A elegia tanática de Pedro Páramo

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A elegia tanática de Pedro Páramo
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. III
Nº 6
JANEIRO/2012
TEMPO E FILOSOFIA NO ROMANCE
PEDRO PÁRAMO, DE JUÁN RULFO
Cláudia Falluh Balduino Ferreira1
http://lattes.cnpq.br/8587078187455906
RESUMO – Considerando que a questão filosófica expressa pela composição narrativa visa às
relações e as tensões entre o tempo da narrativa e o da vida, e que várias disciplinas são convocadas a
este amplo debate, o presente artigo quer ilustrar ao modo como se dão a aliança entre os processos
mnemônicos e de anamnese e a experiência do tempo no romance do escritor mexicano Ruan Rulfo,
empregando as noções filosóficas de anamnese conforme Platão e a questão do temporal segundo
Paul Ricoeur.
PALAVRAS-CHAVE – Tempo, narrativa, filosofia.
123
ABSTRACT – Whereas the philosophical question of narrative composition aims to express the
relations and tensions between narrative time and life, and that various disciplines are called to this
broad debate, this paper tries to illustrate the alliance between the mnemonic processes and the
experience of the time in the novel of the Mexican writer Ruan Rulfo, employing the philosophical
notions according to Plato and the question of time according to Paul Ricoeur.
KEYWORDS – Time, narrative, philosophy.
1)
A crítica literária entre a autonomia e a integração.
Não existe comentário crítico que se exima de privilegiar uma lógica que remete às expansões
do fenômeno literário e suas ramificações com as outras ciências do Homem, no dizer de Roman
Jakobson (JAKOBSON, 1976).
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A autora é doutora em Teoria Literária e professora de literaturas francesa e árabe na Universidade de Brasília.
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Se estas expansões críticas são conexões, e estas, por sua vez, são veios que levam à generosa
e heterogênea fonte das hermenêuticas, é em proveito da literatura e apenas dela, que o crítico
encontra, gera e consolida o alargamento substancial de seu plano de evolução.
Acreditamos que a necessidade de adequar e combinar operações críticas devidamente aliadas
e alinhadas com as possibilidades de exame que certas obras literárias oferecem, não são senão um
privilegiado panorama que as mesmas exibem de suas quase infinitas abordagens, emanações dos
sentidos estratégicos do Texto.
As noções de autonomia e integração, relativos à abordagem crítica, constituem dois
caminhos dos estudos exegéticos. A autonomia, em si, resguarda os postulados hermenêuticos,
privilegiando as suas estruturas genéticas e organizacionais. A integração, além de enfatizar a função
crítica, sem exacerbá-la, expande seu sentido de aliança e cria a noção interdisciplinar, posto que para
o crítico moderno seja difícil restringir-se a seu objeto tradicional, sem que num momento, breve que
fosse, arriscasse a cair numa espécie de isolamento nocivo e, - senão estéril -, no mínimo monótono.
Desta maneira, todo procedimento investigativo termina por ser o catalizador de um
fenômeno maior: a criação de vertentes sociológicas, históricas, políticas, linguísticas, antropológicas,
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entre outras, que, longe de privilegiar tendências sazonais deste ou daquele discurso hermenêutico,
exploram, revelando e indicando as variantes latentes do sentido textual. O que Michael Riffaterre
denomina Les profondeurs du texte2. (RIFATERRE, 1979, p. 50)
Amparados neste raciocínio passaremos à exposição da formulação da nossa intenção de
investigação.
Se toda abordagem não pode oferecer a revelação da totalidade dos conteúdos estratégicos de
sentido de uma obra, as alianças entre alguns modos exegéticos pertencentes a linhas diferentes,
porém complementares, como a abordagem estruturalista e antropológica, por exemplo, entre tantas
outras combinações, são, contudo, eficazes na explicação da matéria literária. Assim, cumpre-nos
expor dos meios operacionais que pretendemos aplicar à análise de um fragmento do romance Pedro
Páramo, do escritor mexicano Juan Rulfo.
Este romance em 2012 ainda figura no cimo da produção literária mexicana e
indubitavelmente, da literatura mundial.
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As complexidades do texto.
