Resumo: Nas lendárias obras de Homero Ilíada e Odisseia, ganham

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Resumo: Nas lendárias obras de Homero Ilíada e Odisseia, ganham
A herança Homérica em Ilíada e Odisseia: O homem
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ocidental como um reflexo de Aquiles e Ulisses
Fernanda Lais da Silva Carneiro dos Santos
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Resumo: Nas lendárias obras de Homero Ilíada e Odisseia, ganham destaque dois
personagens opostos: Aquiles e Ulisses. O primeiro apresenta atitudes artísticas/
instintivas e o outro, atitudes morais/racionais. Daremos base a essa dualidade utilizando
o livro de Stefan Krastanov, Nietzsche: Pathos Artístico Versus Consciência Moral (2011).
Nessa obra, encontraremos os termos “consciência moral” (que relacionaremos a Ulisses)
e “pathos artístico” (que relacionaremos a Aquiles). Analisaremos, a partir, disso, a
Antropologia ocidental para mostrar como ela foi influenciada pela cultura grega (cultura
homérica). Se nos debruçarmos sobre nós mesmos, veremos não só uma necessidade
estética que nos move, assim como com Aquiles, mas também essa consciência moral
que norteia nossas vidas, como com Ulisses.
Palavras-chave: Aquiles. Ulisses. Consciência Moral. Pathos Artístico. Antropologia
Ocidental.
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Orientador: Stefan Vasilev Krastanov. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos
(UFScar). Mestre em Filosofia pela Sofiiski Universitet Kliment Ohridsky (Bulgária). Licenciado em
Filosofia pela mesma instituição. Autor de “Nietzsche: Pathos Artístico versus Consciência Moral” (2010).
E-mail: <[email protected]>.
2
Acadêmica do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail:
<[email protected]>.
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1. INTRODUÇÃO
Sabe-se que o Ocidente foi grandemente influenciado pelo mundo
grego. O mundo grego, por sua vez, tem sua Antropologia moldada pelas
lendárias obras de Homero, Ilíada e Odisseia, em que ganham destaque
dois personagens opostos: Aquiles e Ulisses.
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Aquiles não é apenas protagonista da história atribuída a Homero,
mas também da cultura grega antiga. Os gregos não se contentavam em
admirar Aquiles, queriam viver como ele, tinham nele uma inspiração,
um modelo a ser seguido. A pergunta a se fazer talvez seja “modelo de
quê?”,ou melhor, “modelo de que tipo de vida?”. Aquiles escolhe viver a
vida heroica, o que implica viver uma vida curta, porém gloriosa. Significa
colocar-se sempre em perigo, desafiar-se, morrer jovem e belo para que
seja lembrado sempre dessa forma, ter seu nome eternizado.
Ulisses (tradução do nome Odisseu), é personagem de destaque de
Odisseia. Talvez não tenha tamanha importância para os gregos como
Aquiles, mas sua relevância não deve ser ignorada, principalmente se o
intuito é compará-lo com o homem ocidental. Ulisses apresenta muitas
características que não nos são estranhas. Adorno e Horkheimer veem em
Ulisses a figura a partir da qual o esclarecimento inicia a sua jornada. Parece que Homero descreve Ulisses como herói em termos mais próximos da
nossa concepção de herói do que da dos gregos, pois, diferentemente de
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Aquiles, Ulisses nega a si mesmo em prol de conservar-se. Usa sua astucia
para manter-se vivo e sacrifica seu “eu” (instintivo) em favor da moral.
Conhecendo, em parte, o perfil dos grandes personagens de Homero, será que podemos considerar Aquiles um representante do viver artística e apaixonadamente? E Ulisses representaria então a moralidade e a
racionalidade como ferramentas de conservação? A partir disso, será que
existem essas características em nós? E de que forma? Seria possível afir3
Aquiles é o principal personagem da Ilíada, a figura em torno da qual se configura a trama poética.
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Ulisses nega a si mesmo no sentido de não se entregar as suas paixões, não sucumbir a seus desejos,
conservando, assim, tanto a sua moralidade como a sua própria vida. Veremos isso mais claramente adiante
no texto, no episódio das sereias e do ciclope.
