A ARCA DE MORIN Uma homenagem ao autor de

Transcrição

A ARCA DE MORIN Uma homenagem ao autor de
A ARCA DE MORIN
Uma homenagem ao autor de
“O Método”
Antar Sushma - Carlos Roberto da Silva - Claudia Bandeira
- Claudia Dansa – Daniel Louzada - Daniela Ungarelli - Eliza
Bruziguessi - Fabio Tomasello – Guadalupe Silva – Irineu
Tamaio –Josefina Reis de Moraes – Josiane Aguiar de
Souza – Juliana Borges dos Santos – Juliana Cavalcante –
Lais Mourão Sá (org.) - Leandra Fatorelli – Lila Rosa
Sardinha Ferro – Lila Rosa Sardinha Ferro – Lívia Penna
Firme Rodrigues – Luiz Mourão – Maria Amélia Costa –
Marilia Teixeira – Marina Pessoa – Mario Rique Fernandes –
Renato Bastos João - Rosana Gonçalves da Silva – Sonia
Duarte - Valéria da Cruz Viana Labrea (org.)
Brasília – 2008
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Sá, Lais Mourão; Labrea, Valéria Viana (orgs.)
[email protected] / [email protected]
A Arca de Morin./Laís Mourão Sá; Valéria Viana Labrea (orgs.)
Brasília, 2008.
128 p.
1. Edgar Morin 2. Saber complexo 3. Educação ambiental I Universidade de
Brasília II CDS.
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A arca de Morin
Nas águas do dilúvio
que trans-lavam disjunções e dicotomias,
na transição de eras e de paradigmas,
lá vai a arca com seus passageiros,
perplexos e encantados.
Guiada pela lúcida e lúdica mente de seu autor,
a arca de Morin é uma aventura coletiva,
onde as inquietações se aprofundam
e os desejos mais impossíveis são acolhidos.
Da intimidade e da comunhão das idéias
surge a gratidão e a vontade de testemunhar
a profunda transformação em nossos espíritos-cérebros
ao vivenciar essa jornada.
Edgar Morin, nós agradecemos
pela generosidade de dedicar vinte anos de sua vida
a tecer fragmentos e diálogos,
para tramar a bela arquitetura do método da complexidade.
Somos gratos pela poesia,
pela fé no espírito científico, pela reverência ao mistério,
e pela desconstrução de nossas certezas.
Agradecemos de coração
pelas novas conexões entre neurônios,
pelo sentido cíclico e pelos turbilhões
que desde então habitam nossas existências,
e pelas novas estratégias de pensamento e ação,
barcos-pontes para atravessar as águas
desta arriscada travessia de nossa humanidade.
Lais Mourão Sá
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A arca de Morin
Sonia Duarte
Personagens: Anta – gato – formiga - vaga-lume - escorpião
– coruja - mico-leão- - beija-flor - pavão – galo – besouro lhama.
Naquela manhã de sábado os bichos se reuniram debaixo
do grande pé de jatobá. A conversa estava animada e todos
traziam notícias. Falavam de seus ninhos, seus filhotes, suas
colheitas e outros assuntos que eram comuns naquela
região. De repente, perceberam que o sol já estava
posicionado no céu de forma a produzir grandes sombras
num convite gostoso para que todos sentassem em círculo.
Antes preciso esclarecer que estes bichos em número de
doze eram todos moradores da região e formavam uma
irmandade que se reunia sempre para discutir questões de
ordem econômica, social, filosófica ou só pelo puro prazer de
estarem juntos. Naquele dia o assunto da reunião era
complexo. Iriam discutir a natureza da natureza. Era preciso
estabelecer um método de trabalho.
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A primeira proposta foi que se escolhesse um líder para
organizar o processo de discussão. Foi aí que a formiga se
manifestou com clareza e autoridade:
- Senhores se o nosso desejo é entender a natureza da
natureza na qual estamos inseridos nada melhor do que a
manifestação espontânea das nossas opiniões. Vejam. Há
um princípio organizador na natureza. Nas minhas
observações já aprendi que esse princípio nasce dos
encontros aleatórios. Como se fosse uma cópula da
desordem com a ordem. Penso que poderíamos criar uma
situação mais de prazer e menos de controle para o nosso
encontro, vamos deixar que todos se manifestem de acordo
com o seu desejo e a sua necessidade. O que acham?
Parece que todos entenderam a fala da formiga. O
escorpião, bicho profundo, foi o primeiro a manifestar-se com
cuidado:
- Vejam senhores, a reflexão que quero fazer é sobre a
ordem. A ordem natural das coisas, a ordem que criamos, a
ordem do universo.
Ao ouvir isso o mico-leão adiantou-se e num pinote só foi
logo dizendo:
- Espera aí, amigo scorpius. A ordem já não é mais
soberana. Vou dar um exemplo. Estamos todos aqui
aparentemente organizados. Cada um ocupando o seu
espaço. Aí cada um vai se expressando deixando fluir
sentimentos, idéias, opiniões, vai se misturando tudo. Sabe o
que pode resultar disso? Pergunta o macaco exibindo uma
performance pedagógica.
- Uma desarrumação da ordem, afirma com calma a coruja.
- Isso é desordem! Exclama o besouro com um certo receio.
- Sim. É desordem. Continua a coruja.
- Mas na desordem a gente não pode se entender, reafirmou
o besouro. Penso que sem ordem não pode haver
comunicação.
A coruja então pôs-se a falar:
- A desordem senhores, está em ação em toda parte. Ela
precede a ordem. Numa catástrofe, por exemplo,a desordem
e a ordem nascem quase em conjunto. Desde os primeiros
momentos do universo é real a conjunção da desordem com
a ordem. Todo o devir está marcado pela desordem.
Rupturas e desvios são condições para gerar nascimentos.
Parece que todos buscavam alojar-se internamente nesta
desorganização e um grande silêncio se fez.
A coruja respirou fundo, como se quisesse lentamente
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aprender com as próprias palavras. Foi dizendo:
- Bem, se uma colisão, uma explosão ou qualquer outro
efeito do fogo, por exemplo, pode dispersar ou acabar com
uma realidade ou com uma coisa que existe a gente pode
perceber que no lugar dessa coisa ou dessa realidade nasce
outra coisa ou outra realidade. Entendo que no mundo tudo
que forma transforma. Vocês podem entender isso?
Todo mundo da roda já estava começando a gostar do
assunto e já podia se ver expressões de encantamento. Era
perceptível a natureza mágica do tema.
O mico-leão então se dirigiu ao vaga-lume:
- Será que foi numa dessas explosões que você herdou duas
faíscas nas antenas?
- Pode ser, pode ser, responde o vaga-lume.
A coruja então retomou o assunto com precisão:
- Daqui adiante vamos entender o universo como um
pluriuniverso. Vejam. Este círculo composto por cada um de
nós constitui um universo.
- Não seria um universinho? Perguntou o beija-flor. Nos vejo
pequenos demais dentro do grande universo.
- Mas eu afirmo. Responde a coruja. Somos um universo
porque a natureza do nosso grupo é composta por cada um
de nós que traz para a unidade do círculo a sua natureza
individual que está conectada com milhares de outras
naturezas associações e sistemas.
- Espera aí gente. Devagar, pede a anta. Se eu na nossa
individualidade sou universo, se nossa roda é um universo,
cadê o universo grande aquele que a gente chama de
universo mesmo?
- Pois é. Falou a coruja. O universo grande que a gente
conhece como universo está espalhado. Ele é acêntrico, ou
seja, não possui um centro. É policêntrico. Nada é o centro
do universo. Ele começa e acaba em todos os lugares. Em
todas as coisas está em todo momento em parto, em
gênesis, em decomposição.
- Isso quer dizer que o nosso mundo organizado é um
arquipélago de sistemas no oceano da desordem, disse o
galo que até agora estava em silencio.
- Dona coruja, disse o gato, cerimonioso, vocês falaram em
sistemas. Posso entender melhor sobre isso?
- Alguém quer responder ao companheiro gato? Perguntou a
coruja.
- Eu falo. Disse o pavão abrindo-se em leque e exibindo
suas fabulosas penas coloridas.
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Falou devagar,
- Um sistema é uma totalidade organizada, feito de
elementos solidários que só podem definir uns em relação
aos outros em função do lugar que ocupam nesta totalidade.
- Ah ta! Disse o gato ainda meio pensativo. Mas, os sistemas
já nascem prontos?
- Não, não, disse o pavão. Nada no universo nasce pronto. O
sistema é um todo que se organiza ao mesmo tempo em que
seus elementos se transformam.
- Estou aqui pensando numa coisa. E só de pensar me coço
todinho de agitação. Se o sistema é uma organização ele
não é também uma desorganização ?
- A desorganização, respondeu o galo, não é a organização
em sentido inverso. Sabe por quê? O universo é um
aprendiz de sistemas. E nele nada é estável nem organizado
sempre, nem desorganizado o tempo todo. Quando um
sistema interage com outro sistema, dentro ou fora de si
mesmo, gera uma metamorfose na sua estrutura e então
outros mundos, outros seres ou idéias são gerados para
encontrar ou colidir novamente com outros mundos seres ou
idéias. Numa transformação eterna.
Então uma vozinha miúda surgiu novamente no centro da
roda. Era o besouro surpreso:
- Meu Deus, então o eterno, o para sempre e o infinito se
acabam? Eta pessoal. Espera ai de novo. Assim eu não
agüento. Vocês vão querer mexer até com o para sempre
que estava quieto dentro de mim? Se é assim como vai ficar
o hic et nunc?
- Fica aqui e agora. Brincou o besouro.
- Vocês estão complicando demais as coisas gente!
Resmungou ainda a anta.
- Complexificando, amigo. Complexificando! Falou a formiga
vaidosa do novo verbo.
- Vamos fazer uma pausa,sugeriu a coruja - já esta saindo
fumacinha.
Assim fizeram. Respiraram, se alongaram. Deram
cambalhotas. Mas não se desligaram das inúmeras
perguntas que surgiam. Parece que naquela mata abriram o
portal para o mundo complexo.
E voltaram então à conversa anterior.
- Quero fazer uma pergunta, pede o beija-flor. Se no
universo a desarrumação das coisas como a ordem das
coisas acontecem dentro de um processo natural como
podemos nós seres transitórios e mortais encontrar o
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caminho certo?
O escorpião com lucidez foi respondendo:
- Peço licença para explicar o que eu penso disso. O
caminho certo não tem ponto de partida nem de chegada.
Ele acontece. Ele é a possibilidade real que se apresenta a
toda hora. E a natureza sempre apresenta emergências para
surpreender a ordem pretendida.
- Penso que é muito difícil dentro uma sociedade como a
nossa, falou o galo, a gente ter discernimento, lucidez, e
capacidade para entender tanta coisa que acontece aqui. O
nosso sistema é formado por inúmeras espécies diferentes.
Todas atuando ao mesmo tempo produzindo interações e
criando novas ordens.
A coruja sempre atenta fala com delicadeza:
- Nós estamos penetrando no mundo da complexidade, a
velha ordem que nos regia está vulnerável. A
desorganização deve ser entendida como natural e benéfica
para nossa comunidade. Eu entendo que explicações
reducionistas de um sistema complexo simplifica a realidade
do sistema. E só é possível compreender o que é complexo
pensando na totalidade.
Foi aí que a lhama, a ilustre convidada peruana envolvida no
seu manto colorido foi falando num dialeto inca:
- O conhecimento do céu não cai do céu como o
conhecimento da terra não brota da terra. Estamos em
permanente produção de si. Assim como estamos em
permanente assimilação do outro, precisamos transitar nos
conhecimentos que são gerados dentro e fora do nosso
sistema. O conhecimento do universo. Penso que devemos
cuidar dos grãos da mesma forma que olhamos as estrelas.
Somente experimentando e desvendando os segredos da
terra podemos alcançar os mistérios do céu, pois o que é em
cima assim o é embaixo.
Silêncio profundo se fez na roda. Todos pareciam meditar.
Por fim, disse o vaga-lume ascendendo suas lanterninhas
mágicas:
- Qual a diferença entre o homem e as estrelas?
- Ontológica, companheiro! Ontológica! A estrela é um ser
máquina totalmente ativo, o que a diferencia dos seres vivos
da terra é que ela não se alimenta do seu meio. Seu
alimento é a substância do seu próprio ser, vem sempre do
seu interior. A estrela come seu capital ontológico até o
esgotamento e os homens, como qualquer ser vivo da terra,
são todos funcional e ecologicamente dependentes.
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A reunião se aproximava do fim, foi aí que o pavão fez uma
proposta:
- Tenho pensado muito em fazer um registro do nosso
trabalho alguma forma de documentar nossos estudos.
- Bem. Disse o beija-flor. Por que então não criamos nossa
carta de princípios? Para afigurar uma melhor qualidade de
vida a todo o nosso ecossistema. O que acham?
Ninguém se manifestou contrário à proposta, que aliás foi
bem recebida por todos. Criou-se então algumas estratégias
de divisão do grupo para realizar este trabalho. Uma das
sugestões do escorpião foi que os grupos fossem
constituídos com a maior diversidade possível de espécies
possível. E assim foi feito. Naquele dia a reunião se
estendeu até mais tarde e os bichos conseguiram em curto
tempo elaborar os seguintes princípios:
1. Compreender a natureza da nossa natureza.
2. Reconhecer o sentido de pertencimento de cada espécie
ao nosso meio ambiente.
3. Aceitar uma organização com base nas diferenças para
gerar criatividade e interações entre as espécies.
4. Identificar cada ser ou indivíduo que pertence ao nosso
ecossistema como um ser que possui identidade própria
e ao mesmo tempo possui a identidade do seu sistema.
5. Permitir transformações na organização da nossa
sociedade para que haja permanência do nosso sistema.
No momento em que iriam definir o sexto e o sétimo
princípio a formiga argumentou que o próximo encontro teria
como pauta de discussão a vida da vida. Nesse caso seria
prudente aprimorar mais a discussão para que os outros
princípios pudessem nascer das apropriações deste novo
conhecimento. E assim aconteceu. A reunião se desfez.
Antes, porém, legitimou-se entre o grupo que esta era uma
carta aberta, passível de ajustes e mudanças no conteúdo
de qualquer item. Acontecimentos ou novos paradigmas
exigem outra forma de percepção ou um novo olhar para as
questões de sobrevivência ou de qualidade de vida para a
comunidade.
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Como se fosse a introdução
"Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidades eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora."
Álvaro de Campos
Morin me surpreendeu tanto quanto Pessoa. Quando
conheci a obra de Fernando Pessoa eu desentendi. Como
um poeta do inicio do século XX, lá de Lisboa, conhecia e
revelava ao mundo os meus sentimentos mais íntimos?
Sentimentos não-verbalizados, desorganizados, foram
explicitados nos versos de Pessoa e eu me vi exposta, nua
em frente ao poeta. Passei muitas noites lendo avidamente
sua poesia e tentando compreender como um era vários. Um
ser fragmentado, seus heterônimos, cada um com
personalidade e vida distintas, com uma escrita e inspiração
particular, me fizeram acreditar que Pessoa era ligeiramente
esquizofrênico. Um louco, um poeta. Um poeta louco, que
vivia intensamente ensimesmado em seus mundos e que no
mundo ganha a vida traduzindo o texto de outros.
"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
Álvaro de Campos
Pessoa me influenciou pelo seu revés. Não sou poeta. Leio
poesia. E foi pela leitura da poesia que consegui uma brecha
para sair de mim mesma e me aventurar pelo mundo.
Segurando a mão de Pessoa eu armazenei coragem criativa
para ultrapassar alguns limites e lugares-comuns que a vida
teimava em jogar pra cima de mim. Acredito e repito seus
versos como um mantra que me acolhe e me fortalece:
“Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim como em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.”
Ricardo Reis
Nessa construção pesava muito o desejo de saber. Para
compreender criei caixinhas onde guardava e zelava os
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meus saberes, cada um no seu quadrado, mas a vida
provoca mudanças o tempo todo e da literatura fui para a
análise do discurso. E ai eu comecei a desconfiar que as
caixinhas não dão conta do real, pois o sujeito no seu ser no
mundo é afetado pela história, pela ideologia e pelo
inconsciente. A percepção que a AD me proporcionou me
permitiu transitar em outros terrenos e me vi educadora
ambiental popular. Reforço o popular, porque meu
compromisso é com a escola pública e os espaços
formativos
de inclusão dos segmentos sociais
desfavorecidos, é esse o meu chão. O ambiental eu ostento
com moderação, desejando não precisar fazê-lo, pois
entendo que o ambiente como questão epistemológica é
estruturante e a educação - sem nenhum qualificador deveria incorporar essa dimensão. Enquanto isso não
ocorre, eu adjetivo o “educador” para marcar uma posição e
explicitar essa ausência. Acredito que Pessoa tenha
incorporado a dimensão ambiental e da alteridade radical
incontornável na sua escrita. Não por acaso Alberto Caeiro,
lisboeta semi-analfabeto que foge para o campo é o mestre
de todos heterônimos – Álvaro de Campos um engenheiro,
Ricardo Reis um médico erudito, Bernardo de Campos um
guardador de livros - e do próprio Pessoa.