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A crítica e todos os estudos científico-literários que perpassam os estonteantes mundos
contidos nas místicas cidades rulfianas de Comala e Media-Luna, (porque não há um, mas vários
pueblos textuais) experimentam inspirados por tal narrativa, a possibilidade de transcender certo
irracionalismo pedagógico e afastar a especulação crítica de redundância estéril, em favor da
observação e da observância que deve buscar o estatuto de um novo sistema narrativo que Rulfo
criou através destes páramos transcendentes.
Nossa reflexão quer aproximar da compreensão das arcadas estruturais de Pedro Páramo como
lugar onde repousam as temáticas. Estas últimas serão tratadas do ponto de vista de certos aspectos
filosóficos que se entremearão com a reflexão sobre o tempo na diegese.
Esta malha interpretativa usará alguns conceitos de tempo, desenvolvidos por Paul Ricoeur.
A riqueza da expansão interpretativa nos leva querer a consolidar um sentido que brota da
arte, encontrando-a, ainda que como algo que esteja aprisionado, como o sentido próprio da
libertação.
Ars libera, ainda que Ars poética.
Seja por que caminho crítico for.
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2)
Tempo: das estruturas gramaticais ao Universo do Trespasse.
Los muertos no tienen tiempo ni espacio.
No se mueven en el tiempo ni en el espacio.
Entonces así como aparecen, se desvanecen.
(RULFO, 1973, p. 6 e 7)3
Queremos começar nossa reflexão à maneira kantiana, expondo uma proposta radicalmente
oposta à tese que defenderemos para com ela constituir uma antinomia. E o faremos expondo este
argumento de Juán Rulfo que, por sua força lógica, anularia toda e qualquer argumentação de cunho
simbólico que pudéssemos querer demonstrar estar contida em sua narrativa.
Os mortos não têm tempo nem espaço. Não se movem no tempo tampouco no espaço. Então assim como aparecem,
desaparecem.
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Porém, preferimos colocar num primeiro momento este confronto antinômico entre
parênteses, para desenvolvermos a fórmula nominal deste item, e assim, ao final, conseguirmos
transformar o argumento refutativo do mestre de Jalisco a nosso favor.
Isso porque é preciso haver um objeto de estudo, ainda que este seja fundamentado –
particípio que também se perde nas brumas de Contla, Luvina e Talpa – em um mundo do não ser,
em um mundo onde o ser não existe. E se não há existência do ser, não há o logo cartesiano.
Cessariam aqui as extensões? Não, posto que todos os personagens de Comala pensam, apesar de não
existirem fisicamente. Pela presença dessa lógica às avessas, refratária, auto gerativa, partenogênica e
que ainda assim é lógica - colocamos o argumento rulfiano entre parênteses. E justificamos da
seguinte forma: se o autor pode trabalhar com o que não é mais, e apresenta-lo como pertencente a
um fazer artístico literário, através do qual realmente existe, o crítico, por sua vez, também pode agir
como se o que não é não existisse realmente, em favor do seu argumento. Razão da presença das
aspas, justificativa dos parênteses, sepulcros etéreos, suspensos como urnas funerárias no topo da
pirâmide asteca da hipótese narrativa de Rulfo.
Os processos de organização temporal de uma narrativa como Pedro Páramo não podem ser
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explicados por concepções narratológicas sem sentido transcendente. E a estrutura transcendente
não deve nos surpreender neste romance, ainda que o simbolismo da transcendência seja paradoxal,
de alguma maneira. As tensões entre o tempo e a narrativa são marcadas pela presença de certos
verbos designando as operações mentais das vozes que promovem a atualidade da história.
Os verbos são o elemento privilegiado num primeiro plano da escrita para expressar a
ruptura do processo temporal de narrativas outras, diferentes do gênero que Rulfo inaugura cujo
caráter espectral comove e abala as intenções críticas que possibilitam da apreciação da expansão do
tempo da narrativa. Eles promovem, num segundo plano, a penetração no “outro mundo”, no
mundo suprassensível que constitui, nesta narrativa, o reino dos mortos.