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mar que somos herdeiros de um comportamento descrito por Homero?
Com efeito, manifestam-se em nós um pouco de Aquiles e Ulisses? E, se
é verdade, de que forma isso se dá? De que forma os personagens de Homero podem ter influenciado nossas vidas? Onde estão os vestígios desses
personagens em nossa sociedade?
Este trabalho não tem a ambição (que parece demasiadamente grande) de esclarecer todas essas perguntas, mas talvez elucidá-las um pouco
mais.
2. A HERANÇA HOMÉRICA EM ILÍADA E ODISSEIA: O
HOMEM OCIDENTAL COMO UM REFLEXO DE AQUILES E ULISSES
Concordamos com a linha de pensamento de Krastanov, que aponta
duas reações opostas diante do pathos (espanto de onde supostamente se
origina a filosofia):
O pathos é o espanto e ‘o espanto – diz Heidegger – é, enquanto
pathos, a arkhé da filosofia. [...] Designa aquilo de onde algo surge
[...]’. Esse ‘algo surge’ remonta a um processo em que algo se engendra, aparece, algo vem a ser, enfim, em que algo se cria. Esse algo é a
filosofia e ela se cria nesse pathos. Aristóteles também confirma esse
significado: ’Pelo espanto (pathos por excelência) os homens chegam agora e chegaram à origem imperante do filosofar’ Até mesmo
Platão atribuiu ao pathos a origem da filosofia [...] (KRASTANOV,
2011, p. 18).
Cremos que a instância espantadora que causa o pathos é a morte, o
não existir. Pois nada assusta mais o homem do que aquilo que não tem
remédio, que ele não pode controlar aquilo sobre o qual as respostas parecem incertas: a morte. A maioria das coisas a nossa volta são produzidas
por isso. A frase de Schopenhauer extraída de O mundo como vontade e
representação revela esse significado construtivo da morte: “[...] morte é a
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musa da filosofia e o homem, com sua consciência, a cada hora se aproxima mais de sua morte [...] Principalmente, por causa disso o homem tem
filosofias e religiões” (SCHOPENHAUER, 1986, p. 75, tradução nossa).
É claro que filosofias e religiões não se dão somente por isso, mas a morte
é uma questão fundamental para estas.
Quando o homem se vê diante do seu fim, quando o homem se vê
diante desse abismo, pode reagir de duas maneiras: vivendo segundo o
pathos artístico, aceitando o devir como um jogo entre criar e destruir,
cuja arte e individualidade contribuem para ter seu nome perpetuado
para a eternidade, pela “glória” tida em vida, assim como Aquiles. Ou
pode tentar escapar desse fim, criando ou descobrindo em si mecanismos
de defesa, assim como Ulisses. Para obter essa conservação, usa a moral.
As duas reações seriam, então, a moral/racional e a reação artística,
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heroica e instintiva. Ou então, consciência moral e pathos artístico . Veremos mais detalhadamente essas definições à frente.
O objetivo deste trabalho é mostrar, a partir da dualidade acima estabelecida, que essas descrições da realidade humana e, mais especificamente, do homem ocidental, herdamos a muito tempo das epopeias homéricas, Ilíada e Odisseia. Mais particularmente, herdamos dos personagens
Aquiles e Ulisses (como modelos de conduta e de pensamento que vão se
refletir, mais tarde, na Filosofia).
Aquiles se imortaliza através do brilho eterno do herói, mestre da
arte bélica e senhor de uma coragem imensurável. A estratégia do maior
herói entre os gregos é permanecer para sempre nas memórias dos mortais
e morrer jovem, mas coberto de gloria; Ulisses, ao contrário de Aquiles,
conserva-se, por meio de astúcia capaz de negar a si mesmo em prol de
uma razão moral – voltar para casa e gozar a felicidade da vida terrena.
Segundo Krastanov (2011), esses dois protótipos opostos do homem ocidental operam tanto na vida pratica como também no pensamento teórico. Nas obras de Nietzsche (o grande conhecedor da Grécia
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Esse termo é encontrado na obra de Krastanov Nietzsche: Pathos artístico versus consciência moral. É
definido como uma pulsão criadora, que implicaria sofrimento e sentimentos impactantes.