“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é.
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem por que ama, nem o que é amar...”
Alberto Caeiro
Cheguei ao CDS distraída, curiosa e só ouvia falar da tal
complexidade. De repente, tudo era complexo. E eu sem
entender nada desse dialeto. Pelas bordas, fui lendo Morin e
balançou as estrutura: cadê as caixinhas?
Para entender melhor, fui ler Morin à sombra das árvores
com duas amigas que também estão nesse livro – Claudia
Bandeira e Dani Ungarelli – e passamos manhãs lendo O
Método e reelaborando a vida e os saberes. Em seguida
fomos para a aula da Laís. E ali, na discussão e na leitura,
reelaborei meu conceito de sujeito e conseqüentemente,
minha produção acadêmica. Assim hoje assumo que o
sujeito é afetado pela história, ideologia e inconsciente. Mas
não só isso: o sujeito faz parte de um sistema complexo
cujos termos – espécie – indivíduo – sociedade – são ao
mesmo tempo concorrentes e complementares. Unitas
multiplex mostra que o sujeito não é fragmentado em
diferentes posições, mas complexo, com várias dimensões
em dispersão. É um sujeito que é levado pelo desejo, pela
pulsão, pelo sentir/pensar, contraditório, práxico, um vivo
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que transforma e é transformada na sua relação com o
Outro.
“Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.”
Fernando Pessoa
E assim seguimos os três alegremente de mãos dadas,
desconfiando das certezas.
Essa é a uma pequena narrativa do meu encontro com Morin
e como afetou minha vida e meu trabalho. Este livro narra
encontros e caminhos trilhados juntos. A “Arca” remete a
multirreferencialidade, mimetizada nas ilustrações onde a
“Coruja” encarna Morin e os outros animais são uma
metáfora da diversidade de lugares e vivências dos autores.
Os textos dessa compilação têm uma história comum. Os
autores são estudantes oriundos de diferentes campos do
conhecimento e todos se encontraram na disciplina “O
Método da Complexidade”, que, entre 2003 e 2008, foi
ministrada pela profª Lais Mourão Sá da Universidade de
Brasília. Todos fomos seduzidos e surpreendidos por Morin
e ninguém saiu incólume deste encontro.
Fomos todos influenciados pela leitura compreensiva de
Lais, instigados a incorporar a complexidade em nosso fazer
e a questionar a fragmentação dos saberes. Um dos
resultados é esse livro, os outros resultados estão no
mundo, dispersos no tempo e no espaço. Em um universo
de cerca de 200 textos, selecionamos 26. Eles representam
um percurso pessoal e um percurso epistemológico, são a
resposta a um desafio: como a leitura de Morin afetou você?
Essa resposta é sempre subjetiva e tem relação com os
caminhos de cada um. Temos aqui sujeitos que assumiram
um novo léxico e estão criando um novo discurso. Esse
discurso se apresenta em vários textos que precariamente
unimos em 3 espaços.
Em Lirismo e Subjetividade temos os textos que criam uma
poética do Método. Aqui temos o cuidado com as palavras,
esteticamente trabalhadas para dar conta da densidade com
que Morin desconstrói e reconstrói o sujeito e seus saberes.
Nesse mote temos a poesia da Lais Mourão Sá que dialoga
com o teatro de Sonia Duarte que dão o tom dessa
coletânia, A Arca de Morin.Mário Rique Fernandes e
Josefina Reis de Moraes expressam liricamente o encontro
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com Morin. Lila Rosa Sardinha Ferro, Luiz E. B. Mourão Sá,
Antar Sushma, Rosana Gonçalves da Silva, Cláudia Valéria
de Assis Dansa, Guadalupe Silva, Marília Magalhães
Teixeira e Claudia Bandeira organizam uma narrativa sobre
a mudança inevitável que ocorre no encontro de
subjetividades desejantes e as metáforas apontam para o
horizonte utópico redescoberto.
Lendo Morin revela a surpresa com o reconhecimento da
existência de um lugar de pertença. Sujeitos que intuíam que
saberes enquadrados, dispersos pelas disciplinas tinham um
local de encontro. Esse local pode ser construído a partir dO
Método. Leandra Fatorelli, Marina Margarido Pessoa, Maria
Amélia Costa, Juliana Farias Cavalcante, Daniel Louzada da
Silva, Daniella Buchmann Ungarelli, Eliza Pereira
Bruziguessi e Irineu Tamaio narram sua leitura particular da
obra de Morin e o novo olhar que ela suscitou.
O Saber Complexo é o espaço onde os autores incorporam
a complexidade no seu trabalho acadêmico. Destacamos a
grande heterogeneidade de disciplinas que convergem nos
escritos de Josiane do Socorro Aguiar de Souza, Lila Rosa
Sardinha Ferro, Lívia Penna Firme Rodrigues, Renato
Bastos João, Lais Mourão Sá, Fábio Tomasello e Carlos
Roberto da Silva. Morin dialoga com os mais variados temas
e sujeitos desde populações ribeirinhas, indígenas do Xingu,
adolescentes, nutrição, corporeidade, educação ambiental,
transdisciplinaridade, economia. Os autores conseguem
incorporar a Teoria da Complexidade em seus trabalhos em
diferentes áreas do conhecimento.
Desejamos que esses textos continuem o diálogo imaginário
com Morin e suscitem novas questões, outros espaços
cognitivos e que redescubramos o encantamento e a poesia.
“A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
Basta existir para se ser completo.”
Alberto Caeiro
Boa leitura!
Valéria Viana Labrea
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LIRISMO E SUBJETIVIDADE
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Andando pela estrada
encontrei a complexidade
no meio da encruzilhada.
Era meio dia, meio madrugada.
E juntos saímos andando de mãos dadas.
Ela me disse: não tenha medo,
iremos até onde alcance o desejo,
até onde venha a coragem.
Ela me disse: a verdadeira viagem
não se simplifica à paisagem.
A verdadeira viagem, pra se enxergar,
está na natureza do seu olhar.
E juntos saímos a voar.
O universo dentro de si
de cada ser aparecia.
Do átomo às estrelas – Sóis
Da terra à Brasília – Paióis
Dei-me conta de que o destino
já não mais contava.
Infinitas bonecas russas
apareciam des-pétala-das.
O mundo rodava – roda viva.
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Pequena esfera rolante – roda pião.
Dei-me conta de que estava
às voltas de meu coração!
Começo a pensar-sentir por fim
[nessa viagem]
o que dizia a complexidade num sonho pra mim:
universo tão frágil como casca de amendoim
misteriosa flor de jasmim...
Hei de cantá-lo e reverenciá-lo.
Muito mais que pensá-lo.
Mario Rique Fernandes, 04 de maio de 2008
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A complexidade da natureza de minha natureza
Sou, na medida em que nunca perco minha capacidade de
sempre mais aprender.
Sou um ser aprendente, que se nutre da incompletude de
meu ser.
Sou uma pessoa, cujo maior medo é o de ser medrosa.
Sou um ser, cujas certezas estão nas incertezas do meu
existir,
ao procura distanciar-me do paradigma dual causa-efeito;
certo-errado,
para abrir caminhos em direção a um oceano de
possibilidades transformadoras
Sou um ser que encara o erro como o caminho para se
chegar ao acerto.
Não renego a desordem, pois ela faz parte do anel recursivo;
Ela está na gênese e por ela chego à ordem mediada pela
riqueza das interações
comigo mesma, com o outro e com o ambiente a que
pertenço.
Ações, interações e retroações preenchem o meu viver com
sentido,
no qual a desordem, a ordem e a organização agem e
retroagem sucessivamente.
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Sou única na singularidade de meu ser: ora sapiens, ora
demens.
Sou possuidora de um imaginário marcado pela pulsão de
vida e de morte,
fios que ligam e religam-me à totalidade do cosmos em suas
mais elevadas sabedorias.
Sou múltipla, pois reconheço a pluralidade da diversidade
que me cerca;
Sou gente, ente que procura abraçar o diferente, abrindo
espaço ao terceiro incluído;
Sou nós na arte de pertencer à comunidade planetária
habitante de nossa casa comum.
Sou a gênese, o genérico continuamente a gerar energias
Circulação, generatividade de novas vidas a partir da morte:
é a ciranda do anel a deslizar na desordem, interações,
ordem, organizações, desordem...
cujas idéias-chave estão na recorrência, na retroação para
uma transformação espiralada.
Meu olhar complexo acolhe o desconhecido, o mistério; o
imaginário e o simbólico
E faz-me soltar da tentativa de só perceber o real e a
racionalização que fragmenta.
A complexidade confere o poder de considerar-me um ser
ecodependente:
portador de dupla identidade – a minha própria e a do
pertencimento ao meio ambiente
A complexidade abre-me para a subjetividade do
desconhecido, do mistério;
ensina-me a ser menos reducionista, determinista, a ousar e
até de poetisa brincar.
Regula minha sensibilidade para perceber o tempo como
irreversível, cíclico, circular
vivido em sua maior expressão da vida: o AMOR, regulador
de minha autopoiesis.
SER OU NÃO SER na complexidade, EIS A QUESTÃO.
Josefina Reis de Moraes, maio 2008
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CASA MUTANTE
Lila Rosa Sardinha Ferro
Novembro de 2003
Um dia de sol, abóbora florindo ao longo da trilha. Estou indo
para casa que fica ali, atrás da duna. Uma casinha pequena
de adobe, pintada de cal. Tudo um pouco fora do lugar.
Do alto da duna, uma cama some e aparece atrás da cortina
que balança ao vento, uma cadeira, uma porta... vista de
cima, a casa parece estar vazia.
Os ladrilhos cozidos transformam-se num chão de barro
batido, varrido e aguado de vez em quando. Olhando de fora
ou de dentro, um barrado de palha emoldura o horizonte. Na
sala um tamborete, uma cadeira de pano, a porta da frente,
os degraus de pedra e a rua.
Aquela casinha vai crescendo e vira um casarão de tijolos
aparentes. Por fora é da fauna local. Lá dentro salões
iluminados e nus, espelhos de pedra no chão. Passando os
olhos nas altas paredes, infinitas seriam as fileiras de tijolo
rodando até o teto em espiral, fazendo bico de torre. É tão
grande que tudo o que temos cabe num único cômodo. O
resto da casa fica para os nossos passeios.
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Descobri um poço dentro da casa. Não é um estreito canal, é
um caminho de rios e riachos profundos, correndo em todas
as direções. Uma saída secreta da casa para certas
ocasiões.
O pé de maracujá se esparrama pelas mil grades e ameaça
os vizinhos com seus cachos de flor. A boca aberta da casa
engole vento, poeira e tempestade. Gosto dos seus
labirintos, portas e janelas em cantos inúteis.
Casa, casinha, casarão. Casa abandonada, paredes caídas,
restos de vida nos rastros do chão. No oco da velha árvore
vão morar minhas fantasias. Meus vizinhos passarinhos,
meus temores passarão. Lamparina na memória ilumina o
matagal, mil histórias esquecidas pelos cantos do quintal.
Janelas de vento, telhados de água, paredes de luz farfalham
no vento mansinho. Ninho de palha. Cantiga de rede. A
nossa casa tem olho, boca, nariz e ouvidos. Entradas e
saídas de todo tipo, macro micro buraquinho, por onde o
planeta nos espia.
Tapiri, girassol. Casa andarilha de nômade e semeador.
Forquilha casual, colunas passageiras, teto e piso, tudo está
vivo nessa casa. A lua é peneirada na folhagem da janela
ondulante e cheia de estrelas.
Azul e ouro, banquete no teto para os olhos famintos.
Casa, igreja, sem santo e sem altar. Lá dentro há um
banquinho aonde vou me sentar. Acordo bem devagar e
nada vejo. Estaria eu dentro de um ovo?
A casa se mexe, sucumbe, renasce. O vento forte abre e
fecha janelas, o ovo se parte. Fronteiras se rompem em
brechas abertas ao sol. Nós e a casa tecemos um lindo
lençol multicolorido e transparente que protege sonhos,
desejos e maldades. Nas estratégias de permanecer e de
pertencer a ela, trava-se um diálogo infinito entre nós.
Renovados os acordos, qualidades novas, novos caminhos
no incessante movimento.
Em cima da mesa, o jantar está posto: um cardápio de
incertezas alimenta possíveis surpresas. O que há nos
cantos escuros que se dobra e se contorce? Sob a luz das
estrelas não há distinção entre nós e a casa.
Em busca de heranças e tesouros, percorremos quartos,
salas e corredores, olhamos nossas imagens nos espelhos
do porão. Passado, futuro, presente, a memória da casa
21
prepara o devir. Um baú de fantasias se abre e oferece suas
máscaras para uma festa permanente. Transito entre aquilo
que sei e aquilo que esqueço em idas e vindas do querer ser
e do querer viver.
Semeamos antagonismos e colhemos simbioses. Entre nós,
as alianças vão se formando em meio a devorações. No
calendário da casa, um dia é da presa, o é outro do
predador.
Fecundações,
nascimentos,
crescimentos,
transformações... a nossa casa acolhe o previsto e o
imprevisto, línguas de todos os povos em comunicação
permanente, uma Babel que se lança em espiral, sem culpa,
sem castigo.
A hierarquia e a anarquia são velhas companheiras e fazem
constante a artesania desse mapa vivo. Sobre ele, a nossa
dança gera o acaso, regenera o plano de cada um viver para
si até que a morte nos faça impulso de vida, para manter em
pé a casa mutante, que não tem chefe, nem rei, nem dono,
que é palco de transtornos e metamorfoses, sendo
restaurada a cada instante.
A casa dá voltas sobre si mesma, arredonda o espaço, ergue
patamares em novos recomeços, que se desloca cada vez
que regressa a si própria, para abrigar os novos moradores,
que conhecerão novas manhãs ensolaradas, andando em
trilhas abertas na areia, que vão dar no mar.
No céu, os astros são jovens e velhas estrelas e velhos e
novos planetas. O cosmo ilumina a caverna dentro de nós. A
tragédia da morte faz do nosso espírito casa mutante de
deuses, seres, entidades a quem alimentamos, tendo na
ponta da língua, o nome da nossa pertença. Dentro da casaaldeia a gestação de uma identidade maior que, em meio aos
conflitos e divisões entre seus moradores, busca compor
uma unidade gerada no diálogo entre todas as tribos. Do
diálogo ao jogo, do jogo à liberdade, autonomia que nos faz
dependentes uns dos outros, dos costumes, da casa.
A casa que assiste, compartilha, interfere, sendo palco e
personagem da disputa infinita entre a vida e a morte.
A casa está dentro de mim e eu estou dentro dela.
22
A IMPRESSÃO DA IMPRESSÃO
Luiz E. B. Mourão Sá
Outubro de 2003
Edgard Morin passeia pela ciência com se estivesse
andando em um jardim florido onde sua curiosidade é
despertada a cada passo por uma flor ou por um aspecto
inusitado que chama atenção. O Leitor é seu convidado no
passeio e, tomado pelas mãos o acompanha...
É interessante observar o sobressalto do “Convidado” ao vêlo juntar, aqui e ali, fragmentos de diversos conhecimentos,
consolidando-os em uma montagem de teoria ainda
desconhecida em seus detalhes mas plausível e, ao mesmo
tempo, há muito sentida/percebida internamente por este
Leitor/Perplexidade.
A PHISIS, a natureza corpuscular da matéria, a
comunicação, o aparelho, o redemoinho/turbilhão, a protomáquina, os seres-máquinas, o erro, a improbabilidade da
vida e a cara da verdade são elementos que ficam zunindo
na cabeça do Leitor e fazem com que ele sempre se indague
23
A EXPERIÊNCIA SUBJETIVA DA LEITURA
DO MÉTODO
Antar Sushma
Novembro de 2003
Morin para mim é o intérprete do indizível.