Dirigindo-nos primeiramente ao plano gramatical, em seguida, ao plano semântico das
operações que apresentaremos, o verbo será o moto que realizará a ‘passagem difícil’, o ‘fio da
navalha’ por onde caminha o desavisado leitor, irmão e cúmplice de ninguém. É através da ‘porta
estreita’ do verbo que ele é conduzido para o lado oposto sugerido pela narrativa. É quando ele cai
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do ‘outro lado do espelho’, onde habita então a verdadeira extensão e realidade temporal das
personagens.
Tais cenas que representam passagens, rupturas e percepção de um novo plano, expressam a
necessidade de transcender a camada primeira, constituída pela presença de uma ordem gramatical
que se revelará como um plano falso.
O trecho em que a personagem Suzana San Juan, uma menina que desce a um fosso escuro,
amarrada pela cintura por uma corda sustentada pelo pai que a instrui, e que o faz em busca de
objetos preciosos, pode representar a metáfora da mudança dos planos temporais que estamos
privilegiando. A menina não encontra apoio para os pés na medida em que desce, e a voz do pai
dizendo ‘desce mais, Suzana’, são micro representações intra-diegéticas do plano que representa a
descida do leitor, o penetrar na escura narrativa. Esse modo de descensus ad inferos é a trajetória do
leitor de Pedro Páramo, aquele que cria o que é lido, e não raro de quem tenta analisar, realizando
um tipo de milagre de tato, que deve ser o trabalho do crítico. E esta descida é necessária a fim de
aprender o que se quer conhecer.
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– Desça Susana, e me diga o que está vendo.
Estava pendurada naquela corda que machucava sua cintura, sangrava as suas
mãos, mas que não queria soltar: era como se fosse o único fio que a unia ao
mundo lá de fora.
– Não vejo nada, papai.
– Procura bem, Susana. Faz por encontrar alguma coisa.
E a iluminou com sua lamparina.
– Não vejo nada, papai.
– Vou descer você mais, Avisa quando chegar no chão.
Ela desceu e desceu balançando, ondulando na profundeza, com seus pés
bamboleando “não encontro onde pôr os pés”.
– Mais para baixo, Susana, Mais para baixo. Diga se esta vendo alguma coisa.
E quando encontrou apoio permaneceu ali, calada, porque emudeceu de
medo.
A lamparina circulara e a luz passava ao largo junto dela. (RULFO, 2005, p.131)
No nosso entender, este é um dos quadros mais impressionantes e arrebatadores deste
romance; cena cujo espanto desolador e tenebroso é o ponto fulcral desta narrativa. Sem querer
transportar para momentos muito distantes do romance moderno, nem comparando em termos
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genéticos, equiparamos este momento da narrativa ao Nœud, ou o Nó das tragédias clássicas. Essa
sombria especulação subterrânea, por entre a matéria decomposta a se desfazer em pó, este não
encontrar apoio entre um mundo de sombras e esfacelamento é a marca da trajetória do leitor pelos
subterrâneos da narrativa rulfiana.
Queremos reforçar que a leitura de Pedro Páramo deve abolir a polaridade que caracteriza as
narrativas tradicionais, onde há um espaço e um tempo que se correspondem entre si e que podem
estar a apenas um plano acima do tempo e espaço do leitor. Não intencionalmente, porque o leitor
ainda nada sabe. Não há intencionalidade no ato de perceber os mundos límbicos ou atemporais
desta narrativa que possam conduzir o leitor a este ou aquele cuidado. Entra-se inocente, para em
seguida ser tomado de surpresa, qual Susana San Juan, quando não precipitado no vazio surdo do
terceiro plano diegético, plano este onde os personagens dormem, rememoram, voltam das sombras
para as sombras, na tentativa de recuperar uma história.
O leitor que quiser se transportar para os planos de Comala deve fazê-lo no intervalo dos
jogos verbais, ou seja, naquilo que faz do verbo um elemento unidimensional e o separa da
materialidade do real. E essa passagem é instantânea. Daí o pasmo das descobertas deste universo
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aonde vem se instalar o leitor. Universo do trespasse.
