
não muito diferente da fase Colonial. A parte superior do edifício social era constituída
por nobres e proprietários rurais – na maioria das vezes as duas coisas – seguida por
uma parcela de comerciantes, envolvida por uma multidão de seres humanos, que lhes
prestavam trabalho escravo e, entre esses, um sem-número de desocupados, bêbados,
mendigos, loucos e prostitutas, quando não tudo isso junto, que regularmente
perturbavam a ordem pública, trazendo desconforto à vida dos burgueses locais.
Data da segunda metade do século XIX, ainda durante o período
imperial, o início da assistência psiquiátrica pública em nosso país. Antes disso, a
assistência era exercida de forma leiga mediante instituições de caráter asilar
pertencentes à Igreja Católica onde piedosamente freiras tentavam prestar assistência
aos internados desvalidos.
Neste ponto, nos deparamos mais uma vez com a reprodução da linha
divisória de natureza econômica e social, onde os tidos como loucos oriundos da classe
economicamente dominante eram retidos e vigiados por suas próprias famílias em suas
residências. As pessoas que enlouqueciam e eram provenientes das camadas sociais
desfavorecidas eram recolhidas aos asilos, onde padeciam toda sorte de dissabores e
maus-tratos. Ficavam presas por correntes em porões imundos passando frio e fome,
convivendo com insetos e roedores, dormindo na pedra nua sobre dejetos, sem nenhuma
esperança de liberdade.
Não muito diferente dos tempos atuais, a sociedade via no louco uma
ameaça à segurança pública e a maneira de lidar com os próprios era o recolhimento aos
asilos. Essa atitude dirigida aos loucos, autorizada e legitimada pelo Estado por meio de
textos legais editados pelo Imperador, vale salientar, tinha o objetivo de, mediante a
reclusão, oferecer proteção à sociedade contra aqueles e não de acolhê-los, protegê-los e
muito menos tratá-los.
A crescente pressão da população para o recolhimento dos alienados
―inoportunos‖ a um lugar de isolamento e o questionamento de alguns médicos e
intelectuais frente as condições sub-humanas das instituições asilares fez com que o
Estado Imperial determinasse a construção de um lugar específico com o objetivo de
tratá-los.
A chegada da Psiquiatria com uma ―nova ordem‖ na divisão e
administração do espaço asilar, dando-lhe uma conotação ―cientìfica‖, tem como marco
132
histórico referencial para o início da assistência psiquiátrica pública brasileira a criação
do Hospício Pedro II, inaugurado em 05/12/1852, pelo próprio Imperador D. Pedro II,
quando da declaração de sua maioridade, seguida de coroação, na cidade do Rio de
Janeiro. De forma gradativa, este modelo assistencial se desenvolveu e se ampliou em
todo o território nacional, consolidando e reproduzindo no solo brasileiro o hospital
psiquiátrico europeu como o espaço socialmente possível para a loucura.
Com a proclamação da República pelo Marechal Deodoro da Fonseca em
15/11/1889, houve um desatrelamento entre a Igreja e o Estado. A administração dos
hospícios começou a ser então responsabilidade dos médicos, passando estes à categoria
de representantes oficiais do poder estatal. Estes médicos, além de se alinharem com o
Estado na proteção da ordem pública, também buscavam apropriar-se de espaços onde
pudessem assistir aos internados e desenvolver pesquisas, conforme o processo iniciado
com a criação da primeira cadeira de Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro por meio do Decreto nº.8.024, de 12 de março de 1881. Essa cadeira foi
ocupada interinamente pelo professor Nuno de Andrade e, em 1883, após concurso
público, o Dr. Teixeira Brandão tomou posse, tornando-se o primeiro professor titular
de Psiquiatria do Brasil.
Com a abolição da escravatura e a imigração de grupos étnicos e sociais
que vieram solidificar o modelo econômico agrícola com foco nas exportações
preconizado por Campos Sales no início da Primeira República, as cidades começaram
a crescer em tamanho e complexidade, fazendo com que, no caso da assistência
psiquiátrica, o poder público precisasse fortalecer o aparelho de contenção social.
Em função da busca de mão-de-obra, a recuperação dos excluídos era
necessária. Da mesma forma e paradoxalmente, um corpo de conhecimentos que
legitimasse o ―trancafiamento terapêutico‖ de trabalhadores também era imperativo.
Dessa forma, também em nosso país, legitimada pelo Estado, pela Universidade e pelo
hospital de alienados, a Psiquiatria consolidou-se como o único saber frente a loucura,
agora já ―doença mental‖.
No terreno da Saúde Pública, coube a Oswaldo Cruz a tarefa de sanear a
Capital da República quanto às endemias, especialmente a Febre Amarela, e ao alienista
Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, a tarefa de ―sanear‖ a cidade com o recolhimento
dos loucos às fazendas nas sua cercanias (hospitais-colônia), onde além do ocultamento,
os internados, por meio do trabalho, se auto-sustentariam, descomprometendo já aí parte
dos gastos do Estado com os loucos. Além disso, atendia a necessidade do incipiente
capitalismo brasileiro pós-escravidão e da nova moral social burguesa, que enaltecia a
dedicação de todos ao trabalho e pregava que ―o trabalho dignifica o homem‖. Esta
formulação também contava com nítidos ingredientes racistas pois apregoava que o
trabalho faria com que a tradicional ―moleza‖ do brasileiro, pardo, fruto de uma mistura
étnica, que levava à indolência e à deterioração moral, pudesse ser ―brancalizada‖,
―tratada‖ e ―normalizada‖, revertendo a ìndole dessa população ―mal miscigenada‖.
A Liga Brasileira de Higiene Mental criada em 1923 na perspectiva da
melhoria da saúde mental do louco, propôs ações de higiene mental (humanização) no
interior dos hospitais psiquiátricos. Contudo, essa mesma Liga, baseada na Biologia e
apoiada no pensamento eugenista da psiquiatria organicista alemã, passou, em seguida,
a recomendar medidas de purificação da raça brasileira no sentido de poder criar um
indivìduo ―mentalmente sadio‖. Para isso, ele deveria ter o seguinte perfil: branco,
xenófobo, puritano, chauvinista, racista, e anti-liberal. Apoiada no racismo e abstraindo
o paradoxo entre o capital e o trabalho, fez com que a Psiquiatria se omitisse ante as
diferenças étnicas, culturais e sociais e responsabilizasse o campo biológico pela
133
exclusão dos inadaptados à produção. Assim essa Liga foi criada, com o estatuto de ser
o primeiro projeto de administração social da loucura em nosso país.
Apesar de frustrados os projetos de recuperação dos loucos por meio do
internamento nos hospitais-colônia – em face da impossibilidade de inserção social dos
seus egressos quando retornavam ao espaço urbano –, a Psiquiatria continuava se
fortalecendo por meio da fabricação de sua própria clientela. Apesar de ter surgido para
resolver o ―problema da doença mental‖ ela passa a fabricar mais e mais ―doentes‖,
demandando pela criação de mais instituições e ampliação das existentes.
Até a primeira metade do século XX, o crescimento da Psiquiatria
acontece no âmbito das instituições públicas e orientada para as pessoas pobres. A
primeira instituição psiquiátrica de caráter privado foi a Casa de Saúde Dr. Eiras,
fundada em 1860, no Rio de Janeiro. As Clínicas de natureza privada até então eram em
número pequeno e viviam fora do sistema público de assistência.
Com a criação do Ministério da Educação e Saúde pelo Presidente
Getúlio Vargas em 1930, e conseqüente à reforma promovida pelos Decretos
Legislativos 5.148-A de 10/01/27 e Decreto 17.805 de 23/05/27, passa, este Ministério,
a gerir a Assistência a Psicopatas do Distrito Federal, à época sediado no Rio de Janeiro,
em substituição a antiga Assistência a Alienados do Distrito Federal. Contudo, a
principal medida adotada por Vargas quanto aos ―doentes mentais‖ foi a edição do
Decreto 24.559 de 03/07/1934, que ―dispõe sobre a profilaxia mental, a assistência e
proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas, assim como a fiscalização dos serviços
psiquiátricos‖. Esse Decreto, especialmente em seus artigos 5º, 10, 21, 26 e 33,
promove os seguintes desdobramentos:




A ―doença mental‖ é caso de polìcia e de ordem pública;
A Psiquiatria passa a atuar como ―sociedade polìtica‖ (repressiva) e como
―sociedade civil‖ (criadora de ideologia), legando aos psiquiatras poderes
amplos sobre o ―doente mental‖ e mesmo o direito de questionar uma ordem
judicial;
O louco perde a cidadania;
As instituições psiquiátricas privadas aumentam a sua participação frente ao
Judiciário e um número maior de loucos oriundos de famílias abastadas
passa a ser detectado.
Desde a criação do Instituto de Psiquiatria ligado à Universidade do
Brasil, no Rio de Janeiro, mediante o Decreto-Lei nº. 591, de 03/08/1938, a Psiquiatria
brasileira passa a mudar sua orientação. Ao invés da formação dos profissionais
médicos continuar acontecendo no ambiente dos manicômios, esta passa a acontecer na
Academia, passando os hospitais psiquiátricos a ocupar o espaço destinado aos
experimentos científicos, incentivados pelos novos métodos terapêuticos desenvolvidos
por pesquisas realizados no exterior como: Psicocirurgia; Eletroconvulsoterapia;
Malarioterapia e Insulinoterapia, principalmente.
O Serviço Nacional de Doenças Mentais (S.N.D.M.) foi criado por meio
do Decreto-Lei nº. 3.171, de 02/04/1941, e regulamentado pelo Decreto-Lei nº. 7.055,
de 18/11/1941, abrangendo todo o território nacional. Seu primeiro Diretor, o Dr.
Adauto Botelho, adepto do modelo asilar da loucura, chegou a criar de forma tímida
―Ambulatórios de Higiene Mental e Serviços de Assistência a Psicopatas‖ em algumas
cidades brasileiras. Contudo, coube-lhe o papel de fomentar, até o final da década de
1950, a instalação e ampliação de hospitais-colônia Brasil afora, inclusive mediante
acordos com os Estados, autorizados pelo Decreto nº. 8.550, de 03/01/1946.
134
Em 1953 por intermédio da Lei nº. 1.920, de 25/07/1953, o mesmo
Vargas cria o Ministério da Saúde. Porém, apenas no final dos anos 50 é que setores da
Psiquiatria brasileira começam a divulgar os conceitos da Medicina Preventiva,
formulada e importada oficialmente dos Estados Unidos no início dos anos 60, passando
esta a posar como o discurso formal ―moderno‖ da Psiquiatria em nosso paìs. A partir
de então, passamos a conviver com modelo dissociado entre uma prática
asilar/carcerária e um discurso preventivista adotado governamentalmente.
Fora do Brasil, na década de 50, a Organização Mundial da Saúde
(OMS), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) criada após a II Guerra
Mundial com o objetivo de cuidar da saúde dos povos do mundo, passou a definir saúde
como ―bem-estar fìsico, mental e social‖. Baseada em estudos que revelaram o custo
excessivo da ―doença mental‖, recomendou o ―investimento em ações de saúde mental‖
e a adoção do termo ―saúde mental‖ ao invés de ―doença mental‖. Dessa forma, a
referência tradicional da saúde como abordagem curativa passou a integrar a concepção
―primária, secundária e terciária‖ da assistência, incorporando assim a assistência
psiquiátrica à Saúde Pública e constituindo-se na Psiquiatria Comunitária.
Convém ressaltar ainda que, no início da década de 1950, foi sintetizado
em laboratório o primeiro medicamento neuroléptico indicado para o tratamento da
psicose, a Clorpromazina. Em clima de euforia ante a anunciada ―cura‖ da loucura, foi
comercializada com o nome de Amplictil, apresentada na forma injetável e
comprimidos, inaugurando a era dos psicofármacos modernos.
Apesar da frustração por não conseguir ―curar a loucura‖, essa droga e
outras que a sucederam até hoje trouxeram uma modificação no ambiente manicomial
em função de viabilizar a supressão das correntes mediante a contenção de alguns
sintomas e a promoção de um certo controle dos surtos psicóticos. Mesmo assim, o uso
indiscriminado e massificado desses medicamentos, distanciado de outros
conhecimentos e objetivos relacionados à reinserção social, utilizados menos como
método terapêutico e mais como instrumento de silenciamento e controle, fez com que
logo fossem chamados de ―camisa de força quìmica‖ ou mais popularmente de ―sossega
leão‖.
No seio do ambiente preventivista onde a Psiquiatria sai dos manicômios
com o referencial da medicina preventiva e invade o espaço público, o ano de 1960 foi
consagrado como ―Ano Internacional da Saúde Mental‖. Durante os anos seguintes,
porém, a Psiquiatria preventiva americana, idealizando uma salvação além da
assistência psiquiátrica, para uma salvação da própria sociedade americana, padecia de
uma contradição em sua base conceitual, que decretou sua falência como modelo
assistencial. Seus formuladores, a partir de uma redução de conceitos entre doença
mental e distúrbio emocional, acreditavam na possibilidade de prevenir, ou detectar de
forma precoce, todas as doenças mentais pela identificação de pessoas potencialmente
―suscetìveis ao mal‖. Esses ―indivìduos suspeitos‖, por sua aparência e modo de vida,
poderiam ser identificados e compulsoriamente referenciados a um psiquiatra para
investigação diagnóstica por vontade de qualquer pessoa da comunidade.
Apesar dessa conotação policialesca, essa Psiquiatria rende-se à
existência do psiquismo na gênese da doença mental, busca conhecimentos em outros
campos fora do biomédico, e reconhece a existência de uma grave questão teórica em
seu interior.
De volta ao nosso país, os anos 60 foram de importância especial para a
compreensão do que passou a ser a assistência psiquiátrica brasileira no final do século
XX. Após o período de crise, que sucedeu o suicídio de Vargas, o país foi tomado por
uma vitalidade e euforia que ficaram como características da fase desenvolvimentista do
135
período Juscelino Kubitscheck, eram os ―anos dourados‖. Apesar disso, a população
internada nos manicômios brasileiros aumentava. Em 1950, eram 24.234, em 1955, foi a
34.550 e, em 1960, chegou a 49.173 pessoas. O quantitativo de hospitais psiquiátricos
no Brasil era nenhum em 1852, chegando a 54 públicos e 81 privados em 1961,
totalizando 135 unidades, contra acanhados 17 ambulatórios de Psiquiatria em todo o
território nacional, segundo dados do Ministério da Saúde.
A origem desse incremento pode estar associada a três fatos: aumento
populacional; a crônica má-distribuição da renda nacional e, talvez, o mais significativo,
o modelo preventivista e sua ―caça aos suspeitos‖.
Com as mudanças efetivadas na sociedade brasileira a partir do golpe
militar de 1964, a assistência à saúde foi caracterizada por uma política de privatização
maciça. Essa política, desde a unificação dos IAPs, criando o INPS em 1966, durante o
Governo Castelo Branco, foi implementada de forma mais efetiva no Governo Costa e
Silva e seguida pelos que o sucederam.
No campo da assistência psiquiátrica fomentou-se o surgimento das
―Clìnicas de Repouso‖, eufemismo dado aos hospitais psiquiátricos de então, acrescido
de métodos de busca e internamento de pessoas como, por exemplo, o realizado por
ambulâncias que, durante os anos 60-70, percorriam as cidades, especialmente após
clássicos de futebol, identificando indivìduos que portassem a ―carteira do INPS‖ e que
estivessem dormindo embriagados na via pública. Após a averiguação eram levados e
internados com o diagnóstico de ―Psicose alcoólica‖.
Vale salientar que só quem estava trabalhando e tinha a carteira
profissional assinada é que tinha direito ao INPS, ou seja, eram pessoas produtivas e
socialmente inseridas. Muitas dessas pessoas, que faleceram ou ainda habitam os
manicômios brasileiros iniciaram seu percurso manicomial legitimado pelo discurso
preventivista. Abasteceram e fizeram prosperar a recém-criada e rendosa indústria da
loucura, que fez do louco o seu artigo de comércio. Assim, além das representações de
irresponsabilidade, incapacidade e periculosidade, o louco adquiriu mais uma : l u c
r a t i v i d a d e.
Nos anos seguintes, a escalada do número de hospitais psiquiátricos e
leitos contratados infelizmente não parou por aí. Nesse período, chegamos em 1971 a 72
públicos e 269 privados com 80.000 leitos; em 1981, 73 públicos e 357 privados,
chegando a 100.000 leitos ao longo desta década, começando a diminuir o ritmo
somente a partir da redemocratização do país e início do processo de Reforma Sanitária
e Reforma Psiquiátrica, refluindo em 1991 para 54 públicos e 259 privados e 88.000
leitos, chegando em 1999 a 50 públicos e 210 privados e 68.000 leitos e em julho de
2001 a 66.000 leitos.
IV – Reforma Sanitária, SUS e Reforma Psiquiátrica
Durante a década de 1970, em continuidade ao processo políticoinstitucional iniciado com o golpe militar de 1964, o nosso país continuava imerso em
um regime de exceção, que impedia a vivência democrático em praticamente todos os
aspectos da vida nacional. No que tange especialmente ao campo da Saúde, o modelo
assistencial vigente à época, como não poderia deixar de ser, também era carregado de
contradições e injustiças. Essa situação fez com que os trabalhadores desse setor
iniciassem a elaboração e o encaminhamento de críticas à instituição e
136
concomitantemente, de forma sistemática, começassem a propor mudanças àquele
modelo.
Na história sanitária brasileira, esse Movimento representou uma
verdadeira revolução nas relações entre a Sociedade e o Estado, que passaram a se
realizar a partir de outros referenciais, buscando principalmente a democratização do
acesso à saúde. Esse processo, mais conhecido como Movimento da Reforma Sanitária,
juntamente com todo o movimento em prol da redemocratização do Brasil, resultou,
entre outros frutos, na formulação e construção do Sistema Único de Saúde - SUS.
Incluída no Capítulo da Seguridade Social, abrangendo o conjunto das
políticas de Previdência e Assistência Social e referenciada às definições de Saúde
como ―direito de todos‖ e ―dever do estado‖, o agrupamento em um corpo de doutrina e
a assimilação do SUS desde a Constituição Brasileira de 1988 vem ocorrendo de forma
gradativa. Os conceitos incluídos no texto constitucional e sua regulamentação mediante
as Leis Orgânicas 8.080/90 e 8.142/90 constituem suas bases legais e fixam Princípios e
Diretrizes para seu cumprimento.
Isso posto, temos que a constituição desse sistema é complexa e
interdependente, compreendendo as instituições públicas do Poder Executivo em seus
três níveis de Governo a saber: União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Essas
instâncias são ainda acrescidas, em uma relação complementar, por serviços oriundos da
comunidade, privados e filantrópicos, de alguma maneira e medida vinculados ao
Governo. Por fim, esta é a configuração do edifício institucional da Saúde conhecido
também como “Reforma Sanitária” ou “Municipalização da Saúde”.
Desta maneira, o entendimento do que vem a ser Municipalização não
poderá perder de perspectiva todo o percurso da Reforma Sanitária, sua pré-história,
instalação e efeitos na organização da sociedade e nos serviços, no sentido da
descentralização, com o Município passando a se responsabilizar por poderes e ações
outrora referenciados aos Estados e à União.
Ao figurar, o SUS, como uma doutrina inteligível que servisse ao estudo,
compreensão, crítica e implementação, foram desenvolvidos os seus Princípios e
Diretrizes que fazem parte de sua base conceitual-legal constitucionalmente firmada.

PRINCÍPIOS DO SUS :

SAÚDE COMO DIREITO
“a saúde é um direito fundamental do ser
humano, devendo o Estado prover as condições
indispensáveis ao seu pleno exercício, por meio de
políticas econômicas e sociais que visem a
redução de riscos de doenças e de outros agravos
e no estabelecimento de condições que assegurem
acesso universal e igualitário às ações e serviços
para a promoção, proteção e recuperação da
saúde individual e coletiva.”

UNIVERSALIDADE
“acesso garantido aos serviços de saúde
para toda população, em todos os níveis de
assistência, sem preconceitos ou privilégios de
qualquer espécie.” Garantia a todos os brasileiros,
137
com ou sem vínculo previdenciário ou beneficiário
de seguro privado de saúde.

EQÜIDADE
“igualdade na assistência à saúde, com
ações e serviços priorizados em função de
situações de risco e condições de vida e saúde de
determinados indivíduos e grupos de população.”
O Governo em qualquer nível de gestão cuidará de
prestar uma atenção igualitária para a pessoa e a
coletividade. O que deve determinar o tipo de
atendimento é a intensidade e a forma da doença
independentemente do extrato socio-econômicocultural a que pertença o indivíduo.

INTEGRALIDADE
“entendida como um conjunto articulado e
contínuo de ações e serviços preventivos e
curativos, individuais e coletivos, exigido para
cada caso, em todos os níveis de complexidade do
sistema.” Garantia de tratamento à pessoa dentro
de uma abordagem que não segmente ou dissocie,
fazendo interagir a promoção, a prevenção, a
assistência e a reinserção plena do indivíduo em
seu contexto.

RESOLUTIVIDADE
“eficiência na capacidade de resolução
das ações e serviços de saúde, através da
assistência integral resolutiva, contínua e de boa
qualidade à população adstrita, no domicílio e na
unidade de saúde, buscando identificar e intervir
sobre as causas e fatores de risco, aos quais essa
população está exposta.” Garantia de buscar
continuamente a interdisciplinaridade no sentido da
relação entre as várias formas de conhecimento
associadas à Saúde, a articulação entre as
categorias profissionais e a organização do
trabalho, promovendo cada vez mais o
aprimoramento do sistema na prestação da saúde às
pessoas e ao conjunto da sociedade.

INTERSETORIALIDADE
“desenvolvimento de ações integradas
entre os serviços de saúde e outros órgãos
públicos, com a finalidade de articular políticas e
programas de interesse para a saúde, cuja
execução envolva áreas não compreendidas no
âmbito do SUS, potencializando, assim, os
recursos financeiros, tecnológicos, materiais e
138
humanos disponíveis e evitando duplicidade de
meios para fins idênticos.” Garantia de buscar ir
além da segmentação dos Serviços de Saúde e
trabalhar em suas interfaces visando atingir uma
relação de intercomplementariedade entre os
mesmos.

HUMANIZAÇÃO DO ATENDIMENTO
“responsabilização mútua entre os
serviços de saúde e a comunidade e estreitamento
do vínculo entre as equipes de profissionais e a
população”. Garantir que o valor da vida é o
grande orientador das ações de saúde.

PARTICIPAÇÃO
“democratização do conhecimento do
processo
saúde/doença
e
dos
serviços,
estimulando a organização da comunidade para o
efetivo exercício do controle social, na gestão do
sistema”. Garantir aos cidadãos o acesso à
visibilidade e a participação no processo decisório.
 DIRETRIZES DO SUS

DESCENTRALIZAÇÃO
atribuição e exercício da política de saúde
de forma democrática, voltada para os níveis locais
do sistema, em geral o Município, com ações de
atenção integral definidas nas três esferas de
governo.

HIERARQUIZAÇÃO
definição de níveis de complexidade para a
atenção de acordo com a área de abrangência
geográfica e a rede de serviços de saúde, nos quais,
as ações básicas devem absorver a maior parte da
demanda e apenas os casos mais graves são
encaminhados para os serviços mais complexos e
ou hospitalares.

REGIONALIZAÇÃO
rede de unidades descentralizada e
hierarquizada deve estar bem distribuída
geograficamente para garantir o acesso da
população a todos os tipos de serviços.

FINANCIAMENTO
o SUS deve ser financiado com recursos do
orçamento da seguridade social da União, dos
139
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
além de outras fontes.

CONTROLE SOCIAL
é garantido à sociedade interagir com o
poder público, participar do estabelecimento das
políticas de saúde, discutir suas prioridades e
fiscalizar a execução dessas políticas e a utilização
dos recursos.
Como já foi visto, ao longo da última metade do século passado, vários
modelos assistenciais foram desenvolvidos, servindo, cada um deles, como um degrau
para o aperfeiçoamento de uma nova forma de compreender e lidar com o fenômeno da
loucura. Em nosso continente sul-americano, essa mudança vem se fazendo cada vez
mais premente e operante especialmente após a Declaração de Caracas, proclamada
em 14/11/1990, por ocasião da Sessão de Encerramento da “Conferência Regional
para a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica na América Latina no Contexto
dos Sistemas Locais de Saúde”, promovida pela OPAS/OMS/ONU, quando foi
reafirmada a tendência mundial no sentido de reorientar o modelo assistencial para esse
setor.
No Brasil, a partir da década de 1970, iniciou-se um questionamento,
inicialmente no seio dos trabalhadores na área da assistência psiquiátrica, mas logo
transformando-se em uma articulação, envolvendo usuários do sistema e seus
familiares, vários setores da sociedade civil organizada e a opinião pública,
configurando dessa maneira um verdadeiro movimento social.
Com o nome de Reforma Psiquiátrica, esse movimento vem
reivindicando uma profunda mudança no modelo, envolvendo as ciências, as técnicas e
a própria cultura vigente em relação ao louco e a loucura. Apesar disso, freqüentemente
esse sistema continua ocupando um significativo espaço na mídia, em função das
condições de indignidade e abusos à condição humana perpetradas nos hospitais
psiquiátricos que ainda fazem parte do cenário da assistência psiquiátrica em nosso país.
Ao longo desse percurso, o Governo brasileiro, tendo como principal
protagonista o Ministério da Saúde, mediante Portarias e Resoluções, vem formulando a
Política Nacional de Saúde Mental, tendo mais recentemente – com a sanção
presidencial à Lei nº. 10.216, em 06 de abril de 2001 – inaugurado uma nova
perspectiva no ordenamento jurídico do nosso país no que tange à pessoa acometida ou
portadora de Transtorno Mental.
Apesar do importante acervo de mudanças que vem se operando desde a
última década, com a redução de cerca de 37.000 mil leitos de internação psiquiátrica e
criação de aproximadamente 266 Serviços Substitutivos, o modelo tradicional ainda
prevalece. Constituindo, este grupo de morbidade, o 4º. maior nos gastos do SUS e
tendo consumido, no ano de 2001, aproximadamente R$470 milhões, apenas 10% do
total de recursos financeiros são dispendidos com os Serviços Substitutivos. O restante,
cerca de 90%, ainda destinam-se ao financiamento das internações.
Além disso, observa-se que a implantação dos novos Serviços
Substitutivos está ocorrendo de forma um tanto aleatória conforme a situação política
nos diversos locais mostre-se permeável às novas experiências existentes no novo
modelo. Essas experiências, embora diversificadas, são dessa maneira, freqüentemente
setoriais e isoladas, convivendo, às vezes, de forma ―muito ìntima‖, com as estruturas
tradicionais.
140
A oferta de novas formas de atenção para uma Saúde Mental articulada
com os demais Serviços e Programas de Saúde (Programa de Saúde da Família /
Programa de Agentes Comunitários de Saúde - PSF/PACS), com outros setores
públicos e especialmente com a própria comunidade, exige uma nova postura
profissional e gerencial dentro da administração da Saúde Pública brasileira que advirá
junto com a implantação integral do Sistema Único de Saúde.
Contudo, a criação dos novos serviços em Saúde Mental, implicada em
uma nova estrutura física e nova dinâmica de funcionamento, não pode ficar refém
exclusivamente da construção de novos prédios e instalações. Quanto maior for a
ocupação dos espaços comunitários já existentes onde o convívio social possa
espontaneamente acontecer, mais veloz e efetiva será a transformação cultural.
Isso não quer dizer, e muito pelo contrário, que se deva abrir mão da
realocação dos R$470 milhões já existentes para o financiamento dos Serviços
Substitutivos e que não se deva pugnar por uma ampliação dos investimentos não só em
área física e equipamentos mas, e muito mais, no fortalecimento do SUS, na formulação
de políticas públicas cada vez mais intersetoriais e abrangentes e na ampliação e
qualificação dos quadros de Recursos Humanos que são os grandes ―aparelhos‖ da
Reforma Psiquiátrica.
V – Reforma Psiquiátrica e Reforma da Assistência Psiquiátrica
ou, como já disse o pensador,
"eternas são só as mudanças"...
O processo conhecido como Reforma Psiquiátrica vai além de uma mera
―reforma da assistência psiquiátrica‖. Ao emitir uma Lei que "Dispõe sobre a proteção
e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo
assistencial em saúde mental", Governo e sociedade assumem o esgotamento do
modelo assistencial vigente.
As razões desse esgotamento já são por demais conhecidas. Contudo,
vale lembrar que por ser asilar, manicomial, institucionalizador, violento, desumano,
ineficaz, iatrogênico e caracterizado por uma prática assistencial balizada no
silenciamento dos sintomas e na repressão da expressão da subjetividade, esse modelo
não merece mais nenhuma chance.
Determinar a criação de um modelo assistencial que ao objetivar a
substituição do modelo atual por uma rede de Serviços Substitutivos ao hospital
psiquiátrico, aberta, inserida na comunidade e voltada para a reinserção psicossocial,
que além de superar o paradigma da assistência manicomial, recupere a dignidade do
usuário, constitui-se em um desafio eterno.
Está claro que isso representa o próprio caminhar da sociedade e que o
modelo ideal nunca será alcançado pois, da mesma forma como a sociedade se
transforma, as necessidades também vão se transformando e essa é a própria essência da
vida: o inusitado, o desconhecido e a coragem de desvendá-lo.
Neste sentido, o que dizer sobre os conhecimentos e sua transformações,
das Ciências e suas verdades rigidamente estabelecidas. Como tem sido exaustivo e
penoso o percurso do Direito se transformando para conseguir chegar aos direitos do
sujeito!? Quanto a Psiquiatria ainda precisará se transformar até poder considerar o
sujeito de direitos!?
141
Partindo do olhar epistemológico, não é possível consumar a Reforma
Psiquiátrica sem que certos conceitos e métodos, desenvolvidos no percurso secular da
Psiquiatria, sejam revistos. Por exemplo, o texto e a cura da loucura. Se a loucura é um
texto incompreensível, que sejam aprimorados os métodos existentes e desenvolvidos
novos instrumentos de leitura desse texto. O que costuma acontecer é a desvalorização
do conteúdo do sintoma frente a própria existência do sintoma. Quanto a cura da
loucura, o que a Psiquiatria faz de fato é cura ou ―normalização‖ da pessoa que
apresenta uma diferença?
Deixar a Psiquiatria à deriva seria como negar-lhe a oportunidade de
continuar existindo, nutrindo e nutrindo-se na coexistência com os outros saberes.
Engessá-la, tornando-a impermeável, não podendo coexistir com os saberes emanados
de uma sociedade com fome de liberdade e preocupada com seus direitos seria como
decretar-lhe a morte por inanição. Assim, inevitavelmente, ao contrário do pensamento
conservador de alguns setores dela, a Psiquiatria terá de se transformar ... se quiser
viver.
VI – A Reforma Psiquiátrica e a Saúde Mental
―A cidadania plena, consciente e a saúde mental são
condições estreitamente ligadas entre si e um déficit
em uma das duas implica um déficit na outra: um
indivíduo (ou um grupo) que não goze plenamente
da cidadania é um risco para a própria saúde mental,
assim como um indivíduo (ou um grupo) que não
goze plenamente de saúde mental está em perigo
com relação à sua plena cidadania social.
A estreita relação entre cidadania e saúde implica
que cada ação para a saúde (e para a doença) deve
ainda ser ação para a cidadania.‖ Benedetto
Saraceno, Diretor do Departamento de Saúde Mental
da OMS.
Concomitantemente ao processo da Reforma Sanitária e construção dos
SUS constatou-se ainda mais agudamente que o modelo asilar e carcerário, vigente na
assistência psiquiátrica, não apresentava efetividade quanto a prevenção, tratamento,
cura e muito menos, reabilitação e reinserção social para as pessoas acometidas por
transtornos mentais. Os instrumentos tradicionais da assistência, dada a natureza
cartesiano-positivista de sua formulação, da mesma forma, também mostravam-se
insuficientes para compreender os fenômenos emergentes de nossa efervescente e
mutante sociedade.
Além disso, a crescente luta em prol dos Direitos Humanos, concebendo
o louco como sujeito de direito, tornou imperiosa a necessidade de buscar um novo
locus social para a loucura e uma nova possibilidade de entendimento e manejo dos
comportamentos marcadamente paradoxais que passaram a imprimir uma nova
configuração à nossa sociedade.
Dessa maneira, a partir da organização, desde a década de 40, de um
novo campo de conhecimento em torno do estudo do comportamento humano,
recebendo contribuições da Saúde, Antropologia, Filosofia, Sociologia, Comunicação,
Direito, Pedagogia, Epistemologia e Disciplinas afins, a clássica referência biomédica
142
em relação à polarização loucura versus sanidade transcendeu. Desde então, essa nova
instância de saber epistemológico vem buscando realizar leituras e ações eficazes ante o
desafio de compreender e lidar com a singularidade e diversidade próprias da condição
humana. Esse novo espaço de saber segue ampliando-se e consolidando-se em um
conjunto interdisciplinar complexo: a Saúde Mental.
O campo da Saúde Mental compreende a relação dinâmica entre quatro
campos conhecidos e distintos entre si mas, neste contexto, coexistindo em relações
dinâmicas e identificadas em uma nova disposição inter e transdisciplinar, consistindo
de:
Política
Ética
Ciência
Ideologia
Estando então conceituada e configurada a relação entre esses saberes, o
resultado é que qualquer formulação que se coloque em referência à Saúde Mental não
poderá deixar de fora nenhum desses postulados. Qualquer procedimento de ordem
técnica deverá estar sob a ótica dessas referências e prestar contas quanto à sua
existência e aplicação. Por exemplo: a Eletroconvulsoterapia (ECT), mais conhecida por
―eletrochoque‖, consta no conjunto dos procedimentos médicos aceitos pelo Conselho
Federal de Medicina (CFM), ou seja, é um procedimento lícito. Porém, apesar de
discutido e justificado em inúmeras sessões técnico-científicas da Psiquiatria, essa
discussão restringiu-se exclusivamente ao campo da CIÊNCIA. O debate não se
ampliou para os outros campos como a indagação sobre qual a IDEOLOGIA que lhe
dá suporte, como este procedimento se instala no interior da relação POLÍTICA entre o
Estado, as instituições de saúde, os profissionais que o recomendam e aplicam e os
cidadãos que o recebem, em síntese, apesar de ser lícito e técnico, será contudo
ÉTICO?
A Reforma Psiquiátrica, entendida também como movimento social,
representa, desde o final da década de sessenta em várias partes do mundo, a construção
de uma mudança na cultura de exclusão existente no imaginário da sociedade e do
modelo assistencial asilar/carcerário para o tratamento da pessoa com um transtorno
mental.
A substituição do hospital psiquiátrico, entendido como uma instituição
total (Goffman), por uma rede de serviços diversificados, regionalizados e
hierarquizados orientada não exclusivamente para uma mera supressão de sintomas, e
sim para a efetiva recontextualização e reabilitação psicossocial do louco, resgata a
tolerância para com a diferença entre os humanos.
VII – As Conferências Nacionais de Saúde Mental
143
A partir da década de 1970, começam a ocorrer profundas
transformações no bojo da sociedade brasileira. Entre elas, o Brasil passa a ser palco de
inúmeras denúncias de desrespeito e violação dos Direitos Humanos dos pacientes
psiquiátricos que evoluiu para novas e incisivas proposições, em direção a um alvo
preciso: a instituição e a cultura manicomial. É contra este edifício teórico-prático,
consolidado ao longo dos dois últimos séculos e sustentado nos mitos correlatos à noção
de doença mental, cuja função histórica foi, e ainda é, a produção de espaços e formas
de segregação e exclusão, é que passaram a se dirigir, na perspectiva de sua
desconstrução, os novos esforços abrangendo as áreas social e institucional nos campos
técnico, político e jurídico.
Seguindo essa perspectiva, já na década de 1980 e dentro do processo de
redemocratização iniciado em 10 de junho de 1984 quando, a partir de uma dissidência
dentro do Partido do governo, à época o PDS, criando a Frente Liberal (depois Partido
da Frente Liberal – PFL) que, aliando-se ao PMDB, formou a Aliança Democrática,
possibilitando, dessa maneira, a vitória de Tancredo Neves na eleição indireta à
Presidência da República, foi convocada a “I Conferência Nacional de Saúde
Mental” (CNSM), que se realizou em 1987 na cidade do Rio de Janeiro. Ela aconteceu
no contexto e também se alimentou da doutrina e dos princípios da “VIII Conferência
Nacional de Saúde”, realizada em 1986, marco fundamental do Movimento da
Reforma Sanitária e da história da Saúde do Brasil representando o ponto de inflexão na
reorientação do modelo da atenção à saúde e, por conseguinte, da própria construção do
Sistema Único de Saúde (SUS).
Na I CNSM, explicitou-se qual a natureza da dificuldade existente no
modelo assistencial psiquiátrico vigente em nosso país. Ficou claro então que essa
dificuldade somente seria ultrapassada se houvesse o enfrentamento com as forças
mantenedoras daquela conjuntura nos campos cultural, técnico, político e ideológico e
que, além disso, seria necessária a transformação do modelo existente – baseado na
assistência hospitalar médico-psiquiátrica, potencialmente corrupto, reconhecidamente
oneroso, não resolutivo, institucionalizador e violento – em um modelo assistencial de
base territorial, comunitário e aberto.
Vale salientar que, já em 1989, com a apresentação do Projeto de Lei no
3657/89, do Deputado Paulo Delgado, foi iniciada a ofensiva no arcabouço legislativo,
pautando, pela primeira vez desde 1934, a necessidade de transformação do modelo e
regulamentação da assistência psiquiátrica em nosso país. Esse fato desencadeou a
discussão em praticamente todos os setores da sociedade brasileira e fez com que
proliferassem legislações estaduais e municipais com as mesmas diretrizes do projeto
original da Câmara Federal.
A “II Conferência Nacional de Saúde Mental” realizou-se em Brasília
em 1992 e caracterizou-se pela ampliação da mobilização dos diversos segmentos da
nossa sociedade mediante pré-conferências nos estados e municípios com uma
participação estimada em cerca de 20.000 pessoas. Também o fato de ter sido precedida
pelo “II Encontro Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental”, realizado em
Bauru(SP), em 1987, quando foram desenvolvidas formulações voltadas para os
princípios teóricos e éticos voltados para a Reforma Psiquiátrica, além da realização da
“Conferência Regional para a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica na América
Latina no Contexto dos Sistemas Locais de Saúde”, promovida pela Organização
Pan-americana da Saúde da Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) em 1990, de
onde emanou a “Declaração de Caracas”, proclamada em 14/11/90, conferiram um
sólido balizamento fomentador das iniciativas de transformação da atenção médicopsiquiátrica na direção da Saúde Mental. Da mesma forma, a “IX Conferência
144
Nacional de Saúde”, ao reafirmar a construção do SUS como alternativa de atenção à
saúde com suas diretrizes fincadas em seus Princípios Doutrinários e Organizacionais,
colocando o município como local estratégico na democratização do Estado e das
políticas sociais, proporcionaram um substrato ainda mais consistente às discussões da
II CNSM.
De forma associada, a implementação do SUS fez ver uma nova
configuração no modelo de atenção à saúde. Já por ocasião da II CNSM, iniciativas
importantes da Coordenação de Saúde Mental no âmbito do Ministério da Saúde
(Portarias 189/91; 224/92; 407/92) foram potencializadas pelo suporte recebido da
existência concreta de diversas políticas públicas em vários municípios brasileiros
referenciadas ao Projeto de Lei do Deputado Paulo Delgado, em tramitação no Senado
Federal e comprometidas com a transformação do modelo assistencial e a afirmação dos
direitos de cidadania e com a riqueza da participação efetiva de usuários e familiares,
configurando a existência de uma política nacional indicativa do processo de mudança
em curso já à época.
Em síntese, a II CNSM representou um marco significativo na história
recente da política de Saúde Mental, na qual se pôde aprofundar tanto as críticas ao
modelo hegemônico, quanto formalizar o esboço de um novo modelo assistencial,
significativamente diverso, seja no que diz respeito às lógicas, conceitos e valores que
deveriam reger a estruturação da rede de atenção assim como da forma de lidar com as
pessoas com a experiência dos transtornos mentais, a partir de seus direitos de cidadão.
As discussões então realizadas legitimaram as medidas e os processos ora
em curso naquele período, apontaram as novas iniciativas e as recomendações de
afirmação, garantia e construção dos direitos de cidadania das pessoas com transtornos
mentais e de transformação do modelo assistencial, sendo assumidas como as duas
diretrizes principais para o processo da Reforma Psiquiátrica. Nos anos que se seguiram,
foram promovidas diversas ações de importância e amplitude significativas, cabendo
citar especialmente:
 o desenvolvimento de inúmeras experiências municipais de implementação de
novos modelos de atenção em saúde mental comprometidos com as diretrizes da
reforma;
 a criação de novas modalidades assistenciais, dispositivos e ações, como CAPS,
NAPS, CAIS-Mental, CERSAM, Oficinas Terapêuticas, Hospitais-dia, Serviços
Residenciais Terapêuticos (moradias assistidas), Centros de Convivência;
 a inclusão da Saúde Mental na Atenção Básica, Programa de Saúde da Família
(PSF);
 Projetos de Inserção no Trabalho e Cooperativas, Projetos de Intervenção
Cultural, atenção domiciliar, ações comunitárias e territoriais que forjaram
práticas inovadoras, como novas formas de cuidado da complexidade do
sofrimento, a transformação da relação com os usuários e os familiares, a criação
de novos processos de trabalho no cotidiano dos serviços, a inserção no
território, a criação e potencialização de redes sociais e de suporte, o
desenvolvimento de múltiplos projetos de inserção no trabalho, acesso aos
direitos e de participação na vida pública;
 a publicação de portarias ministeriais com o objetivo de reorientação do modelo
assistencial através da inclusão de modalidades assistenciais substitutivas ao
hospital psiquiátrico na tabela de financiamento;
 os processos de vistorias, fiscalização e recredenciamento dos hospitais
psiquiátricos;
145