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homérica), ele descobre essa oposição fundamental – pathos artístico
versus consciência moral: oposição esta que é possível ser estendida a toda
cultura ocidental:
[...] O pensamento de Nietzsche está repleto de oposições: arte –
moral, pathos – consciência; devir – fixidez; conceito – metáfora;
Dionísio – Sócrates, entre outros. Todavia elegemos uma oposição
fundamental, que engloba todas as outras, a saber, pathos artístico
versus consciência moral (KRASTANOV, 2011, p. 21).
O pathos artístico denota a disposição artística da vida, à qual a
atitude de Aquiles deve ser associada. “O pathos artístico, portanto designa uma disposição (inclinação) ou pulsão fundamental ‘para’ criar”
(KRASTANOV, 2011, p. 19). Nessa disposição, Krastanov vê uma nova
aposta para Filosofia, um novo rumo ou nova forma de filosofar que teria
Nietzsche como representante. Em oposição a esta, notamos a consciência moral, que retrata a vontade de conservação. Essa vontade, nas palavras
de Krastanov, estende-se a toda a tradição filosófica. Em outras palavras,
diante do inevitável fim e do espanto que a compreensão desse fim produz, a tradição ocidental elegeu, como forma de escapar da terrível transitoriedade, a consciência moral. Homero coloca como protagonista dessa
tendência o astucioso Ulisses. Em um sentido restrito, Sócrates, Platão e
Aristóteles aparecem como seus sucessores, que preparam definitivamente a consciência moral e a verdade que a garante:
Com o termo consciência moral designamos praticamente toda tradição filosófica desde Sócrates e Platão até Nietzsche. A razão disso
é que a discussão filosófica acerca da verdade está presente em todos
esses filósofos e a verdade compõe a base do sentido moral. Se a moral resume a tendência humana na busca de felicidade, é a verdade
que aparece como garantia desse alcance. Como a verdadeira felicidade deve ser eterna, eterna deve ser também a verdade que a garante. É neste sentido que ‘o homem quer somente a verdade: deseja
as consequências da verdade que são agradáveis e conservam a vida.
(KRASTANOV, 2011, p. 20).
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Como podemos ver, Krastanov associa a consciência moral a toda
a tradição filosófica socrático-platônica, que, segundo ele, busca uma
verdade como forma de se conservar, escapar de transitoriedade e assim
encontrar a felicidade. Afinal, o que mais quer o homem senão estabilidade? A crença de que o homem está no caminho certo, no caminho da
verdade lhe dá essa estabilidade e promessa de conservação. As lições do
cristianismo e da tradição socrático-platônica se dão nesse sentido. Nesse
contexto, a consciência moral é o mecanismo de alcance da eternidade, da
plenitude, da paz e da felicidade.
Essa dualidade ou oposição “pathos artístico versus consciência moral” que vigora na Antropologia ocidental é relacionada a certa complexidade humana (ocidental) que nos é acessível empiricamente.
O homem do Ocidente é ao mesmo tempo “servo e senhor” da moral e da razão e também “servo e senhor” da arte. Associo moral à razão
pelo mesmo motivo que Krastanov fala de “consciência moral”, pois moral seria, em tese, um recurso estritamente ligado à razão, quando temos
consciência, temo-la a respeito de algo. Isso significa fazer uma abstração
mental desse algo; trata-se, então, de racionalizar sobre determinado objeto. Consciência dessa forma é uma abstração da razão; se falamos em
consciência, falamos também em razão. O “pathos artístico” estaria, então,
mais relacionado à criação artística e aos instintos.