De fato, o território onde Rulfo situa a trama se define pela ocorrência de um pretérito
imperfeito – além de insólito – e que por sua vez define a existência da história. Paul Ricoeur ressalta
que um dos sintomas que mostram a transição de um plano real para o plano fictício é a perda do
significado de “passado” do pretérito épico, e acrescenta outros, todos ligados ao jogo verbal a
transcender:
Outros sintomas se seguem: por exemplo, discordância entre advérbios temporais e
tempos verbais, que seriam inaceitáveis em asserções de realidade; poderíamos ler
num texto de ficção “Morgen war Weihnachten”; ou ainda: “And, of course, he was coming
to her party tonight. A junção de um advérbio que marque o futuro a um imperfeito
prova que o imperfeito perdeu sua função gramatical. (RICOEUR, 1984)
Assim, se a narrativa num sentido universal das produções literárias, sofre um trânsito
promovido pela leitura, em Pedro Páramo, esses aspectos não manifestos primeiramente na
existência deste espaço textual, distinguem-se das narrativas anteriores, por ser a narrativa do nãoCláudia Falluh Balduino Ferreira
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tempo, ou da ausência do tempo, ou por estar fora do tempo. A narrativa é livre de um travamento
histórico no sentido da continuidade temporal, onde não existe mais a dicotomia tempo real e tempo
da narrativa, mais um terceiro tempo. Ilustrando essa situação paradoxal obtida pela abolição dos
planos temporais, o pensamento rulfiano utiliza imagens cuja própria estrutura inclui a contradição e
consequentemente a negação dos circuitos temporais comuns.
Então alguém tocou meus ombros.
– O que é que o senhor está fazendo aqui?
– Vim procurar... – e já ia dizer quem quando parei – vim buscar meu pai.
– E por que não entra?
Entrei. Era uma casa com metade do teto derrubado. As telhas no chão. O teto no
chão. E na outra metade um homem e uma mulher.
– Vocês não estão mortos? – perguntei a eles.
E a mulher sorriu. O homem me olhou seriamente.4 (RULFO, 2005, p.40)
Ou
– Da senhora eu só vim saber pelo arrieiro que me trouxe até aqui, um tal de
Abundio.
– O bondoso Abundio. (...) Quer dizer que ele recomendou a você que viesse
me ver?
(....................................................................................................................................)
– Mas esse de quem estou falando ouvia muito bem.
– Não deve ser ele, Além do mais, Abundio já morreu. Quer dizer, não pode ser
ele. (RULFO, 2005, p.41)
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Todas essas cenas expressam de que forma transcender os planos temporais são importantes
para, através do passado, seja distinto o presente desta narrativa. É fundamental considerar os
movimentos temporais num contexto mais abrangente de planos e interferências destes entre si para
que se consuma a percepção do sentido em Pedro Páramo.
3)
Tempo e Anamnese. Os diálogos temporais entre Hypnos e Tânatos.
“A recordação é para aqueles que esqueceram”
(PLOTINO, 1970, p. 4).
4
Grifo nosso.
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No tópico antecedente lançamos mão de uma noção filosófica desenvolvida por Kant para
formular um sentido de direção e uma estruturação dos nossos argumentos referentes ao de Rulfo,
qual seja, uma narrativa versando sobre o que não há mais. Quisemos estabelecer através dos passes
antinômicos, um paralelo que viesse servir à nossa reflexão, gerando um campo de possibilidades de
estudos do fenômeno narrativo que viemos de expor.
No tópico presente, quereremos nos servir de outro veio filosófico, para a exposição de mais
um aspecto da questão temporal. Não em seus trânsitos gramaticais, uma vez que julgamos que estes
já estejam resolvidos, mas sim nas relações do tempo e memória, e mais profundamente, entre tempo
e os processos de rememoração ou de anamnese, prática constante nos personagens de Pedro
Páramo. Para isso recuaremos até Platão.
Assim, se a discussão do primeiro tópico foi um meio, esta que agora empreendemos
contribuirá para que ascendamos aos fins últimos da noção temporal.
Na Grécia antiga, havia duas valorizações da memória. A primeira delas se referia aos eventos
primordiais (cosmogonia, teogonia, genealogia) e o segundo, à memória das existências anteriores, ou
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seja, de eventos históricos e pessoais vividas pela alma em outras encarnações. Ambas estavam
ligadas à expressão temporal que derivava da formulação destes valores.