a criação de várias Associações de usuários, familiares e profissionais que
desenvolvem uma multiplicidade de projetos e têm propiciado novas formas de
participação e inserção social;
 a criação das Comissões nacional e estaduais de Reforma Psiquiátrica e de
Saúde Mental vinculadas às instâncias de Controle Social do SUS;
 a aprovação de Leis Estaduais e Municipais orientadas pelas diretrizes da
Reforma;
 a aprovação da Lei Nº. 9.867 (criação das Cooperativas Sociais).
Em continuidade, a convocação da III CNSM, de 11 a 15 de dezembro
de 2001, em Brasília, trouxe a possibilidade de avaliar os desafios e dificuldades atuais
do processo de Reforma Psiquiátrica no país além de validar as conquistas realizadas.
Assim, a III Conferência nasceu com a responsabilidade de mais que ser um campo de
discussão, ser um canteiro para o plantio de estratégias que façam germinar, florescer e
disseminar ainda mais vigorosamente o processo em andamento.
Tendo como tema central “A Reorientação do Modelo Assistencial”,
foram selecionados os seguintes sub-temas: Recursos Humanos; Financiamento;
Controle Social e Direitos, Acesso e Cidadania. Na perspectiva de tornar o debate
amplo e de caráter nacional, foram convocadas Conferências de Saúde Mental nos
Estados e Municípios de todas as regiões brasileiras. Visando, então, garantir a unidade
da discussão dentro dos temas propostos, as Conferências foram acompanhadas pela
área técnica da Saúde Mental do Ministério da Saúde, mediante representantes que,
articulados com as Coordenações de Saúde Mental desses locais, buscaram colocar o
debate principal em torno do já referido eixo temático e seus subtemas.
Observando o desenrolar da Reforma Psiquiátrica brasileira nos últimos
anos fica evidente que, apesar de ainda incompletas quanto a consolidação das
transformações já realizadas, as resoluções advindas desses eventos são pujantes e ainda
mantém as características norteadoras dos rumos a serem empreendidos.
VIII – Os serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico
O reordenamento da atenção às pessoas portadoras ou acometidas por um
transtorno mental que, a nível institucional, se convencionou denominar Reforma
Psiquiátrica brasileira, guarda com o Movimento Social, representado pelo Movimento
Nacional da Luta Antimanicomial, a sua relação mais vigorosa. Esse enorme
contingente de usuários, trabalhadores, familiares, aliados e simpatizantes vêm
garantindo, dia após dia, a continuidade do processo de transformação e concretamente
demonstram que as referências de irresponsabilidade, incapacidade e violência em
relação ao louco e seus sucedâneos de violência, exclusão e negação podem ser
superadas.
O principal objetivo desse rol de proposições consiste em estabelecer um
novo referencial social para a loucura. Esse caminho está sendo trilhado mediante um
conjunto de iniciativas que, permeando os procedimentos da clínica, também se insiram
nas iniciativas de suporte social, na formação dos profissionais e nas várias legislações
que regem a sociedade brasileira.
A reabilitação psicossocial das pessoas que apresentam transtornos
mentais, vem sendo desenvolvida na perspectiva da ética e do respeito às suas
diferenças. Ao buscar sua recontextualização ao invés de silenciá-las, garantir suas
singularidades e direitos, promover a participação ativa no tratamento por parte dos
146
familiares e responsáveis, estimular o envolvimento e interatividade nas relações
pessoais, sociais e terapêuticas e construir uma clínica de atenção multiprofissional com
modelo interdisciplinar de funcionamento, a sociedade se transforma pelas mãos destes
atores mais eminentes.
No país inteiro, a Reforma Psiquiátrica vem sendo implementada a partir
da decisão política dos governantes, a capacidade técnica em formular novas formas de
compreender e lidar com a loucura por parte dos profissionais e a capacidade de
crescimento e articulação dos usuários e familiares.
Em face da complexidade dessa transformação e em função de sua
amplitude, ela está sendo implementada de forma progressiva mas irreversível num
crescente de iniciativas que orientam os novos serviços, constituídos principalmente
por:
 Serviços Territoriais de Atenção Diária em Saúde Mental, de base
comunitária (Centros e Núcleos de Atenção PsicossocialCAPS/NAPS);
 Oficinas Terapêuticas;
 Oficinas de Capacitação/Produção;
 Ambulatórios de Saúde Mental;
 Equipes de Saúde Mental em Hospitais Gerais;
 Moradias Terapêuticas;
 Centros de Convivência.
O funcionamento dessas modalidades assistenciais em rede, faz surgir em
nosso país um novo patamar de qualidade para os Serviços Públicos de Saúde na forma
de um modelo singular – em que não se deve ter unidades isoladas e sim, integradas e
fraternas, buscando garantir aos usuários e familiares, idosos, adultos e crianças, a
atenção para suas diversas necessidades, desde o adoecimento à reinserção social –, que
certamente servirá como referência de qualidade para outros países.
Essa rede diversificada de Serviços em Saúde Mental é disposta em uma
ordem que tem como referência o Serviço Territorial de Atenção Diária em Saúde
Mental, de base comunitária (Centros e Núcleos de Atenção Psicossocial-CAPS/NAPS).
A equipe de trabalho é multiprofissional, composta por profissionais de nível médio e
superior das áreas de Enfermagem, Medicina, Psicologia, Serviço Social e Terapia
Ocupacional, organizada para funcionar de forma interdisciplinar, trabalhando com
usuários e familiares desses serviços, visando a reinserção psicossocial mediante ações
de promoção, prevenção e assistência no campo da Saúde Mental.
IX – Reforma Psiquiátrica: percurso político-institucional
Desde meados da década de 1980, as discussões sobre direitos humanos,
participação e cidadania, reprimidas durante o período da ditadura militar, avolumaramse, chegando a um nível de articulação que permitiu a Reforma Psiquiátrica de SantosSP, e, em 1987, a criação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Este
movimento, ampliando-se a cada ano, passou a apoiar a iniciativa do Deputado Federal
Paulo Delgado (PT-MG), que, em 1989, apresentou um Projeto de Lei à Câmara dos
Deputados, sendo aprovado. Propunha, além da atualização da legislação vigente sobre
o assunto, datada de 1934, a reorientação da assistência com base nos princípios
modernos da desinstitucionalização e reinserção social.
147
Após obter aprovação na Câmara dos Deputados (1989), o Projeto de Lei
no 3657/89, do Deputado Paulo Delgado, que dispunha sobre a ―extinção progressiva
dos manicômios brasileiros e sua substituição por outros recursos assistenciais‖,
passou quase 10 anos tramitando nas Comissões do Senado Federal. Recebeu emendas
do Senador Lúcio Alcântara (PSDB-CE), à época relator do assunto. Contudo seu
parecer foi preterido por um Substitutivo do Senador Lucídio Portela (PSDB-PI), que
fez a euforia dos empresários da loucura, donos dos manicômios brasileiros. O Projeto
permaneceu ainda na Comissão de Assuntos Sociais, sob a presidência do Senador
Ademir Andrade (PSB-PA), tendo como relator final o Senador Sebastião Rocha (PDTAP), que apresentou um outro Substitutivo, ainda recebendo contribuições de setores da
sociedade envolvidos com a questão.
O Substitutivo do Senado ao Projeto de Lei 3.657/89 do Deputado Paulo
Delgado, de volta ao plenário da Câmara Federal foi aprovado em 27/03/2001, por
unanimidade. O projeto, protegendo os direitos de cidadania dos portadores de
transtornos mentais contra as arbitrariedades das internações involuntárias seguiu enfim
para sanção presidencial. Foi suprimido, contra o voto do deputado Damião Feliciano
(PMDB-PB), o artigo 4º do substitutivo, que admitia a possibilidade de o Poder Público
ainda destinar recursos para a construção de novos hospitais psiquiátricos, ou a
contratação de financiamentos com essa finalidade, em regiões onde não exista estrutura
assistencial adequada. Por intermédio de destaque da bancada do bloco PDT-PPS, foi
suprimido, por 298 votos contra 87, o parágrafo 1º do artigo 10, pelo qual o
Ministério Público, atendendo denúncia ou solicitação familiar ou de representante legal
do paciente, poderia designar equipe revisora multiprofissional de Saúde Mental,
incluindo um profissional médico, preferencialmente psiquiatra, a fim de determinar o
prosseguimento ou a cessação daquela internação involuntária. PT e PSB-PCdoB
votaram pela manutenção do parágrafo, enquanto PFL, PMDB, PPB e PDT-PPS
votaram pela supressão.
Como autor do projeto, o Deputado Paulo Delgado declarou que, com a
aprovação do substitutivo, os doentes mentais internados poderão libertar-se da ―zona
de sombra‖, em que vivem nos manicômios, já que passarão a contar com uma lei
nacional que os protegerá como cidadãos. Ainda, segundo ele, o atual modelo de
internação ―nasceu de dois preconceitos blindados que contaminaram a famìlia e a
sociedade: as idéias da periculosidade e da incapacidade civil permanente dos doentes
mentais, que serviram para alimentar os lucros da indústria da loucura‖. Acrescentou
que a internação e sedação permanentes ―matam os doentes mentais em vida‖.
O Conselho Federal de Psicologia, entidade das que mais trabalhou para
a aprovação da Lei, então representado por sua Presidente a Professora Ana Bock,
afirmou que este é o fim de uma luta de muitos anos. ―Foi uma vitória, pois a partir de
agora, será criada uma nova história sobre o tratamento da loucura no Brasil‖. O artigo
quarto foi considerado por ela como o mais grave, pois possibilitava a criação de novos
leitos nos hospitais psiquiátricos.
Ainda na sessão, falaram em defesa do Movimento Nacional da Luta
Antimanicomial e pela aprovação do projeto nos termos defendidos pelo Conselho
Federal de Psicologia os Deputados Paulo Delgado (PT/MG), Marcos Rolim (PT/RS),
Dr. Rosinha (PT/PR) e Jandira Feghali (PCdoB/RJ). Finalmente, em 06/04/2001, foi
sancionado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso a Lei nº. 10.216/01.
Como um Projeto que dispunha sobre a proteção, direitos e assistência às
pessoas portadoras de transtornos mentais, sofreu cerrado bombardeio de todas as
correntes ideologicamente conservadoras. Essas correntes, associadas ao poder
econômico dos poderosos proprietários dos hospícios privados brasileiros, aglutinados
148
sob a bandeira da Federação Brasileira de Hospitais, tentou transformar seu caráter de
inclusão, contemporaneidade e humanização e buscou manter no modelo assistencial a
mesma feição hospitalocêntrica. Porém, antes mesmo de ser aprovada a Lei Federal,
várias cidades e a maioria dos estados da Federação (PE; ES; RS; CE; RN; MG; PR; DF
e outros em tramitação), além de contarem com seus núcleos da Luta Antimanicomial,
já haviam aprovado suas legislações locais, guardando os mesmos princípios do Projeto
que estava em tramitação, numa demonstração patente da vontade popular e da
irreversibilidade do processo.
Não podemos também deixar de referir a atuação da Coordenação de
Saúde Mental do Ministério da Saúde que, de forma determinada ao longo deste
percurso, veio elaborando Portarias regulamentadoras dentro do Sistema Único de
Saúde (SUS), com normas técnicas, avaliação e controle voltadas para a gestão estadual
e municipal, além de realizar encaminhamentos políticos que possibilitaram, entre
outras coisas, a criação da Comissão Nacional de Reforma Psiquiátrica seguida pela
Comissão Nacional de Saúde Mental no âmbito do Conselho Nacional de Saúde do
Ministério da Saúde.
O norteamento da Reforma Psiquiátrica brasileira encontra-se voltado
para a busca diuturna da recontextualização dos portadores de Transtornos Mentais por
meio do asseguramento dos seus direitos e cidadania. Contudo, sabemos que a situação
adversa em que se encontram as populações excluídas do processo de desenvolvimento
econômico implementado desde a última década são fatores de vulnerabilização da
capacidade humana de resistir à insegurança provocada por esse estado de coisas.
Portanto, é fundamental o cuidado para que os desdobramentos desse
processo não sejam transformados em ―doenças‖. Que não sejam descolados da
realidade, transformados em novas categorias nosológicas e aplicados nas
Classificações Internacionais dos Transtornos Mentais. Que não ressurjam como
códigos de diagnóstico, à semelhança de outros aspectos da natureza humana que foram
patologizados, enquanto os verdadeiros fatores que geram tensão e desespero, como o
empobrecimento massivo das populações, as privações, a violência e o desamparo,
produzidos por um modelo de sociedade perverso, mantenham-se intocados.
X – A relação entre a Psiquiatria, o Estado e a Sociedade
Historicamente a relação entre a Psiquiatria, o Estado e a Sociedade foi
construída sobre bases fincadas no terreno do controle da Sociedade sobre o cidadão,
por intermédio do aparelho de repressão social do Estado. A Psiquiatria tem
participando como um dos instrumentos desse aparato, notadamente no que se refere ao
hospital psiquiátrico, ficando a prevalecer no imaginário popular essa dimensão sobre
qualquer outra que significasse acolher, proteger, cuidar e incluir o ―diferente‖ e sua
diferença, o ―louco‖ e sua loucura.
Os relatos acerca dessa relação, originários da literatura e de noticias
recorrentemente veiculadas em órgãos de Imprensa, dão conta que da mesma forma que
em Estados autoritários, mesmo na vigência de regimes de pleno direito, as internações
psiquiátricas por motivos econômicos, sociais políticos e ideológicos são constantes.
As internações por motivos sociais são as mais freqüentes. Neste
momento existem milhares de pessoas, em estado de abandono, residindo nos hospitais
psiquiátricos por motivos exclusivamente sociais. Este quadro foi gerado pelo próprio
149
modelo assistencial, secularmente dirigido e orientado técnica, política e
ideologicamente para o ocultamento e a exclusão.
Da mesma forma, são freqüentes as internações, em manicômios, de
pessoas idosas ou mesmo jovens, provenientes de famílias abastadas e de famílias
humildes, que passam por processos de interdição de sua capacidade civil, em função de
questões referentes a patrimônio, herança e benefícios sociais.
Ainda, na história recente do Brasil, são relatados casos de militantes de
movimentos de oposição ao regime militar que foram internados em hospitais
psiquiátricos durante anos, por enfrentarem o regime de exceção instalado no país após
o golpe de 1964. (Santos,Nelson:1994)
Vale contudo salientar que a Psiquiatria não teria o poder de sozinha –
apenas mediante o seu discurso científico – determinar, operar e legitimar o processo de
ocultamento e exclusão da loucura. Essa obra também foi confeccionada por mãos
provenientes das Ciências do Direito, senão vejamos:
Desde a Antigüidade, da Bíblia até as pesquisas e levantamentos
antropológicos das antigas Sociedades, temos que a loucura, tida muito mais como
diferença, contava com um tipo de inserção especial na vida comunitária. Assim, até a
vigência do Império Romano, as regras do seu estatuto legal não costumavam punir o
louco que cometesse algum ato delituoso.
Da Era Clássica até a Revolução Francesa, recolher os loucos infratores
às cadeias e asilos era prática freqüente e os motivos variavam desde o castigo até ao
asilamento pura e simples que, mesmo por motivos piedosos e humanitários, levou ao
que Foucault chamou de ―Grande Enclausuramento‖ ou seja, o ―Grande Ocultamento‖.
Assim, considerava-se o louco como responsável por suas atitudes se viessem a infringir
as regras vigentes. Dessa maneira, o Direito Penal Primitivo (Lyra,Roberto:1946) não
costumava discriminar os infratores que portavam dos não portadores de transtornos
mentais, mesmo porque, à época, ainda não havia se constituído o corpo de doutrina da
Medicina Mental, a Psiquiatria.
Durante o século XVII e até meados do século XVIII, o castigo era
infringido ao corpo da pessoa, em cruéis rituais públicos de humilhação e sofrimento
conhecidos como ―Teatro dos Horrores‖, não como uma forma de restabelecer a justiça
e sim como uma forma de reafirmação e fortalecimento do poder absoluto do monarca e
do Estado Real sobre o cidadão.
Os movimentos da burguesia, que necessitava acabar com o pensamento
teocêntrico medieval da Igreja Católica e impor sua concepção de mundo – centrada no
homem e voltada aos prazeres mundanos e ao luxo – já haviam prosperado mediante o
Renascimento Cultural durante os anos 1300 a 1500.
Neutralizado o poder dos senhores feudais mediante o fortalecimento do
poder dos reis, a construção dos Estados Nacionais ocorreu em conseqüência. Agora era
necessário superar os monarcas e seu absolutismo, oriundo de um certo ―Direito
Divino‖, inventado como forma de fornecer-lhes legitimação.
Partindo desse enfoque, começaram a circular na Europa as idéias
desenvolvidas por pensadores como Descartes, John Locke, Voltaire, Montesquieu, Isac
Newton, Jean-Jacques Rousseau, Adam Smith, Quesnay e Turgot, que consideravam a
razão – como única forma de alcançar o conhecimento e a sabedoria – e o
mecanicismo que afirmava ser o universo uma máquina regida por leis naturais,
descartando os milagres e a intervenção divina. Pregavam ainda o liberalismo político e
econômico, opondo-se frontalmente ao absolutismo, ao mercantilismo e à Igreja
Católica. Era chegada a Revolução Intelectual do século XVIII, o Iluminismo.
150
No caldo cultural dessa época, as idéias emergentes da obra de Cesare
Beccaria, ―Dei Delitti e Della Pena‖, de 1764, propondo que nobres e plebeus
igualitariamente respondessem sobre os seus atos; que a pena correspondesse à
gravidade do delito e que os Magistrados recorressem à Lei e não aos seus valores
pessoais quando da aplicação de uma pena, demarcam o surgimento do Direito Penal
Moderno. Em concomitância, no ambiente do ideário da Revolução Francesa
(Igualdade, Fraternidade e Liberdade) e da Declaração Universal dos Direitos do
Homem e do Cidadão, inaugurava-se o período Humanitário do Direto Penal
(Lyra,Roberto:1946), que perduraria até a segunda metade do século XIX.
O período Científico do Direito Penal (Lyra,Roberto:1946) tem início na
segunda metade do século XIX, ainda sob a inspiração da Escola Clássica do Direito
Penal de Francesco Carrara, ―Programa de Diritto Criminale‖, de 1859. Os recentes
conhecimentos oriundos de Disciplinas como a Biologia, a Psicologia e a Medicina,
influenciados pelo Positivismo, começam a se aglutinar ao Direito, buscando
estabelecer uma compreensão do comportamento humano a partir da sua natureza biopsíquica, levando à formação de um conjunto de conhecimentos que dispostos nessa
configuração contribuiu significativamente à formulação da Escola Positiva de Direito
Penal.
É importante realçar o fato de que, nessa época, já se vivia o clima da
primeira fase da Revolução Industrial (1760-1850). As sucessivas transformações
advindas do início da substituição da força de trabalho humana pela mecânica, da
ferramenta pela máquina, da oficina pela fábrica, do artesão pelo operário e os
desdobramentos nas relações humanas, econômicas, sociais e políticas, na organização
dos espaços urbanos, representaram o triunfo final da burguesia com sua ética e sua
lógica.
Dessa maneira, recebendo as influências da recém criada Antropologia
Criminal, da Psiquiatria e da Sociologia, o psiquiatra italiano Cesare Lombroso, o
sociólogo criminalista Enrico Ferri e o Jurista Garofalo forneceram as condições
teóricas para o surgimento, no final do século XIX, da Escola Positiva de Direito Penal,
para a qual a pena deveria ser substituída pelo isolamento da sociedade, para fins de
tratamento, daquele que cometeu um ato delituoso e daquele que, por apresentar uma
―biotipologia criminosa‖, representasse um ―perigo concreto‖ para a comunidade.
Comparadas as duas Escolas, temos que uma das principais diferenças
entre ambas era que a Escola Clássica, que considerava o ser humano um ser racional
agindo livremente, no caso de comportamento infracional, priorizava a relação entre a
gravidade do delito e a proporcionalidade do castigo a ser aplicado. Para a Escola
Positiva de Direito Penal, entendendo a transgressão à norma como sintoma de uma
doença, importava descobrir os nexos causais que levavam o indivíduo a delinqüir.
Para o Direito Penal Positivo, o infrator pertence a uma categoria de
indivíduos portadores de um certo conjunto de anomalias bio-psíquicas que se revelam
mediante o comportamento delituoso, consistindo esse um indicador de sua
periculosidade, ou seja, o ―crime é doença‖ e ―o doente é criminoso, por extensão,
perigoso‖. Isso posto, o infrator e o ato delituoso perdem a natureza ético-moral como
referência para seu julgamento e passam a integrar o campo de entendimento,
interpretação, avaliação e prescrição da Medicina (Psiquiatria), Psicologia e Sociologia,
especialmente.
A partir dessa formulação, junto com a visão ―cientìfica‖ do ato
infracional, inicia-se a promoção de outros recortes no comportamento humano. Esses
fragmentos começam a ser objeto de avaliações de ordem médica, passando, por
conseguinte, a receber o estatuto de doença. Um exemplo flagrante do funcionamento
151
desse modelo apresenta-se na concepção formada acerca da atração entre indivíduos do
mesmo sexo. Neste caso, o homoerotismo, ao ser codificado como homossexualismo,
passou a ser considerado como um mal e porquanto, objeto de tratamento e
cura.(Costa,Jurandir:1991)
A operação desse modelo, passados mais de cem anos, vem se
reproduzindo ao longo do século XX, ainda mais intensamente nas duas últimas
décadas, na medida em que ―mau-humor‖, ―timidez‖ e ―fadiga‖, deixando de ser vistos
como aspectos do comportamento das pessoas, passaram à categoria de diagnóstico
médico e médico-psiquiátrico, sendo invocado o argumento ―cientìfico‖ para justificar
as motivações de natureza ideológica e mercadológica subjacentes.
XI – Imputabilidade, inimputabilidade e periculosidade
Com a criminalização da doença mental e a patologização do ato
delituoso, a partir das formulações da Psiquiatria, da Escola Positiva do Direito Penal,
da Sociologia e da Antropologia Criminal, no final do século XIX, emerge a
imputabilidade como um dos conceitos substanciais para a discussão da culpabilidade.
A formulação do conceito de culpabilidade, colocou a imputabilidade
como coluna dorsal de sua construção teórica e trouxe à tona uma questão que, por estar
habitando uma zona de transição entre a Religião e a Moral, até aquele momento havia
permanecido oculta. Era a questão dos diferentes, que no dizer de Foucault:
―estes homens não são considerados nem completamente como
doentes, nem completamente como criminosos, nem feiticeiros, nem
inteiramente como pessoas normais. Há neles algo que fala da
diferença e chama a diferenciação.‖ (Foucault,Michel:1978)
Definida como a capacidade de entendimento psíquico do caráter ilícito
do comportamento delituoso, a imputabilidade contudo, por força do Código Penal, só é
admitida juri et de juri, após os 18 anos de idade, o que confere ao menor infrator uma
outra normatização, no caso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
No que diz respeito ao indivíduo que praticou ato delituoso e se suspeita
que apresente algum transtorno mental, a solicitação de exame médico-legal poderá ser
feita desde a fase de inquérito. Essa perícia é necessária para que se avalie a
imputabilidade com vistas à caracterização e formação de ―Processo Incidente de
Insanidade Mental‖. Nesse caso, a inimputabilidade do doente mental é presumida juris
tantum. Contudo, ao ser comprovada a inimputabilidade absoluta mediante perícia
médica, a presunção de periculosidade passa a ser juri et de juri, tanto é que a essa
pessoa imperiosamente será aplicado o instituto da Medida de Segurança por tempo
indeterminado, com todas as conseqüências, em todos os aspectos que se possa
imaginar, que uma ―Prisão Perpétua‖ pode acarretar. Além disso, como é de
conhecimento, esse instituto não possibilita ao internado ter acesso a nenhum benefício
da Lei de Execuções Penais (LEP).
Considerando que a periculosidade é definida como a probabilidade de o
sujeito vir ou tornar a praticar crimes, e que este não é um conceito médico ou
psicológico e sim um conceito jurídico, a observação dessas regras leva-nos à conclusão
de que a representação da violência e do perigo na construção do imaginário social da
loucura é atribuída ab initio. Dessa maneira o (pré-)conceito da periculosidade
presumida, justificou, entre outras coisas, a criação e a manutenção do instituto da
152
Medida de Segurança como forma de ―proteger‖ a sociedade daquele que é perigoso a
priori.
A suspensão desse instrumento está condicionada a um procedimento
pericial, o ―Exame de Verificação da Cessação da Periculosidade‖. Este exame deve ser
realizado no prazo mínimo estabelecido pelo Juiz da Sentença, e a partir de então
anualmente, mediante solicitação do Diretor do Hospital de Custódia, ou, a qualquer
momento, por determinação do Juiz da Execução Criminal.
A dificuldade se manifesta quando se espera que o perito psiquiatra,
baseado no diagnóstico e na possibilidade preditiva dos sintomas apresentados pelo
periciando, anteveja a possibilidade de o examinando reincidir em comportamento
violento. Em outras palavras, espera-se que o profissional do campo médico, utilizando
referenciais e instrumentos deste campo, resolva uma questão concebida e desenvolvida
no campo jurídico. Como garantir se qualquer ser humano, seja ele portador ou não de
transtornos mentais, será perigoso ou não daqui a instantes!?
Esse tema tem sido debatido no âmbito da Psiquiatria Forense e,
ultimamente, com maior freqüência, a partir das discussões emergentes no campo da
Reforma Psiquiátrica, dos Direitos Humanos e da Bioética, tendo despertado mais
interesse do Poder Judiciário e do Ministério Público.
Nos últimos trinta anos, as discussões no campo da Psiquiatria Forense
sobre a ética e a eficácia na determinação da periculosidade da pessoa portadora de
Transtorno Mental, têm se polarizado em basicamente duas correntes que se
contrapõem.
Uma considera os psiquiatras tendenciosos quanto à visão discricionária
dos loucos infratores e, em sendo cautelosos demais, prolongam de forma desnecessária,
independentemente de base científica, a sua permanência nos Hospitais de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico – Manicômio Judiciário. (Bottoms:Inglaterra:1983).
Outra corrente, ainda hoje prevalente na sociedade e, em decorrência, nos
psiquiatras e nas diversas instâncias do Poder Judiciário, considera que a retenção dos
loucos infratores com a finalidade de prevenir uma ofensa e de garantir a ordem social
está justificada. (Walter:Inglaterra:1983)
Nos últimos vinte anos, a partir de observações apontando para a
constatação de que o estado mental de um pessoa com transtorno mental não está
diretamente relacionado ao comportamento violento ou anti-social em si, a Psiquiatria
Forense tem buscado desenvolver e aprimorar instrumentos de avaliação que possam
oferecer mais confiabilidade a esse procedimento.
Dentre esses instrumentos destacam-se:
 Psychopathy Checklist - Revised (PCL-R) (Hare:1991) – Baseia-se no conceito
clássico de psicopatia e mediante vinte itens pretende-se avaliar características
básicas da Personalidade Psicopática.
 Barrat Impulsiveness Scale (BIS-11) (Barrat:1994) – desenvolvido para medir
os três componentes básicos da impulsividade: motor; cognitivo e a ausência de
planejamento.
 Historical, Clinical, and Risk Management Violence Risk Assessment
Scheme (HCR - 20) (Webster et al.:1995) – desenvolvido para avaliar o risco de
comportamento violento em pacientes psiquiátricos e criminosos no futuro.
Correlaciona-se fortemente com os escores do PCL-R e com o número de crimes
praticados. Consiste em uma lista ponderada de fatores de risco para
comportamentos violentos com 20 itens, divididos em 10 fatores da história
153
(passado) do examinando; 5 clínicos (presente) e 5 de manejo de risco
(antecipação de situação – futuro).(Moraes,Talvane:2001)
ITENS HISTÓRICOS
1- Violência Prévia
2- Idade Precoce no Primeiro Incidente Violento
3- Instabilidade nos Relacionamentos
4- Problemas no Emprego
5- Problemas com Uso de Substâncias
6- Doença Mental Importante
7- Psicopatia
8- Desajuste Precoce
9- Transtorno de Personalidade
10- Fracasso em Supervisão Prévia
ITENS CLÍNICOS
1- Falta de Insight
2- Atitudes Negativas
3- Sintomas Ativos de Doença Mental Importante
4- Impulsividade
5- Sem Resposta ao Tratamento
ITENS DE MANEJO DE RISCO
1- Planos sem Viabilidade
2- Exposição a Fatores Desestabilizantes
3- Falta de Apoio Pessoal
4- Não Aderência às Tentativas de Tratamento
5- Estresse
Dada a impossibilidade, por parte dos poderes públicos, de afiançar a
condição para, no mínimo, cumprir a Lei de Execuções Penais e face à falta de
elaboração de uma política intersetorial estruturada, especialmente para essa população,
resulta deixar essas pessoas entregues à própria sorte. Temos então que a Medida de
Segurança configura-se como uma verdadeira ―Prisão Perpétua à brasileira‖.
XII – Capacidade civil dos doentes mentais
A legislação brasileira sobre Saúde Mental, por um imperativo da cultura
da periculosidade presumida, teve, na exclusão, seu eixo mais evidente e vigoroso. Ao
assumir a lógica do ocultamento da loucura, tratou de impedir, de várias formas,
qualquer possibilidade de reversão do quadro cultural.
Lembremos por exemplo, que a construção histórica, do processo de
exclusão das crianças, dos loucos e dos presos traz conteúdos ontológicos e culturais
importantes e todos relacionados com a questão da inserção social frente à situação de
desproteção e desamparo a que foram submetidas ao longo do trajeto da humanidade.
As correções que têm sido realizadas buscam corrigir juridicamente as
situações de desvantagem socialmente construídas. Contudo, para de fato haver o
restabelecimento da justiça, há que se pelejar por uma transformação cultural. Os
―remédios‖ jurìdicos aplicados a partir da Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança
e do Adolescente de 1991 diminuíram a situação de desvantagem da população infantil
e adolescente. Contudo, as denúncias de desrespeito a este instrumento continuam
freqüentes e são oriundas até mesmo de dentro do próprio poder público como é o caso
154
das instituições destinadas às medidas sócio-educativas e, apesar disso ser evidente e
notório já se pleiteia pela redução da imputabilidade para os 16 anos.
A população carcerária recolhida às instituições prisionais brasileiras,
aumentando dia a dia, explode em rebeliões recorrentes.
Apesar da reforma do Código Penal de 1984 e da modernidade dos
benefícios das progressões de pena e das penas alternativas da Lei de Execuções Penais,
ouve-se o clamor por uma reforma do Código Penal.
Quanto aos ―loucos de todo gênero‖ citados no Código Civil, espera-se
que a recente sanção da Lei nº 10.216, consiga transformar os dispositivos
ultrapassados, mas ainda vigentes, de 1934 e 1938 e daí possa haver condições para que
a justiça prospere mediante a revisão e atualização do entendimento contido nesse
conceito.
O novo estatuto contido na Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001,
inegavelmente representa um significativo avanço para a consolidação dos direitos das
pessoas portadoras de transtorno mental, declarando a sua cidadania mediante o
reconhecimento dos seus direitos e explicitando as obrigações do Estado.
Contudo a nova ordem prescrita nessa Lei ainda se mostra tímida e
insuficiente quanto às questões da cidadania, por ter permanecido mais afeita à
reorientação do modelo assistencial, e a preocupação com o seqüestro da liberdade, o
que, sem sombra de dúvida, era muito importante e urgente.
Da leitura e das práticas das Leis brasileiras, vê-se que o tratamento
jurídico do portador de transtorno mental foi, até a edição da nova Lei, o de legitimar a
exclusão dos portadores de deficiências mentais. No campo jurídico, muito pouco ou
quase nada dos direitos básicos assegurados a qualquer um eram deferidos a essas
pessoas, e estes poucos direitos ficaram inertes pela prática, seja em face de que a
atuação e a legitimação do Ministério Público para cuidar se dava no plano das querelas
judiciais, especialmente patrimoniais, o que afastava a grande maioria dos casos, seja
porque os legitimados para dar corpo a estes direitos não tinham interesse em fazê-lo
operar, como o caso das famílias em que a exclusão do louco em aparelhos de
segregação estatal as aliviava do peso de mantê-los.
Se tal não bastasse a completar o quadro crônico de exclusão e abandono
dos portadores de transtorno mental, tal contexto se agrava sobremaneira quando estes
acumulam outra qualidade jurídica de exclusão, qual seja: a de violadores da ordem
jurídico-penal e ingressam nos meandros da execução penal. Neste caso, os poucos
direitos que lhes são atribuídos desaparecem.
Não se trata, todavia, de considerar que a Lei Nº 10.216/2001 cuidou de
todos os aspectos relativos à questão. Ao contrário, esse instituto, resultado de uma
longa e difícil negociação no Congresso Nacional, carece de meios e instrumentos de
efetivação das garantias que estabelece aos pacientes com transtorno mental. Porém,
deve-se reconhecer o avanço historicamente possível para a questão dos direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais, especialmente quanto às garantias de nãoasilamento mediante um atendimento voltado para a sua inclusão na sociedade.
Devemos saber, no entanto, que o processo de afirmação e
reconhecimento de direitos não ocorre de modo instantâneo e linear. Afinal, a defesa
dos direitos de pessoas em situação de vulnerabilidade pode opor-se aos interesses de
determinados grupos que, por razões ideológicas ou meramente econômicas, lutam pela
preservação do status quo. Por outro lado, a persistência das organizações da sociedade
civil foi de fundamental importância para a aprovação dessa Lei e deverá continuar a ser
quando da sua regulamentação. (Farias,Eliane:2001).
155
XIII – A Reforma Psiquiátrica e a Lei 10.216, de 06 de abril de 2001 –
o papel do Ministério Público
―só se tolera a restrição à liberdade do portador de transtorno
mental quando esta for, comprovadamente, em favor de sua
saúde, não se admitindo qualquer dano à sua dignidade ou à
sua vida. Assim, quando a internação não for o procedimento
mais propício ao restabelecimento da pessoa, a restrição ao
direito à liberdade tem que ser suspensa necessariamente.‖
(Maria Eliane Menezes de Farias: Procuradora Federal dos
Direitos do Cidadão).
A Carta Magna de 05/10/1988 (Constituição Cidadã), declara, já em seu
Preâmbulo, o compromisso com o asseguramento dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos na instituição do Estado Democrático de Direito. E, em seu artigo
primeiro, diz que este Estado Democrático de Direito tem como fundamento ―a
soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e
da livre iniciativa e o pluralismo polìtico‖. Consoante com a enumeração desses
conceitos e mais que isso, fundamentos e propósitos, toda a sociedade brasileira tornouse mobilizada no sentido de tornar realidade o conteúdo da Constituição Federal.
No campo da Saúde Mental, o aparato manicomial construído ao longo
dos últimos duzentos anos – a partir do enfoque positivista no entendimento da loucura
– vem sendo contestado e passa por uma profunda revisão. Diuturnamente, alternativas
de enfrentamento e transformação, balizadas na Ética e nos Direitos Humanos,
buscando a cidadania e recuperação das garantias e direitos fundamentais dos
portadores de Transtornos Mentais, são formuladas e acionadas. Neste percurso, tornase cada vez mais relevante a atuação dos organismos da sociedade responsáveis por essa
proteção e garantias constitucionalmente asseguradas.
O Ministério Público tem papel fundamental nessa transformação.
Conforme já foi comentado, o processo de tramitação no Senado Federal do Projeto de
Lei nº.8, de 1991 (nº 3.657, de 1989, na Câmara dos Deputados – Dep. Paulo Delgado)
sofreu várias formas de pressão. Porém, ao ser devolvido à Câmara, em 21/01/1999, na
forma do Parecer nº. 43, de 1999 (Substitutivo do Senador Sebastião Rocha) ele contava
com o seguinte texto em seus artigos 9º e 10, que trata das internações involuntárias:
Art. 9º A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por
médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina - CRM do estado onde
se localize o estabelecimento.
Art. 10º A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e
duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do
estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado
quando da respectiva alta.
§ 1º O Ministério Publico, ex-officio, atendendo denúncia, ou por solicitação
familiar ou do representante legal do paciente, poderá designar equipe revisora
multiprofissional de saúde mental, da qual necessariamente deverá fazer parte um
profissional médico preferencialmente psiquiatra, a fim de determinar o prosseguimento
ou a cessação daquela internação involuntária.
§ 2º O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do
familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo
tratamento.
156
Ao ser comparada com a redação final aprovada no Congresso Nacional,
em 27/03/2001, temos a seguinte diferença:
Art. 8º A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico
devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina - CRM do Estado onde se
localize o estabelecimento.
§ 1º A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser
comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no
qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva
alta.
§ 2º O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou
responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento.
Como dado histórico daquela sessão da Câmara dos Deputados, temos
então que todo o §1º do artigo 10, que tratava da função do Ministério Público por
ocasião da internação involuntária, justamente no seqüestro da liberdade de ir e vir,
durante o processo de negociação da Lei 10.216/2001, ocorrido no Congresso Nacional,
em 27/03/2001, foi suprimido.
―Por intermédio de destaque da bancada do bloco PDT-PPS, foi
suprimido, por 298 votos contra 87, o parágrafo 1º do artigo 10,
pelo qual o Ministério Público, atendendo denúncia ou solicitação
familiar ou de representante legal do paciente, poderia designar equipe
revisora multiprofissional de Saúde Mental, incluindo um profissional
médico, preferencialmente psiquiatra, a fim de determinar o
prosseguimento ou a cessação daquela internação involuntária. PT e
PSB-PCdoB votaram pela manutenção do parágrafo, enquanto PFL,
PMDB, PPB e PDT-PPS votaram pela supressão.‖
Da mesma forma também,
―Foi suprimido, contra o voto do deputado Damião Feliciano
(PMDB-PB), o artigo 4º do substitutivo, que admitia a possibilidade
de o Poder Público ainda destinar recursos para a construção de novos
hospitais psiquiátricos, ou a contratação de financiamentos com essa
finalidade, em regiões onde não exista estrutura assistencial
adequada.‖ (Relatório da Assessoria Parlamentar do CFP).
A relevância desse fato consiste em que a Lei 10.216/2001 não
considerou a necessidade de instituir um órgão especial para examinar e revisar os casos
de internação involuntária. Em vez disso, o texto legislado, à semelhança da detenção
ou prisão comum, o que francamente não é casual, determina apenas que o Responsável
Técnico pelo estabelecimento no qual a internação ocorreu se obrigue a comunicar o
fato ao Ministério Público no prazo de setenta e duas horas, da mesma forma por
ocasião da alta. Contudo, é importante salientar que algumas leis estaduais, como a Lei
nº. 11.802/95, de Minas Gerais, já foram mais adiante e previram a criação de juntas
revisoras para os casos de internação involuntária.
De forma diferente, ainda no que diz respeito à internação involuntária,
outros países, como Portugal e Canadá, determinaram a necessidade de uma decisão
judicial para a internação involuntária. A nossa legislação, contudo, requer apenas que
157
ela seja autorizada por médico registrado no CRM do Estado onde se localize o
estabelecimento em que acontecerá a internação.
Organismos internacionais, ao longo dos últimos anos, têm manifestado
opiniões e divulgado documentos onde se colocam em confronto com a cultura vigente.
Dentre esses, cabe ressaltar especialmente os “Princípios para a proteção dos
enfermos mentais e para o melhoramento da atenção à saúde mental” contidos na
Resolução 46/119 da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU),
Organização Mundial da Saúde (OMS) e Organização Pan-americana da Saúde (OPAS)
e a ―Convenção Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência”.
Assim, para fazer frente à limitação contida no texto da nossa lei,
podemos invocar o ―Princìpio 17‖ da Resolução da ONU, onde fica estabelecido que:
―O órgão de revisão será um órgão judicial ou outro independente e
imparcial estabelecido pela legislação nacional que atuará de
conformidade com os procedimentos estabelecidos pela legislação
nacional. Ao formular suas decisões contará com a assistência de um
ou mais profissionais de saúde mental qualificados e independentes e
terá presente seu assessoramento.
[...]
O órgão de revisão examinará periodicamente os casos de pacientes
involuntários a intervalos razoáveis especificados pela legislação
nacional.
Todo paciente involuntário terá direito a solicitar ao órgão de revisão
que se lhe dê alta ou que se lhe considere como paciente voluntário, a
intervalos razoáveis prescritos pela legislação nacional.‖
Da mesma forma, os Paìses Membros da ―Convenção Interamericana
para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de
Deficiência‖ afirmaram o compromisso de ―tomar as medidas que se fizerem
necessárias, seja de caráter legislativo ou de outra natureza para tornar viável às pessoas
portadoras de deficiência, o acesso à justiça". (Farias,Eliane:2001)
Fica evidente, no caso da nossa legislação, que, apesar da Lei nº 10.216
não ser precisa sobre o que deve ser feito por parte do Ministério Público quanto às
comunicações de internação involuntária, ele deve, no mínimo, continuar cuidando do
asseguramento da liberdade das pessoas portadoras de transtornos mentais, diretamente
ou mediante demandas às instituições responsáveis na garantia da legalidade desse
recurso médico extremo quando for imperiosa a sua indicação.
No capítulo anterior, ao abordarmos as questões referente às Medidas de
Segurança, ou seja, internação compulsória, enunciamos que a natureza desse instituto é
preventiva e não punitiva. Com esse entendimento, todos os procedimentos
preconizados, de ordem terapêutica ou de ordem judicial, devem ser dirigidos para a
cessação da periculosidade e para a reinserção social do internado.
Sabemos que isso não é o que ocorre na imensa maioria dos locais onde
são colocadas as pessoas portadoras de transtorno mental que cometeram ato delituoso.
Seja em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, Alas de Tratamento
Psiquiátrico no interior dos presídios, instituições privadas e, até mesmo, quem sabe,
Cadeias Públicas ou Delegacias neste país afora, sabemos que o quadro geral é
desolador. Assim, além de cuidar da legalidade e dignidade das instalações onde essas
pessoas ficam recolhidas, é papel do Ministério Público, em parceria com familiares,
responsáveis e curadores, promover todas as modalidades de garantia aos direitos do
internado, articulando-se com profissionais de saúde, cooperativas de capacitação e
158
produção do campo ou não da Saúde Mental, participando da formulação de políticas
públicas e de instituições voltadas para a reabilitação psicossocial, fomentando a criação
de Serviços de Saúde Mental Substitutivos ao Manicômio Judiciário como CAPS e
Moradias Terapêuticas, impedindo, a todo custo, que a Medida de Segurança se
converta em ―Prisão Perpétua‖.
Cabe também ao Ministério Público cuidar da qualidade dos serviços de
relevância pública, da proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de
outros interesses difusos e coletivos, nos quais se incluem os interesses daqueles que se
encontram em situação de desvantagem social.
Além disso, o Ministério Público também tem um papel importante na
transformação e superação da cultura manicomial mediante a identificação e discussão
do preconceito, buscando desenvolver o sentido da tolerância para com a diversidade e
o convívio com as diferenças no dia-a-dia da comunidade.
XIV – Bibliografia
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TEIXEIRA, Lumena Celi. O lugar da subjetividade. In: Revista de Terapia
Ocupacional, USP, 1997.
160
XV – Anexos
1.
SUBSTITUTIVO DO SENADO AO PROJETO DE LEI PAULO
DELGADO
SUBSTITUTIVO DO SENADOR SEBASTIÃO ROCHA
Parecer nº 43, de 1999
(comissão diretora)
Redação final do Substitutivo do Senado ao Projeto de Lei da Câmara nº 8,de
1991(nº 3.657, de 1989, na Casa de origem)
A Comissão Diretora apresenta a redação final do Substitutivo do Senado ao Projeto de Lei
da Câmara nº 8, de 1991 (nº 3.657, de 1989, na Casa de origem), que dispõe sobre a extinção progressiva
dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta a internação
psiquiátrica compulsória, consolidando as emendas e subemendas aprovadas no turno suplementar.
Sala de Reuniões da Comissão, 21 de janeiro de 1999. - Antônio Carlos Magalhães,
Presidente -Ronaldo Cunha Lima, Relator - Carlos Patrocínio - Emília Fernandes.
ANEXO AO PARECER Nº 43, DE 1999
Redação final do Substitutivo do Senado ao Projeto de Lei da Câmara nº 8, de
1991 (nº 3.657, de 1989, na Casa de origem). Dispõe sobre a proteção e os direitos das
pessoas portadoras de transtornos psíquicos e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental.
Congresso Nacional decreta:
Art. 1º Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtornos psíquico, de que trata
esta lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual,
religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ou grau de gravidade ou
tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra.
Art. 2º Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares
ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.
Parágrafo único. São direitos das pessoas portadoras de transtornos psíquico:
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;
II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde,
visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;
III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;
IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;
V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não
de sua hospitalização involuntária;
VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
VII - receber o maior número de informação a respeito de sua doença e de seu tratamento;
VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;
IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.
Art. 3º É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a
assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos psíquicos, com a devida
participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim
entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos
psíquicos.
Art. 4º O Poder Público destinará recursos orçamentários para a construção e
manutenção de uma rede de serviços de saúde mental diversificada e qualificada, sendo que a
construção de novos hospitais psiquiátricos públicos e a contratação ou financiamento, pelo Poder
Público, de novos leitos em hospitais psiquiátricos somente será permitida nas regiões onde não existia
161
estrutura assistencial adequada, desde que aprovada pelas comissões intergestoras e de controle social
dos três níveis de gestão do Sistema Único de Saúde - SUS.
Art. 5º A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os
recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
§ 1º O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em
seu meio.
§ 2º O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência
integral a pessoa portadora de transtornos psíquicos, incluindo serviços médicos, de assistência social,
psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.
§ 3º É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos psíquicos em instituições
com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2º e que não
assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º.
Art. 6º O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de
grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será
objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade
da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo,
assegurada a continuidade do tratamento quando necessário.
Art. 7º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico
consubstanciado que caracterize os seus motivos.
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;
II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de
terceiro; e
III - internação compulsória: aquela determinada pela justiça.
Art. 8º A pessoa que solicita voluntariamente sua internação, ou que a consente, deve
assinar, no momento da admissão, uma declaração de que optou por esse regime de tratamento.
Parágrafo único. O término da internação voluntária dar-se-á por solicitação escrita do
paciente ou por determinação do médico assistente.
Art. 9º A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico
devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina - CRM do estado onde se localize o
estabelecimento.
Art. 10º A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser
comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha
ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta.
§ 1º O Ministério Publico, ex-officio, atendendo denúncia, ou por solicitação familiar ou
do representante legal do paciente, poderá designar equipe revisora multiprofissional de saúde mental,
da qual necessariamente deverá fazer parte um profissional médico preferencialmente psiquiatra, a
fim de determinar o prosseguimento ou a cessação daquela internação involuntária.
§ 2º O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou
responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento.
Art. 11º A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo
juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à
salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários.
Art. 12º Evasão, transferência, acidente, intercorrência clínica grave e falecimento serão
comunicados pela direção do estabelecimento de saúde mental aos familiares, ou ao representante legal
do paciente, bem como à autoridade sanitária responsável, no prazo máximo de vinte e quatro horas da
data da ocorrência.
Art. 13º Pesquisas científicas para fins diagnósticos ou terapêuticos não poderão ser
realizadas sem o consentimento expresso do paciente, ou de seu representante legal, e sem a devida
comunicação aos conselhos profissionais competentes e ao Conselho Nacional de Saúde.
Art. 14º O Conselho Nacional de Saúde, no âmbito de sua atuação, criará comissão
nacional para acompanhar a implementação desta lei.
Art. 15º Esta lei entra em vigor da data de sua publicação.
2.
REDAÇÃO FINAL E APROVAÇÃO NA CÂMARA FEDERAL
DO PROJETO DE LEI Nº 3.657-D, DE 1989
LEI FEDERAL Nº 10.216 de 06/04/2001
REDAÇÃO FINAL PROJETO DE LEI Nº 3.657-D, DE 1989
162
“Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona
o modelo assistencial em saúde mental”.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta
Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual,
religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou
tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra.
Art. 2º Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou
responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.
Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas
necessidades;
II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde,
visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;
III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;
IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;
V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não
de sua hospitalização involuntária;
VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;
VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;
IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.
Art. 3º É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a
assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida
participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim
entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos
mentais.
Art. 4º A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos
extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
§ 1º O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu
meio.
§ 2º O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência
integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social,
psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.
§ 3º É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com
características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2º e que não
assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º.
Art. 5º O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave
dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto
de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da
autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada
a continuidade do tratamento, quando necessário.
Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado
que caracterize os seus motivos.
Parágrafo único.
São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;
II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento usuário e
a pedido de terceiro; e
III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.
Art. 7º A pessoa que solicita voluntariamente sua internação, ou que a consente, deve assinar, no
momento da admissão, uma declaração de que optou por esse regime de tratamento.
Parágrafo único. O término da internação voluntária dar-se-á por solicitação escrita do paciente
ou por determinação do médico assistente.
Art. 8º A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico devidamente
registrado no Conselho Regional de Medicina - CRM do Estado onde se localize o estabelecimento.
§ 1º A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser
comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha
ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta.
163
§ 2º O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou
responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento.
Art. 9º A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz
competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do
paciente, dos demais internados e funcionários.
Art. 10 Evasão, transferência, acidente, intercorrência clínica grave e falecimento serão
comunicados pela direção do estabelecimento de saúde mental aos familiares, ou ao representante legal
do paciente, bem como à autoridade sanitária responsável, no prazo máximo de vinte e quatro horas da
data da ocorrência.
Art. 11 Pesquisas científicas para fins diagnósticos ou terapêuticos não poderão ser
realizadas sem o consentimento expresso do paciente, ou de seu representante legal, e sem a devida
comunicação aos conselhos profissionais competentes e ao Conselho Nacional de Saúde.
Art. 12 O Conselho Nacional de Saúde, no âmbito de sua atuação, criará comissão nacional para
acompanhar a implementação desta Lei.
Art. 13 Esta Lei entra em vigor da data de sua publicação.
Sala das Sessões, em 27 de março de 2001.
3.
SANÇÃO PRESIDENCIAL DA LEI Nº 10.216, DE 6 DE ABRIL
DE 2001
LEI Nº 10.216, DE 6 DE ABRIL DE 2001
Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são
assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião,
opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de
evolução de seu transtorno, ou qualquer outra.
Art. 2º Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou
responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.
Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;
II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde,
visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;
III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;
IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;
V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de
sua hospitalização involuntária;
VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;
VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;
IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.
Art. 3º É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a
promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da
sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as
instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais.
Art. 4º A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extrahospitalares se mostrarem insuficientes.
§ 1º O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu
meio.
§ 2º O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência
integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência
social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.
164
§ 3º É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com
características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2º e que não
assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º .
Art. 5º O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave
dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto
de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da
autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada
a continuidade do tratamento, quando necessário.
Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que
caracterize os seus motivos.
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;
II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de
terceiro; e
III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.
Art. 7º A pessoa que solicita voluntariamente sua internação, ou que a consente, deve assinar, no
momento da admissão, uma declaração de que optou por esse regime de tratamento.
Parágrafo único. O término da internação voluntária dar-se-á por solicitação escrita do paciente
ou por determinação do médico assistente.
Art. 8º A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico devidamente
registrado no Conselho Regional de Medicina - CRM do Estado onde se localize o estabelecimento.
§ 1º A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser
comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual
tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta.
§ 2º O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou
responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento.
Art. 9º A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz
competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do
paciente, dos demais internados e funcionários.
Art. 10. Evasão, transferência, acidente, intercorrência clínica grave e falecimento serão comunicados
pela direção do estabelecimento de saúde mental aos familiares, ou ao representante legal do paciente,
bem como à autoridade sanitária responsável, no prazo máximo de vinte e quatro horas da data da
ocorrência.
Art. 11. Pesquisas científicas para fins diagnósticos ou terapêuticos não poderão ser realizadas sem o
consentimento expresso do paciente, ou de seu representante legal, e sem a devida comunicação aos
conselhos profissionais competentes e ao Conselho Nacional de Saúde.
Art. 12. O Conselho Nacional de Saúde, no âmbito de sua atuação, criará comissão nacional para
acompanhar a implementação desta Lei.
Art. 13. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 6 de abril de 2001; 180º da Independência e 113º da República.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
José Gregori
José Serra
Roberto Brant
165
4. DEMONSTRATIVO DA SITUAÇÃO ASSISTENCIAL
ESTUDO COMPARATIVO ENTRE OS GRUPOS DE MORBIDADE COM
MAIORES GASTOS COM INTERNAÇÕES NA REDE SUS
BRASIL - 1999
GRUPO MORBIDADE
1999
%SUS
Doenças do Aparelho Circulatório
762.999.958
16,1
Gravidez, parto, puerpério
738.144.712
15,6
Doenças do Aparelho respiratório
612.609.586
12,9
Transtornos mentais
47.774.871
9,9
Doenças do Aparelho digestivo
323.832.410
6,8
TOTAL
2.905.361.537
61,3
Fonte: DATASUS/FNSMS
GASTOS PERCENTUAIS COM INTERNAÇÕES PSIQUIÁTRICAS NA REDE
SUS – BRASIL – 1995 a 1999
Ano
Total SUS
Transtornos Mentais
% Gastos
1995
3.192.437.637
400.365.260
11,7
1996
3.182.266.324
374.105.122
11,9
1997
3.205.852.023
377.105.122
11,8
1998
3.808.037.598
432.276.674
11,4
1999
4.733.844.111
467.774.871
9,9
Fonte: Tabnet:Morbidade hospitalar/DATASUS/MS – ATG/MS
DISTRIBUIÇÃO DOS HOSPITAIS E LEITOS PSIQUIÁTRICOS NA REDE SUS,
SEGUNDO NATUREZA E UF – 1999
UF
HOSPITAIS
TOTAL
LEITOS
TOTAL
Público Privado
Público Privado
AC
1
1
43
43
AL
1
4
5
265
1.139
1.404
AM
1
1
150
150
BA
3
6
9
840
1.664
2.504
CE
1
8
9
164
923
1.087
DF
1
1
2
40
144
184
ES
2
1
3
335
405
740
GO
14
14
1.962
1.962
MA
1
3
4
66
1.402
1.468
MT
1
2
3
50
371
421
MS
2
2
248
248
MG
4
22
26
881
4.706
5.587
PA
1
1
120
120
PB
2
5
7
374
914
1.288
PR
2
18
20
324
4.144
4.468
PE
3
15
18
488
3.682
4.170
PI
1
1
2
233
270
503
RJ
9
35
44
2.852
7.866
10.718
166
RO
RR
RN
RS
SC
SE
SP
TO
0
0
1
2
1
1
11
0
0
4
6
2
2
58
1
0
0
5
8
3
3
69
1
0
0
220
430
140
110
5.538
0
0
714
1.341
301
398
14.982
154
0
0
934
1.771
441
508
20.520
154
TOTAL
50
210
260
13.663
47.730
61.393
Fonte: VAIAIH/DATASUS
DISTRIBUIÇÃO DOS HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS ACIMA DE 400 LEITOS POR
NATUREZA E UF – 2000
UF
PÚBLICO
PRIVADO
Hospitais
Leitos
Hospitais
Leitos
AL
0
0
1
440
BA
1
500
1
498
ES
0
0
1
405
MA
0
0
2
1.202
MG
1
556
3
1.675
PE
0
0
2
1.505
PR
0
0
3
1.564
RJ
4
2.552
4
3.020
RS
0
0
1
436
SC
0
0
1
500
SP
3
4.050
14
7.267
TOTAL
9
7.658
33
18.522
Fonte: DATASUS-2000
167
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE MENTAL
Evolução do número de Hospitais Psiquiátricos conforme a natureza do
prestador entre 1961 e 1991
168
EVOLUÇÃO DE NAPS/CAPS NA REDE SUS
BRASIL – 1997 a 2001
ANO
TOTAL
1997
176
1998
231
1999
237
2001
266
Fonte: DATASUS: Tabnet/Rede Ambulatorial do SUS
CAPS/NAPS POR REGIÃO E ESTADO EM FUNCIONAMENTO
ACRE
0
AMAZONAS
0
AMAPÁ
0
PARÁ
12
NORTE
RONDÔNIA
0
RORAIMA
0
TOCANTINS
4
TOTAL
16
ALAGOAS
5
BAHIA
7
CEARÁ
20
MARANHÃO
3
PARAÍBA
2
NORDESTE
PERNAMBUCO
9
PIAUÍ
0
RIO GRANDE DO NORTE
4
SERGIPE
2
TOTAL
52
PARANÁ
11
SANTA CATARINA
54
SUL
RIO GRANDE DO SUL
20
TOTAL
85
ESPÍRITO SANTO
5
MINAS GERAIS
36
SUDESTE
RIO DE JANEIRO
37
SÃO PAULO
48
TOTAL
126
DISTRITO FEDERAL
1
GOIÁS
4
CENTRO-OESTE
MATO GROSSO DO SUL
2
MATO GROSSO
4
TOTAL
11
TOTAL BRASIL
290
Fonte: Área Técnica de Saúde Mental/SAS/MS
Agosto de 2001 – Dados informados pelas Secretarias Estaduais
(Inclui serviços não cadastrados; exclui serviços cadastrados no DATASUS que não
estão em funcionamento efetivo)
169
170
DIREITO SANITÁRIO DO TRABALHO E DA
PREVIDÊNCIA SOCIAL
(Márcia Flávia Santini Picarelli)
Márcia Flávia Santini Picarelli
Procuradora do Trabalho lotada na PRT da 10a Região
Professora de Direito Previdenciário do UniCeub
Professora Assistente II da Faculdade de Direito da UnB
ÍNDICE
1. Conceitos básicos. 2. Medicina do trabalho. Segurança do Trabalho. Saúde
ocupacional. Saúde do trabalhador. 3. Meio ambiente do trabalho:
transdisciplinaridade; interinstitucionalidade; interprofissionalidade. 4.
Política de saúde do trabalhador no Brasil. 5. Indicadores epidemiológicos
para a saúde do trabalhador. 6. O universo do não-trabalho: responsabilidade
pelos desempregados, autônomos e pelas pequenas e micro-empresas. 7.
Saúde do trabalhador na área do trabalho (Lei nº. 6.514/77 e Portaria nº.
3.124/78 do Mtb). 8. Saúde do trabalhador na área da previdência social (Lei
nº. 8.213/91 e Decreto nº. 3.048/99). 9. Vigilância em saúde do trabalhador
no SUS. 10. Princípio da prevenção e CIPA. 11. Acidentes do trabalho,
prejuízos sociais e fatores multiplicativos. 12. Aposentadoria especial. 13. O
papel dos sindicatos e do Ministério Público do Trabalho na defesa do
Direito Sanitário do Trabalho. 14. Direitos reprodutivos e capacitação
trabalhista da mulher. 15. Doenças e agravos do trabalho de notificação
compulsória. 16. Agrotóxicos e resíduos tóxicos.
1. Conceitos Básicos
Colocando-se o trabalhador como o centro do nosso estudo na condição
de sujeito do direito, há que ser destacado o fato dele estar envolvido por duas
realidades nas relações que estabelece com o mundo do trabalho, ou seja, ora se
encontra com plena capacidade para trabalhar, operando as mais diversas formas de
produção, ora é obstado de trabalhar por se encontrar incapacitado de fazê-lo por motivo
de doença ou acidentes em geral.
Até o final do século XIX, o trabalhador assalariado não possuía
qualquer direito que lhe amparasse quando se encontrava impedido de laborar. Ou
recorria à solidariedade familiar, de vizinhos ou de religiosos, ou sucumbia à sua
própria sorte. Estando, pois, o trabalhador com saúde relativa (eis que inexiste aquele
homem que goza de saúde absoluta) laborava, e lhe eram aplicáveis as normas legais
pertinentes e em vigor à época, fossem elas civis e depois, trabalhistas. Porém, quando
atingido pela doença, comum ou profissional, somente quando o Estado interveio e a
sociedade legislou a respeito do seguro social, no final de século XIX, é que o
trabalhador se viu amparado por direitos previdenciários (ou securitários), que lhe
garantiram, a partir de então, o pagamento de um benefício substituidor de salários, afim
de que pudesse prover a si e à sua família dos meios básicos de subsistência.
171
Daí porque MARLY C. CARDONE publicou a obra intitulada
―Previdência, Assistência, Saúde – o Não-Trabalho na Constituição de 1988‖, em 1990,
eis que se preocupou em salientar que a Seguridade Social e as áreas que lhe integram
(art. 194, caput da CF), formam um sistema independente, que ampara os trabalhadores
em geral sobretudo quando estão incapacitados para trabalhar, quando atingidos pela
condição do ―não-trabalho‖.
―Não seria exagero afirmar, portanto, que o Direito do Trabalho
surgiu com a finalidade precípua de promover a proteção da vida e da
saúde dos trabalhadores. Ele foi, em sua origem, um ramo do Direito
diretamente vinculado à promoção da saúde e de um meio ambiente
sadio. As primeiras normas de Direito do Trabalho - num evidente
paralelo com as normas de Direitos Humanos - diziam respeito a
obrigações negativas (direito à integridade física e mental, de não
praticar atos que pudessem colocar em risco a saúde do trabalhador) e
a obrigações positivas (de serem tomadas as providências cabíveis
para a proteção e preservação da saúde do trabalhador, aqui incluídas
as medidas de prevenção de enfermidades).‖141
Não seria, pois, demais se dizer que o surgimento da proteção do
trabalhador em face dos riscos da perda da capacidade laborativa e, conseqüentemente,
de sua subsistência, coincide, em grande parte, com o nascimento do Direito do
Trabalho.
―explica RUSSOMANO, com amparo em ALMANSA PASTOR,
que, fazendo-se uma síntese histórica do desenvolvimento do Direito
do Trabalho, não raramente se observa, que os primeiros ensaios de
uma legislação social foram feitos no domínio dos acidentes e das
moléstias profissionais.‖142
Tanto o Direito do Trabalho como o Direito Previdenciário
regulamentam normas legais e princípios, que têm como escopo proporcionar melhores
condições de trabalho e de vida aos trabalhadores, conferindo-lhes maior dignidade em
suas relações com os seus superiores e colegas e com a sociedade em geral. A doença, o
acidente e a morte no trabalho podem vir a ocorrer como efeitos indesejados de um
sistema que causa riscos sociais, mas que, todavia, os cobre, garantindo meios de
subsistência aos indivíduos por eles atingidos, graças à interferência do Estado neste
sentido.
―O Direito do Trabalho e o Direito da Seguridade Social ainda têm
optado por uma solução bastante tímida e na prática de pouca eficácia
na tutela da vida e da saúde dos trabalhadores, preferindo a adoção de
um sistema de tarifação por adicionais de insalubridade e
periculosidade e por aposentadorias especiais, mercantilizando assim
a vida e o corpo dos trabalhadores. Todavia, com o advento de uma
nova consciência ambientalista, em plano mundial – em especial a
partir do início da década de 70 –, as tradicionais concepções de
ambiente de trabalho tratadas pelo Direito da Seguridade Social e
pelo Direito do Trabalho começaram a ser revistas. No plano do
Direito Internacional, os principais pólos de irradiação dessas novas
idéias foram a Organização das Nações Unidas, a Organização
141
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Direito Ambiental e a saúde dos trabalhadores. São
Paulo: Editora LTr, 2000, p. 22.
142
PEREIRA DE CASTRO, Carlos Alberto e LAZZARI, João Batista. Manual de Direito
Previdenciário. São Paulo: Editora LTr, 2001, p. 424-425.
172
Internacional do Trabalho e a Organização Mundial da Saúde. No
Direito Comunitário, de grande relevância é o conjunto de diretivas e
resoluções da União Européia sobre questões atinentes à saúde e à
segurança do trabalho. De peculiar importância é a experiência norteamericana no campo da proteção jurídica do ambiente de trabalho,
especialmente em decorrência da edição do ―Mine Safety and Health
Act‖ (1969), do ―Occupational Safety and Health Act‖ (1970) e do
―Toxic Substances Control Act‖ (1976).‖143
Conforme demonstrado, está-se diante de uma nova disciplina jurídica: o
―Direito Sanitário do Trabalho e da Previdência Social‖, que tem o trabalhador
como o sujeito de direito, eis que o seu objeto é a regulamentação das normas e
princípios que regem a relação jurídica que se estabelece no local de trabalho entre as
partes, com vista a maior proteção da saúde do agente da atividade laboral. Na
construção desta disciplina, há a convergência de três campos do conhecimento jurídico,
a saber: o Direito Ambiental, o Direito do Trabalho e o Direito Previdenciário,
atualmente melhor denominado como Direito da Seguridade Social, uma vez que a
Previdência Social nada mais é do que uma das espécies do gênero Seguridade Social
(art. 194, caput da CF).
2. Medicina do trabalho. Segurança do trabalho. Saúde ocupacional.
Saúde do trabalhador
Segundo SÉRGIO PINTO MARTINS:
―a segurança e a medicina do trabalho são o segmento do Direito
Tutelar do Trabalho incumbido de oferecer condições de proteção à
saúde do trabalhador no local do trabalho, e da sua recuperação
quando não se encontrar em condições de prestar serviços ao
empregador. A segurança do trabalho terá por objetivo principal
prevenir as doenças profissionais e os acidentes do trabalho no local
laboral.‖144
Na legislação consolidada (CLT – Decreto-Lei nº. 5.452/43), esta matéria
está contida no Capítulo V, e abrange os artigos 154 até 201, referentes ao Título II,
conhecido pela doutrina como Direito Tutelar do Trabalho, eis que diz respeito à parte
do Direito do Trabalho composta de regras que implicam direitos e obrigações entre
empregados e empregadores, mas nas quais predominam deveres dos últimos e,
excepcionalmente, dos primeiros, perante o Estado. Nele se sobrepõe o interesse público
sobre os interesses individuais dos beneficiários das normas, daí porquê se sobressaem
os deveres que impõem aos empregadores.
A prevenção dos acidentes de trabalho é alcançada com o estudo e a
aplicação de medidas técnicas e de recursos que oferece a saúde ocupacional. Entendese por saúde ocupacional, pois, os ensinamentos, recomendações e instruções que visam
à proteção da vida e da saúde dos trabalhadores e é produto conjunto do trabalho de uma
série de integrantes de diversos ramos do saber, como médicos, advogados, sanitaristas,
psiquiatras, físicos, engenheiros etc. A saúde ocupacional implica, outrossim, recuperar
os trabalhadores que tenham sido vítimas de um infortúnio, dando-lhes a possibilidade
143
PEREIRA DE CASTRO, Carlos Alberto e LAZZARI, João Batista. Manual de Direito
Previdenciário. São Paulo: Editora LTr, 2001, p. 31-32.
144
MARTINS, Sérgio Pinto. Comentários à CLT. 3aed., São Paulo: Editora Atlas, 2000, p. 199.
173
de voltar a trabalhar na mesma ou em outras tarefas, conferindo-lhes um tratamento
humanitário. Todavia, pela experiência histórica, verifica-se que, embora haja farta
legislação a respeito, não há um controle rigoroso, severo, do cumprimento dessas
normas.
O meio ambiente de trabalho é a preocupação dos estudiosos das
normas supramencionadas, porquanto é o local onde o trabalhador desenvolve a sua
atividade profissional. Conseqüentemente:
―... o objeto jurìdico tutelado é a saúde e a segurança do trabalhador,
qual seja da sua vida, à medida que ele, integrante do povo, titular do
direito ao meio ambiente, possui direito à sadia qualidade de vida. O
que se procura salvaguardar é, pois, o homem trabalhador, enquanto
ser vivo, das formas de degradação e poluição do meio ambiente onde
exerce a sua labuta, que é essencial à sua qualidade de vida.‖145
3. Meio ambiente do trabalho. Transdisciplinaridade.
Interinstitucionalidade. Interprofissionalidade
Os estudos sobre o Meio Ambiente do Trabalho têm como característica
básica o envolvimento com múltiplas disciplinas não jurídicas, sobretudo a Medicina ,
Higiene e Engenharia do Trabalho, pois como bem pondera PAULO DE BESSA
ANTUNES:
―(...) na análise de uma medida a ser tomada pelo aplicador da lei em
matéria ambiental, necessariamente, estão presentes considerações
que não são apenas jurídicas, pois (...) é necessário que se observem
critérios que não são apenas jurídicos (...) Decorre daí a imperiosa
necessidade de que o jurista, ao tratar de questões ambientais, tenha
conhecimento de disciplinas que não são a sua.‖146
Da mesma forma, o conhecimento sobre as questões ambientais do
trabalho envolvem outras instituições , v. g., as integrantes da Seguridade Social, como
as áreas da Saúde, Previdência Social e Assistência Social e as Comissões Internas de
Prevenção de Acidentes – CIPAS, supervisionadas, respectivamente, pelo Ministério da
Previdência e Assistência Social – MPAS, Ministério da Saúde – MS e Ministério do
Trabalho e Emprego – Mtb. Todas são regidas por normas que protegem os
trabalhadores amparadas por regras da Constituição Federal de 1988, tais como as do
artigo 7º, incisos XXII, XXIII, XXIV, XXVIII, art. 194 e incisos e art. 200, incisos II e
VIII.
A articulação das políticas públicas relativas à Seguridade Social e às
medidas de segurança e higiene do trabalho acarretam a mobilização de inúmeros
profissionais empenhados na execução dos sistemas protetivos referidos, como médicos,
enfermeiros, engenheiros, advogados, geólogos, sanitaristas etc, que hoje trabalham em
consonância com as orientações da Organização Internacional do Trabalho - OIT e
da Organização Mundial da Saúde - OMS, voltadas a esse campo, conforme os
145
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco, RODRIGUES, Marcelo Abelha - ―Direito Ambiental e
Patrimônio Genético, Belo Horizonte, Del Rey, 1996, p. 127, apud FIGUEIREDO, Guilherme José
Purvin de. Direito Ambiental e a saúde dos trabalhadores. São Paulo: Editora LTr, 2000, p. 49.
146
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1996, p. 31-32, apud
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Direito Ambiental e a saúde dos trabalhadores. São Paulo:
Editora LTr, 2000, p. 58.
174
traçados respectivos do Programa Internacional para a Melhora das Condições e
Meio Ambiente do Trabalho - PIACT e do documento intitulado Desenvolvimento
Sustentável e Ambientes Sadios - Proteção do Meio Ambiente Humano. Para estes
organismos internacionais:
―a necessidade de fortalecimento da administração do trabalho, em
especial da inspeção do trabalho, constitui condição essencial para o
melhoramento do meio ambiente laboral e solidez de mecanismos que
garantam o livre exercício do direito de organização sindical e
participação dos empregadores e trabalhadores‖, bem como o
entendimento de que a ―saúde é um estado de completo bem-estar
físico, mental e social e não meramente a ausência de doenças ou
enfermidades‖.147
4. Política de saúde do trabalhador no Brasil
A política de saúde do trabalhador acha-se originariamente amparada por
documentos internacionais ratificados pelo Brasil e condizentes com a Constituição
Federal, seguidos da legislação ordinária nacional pertinente.
Para o meio ambiente de trabalho, o tratado do Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de
1992, é de fundamental importância. O artigo 7º, especialmente, trata do direito ao
ambiente de trabalho estabelecendo que: ―Os Estados-parte no presente pacto
reconhecem o direito de toda pessoa gozar de condições de trabalho justas e
favoráveis, que assegurem especialmente: (...) condições de trabalho seguras e
higiênicas.‖ A norma internacional integrada ao nosso direito interno atua em perfeita
harmonia com a Constituição brasileira, bastando relembrar os direitos dos
trabalhadores à redução dos riscos inerentes ao trabalho (artigo 7º, inciso XXII). Por
outro lado, o caput do artigo 7º, ao relacionar os direitos dos trabalhadores, dá abertura
para outros que ―visem à melhoria de sua condição social‖. Nesse sentido, o direito a
condições de trabalho seguras e higiênicas é norma de direito fundamental no Brasil,
com a mesma hierarquia da norma constitucional.148
Da OIT, há convenções que trazem perspectiva importante para a
legislação nacional ao abordarem questões relacionadas ao meio ambiente de trabalho.
Trata-se da Convenção nº 155, que disciplina questões de saúde, segurança e meio
ambiente de trabalho e que foi aprovada em 3 de junho de 1981 e ratificada pelo Brasil
Convenção
, que assegura serviços de saúde do trabalho e foi aprovada em 1985 e ratificada
pelo Brasil em 18/05/90 (Decreto Legislativo nº 86/89 e Decreto nº 127/91).
A Carta Magna preconiza que a saúde ―é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas‖ e tendo por objetivo
assegurar a redução do risco de doença e de outros agravos (art. 196). Sendo a saúde
―direito de todos‖, inclui-se, no caso, como direito do trabalhador. Trata-se de um
direito social, previsto no art. 6º do diploma constitucional, encontrando-se
desdobramentos desse direito entre aqueles assegurados aos trabalhadores, previstos em
seu artigo 7º.
147
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Op. cit., p. 64 e 100-101.
MACHADO, Sidnei. O Direito à Proteção ao Meio Ambiente de Trabalho no Brasil. São Paulo:
Editora LTr, 2001, p. 92.
148
175
Ademais, o constituinte não parou por aí. Avançou no sentido de tutelar
expressamente o ambiente laboral ao disciplinar sobre a área da Saúde: ―Ao sistema
único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: (...) colaborar
com a proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho‖ (art. 200, inciso
VIII).
Segundo GUILHERME JOSÉ PURVIN de FIGUEIREDO:
―a competência legislativa e material dos Estados Federados, do
Distrito Federal e dos Municípios em matéria ambiental abrange
também o ambiente do trabalho, pois o Direito Ambiental do
Trabalho não se acha inscrito na órbita privatística do Direito
Individual do Trabalho, alcançando as áreas relativas à Saúde e ao
Meio Ambiente. (...) Isso significa que todas as questões atinentes ao
Direito Ambiental do Trabalho podem e devem ser tratadas pela
União, pelos Estados, pelo Distrito Federal (competência legislativa
concorrente) e supletivamente, pelos Municípios, pois não incidem na
regra do art. 22, inc. I, da Constituição da República, que reserva à
União a competência para legislar sobre Direito Civil, Comercial,
Penal, Processual, Eleitoral, Agrário, Marítimo, Aeronáutico,
Espacial e do Trabalho. (...). Não estarão legislando ou administrando
sobre Direito do Trabalho, mas, sim, sobre Direito Ambiental e
Direito Sanitário, isto é, dentro dos limites do Direito Ambiental do
Trabalho, nos estritos termos, dos incs. VI, in fine (proteção do meio
ambiente e controle da poluição), e XII, in fine (defesa da saúde), do
art. 24 da Constituição da República.‖149
Conforme tese adotada pelo autor, ―o inc. XXII do art. 7º, que confere o
direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde,
higiene e segurança, tem caráter nitidamente ambiental e sanitário. Normas de saúde,
higiene e segurança não são, a toda evidência, normas de direito privado atinentes ao
contrato individual de trabalho‖. E segue citando FRANCISCO CARLOS DUARTE,
ressaltando que este insere corretamente o tema relativo à saúde dos trabalhadores no
âmbito do Direito à Saúde – art. 196 da Constituição da República – quando assevera
que ―a tutela do ambiente e do trabalho devem contribuir para a prevenção de
doenças‖ e conclui que o ―direito à saúde integra o conceito de qualidade de vida‖.150
5. Indicadores epidemiológicos para a saúde do trabalhador
Entende-se por epidemiologia ―o estudo da distribuição de uma doença
ou de uma condição fisiológica em determinada população e dos fatores que
influenciam essa distribuição.‖151 Portanto, o levantamento epidemiológico é a melhor
alternativa para se medir os problemas de saúde ocupacional. O registro feito a respeito
é vital para se evitar as epidemias e salvaguardar a saúde do trabalhador.
O Ministro de Estado da Saúde, através da Portaria nº 1.339/GM, de 18
de novembro de 1999, promoveu a revisão da listagem oficial das doenças originadas no
processo de trabalho, com o objetivo de tornar pública a Lista de Doenças relacionadas
ao Trabalho, e assim colaborar no estabelecimento de políticas públicas no campo da
vigilância da saúde dos trabalhadores.
149
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Op. cit., p. 238-240.
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Op. cit., p. 239.
151
GALAFASSI, Maria Cristina. Medicina do Trabalho. São Paulo: Editora Atlas, p. 132.
150
176
3.048/99 (ex- Decreto nº 2.172/97), identificaram-se cerca de 200 entidades nosológicas
específicas, todas referidas na Classificação Internacional de Doenças – CID.
6. O universo do não-trabalho: responsabilidade pelos desempregados,
autônomos e pelas pequenas e micro-empresas
A concepção do meio ambiente do trabalho não coincide com a do
Direito do Trabalho, pois abrange também aqueles trabalhadores que labutam fora da
relação de emprego. O direito à saúde e ao trabalho são direitos sociais elencados no
artigo 6º, da Lei Magna, de natureza difusa, na medida que procuram salvaguardar o
homem trabalhador, enquanto ser vivo, das formas de degradação e poluição onde
exerce o seu labor e que possam comprometer o seu estado psíquico-físico, essencial à
sua qualidade de vida. Portanto:
―têm direito a um meio ambiente de trabalho sadio todos aqueles que
trabalham
ou
simplesmente
circulam
nesse
ambiente,
independentemente da natureza da relação jurídica entre trabalhador e
empreendedor. O art. 39, § 3º, da Constituição da República, aliás,
confere expressamente aos servidores públicos civis o direito à
redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de
saúde, higiene e segurança. Fica claro, portanto, que o direito à
redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de
saúde, higiene e segurança, extrapola significativamente os estreitos
limites do Direito Privado (Direito Individual do Trabalho),
alcançando a generalidade dos trabalhadores, independentemente da
natureza do vínculo jurídico entre as partes na relação de trabalho. A
característica das normas ambientais laborais - aplicabilidade além
das barreiras jurídicas da relação de emprego - está presente também
nas Convenções da Organização Internacional do Trabalho e na
Organização Mundial da Saúde sobre o tema e na legislação de todos
os países que se têm efetivamente empenhado na proteção do meio
ambiente do trabalho‖.152
Assim sendo, é da atribuição do Estado a responsabilidade pela saúde,
segurança e higiene do meio ambiente de trabalho dos obreiros que labutam em
condições não subordinadas, ou seja, fora da relação de emprego. Daí porquê a
legislação da Seguridade Social lhes alcança concedendo-lhes proteção, seja através dos
serviços do Sistema Único de Saúde – SUS, assim como através dos benefícios de
Previdência Social e serviços de Assistência Social, a exemplo do chamado ―perìodo de
graça‖, previsto no artigo 15, inciso II, § 2º, da Lei nº 8.213/91, c/c o art. 13, inciso II, §
2º, do Decreto nº 3.048/99.
Há que se destacar que, atualmente, pela legislação previdenciária em
vigor, não há diferenças no valor do benefício e na carência entre os acidentes comuns e
os acidentes de trabalho, assim considerados aqueles sofridos a serviço da empresa por
parte de empregados subordinados, e se estende a mesma proteção previdenciária para
os trabalhadores autônomos, micro-empresários e até mesmo desempregados, que não
perderam a qualidade de segurados da Previdência Social e que foram vítimas de
acidente.
152
GALAFASSI, Maria Cristina. Op. cit., p. 206.
177
7. Saúde do trabalhador na área do trabalho (Lei nº 6.514/77 e
Portaria n 3.214/78, do Ministério do Trabalho)
Com a edição da Lei nº 6.514/77 foi dada nova redação aos artigos
154/201, da CLT, que anteriormente tinha esta matéria intitulada no Capítulo Da
Segurança e Higiene do Trabalho. A nova denominação que se deu é Da Segurança e da
Medicina do Trabalho, pois a expressão ―higiene‖ restringia o enfoque apenas quanto à
conservação da saúde do trabalhador, enquanto que ―o vocábulo medicina é mais
abrangente, pois evidencia não só o aspecto saúde, mas também a cura das doenças e
sua prevenção no trabalho‖.153
Essa parte da norma consolidada é complementada pela Portaria nº
3.214/78, que disciplina sobre várias questões como equipamento de proteção individual
– EPI, atividades e operações insalubres e perigosas, Serviços Especializados em
Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho – SESMT etc.
―O art. 154 da CLT refere-se expressamente à possibilidade de os
Estados e Municípios disporem sobre meio ambiente, segurança e saúde no
trabalho‖.154
Nosso ordenamento jurídico dispõe de 29 Normas Regulamentares – NR
contidas na Portaria nº 3.214/78 e destinadas aos trabalhadores urbanos e ―os
trabalhadores rurais, por seu turno, dispõem de cinco Normas Regulamentares Rurais:
NRR-1 (Disposições Gerais); NRR-2 (Serviços Especializados em Prevenção de
Acidentes do Trabalho Rural - SEPATR); NRR-3 (Comissão Interna de Prevenção de
Acidentes do Trabalho Rural - CIPATR); NRR-4 (Equipamentos de Proteção Individual
- EPI); e NRR-5 (Produtos Químicos)‖.155
Pelos arts. 189 e 190, da CLT, vê-se que as atividades ou operações
insalubres são previamente definidas pelo Ministério do Trabalho, mediante quadro
demonstrativo. E as atividades ou operações perigosas são aquelas reconhecidas por lei
(art. 193/CLT e Lei nº 7.369/85).
―As Normas Regulamentadoras, aprovadas pela Portaria nº 3.214/78,
indicam os padrões que devem ser seguidos pelos empregadores e
têm como objetivo a adequação do ambiente de trabalho. São, por
isso, segundo disciplina a NR 1.1, ―de observância obrigatória pelas
empresas privadas e públicas e pelos órgãos públicos de
administração direta e indireta, bem como pelos órgãos dos Poderes
Legislativo e Judiciário, que possuam empregados regidos pela
Consolidação das Leis do Trabalho – CLT‖.156
Todavia, como bem observa a autora supracitada:
―É claro que os empregadores, na preservação da vida dos
trabalhadores, não estão sujeitos apenas às Normas Regulamentadoras
– que têm o fito de garantir a saúde dos trabalhadores –, haja vista a
disposição contida no art. 5º, § 2º, da Carta de 1988, bem como o art.
200 da CLT e especialmente o art. 6º da Lei Orgânica da Saúde (Lei nº
8.080/90), devendo observar ―outras disposições que, com relação à
matéria, sejam incluídas em códigos de obras ou regulamentos
153
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 13aed., São Paulo: Editora Atlas, p. 559.
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Op. cit., p. 213.
155
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Op. cit., p. 216.
156
ROSSIT, Liliana Allodi. O Meio Ambiente de Trabalho no Direito Ambiental Brasileiro. São
Paulo: Editora LTr, 2001, p. 149.
154
178
sanitários dos Estados ou Municípios, e outras, oriundas de
convenções e acordos coletivos de trabalho (NR 1.2)‖.
8. Saúde do trabalhador na área da previdência social (Lei n 8.213/91
e Decreto n 3.048/99)
A Previdência Social (ou Seguro Social) tem como data-marco o ano de
1883, quando na Alemanha surgiu o denominado seguro-doença, por iniciativa de Otto
von Bismarck.
No Brasil registra-se o nascimento do seguro social através da
dessa instituição).
A saúde do trabalhador brasileiro acha-se amparada pela Previdência
Social, seja sob a forma preventiva, recuperadora, como também reparadora.
Pela Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre os Planos de
Benefícios da Previdência Social e dá outras providências, prevêem-se medidas