O indizível pairava dentro de mim como um mistério, aquilo
que eu não podia traduzir em linguagem, que eu não podia
alcançar, mas que estava ali, implicitamente. Pertenceria à
categoria do imaginário, sem curso para o simbólico.
O incrível é que mesmo interpretando o mistério, Morin não
se desfaz dele; pelo contrário, ele o denuncia, o torna
cotidiano; rende-se a ele, nele mergulha e dele emerge;
renascido da incerteza, da confusão, vem traçando o
desenvolvimento do seu pensamento na consciência da
complexidade que o envolve, em um empenho notável de
explicitar o motor do fenômeno da manifestação da vida que
é o paradoxo.
Sua destreza em lidar com a complexidade só poderia se
igualar à do poeta, do artista ou do filósofo. Mas, nem ali
talvez ele coubesse... ele se coloca na posição de homem
24
comum e parte para a tarefa de compreender o que é isso
(me vem agora a imagem do pescador nativo que se lança
no mar alto) - dá a sensação de que precisa ir junto com a
vida, experimentando até onde percebê-la só para gerar mais
vida; lendo-o, é impossível não criar – imagens, associações,
desconstruções, anéis, espirais com tudo o mais que se
encontra pelo caminho e que nos é significativo.
Ler a sua obra não é ler a sua obra. Faz estremecer
fundamentos de verdades, verdades “essenciais” que se
relacionam com meu sentimento de Ser no mundo. Eu me
sinto estremecida nas bases. Uma estranha sensação de
vida me perpassa quando me dou conta desse tremor, e que
é também um medo bom, uma pulsão de morrer e de viver
ao mesmo tempo. Faz mexer com as entranhas, faz entender
que as entranhas estão em relação com o pensamento.
Só agora pude perceber o alcance dos paradigmas ocultos
sob crenças pessoais que eu não imaginava serem
paradigmáticas. Isso está despertando em mim uma
vitalidade que não é meramente intelectual, mas um
redimensionamento das limitações impostas às minhas
escolhas de vida e às minhas formas de trabalho.
As coisas que eu sou, do ponto de vista das representações
que eu tenho de mim – mulher, cidadã, bicho, mãe... anelado
com aquilo que sou do ponto de vista da essência, isso me
traz um sentimento intenso de ser real, de ser presença, de
self, isso me traz permissão para retroagir sobre aspectos
cristalizados de mim.
Este sentimento vivo que a leitura do Método provoca
provém do corpo - sinto a barriga pulsar, o coração expandir
e a cabeça querer criar, como uma força querendo irromper,
uma espécie de “incontido”: no início das leituras, um
enxame de pensamentos associativos; às vezes uma
inquietude grande, como quando se é criança diante de uma
alegria que fosse grande demais.
Fazer o exercício de pensar pelas lentes da complexidade
me faz amadurecer essa euforia do “incontido” em fronteiras
necessárias para que eu não me perca em entropia, não me
deixe inundar pelo sentimento intenso que é gerado na
quase congruência entre o real e o simbólico. Morin opera
uma articulação tão legítima entre eles, que o imaginário
estremece todo tentando alcançar novos espaços, novos
25
tempos, novas imagens, novas imagos.
Estou
empenhada
em
aprender
a
lidar
mais
pragmaticamente com isso que é uma transformação
profunda na maneira de conhecer, de experimentar, de
investigar e de viver.
O diferencial é que este conhecimento, não estando mais
dissociado daquele que conhece, provoca alterações na
maneira como vivencio a mim mesma. Como em um
processo psicoterapêutico, onde encontramos permissão
para o gesto espontâneo, e buscamos a autenticidade de ser
o que se é, assim é a epistemologia que se desenha a partir
de Morin: uma espantosa aproximação entre o que ele
professa e aquele que professa.
Ser sujeito na investigação do objeto para ser objeto na
investigação do sujeito é fundamental para a Psicologia, área
que se propõe a estudar o sujeito, o si mesmo que se
conhece. Muito embora haja um reconhecimento intelectual
disto, a tradição nas formas de investigação tem raízes
profundas no inconsciente. As mudanças reais não se dão
pela afirmação do novo, que até óbvio é, mas pelo
reconhecimento das contradições internas e das ameaças
que este novo propicia na intimidade de cada ser.
O terapeuta precisa se perguntar: Qual o aspecto da
subjetividade que ameaça a mim como ser humano e que a
minha ciência não pode abarcar? A inclusão do “eu” na
ciência, que poderia ser entendida como uma obsessão
narcísica se revela seu oposto.
Não dá para não registrar minha imensa gratidão a este ser
que se dedicou a tentar trazer luz aonde as distorções
imperam e preenchem sorrateiramente o lugar sagrado do
caos primitivo e das desorganizações necessárias à nossa
trajetória real. O seu principal mérito é de não ser retórico ou
teorizante ao dizer que a incerteza nestas suas tentativas se
fariam presentes. Ele não parte apenas do princípio da
incerteza. A complexidade para ele não é uma declaração de
princípios. Ele parte, antes de tudo, da qualidade subjetiva da
incerteza. Isso é comovente e enternece a velha razão...
começa a inspirar confiança.
26
ACORDANDO COM MORIN
Rosana Gonçalves da Silva
Maio 2008
Meu primeiro encontro com Morin foi no curso Água Matriz
Ecopedagógica, em 2003. Intensifiquei a leitura um pouco
mais, quando fiz disciplinas no CDS. Momento importante,
pois, minha forma poética de escrever foi muito valorizada.
Desde então o medo de escrever foi embora, deixou de me
aterrorizar.
Para mim, ler Morin é encorajador! Há repercussões na
pesquisa de mestrado, nas minhas atividades profissionais e
no meu cotidiano.
Dos sonhos, me lembro claramente de um em especial,
quando li o capítulo sobre informação. Se passou assim: a
minha casa, misteriosamente, é destruída nas duas
extremidades. O centro fica intacto. Eu acordo e olho para o
fenômeno, não me assusto. Intuitivamente, sei que é um
processo de transformação. Quando acordo, na vida real, e
me lembro do sonho fica um sentimento do borbulhar
onírico...,
onde
floresce
a
poesia
sublime
(Morin,1997:311,312). O ponto de encontro e perdição da
minha existência. A aparente destruição é na verdade um
salto, uma renovação, o ir e vir da tentação irresistível que
27
ser e existir significam.
Trago o sonho antes dos outros aspectos que a leitura de
Morin suscita, por uma necessidade auto-expressiva
fundadora, como re-generadora da minha ingênua-mente (Eu
não sei o que fazer a esse respeito, apesar de todas as
advertências).
O giro recursivo
O giro recursivo é uma metáfora que tenho usado na minha
pesquisa e foi inspirada por Morin. As leituras do Método I
me fizeram refletir sobre o espaço da experiência
investigativa. Aprofundaram a minha compreensão da
pesquisa-ação
existencial
entrelaçada
com
a
multirreferencialidade, como uma abordagem metodológica
que faz alianças conceituais e está aberta à pluralidade do
conhecimento. Aquilo a que Tao chama o espírito do vale:
“recebe todas as águas que nele afluem”. Mas, que também,
nos revela a alma das águas emendadas que é encontro de
fontes, desaguando em outros mananciais de possibilidades.
Por meio destas duas metáforas eu entrevejo caminhos
metodológicos concorrentes e complementares de uma
práxis que anuncia a intersubjetividade como o espaço da
transformação dos sujeitos de pesquisa. São movimentos de
ir e vir sincronizados com dinâmicas de desejo, participação
e co-formação.
As noções que estou urdindo e são apresentadas no giro
recursivo significam a base da organização metodológica da
pesquisa. Refletem como cada processo é autônomo e
dependente, perpassa os outros processos e por eles é
fertilizado. O giro contém em suas diversas relações os
aspectos multirreferenciais do processo, no conjunto das
inter-retroações entre partes e todo, todo e partes (Morin,
1997, p.180). A recursividade aqui representada por
abertura<->fechamento e incerteza<->emergências em
circulação, dentro de um processo que reconhece suas
fragilidades e potencialidades. Na imagem concebida por
Morin: o circulo será a nossa roda, a nossa estrada uma
espiral (1997, p. 22) para revitalizar os círculos virtuosos dos
processos formativos que supõem trocas, partilhas e tecem
solidariedades.
Há poesia em Morin
O anel tetralógico, e demais anelamentos me reportam a
poesia. A aliança entre o mistério e o óbvio da complexidade
humana, inspirou a escrita de um poema que dedico à minha
filha e a todas as crianças do mundo.
28
Mestiça
Olhando bem
Dentro dos seus olhos negros
Vejo todo o universo
Cada ser estelar que o compõe
A constelar canção
De íntima poesia
Dia e noite
Ser de criação eterna
Depois de ti
O mundo parece sorrir mais
E chorar menos
Porque trazes o dom da linguagem
E, nela aninha desejos
Não se canse de ouvir, falar, ler e escrever
Queira aprender sempre
Com o outro e consigo mesma
Lembre-se de que há tempo
Para todo propósito sob o céu
Então, não se antecipe
Dê tempo ao tempo
E tudo acontecerá...
Alguém para amar,
Uma semente para plantar,
Um livro para escrever
E um filho para nascer.
Assim re-criar o mundo
Re-criando a si mesma.
Esperança e futuro de uma vida melhor.
Também, venho imaginando um livro elástico, que
desejo escrever. As idéias compreendidas no volume I do
Método da Complexidade ajudaram bastante a conceber e
dar rosto a esta aventura. Já sentipensei o nome, como
imagem do processo dialógico: O funil: o anel de Morin para
crianças
A repercussão no cotidiano
Céu da boca
Gosto mesmo é da palavra
que anda solta no meio da rua.
Livre...
No céu da boca.
Bailarina delirante!
As leituras e releituras de Morin me trazem as imagens da
minha vida de folha seca se misturando com a terra. A
decomposição que vira fertilizante e faz nascer novas
interações, outra possibilidades de convivência na relação
ordem-desordem-organização
no meu dia a dia.
Compreendo que em cada gesto e-ou ação os mesmos
29
princípios fundantes que dão origem ao cosmo estão
presentes em cada ser vivo.
Atualmente vejo mais integração em tudo que faço. A fluidez
com que nascem os textos da minha pesquisa. A
participação em diversas atividades me permite fazer
conexões, que antes eram impossíveis. Uma fala, um gesto,
um encontro de inter-relações, e pronto! Crio um mundo de
coisas.
Estou participando do Curso Água como Matriz
Ecopedagógica, novamente. Ele representa mais uma
atividade que tenho que refletir diariamente. Não como
obrigação, mas, como ligação de ligações em um percurso
autopoiético para mim.
Em uma das partilhas pedagógicas, nos reunimos em torno
do pertencimento, da gratuidade e da gratidão, o todo e as
partes. Dentre os comentários fiquei atenta ao que a Larissa
trouxe sobre a fé da alga. Lembro-me apenas da parte: a fé
da alga, que sabe que o alimento vem das profundezas
porque ela é água, integrada ao ambiente que lhe dá origem,
que possibilita sua existência. Um ser tão pequenininho que
confia. A fala da colega me reportou para minha atividade da
análise dos dados para a dissertação. De que, a semelhança
da alga confiante, posso ser mais segura e confiar nas
minhas percepções.
Aproveitei o gancho da Larissa que, também, falou sobre o
todo que contém as partes e as partes que formam o todo.
Eu trouxe para a roda alguns desdobramentos do Morin
sobre esta relação parte-todo. Agora vejo aspectos mais
profundos dentro desta relação que o todo não é o todo, que
o todo é incerto. Em algumas situações o todo pode ser
superior a ele mesmo e à soma das partes. Em outros
momentos ele pode ser inferior a si mesmo e à soma das
partes. As partes seguem o mesmo processo.
Exemplifiquei a partir do trabalho corporal iniciado com a
grande roda no chão, as percepções de ritmo e depois
grupos nos quais circulamos. A grande roda era o todo e não
percebemos potencialidades além do caminhar mais ou
menos rápido, sorrisos gestos corporais. Os pequenos
grupos eram as partes e neles conversamos e nos soltamos.
Trouxemos um pouco de nós, que não foi possível mostrar
na grande roda. Em cada pequeno grupo, também, nos
comportamos com mais abertura ao outro de formas
diferentes, porque os ritmos trabalhados eram igualmente
diferentes. Percebi em um gesto tão simples: entrega,
doação energética, gratuidade.
Assim, fiz uma relação com a educação ambiental. Enquanto
30
educadores ambientais há momentos de maior abertura e
potencialização das nossas capacidades. Já em outros
momentos, nos resguardamos e nossa potencialidade diante
do trabalho míngua. Conforme permitimos a emergência da
nossa potencialidade é um detalhe importante para o sentir
integrado ou não a um grupo.
Considerei relevante trazer os avanços sobre parte/todo a
partir do pensamento do Morin, porque nossa visão desta
relação, ainda, não alcança toda a sua complexidade.
Precisamos compreendê-la num principio sistêmico-chave: a
ligação entre formação e transformação. Tudo aquilo que
forma transforma (Morin, 1997. p. 112).
Bebemos a água com clorofila. E a Socorro nos presenteou
com balinhas de alga acomodadas em uma barca, um
agrado muito afetivo. A imagem das pessoas reverenciando
a barca me inspirou. Pedi a palavra, senti uma intuição forte
e nasceu essa quadrinha:
A barca circula
cheia de alga.
A barca retorna
Cheia de algo, de nós!
Foi uma emoção forte. Ali me conectei com o que me inspira
na vida ‘o coletivo’. Meditei no significado do encontro e os
pensamentos vinham em forma de cascatas, de lembranças,
um dejavu.
Em casa, preparei para o jantar uma massa. A água na
panela, quando aquecida formou pequenas bolhas e
acrescida do óleo, boiando na superfície formou uma
sobreposição de bolas, círculos e discos. Fiquei hipnotizada
por longos minutos, observando atenta as novas formações.
As formas que deram início à composição se misturaram
lentamente, até formar uma roda. A unidade, a
impermanência, o ciclo e minha grande descoberta do dia
‘estou re-encontrando o fio da minha poesia’.
No dia seguinte compartilhei com Vera as belezas do
encontro como um todo. E as reverberações não pararam
durante a manhã, mesmo assistindo a qualificação da minha
amiga Marise, fiquei com a cabeça cheia de música. Uma
ficha caiu ‘estou de novo vivendo o curso ‘Água como Matriz
Ecopedagógica’. Esta sim é a grande ligação: a autopoiése.
O emocionar do dia anterior está ancorado no mar de
possibilidades que o Água Matriz me revelou, quando fui
integrante do primeiro grupo. Agora, voltando como monitora,
tendo circulado com a bagagem da transversalidade e os
31
movimentos pedagógicos da água, o nascimento da minha
pesquisa e a concretização de um sonho.
Uma metáfora desabrochou tão forte que eu a elevei a
categoria de intuição. Lembrei-me da alegria gratuita que a
ciranda tinha me proporcionado, e me vi num aquário como
um peixe solitário.
Estando distante do coletivo me sinto no aquário, me
debatendo com o vidro. Mas, sua transparência me abre
possibilidades, olho para além dele e quero me relacionar
com o que existe e ultrapassa minha existência. Eu pertenço
a um ser-tão interiorizado e fecundo, o aquário também me
revela esta realidade. Olho para a abrangência desta
geografia, assim mergulho voando nas águas que me
formaram e transformaram.
De inicio pensei ‘que coisa surreal’. Olhando com os olhos da
complexidade a coisa muda de figura, pois, o aquário da
minha visão não se fecha como ambiente de limitações. Há
uma fina camada de vidro que retém minha potencialidade
acomodada nos processos vividos. Este mesmo vidro que é
transparente me permite desejar, cultivar o meu imaginário e
me dá asas para dar concretude ao que sentipenso.
Assim como o vidro, que um dia foi areia aos pés do mar, eu
um dia me permiti a grande metáfora da água como
elemento matriz de muitas formas, que em todos os seus
estados fez expandir os meus horizontes. E, Morin
participando das alianças que se formam cotidianamente.
32
PRECISAM AS COISAS TEREM FIM?
Cláudia Valéria de Assis Dansa
Junho 2004
Turbilhões, estrelas, redemoinhos, seres vivos, sociedades...
formas complexas de organização que compõem um
universo tão vasto e profundo como o ser que o conhece.
Universo até então entrópico, onde a energia se desvanece
incessantemente até que, numa dobra de improbabilidade,
nasce a organização... emergência dos anéis formados entre
ordem e desordem, cosmo e caos.