Ilíada de Aquiles e Odisseia de Ulisses
A Ilíada mostra a história da disputa entre gregos e troianos desencadeada por uma proibida paixão, com influência dos deuses, mais conhecida como guerra de Troia. Nesse poema, o personagem Aquiles, herói
semideus, filho da deusa Tétis e do mortal Peleu (rei da Ftia), ganha destaque. A esse respeito, Aubreton afirma que a obra, mais do que a guerra
de gregos e troianos, relata a cólera de Aquiles: “Não é um poema sobre a
guerra de Tróia o que nos dá o poeta, e sim um simples episódio ocorrido
no nono ano do assédio e que haveria de custar caro aos gregos: a Cólera
de Aquiles” (AUBRETON, 1956, p. 35).
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Este é exemplo de coragem, beleza, grandeza e glória. Era do tipo que
preferia uma morte gloriosa a uma vida longa e pacata. Quando Vernant
fala de Aquiles, parece referir-se a duas formas de vida:
Devo vos falar, nesta noite, da morte heroica na Grécia [...] O mais
simples é começar pelo personagem que encarna aos nossos olhos e,
antes aos olhos dos Gregos, o ideal de homem heroico e da morte
heroica: Aquiles. Nas narrativas que fazem referência a ele, não somente na Ilíada, mas nas histórias lendárias que nos foram transmitidas por outras fontes, o dilema está claramente colocado conforme
sua decisão sobre uma escolha, quase metafísica, entre duas formas
de vida que se opõem (VERNANT, 2001, p. 73).
Quando lemos o trecho de Vernant, percebemos que Aquiles não só
escolhe um tipo de vida, mas principalmente um tipo de morte: a morte
heroica. Mais adiante, Vernant afirma que Aquiles faz uma escolha entre
duas formas de vida que se opõem. É isso que esse trabalho procura demonstrar:
Aquiles teve que fazer uma escolha entre duas vidas. Ou bem uma
vida pacífica e doce, uma vida longa com uma mulher, seus filhos,
seu pai e depois da morte, no fim do caminho, como ela chega a
todos os anciãos, sobre seu leito; ele desapareceria em uma espécie
de mundo obscuro, de cabeças vestidas de noite, onde ninguém tem
nome ou individualidade, no Hades, se tornaria uma sombra inconsistente, depois mais nada, ninguém. Ou bem ao contrário, esta que
os Gregos chamam a vida breve e a bela morte, kalos thanatos. Não
há bela morte se não há vida breve. Isto significa que, no ideal heroico, um homem pode escolher querer ser sempre e em tudo o melhor
e, para provar isso, vai continuamente – esta é a moral guerreira –,
no combate, posicionar-se na linha de frente e colocar em jogo a
cada dia, em cada afrontamento, sua psykhé, ele próprio, sua própria
vida, sem hesitar, tudo [...] (VERNANT, 2001, p. 74).
Além de mostrar a forma de vida escolhida por Aquiles, encontramos, no trecho, a escolhida por Ulisses (ainda que não explicitada por
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Vernant); trata-se da primeira forma citada, em que se busca uma vida longa e voltada para a família, como veremos adiante.
Em Odisseia, temos as aventuras marítimas de Ulisses ou Odisseu
– seu nome original - (personagem também de Ilíada, companheiro de
batalha de Aquiles) tentando voltar para casa. Volta em que Ulisses ansiava por seu lar e sua esposa. Tinha um amor enorme à sua pátria, diferente
de Aquiles que lutava pelo brilho próprio. Lembramos que este último,
quando se viu afrontado, se retirou da guerra, sem remorsos, como ressalta
Aubreton (1956, p. 35). Até desembainha a espada contra seu chefe e não
lhe trata como superior em nenhum momento. O que também aparece
bem claro em Ilíada:
Bêbedo, de olhos de cão e coração de gamo, jamais teu espírito ousou armar-se para a batalha com as nossas hostes ou sair para uma
emboscada com os melhores dos aqueus. Achas que isso seria a tua
morte. Sem dúvida, é muito preferível, no vasto acampamento dos
aqueus, arrebatar a presa de guerra daquele que se atreve a contrariar-te. Um rei devorador de homens tu és [...] (HOMERO, 2001, p.
13).