preventivas de educação laboral no art. 119, que dispõe: ―Por intermédio dos
estabelecimentos de ensino, sindicatos, associações de classe, Fundação Jorge Duprat
Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho – FUNDACENTRO, órgãos públicos
e outros meios, serão promovidas regularmente instrução e formação com vistas a
incrementar costumes e
atitudes
prevencionistas em matéria de acidente,
especialmente do trabalho‖.
Quanto às normas de natureza recuperadora, cabe destacar os benefícios
substituidores de salários ou renda, como a aposentadoria por invalidez (arts. 42/47,
da Lei nº 8.213/91, c.c os arts. 43/50, do Decreto nº 3.048/99); o auxílio-doença (arts.
59/63, da Lei, c/c os arts. 71/80, do Decreto); pagos ao(a) segurado(a); e pensão por
morte (arts. 74/79, da Lei, c/c os arts. 105/115, do Decreto), paga aos dependentes do(a)
segurado(a); e o serviço de reabilitação profissional (arts. 89/92, da Lei, c/c os arts.
136/140, do Decreto), destinados tanto ao segurado como aos seus dependentes (art. 18,
III, ―c‖, da Lei, c/c o art. 25, III, do Decreto).
E, finalmente, quanto à norma reparadora, tem-se o benefício
denominado auxílio-acidente, de natureza indenizatória, somente pago ao(a)
segurado(a), portador(a) de seqüelas decorrentes de acidente de trabalho (art. 86, da Lei
, c/c o art. 104, do Decreto). Este benefício se restringe ao segurado empregado, exceto
o doméstico, ao trabalhador avulso e ao segurado especial. Pela nova redação dada pelo
Decreto nº 4.032, de 27/11/2001, ao art. 104, do Decreto nº 3.048/99, foi excluído o
médico-residente, que tinha direito por força de lei especial, medida administrativa que
pode ser considerada, pois, ilegal.
Embora prevista na lei previdenciária, a norma trabalhista referente ao
art. 118, da Lei nº 8.213/91, conhecida como estabilidade provisória do acidentado no
emprego, é concedida a todo o segurado da Previdência Social que sofreu acidente de
trabalho, pelo prazo mínimo de doze meses a partir da cessação do auxílio-doença
acidentário, independentemente de percepção de auxílio-acidente. Por esse direito, fica
vedada a despedida arbitrária ou sem justa causa do empregado acidentado urbano ou
rural pelo seu empregador, sob pena de ter de indenizá-lo com valor igual ao da soma
dos salários decorrentes do período da estabilidade.
179
9. Vigilância em saúde do trabalhador no SUS
Em 1975, a ex-Lei nº 6.229 instituiu o Sistema Nacional de Saúde. Em
1987, o Decreto nº 94.657 criou os Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde
– SUDS, nos Estados, tudo feito com o propósito de passar para as unidades federativas
(Estados e Municípios) as ações de saúde. Posteriormente, a Constituição de 1988 tratou
a Saúde como uma das áreas da Seguridade Social (art. 194, caput) e instituiu o Sistema
Único de Saúde – SUS, cujas ações e serviços públicos constituem uma rede
regionalizada e hierarquizada, organizada de acordo com as diretrizes previstas nos
incisos do art. 198.
Por sua vez, a Lei nº 8.080, de 19/09/1990, denominada Lei Orgânica da
Saúde, revogou a Lei nº 6.229/75 e regulamentou o SUS. E, por fim, em 1993, pela Lei
nº 8.689, foi extinto o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social –
INAMPS, o que veio a consolidar o modelo preconizado pela Constituição.
De acordo com a Lei nº 8.212/91, relativa à Organização da Seguridade
Social e seu Plano de Custeio, no seu art. 2º, ―a Saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação‖. Verifica-se, pois, que a saúde é
um direito público subjetivo, que pode e deve ser exigido do Estado, que, em
contrapartida, tem o dever de provê-lo. Trata-se de um dos direitos sociais do cidadão
(art. 6º da CF), reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem,
celebrada pela ONU, em 1948 (art. 25, primeira parte).
O Sistema Único de Saúde envolve ações preventivas e curativas (art.
198, II da CF) e poderá contar com a ajuda da medicina privada, de forma supletiva (art.
199, § 1º da CF). Será financiado com recursos do orçamento da seguridade social
previstos no art. 195, que inclui recursos fiscais da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios e as contribuições sociais arroladas nos incisos I, II e III, além
de outras fontes.
Pelo nosso sistema, a União é a responsável pela regulamentação,
fiscalização e controle das ações e dos serviços de saúde, pois a ela compete estabelecer
normas gerais e partilhar da competência concorrente com os Estados, e o Distrito
Federal, prevista no art. 24, inciso XII, e parágrafos, da Constituição da República.
Depreende-se por saúde do trabalhador um conjunto de atividades que se
destina, por meio das ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, a
promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa a recuperação e a
reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das
condições de trabalho, envolvendo inúmeras atividades específicas, dentre elas:
assistência ao trabalhador acidentado ou portador de doença profissional; participação
em estudos, pesquisas, avaliação e controle dos riscos e agravos potenciais à saúde,
existentes no processo de trabalho; avaliação dos impactos que as tecnologias provocam
à saúde; informação ao trabalhador, à sua respectiva entidade sindical e às empresas
sobre os riscos de acidente do trabalho, doença profissional e do trabalho; participação
na normatização, na fiscalização e controle dos serviços de saúde do trabalhador nas
instituições e empresas públicas e privadas; garantia ao sindicato dos trabalhadores de
requerer ao órgão competente a interdição de máquina, de setor de serviço ou de todo o
ambiente de trabalho, quando houver exposição a risco iminente para a vida ou a saúde
dos trabalhadores.
180
10. Princípio da prevenção e CIPA
O princípio da prevenção está previsto no artigo 12, da Convenção
Internacional nº 155/81, da OIT, relativa à Segurança e Saúde dos Trabalhadores e
ratificada pelo Brasil, que assim preceitua:
―Deverão ser adotadas medidas em conformidade com a legislação e a
prática nacionais a fim de cuidar de que aquelas pessoas que projetam,
fabricam, importam, fornecem ou cedem, sob qualquer título,
maquinário, equipamentos ou substâncias para uso profissional: a)
tenham certeza, na medida do razoável e possível, de que o
maquinário, os equipamentos ou as substâncias em questão não
implicarão perigo algum para a segurança e a saúde das pessoas que
fizerem uso correto dos mesmos; b) facilitem informações sobre a
instalação e utilização corretas do maquinário e dos equipamentos e
sobre o uso correto de substâncias, sobre os riscos apresentados pelas
máquinas e os materiais, e sobre as características perigosas das
substâncias químicas, dos agentes ou dos produtos físicos ou
biológicos, assim como instruções sobre a forma de prevenir os riscos
conhecidos; c) façam estudos e pesquisas, ou se mantenham a par de
qualquer outra forma, da evolução dos conhecimentos científicos e
técnicos necessários para cumprir com as obrigações expostas nos
itens ―a‖ e ―b‖ do presente artigo.‖
Nutridas por este princípio é que atuam as Comissões Internas de
Prevenção de Acidentes – CIPAs, previstas pela NR 5, da Portaria nº 3.214/78,
obrigatórias nos estabelecimentos de empresas que tenham mais de 20 empregados.
A CIPA ―tem por objetivo observar e relatar as condições de risco nos
ambientes de trabalho e solicitar as medidas para reduzir até eliminar os riscos
existentes e/ou neutralizá-los, discutindo os acidentes ocorridos e solicitando medidas
que os previnam, assim como orientando os trabalhadores quanto a sua prevenção‖.
157
A CIPA é composta por representantes da empresa e dos empregados em
número estabelecido por norma regulamentar, sendo a presidência da comissão sempre
destinada ao representante do empregador. Os representantes dos empregados gozam de
estabilidade provisória, prevista no art. 10, inciso II, do Ato de Disposições
Constitucionais Transitórias – ADCT, garantia de emprego esta já prevista no art. 165,
da CLT, antes da Constituição atual, com redação dada pela Lei nº 6.514/77.
Há previsão de criação de CIPA outrossim para empresa rural, definida
na NR 3, da Portaria nº 3.067/88, do Ministério do Trabalho.
12. Acidentes do trabalho, prejuízos sociais e fatores multiplicativos
Os acidentes de trabalho são responsáveis por inúmeras mortes e lesões
dos trabalhadores, causando um ônus pesado ao orçamento da Seguridade Social do
paìs. Segundo o ―Informe de Previdência Social‖, de Outubro de 2001, publicado
pelo MPAS:
―a ausência de segurança nos ambientes de trabalho no Brasil gerou no
ano 2000 um custo de cerca de R$23,6 bilhões para o país, equivalente
157
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 13aed., São Paulo: Editora Atlas, p. 565.
181
a 2,2% do PIB. Deste total, R$5,9 bilhões correspondem a gastos com
benefícios acidentários, aposentadorias especiais e reabilitação
profissional. O restante da despesa refere-se à assistência à saúde do
acidentado, indenizações, retreinamento, reinserção no mercado de
trabalho e horas de trabalho perdidas. No ano de 2000, 343.996
acidentes de trabalho foram registrados no Brasil, o que significa que
de cada 1.000 trabalhadores segurados, 19,18 sofreram algum acidente
de trabalho. Destes, 83,6% correspondem a acidentes típicos (...), o
que demonstra que a grande concentração dos acidentes no Brasil
ocorre dentro da própria empresa, no desenvolvimento rotineiro da
atividade laborativa. O que deve ser ressaltado é que esses dados
podem estar, provavelmente subnotificados, primeiro, em razão da
informalidade das relações de trabalho no Brasil, pois apenas 39,92%
das pessoas ocupadas eram contribuintes da previdência social no ano
de 1999; segundo, em face de o empregador priorizar a notificação
apenas dos acidentes mais graves (...) deixando de lado um número
considerável de acidentes leves e sem maiores repercussões; e,
terceiro, porque a previdência social registra apenas os acidentes
referentes aos segurados cobertos pelo seguro de acidente de trabalho,
o que exclui os trabalhadores autônomos e domésticos‖.
A prevenção dos acidentes de trabalho é alcançada com o estudo e a
aplicação das medidas técnicas oferecidas pela saúde ocupacional. Mediante a
prevenção, busca-se
prevenir, suprimir ou reduzir os fatos apontados como
conseqüência de um trabalho exaustivo e adverso para a saúde do trabalhador. Os fins
alcançados por tais medidas são relevantes, senão vejamos: a) sociais, pois interessa à
população ser constituída por homens e mulheres sadios e aptos para o trabalho; b)
econômicos, pois, se reduzido o número de incapacitados, haverá maior produção e
consumo e se evitará o ônus que implica sua manutenção; c) jurídicos, porquanto se
garante um dos direitos primordiais e inalienáveis do homem: o direito à integridade e à
saúde.158
Através da Lei nº 5.316/67, o seguro sobre acidentes de trabalho,
extensivo às doenças profissionais e do trabalho, passou a integrar as prestações da
Previdência Social, pois o país se alinhou à teoria do risco social mitigado, a qual atribui
à sociedade-contribuinte o ônus do sinistro, uma vez que toda ela se beneficia da
produção, devendo, portanto, arcar com os riscos. A proteção social, neste caso, passa a
ser responsabilidade de todos. Todavia, na verdade, isto ocorreu porque enquanto a
exploração deste setor esteve nas mãos das companhias seguradoras privadas, o
trabalhador brasileiro não gozou da segurança almejada. Foi preciso que os sindicatos
reivindicassem por anos a fio esta conquista, nas décadas de cinqüenta e sessenta, para
que todos passassem a ter a certeza jurídica do pagamento da reparação do risco social
acidentário.
A partir de então, o Seguro sobre Acidente de Trabalho – SAT passou a
ser monopólio do Estado e pela Lei nº 6.195/74, também foi estendido aos trabalhadores
rurais.
Pela atual Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional
nº 20/98, permanece o seguro contra acidentes de trabalho a cargo do empregador, sem
excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa (art.
7º, inciso, XXVIII). Acrescenta-se que a ―lei disciplinará a cobertura do risco de
acidente do trabalho, a ser atendida concorrentemente pelo regime geral de
previdência social e pelo setor privado‖ (art. 201, § 10). Destarte, quando esta lei for
158
RUPRECHT, Alfredo J. Direito da Seguridade Social. São Paulo: Editora LTr, 1996, p. 192-193.
182
promulgada o Estado terá perdido o monopólio neste setor, que vem mantendo desde
1967.
Atualmente esta matéria está regulamentada nas Leis nºs. 8.212 e
8.213/91, nas quais se disciplina, respectivamente, sobre o seu custeio (art. 22 e alíneas)
e sobre conceitos e prestações pecuniárias, conhecidas como benefícios (arts. 19/23,
42/47, 59/63, 74/79 e 86), bem como sobre serviços de habilitação e reabilitação
profissional (arts. 89/92). Os benefícios acidentários se resumem no auxílio-doença,
aposentadoria por invalidez, pensão por morte e auxílio-acidente.
Pela lei brasileira, somente têm direito às prestações acidentárias os
segurados empregados, os trabalhadores avulsos, os segurados especiais e os médicosresidentes. Todavia, atualmente, isto representa diferença somente quanto ao custeio do
RGPS, pois, desde a Lei nº 9.032/95, ―não há diferenciação no tratamento das vítimas
de acidentes em função da espécie do segurado atingido pelo infortúnio‖.159 Segundo
alguns, foi dado importante passo no sentido do aperfeiçoamento da previdência social
em respeito ao princípio da solidariedade social, eis que foram equiparados os
benefícios por acidente do trabalho aos benefícios comuns correspondentes.
O acidente de trabalho apresenta certas características, quais sejam:
decorre de fato súbito, externo, que agride e lesa a integridade psicofísica do trabalhador
em exercício de tarefa que realiza sob relação de subordinação.
É preciso, pois, que o sinistro seja abrupto (com exceção das doenças
profissionais e do trabalho, cujo processo lesivo é lento), ocorra, em regra, no local do
trabalho, durante a jornada de trabalho ou como conseqüência do trabalho e na
execução de trabalho que se realiza por conta alheia. Outra característica importante é
que haja nexo causal entre a lesão ou morte sofrida com a ação gerada com a execução
do trabalho.
Para ROBERTO PESSOA, os elementos caracterizadores do acidente de
trabalho recebem outras denominações, porém para se chegar a mesma conclusão. São
eles:
―1) a causalidade - o acidente do trabalho apresenta-se como um
evento casual, acontece por acaso, não é provocado. Vale dizer: o
elemento constitutivo não integra a intenção da parte em provocá-lo,
embora tal possa ocorrer em alguns casos. Apenas este não é um traço
componente de sua definição; 2) a nocividade - o acidente deve
acarretar uma lesão corporal, uma perturbação funcional física ou
mental; 3) a incapacitação - o trabalhador, em razão do acidente,
deve ficar impossibilitado de trabalhar, seja de forma permanente ou
temporária, trazendo-lhe como conseqüência um lesão patrimonial,
representada pela perda do salário; 4) o nexo etiológico - é a relação
direta ou indireta entre a lesão pessoal e o trabalho subordinado
realizado pela vítima. Esta última característica é de suma
importância, pois não se pode falar em acidente do trabalho
desgarrado da noção de subordinação. Por outras palavras, fora do
contrato de trabalho subordinado, ou seja, do contrato de emprego,
não há acidente do trabalho‖.160
Esses são os requisitos do acidente de trabalho.
O artigo 19, da Lei nº 8.213/91 define o acidente de trabalho clássico,
como sendo aquele que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo
exercício do trabalho dos segurados especiais, referidos nessa Lei (art. 11/VII),
159
PEREIRA DE CASTRO, Carlos Alberto; LAZZARI, João Batista. Op. cit., p. 428.
PESSOA, Roberto. Ação de Indenização decorrente de Acidente de Trabalho: Competência. In:
Revista LTr, ano 65, novembro de 2001, São Paulo, p. 1312-1319.
160
183
provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou
redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho. O artigo 20, por sua
vez, define o que vem a ser doença profissional, como sendo aquela que decorre do
exercício do trabalho peculiar de determinadas categorias profissionais arroladas em
relação feita pelo Decreto nº 3.048/99 (Anexo II), ou, caso comprovado o nexo causal
entre a doença e a lesão, aquela que seja reconhecida pela Previdência Social,
independentemente de constar na relação ( § 2º/Lei nº 8.213/91). Já, por doença do
trabalho entende-se aquela adquirida ou desencadeada em função de condições
especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, estando
elencada no referido Anexo II do Decreto nº 3.048/99, ou reconhecida pela Previdência
Social.
Dando continuidade aos conceitos, equipara-se a acidente de trabalho,
nos termos do art. 21, inciso I, da Lei supramencionada, a chamada concausa, ou seja, a
causa que, embora não tenha sido a única, contribuiu diretamente para a morte do
segurado, para redução ou perda de sua capacidade laborativa, ou produziu lesão que
exija atenção médica para a sua recuperação. Outrossim, equipara-se a acidente de
trabalho, conforme o disposto no art. 21, inciso II, o acidente sofrido pelo segurado no
local e no horário do trabalho em conseqüência de atos cometidos por terceiros ou
companheiro de trabalho; por ato de pessoa privada do uso da razão; e por desabamento,
inundação, incêndio e outros casos fortuitos ou decorrentes de força maior. Também
equipara-se a acidente de trabalho, de acordo com o art. 21, inciso III, a doença
proveniente de contaminação acidental do empregado no exercício de sua atividade e,
nos termos do art. 21, inciso IV, o acidente sofrido pelo segurado, ainda que fora do
local e horário de trabalho, decorrente de serviços praticados a favor da empresa, bem
como o sofrido no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela,
conhecido como o acidente “in itinere‖.
A lei previdenciária, expressamente, elimina aquelas situações que não
são consideradas como doença do trabalho, conforme dispõe o art. 20, § 1º e alíneas.
Para que os benefícios acidentários cobertos pelo seguro social protejam
o segurado dispensa-se a necessidade de existência de dolo ou culpa do empregador,
pois os mesmos são decorrentes da teoria do risco social (financiados por toda a
sociedade), sendo devidos inclusive nos casos de dolo ou culpa da vítima.
Todavia, havendo culpa ou dolo do empregador, pode o trabalhador
pleitear em Juízo uma indenização, com base na responsabilidade civil de natureza
subjetiva do empregador, com pretensão de repor perdas e danos decorrentes da morte,
lesão corporal ou perturbação funcional (art. 7º, XXVIII/CF). Como se vê, a prestação
previdenciária e a reparação civil são acumuláveis, pois são independentes. A primeira
decorre da proteção previdenciária baseada na solidariedade social enquanto que a
indenização decorre de ato comissivo ou omissivo tido como ilícito.
Compete originariamente à empresa a comunicação do acidente – CAT.
Em sua falta, pode formalizar a comunicação o próprio acidentado, seus dependentes, a
entidade sindical, o médico ou qualquer autoridade pública (art. 22, ―caput‖, §2º/Lei nº
8.213/91).
Entende-se que a Justiça do Trabalho é que é a Justiça competente para o
trabalhador ajuizar ação pleiteando indenização contra o empregador, uma vez que não
litiga contra a instituição previdenciária, segundo interpretação do art. 114, da
Constituição Federal. Tal posição se firmou desde que o Supremo Tribunal Federal
entendeu que o pedido de indenização por dano moral decorrente da relação de
emprego, deve ser apreciado e julgado pela Justiça Laboral (RE 238.737-4-SP).
184
O Brasil lidera a estatística vergonhosa de país com o maior número de
acidentes do trabalho e talvez isto se deva pela adesão à teoria do risco social, pois
quem financia em boa parte as prestações acidentárias são os próprios trabalhadores,
muito embora haja um acréscimo de 1, 2 ou 3% sobre o total da folha de pagamento
das empresas cujas atividades preponderantes sejam de risco leve, médio ou grave,
respectivamente (art. 22, II e alíneas/Lei nº 8.212/91), não havendo uma política efetiva
de combate ao acidente do trabalho. Recomenda a OIT, que o financiamento da
cobertura dos acidentes de trabalho deva se constituir em um fundo próprio, de
responsabilidade exclusiva dos empregadores, em consonância com a teoria da risco
profissional,161 que atribui responsabilidade objetiva da empresa, porquanto ―a
produção industrial, ao expor o trabalhador ao risco, impõe ao que dela se beneficia a
obrigação de indenizar, se houver acidente, mesmo sem culpa‖.162
Tal reforma implicaria maior redução ou eliminação de riscos que
causam malefícios à saúde dos trabalhadores, pois os empregadores ficariam atentos às
medidas preventivas de segurança e medicina do trabalho com o fito de não onerar o
fundo de financiamento dos seguros acidentários. Ademais, poder-se-ía aplicar uma
política de estímulos às empresas, no sentido de isentar aquelas que se empenham na
eliminação ou redução dos acidentes do trabalho em suas atividades, onerando, com
efeito, aquelas cuja incidência de sinistros seja maior em seus estabelecimentos.
Porém, para alguns doutrinadores o sistema previdenciário neste aspecto
não é lacunoso, porquanto prevê ação de regresso contra o causador do sinistro,
conforme disciplina o art. 120, da Lei nº 8.213/91: ―Nos casos de negligência quanto às
normas padrão de segurança e higiene do trabalho indicadas para a proteção
individual e coletiva, a Previdência Social proporá ação regressiva contra os
responsáveis‖. O foro competente é a Justiça Federal, ante o dispõe o art. 109, inciso I,
da Constituição. Mas, para tanto, há que ser mobilizada a Procuradoria do INSS para
que incremente este objetivo. E, para tanto, é necessário que a instituição disponha de
maiores recursos humanos.
Trata-se de medida justa, pois, bem argumentam os autores citados:
―(...) a solidariedade social não pode abrigar condutas deploráveis
como a do empregador que não forneça condições de trabalho indene
de riscos de acidentes. Como bem assinalou Daniel Pulino, ´o seguro
acidentário, público e obrigatório, não pode servir de alvará para que
empresas negligentes com a saúde e a própria vida do trabalhador
fiquem acobertadas de sua irresponsabilidade, sob pena de constituirse verdadeiro e perigoso estímulo a esta prática socialmente
indesejável.‖ 163
13. Aposentadoria especial
A aposentadoria especial foi criada pela Lei nº 3.807/60, a conhecida
LOPS – Lei Orgânica da Previdência Social, que tinha como destinatários somente os
trabalhadores urbanos, visto que somente em 1971/73 foi criado o PRORURAL –
Previdência Social Rural, através das Leis Complementares nºs. 11 e 16 e esta não
previa a modalidade dessa aposentadoria para os trabalhadores rurais.
161
OIT. Introducción a la Seguridad Social. Genebra, 1984.
PEREIRA DE CASTRO, Carlos Alberto; LAZZARI, João Batista. Op. cit., p. 437.
163
PEREIRA DE CASTRO, Carlos Alberto; LAZZARI, João Batista. Op. cit., p. 441.
162
185
Nos termos do § 1º, do art. 201, da Constituição: ―É vedada a adoção de
requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos
beneficiários do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades
exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física,
definidos em lei complementar‖.
Por sua vez o art. 15, da Emenda Constitucional nº 20/98 disciplinou:
―Até que a lei complementar a que se refere o art. 201, § 1º, da Constituição Federal,
seja publicada, permanece em vigor os arts. 57 e 58 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de
1991, na redação vigente à data da publicação desta Emenda‖.
Em consonância com o caput do art. 57, supracitado, ― a aposentadoria
especial será devida, uma vez cumprida a carência exigida nesta Lei, ao segurado que
tiver trabalhado sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a
integridade física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme
dispuser a lei‖.
Trata-se de uma aposentadoria excepcional, que intermedeia a
aposentadoria por tempo de contribuição e a aposentadoria por invalidez, porquanto
concede a inatividade antecipada ao segurado que faz prova de que trabalhou em
atividade penosa, insalubre ou perigosa, a qual causou malefícios à sua saúde por
exposição a agentes adversos e de alto risco.
O art. 57, § 4º, da Lei nº 8.213/91, não fala mais em atividades penosas,
insalubres ou perigosas, mas em agentes nocivos, químicos, físicos, biológicos ou
associações de agentes prejudiciais à saúde ou à integridade física do segurado, como as
minas de subsolo, por exemplo.
O conceito de insalubridade pode ser extraído do art. 189, da CLT:
―Serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza,
condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à
saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade
do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos‖. De acordo com a norma
administrativa, há insalubridade quando o trabalhador tem contato com agentes
químicos, físicos ou biológicos, descritos na NR 15, da Portaria nº 3.214/78.
Segundo a redação atual (dada pela Lei nº 9.528/97), do ―caput‖, do art.
58, da Lei nº 8.213/91: ―A relação dos agentes nocivos químicos, físicos e biológicos ou
associação de agentes prejudiciais à saúde ou à integridade física, considerados para
fins de concessão da aposentadoria especial de que trata o artigo anterior, será
definida pelo Poder Executivo‖. Na redação anterior do referido artigo havia
necessidade de que a aludida relação fosse determinada por lei. Agora, basta um decreto
regulamentar do Poder Executivo.
Outrossim, a CLT edita conceito de atividade perigosa quando estipula
no art. 193: ‖São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da
regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, aquelas que, por
sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem o contato permanente com inflamáveis
ou explosivos em condições de risco acentuado‖. Pela NR 16, aprovada pela Portaria nº
3.214/78, é definido o contato e as condições para a configuração da periculosidade. E,
por sua vez, a Lei nº 7.369/85, c/c o seu regulamento, o Decreto nº 93.412/86, também
considerou a atividade dos eletricistas perigosa.
Não há, até hoje, na legislação nacional, a emissão de um conceito de
penosidade, embora a Constituição preveja no artigo 7º, inciso XXIII, um pagamento de
adicional para o exercício de atividade penosa, que requer, pois, regulamentação legal.
Anteriormente, a Lei nº 7.850/89 considerou trabalho penoso o da
telefonista, para efeitos de aposentadoria, todavia, a Lei nº 9.528/97, expressamente, a
186
revogou. E, finalmente, por esta lei ficou determinado que o exercício de atividade com
energia elétrica ou penosa só implica o pagamento de aposentadoria especial até
05/03/1997, se o segurado conta 25 anos ou mais de exercício nessa condição.
A redação do §3º, do art. 57, da lei previdenciária, coloca às claras que o
segurado, para perceber a aposentadoria especial, terá que trabalhar de forma
permanente, não ocasional nem intermitente, em condições especiais que prejudiquem
sua saúde ou sua integridade física durante o período mínimo fixado, pois, do contrário,
não fará jus a ela. Mesmo que a atividade seja nociva, se ela não for exercida de forma
permanente, ou seja, sem interrupção ou suspensão, o trabalhador não fará jus a esta
proteção especial.
A responsabilidade pela comprovação do tempo de trabalho exercido
nessas condições é do segurado, perante o INSS, feita mediante apresentação de
formulário, na forma estabelecida pelo INSS (DSS 18030) e emitido pela empresa ou
seu preposto, com base em laudo técnico das condições ambientais do trabalho
exercido, expedido por médico do trabalho ou engenheiro do trabalho, nos termos da
legislação trabalhista.
Nos termos do § 4º, do art. 58, da Lei nº 8.213/91, compete à empresa
elaborar e manter atualizado ―perfil profissiográfico‖ previdenciário do empregado,
documento histórico-laboral que registra as atividades desenvolvidas pelo trabalhador, o
qual deve ser entregue ao interessado, mediante cópia autenticada, quando da rescisão
do contrato de trabalho.
Fica estabelecido pelo § 8º, do art. 57, da Lei nº 8.213/91, que ao
segurado aposentado nos termos deste artigo é vedado continuar no exercício de
atividade ou operação que o sujeite aos agentes nocivos constantes da relação referida
no artigo 58 desta Lei, sob pena de ter sua aposentadoria automaticamente cancelada. A
medida é mais do que correta, pois não se justifica que o sistema pague um benefício ao
segurado, concedido por trabalhar em condições que lhe prejudiquem a saúde e depois
este continuar a exercer a mesma atividade nociva.
Diante dessa condição, conclui-se que a aposentadoria especial também
não é definitiva, tal qual a aposentadoria por invalidez. O valor desse benefício foi
fixado em 100% do salário-de-benefício do segurado, pela Lei nº 9.032/95, não mais
prevalecendo um percentual mínimo e um acréscimo, dependendo do número de
contribuições, que, anteriormente, estabelecia a redação original do §1º, do art. 57, da
Lei nº 8.213/91.
O financiamento da aposentadoria especial sofreu reforma com a Lei nº
9.732, de 1998, que criou um adicional a ser pago pela empresa, no valor de 6%, 9% ou
12% incidentes sobre a remuneração dos trabalhadores expostos a condições que
ensejam a concessão desse benefìcio. Segundo o ―Informe da Previdência Social‖, de
outubro/2001, do MPAS:
―tal fato demonstra que as empresas tiveram que fazer investimentos
na melhoria do ambiente de trabalho, de forma a propiciar condições
de trabalho salubre para os seus empregados. Como conseqüência,
reduziu-se o número de trabalhadores aptos a pleitearem a
aposentadoria especial‖.
A tendência do sistema securitário é abolir a aposentadoria especial por
ser um benefício que não se funda na cobertura dos riscos sociais elencados nos mais
importantes documentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos do
Homem (art. 25) e a Convenção Internacional nº 102/52, da OIT, os quais indicam a
cobertura dos riscos doença, invalidez, velhice, morte, desemprego, acidentes do
187
trabalho e proteção da maternidade. Com efeito, se o trabalho exercido em condições
adversas levam às contingências da invalidez ou velhice (precoce), é desnecessária a
aposentadoria especial.
14. O papel dos Sindicatos e do Ministério Público do Trabalho na
defesa do Direito Sanitário do Trabalho
As transformações sociais e econômicas que o mundo contemporâneo
tem sofrido, levam o direito e o processo a se adaptarem sob pena de não refletirem as
necessidades e anseios dos indivíduos em geral. A individualização dos direitos e do
processo passa a ser substituída gradualmente pela coletivização, pois esta modalidade
de declaração e defesa passa a ser mais eficiente e segura para a maioria dos cidadãos,
uma vez que lhes preserva ao não lhes expor a seus opositores.
O processo deve ser instrumento de garantia dos direitos materiais, pois
de nada ele serviria se dissociado do escopo de efetividade do direito substancial
tutelado.164
O inciso III, do art. 8º, da Constituição consagra que ―ao sindicato cabe a
defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em
questões judiciais ou administrativas‖. Como se vê, a Constituição conferiu aos
sindicatos legitimação para defender os direitos e interesses individuais e coletivos das
categorias. A dúvida que o referido preceito constitucional gerou é a de que se trata de
legitimação ordinária (representação processual) ou de legitimação extraordinária
(substituição processual).
Para muitos doutrinadores, o preceito constitucional não se refere à
hipótese de substituição processual, mas de simples representação processual, já
consagrada, anteriormente, na alìnea ―a‖, do art. 8º, da CLT. Entende-se por
representação, a defesa da parte pelo representante que atua no processo apenas em
nome do representado, enquanto que por substituição processual, o substituto é parte,
atuando em nome próprio ao defender interesse de outrem. O representante defende
direito de outrem em nome alheio, enquanto que o substituto postula em nome próprio,
direito alheio. Consiste a substituição processual numa legitimação extraordinária,
anômala, conferida pela lei, para que alguém defenda, em nome próprio, como autor ou
como réu, direito alheio em processo judicial, tal como o art. 6º, do CPC, deixa claro ao
disciplinar que ―ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo
quando autorizado por lei‖.
Na substituição processual, o direito de agir não é exercido pelo titular do
direito material, mas pelo substituto processual, que tem legitimidade para esse fim. O
substituto processual é parte; é sujeito da relação processual, que atua no processo em
nome próprio, enquanto que o representante processual, que também defende direito
alheio, não é parte no processo, pois atua em nome alheio. A representação processual
consiste, pois, numa legitimação comum, ordinária, cujo contrato civil denominado
mandato (arts. 1288/1298, do Código Civil) estabelece os direitos e obrigações
recíprocas entre os contraentes.
Na verdade, conforme esclarece AMAURI MASCARO NASCIMENTO:
164
ROCHA, Júlio Cesar de Sá da. Direito Ambiental e Meio Ambiente do Trabalho. São Paulo: Editora
LTr, 1997, p. 71.
188
―a diferença fundamental entre as duas posições está na exigência ou
não da prévia autorização do interessado para ingresso do sindicato
em juízo. Como substituto processual o sindicato independe de
autorização do interessado porque atua em nome próprio na defesa
de direito alheio. Como representante processual depende dessa
autorização porque age em nome do representado, com a respectiva
anuência‖.165
Destarte, seja na condição de substituto processual ou de representante
judicial, pode o Sindicato atuar perante o Judiciário na defesa dos interesses individuais
e coletivos da categoria.
Mas não só o Sindicato pode defender interesses coletivos, pois,
outrossim, o Ministério Público do Trabalho tem legitimidade para tal, com fulcro no
art. 83, incisos I e III, da Lei Complementar nº 75, de 20/05/93, denominada Lei
Orgânica do Ministério Público da União, a qual estabelece que compete ao MPT
―promover as ações que lhes sejam atribuídas pela Constituição Federal e pelas leis
trabalhistas‖, bem como ―promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do
Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais
constitucionalmente garantidos‖.
A Constituição refere-se ao meio ambiente do trabalho no art. 200, inciso
VIII, quando atribui ao Sistema Único de Saúde – SUS ―colaborar na proteção do meio
ambiente, nele compreendido o do trabalho‖.
O Sindicato tem legitimidade para ajuizar ação civil pública, com base no
art. 8º, inciso III, da Constituição, existindo, pois, uma legitimidade concorrente de
ambos, do sindicato e do MPT para atuar na defesa do Direito Sanitário do Trabalho e
da Previdência Social. A diferença entre eles consiste no fato de que o sindicato defende
os trabalhadores que a ordem jurídica protege (art. 8º, III/CF) e o Ministério Público
defende a própria ordem jurídica protetora dos interesses coletivos dos trabalhadores
(art. 127/CF).
Extrai-se das lições do Ministro RONALDO LOPES LEAL, do Tribunal
Superior do Trabalho, a pertinente reflexão, que se segue:
―Os sindicatos, entretanto, não podem instaurar inquérito prévio ao
ajuizamento da ação, o que constitui prerrogativa apenas do
Ministério Público (Lei nº 7.347/85, art. 8º, §1º, CF, art. 129, III, LC
75/93, art. 84, II). Tal impossibilidade legal dificulta, para os
sindicatos, o ajuizamento das ações públicas, na medida em que o
procedimento prévio do inquérito é fundamental para a coleta de
elementos de convicção para a instrução da ação civil pública. A
rigor, os sindicatos apenas teriam condições de ajuizar a ação civil
pública com sucesso nos casos em que a lesão patronal genérica aos
direitos trabalhistas estivesse patente e devidamente documentada em
relação a considerável número de empregados. Na prática, o que tem
ocorrido é os sindicatos oferecerem denúncia perante o Ministério
Público do Trabalho, para que seja apurada a possível existência de
lesão a direitos trabalhistas no âmbito de determinada empresa, de
forma genérica. Dão, assim, cumprimento ao dispositivo legal que
faculta a qualquer pessoa a possibilidade de provocar a iniciativa do
Ministério Público nesse campo, ministrando-lhe informações sobre
fatos que constituam objeto de ação civil pública (Lei nº 7.347/85, art.
6º).‖166
165
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. IV Ciclo de Estudos de Direito do Trabalho. São Paulo: IBCB,
1998, p. 104.
166
LEAL, Ronaldo Lopes. IV Ciclo de Estudos de Direito do Trabalho. São Paulo: IBCB, 1998, p. 173.
189
E, como bem aduz o renomado jurista supracitado:
―podemos concluir, pois, que cabe ação civil pública, no âmbito da
justiça do trabalho para a defesa judicial do meio ambiente do
trabalho; e que o meio ambiente do trabalho não se limita apenas a
condições que respeitem o meio ambiente geral, mas que estabeleçam
a higidez do ´habitat´ laboral, que deve estar livre de ameaças à saúde
e à segurança dos trabalhadores, incluindo, na exigência relativa à
saúde, a fìsica e a mental‖.167
Cabe ao Poder Judiciário Trabalhista, em cumprimento de sua obrigação
de oferecer a prestação jurisdicional, uma vez provocado pelos jurisdicionados, a
determinar o cumprimento da atividade devida ou a cessação da atividade nociva à
coletividade, sob pena de execução específica, ou de cominação de multa diária, a ser
recolhida ao Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT. O importante é que se verifique
que a relação jurídica processual da ação civil pública ajuizada perante a Justiça Laboral
seja originária de relação material de subordinação entre empresa e empregados, sob
pena da Justiça do Trabalho ser declarada incompetente para julgá-la, ante os termos do
artigo 114, da Constituição.
As medidas judiciais que o Sindicato pode utilizar, além da ação civil
pública, são o mandado de segurança coletivo, mandado de injunção, dissídio coletivo,
reclamação trabalhista.
15. Direitos reprodutivos e capacitação trabalhista da mulher
Os direitos reprodutivos da mulher trabalhadora brasileira se constituem
sobretudo nas medidas de proteção à maternidade, tais como o benefício do saláriomaternidade e a estabilidade provisória da gestante, e nas normas legais que
conferem alguma proteção ao aleitamento, como os arts. 396 e 400, da CLT.
A origem da proteção da maternidade efetiva só se deu quando a
legislação determinou que competia à entidade previdenciária este encargo, pois
enquanto esteve conferida ao empregador, a mão-de-obra feminina foi vítima de
discriminação.
Pelo estudo da evolução legislativa das leis do trabalho no Brasil, vê-se
que o Decreto nº 51.627/62 promulgou a Convenção nº 3, da OIT, de 1919, que já
previa o pagamento de prestações para a manutenção da empregada e de seu filho, que
deveriam ser pagas pelo Estado ou por um sistema de seguro. Após esta medida, o
Brasil ratificou a Convenção nº 103, da OIT, de 1952, promulgada pelo Decreto nº
58.020/66, o qual reviu a Convenção nº 3, dispondo que ―em caso algum o empregador
deverá ficar pessoalmente responsável pelo custo das prestações devidas à mulher que
emprega‖ (art. IV, 8). O texto normativo orientava que as prestações devidas à
empregada gestante, tanto antes como depois do parto, deviam ficar a cargo de um
sistema de seguro social ou fundo público, uma vez que a lei não podia impor esse ônus
ao empregador, com o objetivo de evitar a discriminação do trabalho da mulher.168
167
168
LEAL, Ronaldo Lopes. IV Ciclo de Estudos de Direito do Trabalho. São Paulo: IBCB, 1998, p. 170.
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 13aed., São Paulo: Editora Atlas, 2001, p. 524.
190
Por fim, com a Lei nº 6.136/74, é que o salário-maternidade passou a ser
uma prestação previdenciária, integrando o rol de benefícios da Previdência Social (art.
71/Lei nº 8.213/91) e sendo financiado, portanto, pela contribuição previdenciária
patronal.
A atual Constituição estabeleceu o prazo de 120 dias, com garantia do
emprego e do salário (art. 7º, inciso XVIII), atualmente pago pelo INSS e não mais pelo
empregador, como era anteriormente à Lei nº 9.876/99. Trata-se de um benefício
previdenciário, não incluído no atual teto do salário-de-contribuição (R$ 1.430,00), pois
o seu valor consiste numa renda mensal igual à remuneração integral da trabalhadora
gestante (art. 72/da Lei nº 8.213/91), sendo considerado pela lei como salário-decontribuição (art. 28, §2º/Lei nº 8.212/91), o que significa que sobre ele incide a
contribuição previdenciária.
Em caso de parto antecipado ou não, a segurada tem direito aos mesmos
120 dias de licença gestante (art. 93, §4º/Decreto nº 3.048/99) e, em caso de aborto não
criminoso, comprovado mediante atestado médico, a segurada terá direito ao saláriomaternidade correspondente a duas semanas (art. 93, § 5º/Decreto nº 3.048/99).
O nascimento de filhos gêmeos ou parto múltiplo não implica o
pagamento maior ou mais longo do salário-maternidade. Porém, a comprovação da
gravidez durante o aviso prévio implica o direito à empregada dispensada ao saláriomaternidade, pois o período de aviso prévio integra o contrato de trabalho (art. 487, §
1º/CLT).
Uma das questões que tem sido resolvida pela jurisprudência ainda não
uniformizada é a extensão do salário-maternidade à mãe adotiva. Para alguns
magistrados, a mãe adotiva tem direito ao salário-maternidade, pois ela dispensa os
mesmos cuidados ao menor adotado que dispensa a mãe natural ao menor
legítimo.Todavia, a corrente majoritária entende que o constituinte ao empregar a
expressão gestante no art. 7º, inciso XVIII/CF, destinou o direito apenas à mãe
biológica. Porém, entendemos que a interpretação pode ser extensiva, caso haja
equilíbrio financeiro e atuarial no sistema previdenciário nacional, ante o que determina
o inciso II, do art. 201, da Lei Maior, ao prever a ―proteção à maternidade,
especialmente à gestante‖, o que se deduz que, uma vez esta protegida, não deve ser
excluída a mãe adotiva.
A estabilidade provisória da gestante está disciplinada no art. 10, inciso
II, alìnea ―b‖, do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT, que confere
o direito da trabalhadora gestante à garantia de emprego até 150 dias depois do parto.
Tal preceito está previsto na Convenção nº 103/52, da OIT, que proíbe a dispensa da
empregada durante a licença-maternidade ou seu prolongamento.
Pela nossa Constituição, a empregada doméstica não tem garantia de
emprego ou estabilidade provisória de gestante, porquanto, no elenco de direitos sociais,
que o parágrafo único do art. 7º lhe confere, não está incluído o inciso I, cujo art. 10,
inciso II, alìnea ―b‖, do ADCT se reporta. Portanto, ela só faz jus ao salário-maternidade
de 120 dias, previsto no art. 7º, inciso XVIII, da Lei Maior.
Quanto à capacitação da mulher ao trabalho, a tendência legislativa é no
sentido de não se proteger em demasia à mulher, porquanto tais medidas resultam, na
verdade, em práticas discriminatórias. O que se tem feito é combater ostensivamente a
discriminação, por inspiração da OIT, que dispõe sobre a não-discriminação em matéria
de salário (Convenção nº 100/51, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 24/56 e
promulgada pelo Decreto nº 41.721/57) e de emprego ou ocupação (Convenção nº
111/58, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 104/64 e promulgada pelo Decreto nº
62.150/68).
191
Nos informa o autor citado que:
―a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação contra a Mulher foi aprovada pela ONU em 1974,
sendo promulgada pelo Decreto nº 84.460, de 20-3-84. Prevê que os
direitos relativos ao emprego sejam assegurados ´em condições de
igualdade entre homens e mulheres´ (art. 11). Menciona que as
medidas ´destinadas a proteger a maternidade não serão consideradas
discriminatórias´ (§2º do art. 4º)‖. A Lei nº 9.029, de 13-4-95,
estabeleceu normas quanto à proibição de exigência de atestados de
gravidez e esterilização e outras práticas discriminatórias, para efeitos
admissionais ou de permanência da relação jurìdica de trabalho‖.169
O que deve ser ressaltado é de que a Lei nº 9.029/95 desserve para ser
aplicada por analogia em outros casos de pedido de reintegração, v. g. , de portadores da
AIDS, pois se refere tão-somente ―a exames relativos à esterilização (art. 2º, I e II,
―a‖), a estado de gravidez (art. 2º, I) ou controle de natalidade (art. 2º, II, ―b‖),
preceitos que dizem respeito à mulher e não a determinada doença‖.170
As infrações previstas na Lei nº 9.029/95 são cometidas pelo sujeito ativo
do crime, no caso, pessoa física, não podendo ser pessoa jurídica. Poderá, pois, praticar
crime com base nessa lei a pessoa física empregadora e o representante legal do
empregador, nos termos da lei.
De acordo com a legislação internacional e pátria, consagram-se
princípios contra a discriminação, que podem ser assim resumidos:
―É vedado recusar emprego, promoção ou motivar a dispensa do
trabalho em razão do sexo, idade, cor, situação familiar, salvo quando
a natureza da atividade seja notória e publicamente incompatível. Não
é permitido considerar o sexo, a idade, a cor ou situação familiar
como variável determinante para fins de remuneração, formação
profissional e oportunidades de ascensão profissional. É defeso
impedir o acesso ou adotar critérios subjetivos para deferimento de
inscrição ou aprovação em concurso, em empresas em geral, em razão
do sexo, idade, cor, situação familiar ou estado de gravidez‖.171
16. Doenças e agravos do trabalho de notificação compulsória
Praticamente todas as doenças listadas na Portaria nº 1.339/GM, de
18/11/1999, são de notificação compulsória, assim como os agravos surgidos no curso
de sua evolução. É da responsabilidade do empregador a Comunicação do Acidente –
CAT perante o INSS, e portanto, trata-se de controle relevante para a proteção da saúde
do trabalhador (arts. 22 e 23, da Lei nº 8.213/91).
17. Agrotóxicos e resíduos tóxicos
A Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989, dispõe sobre a pesquisa, a
experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento,
169
MARTINS, Sérgio Pinto. Op. cit., p. 528.
MARTINS, Sérgio Pinto. Op. cit., p. 530.
171
MARTINS, Sérgio Pinto. Op. cit., p. 533.
170
192
a comercialização, a propaganda, a utilização, a importação, a exportação, o destino
final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a
fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins. O texto tutela a fauna, a flora, os
atributos da natureza (solo, água, ar) e o ser humano, seja ele empregado ou
consumidor.
A qualidade da legislação nacional é reconhecida por ter uniformizado
em um único texto legal matéria de interesse do Direito Ambiental, sem fracionar em
diplomas legais de Direito Sanitário, Direito do Trabalho e Direito do Consumidor,
aspectos distintos de uma mesma realidade ambiental.172
Uma experiência digna de registro foi a instalação, em 13 de novembro
de 2000, do ―Forum Pernambucano de Combate aos Efeitos dos Agrotóxicos na
Saúde do Trabalhador, no Meio Ambiente e na Sociedade‖, com parceria de órgãos
governamentais, entidades sindicais e organizações não-governamentais, preocupados
em discutir e trabalhar a questão dos agrotóxicos em Pernambuco, unidade federativa
que enfrenta problemas graves em relação à utilização de agroquímicos, entre eles, a
comercialização de produtos sem receituário agronômico, a aplicação de produto
inapropriado para determinada lavoura ou em dosagem excessiva e a inexistência de
local próprio para o descarte de embalagens.173
Iniciativas desse gênero sedimentam os conhecimentos que se
desenvolvem em torno do Direito Ambiental, colaborando com a formação do mais
recente “Direito Sanitário do Trabalho e da Previdência Social”.
18. Bibliografia
BARROS, Alice Monteiro de. A Mulher e o Direito do Trabalho. São Paulo: Editora
LTr, 1995.
CARDONE, Marly A. Previdência, Assistência, Saúde: o não-trabalho na
Constituição de 1988. São Paulo: Editora LTr, 1990.
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NASCIMENTO, Amauri Mascaro. IV Ciclo de Estudos de Direito
do Trabalho. São Paulo: IBCD, 1998.
OIT. Introducción a la Seguridad Social, Genebra, 1984.
172
173
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Op. cit., p. 33-34.
In: MPT Notícias da 6ª Região, Ano I, Nº IV, Julho-Outubro/2001.
193
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Competência. In: Revista LTr, Ano 65, Novembro 2001, São Paulo.
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Profissiográfico. São Paulo: Editora LTr, 2001.
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São Paulo: Editora LTr, 1997.
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SADY, João José. Direito do Meio Ambiente de Trabalho. São Paulo: Editora LTr,
2000.
194
TÓPICOS SOBRE A SAÚDE DO TRABALHADOR PARA
A ATUAÇÃO DA PROMOTORIA
(Heleno Rodrigues Corrêa Filho, Marcos Oliveira Sabino e Vera Regina Lorenz)
Marcos Oliveira Sabino
Médico de Saúde Ocupacional (Sanitarista)
Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CRST) da Prefeitura Municipal de Campinas – SP
Analista Pericial Médico do MPT da Justiça Federal do Trabalho - 15ª Região
[email protected]; [email protected].
Heleno Rodrigues Corrêa Filho
Prof. Assist. Dr. em Epidemiologia
Médico Sanitarista e do Trabalho
UNICAMP/FCM/DMPS
[email protected]
Vera Regina Lorenz
Advogada (OAB/SP) 175106
Enfermeira do Núcleo Vigilância Epidemiológica
Hospital Municipal ‗Dr.Mario Gatti‘ – COREN (SP) nº 41410.
ÍNDICE
Processo saúde/doença no trabalho. Medicina do trabalho, segurança do
trabalho, saúde ocupacional e saúde do trabalhador. Meio ambiente do
trabalho.
Transdisciplinaridade,
interinstitucionalidade
e
interprofissionalidade. Política de saúde do trabalhador no Brasil. O universo
do não-trabalho: responsabilidade pelos desempregados, autônomos e pelas
pequenas e micro-empresas. Saúde do trabalhador na área do trabalho (Lei
nº. 6.514/77 e Portaria nº. 3.124/78 do Mtb). Saúde do trabalhador na área da
previdência social (Lei nº. 8.213/91 e Decreto nº. 3.048/99). Vigilância em
saúde do trabalhador no SUS. Princípios da vigilância em saúde do
trabalhador (Portaria 3.120/98 do MS). Saúde do trabalhador e Normas
Operacionais Básicas do SUS. Indicadores epidemiológicos para a saúde do
trabalhador. Princípio da prevenção e CIPA. Acidentes do trabalho, prejuízos
sociais e fatores multiplicativos. Aposentadoria especial. O papel dos
sindicatos na defesa do direito sanitário do trabalho. Direitos reprodutivos e
capacitação trabalhista da mulher. Doenças e agravos do trabalho de
notificação compulsória. Notificação compulsória de acidentes de trabalho e
abertura da CATs – Comunicação de Acidente de Trabalho. Agrotóxicos e
resíduos tóxicos. Anexos: Code du travail; Guia de Vigilância
Epidemiológica da FUNASA; Meio ambiente do trabalho no setor rural.
Processo Saúde/Doença no Trabalho
O senso comum ocidental historicamente vincula o conceito de saúde ao
seu aspecto negativo, qual seja, ausência de doenças. No dizer de CUNHA, citado por
OLIVEIRA (1), ―etimologicamente o vocábulo ―saúde‖ originou-se do latim (salus,
utis), significando ―estado de são‖ e ainda ―salvação‖. Na mesma obra, encontra-se que
a saúde do trabalhador afigura-se como espécie do gênero saúde, ―havendo canais de
195
interação entre a saúde, no enfoque do Direito do Trabalho, com a saúde pública na
visão do direito sanitário no campo do Direito Administrativo‖ (1, pág. 74).
A Convenção nº 155 da OIT (OLIVEIRA, (1), p.378) define, no seu
artigo 3º, que ―o termo ―saúde‖, com relação ao trabalho, abrange não só a ausência de
afecções ou de doenças, mas também os elementos físicos e mentais que afetam a saúde
e estão diretamente relacionados com a segurança e a higiene no trabalho‖.
Segundo as palavras de CHAVES (10):
―saúde e doença são abstrações necessárias para descrever diferentes
graus de sucesso na interação dos indivíduos com o meio que os cerca
e na dinâmica interna do seu próprio corpo‖. Já o chamado ―setor
saúde‖, assim ―como os demais setores da sociedade, tem fronteiras
imprecisas. É um dos setores sociais, ligado intimamente a outros
setores sociais, como educação, trabalho e seguridade social, e
dependente dos setores econômicos. A expressão setor saúde é usada
principalmente para o nível macro, nível de país. Seu objetivo é
proporcionar à população de um país o nível mais alto de saúde que é
possível alcançar num dado momento histórico com os recursos
disponíveis. Saúde é parte integrante do bem-estar social. Os
indicadores de saúde por conseguinte são componentes essenciais de
indicadores mais complexos de qualidade de vida‖.
Interessante é a conceituação da Saúde como uma das condições
essenciais da liberdade individual e da igualdade de todos perante a lei (art.2º), sendo
direito inerente à pessoa humana, constituindo-se em direito público subjetivo (§ 1º),
sendo o estado de saúde expresso em qualidade de vida (art. 3º), presentes no Código de
Saúde do estado de São Paulo (lei complementar nº 791, de 09.03.1995).
A análise da relação saúde-trabalho é desenvolvida em diversas teorias
atuais, sendo que "aquelas mais evoluídas são unânimes em assinalar a natureza social
e/ou histórica do processo saúde-doença. Seja na sociologia (Dwyer) ou na
epidemiologia social (Laurell, Breilh, Tambelini), vários autores têm revelado as
determinações sociais e o conteúdo histórico desses fenômenos multifacéticos que são a
doença e o acidente de trabalho, ainda que, nas práticas institucionais, prevaleçam as
concepções simplistas das análises dos "fatores de riscos". " (23)
Posicionando-se numa visão crítica quanto ao "paradigma médicobiológico" o qual concebe a doença como um fenômeno biológico individual", LIMA &
LIMA (23) citam LAURELL (24) na sua "caracterização da doença como sendo um
processo de natureza histórica e social", evidenciando ainda os limites daquela
abordagem "para entender e resolver os problemas de saúde em geral e, em especial,
aqueles relacionados ao trabalho", não negando, contudo, toda e qualquer validade ao
paradigma biológico e individual (23).
Seriam, então, as seguintes as limitações do modelo médico-biológico
(assim com de outras abordagens da questão da saúde no trabalho, como a engenharia
de segurança e o direito trabalhista), conforme LAURELL (24), citada por LIMA &
LIMA:
"(1) o agnosticismo voluntário (limita-se a conhecer as relações de
causa e efeito mais imediatas); (2) a fatoração dos riscos e das
condições de trabalho, levando a uma síntese meramente 0somatória
de diferentes "fatores" de risco, sem que se saiba como eles interagem
entre si e com o trabalhador; (3) os princípios de explicação mono ou
multicausais, que também são insuficientes para esgotar a
profundidade dos processos sociais de gênese da doença e a
determinação hierárquica e qualitativa das diferentes causas;
196
finalmente, (4) a concepção desenvolvimentista da saúde, vista como
um estado de equilíbrio a ser atingido, graças à eliminação progressiva
dos agentes patológicos, facultada pelo desenvolvimento técnico".
Medicina do Trabalho, Segurança do Trabalho, Saúde Ocupacional,
Saúde do Trabalhador
As abordagens relativas à relação saúde-trabalho contemplam saltos
qualitativos e marcos referenciais distintos, envolvendo a Medicina do Trabalho174, a
Saúde Ocupacional e a Saúde do Trabalhador. A primeira contempla sua raiz histórica a
partir de 1830, com expansão na primeira metade do século XX. Neste período, os
métodos Taylorista e do Fordismo de produção ―necessitavam do operário sadio, com
baixo índice de absenteísmo e alta produção. Para isso, o médico contribuía
decisivamente no processo de seleção dos mais aptos e no atendimento na própria
empresa, para que o trabalhador pudesse retornar, sem demora, à linha de montagem‖ (1
– p. 59). Em 1834 o governo inglês nomeia Robert Baker como Inspetor Médico de
Fábrica (65). Representa, pois, a Medicina do Trabalho, uma prática centrada na figura
do médico, que se desloca para o estabelecimento produtivo, e que se volta para o
trabalhador adoecido, ―sem interferências nos fatores causais da enfermidade‖ (1 – p.
60).
A etapa da Saúde Ocupacional ganha corpo com o esforço de
reconstrução pós-Segunda Guerra Mundial, com conseqüente aumento de cargas de
trabalho e acidentes de doenças, quando fica patente a ―relativa impotência da medicina
do trabalho para intervir sobre os problemas de saúde causados pelos processos de
produção‖ (68). Paralelamente a isso, a criação da ONU (1945) e da OMS (Organização
Mundial da Saúde – 1946) empreendem saltos qualitativos na compreensão dos direitos
sociais, incluso a saúde. A OMS estabelece, então, que ―a saúde é o completo bem-estar
físico, mental e social, e não somente a ausência de afecções ou enfermidades‖, e que
―o gozo do grau máximo de saúde que se pode alcançar é um dos direitos fundamentais
de todo ser humano, sem distinção de raça, religião, ideologia política ou condição
econômica ou social‖ (OMS – princípios básicos de sua constituição – (1) p. 61).
Desnudava-se a necessidade da participação de outros saberes e
habilidades, além do profissional médico, para uma atuação de prevenção mais efetiva
das doenças e dos acidentes, e que passava pela promoção de mudanças no ambiente de
trabalho, iniciando-se, assim, a participação, entre outros, do engenheiro para melhoria
das condições de Segurança dos maquinismos, processos produtivos e aperfeiçoamento
dos equipamentos de proteção pessoal; do profissional da Higiene Industrial para o
reconhecimento, avaliação e controle dos fatores ambientais e estresses originados do
ou no local de trabalho; do profissional da Ergonomia, estudando e buscando a
adaptação do trabalho ao Ser Humano. Enfim, a abordagem multidisciplinar e integrada
para a prevenção, e para a melhoria das condições, postos, processos e ambientes de
trabalho, marco conceitual da Saúde Ocupacional.
174
Sob o aspecto médico, as relações entre adoecimento e trabalho podem ser encontradas, entre outros,
em Hipócrates (460-375 a.C), sobre o saturnismo; Plínio (23-79 a.C) sobre os mineiros de minas de
chumbo e mercúrio; Ellemborg (1473), sobre as intoxicações pelo chumbo e mercúrio; Georgius
Agrìcola (1556) sobre os acidentes nas minas de ouro e prata e ―asma dos mineiros‖ (silicose). Em
1700 com a sua obra clássica ―De Morbis Artificum Diatriba‖, Bernardino Ramazzini incorpora a
relação doença-trabalho com parte constituinte da patologia médica. Percival Pott (1713-1788) inicia
estudos da relação câncer – ambiente de trabalho (65).
197
As insuficiências do modelo da Saúde Ocupacional, que apesar do
enfoque multiprofissional e inclusão de vários saberes técnicos, não alcança os
resultados esperados (1 – p. 64), faltando ―unidade nas proposições, além da deficiente
formação sobre o assunto‖. Assim, no dizer de MENDES & DIAS (68), as atividades
para melhoria das condições ―apenas se justapõem de maneira desarticulada e são
dificultadas por lutas corporativas‖, pari passu à manutenção de altos índices de
acidentes de trabalho, em especial nos países em desenvolvimento.
Chega-se, no final dos anos 1960 e início da década de 1970, à etapa da
Saúde do Trabalhador, na qual este último luta para abandonar a passividade (apesar de
ser o principal interessado) e alçar-se como sujeito, ativamente exigindo e indicando o
que deveria ser mudado. Estabelecem-se os princìpios e práticas da ―não delegação da
saúde‖, da ―validação consensual‖, da ―não monetização do risco‖, do ―grupo
homogêneo de risco‖ (2). Discutindo o modelo operário italiano de intervenção em
saúde do trabalhador, na década de 1970, BOCCALON (66) refere como condição
básica a ―Organização Sindical implantada na fábrica‖, tendo por princìpios (a) a recusa
aos adicionais de insalubridade, (b) a saúde não delegada ao patrão, nem ao médico,
nem às instituições; (c) a valorização da ―subjetividade operária‖; (d) o confronto
coletivo; (e) a luta primordialmente voltada pela prevenção e saneamento do ambiente
do trabalho; e (f) a participação sindical como elemento fundamental para a
democratização das instituições sanitárias‖ (66).
Como assinalado por MENDES (52, p.25), ―nestes últimos 20 anos, vem
se instituindo a ―saúde do trabalhador‖, que tem como caracterìsticas básicas:
―- a busca da compreensão das relações (do nexo) entre o Trabalho e a
Saúde-Doença dos trabalhadores que se refletem sobre a atenção à
saúde prestada;
- a possibilidade / necessidade de mudança dos processos de trabalho
– das condições e dos ambientes de trabalho – em direção à
humanização do trabalho;
- o exercício de uma abordagem multidisciplinar e intersetorial das
ações na perspectiva da totalidade, buscando a superação da
compreensão e intervenções estanques e fragmentadas sobre a
questão;
- a participação dos trabalhadores, enquanto sujeitos de sua vida e sua
saúde, capazes de contribuir com seu conhecimento para o avanço da
compreensão do impacto do trabalho sobre o processo saúde-doença e
de intervir politicamente para transformar esta realidade (Dias, 1993)‖
(ref. 53).
Continuando, o mesmo autor (52) descreve ainda que ―a saúde do
trabalhador, enquanto processo em instituição, aparece sob práticas diferenciadas em
diferentes momentos e regiões, dentro de um mesmo país, mantendo os mesmos
princípios: trabalhadores buscam ser reconhecidos em seu saber, questionam as
alterações nos processos de trabalho, particularmente a adoção de novas tecnologias,
exercitam o direito à informação e à recusa ao trabalho perigoso ou arriscada à saúde,
buscando a ‗humanização‘ do trabalho (Oddone, 1986; Mendes & Dias, 1991)‖ (ref. 67
e 68).
Marcante, portanto, nessa fase da evolução do direito à saúde do
trabalhador encontrarmos ―a predominância de dois fatores básicos: a participação do
trabalhador e a avaliação do ambiente de trabalho como um todo, e não como a soma de
fatores independentes‖ (OLIVEIRA, (1), pág. 78).
Do ponto de vista legal, enquanto compromisso do Estado e da
Sociedade brasileira, a Saúde do Trabalhador é definida no parágrafo 3º do artigo 6º da
198
Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90), representando ―um conjunto de atividades que
se destina, através das ações de vigilância epidemiológica e sanitária, à promoção e
proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação e reabilitação da
saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de
trabalho‖ e abrangendo um conjunto de atividades definido nos incisos I a VIII daquele
parágrafo.
Meio ambiente do trabalho
―no Brasil, com a Constituição de 1988, foi assegurado tratamento
nunca antes visto em qualquer Carta Constitucional à matéria
ambiental, dedicando-se um capítulo específico sobre meio ambiente
(Capítulo VI do Titulo VIII) e diversas referências ao longo de todo o
texto constitucional. A nível dos Estados-membros, as Cartas
Estaduais também dispuseram sobremaneira sobre a matéria
ambiental, como pode ser observado no Capítulo do Meio Ambiente
das suas Constituições.‖ (3).
Segundo José Afonso da Silva (4), citado por Maria Helena Diniz na obra
―Biodireito‖ (5), o Meio Ambiente seria ―a interação do conjunto de elementos
naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida
humana‖, e abrangeria o meio ambiente natural, o meio ambiente artificial, o meio
ambiente cultural e o meio ambiente do trabalho (CF, art. 200, VIII), integrando este
último, portanto, o sistema do meio ambiente.
A Lei n. 6.938/91, da ―Polìtica Nacional do Meio Ambiente‖, define no
seu artigo 3º, inciso I, que o Meio Ambiente é o ―conjunto de condições, leis,
influências e interações de ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege
a vida em todas as suas formas‖. Segundo o art. 225 da Magna Carta, é conceituado
como ―todo bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida‖.
A expressão ―Meio Ambiente de Trabalho‖ consta tanto na Constituição
Federal, quanto na Convenção nº 155 da Organização Internacional do Trabalho. Pode
ser conceituado ―como a ambiência na qual se desenvolve as atividades do trabalho
humano‖, não se limitando ao empregado, na medida em que ―todo trabalhador que
cede a sua mão-de-obra exerce sua atividade em um ambiente de trabalho‖, no dizer de
Julio César de Sá da Rocha (3). Representa , ainda, ―o local em que se desenrola boa
parte da vida dos trabalhadores, cuja qualidade de vida, por esse motivo,
dependerá da qualidade daquele ambiente‖ (grifo nosso) (DINIZ, (5), pág.582).
Os ensinamentos de ROCHA (3) trazem ainda que:
―a Carta Magna, no Título da Ordem Social (Título VIII), Capítulo da
Seguridade Social (Capítulo II, Seção II), que trata da Saúde em seu
art. 200, VIII (de forma expressa) e o Capítulo do Meio Ambiente
(Capítulo VI), art. 225 (de forma mediata), confirmam,
inquestionavelmente, a categoria do meio ambiente do trabalho. As
normas infra-constitucionais anteriores à Carta Magna não
mencionavam expressamente o meio ambiente do trabalho como
pertencente ao regime sistemático do Direito Ambiental. Com a
Constituição de 1988, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente
(Lei n.º 6.938, de 31 de agosto de 1981) foi recepcionada pela ordem
constitucional vigente. Dessa forma quando a Lei n.º 6.938/81
conceitua o meio ambiente (art. 3º, I), deve ser compreendido nessa
definição legal o meio ambiente do trabalho‖.
199
Apenas para que fique transparente, o art. 1º, III a Lei 6.938/81 define
que a poluição é degradação da qualidade ambiental, resultante de atividades que
direta ou indiretamente prejudiquem à saúde.
O mundo jurídico tem se colocado frente a aplicações práticas e
concretas de defesa do meio ambiente do trabalho sob a mirada da legislação ambiental,
a exemplo de Ação Civil Pública trabalhista175 voltada para proteção da saúde e
segurança dos trabalhadores, proposta pelo Dr. Ronaldo José de Lira, Membro do
Ministério Público do Trabalho (PRT 15ª Região), o qual assim se manifesta:
―Defendendo a aplicação das normas precitadas destacamos o
magistério de Júlio César de Sá da Rocha, verbis:
―O meio ambiente de trabalho deve ter um tratamento consoante ao
sistema jurídico imposto ao meio ambiente pela Carta Constitucional
(CF/88, art.225). Os princípios do direito ambiental constitucional têm
que ser aplicados inteiramente à ambiência do trabalho, inclusive para
que se dê maior unidade e harmonia à estrutura do sistema, facilitando
o conhecimento e interpretação do meio ambiente. (....) A regra e a
interpretação mais lógica que deve-se ter em relação ao meio ambiente
de trabalho é que seus dispositivos tutelam o meio ambiente e
possuem eficácia plena e imediata. (...) Em relação a degradação no
ambiente de trabalho, deve prevalecer o princípio do poluidor/pagador
e da responsabilidade objetiva quando se tratar de poluição na
ambiência de trabalho...‖ In, Meio Ambiente de Trabalho, publicado
na Revista Trabalho & Doutrina, Vol.11, pp.104/111, grifos nossos.
Posta assim a questão, é de se dizer que ex vi do art.8º da CLT, o artigo
4º, inciso VII da Lei 6.938/81, conhecida como Lei de Política Nacional do Meio
Ambiente, tem aqui sua inteira aplicação, máxime ao estatuir a imposição ao poluidor
e ao predador, da obrigação, de recuperar e/ou indenizar os danos causados... Mais
adiante a mesma lei dispõe que: Sem obstar a aplicação das penalidades previstas
neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a
indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados
pela atividade (art.14 § 1º), ou seja, consagra a responsabilidade objetiva.
Referida lei consagra o princípio do poluidor-pagador, aplicável in casu
não apenas pelo descumprimento das normas de medicina e segurança do trabalhado,
mas igualmente, pela exposição dos trabalhadores aos agentes prejudiciais à saúde.
No mesmo sentido Celso Fiorillo preleciona que:
―Ora, se a lei federal define que sempre que houver uma lesão ou
ameaça à saúde ela está embutida no conceito da Lei 6.938/81,
verificada a hipótese de quem é o agente poluidor, ele será
responsável, civilmente, por aquela situação ocasionada. Está é a visão
constitucional e, gostando ou não, achando interessante ou não, todos
temos que nos curvar.
O que vai haver de resultado interessante nessa matéria ? Quando
debatemos o tema a respeito das diferentes possibilidades de dano ao
meio ambiente do trabalho; quando falamos de microclima do
trabalho, problema de luz, problema de ruído, temperatura, umidade;
quando falamos dos chamados contaminadores físicos, químicos,
biológicos; quando falamos da sobrecarga física ou mesmo da
sobrecarga psíquica, aquela que afeta a estrutura fundamental de todos
175
Processo nº 2.198/2000 - 8ª Vara do Trabalho – Campinas / SP. Vide também artigos no site
www.idisa.org.br ,
200
nós, estamos discutindo hipótese de dano. Hipóteses de dano que
acarretam um mal à saúde, não desejado pela Constituição.
Diante desta situação, o que nos resta concluir ? Resta concluir que
sempre que conseguirmos demonstrar a hipótese de dano em matéria
de meio ambiente de trabalho, aplica-se a lei específica acerca da
tutela de Direito Ambiental. E a lei específica não encontra amparo
material na Consolidação das Leis do Trabalho, no Código Civil ou
em qualquer outra legislação. A tutela específica do direito à vida
encontra amparo tão somente numa lei criada para a proteção da saúde
que é a Lei nº 6.938/81.‖ (g.n). In, A Ação Civil Pública e o Meio
Ambiente de Trabalho, in Revista do Ministério Público do Trabalho
da 2a Região, Vol.2, pp.66/67.
À guisa de arremate, ressaltamos que o descumprimento das normas de
medicina e segurança caracteriza um habitat laboral inidôneo, aflorando assim, a lesão
ao meio ambiente de trabalho e a necessidade de se indenizar a coletividade de
trabalhadores. Referido instrumento tem por escopo fomentar a reconstituição, ainda
que de forma indireta, daqueles bens da vida tutelados pelas normas maculadas.
Em sentença prolatada em outra Ação Civil Pública trabalhista176
referente à proteção à saúde dos trabalhadores, o Judiciário também evidencia uma
postura de acolhimento da visão do meio ambiente do trabalho sob proteção e amparo
da legislação ambiental, conforme se expõe:
―Por fim, presente o dano ao meio ambiente do trabalho e as
conseqüentes lesões aos direitos da coletividade de trabalhadores que
prestaram serviços nessas condições no decorrer dos anos de atividade
da ré, bem como o nexo causal entre o dano e a conduta do agressor,
defiro a indenização postulada, no importe de R$ 50.000,00, reversível
ao FAT, tudo com fulcro nas Leis 6938/81 e 7345/87” (grifo nosso).
Como se observa, as conseqüências dessa compreensão do Meio
Ambiente do Trabalho, inserido e amparado no Direito Ambiental são amplas e
profundas, entre outras, aquela apontada por HARB (69), citada na obra ―Biodireito‖, de
Maria Helena DINIZ, (p.571) (5), ou seja, a caracterização do direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado e sadio como um dos Direitos Fundamentais
do Homem, ―por estar intimamente ligado ao direito ao respeito à vida e ao
fundamento do Estado Democrático de Direito, que é a dignidade da pessoa humana
(CF, art.1º, III), penetrando, por isso, em todos os setores jurídicos‖. Avançando,
comenta a autora que ―o direito ao meio ambiente hígido e ecologicamente equilibrado
é o pressuposto para o exercício dos demais direitos fundamentais, considerando-se
que o seu objeto é o direito à vida, abrangendo o direito de viver e a qualidade de
vida‖.
Entre os fundamentos da República, a Constituição Federal de 1988
estabelece ―a dignidade da pessoa humana‖ (art. 1º, III), e entre os seus objetivos
―construir uma sociedade livre, justa e solidária‖ (art. 3º, I), bem como a promoção do
bem de todos sem preconceito ou discriminação (art. 3º, IV). Entre os direitos e
garantias fundamentais define ―a inviolabilidade do direito à vida‖ (art. 5º, caput),
contemplando-se ainda, entre os direitos sociais, a saúde e o trabalho.
176
Sentença do Exmo. Sr. Dr. Décio Umberto Matoso Rodovalho – Juiz do Trabalho Substituto nos autos
do Processo nº 2.721/99 – Vara do Trabalho de Limeira / SP. Ação Civil Pública do meio ambiente
de trabalho, proposta pelo Dr. Ronaldo José de Lira – Procurador do Trabalho – PRT 15ªRegião.
201
O direito à saúde é direito de todos e dever do Estado (CF, art. 196),
sendo ―de relevância pública as ações e serviços de saúde‖ (art. 197), e competindo
ao sistema único de saúde, entre outros: ―VIII - colaborar na proteção do meio
ambiente, nele compreendido o do trabalho‖ (CF, art. 200). Nunca é demais lembrar que
entre as funções institucionais do Ministério Público, encontra-se a de ―zelar pelo
efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos
assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia‖
(CF, art. 129, II).
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela
Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, preconiza:
”Art. XXIII  1. Todo homem tem direito ao trabalho, à livre
escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de
trabalho e à proteção contra o desemprego.” (g.n).
A Magna Carta de 1988 garante ao trabalhador o direito à redução dos
riscos ao trabalho, por meios de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7 º,
XXII). O artigo 225 do mesmo diploma legal prevê o direito de todos ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para
as presentes e futuras gerações.
Nessa linha, uma vez que o meio ambiente de trabalho está inserido no
meio ambiente geral, ensina Sebastião Geraldo de Oliveira (1) (pág. 79) que ―é
impossível alcançar qualidade de vida sem ter qualidade de trabalho, nem se pode
atingir meio ambiente equilibrado e sustentável ignorando o meio ambiente de
trabalho‖. Assinala, ainda, que ―dentro desse espìrito, a Constituição de 1988
estabeleceu expressamente que a ordem econômica deve observar o princípio de defesa
do meio ambiente‖ (art. 170, VI).
Dentro do entendimento que incorpora o meio ambiente laboral no meio
ambiente, vale lembrar que o esforço da Sociedade pela melhoria deste último, pela
intrínseca ligação com aquele, não poderá desconsiderar uma visão e atuação
necessariamente globalizante e integrada. Nesse sentido, ressaltam-se as palavras de
Márcio Túlio Viana (70), ao discutir o direito ambiental e algumas possíveis soluções:
―Vivemos um modelo econômico de forte concorrência. A
palavra de ordem já não é produzir em massa para um consumo
crescente, mas produzir barato para um consumo em retração. Em
outras palavras, trata-se de reduzir custos; e um desses custos é o
próprio Direito. Nas asas da informática, o capital viaja pelo mundo,
em busca de mão-de-obra precária, sindicatos frágeis, políticas fiscais
favoráveis... e meio-ambiente desprotegido. Essa desterritorialização
das empresas fragiliza ainda mais o Estado e – por extensão – o
Direito.
Note-se que os vazios de poder que o Estado vai deixando
não se tornam buracos negros: são reocupados, em boa parte, pelas
grandes corporações, que passam a impor normas, ditar políticas e a
disseminar os seus valores pelo mundo, através de uma nova (ou
velha?) ideologia. Felizmente, como quase tudo na vida, o mal
convive com o bem: a crise do Estado-nação tem permitido que a
sociedade se conscientize de sua força, se sinta mais responsável e se
decida a disputar a reocupação daqueles mesmos espaços‖.
Em caráter complementar, lembra-se, como assinalado por Júlio César de
Sá da Rocha (3), que a legislação infra-constitucional protetiva do ambiente de trabalho,
202
além de disposta na Lei n.º 6.938/81, pode ser encontrada na Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), em especial em seu Título II, Capítulo V, que trata da Segurança e
Saúde do Trabalhador e no Título III (Normas Especiais de Tutela do Trabalho), nas
Portarias do Ministério do Trabalho, mais particularmente na Portaria n.º 3.214 de 08 de
junho de 1978 (que aprova as Normas Regulamentadoras relativas à Segurança e
Medicina do Trabalho), na Lei n.º 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde), nas Leis n.º
8.212/91 e 8.213/91, e na Lei n.º 7.802/89 (agrotóxicos).
Finalizando, socorrendo-nos uma vez mais dos ensinamento de Julio
César de Sá da Rocha (3), faz-se de importância realçar que ―toda construção
doutrinária de atuação do direito ambiental em matéria de segurança do
trabalhador e meio ambiente do trabalho tem como fundamento a tutela dos
interesses difusos e coletivos.‖
Transdisciplinaridade, interinstitucionalidade, interprofissionalidade
Como ensina CHAVES (10), ―até agora o paradigma dominante na
ciência tem nos levado à contínua divisão do conhecimento em disciplinas e destas em
subdisciplinas‖. Assim, frente à totalidade, o conhecimento do mundo acaba sendo
feito por partes, ―com a elaboração dos currìculos básicos em um certo número de
disciplinas consideradas indispensáveis à construção do saber escolar. Tal
simplificação, por outro lado, complicou a compreensão de fenômenos mais
complexos‖, como ensina Kátia Maria Abud (11).
Dessa forma, a complexidade crescente envolvida na análise dos
processos de saúde – doença em relação com o mundo do trabalho e com o meio
ambiente em geral sugere uma busca do inter-relacionamento das várias disciplinas,
que, cada qual no seu âmbito, oferecem abordagens e visões do fenômeno
multifacetado, social e biológico, que é o adoecimento e a morte dos trabalhadores, o
contexto acima.
Assim, entendendo que uma disciplina constitui um corpo específico de
conhecimento ensinável, com seus próprios antecedentes de educação, treinamento,
procedimentos, métodos e áreas de conteúdo (12), socorremo-nos de Piaget (13), para
quem as relações entre as disciplinas podem se dar em três níveis:
1. Multidisciplinaridade — ocorre quando ―a solução de um problema torna
necessário obter informação de duas ou mais ciências ou setores do
conhecimento sem que as disciplinas envolvidas no processo sejam elas mesmas
modificadas ou enriquecidas‖.
2. Interdisciplinaridade — o termo interdisciplinaridade deve ser reservado para
designar ―o nìvel em que a interação entre várias disciplinas ou setores
heterogêneos de uma mesma ciência conduz a interações reais, a uma certa
reciprocidade no intercâmbio levando a um enriquecimento mútuo‖.
3. Transdisciplinaridade — continuando com Piaget, o conceito envolve ―não só
as interações ou reciprocidade entre projetos especializados de pesquisa, mas a
colocação dessas relações dentro de um sistema total, sem quaisquer limites
rìgidos entre as disciplinas‖.
Conforme citado por CHAVES (10), Piaget, há quase três décadas,
considerou que a transdisciplinaridade ainda era um sonho. Seu sonho é hoje uma
203
realidade. Transdisciplinaridade e complexidade se complementam. O avanço da
pesquisa disciplinar reforça a necessidade de estudo da complexidade. Como diz
NICOLESCU(14) ―a complexidade se nutre da explosão da pesquisa disciplinar, e por
sua vez a complexidade determina a aceleração da multiplicação das disciplinas‖. Ainda
o mesmo autor, faz notar que embora a transdisciplinaridade seja confundida muitas
vezes com a multidisciplinaridade e a interdisciplinaridade, porque as três vão além da
disciplina, é preciso destacar o caráter radicalmente distinto da transdisciplinaridade. As
duas primeiras continuam inscritas no quadro da pesquisa disciplinar. No entanto, ―a
transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica, lida com o que está ao mesmo tempo
entre as disciplinas, através das disciplinas e além de todas as disciplinas. Sua
finalidade é a compreensão do mundo atual, para o que um dos imperativos é a unidade
do conhecimento‖ (14).
Interessante notar que, na visão de MORIN (15), ―a história da ciência é
percorrida por grandes unificações transdisciplinares marcadas com os nomes de
Newton, Maxwell, Einstein, o resplendor de filosofias subjacentes (empirismo,
positivismo, pragmatismo) ou de imperialismos teóricos (marxismo, freudismo)‖.
Os comentários e observações anteriores ganham especial realce nas
ações de Saúde do Trabalhador e Saúde e Meio Ambiente, em vista da complexidade
dos saberes e práticas envolvidas. O real desenvolvimento dessas áreas demanda,
continuamente, conhecimentos oriundos de diversificadas formações profissionais,
(exemplo: engenheiros, médicos, operadores do Direito, higienistas, ergonomistas,
trabalhadores com seus saberes gerais e específicos, psicólogos, assistentes sociais, etc)
que necessitam interagir no dia a dia. Exemplo clássico seriam as práticas de
Reabilitação Física e Profissional.
Por outro lado, em face desses mesmos aspectos complexos, a origem
dos diversos atores sociais voltados à Saúde do Trabalhador e Meio Ambiente é
necessariamente múltipla, envolvendo desde setores da Saúde propriamente dita, como
estruturas diversas dentro do aparelho de Estado, até organizações da Sociedade Civil.
Projetos históricos que se vem desenvolvendo desde a última década do século XX
estão dimensionados sobre bases interinstitucionais, o que em vários casos representou
ganhos conceituais e avanços na conquista e estruturação do Direito à Saúde, à
Dignidade e à Vida, dos trabalhadores neste país. Marco prático de tais iniciativas e
buscas, tem-se convênios firmados entre áreas estaduais e municipais de Saúde e
diversos ramos do Ministério Público, e mesmo deste com a Previdência Social 177
Política de saúde do trabalhador no Brasil
Proposta em construção, desde a fase pré-Constituição de 1988, com
exemplo na introdução de Programas de Saúde do Trabalhador em alguns municípios
(no estado de São Paulo, por exemplo, Bauru (1985) (9), Campinas (1986), Salto). Na
realidade, tais iniciativas representavam ações de criação e desenvolvimento à proposta
estatal, do INAMPS, que vinculava um padrão de atendimento essencialmente
177
A título de exemplo, voltados a atuação em defesa da Saúde dos Trabalhadores: convênios do
Ministério Público do Trabalho (MPT) com a Secretaria de Saúde (Programa de Saúde do Trabalhador
do estado do RJ); com a Prefeitura de Campinas (Centro de Referência em Saúde do Trabalhador).
Ainda, o MPE e a Prefeitura de São Paulo /SP. O MP do Rio Grande do Sul e a Previdência Social
(INSS). Ainda, no Paraná, atuação conjunta da Saúde estadual, DRT, INSS, MPE e MPT quanto à
proteção da saúde do trabalhador. Ainda, o Fórum Interinstitucional de proteção à saúde do
trabalhador rural, em Pernambuco.
204
dependente de setores privados, a uma situação de contribuição obrigatória, pelo
trabalhador. Havia também o FUNRURAL e as Santas Casas.
O salto conceitual ocorreu a partir da incorporação à Constituição
Federal da noção do Direito Universal à Saúde, com a criação do Sistema Único de
Saúde – SUS, sucessor do extinto INAMPS na obrigação do atendimento do trabalhador
acidentado ou adoecido pelo trabalho, independentemente da condição de contribuição
previdenciária ou registro de relação formal de emprego.
Alguns outros aspectos que representaram marcos na dinâmica de
estruturação de um política de saúde dos trabalhadores, alguns deles ligados à natureza
em si do SUS, aplicados ao campo específico: controle social (possibilidade de
participação dos trabalhadores); práticas embasadas nas noções de vigilância
epidemiológica e sanitária (informação - ação); assistência à saúde hierarquizada por
complexidade; regionalização; busca da descentralização das ações, etc.
Outros elementos vinculam-se a características mais específicas e mais
novas, como a participação na defesa do meio ambiente, ―nele incluìdo o do trabalho‖,
fonte de questionamentos e campo de debates e dificuldades (haja vista
questionamentos sobre competência entre Justiça Comum Estadual e Justiça do
Trabalho para o regular processamento das Ações Civis Públicas de Prevenção, no meio
ambiente do trabalho, bem como entendimentos diversos sobre a atuação do SUS na
vigilância à saúde nos ambientes de trabalho versus a prática da Inspeção do Trabalho,
pelo Executivo Federal).
Uma breve análise evidencia a progressiva construção de parâmetros
legais e técnico-legais para prover o atendimento à saúde dos trabalhadores, e
progressivamente para as ações sanitárias de prevenção nos ambientes de trabalho (vide
Resolução CIPLAN – 1990; Relatório do GEISAT – 1993; Portaria 3.908/98; Portaria
3.120/98, ambas do Ministério da Saúde). É de se notar que nos primeiros anos após a
Constituição de 1988 houve algum esforço governamental no sentido de promover uma
atuação integrada entre as áreas do Trabalho, Saúde e Previdência, no sentido de
melhorar as condições de atendimento do trabalhador. Esforço esse bastante prejudicado
com a chamada ―era FHC‖, com a suspensão de repasses da Previdência à Saúde, com
os questionamentos da área do Trabalho quanto à atuação do SUS em vigilância dos
ambientes de trabalho, e o refluxo dos entendimentos entre as áreas.
Em especial, nota-se que, apesar da Assistência à Saúde, bem como as
ações de vigilância, participação na normatização, etc, estarem previstas na Lei
Orgânica da Saúde (lei º 8.080/90), e normatização do Ministério da Saúde, ainda é
muito reduzido o número de municípios que executam regularmente as ações previstas
de saúde do trabalhador, em geral simplesmente provendo atendimentos aos acidentados
do trabalho, sendo mais reduzido ainda o número de serviços especializados em doenças
profissionais ou do trabalho, seja para diagnósticos, seja tratamento e reabilitação (os
chamados Centros de Referência em Saúde do Trabalhador ou Programas de Saúde do
Trabalhador). Digno de nota que com eclosão e multiplicação dos casos de adoecimento
por LER/DORT, quadros esses de dores crônicas associados com intenso sofrimento
incapacidade laborativa parcial e permanente, a falta de opção de tratamento e
reabilitação especializados tem trazido adicional transtorno e desgaste a inúmeros
obreiros em todo o país.
Nesse ínterim cumpre ressaltar, em relação às ações e serviços de saúde
(consideradas de relevância pública, art. 197, CF), que entre as funções institucionais
do Ministério Público está a de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos
serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição (art. 129, inciso
205
II, CF), o que vem abrindo um campo de atuação fundamental na interface entre Saúde,
Ministério Público e Poder Judiciário.
Ainda a realçar a Resolução nº 220, de 06.03.1997, do Conselho
Nacional de Saúde, que baseado nos trabalho de sua Comissão Intersetorial de Saúde do
Trabalhador – CIST, trouxe rol de recomendações ao Ministério da Saúde no sentido
publicar portaria para instrumentalizar o SUS para as ações na área da Saúde do
Trabalhador, e nortear a formulação e implantação de uma Política de Saúde do
Trabalhador no SUS. Dentre os principais eixos temáticos, foram propostos:
-
Norma Operacional de Saúde do Trabalhador – NOST/SUS;
Publicação do Manual de Vigilância em Saúde do Trabalhador no SUS;
Preenchimento de Autorizações de Internação Hospitalar nos casos compatíveis
com acidente de trabalho;
Normas para o Cadastramento de Serviços de Assistência à Saúde do Trabalhador
no SUS;
Lista de Doenças Ocupacionais no SUS e a obrigatoriedade de sua notificação;
Reformular o atendimento específico para acidente de trabalho no SIA/SUS
(Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS);
Plano Permanente de Capacitação e Formação de Recursos Humanos para o
desenvolvimento das ações de Saúde do Trabalhador no – SUS;
Nessa linha, foram publicadas portarias ministeriais (18), como a Portaria
MS n.º 3.210/98 (procedimentos básicos para a Vigilância em Saúde do Trabalhador),
Portaria MS n.º 3.908/98 (prestação de serviços nessa área, através de Norma
Operacional em Saúde do Trabalhador), e mais recentemente, a Portaria n.º 1.969/2001
– D.O.U. de 26.10.01 (que dispõe sobre o preenchimento de Autorização de Internação
Hospitalar - AIH, em casos de quadro compatível com causas externas e com doenças e
acidentes relacionados ao trabalho, tornando de notificação compulsória, através de
Portaria Ministerial e no âmbito do SUS, a notificação dos agravos à saúde relacionados
ao trabalho, nos procedimentos dependentes de internação hospitalar (36)), as quais
paulatinamente vêm contribuindo para embasar o processo de estruturação, implantação
e desenvolvimento de uma Política de Saúde dos Trabalhadores no país.
Discutindo a ―Organização da Atenção à Saúde no Trabalho‖, DIAS (40)
assinala a existência de ―indefinição e/ou duplicidade de atribuições, tanto no interior do
SUS, como entre as instituições governamentais, particularmente com o MTE, reflexo
da falta de polìticas institucionais claramente estabelecidas‖ (grifo nosso), situação a ser