Para os gregos existia uma diferença entre memória (mneme) e recordação (anamnese). Em
Platão, que desenvolve esse conceito em Fedro, uma memória perfeita é superior à faculdade de
rememorar. E conclui: “Para aqueles que esqueceram, a rememoração é uma virtude; mas os
perfeitos não perdem jamais a visão da verdade e não têm necessidade de rememorar”. (PLATÃO,
1970, p. 250)
Ao passar para o mundo dos mortos, as almas deviam se eximir de beber da fonte do Letes,
fonte do esquecimento e do mal, para que ao reencarnarem mantivessem claras todas as verdades
que foram partes de sua existência precedente. E mais: a lembrança de suas existências anteriores
deveria capacitá-los a descobrir sua própria história, dispersa através de suas inumeráveis
encarnações, unificando-a. A anamnese é o processo de unificação de fragmentos de história sem
qualquer relação entre si, formando uma cadeia onde o começo se liga ao fim.
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Platão utilizará essa ideia referente ao esquecimento e à memória, transformando-as a fim de
articulá-las em seu sistema filosófico.
Para Platão, aprender é, no fim das contas rememorar. Entre duas existências
terrestres, a alma contempla as Ideia s: ela compartilha do conhecimento puro e
perfeito. Mas ao reencarnar, a alma bebe da fonte do Letes e esquece o
conhecimento obtido por meio da contemplação direta das ideias... (ELIADE,
1998, p.111)
Qual poderia ser a relação entre este aspecto um tanto quanto obscuro e profundo do
pensamento grego, aproveitado pelo sistema filosófico de Platão, brevemente exposta aqui, e uma
narrativa literária do século XX, portanto separada por centenas de anos destes conceitos?
Talvez a ligação seja justamente a singularidade de ambas, e a distância no tempo constitua
um elo a mais a possibilitar a união de duas originalidades.
Ora, é sabido que os extratos semânticos dos romances modernos podem estar em
alinhamento com diversas outras disciplinas. E esta foi a formulação primeira justificativa de nosso
proceder neste trabalho, qual seja: possibilitar a extensão das ramagens textuais, de forma que
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possam se encontrar com as ramificações de outras ciências do conhecimento. E a filosofia nos
agrada sobremodo. Além do mais, acreditamos que são formulações como esta platônica, as mais
adequadas entre tantas outras à verificação de obra tão singular como Pedro Páramo.
Passemos à explicação da interpenetração deste ramo da filosofia em que se trabalha o
conceito de anamnese, e a narrativa do romance citado.
Os personagens de Pedro Páramo encontram-se todos num estado ou de sono, ou de torpor.
Assim imersos, formulam seu estatuto através do processo de anamnese, que vem ao seu encontro
em favor da composição na narrativa.
No plano em que existem, estão esquecidos de uma vida, que rememoram e revivem a cada
passo, a cada fragmento.
No caso, se no mundo grego as almas reencarnadas traziam a consciência de outras vidas,
para a vida, em Pedro Páramo a anamnese se dá às avessas, ou seja: os mortos trazem para o mundo
dos mortos a recordação da vida. Mas esta recordação não é assumida enquanto tal. Suzana San Juan
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e Eduviges são personagens que não se recordam do que viveram, mas como mortos que são
repetem a vida nos espaços post mortem como um eco fátuo.
Para Platão, viver inteligentemente, ou seja, aprender e compreender o verdadeiro,
o belo e o bom, é antes de tudo recordar-se de uma existência desencarnada,
puramente espiritual. O “esquecimento desta condição não é necessariamente um
“pecado”, mas uma consequ ência do processo da reencarnação. É notável que
para ele, o “esquecimento” não faz parte integrante da morte, mas ao contrário é
relacionado com a vida, a reencarnação. É ao voltar à vida terrestre que a alma
“esquece” as ideia s. Não um esquecimento das existências anteriores – mas do
esquecimento das verdades transpessoais eternas que são as ideia s. (ELIADE,
1999, p. 111)
Em Pedro Páramo, a anamnese existe no sentido inverso.
Os personagens não recuperam a recordação dos eventos vividos e que fazem parte de sua
existência precedente, mas vivem as verdades das estruturas do vivido, que não supõem, mas repetem
automaticamente. Estão transitando inconscientes no próprio mundo de Letes, do qual não saem, no
qual penam, em colóquios bizarros, com a memória do vivido.