Criação de um Deus (deuses). Determinação, acaso, incerto,
artista, imagem rascunhada num cérebro mamífero, humano,
hipercomplexo.
Forças
desconhecidas,
desconexas,
reconexas, complementares, concorrentes, antagônicas,
retroativas, recursivas, atreladas num emaranhado de
possibilidades, de potencialidades, de limites conhecíveis ou
não para um observador-sujeito que espreita - ele mesmo
fruto do processo - por uma fechadura tênue, a criação.
Criação que se cria e é criada pelo sujeito observadorcriador. Um observador sujeito que surge de um movimento
genésico de moléculas específicas agregadas em células
auto-organizáveis, assembléias orgânicas especializadas
33
que se desdobram numa ecologia das fagias predador-presa,
das simbioses, das concorrências, das produções e
reproduções, num tempo-espaço próprio (ou quem sabe
além) de um planeta pequeno, girando ao redor de um solestrela turbilhonante esquecido, num ponto qualquer de uma
galáxia qualquer, no meio de uma vastidão. Cujo sentido se
perde na escuridão invisível, nos limites da computaçãocogitação dos seres sujeitos que buscam incessantemente
ser
um
eu-mim
auto-(eco-feno-geno)-organizado,
entregando-se às regras conhecidas-desconhecidas da ecoproposta-organização da vida. Proposta de incessantemente
fazer-se e refazer-se a partir do desfazer-recomporreproduzir-renascer, num ciclo anti-entrópico perpétuo. Do
qual emerge o eco-eu social que articula, propõe um novo
ser que se agrega pelas diversas formas de comunicação e
propostas, quer de reprodução ou criação.
Surge o cérebro, aparelho complexo de ver o mundo,
tecnologia virtual que aproxima e aparta a vida da natureza
da vida. Com ele vem a linguagem, a representação, a
imaginação, o jogo, o sonho, o pensamento, mais que
computação, que se pensa, se organiza, produz a linguagem
e a partir dela a emergência cultural, o grande pensar
conjunto da sociedade humana, conflitante, contraditório,
complementar como a própria dialógica universal.
É neste mundo de referências que surge o pensamento
cartesiano-complexo, múltiplo, antagônico, como mito, como
logos, como computo-cogito, como conhecimento e
explicação, como construtor de certezas e ordens e como
produtor de incertezas e erros.
Pensamento fruto de um cérebro triúnico, bihemisférico, com
camadas, ele mesmo produto e produtor de recorrências, de
retroações, de possibilidades bem exploradas, mal
exploradas, inexploradas, de disciplinas, multidisciplinas,
interdisciplinas, transdisciplinas, indisciplinas.
Limite e
possibilidade de um mergulho cognitivo no universo e na
vida, na sociedade humana complexa que se comunica, se
computa e se cogita através da linguagem, dos afetos, dos
atritos, dos conflitos, dos resgates e do pensamento.
Parcerias parciais, egoísmos complementares, conflitos
afetivos, amores conflitantes, incompletudes amorosas. É
deste turbilhão cerebral que emerge uma nova forma de
organização, o espírito com capacidades mais que
computantes, cogitantes.
Quem somos, para onde vamos, a que pertencemos? Somos
todo e somos parte? Parte do todo ou parte da parte? Todo
da parte ou todo do todo? Tudo e mais um pouco.
34
E tudo ao mesmo tempo agora, ontem, amanhã, quem sabe.
Paira a complexidade sem fronteira, sem certeza, mas não
inteiramente sem destino. Lá, ao longe, vislumbra-se um
caminhar, meio de olhos vendados, em direção à
possibilidade de mover-se em alguma sintonia ainda tênue,
frágil, de um eterno-fluido movimento recorrente, ordemdesordem- organização, de se buscar, não um sentido
fechado em si, mas uma proposta semi-aberta de ser, de
conviver com os homens, com a vida, com o universo enfim.
Mas como viver com medo da morte, da perda, da incerteza
que corrói, da fragilidade do eu-mim vivo, que se debate no e
como turbilhão para preservar sua identidade efêmera no
universo volátil?
Precisamos de projetos, de pontos de partida, pontos de
chegada, metodologias, teorias, confirmações. Não nos
bastam referências, precisamos de certezas, não nos basta
possuir idéias, precisamos ser possuídos por elas,
consumidos pelas verdades fechadas em si mesmas que
norteiam nossa ação e nos afastam das emoções incômodas
e contraditórias.
Precisamos banir a poesia e o mito para o limbo distante da
metafísica e instituir a razão no centro do conhecimento.
Precisamos? Então porque, no seio da ciência renasce o
mito, agora como mito do conhecimento verdadeiro, da
verdade passível de ser conhecida, prevista, determinada?
Não são os determinismos os filhos bastardos do logos com
o mito?
Estamos engatinhando neste despertar de possibilidades de
conviver com a complexidade da complexidade que habita
tudo ao nosso redor (ou talvez a complexidade ausente
também exista, quem sabe, só para não fazer da
complexidade um determinismo).
Como a criança que quer levantar, nos apoiamos nos
banquinhos da nossa racionalidade que nos parecem tão
firmes, mas logo percebemos sua fragilidade. Como sua
aparente firmeza se desvanece, seus pés se desconectam,
sua base se pulveriza, seus fragmentos nos deixam atônitos
e in-suportados (ou insuportáveis)!
Ansiosos, mergulhamos no vazio da desconstrução, da
incerteza, para logo buscar um novo banquinho, numa nova
tentativa de sair do chão. Confundimos o banquinho com
nossas próprias pernas e, tão interessados em andar, nem
nos damos conta de nossas asas invisíveis, as intuições.
Não sabemos pra que servem ou como podemos usá-las,
35
mas elas se abrem a todo momento. E nossas nadadeiras,
as brânquias ancestrais, quando exploraremos os abismos
profundos que elas ameaçam revelar em nossa própria
inconsciência?
Primatas-mamíferos, aves-peixes e répteis desvairados,
andaremos nas campinas das verdades racionais, voaremos
nos
céus
oxigenantes
da
imaginação
poética,
mergulharemos nas profundezas oceânicas de nossa própria
natureza
bio-auto-(eco-ego-geno-feno)-propulsora,
percorreremos os pântanos aquosos da libido-agressividade
e teceremos com a paciência dos araneídeos, no âmago da
nossa estrutura físico-molecular, a marca indelével do que
somos. E, disfarçados de nós mesmos, caminharemos na
pluralidade complexa da vida, descortinando e resgatando
mistérios, pulverizando certezas incontésteis e construindo
incontestáveis incertezas, produtoras, elas mesmas, de
organizações mais ou menos desejadas, mais ou menos
conhecíveis.
Laboraremos em projetos que elaboram a si mesmos e nos
levam a sentidos provisórios, suficientemente confortáveis,
suficientemente
estéticos,
suficientemente
éticos,
suficientemente criativos para podermos mergulhar no
processo de simplesmente viver complexamente.
E, então... precisam as coisas ter fim? É certo que toda
organização anti-entrópica terá o seu fim... tão certo como
que, em algum lugar, uma nova improvável organização
estará nascendo.
Por outro lado, tem a vida um fim (finalidade?). É certo que,
desse ponto de vista, mais que finalidade, a vida tem um
quase destino, que é preservar a própria vida. Por outro
lado, nada garante seu sucesso nessa empreitada; a
incerteza, o erro, o acaso espreitam em cada ponto da sua
trajetória delirante, e, mesmo que haja sucesso, ele será
sempre temporário.
E quanto a nós, homo sapiens/demens, teremos nós um fim?
Certamente findaremos um dia. E um fim (finalidade)? Além
da finalidade da vida... Somos uma emergência única e
esquisita no seio da complexidade universal sem fim (infinita
e sem finalidade), somos parte de um socius que também
segue a lógica da vida e do universo, auto-(eco-geno-fenosocio) organização.
Temos um aparelho neuro-cerebral que nos abre infindáveis
possibilidades e nos limita nessas mesmas possibilidades, e
é aí que nos leva a nossa razão. Não há projeto, há a imensa
possibilidade de criação, e é aí que as potencialidades desse
36
aparelho cerebral-afetivo-físico-vivo nos levam, há múltiplas
possibilidades de projetos que descortinam múltiplos
destinos possíveis para a humanidade.
E qual é o projeto de O Método? É exercitar a possibilidade
de um diálogo com a complexidade. É lembrar-nos, a todo
instante, que apesar da improbabilidade e incognoscibilidade
de causas finais, nos enraizamos nessa organização
complexa que, de alguma forma, se enraíza em nós.
Somos
seres
anti-entrópicos,
auto-eco-organizados,
portadores de subjetividade e de aparelho neuro-cerebral,
imersos numa cultura produtora e produzida por linguagem e
interações complementares, concorrentes e antagônicas de
bilhares de eus-mins sujeitos, e é de dentro desse universo
complexo, que vivemos, caminhos e desenhamos nossos
fins.
Estes fins, sempre provisórios, nada têm de verdade em si.
Embora sujeitos a determinações e determinismos que nos
policiam, contrariam, orientam e deleitam, estes fins podem
conservar ou transformar, organizar ou desconstruir, são
apenas elementos que compõem a vastidão do universo,
são mais uma necessidade humana do que universal.
O universo não clama por um fim, mas a humanidade, os
sujeitos, estes sim, precisam de algo que explique, que
justifique, que os potencialize. Ao sujeito humano, não basta
sobreviver, é preciso sonhar, caminhar em direção, ter
objetivos, crenças, valores, é preciso se apaixonar, ainda que
de forma muitas vezes conflituosa com padrões sócioculturais ou em antagonismo com a própria natureza.
Por que o homem precisa ter fim (finalidade?). Talvez esta
seja a conseqüência mais interessante, do meu ponto de
vista, da emergência do aparelho neuro-cerebral chamada
espírito. O espírito, que habita o aparelho psíquico, dimensão
do aparelho neuro-cerebral, nasce, como toda organização,
com o desejo de alimentar sua existência.
A sobrevivência do espírito depende de uma matéria mais
sutil que aquela que alimenta o bios. O sentido (fim) é o
campo onde acontece a eco-organização do espírito, o oikos
onde ele estabelece as relações de nutrição e de reprodução
de sua organização. O fim agrega os diferentes espíritos,
ajuda-os a distinguir alimento e veneno, cria um vasto campo
de fusão, fecundação e gestação de tudo aquilo que compõe
a organização espiritual.
E, então, ao que tudo indica, o fim tem um fim, fazer com que
o espírito não chegue ao fim. Por isso, para os espíritos que
37
se vinculam de corpo e alma a certas propostas e idéias, a
derrocada destas idéias é como a morte. Mas o palco das
parcerias é também o palco dos antagonismos e das
concorrências e os espíritos ora se fortalecem, ora se
enfraquecem neste constante movimento de criação de um
campo, que a meu ver confunde-se com a noosfera, mas não
é ela mesma.
É certo que as idéias só se realizam encarnadas em espíritos
vivos, mas, por outro lado, há no campo do espírito mais que
idéias, há paixões, depressões, repressões, intuições, cargas
que, nem sempre, estão prontas para se materializar como
idéias, mas que interferem, pela própria inquietação que
trazem, com a eco-organização dessa psicosfera.
Por outro lado, as idéias da noosfera podem conviver como
fantasmas desencarnados em espaços de conservação,
como as bibliotecas ou bancos de memórias, desligadas,
congeladas, até que venham a se dinamizar novamente por
alguma busca arqueológico-filosófica.
A psicosfera, por seu lado, é um campo onde seres
humanos, vivos ou mortos dialogam e se solidarizam ou se
combatem ou se devoram numa antropofagia das idéias e
experiências que fazem emergir o campo do imaginário, não
só o imaginário discursivo, mas também experiencial, pois a
psicosfera não está fechada no cérebro, ela está na pele, no
coração, nas mãos, nos órgãos, está na força curativa de um
abraço ou na carga adoecedora de um olhar raivoso. Está na
poesia que, ao resgatar seu autor da depressão ou da
revolta, lega ao mundo uma carga estética que impregna e
mobiliza, na dor lancinante da tomada de consciência de um
cientista que ajudou a produzir a bomba atômica e sobre ela
não tem nenhum poder decisório.
É no cruzamento eco-bio-psico-noológico que os homens
tomam suas decisões e executam suas ações no mundo. É
com isto em mente que podemos começar a pensar a
educação. O que é educação para um pensar complexo?
Educar nesta perspectiva significa abrir porteiras, firmar o
sentimento de impermanência e inconstância, de incerteza,
imprecisão, abolir, num certo sentido, a segurança.
Mas
também
significa
referenciar
em
múltiplas
possibilidades, tomar consciência da subjetividade, ou não
deixar que ela se perca no processo de embate com os
determinismos sócio-culturais. Pautar a objetividade no
conhecimento da auto-eco-organização e dar-se conta da
intensidade efêmera do ser. É construir espaços de
convivência que traduzam a dinâmica da eco-(geno-feno)organização. É aprender a amar a vida e o mundo e ter
38
clareza da provisoriedade de tudo, sem medo do mergulho.
Certamente uma educação muito diferente da que vivemos
hoje em dia. Uma educação que integre a morte como parte
da vida, que dê conta de traduzir as diferentes necessidades
de auto-organização das diversas esferas em que vivemos,
dos átomos e moléculas às sociedades e ao conhecimento.
Em termos metodológicos talvez isto signifique mais
vivências do que informações, mais relações do que
hierarquizações, mais criação e reflexão do que reprodução,
mais dislexia do que determinação. Mais subir em árvores
que sentar em carteiras, mais bagunça criativa do que
disciplina, mais olhares múltiplos que maneiras certas de
fazer, mais diálogo e tolerância do que afirmação de
verdades, mais silêncio organizador que tempestades de
informações, mais autonomias que dependências, mais amor
que domesticação mecânica, mais compreensão do
processo cultural do que dos seus elementos, mais
compreensão dos mecanismos psico-sociais do que
submissão a eles.
Não é fácil imaginar como traduzir em ação tantas
diferenças. É preciso que as idéias se assentem para que a
criação se faça por si. Mas, ter em mente estas idéias, talvez
contribua para um projeto educacional mais ou menos
possível, para uma existência humana onde a angústia e o
medo da morte possam viver lado a lado, em anel, com a
capacidade de maravilhamento diante do todo e seus
mistérios, e a possibilidade constante de construção do novo
em cada um e no todo.
39
MEU ENCONTRO COM MORIN
ACONTECEU NA MISSA
Guadalupe Silva
Junho de 2005
Nesse meu segundo ano do Mestrado, decidi, no momento
de eleger as disciplinas do semestre, que, além de estudar
melhor a Educação Ambiental, deveria conhecer um pouco
de Edgard Morin e da tão mencionada complexidade.
Escutei falar sobre Edgard Morin desde o momento em que
decidi fazer a inscrição para o Mestrado, e gostei das leituras
que dele, ou sobre ele, tive como uma primeira aproximação.
Já uma vez como aluna da disciplina “O Método da
Complexidade”, foi entre surpresa e curiosa, que escutei a
professora advertir sobre os efeitos que o estudo do método
poderia provocar-nos. Não demorei muito para “experienciar”
aquilo que nos fora anunciado. Primeiro, a grande certeza
40
MORIN, MEU LINDO!
Marília Magalhães Teixeira
Maio 2008
Meus primeiros contatos com a obra de Morin se deram na
graduação, durante o curso de Pedagogia. No entanto, esta
primeira aproximação não foi bem sucedida, uma vez que
tinha grande dificuldade de compreender suas idéias, o que
gerava um profundo desinteresse de minha parte. Ao tentar
ler a sua obra, percebia que não saia do mesmo parágrafo
ou então que estava vagando pelas páginas pensando em
outro assunto. Esta dificuldade me inquietava, pois admirava
muito Morin, já que ouvia bastante a seu respeito e lia
inúmeras citações de suas obras em outras produções.
Desse modo, dois sentimentos contraditórios coexistiam
dentro de mim: por um lado, a admiração e a vontade de
conhecer as idéias de Morin mais profundamente, e por
outro, a falta de concentração, de entendimento e o
conseqüente desinteresse. Esses sentimentos antagônicos,
que conviviam dentro de mim de forma concorrente e
complementar geraram uma verdadeira desordem interna.
Ao entrar no mestrado, tais sentimentos, que estavam
dormentes desde o término da graduação, voltaram a
despertar ao me deparar com a disciplina “O Método da
41
Complexidade”. Uma imensa dúvida surgiu: cursá-la ou não?