superada no processo de implantação de uma política de Saúde do Trabalhador. A
mesma autora ressalta ―que apesar das dificuldades identificadas para a implementação
das ações de saúde dos trabalhadores na rede pública de serviços do SUS, não se pode
deixar de considerar alguns de seus aspectos facilitadores, entre eles a capilaridade do
Sistema de Saúde que, apesar do sucateamento e acelerada privatização do espaço
público, existe, e incorpora tecnologia, dispõe de recursos; as conquistas legais e
técnicas já acumuladas e a possibilidade concreta de construção de uma prática
diferenciada em saúde, transformadora das condições geradoras de doença‖, DIAS (40).
O universo do não–trabalho178: responsabilidade pelos desempregados,
autônomos e pelas pequenas e micro-empresas
178
Conceito expresso por Elizabeth Dias em Tese de Doutoramento – UNICAMP – 1994.
206
Com relação à situação da proteção da saúde dos trabalhadores
vinculados ao chamado Mercado Informal, além de autônomos e cooperados, deve-se
considerar que a realidade jurídica vigente antes da promulgação da Carta de 1988
limitava o direito à saúde como simples direito trabalhista e previdenciário,
consistente em assistência sanitária, hospitalar e médico-preventiva (art. 165, XV da
Constituição de 1967/69), devido como contra-prestação da contribuição previdenciária
(16).
A Ordem Constitucional vigente após 1988 é bastante clara e incisiva
quanto ao direito à Saúde (CF, artigos 196 a 200), bem como ao Meio Ambiente
ecologicamente equilibrado (CF, art. 225). O meio ambiente do trabalho está incluído
no conceito de Meio Ambiente (art. 200, VIII, CF). As ações de Saúde do Trabalhador
estão expressas entre as atribuições constitucionais do SUS (art. 200), sendo definidas
na Lei Orgânica da Saúde (art.6º , § 3º, lei 8.080/90).
As mudanças acarretadas por todo esse novo arcabouço constitucional,
no dizer de RESCHKE, citada por HERMANN (16), embasa e sedimenta uma visão
muito ampla do espaço de atuação do SUS em termos de proteção à saúde, como segue:
―A saúde do trabalhador, como vimos, possui definição legal
específica, que por sua redação revela-se expressivamente abrangente,
compreendendo, segundo comentário de LEILA MARIA RESCHKE,
Procuradora do Município de Porto Alegre, em artigo publicado na
Revista da Procuradoria Geral do Município daquela Capital, pp. 115134, "todo e qualquer trabalhador, regido ou não por CLT, no sentido
de que todos, sem exceção, devem receber cuidado à sua saúde e
proteção no seu ambiente de trabalho".
Trata-se, portanto, de um direito inerente à condição de ser humano do
trabalhador, pertinente sua execução ao sistema constitucionalmente
criado com o fito de realizar a política de saúde pública preconizada
pela Carta Maior: o SUS - Sistema Único de Saúde‖.
A respeito do alcance e do direito à proteção à saúde e segurança no
trabalho, a Dra. Maria de Lourdes Queiroz, Procuradora do Trabalho do MPT – PRT 3ª
Região apresenta uma interpretação ampla do texto constitucional, que daria guarida e
proteção a todo trabalhador, e não somente ao trabalhador empregado, in verbis (17):
― O Artigo 7º da Constituição da República Federativa do Brasil,
estipula em caput:
―São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que
visem à melhoria de sua condição social:
(...)
XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas
de saúde, higiene e segurança ‖;
Estamos convencidos, os membros do Ministério Público do Trabalho,
de que a norma tem eficácia e vigência obrigatória, não só para os
empregadores e instituições que admitem empregados, entendidos
como aqueles que exercem suas atividades sob contrato de emprego,
mas, por primazia da ordem constitucional, para qualquer
estabelecimento ou atividade no qual se desenvolva atividade laboral,
seja qual for o liame jurídico que ligue as partes. Para tornar mais
claro, citemos um exemplo, para o qual se tem voltado na atualidade
as preocupações do órgão que aqui represento: o trabalho cooperativo.
Entendemos, e se pode, dizer por unanimidade que a dação de
trabalho, através de cooperativas, não desobriga a instituição ou a
unidade econômica de reduzir os riscos inerentes à atividade, por meio
da aplicação das normas de Segurança, Higiene e Medicina do
207
Trabalho, em razão de que essa redução constitui direito dos
trabalhadores e não apenas do trabalhador empregado.‖
A já citada Convenção n. 155 da OIT, sobre ―Segurança e Saúde dos
Trabalhadores e o Meio Ambiente de Trabalho‖, no seu artigo 3º define que ―o termo
―trabalhadores‖ abrange todas as pessoas empregadas, inclusive os funcionários
públicos‖ (grifo nosso), conforme OLIVEIRA (1) (p. 378). Nessa linha, apenas a tìtulo
de exemplo, registre-se a Ação Civil Pública do Ministério Público do Estado de São
Paulo (Promotoria de Justiça de Acidentes de Trabalho) contra a Municipalidade de
Campinas (processo nº 2.053/96 – 1ª Vara Cível daquela cidade), ajuizada em face de
ente público com regime estatutário, em vista de transporte inadequado de servidores
operacionais, em condições de risco, contrariando inclusive o artigo 190 da Constituição
daquele estado, que estabelece, in verbis:
―O transporte de trabalhadores urbanos e rurais deverá ser feito por
ônibus, atendidas as normas de segurança estabelecidas em lei‖
Na mesma linha, a Convenção n. 161 da OIT, dos ―Serviços de Saúde do
Trabalho‖ estabelece em seu artigo 3º que ―Todo Membro se compromete a instituir,
progressivamente, serviços de saúde no trabalho para todos os trabalhadores, entre os
quais se contam os do setor público, e os cooperantes das cooperativas de
produção, em todos os ramos da atividade econômica e em todas as empresas (grifo
nosso); as disposições adotadas deverão ser adequadas e corresponder aos riscos
especìficos que prevalecem nas empresas‖.
Nesse ínterim, é interessante registrar legislação estadual específica
aprovada em São Paulo relativa ao o fornecimento, pelo Estado, de luvas e máscaras
descartáveis aos profissionais da área odontológica da rede pública estadual (lei n.º
10.245/SP, de 25/03/1999); bem como legislação para fornecimento de equipamentos de
proteção para trabalhadores do serviço em cemitérios (município de São Paulo); além de
documentos recomendatórios, no SUS, preconizando a adoção de políticas de proteção à
saúde dos trabalhadores do próprio SUS (ou seja, da Saúde).
Saúde do trabalhador na área do trabalho (Lei nº 6.514/77 e Portaria
nº 3.214/78 do Ministério do Trabalho)
A abordagem da saúde no trabalho a partir da legislação trabalhista
remonta à primeira metade do século XX, com incorporações progressivas, até a Lei
6.514/77 e a Portaria 3.214/78 do MTb (Normas Regulamentadoras), previstas no artigo
200 da CLT.
A Consolidação das Leis do Trabalho estatui como dever das empresas
(texto introduzido pela lei 6.514/77), entre outros:
a) cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do
trabalho (art.157, I);
b) instruir os empregados através de ordens de serviço, quanto às
precauções no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças
ocupacionais (art. 157, II)
c) adotar as medidas que lhe sejam determinadas pelo órgão regional
competente (art.157, III);
208
d) A empresa é obrigada a fornecer aos empregados, gratuitamente,
equipamento de proteção individual adequado ao risco e em perfeito
estado de conservação e funcionamento, sempre que as medidas de
ordem geral não ofereçam completa proteção contra os riscos de
acidentes e danos à saúde dos empregados (art.166);
e) As edificações deverão obedecer aos requisitos técnicos que
garantam perfeita segurança aos que nela trabalham (art.170);
f) Os pisos dos locais de trabalho não de verão apresentar saliências,
nem depressões que prejudiquem a circulação de pessoas ou a
movimentação de materiais (art.172);
g) Será obrigatória a colocação de assentos que assegurem postura
correta ao trabalhador, capazes de evitar posições incômodas ou forçadas,
sempre que a execução da tarefa exija que trabalhe sentado (art.199);
h) Quando o trabalho deva ser executado de pé, os empregados terão à
sua disposição assentos para serem utilizados nas pausas que o serviço
permitir (art. 199, parágrafo único);
De outra parte, o art. 154 da CLT estabelece que a observância, em todos
os locais de trabalho, do disposto neste capítulo, não desobriga as empresas do
cumprimento de outras disposições que, com relação a matéria, sejam incluídas em
códigos de obras, regulamentos sanitários dos estados ou municípios em que se
situem os respectivos estabelecimentos.
Por fim, em cumprimento às disposições legais supramencionadas o
Ministério do Trabalho, com base no art. 200 da CLT, editou a Portaria nº 3.214/88,
aprovando as Normas Regulamentadoras relativas à medicina e segurança do trabalho,
cuja a inobservância, afronta direitos indisponíveis dos trabalhadores. Atualmente em
número de 29 (a trigésima, sobre trabalho portuário está em vias de passar a ter vigência
legal), abordam pormenorizadamente assuntos ligados desde Ordens de Serviço de
Saúde e Segurança (NR-1), os Serviços Especializados de Engenharia e Medicina do
Trabalho nas empresas (NR-4), Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA –
NR-5); Equipamentos de Proteção Individual (EPI – NR-6); Programas de Controle
Médico de Saúde Ocupacional (NR-7); Programa de Prevenção de Riscos Ambientais
(NR-9); Edificações (NR-8); Eletricidade (NR-10); Proteção de Máquinas (NR-12);
Atividades Insalubres (NR-15); Atividades e operações perigosas (NR-16); Construção
Civil (NR-18); Condições de Conforto e Sanitárias (NR-24), entre outras;
Cumpre lembrar o processo de negociação tripartite promovido pelo
Ministério do Trabalho, e recomendado pela Organização Internacional do Trabalho OIT, voltada para melhoria negociada das condições de trabalho, do ponto de vista de
Saúde e Segurança, e envolvendo representação do setor estatal, de trabalhadores e
empresariado, entre cujos resultados, a título de exemplo, cita-se: a Comissão Nacional
Permanente do Benzeno (CNPBz), dos Setores de Mineração (CNPM) e da Construção
Civil (CPN). Alguns exemplos de contratação coletiva, construídos no âmbito de
procedimentos negociais tripartites têm repercutido em avanços em relação a situações
mais específicas, como o Acordo sobre Proteção de Prensas Injetoras, no estado de
São Paulo. Outros procedimentos negociais, entretanto, têm sido alvo de
questionamento por representações e associações de trabalhadores, como no caso do
Amianto (vide site da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto – ABREA –
www.abrea.com.br).
Deve-se assinalar, ainda, questionamentos levados ao Poder Judiciário,
através do Ministério Público, e que expõem entendimentos diversos quanto ao poder-
209
dever do Executivo Federal (por intermédio das Delegacias Regionais do Trabalho) de
fiscalizar, nos termos estabelecidos pela CLT, se nas Convenções e Acordos Coletivos
de Trabalho estão sendo cumpridas em conformidade com as normas legais de proteção
ao Trabalho.
Toma realce, ainda, a Portaria nº 865/95 do Ministério do Trabalho que
impõe às DRTs o recebimento e depósito das Convenções e Acordos Coletivos de
trabalho, sem verificação da harmonia dessas normas convencionais com a legislação
trabalhista, bem como a vedação expressa do exame do mérito das disposições
avençadas. Perante tal portaria, registra-se a Ação Civil Pública do Ministério Público
Federal (processo nº 97.0025389-9) contra a União, proposta na 3ª Vara Federal de
Fortaleza – CE (Justiça Federal da 5ª Região), para declarar nula a citada portaria do
MTb. Tal Ação foi objeto de concessão de liminar e sentença favorável ao pleito do
MPF, de 09 de agosto de 1999.
Equivocada, também, a prática da monetização do risco (1), mantida
pela CLT e que redunda no pagamento pela saúde do trabalhador, sendo quiçá o Brasil
"o único país a instituir o adicional de insalubridade e periculosidade", utilizando-se "de
prática abolida em vários países, a compra da saúde do trabalhador em suaves
prestações" (26).
Cumpre também assinalar a falta de atualização dos Limites de
Tolerância Ambientais para uma série de substâncias químicas tóxicas, previstos no
Anexo 11 da Norma Regulamentadora nº 15 (Atividades e Operações Insalubres). Em
expresso desacordo com o item 3 do artigo 8 da Convenção nº 148 da OIT, a maior
parte desses limites de concentrações ambientais no Brasil "não são revistos desde
1978" (25), tendo algumas substâncias previsão de concentrações admissíveis várias
vezes (até centenas) superiores àquelas estipuladas, no presente, nos países
desenvolvidos (26), (27). Aliás, como assinala COLACIOPPO (27) "a NR-15 como se
encontra hoje, está anacrônica, incompleta e equivocada".
Na realidade, como asseguram COLACIOPPO & DELLA ROSA (30),
―na NR 15 encontram-se valores adaptados da ACGIH179 de 1977 e reduzidos a 78%
em virtude de nossa jornada mensal de 48 horas (em 1978) com 40 horas do padrão da
ACGIH‖.
Assinale-se, finalmente, que a Norma Regulamentadora nº 9 (Programa
de Prevenção dos Riscos Ambientais) (29), o subitem referente às MEDIDAS DE
CONTROLE determina a observação dos Limites de Tolerância previstos na NR-15, e
na ausência destes, os valores de limites de exposição ocupacional adotados pela
ACGIH (obviamente atuais, e na sua maioria, quanto aos agentes químicos, com valores
inferiores aos admitidos no Brasil), ou valores mais rigorosos de negociações coletivas.
Cabe a lembrança de que os valores presentes na NR-15 são usados nas perícias técnicas
de reclamatórias relacionadas ao Adicional de Insalubridade, na Justiça do Trabalho, e
eventualmente nos Laudos Técnicos obrigatórios para a concessão da Aposentadoria
Especial por condições insalubres, perante o INSS (28), conforme Decreto nº 3.048/99.
As possíveis conseqüências à saúde dos trabalhadores seriam a possibilidade de
exposição à condições ambientais mais degradadas, bem como a possibilidade de
permanência por maior período de tempo trabalhando nessas condições, já não aceitas
países desenvolvidos.
Socorrendo-nos uma vez mais de COLACIOPPO & DELLA ROSA (30),
fica a orientação de se ―utilizar sempre que possìvel os padrões preconizados pela
ACGIH, pois esses são técnica e cientificamente recomendados e revisados anualmente,
179
ACGIH - American Conference of Governmental Industrial Higyenists
210
não sendo tão sensíveis às influências político-sociais normalmente encontradas na
legislação‖.
Aspecto mais recentemente abordado refere-se à responsabilidade
criminal de engenheiros e médicos, no exercício da profissão e em atividades voltadas
para a proteção da saúde e a vida dos trabalhadores. Segundo QUEIROZ (17), além dos
tipos penais mais comuns (homicídio doloso ou culposo; lesão corporal culposa; perigo
para a vida ou a saúde de outrem) poder-se-iam citar: (a) exercício de atividade com
infração de decisão administrativa (CP, art. 205); (b) omissão de notificação de doença
(CP, art. 269, agente do crime: somente o médico, por exemplo, no caso de omissão de
emissão da CAT – Comunicação de Acidente de Trabalho); (c) crime de frustração de
direito assegurado por lei trabalhista, mediante fraude ou violência (CP, art. 203); (d)
falsidade ideológica (CP, art. 299); (e) falsidade de atestado médico (CP, art. 302). Tais
possíveis capitulações ganham relevo frente à ênfase da legislação trabalhista e
previdenciária na crescente quantidade de documentos sob responsabilidade dos
profissionais vinculados às questões de proteção da saúde dos trabalhadores (tais como
atestados, laudos técnicos, laudos periciais, laudos de aposentadoria, de avaliação de
incapacidade laborativa, de nexo de causalidade, resultados analítico-laboratoriais,
programas prevencionistas, como PCMSO (NR-7), PPRA (NR-9), PCMAT (NR-18),
etc), documentos os quais devem fielmente refletir a realidade do meio ambiente de
trabalho, e das condições de saúde e segurança daqueles que nele laboram.
Saúde do trabalhador na área da previdência social (Leis 8.213/91,
8.212/91 e Decreto n. 3048/99)
A Lei 8.213/91 (nos artigos 19 e 20) conceitua do ponto de vista jurídica
os acidentes de trabalho, doenças profissionais e do trabalho; responsabilidade da
empresa pela prevenção bem como obrigação de prestar informações pormenorizadas
sobre os riscos da operação a executar e do produto a manipular (direito de saber);
define uma lista fechada de doenças profissionais ou do trabalho, porém admite que
poderão ser estabelecidos nexos causais, em situações especiais, com reconhecimento
pela Previdência Social; estabelece a estabilidade previdenciária (12 meses) após gozo
do auxílio doença acidentário; obrigatoriedade do serviço médico de empresa abonar
atestados médicos - art.60, § 4º (na prática acarreta conflito com a finalidade
eminentemente prevencionista do SESMT, em especial como previsto na NR-7 e
Convenção n. 161 da OIT, artigo 15); Reabilitação Profissional; Seguro de Acidentes de
Trabalho (estratégias de privatização); integração das Pessoas Portadoras de
Deficiências.
O Decreto 3.048/99, entre outras medidas, regulamenta a notificação
compulsória dos acidentes de trabalho (empresa), notificação via CAT para fins de
estatística e epidemiologia, Ações Regressivas; listagem de doenças ocupacionais e
agentes agressivos ocupacionais.
Várias Ordens de Serviço disciplinam as práticas técnico-admistrativas
da Perícia Médica do INSS com relação às doenças ocupacionais (DOU de 20.08.98),
em especial as OS de nº 606 (abordando a prática médico-pericial sobre os quadros de
LER/DORT), nº 607 (Perda Auditiva Induzida pelo Ruído), nº 608 (Benzenismo, ou
intoxicação pelo Benzeno), e nº 609 (Pneumoconioses). Foram ainda editados
protocolos de orientação da prática médico-pericial (na caracterização das doenças
ocupacionais e da incapacidade laborativa); incorporada pela Previdência a mesma
listagem de doenças relacionadas ao trabalho estabelecida pelo SUS; e mais
211
recentemente a Instrução Normativa nº 57, de 10.10.2001, em mais de 600 artigos,
estabelece critérios a serem adotados pelas linhas de Arrecadação e de Benefícios da
Seguridade Social.
Deve-se salientar que, a rigor, a Previdência Social teria elementos
reconhecidamente fortes como elementos para forçar a implantação de efetivas políticas
de prevenção nas empresas (conforme previsto na legislação), como o instrumento das
Ações Regressivas, por exemplo. Nesse sentido, a interação entre a interação entre as
diversas instâncias do aparelho de Estado poderia representar um reforço. Sentença do
Exmo. Sr. Dr. Leo Minoru Osawa, da 3ª Vara do Trabalho de Campinas/SP,
exemplificadora de possíveis empregos e implicações da legislação previdenciária 180 :
―A incúria e a negligência da ré pela não observância das normas de
higiene e segurança do trabalho traz transtornos e prejuízos na órbita
da Previdência Social, principalmente na concessão de benefícios que
podem ou já foram pagos, em favor de trabalhadores que, porventura,
foram afetados por doenças profissionais relacionadas com as
condições inadequadas de trabalho da aludida fábrica.
Diz a lei que ―Nos casos de negligência quanto às normas padrão de
segurança e higiene do trabalho indicados para a proteção individual
e coletiva, a Previdência Social proporá ação regressiva contra os
responsáveis‖ (art. 120, da Lei nº 8.213/91).
Portanto, ―ex-officio‖, em razão do interesse público dos fatos,
determino a remessa de cópias deste julgado ao Procurador Regional
do INSS de Campinas, para as providências que reputar cabíveis em
relação a benefícios previdenciários eventualmente pagos a
empregados e ex-empregados da ré, por culpa da ré.
Determino ao autor da ação que, no momento oportuno, diligencie
sobre as condições atuais da fábrica e solicite ao órgão ministerial
responsável, em foro competente, a aplicação as sanções previstas no
§§ do art. 19, da Lei nº 8.213/91. ‖
Registrem-se, também, exemplos da atuação do Ministério Público
Federal frente à Previdência Social, com conseqüências diretas para a Saúde dos
Trabalhadores: ação civil pública nº 2000.71.00.030435-2, alterando os critérios e
parâmetros para concessão da Aposentadoria Especial (4ªVara Federal Previdenciária de
Porto Alegre – RS / TRF 4ª Região, com liminar concedida); Ação Civil de
Improbidade Administrativa contra Supervisor Médico-Pericial do INSS de Cascavel –
PR, em vista de atuação como médico de empresa e no serviço público, em tese com
prática de advocacia administrativa (processo nº 99.6011011-7, perante a 1ª Vara
Federal de Cascavel – PR / TRF 4ª Região, com liminar concedida, afastando o servidor
público federal).
Assinale-se, ainda, com relação à Aposentadoria Especial, em função da
liminar concedida ao MPF (41), o INSS viu-se na contingência de elaborar as Instruções
Normativas n.º 42 e, sucessivamente, n.º 49 (de 03.05.2001, DOU 14.05.2001),
alterando os parâmetros para o reconhecimento das atividades exercidas sob condições
especiais, em cumprimento à decisão judicial da antecipação de tutela181. Do ponto de
vista da prevenção do adoecimento ocupacional, a redução efetiva do tempo de
180
Nessa linha, cite-se a Sentença proferida nos autos da Ação Civil Pública contra a empresa química,
Processo nº 1.160/99, 3a Vara do Trabalho de Campinas/SP.
181
Atualmente vigente a Instrução Normativa DC/INSS nº 57, de 10.10.2001.
212
exposição aos agentes agressivos ambientais é uma das modalidades de proteção da
Saúde, o que exemplifica de forma eloqüente o alcance da atuação do Ministério
Público e do Poder Judiciário na tutela coletiva dos direitos e da saúde dos
trabalhadores.
Vigilância em saúde do trabalhador no SUS
As ações de Vigilância à Saúde dos Trabalhadores, no âmbito do Sistema
Único de Saúde, buscam contribuir para a concretização do direito à Saúde, preceito
constitucional de caráter universal (art. 196, CF) (independente de qualquer requisito
previdenciário ou securitário) e que ―expressa, na verdade, um supedâneo do direito
à vida e à dignidade da pessoa humana, princípios basilares da ordem
constitucional vigente e espelho dos direitos fundamentais absolutos assinalados ao
Homem‖ (16). Dessa forma, a Dra. Leda Maria Hermann, Promotora de Justiça, ao
buscar entender e situar a Saúde do Trabalhador como questão de Direitos Humanos
assevera:
―Os direitos fundamentais da pessoa humana não se limitam ao
ordenamento jurídico estatal de cada nação soberana; antes disso,
constituem-se em direitos supra-estatais.
Estes direitos fundamentais, ditos absolutos, não se configuram em
mera criação jurídica, mas antes decorrem da evolução da humanidade
e dos princípios edificados ao longo de séculos de civilização. Por isso
mesmo possuem um caráter imperativo, pétreo, intangível. O Estado
não os outorga, mas apenas os reconhece e garante, regulando-os e
estabelecendo os meios lícitos à sua defesa, exercíveis, pelo titular dos
mesmos (o Homem/Indivìduo), mesmo contra o próprio Ente Estatal.‖
Dentro de um posicionamento confluente, COAN (20) discute a base de
uma série de preceitos presentes no texto constitucional, como a sociedade livre, justa e
solidária, saúde, proteção do meio ambiente, entre outros, estatuindo que o "substrato,
porém, está na dignidade humana como princípio fundamental e absoluto", sendo a
pessoa "o valor-fonte de todos os valores ou o valor fundante da experiência ética" (21).
Continuando o mesmo autor (20), assinala que o citado substrato liga-se
"ao sentido que cabe ao homem - em seu valor intrínseco - no cumprimento de sua
missão neste mundo, implicando um compromisso do Estado e das pessoas - respeito e
proteção mútuos - para com a vida e a liberdade de cada um, com a certeza de que as
virtudes de cada qual poderão se expandir e concretizar‖. Possibilita-se, assim, o
entendimento da exigência enunciada por Kant como ―Segunda fórmula do imperativo
categórico‖: "Age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como
na pessoa de qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamente
como um meio" (grifo nosso). Esse imperativo estabelece que todo homem, aliás, todo
ser racional, com fim em si mesmo, possui um valor não relativo, mas intrínseco, ou
seja, a dignidade (22).
Como forma de viabilizar o direito à Saúde, a Constituição previu a
criação e implantação do Sistema Único de Saúde - SUS, estabelecendo entre suas
atribuições, no artigo 200, aquela de ―executar as ações de vigilância sanitária,
epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador‖, além de ―colaborar na
proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho‖.
213
Regulamentando o Texto Constitucional, foi editada a Lei Orgânica da
Saúde - Lei nº 8080/90, a qual estabeleceu como área de atuação do SUS a execução de
ações relativas à Saúde do Trabalhador (art. 6º, inciso I, alínea c), definida como "um
conjunto de atividades que se destina, através das ações de vigilância
epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos
trabalhadores, assim como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos
trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho"
(§ 3º do citado artigo).
A Lei nº 7.853/89, ao dispor sobre o apoio às pessoas portadoras de
deficiência, estabelece no seu artigo 2º que ―Ao Poder Público e seus órgãos cabe
assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos
básicos....‖, sendo que no parágrafo único: ―Para o fim estabelecido no caput deste
artigo, os órgãos da Administração Direta e Indireta devem dispensar, no âmbito de sua
competência e finalidade, aos assuntos objeto desta Lei, tratamento prioritário e
adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas:
II – na área da saúde:
(...)
b) o desenvolvimento de programas especiais de prevenção
de acidentes do trabalho (grifo nosso) e de trânsito, e de
tratamento adequado a suas vítimas;”
No âmbito da Vigilância Sanitária, cabe destaque ainda à Portaria nº 453,
de 01.06.1998, da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, que aprovou o
Regulamento Técnico estabelecendo as diretrizes básicas de proteção radiológica
em radiodiagnóstico médico e odontológico, dispondo ainda sobre o uso dos raiosX diagnósticos no país, e que contempla elementos normativos diretamente afetos à
preservação da saúde dos trabalhadores ligados à área da saúde. Assinale-se que
algumas Secretarias de Saúde dos estados também oficializaram procedimentos técnicos
relativos ao mesmo tema.
Merece citação, pelo alcance e abrangência, a normatização promovida
pelo Ministério da Saúde quanto à procedimentos obrigatórios para a garantia da
qualidade do ar de interiores e prevenção de riscos à saúde aos ocupantes de ambientes
climatizados, através da Portaria MS nº 3.523, de 28 de agosto de 1998, bem como
Resolução nº 176, de 24 de outubro de 2000.
Numa linha de atuação integrada, o Ministério da Saúde em conjunto
com o Ministério do Trabalho normatizaram o uso e condições de segurança no
emprego do Óxido de Etileno, produto químico cancerígeno e utilizado nas atividades
de esterilização de materiais e produtos ligados à área de saúde, através da Portaria
Interministerial nº. 482, de 16 de abril de 1999, assim como as ações de inspeção sob
responsabilidade de cada ministério.
Salientando sempre a importância do binômio INFORMAÇÃO – AÇÃO,
e dentro de uma visão abrangente de Vigilância à Saúde, interessa lembrar a progressiva
busca de criação e implantação de instrumentos e de sistemas de informação em saúde
do trabalhador em alguns estados brasileiros (vide item referente à notificação
compulsória), com a incorporação da sistemática de trabalho baseado em informações
em saúde como um dos suportes para a atuação de vigilância do meio ambiente de
trabalho.
Ainda como base para ações de Vigilância em Saúde do Trabalhador,
observa-se a presença, em diversas Constituições estaduais, de artigos vinculados à
proteção da saúde dos trabalhadores (exemplo: Constituição do Estado de São Paulo, do
214
Título VIII - Disposições Constitucionais Gerais - artigo 296 - " É vedada a concessão
de incentivos e isenções fiscais às empresas que comprovadamente não atendam às
normas de preservação ambiental e as relativas à saúde e à segurança do
trabalho"). Na obra ―Os Estados Brasileiros e o Direito à Saúde‖ (20) DALLARI
elenca diversos outros dispositivos presentes nas Constituições, aplicáveis à questão,
como ―o direito de recusa ao trabalho em ambiente sem controle adequado de risco,
com garantia de permanência no emprego (Ceará, Sergipe, Rondônia, São Paulo, Rio de
Janeiro e Pará), bem como a obrigatoriedade de transporte adequado para os
trabalhadores (Constituição de SP, art. 190); e mesmo a obrigatoriedade de CIPAs nos
órgãos da Administração Pública direta e indireta (SP, artigo 115, XXV; Pará, art.335).
Dentro das competências previstas constitucionalmente e atribuições
dadas pela Lei Orgânica da Saúde (lei 8.080/90), diversos estados e municípios
passaram a elaborar legislações de natureza sanitária, algumas com grande impacto e
preenchendo lacunas históricas na luta pela promoção e prevenção do adoecimento dos
trabalhadores, de impacto potencial muito importante, como por exemplo (18):
- Proibição de instalação de empresas utilizadoras de jateamento de areia na
indústria naval (estado do Rio de Janeiro – lei estadual nº 1.979/92) – Risco:
SILICOSE;
- Prevenção dos adoecimentos relacionados às Lesões por Esforços Repetitivos
(estado do Rio de Janeiro – lei estadual nº 2.586/96);
- Instituição de Política Estadual de Qualidade Ambiental Ocupacional e
Proteção da Saúde do Trabalhador (estado do RJ, lei estadual nº 2.702/97);
- São Paulo – Código de Saúde (lei complementar nº 791/95) e Código Sanitário
estadual, incorporando a questão de Saúde e Trabalho (lei estadual 10.083/98);
bem como a Lei Estadual 9.505/97, específica sobre as ações e serviços em
Saúde do Trabalhador, no estado;
- Legislações estaduais e municipais de banimento progressivo do AMIANTO
(ex.: lei estadual (SP) nº 10.813, de 24.05.2001; lei estadual (MS) nº 2.210/2001,
lei estadual (RJ) nº 3.579, de 13.06.2001); leis municipais em cidades paulistas:
Osasco, Mogi-Mirim, São Caetano do Sul e São Paulo);
- Algumas leis municipais relacionadas à Saúde do Trabalhador (ex.: lei n.º
10.040 de 09.04.1999, que dispõe sobre a competência do Município de
Campinas/SP na Prevenção e Tratamento de Lesões Por Esforços Repetitivos LER e Define Outras Atribuições).
Tema extremamente atual é representado pela discussão da competência
para julgar as Ações Civis Públicas relativas à prevenção dos acidentes e adoecimentos
relacionados ao meio ambiente de trabalho, entre a Justiça Comum dos estados, ou a
Justiça do Trabalho, com várias decisões num e noutro sentido, no STJ, e uma favorável
à justiça especializada, no STF (Informativo STF nº 142, RE 206.220-MG, rel. Min.
Marco Aurélio). Também o alcance da nova legislação sanitária de proteção à saúde
do trabalhador e do meio ambiente e a competência para a abordagem de assuntos tão
relevantes têm sido alvo de posicionamentos (ainda provisórios) do Poder Judiciário.
Como exemplo, tem-se algumas ADINs (Ações Diretas de Inconstitucionalidade)
propostas perante o STF:
- ADInMC 2.396-MS, rel. Ministra Ellen Gracie (Competência
Concorrente), com liminar parcialmente concedida e suspendendo diversos dispositivos
215
de Lei Estadual do Mato Grosso do Sul sobre o Amianto, pela existência de lei federal
sobre o assunto (Informativo STF nº 243);
- ADInMC 1.862-RJ, rel. Min. Néri da Silveira (Saúde do
Trabalhador e Competência), com deferimento parcial da medida cautelar para
suspensão, em relação aos empregados celetistas, de uma alínea de lei estadual do Rio
de Janeiro que estabelece normas de prevenção das Lesões por Esforços Repetitivos
(Informativo STF nº 142);
- ADInMC 1.893-RJ, rel. Min. Marco Aurélio (Saúde do
Trabalhador e Competência), com deferimento de medida cautelar para suspender a
eficácia da lei estadual do Rio de Janeiro de política estadual de qualidade ambiental
ocupacional e de proteção da saúde do trabalhador (Informativo STF nº 136).
Outro aspecto importante a destacar, aquele relativo às definições e
marcos conceituais da Vigilância a Saúde, que pode ser vista como a ―recompilação
continuada e sistemática de dados, sua análise e interpretação e a adequada difusão dos
mesmos‖ (6).
A Vigilância em Saúde do Trabalhador compreende uma atuação
contínua e sistemática, ao longo do tempo, no sentido de detectar, conhecer, pesquisar e
analisar os fatores determinantes e condicionantes dos agravos à saúde relacionados aos
processos e ambientes de trabalho, em seus aspectos tecnológico, social, organizacional
e epidemiológico, com a finalidade de planejar, executar e avaliar intervenções sobre
esses aspectos, de forma a eliminá-los ou controlá-los. (7)
A Vigilância em Saúde do Trabalhador compõe um conjunto de práticas
sanitárias, articuladas supra-setorialmente, cuja especificidade está centrada na
relação da saúde com o ambiente e os processos de trabalho e nesta com a assistência,
calcado nos princípios da vigilância em saúde, para a melhoria das condições de vida e
saúde da população. (7)
A Vigilância da Saúde do Trabalhador é o conjunto de ações que visa
conhecer a magnitude dos acidentes e doenças relacionados ao trabalho, identificar os
fatores de risco ocupacionais, estabelecer medidas de controle e prevenção e avaliar os
serviços de saúde de forma permanente, visando a transformação das condições de
trabalho no Estada e a garantia da qualidade da assistência à saúde do trabalhador. (8)
A vigilância da saúde dos trabalhadores deveria vincular-se com a
vigilância dos fatores de risco presentes no local de trabalho. A vigilância da exposição
aos riscos ou aos fatores de risco no local de trabalho pode revelar-se tão útil quanto a
vigilância dos próprios acidentes e enfermidades do trabalho para atingir os objetivos
dos programas de prevenção, ainda que seja conveniente privilegiar o primeiro método
(6).
Princípios da vigilância em saúde do trabalhador (Portaria nº 3.120/98
do Ministério da Saúde) (7)
Universalidade, Integralidade das ações, Pluriinstitucionalidade, Controle
Social, Hierarquização e Descentralização, Interdisciplinaridade, Pesquisa-Intervenção,
Caráter transformador.
Objetivos (Portaria nº 3.120/98 do Ministério da Saúde)
216
De forma esquemática pode-se dizer que a vigilância em saúde do
trabalhador tem como objetivos:
a - conhecer a realidade de saúde da população trabalhadora, independentemente
da forma de inserção no mercado de trabalho e do vínculo trabalhista
estabelecido, considerando:
a1 - a caracterização de sua forma de adoecer e morrer em função da sua
relação com o processo de trabalho;
a2 - o levantamento histórico dos perfis de morbidade e mortalidade em
função da sua relação com o processo de trabalho;
a3 - a avaliação do processo, do ambiente e das condições em que o
trabalho se realiza, identificando os riscos e cargas de trabalho a que está
sujeita, nos seus aspectos tecnológicos, ergonômicos e organizacionais já
conhecidos;
a4 - a pesquisa e a análise de novas e ainda desconhecidas formas de
adoecer e morrer em decorrência do trabalho;
b - intervir nos fatores determinantes de agravos à saúde da população
trabalhadora, visando eliminá-los ou, na sua impossibilidade, atenuá-los e
controlá-los, considerando:
b1 - a fiscalização do processo, do ambiente e das condições em que o
trabalho se realiza, fazendo cumprir, com rigor, as normas e legislações
existentes, nacionais ou mesmo internacionais, quando relacionadas à
promoção da saúde do trabalhador;
b2 - a negociação coletiva em saúde do trabalhador, além dos preceitos
legais estabelecidos, quando se impuser a transformação do processo, do
ambiente e das condições em que o trabalho se realiza, não prevista
normativamente;
c - avaliar o impacto das medidas adotadas para a eliminação, atenuação e
controle dos fatores determinantes de agravos à saúde, considerando:
c1 - a possibilidade de transformar os perfis de morbidade e mortalidade;
c2 - o aprimoramento contínuo da qualidade de vida no trabalho;
d - subsidiar a tomada de decisões dos órgãos competentes, nas três esferas de
governo, considerando:
d1 - o estabelecimento de políticas públicas, contemplando a relação
entre o trabalho e a saúde no campo de abrangência da vigilância em
saúde;
d2 - a interveniência, junto às instâncias do Estado e da sociedade, para o
aprimoramento das normas legais existentes e para a criação de novas
normas legais em defesa da saúde dos trabalhadores;
d3 - o planejamento das ações e o estabelecimento de suas estratégias;
d4 - a participação na estruturação de serviços de atenção à saúde dos
trabalhadores;
d5 - a participação na formação, capacitação e treinamento de recursos
humanos com interesse na área;
e - estabelecer sistemas de informação em saúde do trabalhador, junto às
estruturas existentes no setor saúde, considerando:
217
e1 - a criação de bases de dados comportando todas as informações
oriundas do processo de vigilância e incorporando as informações
tradicionais já existentes;
e2 - a divulgação sistemática das informações analisadas e consolidadas.
Observa-se, portanto, que do ponto de vista de Princípios e Objetivos, as
ações em Vigilância em Saúde do Trabalhador contam com arcabouço legal e técnico
bastante definido, pormenorizado e claro, embasando a possibilidade e representando
desafio à efetiva atuação dos entes públicos estatais e Sociedade Civil quanto à
questão.
Saúde do Trabalhador e Normas Operacionais Básicas do SUS
A Norma Operacional em Saúde do Trabalhador – (NOST) – Portaria n.
3908/GM de 30.09.1998 (DOU nº 215-E, Seção 1, página 17, de 10.11.1998, estabelece
procedimentos para orientar e instrumentalizar as ações e serviços de saúde do
trabalhador no Sistema Único de Saúde – SUS).
A destacar, nos seus considerandos, a competência do SUS para a
execução de ações pertinentes à área de Saúde do Trabalhador, ―conforme determinam a
Constituição Federal e a Lei Orgânica da Saúde‖, além do que as determinações
contidas na NOB-SUS 01/96 (Norma Operacional Básica do SUS) ―incluem a saúde do
trabalhador como campo de atuação da atenção à saúde‖. O objetivo da Norma é
orientar e instrumentalizar a realização das ações de saúde do trabalhador e da
trabalhadora, urbano e rural, pelos Estados, o Distrito Federal e os Municípios (níveis de
execução das ações), os quais nortear-se-ão pelos seguintes pressupostos básicos:
- universalidade e eqüidade (acesso de todos os trabalhadores, no sentido
amplo);
- atenção integral à saúde (articulação de ações individuais, curativas e as
coletivas, de vigilância da saúde);
- direito à informação, com repasse sistemático aos trabalhadores;
- controle social (participação dos trabalhadores nas várias etapas e níveis de
ação);
- regionalização e hierarquização das ações de saúde do trabalhador;
- critérios epidemiológicos e de avaliação de riscos para atuação;
- enfoque integral, da assistência à vigilância, e até reabilitação.
O artigo 3º define claramente a responsabilidade dos Municípios como os
executores das ações em saúde do trabalhador (os Estados somente complementam a
execução, de acordo com a Lei nº 8.080/90), e conforme a condição de Gestão em que
estejam habilitados, perante o SUS (que seriam a Gestão Plena da Atenção Básica e a
Gestão Plena do Sistema Municipal).
Assim, resumidamente, estando o município na Gestão Plena da Atenção
Básica, cabe: (a) atendimento do acidentado do trabalho e do paciente com suspeita de
doença profissional ou do trabalho; (b) realizar as ações de vigilância nos ambientes e
processos de trabalho; (c) notificação dos agravos à saúde e riscos relacionados ao
trabalho; (d) sistematização e análise dos dados dos atendimentos e das ações de
vigilância, como subsídio para planejamento, priorização, avaliação e alimentação de
bancos de dados nacionais.
218
Da mesma forma, encontrando-se o Município vinculado ao SUS na
Gestão Plena do Sistema Municipal, em termos de ações caberia: (a) emissão de laudos
e relatórios sobre os agravos relacionados ao trabalho; (b) sistema de referência para
atendimento especializado em saúde do trabalhador; (c) realização sistemática de ações
de vigilância nos ambientes de trabalho, com inspeção sanitária, elaboração de
relatórios, aplicação de procedimentos administrativos e a investigação epidemiológica;
(d) cadastro atualizado das empresas, com fatores de riscos e a população
potencialmente exposta.
Aos Estados, nas condições de gestão avançada e plena do sistema
estadual, incumbe o controle da qualidade das ações de saúde do trabalhador realizadas
nos Municípios; definição de mecanismos de referência e contra-referência para
assegurar as ações de assistência e vigilância; capacitar recursos humanos;
sistematização do sistema de informação em saúde do trabalhador; elaborar o perfil
epidemiológico da saúde dos trabalhadores no seu território; cooperação técnica aos
Municípios; cadastro de empresas.
A Norma faz ainda algumas recomendações, no sentido da revisão dos
Códigos Sanitários de Estados e Municípios (para contemplar as ações de saúde do
trabalhador); que estes últimos estabeleçam normas complementares no seu âmbito de
atuação, para assegurar a proteção à saúde dos trabalhadores; e que instituam Comissões
Intersetoriais de Saúde do Trabalhador, subordinadas aos Conselhos de Saúde (para
assessora-los na definição das políticas, prioridades e avaliação das ações de saúde do
trabalhador).
Indicadores Epidemiológicos para a Saúde do Trabalhador
Existe tendência em publicações técnicas a apresentar-se o controle
epidemiológico das faltas ao trabalho por motivo de doença ou acidentes como meio
legítimo de aprimorar condições de saúde nos ambientes de trabalho. Sob vários
aspectos esta pretensa legitimidade costuma ser apresentada, desde o controle da perda
de produtividade até os prejuízos para os sistemas de compensação.
A ideologia do controle do Absenteísmo está impregnada nas relações
patronais com os técnicos de ‗Segurança e Medicina do Trabalho‘, com caracterìsticas
típicas do Fordismo – onde o médico do trabalho era apresentado como a maior fonte de
lucros pela capacidade de impedir interrupções na produção.
Os aspectos da relação custo-benefício são assim enfatizados como
formas de justificar ao Capital e seus gerentes a adoção de medidas higiênicas
ambientais, ergonômicas e de cuidados aos trabalhadores. Justificam também o aspecto
mais intrusivo da violação de direitos de privacidade dos trabalhadores quando os
setores de Recursos Humanos apropriam-se de informações contidas em prontuários
médicos para a tomada unilateral de decisões sobre a justificativa de faltas, licenças e
tratamentos, com implicação sobre admissão e demissão.
Sob tais pretextos, violam-se tanto os direitos individuais de proteção à
confidencialidade da informação dos prontuários de saúde quanto as normas éticas de
sigilo profissional de todas as profissões de cuidado a pacientes.
Em condições de crise econômica e excesso de oferta de mão-de-obra no
mercado, a relação custo-benefìcio alegada para a subordinação dos SESMT‘s aos
Departamentos de Administração e Recursos Humanos é a primeira baixa. Deixa de ser
importante ‗economizar‘ em saúde pois prevenir torna-se mais caro que demitir e
contratar. O trabalho precário torna-se a regra. As conseqüências conhecidas na justiça
219
trabalhista são a pletora na demanda por ações indenizatórias e a organização dos
‗Lobbies‘ patronais para contornar obrigações legais.
A noção de que o controle do Absenteísmo cabe à Epidemiologia – como
extensão do serviço médico da empresa – está alicerçada nestes conceitos e não
encontra respaldo nas regras de prevenção, promoção e cuidados à saúde. Por este
motivo, os indicadores de ausentismo são úteis para avaliações de caráter coletivo
apenas, e somente se, os técnicos envolvidos não fornecerem, à empresa ou terceiros,
dados individualizados que violem direitos dos trabalhadores.
Acobertados por esta noção controlista em relação ao Absenteísmo os
poderes públicos e privados repetem ameaças explícitas sobre trabalhadores que
antigamente vinham no prefácio das carteiras de trabalho. Os convênios privados de
assistência médica a empresas prometem rigor e critério na concessão de licenças e
auxílios em oposição à pretensa liberalidade dos serviços públicos.
O papel do poder público na difusão da postura controlista e policialesca
é relatado por Carlos Gentile de Melo(55) ao comentar antigo plano de subcontratação
de serviços privados.
―Quando o Plano de Pronta Ação da Previdência Social refere a
possibilidade de realização de convênio com empresas, especifica, em
primeiro lugar, como norma, que ―o INPS não fornecerá mais
atestados médicos, para abono de faltas ao trabalho, aos beneficiários
empregados de empresas que disponham de serviços médicos ou
contratados.
Trata-se de uma posição equivocada supor que o absenteísmo por
doença depende da ação policial do médico. Quem quer que analise o
problema vai chegar a conclusão que o absenteísmo incide, com maior
freqüência, entre os empregados de menor salário, entre os que
trabalham em condições desfavoráveis, entre os que enfrentam
maiores problemas com a condução diária, entre os que têm maiores
encargos de família, entre os que trabalham sob chefia autocrática.
Os especialistas no assunto sabem que as empresas em que o
absenteísmo é menor não são aquelas que organizam aparato policial
nos seus serviços médicos. A assiduidade e pontualidade dos
empregados é maior nas empresas que adotam um regime pessoal que
considera a mão-de-obra parcela importante da produção, pagando
melhores salários, criando condições favoráveis no local de trabalho,
facilitando refeições, condução, e, inclusive, financiando treinamento,
com bolsas de estudos, para os empregados e seus dependentes.
As empresas bem organizadas, desde que o seu porte permita,
deveriam possuir os seus próprios serviços médico-assistenciais, não
com a finalidade de sufocar os seus empregados, mas, efetivamente,
cuidar, com a atenção que merece, o elemento decisivo do qual
depende a elevação da produtividade. É o que ocorria com as grandes
empresas antes da celebração dos convênios com a Previdência
Social‖.
O Brasil ratificou no Congresso Nacional a Resolução 161 da OIT, que
passa portanto a ter força de Lei Federal, dizendo em seu artigo 15º:
―Os serviços de saúde no trabalho devem ser informados dos casos de
doença entre os trabalhadores e das faltas ao serviço por motivo de
saúde, a fim de estarem aptos a identificar toda relação que possa
haver entre as causas da doença ou da falta e os riscos à saúde que
220
possam existir no local de trabalho. O pessoal que prestar serviços
de saúde no trabalho não deverá ser instado, pelo empregador, no
sentido de averiguar o fundamento ou as razões de faltas ao
serviço‖ (grifo nosso).
A legislação internacional comparada revela, no entanto, os estreitos
limites brasileiros para atuação independente dos profissionais dos SESMT‘s. Dentro de
nossa legislação o empregador assume o controle físico e financeiro da assistência à
saúde dos trabalhadores, ao contrário do que ocorre em outros paìses. ―O Estatuto do
Trabalhador Italiano, o art. 5º, proíbe que o empregador se utilize de seu pessoal para
apurar doença ou acidente do trabalho, os quais só poderão ser investigados por meio da
inspeção dos órgãos previdenciários‖(56).
A questão fundamental não resolvida a ser tratada na legislação brasileira
é a da necessidade da independência dos profissionais de saúde do trabalhador em
relação aos empregadores. A este respeito o Prof. Sebastião Geraldo de Oliveira, Juiz do
Trabalho em Belo Horizonte – MG(1, p.72) relata sobre o movimento operário italiano:
―Esse movimento de participação dos trabalhadores irradiou-se pela
Europa e Estados Unidos na década de 70, com ênfase na criação e
implantação dos comitês de higiene e segurança, valendo ressaltar que
na Bélgica, desde 29 de dezembro de 1977, o representante dos
trabalhadores tem direito a não aceitar o médico da fábrica que não
goza da confiança dos trabalhadores‖(57).
Na França, o Código do Trabalho dispõe que o médico do trabalho
somente pode ser dispensado de seus serviços pelo voto secreto e independente de um
comitê paritário de Saúde e Segurança, o qual guarda alguma (pouca) semelhança com
as nossas Comissões Internas de Prevenção de Acidentes – CIPA‘s.(58)
É também improcedente comparar-se indicadores epidemiológicos de
acidentes ou doenças quando ocorre sub-notificação. As empresas nas quais as
condições de trabalho e saúde são melhores são em geral as que cumprem a lei e
notificam os eventos de doença e acidentes. A ausência de notificação é que deve ser
tomada como suspeita.
Com estas ressalvas, pode-se estabelecer que qualquer comparação entre
empresas baseada nos números brutos de acidentes ou notificações de doenças só faz
sentido se a informação destes eventos estiver colocada na forma de razão, cujo
denominador será sempre o número de ‗horas-homem‘ trabalhadas no perìodo
considerado – em geral mês ou ano padronizados em acidentes divididos por ―um
milhão de horas-homem trabalhadas‖.
A utilidade de indicadores epidemiológicos estará sempre subordinada a
séries históricas específicas por região, empresas e tipos de trabalho nunca podendo ser
analisados fora de contexto social e histórico. A produção e análise de indicadores
depende fundamentalmente do controle social sobre as informações, do acesso amplo
dos poderes públicos e dos representantes dos trabalhadores aos locais de trabalho onde
se dá a produção, além da análise e providências de controle, resguardados os direitos
de segredo (confidencialidade) individual.
A utilização de indicadores epidemiológicos também não pode ser feita
de modo a elidir obrigações com respeito à preservação da saúde, da capacidade laboral
e da vida. Embora seja possível construir-se índices de freqüência sobre mortes no
trabalho, não se pretende com eles fugir às questões relativas ao direito.
221
A literatura epidemiológica sobre doenças, acidentes e incapacidade
deles resultantes estabelece como medidas de incidência as Taxas de Freqüência de
acidentes e de medidas de prevalência os Coeficientes de Gravidade.(59)
O aspecto ético operacional que distingue as abordagens epidemiológicas
relacionadas a acidentes ou doenças surgidas em decorrência do trabalho é a
caracterização de cada evento como ocorrência epidêmica em especial o
estabelecimento de vigilância à saúde onde cada acidente, doença ou óbito seja
analisado como ―evento sentinela‖, exigindo investigação epidemiológica,
esclarecimento causal e providências preventivas. O ponto de partida deste raciocínio é
de que sendo decorrente da atividade produtiva planejada qualquer agravo à saúde está
inserido em contexto no qual o mesmo agravo é perfeitamente prevenível.
Princípio da Prevenção e CIPA
Os Comitês de Segurança e Prevenção, com participação de
representantes dos trabalhadores figuravam entre as Convenções da OIT como medida
para redução dos acidentes do trabalho e doenças ocupacionais (Oliveira). No Brasil, a
terceira lei sobre acidentes de trabalho (Decreto-lei n. 7.036, de 10.11.1944), no seu art.
82, determinava a criação dessas comissões internas para empresas com mais de 100
empregados, com função essencialmente de sugerir e educar quanto à matéria de
prevenção dos infortúnios. A partir de 1967 a CIPA (Comissão Interna de Prevenção de
Acidentes) foi incorporada na CLT, estando atualmente disciplinada nos artigos 163 a
165 do Consolidado. A regulamentação pormenorizada encontra-se na Norma
Regulamentadora nº 5, da Portaria 3.214/78 do Ministério do Trabalho e Emprego.
Apesar de prevista na legislação trabalhista brasileira há várias décadas, a
participação efetiva dos trabalhadores nas questões da promoção da saúde e prevenção
de acidentes e doenças no meio ambiente de trabalho, através das Comissões Internas de
Prevenção de Acidentes (CIPAs) representa espaço ainda carente de muitos avanços. A
compreensão prática mais prevalente dos dispositivos legais, ao privilegiar uma visão
mais ligada à estabilidade provisória do cipeiro representante dos trabalhadores
(titulares e suplentes) do que à missão prevencionista e participativa vincula-se à uma
impressão de baixa efetividade das CIPAs, como regra.
Como assinala Eduardo Gabriel Saad (37), ―a eficiência de uma CIPA
ainda depende, em boa parte, da atitude simpática, ou não, do empregador, em face das
questões cuja solução não está ao alcance dos empregados‖. Assim, ―na maioria das
pequenas e médias empresas, a CIPA só existe formalmente, isto é, só no papel, porque
não encontra liberdade ou espaço para atuar (1, p.354). Assinale-se não ser incomum
encontrar-se Atas de Reuniões de CIPAs onde reiteradamente ao longo do tempo são
registradas as mesmas irregularidades e solicitações, quanto à saúde e segurança no
trabalho.
Entre os elementos balizadores de uma atuação mais efetiva da CIPA,
poder-se-ia citar: (a) enfoque prevencionista (antecipação e reconhecimento prévio dos
riscos ocupacionais e ambientais), (b) liberdade de expressão e participação, efetivas
e concretas (tanto no diagnóstico de situações de risco, quanto na propositura de
medidas de correção, acompanhamento da sua implantação e avaliação de sua eficácia e
efetividade), cf. Convenção nº 155 da OIT (art. 7.2), e Norma Regulamentadora nº 9 –
(NR-9) subitens 9.4, 9.5.1, 9.6.2; (c) possibilidade de encaminhamento negociado das
soluções às demandas, inclusive com ―maior entrosamento da CIPA com o sindicato da
categoria profissional para que as reivindicações dos trabalhadores pudessem ser
222
negociadas e incorporadas nos acordos e convenções coletivas‖ (1, p.356); (d) exercício
do direito de recusa ao trabalho frente à situações de grave e iminente risco (NR - 9,
subitem 9.6.3; Convenção nº 155 da OIT (art. 13); Constituição do estado de São
Paulo, art. 229, parágrafo 2º); (e) exercício do direito de saber (―right to know‖), nos
termos do parágrafo 3º do art. 19 da lei 8.213/91, e NR-9 (subitem 9.5.2); (f) formação,
capacitação e suporte técnico em saúde e segurança segundo uma visão que, além de
valorizar e respeitar a experiência dos trabalhadores, supere concepções ultrapassadas, a
exemplo da abordagem dicotômica do acidente do trabalho ―como fenômeno decorrente
de falhas humanas e ou técnicas, traduzidas pelas conhecidas expressões ato inseguro /
condição insegura‖ (38).
Na realidade, como assinala Eduardo Gabriel SAAD (37), citado por
OLIVEIRA (1), (pág. 354), o membro da CIPA, representante dos empregados, ―é um
eleito que não tem ―mandato‖, porque nada manda, só opina, discute, sugere, requer...
Por outro lado, o trabalhador, membro da CIPA, sabe que a sua garantia de emprego é
provisória e fica com receio de agir com real independência, temendo futuras retaliações
do empregador‖.
Entre as muitas justificativas para a garantia da efetiva participação dos
trabalhadores nas atividades prevencionistas, toma realce a contribuição da Ergonomia
Contemporânea, qual seja, a diferença existente entre o trabalho prescrito (ou seja, a
tarefa, ou como o trabalho deve ser realizado, na perspectiva e visão gerencial
empresarial) e o trabalho real (a atividade, isto é, como o trabalho é cotidianamente
realizado). Ou, como se colhe de sentença em Ação Civil Pública trabalhista182, ―nem
sempre o que deve ser, o que está prescrito, é o que realmente ocorre, ou utilizando
as palavras do Sr. Expert, “o trabalho prescrito está desassociado da realidade do
trabalho realizado‖.
Haveria ainda dois fatores a comentar, entre outros cuja superação seria
de grande valia para impulsionar o trabalho das CIPAs:
1 - visões reducionistas e simplistas do fenômeno acidente de trabalho, em geral
com concepções monocausais / dicotômicas (ex.: Ato Inseguro x Condição
Insegura), com relação à sua gênese, e de ―culpabilização dos trabalhadores pela
ocorrência de eventos dos quais são vítimas, em situações sobre as quais
exercem escasso ou nenhum controle‖ (38), produzindo a chamada ―consciência
culposa‖ (Cohn e cols., ref. 39) a partir de investigações183 ―superficialmente
conduzidas, marcadas pela emissão apriorística de juízos de valor e,
sobretudo, dirigidas à busca de culpados‖ (38, p. 77).
2 – superação de posturas que antepõem a CIPA ao sindicato profissional, por
exemplo na questão do direito ao acompanhamento da fiscalização trabalhista
182
Processo n.º 145/94-3 - 1ª Vara do Trabalho - Paulínia / SP (Sentença prolatada pela Exma. Sra. Dra.
Ana Paula Alvarenga Martins de Medeiros – Juíza do Trabalhão Substitua - folhas 1.835/1.844) (Ação
Civil Pública relacionada à segurança do meio ambiente de trabalho).
183
―As investigações que atribuem a ocorrência do acidente a comportamentos inadequados do
trabalhador (―descuido‖, ―negligência‖, ―imprudência‖, ―desatenção‖, etc) evoluem para recomendações
centradas em mudanças de comportamento: ―prestar mais atenção‖, ―tomar mais cuidado‖, ―reforçar o
treinamento‖.... Tais recomendações pressupõem que os trabalhadores são capazes de manter elevado
grau de vigília durante toda a jornada de trabalho, o que é incompatível com as características bio-psicofisiológicas humanas. Em conseqüência, a integridade física dos trabalhadores fica na dependência quase
exclusiva de seu desempenho na execução das tarefas‖. In INVESTIGAÇÃO DE ACIDENTES DE
TRABALHO - Maria Cecília P. Binder & Ildeberto Muniz de Almeida, UNESP - Botucatu- Mimeo,
Janeiro de 2000, 15p.
223
referente à medicina e segurança do trabalho, discutindo sobre quem seria o
representante dos trabalhadores. Como preleciona OLIVEIRA (1), ―o direito ao
acompanhamento [pelo sindicato] está previsto expressamente no art. 19,
parágrafo 4º, da Lei n. 8.213/91; no art. 339 do Decreto n. 3.048/99; no art. 5.4
da Convenção n. 148 da OIT e no item 1.7, alínea d, da NR-1 da Portaria
3.214/78‖184 .
De forma interessante, registra-se também a obrigatoriedade da
constituição de CIPAs nos órgãos da Administração direta e indireta, no estado de São
Paulo, bem como eventualmente de constituírem Comissão de Controle Ambiental
(Constituição Estadual / SP, artigo 115, inciso XXV).
Acidentes do trabalho: prejuízos sociais e fatores multiplicativos
A ocorrência dos acidentes do trabalho (tipo ou de trajeto, bem como as
doenças profissionais ou do trabalho) representam eventos indesejados e, via de regra,
antecipáveis e passíveis de prevenção. Os custos humanos e sociais envolvem o
trabalhador, sua família, empresas e instituições empregadoras, governo e sociedade em
geral são de natureza variada, elevados, e comumente não plenamente conhecidos,
considerados ou valorizados pelos responsáveis pelas políticas de gestão empresarial, e
sócio-econômicas governamentais.
Primeiramente considera-se a perda de vidas humanas, além do
sofrimento, dor,
mutilação e revolta, seja dos trabalhadores acidentados, seja da
família afetada. Além disso, pode-se considerar a existência de custos diretamente
relacionados ao infortúnio, como salário a pagar ao trabalhador que falta; indenização
caso seja aplicável; gastos de assistência médica (31); o tempo perdido; a destruição de
equipamentos e materiais; a interrupção da produção; os gastos com medicina e
engenharia de reparação (32).
Considere-se, também, a existência de custos indiretos, relacionados a
diversos fatores, entre os quais: tempo perdido pelo acidentado e pelos colegas; tempo
perdido na investigação do acidente; tempo perdido na seleção e formação de um
substituto mesmo temporário; tempo perdido na impressão causada aos colegas;
diminuição do rendimento no momento em que regressa ao trabalho; a quebra natural
da produção; não cumprir prazos de entrega; deterioração da imagem da empresa no
mercado e na envolvente social; custos inerentes às peritagens; ocupação administrativa
necessária ao encaminhamento da participação de acidente à Seguradora,
acompanhamento do processo (31).
Segundo PASTORE (32) a análise da questão também pode ser feita a
partir da consideração dos custos segurados (despesas com seguro acidentes) e os não
segurados (outras despesas). Descreve aquele autor que ―durante muito tempo,
considerou-se que a relação entre os custos segurados e os não segurados era de 1:4.
Considerando-se que a Previdência Social do Brasil arrecada e gasta anualmente cerca
de R$ 2,5 bilhões no campo dos acidentes do trabalho, as empresas brasileiras estariam
184
Decisões favoráveis ao acompanhamento sindical: AMS nº 03020294/SP, Rel. Juiz Souza Pires, j.
18.05.93, DOE 25.10.93, pg. 231. TRF 3ª Região. Sentenças em MS (Processo nº 94.0401115-9 - 2ª Vara
Federal de S.José dos Campos /SP; Processo nº 87.0011026-4, 16ª Vara Federal de São Paulo /SP).
Decisão excludente do sindicato profissional, na questão: REO 19037 (Processo 8903037243-3) – Rel
Juiz Gilberto Jordan, j. 19.10.1999.
224
arcando com um custo adicional de R$ 10 bilhões o que, nos leva a concluir que a
precariedade da prevenção dos riscos do trabalho custa a elas, R$ 12,5 bilhões por ano‖.
Elenca, ainda, custos para outros membros e entidades da sociedade, a
saber (32), in verbis:
―1. Devem ser considerados aqui os danos aos trabalhadores e às suas
famílias na forma de redução de renda, interrupção do emprego de
familiares, gastos com acomodação no domicílio e, o mais importante,
a dor e o estigma do acidentado ou doente. Os trabalhadores e os
familiares "bancam" uma grande parte dos custos dos acidentes,
estimando-se que isso eleva a relação acima para 1:5, fazendo subir o
custo para R$ 15 bilhões por ano.
2. Além disso, os acidentes e doenças profissionais geram custos para
o Estado não só em termos de pagamento de benefícios a doentes e
acidentados, mas também em termos do pagamento das despesas de
recuperação da saúde e reintegração das pessoas no mercado de
trabalho e na sociedade em geral, inclusive os do mercado informal
(60% dos brasileiros). Estima-se que isso acarrete um adicional de
custo de R$ 5 bilhões Chega-se à triste conclusão de que os
acidentes do trabalho no Brasil geram uma despesa fenomenal
que chega à casa dos R$ 20 bilhões por ano! ‖ (grifo nosso)
Completando, o autor citado faz referência que mesmo aqueles números
seriam subestimados, calculando-se que 80% dos acidentes e doenças profissionais no
mercado de trabalho formal, especialmente, os de menor gravidade, não são notificados
(32), (34 p. 161). O Anuário Estatístico da OIT (1998) evidencia a magnitude da
subnotificação no Brasil, que contabiliza 54,16 acidentes para cada 10 mil membros da
PEA185, enquanto na Alemanha alcança 614,26 e na Espanha, 530,09 (34). Por outro
lado, o mesmo documento da OIT noticia a ocorrência de 100,44 mortes no trabalho a
cada 10 mil acidentes de trabalho no Brasil, enquanto Portugal registra 12,27, e a Suíça,
10,64 (35).
Com relação ao valor de R$ 20 bilhões anuais, o empresário Antonio
Ermírio de Moraes comenta que tal valor ―daria para gerar uns 500 mil empregos‖ (33).
Registre-se aqui a informação de Jaques Sherique, diretor técnico da Associação
Brasileira de Prevenção a Acidentes, segundo o qual o Brasil, que ―já foi o campeão
mundial de acidentes de trabalho‖, estaria agora entre ―os 15 piores colocados, de
acordo com os números da OIT. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) lista
172 paìses‖ (35).
Aposentadoria especial
A Aposentadoria Especial constitui uma das modalidades de
aposentadoria, estando prevista no § 1º do artigo 201 da Constituição Federal, tendo
caracterìsticas preventivas, pois ―propugna retirar o trabalhador de sua função, diversos
anos antes da exposição continuada a diversos agentes considerados nocivos à saúde e à
integridade fìsica dos segurados, evitando o aparecimento de doenças‖ (28).
Os principais diplomas legais que regem sua concessão são a Lei
8.213/91, alterada pela Lei 9.032/95 (substitui as expressões insalubridade, penosidade
e periculosidade por agentes nocivos; exige para concessão exposições de modo
185
População Economicamente Ativa
225
habitual e permanente; veda a concessão do benefício por atividade; veda as conversões
de atividade comum para especial; exige comprovação das condições especiais através
do SB-40 (formulário atualmente denominado DIRBEN-8030) com base em Laudo
Técnico para todos os agentes nocivos), Lei 9.711/98 (possibilita conversões de tempos
especiais em comum somente até 28.5.98) e Lei 9.732/98 (que exige informações sobre
EPI e Laudos Técnicos de Condições Ambientais nos termos da legislação trabalhista)
(28). A Lei 9.528/97 já estabelecia a exigência de Laudo Técnico de Condições
Ambientais para todos os agentes nocivos. O Decreto 3.048/99 introduziu a Perícia
Médica como novo elemento nas avaliações dos Laudos Técnicos de Condições
Ambientais e a Portaria GM n. 5.404 de 2.7.99 regulamentou a ação dessas análises
pelos pólos de concessão desse benefício, constituídos por médicos-peritos e por
servidores administrativos (28).
O contexto da crise de financiamento do Estado brasileiro, com a adoção
do modelo de redução do papel de suporte social, associada à proposta de Estado
Mínimo e flexibilização / precarização dos direitos sociais / trabalhistas;
Dentro dessa proposta, verificou-se a crescente (e questionável)
tecnificação da caracterização das condições insalubres (anteriormente à lei 9.032/95
era por atividades e categorias profissionais), inclusive pelos parâmetros anacrônicos,
defasados ou inexistentes (exemplo 1: os limites de tolerância ambientais não são
atualizados, são de 1978, na maioria e com isso mesmo com níveis internacionalmente
aceitos como lesivos, não se caracteriza condição insalubre para a maioria dos agentes
químicos, via anexo 11 da NR-15; exemplo 2: as condição de penosidade é referida na
Constituição Federal, há vários projetos de lei no Congresso Nacional, que ainda nada
regulamentou, e simplesmente foram eliminados direitos, como por exemplo para várias
categorias profissionais, como telefonistas  sabidamente há penosidade e
envelhecimento funcional precoce nessa e inúmeras outras atividades, contudo não há
mais o direito de aposentadoria especial, ou seja, de redução do tempo de exposição na
vida laboral como um todo).
Atualmente a questão está normatizada na Instrução Normativa DC/INSS
nº 57 de 10.10.2001, a qual incorpora as mudanças liminarmente determinadas em Ação
Civil Pública do MPF, perante a 4ª Vara Federal Previdenciária de Porto Alegre – RS.
O papel dos sindicatos na defesa do Direito Sanitário do Trabalho
Entre diversas linhas de ação com respaldo legal, pode-se caracterizar
dois grandes grupos de normas que asseguram aos sindicatos de trabalhadores
importante papel na defesa da saúde no meio ambiente do trabalho: o primeiro, de
natureza trabalhista-previdenciário, e o segundo, vinculado ao ramo do direito sanitário.
Além disso, o espaço das Contratações Coletivas em Saúde e Segurança do Trabalhador
(geradores de normas entre as partes) representa terreno de mais recente empenho de
organizações sindicais na luta pela melhoria das condições de trabalho.
Do ponto de vista trabalhista – previdenciário, observa-se que a
legislação assegura ao Sindicato o direito de acompanhar o fiel cumprimento da
obrigação das empresas de adotar as medidas de proteção à saúde do trabalhador (Lei
8.213/91), bem como a aplicação de multa administrativa, pelo INSS, quando do
descumprimento das normas, na questão da notificação de acidentes e doenças
ocupacionais (Decreto 3.048/99). Frise-se o direito do sindicato de acesso à cópia da
CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho, cf. § 1º, art. 22, da lei 8.213/91). A
própria CLT (artigo 154) e a Portaria 3.214/78 do MTE abrem possibilidades de
226
contratação coletiva, para melhoria dos parâmetros de proteção da saúde (exemplos:
NR-9, subitem 9.3.5; e NR-7, subitem 7.1.2).
Como assinalado por OLIVEIRA (1, p. 378), "a grande vantagem das
normas resultantes das negociações coletivas é a possibilidade de resolver as questões
da saúde do trabalhador considerando as peculiaridades de cada categoria, ou até
mesmo de cada empresa pelo acordo coletivo de trabalho, além de permitir um processo
normativo mais veloz, cujas normas se incorporam rapidamente aos direitos dos
trabalhadores".
Há ainda a previsão da participação do sindicato em mesas de
entendimento, nas DRTs e suas Subdelegacias, inclusive para a hipótese de concessão,
às empresas com irregularidades, de prazos mais dilatados (além de 120 dias), cf.
Norma Regulamentadora nº 29 (somente por isso, já estaria justificado não somente o
direito como a necessidade do acesso sindical ao local de trabalho, juntamente com a
fiscalização do trabalho, pois, de outra forma, como poderia o sindicato anuir com
dilações de prazos, de maneira responsável, desconhecendo a realidade do meio
ambiente do trabalho e as desconformidades a serem abordadas?).
Nesse ínterim, cumpre realçar algumas posturas do Poder Judiciário as
quais não somente validam, como alçam a elevado nível a expectativa da Sociedade
quanto à atuação dos Sindicatos de Trabalhadores, bem como o papel do empresariado e
da Fiscalização Trabalhista. Decidindo em Apelação em Mandado de Segurança sobre a
Convenção nº 148 da OIT e o acompanhamento da fiscalização do trabalho pela
entidade sindical186, assim decidiu, por unanimidade, a Segunda Turma do TRF da 3ª
Região:
―Mandado de Segurança. Convenção 148 da OIT. Sindicato.
Acompanhamento da fiscalização. Sentença mantida.
I – A fiscalização, embora indelegável da Administração, é regida
pelo princípio da oficialidade, que tem na publicidade a sua viga de
sustentação.
II – A norma em debate, originária de convenção internacional, devese dar interpretação epistemológica, finalística e axiológica, por
aplicação do art. 5º, LIV da Constituição Federal.
III – Os princípios constitucionais elevaram à cláusula pétrea (art. 60,
§ 4º) os direitos sociais contidos no art. 6º da Constituição Federal, em
cujo rol se destacam segurança e trabalho.
IV – O Direito moderno busca ultrapassar os limites da literalidade
dos textos, para garantir a eficácia do direito protegido, que aqui outro
não é, senão a segurança dos trabalhadores e de toda a sociedade.
V – Nenhum prejuízo decorrerá à empresa, constituindo-se mera
divagação, a afirmação de que os representantes do sindicato
praticarão deslizes, caso acompanhem a fiscalização , devidamente
convidados por esta, num ato que é oficial e, portanto, publico.
VI – A empresa é privada, mas sua finalidade é social, tendo o
sindicato interesse de acompanhar e apontar erronias à fiscalização,
que possam vir a afetar a saúde dos trabalhadores.
VII- Distingue-se, nas formas da Convenção, o significado finalístico
do devido processo legal, expressamente acolhido pela Constituição
Federal vigente (art.5º, LIV), expressão de conquistas políticas da
humanidade, que ser quer irreversíveis no Direito Constitucional
brasileiro.
186
Ac. Do TR 3ª região, 2ª T., no AMS 32235, de 14.12.99, rel. Juiz Batista Gonçalves, DJ de 23.03.2000,
p. 949.
227
VIII – A interpretação, pois, não deve residir no texto literal da
Convenção, mas na sua finalidade, tendo em vista a primazia da saúde
dos trabalhadores.
IX – Apelação improvida ‖.
Apesar de tema ainda controverso, deve-se chamar a atenção para a
possibilidade da propositura, diretamente pelo Sindicato obreiro, de Ação Civil Pública,
em especial na defesa dos interesses coletivos dos trabalhadores, atuação a qual
encontra resguardo no entendimento de vários autores(60), representando espaço que
paulatinamente vem sendo ocupado por essas entidades, inclusive na questão da defesa
das condições de saúde e segurança do meio ambiente do trabalho.
Por outro lado, dentro das diretrizes do Sistema Único de Saúde,
verifica-se a expressa previsão constitucional da "participação da comunidade" (art.
198, Inc. III, CF). A Lei Orgânica da Saúde, no § 3º do artigo 6º (campo de atuação do
SUS, na área de saúde do trabalhador) prevê:
"V - informação ao trabalhador e a sua respectiva entidade sindical e a
empresas sobre os riscos de acidente de trabalho, doença profissional e
do trabalho...
...
VIII - a garantia ao sindicato dos trabalhadores de requerer ao órgão
competente a interdição de máquina, de setor de serviço ou de todo o
ambiente de trabalho, quando houver exposição a risco iminente para
a vida ou saúde dos trabalhadores".
A Portaria nº 3.120/98 do Ministério da Saúde prevê a incorporação dos
trabalhadores em todas as etapas da vigilância em saúde do trabalhador (item 3.4 Princípios – Controle Social), assim também figurando na Portaria nº 3.908/98 (art.1º,
inc.IV). A Constituição do estado de São Paulo assegura a "cooperação dos sindicatos
de trabalhadores nas ações de vigilância sanitária desenvolvidas no local de trabalho"
(art. 229, § 4º). A mesma garantia está presente no Código de Saúde daquele estado (Lei
Complementar / SP - nº 791/95, art. 35), além do Código Sanitário (lei estadual (SP) nº
10.083/98, art. 30, inc. II; art. 31, inc. III), e também na Lei Estadual (SP) nº 9.505/97
(art.7º). É de se assinalar que diversos estados membros, nas suas constituições e
códigos de saúde e/ou sanitários estabelecem, quanto à saúde do trabalhador, as
garantias dos direitos de cidadania (61): "a) assistência/recuperação; b) acesso do
trabalhador ás informações; c) participação sindical; d) recusa ao trabalho em ambientes
de risco; e) participação dos trabalhadores e entidades sindicais na gestão dos serviços;
f) requerer interdição do ambiente de trabalho; e g) apuração de responsabilidades".
Desafio complementar à implementação da legislação de proteção à
saúde é representado pelas mudanças vividas pelo mundo do trabalho, em especial na
última década, com a precarização dos vínculos, as terceirizações e "repasses" dos
riscos ocupacionais e ambientais entre empresas, além da informalização progressiva.
Cabe assinalar que frente aos novos espaços definidos pelo legislador,
recentes desafios se apresentam para a Sociedade Civil (através dos trabalhadores, seus
representantes, e empresariado), bem como para os agentes da Administração Pública,
no sentido de efetivamente tornar realidade os avanços previstos no arcabouço jurídico
sanitário de promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, seja através da efetiva
implantação das ações de Assistência Integral e de Vigilância a Saúde dos
Trabalhadores, seja no processo de crescimento e acúmulo das Comunidades no
reconhecimento dos riscos ocupacionais e ambientais, com formulação coletiva de
propostas concretas de eliminação, controle e melhorias, a partir das experiências
228
participativas, superando entraves (inclusive institucionais) vinculados a posturas
ultrapassadas, e buscando construir o "meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida", nele incluído o meio
ambiente do trabalho (Constituição Federal).
Dentro dos procedimentos negociais, entre trabalhadores e empresariado,
algumas experiências têm sido registradas, algumas com impacto na redução de perfis
mais específicos de riscos, outras com espectros mais gerais. Algumas negociações são
bipartites, outras contando com a participação de instâncias do Poder Público, das áreas
do Trabalho e da Saúde. Alguns exemplos de negociações e acordos coletivos em Saúde
e Trabalho podem ser referidas187: Máquinas INJETORAS de plástico; CILINDROS
DE MASSA: Acordos do Setor de Panificação: Máquinas Usadas / Máquinas Novas;
PRENSAS: A Convenção / Regimento da CPN / O "PPRPS" / Cronograma de metas de
implantação; GALVÂNICAS (Tratamento de superfícies); TRANSPORTE DE
CARGAS: Protocolo de Intenções; Acordo do Setor de LAVANDERIAS - SP;
Construção Civil em PIRACICABA (SP); SUR - Sistema Único de Representação dos
Químicos de Santo André (SP) com a Kolynos.
Direitos reprodutivos e capacitação trabalhista da mulher
A discussão e a própria noção de direitos reprodutivos afigura-se recente
na área jurídica brasileira, tendo tomado progressivo impulso com os avanços
conquistados pela Sociedade Civil, nas últimas décadas, consubstanciados no preceito
constitucional de igualdade entre homens e mulheres, a partir de 1988. Como assinala
Neiva Flávia de Oliveira, em artigo doutrinário (62), o próprio conceito de direito
reprodutivo ainda não se definiu tanto na legislação, quanto na doutrina jurídica
brasileira, caracterizando-se como uma exigência social, ―para se ajustar os gêneros de
maneira equilibrada‖.
Na visão daquela autora, ―a concepção de direitos reprodutivos, vinculase à capacidade de mulheres regularem seu próprio corpo, enquanto direito, e como
dever, transforma-se na exigência de responsabilidade masculina, pelo exercício de sua
sexualidade, e dada a relevância legal que a função da mulher como mãe possui, como
se observa, inclusive, na análise de textos constitucionais‖. Abordando a maternidade
como uma função social, protegida pelo Estado-legislador, enfatiza a relação entre a
procriação e a possibilidade de acesso da mulher ao mercado de trabalho, bem como a
questão do custo da mão-de-obra feminina.
Enfatizando a existência, cotidiana e do ponto de vista legal, de condutas
e posturas discriminatórias, tece comentários sobre tais aspectos ocorrentes nas práticas
trabalhistas e previdenciárias, quanto ao ciclo gravídico-puerperal, ao assédio sexual,
seja quanto ao aborto. Quanto a este último, realça sua penalização, do ponto de vista
trabalhista e previdenciário, além do penal, in verbis:
―Enfim, o aborto é um dos raros crimes com penas tìpicas e atìpicas:
trabalhista e previdenciário, coincidentemente praticado apenas por
mulheres‖.
Outro exemplo seria a inexistência da prestação do benefício de acidente
do trabalho para a empregada doméstica, inclusive na contramão do conhecimento e
187
Vide endereço eletrônico : http://www.geocities.com/Athens/4765/ , na Internet.
229
registros crescente e que se vem acumulando em relação ao potencial de ocorrência de
lesões no ambiente doméstico, como acidentes ou doenças.
Do ponto de vista de diagnóstico de situação, de relevante interesse é o
Relatório da Sociedade Civil sobre o cumprimento pelo Brasil do Pacto Internacional de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais188, do qual se extraem algumas constatações:
Ainda com relação à discriminação da mulher trabalhadora, ela se
acentua com relação à raça negra. Análise da AMB (Associação de Mulheres Brasileira)
destaca que "as mulheres negras são particularmente vítimas de violências simbólicas
que trabalham pela imposição de um critério único e estereotipado de beleza.‖
Do ponto de vista dos diplomas legais, o trabalho da mulher tem
referências na Constituição Federal (art. 5º, I; art.7º, XX e XVIII; Disposições
Transitórias, art. 10, II, ―b‖), e na CLT (Descanso: arts. 382 a 386; Duração e
Condições: arts. 372 a 377; Métodos e Locais: arts. 387 a 390; Trabalho Noturno: art.
381 e Súmula TST 265; Proteção à Maternidade: arts. 391 a 400; Penalidades: art. 401).
Salienta-se o direito à creche (art. 389, § 1º), e a amamentação (art. 396), até o 6º mês
de idade da criança. A Lei nº 9.029/95 proibiu a exigência de atestados de gravidez e
esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de
permanência da relação jurídica de trabalho, tendo criado inclusive o tipo penal
específico, para efeito de acesso a relação de emprego ou sua manutenção.
Já a Lei 9.799/99 inseriu na CLT regras sobre o acesso da mulher ao
mercado de trabalho e, entre outras providências, modificou o § 4º do artigo 392,
estabelecendo a garantia à empregada, durante a gravidez, sem prejuízo do salário e
demais direitos: ―I – transferência de função, quando as condições de saúde o exigirem,
assegurada a retomada da função anteriormente exercida, logo após o retorno ao
trabalho; II – dispensa do horário de trabalho pelo tempo necessário para a realização
de, no mìnimo, seis consultas médicas e demais exames complementares‖. Saliente-se
que a mesma lei insere dispositivos voltados contra a discriminação do trabalho
feminino, inclusive proibindo a exigência de atestados ou exames de esterilidade ou
gravidez, e veda a realização de revistas íntimas nas empregadas.
Algumas legislações de estados membros também buscam reforçar
determinações anteriores, com a Lei estadual (SP) nº 10.849, de 06.07.2001, que
autoriza o Executivo a adotar punições contra as empresas que exijam a realização de
teste de gravidez e apresentação de atestado de laqueadura para o acesso das mulheres
ao trabalho, inclusive com o cancelamento administrativo de inscrição estadual das
empresas, definindo também punição aos agentes da administração pública estadual que
praticarem a discriminação.
Numa perspectiva relativa ao meio ambiente do trabalho, ganha realce a
necessidade da proteção legal e efetiva contra os possíveis efeitos do trabalho sobre a
reprodução humana, a qual potencialmente pode ser afetada por ―riscos fìsicos
(temperaturas extremas, radiação ionizante, etc), estresse ergonômico e psicológico,
agentes biológicos, agentes químicos (incluindo gases irritantes, gases asfixiantes e
outras toxinas, como as substâncias mutagênicas e teratogênicas)‖ (63). Do ponto de
vista epidemiológico, entre os efeitos adversos registrados figuram a redução da
188
O BRASIL E O PACTO INTERNACIONAL DE DIREITOS ECONÕMICOS, SOCIAIS E
CULTURAIS. Relatório da Sociedade Civil sobre o Cumprimento pelo Brasil do Pacto Internacional
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Coordenação da Comissão de Direitos Humanos da
Câmara dos Deputados, Movimento Nacional de Direitos Humanos, e Procuradoria Federal dos
Direitos do Cidadão. Brasília, abril de 2000. Fonte: site da Comissão de Direitos Humanos da Ordem
dos Advogados do Brasil – Ceará.
230
fertilidade (masculina), alterações menstruais, abortamentos espontâneos, malformações
congênitas, parto prematura e baixo peso ao nascer, além de efeitos pós-natais.
A Organização Internacional do Trabalho – OIT (64) assinala ainda que
―as mulheres trabalhadoras são mais passìveis de padecer de estresse, fadiga, fadiga
crônica, envelhecimento precoce e outros transtornos psicossociais e da saúde por causa
de seu duplo papel reprodutivo e econômico‖. Também caracteriza que ―uma das
principias causas do estresse é o temor de situações desconhecidas e o fato de não
controlar as obrigações que tenham que desempenhar e a organização de seu trabalho.
É freqüente que as mulheres ocupem postos menos qualificados e mais precários que os
homens, e que realizem atividades que não estão relacionadas à tomada de decisões‖.
Com vistas à igualdade de tratamento quanto ao gênero, em relação ao
trabalho, a OIT189 também preconiza a adoção sistemática de uma série de medidas
que impeçam que o papel específico da mulher na reprodução não tenha um efeito
adverso sobre seu emprego, uma vez que as vidas das mulheres trabalhadoras estão
fortemente condicionadas pela presença de filhos na família.
Quanto ao embasamento para o desenvolvimento de ações de maior
repercussão social quanto ao tema, pode-se citar190:
1 - o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (PIDESC), adotado pela Organização das Nações Unidas
(ONU) em 1966 (Decreto legislativo no. 226, de 12.12.91);
juntamente com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos,
com o objetivo de conferir obrigatoriedade aos compromissos
estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos;
2 - Convenções da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial, de 1966 (Decreto Legislativo no. 65.810, de
8/12/69); e a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra
a Mulher, de 1979 (Decreto Legislativo no. 26, de 22/6/64);
3 - Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher - OEA, de 1994 (Decreto Legislativo no.
1.973, de 1/8/96);
4 - Convenções da Organização Internacional do Trabalho - OIT
sobre a Igualdade de Remuneração de Mão-de-Obra Feminina por um
Trabalho de Igual Valor, no. 100, de 1951 (Decreto Legislativo no.
41.721, de 25/6/57); e a Discriminação no Emprego e na Profissão, no.
111, de 1959 (Decreto Legislativo no. 62.150, de 19/1/68).
Finalizando, a breve revisão da questão aqui abordada evidencia o
conhecimento da realidade, de vários dos fatores relacionados, a existência de propostas
189
Estas medidas incluyen:
— asistencia sanitaria para las mujeres gestantes y madres;
— subsidios en metálico y licencia por maternidad;
— disposiciones para conciliar mejor las responsabilidades familiares y las laborales, así
como dar a los padres la oportunidad de desarrollar un papel reconocido en el cuidado
de los hijos;
— otros tipos de responsabilidad colectiva; asignaciones familiares, acuerdos
impositivos, sistemas de atención a los niños.
190
―A Constituição Federal, em seu artigo 5°, parágrafo 2°, consagra que os direitos e garantias nela
expressos "não excluem outros decorrentes do regime e princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte‖. Portanto, a Carta Magna
consubstancia no rol dos direitos protegidos, aqueles enunciados nos tratados internacionais nos quais o
Brasil é signatário, incluindo-se, evidentemente, os direitos humanos. Neste sentido, há que se provocar o
Poder Judiciário brasileiro para que, paulatinamente, insira as normas internacionais de proteção dos
direitos humanos em sua jurisprudência, aplicando-as direta e efetivamente nas sentenças de suas Cortes‖.
(&)Fonte: site da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Ceará.
231
e medidas concretas a serem tomadas, com base, inclusive em instrumentos presentes no
arcabouço jurídico nacional e internacional. E visão da Profª Neiva Flávia de Oliveira
(62), cumpre um papel ao pesquisador em Ciência do Direito, ―que possui competência
para conceituar direitos reprodutivos e fazer com que esse conhecimento específico se
reproduza para a formação de uma consciência feminina, apta a exigir um arcabouço
jurìdico condizente com a forma produtiva feminina‖.
Doenças e agravos do trabalho de notificação compulsória
O Brasil, ao ratificar a Convenção nº 155 da OIT, já se comprometia com
o ―estabelecimento e a aplicação de procedimentos para a declaração de acidentes de
trabalho e doenças profissionais por parte dos empregadores e, quando for pertinente,
das instituições seguradoras ou outros organismos ou pessoas diretamente interessadas,
e a elaboração de estatìsticas anuais...‖ (alìnea ―c‖ do art. 11). Com relação aos agravos
à saúde relacionados ao trabalho, a quantidade de normas legais e regulamentares afetas
ao tema, bem como as implicações sanitárias, previdenciárias, trabalhistas, e até penais,
são igualmente amplas e profundas, como colhido de trabalho conjunto de profissionais
técnicos do SUS, do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho, de
Campinas / SP (19):
―O assunto toma realce frente à constatação apresentada pela
Organização Mundial da Saúde, no texto do FACT SHEET nº 84
(revisado em junho de 1999), sobre Saúde Ocupacional, e que, na sua
página 2 assinala (o original encontra-se no site da OMS,
www.who.int/inf-fs/en/fact084.html:
"SUBESTIMADA: a avaliação da carga global de doenças
ocupacionais e acidentes de trabalho é difícil. Informação confiável
para a maioria das nações em desenvolvimento é escassa,
principalmente devido a sérias limitações no diagnóstico do
adoecimento ocupacional e nos sistemas de notificação. A OMS
estima que na América Latina, por exemplo, apenas entre 1 e 4 %
de todas as doenças ocupacionais são notificadas (grifo nosso).
Mesmo nos países industrializados, os sistemas de notificação são
algumas vezes fragmentados. Por exemplo, uma análise de impacto
econômico dos regulamentos de substâncias perigosas, de 1993, na
Austrália, descobriu falta de dados em muitas áreas e teve que se
basear em extrapolações de dados da Escandinávia e Estados Unidos.
Há dois problemas principais e comuns tanto em países desenvolvidos
quanto naqueles em desenvolvimento: resistência em reconhecer as
causas ocupacionais de acidentes e problemas de saúde, e falha em
notificá-los, mesmo uma vez reconhecidos. A história da saúde
ocupacional é aquela de uma luta entre trabalhadores buscando
proteção e medidas de prevenção ou compensação (indenização), e
seus empregadores tentando negar ou reduzir sua responsabilidade
por acidentes ou doenças relacionadas ao trabalho (grifo nosso).
Este conflito tem influenciado de forma muito grande as estatísticas
de notificação. Como um dos resultados, a carga de doenças devidas
a exposições ocupacionais é normalmente SUBESTIMADA. "
232
Notificação Compulsória de Acidentes de Trabalho - quanto à
abertura de CATS – Comunicação de Acidente do Trabalho
Diversas Normas contemplam essa exigência. Podemos relacionar :
1) Art. 169 da CLT :
- obriga a Notificação das Doenças profissionais e das produzidas em virtude de
condições especiais de trabalho, comprovadas ou objeto de suspeita;
2) Da Lei Federal 8.213/91 :