Ulisses aparece como personagem astuto e com uma moralidade que
se assemelha à de hoje, ou melhor, que se assemelha à do homem ocidental
– da tradição platônico-socrática –, principalmente no que toca o apego à
sua esposa Penélope e o valor que dava aos laços matrimoniais. E demonstra isso na sua recusa diante da deusa de incomparável beleza, Calipso:
Respondeu-lhe o industrioso Ulisses: ‘Deusa venerada, não fiques
contra mim. Sei muito bem que a sensata Penélope, comparada contigo, te é inferior em corpo e beleza; ela é mortal e tu imortal e não
sujeita a envelhecer. Sem embargo, quero e anseio, voltar a casa e ver
o dia do regresso (HOMERO, 2003, p. 77).
Ulisses usava mais a razão do que a força física usava a boa retórica
e sua esperteza para escapar das situações de risco. Não se importava em
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diminuir-se para sobreviver. Como quando em um de seus apuros relatados em Odisseia, ao ser questionado pelo Ciclope a respeito de seu nome,
diz se chamar “ninguém”. Depois fura o olho, do Ciclope e quando os
outros ciclopes perguntam quem o fez, ele responde: “ninguém”, o que
salva Ulisses da morte. Isso jamais seria uma atitude de Aquiles. Quando
este matou Heitor, fez questão de arrastar e, assim, desonrar o corpo do
homem (diante do exército e da família deste).
Mas a parte na Odisseia que demonstra de forma mais intensa as
qualidades morais e principalmente racionais de Ulisses é o episódio das
sereias. O plano seria que, ao passar pelas sereias de canto sedutor, os marinheiros de Ulisses teriam que tapar os ouvidos e amarrá-lo, de forma que
ele pudesse conhecer sem sucumbir ao canto das sereias. O que se assemelharia nos dias de hoje àquele que conhece o pecado sem pecar.
Em Adorno e Horkheimer, vemos o mito de Homero como início
do processo de “esclarecimento” (que tem como objetivo livrar o homem
do medo e colocá-lo na posição de senhor), sendo Ulisses o personagem
representante deste. Este usa o “esclarecimento” para manter-se vivo e colocar-se na posição de senhor de si mesmo, podendo assim dominar suas
paixões, seus instintos e também para se defender do mundo (de tantos
perigos) à sua volta.
Talvez seja pelo sofrimento, mas principalmente pela razão, pela
necessidade em meio a tantos perigos, Ulisses se protege. Ulisses, assim
como Aquiles, luta, porém não igualmente, pois, ao contrario de Aquiles,
Ulisses luta também contra si mesmo.
Como se pode observar nos poemas de Homero, aparecem dois tipos de homem: Ulisses (representando a razão e a moralidade) e Aquiles
(valorizando a arte e o viver pelo pathos). Trazendo isso para a Filosofia,
ou melhor, para as ideias de Krastanov, Ulisses seria o representante da
“consciência moral” e Aquiles, do “pathos artístico”. Vale notar, todavia
que o homem ocidental de hoje não se encaixa em nenhum dos dois e sim
nos dois, em uma confusa mistura dos dois.
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Vivendo Ilíada e Odisséia
Em seu prefácio, Aubreton (1956) aponta que as gerações não só
leem as obras Ilíada e Odisseia, mas as vivem. Toda a tradição que recebemos dos gregos se inicia nas escritas de Homero; por isso, quando lemos
suas obras, investigamos o nosso próprio passado e, assim, também o presente e o futuro.
Além disso, encontramos em Homero a descrição da natureza do
homem e, dessa forma, sua obra se torna eterna: “É também prova de que
se trata de uma obra eterna sobre a qual o homem se inclina sempre com
interesse, porque nela se reconhece” (AUBRETON, 1956, p. 07).
O homem ocidental é uma mistura de Aquiles e Ulisses. Vivemos
em um mundo estético e moralista, completamente contraditório, que ao
mesmo tempo valoriza a razão, a beleza, as verdades absolutas e o destaque
individual. E, às vezes, a moral se confunde com a arte.
Quem nunca julgou ou ouviu alguém proferir julgamento sobre a
“arte”, ou artistas em geral, mas que não se tratou somente de um juízo estético, mas também moral? Como se o fato de um artista ser considerado
imoral desvalorizasse sua arte, ou como se a própria obra de arte, por não
se encaixar em um padrão moral, tivesse menos valor. Existe a justificativa
de que, pelo fato de o artista ser visado, tenha que dar exemplo.