Pensei tanto a respeito que não consegui chegar a uma
conclusão. Os sentimentos antagônicos pareciam brigar
dentro de mim, cada um me puxava para um lado distinto.
Faltando apenas dez minutos para o início da primeira aula,
quando já havia desistido da idéia de me matricular na
disciplina, pensei: “vou lá para conhecer”.
Saí da aula convencida de que aquela seria uma
oportunidade ímpar para que eu e Morin rompêssemos de
vez, ou não, a barreira existente entre nós. Seria um
verdadeiro desafio, mas o rico espaço coletivo de discussão
proporcionado pela disciplina seria o espaço ideal para que
eu conseguisse, por meio das trocas, avançar nas leituras e
compreendê-las. Outro fato que me aliviou, foi perceber na
fala de alguns colegas a mesma dificuldade que eu tinha e
ouvir da professora Laís que tal dificuldade é normal e que
não deveríamos entrar em pânico diante do não
entendimento.
No inicio da disciplina, a dificuldade com a leitura
permaneceu. Sentia que não saia do lugar e muitas vezes
ficava durante vários minutos pensando em um parágrafo ou
linha do texto tentando compreende-lo. Além da questão do
tempo, outros fatores me inquietavam: a sensação de que
Morin era muito repetitivo, e os seus “jogos de palavras”, que
em alguns momentos chegavam a me irritar, como por
exemplo: “A natureza da natureza está na nossa natureza.”
(1997:340). No entanto, aos poucos, comecei – com a ajuda
dos colegas e da professora - a enxergar o que até então
estava embaçado, já que a minha visão, em decorrência dos
meus antigos preconceitos com relação ao Morin,
encontrava-se um pouco limitada. Compreendi o que
atualmente mais me fascina em sua obra: O livro do Morin é
a própria complexidade! Durante todo o volume ele consegue
inter-relacionar idéias do inicio, do meio e do final, de forma
complexa e coerente com as idéias que o constituem,
fazendo com que sua obra seja o próprio exemplo de si
mesma. Descobri também, que apesar da sensação de que
as idéias se repetiam, esta “repetição” estava sempre
atrelada a um caráter novo, a uma nova concepção, ou seja,
apesar de parecer, não se tratava de repetição. Foi a partir
de então, que nós – eu e Morin – finalmente nos
encontramos, fazendo surgir uma relação interativa, já que
finalmente me sentia capaz de compreendê-lo e de dialogar
com suas idéias.
Uma nova ordem foi deflagrada, na qual eu me surpreendi
fazendo jogos de palavras, assim como o Morin, que há
pouco conseguia me irritar ao fazê-lo. Rumamos então, para
a organização, na qual as idéias de Morin começaram a
42
permear a minha vida, fazendo-me observar a complexidade
nas relações familiares, na natureza, no diálogo... Fazendome permitir que o conflito e a desordem existissem dentro e
fora de mim, pois já podia compreender que, “... a desordem
é uma desordem que, em vez de degradar, faz existir”
(Morin, 1997:42).
A quebra do pensamento dualista, no entanto, foi a principal
marca que Morin deixou em mim após o término da leitura
deste primeiro volume. Tal marca auxiliará inclusive durante
o meu projeto de pesquisa, uma vez que diversas visões
acerca de uma mesma realidade serão observadas. Posso
afirmar de antemão que todas as visões possuem a sua
relevância e nenhuma deve se sobrepor à outra, já que cada
uma baseia-se no nível de realidade em que se encontra.
Desse modo, mesmo as visões antagônicas, deverão ser
consideradas com base em seu caráter concorrente e
complementar.
Ao final do livro consigo perceber claramente o caminho por
mim percorrido: desordem, interações, ordem e organização.
Volto agora ao ponto de partida - a desordem-,uma vez que o
novo conhecimento adquirido constrói e ao mesmo tempo
destrói, gerando assim novas desordens. Destrói, pois
antigas crenças entraram em colapso e passam agora por
um período de transição, reconstrução e de interação com o
novo conhecimento construído a partir das interações
proporcionadas pela leitura do Método I. Fecha-se assim, no
ponto em que se iniciou, o ciclo que recomeçará novamente.
MORIN, Edgar, O Método 1.A Natureza da Natureza.
Portugal: Publicações Europa-América, 1997.
43
O QUE MORIN MEXE EM MIM
Somos filhos do sol
Somos filhos sóis
Somos sóis
Geradores de sóis
Sós?
Não somos sós.
Solitários e solidários
Somos somente com.
Claudia Bandeira
2008
Lais nos convida a registrar qual é o impacto da leitura do
Método I (1977), de Edgar Morin. O que se move em mim ao
percorrer a construção/articulação original e genial do autor?
Aceito o desafio. Penso nas minhas leituras anteriores de
Morin: ‘Ciência com Consciência’, ‘Os sete saberes’, o
‘Enigma do Homem: Para uma nova Antropologia’, a ‘Cabeça
bem feita’. Destas, a que me emocionou e impactou mais
profundamente foi o ‘Enigma do Homem’, belíssima obra do
autor, com versão brasileira de 1975, a qual já prenunciava o
Método.
De todas estas leituras, extraí um prazer eufórico, uma
alegria de ver escritas palavras que traduzem com beleza e
profundidade meu pensamento, minha forma de ver o mundo
e as relações que nos tramam e que tramamos. Traduzem o
44
meu pensamento, mesmo que rudimentar e primário, minha
verdade, meu referencial de vida, meu agir no mundo. É
como o compositor que, ao ouvir uma música tem a
sensação de intimidade, de familiaridade: como não fui eu
quem a fez?
Como educadora, sempre me inquietou a busca da
articulação das coisas, dos conhecimentos, das várias visões
de um mesmo fenômeno. Acredito que este seja o nosso
desafio: juntar o que foi separado, não para desconsiderar as
partes, mas para contextualizá-las, para concatená-las com o
espírito do vale, de acolhimento e fluxo.
A leitura do ‘Método I’ foi para mim bem mais complexa que
as anteriores; percorre caminhos e linguagens que não
domino, mas quando os traduzo para o campo do
conhecimento social, humano, que lida com as relações
humanas, me emocionam, me afetam, compreendo-os,
abarco-os em mim e sinto que dão sentido às minhas
questões, mesmo que, ao invés de respondê-las, tornem-nas
mais complexas e instigantes.
Morin para mim é inspiração. É ins-piração também! É um
desordenar profícuo de certezas, é um convite ao
reconhecimento das incertezas, é um estímulo aos
questionamentos, à sensibilidade do racional, à racionalidade
do sensível.
Buscar o enraizamento físico e biológico do humano, buscar
raízes. Quais são as seivas que nos alimentam? Quais
seivas herdei e trago comigo; quais escolho para me
alimentar? Não somos só o que somos. Somos muitos,
somos uma multidão complexa de sujeitos, elementos,
energias. O pensamento complexo de Morin dialoga com o
pensamento dos antigos, embora o autor não se inspire
nestas fontes.
A compreensão que Morin busca construir é uma
compreensão já vivenciada pelo ser humano e perdida na
bifurcação da ocidentalização da cultura. Ele, representante
desta, ao costurar retalhos dispersos, molda a trama na qual
os antigos se vêem integrados, parte e todo. Quando falo dos
antigos, refiro-me aos Guarani, povo nativo das Américas,
profundos sabedores das relações que tudo interconectam,
do que lhes está (aparentemente) fora, e os que lhes
percorre dentro, como percorre e como se expressa na
individualidade de cada um, somente compreendida se
agregada ao coletivo, às grandes tribos externa e interna que
nos acompanham e dão sentido ao nosso agir, nosso ethos.
Neste sentido, é belíssimo pensar que autonomia e
dependência acontecem juntos. Que quanto mais o sistema
45
é complexo e autônomo, mais ele é dependente. Esta visão
aniquila a presunçosa possibilidade de sermos sem os
outros, entendidos como gentes, ar, água, elementos,
energias.
Quando o autor nos convida a identificar a desordem como
potencial gerador de novas ordens, fortalece em mim o valor
dos antigos-sempre novos olhares daqueles que foram
calados há muito e que hoje, diante da impotência do homem
moderno em responder as questões que ele mesmo gerou,
começam a ser ouvidas, começam a ganhar novos espaços
de escuta e de diálogo. Remete-me também à importância
do olhar sempre novo da criança, a qual nos incita a
questionar verdades e programas estabelecidos, nos convida
a olhar com novos olhos o que vemos todo dia e deixamos
de ver e perceber.
Como nos indica Morin, o universo hoje é adulto, mas a
gênese não cessou e está sempre em movimento, do qual
participamos mesmo quando no nosso infinito desejo de
controle, acreditamos deter o tempo e a verdade nas mãos.
A cada instante, a imprevisibilidade e o mistério nos afrontam
e nos desafiam a novas buscas. O universo herdado da
ciência clássica estava centrado. O novo universo é
acêntrico, policêntrico. Está o tempo todo em parto, em
gênese, em decomposição (p. 63).
Meu desejo e meu desafio: aprender com Morin a organizar
meu pensamento, aprender a fazer conexões (apropriandome melhor deste fazer); aprender a aprender sempre, de
novo, buscando sempre criar novos caminhos diante de
novas questões.
Para finalizar, fico com o fogo, artífice e artesão. Sol,
hermafrodita pai e mãe, gerador e cuidador. Sinto-me fogo e
sol. Quero aprender a ser artífice consciente de mim.
MORIN, Edgar - O Método. Vol. I - A Natureza da Natureza.
Lisboa: Publicações Europa-América, 1997. 3ª Edição
(Editions du Seuil, 1977).
46
LENDO “O MÉTODO”
47
Lendo Morin
Leandra Fatorelli
Maio 2008
Apesar de ter lido alguns textos de Edgar Morin, fiquei
surpreendida com o livro “O Método: a natureza da
natureza”. Surpresa principalmente com a capacidade do
autor em tornar as diversas realidades do universo mais
compreensíveis e próximas da minha realidade, a partir da
minha experiência vivida. A densidade da obra me
surpreendeu principalmente, por ser ao mesmo tempo
científica e poética.
Pude perceber que, ao contrário do que muitos dizem
quando se toca no tema complexidade, que ela não é
complicada, impossível de ser praticada. Não dá pra
apreender todo o conhecimento do mundo no tempo de vida
de um ser humano, mas isso também não é necessário para
se pensar de maneira complexa. Não preciso saber fórmulas
incompreensíveis aos não físicos ou matemáticos, ou
analisar todas as reações químicas e biológicas. Só é preciso
adicionar mais pontos de vista à minha vida, à minha
representação do mundo, ao meu problema de pesquisa.
Enxergar um o objeto como um todo, dentro do seu meio, em
relação com outros elementos e processos, em interação
com meio e com os demais elementos.
48
Ao ler o livro, era como se meu cérebro fosse se
descortinando e vários sorrisos se abriram em mim quando
as idéias dos textos iam se encaixando na minha lógica
mental (interação entre os textos, minhas idéias e
experiências pessoais e profissionais). Ficava pensando
como que ele conseguiu, ao complexificar o universo (do
micro ao macro e do macro ao micro) deixá-lo simples,
coeso, coerente, fascinante, encantador.
Minha curiosidade por mitologias e religiões orientais
também me fizeram acolher o pensamento de Morin
facilmente, apesar da leitura densa e muitas vezes difícil. O
desprendimento de conotações morais de bom e mau, certo
e errado, que levam a classificarmos ordem e organização
como conceitos totalmente bons e desordem e
desorganização como conceitos ruins me fizeram repensar
meus próprios conceitos.
Fico mentalizando questões relativas à minha vida
acadêmica e pessoal sob o prisma e os conceitos da
complexidade. Fico analisando (embora não com tanta
astúcia e genialidade como Morin) os diversos pontos de
vista, realidades, processos e elementos que estão
envolvidos em um fato cotidiano, pessoal ou científico.
Percebi que apesar de ter que delimitar minha pergunta e
pesquisa em virtude de diversas circunstâncias: tempo,
dinheiro, factibilidade, etc., não tenho que analisar a questão
de forma reducionista e limitada por estas circunstâncias. O
esforço físico e mental a ser empreendido na resposta não
deve ser limitado pelo recorte da pergunta.
Pode-se extrair uma questão fundamental universal,
abrangente, aplicável a outros lugares e cenários a partir de
uma análise, síntese e discussão complexa da questão,
mesmo com um recorte metodológico necessário para a
prática científica. O universo ficou menos romântico, mas
muito mais encantador.
49
IMPRESSÕES E SENSAÇÕES SOBRE A LEITURA
DO MÉTODO
Marina Margarido Pessoa
Maio de 2008
Por curiosidade e por me interessar pela obra de Morin
(mesmo conhecendo-a muito superficialmente), resolvi me
matricular na disciplina “O Método da Complexidade”. Devo
confessar que não fazia idéia do que iria encontrar, mas,
quando cheguei na primeira aula, tive a sensação de que
esta não seria mais uma das disciplinas onde recebemos
tudo “mastigado”, sem espaços para reflexões e
contestações, mas, pelo contrário, seria uma disciplina que
teria muito a me acrescentar, em muitos sentidos, que me
faria parar para pensar e refletir, de fato, sobre tudo e todas
as coisas.
Quando comecei a ler o livro, nas primeiras páginas, não
conseguia entender e nem absorver grande parte das idéias
apresentadas. Mas insisti... Fui lendo, lendo, e, aos poucos,
com a ajuda da professora Laís e dos colegas da turma, fui
entendendo a linguagem e a mensagem de Morin e
vagarosamente fui compreendendo a forma de se pensar
complexamente. Com o tempo, “a ficha caiu” e tudo começou
a fazer sentido. Mesmo assim, em alguns momentos, me
pego com uma enorme dificuldade
de pensar
50
complexamente, o que acredito que seja decorrência de que,
infelizmente, ao longo de nossas vidas, somos ensinados a
pensar tudo compartimentadamente, simplisticamente, sem
associar os fatos e os acontecimentos uns com os outros,
sem compreender que tudo está ligado e inter-ligado.
Pessoalmente, sempre tive dificuldade para entender as
disciplinas exatas e, por este motivo, nunca tive grande
interesse pela Física, da forma como havia sido me ensinada
até então. Sempre tive grande dificuldade em aceitar as leis
sem antes compreendê-las, simplesmente porque fulano ou
ciclano resolveu que as coisas deveriam ser deste ou
daquele modo. Ao ler a obra de Morin, passei a entender
conceitos de Física que nunca havia entendido e passei a
entender a Física como uma ciência que explica a physis, a
origem. Compreendi que esta é uma ciência que pode nos
ajudar a entender “as origens” das coisas, do universo, das
idéias, do mundo.
A partir daí, o Método da Complexidade foi fazendo cada vez
mais sentido para mim e, aos poucos, foi entremeando
diversos pontos do meu dia-a-dia. Em vários momentos,
tanto de lazer, quanto de estudos ou de trabalho, nas minhas
relações inter-pessoais e intra-pessoal (minha comigo
mesma), me vejo pensando na complexidade, em como ela
realmente se aplica a tudo e, em como o mundo ganha graça
quando pensamos e agimos de forma complexa. Penso que
esse é um caminho irreversível e isso tem me trazido grande
conforto, pois, apesar de intuir que a vida é complexa e que a
graça da vida é ser complexa, na realidade em que vivemos
e, principalmente na realidade acadêmica, sobra muito pouco
espaço para enxergarmos e trabalharmos a complexidade
das coisas. É muito mais simples simplificar, mas, quase
sempre, esta não é a melhor solução. São muito raros os
“pensadores” que se propõem a trabalhar com o “espírito do
vale”, que recebe todas as águas que correm em sua
direção. Agradeço então, ao Morin e ao destino, por termos
nos encontrado na complexidade.
51
LENDO MORIN
Maria Amélia Costa
Janeiro de 2004
Foi/é num contexto de emoções de prazer, dor, raiva,
encanto... e lágrimas; quando sou “obrigada a ver” a mim
mesma,
pela
via
do
sofrimento,
que
experimentei/experimento uma aproximação mais alongada
de Edgar Morin. Faço-a por meio das leituras que
consegui/consigo fazer, dos debates em aula onde emerge a
colaboração dos/as colegas “da” filosofia, “da” biologia, “da”
física, “da” química, “da” antropologia, “da” pedagogia e de
tantas outras áreas de conhecimento. Lembrando, sempre,
que o “domínio” (se é que há!) de um campo de
conhecimento não basta e, dependendo da arrogância e da
prepotência daquele que diz que conhece, pode até
atrapalhar.