Art. 20 : considera como Acidente de Trabalho :
I) a doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício
peculiar a determinada atividade constante da relação de que trata o anexo II;
II) a doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de
condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente.
 Art. 23. Considera-se como dia do acidente, no caso de doença profissional ou do
trabalho, a data do início da incapacidade laborativa para o exercício da atividade
habitual, ou o dia da segregação compulsória, ou o dia em que for realizado o
diagnóstico, valendo para este efeito o que ocorrer primeiro.
3) do Decreto Federal nº 3.048 / 99 da Previdência Social:
 Art. 336 – Para fins estatísticos e epidemiológicos, a empresa deverá comunicar à
previdência social o acidente de que tratam os arts. 19, 20, 21 e 23 da Lei 8.213, de
1991, ocorrido com o segurado empregado, exceto o doméstico, o trabalhador avulso,
o segurado especial e o médico - residente, até o primeiro dia útil seguinte ao da
ocorrência e, em caso de morte, de imediato, à autoridade competente, sob pena da
multa aplicada e cobrada na forma do art. 286.
§ 1°. Da comunicação a que se refere este artigo receberão cópia fiel o acidentado ou
seus dependentes, bem como o sindicato que corresponda sua categoria.
§ 2°. Na falta do cumprimento do disposto no caput, caberá ao setor de benefícios do
Instituto Nacional do Seguro Social comunicar a ocorrência ao setor de fiscalização,
para a aplicação e cobrança da multa devida.
§ 3°. Na falta de comunicação por parte da empresa, podem formalizá-la o próprio
acidentado, seus dependentes, a entidade sindical competente, o médico que o assistiu
ou qualquer autoridade pública, na prevalecendo nestes casos o prazo previsto neste
artigo.
§ 4°. A comunicação a que se refere o § 3° não exime a empresa de responsabilidade
pela falta do cumprimento do disposto neste artigo.
§ 6°. Os sindicatos e entidades representativas de classe poderão acompanhar a
cobrança pela previdência social, das multas previstas neste artigo‖
233
 Art.337 do Decreto 3.048 / 99 - O acidente de que trata o artigo anterior será
caracterizado tecnicamente pela perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social,
que fará o reconhecimento técnico do nexo causal entre:
I – o acidente e a lesão;
II – a doença e o trabalho; e
III – a causa mortis e o acidente.
 Art. 286 - A infração ao disposto no art. 336 sujeita o responsável à multa variável
entre os limites mínimo e máximo do salário-de-contribuição, por acidente que tenha
deixado de comunicar nesse prazo.
§ 1°. Em caso de morte, a comunicação a que se refere este artigo deverá ser efetuado
de imediato à autoridade competente.
§ 2°. A multa será elevada em 2 (duas) vezes o seu valor a cada reincidência.
§ 3°. A multa será aplicada no seu grau mínimo na ocorrência da primeira
comunicação feita fora do prazo estabelecido neste artigo, ou não comunicada,
observado o disposto nos arts. 290 a 292. ‖
 Art. 341 - Nos casos de negligência quanto às normas de segurança e saúde do
trabalho indicadas para a proteção individual e coletiva, a previdência social proporá
ação regressiva contra os responsáveis.
 Art.337 - O acidente de que trata o artigo anterior será caracterizado tecnicamente
pela perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social, que fará o reconhecimento
técnico do nexo causal entre:
I – o acidente e a lesão;
II – a doença e o trabalho; e
III – a causa mortis e o acidente.
§ 1°. O setor de benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social reconhecerá o direito
do segurado à habilitação do benefício acidentário.
§ 2°. Será considerado agravamento do acidente aquele sofrido pelo acidentado
quando estiver sob a responsabilidade da reabilitação profissional.
4) Das NRs – Normas de Segurança e Medicina do Trabalho
Lei 6.514 / 77 e Portaria 3.214 / 78 do Ministério do Trabalho :
 Art. 168 e 169 da CLT; da Port. 24/94 e NR7.4.8 do MTE, temos: sendo constatada
a ocorrência ou agravamento de doenças profissionais, através de exames médicos que
incluem os definidos nesta NR; ou sendo verificadas alterações que revelem qualquer
tipo de disfunção de órgão ou sistema biológico, através dos exames constantes dos
Quadros I (apenas aqueles com interpretação SC) e II, e do item 7.4.2.3 da presente
NR, mesmo sem sintomatologia, caberá ao médico coordenador ou encarregado:
234
a) solicitar à empresa a emissão da CAT ;
b) indicar, quando necessário, o afastamento do trabalhador da exposição ao risco, ou
do trabalho;
c) encaminhar o trabalhador à Previdência Social para estabelecimento de nexo
causal, avaliação de incapacidade e definição da conduta previdenciária em relação ao
trabalho;
d) orientar o empregador quanto à necessidade de adoção de medidas de controle no
ambiente de trabalho.
5) A Lei Orgânica da Saúde (Lei Federal nº 8.080/90) estabelece como atribuições do
Sistema Único de Saúde – SUS a atenção à Saúde do Trabalhador, incluindo nesse item
as ações de Vigilância Epidemiológica e Sanitária, sendo que tais atribuições e
obrigações legais são reproduzidas nas legislações estaduais sanitárias (no estado de
São Paulo, vide o Código de Saúde – Lei Complementar Estadual nº 791/95; Lei
Estadual nº 10.083/98; e Lei Estadual nº 9.505/97);
6) Lei Estadual n° 10.083, de23.09.98 - Código Sanitário do Estado de São Paulo
Com relação à comunicação de agravos à saúde, de notificação compulsória,
estabelece:

Art. 64: Será obrigatória a notificação à autoridade sanitária local por:
I – médicos que forem chamados para prestar cuidados ao doente, mesmo que não
assumam a direção do tratamento;
II – responsáveis por estabelecimentos de assistência à saúde e instituições médicosociais de qualquer natureza;
III – responsáveis por estabelecimentos prisionais, de ensino, creches, locais de
trabalho (grifo nosso), ou habitações coletivas em que encontre o doente;
...
§ 2°. A notificação de quaisquer doenças e agravos referidos neste artigo deverá ser
feita à simples suspeita e o mais precocemente possível (grifo nosso), pessoalmente, por
telefone o por qualquer outro meio rápido disponível à autoridade sanitária‖
 Artigo 65 do mesmo Código, encontra-se que ―É dever de todo cidadão comunicar
à autoridade sanitária local a ocorrência, comprovada ou presumível (grifo nosso), de
doença e agravos à saúde de notificação compulsória, nos termos do artigo anterior‖;
 A Resolução SS (Secretaria de Estado da Saúde) n° 60, de 17.02.92, incluiu os
acidentes de trabalho, as doenças profissionais e do trabalho como agravos à saúde de
notificação compulsória, no âmbito do estado de São Paulo (relação de agravos
presentes no site do Centro de Vigilância Epidemiológica – CVE:
www.cve.saude.sp.gov.br );
 A Resolução SS n° 587, de 18.11.94, ao regulamentar a Notificação e o Fluxo de
Acidentes de Trabalho, no âmbito do estado de São Paulo, estabeleceu que caberia ao
empregador a notificação (através da CAT), e na falta deste, o próprio acidentado, seus
dependentes, pela entidade sindical da categoria, pelo serviço médico que o atendeu
ou qualquer autoridade pública;
235
 A Resolução SS nº 587/94 estabelece também que no caso de Doença Profissional
e do Trabalho serão notificados todos os casos suspeitos ou confirmados (vide o site do
Centro de Vigilância Sanitária - CVS (www.cvs.saude.sp.gov.br);
A referida Resolução aprovou a Instrução Normativa que trata dos critérios para o
fluxo de documentos para a notificação dos acidentes do trabalho, doenças
profissionais e do trabalho, urbanos e rurais, no estado de São Paulo, além de
estabelecer como instrumento de notificação compulsória daqueles agravos a CAT e o
LEM (laudo de exame médico), cujo preenchimento deve ser efetuado por todos os
serviços de atendimento medico públicos, privados, conveniados e filantrópicos (prevê
ainda a emissão de CAT em duas vias para trabalhadores do mercado informal);
A Instrução Normativa, anexa à citada Resolução estabelece, no seu item 2, quanto às
Doenças Profissionais e do Trabalho:
" 2 - Doença profissional e do trabalho:
- serão notificados todos os casos suspeitos ou confirmados (grifo nosso),
2.1 - Considera-se critério de suspeita, para fins do inciso 2 (dois), a história
clínica e ocupacional do paciente, sempre que o médico que o atendeu julgue que há
possibilidade da patologia apresentada ser decorrente das condições em que o trabalho
é ou foi executado.
2.1.1 - Para confirmação do diagnóstico, os casos suspeitos serão
encaminhados aos serviços ambulatoriais de atenção a saúde do trabalhador (Centros
de Referência de Saúde do Trabalhador - CRSTs ou Programas de Saúde do
Trabalhador - PSTs) da Secretaria de Estado da Saúde, Municípios, Universidades ou
empresas, ou, onde estes não existam, ao Ambulatório de Especialidades da região.
2.1.2 - Os serviços especializados farão a confirmação do caso com base nos
seguintes requisitos:
-
História Clínica,
História Ocupacional,
Avaliação laboratorial e parecer de especialista, quando necessário,
Avaliação do local de trabalho, quando necessária,
Critérios epidemiológicos, quando indicado,
2.1.3 - Nos casos de doenças, os CRSTs ou os Ambulatórios de Especialidades
encarregar-se-ão de proceder aos requisitos administrativos para que o trabalhador
possa fazer jus ao beneficio previdenciário "
7) LEI ESTADUAL nº 9.505 de 11.03.1997 (disciplina os Serviços e Ações em Saúde
do Trabalhador no Estado de São Paulo)
8) - Artigo 3º, Parágrafo 3º = "Por ocasião do atendimento dos acidentes de trabalho,
o empregador e a rede pública e privada comunicarão ao SUS e aos sindicatos dos
236
trabalhadores esta ocorrência, através de cópias da respectiva CAT - Comunicação de
Acidentes de Trabalho";
- O Promotor de Justiça Jorge Luiz Ussier, da área de Acidentes do Trabalho do
Ministério Público do Estado de São Paulo, atuante na capital, tece alguns comentários
sobre a Lei Estadual Sanitária nº 9.505/97, detalhando algumas conseqüências legais
referentes ao artigo 3º - parágrafo 3º advindas dessa norma (fonte: livro "Saúde
Pública - Suprema Lei", Roberto Gouveia, ed. Mandacaru, São Paulo - 2000), in
verbis:
" É bom que se diga, inicialmente, que a disposição referente à obrigatoriedade os
empregadores em comunicar aos sindicatos as ocorrências dos acidentes e doenças do
trabalho, mediante remessa de uma cópia da Comunicação de Acidentes de Trabalho
(CAT), apenas repete disposição contida na Lei Federal nº 8.213/91 (artigo 22, § 1º).
Todavia, a obrigatoriedade dos empregadores de comunicar também ao SUS é
inovadora e muito salutar, pois, dentre os principais deveres do SUS em saúde do
trabalhador, figura a vigilância epidemiológica.
Também inova a lei estadual ao criar obrigatoriedade legal dos hospitais e serviços de
saúde da rede pública e privada em comunicar os acidentes e doenças do trabalho ao
SUS e aos sindicatos.
Nesse compasso, não custa lembrar que os acidentes e doenças do trabalho são de
notificação compulsória, e a falta dela constitui crime previsto no artigo 269 do Código
Penal, cujo sujeito ativo será sempre o médico (da rede pública ou privada que tenha
sonegado a informação e/ou o médico da empresa), com pena de seis meses a dois anos
de detenção, além de multa. (grifo nosso)"
9) O Código Penal, no Cap. III – ―Dos Crimes contra a Saúde Pública‖
Caracteriza a ―Omissão de notificação de doença‖, nos termos:
 Art. 269 - Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja
notificação é compulsória:
Pena: detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa
10) DECRETO FEDERAL N. 20.931, DE 11 DE JANEIRO DE 1932
O referido diploma legal, já em 1932, ao estabelecer as normas de regulação e
fiscalização do exercício da medicina, prevendo inclusive penalidades, entre os deveres
dos médicos, vinculava no seu artigo 15,:
" d) observar fielmente as disposições regulamentares referentes as doenças de
notificação "
11) As Resoluções Ético-Disciplinares exaradas pelo Conselho Regional de Medicina
do Estado de São Paulo – Resolução CREMESP nº 76/96, e pelo Conselho Federal de
Medicina – Resolução CFM nº 1.488/98 são bastante claras, ao enfatizar que a
notificação dos acidentes do trabalho e das doenças profissionais ou do trabalho far-
237
se-á mesmo na suspeita, constituindo-se também em obrigação ética específica do
profissional médico.
Trazendo à baila, a título de exemplo, a citada Resolução do CFM, esta estabelece
como atribuições dos médicos que trabalham em empresas, no seu artigo 3º, nos
incisos:
"IV - promover a emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho, ou outro
documento que comprove o evento infortunístico, sempre que houver acidente ou
moléstia causada pelo trabalho. Essa emissão deve ser feita até mesmo na suspeita de
nexo causal da doença com o trabalho (grifo nosso). Deve ser fornecida cópia dessa
documentação ao trabalhador;
V - Notificar, formalmente, o órgão público competente quando houver suspeita ou
comprovação de transtornos da saúde atribuíveis ao trabalho, bem como recomendar
ao empregador a adoção dos procedimentos cabíveis, independentemente da
necessidade de afastar o empregado do trabalho ".
Nessa mesma linha, não custa lembrar o estabelecido no Código de Ética Médica (do
Conselho Federal de Medicina), no Capítulo III (Responsabilidade Profissional), artigo
44, o qual estabelece ser vedado ao médico:
―Deixar de colaborar com as autoridades sanitárias ou infringir a legislação
pertinente‖
12) Normas relativas à notificação compulsória de doenças são presentes ainda na Lei
Federal n° 6.259/75 e no Decreto n° 78.231 / 76;
Conclusão sobre obrigações legais
Das Normas Legais e Éticas elencadas, observamos que a empresa não
pode se negar ou postergar a emissão da C.A.T. – sempre que houver relatório ou
solicitação do médico que assiste o funcionário – em caso de diagnóstico ou de suspeita
de acidente ou doença relacionada com o trabalho.
Em havendo essa orientação ou relatório do Médico que assistiu o
trabalhador, da solicitação não cabe à empresa ou a seu SESMT – mesmo ao Médico do
Trabalho - a aceitação ou não; deferimento ou negação da emissão da C.A.T.: - a
caracterização do agravo, da incapacidade e a realização do nexo causal ou técnico é
responsabilidade legal:
a) do INSS e de sua Perícia Médica – do ponto de vista previdenciário,
para fins de benefício por incapacidade;
b) do SUS e de suas Autoridades Sanitárias – do ponto de vista de
Vigilância Sanitária e Epidemiológica, para fins de Saúde Pública
(proteção à Saúde do Trabalhador);
Caso discorde das conclusões oficiais, a empresa (e o médico responsável
pelo PCMSO) poderá se manifestar à Perícia Médica do INSS e às Autoridades
Sanitárias locais, informando de sua avaliação e anexando quaisquer documentos que
238
achar necessários, dentro das práticas e procedimentos administrativos previstos
legalmente, no aparelho de Estado.
Por tratar-se de instrumento de Notificação Compulsória, exigida como
vimos em diversas Normas legais, a emissão da C.A.T. é ainda de responsabilidade do
médico, prevista também: no Código Penal Art. 269 – ―Deixar o médico de denunciar
à autoridade pública doença...‖; no Art. 5º alìnea d, da Resolução CREMESP nº 76/96;
da Resolução CFM nº 1.488/98; e das Normas de Notificação Compulsória de Agravos
à Saúde pela Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, bem como legislação sanitária
estadual.
Cabe às diversas instâncias e níveis do Sistema Único de Saúde – SUS –
o resgate da dimensão de Saúde Pública da notificação compulsória em Saúde do
Trabalhador, implementando e dinamizando um sistema no qual à entrada de dados e
produção de informações (Vigilância Epidemiológica) corresponda a concretização de
ações efetivas de prevenção (Vigilância Sanitária), justificando perante os diversos
atores sociais a cobrança quanto à sistemática comunicação daqueles agravos às
Autoridades Sanitárias.
Toma ênfase, por final, o direcionamento já em bases legais, no sentido
da busca e efetivação do trabalho interinstitucional e integrado, entre os diversos atores
e instituições públicas vinculadas às questões de Saúde dos Trabalhadores, uma das
condições básicas para o amplo atendimento do quanto prescrito e garantido, inclusive
constitucionalmente, ao cidadão trabalhador brasileiro‖ (ref. 19).
Quanto ao mesmo tema, cumpre lembrar que diversos outros estados da
Federação incluíram agravos à saúde ligados ao trabalho na listagem de notificação
compulsória às Autoridades Sanitária, como por exemplo (18): Bahia (Portaria
2.867/97, Secretaria da Saúde); Rio de Janeiro (Resolução SES nº 1.331/99), Distrito
Federal (http://www.saude.df.gov.br/disat/notificacao.asp), e Rio Grande do Sul
(Decreto Estadual nº 40.222, de 02 de agosto de 2000).
Avançando já na estruturação de Sistemas de Informação em Saúde do
Trabalhador, com definição de instrumentos de notificação, responsabilidades, fluxos,
níveis de recepção de dados e sistematização / difusão de informações pode-se citar o
exemplo do Rio Grande do Sul (Decreto 40.222/00 e Portaria n. 35/2000, da Secretaria
de Estado da Saúde).
Frise-se, finalmente, que o próprio Ministério do Trabalho e Emprego,
através da Coordenação de Normalização do Departamento de Segurança e Saúde no
Trabalho, fez pública a Nota Técnica nº 34/2000 (disponível na página eletrônica da
Internet daquele ministério), com a seguinte ementa:
―Quando, nas atividades exercidas pelos Auditores-Fiscais do
Trabalho-AFT, seja de fiscalização, em negociação ou em plantões de
informação, se verificar a ocorrência de acidente de trabalho, ou
doença profissional ou do trabalho, para os quais a empresa, ou o
médico que desenvolve o PCMSO, ou ainda, o médico que assistiu o
trabalhador, não tenha emitido a CAT - Comunicação de Acidente de
Trabalho – é possível, que o próprio AFT, faça a devida emissão, de
forma a garantir o adequado registro estatístico dos eventos
acidentários e a preservação dos direitos do trabalhador.‖
Agrotóxicos e resíduos tóxicos
239
Inicialmente, cabe assinalar que o uso do ―termo AGROTÓXICO, ao
invés de DEFENSIVO AGRÍCOLA, passou a ser utilizado, no Brasil, para denominar
os venenos agrícolas, após grande mobilização da sociedade civil organizada. Mais do
que uma simples mudança da terminologia, esse termo coloca em evidência a toxicidade
desses produtos ao meio ambiente e à saúde humana. São ainda genericamente
denominados praguicidas ou pesticidas (conforme o Guia de Vigilância Epidemiológica
da Fundação Nacional de Saúde – FUNASA) (42).
A questão dos agrotóxicos e resíduos tóxicos representa área
temática, por excelência, na qual a questão da saúde do trabalhador se vincula à
saúde ambiental e à defesa dos direitos do consumidor e da saúde pública, por
conseqüência, dada a amplitude de alcance e disseminação desses possíveis
toxicantes, envolvendo a área da indústria (produção, sínteses, formulação)191; as
condições de segurança do transporte, distribuição e comercialização dos produtos; sua
utilização pelos consumidores finais, seja na agro-pecuária em geral (inclusive no
armazenamento de grãos e sementes), seja pelo consumo nas áreas urbanas, até mesmo
em campanhas de combate a vetores, em Saúde Pública 192, no tratamento de madeira
de construção, e usos domissanitários. Os rejeitos, originários dos processos industriais,
bem como as embalagens, representam outros aspectos com elevados impactos para o
meio ambiente e para a saúde do trabalhador e populações em geral, em vista de
contaminação de mananciais e da água, solo e ar. Há que não se olvidar da
contaminação residual nos alimentos, com repercussão para a saúde pública (exposições
crônicas, em geral de baixas doses, até a múltiplos produtos)193 (44; 45).
Fazendo-se uma síntese, como caracterizado pela Fundação Nacional de
Saúde – FUNASA (42) ―pode-se dizer que os efeitos dos agrotóxicos sobre a saúde, não
dizem respeito apenas aos trabalhadores expostos, mas à população em geral‖. E
complementando, na mesma fonte, citando Berlinguer ―a unidade produtiva não
afeta apenas ao trabalhador, mas contagia o meio ambiente e repercute sobre o
conjunto social‖ (42). Deve-se enfatizar que ―o Brasil encontra-se entre um dos
maiores consumidores de produtos praguicidas (agrotóxicos) do mundo, tanto aqueles
de uso agrícola como os domésticos (domissanitários) e os utilizados em Campanhas de
Saúde Pública (42). O setor agroquímico mobiliza hoje US$ 30 bilhões no mundo,
―sendo que no Brasil este segmento setor faturou cerca de US$ 3,0 bilhões no ano
passado (2000), com um crescimento de 17.5% sobre o mesmo período do ano anterior,
representando hoje o 5º mercado mundial de agrotóxicos‖ (50), e estariam
disponibilizados ao agricultor brasileiro cerca de ―2.011 produtos formulados com
191
―AÇÃO DE ACIDENTE DE TRABALHO – INTOXICAÇÃO POR HEXACLOROBENZENO –
INDENIZAÇÃO DEVIDA. Obreiro que sofre intoxicação crônica por hexaclorobenzeno não pode
exercer suas funções em ambientes nos quais fique exposto a organoclorados pelo resto da vida e,
segundo os estudos mais avançados, corre risco de doenças, inclusive o câncer, pelo armazenamento,
sem biotransformação, daquela substância no fígado, nos rins e nos tecidos gordurosos, fazendo jus,
pois, a auxílio-acidente‖ Ap. s/ Rev. 542.029-00/5 – 5ª Câm. – Rel. Juiz Dyrceu Cintra – J. 26.5.99.
Fonte: site do MPE – SP: www.mp.sp.gov.br
192
Dezenas de pessoas com acesso ao Centro de Saúde de Carapina, município de Serra – ES foram
contaminados por Malathion, aplicado em janeiro de 1996, misturado a óleo de soja para fixar-se nas
paredes e teto, dentro dos procedimentos de combate ao mosquito da dengue (fonte:
http://redeglobo.globo.com)
193
Estudo do Instituto de Biologia da UERJ, analisando 40 amostras de produtos agrícolas de consumo
pela população, a pedido da Comissão de Meio Ambiente da ALERJ, encontrou amostras com níveis
de organofosforados e carbamatos várias vezes superiores às chamadas ―doses diárias aceitáveis‖. A
mesma Comissão teria levantado que, dos 32 agrotóxicos usados no estado do Rio de Janeiro, oito
eram proibidos em outros países.
240
registro no Ministério da Agricultura, sendo 655 herbicidas, 556 inseticidas, 343
fungicidas, 259 acaricidas, 58 nematicidas, e outros 140 produtos...‖ (50).
Segundo a FUNASA (42), ―dada a falta de controle no uso destas
substâncias químicas tóxicas e o desconhecimento da população em geral sobre os
riscos e perigos à saúde dai decorrentes, estima-se que as taxas de intoxicações humanas
no país sejam altas. Deve-se levar em conta que, segundo a Organização Mundial da
Saúde para cada caso notificado de intoxicação ter-se-ia 50 outros não notificados.
Nesse contexto, cabe o questionamento: ―quem está sendo contaminado por
agrotóxicos‖ (43). Somente no Paraná, em 1995, teria havido 786 casos de intoxicação
por agrotóxicos (43). Segundo a FIOCRUZ/SINITOX (42) ―foram notificados no paìs
em 1993 aproximadamente 6.000 casos de intoxicações por praguicidas (agrotóxicos,
domissanitários inseticidas e raticidas), que corresponderiam estimativamente a 300.000
casos de intoxicações naquele ano. Desta forma, é seguro afirmar que o evento
intoxicação e as doenças dai decorrentes constituem-se em um grave problema de saúde
pública, caracterizando-se claramente como endemia‖. A realidade é que a maior parte
dos dados são estimativas, relacionados principalmente a intoxicações agudas (45, 43),
havendo muito pouca informação sobre a morbi-mortalidade relacionada aos efeitos
subagudos e crônicos dos agrotóxicos (46).
Do ponto de vista das definições das políticas públicas, verifica-se que
via de regra os vários diplomas legais e regulamentares orientam a atuação de vários
órgãos e níveis de governo, em vista inclusive da competência concorrente para legislar
sobre a questão. No plano federal a Lei nº 7.802 (Lei de Agrotóxicos), de 11.07.89,
alterada pela Lei nº 9.974, de 06.06.2000, dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a
produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização,
a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos
resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização
de agrotóxicos, seus componentes e afins. A regulamentação se faz através do Decreto
nº 98.816, de 11/01/ 1990, alterado pelo Decreto nº 991/93 e Decreto n. 3.550, de 27 de
julho de 2000.
Existem normas vinculadas à questão junto às áreas da Agricultura,
Saúde, Meio Ambiente, e Ciência & Tecnologia, além de haver normatização
diretamente relacionada à proteção da saúde dos trabalhadores, em especial na área
rural. É de se observar que a lei 5.889/73 - Estatuto do Trabalhador Rural - estabeleceu
no artigo 13 que nos locais de trabalho rural serão observadas as normas de segurança e
higiene determinadas em portaria do Ministério do Trabalho e Previdência Social.
Conforme lembra MELO (47), em 1988 o MTb baixou a Portaria nº 3.067, que aprovou
Normas Regulamentadoras Rurais – NRR – relativas à Segurança e Higiene do
Trabalho Rural, em número de cinco: Disposições Gerais (NRR-1); Serviços
Especializados em Prevenção de Acidentes do Trabalho Rural – SEPATR (NRR-2);
Comissão Interna de Prevenção de Acidentes do Trabalho Rural – CIPATR (NRR-3);
Equipamentos de Proteção Individual – EPI (NRR-4) e de Produtos Químicos (NRR-5),
as quais, evidentemente, não afastam a aplicação de outras que tratem da matéria,
quando compatíveis, como por exemplo, as NRs baixadas pela Portaria nº 3.214/78.
A Norma Regulamentadora Rural nº 5 (NRR-5), em especial, volta-se
para a medidas de prevenção da saúde e segurança do trabalhador no manejo dos
agrotóxicos, associada à NRR-4, específica quanto aos equipamentos de proteção
individual nas atividades rurais. Assinale-se que a NRR-1, no seu item 1.12 especifica
que, ―além das NRR aplicam-se ao trabalho rural, no que couber, as seguintes Normas
Regulamentadoras – NR aprovadas pela Portaria nº 3.214, de 08 de junho de l978,
observadas as alterações posteriores: a) NR-7- Exame médico; b) NR-15 – Atividades e
241
operações insalubres; c) NR-16 – Atividades e operações perigosas‖. Do ponto de vista
da participação nas ações de prevenção, observa-se resguardo legal para um Comissão
Interna de Prevenção de Acidentes de Trabalho Rural – CIPATR, por estabelecimento,
nos ambientes de trabalho cujo empregador rural mantenha a média de 20 ou mais
trabalhadores, com mandato dos membros de duração de 2 anos, permitida uma
recondução.
Com repercussão na esfera do consumidor, e também na questão do
direito à informação, o país conta com diversas normas legais (a própria Lei de
Agrotóxicos e seus respectivos Regulamentos); a Lei nº 9.294, de 15 de julho de 1996; a
Lei nº 8.918, de 14 de julho de 1994; a Lei nº 6.360, de 23 de setembro de 1976; e a Lei
nº 9.974, de 06.06.2000 (relativa à embalagens), que dispõem sobre as restrições ao uso
e á propaganda de produtos fumígenos, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e
defensivos agrícolas, nos termos do § 4º do art. 220 da Constituição. O Decreto nº
2.018, de 01 de outubro de 1996194 já estabelecia parâmetros para a propaganda
comercial de agrotóxicos e diversas penalidades.
Há que se ressaltar que diversos estados têm dispositivos legais
normatizando a questão dos agrotóxicos195, como por exemplo o Rio Grande do Sul
(Constituição Estadual, art. 253)196; Distrito Federal (lei nº 414/93); Minas Gerais
(Decreto nº 33.945/92 alterado pelo Decreto nº 39.220, de 10.11.97)197; Piauí
(Constituição Estadual, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias)198; Bahia
(Lei nº 6.455/BA, de 25/01/1993)199; e mesmo alguns municípios, como Porto Alegre
– RS, normatizaram em regulamento sanitário a questão (Código Municipal de
Saúde)200, sendo de realce alguns dispositivos:
―DAS DEFINIÇÕES
Art. 2º - Para efeitos deste Código são aplicáveis as seguintes definições:
I - AÇÕES DE VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA – São um conjunto de ações que
proporcionam o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores
194
http://www.consumidorbrasil.com.br/textos/ebomsaber/medicamentos/legislacao.htm#D2018
―Meio Ambiente – Cadastramento – Competência supletiva – Poder de Polícia – Preservação da Saúde
e da Vida. A obrigatoriedade de registro no Ministério da Agricultura dos agrotóxicos para sua
distribuição e comercialização não veda o registro nos Departamentos das Secretarias Estaduais de
Saúde e Meio Ambiente. A competência da União não exclui a dos Estados que utiliza o seu poder de
polícia e o princípio federativo em proteção à população. Os Estados têm o dever de preservar a saúde
e a vida das pessoas. Recurso Improvido‖. RESP nº 19.274-0 – Rio Grande do Sul (92.0004560-0).
Rel. Min, Garcia Vieira. STJ. DJ.. 05.04.1993.
196
Art. 253 - É vedada a produção, o transporte, a comercialização e o uso de medicamentos, biocidas,
agrotóxicos ou produtos químicos e biológicos cujo emprego tenha sido comprovado como nocivo em
qualquer parte do território nacional por razões toxicológicas, farmacológicas ou de degradação
ambiental.
Fonte: http://www.universoverde.com.br/Constituicoes/RioGrandedoSul/Constituicao_RS_4.htm
197
Artigo 34, que ―estabelece as multas para os infratores no uso de agrotóxico‖ Fonte:
(http://www.agridata.mg.gov.br/agrotoxico/agusodeagrotoxico.htm)
198
Art. 16 - O Poder Legislativo elaborará, no prazo de seis meses a contar da promulgação desta
Constituição, a Lei Estadual do Meio Ambiente, que normatizará as ações quanto aos seguintes aspectos:
I - uso de agentes poluidores; II - reflorestamento em áreas devastadas; III - saneamento ambiental no
que concerne ao lixo, esgoto e urbanização; IV - animais em extinção; V - uso de agrotóxicos.
199
Dispõe sobre o controle da produção, da comercialização, do uso, do consumo, do transporte e
armazenamento de agrotóxicos, seus componentes e afins no território do Estado da Bahia e dá outras
providências. (Art. 1º - A produção, o uso, o comércio, o armazenamento, o consumo, e o transporte de
agrotóxicos, seus componentes e afins no Estado da Bahia, reger-se-ão pela Lei Federal nº 7.802, de 11 de
julho de 1989, pelo Decreto nº 98.816, de 11 de janeiro de 1990 e pelas disposições desta Lei.)
200
LEI COMPLEMENTAR Nº 395 - Institui o Código Municipal de Saúde do Município de Porto Alegre
e dá outras providências - (D.O.P.A. 24.04.1997).
195
242
determinantes e condicionantes de saúde individual ou coletiva, com finalidade de recomendar e
adotar medidas de prevenção e controle de doenças ou agravos.
II - AGROTÓXICOS - Produtos e agentes de processos físicos, químicos ou biológicos
destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e beneficiamento de produtos
agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas nativas ou implantadas, e de outros
ecossistemas e também de ambientes urbanos, hídricos, industriais, cuja finalidade seja alterar a
composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa dos seres vivos
considerados nocivos, bem como as substâncias e os produtos empregados como desfolhantes,
dessecantes, estimuladores e inibidores de crescimento.
...
LV - PRODUTOS SUJEITOS À FISCALIZAÇÃO DA VIGILÂNCIA À SAÚDE - São
produtos de interesse à saúde: alimentos, gêneros alimentícios, aditivos para alimentos, águas
envasadas, bebidas, fumo e seus derivados, drogas, medicamentos, cosméticos, produtos de
higiene, dietéticos e seus correlatos, saneantes, domissanitários, seus insumos e embalagens, bem
como os demais produtos que interessem à saúde pública e utensílios e equipamentos com os
quais entre em contato
...
Do Controle de Alimentos
Art. 81 - Serão adotados e observados pela Secretaria Municipal de Saúde os padrões de
identidade e qualidade estabelecidos pelo órgão competente para cada tipo ou espécie de
alimento, abrangendo:
...
§ 1º - Os requisitos de higiene, adotados e observados, abrangerão também o padrão
microbiológico do alimento e o limite residual de agrotóxicos e contaminantes toleráveis;
...
Art. 150 - É proibida a aplicação de raticidas, produtos químicos para desinsetização ou
atividade congênere, agrotóxicos e demais substâncias prejudiciais à saúde, em estabelecimentos
de prestação de serviços de interesse para a saúde, estabelecimentos industriais e comerciais e
demais locais de trabalho, galerias, porões, sótãos ou locais de possível comunicação com
residências ou outros freqüentados por pessoas ou animais, sem os procedimentos necessários
para evitar intoxicações ou outros danos à saúde.
Algumas práticas de instituições públicas e privadas têm sido alvo de
questionamento, como a exigência do uso de agrotóxicos para acesso a financiamento
agrícola pelo produtor rural (45), ou ainda, os procedimentos de concessão de registro
de agrotóxicos pelo Ministério da Agricultura, cujas falhas teriam sido apontadas pela
presidência do IBAMA, em 1999 201.
Merecem referência, ainda, duas portarias relacionadas à proibições de
produtos químicos altamente lesivos ao ser humano, qual sejam, (a) Portaria
Interministerial nº 19, de 29.01.81 (DOU 02.02.81), que proibiu o fabrico, o uso e a
comercialização de bifenil policlorados/PCBs (nomes comerciais: Askarel, Aroclor,
Clophen, Kanecchlor), produtos com efeitos teratogênicos e cancerígenos, entre outros;
e (b) Portaria nº 329, de 02.09.85 (DOU 03.09.85), do Ministério da Agricultura, que
proibiu a comercialização, uso e distribuição dos agrotóxicos organoclorados, dentro
outros o Aldrin, BHC (Hexaclorobenzeno), Canfeno, Clorado (Toxafeno) DDT,
Dodecacloro, Endrin, Heptacloro, Lindane, Endosulfan, Meoxicloro, Nonacloro,
Dicofol e Clorobenzilato, em vista da necessidade comprovada alta persistência e/ou
periculosidade desses produtos (alguns classificados entre os chamados POPs,
Poluentes Orgânicos Persistentes).
201
―Registro de agrotóxicos terá inquérito do MP‖. Jornal do Brasil. Seção: Polìtica. 20.03.2000. Segundo
a matéria, o inquérito estaria sendo instaurado pela Procuradoria da República no Distrito Federal
―para apurar denúncias sobre um suposto esquema irregular de concessão de registro de agrotóxicos
pelo Ministério da Agricultura‖, após acusação apresentada pelo IBAMA. Fonte: página eletrônica
http://intranet.pgt.mpt.gov.br/clipping/anteriores/mar2000/20032000.html
243
De realce, também a atuação do Ministério Público e Poder Judiciário
frente à questão dos ―Organismos Geneticamente Modificados‖, entre eles plantas
transgênicas com propriedades agrotóxicas (como é o caso do milho e do algodão
Bt). Tais organismos agem como biopesticidas e são tratados como afins dos
agrotóxicos, requerendo o RET (Registro Especial Temporário) previsto na Lei de
Agrotóxicos. Em face de cultivos desses mutantes sem o RET (fornecido pelo
Ministério da Agricultura), o MPF propôs Ação Civil Pública em março de 2001
perante a 14ª Vara da Justiça Federal/DF, com concessão de liminar, que determina que
―se suspendam todas as autorizações para cultivo de quaisquer sementes geneticamente
modificadas com características de agrotóxicos ou afins em que os interessados não
detenham o Registro Especial Temporário - RET‖, medida a qual foi parcialmente
alterada, sucessivamente, pelo TRF da 1ª Região (48).
Outro exemplo refere-se a Ação Civil Pública proposta pelo Ministério
Público do Trabalho (PRT 15ª Região - Campinas/SP), perante a 2ª JCJ de Araraquara SP, em face da prática de nebulização de trabalhadores rurais, através de arcos de
aplicação, com produto agropecuário, desinfetante e sem registro e/ou liberação da área
Sanitária para uso humano, previamente ao acesso a pomares de plantações de cítricos,
como parte da estratégia de combate à disseminação da bactéria do Cancro cítrico. A
prática foi suspensa em função da concessão de liminar, tendo assim se manifestado a
Justiça do Trabalho, com marcante sensibilidade para aspectos vinculados ao respeito à
Dignidade, à Ética em Pesquisa e Bioética, bem como Discriminação (49):
―... inexistindo, entretanto, uma conclusão especìfica relativa às
ocorrências, em seres humanos, do uso prolongado na forma
descrita, ou seja, repita-se, através de nebulização de corpo inteiro
e vestuário. Entretanto, estas conclusões, também, jamais poderiam
ser obtidas através dos resultados do uso do aludido produto, na forma
noticiada, a teor do disposto no art. 58, do Código de Ética Médica já
citado.
Do exposto, tem-se que ainda que o trabalhador não se manifestasse,
na oportunidade, acerca do procedimento que estava sendo adotado,
este comportamento não poderia induzir na conclusão de que havia
concordado com o mesmo. Num primeiro plano, porque, à toda
evidência, o uso do referido medicamento, da forma noticiada,
necessita de maiores estudos para que sejam afastados eventuais
efeitos colaterais. Num segundo plano, porque é claro o grau de
sujeição pelo qual se encontra o empregado, determinado pelo
precedente estado continuado de temor reverencial e, muitas vezes,
sem, ao menos, ter ciência dos seus próprios direitos. Portanto, não
pode, o trabalhador, expor a sua integridade física a possíveis danos
sem prévia ciência das possíveis conseqüências. Tampouco, poderia a
empresa adotar procedimento similar sem a efetiva comprovação de
que o mesmo não iria ocasionar sérios problemas de saúde para os
trabalhadores. Ademais, constituem objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, bem como a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação (art. 3º, da Carta Magna), constituindo,
ainda, direito dos trabalhadores urbanos e rurais, a ―... redução dos
riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene
e segurança ...‖ (art. 7º, XXII, da C.F.) (g.n.). ‖
244
Demonstrando a busca de unir e concatenar esforços para mudar
realidades de saúde e meio ambiente, como as vinculadas à questão dos agrotóxicos,
instituições públicas e privadas do estado de Pernambuco instalaram em novembro de
2000 o ―Fórum Pernambucano de Combate aos Efeitos dos Agrotóxicos na Saúde
do Trabalhador, no Meio Ambiente e na Sociedade‖ 202, contando com a
participação dos vários ramos do Ministério Público, da área do Trabalho, da Saúde, do
Meio Ambiente, Universidades, Legislativo, de Fiscalização do Exercício Profissional,
entre outras. Em setembro de 2001 o referido Fórum promoveu o seu 1º Seminário,
fruto do qual foi elaborada Carta (51) com importantes constatações sobre as
irregularidades e deficiências e conclusões ligadas à situação atual dos uso dos
agrotóxicos naquele estado, bem como elenca propostas concretas de evolução e
adequação a parâmetros legais de respeito à vida, à saúde, ao meio ambiente. Entre
as várias sugestões, encontra-se:
―...
5. Sugerir ao Ministério Público que recomende na forma e sob as
penas da lei, que os órgãos da Administração Pública Direta e Indireta
assumam o compromisso de comunicar atos/fatos irregulares
detectados nas fiscalizações/visitas para que o órgão competente adote
as providências cabíveis no seu âmbito de atuação;
...
7. Sugerir ao Ministério Público que requisite aos Órgãos Públicos e
entidades a sua programação para o ano de 2002, incluindo ações de
caráter educativo, de fiscalização e de divulgação sobre os
procedimentos referentes aos agrotóxicos, seus componentes e afins,
acompanhada da respectiva dotação orçamentária, como também a
prestação de contas e, ao final, os resultados do planejamento;
8. Sugerir ao Ministério Público que expeça recomendação, na forma
e sob as penas da lei, aos órgãos responsáveis pela fiscalização do uso,
comercialização, armazenamento e transporte de agrotóxicos, seus
componentes e afins no Estado de Pernambuco, em parceria com o
CREA-PE, para que intensifiquem as ações de fiscalização aos
estabelecimentos comerciais e em empreendimentos agrícolas nas
regiões de maior intensidade de uso de agrotóxicos;
...
11. Sugerir ao Ministério Público que recomende na forma e sob as
penas da lei, maior rigor na fiscalização por parte das polícias
rodoviárias Federal e Estadual, quanto ao transporte irregular de
agrotóxicos em ônibus e carros de passeio, e que comuniquem de
imediato aos órgãos competentes, tais como: CPRH, SPRRA,
FUNDACENTRO, Fazenda Estadual e CREA. O Ministério Público
deverá ser informado dos atos praticados através de relatórios
periódicos ‖;
Tais iniciativas interinstitucionais, multiprofissionais e multidisciplinares
evidenciam que apesar da gravidade da questão, a Sociedade Civil e o Estado podem
buscar encaminhamentos e soluções conjuntas, numa base participativa e aglutinadora
de esforços, voltados para a concretização dos direitos básicos garantidos na
Constituição de 1988, na saúde dos trabalhadores, no meio ambiente geral (e do
trabalho incluso), na defesa da Vida, da Dignidade Humana e pelos valores da Justiça,
Liberdade e Solidariedade.
202
vide página eletrônica da Procuradoria Regional do Trabalho da 6ª Região – Ministério Público do
Trabalho: www.prt6.gov.br/forum.
245
Anexo I: Code du Travail (Código de Trabalho Francês)
Titre IV
Médecine Du Travail (Abrogés. Decret. Nº 79-231 du 20.3.79)
Section I
Article R. 241 – 3 : Le service médical du travail d‘entreprise ou d‘établissement est
administre par l‘employer sous la surveillance du comitê d‘enteprise ; à ce titre, le
comitê est saisi pour avis dês questions relatives à l‘organisation et au fonctionnement
du service medical du travail.
Il préente sés observations sur le rapport annuel relatif à l‘organisation, au
fonctionnement, à la gestion financiére du service medical et sur les rapports d‘activité
dur ou dês médecins du travail définis aux articles R.241-26 et R.241.33.
Section IV
Article R.241-30 : Le médecin du travail est lié par un contrat passé avec l‘employeur
ou le président du service médical Inter.-entreprises. Ce contrat de travail est conclu
dans les conditions prévues par le Code de déontologie médicale.
Article R.241-31 : Le médecin du travail ne peut éter nommé ou licencié qu‘avec
l‘accord soit du comité d‘entreprise ou du comitê d‘établissement, soit du comitê
interentreprises ou de la commission de controle du service interentreprises.
Dans les services interentreprises administres paritairement, le médecin du travail ne
peut être nommé ou licencie qu‘avec l‘accord du conseil d‘administration.
Le comitê ou la commission de controle doit se prononcer à la majorité de sés membres,
présents ou non, par um vote à bulletins secrets et après que l‘intéressé, em cas de
licenciement, aura été mis em mesure de présenter sés observations.
A défaut d‘accord, la nomination ou le licenciement est prononcé sur décision conforme
de l‘inspecteur du travail prise après avis du médicin-inspecteur regional du travail et de
la main-d‘ceuvre.
Fonte: Code du Travail . Nouvelle édition 1998 - FRANCE
ANEXO II: Textos de apoio
TEXTO 1
GUIA DE VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA - FUNASA
Fonte: http://www.funasa.gov.br/pub/GVE/GVE0515A.htm
1.Introdução
246
O Brasil encontra-se entre um dos maiores consumidores de produtos
praguicidas (agrotóxicos) do mundo, tanto aqueles de uso agrícola como os domésticos
(domissanitários) e os utilizados em Campanhas de Saúde Pública, perfazendo um total
comercializado de aproximadamente US$ 1.600.000.000 (Um bilhão e seiscentos
milhões de dólares), o que representa 7% (sete por cento) do consumo mundial para o
ano de 1995, segundo dados da Secretaria de Política Agrícola do Ministério da
Agricultura e Abastecimento.
Dada a falta de controle no uso destas substâncias químicas tóxicas e o
desconhecimento da população em geral sobre os riscos e perigos à saúde dai
decorrentes, estima-se que as taxas de intoxicações humanas no país sejam altas. Devese levar em conta que, segundo a Organização Mundial da Saúde para cada caso
notificado de intoxicação ter-se-ia 50 outros não notificados.
Segundo a FIOCRUZ/SINITOX foram notificados no país em 1993
aproximadamente 6.000 casos de intoxicações por praguidas (agrotóxicos,
domissanitários inseticidas e raticidas), que corresponderiam estimativamente a 300.000
casos de intoxicações naquele ano. Desta forma, é seguro afirmar que o evento
intoxicação e as doenças dai decorrentes constituem-se em um grave problema de saúde
pública, caracterizando-se claramente como endemia.
Deve ser levado em conta também que para cada caso de intoxicação o
Sistema de Saúde dispende, aproximadamente, CR$ 150,00 (Cento e cinquenta reais), o
que significa um total estimado de CR$ 45.000.000 (Quarenta e cinco milhões de reais),
que poderiam ser evitados se as medidas de controle e de vigilância fossem mais ativas,
com os setores reponsáveis cumprindo com suas obrigações legais.
Somam-se a esses estudos as constantes denúncias envolvendo
intoxicações, com ou sem mortes, tanto em trabalhadores rurais como na população em
geral. Exemplos recentes, como o Caso de Suicídios em Venâncio Aires/RS, colocam
sob suspeita alguns produtos do grupo químico dos organofosforados, utilizados na
cultura agrícola do fumo ou ainda as 30 intoxicações ocorridas no Município de
Governador Mangabeira/BA, com 3 mortes, inclusive de crianças, recaindo a suspeita
sobre o produto Acefato, ou ainda, o Caso dos Macuxis em Roraima, onde ocorreram
intoxicações humanas e mortes de milhares de pássaros e contaminações ambientais
importantes de fontes de abastecimento de água, por pulverizações aéreas de produtos
agrotóxicos na cultura do arroz.
Em 1991, o Ministério da Saúde apresenta a Organização Pan-Americana
da Saúde o relatório final da Reunião Técnica sobre Agrotóxicos, Saúde Humana e
Ambiental no Brasil, que como principal conclusão, em relação ao tema Proteção à
Saúde do Trabalhador, incluía-se a não existência de um quadro epidemiológico
suficientemente claro que permitisse definir a situação decorrente da exposição a
agrotóxicos.
Em 1993, a OPAS estabeleceu um acordo com a agência estatal alemã
GTZ (Gellschaft für Technische Zusammenarbeit) para o financiamento de uma série de
projetos de estudos na área de saúde e ambiente, dentre os quais um de Vigilância
Epidemiológica de Intoxicações Agudas por Agrotóxicos no Brasil.
O projeto começou a ser implantado em abril de 1995, pela OPAS e
Ministério da Saúde/Secretaria de Vigilância Sanitária, sob a denominação de Proposta
de Metodologia para a implantação de um Sistema de Vigilância à Saúde de Populações
Expostas a Agrotóxicos em cinco estados brasileiros.
Este projeto merece especial atenção por parte da Secretaria de
Vigilância Sanitária/Divisão de Meio Ambiente e Ecologia Humana, pois com tal
metodologia implantada no país, e o registro de produtos agrotóxicos, o Brasil terá uma
247
ferramenta a mais para análise do risco advindo destas substâncias, o Ministério da
Saúde estará cumprindo mais uma exigência da Lei 7.802/89 e Decretos 98.816/90 e
991/93.
2. Notificação das Intoxicações
Deverão ser notificados todos os casos em que houver suspeita da
ocorrência de efeitos à saúde humana relacionados à exposição a agrotóxicos, sejam
estes efeitos agudos ou crônicos.
Caso Suspeito: Todo indivíduo que tendo sido exposto a produtos
agrotóxicos, apresente sinais e/ou sintomas clínicos de intoxicação. Também será
considerado como suspeito o indivíduo que mesmo sem apresentar sinais e/ou sintomas
clínicos de intoxicação, tenha sido exposto a produtos agrotóxicos e apresente alterações
laboratoriais compatíveis.
Deverão notificar os casos suspeitos todas as unidades de saúde
(públicas, privadas e filantrópicas), assim como quaisquer pessoas que tomarem
conhecimento de tais casos. Para melhor êxito do sistema, serão contatados e incluídos
em treinamento específico, para atuarem como notificantes, profissionais da área da
saúde, da área de agronomia (agrônomos, técnicos agrícolas), da área de educação
(professores), agentes comunitários, trabalhadores e empregadores rurais (associações e
sindicatos).
A notificação deverá ser realizada em formulário próprio - Ficha
Individual de Notificação - do Sistema de Informações de Agravos de Notificação –
SINAN, em duas vias. Os serviços de saúde devem encaminhar a primeira via ao Setor
de Vigilância à Saúde, permanecendo com a segunda. As outras unidades notificadoras
(escola, serviço rural, ou outra instituição responsável pela notificação) deverão
encaminhar as duas vias ao serviço de saúde mais próximo ou de referência.
Os estados e/ou municípios se responsabilizarão pela impressão das
Fichas de Notificação, que deverão ser numeradas. Devido ao controle da numeração,
esta Ficha não poderá, de forma alguma, ser fotocopiada e a distribuição aos
notificantes deverá estar a cargo da equipe de vigilância (Secretaria de Saúde do
Município ou do Estado).
Os casos suspeitos que forem identificados fora das unidades de saúde,
após o preenchimento da notificação, deverão ser orientados a procurar o serviço de
saúde definido como referência no município/região. Neste serviço de saúde deverá ser
feita a confirmação do diagnóstico, estabelecido o tratamento e a forma de
acompanhamento prospectivo do caso, e o preenchimento da ficha de investigação
epidemiológica.
Para a confirmação de um caso suspeito serão admitidos os seguintes
critérios:
-clínico-epidemiológico: existência de sinais e/ou sintomas + história de
exposição compatível;
-clínico-laboratorial: existência de sinais e/ou sintomas + resultados de exames
laboratoriais específicos alterados.
Permanecerão como suspeitos os seguintes casos notificados:
-aquele que passou por avaliação médica e este não conseguiu confirmar ou
descartar;
-aquele que não passou por avaliação médica.
248
Será considerado como descartado:
-Todo caso suspeito notificado que passou por avaliação médica, concluindo-se
como não sendo intoxicação por agrotóxicos.
(...)
6. Definição e Classificação dos Agrotóxicos
Definição: a Lei Federal nº 7.802 de 11/07/89, regulamentada através do
Decreto 98.816, no seu Artigo 2º, Inciso I, define o termo AGROTÓXICOS da seguinte
forma:
"Os produtos e os componentes de processos físicos, químicos ou
biológicos destinados ao uso nos setores de produção, armazenamento
e beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção de
florestas nativas ou implantadas e de outros ecossistemas e também
em ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja
alterar a composição da flora e da fauna, a fim de preservá-la da ação
danosa de seres vivos considerados nocivos, bem como substâncias e
produtos empregados como desfolhantes, dessecantes, estimuladores e
inibidores do crescimento."
Essa definição exclui fertilizantes e químicos administrados a animais
para estimular crescimento ou modificar comportamento reprodutivo.
O termo AGROTÓXICO, ao invés de DEFENSIVO AGRÍCOLA,
passou a ser utilizado, no Brasil, para denominar os venenos agrícolas, após grande
mobilização da sociedade civil organizada. Mais do que uma simples mudança da
terminologia, esse termo coloca em evidência a toxicidade desses produtos ao meio
ambiente e à saúde humana. São ainda genericamente denominados praguicidas ou
pesticidas.
A mesma lei tem ainda como objetos os componentes e afins, também de
interesse à vigilância, assim definidos:
-Componentes: "Os princípios ativos, os produtos técnicos, suas matérias
primas, os ingredientes inertes e aditivos usados na fabricação de agrotóxicos e
afins".
-Afins: "Os produtos e os agentes de processos físicos e biológicos que tenham a
mesma finalidade dos agrotóxicos, bem como outros produtos químicos, físicos
e biológicos, utilizados na defesa fitossanitária e ambiental, não enquadrados no
Inciso I.
TEXTO 2
MEIO AMBIENTE DO TRABALHO NO SETOR RURAL
Raimundo Simão de Melo – Procurador Regional do Trabalho – PRT 15ª Região – MPT - Campinas/SP
Fonte: http://www.prt15.gov.br/rural.html
―...
02 - MEIO AMBIENTE DO TRABALHO NO SETOR RURAL
E se no geral o Brasil registra marcas preocupantes com relação aos
acidentes do trabalho, no setor rural a situação é muito pior. Enquanto na área rural
1,29% dos acidentes terminam em morte, no campo esse índice aumenta para 2,57%,
além do que é na área agrícola que o número de acidentes não registrados é muitíssimo
maior do que nos centros urbanos, porque, naturalmente, lá o índice de trabalhadores
sem registro em carteira é consideravelmente maior, a ponto de a OIT (Organização
249
Internacional do Trabalho) afirmar que os trabalhadores agrícolas correm, ao menos, o
dobro de riscos de morrer no local de trabalho do que os empregados dos demais setores
(O Globo, pág. 25, de 17/02/98). Afirma, ainda, aquela organização, que a situação é
mais grave nos países em desenvolvimento, devido aos baixos índices educacionais.
Lamentavelmente, no Brasil, no meio rural, em especial, temos os
maiores índices de analfabetismo, falta de instrução e alto índice de miséria, que
contribuem para a manutenção das precárias condições de trabalho desses irmãos
brasileiros que produzem o feijão e o arroz da mesa de milhões de brasileiros. As
principais causas de acidentes no campo são a falta de treinamento para lidar com
maquinário, com agrotóxicos e inexistência, em muitos casos, de equipamentos
adequados de proteção individual e coletiva. Segundo Eduardo Garcia, engenheiro
agrônomo e pesquisador da Fundacentro, os maiores problemas com intoxicação
ocorrem nas culturas de melancia, soja, batata, algodão e tomate (entrevista no jornal O
Globo, de 17/02/98).
Dados de pesquisa entre produtores e trabalhadores rurais mostram o alto
risco do uso de agrotóxicos na agricultura paulista, que pode estar trazendo sérios
prejuízos à saúde pública e ao meio ambiente. O levantamento é o primeiro resultado de
um convênio assinado no ano passado, entre a Fundacentro e a Secretaria da Agricultura
e Abastecimento do Estado de São Paulo, para implementação do Programa de
Segurança e Saúde do Trabalhador Rural (Revista da Fundacentro, ano II, nº 7, pág.23).
Conforme essa pesquisa, o Brasil consome 1/5 de todo o agrotóxico
utilizado pelo terceiro mundo, dado esse alarmante, levando-se em conta que entre 1995
e 1996 houve aumento de 16,7%, o que ensejou o seguinte comentário do já
mencionado engenheiro agrônomo da Fundacentro: A falta de orientação e controle
sobre o uso de agrotóxico, além da carência de informações sobre outras técnicas de
manejo fitossanitário, que reduzam a necessidade do produto, têm impacto direto na
saúde e segurança dos trabalhadores rurais, no meio ambiente e na qualidade dos
alimentos que são levados à mesa do consumidor.
O pior é que o uso de agrotóxicos vem aumentando no campo, sem
controle, sofrendo suas conseqüências, além dos adultos, os menores que manuseiam
com a mais absoluta normalidade qualquer tipo de defensivo agrícola, conforme temos
constatado em Inquéritos Civis Públicos que apuram irregularidades do trabalho do
menor e do meio ambiente do trabalho - irregularidades essas mostradas vez por outra
pelas redes de televisão do país.
Mas se a falta de cultura e instrução do trabalhador rural contribuem para
o aumento dos acidentes de trabalho, por outro, patrões inconseqüentes têm colocado
em risco a saúde e segurança de milhares de bóias-frias catadores de laranja,
pulverizando-os, antes de entrarem nas fazendas, com um agrotóxico chamado
QUATERMON, cuja autorização pelo Ministério da Saúde destina-se apenas à
pulverização da lavoura, veículos e equipamentos agrícolas e, jamais do ser humano.
Esse tipo de atitude descabida e desumana tem rendido ensejo à instauração de
Inquéritos Civis Públicos pelo Ministério Público do Trabalho, com embasamento na
atuação fiscalizatória do Ministério do Trabalho e até o ajuizamento de Ações Civis
Públicas para coibi-las, como ocorreu no processo nº 1925/97, da 2ª JCJ de Araraquara,
quando, liminarmente, foi determinada, mediante cominação de multa, a suspensão dos
"banhos" de defensivos agrícolas que vinha tomando o trabalhadores pela manhã, antes
de adentrarem os pomares de laranja, como se instrumentos fossem.
Também merecem registro os não raros acidentes sofridos por
trabalhadores rurais no transporte para o trabalho, muitas vezes em razão das péssimas
condições de uso dos velhos e inadequados veículos utilizados quase sempre pelos
250
"gatos" que estão a serviço dos donos do capital e que também correm risco de vida,
como recentemente noticiou a imprensa ( O Estado de São Paulo, cad.6-6, de 23/06/98)
a morte de mais 12 bóias-frias, em Olímpia, região de S.José do Rio Preto, em São
Paulo. Também em 06/11/97, no município de Macatuba-SP, outros 19 trabalhadores
rurais foram vitimados por um acidente rodoviário, quando se dirigiam para o trabalho,
cuja apuração, pelo Ministério Público (Procedimento Investigatório nº 999/97-5),
constatou que os mesmos sequer tinham registro em carteira, o que levou à
responsabilização dos tomadores dos serviços pelas indenizações devidas - o que é
pouco, pois é urgente que se aplique o Código Penal a quem coloca em risco a vida de
trabalhadores.
Nos últimos tempos, tem sido decisiva, para aumento dos acidentes de
trabalho e degradação das condições de trabalho e vida dos trabalhadores rurais, o
implemento de cooperativas de trabalho fraudulentas, que, a pretexto de criar empregos,
na verdade vêm substituindo antigos postos de trabalho regidos pela CLT, por trabalho
precarizado, sem qualquer garantia e segurança para o cidadão que trabalha no campo.
Neste caso, dificulta-se a fiscalização do meio ambiente do trabalho porque segundo a
expressão usual, os "cooperados" são trabalhadores autônomos - ou anônimos como os
próprios assim se denominam - e desta forma os tomadores e beneficiários da mão-deobra se dizem isentos de qualquer responsabilidade pelo cumprimento das normas de
segurança e higiene no trabalho. E, no final, a sociedade inteira paga a conta! Aliás, não
é só no setor rural que vem ocorrendo essa situação de risco, pois com a onda de
desregulamentação atual do Direito Laboral, como pregam os neoliberais radicais e vêm
aplicando os capitalistas inconseqüentes, daqui há pouco talvez nem mais se tenha
Direito do Trabalho para preocupar os senhores tecnocratas da economia globalizada. E
tudo volta ao que era antes ‖.
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(48) ―Alimentos Transgênicos? Não engula essa!‖ . Fonte: página eletrônica
http://members.tripod.com/~rosca/transgenicos/def/tipos/biopesticidas-ret.htm
(49) Ação Civil Pública. Processo nº 1.925/97. 2ª JCJ Araraquara/SP. Decisão. Liminar
acolhida em parte (fls. 135/139). Dra. Edna Pedroso Romanini - Juíza do
Trabalho
(50) SÃO PAULO. CATI – Secretaria de Agricultura e Abastecimento.
FUNDACENTRO. Ministério do Trabalho. Programa Segurança e Saúde do
Trabalhador Rural – PSSTR – Convênio SAA/Fundacentro. Fonte: página
eletrônica: http://www.cati.sp.gov/projetos/psstr/m_psstr.htm
(51) FÓRUM PERNAMBUCANO DE COMBATE AOS EFEITOS DOS
AGROTÓXICOS NA SAÚDE DO TRABALHADOR, NO MEIO AMBIENTE
E NA SOCIEDADE. 1º Seminário. Recife/PE. 18 a 20.09.2001. Carta do I
Seminário. Fonte: www.prt6.gov.br/forum/seminario1.carta.html
(52) MENDES, R. et all. [ORG]. Patologia do Trabalho. Editora Atheneu, São Paulo,
1995, 643p.
(53) DIAS, E.C. Evolução e aspectos atuais da saúde do trabalhador no Brasil. Bol. Org.
Panamer. Salud. 115(3):202-14, 1993.
(54) BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, NOST – Norma Operacional em Saúde do
Trabalhador – ST – Portaria n. 3908/GM de 30.09.1998 (DOU nº 215-E, Seção
1, página 17, de 10.11.1998.
(55) MELLO, Carlos Gentile de " Saúde e Assistência Médica no Brasil" - Coleção
Saúde em Debate, Ed. CEBES-HUCITEC,São Paulo, 1977-268p. (citação:
páginas 250 / 251).
(56) BARROS, A.M.de. Proteção à intimidade do empregado. Editora LTr. São Paulo,
1997, página 102. (182 p.)
(57) PARMEGGIANI, L. Legislación reciente sobre seguridad y salud de los
trabajadores. Revista Internacional del Trabajo, v. 101, n. 2, pp. 178-179, 1982.
(58) FRANCE - Code du Travail . Nouvelle édition 1998 - CODE DU TRAVAIL TITRE IV, MÉDECINE DU TRAVAIL (Abrogés. Decret. Nº 79-231 du
20.3.79), SECTION I, Articles R. 241– 3; 30; 31.
(59) CORRÊA-FILHO, H.R. – ‗Outra contribuição da epidemiologia‘, Capìtulo 12 [In]
Isso é Trabalho de Gente? Vida, Doença e Trabalho no Brasil‖, BUSCHINELLI,
J.T.P.; ROCHA, L.E.; RIGOTTO, R.M. (orgs.). Editora Vozes, Petrópolis, 1994
(672 p.)
254
(60) MARTINS FILHO, I.G.S.; GURGEL, M.A.. A transação referendada pelo
Ministério Público do Trabalho em inquérito civil público frente ao inciso II, do
art. 585 do CPC. Revista LTr, V. 59,n. 11, p. 1456, 1995. apud (ref. 1).
(61) OLIVEIRA, M.H.B. et al. Análise comparativa dos dispositivos de saúde do
trabalhador nas constituições estaduais brasileiras. Cad. Saúde Públ., Rio de
Janeiro, v. 13, n. 3, p. 425-433, jul.set, 1997. apud ref. (18).
(62) OLIVEIRA, N. F.; Os Direitos Reprodutivos e Capacitação Trabalhista da Mulher.
Revista LTr, março de 2001, V. 65 (N. 03) (pp. 308 – 313).
(63) McDIARMID, M.A.; AGNEW, J.; Efeitos do Trabalho sobre a Reprodução. In
MENDES, R.; Patologia do Trabalho. Editora Atheneu. São Paulo. 1995 (pp.
389 a 427).
(64) OIT - OFICINA INTERNACIONAL DEL TRABAJO. Trabajo decente para la
mujer. Una propuesta de la OIT para acelerar la puesta en práctica de la
Plataforma de Acción de Pekín. Oficina para la Igualdad de Gênero. Ginebra .
Suiza.
marzo
de
000.
Endereço
eletrônico:
http://www.ilo.org/public/spanish/bureau/gender/download/pdf/trabdecs.pdf
(65) VIEIRA. S. I. (Coord.); Medicina Básica do Trabalho. Volume 1. Pág. 22. Editora
Gênesis. Curitiba. 1995. (445 pág.)
(66) BOCCALON, P.P.; SINDICATO E SAÚDE. Roteiro de Aula proferida em
Campinas, UNICAMP,.; Mimeo. 21.11.91.
(67) ODDONE, I. Et al. Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. São
Paulo. Hucitec, 1986.
(68) MENDES, R & DIAS, EC. Da Medicina do Trabalho à saúde do trabalhador. Ver.
Saúde Públ., 25 (5): 341-9, 1991.
(69) HARB, K. H.; Direitos humanos e meio ambiente, Revista da APG (PUCSP),
16:79-80.
(70) VIANA, M.T.; Para tornar efetivo o direito ambiental. Revista do Ministério
Público do Trabalho – PRT 3ª Região. Belo Horizonte. v. 3 (pp. 125-129) Belo
Horizonte, 1999.
255
VISÕES SOBRE OS PLANOS DE SAÚDE PRIVADA E O
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
(Cláudia Lima Marques e Cristiano Heineck Schmitt)
Cláudia Lima Marques
Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre em Direito (LL.M.) pela Universidade
de Tübingen, Alemanha, Especialista em Direito Europeu pela Universidade do Sarre, Alemanha, e
Doutora em Direito pela Universidade de Heidelberg, Alemanha.
Cristiano Heineck Schmitt
Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pós-graduado pela Escola da
Magistratura do Rio Grande do Sul, Advogado especialista em Direito do Consumidor.
ÍNDICE
Parte I: campo de aplicação do Código de Defesa do Consumidor e Direito à
Saúde. Parte II: a nova legislação em conflito com a anterior. Parte III: a
nova legislação e o combate às cláusulas abusivas. Bibliografia.
Parte I – Campo de aplicação do CDC e Direito à Saúde (por Cristiano
Heineck Schmitt)
Campo de aplicação do Código de Defesa do Consumidor
Comentar sobre âmbito de incidência do Código de Defesa do
Consumidor é tarefa infindável, pois infinitas são as relações contratuais realizadas
pelos indivíduos, sendo que destas, a grande maioria apresenta-se como relações de
consumo, o que torna impossível a elaboração de um catálogo prévio de situações.
Contudo, chamam sempre a atenção do legislador e do intérprete, por mais genérica e
ampla que seja a norma, determinadas relações praticadas com freqüência na sociedade,
constatando-se nestas um intenso contraste entre os participantes, consumidores e
fornecedores, registrando-se um beneficiamento destes, de maior poder econômico, em
prejuízo daqueles, essencialmente vulneráveis a determinadas práticas comerciais
desleais e iníquas.
A massificação das relações contratuais trouxe mudanças na concepção
de contrato, trazendo à lume diferentes formas de interpretação e de concepção do
instrumento. Hodiernamente, fala-se em relações contratuais de fato203 e contrato
203
A busca da eficácia econômica e social do contrato faz surgir o que em doutrina se convencionou
chamar de relações contratuais de fato. O significado dessas relações pode ser visualizado a partir do
exemplo dado por ROPPO: ―...uma declaração de vontade, por qualquer razão viciada, e, por isso,
inválida (nula ou anulável): e todavia, se a relação económica subjacente e as respectivas
transferências de riqueza foram efectivamente realizadas, são disciplinadas pelo direito, como se a
declaração fosse válida e regularmente produtora dos seus efeitos. Também aqui, portanto, o
elemento decisivo para o tratamento jurídico da relação, não é a presença de uma declaração de
vontade contratual (válida), mas, antes, o cumprimento efetivo de uma operação económica. Não é
por acaso que se fala, a este respeito, de relações contratuais de facto (grifo do autor). ROPPO,
256
social, elementos que nos levam à busca do efetivo cumprimento da operação
econômica que é o contrato e não mais na satisfação de formalidades pré-existentes
desde o período romano, que pouco contribuíam para a eficácia econômica e social do
contrato.
A produção e a comercialização em grande escala, através de
mecanismos de distribuição, provocaram a padronização dos contratos, instrumento
responsável pela disposição de produtos e serviços no mercado, ―...com a prévia
estipulação, pelo disponente, das cláusulas e das condições correspondentes, em que
se inserem regras protetivas dos grandes complexos empresariais que extrapolam os
limites impostos pela comutatividade exigida nas relações contratuais‖.204 Foi somente
com a constatação do desequilíbrio contratual ocasionado pela necessidade do
consumidor na aquisição de determinados produtos, aliada à liberdade de fixação do
conteúdo do negócio pelo comerciante-fornecedor, que se pôde alcançar um regime de
proteção do consumidor.
A dominação do mercado produtor e o sistema de distribuição por
empresas de grande porte reduz consideravelmente a participação volitiva dos
adquirentes ou utentes de bens de consumo e de serviços. Essa situação aliada à
agressiva publicidade, veiculada especialmente pela mídia eletrônica, acrescentando e
despertando novos desejos consumistas à sociedade, dá azo à ―civilização da
ansiedade‖, onde o ser humano é impulsionado por necessidades virtuais, imaginárias e
não somente pelas reais.205
A sociedade de consumo, devemos frisar, é formada pela grande massa
de consumidores, tendo suas necessidades supridas pelos fornecedores de produtos e de
bens. Desse agrupamento somente não participam o ermitão ou silvícola que vivem
isoladamente do contexto da sociedade. 206
O surgimento de perspectivas voltadas para o campo do social deram
margem a um processo de restauração da vontade legítima do consumidor prejudicado
por eventual desequilíbrio contratual ou afetado por serviços inadequados e ineficientes
comparados à sua expectativa quando da contratação, bem quanto à imagem de um
negócio seguro e eficiente a consagrar o ―princìpio da manutenção do contrato‖, sem a
presença da cláusula abusiva, 207 com fundamento na função social desempenhada pelo
Enzo, ―O contrato‖. Tradução portuguesa de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra:
Almedina, 1988, p.303. É sinônimo de relações contratuais fáticas a conduta social típica
(sozialtypisches Verhalten), expressão utilizada por LARENZ para indicar o fechamento de um
contrato com aceitação de determinadas cláusulas gerais. O autor cita como exemplo, o embarque em
um ônibus de transporte coletivo e a utilização de serviços oferecidos por máquinas automáticas (ver
MARQUES, ―Contratos...‖, op. cit., p.61). Conforme denota REZZÓNICO, nos casos de relações
contratuais de fato, parece ser mais ajustado à realidade dizer-se que a esses casos atribui-se
convencionalmente o valor da declaração contratual, abstraindo-se as atitudes psíquicas dos seus
autores (op. cit., p.04).
204
Assim BITTAR, Carlos Alberto. ―Direitos do consumidor‖. 4ª edição. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1991. p.59.
205
Assim BITTAR, Carlos Alberto (Coord.). ―Os contratos de adesão e o controle de cláusulas
abusivas‖. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 115 e 116.
206
Conforme aponta RIPERT, há uma imperiosa necessidade do indivìduo em contratar, ―A não ser que
não viage, que não faça seguro, que não gaste água, gás ou eletricidade, que não use transporte
comum, que não trabalhe ao serviço de outrem,...‖ (―A regra...‖, op. cit., p.105).
207
Assim RIEG, ―Le contrôle...‖, op. cit., p.947, comentando o §6º da lei alemã sobre condições gerais
dos contratos, cuja alíena 3 posssui redação idêntica ao §2º, do artigo 51, do CDC. NERY JÚNIOR
fala em ―princìpio da conservação‖ do contrato, de mesma ìndole do mencionado princìpio da
manutenção (―Comentários...‖, op. cit., p.522), seguido por DALL‘ AGNOL (―Cláusulas...‖, op. cit.,
p.140). Não se deve confundir, contudo, conservação com desnaturalização do pacto, pois esta implica
que o juiz se pronuncie contra a vontade das partes claramente expressada, subvertendo a economia do
257
contrato dentro da sociedade, orientando a relação obrigacional, realizando a
distribuição eqüitativa dos direitos e deveres das partes contratantes.208
A partir da revisão do instrumento contendo cláusulas abusivas,
sancionando estas com a sanção de nulidade, será possível, ao mesmo tempo, alcançarse a conservação do contrato. É de BETTI a assertiva: ―...os negócios da vida privada
elevam-se à dignidade de negócios jurídicos e tornam-se instrumentos, que o próprio
direito põe à disposição dos particulares, para servirem de base aos seus interesses na
vida de relação, por conseguinte, para dar vida e permitir o desenvolvimento das
relações entre eles...‖ (grifos do autor).209
A figura jurídica do consumidor é descrita a partir de uma visão
maximalista, compreendendo todos aqueles que se utilizam faticamente de um bem ou
serviço posto no mercado, como destinatário final fático da linha de produção,
interpretando-se assim o artigo 2º do CDC da forma mais ampla possível, abrangendo
um maior número de relações. O agentes do mercado podem assumir, em momentos
diferentes, papéis de consumidores quanto de fornecedores.210 De acordo com a
doutrina maximalista, são consumidores a fábrica de celulose que adquire automóveis
para transporte de visitantes, o advogado que compra uma máquina de escrever para o
escritório, uma repartição pública que adquire canetas, ou a dona de casa que compra
produtos para uso da família.211 Entre os defensores desta corrente, estão BONATO e
DAL PAI MORAES. Para esses autores, é possível a aplicação do CDC a favor de
contrato, modificando seus efeitos e violando o espírito da lei (assim REZZÓNICO, op. cit., p.583).
O Novo Código Civil Brasileiro (Lei nº10.406/02), que somente entrará em vigor em janeiro de 2003,
traz referência expressa à função social do contrato, no seu artigo 421: ―A liberdade de contratar
será exercida em razão e nos limites da função social do contrato‖. De orientação cognata, o artigo
187 do mesmo Código: ―Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes‖. NORONHA alude expressamente à função social do contrato, dedicando um capìtulo
inteiro de sua referida obra sobre o assunto. Esse autor expressa o seguinte: ―O Projeto de Código
Civil ainda não é lei, mas a função social do contrato não vai ser certamente instituída por ele; se
chegar a ser convertido em lei, ninguém certamente sustentará que os contratos anteriores à data da
sua entrada em vigor não tinham função social. Nem a função social do contrato é descoberta do
Projeto, nem é privativa dos contratos; todo direito tem uma função social, que dispensa referência
expressa‖ (op. cit., p.82 e 83). O autor menciona igualmente o artigo 5º da Lei de Introdução ao
Código Civil brasileiro, para indicar que toda norma visa ―fins sociais‖ e atende às ―exigências do
bem comum‖ (idem, p.84). MARQUES observa a realização da justiça contratual, fruto da da função
social do contrato, a partir do eqüilíbrio das prestações, na proteção da confiança e da boa-fé de
ambas as partes (―Contratos...‖, op. cit., p.104). Para esta ilustre jurista, o Direito desenvolve uma
―teoria contratual com função social‖ quando deixa de lado o ideal positivista e dedutivo da ciência,
reconhecendo a influência do social (costume, moralidade, harmonia, tradição), passando a assumir
posições ideológicas, voltando-se para a solução de problemas através da utilização de conceitos e
princípios mais abertos, criando figuras jurídicas, como os conceitos indeterminados e as cláusulas
gerais (idem, p.105).
209
Op cit., Tomo I, p.92.
210
Assim MARQUES, ―Contratos...‖, op.; cit., p.143. No âmbito dos tribunais, como exemplo de
adesão à corrente maximalista, cita-se o acórdão proferido nos autos do Recurso Especial
nº263229/SP, da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator Ministro José Delgado,
julgado em 14.11.00, publicado no Diário da Justiça de 09.04.2001, p.00332, cuja ementa
transcrevemos: ―ADMINSTRATIVO. EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE FORNECIMENTO DE
ÁGUA. RELAÇÃO DE CONSUMO. APLICAÇÃO DOS ARTS. 2º E 42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. 1. Há relação de consumo no fornecimento de água por
entidade concessionária desse serviço público e a empresa que comercializa com pescados. 2. A
empresa utiliza o produto como consumidora final. 3. Conceituação de relação de consumo assentada
pelo art. 2º, do Código de Defesa do Consumidor. 4. Tarifas cobradas a mais. Devolução em dobro.
Aplicação do art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor. 5. Recurso provido‖.
211
MARQUES, ―Contratos‖, op. cit., p.141.
208
258
empresas, analisando-se, contudo, se o bem ou serviço adquirido participará da
composição final do produto ou serviço, ou se servirá para a satisfação de uma
necessidade não produtiva, aplicando-se, nesse último caso, o CDC.212
Por sua vez, a corrente finalista (visão stricto sensu), busca aplicação do
CDC a partir de uma interpretação teleológica, pela qual o destinatário, pessoa física ou
jurídica, além de fático, é econômico, devendo utilizar o bem ou serviço para uso
próprio ou da família, não podendo adquirir produtos para revenda ou para uso
profissional.213
Na caracterização de consumidor, ALTERINI refere conceito objetivos e
conceitos subjetivos.214 Aduz que, do ponto de vista objetivo, há um elemento positivo,
que é a realização do ato de intermediação por um profissional ou comerciante, e um
elemento negativo que é o fato de o consumidor não poder estar atuando
profissionalmente. Na definição subjetiva, salienta a importância de um elemento
também positivo, segundo o qual para o indivíduo ser considerado consumidor, deve
destinar a aquisição de um produto ou serviço para uso pessoal ou familiar, sendo a
qualidade profissional do intermediário irrelevante.
As pessoas jurídicas, com as nuanças impostas pelas duas correntes
acima referidas, inserem-se também no conceito de consumidor, ao menos no Brasil, em
atendimento ao mandamento descrito no artigo 2º do CDC, o qual não impõe
discriminação, tampouco faz distinção quanto ao uso do CDC por parte de pessoas
coletivas. ―A ressalva que se faz é para as situações nas quais a pessoa jurídica adquire
bens ou serviços para revenda, intermediação ou repasse direto de custos ao
consumidor, casos em que é classificada como insumidora, transferindo por completo o
valor de todos os fatores de produção como matérias-primas, horas-extras, entre outros,
ao consumidor. Importa para a utilização da legislação de proteção do consumidor que a
empresa use um produto como consumidora final, sem fim lucrativo‖.215
O artigo 29 do CDC prescreve a ampliação da proteção do Código a
todas pessoas determináveis ou não, expostas às práticas comerciais constantes do
Capítulo V do Título I. Assim, por exemplo, além de pessoas jurídicas, profissionais
liberais e comerciantes poderiam fazer uso de preceitos do CDC, conquanto não estejam
atuando profissionalmente, com repasse de custos ao consumidor, ou em nítida
atividade de revenda, caso em que a situação passa a ser regida pelo Código Comercial.
212
BONATO, Cláudio e DAL PAI MORAES, Vlério, ―Questões controvertidas no Código de Defesa do
Consumidor: principiologia, conceitos e contratos atuais‖. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1999, p.79.
213
―Contratos...‖, op. cit., p.150 e 152.
214
ALTERINI, Atílio Aníbal. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, nº15, julho setembro de
1995, p.5.
215
Assim, SCHMITT, Cristiano Heineck. ―Empresa também é consumidor‖. Artigo publicado no Jornal
Gazeta Mercantil – RS, Porto Alegre, edição de 20 de fevereiro de 2002. Um dos julgados que deram
origem ao artigo foi o do Recurso Especial n°263229, do Superior Tribunal de Justiça, cuja ementa
transcreve-se: ―ADMINISTRATIVO. EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE FORNECIMENTO DE
ÁGUA. RELAÇÃO DE CONSUMO. APLICAÇÃO DOS ARTS. 2º E42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. 1. Há relação de consumo no fornecimento de água por
entidade concessionária desse serviço público a empresa que comercializa com pescados. 2. A empresa
utiliza o produto como consumidora final. 3. Conceituação de relação de consumo assentada pelo art.
2º, do Código de Defesa do Consumidor. 4. Tarifas cobradas a mais. Devolução em dobro. Aplicação
do art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor. 5. Recurso provido―(Superior
Tribunal de Justiça, Recurso Especial n/263229/SP, 1ª Turma, Rel. Min. José Delgado, julgado em
14.11.00, publicado no Diário da Justiça de 09.04.01, p.00332).
259
No Brasil, temos ainda como consumidores equiparados todos aqueles
atingidos na sua incolumidade física, psíquica e patrimonial por acidentes decorrentes
da produção ou do fornecimento de serviços. PASQUALOTTO aponta também a
distinção entre consumidor jurídico, que é quem efetivamente participa do negócio de
consumo, e consumidor material, que a princípio não estaria incluído na proteção
jurídica do consumidor. Contudo, assevera o autor, as legislações específicas sobre o
tema, têm-se inclinado à proteção daqueles, que não sendo partes no contrato de
consumo, utilizam-se dos bens e serviços objeto do negócio, ou que, mesmo sem utilizálos, venham a sofrer danos decorrentes de um produto colocado no mercado. Esses
consumidores meramente materiais são denominados de bystanders.216
Por exemplo, uma criança que seja filha de um adquirente de produto
defeituoso, que vem a adoecer após a sua ingestão, é consumidor por equiparação,
beneficiando-se da aplicação das normas protetivas do CDC. O parágrafo único do
artigo 2° do diploma consumerista respalda a assertiva ao equiparar a consumidor a
coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo na relações de
consumo. Em vista de seu caráter genérico, de interpretação, o artigo supra citado é
aplicável a todos capítulos e seções do Código.217
Na mesma esteira do artigo 2°, o artigo 17 complementa a sua redação,
prevendo a proteção de todas as vítimas de um evento decorrente de fato do produto ou
serviço (artigos 12 a 16 do Código), através dos dispositivos mais benéficos do CDC,
dispondo: ―Para efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas
do evento‖.
Direito à Saúde
A saúde como direito fundamental, direito social e dever do Estado
O tema encontra larga difusão no meio jurídico, pois todas as esferas da
Federação apresentam legislação sobre saúde. O direito à saúde, enquanto direito
social218, deve ser prestado pelo Estado a todo indivíduo. Nesse sentido, José Afonso da
Silva ensina que o direito a saúde ―...há de informar-se pelo princípio de que o direito
igual à vida de todos os seres humanos significa também que, nos casos de doença, cada
um tem o direito a um tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência
médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor
sua consignação em normas constitucionais‖.219
A Constituição Federal de 1988 foi a primeira carta política no Brasil a
reconhecer e assegurar expressamente o direito à saúde, que pode ser visto tanto como
um direito fundamental do homem, ou um direito social. Vários são os dispositivos
constitucionais que tratam do direito à saúde, podendo-se mencionar, por exemplo, os
seguintes artigos da Constituição Federal de 1988: 6º, 23, inciso II, 24, inciso XII, 196,
197, 198 e 199.220
216
PASQUALOTTO, Adalberto. ―Defesa do Consumidor‖. Revista de Direito do Consumidor, São
Paulo, nº6, p .42.
217
Assim MARQUES, ―Contratos...‖, op. cit., p.156.
218
Artigo 6º da Constituição Federal.
219
DA SILVA, José Afonso. ―Curso de direito constitucional positivo‖. 15 ª edição. São Paulo:
Malheiros, 1998. p.311.
220
Art. 6º: ―São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
260
Como direito fundamental, o direito à saúde está inserido no conceito de
―dignidade humana‖, princìpio basilar da República, previsto no inciso III do artigo 1º
da Constituição Federal, pois não há se falar em dignidade se não houver condições
mínimas de garantia da saúde do indivíduo. Da mesma forma, a proteção do direito à
saúde é manifestada no caput do artigo 5º da Constituição, que preconiza a
inviolabilidade do direito à vida, o mais fundamental dos direitos. Inconciliável,
igualmente, proteger a vida, sem agir da mesma forma com a saúde.
Como direito social, o direito à saúde é o segundo a ser mencionado no
caput do artigo 6º da Constituição Federal. Nesta dimensão, como aponta Tessler221, a
saúde está presente na definição do valor atribuído ao salário-mínimo, que, segundo o
legislador constituinte, deve ser capaz de atender as necessidades vitais básicas do
trabalhador e às de sua famìlia, com ―...moradia, alimentação, educação, saúde, lazer,
vestuário, higiene, transporte e previdência social,...‖. Novamente vê-se a associação do
direito à saúde como uma dos elementos vitais essenciais do indivíduo e de sua família.
Ainda como direito social, aponta Tessler222, o direito à saúde é
assegurado também no artigo 7º da Constituição Federal, através do inciso XXII, que
prevê, como direito do trabalhador, a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio
de normas de saúde, higiene e segurança, do inciso XXIII, que estipula um adicional de
remuneração para aqueles que exercerem atividades penosas, insalubres ou perigosas e
do inciso XXXIII, que, em razão da proteção à saúde, proíbe o trabalhos de menores em
período noturno, atividades perigosas e insalubres, por se entender, sem exceções, que
estes sofreriam sérios prejuízos se expostos a situações de risco.
O artigo 196, por sua vez, dispõe: ―A saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco
de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação‖. Enaltece-se assim, que a saúde deve ser
prestada a todos que dela necessitem (princípio da universalidade), em igualdade de
acesso. 223 A leitura do dispositivo apresenta a saúde como um direito, que, como vimos
acima, é tanto um direito fundamental como um direito social, referindo também que a
saúde é também um dever do Estado. Observa-se uma multiplicidade de diretivas
constitucionais voltadas ao direito à saúde, dispostas nos artigos 196 a 200 da
Constituição.224 Pode-se encontrar desde a imposição de promoção, pelo poderes
públicos, de políticas sócio-econômicas que visem a redução do risco de doenças e
outros agravos, com acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação (artigo 196), como a remissão da regulamentação,
fiscalização e controle dos serviços de saúde ao legislador ordinário (artigo 197), a
criação e fixação de diretrizes do Sistema único de Saúde (artigo 198), a participação
da iniciativa privada, em caráter complementar, na assistência à saúde (artigo 199) e o
desta Constituição‖. Art. 23, inciso II: ―cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia
das pessoas portadoras de deficiência‖. Art. 24, inciso XII: ―previdência social, proteção e defesa da
saúde. Art. 197: ―São de relevância social as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público
dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser
feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado‖.
Art. 198, caput: ―As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e
hierarquizada e constituem um sistema únco, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:‖. Art.
199, caput: ―A assistência à saúde é livre à iniciativa privada‖.
221
TESSLER, Marga Inge Barth. ―O direito à saúde: a sáuse como direito e como dever na Constituição
Federal de 1988‖. Revista do Tribunal Federal da 4ª Região, Porot Alegre, nº40, p.80-81, 2001.
222
Op. cit., p.81.
223
DA SILVA, op. cit., p.796.
224
Assim Tessler, op. cit., p.79.
261
estabelecimento de atribuições do Sistema único de Saúde em caráter exemplificativo
(artigo 200). Tessler observa que na redação do artigo 193 da carta política é
identificável o fator de proteção à saúde, pois, se a ordem social tem como base o
trabalho e como objetivo o bem-estar , este último somente é obtido com a ausência de
agravos à mente e ao corpo. 225
O fato de serem considerados de relevância pública, pelo artigo 196,
torna os serviços de saúde suscetíveis à regulamentação, fiscalização e controle do
Poder Publico.226
Salienta-se que para a jurisprudência do egrégio Supremo Tribunal
Federal, a saúde como dever do Estado, ligado à promoção de políticas públicas de
redução de riscos de doenças, com regulamentação de atividades e criação de serviços
de saúde é uma norma constitucional de eficácia limitada, não configurando assim
direito subjetivo judicializável, até porque norma de forte cunho programático. Esta
perspectiva pode ser notada no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade
nº737-8 e 1232/DF.227
Nota-se larga menção ao tema no âmbito da Constituição Federal. Na
legislação infraconstitucional, a situação não é diferente, existindo inúmeras leis
tratando do direito à saúde, que, face ao problema da ausência de uma organização
sistemática, tem sua aplicação prejudicada. Algumas leis federais sobre proteção saúde
podem ser citadas: Lei nº1.283/50 (sobre inspeção industrial e sanitária dos produtos de
origem animal (alterada pela Lei nº7.889/89)), Lei nº4.785/65 (sobre fiscalização do
comércio e uso de produtos fitossanitários), Lei nº5.991/73 (sobre controle sanitário do
comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos (regulamentada
pelo Decreto nº74.170/74)), Lei nº6.150/74 (sobre obrigatoriedade da iodação do sal
(alterada pela Lei n]9.005/95), Lei nº6.360/76 (submete ao sistema de vigilância
sanitária os medicamentos, insumos farmacêuticos, drogas, cosméticos, produtos de
higiene, saneantes e outros (regulamentada pelo Decreto nº79.094/77)), Lei nº8.080/90
(sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes), Lei nº8.078/90 (Código de Defesa e
Proteção do Consumidor), Lei nº8.142/90 (sobre a participação da comunidade na
gestão do Sistema Único de Saúde – SUS e sobre as transferências intergovernamentais
de recursos financeiros na área da saúde), Lei nº8.926/94 (que torna obrigatória a
inclusão, nas bulas de medicamentos, de advertências e recomendações sobre seu uso
por pessoas de mais de 65 anos), Lei nº9.029/95 (que proíbe a exigência de atestados de
gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou
de permanência da relação jurídica de trabalho), Lei nº9.313/96 (sobre a distribuição
gratuita de medicamentos aos portadores de HIV e doentes de AIDS), Lei nº9.656/98
(sobre planos e seguros privados de saúde), Lei nº9.677/98 (que altera dispositivos do
Código Penal, principalmente os atinentes a delitos considerados hediondos cometidos
contra a saúde pública), Lei nº9.728/00 (que define o Sistema Nacional de Vigilância
Sanitária, criando A Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e Lei nº9.961/00 (que
cria a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS).
225
Op. cit., p.82.
Assim Tessler, op. cit., p.79.
227
Assim Tessler, op. cit, p.79. Há alguns, como SCHWARTZ, que entendem de forma distinta,
defendendo a auto-aplicabilidade do artigo 196, sendo ele norma de eficácia imediata, pela ligação
com os artigos 5º e 1º da Constituição Federal, que tratam como fundamentais os direitos à vida e a
dignidade da pessoa humana, direitos sem proteção caso não assegurado o direito à saúde.
SACHWARTZ, GERMANO. ―Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica‖. Porto
Alegre: Livraria da advogado, 2001. p.57
226
262
Os Tribunais no Brasil ressentem-se de organização legislativa acessível
sobre o tema. Nesse sentido, cita-se o artigo 337 do Código de Processo Civil228, que
impõe a necessidade de prova dos direitos estadual, municipal, entre outros,
significando que a parte deve comprovar a existência de tais direitos, não tendo o
magistrado, por obrigação, procurá-los para poder julgar a causa. Disso extrai-se a
conseqüência da impossibilidade do exercício de muitos direitos relativos à saúde, mas
estabelecidos em legislação estadual e municipal, uma vez que árdua a tarefa de se obter
esses textos legislativos, indicando-os para o magistrado.
Em casos análogos sobre a busca pelo direito à saúde decididos no
âmbito do egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a exemplo do ocorre nos
demais Estados, verifica-se o ressentimento em razão da falta de uma coletânea
legislativa sobre o tema. Pode-se observar, em diversos casos, esparsas referências
normativas, justamente porque é muito grande a quantidade de leis, de modo que
inviabiliza-se uma pesquisa individual para cada diploma legal. Situações como as
decididas poderiam ter tido melhor deslinde caso contassem os ilustres julgadores com
uma sistemática legislativa mínima sobre saúde. Assim, por exemplo, as seguintes
decisões cujas ementas transcreve-se:
―Apelação cível. Medicamento não fornecido pela
secretaria de saúde. Ausência de prova da situação de carência
econômica do autor e da possibilidade de uso de similares fornecidos
pelo estado. 1. Se o Estado não fornece gratuitamente o medicamento
de que necessita o autor, mas dispõe de similares, cabia àquele provar
que estes remédios não são adequados aos seu tratamento. 2.Apelação
provida, prejudicados o outro apelo e o reexame necessário‖ (Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível e Reexame
Necessário nº70000966606 da Primeira Câmara Cível, julgada em 07
de junho de 2000);
―Constitucional. Direito à vida. Realização de exame
de ressonância magnética. Falta de prova idônea quanto ao risco de
vida. impossibilidade. 1. A realização de exame gratuito pelo Estado,
exige que aquele seja excepcional e indispensável à vida do paciente.
2. AGRAVO PROVIDO‖ (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
Agravo de Instrumento nº70000967273 da Quarta Câmara Cível,
julgado em 14 de junho de 2000);
―Constitucional. administrativo. Processual civil.
medicamentos carência de ação. interesse de agir ausência. A ação foi
ajuizada sem que antes fosse reformulado o pedido na via
administrativa, após a readequação da receita médica nos termos da
informação prestada pela Secretaria Municipal da Saúde. Não houve
negativa da administração, pelo contrário, foi informado à requerente
que o medicamento encontrava-se disponível, porém em dosagem
inferior ao receitado, necessitando para o seu fornecimento de
readequação da prescrição médica. Após tal readequação, não houve
reiteração do pedido administrativo. Apelação provida. Processo
extinto sem julgamento de mérito. Prejudicado o reexame necessário‖
(Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível e Reexame
Necessário nº70001820547 da Terceira Câmara Cível, julgado em 21
de dezembro de 2000).
―Constitucional. direito à vida. realização de exame
de cintologia óssea com gálio. falta de prova idônea quanto ao risco de
228
Dispõe o artigo 337 do Código de Processo Civil: ―A parte, que alegar direito municipal, estadual,
estrangeiro ou consuetudinário, provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz‖.
263
vida. impossibilidade. 1. Não há se falar em falta de interesse de agir,
pois é desnecessário, para acudir à via jurisdicional, esgotar ou
pleitear na instância administrativa. Preliminar rejeitada. 2.A
realização de exame gratuito pelo Estado, exige que aquele seja
excepcional e indispensável à vida do paciente. 3. APELAÇÃO
PROVIDA‖ (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação
Cível e Reexame Necessário nº700017685 da Quarta Câmara Cível,
julgada em 26 de dezembro de 2000).
―Direito público não especificado – fornecimento de
aparelho necessário a paciente portador de insuficiência respiratória
crônica e sem recursos para sua aquisição – questão da comodidade
que não deve prevalecer diante da escassez de recursos públicos para
custear áreas importantes no âmbito da saúde pública –
impossibilidade de o Poder Judiciário redirecionar verbas da
administração – apelante que dispõe de respirador que o mantém há
vários anos – opção por aparelho avançado e de custo elevado que não
se justifica – apelo improvido‖ (Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, Apelação Cível nº70001851674 da Terceira Câmara Cível,
julgada em 05 de abril de 2001);
Atuação dos entes federados na proteção à saúde
As três esferas da Federação, União, Estados (incluindo-se o Distrito
Federal e Municípios possuem competência legislativa no que tange ao direito à saúde.
No artigo 21 da Constituição Federal, que descreve a competência
privativa da União, pode-se notar referências à atuação do ente no âmbito da saúde, por
exemplo, nos incisos IX, XVIII, XX, XXIII, XXIV e XXV. O IX, ao mencionar
elaboração e execução de planos nacionais e regionais de ordenação do território e de
desenvolvimento econômico e social está prevendo a iniciativa em prol da saúde
individual e coletiva.229 O inciso XVIII coteja a proteção da saúde dispondo sobre o
planejamento e promoção da defesa permanente contra calamidades públicas,
especialmente secas e inundações, situações que trazem consigo inúmeras doenças e
epidemias.230 No inciso XX, observa-se a instituição de diretrizes para o
desenvolvimento urbano, inclusive habitação, transporte urbanos e, no âmbito da saúde,
saneamento básico. Os incisos XXIII, XXIV e XXV, que tratam da competência da
União na organização, execução e fiscalização de atividades nucleares, na inspeção do
trabalho e na garimpagem, estão também voltadas para fatores que muito comprometem
a saúde humana. 231
No âmbito da competência comum dos entes federados, o artigo 23, em
seu inciso II, prevê a iniciativa de cuidados para com a saúde e assistência pública,
sendo portanto, dever da União, Estados, Distrito Federal e Municípios zelarem pela
saúde da população. No inciso IX do referido artigo prescreve-se a promoção de
programas de saneamento básico, fator intimamente ligado à saúde, como já referido.
Tessler aduz que o inciso X também significa proteção do vetor saúde, pois somente
com condições básicas de garantia de saúde pode-se tentar combater a pobreza.232
229
Assim Tessler, op. cit, p.81.
Assim Tessler, op. cit., p.81.
231
Assim Tessler, op. cit, p.81.
232
Op. cit., p.82.
230
264
Ainda, quanto à competência concorrente, o inciso VI do artigo 24 da
Constituição 233 outorga aos entes federados a prerrogativa de poderem legislar sobre
controle de poluição ambiental, o que, em última ratio, tem significativa relação com o
direito à saúde.
O conceito de saúde, como bem observa Dallari, é vagamente definido na
Constituição Federal.234 É nas constituições estaduais, adverte a referida autora, que se
encontrarão limites mais bem definidos e precisos sobre o instituto, ainda que cada uma
delas tenha copiado formalmente alguns dispositivos da Carta Magna.
Assim, por exemplo, quanto aos princípios fundamentais relacionados ao
conceito de direito à saúde, a Constituição do Estado de Santa Catarina (art.153, inc. II),
dispôs sobre a necessidade de ―informação sobre o risco de doença ou morte, a
Constituição Estadual do Espìrito Santo traçou a prerrogativa da ―opção quanto o
tamanho da prole‖ (inciso III do artigo 160), a Constituição do Estado de São Paulo
previu a ―obtenção de informações e esclarecimentos... (sobre) ... as atividades
desenvolvidas pelo sistema (sanitário)‖ (alìnea 3, do §único do artigo 219), a
Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, no §2º do seu artigo 263, estabeleceu a
associação do ―indivíduo, a família e as instituições e empresas que produzam riscos ou
danos à saúde do indivíduo ou da coletividade‖ ao dever do estado e do municìpio de
garantir o direito à saúde, a Constituição do Estado do Amazonas, em seu artigo 182,
declarou a saúde como direito de todos, caracterizando-a como ―resultante das
condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, saneamento
básico, trabalho, transporte, lazer, acesso e posse da terra e acesso aos serviços e
informações de interesse para a saúde‖.235
Uma boa análise jurídica reflete, mesmo que indiretamente, melhora na
qualidade dos serviços, e, assim, traz benefícios à população, reforçando a
universalidade e a amplitude social do tema. A questão da municipalização da saúde,
por exemplo, requer maior conhecimento das autoridades municipais acerca do tema:
competência, tipos de serviços prestados, princípios que informam, etc. Ressalta-se que,
em relação à municipalização da saúde, nem todos os Municípios encontram-se no
mesmo nível de desenvolvimento, de sorte que são comuns as dúvidas das autoridades
municipais em torno do problema, principalmente em razão da falta de uma coletânea
contendo legislação mínima sobre o tema do direito à saúde.
Direito à saúde e Código de Defesa do Consumidor
A vulnerabilidade do consumidor, traduzida pela exposição deste
indivíduo social a iniqüidades praticadas no mercado de consumo, nos abusos
evidenciados por práticas abusivas, cláusulas abusivas, disparidades entre oferta de
produtos e serviços prestados, além de uma série de artifícios utilizados para obtenção
de lucro ilegal e excessivo sobre o elo mais fraco da cadeia de consumo, ensejou a
criação de diplomas legais orientados a sua proteção.
Esta fragilidade pode ser vista, ao menos, sob três enfoques, todos eles
direcionados à manutenção da igualdade entre consumidor e fornecedor nas relações de
consumo. Num primeiro momento, a vulnerabilidade do consumidor deve ser observada
233
Referido por Tessler, op. cit., p.82.
DALLARI, Sueli Gandolfi. ―Os Estados Brasileiros e o Direito à Saúde‖. São Paulo: Hucitec, 1995.
p.47.
234
235
Vide Dallari, op. Cit, p.49 a 51 e seguintes.
265
a partir da publicidade. Modernas técnicas de marketing, aliadas a uma maciça
publicidade e mecanismos de convencimento e de manipulação psíquica utilizados pelos
agentes econômicos, criam necessidades antes inexistentes, bem como representações
ideais de situações de vida que induzem o consumidor a aceitá-las. O indivíduo tem sua
manifestação de vontade fragilizada, já não mais determinando suas prioridades e
necessidades e isso ocorre normalmente de forma por ele despercebida.236 Num segundo
momento, a vulnerabilidade do consumidor possui natureza técnico-profissional.
Somente os fornecedores possuem o conhecimento técnico e profissional específico de
sua atividade, ao contrário do consumidor, que normalmente vê-se privado desse
conhecimento.237 O terceiro enfoque que justifica a proteção do consumidor na busca
pela sua igualdade frente ao fornecedor é sua vulnerabilidade jurídica. Somam-se às
técnicas de contratação de massa, representadas pelos contratos de adesão, pelas
condições gerais dos negócios e pelos demais instrumentos contratuais utilizados
normalmente pelos fornecedores, empresas com setores jurídicos próprios, preparados
para conflitos judiciais e extrajudiciais. Os contratos de adesão e similares notabilizamse por serem técnicos, complexos, às vezes, pouco esclarecedores e transparentes,
elaborados algumas vezes com o intuito de dificultar a manifestação de vontade livre e
consciente do consumidor. Em verdade, o consumidor é um litigante eventual, ao passo
que o fornecedor, principalmente se representado por empresa de certa magnitude, é um
litigante habitual, acostumado a disputas judiciais com outros consumidores.238
Secundariamente a estes três enfoques que indicam a superioridade do fornecedor