Há também o contrário, como se os artistas midiáticos fossem diferenciados dos outros homens, como se estivessem fora do “nosso” mundo
moral; como se, pelo fato de serem artistas, suas obrigações éticas fossem
subtraídas e muitas vezes também diminuísse a sua obrigação com o lado
racional.
A consciência moral é mais cobrada de alguns profissionais, como
professores, médicos, políticos e líderes religiosos. Nessa fusão de moral,
razão e arte, o homem acaba por se confundir em seus juízos, de tal forma
que acaba por igualar o belo ao bom, o feio ao mal.
Hoje o mundo tem seus deuses na televisão, no rádio, nas passarelas
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e nos esportes , onde a beleza, a força, a coragem, a juventude, o talento e
o brilho individual são muito valorizados. Não é por acaso que eles são co-
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nhecidos como estrelas, divos, ídolos. Por mais que vivamos em um mundo supostamente governado por leis morais, o homem acaba por criar seus
deuses. Talvez porque o homem queira a moral do Deus onisciente (o que
denota razão), justo e bom (o que denota moral), mas sem deixar de lado
– mesmo sem perceber – o paganismo greco-romano dos deuses vorazes, apaixonados (pathos) que, ao mesmo tempo em que são criadores, são
destruidores (o que denota arte). E assim vive-se uma confusão de bom
e belo. Mas, como se deu essa relação? Como esta veio a nós? Qual é a
relação do cristianismo (que prega o Deus onisciente, justo e bom citado
acima) com esse trabalho?
Os conceitos de esclarecimento, moral e razão são muito fortes no
cristianismo, que, juntamente com a filosofia socrático-platônica, influenciou grandemente nossa cultura. Mas qual é a relação da consciência
moral do cristianismo com a de Ulisses? E a relação com o lado artístico?
Talvez Ulisses seja o prelúdio do novo tipo de homem que estava
surgindo, um homem preocupado com a moral, com a razão, com a conservação. Seria o prelúdio dos primeiros filósofos morais e as concepções
destes têm uma relação estreita com o cristianismo, pois ambos buscam a
verdade eterna e imutável, conservar o homem e aconselhá-lo moralmente.
Mas a questão mais complicada é: onde está Aquiles? Está claro que
o cristianismo moldou nossa cultura, porém não foi o cristianismo original (do Novo Testamento pregado por Jesus Cristo), mas sim o cristianismo aderido e moldado pelo imperador Constantino Magno.
Relatos históricos nos mostram que, quando Constantino supostamente se converteu, não deixou de lado o paganismo greco-romano, fundindo o arcabouço que valorizava a moral e a humildade do cristianismo
com o paganismo que valorizava o poder, a beleza, a riqueza. Exemplos
disso são que essa religião que se desenvolveu a partir da suposta conversão
de Constantino, a saber, a Igreja Católica Romana, substituiu o grupo de
homens simples que pregavam em qualquer local e que eram perseguidos
por templos grandiosos e extravagantes, chefiados por homens considerados como grandes autoridades, além de multiplicar as entidades adoradas
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(quase conseguindo tornarem-se politeístas, pois, mesmo não pregando
mais de um Deus, passaram a adorar e santificar homens, transformando
estes em quase deuses).
Mesmo com a reforma protestante, que tinha como objetivo regressar ao cristianismo anterior, não se conseguiu eliminar essa dualidade,
pelo fato da igreja católica e seu arcabouço cultural já estarem enraizados
em nossa cultura, além da tentativa de libertação do homem (da dominação sacerdotal), iniciada por Lutero, poder permitir ao homem aflorar seu
lado instintivo.
Hoje em dia, existe a exigência de que as pessoas tenham em si Aquiles e Ulisses; beleza, inteligência, retórica, poder e moralidade. Mas essa
mistura entre Aquiles e Ulisses pode levar a algo bastante negativo, como
o que acontece com grandes lideres que usam de uma falsa moralidade e
da racionalidade para elaborar discursos convincentes, mas que, na verdade, escondem objetivos egocêntricos, distorcem a moral para vangloriarem a si mesmos.