As aulas, que acontecem as terças-feiras no Centro de
Desenvolvimento Sustentável/UnB são o ponto de
convergência nessa tentativa de aproximação. A turma do
segundo semestre do ano de dois mil e três começou com a
sala cheia de alunos/as interessados/as no pensamento de
Morin. Aos poucos foi diminuindo. A rotina de exploração do/
s texto/s fica da leitura ao debate. Parece que é o melhor
52
jeito de fazer isso: pensando e explorando nossa capacidade
de análise, síntese, mediações, conexões, exemplificações,
etc. De viver momentos de êxtase, indignação, excitação,
meditação... silêncios.
As tentativas de representações mais ilustrativas foram
frustrantes. Fez-se desenhos, falou-se em maquetes. Só se
conseguiu empobrecer o espaço da complexidade. Talvez
brincar um pouco, mas corremos o risco (bom!) de cometer
uma heresia. Acredito que o possível, nesse âmbito, agora,
em termos de imagem, só de pensamento. De resto, é olhar,
sentir, viver, se entregar. E atentar, permanentemente, para
os anéis/circuitos/espirais de Morin. Presentes em quase
tudo, ao que parece.
Mas, sabe-se, a condição de condição guarda em si a
provisoriedade. Todos/as que se dedicarem a esse estudo
poderão fazer dele espaço de conhecimento, se é que posso
falar assim.
Contudo, preciso admitir: é uma leitura difícil.
Essa dificuldade, na atualidade do agora, tem a aparência de
um tempo necessário a uma gestação cujo conteúdo seria
uma aproximação cuidadosa, exigente de outras leituras.
Tempo de acomodação em dobras, entranhas, vazios não
explicados. Um ir e vir num devir meditativo. Tempo de
introspecção, mergulho na interioridade de um ser que é
quase um desconhecido; ser que escapa esgueirando-se
apoiado nas paredes seguras do “velho” paradigma de uma
ciência que, no rigor, exige provas. Enfim, tempo para o
enfrentamento/superação de lógicas simplistas que, num
primeiro olhar, nos movem e com elas, movemos o cotidiano.
Nesse movimento cultivamos uma ignorância que teima em
abafar a complexidade.
No tempo...
As tentativas de penetrar no texto refletem no corpo que se
contorce, cruza os dedos, alonga, massageia o pescoço,
inspira e expira lentamente como se algo mais
acompanhasse o ar na sua viagem pelo corpo. Franze a
testa repetidas vezes como se ali fosse o canal de um
acesso doloroso. Acaricia o artefato, arruma, conta quantas
páginas faltam àquele propósito. Fixa o olhar em algum
ponto... fixo. A mente se deixa invadir por pensamentos
bons, lembranças de um prazer, qualquer prazer, deleite,
sonho, perspectiva. Quer escapar para “coisas mais fáceis”.
Levanta, se distrai, tenta suprir necessidades menos
exigentes: comer, dormir, vadiar.
53
Na fuga se apóia na idéia de que o que lê em Morin ressoa
familiar. Condições, situações, interações, mediações que
aparecem nos embates do dia-a-dia, na lida, na mesmice do
percurso. Um familiar com o qual convive desde sempre,
mas que não conhece. É como se... já que estamos e vamos
ficar juntos para que desvelar? Melhor ficar com o mistério. O
mistério é sedutor e mantém o encantamento. E talvez esse
encantamento seja preciso. Contudo, desvelar seduz a cada
momento que esse desvelar reconduz para outros
movimentos, outras percepções, confirmações, negações. E
aí a gente se vê no texto, como em um espelho. E vê o
mundo também. Parece ser covardia parar, é como abrir mão
de alguma coisa muito valiosa. Se há algo para saber,
conhecer, experimentar... há que se saber, conhecer,
experimentar.
Reforço para a sensação de que há algo a fazer, que posso
fazer, que tem tudo a ver comigo como ser vivente, mas que
estou nadando num entre que, pela circunstância de espaço
de travessia paradigmática comporta um vazio. Avançar em
tentativas esbarra nas minhas limitações cuidadosamente
talhadas na linearidade, na ordem, na reprodução... O algo
que não cabe, aparece, mas se olhar de perto o mesmo algo
faz sentido porque é de mim que Morin está falando, do
mundo que e no qual vivo, das coisas que faço.
Na hora de escrever pensando no que se lê, é outra
dificuldade.
O próprio resumo como busca de entendimento é válido, mas
deixa um rastro de reducionismo que, parece-me, tem algo
de profano. Teima em permanecer em mim a sensação de
que tudo o que disser é bobagem porque superado. A
suspeita que paira sobre conceitos e lógicas tende a levar o
escritor a algum tipo de constrangimento pela pobreza e falta
de lugar.
Os conceitos apresentam-se escorregadios, pobres, mal
colocados. Os arranjos da lógica que sustentam esses
conceitos são frágeis, esburacadas, sujeitas a desmoronar.
Novamente aparece o silêncio, o branco mental, tão próprio
às buscas espirituais, mas que, nesse momento traz é
mesmo uma vontade de ir largando, aos poucos, para sofrer
menos.
Contudo... em ficando nessa (ainda) breve incursão já me
percebo olhando o mundo, a vida, com um outro olhar que
ainda não sei direito o que vê, mas que está alterado. Uma
das reflexões que me leva a fazer é sobre a impermanência
dos seres e a dificuldade que tenho (temos?) para lidar com
54
isso. Tudo muda o tempo todo (Lulu Santos), mas por vezes
teimamos na manutenção do que tem que ser mudado.
É necessário a humildade e um olhar intenso, de olhos
fechados, para dentro. Afastar-se e ficar junto numa atitude
meditativa de presença espiritual. Para sentir. Nessa atitude
de encontro silencioso, a necessidade da desconstrução, da
dissipação, do alargamento, mediado pela inquietação, pelo
desconforto. No embate, meio cego de quem não vê direito,
a sensação de que cada pedaço do texto tem vida própria. O
novamente o meu jeito “organizado” de ser e fazer as coisas,
aparece.
Penso que tentar “extrair” e “adotar” as muitas possibilidades
do
que
Morin
propõe
como
método
para
compreender/interpretar/analisar/aplicar à realidade (da
forma como nos é familiar utilizando a “velha” fragmentação)
soa estranho. É estranho! Faz-se necessário fazer algum tipo
de ultrapassagem, brigar um pouco com o que há. E não
ficar parada diante da condição esfarelada do conhecimento
acreditando na impossibilidade de juntar os pedacinhos;
mesmo porque, parece-me, essa não é a idéia. Melhor será,
talvez, num primeiro momento, no espanto, perceber os
movimentos de tais pedaços, seus encontros, desencontros,
“convergências, antagonismos, complementaridades”.
Como disse, na condição atual, ler Morin é mais uma
questão para se escutar, apalpar, aspirar, sentir. Ou, talvez
eu esteja preferindo assim. Esperar naquele/s tempo/s
citado/s. Nesse exercício me vejo, por vezes, nos extremos:
se leio Morin, não preciso ler mais nada; mas, para entender
Morin, preciso ler (quase) tudo.
Neste mar de competências duvidosas, inseguranças e
chamados, a perspectiva que me coloco como possibilidade
para aplicar o método de Morin é em estudos do currículo
escolar. Vejo-o como um espaço que poderá ser conhecido
(visto/analisado/percebido/tocado) por meio (referência/base/
caminho) do pensamento complexo desenvolvido pelo
referido teórico. Por enquanto, continuo observando esse
“namoro” tentando dar substância no fomento de tal
perspectiva.
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55
SOBRE A LEITURA DE MORIN
Juliana Farias Cavalcante
Maio 2008
Quando penso em Morin...
A minha impressão é de ter, agora, um argumento científico
para explicar como resolvi viver minha vida e para a minha
percepção de mundo. Logo de início me identifiquei com o
pensamento dele, que até então não sai da minha cabeça. É
como se ele me perseguisse o tempo todo, como se fizesse
parte do meu dia e me dissesse coisas, fizesse comentários
sobre o que vejo.
Sinto uma proximidade quase pessoal com o que ele
escreveu, parece que já sei o que vai dizer, mesmo faltando
muito ainda para ler. Talvez por essa questão do paradigma
estar tão profundamente entranhado nas idéias, quando
encontrei a lógica desse pensamento, o seu sentido me é
muito mais claro.
Gosto da maneira como Morin escreve, a complexidade é
evidente na circularidade das idéias. Ele é complexo até no
seu texto quando consegue de maneira clara relacionar as
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IMPRESSÕES SOBRE O PERÍODO DE LEITURA DE
O MÉTODO 1:
A NATUREZA DA NATUREZA DE EDGAR MORIN
Daniel Louzada da Silva
Março – abril 2008
Noite fria, tão fria de junho
Os balões lá no céu vão subindo
Entre as nuvens aos poucos sumindo
Envoltos num tênue véu
Os balões devem ser, com certeza
As estrelas aqui desse mundo
Que as estrelas do espaço profundo
São os balões lá do céu
(Noites de junho – Braguinha e Alberto Ribeiro)
Ainda não me sinto totalmente à vontade com as seguidas
referências à física quântica que aparecem em todas as
discussões que envolvem a transdisciplinaridade e o
pensamento complexo. Metáforas com partículas atômicas,
interações moleculares, relações entre o todo e as partes, a
organização como a expressão de uma emergência em que
ora o todo é maior que as partes, ora se dá o inverso, tudo
57
isso têm me provocado, e, talvez, o sentido disso tudo seja
mesmo esse, provocação. Aconteceu que em meio a este
processo de descoberta de novos papéis para velhos
personagens e conhecimentos, que visito e utilizo
cotidianamente em minhas atividades há anos, me deparei,
ali no início de abril, com uma lembrança remota, um resgate
inesperado de boas sensações, lembranças e falta de
compreensão de um fato específico. Encontrei em meio às
quarenta e três música que formam o Songbook de
Braguinha, produzido por Almir Chediak, a música Noites de
junho, cantada por Elba Ramalho. Não me lembro quando foi
a última vez que a ouvira, mas lembro bem de como a
conheci. Meus pais tinham um disco só de músicas de São
João que tocava sem parar lá em casa entre maio e julho.
Uma das faixas do LP era Noites de Junho, talvez cantada
pela Emilinha Borba, não lembro. Um dia, eu era
adolescente, o disco foi para uma festa e nunca mais voltou.
Voltar a ouvir Noites de Junho me trouxe uma alegria muito
grande. E essa música continua me provocava algum
incômodo, tantos anos depois. A letra vai de tênue véu às
crianças tascaram, do subiste enfeitado, cheinho de luz ao
balão apagado (...) rasgado em trapos ao léu, me parecendo
uma colcha de retalhos de idéias improváveis e inesperadas.
A história de um balão que perde a corrida para alcançar os
outros balões, as estrelas do espaço profundo, me
devolveram a magia e o encantamento que eles, os balões,
me causavam na infância, antes de eles terem trocado o
reino da fantasia pelos artigos de crimes ambientais da
legislação.
Acho que tem sido este o sentido principal da leitura do
Método para mim. Volto a refletir sobre o significado daquilo
que me parecia totalmente esgotado em suas possibilidades,
e isso tem sido bom.
Balão do meu sonho dourado
Subiste enfeitado, cheinho de luz
Depois as crianças tascaram
Rasgaram teu bojo de listras azuis
E tu que invejava as estrelas
Sonhavas ao vê-las ser astro no céu
Hoje, balão apagado
Acabas rasgado em trapos ao léu
(Noites de junho – Braguinha e Alberto Ribeiro)
Carlos Alberto Ferreira Braga, Braguinha ou João de Barro,
compositor nascido no Rio de Janeiro em 29 de março de
1907 e falecido em 24 de dezembro de 2006. Fez parte do
Bando dos Tangarás com Noel Rosa e Almirante e compos
mais de 400 músicas.
58
O QUE MUDOU DEPOIS DE LER “O MÉTODO”
1 AO 4 DE
AUTORIA DE EDGAR MORIN
Daniella Buchmann Ungarelli
2008
“A dúvida é o princípio da sabedoria”, essa frase de
Aristóteles sempre fez sentido para mim. Mas após ler o
Método a minha compreensão dessa frase foi transformada,
aprofundada, e enraizada, ou melhor, foi complexificada.
Resolvi começar pelo exemplo dessa frase para falar da
revolução que a leitura do método fez em mim.
Foi uma revolução porque as noções mais básicas que eu
julgava estarem solidamente construídas como a noção de
ciência, conhecimento, educação, de vida, de organização,
de sistema, de pessoa humana, de comunidade, e com elas
toda a constelação de outros conceitos envolvidos, foram
reconstruídos. A compreensão do profundo embricamento
entre tudo, aonde esse tudo não é diluído nas suas partes e
vice versa; a idéia chave do anel integrando polaridades e a
noosfera são idéias que são formadas e formadoras da
minha pessoa.
59
Não apenas na dimensão acadêmica e científica, mas
também na dimensão subjetiva. A partir da idéia de noosfera
até a minha idéia de Deus foi transformada, ligada à vida
humana, num anel de desenvolvimento mútuo. Isso foi uma
transformação muito profunda, vou tentar explicar... Sempre
tive fé em Deus, em santos e entidades. Com dezenove anos
comecei a estudar psicologia, conheci a psicanálise e com
ela o inconsciente, os atos falhos, depois fui estudar
pedagogia e conheci o Jung, com a idéia de inconsciente
coletivo e dos arquétipos. Tudo isso me influenciou muito,
mas existia uma enorme separação entre minha fé e meu
conhecimento, que influenciava (e influencia) muito em
minha visão de mundo.
Depois conheci e pratiquei a meditação do Osho, e a filosofia
oriental principalmente pela Yoga, quando vivi experiências
que me transformaram profundamente e ampliaram muito
tanto o meu conhecimento de mim mesma quanto a minha
visão de mundo e conseqüentemente meus relacionamentos.
Aqui o (símbolo do YIN Yang) entrou no meu viver, acho que
para sempre, mas hoje sei que sempre se transformando.
Hoje (naquela época eu nem desconfiava disso) acho que na
época que li o Método eu estava arrogante, porque tinha
certeza que sabia a verdade, o caminho... A essa altura eu
estava no fim do curso de pedagogia, em 2001, era bolsista
de pesquisa e extensão e trabalhando como educadora
ambiental, eu abominava o pensamento cartesiano e
acreditava em uma visão de mundo holística. Acho que muito
influenciada pelas idéias do filme o ponto de mutação e
algumas leituras de Fritjof Capra, enfim, assim as minhas
certezas foram aumentando...
Nesse mesmo ano eu entrei na ONG Berço das Águas e
começamos a trabalhar em uma equipe de geólogos,
engenheiros florestais e só eu das humanas. Na prática o
trabalho fluía muito bem, utilizando uma metodologia
vivencial relacionando o campo e a teoria, e garantindo o
espaço do conhecimento dos mateiros da comunidade para
nossa troca de conhecimentos. Porém, na hora de fazer a
parte teórica do trabalho, a equipe me cobrava uma
referencia teórica mais embasada. Eu fiquei profundamente
irritada com a conclusão do coordenador do projeto que
minha referencia teórica fazia bonitas metáforas, mas que
não tinha consistência teórica, me mandando buscar outras
referencias na área de educação e gestão ambiental. Mas
depois de ler o Método eu acabei concordando...
Essa característica do pensamento complexo, onde o “ou”
foi substituído pelo “e” harmonizou, sem eliminar os conflitos
60
a minha necessidade de uma base epistemológica
consistente, cientificamente embasada, sem excluir o
inexplicável, a magia, a subjetividade, a sensibilidade.
Novamente a idéia do anel integrando polaridades, agora
anelando para sempre o conhecimento e a incerteza. A
metáfora sugerida por Edgar Morin me vem à cabeça para
compreender esse princípio, é aquela que caminhamos em
ilhas de certezas num oceano de incertezas.
O princípio da incerteza foi e é muito importante para lidar
com a minha arrogância de cientista acadêmica, o que
percebi graças a alguns conflitos que tive para usar o método
como referencia teórica em minha dissertação no ano
passado, o que eu ignorava, e só fui compreender a partir de
um processo terapêutico com base em constelações
familiares de Berting Hellinger que estou fazendo.
Muito interessante esse processo que eu vivi, porque nesse
processo terapêutico em grupo, uma colega detesta o Edgar
Morin colocou em jogo a necessidade de usar a obra, que
para ela, não dá conta de explicar o que a gente vive ali (que
é a magia do movimento da alma), sendo que eu acho
justamente o contrário... Esse foi o trabalho mais profundo e
transformador por que já passei até aqui, e, de uma forma
inusitada, envolveu não a leitura, mas o uso que faço, ou não
da leitura dessa obra. Como são as coisas... Se eu não
tivesse de fazer esse trabalho, não teria refletido sobre isso.