perante o consumidor, pode-se acrescentar também a vulnerabilidade política ou
legislativa239, a biológica ou psíquica240, a ambiental241, e a econômica e social.242 Todo
236
Assim BONATO e MORAES, op. cit., p.43.
BONATO e MORAES argumentam: ―De fato, cada área do conhecimento já possui naturalmente
suas peculiariedades, somente sendo oportunizado ao estudioso específico de determinada matéria o
domínio integral das causas, conceitos e conseqüências dos fenômenos passíveis de ocorrência nesta
mesma área. Transferindo tal singela constatação para o mundo moderno, no qual o número de
inventos, descobertas, pesquisas e novas necessidades surgem com rapidez espantosa, temos a noção
exata da vultuosidade dos avanços experimentados pela cultura humana‖ (op. cit., p.44).
238
Assim BARBOSA MOREIRA, op. cit., p.192.
239
A vulnerabilidade política ou legislativa decorre da inexistência de associações ou órgãos de defesa do
consumidor capazes de influenciar, de forma decisiva, na edição de instrumentos protetivos da classe,
bem como na contenção da criação de mecanismos jurídicos prejucidiais às relações de consumo.
Assim DAL PAI MORAES, na excelente obra sobre o tema ―Código de Defesa do Consumidor – O
princìpio da vulnerabilidade no contrato, na publicidade, nas demais práticas comerciais‖ (Porto
Alegre, Síntese, 1999, p.133).
240
Relacionada às técnicas agressivas de marketing, esta vulnerabilidade significa a agressão visual, do
paladar, auditiva, química, tátil e outra a que o ser humano é constantemente exposto, causando
verdadeira revolução no seu interior fisiológico e psíquico, que, muitas vezes, leva a tomada incorreta
de decisões, buscando elementos sem relação com aquilo que realmente precisa. Assim DAL PAI
MORAES, ―Código de...‖, op. cit. p.145.
241
O resultado das agressões ambientais, decorrente da produção, do transporte de bens, da utilização de
produtos lesivos ao meio ambiente e da comercialização de produtos nocivos à saúde, sem o controle
necessário, atingem diretamente o homem, que é naturalmente o consumidor, colocando-o em posição
fragilizada na sociedade de consumo. Assim DAL PAI MORAES, ―Código de...‖, op. cit. p.163.
242
Conforme preconiza DAL PAI MORAES, esta vulnerabilidade ―decorre diretamente da disparidade
de forças existentes entre os consumidores e os agentes econômicos, relevado que eles possuem
maiores condições de impor a sua vontade àqueles, por intermédio da utilização dos mecanismos
técnicos mais avançados que o poderio monetário pode conseguir‖. O autor enfatiza que esta forma
de vulnerabilidade ficou mais evidente com a economia liberal do século XIX, quando a livre
concorrência para o estabelecimento dos oligopólios e monopólios, que extremamente fortalecidos,
gerou imensa fragilidade do consumidor na relação de consumo (―Código de ...‖, op. cit., p.155)..
237
266
esse aparato jurídico do fornecedor dispensa comparações entre a sua posição fática e a
do consumidor243, reconhecidamente mais frágil.
Contudo, o tema do direito à saúde pode encontrar solução jurídica
diversa, dependendo do agente passivo contra o qual é dirigida a pretensão do
indivíduo, o qual poderá ser considerado consumidor enquanto aquele, fornecedor,
ensejando a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, dependendo da relação
jurídica desenvolvida.
Código de Defesa do Consumidor e Saúde Privada
Não pesam dúvidas que a saúde, analisada sob o enfoque de relação entre
privados, onde o consumidor opta por adquirir outros meios para tratá-la, sem precisar
depender do setor público, é uma típica relação de consumo, na qual incidirão
normalmente as disposições legais do Código de Defesa do Consumidor.
A partir da entrada em vigor do diploma consumerista a contar de março
de 1991, a situação tornou-se clara, sendo a partir de então amplamente utilizado este
texto legal por juízes e tribunais.
Os casos mais comuns enfrentados com o auxílio do Código são aqueles
envolvendo erros médicos, infecções hospitalares e problemas diversos com planos e
seguros de saúde, que, neste caso, além do CDC, sofrem principalmente a incidência
das normas da Lei nº9.656/98.
Em se tratando de relação de fornecedor de serviços pessoa jurídica,
sobrevém no caso, a responsabilidade civil objetiva, o que afasta por si a necessidade de
prova de culpa ou dolo do agente causador do dano, bastando a demonstração do
prejuízo ocorrido, assim como o nexo causal, bem evidenciado na hipótese. O artigo
caput do 14 do Código de Defesa do Consumidor é claro ao traçar a responsabilidade
objetiva do fornecedor por danos ocasionados nos consumidores: ―O fornecedor de
serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos
causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como
por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos‖.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem cristalizado a
responsabilização de hospitais e clínicas por falhas e danos cometidos por médicos e
funcionários, bem como quanto à responsabilidade objetiva incidente na hipótese:
―Responsabilidade civil. Hospital. Responsabilidade
objetiva por defeito do serviço. Quantificação do dano moral. a
responsabilidade do nosocômio e objetiva, frente ao CDC, art-14, pelo
defeito do serviço, bastando a demonstração da existência da falha e
do nexo de causalidade entre o fato e esse defeito. Critérios de
quantificação de indenização que devem atender a determinados
balizamentos, como os do padrão social e cultural do ofendido,
extensão da lesão do seu direito, grau de intensidade do sofrimento
enfrentado, condições pessoais do devedor, grau de suportabilidade do
encargo pelo último, sem descurar do caráter reparatório, sempre com
a preponderância do bom senso e da razoabilidade e exeqüibilidade do
encargo, alem de adequar-se ao valor arbitrado em outras indenizações
análogas, quando existirem, evitando-se decisões dispares e
incompreensìveis pelas partes‖ (Apelação Cìvel nº 70000946574,
Nona Câmara Cível, TJRS, relator: Des. Rejane Maria Dias de Castro
Bins, julgado em 10/05/2000).
243
Assim BONATO e MORAES, op. cit., p.44 e 45.
267
―Direito civil. Ação indenizatória. Hospital.
Falecimento de paciente. Atendimento por plantonista. Empresa
preponente como ré. culpa dos prepostos. obrigação de indenizar.
Danos morais. Quantificação. controle pela instância especial.
possibilidade. Valor. Caso concreto. Inocorrência de abuso ou
exagero. Recurso desacolhido. I - Nos termos do enunciado nº 341 da
súmula/STF, "é presumida a culpa do patrão ou do comitente pelo ato
culposo do empregado ou preposto". II - Comprovada a culpa dos
prepostos da ré, presente a obrigação desta de indenizar. III - O valor
da indenização por dano moral sujeita-se ao controle do Superior
Tribunal de Justiça, recomendando-se que, na fixação da indenização
a esse título, o arbitramento seja feito com moderação,
proporcionalmente ao grau de culpa, ao nível sócio-econômico da
parte autora e, ainda, ao porte econômico da ré, orientando-se o juiz
pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência, com
razoabilidade, valendo-se de sua experiência e do bom senso, atento à
realidade da vida e às peculiaridades de cada caso. IV - No caso,
diante de suas circunstâncias, o valor fixado a título de danos morais
mostrou-se razoável (Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial
n°25981/RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira,
publicado no Diário da Justiça de 27.11.2000).
―Ação reparatória. Contrato de seguro saúde
individual. Negativa de autorização da seguradora para internação e
cirurgia em hospital credenciado. Recusa em liberar senha ao
segurado. Descumprimento de contrato que enseja reparação por
danos morais já que não restaram provados os danos materiais. O
estado clínico do segurado, com fortíssimas dores que o afligiam, o
levaram a experimentar um dano moral pela quebra da sua paz interior
a ensejar uma compensação pecuniária arbitrada dentro do critério da
razoabilidade‖ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Apelação Cìvel
n°2000.001.10479, 18ª Câmara Cível, Rel. Des. Jorge Luiz Habib,
julgado em 17.10.2000) (grifei).
―Contratada a realização de cirurgia estética
embelezadora, o cirurgião assume obrigação de resultado, sendo
obrigado a indenizar pelo não cumprimento da mesma obrigação,
tanto pelo dano material quanto moral, decorrente de deformidade
estática, salvo prova de força maior ou caso fortuito‖ (Superior
Tribunal de Justiça, Recurso Especial, 3ª Turma, Rel. Min. Dias
Trindade, julgado em 21.06.91, publicado na RSTJ 33/555) (grifei).
―O profissional que se propõe a realizar cirurgia,
visando melhorar a aparência física do paciente, assume o
compromisso de que , no mínimo, não lhe resultarão danos estéticos,
cabendo ao cirurgião a avaliação dos riscos. Responderá por tais
danos, salvo culpa do paciente ou a intervenção de fator imprevisível,
o que lhe cabe provar‖ (Superior Tribunal de Justiça, Agravo
Regimental, 3ª Turma, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, julgado em
28.11.94, publicada na RT 18/270) (grifei).
―Erro médico. Responsabilidade civil. Responde o
médico pela deficiência com que resultou o paciente, ao evidenciar-se
que não obrou com o cuidado que deveria, ao deixar de administrar
medicamento cuja indicação não poderia desconhecer como
indispensável. Embargos rejeitados‖ (Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul Embargos Infringentes n°598438307, 4° Grupo de
Câmaras Cíveis, Rela. Desa. Maria Berenice Dias, julgado em
13.08.99).
268
Quanto à possibilidade de inversão do ônus da prova, ainda que caso de
culpa do profissional liberal, perfeitamente cabível a sua exigência, como demonstram
os julgados a seguir:
―Erro médico. Reparação. Prestadora de Serviço de
plano de saúde. Responsabilidade. Inversão no ônus da prova.
Derivando a Pretensão indenizatória de erro médico, revela-se ausente
a legitimidade passiva ad causam da seguradora, se, nos termos do
contrato poderia a seguradora optar pelo atendimento por profissional
de sua livre escolha, desimportando o fato de ter a opção recaído em
médico por aquela credenciado. Impondo-se ao lesado a prova da
culpa atribuída ao profissional liberal, alegadamente caracterizadora
de erro médico (CDC, art. 14, par-4), em atendimento realizado nas
dependências de clínica de pronto socorro, o litisconsórcio passivo
formado esta a afastar a responsabilidade objetiva desta, mostrando-se
defesa a exigência de que prove a inexistência de defeito no serviço
prestado por terceiro. agravo improvido‖ (5fls) (Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, Agravo de Instrumento nº 70001314640, Primeira
Câmara Cível, Relator: Des. Honório Gonçalves da Silva Neto,
julgado em 18/10/2000).
―Indenização - tratamento medico - relação de
consumo - inversão do ônus da prova - não cabe ao paciente
demonstrar ausência de qualidade do atendimento. ao hospital e ao
medico cabe a demonstração de que os procedimentos adotados foram
corretos, e que o resultado, mesmo assim, não pode ser evitado‖
(Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº
595157199, Sexta Câmara Cível, Relator: Des. Ivan Leomar Bruxel,
julgado em 24/09/1996).
―Civil e processual - cirurgia estética ou plástica obrigação de resultado (responsabilidade contratual ou objetiva) indenização - inversão do ônus da prova. I - Contratada a realização da
cirurgia estética embelezadora, o cirurgião assume obrigação de
resultado (Responsabilidade contratual ou objetiva), devendo
indenizar pelo não cumprimento da mesma, decorrente de eventual
deformidade ou de alguma irregularidade. II - Cabível a inversão do
ônus da prova. III - Recurso conhecido e provido‖ (Superior Tribunal
de Justiça, Recurso Especial n°81101/PR, 3ª Turma, Rel. Min.
Waldemar Zveiter, julgado em 13.04.99, publicado na Revista do
Superior Tribunal de Justiça, vol.119, p.00290).
Mister frisar que o preceito supra mencionado, acerca da inversão do
ônus da prova em caso de culpa de profissionais liberais, não faz distinção quanto à
responsabilidade em discussão, isto é, se ela é objetiva (artigo 14, caput, do CDC),
dispensando a prova de culpa, ou se ela é subjetiva (artigo 14, §4°, do CDC). E onde o
legislador não faz distinção, não cabe ao intérprete fazê-lo.
Além dos casos envolvendo responsabilidade civil por danos decorrentes
da prestação de serviços médicos, imprescindíveis foram os avanços obtidos na
jurisprudência, em especial a do Superior Tribunal de Justiça, através da análise dos
casos envolvendo consumidores e planos de saúde, especialmente quanto à fixação da
aplicação de preceitos oriundos do Código de Defesa do Consumidor às relações
desenvolvidas entre estes agentes econômicos, como podemos ver a seguir:
―Seguro-saúde. doença preexistente. aids. omissa a
seguradora tocante à sua obrigação de efetuar o prévio exame de
269
admissão do segurado, cabe-lhe responder pela integralidade das
despesas médico-hospitalares havidas com a internação do paciente,
sendo inoperante a cláusula restritiva inserta no contrato de segurosaúde. recurso conhecido em parte e parcialmente provido‖ (Superior
Tribunal de Justiça. Recurso especial n°34219/SP (1999/0092625-0),
Rel.Min.Ruy Rosado de Aguiar Júnior. Julgado em 15/05/2001)
―Seguro saúde. Exclusão de proteção. falta de
prévio exame. A empresa que explora plano de seguro-saúde e recebe
contribuições de associado sem submetê-lo a exame, não pode
escusar-se ao pagamento da sua contraprestação, alegando omissão
nas informações do segurado - O fato de ter sido aprovada a cláusula
abusiva pelo órgão estatal instituído para fiscalizar a atividade da
seguradora não impede a apreciação judicial de sua invalidade.
Recurso não conhecido (Superior Tribunal de Justiça, Recurso
Especial n°229078/sp (1999/0080174-1), Rel. Min. Ruy Rosado de
Aguiar Júnior, julgado em 09/11/1999).
―Ação civil pública. Entidades de saúde. aumento
das prestações. legitimidade ativa. 1. o instituto brasileiro de defesa do
consumidor – IDEC tem legitimidade ativa para ajuizar ação civil
pública em defesa dos consumidores de planos de saúde. 2. antes
mesmo do Código de Defesa do Consumidor, o país sempre buscou
instrumentos de defesa coletiva dos direitos, ganhando força seja com
a Lei n° 7.347/87 seja alcançando dimensão especial com a disciplina
constitucional de 1988. Sedimentados os conceitos centrais, não há
razão que afaste o presente feito do caminho da ação civil pública. O
instituto autor é entidade regularmente constituída e tem legitimidade
ativa para ajuizar a ação civil pública de responsabilidade por danos
patrimoniais causados ao consumidor. 3. Recurso especial conhecido e
provido. (Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n° 72994/SP
(1995/0043215-3), Rel. Min. Nilson Alves, julgado em 19/04/2001).
―Doença preexistente. AIDS. Omissa a seguradora
tocante à sua obrigação de efetuar o prévio exame de admissão do
segurado, cabe-lhe responder pela integralidade das despesas médicohospitalares havidas com a internação do paciente, sendo inoperante a
cláusula restritiva inserta no contrato de seguro-saúde. Recurso
conhecido em parte e parcialmente provido. (Superior Tribunal de
Justiça, Recurso Especial n°23421/SP (1999/0092625-0), Rel. Min.
Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Julgado em 15/05/2001)
―Civil. 'Seguro de assistência médico-hospitalar –
plano de assistência integral (cobertura total)', assim nominado no
contrato. As expressões 'assistência integral' e 'cobertura total' são
expressões que têm significado unívoco na compreensão comum, e
não podem ser referidas num contrato de seguro, esvaziadas do seu
conteúdo próprio, sem que isso afronte o princípio da boa-fé nos
negócios. Recurso especial não conhecido (Superior Tribunal de
Justiça, Recurso Especial n°264562/ES (2000/0062736-4), Rel. Min.
Ari Pargendler, julgado em 12/06/2001).
―Direito civil. Contrato de seguro-saúde.
Transplante. Cobertura do tratamento.Cláusula dúbia e mal redigida.
Interpretação favorável ao consumidor. art. 54, § 4º, CDC. Recurso
especial. Súmula/STJ, enunciado 5. precedentes. recurso nãoconhecido. I – Cuidando-se de interpretação de contrato de assistência
médico-hospitalar, sobre a cobertura ou não de determinado
tratamento, tem-se o reexame de cláusula contratual como
procedimento defeso no âmbito desta Corte, a teor de seu verbete
270
sumular nº cinco. II - Acolhida a premissa de que a cláusula
excludente seria dúbia e de duvidosa clareza, sua interpretação deve
favorecer o segurado, nos termos do art. 54, § 4º do Código de Defesa
do Consumidor. Com efeito, nos contratos de adesão, as cláusulas
limitativas ao direito do consumidor contratante deverão ser redigidas
com clareza e destaque, para que não fujam de sua percepção leiga‖
(Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n° 311509/SP
(2001/0031812-6), Rel. Min Sálvio de Figueiredo Teixeira. Julgado
em 03/05/2001).
―Seguro saúde. Cobertura. Cirrose provocada por
vírus "C". Exclusão. Precedentes. 1. Adquirida a doença muito tempo
após a assinatura do contrato, desconhecida do autor, que, em outras
oportunidades, obteve tratamento com reembolso, diante de situação
semelhante, não há fundamento para a recusa da cobertura, ainda mais
sendo de possível contaminação em decorrência de tratamento
hospitalar, ocorrendo a internação diante de manifestação aguda,
inesperada. 2. Recurso especial conhecido e provido‖ (Superior
Tribunal de Justiça, Recurso Especial n°255065/RS (2000/00364185), Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, julgado em
05/04/20001).
―Plano de Saúde. Centro Trasmontano. Internação.
Hospital não conveniado. - O reembolso das despesas efetuadas pela
internação em hospital não conveniado, pelo valor equivalente ao que
seria cobrado por outro da rede, pode ser admitido em casos especiais
(inexistência de estabelecimento credenciado no local, recusa do
hospital conveniado de receber o paciente, urgência da internação
etc.), os quais não foram reconhecidos nas instâncias ordinárias. - A
operadora de serviços de assistência à saúde que presta serviços
remunerados à população tem sua atividade regida pelo Código de
Defesa do Consumidor, pouco importando o nome ou a natureza
jurídica que adota. Recurso não conhecido (Superior Tribunal de
Justiça, Recurso Especial, n° 267530/SP (2000/0071810-6), Rel. Min.
Ruy Rosado de Aguiar Júnior, julgado em 14/12/2000).
―Civil. Responsabilidade Civil. Prestação de
Serviços Médicos. Quem se compromete a prestar assistência médica
por meio de profissionais que indica, é responsável pelos serviços que
estes prestam. Recurso especial não conhecido. (Superior Tribunal de
Justiça, Recurso Especial n°138059/MG (1997/0044326-4), Rel. Ari
Pargendler, Julgado em 13/03/2001).
―Plano de Saúde. Limitação de dias de internação.
Inadmissibilidade. O fato de se tratar de uma associação não modifica
a conclusão de abusividade. Recurso não conhecido‖ (Superior
Tribunal De Justiça, Recurso Especial n°254467/SP (2000/00335940), Rel. Min.Ruy Rosado de Aguiar Júnior. Julgado em 19/10/2000).
―Plano de Saúde. Internação. UTI. É abusiva a
cláusula que limita o tempo de internação em UTI. Recurso conhecido
e provido. (Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial N°
249423/SP (2000/0017789-0), Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar
Júnior. Julgado em 19/10/2000).
―Direito Econômico. Conversão, para URV, de
mensalidades de plano de Saúde. As distorções apuradas quanto a
aumentos abusivos de preços deviam, sim, ser coibidas pelo
Ministério da Fazenda nos termos do artigo 36, § 1º, da Lei nº 8.880,
de 1994; sem prejuízo, todavia, da atividade do Judiciário, mediante
271
provocação dos interessados, que é eliminável sempre que se tratar de
aplicação da lei. Recurso especial não conhecido‖ (Superior Tribunal
de Justiça. Recurso Especial N°123066/SP (1997/0017287-2), Rel.
Min. Ari Pargendler, Julgado em 15/09/2000).
―Plano de Saúde. Cláusula limitativa de cobertura.
Nulidade declarada pelas instâncias ordinárias. Omissão. Inexistência.
- Tendo o v. acórdão declarado leonina a cláusula que limita a
internação do paciente, implicitamente afastou a incidência no caso
dos arts. 1.432,1.434,1.436 e 1.460 do Código Civil. Recurso especial
não conhecido. ―Internação hospitalar - plano de saúde - contrato de
adesão - permanência do beneficiário por período superior ao
permitido - alegação com base em cláusula dúbia - interpretação que
deve ser feita contra a parte que a ditou e a favor da que simplesmente
aderiu - recurso provido. As cláusulas contratuais, mormente as
leoninas e as de interpretação dúbia, devem ser aplicadas em
detrimento da parte mais forte‖ (TJSP - 9ª Câm. Civil; Ap. Cível nº
237.178-2-SP; Rel. Des. Accioli Freire; j.12.05.1994; v.u.). JTJ 161113. Neste sentido, veja-se exemplar decisão do Min. Carlos Alberto
Menezes Direito, in Resp. 158.728-RJ, 16.03.1999, cuja ementa
ensina: " Plano de saúde. Limite temporal da internação. Cláusula
abusiva. 2. O consumidor não é senhor do prazo de sua recuperação,
que, como é curial, depende de muitos fatores, que nem mesmo os
médicos são capazes de controlar. Se a enfermidade está coberta pelo
seguro, não é possível, sob pena de grave abuso, impor ao segurado
que se retire da unidade de tratamento intensivo, com o risco severo de
morte, porque está fora do limite temporal estabelecido em uma
determinada cláusula. Não pode a estipulação contratual ofender o
princípio da razoabilidade, e se o faz, comete abusividade vedada pelo
art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor. Anote-se que a regra
protetiva, expressamente, refere-se a uma desvantagem exagerada do
consumidor e, ainda, a obrigações incompatíveis com a boa-fé e a
eqüidade" (Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial
n°237441/SP).
Código de Defesa do Consumidor e Saúde Pública
A aplicação do Código de Defesa do Consumidor, como comentado,
enseja o desenvolvimento de uma relação de consumo, cujos partícipes devem assumir
características próprias, diferentes das de outras relações jurídico-sociais. Assim, além
da qualificação específica de consumidor e fornecedor, a relação de consumo requer a
liberdade de escolha e a consensualidade na contratação.
Mister, portanto, a distinção entre serviços públicos próprios e
impróprios. Serviço público próprio, ou uti universi, prestados pelo Estado como agente
político, são aqueles prestados pelo poder público a toda coletividade, sem possibilidade
de distinção dos destinatários, executados diretamente pela Administração Publica,
envolvendo, em alguns momentos, atos de império e medidas compulsórias, não
podendo ser delegados. Destacam-se o serviço de segurança pública e, o que nos
interessa essencialmente, os serviços de saúde pública, os quais são remuneráveis por
tributos, não sendo mensuráveis quanto à sua utilização.
Conforme salientam BONATO e DAL PAI MORAES244, no mesmo
sentido de MARQUES245, os serviços públicos uti universi, que, por sua natureza, não
são fornecidos em razão de um vínculo contratual, mas por dever cívico, não sofrem a
244
245
Op. Cit., p.101.
―Contratos...‘, op. cit., p.211.
272
incidência do Código de Defesa do Consumidor. Cabe destacar também que o Estado,
nestes casos, não atua com a profissionalidade exigida de um fornecedor, descrita no
artigo 3º do CDC, mas sim com o seu jus imperii, pois está buscando a satisfação do
bem comum e não a de necessidades de lucro, vantagem econômica, inerente ao
desenvolvimento empresarial.246
O usuário do serviço público próprio não será, portanto, denominado
consumidor, mas sim contribuinte247, o que afasta as regras do Código consumerista,
cedendo espaço para preceitos e normas de direito público apenas.
Por sua vez, os serviços públicos impróprios, denominados também de
uti singuli, são aqueles que não possuem a mesma essencialidade do serviços uti
universi, podendo serem prestados pelo Estado ou por delegação, visando a critérios de
conveniência dos cidadãos, sendo remunerados através de tarifa (preço público) ou taxa.
Dentro desta classe, somente sofreram a incidência das regras protetivas do consumidor
os casos de serviços remunerados por tarifas (preços públicos), como é o caso do
serviço de telefonia, no qual, a falta de pagamento pelo indivíduo importa na sustação
do fornecimento, o que não se verifica com os serviços remunerados por taxas, cuja
prestação não pode ser interrompida face à sua essencialidade, mesmo o usuário não
queira mais recebê-lo, situação que contraria o espírito norteador do CDC.
Ainda, tratando-se de serviços uti singuli, no caso das concessionárias e
permissionárias de serviço público, tendo-se em vista o disposto no artigos 7º e 9º da
Lei nº 8.987/95 (Lei de Concessão e Permissão da Prestação de Serviços Públicos), que
garantem a liberdade de escolha ao usuário a possibilidade de cobrança unicamente
através de tarifa, neste caso abre um campo para incidência do CDC.248
Assim como os serviços públicos próprios, alguns dos serviços públicos
uti singuli que são remunerados por taxas envolvem utilização compulsória, situação
que ocorre muitas vezes com os serviços de esgoto colocados à disposição pelo poder
público.249 A imposição do uso do serviço, com a conseqüente cobrança afasta por si a
aplicação do Código de Defesa do Consumidor, pois, não retira apenas a liberdade de
escolha do indivíduo, elemento essencial para a constituição das relações privadas, mas
também porque tal conduta seria vedada pelo ordenamento consumerista, como
prevêem, por exemplo os incisos I e IV do artigo 39 do CDC, ao considerarem como
prática abusiva a imposição de aquisição de produtos ou serviços.
Pelo que foi exposto, isentos, portanto, da aplicação do Código de Defesa
do Consumidor, os serviços de saúde pública. Casos de responsabilidade civil, por
falhas e danos decorrentes da execução do serviço, devem ser tratados à luz do artigo
37, par. 6º, da Constituição Federal, e não aplicáveis os preceitos legais do CDC. Faz-se
uma ressalva exclusivamente ao artigo 22 caput e par. único, que impõem a
continuidade do serviço público tido como essencial. Corrobora nossa posição, o
julgado abaixo, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
246
BONATTO e DAL PAI MORAES, op. cit., p.111.
No conceito de contribuinte, afirmam BONATTO e DAL PAI MORAES, está inserido ―...um
conteúdo de coletividade, de busca do bem comum, de integração a uma estrutura organizacional
geral, ao passo que a noção de consumidor, como participante do ato de consumir produto ou
serviço, emerge com prevalência a idéia de satisfação individualizada de uma necessidade objetiva
ou subjetiva de pessoa, seja física ou jurídica‖ (op. cit., p.109.).
248
Assim BONATTO e DAL PAI MORAES. Como bem observam os autores, os serviços públicos
concedidos, permitidos ou licenciados não autorizam seus executores a cobrarem impostos ou taxas
(op. cit., p.110).
249
Assim BONATTO e DAL PAI MORAES, op. cit., p.108.
247
273
―Hospitalares pagas a hospital conveniado –
internamento em ‗condições especiais‘, com afronta às normas da
resolução nº 283/91/inamps. 1 – As instituições privadas que
participam do sistema público de saúde, mediante contratos de direito
público ou convênio, são prestadoras de serviços públicos e por sua
atuação responde o Estado, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição
de 1988, e 22 e parágrafo único da Lei 8.078/90 (Código do
Consumidor). 2 – Os contratos e convênios pelos quais tais
instituições se vinculam ao sistema público de saúde são de natureza
administrativa, sujeitos, portanto, à modificação de suas regras,
quando assim o exigir o interesse público. Vigente a Resolução nº
283/91 do INAMPS, que vedou a cobrança aos pacientes de quaisquer
complementos pelos serviços médicos e hospitalares, era vedado ao
hospital induzir o paciente a firmar ―termo de opção‖ por
acomodações especiais‖. 3 - Apelo provido (Tribunal Regional
Federal da 4ª Região, Apelação Cível n°254113/RS, 4ª Turma, Rel.
Juiz Ramos de Oliveira, julgado em 05.12.2000).
Atuação do Ministério Público sobre os serviços de saúde privada e saúde pública
O Ministério Público no Brasil, ―...órgão essencial à função jurisdicional
do Estado, incumbido-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis‖,250 exerce fundamental atuação de
fiscalização e controle dos serviços de saúde, sejam eles públicos ou privados,
auxiliando órgãos do Poder Publico, como as Secretarias Estaduais, Municipais e
Ministério da Saúde, além da Agência Nacional de Saúde Suplementar, seja no âmbito
administrativo, ou em juízo.
No âmbito dos contratos envolvendo consumidores de planos privados de
saúde, por exemplo, apesar dos vetos ao §3º, do artigo 51 e ao §5º do artigo 54, do
CDC, não teve o Ministério Público inviabilizada a sua atuação em termos de controle
abstrato de cláusulas abusivas. O que se perdeu com o veto ao par.3º do artigo 51 foi a
decisão de caráter geral a ser emitida pelo Ministério Público quando do controle
administrativo preventivo e abstrato das cláusulas contratuais gerais. Por sua vez, o veto
ao par.5º do artigo 54 descartou a remessa obrigatória pelo fornecedor ao Ministério
Público de cópia de formulário-padrão a fim de realização de controle preventivo das
cláusulas gerais em contratos de adesão.
Pode-se argumentar que o veto ao §3º, do artigo 51, do CDC não teve
efeito prático, pois continuam em vigor as disposições sobre o inquérito civil,
instrumento cuja promoção é função institucional e exclusiva do Ministério Público, por
força do artigo 129, inciso III da Constituição Federal brasileira e do artigo 8º, §1º, da
Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública),251 e a prerrogativa da decisão geral
subtraída com o veto, ficará a cargo do Poder Judiciário, por força do artigo 5º, inciso
XXXV, da Constituição Federal. O procedimento do inquérito civil, que serve de
preparação para eventual ação civil pública, servindo para a coleta de elementos
probatórios que justifiquem o ingresso da demanda, está regulado no artigo da Lei
250
251
Artigo 127, caput, da Constituição Federal. Uma análise mais detalhada sobre a estrutura e a
organização do Ministério Público no Brasil é encontrada na Lei nº 8.625/93.
Assim NERY JÚNIOR, ―Comentários...‖, op. cit., p.455. No mesmo sentido, TOPAN: ―...apesar do
citado veto, entendemos que a legislação vigente possui conteúdo normativo de molde a conferir ao
Ministério Público a atribuição do controle abstrato e preventivo das cláusulas contratuais, em
caráter geral...‖. TOPAN, Luiz Renato, ―Do controle prévio e abstrato dos contratos de adesão pelo
Ministério Público‖, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, nº06, p.162, abril/junho de 1993.
274
7.347/85 supra mencionado e tem aplicação garantida nas relações de consumo, tendose em vista o mandamento do artigo 90, do CDC.252 Através do procedimento do
inquérito civil pode-se dar ciência ao contratante-fornecedor, por meio de notificação,
de que o contrato dele com o consumidor contém alguma cláusula abusiva. Caso esse
fornecedor insista no uso dessa cláusula demonstrará, explicitamente, sua má-fé,
sujeitando-se a sanções não só administrativas, mas também civis.253 O procedimento
inquisitorial viabiliza o Ministério Publico a ―...arregimentar documentos, informações,
ouvir os interessados, a fim de formar sua opinião sobre a existência ou não de cláusula
abusiva em determinado contrato de consumo. É nessa oportunidade que os interessados
podem chegar à composição extrajudicial, sempre no interesse social de preservar-se a
ordem pública de proteção ao consumidor‖.254 Permite o mesmo tanto um controle
administrativo tanto abstrato quanto concreto de cláusulas abusivas.
Será considerado abstrato quando chegar ao conhecimento do Ministério
Público a existência de cláusula potencialmente abusiva em formulário-padrão da
administração pública ou de qualquer fornecedor particular, irrelevante tenha havido ou
não contrato de adesão com base no referido formulário.
Embora não haja a obrigação da remessa de cópia de formulário-padrão
de contrato de adesão ao Ministério Público por parte do fornecedor, tanto a
Constituição Federal quanto a legislação ordinária garantem ao órgão ministerial a
prerrogativa de proceder a investigações envolvendo cláusulas abusivas em contratos
com consumidores. Se ao termo do inquérito civil surgir a possibilidade de composição
dos interessados, o Ministério Público homologará o acordo, podendo estabelecer
cominação para o caso de descumprimento da avença, valendo o documento como título
executivo extrajudicial (artigo 5º, §6º, da Lei da Ação Civil Pública, aplicável ao CDC
por força de seu artigo 90).
Não havendo o acordo , somente restará o ajuizamento, pelo Ministério
Público, de ação civil pública requerendo o controle judicial das cláusulas abusivas. 255
O que legitima a atuação do Ministério Público para o controle da inserção de cláusulas
abusivas em contratos de consumo, incluindo-se os contratos padronizados afetos à área
da saúde privada, é o fato de estar envolvido um interesse social, de toda a sociedade,
não importando a classificação que se queira dar à natureza do direito atingido, isto é,
seja ele difuso, coletivo ou individual homogêneo, conforme consta nos incisos I, II, e
III do parágrafo único do artigo 81 do CDC.256
252
Segundo MAZZILLI, o inquérito civil, instrumento criado pela Lei da Ação Civil Pública (Lei
nº7.347/85), é uma ―...investigação administrativa a cargo do Ministério Público, destinada a colher
elementos de convicção para eventual propositura de ação civil pública‖. O autor acrescenta que o
procedimento inquisitorial não comporta o contraditório, motivo pelo qual nele não são aplicadas
sanções nem decididos interesses. Além disso, aponta que, por estar jungido somente à coleta de
elementos embasadores de uma eventual ação, o inquérito civil deixa de ser pressuposto para que o
Ministério Público compareça a juízo, sendo dispensável a partir do momento em que o Promotor de
Justiça esteja de posse de elementos suficientes que dêem embasamento para a sua demanda.
MAZZILLI, Hugo Nigro. ―A defesa dos interesses difusos em juízo‖. 10ª edição. São Paulo: Saraiva,
1998. p.125.
253
Assim TOPAN, op. cit., p.163.
254
NERY JÚNIOR, ―Comentários...‖, p.455.
255
Assim NERY JÚNIOR, ―Comentários...‖, p.523. MAZZILLI adverte que, sob o enfoque doutrinário, a
melhor técnica exige que se trate por ação civil pública aquela intentada pelo Ministério Público na
defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Caso essa mesma ação venha ser
proposta por qualquer outro co-legitimado, o mais correto seria chamá-la de ação coletiva (op. cit.,
p.13).
256
Assim acórdão do Superior Tribunal de Justiça que se posicionou pela legitimidade do Ministério
Público em ação por ele proposta requerendo nulidade de cláusula contratual em vista do interesse
social esculpido em consumidores adquirentes de casa própria: ―Processo Civil. Cumulação de
275
demandas. Nulidade de cláusula de instrumento de compra-e-venda de imóveis. Juros, Indenização dos
consumidores que já aderiram aos referidos contratos. Obrigação de não-fazer da construtora.
Proibição de fazer constar nos contratos futuros. Direitos coletivos, individuais homogêneos e difusos.
Ministério Público. Legitimidade. Doutrina. Jurisprudência. Recurso provido. I – O Ministério Público
é parte legítima para ajuizar ação coletiva de proteção ao consumidor, em cumulação de demandas,
visando: a) a nulidade de cláusula contratual (juros mensais); b)a indenização pelos consumidores que
já firmaram os contratos em que constava tal cláusula; c) a obrigação de não mais inseri-la nos
contratos futuros, quando presente como de interesse social relevante a aquisição, por grupo de
adquirentes, da casa própria que ostentam a condição das chamadas classes média e média baixa. II –
Como já assinalado anteriormente (Resp. 34.155-MG), na sociedade contemporânea, marcadamente
de massa, e sob os influxos de uma nova atmosfera cultural, o processo civil, vinculado estreitamente
aos princípios constitucionais e dando-lhes efetividade, encontra no Ministério Público uma
instituição de extraordinário valor na defesa da cidadania. III – Direitos (ou interesses) difusos e
coletivos se caracterizam como direitos transindividuais, de natureza indivisível. Os primeiros dizem
respeito a pessoas indeterminadas que se encontram ligadas por circunstâncias de fato; os segundos, a
uma grupo de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária através de uma única relação jurídica.
IV – Direitos individuais homogêneos são aqueles que têm a mesma origem no tocante aos fatos
geradores de tais direitos, origem idêntica essa que recomenda a defesa de todos a uma só tempo. V –
Embargos acolhidos‖. Superior Tribunal de Justiça, Corte Especial, Embargos de Divergência no
Recurso Especial nº141491/SC, Relator Ministro Waldemar Zveiter, julgado em 17.11.1999, publicado
no Diário da Justiça de 01.08.2000, p. 182. Contudo, a título de contextualização, parece-nos que o
problema das cláusulas abusivas e a defesa coletiva do consumidor encaixa-se melhor na classificação
de interesse individual homogêneo, caso verificada a ocorrência do dano para um grupo determinável
de consumidores, conforme já reconheceu o Superior Tribunal de Justiça, através de sua Quarta Turma,
no Recurso Especial nº168859/RJ (conhecido e provido), Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar
Júnior, julgado em 06.05.1999, publicado no Diário da Justiça de 23.08.1999. Segundo MAZZILLI,
interesses individuais homogêneos pertencem a um grupo determinável de indivíduos, são divisíveis, e
o que liga seus titulares é uma situação comum de fato. Como exemplo dessa categoria de interesses
coletivos lato sensu o autor cita a compra de veículos com o mesmo defeito de série por determinado
grupo de consumidores A extensão do dano, no caso dos interesses individuais homogêneos, ao
contrário do que ocorre com os difusos e coletivos stricto sensu, é divisível e individualmente variável
(op. cit., p.06). Ao invés de visualizarmos veículos com defeito em série podemos imaginar um grupo
determinados de consumidores que celebraram um contrato de adesão com determinado fornecedor,
contendo cláusulas abusivas. Entretanto, como argumenta MORAES, caso a pretensão deduzida em
juízo, envolvendo controle de cláusulas abusivas de forma prévia e abstrata (contrato em tese), reclame
a declaração de nulidade com a condenação à exclusão ou ajuste das disposições contratuais, isto é,
com cominação de obrigação de fazer e não-fazer, estabelecendo-se a impossibilidade de reinserção das
cláusulas abusivas em contrato futuro, sem cogitar da indenização por danos causados a eventuais
lesados, o caso é de defesa de interesse difusos, pois beneficiará a todo o universo indeterminável de
indivíduos consumidores, evitando inúmeras demandas individuais. MORAES, Paulo Valério Dal Pai.
―O Ministério Público e o controle prévio e abstrato dos contratos de massa‖. Revista Ajuris, Porto
Alegre, edição especial, volume II, p.490 e 491, março de 1998. Sendo difuso o interesse protegido, a
base legal para da legitimação do Ministério Público agir em sua defesa em juízo reside no artigo 129,
inciso III, da Constituição Federal e no artigo 81, §único, inciso I do CDC. Se o caso for de interesse
individual homogêneo, o fundamento legal encontra-se no artigo 129, incisos III e IX, da Constituição
Federal e no artigo 81, §único, inciso III, do CDC. Em ambos os casos, aplicáveis os artigos 90 e 117,
do CDC e 21 da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.3447/85). Sobre a legitimação do Ministério
Público para a proteção de interesses individuais homogêneos, GRINOVER aduz que apesar de alguma
divergência, fundamentada na hipótese concreta de pequeno número de interessados, estritamente
definido, a linha preponderante, que vem se estabelecendo inclusive no âmbito do Supremo Tribunal
Federal, tem afirmado a sua legitimação, considerando o interesse social envolvido e o aspecto do bem
protegido (―Comentários...‖, p.772 e 773). Há também a posição contrária à legitimação do Ministério
Público calcada na tese de que a Constituição Federal, em seu artigo 129, inciso III, só contemplava os
interesses difusos e coletivos. Nesse sentido: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 1 ª Câmara,
Apelação Cível nº59300266-0, Relator Desembargador Arakén de Assis, julgado em 16.03.93 (referido
por GRINOVER, ―Comentários...‖, op. cit., p.773). Outra argumentação contrária à legitimação do
Ministério Público é que os interesses individuais homogêneos envolveriam apenas direitos
disponíveis. Primeiro, embora não expresso no artigo 129 da Constituição Federal a categoria de
direitos individuais homogêneos, o mesmo artigo, em seu inciso IX, faz remissão a outros direitos
276
O Ministério Público não está, no caso, legitimado para a defesa de
interesses individuais não homogêneos, isto é, particularizado, divisível, pertencente a
um único consumidor. Ainda, a defesa coletiva do consumidor pressupõe interesses
transindividuais ou metaindividuais ―...concernentes a um número expressivo de
pessoas, importando salientar que uma quantificação mínima não deve ser efetuada,
para sua constatação, mas sim a aferição de uma coletividade que envolva a
comunidade, grupos, categorias ou indivíduos com comunhão de interesses e
titularidade diversa de direitos subjetivos‖.257 Assim, não se poderá cogitar da defesa
coletiva e da presença do Ministério Público em casos que o direito subjetivo de um
indivíduo não seja compartilhável com outros da mesma categoria por razões
particularizadas.258 A legitimação para a defesa dos interesses cogitados no parágrafo
único do artigo 81 do CDC é concorrente e disjuntiva, pois vários são os legitimados,
sendo que a ação de um não exclui a de outros.259
A defesa coletiva afigura hipótese de legitimação extraordinária, em que
o legitimado ativo substitui processualmente o conjunto de lesados, daí podendo-se falar
também em substituição processual, pois, conforme dispõe o artigo 91 do CDC, os
legitimados do artigo 82, e o que nos interessa, o Ministério Público, poderá propor a
ação coletiva em nome próprio e no interesse das vítimas, o que identifica o referido
instituto processual.260
A vantagem do uso da ação coletiva reside na decisão produzida, a qual
pode vedar, por exemplo, a utilização de determinadas cláusulas consideradas abusivas
em um contrato de massa com todos os consumidores, situação que não ocorre em
termos de tutela individual, que só beneficia o autor da demanda.
São encontráveis vários julgados respaldando a legitimidade do
Ministério Público para a defesa da sociedade frente a abusos e ilegalidades cometidas
nos serviços de saúde. Citam-se alguns exemplos bastante elucidativos analisados pelo
coletivos lato sensu que sejam previstos em lei, como o fez o CDC, em seu artigo 81, §único, inciso III.
Em segundo lugar, destaca GRINOVER, não fosse a relevância social da defesa dos direitos individuais
homogêneos, reconhecida inclusive internacionalmente, o legislador não teria editado o artigo 81 do
CDC da forma como se encontra (idem, p.771 e 772). A favor da legitimação do Ministério Público
para a defesa de interesses individuais homogêneos: Supremo Tribunal Federal, 2ª Turma, Recurso
Extraordinário nº1663231-3/SP, relator Ministro Maurício Corrêa, julgado em 26.02.97; Superior
Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº177.965-PR, autorizando a interposição de ação coletiva pelo
Ministério Publico para proteção de interesses individuais homogêneos de consumidores em razão de
reajuste abusivo de mensalidades em plano de saúde (in Revista do Superior Tribunal de Justiça,
vol.123, ano 11, novembro de 1999, p.317).
257
LISBOA, op. cit., p.59.
258
Exemplo disso são os contratos pactuados unicamente ao abrigo do Código Civil ou do Código
Comercial, diplomas característicos de proteção de direitos individuais, cujas relações ocorrem com
base na igualdade dos contratantes. Pode ser até mesmo o caso de uma relação de consumo, pactuada
através de negociações entre as partes, onde o lesado seja somente um único consumidor determinado,
cuja situação se distinga das dos demais consumidores e não configure um direito indisponível. Nesse
sentido, trecho da ementa de acórdão do Superior Tribunal de Justiça: ―1. A parla de particularizados
interesses dos mutuários, vicejadas cláusulas diferenciadas de reajustes, conforme a sua renda
familiar, não se revela a legitimidade ativa ad causam do Ministério Público estadual para promover
ação civil pública, vindicando direitos não contemplados nas suas funções estabelecidas em lei. 2.
Recurso improvido‖ (Primeira Turma, Recurso Especial nº32182/RO, Relator Ministro Milton Luiz
Pereira, julgado em 09.11.1994, publicado no Diário da Justiça de 05.12.1994, p.33525, recurso
improvido por unanimidade).
259
Assim MAZZILLI, ―A defesa...‖, op. cit., p.209.
260
Assim MAZZILLI, ―A defesa...‖, op. cit., p.08 e 09 e BARBOSA MOREIRA, Carlos Roberto. ―A
defesa do consumidor em juìzo‖. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, nº05, p. 195,
janeiro/março de 1993.
277
Tribunal de Justiça do Rio Grande, representando a linha seguida por outras cortes no
Brasil:
―Ação civil pública. Legitimidade do
Ministério Público. Relação de consumo. O Ministério Público tem
legitimidade para propor ação visando a proteção do consumidor.
Aplicação das disposições do Código de Defesa do Consumidor.
Previdência Privada. Plano de Saúde. Convênios de assistência
médico-hospitalar. Limitação de internação. Inadmissibilidade. A
cláusula contratual que fixa limites de prazo para internação do
paciente e leonina, devendo ser considerada como não escrita. A
enfermidade que requer longa internação do beneficiário e risco do
negócio. Inteligência dos arts. 6º, v, 39, v, 47 e 51, IV, § 1º, I e III da
lei nº 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor. Rejeitada a
preliminar. Apelo desprovido‖ (Apelação Cível nº 70000837559,
Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. João
Pedro Pires Freire, julgado em 25/04/01) (grifei).
―Ação Civil Pública. Apelação. Tramandaí.
Perturbação do sossego público. A poluição sonora causada por
estabelecimentos comerciais (bares), gera prejuízo aos moradores das
proximidades, devendo a municipalidade fiscalizar. Obrigação
imposta ao município. Omissão conivente da administração. Direito
do povo ao lazer e ao descanso. legitimidade ativa do Ministério
Público para propor ação civil pública, pois o direito ao descanso,
perturbado pelo desconforto pelo som excessivo pode ser enquadrado
na categoria dos direitos difusos, porque transindividuais e de
natureza indivisível. Incidência da lei federal n. 6938/81 (política
nacional do meio ambiente), do decreto n. 23.430/74 (Código
Estadual de Saúde), lei municipal n. 418/80 (Código de Obras) e lei
municipal n. 421/80 (Código de Posturas). Intempestividade da
Apelação interposta pelo Município. Não conhecido o recurso.
Sentença confirmada em reexame‖ (Apelação Cível nº 599325214,
Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Vasco
della Giustina, julgado em 25/08/99).
―Agravo de instrumento. Constitucional,
administrativo e processual civil. Saúde pública. Fornecimento de
medicamentos excepcionais (nimotop) portadores de hemoparesia
direita, decorrente de acidente vascular cerebral isquêmico. Ação
civil publica c/c tutela antecipada. Deferimento na origem. Nãoprovimento. É consabido que a saúde pública é obrigação do Estado
em abstrato, desimportando qual a esfera de poder que, efetivamente,
a cumpre, pois a sociedade que contribui e tudo paga,
indistintamente, ao ente público que lhe exige tributos cada vez mais
crescentes, em todas e quaisquer esferas de poder estatal, sem que a
cada qual seja especificada a destinação desses recursos. Portanto, o
alegado dano do agravante não tem comparação com o dano que
pode representar a falta de atendimento ao pedido do medicamento
nimotop, a agravada. Ação civil pública. Legitimação do Ministério
Público para defesa de interesses individuais indisponíveis. O
Ministério Público é instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica,
do regime democrático e dos interesses individuais indisponíveis.
Texto e inteligência do artigo 127 da carta magna, que não
excepciona os não homogêneos, legitimando o Ministério Público
para defesa dos interesses individuais indisponíveis, homogêneos ou
não. Agravo não provido‖ (Agravo de Instrumento nº 598581817,
Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des.
Wellington Pacheco Barros, julgado em 30/06/99).
278
―Ação civil pública. Poluição sonora noturna.
Ensaios de escola de samba. Honorários profissionais. 1. tanto a CF
(art.225, e par-3), quanto a CE (artigos 250-1), garantem a todos
direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial a sadia qualidade de vida, impondo-se ao
poder público e a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo as
presentes e futuras gerações, bem assim impondo aos poluidores
sanções penais e administrativas e obrigação de reparar os danos. 2.
dentre as formas de degradação ambiental, que prejudicam a saúde, a
segurança e o bem-estar das pessoas, encontra-se a poluição sonora
(lei federal 6938/81, art.3, II, III, letra "a", e IV), máxime quando ela
ocorre a noite, impedindo ou perturbando o direito natural ao
repouso e ao sossego, inerente a condição humana. Uma noite maldormida gera desconforto físico e psíquico, afetando o necessário
equilíbrio emocional no relacionamento familiar e social, e o
desempenho profissional. A sensibilidade auditiva jamais cessa,
mesmo durante o sono. Por isso, o ruído multiplica enganos, diminui
o rendimento do trabalho, oblitera as faculdades mentais, causa
fadiga, distúrbios mentais e neurológicos. 3. a competência comum da
União, Estados, DF e Municípios para legislarem a respeito do
combate a poluição em qualquer de suas formas (CF, art.23, VI), não
permite que o Município legisle de modo a conflitar com normas
estaduais ou federais (lei federal 6938/81, art.6, par-1 e par-2). 4. se
há norma estadual estabelecendo, como padrão máximo tolerável de
poluição sonora em 30 decibéis para o horário noturno, como tal
considerado o que vai das 22hs de um dia ate as 05hs do seguinte, e
em 60 decibéis para o horário diurno, não pode norma municipal
regrar de modo diverso. 5. não são devidos honorários profissionais
ao Ministério Público na ação civil publica. 6. provimento parcial‖
(Apelação Cível nº 597096817, Primeira Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Des. Irineu Mariani, julgado em 28/04/99).
―Mandado de segurança. Inquérito civil.
Legitimidade de atuação do Ministério Público estadual. Prevenção
de acidente do trabalho. Sendo a justiça estadual competente para
processar e julgar ações de acidente do trabalho, verificado, o será
para as ações que visarem a prevenir a sua ocorrência, em sede de
futura ação civil pública, com o que se afirma a atribuição do
Ministério Público estadual para o seu preparo, com instauração do
inquérito civil para verificação da nocividade do ambiente e
condições do trabalho, bem assim a sua legitimidade para a
propositura da ação. Artigo 127 e 129, III da CF; 1, IV, e 5 da lei
7347/85; 129, caput e inc. III da lei 8213/91. Segurança denegada‖
(Mandado de Segurança nº 597017714, Segunda Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Juracy Vilela de Souza,
julgado em 02/04/97).
Parte II - Análise da relação da legislação de Defesa do Consumidor e
da legislação especial sobre planos privados de assistência à saúde (por
Cláudia Lima Marques)
O campo de aplicação do CDC e a legislação especial sobre planos privados de
assistência à saúde
Para bem analisar a relação entre o Código de Defesa do ConsumidorCDC e a legislação especial sobre planos privados de assistência à saúde, e identificar
279
se existem conflito de normas, sugerindo formas de resolução dos mesmas, gostaria de
destacar dois pontos: em primeiro, a origem constitucional do CDC, a superior
hierarquia da proteção do consumidor como direito e mandamento constitucional (Art.
5,XXXII CF/88), e como limite constitucional à livre iniciativa dos operadores de
planos privados de assistência à saúde (Art. 170, V CF/88). Sem querer entrar na
discussão sobre o direito constitucional à saúde, há que se considerar hoje que estes
"planos" operados por fornecedores, com intuito de lucro e com livre iniciativa
permitida pela CF/88 (Art. 199 CF/88), são relações de consumo e os usuários são
pessoas físicas, destinatários finais dos serviços, consumidores, pelo Art. 2º do CDC, de
serviços remunerados prestados por fornecedores organizados em cadeia de
fornecimento de serviços (Art. 3º e Art. 3º, §2º do CDC), são terceiros vítimas, terceiros
expostos e representantes ou terceiros intervenientes, considerados todos consumidores
equiparados (Art. 17, 29 e Art. 2º , parágrafo único do CDC). Em segundo lugar, pois,
há que se destacar o fato de, no ordenamento jurídico brasileiro hoje, constituírem todos
os contratos de Planos Privados de Assistência à Saúde, objeto da Lei 9.656/98 relações
de consumo, reguladas também pelo Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90.
Mencione-se, porém, inicialmente com o Prof. e Ministro Carlos Alberto
Menezes Direito, que ―dúvida não pode haver quanto à aplicação do Código do
Consumidor sobre os serviços prestados pelas empresas de medicina de grupo, de
prestação especializada em seguro-saúde (sic). A forma jurídica que pode revestir esta
categoria de serviço ao consumidor, portanto, não desqualifica a incidência do Código
do Consumidor. O reconhecimento da aplicação do Código do Consumidor implica
subordinar os contratos, aos direitos básicos do consumidor, previstos no art. 6º do
Código...‖.261 Aplicado o CDC e a lei especial, apreenda-se a lição do Ministro Ruy
Rosado para os contratos de incorporação que serve para os contratos de planos, ainda
mais tendo em visto o objeto "fundamental' daquele contrato envolvendo saúde: ―O
contrato de incorporação, no que tem de específico é regido pela lei que lhe é própria (
Lei 4591/64), mas sobre ele também incide o Código de Defesa do Consumidor, que
introduziu no sistema civil princípios gerais que realçam a justiça contratual, a
equivalência das prestações e o princípio da boa-fé objetiva.‖262
A Origem Constitucional do CDC -A superior hierarquia da proteção do
consumidor como direito e mandamento constitucional , princípio da ordem
econômica e limite à livre iniciativa dos operadores
A Constituição de 1988 é a origem da codificação tutelar dos
consumidores no Brasil. Na lista de direitos fundamentais, destaca-se o definido pelo
inciso XXXII do art. 5º: ―O Estado promoverá na forma da lei a defesa do consumidor.‖
O artigo 5º estabelece, pois, como direito fundamental do cidadão brasileiro, a defesa
dos seus direitos como consumidor. O artigo 170 estabelece que a ordem constitucional
econômica do nosso mercado será baseada na livre iniciativa (caput), mas limitada pelos
direitos do consumidor (inciso V). E por fim, o artigo 48 das Disposições Transitórias
da Constituição Federal de 1988 determina elaborar lei tutelar exatamente em forma de
Código: um todo construído, conjunto de normas sistematizado por uma idéia básica, a
da proteção deste sujeito especial.
261
DIREITO, Carlos Alberto Menezes, O Consumidor e os planos de saúde, in Revista Forense, vol. 328,
out/dez.1994, p.312 - 316.
262
REsp. 238.011-RJ,Voto, p. 4, j. 29.02.2000, Min. Ruy Rosado de Aguiar .
280
A procura de concretização do Princípio da Igualdade no CDC: o consumidor
como "novo" sujeito de direitos subjetivos de origem constitucional e seu
tratamento nas relações contratuais em geral
Inicialmente, mister, pois, frisar que o Código de Defesa do Consumidor,
Lei 8.078/90, tem clara origem constitucional (Art. 170, Art. 5 e Art. 48 ADCT todos da
Constituição Federal de 1988-CF/88), subjetivamente é direito fundamental do cidadão
e princípio macro-ordenador da ordem econômica do país. É igualmente lei geral
principiológica263 em matéria de relacionamentos contratuais e de acidentes de
consumo. Lei geral principiológica, porque não trata especificamente de nenhum
contrato firmado entre consumidor e fornecedor em especial, nem de atos ilícitos
específicos, mas estabelece novos parâmetros e paradigmas para todos estes contratos e
fatos juridicamente relevantes, que denomina , então, de relações de consumo (Art. 4 do
CDC). Esta lei consumerista regula, assim, todo o fornecimento de serviços no mercado
brasileiro e as relações jurídicas dai resultantes, inclusive os de natureza "securitária"
(§2º do Art. 3º do CDC).
Se serviço, segundo o Art.3º, §2º do CDC, é toda e "qualquer atividade
fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza
bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter
trabalhista", são objeto desta nossa análise todas as relações juridicamente relevantes
envolvendo serviços prestados por um fornecedor a um consumidor no mercado
brasileiro (Art. 2º e 3 º do CDC). Relação jurídica264 é toda a relação da vida
juridicamente relevante, isto é, disciplinada pelo Direito.
No caso em exame, mister determinar justamente se esta relação jurídica
de planos privados de assistência à saúde, ex-relação securitária pelo Dec. 73/66,
deveria ou não ser disciplinada pelo Direito do consumidor e por suas eficazes e
tutelares normas dos vulneráveis nas relações pré-, pós-, contratuais e extracontratuais
ex delicto, que envolvam serviços remunerados ao consumidor ou somente pela Lei
9.656/98 e sua nova legislação sobre planos privados de assistência à saúde.
O sujeito de direitos novo identificado na Constituição Federal de 1988 e o
mandamento constitucional de sua proteção
O novo do CDC é ter identificado um sujeito de direitos, o
consumidor,265 e ter construído um sistema de normas e princípios orgânicos para
263
Esta feliz expressão é de Nelson NERY Júnior, em sua conferência magna no XIV Curso Brasilcon de
Direito do Consumidor, outubro de 1998, Porto Alegre. Veja também, no mesmo sentido, o novo
comentário de RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio, Comentários ao CDC, Saraiva, São Paulo, 2000,
p. 72 e seg.
264
Segundo Domingues de Andrade, em um sentido amplo, "relação jurídica é toda a situação ou
relação da vida real (social) juridicamente relevante (produtiva de conseqüências jurídicas), isto é,
disciplinada pelo Direito" e , em um sentido estrito, apenas "a relação da vida social disciplinada
pelo Direito, mediante a atribuição a uma pessoa (em sentido jurídico) de um direito subjetivo e a
correspondente imposição a outra pessoa de um dever ou de uma sujeição.", assim ANDRADE,
Manuel A. Domingues de, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. 1, Reimpressão do original de
1944, Almedina, Coimbra, 1997, p. 2.
265
Assim ensina a Conclusão IV extraída da Ata da Trigésima sétima reunião do Centro de Estudos
Jurídicos Ronaldo Cunha Campos e publicada em 23.10.97: "Resposabilidade civil - Médico Prestador de Serviços- CDC- A CF, no inciso V do Art. 170, diz da defesa do consumidor. Define o
CDC, em seu Art. 2, ... é a definição de consumidor que estabelecerá a dimensão da comunidade ou
grupo a ser tutelado e, por esta via, os limites da aplicabilidade do direito especial. Conceituar o
281
protegê-lo e efetivar seus direitos.266 Sobre este sujeito novo de direitos, que é o
consumidor poderíamos inicialmente frisar que como sujeito de direitos apareceu não
faz muito tempo. Surgiu nos anos 60-70, identificado então entre os contratantes, como
cliente, como comprador, como aquele que é o transportado, o mutuário, enfim, aquele
cliente securitário, o beneficiário de planos de saúde, o contratante ou o terceiro-vítima.
Do seu aparecimento nos Estados Unidos levou certo tempo para "surgir"
legislativamente no Brasil, apesar de ter conquistado facilmente a Europa e todos os
países capitalistas da época.267 Dai a importância da Constituição de 1988 ter
reconhecido este novo sujeito de direitos. O artigo 5º estabelece como direito
fundamental do cidadão brasileiro, a defesa dos seus direitos como consumidor. O
artigo 170 estabelece a ordem constitucional econômica, com direitos subjetivos do
consumidor (inciso V). Hoje, ter direitos constitucionais assegurados é ter liberdades e
garantias especiais.268
A Constituição de 1988 é, pois, a origem da codificação tutelar dos
consumidores no Brasil. Esta lei protetiva é uma micro-lei, lei privilegiadora,
microssistema269 que acaba por abalar ou pelo menos modificar o sistema geral a que
pertencia o "novo" sujeito, o Direito Privado. É lei especial ratione personae. Trata-se
da necessária concretização do Princípio da Igualdade, de tratamento desigual aos
desiguais, da procura de uma igualdade material e momentânea para um sujeito com
direitos diferentes, sujeito vulnerável, o mais fraco.270 Note-se que a lei especial dos
consumidores e os direitos a ele assegurados são aqui instrumentos de Igualdade.271 No
caso brasileiro, trata-se da realização de um direito fundamental (positivo) de proteção
do Estado272 para este sujeito de direitos novos, o consumidor (Art. 5, XXXII da
CF/88).
Segundo Erik Jayme,273 os direitos humanos seriam as novas "normas
274
fundamentais"
e estes direitos constitucionalmente assegurados à pessoas físicas
influenciariam o novo direito civil, a ponto do Direito assumir um novo papel social,
como limite, como protetor do indivíduo e como inibidor de abusos.275 A teoria
consumidor, em resumo, é analisar o sujeito da relação jurídica tuteladas pelo Direito do
Consumidor..." (Fonte: www.ta.mg.gov.br/consulta/ ResultJuris. asp?Acordao=14018 )
266
Veja sobre o tema, menção de AZEVEDO, Antônio Junqueira de, O Direito pós-moderno e a
codificação, in Revista Direito do Consumidor, vol. 33 (2000), p. 124.
267
Sobre a evolução no direito comparado e a tramitação do projeto no Brasil, veja a introdução de Ada
Pellegrini GRINOVER e Antônio Herman BENJAMIN, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor
comentado pelos Autores do Anteprojeto, Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 6.ed., 1999, p. 1 a
13.
268
Na expressão de Alexy, estes direitos asseguram/garantem/estimulam a efetivação da Dignidade do
Homem, sua Liberdade e Igualdade ("...was die Verwirklichung von Menschenwürde, Freiheit und
Gleichheit fordert"), ALEXY, Robert, Theorie der Grundrechte, Suhrkamp, Frankfurt, 1996, p.15.
269
Segundo Filomeno, o CDC é um microsistema jurídico de caráter inter- e multidisciplinar,
FILOMENO, José Geraldo Brito, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos
autores do Anteprojeto, Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 6.ed., 1999, p. 19.
270
Veja ALEXY, p. 357 e seg., sobre o direito de igualdade e o mandamento de tratamento desigual dos
desiguais, p. 371 e seg.
271
Veja ALEXY, p. 410 e seg., sobre o direito à uma ação positiva (e protetiva) do Estado.
272
Sobre o tema do direito à alguma coisa (Rechte auf etwas), no caso uma ação positiva (Rechte auf
positive Handlungen), veja Alexy, p. 179 e seg.
273
JAYME, Erik, Identité culturelle et intégration: Le droit internationale privé postmoderne - Cours
général de droit international privé 1995,in: Recueil des Cours de l‘ Académie de Droit International
de la Haye, 1995,II, p. 37.
274
Assim LORENZETTI, Ricardo Luis, Fundamentos do Direito Privado, Ed. Revista dos Tribunais,
1998, p. 249 e seg.
275
Neste sentido, veja belíssima passagem sobre a força normativa do Direito Constitucional Brasileiro,
no voto do eminente autor e Juiz Almeida Melo, in RJTAMG 69, p. 369, em caso de empréstimo
282
elaborada por Erik Jayme é coincidente com a de muitos autores do primeiro mundo276
O mestre de Heidelberg ensina: o instrumento reequilibrador (re-personalizante, diria
eu) do atual Direito Contratual são os direitos humanos. 277 Iremos reconstruir a abalada
ciência do Direito Privado através da valorização dos direitos do homem, da Igualdade
que está nessa idéia. 278
A proteção do consumidor como limite à livre iniciativa das operadoras no
mercado de consumo
Realmente identificar no outro um sujeito de direitos fundamentais, de
direitos humanos básicos é uma idéia de igualdade. Reconhecer que o outro é totalmente
pessoa, tem os mesmos direitos do que eu, logo, os meus direitos não podem sobressair,
abafar, diminuir, impedir o exercício e a efetividade dos direitos do outro, é a base do
igual. Mas o atual discurso dos direitos não é ilimitado, justamente pelo grande poder
que concentra em um agente econômico "escolhido". Como pregam os doutrinadores da
Law and Economics, assegurar direitos a um agente é limitar o exercício dos direitos e
das escolhas possíveis do outro...tem custos e externalidades.279 Aqui o direito brasileiro
assegurou direitos humanos (Direitos fundamentais) de proteção a um, o consumidor.
Efetivar estes direitos do consumidor é realizar o direito à igualdade material (e tópica),
reconstruída justamente por ações positivas (Rechte auf positive Handlugen)280 do
Estado, em pró do indivíduo identificado como pertencendo a determinado grupo
privilegiado constitucionalmente.281
Repita-se, a importância desta escolha, pois, para o mestre de Heidelberg,
Erik Jayme, a solução das antinomias de leis e princípios e da complexidade das
relações atuais estará justamente em uma interpretação do sistema "guiada" e
"hierarquizada" pelos direitos humanos.282 Os direitos humanos recebidos nas
Constituições são direitos fundamentais e serão esses direitos fundamentais (normas
constitucionais pétreas e básicas) que permitirão a interpretação do direito do novo
milênio, a qual terá justamente (e necessariamente) base constitucional, de onde flui a
hierarquia das normas e a ordem pública.283
bancário envolvedo pessoa física e Banco, em que esta foi equiparada a consumidor ex vi Art. 29 do
CDC por sua vulnerabilidade, APC 246.629-5, j.11.11.97, em benefício de Emanuel C. M., Rel. Juiz
Almeida Melo.
276
Veja ARNAUD, André-Jean, O Juiz e o auxiliar judiciário na aurora do pós-modernismo, in Revista
AJURIS vol. 53 (1991), p. 223 e seg. . Em seu recente livro, ARNAUD, André-Jean, O direito entre
modernidade e globalização, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1999, p. 201 e 202. Veja nos Estados
Unidos, partindo de idéias economicistas a análise de MINDA, Garry, Postmodern Legal MovementsLaw and Jurisprudence at Century's end, New York University Press, New York, 1995 e, na
Alemanha, KAUFMANN, Arthur, Grundprobleme der Rechstphilosophie, München, Beck, 1994, p.
224 e seg.
277
Veja JAYME , Curso, p. 247 e seg.
278
Sobre as dificuldades para efetivar e concretizar os direitos econômicos, sociais e culturais, veja
CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas, Os direitos econômicos, sociais e culturais no incício da
década de noventa, in revista Jurídica Mimeira, vol. 104 , nov/dez. 1993, p. 24 e seg.
279
Assim ensinam MERCURO, Nicholas e MEDEMA, Steven, Economic and the Law- from Posner to
post-modernism, Princeton University Press, Princeton, 1997, p. 115 a 117.
280
Veja sobr estes direitos subjetivos, ALEXY, p. 179.
281
Veja SARLET, Ingo W., A eficácia dos direitos fundamentais, Livraria dos Advogados, Porto Alegre,
1998, p. 48.
282
Veja JAYME , Curso, p. 247 e seg.
283
Assim também conclui LORENZETTI, Ricardo, El juez y las sentencias dificiles- Colision de
Derechos, principios y valores, in La Ley, 25.02.1998, p. 1 e seg.
283
Em resumo, o direito do consumidor é direito não só de origem
constitucional, mas sim direito fundamental, direito humano de nova geração ,
positivado no Art. 5º XXXII da CF/88. Trata-se de um direito positivo de atuação do
Estado na sua proteção. É privilégio, projeção do espírito humano, para todos os
cidadãos, brasileiros e estrangeiros aqui residentes. Para as pessoas físicas não é apenas
princípio da ordem econômica ou direito econômico e social,284 é direito fundamental.
Parece-me, pois, que o intérprete deve considerar este mandamento
constitucional e sua dupla hierarquia: para as pessoas físicas, o direito do consumidor é
direito fundamental, sendo que o cidadão pode exigir proteção do Estado para os seus
novos direitos subjetivos tutelares.285 Trata-se de um privilégio, uma garantia, uma
liberdade de origem constitucional, um direito fundamental básico. Para todos os
demais agentes econômicos, especialmente para as pessoas jurídicas, o direito do
consumidor é apenas um sistema limitador da livre iniciativa do caput do Art. 170 da
CF/88, sistema orientador da ordem econômica constitucional brasileira.
Efetivamente, além de direito fundamental (das pessoas físicas, Art. 5,
XXXII CF/88) e de mandamento constitucional para o Estado (Art. 48 da ADCT, CF/88
e Art. 5, XXXII CF/88), a proteção ao consumidor é também princípio constitucional da
ordem econômica, da ordem constitucional do mercado brasileiro, princípio limitador da
livre iniciativa, como dispõe expressamente o Art. 170 da CF/88. Em outras palavras, a
livre iniciativa dos operadores de planos privados de assistência à saúde (art. 170 caput
c/c Art. 199 da CF/88) encontra seu limite constitucional no mandamento de proteção
do consumidor (Art. 170, inciso V c/c Art. 196 da CF/88).
Neste sentido, não há base constitucional para a afirmação de
inconstitucionalidade material dos Artigos contratuais da Lei 9.656/98 das ADINs
1930-9 e 2136-2, ambas de iniciativa da Confederação Nacional do Comércio. É
mandamento constitucional que o Estado controle a atividade privada nas relações de
consumo, como as existentes nos contratos de seguro-saúde e de planos privados de
assistência à saúde (art. 170,V c/c Art. 197 e seg. da CF/88). É mandamento
constitucional que o Estado e que imponha parâmetros de proteção do consumidor,
inclusive esclareça os limites do abuso e quais cláusulas violam os direitos
(fundamentais) dos consumidores e são abusivas (art. 170,V e Art. 48 ADCT da CF/88
c/c Art. 4,III e 51 do CDC c/c Art. 10 e seg. da Lei 9.656/98192 e seg.). Não há direito
adquirido ou ato jurídico perfeito frente à Constituição!
Da mesma forma, uma vez mandamento constitucional de proteção do
Estado, a atuação limitadora, fiscalizadora e reguladora do Estado neste mercado é
materialmente constitucional e imperativa. A chamada "medicina organizada"286 é
atividade visando lucro, é relação envolvendo consumidores que remuneram estes
serviços, direta ou indiretamente, é relação de consumo de prestação de serviços
complexa e continuada no tempo. A atuação em matéria de saúde com fim de lucro
284
Veja CAMARGO, p.24 e seg.
Veja, neste sentido, decisão de lider da 5ª Câmara Cível do TAMG concedendo a desconsideração da
personalidade da pessoa jurídica com base no Art. 28 do CDC, justamente em benefício de
consumidores pessoas físicas lesadas por um fornecedor.(5ª Câmara Cível, Ap. Civ. 114.409-4, rel.
Juiz Aloysio Nogueira, j. 12.03.92, publicado in Revista Jurídica Mineira, vol. 102, julho/agosto de
1993, p.108-120). Em belíssimo e erudito voto vencedor, este leading case supera (do italiano,
superamento) os dogmas comercialistas para proteger os mais vulneráveis, pessoas físicas, face à
sucessão de empresas e a fraude à execução.
286
A expressão é norte-americana, mencionada por LOPES, José Reinaldo de Lima, in Saúde e
Responsabilidade- Seguros e Planos de Saúde de assistência privada à saúde, MARQUES, Cláudia
Lima, LOPES, José Reinaldo de Lima e PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos (Ed.), Ed. Revista
dos Tribunais, 1999, p. 26.
285
284
impõe, segundo o Art. 197 da CF/88, "regulamentação, fiscalização e controle" tanto da
denominada por Lorenzetti "empresa médica",287 como dos contratos e relações
privadas dai oriundas, que apresentam alto interesse público.288 O Estado iniciou a
realização de seu dever de proteção ao criar a ANS, com competências de regulação
clássicas e competências de proteção direta dos direitos dos consumidores.
Note-se que não há direito adquirido administrativo a ser controlado por
um mesmo e antigo órgão, como se fosse um juiz natural. Nem poderia haver tal direito,
muito menos frente à nova ordem constitucional, ainda mais se sabendo que há hoje a
figura da "captura" possível destes órgãos, onde os controlados aos poucos acabam por
dominar (capture) o órgão controlador. Alegar direito constitucional de ser controlado
sempre por órgãos conhecidos, como a SUSEP, é uma incongruência ao sistema
constitucional brasileiro, que considera como elemento principal (único direito
fundamental, que faz parte das cláusulas pétreas) o direito do consumidor de ser
protegido eficazmente pelo Estado (Art. 5º, XXXII da CF/88), sendo o direito das
operadoras mera norma de ordem constitucional econômica, e mesmo assim sua livre
iniciativa é limitada pelos direitos dos consumidores. É do mandamento constitucional
que o Estado retira seu poder de polícia. Poder de polícia "consiste na necessidade de
harmonização dos interesses da ordem econômica e social com os interesses individuais,
já que este poder constitui uma limitação à liberdade do indivíduo, imposta pelo Estado
em benefício da convivência social."289
Três conclusões importantes podem começar a ser retiradas destas
observações iniciais:
a) Que face aos mandamentos constitucionais de proteção do consumidor, a
atuação do Estado brasileiro na proteção do consumidor encontra fundamento
constitucional (para seu poder fiscalizador) desde 05.10.1988;
b) Que não há direito adquirido ou ato jurídico perfeito frente ao controle
administrativo a favor do consumidor, único sujeito de direitos envolvido nestas
relações privadas que possui direito fundamental à Proteção do Estado (Art. 5,XXXII
CF/88), que o controle, fiscalização e regulamentação dos serviços de assistência à
saúde também é mandamento constitucional, logo, este controle será exercido sempre (e
diariamente) pelo órgão no momento competente, tanto a SUSEP, quanto a CNPS, o
CONSU, a Câmara de Saúde Suplementar, o MS ou, como no momento, pela ANS,
criada em janeiro de 2000, pela Lei 9.961, de 28 de janeiro de 2000;
c)Que a liberdade de iniciativa, também no setor da assistência e seguros de
saúde, estava limitada pelo mandamento constitucional de proteção do consumidor
desde 1988 (Art. 5,XXXII c/c Art. 170,V CF/88), eis porque me parece que o controle
das atividades das empresas médicas, de medicina organizada e finalidade de lucro nas
suas relações com os consumidores não é a entrada em vigor do CDC, em março de
287
LORENZETTI, Ricardo Luis, La empresa médica, Ed. Rubinzal-Culzoni, 1998, p.
Assim ensina LOPES, op. cit., p. 35: "...sobretudo, evidencia-se a necessidade de regulamento público
e coletivo da matéria. De fatos , se os contratos individualmente considerados são bilaterais, a
operação, de modo global, técnica e economicamente, é uma de solidariedade, mutualista e, digamos
com os clássicos, distribuitiva. O cxontrole da gestão do fundo comum não é factível para os
consumidores considerados individualmente. É necessários, portanto, ampliar a transparência das
gestoras e prestadoras de serviços e planos de saúde."
289
Assim definiu poder de polícia, a obra de BRITO, Edvaldo, Reflexos Jurídicos da Atuação do Estado
no Domínio Econômico, Ed. Saraiva, 1982, p. 107-108.
288
285
1991, ou da Lei 9.656/98, em 1999; parece-me que o marco do controle deve ser a data
de promulgação da Constituição Federal de 1988.
Se aceitas estas conclusões, a partir de 05.10.1988, face a este
mandamento de proteção do Estado dos interesses dos consumidores, os contratos de
seguro-saúde ou de planos de saúde (antigos) poderiam ser controlados pelos órgãos
competentes (ANS, MP, PROCON etc.), no que se refere à matéria de proteção do
consumidor. Isto sem que haja retroatividade da lei 9.656/98 ou do CDC, porque o
controle terá como base apenas o mandamento constitucional e as regras de abuso de
direito do Código Civil (Art. 160 CCBr.). Respeitado este limite da retroatividade das
leis e a competência de outros órgãos, como a SUSEP, haveria base constitucional para
o controle pela ANS dos 40 milhões de contratos antigos, no que se refere apenas à
proteção do consumidor contra abusos (Drittwirkung,290 a dar nova interpretação
constitucional às cláusulas gerais do CCBr., como o Art. 159 e 160).291 Isto poderia
revigorar a posição da Agência como importante protetora dos direitos do consumidor
no mercado de saúde-organizada. Efetivamente, todos estes contratos, dos novos 4
milhões de contratos registrados na ANS, dos antigos 40 milhões (dados das
operadoras) ou 20 milhões (dados da ANS), todos são relações de fornecimento de
serviços e produtos remunerados envolvendo consumidores!
Direito constitucional à proteção do Estado enquanto consumidor e as leis
especiais: antinomias e necessária cumulatividade das leis ("Diálogo das Fontes")
Estamos a destacar a hierarquia dos direitos ora em conflito, no caso,
direitos humanos, direitos fundamentais do consumidor à proteção do Estado e
privilégio limitado de livre iniciativa na área de prestação de serviços remunerados de
saúde, de privilégio limitado pelo princípio da defesa do consumidor, justamente para
frisar que esta hierarquia constitucional está a exigir maior cuidado do aplicador da lei,
sejam os órgãos competentes, judiciais, órgãos reguladores ou fiscalizadores. Esta
hierarquia constitucional da proteção dos direitos do consumidor, mesmo em relações
privadas e contratos de massa, está a exigir capacidade e especialização do aplicador da
lei para dar efeito útil a este mandamento constitucional, realizando um verdadeiro
diálogo de fontes.292 Em outras palavras, aplicar as leis infraconstitucionais reguladoras
de um mercado ou tipo contratual especial é realizar o mandamento constitucional de
proteção dos consumidores, logo, exige aplicação dos princípios e normas do CDC.
Aplicar estas leis hoje não pode mais ser um exercício programático,
deve ser um exercício efetivo de concretização destes direitos no mundo dos fatos, uma
vez que esta leis envolvem direitos e garantias constitucionais dos mais fracos na
sociedade e devem realizar sua finalidade legislativa de proteção efetiva dos envolvidos.
Há uma eficácia direta das normas constitucionais aos contratos entre privados
(Drittwirkung), que deve ser conhecida pelo aplicador da lei. A eficácia direta das
normas constitucionais geralmente é feita através da aplicação de cláusulas gerais e
conceitos indeterminados do direito, como boa-fé, bons costumes, abuso de direito etc.,
que passam a receber na sua concreção valores constitucionais, especialmente se
290
Veja sobre o tema da Drittwirkung, ZITSCHER, Harriet C., Introdução ao Direito Civil Alemão e
Inglês, Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 1999, p. 175 e seg.
291
Assim concluem PFEIFFER, in MARQUES/LOPES,PFEIFFER, p. 99, PASQUALOTTO, in
MARQUES/LOPES,PFEIFFER ,p.64 e MARQUES, in MARQUES/LOPES,PFEIFFER, p. 130 e seg.
292
Expressão criada por Erik Jayme, veja JAYME, Recueil des Cours, p. 247 e seg.
286
direitos fundamentais dos cidadãos. O difícil é definir esta abusividade, pois a
Constituição apenas impõe o mandamento de proteção do consumidor como limitador
da livre iniciativas cláusulas expressamente defesas ou proibidas em lei.293
A análise proposta por Erik Jayme traz duas contribuições importantes:
1) explica a concentração hoje existente no sujeito de direito consumidor, como o mais
vulnerável no mercado de consumo. É aquele sujeito identificado na Constituição, a
merecer especial proteção do Direito e do Estado, principalmente no que se refere ao
exercício de seus direitos e em caso de conflito eventual de interesse com outros agentes
(fornecedores etc.); 2) destaca a hierarquia dos direitos ora em conflito, no caso, direitos
humanos, direitos fundamentais do consumidor, a exigir maior cuidado do aplicador da
lei, e outros direitos meramente econômicos, de lucro ou prejuízo em um mercado em
franco crescimento, onde atua por vontade própria e com profissionalismo.
Em outras palavras, aplicar a lei infraconstitucional sobre os direitos do
consumidor, o CDC, não pode mais ser um exercício programático, exige-se hoje do
intérprete e aplicador da lei a capacidade para dar efeito útil para este mandamento
constitucional . Aplicar o direito do consumidor deve ser, pois, um exercício efetivo de
concretização destes direitos subjetivos no mundo dos fatos, uma vez que esta lei
envolve direitos e garantias constitucionais dos mais fracos na sociedade, um exercício
que permita realizar sua finalidade legislativa de proteção efetiva deste sujeito e de
Justiça no caso concreto, sem deturpar ou destruir a ratio legis do sistema, claramente de
origem constitucional.
A origem constitucional do CDC hierarquiza esta lei, considerada por
muitos autores como lei complementar.294 Neste sentido, manifestou-se a favor de uma
hierarquia superior do CDC, em caso de seguro de previdência privada, a Terceira
Câmara do TAMG, como se lê do voto:
"Não podia o douto magistrado julgar improcedente
o pedido, dando ao parágrafo 3º do art. 21 da Lei n. 6.435/77 exegese
literal e contrária à norma que lhe é posterior e mais importante, por se
tratar de lei complementar, que é o Código de Defesa do Consumidor,
Lei n. 8.078/90, de 11 de setembro de 1990."295
Dai, correto o CDC, que em seu artigo primeiro esclarece que este
"código", este sistema de normas construído e organizado a partir da identificação do
sujeito beneficiado, "estabelece normas de proteção do consumidor, de ordem pública e
interesse social".
Relembre-se que o CDC brasileiro não é um Código de "consumo",
como a consolidação legal francesa denominada Code de la Consommation, nem é uma
lei geral sobre contratos de adesão comerciais e civis, concentrada no método do uso
das cláusulas contratuais gerais, como lei alemã de 1976, AGBGesetz.296 O CDC
brasileiro concentra-se justamente no sujeito de direitos, visa proteger este sujeito,
sistematiza suas normas a partir desta idéia básica de proteção de apenas um sujeito
"diferente" da sociedade de consumo: o consumidor.
293
Assim, ZITSCHER, op. cit., p. 175 e seg.
Assim BONATTO e MORAES, op. cit., p. 65 a 70, citando a obra de Tupinambá Castro do
Nascimento.
295
Voto, in RJTAMG 56-57, p. 260-261, APC 183.104-1, em benefício de Thaíse M. dos S. R. M., j.
21.12.94, Rel. Juiz Ximenes Carneiro.
296
Sobre Direito Comparado, veja NERY, Nelson Jr., Código Brasileiro de Defesa do Consumidor
comentado pelos autores do Anteprojeto, Ed. Foresnse Universitária, Rio de Janeiro, 6.ed., 1999, p.
429 e seg.
294
287
É Código (todo construído sistemático) de Proteção (idéia básica
instrumental e organizadora do sistema de normas oriundas de várias disciplinas
necessárias ao reequilíbrio e efetivação desta defesa e tutela especial) do Consumidor.
Eis porque identificar este sujeito protegido, sujeito de direitos especiais,
agente escolhido para receber um microsistema tutelar legal é a pedra de toque do CDC.
Os direitos básicos positivados são "do consumidor", assim definido pelo CDC e de
ninguém mais. Repita-se que o sistema privilegiador do CDC visa proteger só ao
"consumidor", aquele que ele mesmo define de forma estrita (Art. 2º, do CDC) ou
aqueles que ele equipara a consumidor (Art. 2º, § único, Art. 17 e Art. 29 do CDC),
sempre com base em sua norma objetivo297 do Art. 4º, inciso I do CDC: a proteção do
vulnerável. Seu objetivo é o tratamento desigual dos desiguais para alcançar a igualdade
material no caso concreto, inclusive nos contratos massificados e de adesão oferecidos
pelas empresas médicas, de medicina pré-paga, hoje operadoras de planos privados de
saúde no mercado brasileiro.
Mister, por fim, examinar os eventuais conflitos existentes entre a
legislação especial, posterior à entrada em vigor do CDC, como a lei específica para
planos de assistência à saúde, e Lei 8.078 de 1990, visualizada como lei "geral" de
tutela dos consumidores em todos os contratos e relações de consumo. Já destacamos
anteriormente298 a tendência tópica e de especialização do direito atual que propicia a
multiplicação de leis especiais posteriores ao CDC, nos ramos ou contratos mais
problemáticos do mercado. Frisem-se, portanto, que a lei especial nova não revoga
tacitamente a lei geral anterior, uma vez o campo de aplicação da lei geral é
naturalmente mais amplo e não coincidente com o da lei especial nova. Revogá-la
significaria inaplicar a lei geral em outras matérias importantes.299
A lei especial nova, porém, pode afastar, em caso de antinomia
verdadeira, a aplicação da lei geral anterior. Note-se que a antinomia é um conflito
limitado e tópico e que ambas as leis aplicam-se ao caso concreto, prevalecendo a
especial posterior no que regula e o regime geral (não incompatível) da lei geral ou
especial anterior, se hierarquicamente iguais.300
Como tivemos a oportunidade de escrever, "...uma lei especial nova não
tem o condão de afastar a incidência do CDC sobre estes determinados contratos de
consumo. A lei especial nova regula a relação de consumo especial no que positiva e o
CDC continua a regulá-la de forma genérica e em todos os pontos que a lei especial
nova não dispuser expressamente (art. 2º, LICCBr.).
Repita-se, pois, que no mais das vezes a lei especial posterior integra-se
no espírito da lei geral anterior, ainda mais no caso em estudo, de o CDC atuar como
"lei geral de proteção dos consumidores", uma vez que representa a ordem pública e
constitucional nacional. A lei especial nova geralmente traz normas a par das já
existentes (art. 2º, da LICCBr.), normas diferentes, novas, mais específicas do que as
anteriores, mas compatíveis e conciliáveis com estas. Como o CDC não regula contratos
específicos, mas sim elabora normas de conduta gerais e estabelece princípios, raros
serão os casos de incompatibilidade.301
297
Veja sobre normas-objetivo em geral, GRAU, Eros Roberto ," Interpretando o Código de Defesa do
Consumidor: algumas notas‖, in Direito do Consumidor 5, p. 183 e seg.
298
Veja detalhes da compatibilização desta lei sobre contratos de seguro com o CDC, em nossa obra,
Contratos, p. 187 e seg.
299
Assim nos manifestamos in MARQUES/LOPES/PFEIFFER, p. 127.
300
Sobre os critérios para utilizar nos conflitos de leis e antinomias, veja nossa obra, Contratos, p. 218 e
seg.
301
Assim, no caso da ampla lei nova sobre locação (Lei 8.245/91) e o CDC, o eventual conflito foi
identificado em apenas uma norma de cada lei, veja nossa obra, Contratos, p.247.
288
Se, porém, os casos de incompatibilidade são poucos, nestes há clara
prevalência da lei especial nova pelos critérios da especialidade e cronologia. Somente o
critério hierárquico pode "proteger" o "geral" anterior incompatível. Assim, o CDC
como lei geral de proteção dos consumidores poderia ser afastado para a aplicação de
uma lei nova especial para aquele contrato ou relação contratual, como no caso da lei
sobre seguro-saúde, se houver incompatibilidade de preceitos.
O exame da incompatibilidade deve ser, portanto, o ponto central da
análise. Sendo assim quanto mais específica for a norma do CDC e mais específica for a
norma "contrária" da lei nova, maior a probabilidade de incompatibilidade e de ser
afastada a aplicação do CDC para aplicar-se a lei nova. No caso da mencionada lei de
seguro-saúde, Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, é interessante observar que não há
nenhuma incompatibilidade expressa entre elas, ao contrário frisa a nova lei um espírito
comum e o interesse na proteção do consumidor. A própria Lei 9.656/98 expressamente
menciona a aplicabilidade do CDC (art. 3º da referida lei especial) e a necessidade de
que a aplicação conjunta do CDC e da lei especial "não implique prejuízo ao
consumidor" (§ 2º, do art. 35 da Lei 9.656/98).
Inegável, porém, que a lei nova ao expressamente autorizar algumas
cláusulas, às quais jurisprudência brasileira, ao aplicar, ao interpretar e ao concretizar
as normas do CDC, considerava como cláusulas abusivas, com base na cláusula geral
do art. 51, IV do CDC, acaba ameaçando o nível anterior de proteção do consumidor.
Assim, se a lei nova autoriza o aumento das mensalidades por faixa etária, se
informado, proibindo-o somente após 60 anos, e a jurisprudência considerava tal
aumento abusivo, retrocede o direito pátrio, pois há prevalência da lei especial. São
estes, porém, casos cinzas, onde nem todas as decisões mantinham esta linha de
interpretação e aplicação do CDC.
Se o exemplo não é perfeito, o problema principal continua a ser outro,
isto é, o da legalização ou positivação do abuso. Justamente criticando as primeiras
versões do que é hoje a Lei 9656/98, observei ceticamente: "É possível revogar um
princípio legal, intrínseco ao um sistema jurídico, como o da boa-fé nas relações
privadas, através de simples norma ordinária ? Podem normas legais, elaboradas sob o
interesse de determinados grupos econômicos e agentes no mercado, realmente
autorizar a atuação conforme a má-fé objetiva, na esperança de prejudicar o cocontratante que, por exemplo, esquecerá de inscrever seu filho exatamente um mês
antes do nascimento ou simplesmente não poderá fazê-lo por acaso da natureza ? Basta
estipular por lei um caso de abuso do direito e este potencial abusivo desaparece,
tornando-se jurídica a atuação objetivamente abusiva ? Será possível submeter o
Judiciário e os aplicadores da lei a dar aplicação e eficácia a estas novas normas legais,
mesmo se contrárias aos princípios de nosso sistema, aos próprios princípios
constitucionais da atividade econômica (art. 170 CF/88) e aos direitos básicos do
cidadão (Art. 5XXXII CF/88)?".302
Neste momento a dúvida continua. É possível, válido e eficaz autorizar
em lei, Portarias e Medidas Provisórias práticas abusivas e cláusulas abusivas segundo o
CDC ? Efetivamente passariam, então, estas a poder integrar o regime legal do
contratos, mesmo que de consumo, pois regulados por leis especiais ? Ficaria o
Judiciário atrelado e estaria seu trabalho de definir o abuso renovando, pois já decidia
pacificamente em sentido contrário ? Como frisamos anteriormente, neste caso em
exame, o critério hierárquico deve ser observado, assim como a origem constitucional
do CDC e da ordem econômica que ele positiva (Art. 170 CF). Também o critério
302
Assim, nossa obra, Contratos, p. 247 e 248.
289
hierárquico entre as próprias leis, pois Portarias e mesmo - de certa forma- Medidas
Provisórias devem ser consideradas legislação de hierarquia inferior ou provisória, não
podendo revogar leis de ordem pública, como o CDC (perenemente). Se a antinomia é
verdadeira, valem as observações anteriores para a decisão, necessariamente, casuística
do aplicador da lei".303
Como se observa , os casos de antinomia entre a Lei 9.656/98 e o CDC
são poucos, mas quanto a estes não há unanimidade da doutrina. Particularmente
defendo a hierarquia superior do CDC frente a Lei 9.656/98.
Como tive a oportunidade de afirmar "O aplicador da lei, portanto, face
ao aparecimento de uma contradição entre normas do CDC e ... leis posteriores, gerais
ou especiais, verificará inicialmente se é possível compatibilizar as duas normas
pretensamente em contradição. Se a contradição entre os textos legais, suas normas e
suas finalidades é tal que não permite a aplicação conjunta, integradora das normas,
uma norma, por exemplo, permite, enquanto a outra expressamente proíbe determinado
tipo de cláusula contratual, uma impõe a renúncia de um direito e a outra proíbe a
renúncia do mesmo direito, estamos frente a uma antinomia real, não solucionável
através de simples interpretação das normas. ...Em caso de antinomias reais, três são os
critérios destacados pela doutrina e utilizados pela jurisprudência para solucioná-las: o
cronológico, o hierárquico, o da especialidade. Note-se que os doutrinadores esforçamse por deduzir tais critérios das normas positivas sobre a solução de conflitos no tempo,
no caso a LICC de 1942, ainda em vigor, mas em verdade a origem de tais critérios é
jurisprudencial e doutrinária, anterior às próprias codificações e sua idéia de sistema
exaustivo e perfeito. O critério cronológico é o mais simples para ser determinado;.... Se
o critério cronológico é o de mais fácil determinação, é um critério de pouca utilização
independente. Ele só resolverá a contradição entre a lei nova e a lei anterior se houver
coincidência de grau hierárquico entre elas e ambas forem leis especiais ou leis gerais....
Já o critério hierárquico tem sua origem na idéia de hierarquia entre as leis presentes no
mesmo sistema, fixando-se hoje, especialmente, no caráter constitucional,
complementar ou derivado de uma das normas em contradição. Segundo este critério a
norma hierarquicamente superior deve prevalecer sobre a outra, mesmo sendo esta
última posterior, pois também o legislador ordinário deve seguir a hierarquia do sistema
legal, quando da sua atividade legislativa, elaborando normas novas da mesma
hierarquia se deseja renovar totalmente o espírito do ordenamento....O antigo art. 4.o, da
Lei de Introdução de 1916, assim dispunha ―... a disposição especial não revoga a geral,
nem a geral revoga a especial, senão quando a ela ou a seu assunto se referir, alterandoa explícita ou implicitamente‖. Hoje preferimos afirmar que as normas de campo de
aplicação diferente continuam em vigor ―lado-a-lado‖, desde que compatìveis. Se ambas
as leis permanecem no sistema haveria prevalência da lei especial.
A situação, porém, complica-se quando há conflito entre os critérios de
solução das antinomias, isto é, a lei especial nova é hierarquicamente inferior à lei geral
antiga. Neste caso como deverá o aplicador da lei solucionar o conflito? Para Bobbio, se
o aplicador da lei tem de escolher entre priorizar o critério cronológico ou o critério
hierárquico, deverá considerar como claramente prevalente o critério hierárquico. Se,
porém, a decisão é entre o critério cronológico e o da especialização, a resposta já não é
tão simples. A jurisprudência costuma presumir que prevalecerá o critério da
especialização...Em caso de conflito entre as soluções propostas pelo critério
hierárquico e o da especialização, prevalece o critério hierárquico sobre o da
especialização, mas também certas relativizações são necessárias. A jurisprudência
303
Assim nos manifestamos in MARQUES/LOPES/PFEIFFER, p. 127 a 130.
290
tende a conceder prevalência às normas especiais, sempre que não em conflito com a
Constituição, e sempre que o regime particular realmente se justifique, não constituindo
mero privilégio de um grupo político, econômico ou socialmente forte"304.