Poderíamos demonstrar com mais inúmeros exemplos como o homem é um ser estético: por sua vaidade, pela necessidade de adorar e ser
adorado, pela vontade de chamar atenção para si, de ter poder e ter seu
nome eternizado, assim como Aquiles. E é por viver em mundo de vaidades que o homem acaba por refugiar-se na moral e na razão, para tentar
ser “senhor de si”, recurso que às vezes acaba por fazer-lhe servo, o que nos
lembra Ulisses.
E nessa fusão de características de Aquiles com as de Ulisses o mundo dos homens se torna complexo, pois essa fusão é de dimensões irreconciliáveis e opostas. Como se pode ver na obra de Krastanov, quando
comenta sobre Nietzsche:
[...] Nessa perspectiva de cisão, Nietzsche coloca em duelo essas duas
dimensões de vida irreconciliáveis: a da consciência moral cuja a origem remonta ao socratismo, e a do pathos artístico que vigorava na
época trágica dos gregos (KRASTANOV, 2011, p. 29).
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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É fato que não se constroem verdades universais de metáforas, porque podem existir várias interpretações. A metáfora não é rígida como
uma lei ou um cálculo matemático, não faz postulações exatas, permite
um olhar subjetivo.
Mas, se a filosofia vem do pathos, ela não poderia então apresentar-se
sob a forma de arte? Além disso, se Ulisses é o primeiro personagem do
esclarecimento, então eis a prova de que a razão já opera nas obras homéricas. Essas obras influenciaram grandemente o mundo em que vivemos.
Um mundo de Aquiles e Ulisses. Um mundo de arte, de estética, de moral
e de razão.
Não cabe a esse trabalho decidir qual é a melhor forma de vida, pois
talvez o mundo ocidental não sobreviva sem esse contraste. Talvez essa
realidade seja inerente ao homem e Homero, ao percebê-la, narrou-a por
meio de metáforas. Ou então, podemos supor que, entre tantas outras coisas, o Ocidente foi moldado pelas metáforas de Homero. De qualquer
forma, devemos olhar para nós mesmos e descobrir a herança ou a descoberta homérica.
REFERÊNCIAS
ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1985.
AUBRETON, R. Introdução a Homero. São Paulo: Imprensa da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), 1956.
HOMERO. A ilíada. Tradução e adaptação de Fernando C. de Araújo Gomes. Rio de
Janeiro: Tecnoprint S.A. 2001.
_______. Odisséia. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nova Cultura
Ltda. 2003.
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KRASTANOV, S. V. Nietzsche: Pathos artístico versus consciência moral. São Paulo:
Paco Editorial, 2011.
SCHOPENHAUER, A. Die Welt Als Wille Und Vorstellung I. Frankfurt: Editions
Wolfgang Frhr, 1986.
VERNANT, J. P. La mort heroique chez les grecs. Tradução de Renata Cardoso
Beleboni. Paris: Editions Pleins Fleux, 2001.
Title: Inheritance Homeric in Iliad and Odyssey: Western man as a reflection of Achilles
and Odysseus.
Author: Fernanda Lais da Silva Carneiro dos Santos.
Abstract: In the legendary works of Homer Iliad and Odyssey, two opposing characters
are highlighted, Achilles and Odysseus. The first presents artistic attitudes/instinctive
and the other has moral attitudes / rational. We will base this duality using the Stefan
Krastanov book, Nietzsche: Pathos Artistic Versus Moral Conscience (2011). In this
work we find the terms, “moral conscience” (that we will relate to Odysseus) and
“pathos artistic” (which will relate to Achilles). We will analyze, from that, western
Anthropology to show how it was influenced by greek culture (homeric culture). If we
look into ourselves, we will see not only a necessity aesthetic that moves us, like Achilles,
but this moral conscience that guides our lives, like Odysseus.
Keywords: Achilles. Odysseus. Moral Consciousness. Artistic Pathos. Western
Anthropology.
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