Enfim, desde quando li a obra O Método, em 2001, ela me
influencia profundamente, e sinto que ao longo do tempo
minha compreensão das idéias contidas nessa obra, que
fizeram uma revolução em mim, caminha num espiral. Agora
que tenho a árdua oportunidade de reler essa obra, agora
sim compreendo bem melhor, mas, sinto que, isso ainda se
repetirá por algumas vezes... O que torna essa leitura uma
aventura de transformação, que eu, escorpiana que sou,
tenho o maior prazer de vivenciar profundamente.
Então para terminar mais uma lição que aprendi nessa
leitura, a de construir algo novo integrando o velho, e não se
opondo ao velho, mas a partir dele... De se transformar
sendo si mesmo, a partir do que se é.
61
O QUE MUDOU EM MIM APÓS A LEITURA DO LIVRO DE
EDGAR MORIN
O MÉTODO 1, A NATUREZA DA NATUREZA
Eliza Pereira Bruziguessi
Maio de 2008
Este livro de Morin, com toda sua profundidade, despertou
em mim muitos sentimentos, reflexões, mistérios,
curiosidades, explicações, dúvidas.
Me fez perceber a grande semelhança da organização e
funcionamento entre o macro e o micro, entre a physis, o
biológico e o antropossocial. Realçou suas múltiplas interrelações, me fez sentir mais parte de toda esta organização
cósmica.
Após a leitura do livro sinto que estou reaprendendo a olhar,
perceber e aprender. Esta leitura é um grande aprendizado
que levo em minha vida, pois, a cada momento, amplia e
torna mais complexa minha visão e compreensão da
realidade, do mundo, da minha consciência. Muitas
emergência e imposições surgiram na organização do meu
pensamento e do meu ser.
Muitas explicações se tornaram para mim mais e menos
compreensíveis, simultaneamente, e este fato não me
62
assusta mais. Alguns fenômenos e conceitos que para mim
eram obscuros tornaram-se claros, já outros que eram claros
tornaram-se obscuros, cheios de mistérios e incertezas. Mas
entendo que estes são sinais da complexidade e que podem
ser um caminho. Senti que muitas vezes apenas meu
inconsciente foi capaz de compreender e estou aprendendo
a lidar com esta situação e com minhas limitações.
A vida já não é a mesma para mim assim como não sou mais
a mesma para a vida, para as relações e organização das
quais participo. Sinto-me mais feliz após ter lido Morin!
63
MORIN, EDGAR. O MÉTODO.
A NATUREZA DA NATUREZA.
VOLUME 1
Irineu Tamaio
Dezembro de 2003
O primeiro contato de forma mais elaborada com o
pensamento de Morin, provocou-me um misto de indagação
e “abalos” nos meus instrumentos de leitura de mundo. O
tapete de sustentação que me possibilitava construir uma
epistemologia, um olhar e compreensão da minha realidade
começa a ser problematizado.
Portanto, sinto surgir um turbilhão de novos acontecimentos
em cadeia, configurando-se numa confusão em minha
cabeça, brotando inseguranças e dúvidas sobre possíveis
certezas construídas.
Será que toda essa realidade empírica e subjetiva que
presencio da janela da minha vida é verdadeira? Ou será que
tudo isso que vivo e sinto é apenas o resultado de uma
máquina, cada vez mais variada, delicada e frágil, controlada
por uma organização reguladora tênue e precária?
Posso compreender que a história da minha vida foi e é uma
espiral de interações complementares, pois o meu arcabouço
64
teórico de construção sócio cultural das relações do mundo
foi alicerçado na concepção racional lógica do marxismo.
Não descarto totalmente a objetividade marxista, mas a
complexidade de Morin possibilitou-me travar um diálogo
com essa estrutura economicista e simplificadora de
enxergar a vida.
Para mim, a complexidade contribuiu para entender o porquê
de todo esse sistema racionalizador/ordenador, essa teoria
unitária não consegue dar mais conta do nosso real. Acho
que preciso reaprender a aprender!!
O que é rico é poder entender que a ignorância, a incerteza e
a confusão se tornam virtudes. Ora, isso é fundamental para
um educador que pretende aprender e compreender como
um grupo de pessoas imbuídas de um desejo de transformar
a sua caótica realidade de moradores do entorno de um
parque, podem interagir e construir um signo de
conhecimento denominado sustentabilidade.
Não existe uma unidade lógica quando quatro grupos de
professores elaboram o seu tema de estudo (1. Observação
das trilhas/estudo da realidade; 2. Coleta seletiva de lixo; 3.
Horta: sabor e saúde e 4. Saúde mental). Existe sim uma
certa objetividade, que não deve ser absolutamente
conservada, mas integrada num conhecimento mais vasto e
refletido, possibilitando um outro olhar para aquilo que ela
não vê.
No meu entender, nesse caldeirão de interações o conceito
de sustentabilidade pode ir além das “caixinhas”
compartimentadas defendidas por Sachs, pois virá à tona a
produção e a co-produção da “ordem - desordem –
organização - interações”. Esse jogo de interações está
presente no cotidiano dos professores, e é a partir desse e
com esse olhar que se desnuda e cresce a diversidade e
complexidade do entendimento do conceito.
Portanto, o conceito de sustentabilidade não é absoluto, é
elaborado na imersão de uma ordem – desordem –
organização
que
se
co-produzem
simultânea
e
reciprocamente.
65
SABER COMPLEXO
66
CONSIDERAÇÕES SOBRE A TERRITORIALIDADE DAS COMUNIDADES
RIBEIRINHAS E A TEORIA DA COMPLEXIDADE A PARTIR DO
CONHECIMENTO DO CONHECIMENTO
Josiane do Socorro Aguiar de Souza
Julho de 2005
O eu, sujeito e objeto do conhecimento ...
Desde a infância, a curiosidade natural impulsiona a observação de detalhes,
como as cores diferentes do solo, textura das folhas, cores das flores e outros.
Por muitas vezes tal hábito foi tachado de devaneios, em vez das brincadeiras
infantis, buscava as coisas mais esdrúxulas para a uma criança discutir, os mais
variados, desde o comportamento humano com imagens cunhadas no fundo pela
religião, valores locais e outros; aos comportamentos de pessoas com padrões
psicológicos e sociais inversos dos padrões comuns, consideradas normalmente
como “marginais”.
Na ansiedade de entender as coisas, os livros foram os companheiros na busca
de respostas latentes. Neste momento, vários autores despertaram outros olhares
sobre o mundo vivenciado, principalmente aqueles que se reportaram à filosofia,
mesmo sendo contraditórios ao curriculum disciplinar do ensino formal.
A formalidade educacional baseada na verdade incontestável e dogma da
experimentação científica não suportou as modificações sociais e econômicas,
deste modo a ciência está sendo evidenciada e discutida ao longo do tempo,
suas verdades ainda estão em questionamento, percebeu-se que ela
67
fundamentava-se em um paradigma composto de princípios e modelos calcados
na reprodução do modelo dominante.
O modelo dominante discutido no meio acadêmico tem uma aparência
translúcida, tornando-se de fácil compreensão. Sua crítica é feita por vários
autores, os quais, normalmente, percebem-no através de lentes específicas
disciplinares. Deste modo, lacunas sobre a compreensão da auto-ecoorganização ainda ficaram sem preenchimento.
Posteriormente, novos autores que tratam da análise da realidade de forma mais
ampla como, por exemplo, Herinque Leff, Capra, Boaventura de Sousa, Kuhn,
Paulo Freire e outros trouxeram a luz com novos olhares algumas questões
carentes do ponto de vista epistemológico. No entanto, apesar desses autores
discutirem a realidade a partir de uma perspectiva mais ampla, ultrapassando
uma visão disciplinar, que às vezes bordeja uma meta-epistemologia, ou seja,
ultrapassa os quadros da epistemologia clássica (objeto definido, separando a
lógica da filosofia e fragmentando o conhecimento em disciplinas) ao mesmo
tempo em que a inclui. Eles não propõem um método de compreensão total da
realidade, uma forma pan epistemológica, ou seja, aquela integrada a toda
atitude cognitiva inclusive a epistemologia clássica, e tem a necessidade legitima
de refletir-se, reconhecer-se, situar-se e problematizar-se.
Ao deparar-me com a complexidade de Edgar Morin, foi possível abrandar o
estado de inquietude antigo e presente, não por este autor fornecer respostas e
soluções, mas pelo fato de apontar componentes para uma escolha pessoal de
um caminho, o qual pode, dependendo do sujeito, significar uma mudança de
paradigma pessoal e científico em constante processo de mutação.
O método complexo de Morin tem como fundamento três princípios: o primeiro,
denomina-se dialógico, resultante de uma dialógica entre o aparelho
neurocerebral, espírito, meio exterior e dos mundos internos, externos e
noosférico. O segundo recorrente ou recursivo, onde os produtos e efeitos são
simultaneamente co-geradores e co-causadores do mesmo processo, formando
um anel construtivo de efeito e causa, os quais podem ser concorrentes,
concordantes ou antagônicos. E o último chamado de hologramático, onde a
parte está no todo e o todo está nas partes, ou seja, ambas as partes e o todo
apresentam as mesmas características. “Assim, a sociedade e a cultura estão
presentes como no todo (conhecimento) e nos espíritos cognoscentes...; e o que
está presente no espírito individual não é somente o todo como subjugação, mas
também, e eventualmente, o todo como complexidade.” Deste modo, o método da
complexidade permite olhar a realidade através de várias lentes, sendo possível
discutir o conhecimento e as diversas formas de abordá-lo.
O conhecimento humano é complexo e tem um elo de ligação com a cultura, a
qual semelhante ao conhecimento se forma a partir do seguinte processo: a
percepção cerebral capta parte da realidade e produz as idéias, posteriormente
representadas por signos e verbalizadas oralmente.
O conhecimento, o processo de percepção e ação.
O conhecimento e a cultura para Morin estão interligados pelas condições
68
socioculturais e condições bio-cerebrais, ou seja, o corpo e o espírito; ou seja, a
cultura é transmitida e desenvolvida pelas interações cerebrais e espirituais dos
indivíduos, ela é organizada e organizadora da e pela linguagem, a partir dos
conhecimentos adquiridos, das aptidões aprendidas, das experiências
vivenciadas, da memória histórica e das crenças míticas de uma sociedade.
Assim, a sabedoria popular das comunidades rurais foi construída ao longo dos
anos e transmitida às novas gerações constituindo um conhecimento com
condições socioculturais próprias. A sabedoria das populações amazônidas que
habitam um meio com predominância natural, distante da paisagem urbana,
possibilita que ela sobreviva com as condições que o meio natural oferece. Os
saberes comunitários têm sido observados, discutidos, apropriados e subtraídos
rapidamente, principalmente seus saberes sobre princípios fármacos ativos.
Deste modo, tentar-se-á fazer posteriormente algumas considerações sobre estas
questões à luz da complexidade.
Antes de adentrar-se a essas questões é preciso esclarecer que apesar dos
debates conceituais sobre comunidades tradicionais, não há um consenso na sua
definição e por isso, para efeito destas reflexões elas são compreendidas a partir
de suas práticas culturais que expressam seu modo de vida e sua territorialidade,
onde os grupos populacionais, geralmente dispersos exploram o ambiente em
que vivem, normalmente com atividades sazonais obedecendo aos ciclos naturais
e ajustando-se às limitações naturais. Desta maneira, as comunidades “ditas”
tradicionais amazônidas têm dentre as principais características a capacidade de
sobreviver com recursos naturais locais, utilizando-os na culinária, saúde, vestes,
artefatos e outros.
As atividades extrativistas são também complexas por apresentarem relações
entre o homem e o ambiente natural, utilizando a capacidade do cérebro humano
para armazenar, resgatar e operacionalizar ações. No entanto, vale ressaltar que
as interações entre as comunidades extrativistas amazônidas, principalmente
aquelas que coletam o látex, a castanha-da-amazônia e outros recursos naturais
diversificados, como as populações ribeirinhas que têm como base o
conhecimento vivido e transmitido geracionalmente.
As diversas estratégias desenvolvidas pelo ser humano para sobreviver em
diversos ambientes refletem a sua capacidade cognitiva de desenvolver a
percepção, acumular conhecimento e executar atividades cotidianas. Na
concepção de Morin, o conhecimento é composto pela aptidão de produzir
conhecimentos, pela atividade cognitiva e pelo saber resultante dessas
atividades.
Os conhecidos e auto-eco-desconhecidos amazônidas.
Sem confirmação científica, pode-se dizer supostamente que os mais antigos
imigrantes amazônidas são os indígenas, seguidos dos europeus e por último os
negros, salientado-se que os povos negros em sua maior parte não migraram
segundo sua vontade, mas pelo contexto histórico da escravidão. Além da
migração inter-continental, ocorreu também a migração interna, atualmente este
último ainda perdura. Em decorrência das migrações internas resultantes das
políticas nacionais, a Amazônia foi ocupada conciliando a necessidade de
69
redirecionar o fluxo migratório entre as regiões nordeste-sudeste para nordestenorte. Estes fluxos migratórios na Amazônia resultaram na ocupação de
ambientes naturais diversificados, com predominância de características físicas e
bióticas. Para cada ambiente surgiu um tipo de figura humana própria, a exemplo
de castanheiros, seringueiros, ribeirinhos e outros. Deste modo, de acordo com
os ambientes ocupados por comunidades, elas desenvolveram habilidades
voltadas as atividades econômicas de extração, agropecuárias e artesanais.
Dentre as figuras amazônidas, salientam-se os seringueiros, castanheiros e
ribeirinhos; devido a sua tradicionalidade, organização política e importância
econômica no cenário nacional.
Os seringueiros foram os desbravadores nacionais extrativistas da Amazônia
legitimados pelo Estado. Com apetrechos próprios, os seringueiros retiram o látex
da seringueira e construíram sua história marcada pela organização política e
social à frente do povo da floresta.
Os castanheiros, semelhantes aos seringueiros, também têm as suas atividades
econômicas baseadas nos ditames do mercado. E apesar de apresentarem
características próprias como apetrechos e vida cotidiana, ainda mantêm em
alguns locais as formas de trocas de mercadorias e financiamento de suas
atividades no período de safra por um patrão.
Diferente dos seringueiros e castanheiros, os quais foram incentivados pelas
políticas públicas de ocupação e econômicas, os ribeirinhos merecem maiores
considerações por serem atores que residem às margens de igarapés, rios ou
canais e têm as suas atividades sob uma orientação temporal regulada pela
influência das marés; utilizam as embarcações como principal meio de transporte
e de sobrevivência.
Geralmente os personagens amazônidas não têm noção de suas relações com a
natureza e de si próprios enquanto sujeitos e objetos do processo inter-relacionalgeracional-ecológico com o espaço habitado. Hipoteticamente, tal fato deve-se a
baixa escolaridade das pessoas, a ausência de valorização de identidade própria
e a divulgação de padrões urbanos pelos meios de comunicação.
O valor da natureza e do “eu” pelo ribeirinho
As formas de vida ribeirinha de extração animal e vegetal para sobrevivência e
conservação da floresta, têm como objetivo garantir a renovação de estoques
naturais para sua manutenção. O jeito de viver do ribeirinho, sua visão de mundo,
tranqüilidade e sapiência são vistos por outros segmentos sociais como uma
representação cultural que apresenta também valores depreciativos, sendo
rotulado como povo lento. A “indolência” e a “preguiça” desse caboclo são
elementos de um estereótipo que oferece uma interpretação moral de sua
pobreza.
A vida ribeirinha também está inter-relacionada aos ciclos da natureza, os quais,
são alicerces para o calendário anual de atividades econômicas. As principais
atividades desenvolvidas por essas populações são o extrativismo animal e
vegetal, seguidas da agricultura de subsistência e criação de pequenos animais.
Apresentam, a priori, características de um primitivismo de técnicas adaptativas,
de origem predominantemente indígena, conservada e transmitida por gerações
70
sem alterações substanciais, considerando a natureza como provedora
inesgotável de bens naturais à sua sobrevivência. Essas técnicas adaptativas
atendem as suas necessidades de sobrevivência, e a baixa densidade
demográfica permite a resiliência dos estoques naturais.