A Lei 9656/98 é posterior e especial em relação ao CDC, mas de
hierarquia constitucional inferior, apesar de poder ser considerada norma de ordem
pública de direção.
A maioria dos doutrinadores, como Pasqualotto,305 defendem a
interpretação construtiva da Lei 9.656/98 de acordo com o CDC. Assim se a hierarquia
superior em caso de antinomia de normas não excluirá a aplicação da lei nova e
especial, pelo menos a "determinará", isto é, os princípios de proteção do consumidor
determinarão a aplicação e a interpretação da lei nova ao caso concreto.306 A prática
jurisprudencial, como veremos na parte II deste parecer tem sido surpreendente,
preferindo a aplicação do CDC solo, talvez porque os contratos novos ainda não foram
submetidos ao Judiciário, talvez porque o número de abusividade nestes contratos está
diminuído ou talvez porque a lei especial ainda não é tão conhecida. Não há discussão
na doutrina e na jurisprudência da aplicação do CDC a estes contratos. A lei 9.656/98
parece ter causado maior reação em Direito Administrativo do que em Direito Civil.
Parece-me que a conclusão é una: aplicam-se cumulativamente e complementarmente o
CDC e a Lei 9.656/98. Para a maioria da doutrina , a lei 9.656/98 tem prevalência como
lei especial e mais nova, devendo o CDC servir como lei geral principiológica a guiar a
interpretação da lei especial na defesa dos interesses do consumidor, em especial na
interpretação de todas as cláusulas na maneira mais favorável ao consumidor (Art. 47 do
CDC). Particularmente defendo, em visão minoritária, a superioridade hierárquica do
CDC.
Todos os contratos de Planos Privados de Assistência à Saúde são relações de
consumo, regulados pelo CDC
Dois aspectos devem ser destacados aqui: apesar do campo de aplicação
subjetivo da lei de criação da ANS e do CDC ser o mesmo, há concentração no
fornecedor de serviços, na operadora de planos privados de assistência à saúde, por
parte da lei da ANS e concentração no consumidor e seus direitos, por parte do CDC. Já
entre o CDC e a Lei 9.656/98 há total identidade subjetiva, pois esta lei cuida dos
direitos do usuário (consumidor) e da operadora (controlando-a), o CDC cuida dos
direitos dos consumidores nos contratos de serviços remunerados em geral (Art. 3º, §2º
do CDC).
No campo de aplicação material a coincidência é ainda maior: a lei da
ANS cuida do registro e controle dos contratos das operadoras com os usuários, todos
considerados pelo CDC como consumidores stricto sensu (Art.2º do CDC) ou
consumidores equiparados (art. 2º, § único, Art. 17 e Art. 29 do CDC). Todos os
contratos regulados pela ANS são, portanto, também contratos de consumo, envolvendo
consumidores stricto sensu (destinatários finais, contratantes ou não, pagantes ou não) e
equiparados (empresas, universidades, sindicatos, empresários, terceiros beneficiários e
dependentes) Da mesma forma, a lei 9.656/98, quando trata dos planos e os regula,
304
Assim me manifestei, in Contratos, p. 233-236 e 240-241.
PASQUALOTTO, in MARQUES/LOPES/PFEIFFER, p. 51.
306
Assim também LOPES, in MARQUES/LOPES/PFEIFFER, p. 27
305
291
também está tratando de um contrato de consumo, que recai também no campo de
aplicação do CDC.
Os vários consumidores envolvidos nos contratos individuais, coletivos e familiares
de planos privados de assistência à saúde e nos históricos seguros-de-saúde
Como se observa, a figura dos operadores ou fornecedores não une os
campos de aplicação das leis aqui em análise, o que as une é a figura do consumidorusuário ou beneficiário de um plano privado de assistência à saúde, remunerado por ele
diretamente, por seu empregador ou pelo contratante principal dos planos coletivos e/ou
familiares ou individuais. Como não há contrato de plano de assistência privada à saúde
não remunerado (Art.3º, § 2º do CDC), todos são remunerados por algum agente do
mercado, os beneficiários, destinatários finais, os contratantes e as pessoas jurídicas,
que se expõem ou intervêm nestas relações de consumo como representantes ou em
benefício de seus empregados, associados ou sindicalizados, acabam todos por ser
considerados consumidores, segundo o CDC. Vejamos.
Identificar este sujeito protegido, sujeito de direitos especiais, agente
escolhido para receber um microsistema tutelar legal é a pedra de toque do CDC. Os
direitos básicos positivados são "do consumidor", assim definido pelo CDC e de
ninguém mais. Em matéria de planos privados de assistência à saúde todos os
destinatários finais do serviço médico são consumidores. Segundo o art. 2º do CDC
consumidor nos contratos de serviço na sociedade atual é tanto o contratante, como o
terceiro. A definição básica do caput do art. 2º do CDC conecta na característica da
destinação final do serviço, não na relação contratual, eventualmente direta, de
consumo. Isto permite a primeira pluralidade da definição de consumidor do CDC: o
destinatário final do serviço pode ser um terceiro no contrato, um beneficiário qualquer,
um utilizador gratuito, um participante fortuito, um menor de idade, um incapaz
absolutamente e mesmo assim é consumidor, desde que seja o destinatário final (fático e
econômico) do serviço.
Quando o destinatário final é contratante, mister destacar também que
pode haver uma multiplicidade de vínculos contratuais de serviços e o consumidor estar
ligado apenas a um deles, sendo terceiro nos outros, mas se destinatário final destes
serviços, consumidor será. Também podem existir, nesta pluralidade de vínculos de
serviços, alguns que não sejam de consumo, mas se a expectativa legítima, o interesse, a
pretensão, aquilo que movimenta o contratante é o consumo, bastará que um destes
vínculos conexos seja de consumo, que o contrato serviço que é destinatário final será
considerado de consumo e o sujeito consumidor por conexidade.307
Há pluralidade e fragmentação do sujeito.308 O sujeito que paga não é o
sujeito que se beneficia. Alguém enriquece ou, na linguagem do CDC, é remunerado
307
O exemplo mais interessante foi o das linhas telefônicas, onde antigamente o consumidor, para ter este
serviço, acabava acionista da empresa. hoje , o consumidor é muitas vezes levado a ser
"cooperativado" ou sócio de uma empresa só para consumidor ou ter lazer.
308
A própria utilização da expressão "sujeito" (ator) no lugar da antiga denominação indivíduo (quid) já
indicia esta pluralidade. Sobre fragmentação do sujeito, veja , citando Stuart Hall, DOLL, Johannes,
Avaliação na pós-modernidade, in Paiva, Maria da Graça Gomes e Brugalli, Marlene (Org.),
Avaliação- Novas Tendências -novos Paradigmas, Ed. Mercado Aberto, Porto Alegre, 2000, p. 33: "
Na modernidade, o indivíduo - a tradução latina desta palavra significa "o que não pode ser dividido" é conceituado como um ser inteiro e integrado que possui uma identidade própria, um núcleo
existencial. Em uma perspectiva pós-moderna, este núcleo existencial não existe, o "indivíduo" pode
ser dividido, fragmentado até o ponto em que um lado deste pode ser considerado morto, enquanto o
292
pelo serviço, mas a lei não exige que alguém empobreça a pagar diretamente este
serviço (pobre, no sentido, que suporta a onerosidade do serviço). A remuneração pode
ser indireta e por terceiro...o trabalhador, o empregador. 309O serviço de consumo é que
deve ser "remunerado", não se exige que o consumidor o tenha remunerado diretamente.
Mesmo serviços gratuitos são regulados pelo CDC (Art. 39 regula as amostras grátis),
pois remunerados indiretamente no negócio principal, na fidelidade dai oriunda e no
marketing usado, enfim no preço final do serviço ou produto colocado no mercado por
aquele fornecedor. Assim, se a sogra de um empregado de fábrica é a destinatária final
de um serviço médico organizado por uma operadora de saúde é esta sogra
consumidora, mesmo se sequer o empregado "pagou" algo à organizadora da cadeia (a
operadora do plano de saúde), mas esta teve seu serviço remunerado pela empresa
(consumidora indireta), que por sua vez não cobrou do empregado, nem da sogra. O
serviço de consumo é que é remunerado, não se exige a remuneração pelo consumidor
direto (destinatário final), mas sim por alguém, consumidor indireto ou por seu
representante, consumidor-equiparado.
Cabe, pois, analisar em mais detalhes os dois grupos de definições de
consumidor do CDC, a definição de consumidor stricto sensu e, após, as definições
plurais de consumidores equiparados. O CDC define consumidor stricto sensu no Art. 2º
como "toda aquela pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço
como destinatária final." Tive a oportunidade de afirmar que esta definição é bastante
objetiva, mas que sua interpretação pode e deve ser finalística.310
Como declarada "finalista"311 considero que a definição de consumidor
do Art. 2º do CDC é o pilar que sustenta a tutela especial, agora concedida aos
consumidores. Esta tutela só existe porque o consumidor é a parte vulnerável nas
relações contratuais no mercado, como afirma o próprio CDC no Art. 4º, inciso I.
Parece-me que destinatário final é aquele destinatário fático e econômico do bem ou
serviço, seja ele pessoa jurídica ou física. Logo, segundo esta interpretação teleológica
não basta ser destinatário fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para
o escritório ou residência, é necessário ser destinatário final econômico do bem, não
adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria
novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do
profissional que o adquiriu. Neste caso não haveria a exigida ―destinação final‖ do
produto ou do serviço.
Esta interpretação restringe a figura do consumidor stricto sensu àquele
que adquire (utiliza) um produto ou serviço para uso próprio e de sua família,
consumidor seria o não profissional, pois o fim do CDC é tutelar de maneira especial
um grupo da sociedade que é mais vulnerável, ficando assim assegurado um nível mais
alto de proteção para estes, pois a jurisprudência será construída em casos, onde o
consumidor era realmente a parte mais fraca da relação de consumo. O destinatário
final é o Endverbraucher, o consumidor final, o que retira o bem do mercado ao adquirir
outro continua vivo..."
Interessante observar que as leis da Argentina, Uruguai e Paraguai todas preferem a expressão
"onerosidade do serviço", dando a entender que deve haver um minus, pois na origem da palavra está
o ônus ou "peso", uma efetiva transferência de riqueza entre parceiros identificados, enquanto a lei
brasileira é a única que conecta no "plus", no fato do fornecedor não fazer este serviço em ação
benemérita, mas sim negocial, em lucrar ele (plus) direta ou indiretamente com este serviço, isto é, no
fato de haver enriquecimento de um, mesmo sem empobrecimento do outro na prestação efetiva deste
serviço principal ou acessório, simples ou complexo, que foi colocado no mercado de consumo
brasileiro e usado por consumidores.
310
Veja nosso livro, Contratos, p. 141.
311
Assim nosso livro , Contratos, p. 149.
309
293
ou simplesmente utilizá-lo (destinatário final fático), aquele que coloca um fim na
cadeia de produção (destinatário final econômico) e não aquele que utiliza o bem para
continuar a produzir, pois ele não é o consumidor-final, ele está transformando o bem,
utilizando o bem para oferecê-lo por sua vez ao seu cliente, seu consumidor, utilizandoo como bem de capital, como insumo da sua produção, como fonte de rendimentos.312
Parte da doutrina concorda com estas ponderações,313 pois esta
interpretação considera que consumidores stricto sensu são aqueles mais fracos, os
leigos, os não-empresários, ou como afirma o pioneiro do consumerismo no Brasil,
Konder Comparato são aqueles "que não dispõem de controle sobre os bens de
produção e, por conseguinte, devem se submeter ao poder dos titulares destes."314
Estes consumidores stricto sensu já são muitos, são contratantes e
terceiros beneficiários dos contratos de serviços, fragmentados e plurais, pelo que nos
parece ser correta um interpretação do Art. 2º do CDC pós-moderna, mas finalista, isto
é, interpretação segundo o princípio do Art. 4º, I do CDC, apesar de plural.
Quanto às definições de consumidor equiparado, são elas por excelência
plurais e uma das mais interessantes tentativas do CDC de adaptar-se à complexidade
material das relações de fornecimento de serviços e produtos no mercado e à crescente
pluralidade de sujeitos dos tempos pós-modernos. São consumidores equiparados ex vi
o parágrafo único do art. 2º do CDC a coletividade de pessoas, ainda que
indetermináveis, que haja intervindo na relação de serviço, ex vi o Art. 17 do CDC,
todas as vítimas dos fatos do serviço, por exemplo, os passantes na rua quando avião cai
por defeito do serviço e ex vi o Art. 29 do CDC, todas as pessoas determináveis ou não
expostas às práticas comerciais de oferta, de contratos de adesão, de publicidade, de
cobrança de dívidas, de bancos de dados, sempre que vulneráveis in concreto.
Segundo leciona um dos pais do Código de Defesa do Consumidor,
Antônio Herman Benjamin, em matéria de "equiparação" à consumidor o requisito da
"destinação final" do produto ou serviço é irrelevante. 315 Efetivamente, na técnica do
CDC de "equiparação" de pessoas "intervenientes em relações de consumo" (§ único do
Art. 2º), pessoas "vítimas" de fato do produto ou serviço (Art. 17) e pessoas "expostas
às práticas nele previstas" (Art. 29) à consumidor, o essencial não é o requisito da
"destinação final" do produto ou serviço. Ao contrário, a lei tutelar equipara pessoas que
não são necessariamente destinatários finais fáticos e econômico do serviço ou produto
incluindo-as excepcionalmente, por sua característica de fraqueza ou vulnerabilidade,
como "consumidor equiparado".316
Em resumo, os contratos de planos e seguro-saúde são contratos cativos
de longa duração a envolver por muitos anos um fornecedor e um consumidor, com uma
finalidade em comum, assegurar para o consumidor o tratamento e ajudá-lo a suportar
os riscos futuros envolvendo a saúde deste, de sua família, dependentes ou
beneficiários.317 Aqui todos os beneficiários diretos (empregado, sua família,
dependentes e outros beneficiários) e indiretos, se contratantes dos contratos coletivos e
312
Veja nosso livro, Contratos, p. 146.
Veja FILOMENO, José Geraldo Brito, in Código de Defesa do Consumidor- comentado pelos Autores
do Anteprojeto, 5.Ed., Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1998, p. 27 e seg.
314
COMPARATO, Fábio Konder, A proteção ao consumidor : Importante Capítulo do Direito
Econômico", in RDM, 15/16, 1974 apud FILOMENO, op. cit., p. 27.
315
BENJAMIN, Antonio Herman, Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, Coord. Juarez
Oliveira, Ed. Saraiva, São Paulo, 1991, p. 81.
316
Assim concorda Antonio Janyr DALL'AGNOL, Antonio Janyr, Direito do consumidor e serviços
bancários e financeiros - Aplicação do CDC nas atividades bancárias, in Revista Direito do
Consumidor, vol. 27 (1998),,p. 13.
317
Sobre contratos cativos de longa duração, veja nosso livro, Contratos, p. 68 e seg.
313
294
familiares (empregador-contratante de contrato coletivo, terceiro-representantecontratante de contrato familiar ou individual, sindicatos, universidades e outros
representantes de grupos de clientes organizados) são considerados consumidores pelo
CDC
A alegada natureza obrigatória de seguro nos planos privados de assistência à
saúde
Mister, quanto ao campo de aplicação material da Lei 9.656/98 e do
CDC, tecer algumas observações finais. O CDC aplica-se a todos os contratos
envolvendo o fornecimento de serviços remunerados, dentre os quais se inclui tanto os
seguros de saúde, como os demais serviços de medicina organizada, hoje denominados
planos privados de assistência à saúde. Neste sentido, para aplicação do CDC e
conclusões até agora retiradas deste parecer pouco importa a natureza dos contratos
assinados pelos consumidores a proteger, sejam seguros stricto sensu, sejam "planos de
saúde", anteriores ou posteriores à Lei 9.656/98.
Concluindo, o CDC tem campo de aplicação material amplo e genérico,
estabelece os princípios para todos os contratos de consumo. Já a Lei 9.656/98 aplica-se
apenas aos contratos que define como sendo de planos privados de assistência à saúde
(Art. 1º da Lei 9.656/98). Ocorre que a natureza destes contratos está sub judice, em
duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade.
Na ADIN 1931-7 e na ADIN2136-2, a Confederação Nacional de Saúde
embasa a inconstitucionalidade na "natureza de seguro" dos contratos de planos
privados de assistência à saúde. Seguros fazem parte do "Sistema Financeiro Nacional"
do Art. 192 da CF/88 e, portanto, a lei que regulasse este "sistema financeiro" deveria
ser lei complementar. A Lei 9.656/98 não seria lei complementar, o que levaria a uma
inconstitucionalidade formal desta lei.
Sem querer discutir a correção ideológica da decisão, parece-me
importante destacar que o Estado brasileiro, em cumprimento ao mandamento
constitucional de proteção dos consumidores e do mercado leal, considerou importante
retirar estes contratos, que afetam direitos fundamentais do cidadão, e tocam tão perto
de sua dignidade, vida e incolumidade física, contratos que misturam o sistema de
reembolso (mais típico do seguro) e hoje até de descontos organizados, com o de
credenciamento ou redes de prestação de serviços de saúde, e resolveu a todos
denominar "planos privados de assistência à saúde". A lei 9.656/98 e a legislação criada
para os planos permite, porém, que continuem os serviços de seguro-saúde stricto sensu,
para aquelas pessoas jurídicas que quisessem somente efetuar reembolsos de despesas.
Pelo que se sabe nenhuma das atuais seguradoras optou por esta possibilidade, mas até
setembro do corrente ano têm estas seguradoras atuais que manifestar sua vontade de
trabalhar somente com "seguros" de reembolso, senão, serão enquadradas como
"operadoras de planos".
Observa-se, pois, uma vontade pública (ordem pública de direção) e com origem constitucional - de retirar este tema das seguradoras ou do sistema
financeiro nacional e incluí-lo como tema autônomo da ordem social (Título VIII da
CF/88). Esta decisão encontra embasamento na própria Constituição, que trata da saúde
e da saúde suplementar na seção II (Art. 196 e seg.) do Título VIII da CF/88, enquanto o
sistema financeiro e os seguros são tratados em capítulo diverso (Capítulo IV do Título
VII da CF/88). Uma vez permitida a livre iniciativa na "ordem social" de saúde
(expresso no Art. 199 da CF/88), o tema se torna de "ordem econômica", segundo o Art.
170, devendo seguir os princípios limitadores dos incisos IV (livre concorrência) e V
295
(defesa do consumidor) do Art. 170 da CF/88, mas não se torna necessariamente "de
ordem financeira" ou "seguro". Logo, não vislumbro qualquer inconstitucionalidade
nesta decisão de ordem pública de direção, ao contrário, é plenamente constitucional,
não havendo porque alegar-se a aplicação de um decreto-lei anterior à CF/88 para alegar
alguma natureza obrigatoriamente securitária aos contratos de planos privados de
assistência à saúde.
Críticas pode haver quanto à ideologia da troca, não quanto a sua
constitucionalidade. Efetivamente, o sistema securitário possui princípios mais
solidários e mais assentados em nossa dogmática e a lei de planos privados de
assistência à saúde, o CONSU e a atual Agência controladora são novas, possuindo
pouca tradição na proteção dos interesses dos consumidores e no controle eficaz dos
fornecedores ou operadoras. Particularmente, influenciada pelo Dec. 73/66 e pelas
primeiras versões da lei, considerava ambas as espécies contratuais como seguros sui
generis.318 Outros doutrinadores consideravam ser contrato sui generis, nem seguro,
nem serviço simples de assistência à saúde.319 No direito comparado esta última
caracterização é prevalente.320 Efetivamente há características semelhantes, mas
também há diferenças, cada vez mais destacadas (agravos, cadeias de descontos, etc.).
De qualquer maneira, nada impede que se substitua a definição legal de
1966, ao contrario, face aos novos princípios constitucionais, tudo estimula uma
evolução positiva para o consumidor. Lamente-se que a troca de "seguro" para "plano"
às vezes é feita em detrimento dos interesses do consumidor. Muitas das decisões do
CONSU quebraram esta solidariedade típica dos seguros, em que os cálculos atuariais
são feitos com base em estatísticas, as quais -obviamente- não mudam pela doença de
um indivíduo em particular. Assim, exigir mais deste indivíduo (por exemplo, através
de agravos) é uma afronta aos princípios de solidariedade, divisão e socialização dos
custos, pois o efeito atuarial da sua doença específica já foi contado e cobrado de todos
os outros consumidores! Neste caso, há ganho em dobro do fornecedor e um prejuízo
enorme do consumidor individual. Sobre este tema, retornaremos ainda no desenvolver
do parecer, mas são críticas dogmáticas e alguns novos efeitos perversos da lei frente ao
consumidor individual, e, se inconstitucionalidade há, seria das Resoluções do
CONSU321 em afronta aos direitos constitucionalmente garantidos do consumidor e não
ao Art. 192 da CF/88!
Importante, pois, concluir que materialmente e subjetivamente todos os
contratos de Planos Privados de Assistência à Saúde são relações de consumo e são
regulados pelo CDC e pela Lei 9656/98 ao mesmo tempo.
318
Assim me manifestei in in MARQUES/LOPES/PFEIFFER, p. 123 e seg. Também o classifica, por
influencia do antigo Dec. 73/66, ALVIM, Pedro, O Contrato de Seguro, 3. ed, Ed. Forense, Rio de
Janeiro, p. 86.
319
Assim LOPES, in MARQUES/LOPES/PFEIFFER
320
Assim, considerando "pago adelantado de la futura contraprestación médico-asistencial,...conjunto
abstracto de servicios"...pagos pelos usuários (parte como "cuota de inversión", parte como "pago por
contraprestación"), GHERSI, Carlos Alberto, WEINGARTEN, Celia e IPPOLITO, Silvia I, Contrato
de Medicina Prepaga, 2.ed., Ed. Astrea, Buenos Aires, 1999, p. 39 e 40. Assim também
LORENZETTI, Empresa médica, p. 126, destacando que há "grandes similitudes" entre una empresa
de medicina prepaga y un seguro de salud, e na p. 128 destacando a possibilidade de aplicação
analógica das regras de seguros ao plano de saúde, mas afirmando, à p. 129, que tal contrato "si bien
puede tener elementos de un seguro, es atípico..""...No obstante las similitudes el prepago no es, en
nuestro Derecho [argentino], un contrato de seguro típico." (p. 129)
321
Assim, consiederando haver abuso no uso poder regulamentar, ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da,
Breves
considerações
a
respeito
do
poder
regulamentar
do
CONSU,
in
MARQUES/LOPES/PFEIFFER,p. 158.
296
Os conflitos gerados pela Lei 9.656/98: o art. 35-H (MP 1976-30)
Os contratos de planos e seguro-saúde são contratos cativos de longa
duração a envolver por muitos anos um fornecedor e um consumidor, com uma
finalidade em comum, assegurar para o consumidor o tratamento e ajudá-lo a suportar
os riscos futuros envolvendo a saúde deste, de sua família, dependentes ou
beneficiários.322 Neste tipo contratual é normal que, com o passar dos anos, modifiquese a lei especial aplicável ou edite-se lei especial ao lado da lei geral já existente. É o
que ocorre no caso em estudo, com o CDC como lei geral ratione materiae e a Lei
9.656/98, como lei especial ratione materiae.
Face a reiterada jurisprudência brasileira, indiscutível, pois, hoje que aos
contratos de seguro e planos de saúde assinados antes da entrada em vigor da nova lei (e
suas modificações) aplica-se SOMENTE o CDC e a legislação anterior especial aos
seguros. A lei 9.656/98 por várias vezes estabelece normas para regular os contratos
anteriores à sua vigência (ex.: Art. 35-E), tema que está sendo discutido em ADIn
especial e que já me manifestei pela constitucionalidade da norma, de cunho mais
administrativo do que civil.323 A pergunta nr. 4 concentra-se na inteligência do Art. 35H.
A aplicação conjunta-complementar e não subsidiária do CDC e da Lei 9.656/98
aos contratos novos: Crítica ao Art. 35-H da Lei 9.656/98
O Art. 35-H da lei 9.656/98, no texto determinado pela MP 1976-30 , de
29 de agosto de 2000, não está dogmaticamente correto, pois determina que norma de
hierarquia superior e constitucional, que é a Lei 8.078/90 ou CDC (Art. 48
ADCT/CF88), tenha apenas aplicação subsidiária à normas de hierarquia infraconstitucional, que é a Lei 9.656/98. Parece indicar que há antinomia entre a lei especial
nova e a lei geral-principiológica anterior, o que dificulta a interpretação da lei e
prejudica os interesses dos consumidores que deseja justamente proteger.
O Art. 35-H atualmente dispõe: "Art. 35-H. Aplicam-se subsidiariamente
aos contratos entre usuários e operadoras de produtos de que tratam o inciso I e o § 1º
do art. 1º desta Lei as disposições da Lei nr. 8.078, de 1990"
Aplicação cumulativa e complementar das duas leis
Há , em verdade, aplicação cumulativa de ambas as leis aos contratos
novos e aplicação isolada do CDC aos contratos anteriores. Há aplicação cumulativa aos
contratos novos do CDC, pelo menos de forma unânime "no que couber", uma vez que
a Lei 9.656/98 trata com mais detalhes os contratos de planos privados de assistência à
saúde do que o CDC, que é norma principiológica e anterior à lei especial. A aplicação
cumulativa e complementar destas duas leis pode ser verificada também no plano
processual, pois há legitimidade de ações ocasionada pelo CDC e legitimidade
administrativa criada pela lei especial, tudo ao mesmo tempo, sem exclusão de um pela
criação do outro (cumulatividade e complementaridade).324
322
Sobre contratos cativos de longa duração, veja nosso livro, Contratos, p. 68 e seg.
MARQUES, Claúdia, in Saúde e Responsabilidade, p. 121 e seg.
324
Neste sentido, recente decisão do STJ no Resp. 177.965-PR não deixa dúvidas, apesar de referir-se a
contrato antigo, mas afirma a ementa: "Ação Civil Pública- Ação coletiva- Ministério Público 323
297
Há aplicação cumulativa, como um alguns exemplos podem esclarecer.
Imagine-se que, em um contrato novo, um consumidor de planos de assistência à saúde
seja lesado por erro médico (esquecimento da gaze cirúrgica em seu corpo) ou por
negativa de atendimento (má interpretação da carência), em hospital e com médico
credenciado e/ou conveniado pela operadora. A lei nova nada determina sobre o tema da
responsabilidade da operadora pelo fato do serviço (erro médico), mas a Lei 8.078/90
determina a solidariedade de toda a cadeia de fornecedores, diretos e indiretos (Art. 14 e
§4º sobre o privilégio de responsabilidade com culpa do médico), determina a
possibilidade de inversão do ônus da prova etc.325 O CDC será utilizado, assim como a
Lei 9.656/98 no que respeita a caracterização da operadora, por ex. UNIMED como
fornecedora indireta de serviços (c/c Art. 20 do CDC).
A lei nova determina a internação (Art. 10,11,12 da Lei 9.656/98), mas
nada determina sobre o tipo de responsabilidade da operadora pelo vício ou falha do
serviço (negativa de internação), mas a Lei 8.078/90 determina a solidariedade de toda a
cadeia de fornecedores, diretos e indiretos pela inadequação do serviço contratado,
independente de culpa (Art. 20 do CDC), determina a possibilidade de inversão do ônus
da prova (Art. 6, VIII), um foro especial para o consumidor (Art. 100 do CDC) e outros
direitos. Neste caso o CDC será utilizado, assim como a Lei 9.656/98. Há cumulação de
leis, complementaridade de leis, "diálogo das fontes" e não "subsidiariedade".
Subsidiariedade significa ordem de aplicação, aplica-se inicialmente uma lei e só após
se aplicará a outra. Aqui há complementação, de ambas regulando ao mesmo tempo o
mesmo caso, em diálogo, pois não são antinômicas as leis, ao contrário, ambas seguem
os princípios similares.
Subsidiariedade significa também um limite da aplicação da lei
subsidiária, o CDC, que se aplicaria somente naquilo que a primeira lei for lacunar ou
tema que não regular, o que não é correto. Por exemplo, em contrato individual, está
expressamente regulado no parágrafo único do Art. 13 da Lei 9.656/98, que é vedada
"II- a suspensão ou rescisão unilateral do contrato, salvo o caso de fraude ou não
pagamento da mensalidade por um período superior a sessenta dias, consecutivos ou
não, nos últimos doze meses de vigência do contrato, desde que o consumidor seja
comprovadamente notificado até o qüinquagésimo dia de inadimplência." Imagine-se
um caso de contrato individual, contendo cláusula de rescisão unilateral do contrato,
registrado na ANS, em que a operadora faz valer seu "direito" contratual de rescisão
unilateral, pois houve faticamente "não pagamento da mensalidade por um período
superior a sessenta dias consecutivos" e "o consumidor" foi "comprovadamente
notificado até o qüinquagésimo dia de inadimplência". Mesmo assim, pode este
consumidor entrar com ação alegando a nulidade da cláusula face ao Art. 54, § 2ª do
CDC ("Art. 54,§2º - Nos contratos de adesão, admite-se cláusula resolutória, desde que
325
Legitimidade- Interesses individuais homogêneos - Plano de Saúde - Reajuste da mensalidade unimed. O Ministério Público tem legitimidade para promover ação coletiva em defesa de interesses
individuais homogêneos quando existente interesse social compatível com a finalidade da instituição.
reajuste de prestações de plano de saúde (Unimed). Art. 82, I, da Lei nr. 8.078/90 (Código de Defesa
do Consumidor). Precedentes. Recurso conhecido e provido.", in RSTJ, ano 11, vol. 123, nov. 1999,
p. 317.
Neste sentido o Resp. 122.505, j. 04.06.1998, Min. Carlos Alberto Menezes Direito, que em se
tratando de cirusgião dentista, com responsabilidade segundo o Art. 14 §4º do CDC, regida pelo
sistema geral do CCBr., mesmo assim inverteu o ônus da prova a favor do consumidor, pois todo o
sistema do CDc se aplica ao mesmo tempo que o CCBr (in RSTJ ano. 11, nr. 115, mar. 1999, p. 271 e
seg.). Veja também neste sentido, inversão de ônus da prova em dano estético, à unânimidade,
mesmo para aqueles Minsitros que consideraram obrigação de meio, REsp. 81.101-PR, j. 13.04.1999,
Min. Waldemar Zweiter, in RSTJ ano. 11, nr. 119, julho 1999, p. 290 e seg.
298
alternativa, cabendo a escolha ao consumidor,..."). A cláusula é nula de forma absoluta,
pois é unilateral, não porque autorizou a rescisão unilateral por falta grave (nova
possibilidade regulada pela Lei 9.656/98).
Note-se que não há antinomia entre as normas, a lei especial veda a
rescisão unilateral, sem avisar e sem passar o prazo de 60 dias, o CDC, lei especial
sobre contratos de adesão com consumidores, veda a cláusula em todos os contratos de
adesão, se forem redigidas de forma unilateral, deve ser alternativa permitindo ao
consumidor continuar, permitindo retirar-se, ele também ,do contrato.
Como estas cláusulas devem ser redigidas de forma bilateral, se incluídas
em contratos de adesão, e os planos registrados na ANS, assim o são, segundo o Art. 54
do CDC, fica difícil a defesa da operadora. Dizer que cumpriu com a exigência da ANS
também não bastará, como mostraram os casos de consórcios, em que apesar das
cláusulas estarem redigidas conforme Portarias foram consideradas abusivas, ou hoje os
contratos securitários, todos controlados e registrados na SUSEP e nem por isso isentos
de abusividades. Esta possibilidade de discussão judicial (com forte possibilidades de
êxito) de uma cláusula especialmente regulada pela Lei 9.656/98 bem demonstra que
não há aplicação "subsidiária" ou a posterior do CDC, mas aplicação concomitante,
concorrente simples, cumulativa, complementar dos dois diplomas e nos mesmos casos
concretos.
O que se pode concluir é que pelo CDC, além da bilateralidade da
cláusula, "a escolha" devia caber somente "ao consumidor" (Art. 54,§2º do CDC) e que
a lei especial deste tipo de contrato de adesão, permitiu aos fornecedores que eles
também rescindam os contratos por falta de pagamento ou fraude, cumpridas algumas
exigências de boa-fé e dando possibilidade ao consumidor de sanar o problema
(impondo uma conduta cooperativa ou Boa-fé objetiva da operadora) e com isto manter
o vínculo contratual.
Trata-se de um privilégio que foi regulado pela Lei 9.656/98 somente
para estes fornecedores. Se , porém, a cláusula foi mal redigida e ofendeu os ditames do
CDC, é nula e o fornecedor não encontrará abrigo em nenhum privilégio da Lei
9.656/98. Assim, por exemplo, é uma cláusula duvidosa a cláusula constante de um
contrato atualmente registrado na ANS, que dispõe: "Este contrato poderá ser rescindido
bilateralmente ambas as partes de comum acordo, a qualquer tempo, desde que se
cumpra o prazo mínimo de 30 dias, antes do ato rescisório." É duvidosa e pode ser
anulada pelos dependentes do consumidor ou pelo MP, por exemplo, pois a escolha pelo
CDC deveria ser do consumidor sozinho (não comum acordo, que pressupõe anuência
da AMEP em "perder" o consumidor) e/ou somente em caso de inadimplemento, por
mais de 60 dias, pela Lei 9656/98.
Imagine-se um exemplo semelhante, que um contrato registrado na ANS
e controlado por esta agência, que esta agência considere que preenche todos os
requisitos da Lei 9.656/98, mas que um consumidor ou o Ministério Público de um dos
Estados da Federação considere incluir uma cláusula abusiva, segundo o princípio de
boa-fé do CDC. Assim, baseado na aplicação cumulativa do Art. 51,IV do CDC,
discutirá judicialmente a abusividade ou não da cláusula. Como pode o consumidor ou
MP discutir algo que já foi regulado pela Lei 9656/98 ? Pode, pois, o CDC também se
aplica cumulativamente e não "subsidiariamente" ao referido contrato.
Em resumo, a aplicação da Lei 9.656/98 a um contrato é um privilégio
para os fornecedores de "planos", mas não é um verdadeiro limite à aplicação do CDC a
este contrato. A hierarquia constitucional do CDC demonstra sua importância neste
exemplo, pois não há como afastar a aplicação cumulativa e principiológica do CDC (e
o recurso ao Judiciário pelo sistema de Defesa do Consumidor).
299
Antinomia de normas: prevalência das normas da Lei 9.656/98 e prevalência dos
princípios do CDC
Muitas outras atividades têm leis especiais, como a securitária, por
exemplo, o leasing etc. Suas normas especiais contratuais se aplicam, mas também se
aplica, em diálogo, complementariamente, o CDC. Mister frisar que no caso da Lei
9.656/98 a situação é mais complexa, pois ela tem forte conotação administrativa. Suas
regras de direito civil e de direito do consumidor são, na maioria, meramente
impositivas de condutas às operadores (por exemplo, a renovação automática do Art.
14, as exigências contratuais do Art. 10 e as exigências contratuais mínimas do Art. 12
da lei, a entrega de cópia do contrato no Art. 16,§1º, as exigências para substituições de
estabelecimento credenciado do Art. 17).
Nas regras de direito civil destacam-se algumas. Há o Art. 11, que é
proibitório da cláusula de exclusão de cobertura de doenças preexistentes, há o
parágrafo único do Art.13, vedando a recontagem de carências, a suspensão ou rescisão
unilateral em alguns casos, assim também o Art. 15 vedando o aumento de faixas não
previsto e a variação para consumidores com mais de sessenta em algumas condições,
há o Art. 16 impondo um dever de informar às operadoras. Fora destes temas
contratuais, a lei tem cunho administrativo, autorizando um novo controle às
operadoras, que será exercido pela ANS e outros órgãos nomeados na lei.
O reduzido número de normas de direito civil reduz as antinomias com o
CDC. Frise-se agora que são antinomias e não revogações ou ab-rogações. A lei é
especial, mas o CDC também é lei especial de proteção do consumidor, um dos sujeitos
protegidos pela Lei 9.656/98. A lei 9.656/98 é posterior, mas não é antinômica com o
CDC e só poderia afastá-lo naquilo que fosse antinômica e não no que regulou "a par
das já existentes". Os princípios de ambas as leis são coincidentes e não antinômicos,
mas determinados justamente pelo CDC, por sua origem constitucional. Raro será o
conflito de princípios. Neste sentido, os privilégios concedidos às operadoras pela lei
9.656/98 geralmente não são antinômicos ao CDC. Há aplicação cumulativa de leis,
cada uma com suas normas, mas ao mesmo tempo, de forma que pode haver violação
do CDC e não violação da Lei 9.656/98, pode haver violação da lei 9.656/98 e não
haver violação do CDC, por exemplo, em tema de registros ou de tipo societário da
operadora.
Mister examinar mais alguns eventuais conflitos existentes entre a
legislação especial, posterior à entrada em vigor do CDC, como a lei específica para
seguros e planos de saúde326, e Lei 8.078 de 1990, visualizada como lei "geral" de tutela
dos consumidores em todos os contratos e relações de consumo. Já destacamos
anteriormente que a lei especial nova não revoga tacitamente a lei geral anterior.
Assim, por exemplo, se a ANS estiver controlando uma cláusula de uma contrato a
registra e esta cláusula estiver subdividida ou mesmo repetida várias vezes, com textos
contraditórios, deve o controle estatal seguir o disposto no Art. 47 do CDC, como
princípio.327 A interpretação das cláusulas destes contratos é sempre a favor do
326
Veja detalhes da compatibilização desta lei sobre contratos de seguro com o CDC, em nossa obra,
Contratos, p. 187 e seg.
327
Assim também ensina PASQUALOTTO, p. 51 e seg. Citando a p. 53, as seguintes decisões: TJSP, 1ª
Câmara de Direito Privado, Ap. Cível nº 282.269-1/9-SP (...)‖. Em sentido diametralmente oposto, a
ACv nº 596.115.519, da 6ª Câmara Cìvel do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: ―(...) PLANO
DE SAÚDE. INVALIDADE DE CLÁUSULA, POR INCOMPREENSÍVEL, QUE SE FASTA. (...)
300
consumidor (Art. 47 do CDC), prevalecendo a versão mais favorável aos seus interesse
e não ao das operadoras que redigiu deste modo falho (com finalidade de lucro ou
imperícia) este contrato de adesão. Avisada a operadora que a cláusula será interpretada
a favor do consumidor, sem dúvida irá mudar de conduta, pois não atingiu seu intento
ao redigir mal a cláusula, qual seja de poder prevalecer-se da cláusula que no momento
do sinistro lhe fosse mais conveniente. Aqui a norma pode ser a da Lei 9.656/98, mas o
princípio é do CDC, como a jurisprudência tem assentado.328
Como ensina Pasqualotto, o "Código de Defesa do Consumidor é fonte
de interpretação da Lei nº 9656, conforme previsão expressa do seu art. 3º. Imperioso,
portanto, que se verifiquem os principais dispositivos daquele estatuto a serem
observados na disciplina dos planos e seguros de assistência à saúde.Um dos
dispositivos fundamentais, sem sobra de dúvida, é o art. 47, do CDC.O art. 47 enuncia
regra imperativa destinada ao juiz, determinando que as cláusulas contratuais sejam
interpretadas de modo mais favorável ao consumidor, que é a parte vulnerável nas
relações de mercado... Com efeito, o mercado coloca em posições de desigualdade os
fornecedores e os consumidores. Aqueles detém os meios de produção, distribuição,
comercialização e financiamento dos bens e dos serviços aptos à satisfação das
necessidades destes. Os primeiros impõem as condições dos contratos, e os segundos
sujeitam-se àquele domínio, anuindo inclusive a imposições abusivas, porque
desprovidos de poder de barganha... O desequilíbrio estrutural do mercado exige uma
interpretação sistemática das regras jurídicas protetoras das relações de consumo. Uma
das premissas do raciocínio é o art. 47, do CDC. Note-se, a propósito, que no seu texto
não há qualquer referência a dúvida, que, na análise estruturalista, perde a condição de
pré-requisito de aplicação do princípio favor debilis. Não fosse assim, poderíamos
chegar ao absurdo de que, quanto mais manifestamente leonina fosse uma cláusula
contratual, menos impugnável se tornaria.329 A interpretação favorável é devida ao
A interpretação deve ser, sempre, a mais favorável ao consumidor. Art. 47, do CDC. Assim, se a
cláusula restritiva, eventualmente, ostenta-se pouco precisa, eventual prejuízo, na interpretação, deve
ser debitado ao predisponente, contrato de adesão que é o que instrumenta negócio de seguro-saúde.
(...)‖. Em sentido análogo a esta última decisão, a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro improveu apelação de seguradora, mantendo a sentença que a condenou a pagar cirurgia
plástica restauradora e corretiva de outras, consignando na ementa: ―(...) Código de Defesa do
Consumidor e direito adquirido. Limitação dos riscos. Contratto de adesão e interpretação benéfica à
parte mais fraca. Recurso não provido‖ (ACv nº 500/96)
328
Esta tem sido a aplicação jurisprudencial no caso, veja por exemplo a decisãode SP: "Plano de saúdeCláusula contratual que prevê o prazo de carência de quinze meses para os casos de internação clínica
de urgência- Caso em que a internação se deu pela necessidade de urgente intervenção cirúrgica Interpretação mais favorável ao consumidor que aderiu ao contrato - ausência do devido destaque das
cláusulas limitativas do direito do consumidor - Reemboldo determinado" JEPC, Rec. 4124, j.
01.10.98, in Revista dos Juizados Especiais, ano 4, vol. 11, jan/mar.1999, p. 64. E decisões do RS:
"Seguro saúde. Ressarcimento, em face da negativa de cobertura. Tratando-se de contrato de adesão e
coletivo, as cláusulas limitadoras devem ser interpretadas de modo favorável ao consumidor."
JEPC,Proc. 100911032, Ap.71000036764, Turma Recursal, Porto Alegre, Rel. Mylene Maria Michel,
03.11.99, in Revista dos Juizados Especiais, nr. 26/27, agosto/dezembro 1999, p. 86
329
Curiosa é a decisão seguinte, transcrita por José Luiz Toro da Silva (―Comentários à Lei dos Planos de
Saúde‖, Porto Alegre, Sìntese, 1998, p. 40), que parece confirmar o raciocínio oblíquo de cuja
existência duvidou-se acima: ―SEGURO – Plano de saúde – Paciente com AIDS. Apólice que prevê,
expressamente, a não-cobertura dessa doença. Impossibilidade de aplicação do Código de Defesa do
Consumidor, no caso, em face de inexistir dúvida quanto à interpretação da cláusula. (...) TJSP, 1ª
Câmara de Direito Privado, Ap. Cível nº 282.269-1/9-SP (...)‖. Em sentido diametralmente oposto, a
ACv nº 596.115.519, da 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: ―(...) PLANO
DE SAÚDE. INVALIDADE DE CLÁUSULA, POR INCOMPREENSÍVEL, QUE SE FASTA. (...)
A interpretação deve ser, sempre, a mais favorável ao consumidor. Art. 47, do CDC. Assim, se a
cláusula restritiva, eventualmente, ostenta-se pouco precisa, eventual prejuízo, na interpretação, deve
301
consumidor como modo de compensação da sua desigualdade negocial.... Porquanto
cumpra a função de compensar o desequilíbrio estrutural do mercado, o art. 47, do
CDC, concretiza, no âmbito das relações de consumo, um dos objetivos fundamentais
da República, enunciado no art. 3º, inc. I, da Constituição..."330.
O STJ já aceitou esta posição, pois em caso que o Tribunal de Justiça/RJ
considerou cláusula de limitação de dias de internação correta, "frente às disposições do
Código de Defesa do Consumidor, pois a mesma não se entremostra iníqua e abusiva,
seus termos são claros e lhe permitem a exata compreensão"331, o Superior Tribunal de
Justiça, ao contrário, considerou a mesma cláusula "clara" como abusiva e contrária ao
CDC, isto em contrato antigo de "plano", com a seguinte e expressiva ementa:
"Plano de Saúde- limite temporal da internação Cláusula abusiva.
1. É abusiva a cláusula que limita no tempo a internação
do segurado, o qual prorroga sua presença em unidade de tratamento
intensivo ou é novamente internado em decorrência do mesmo fato
médico, fruto de complicações da doença, coberto pelo plano de
saúde. 2. O consumidor não é senhor do prazo de sua recuperação,
que, como é curial, depende de muitos fatores, que nem mesmo os
médicos são capazes de controlar. Se a enfermidade está coberta pelo
seguro. não é possível, sob pena de grave abuso, impor ao segurado
que se retire da unidade de tratamento intensivo, com risco severo de
morte, porque está fora do limite temporal estabelecido em uma
determinada cláusula. Não pode a estipulação contratual ofender o
princípio da razoabilidade e se o faz, comete abusividade vedada pelo
Art. 51,IV do Código de Defesa do Consumidor. Anote-se que a regra
protetiva, expressamente, refere-se a uma desvantagem exagerada do
consumidor e, ainda, a obrigações incompatíveis com a boa-fé e a
equidade."332
A aplicação somente do CDC aos contratos anteriores à vigência da Lei 9.656/98
De grande relevância prática é a complementaridade existente entre a Lei
nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e a Lei nº 9.656/98. Com a vigência da
Lei nº 9.656/98, não houve a revogação tácita ou expressa de aplicabilidade do Código
do Consumidor às relações jurídico-sociais de consumo de planos ou seguros de saúde,
logo, tratam-se de leis que se completam e complementam e somente em caso de
antinomia, a lei hierarquicamente superior deve prevalecer, no caso, o CDC. Ademais,
aos contratos anteriores à Lei nº 9.656/98, também contratos de consumo, aplicam-se
somente os preceitos do CDC para evitar a retroatividade mínima afastada pela
jurisprudência brasileira.
ser debitado ao predisponente, contrato de adesão que é o que instrumenta negócio de seguro-saúde.
(...)‖. Em sentido análogo a esta última decisão, a 6ª Câmara Cìvel do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro improveu apelação de seguradora, mantendo a sentença que a condenou a pagar cirurgia
plástica restauradora e corretiva de outras, consignando na ementa: ―(...) Código de Defesa do
Consumidor e direito adquirido. Limitação dos riscos. Contratto de adesão e interpretação benéfica à
parte mais fraca. Recurso não provido‖ (ACv nº 500/96, transcrita por Osìris Borges de Medeiros, in
―Seguro Saúde‖, Rio de Janeiro, Destaque, p. 186).
330
PASQUALOTTO, op. cit., p. 51 a 54.
331
Reprodução da ementa do TJ/RJ, in RSTJ, a. 11, vol. 121, set. 1999, p. 291.
332
Resp. 158.728-RJ, j. 16.03.1999, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, in RSTJ, a. 11, vol. 121,
set. 1999 p. 289 e seg.
302
Segundo a jurisprudência atual e reiterada do Superior Tribunal de
Justiça, a lei nova, mesmo o Código de Defesa do Consumidor, não se aplica aos
contratos assinados antes da entrada em vigor desta lei.333 Apesar das opiniões
contrárias, estabeleceu o Supremo Tribunal Federal uma forte linha de proibição da
retroatividade mínima de qualquer lei, mesmo as de ordem pública, face ao
mandamento constitucional de manutenção dos direitos adquiridos com base em
contrato anterior à vigência da lei nova e da visão deste contrato como ato jurídico
perfeito e intocável pelo legislador.
Os contratos anteriores não são , em princípio, afetados pela nova lei e
continuam a ser regidos pelo CDC, mas é claro que a interpretação atual do CDC não
pode deixar de considerar os avanços positivados pela nova lei. Neste sentido, a
aplicação do CDC aos contratos anteriores recebe agora uma nova luz com a definição
de abuso e cláusulas abusivas trazidas pela nova lei. Os direitos adquiridos dos
consumidores com base nos planos e seguros anteriores, geralmente mais completos do
que os segmentados planos agora oferecidos, assim como a impossibilidade de preços
diferenciados e agravos aos consumidores anteriores devem ser destacados e,
especialmente, eficazmente protegidos sob a égide do CDC. Há urgente necessidade de
"segurança e estabilidade" nas relações jurídicas de planos e seguros de saúde entre
fornecedores e consumidores neste país.334
A aplicação retroativa a estes contratos da nova Lei 9.656/98, somente
poderá se dar se por força do próprio CDC, em um verdadeiro diálogo de fontes, como
especificou Erik Jayme.335 Efetivamente, o CDC trabalha com cláusulas gerais, como a
da conduta segundo a boa-fé do combate ao abuso e ao desequilíbrio contratual, logo é
possível ao juiz considerar que a nova lei consolidou o que é (e já era) abusivo segundo
o CDC e ofensivo, pois as suas normas, então em vigor. O espírito do intérprete deve
aqui ser guiado pelo do artigo 7º do CDC, que como uma interface aberta do sistema
tutelar dos consumidores (lex speciales rationae personnae), estabelece que a legislação
tutelar incorpora todos os direitos assegurados aos consumidores em legislação
ordinária, tratados etc. A ratio legis é, pois, de incorporar os "direitos" assegurados nas
leis especiais e não os deveres, o ônus, ou o retroceder da interpretação judicial já
alcançada apenas com a lista de direitos asseguradas pelo CDC.336
Se a lei nova quisesse revogar algum direito do consumidor assegurado
pelo CDC teria que fazê-lo expressamente ou elaborando normas expressamente em
conflito com as do CDC, o que inocorre, ao contrário, reafirma a aplicação conjunta de
ambas as leis. Para os contratos anteriores, pois, vige apenas o CDC, mas sob a luz do
que agora foi positivado como legalmente abusivo (limitações, cláusulas de exclusão
muito amplas, como a de doenças preexistentes, aumentos desmesurados e nãoinformados face a idade etc.), assegurando assim novo brilho aos direitos dos
consumidores já assegurados de forma genérica no CDC e, portanto, já incorporados ao
contrato anterior. É como se o aplicador do CDC estivesse fazendo uma interpretação
teleológica (logo, atual) do fim do texto então existente, mas esta interpretação, como
333
Veja por todos, o Recurso Especial 126.407-RJ, Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 28.04.98, cuja
ementa é: "Plano de Saúde. Responsabilidade civil. Cláusula de carência. Código de Defesa do
Consumidor, Súmula n. 07 da Corte. 1. Como afirmado na jurisprudência da Corte, o Código de
Defesa do Consumidor não se aplica aos contratos anteriores à sua vigência."
334
Sobre "segurança e estabilidade da vida social" através do direito intertemporal, veja Tenório, Oscar,
Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, Borsoi, Rio de Janeiro, 1955, p. 207.
335
Assim JAYME, Recueil des Cours, p. 36 e seg.
336
Sobre o patamar de proteção já alcançado com a aplicação do CDC, veja relatórios do levantamento da
jurisprudência em São Paulo e no Rio Grande do Sul, também publicados in Revista Direito do
Consumidor, vol. 28 e 29.
303
todas as outras, deve ser pró-consumidor (art. 47 do CDC), incorporando apenas o que
vier a favorecê-lo e não o que vier a reduzir, limitar ou violar seus direitos assegurados
pelo CDC e pela jurisprudência anteriormente estabelecida.
É o denominado, por Erik Jayme, de diálogo das fontes,337 antes
destacado e cada vez mais comum no direito atual onde a revogação expressa é cada vez
mais rara e a derrogação impossível pelos diferentes campos de aplicação, cada vez
mais difusos e modificáveis segundo os papéis exercidos na sociedade. Em verdade é
apenas uma luz nova para preencher a norma antes existente e evitar o conflito, com a
opção constitucional pelo valor mais alto em conflito nesta antinomia. Nunca é demais
lembrar que o CDC tem origem constitucional e que, em caso de antinomia, a opção
deve valorar hierarquicamente o CDC, pois é direito fundamental do brasileiro à
proteção de seus direitos como consumidor.
Como já tivemos a oportunidade de afirmar: " Em 22 de março de 1999,
o Ministério da Justiça, através de Portaria SDE nr. 3, de 19 de março, explicitou mais
uma vez o elenco - aberto - de cláusulas abusivas por violação da boa-fé (art. 51,IV do
CDC), como autoriza o art. 56 do Decreto nr. 2.181/97 e considerou duas cláusulas dos
planos e seguros anteriores à lei como abusivas.338
A Portaria nr. 3 ao regular/interpretar os contratos anteriores usando as
definições de abuso concretizadas na nova lei, estabeleceu o princípio que, na
concretização das cláusula geral de boa-fé imposta pelo art. 51,IV do CDC, o aplicador
da lei e julgador pode e deve utilizar-se das noções de abuso de direito agora positivadas
na nova lei de seguro-saúde. Em outras palavras, trazendo nova luz à aplicação do CDC,
a nova lei é usada indiretamente para facilitar a aplicação e concreção das normas já
existentes do CDC.
Os avanços conseguidos com a nova lei são, assim, de um lado a
positivação do que a jurisprudência pátria em sua maioria já considerava abusivo e de
outro, revertem em nova luz para facilitar a jurisprudência futura, que com base nas
aplicáveis normas do CDC, interpretadas conforme a nova visão da lei, generalizam os
avanços da nova lei , mesmo aos contratos anteriores, se nestes estiverem as cláusulas
agora expressamente consideradas abusivas.
Segundo a Portaria SDE nr. 3/99 são abusivas as cláusulas que
"1.Determinem aumentos de prestações nos contratos de planos e seguros de saúde,
firmados anteriormente à Lei 9.656/98, por mudanças de faixas etárias sem previsão
expressa e definida;" e as que "2. Imponham, em contratos de planos de saúde firmados
anteriormente à Lei 9.656/98, limites ou restrições a procedimentos médicos (consultas,
exames médicos, laboratoriais e internações hospitalares, UTI e similares) contrariando
prescrição médica."339
A ANS, hoje, não faz parte do Sistema Nacional de Defesa do
Consumidor, determinado pelo Decreto 2.181, de 20 de março de 1997, em seu Art. 2º,
incluindo todos os "órgãos federais, estaduais e municipais e as entidades civis de
defesa do consumidor" e coordenado pelo DPDC/MJ, conforme seu Art.3º. Logo, não
se submete à Portaria SDE nr. 3/99, mas pode considerá-la como qualquer outra norma
337
Jayme , Recueil des Cours, p. 247 e seg. Veja sobre o pluralismo de fontes no direito atual, Friedman,
Lawrence, The Republic of Choice - Law, Authority and Culture, Cambridge/Massachusetts, Harvard
University Press, 1994.p. 11.
338
É discutível se, por Portaria, é possível "complementar" a lista do art. 51 do CDC, como afirma a
prórpia Portaria nr. 3/99. De qualquer maneira, o Decreto regulamentador pode ser interpretado
conforme a Constituição, concedendo competência ao Ministério da Justiça para administrativamente- concretizar o que é violador da boa-fé (art. 51,IV do CDC) e , assim, facilitar a
atividade do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, por ele comandado (art. 5 do CDC).
339
DOU de 22 de março de 1999.
304
indicativo-política. Com a criação de uma Agência de Defesa do Consumidor e da
Concorrência é bem possível que a colaboração e os convênios entre as agências
permitam uma maior atividade da ANS em favor do consumidor, o que fortemente
sugerimos.
Sugestão de modificação do Art. 35-H nas próximas MPs
Como o Art. 35-H da lei 9.656/98, no texto determinado pela MP 197630 , de 29 de agosto de 2000, não está dogmaticamente correto, pois determina que o
CDC tenha apenas aplicação subsidiária à normas da Lei 9.656/98, e dificulta a
interpretação da lei, sugerimos a sua modificação de forma a evitar o prejuízo aos
interesses dos consumidores. Sua ratio deveria ser a de aplicação cumulativa de ambas
as leis, no que couber, uma vez que a lei 9.656/98 trata com mais detalhes os contratos
de planos privados de assistência à saúde do que o CDC, que é norma principiológica e
anterior à lei especial.
Assim, ao analisar a inteligência do Art.35-H, mister sugerir sua
modificação. O Art. 35-H atualmente dispõe: "Art. 35-H. Aplicam-se subsidiariamente
aos contratos entre usuários e operadoras de produtos de que tratam o inciso I e o § 1º
do art. 1º desta Lei as disposições da Lei nr. 8.078, de 1990" Parece-me que o Art. 35-H
poderia ter seu texto modificado da seguinte forma: "Art. 35-H. Aplicam-se aos
contratos entre usuários e operadoras de produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do
art. 1º desta Lei as disposições da Lei nr. 8.078, de 1990, não devendo haver qualquer
prejuízo aos direitos fundamentais dos consumidores em virtude da aplicação da Lei
9.656/98 aos seus contratos."
Trata-se de um bis in idem, pois a aplicação cumulativa do CDC já existe
e o limite constitucional de proteção aos direitos fundamentais também, mas o texto é
esclarecedor da hierarquia das normas envolvidas e pode evitar muitas discussões
judiciais, prevenindo danos aos consumidores, o que também pode ser um argumento a
sua manutenção. Ideal teria sido que a Lei 9.656/98 não tivesse expressamente
mencionado a subsidiariedade do CDC, pois se agora esta norma do Art. 35-H
desaparecer, poderão as operadoras considerar-se, pelo menos inicialmente,
desobrigadas até de cumprir subsidiariamente com o CDC. Isto seria muito negativo ao
mercado brasileiro e à proteção do consumidor, pelo que sugiro a manutenção do Art.
35-H com este texto novo ou pelo menos com a supressão da expressão
subsidiariamente. Note-se que as antigas menções da aplicabilidade do CDC (art. 3º da
referida lei especial) e de que a aplicação conjunta do CDC e da lei especial "não
implique prejuízo ao consumidor" (§ 2º do art. 35 da Lei 9.656/98), no texto novo da
MP-30 já foram retiradas.
Parte III – A nova legislação e o combate às cláusulas abusivas
Três valores são cada vez mais raros e , por isso, valiosos no mundo
atual: segurança, previsibilidade e proteção contra riscos futuros. Estes três valores são
oferecidos no mercado justamente através dos planos e seguros privados de saúde. Estes
chamados contratos de planos e seguro de assistência à saúde possibilitam a
transferência legal de riscos futuros envolvendo a saúde do consumidor e de seus
dependentes a serem suportados por empresas de assistência médica, cooperativas ou
seguradoras, prometendo a seu turno segurança e previsibilidade, face ao pagamento
305
constante e reiterado das mensalidades ou prêmios.340 A relação entre paciente e médico
sempre foi caracterizada como uma relação de confiança.341 No mundo de hoje, parte
desta confiança (fides) vai ser transferida para o organizador destes planos e seguros,342
confiança que o consumidor deposita na adequação e qualidade dos serviços médicos
intermediados ou conveniados, na previsibilidade da cobertura leal dos eventos futuros
relacionados com saúde. É um contrato para o futuro e assegurador do presente, é um
contrato de consumo típico do final do século (um fazer de segurança e confiança),
oneroso e sinalagmático, de um mercado em franca expansão, onde a boa-fé deve ser a
tônica das condutas.
A grande contribuição do Código de Defesa do Consumidor (Lei
8.078/90) ao regime das relações contratuais no Brasil foi ter positivado normas
específicas impondo o respeito à boa-fé na formação e na execução dos contratos de
consumo, confirmando o princípio da boa-fé como um princípio geral do direito
brasileiro343, como linha teleológica para a interpretação das normas de defesa do
consumidor (art. 4,III do CDC),344 como cláusula geral para a definição do que é abuso
contratual (art. 51, IV do CDC), como instrumento legal para a realização da harmonia e
equidade das relações entre consumidores e fornecedores no mercado brasileiro (art. 4 I
e III do CDC) e como novo paradigma objetivo limitador da livre iniciativa e da
autonomia da vontade (art. 4,III do CDC combinado com art. 5, XXXII e Art.
170,caput e inciso V da Constituição Federal).345Os contratos de planos de saúde,
medicina pré-paga agora em análise, caracterizam-se como contratos cativos de longa
duração346, categoria que procuramos examinar em nosso livro sobre contratos,347
procurando demonstrar a estreita, cativa e contínua vinculação entre o fornecedor
(organizador) dos serviços, no caso as cooperativas, e os consumidores representados
pela UFRGS, assim como as especialidades desta relação contratual complexa
envolvendo serviços de saúde considerados essenciais, por oferecer segurança e garantia
contra riscos futuros, e antigamente prestados pelo Estado.
O CDC não contém uma definição legal do que considera abusivo,
preferindo ora indicar a abusividades em casos expressos (Art. 53 do CDC sobre a
abusividade da cláusula de perda total das prestações pagas); ora deixar sua
determinação no caso concreto à jurisprudência, fixando apenas uma cláusula geral
(Art. 51, inciso IV do CDC sobre a cláusula geral de boa-fé), ora listando exemplos de
cláusulas abusivas e de condutas comerciais abusivas (listas dos Art. 51 e 39 do CDC).
A abusividade pode ser vista ou definida de forma subjetiva ou objetiva. Estes dois
340
Veja detalhes em nosso artigo de doutrina, Abusividade nos contratos de seguro-saúde e de assistência
médica no Brasil, in: Revista AJURIS, vol. 64 (1995), p. 34 e seg.
341
Assim Bourgoignie, Thierry, En guise de conclusion - Les relations patients-medecins de demain, in:
Actes des VIIIes Journées du droit de la consommation des 6 a 7 de décembre 1993, INC
HEBDO/866, p. 82.
342
Assim também Ghersi, Carlos Alberto, Contrato de Medicina prepaga, Ed. Astrea, Buenos Aires, p.
201.
343
Veja afirmativo, Couto e Silva, Clóvis, O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português, in: O
Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e silva-Obras completas, Organizadora Vera
Jacob de Fradera, Ed. Livraria dos Advogados, Porto Alegre, p. 48.
344
Assim Eros Roberto Grau, Interpretando o Código de Defesa do Consumidor: Algumas Notas, in:
Direito do Consumidor, vol. 5 (1993), p.185.
345
Assim nos manifestamos em nosso livro, Contratos, p. 83 e seg.
346
Preferimos esta denominação à denominação usada na Argentina, qual seja de contratos pós-modernos,
veja Ghersi, La Posmodernidad Jurídica- Una discusión abierta, Ed. Gowa, Buenos Aires, 1995,p.
45ss.
347
Veja o nosso Contratos, 1999, p.68ss.
306
caminhos são possíveis e ainda hoje muito úteis.348 Uma aproximação objetiva conecta
a abusividade com paradigmas modernos, como o da boa-fé objetiva ou com a antiga
figura da lesão, como se seu elemento principal diferenciador fosse o resultado objetivo
originado pela conduta (maliciosa ou não) do agente. Relevante seria então o prejuízo
grave sofrido objetivamente pelos consumidores, o desequilíbrio geral resultante de uma
cláusula imposta (mesmo que sua imposição não se origina-se da vontade subjetiva do
fornecedor), a falta de razoabilidade ou de comutatividade do exigido pela previsão
contratual. A tendência hoje é privilegiar as aproximações objetivas, que protegem a
segurança das relações na sociedade, a confiança depositada nas declarações e nas
atuações lícitas no mercado de consumo.349 Limita-se assim o poder básico da
autonomia da vontade. As normas do CDC são imperativas e de ordem pública (Art. 1
do CDC), estabelecendo novos limites a autonomia da vontade.
As duas visões da abusividade ainda são úteis e como destaca Hélène
Bricks350 as cláusulas abusivas apresentam justamente como características comuns, o
seu fim e o seu efeito. O fim comum das cláusulas abusivas seria a melhoria da situação
contratual daquele que redige o contrato ou detêm posição contratual preponderante, o
fornecedor, transferindo assim ao consumidor riscos que normalmente deveria suportar,
segundo o direito supletivo. O efeito comum das cláusulas abusivas é o desequilíbrio do
contrato em razão de sua inclusão e da falta de reciprocidade e unilateralidade dos
direitos assegurados através da cláusula ao fornecedor.
Por fim, cabe mencionar que a abusividade cláusulas pode estar no
desequilíbrio geral da engenharia contratual e não em seu texto, se visto de forma
isolada. A interpretação destas cláusulas é sempre a favor do consumidor (Art. 47 do
CDC) e a sua declaração como abusivas dependerá, portanto, da sua inserção no texto
contratual, naquela relação contratual específica, naquele tipo de contrato de consumo.
Neste sentido vale repetir o disposto no Art. 3 da Diretiva.93/13 da Comunidade
Européia: „as cláusulas contratuais que não se tenham negociado individualmente
considerar-se-ão abusivas se, frente as exigências da boa-fé, causam em detrimento do
consumidor um desequilíbrio importante entre os direitos e obrigações das partes que
derivam do contrato.351
Segundo Antônio Janyr Dall‘Agnoll Jr. a nulidade das cláusulas abusivas
prevista no sistema do CDC (Art. 51 caput) é uma nulidade absoluta. O magistrado
gaúcho apoia-se no sistema tradicional brasileiro de nulidades, onde as nulidades
cominadas, previstas expressamente em lei ou através de proibições legais diretas, se
nada em contrário especificam, nulidades absolutas são.352 Neste sentido, as proibições
da Lei 9.656/98 (o Art. 11, proibindo a cláusula de exclusão de cobertura de doenças
preexistentes, o parágrafo único do Art.13, vedando a recontagem de carências, a
suspensão ou rescisão unilateral em alguns casos, e o Art. 15 vedando o aumento de
faixas não previsto e a variação para consumidores com mais de sessenta em algumas
condições) também levariam a nulidade absoluta das cláusulas contratuais, nulidade esta
348
Veja detalhes em Bourgoinie, Thierry, Le contrôle des clauses abusives dasn l‘intérêt du
consommateur- Belgique, in: Revue internationale de droit comparé, n. 3, 1982, p. 519ss.
349
Veja nosso estudo em direito comprado, in: Contratos, op. cit., p. 295.
350
Bricks, Hélène, Les clauses abusives, LGDJ, Paris, 1982, p. 8
351
Publicada no JOCE L 95/31 de 21.4.93.
352
Dall‘Agnoll, Antônio Janyr Jr, Cláusulas Abusivas: A opção brasileira, in: Estudos sobre a proteção do
consumidor no Brasil e no Mercosul, Claudia Lima Marques (Coord.), Ed. Livraria dos Advogados,
Porto Alegre, 1994, p. 38. Veja, defendendo a opinião que as nulidades do CDC nulidades com
características especiais seriam, por tratar-se de um microsistema autônomo, Nery, Nelson Jr., in:
Código de Defesa do Consumidor- Comentários dos Autores do Anteprojeto de Lei, Forense, 1991, p.
298.
307
que pode ser declarada ex officio e, no caso do controle prévio administrativo, impediria
o registro e daria azo à imposição de multas, se utilizadas, mesmo após a proibição
específica.
O Art. 39 do CDC veda algumas práticas comerciais como abusivas e o
caput do Art. 51 do CDC dispõe que são „nulas de pleno direito― as cláusulas abusivas
previstas em contratos envolvendo o fornecimento de produtos e serviços no mercado
para consumidores, sejam contratos de adesão ou contratos discutidos
individualmente.353
Observações sobre a nova lei
A Lei 9.656/98, por sua vez, proíbe algumas cláusulas e práticas
abusivas, justamente porque não informadas, não suficientemente destacadas ou
esclarecidas, porque unilaterais ou porque desequilibradoras do equilíbrio contratual. O
Art. 11 da lei proíbe a cláusula de exclusão de cobertura de doenças preexistentes, após
24 meses, já o parágrafo único do Art.13 da Lei veda a recontagem de carências, a
suspensão ou rescisão unilateral em alguns casos; assim também o Art. 15 veda o
aumento de faixas não previsto e a variação para consumidores com mais de sessenta
em algumas condições. Aqui, como são cláusulas defesas em lei, há nulidade absoluta
(Lei 9.656/98 c/c Art. 145. V do Código Civil Brasileiro ou c/c Art. 51,IV do CDC).
Mencione-se ainda o Art. 16 da lei que impõe um dever de informar às operadoras.
Doenças preexistentes e abuso
Quanto às cláusulas desequilibradoras, destaca-se a norma do Art. 11,
que indiretamente permite a exclusão de doenças preexistentes nos primeiros 24 meses,
impondo apenas à operadora o ônus de provar que o consumidor (e demonstrar) que o
consumidor ou o "beneficiário" tinha "conhecimento prévio" da existência da doença. O
parágrafo único veda a suspensão da assistência do "consumidor ou beneficiário" até a
realização da referida prova. Destaque-se como negativo para o direito do consumidor,
que um risco profissional das seguradoras (que não realizavam testes e exames nos
consumidores antes de incluí-los em suas listas e receber mensalmente suas
contribuições mensais e pagamentos), como determinava a jurisprudência, foi
transferido para o consumidor, que agora deve arcar com uma carência genérica de 2
anos, sendo que o contrato tem prazo de um ano apenas. Assim ensina o Resp. 229078SP:
"Seguro-Saúde. Exclusão de proteção. Falta de
prévio exame. - A empresa que explora plano de seguro-saúde e
recebe contribuições de associado sem submetê-lo a exame, não pode
escusar-se ao pagamento da sua contraprestação, alegando omissão
nas informações do segurado. - O fato de ter sido aprovada a cláusula
abusiva pelo órgão estatal instituído para fiscalizar a atividade da
seguradora não impede a apreciação judicial de sua invalidade."354
353
Veja Aguiar, Ruy Rosado de Jr., Cláusulas Abusivas no Código do consumidor, in: Estudos sobre a
proteão do consumidor no Brasil e no Mercosul, Claudia Lima Marques (Coord.), Ed. Livraria dos
Advogados, Porto Alegre, 1994, p. 20. O autor defende, porém, uma certa diferenciação na lista
exemplificativa do Art. 51, concluindo que o regime é quase semelhante ao alemão, de cláusulas nulas
e cláusulas onde a valoração e positiva ( lista preta e cinza).
354
Resp. 229078-SP, j. 09.11.99, Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 07.02.2000.
308
Da mesma forma pelas resoluções do CONSU pode o consumidor para
evitar a nova carência, declarar sua doença e pagar um agravo, caso ainda raro no país.
Note-se também que a redação do Art. 11 é tal que veda a cláusula, autorizando-a...
Note-se também que o Art. 11 menciona um "consumidor" e um "beneficiário", o que
pode ser importante nos contratos coletivos e familiares. Que beneficiário é este que não
é consumidor pelo CDC? Aqui há erro terminológico, o beneficiário, que é destinatário
final do serviço médico é consumidor, ex vi art. 2 do CDC. Imagina-se que os redatores
da MP enganaram-se terminologicamente, mas não de intenção, que pode ser a de
beneficiar ainda mais as operadoras e prejudicar os consumidores. Basta interpretar
literalmente a norma: se o "beneficiário" , o doente sabia de sua doença, mas o
empregador, o sindicato, o pai de família ("consumidor") que assinou o contrato
coletivo ou familiar e pagou o custo por quase dois anos...não sabia da doença
"preexistente", bem esta desonerada a operadora de cobrir esta "doença preexistente".
Só pode ser esta intenção do Art. 11 da MP-30 ao subdividir, a contrario do CDC, entre
beneficiário e "consumidor". Aplicando-se o CDC todos são consumidores, os
contratantes e os beneficiários, como afirmamos na parte I deste parecer.
Um exemplo prático pode esclarecer quão negativa é a norma do Art. 11
para os consumidores. Na jurisprudência antiga as carências tinham que ser razoáveis,
proporcionais à intervenção e não maiores do que o tempo de duração do contrato. 355
Agora a norma do Art. 11 cria uma carência duas vezes maior do que a duração
primeira do contrato e para toda e qualquer doença. Assim, se a "doença preexistente" é
um leve catarata nos olhos, e o consumidor não informa ao sindicato que sofre deste
"mal", bem o beneficiário do "plano" imagina-se coberto e marca a cirurgia de correção,
cirurgia não muito custosa, no final do primeiro ano, pode a operadora alegar
preexistência e provar.
Importante destacar que a aplicação do CDC às cláusulas de exclusão de
doenças preexistentes não só tornou algumas delas ineficazes, por abusivas e nulas, mas
determinou a inversão ex vi lege do ônus de provar que a aquela doença era
preexistente356 e que o consumidor dela sabia. Como as empresas de praxe não exigem
exames médicos detalhados para a inclusão dos consumidores, prevalece a presunção de
boa-fé do consumidor.357 Se não realizaram os exames e aceitaram o consumidor em
suas condições, aceitaram implicitamente cobrir suas doenças, caso não haja previsão
contratual sobre as condições especiais de aceitação do consumidor. Assim é a
tendência da jurisprudência do STJ, como bem demonstra o REsp. 198.015/GO.358
355
Assim, conclui "que é necessário um tempreo adequado para evitar excessos", DIREITO, Carlos
Alberto Menezes, O Consumidor e os planos de saúde, in Revista Forense, vol. 328, out/dez.1994, p.
316.
356
Exemplo é a decisão do JE/SP: "Contrato de Assistência médica- inocorrência de nulidade por falta de
requerimento específico de perícia médica - impertinente a negativa de cobertura, ante a alegação de
doença preexistente - fatos imporvados pela prestadora de serviços, que tinha este ônus - sentença de
procedência mantida- Recuros improvido" Rec. 5465, j. 27.06.99, Re. James Siano, in RJE, ano 4, vol.
13, jul/set 1999, p. 45. E, a p. 46, o Relator arremata: "Reconhecidamente se trata de relação de
consumo, cujo ônus de demosntrar a preexistência se impunha à recorrente, nos moldes do Art. 6 do
CDC, o que não ocorreu durante a instrução"
357
Veja o regime desta cláusula bastante comum, no nosso artigo na Revista AJURIS 64, p. 64ss.
358
"A jurisprudência vem se inclinando no sentido de impor a prestadora de serviços o ônus de submeter
os interessados, no momento da contratação, à avaliação médica, sob pena de arcar com os riscos do
negócio por eventual omissão (Resp. 198.015/GO, STJ)." in Rec. 5465, j. 27.06.99, Re. James Siano,
in RJE, ano 4, vol. 13, jul/set 1999, p. 47.
309
Na nova lei também tornam-se litigiosas as doenças preexistentes,359
também excluídas a sua cobertura por previsão contratual por 24 meses. O art. 11 da Lei
não é positivo para o consumidor brasileiro, pois legitima cláusula de exclusão
considerada pacificamente como abusiva pela jurisprudência brasileira.360 Isto porque o
art. 11 não veda a exclusão de doenças preexistentes, mas sim a autoriza legalmente.
Em verdade o art. 11 autoriza que todos os contratos, inclusive o plano-referência ,
possuam cláusula de exclusão de doenças preexistentes, sem que a seguradora tenha que
fazer o exame prévio antes exigido pela jurisprudência.
A jurisprudência considerou abusiva esta cláusula de exclusão justamente
por sua generalidade, porque fora os acidentes toda e qualquer doença pode-se dizer e
provar medicamente ser preexistente, por congênita, genética ou em estágio inicial por
muito tempo. É abusiva também, pela desproporção entre direitos e deveres que pode
causar. O atual art. 11 da lei entra em choque com a jurisprudência, que se baseia na
idéia que se a operadora aceita a informação do consumidor e o aceita em seu plano sem
o submeter a exames prévios, deve arcar com as suas doenças, mesmo que já potenciais
naquela época. Isto porque é risco profissional das empresas contratar com pessoas
potencialmente doentes e em risco de saúde. Suportar riscos de saúde e de
desenvolvimento de doenças futuras é a finalidade do plano. Parece-me não ser
suficiente
A inversão do ônus da prova neste caso se reintroduz a lei a idéia de máfé subjetiva do consumidor ou do beneficiário. Esta subjetividade é um retrocesso, pois
o código de defesa do consumidor não exige a má-fé subjetiva do consumidor; não
exige a prova que ele sabia da sua doença. Ao contrário, o CDC e a jurisprudência
brasileira presumem a boa-fé do consumidor e a obrigação da operadora de cobrir estas
doenças (Art. 24 e 25 do CDC e art. 51, IV e § 1 do CDC).
Logo, se Art. 11 começa teoricamente „vedando―, está em verdade
legitimando uma prática e uma cláusula considerada abusiva pela jurisprudência
brasileira e transferindo um risco profissional que o código de defesa do consumidor
proibia transferir para o consumidor.
Conduta na oferta, publicidade, informações prévias, representação comercial e
redação contratual a determinar a abusividade
As informações prestadas pelos funcionários e vendedores,361 pela
publicidade, pelos prospectos362 e manuais entregues363 e pelo próprio nome do plano de
359
Veja protesto do Deputado José Pinotti na audiência pública de 18/04/96, CFT N.0244/96, p. 23: „[O
Plano exclue] também as doenças doenças preexistentes. Pode-se provar muito facilmente que uma
mulher com câncer de mama, que assinou um seguro-saúde há dois anos, já tinha o câncer há cincos
anos, porque é verdade. O câncer de mama leva dez anos antes de aparecer como um tumor de dois
centìmetros. Portanto, esse plano é um absurdo...―
360
Veja leading case do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior e decisões exemplares dos Tribunais de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e São Paulo, veja por todas do TJRGS Ap.Civ. 589041169,
Ap.Civ. 594087447, Ap.Civ. 592018170, e do TJSP Ap. Civ. 270238-1, Rec. 2.377, Rec. 1.341, Rec.
1.100 e Rc. 2.531.
361
Veja a este respeito decisão exemplar do Juiz Roberto de Abreu e Silva, 10a Vara Cível , Rio de
Janeiro, que incluiu o tratamento a portadores do vírus da AIDS, mesmo havendo cláusula excluindo o
tratamento de „epidemias―, tendo em vista as informações prestadas pelos vendedores e promotores de
vendas, assim como pela publicidade veiculada, que modificaram o conteúdo contratual, in: Direito do
Consumidor, vol. 16, p. 202ss.
362
Assim decisão de São Paulo sobre um prospecto que afirmava haver "cobertura 100%": "ContratoPlano de Saúde - Tratamento de meningite viral - Reembolso de despesas hospitalares- Cláusula de
310
saúde criam expectativas (agora) consideradas legítimas (Art. 20, 30, 31, 34, 46, 47, 48,
54 do CDC), que uma vez descumpridas caracterizam um inadimplemento contratual
(Art. 20 e 84 do CDC).364 Por exemplo, se a qualidade apregoada, o exame prometido, o
credenciamento de determinado médico ou hospital, a inclusão de transporte, o
atendimento de emergência ou a internação pactuada não foi cumprida há falha no
serviço.365
A execução é falha, pois é aquém do informado, do prometido ou veiculado
na publicidade, como em caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul em 5 de agosto de 1992, onde cláusula contratual autorizava de maneira
genérica a possibilidade „de ocorrer limitações na coberturas contratuais―. Tendo a
empresa internamente limitado estas cobertura quanto aos honorários médicos a 50
Unidades de Serviço, a 3a Câmara do Tribunal de Justiça/RS considerou que houve
falha na informação pré-contratual e, portanto, tal limitação não era aplicável ao
consumidor afirmando: „A obrigação de bem explicar o plano de saúde é da empresa
ofertante do plano, cabendo-lhe a obrigação inafastável de bem informar seus clientes
efetivos ou potenciais de todos os termos do contrato.― Tal cláusula era também
claramente abusiva, pois permitia a mudança unilateral do conteúdo do contrato por
parte do fornecedor (Art. 51,XII do CDC); a solução do Tribunal foi, porém, mais
efetiva do que a simples declaração de nulidade uma vez que, de forma analógica,
utilizou o espírito do Art. 46 do CDC,366 que desobriga o consumidor frente às
obrigações contratuais assumidas, sem que ao consumidor tenha sido dada a adequada
oportunidade de tomar conhecimento do conteúdo verdadeiro do contrato.367
Note-se que os contratos, tanto no sistema do CDC, quanto no sistema da
Lei 9.656/98 são informação, devem ser claros e de fácil compreensão (Art. 54, §3 e §4º
do CDC), havendo dever de destaque das cláusulas limitadoras de direitos do
consumidor e dever genérico de redação clara destes contratos ou "produtos" (Art. 16,
exclusão - Conflito com propaganda de cobertura plena sem ressalva - Interpretação contra a parte que
redigiu com ambigüidade - Contratante , ademais, induzido a crer em proteção inetgral - Ação de
reembolso procedente", Rec. 5.647, Rel. Joel Geishofer, j. 9.08.99, in RJE- ano 4, vol. 13, jul/sert.
1999, p. 50-51.
363
Exemplo da força vinculatória da publicidade e prospectos entregues pode ser observado no Acórdão
da 2 a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Ap.Civ. 592022826, j. 15/04/92:
„PLANO DE SAÚDE. Não pode a seguradora negar-se à modificação da cobertura médico-hospitalar
ainda que para diminuí-la, bem como as prestações mensais devidas pelo segurado, desta prevista a
faculdade no manual por ela fornecido. Devolução das diferenças em dobro (Código do Consumidor,
Art. 42 Parágrafo único e devidamente corrigidas desde a data da alteração pretendida.―E esclarece o
Des. Ivo Gabriel da Cunha, p. 04: „O autor viu-se na contigência de pagar o exigido ou perder o
seguro avençado―...―Ora, depois do Código do Consumidor, esse tipo de posição não é mais
sustentável: o que está na publicidade obriga o contratante.―
364
Veja decisões sobre o inadimplemento da empresa OMINT no tratamento de paciente de AIDS, in: RT
7 21/113 e RT 719/123. No acórdão de 26.6.95 da 10.Câmara do TJSP (ap. 248.120-2/4) esclarece o
Relator : ...a testemunha ouvida, às fls., esclareceu que a representante da apelante foi cientificada de
fato de ser o apelado soropositivo HIV+ e que, mesmo assim, informou não haver restrição à sua
admissão, exceção feita à carência, tendo sido a representante quem fez a anotação na
proposta...Assim , na forma do Art. 47 (do CDC), as cláusulas contratuais serão interpretadas de
maneira mais favorável ao consumidor. Dessa maneira, ao aceitar a apelante a proposta de admissão
do apelado ao plano, pactuou-se que o apelado, por ser portador do HIV+ deveria respeitar a carência
contida no manual. Esta a única ressalva ao atendimento ao apelado.―(RT 721,p. 114).
365
Assim também ensina DIREITO, Carlos Alberto Menezes, O Consumidor e os planos de saúde, in
Revista Forense, vol. 328, out/dez.1994, p.314.
366
Assim também a conclusão de DIREITO, in Revista Forense, vol. 328, out/dez.1994, p.314.
367
Veja utilização semelhante do Art. 46 e Art. 47 do CDC para retirar do vínculo obrigacional cláusula
não informada convenientemente antes da assinatura do contrato, na decisão do 1º Tribunal de Alçada
de São Paulo, Rel. Juiz Lobo Júnior, de 26.7.94, in: Revista Direito do Consumidor, vol 14, p. 172s.
311
caput da lei), "em linguagem simples e precisa," descrevendo "todas as sua
características, direitos e obrigações" (§1º do Art. 16 da lei nova).
"Art. 16. Dos contratos, regulamentos ou condições
gerais dos produtos definidos no inciso I e no § 1º do art. 1º desta Lei
devem constar dispositivos que indiquem com clareza: I – as
condições de admissão;II – o início da vigência; III – os períodos de
carência para consultas, internações, procedimentos e exames; IV – as
faixas etárias e os percentuais a que alude o caput do art. 15;V – as
condições de perda da qualidade de beneficiário;VI – os eventos
cobertos e excluídos; VII – o regime, ou tipo de contratação...:VIII – a
franquia, os limites financeiros ou o percentual de co-participação do
consumidor e/ou beneficiário,... IX – os bônus, os descontos ou os
agravamentos da contraprestação pecuniária; X – a área geográfica de
abrangência; XI – os critérios de reajuste e revisão das
contraprestações pecuniárias; XII – número de registro na ANS."
Note-se que o § 1.° do Art. 16 da lei, mais do que um dever de "oportunizar
o conhecimento prévio" do Art. 46 do CDC, impõe um dever de resultado de entrega do
contrato, o que é um avanço: "A todo consumidor titular de plano individual ou familiar
será obrigatoriamente entregue, quando de sua inscrição, cópia do contrato, do
regulamento ou das condições gerais do plano ou seguro privado de assistência à
saúde, além de material explicativo que descreva, em linguagem simples e precisa,
todas as sua características, direitos e obrigações." Note-se também que o § 2.° do Art.
16 submete a "validade dos documentos a que alude o caput" "à aposição da rubrica do
consumidor ao lado de cada um dos dispositivos indicados nos incisos I a XI deste
artigo.", bem demonstrando a importância do direito do consumidor a ser informado e
do dever de informar das operadoras. A eficácia desta norma, porém, é duvidosa, como
demonstra a experiência italiana, onde as várias rubricas exigidas (e realizadas
automaticamente por estes consumidores de "primeiro mundo") nunca conseguiram
proteger efetivamente seus direitos, transformando-se em uma exigência mais formal do
que material de proteção.368
O CDC inova dispondo em seu Art. 20 que há vício do serviço quando o
serviço não é adequado aos fins que „razoavelmente deles se esperam―, quando há
disparidade entre as informações prestadas, que despertaram a confiança do
consumidor, que o levaram a contratar, quando há diminuição na qualidade e
prestabilidade do serviço tornando-os impróprios ou lhes diminuindo o valor. Trata-se
de uma novidade em relação ao Código Civil Brasileiro que só conhece o vício da coisa
e vício oculto. A nova noção de vício do serviço no CDC foi criada para facilitar a
execução de obrigações de fazer (veja Art. 84 do CDC), tentando materializar, coisificar
uma falha do fazer contratual, da prestação principal ou dos deveres anexos, que acabe
por frustrar as expectativas legítimas dos consumidores. Se há falha ou má prestação (o
responsável pela organização, por exemplo, não reembolsa todas as despesas realizadas,
não autoriza um exame que deveria ser autorizado, não informa corretamente o
consumidor, não coopera com este na realização do fim do contrato ou viola seus
direitos personalísssimos, causa prejuízo desnecessário ao seu patrimônio etc.), isto é, a
execução está incompleta ou imprópria, há inadimplemento parcial, há vício na
prestação. Em caso de vício do serviço, o consumidor poderá exigir ou a reexecução do
serviço, ou a restituição imediata da quantia paga ou o abatimento proporcional do
preço (Art. 20 do CDC).
368
Veja sobre a experiência italiana meu livro, Contratos, p.
312
Esta norma será dificultada pela lei 9.656/98, pois ,por exemplo, é difícil
saber qual é a redação atual da norma do Art. 12,II,c da lei, que impõe a "b) cobertura
de serviços de apoio diagnóstico, tratamentos e demais procedimentos ambulatoriais,
solicitados pelo médico-assistente" O detalhamento da norma tem um efeito perverso,
se o contrato detalha os "serviços de apoio" será que no consumidor foi despertada a
confiança que os serviços hospitalares (medicamentos, anestésicos etc.) estavam
cobertos? Há vício de informação ou informação demasiada e dai exclusão de
responsabilidade da operadora? Aqui há que se decidir pelo princípio: não é de se crer
que a lei nova impondo expressamente uma cobertura tenha como ratio exonerar desta
cobertura, o CDC tem como ratio o dever de informar que foi imposto ao fornecedor,
aqui operadora, logo, qualquer falha neste dever é ônus da operadora, que deveria ter
redigido de forma mais clara, apesar das "dificuldades" impostas pela lei nova a esta
redação e das inúmeras possibilidades de burla que este novo detalhamento oferece.
Quanto aos deveres anexos oriundos do princípio de boa-fé positivado no
CDC (Art. 4, III e 51, IV do CDC) é necessário frisar que estes não se restringem aos
deveres de informação, mas incluem mais dois importantes deveres: o de cuidado e o de
cooperação.
O dever de cuidado refere-se aos cuidados redobrados que os parceiros
contratuais devem ter durante a execução ou os atos preparatórios à execução contratual
para não causar dano ao parceiro contratual, por exemplo, divulgando seus segredos
profissionais revelados na fase de tratativas, ou divulgando informações sobre as posses
e a condição financeira de seu parceiro, em um contrato submetido ao regime de sigilo
bancário ou informações falsas sobre a situação financeira do consumidor, conseguidas
através de um banco de dados montado pelo fornecedor.369 Estes cuidados referem-se ao
patrimônio do parceiro contratual e a sua honra e ao seu crédito e imagem na sociedade,
bens extra-patrimoniais protegidos atualmente pelo direito, cuja violação faz nascer o
dever de indenizar (Art. 6, inciso VI do CDC). 370
Nos contratos envolvendo saúde o dever de cuidado pode voltar-se, por
exemplo, à não-divulgação de dados sobre a saúde do consumidor (pessoa portadora do
vírus HIV, por exemplo). O dever de cuidado refere-se também a um dever de
segurança intrínseco à prestação conforme a boa-fé de um contrato de consumo, assim
deve o fornecedor cuidar quando da utilização de um meios técnico (por exemplo,
instrumentos, exames, laboratórios, medicamentos, plasma etc.), que estes meios sejam
próprios e de qualidade para realizar o objeto do contrato, para executar a sua obrigação
de fazer da forma adequada. A imposição deste dever de cuidado no contrato tem por
fim preservar a integridade pessoal (moral ou física) e a integridade do patrimônio do
parceiro contratual.371
Neste sentido, é abusiva a cláusula contratual autorizando dano moral.372
Assim, é abusiva a cláusula autorizando enviar o nome do consumidor e/ou seus
garantes aos cadastros de consumidores, SPC, SERASA, CADIN etc., enquanto estiver
sendo discutido em juízo o valor da dívida e/ou a inadimplência ou o fornecimento com
vícios ou há ação consignatória. Esta é a jurisprudência do STJ reiterada, de proteção do
consumidor e de seus garantes, consumidores equiparados (Art. 2§ único e Art. 29 do
369
Os autores portugueses denominam este dever de dever de proteção, veja Menezes de Cordeiro,
António Manuel da Rocha e, Da Boa-Fé no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1984, p. 610.
370
Bom exemplo neste sentido é o Art. 42 do CDC, onde o dever de cuidado com o parceiro contratual
vem positivado, exigindo na cobrança de dívidas redobrado cuidado, lealdade e respeito com o
consumidor. A violação deste dever de cuidado é punida com a devolução em dobro do indébito. (Art.
42, parágrafo único do CDC).
371
Veja detalhes sobre o dever de cuidado, em nosso Contratos, op. cit.,p. 87s.
372
Assim também ensinam GHERSI/WEINGARTE/IPPOLITO, p. 134 e seg.
313
CDC). Veja por todos REsp. 172.854-SC: "SPC-Serasa-Proibição do registro -Medida
cautelar - Ação consignatória - Leasing. Pendente ação consignatória, onde se discute
a caracterização da inadimplência, não pode ser permitida a inscrição do nome da
devedora e seus garantes nos serviços privados de proteção ao crédito." (Min. Ruy
Rosado de Aguiar, j. 04.08.1998, , in RSTJ n. 114 (fev.1999), p. 304 e seg).
As operadoras de planos de saúde que recentemente ameaçaram enviar os
nomes dos consumidores inadimplentes para o SPC justamente para forçar o
adimplemento, devem, porém, ter em conta os danos morais possivelmente oriundos
desta conduta. Há dever de cuidado das administradoras frente aos seus consumidores.
Note-se que as normas dos Art. 15, parágrafo único e o § único do Art. 13 da nova lei
representam ao mesmo tempo a preocupação com o cumprimento dos deveres de
cuidado e cooperação. O dever de cooperação é também um importante dever anexo em
matéria de contratos envolvendo planos e seguros de saúde, uma vez que estes contratos
tendem a se protrair no tempo, sendo a execução contratual não contínua a depender da
necessidade do consumidor, isto é, da existência ou não de problemas de saúde ou
exames regulares a realizar. O dever de cooperação concentra-se na execução e impõe
um novo patamar de boa-fé e respeito quando a prestação contratual do consumidor é
necessária. O dever de informar está no Art. 12, § 2 "declaração em separado do
consumidor, de que tem conhecimento da existência e disponibilidade do plano
referência, e de que este lhe foi oferecido." Espera-se que não seja esta declaração mera
formalidade.
Ambos os contraentes devem cooperar para que o co-contraente possa
adimplir, possa realizar a sua prestação contratual, neste sentido há retrocesso no
momento em que a lei e sua regulamentação permite indiretamente cláusulas barreiras:
cláusulas que impeçam os doentes de se inscreverem, os idosos de continuarem nos
planos pela multiplicação das faixas e aumentos de até 500% do preço básico e mais de
200% da última faixa. Positivo é, de outro lado, o novo controle a ser exercido pela
ANS quanto ao reajustes de preços.373 Assim, se o consumidor deve adimplir, deve
pagar as mensalidade ou o valor do plano, deve a empresa possibilitar e não impedir ou
dificultar este pagamento, deve estabelecer horários e locais compatíveis e não exigir,
por exemplo, que uma pessoa doente venha adimplir pessoalmente etc. ou qualquer
exigência sem fundamento, cujo intento é beneficiar-se da eventual inadimplência do
consumidor em conseqüência das exigências contrárias à boa-fé.
Da mesma forma quando a operadora de assistência médica está obrigada a
adimplir não deve, por exemplo, exigir uma série de documentos ou exames não
efetivamente necessários, somente para impedir ou desmotivar o consumidor a exigir
aquele tipo de prestação contratada e integrante do objeto do contrato envolvendo
saúde.374 Agindo desta forma estará a empresa violando seu dever anexo de cooperação,
dever de boa-fé, está adimplindo mal, inadequadamente e o consumidor pode exigir
suas expectativas legítimas, face ao vício do serviço (Art. 20 e 35 do CDC).375 As
373
Sobre o tema da possibilidade de controle adminsitrativo dos reajustes veja a jurisprudência do STJ,
Resp. 199762/PE.
374
Neste sentido a decisão do TJSP, interpretando como coberto pelo contrato novo tipo de exame de
medicina nucler, face às recusas da seguradora de autorizar tal exame, pretendendo vender plano mais
dispendioso, veja in: RT 716/170, com a seguinte ementa: „Apoiar recusa de exame de ressonância
magnética solicitado por médico que faz parte do corpo clínico do convênio de assistência médicahospitalar, a que pertence o conveniado, na omissão do contrato, é, no mínimo, utilizar de sofisma
para coagir o associado a renunciar ao plano antigo e aderir aos novos e mais dispendiosos programas
de assistência médica, refletindo conduta conflituante com padrões éticos exigìveis na espécie.―
375
Veja neste sentido o parecer de Galeno Lacerda sobre contratos que permitem a utilização de médicos
no exterior e de outro lado tentam limitar este tipo de serviço submetendo-os às regras brasileiras, in:
314
exigências quanto à comunicação da internação também devem seguir este novo
patamar de boa-fé e cooperação nos contratos de consumo.376
O sistema da lei nova, especialmente as resoluções hoje existentes e a
prática dos contratos já registrados na ANS, retrocede neste tema, ao autorizar que as
operadoras exijam "requisições" e mesmo submetam o consumidor à juntas médicas,
enfim que não colaborem com o seu consumidor, que dificultem ao máximo a fruição
deste de seus direitos já adquiridos pelas contribuições anteriores, em afronta ao novo
patamar de boa-fé exigido pelo CDC. É de se sugerir que a ANS reveja sua política
neste tema, pois é altamente desgastante para os consumidores e conflitivo estas práticas
incentivadas por um pensamento apenas economicista, de que para usar "o produto" o
consumidor "deve" se submeter ao que a operadora determinar. A ratio deve ser a da
boa-fé: é expectativa legítima do consumidor, é direito do consumidor usar o "serviço"
para o qual pagou durante anos e contratou, é este o dever contratual principal da
operadora e suas exigências devem ser razoáveis, proporcionais, não ofensivas à
dignidade do consumidor, ao equilíbrio de direito e deveres do contrato, devem seguir a
conduta paradigmática de lealdade e boa-fé, enfim, não abusivas.377
Crítica a nova lei
Tratamento do tema da proteção integral à saúde e a fragmentação dos planos
O segundo tema a destacar-se é a complexidade e fragmentação do
sistema atual. Note-se que no regime antigo não eram comuns as fragmentações de
planos presentes na lei nova. A

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