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Em consequ ência, o tempo é colocado entre parênteses nesta plataforma morosa e
redundante, onde não há o contrário, o dicotômico, tão próprio ao humano, mas sim o reverso, a
contra-prova, a radiografia dos ex-estados humanos, ou o inumano. A ideia exumada estendendo-se
sobre o vivido; os pensamentos são desfeitos em sombras, e chocalham como ossos sem consciência
do que foram, e sem saber que não são mais, acreditando-se cinzentamente vivos. São os habitantes
de tristes pueblos-necrópolis, onde abundam os in pace bene domit, ecoam os domit in somno pacis, os in pace
domini dormias, enfim onde ricocheteiam pelos quatro cantos de Comala e Media Luna, as fórmulas da
epigrafia funerária.
Mas os personagens não conseguem ouvir.
Estão todos sob o domínio dos gêmeos Hypnos e Tânatos, e não raro buscam o sono em
vários fragmentos.
Sono que muitas vezes é interrompido pelos sons e pelos rumores.
Sons que repercutem no intramuros da necrópole as águas de libação dos murmúrios rituais.
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Conclusão
O contraste entre a eternidade e o tempo não se limita nem se circunscreve. Ele é o motor
das tensões narrativas, sobretudo naquelas de tipo shandiano, onde o herói ainda não nasceu, mas já
é uma voz narrativa, ou nas de tipo machadiano, - às quais se alinham a esta narrativa rulfiana em
análise -, em que os heróis são uma voz póstuma.
Nesta narrativa em que os personagens estão estabelecidos no horizonte da eternidade
estável, as vozes se expandem com toda fluidez seus efeitos sobre a narrativa, aproximando-se no
espaço do não-ser, ou da dissemblance. Está assim marcada a diferença ontológica que separa as vozes
que se acreditam vivas, estando, porém, mortas, do estatuto desejado. Como seres de certa forma
transcendentes porque neles está ausente a experiência material que os animaria, os personagens se
instalam em um presente sem fim, perpétuo em relação à existência de seres que desejariam ser, cuja
contingência se manifesta nas vicissitudes do tempo, tempo que é o suporte de uma elegia onde a
narrativa se inclui.
É ainda neste mesmo horizonte de eternidade que todas as expressões vocais dos
personagens ganham sentido, indiferentes a esta mutação que afeta seu estatuto ontológico, tomando
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posse tanto dos recursos metafóricos (de extensão) e metonímicos (de contração) na confecção de
um texto em que as categorias temporais se incumbem de torna-los “seres” que vivem a
temporalidade como “agonia”, governados por uma sombria opacidade, e por uma obscuridade só
resolvida pelo estatuto que lhes é conferido pela voz, e na narrativa.
A temporalidade articulada no texto de Pedro Páramo, aliado às noções filosóficas expostas
consistem, portanto, no único recurso capaz de conceder aos manes-personagens uma experiência vocal
através da eternidade do verbo, capacitando-os a recuperar uma autonomia que é própria do
presente, onde desejariam estar e onde esta narrativa faz, realmente, um eco.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ELIADE, Mircea. Mito e realidade, São Paulo: Perspectiva, 1998.
RICOEUR, Paul. Temps et Récit. La configuration dans le récit de fiction, Tome II, Collection Essais, Paris :
Seuil, 1983.
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RIFATTERRE, Michael. La production du texte, Paris : Seuil, 1979, p. 1984.
ROMAN, Jakobson. “A Lingu ística em suas relações com outras ciências”, in: Linguística. Poética.
Cinema. Roman Jakobson no Brasil, Tradução de J. Guinsburg, São Paulo: Perspectiva, 2003.
RULFO, Juan. Pedro Páramo, Rio de Janeiro : Rio de Janeiro, 2005. Tradução de Eric Nepomuceno.
PLATÃO. Fedro, São Paulo: Ediouro, 1970, p. 250.
PLOTINO. Ennéades. Paris: Belles Lettres, Vol. IV, 1933. Tradução de Émile Bréhier.
Siempre! La cultura en México, número. 1,051 (15-VIII-1973), pp. VI-VII. Entrevista a Joseph
Sommers.
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