No entanto, as necessidades dos povos da margem do rio foram
redimensionadas para o aumento do consumo de produtos industrializados e
consequentemente uma carência de maior renda monetária. O incremento desta
renda se reflete através do aumento do excedente produtivo, tendo como
conseqüência o aumento da pressão sobre os estoques naturais diminuindo sua
capacidade de recuperação.
A partir desse processo de reprodução de vida urbana de consumo, o ribeirinho
passa a perceber os recursos naturais como bens naturais, e como tais, eles
recebem individualmente uma valoração comercial, e conseqüentemente
exploração concentrada. Como os valores comerciais entre os bens naturais e
industriais são desproporcionais foi preciso aumentar a produção ribeirinha
modificando sua característica passando a executar processos acumulativos
capitalistas.
A escassez dos recursos naturais levou algumas comunidades ribeirinhas a
preocuparem-se com sua sobrevivência, passando a discutir seus direitos de
população “tradicionais” sobre os territórios explorados por elas, evidenciando a
modificação da sua relação e percepção sustentável com a natureza.
Incentivados pelo discurso ambiental global de sustentabilidade do planeta,
surgiram nestas últimas décadas, esforços para registrar e compreender as
formas de vida dos povos amazônidas. E também resgatar a importância de seu
papel relacional com a natureza e sua sociedade.
Normalmente, a consolidação dos grupos sociais enquanto comunidades foram
fortalecidas pelas formas de organizações sociais e econômicas. Essas
comunidades vêm sofrendo novas influencias por conta de migrações
populacionais recentes que juntamente com as pressões e necessidades do
mercado estão modificando a percepção e ação coletiva tradicional. Assim, as
comunidades constituem um grupo de interesse a parte não podendo ser
caracterizadas como tradicionais ou não tradicionais, haja vista que a maioria das
pessoas que compõem essas comunidades veio de outros locais com percepções
ambientais diferentes das comunidades amazônidas. Existem apenas pessoas
que pertenciam ou pertencem a grupos tradicionais como os pescadores e
pessoas que trabalham em confecção de artesanato. Por outro lado, apesar
desse processo de mutação coletiva do fazer, ainda existem locais onde os
assentamentos humanos preservam as práticas de extrativismo antigas,
conservando com novas roupagens as formas de negociações primitivas
baseadas em escambo e aviamento, como por exemplo, a coleta da castanha-daamazônia no sul do Estado do Amapá, especificamente em Maracá.
As situações e cenários são mutantes na Amazônia brasileira. Entre as diversas
situações em que se encontram as populações rurais, o parentesco, a identidade,
o acesso a terra e a água, a definição do sistema de herança e de sucessão à
propriedade ou posse, as regras de usufruto de recursos comunais são exemplos
de fatores que distinguem categorias sociais e tipos de ocupação. Esta
71
diversidade demonstra que não se pode traçar um modelo único de envolvimento
de populações em projetos de conservação ou desenvolvimento sustentável. A
diversidade social implica a necessidade de conhecer em profundidade as formas
locais de reprodução social para então desenvolver modelos de participação,
manejo e conservação, específicos para cada situação.
Os ribeirinhos usufruem do tipo de apropriação comum de espaços e recursos
naturais renováveis, que se caracterizam pela utilização comunal (comum,
comunitária) de determinados espaços e recursos através do extrativismo vegetal
(cipós, fibras, ervas medicinais da floresta), do extrativismo animal (caça e pesca)
e da pequena agricultura familiar itinerante. Além dos espaços usados em
comum, podem existir os que são apropriados pelas famílias ou pelo indivíduo,
como o espaço doméstico (casa, horta, etc) que, geralmente, existem em
comunidades com forte dependência do uso dos recursos naturais renováveis
que garantem sua subsistência, demograficamente pouco densas e com
vinculações mais ou menos limitadas com o mercado.
Os instrumentos de trabalho, embora simples, permitem que a pesca, caça,
coleta, agricultura e extração de madeira supram as necessidades básicas.
Enquanto caracterizado como pescador executa a pesca dita artesanal,
principalmente pela caracterização dos seus apetrechos de pesca, geralmente
rústicos, sem mecanização ou sofisticação desses instrumentos; pelas áreas de
abrangência de suas pescarias, e condicionado pelos ritmos da natureza e
influenciado pelas variações sazonais que determinam suas pescarias.
A sazonalidade dos recursos e a escassez de determinadas espécies levam-nos
em busca de outras alternativas de sobrevivência, entre as quais ocupações
econômicas nas atividades de pecuária, madeira e palmito, eles de uma certa
forma estão ajudando a degradar o meio ambiente, por uma necessidade de
trabalho, talvez por não terem uma outra alternativa.
A variável que influencia as populações ribeirinhas no modo em tratar o meio
natural é desconhecida. Surge uma indagação: o que os leva a tratar a natureza
de uma forma conservadora ou devastadora? É o respeito que têm pela natureza
ou é a sua condição econômica que não os deixa usar os recursos naturais de
uma forma exploratória, com a intenção de acumular riquezas? Esta indagação
surge diante do quadro que temos, especificamente na Amazônia, da relação que
a população ribeirinha possui com a natureza.
Percebe-se também que existem ribeirinhos que possuem um certo respeito à
natureza, por serem dependentes dela, e pelos imprints criam entidades como
mãe-da-água, curupira e outros, destacando-se os rezadores ou benzendeiros
que curam e rezam usando plantas medicinais. Estas manifestações constroem
um mundo de magia nesta relação homem e natureza.
As diversas situações explicitadas anteriormente conduzem a formulação de
dúvidas sobre o valor que as populações ribeirinhas atribuem à natureza; é um
interessante objeto de pesquisa. Mas, apesar desta incerteza muitas mudanças
aconteceram com relação à valorização do saber local das populações ribeirinhas
pela comunidade científica.
72
A revolução científica e tecnológica otimizou a comunicação que contribuiu com a
modificação dos valores e necessidades ribeirinhas.
O sistema capitalista sempre usou os recursos naturais para o desenvolvimento
econômico, e as regras do jogo são as mais selvagens possíveis, ou seja, sempre
houve uma exploração também da mão-de-obra para a transformação da matéria
prima em produtos para a comercialização. Pode-se destacar a utilização da
biodiversidade para a produção de fármacos pela indústria farmacêutica. Os
princípios ativos encontrados nos animais e plantas foram retirados da floresta,
por intermédio de contatos entre os ribeirinhos e falsos pesquisadores, sendo
posteriormente patenteados e nenhum valor foi agregado para essas populações
que detêm este conhecimento.
A elaboração do conhecimento científico sobre a biodiversidade passa antes de
tudo pela investigação dos saberes populares ribeirinhos exemplificados através
da identificação de princípios ativos úteis a fitoterapia e farmacologia.
Atualmente a comunidade científica chama atenção da sociedade para a
exploração dos saberes populares pela indústria farmacêutica e posturas
diferentes estão surgindo. Os detentores dos saberes populares estão mais
organizados, já não recebem com ingenuidade estes falsos pesquisadores.
Querem garantir sua participação e valorização de seus conhecimentos neste
processo.
Observa-se que a atribuição de valor aos recursos naturais enquanto fundos de
biodiversidade pode ser feita quer via intervenção pública, na forma de
compensações pela abstenção de explorar o recurso presente (com pagamentos
diretos ou indiretos), quer através de mercados privados para a biodiversidade e
para a conservação (através de “produtos verdes”). São necessárias, além disso,
instituições de propriedade e gestão adequadas, as quais constituem uma forma
particular de reforma agrário-ambiental. Contudo, ainda persiste a dúvida quanto
ao valor que as populações ribeirinhas atribuem a natureza; qual seria a variável
a influenciar seu comportamento?
A necessidade vital do ser humano de situar, refletir, conhecer, interrogar o nosso
conhecimento, isto é, de conhecer as condições, possibilidades e limites das
aptidões para alcançar a verdade. A busca da incessante verdade de interrogar a
natureza do conhecimento para lhe examinar a validade. A constante busca da
verdade cientifica conduziu o crescimento cientifico a ser organizar,
fragmentando-o em diversas disciplinas separando a espírito (filosofia) e o
cérebro (ciência), onde cada disciplina trata especificamente de uma parte da
ciência, ignorando desde a si próprio até aos outros.
Para Morin, o conhecimento não deve ser reduzido a uma única noção, pois o
conhecimento comporta necessariamente uma competência (aptidão para
reproduzir conhecimentos); uma atividade cognitiva (cognição) em função da
competência; e, um saber (resultados dessa atividade). Essas competências e
atividades cognitivas humanas necessitam de um aparelho cognitivo, capaz de
elaborar e organizar o conhecimento, usando os meios culturais que dispõem,
neste caso, o cérebro, uma máquina bio-fisíca-química. Deste modo, o
conhecimento é para Morin um fenômeno multidimensional, no sentido que é, de
73
maneira inseparável, ao mesmo tempo físico, biológico, cerebral, mental,
psicológico, cultural e social.
A dificuldade de compreender os fenômenos como multidimensionais devem
transmutar-se pelo reconhecimento da incapacidade científica de analisar a
realidade a partir das relações entre vários fenômenos.
MORIN, E. O Método III: O conhecimento do conhecimento. Publicações EuropaAmérica, LTDA. Portugal. 1996.
MORIN, E. O Método IV. As idéias: a sua natureza, vida, habitat e organização.
Publicações Europa-América, LTDA. Portugal. 1996.
MITHOS E LOGOS NA GÊNESE DA
EDUCAÇÃO ESCOLAR
REFERENCIADO AO ALTO XINGU
Lila Rosa Sardinha Ferro
Julho de 2004
“Sejamos objetivos”.
Sejamos objetivos?
– Não! Sejamos subjetivos, diria um xamã,
ou não vamos entender nada.”
Eduardo Viveiros de Castro
74
Mithos e Logos
Keri... Kami... Diante do doente, o pajé evoca a gênese do mundo, instante de
perfeição da materialidade, que surge onde antes só havia o caos e a solidão.
Keri, Kami, verbos soberanos dos começos, traz de volta os momentos sem
lesões e sem defeitos. O pajé reinaugura o tempo e rompe com todas as
atualizações não satisfatórias, para metamorfosear doença em saúde e trazer de
volta a alma perdida do seu paciente.
Ele aspira seu cigarro profundamente, certo de que a leveza faz a similitude entre
a fumaça e o espiritual, e segue esse rastro aéreo em busca de uma
compreensão subjetiva, de um diálogo com o outro, a partir de seu próprio
interior. Na experiência de si próprio, desdobra-se num outro, “que é um outro si
mesmo, real em sua alteridade, ao mesmo tempo que permanece realmente
consubstancial com ele”(Morin, 1996:152), para estabelecer um comércio com os
espíritos, conhecer suas exigências e suas iras, fazer acordos, tendo como
contrapartida o retorno da alma do doente e a sua cura.
O doente é uma criatura cuja alma perdeu-se do corpo, um palco vazio onde as
desordens se instalam. Ao contrário do pajé, ele não está preparado para viver
num “universo ao mesmo tempo uno e duplo, ao mesmo tempo igual e diferente
do nosso universo (idem).
Porém, nem sempre a doença provém de um abandono do corpo pela alma. No
início de um ritual de cura, o pajé deve identificar a natureza do problema e definir
o tipo de tratamento. Se a questão não é espiritual, outro personagem entra em
cena: o raizeiro.
Há uma distinção entre o trabalho do raizeiro e do pajé. Num, as atividades
tendem para uma esfera empírica, técnica e racional, no outro, para uma
atividade simbólica, mitológica, e mágica. Porém, as duas atividades não se
manifestam em universos separados, dicotômicos e antagônicos. Para descobrir
o remédio certo para aquele doente, o raizeiro deverá dormir e sonhar com a
planta, que será indicada pelo seu mestre espiritual, aquele que o assiste em seu
trabalho e em sua pesquisa contínua das plantas. Também vai ter de pedir
licença ao espírito dono daquela raiz e agradecer-lhe de alguma forma a gentileza
de cedê-la, deixando-lhe algum presente, para que, ao retirá-la da terra, leve o
corpo e alma daquela planta, sem os quais, não será possível o efeito da cura
desejada.
Ao contrário, se o problema do doente é de fundo espiritual, então, o pajé deverá
por em ação o seu duplo, que agirá sobre o duplo do sujeito que ele quer curar.
Sairá do seu corpo nos rastros da fumaça que ele faz com seu cigarro, à procura
do espírito do doente que está a vagar pela mata, em companhia de outros
espíritos. Ou então, descobrirá que há, por trás daquela doença, a ação de um
feiticeiro que, por meio de um objeto “embrulhado”, agiu de forma a comprometer
a saúde daquela pessoa. É muito comum, no Alto Xingu, a referência de objetos
mágicos embrulhados, posicionados estrategicamente, que agem de forma a
prejudicar uma pessoa, seja afetando-lhe a saúde, a sua roça, etc. O olho do pajé
em transe é capaz de apontar o lugar onde se encontra tal objeto e evitar que se
75
consume o objetivo do feiticeiro, que é a morte daquela pessoa.
A pessoa curada deve retribuir o benefício com presentes aos pajés ou raizeiros
e, se for o caso, ao espírito que provocou a doença. Um objeto de valor, um colar
de caramujo, um arco preto muito bem feito, uma canoa de casca de jatobá, um
cocar de penas de arara vermelha, de tucano e de gavião real, são ofertas de
muito valor.
Os espíritos exigem uma retribuição que se traduz numa festa, com dança e
música, e na oferta de comida para toda a comunidade. Com certeza, a pessoa
curada terá de fazer uma pescaria grande, com a ajuda de sua família, para
cumprir a sua parte no acordo que lhe restituiu a saúde. O evento da doença e da
cura desdobra-se até o espaço coletivo, incorpora-o simbolicamente e convida a
todos para uma reintegração no cosmo.
“A magia age onde quer que haja desejo, receio, chance, risco, álea.” Porém, traz
para o seu exercício o princípio de realidade, que se revela nos seus
procedimentos técnicos, na atenção às regras do ritual, na lógica da
reciprocidade, em que os benefícios são retribuídos de alguma forma. Nesse
processo, configura-se um sistema de pensamento que chamamos de simbólicomitológico. A presença do símbolo, a existência dos espíritos, a analogia, o
sacrifício e conjugações desses elementos fazem a práxis desse pensamento.
O vivo, o singular e o concreto são os pontos de partida do pensamento
mitológico que, no seu percurso, encontra nos acontecimentos os sinais, os
indícios e mensagens do andamento do mundo. Sendo o universo provido de
alma e fonte de sinais e significação, uma relação dialógica intensa e permanente
se instala entre seres humanos, natureza e cosmo. Há entre eles reciprocidade e
acordos de mútuos favores, respeito e cuidado. O pensamento racional e o
pensamento simbólico estão combinados em todas as atividades humanas e
procedem de uma fonte de “forças e formas originais, principais e fundamentais
da atividade cérebro-espiritual, quando os dois pensamentos ainda não se
separaram.”
Logos e Mithos
As comunidades xinguanas, a partir da década de 40 do século passado,
iniciaram o seu contato com a sociedade brasileira. Os impactos iniciais
produziram tragédias epidêmicas, redução da população e dos territórios
tradicionais, alterações nas estruturas de poder das comunidades e outras
desordens que têm sido incorporadas à custa de uma transfiguração cultural
lenta, mas sempre presente. A saída dos jovens das aldeias em busca de
educação escolar levou os mais velhos a decidirem pela abertura das escolas nas
aldeias, como forma de manter seus filhos na comunidade e prepará-los para um
diálogo intercultural em condição de igualdade e para a busca de direitos e
autoproteção.
76
Então, como conceber uma escola na aldeia, entidade alheia, cujo modelo foi
fundado na tradição racionalista do ocidente, que seja capaz de abrigar um
diálogo intercultural a favor das comunidades indígenas, sem comprometer as
bases de suas atividades cérebro-espirituais?
A aldeia e suas redondezas são espaços de educação e todos aprendem e
ensinam. Os rituais de passagem e as reclusões complementam esse processo,
dando-lhe um aspecto mais formal.
Para nós, a gênese da escola numa aldeia indígena é como reinaugurar o tempo,
com todas as possibilidades de acertar e corrigir os equívocos acumulados na
própria história da escola. É uma oportunidade de restituir-lhe a saúde, devolverlhe a alma.
Uma escola aberta aos conhecimentos indígenas poderá agregar complexidade
aos processos da razão. Ao mesmo tempo, o pensamento simbólico poderá
encontrar um espaço onde possa raciocinar-se.
Embora antagônicos e incompreensíveis um ao outro, os pensamentos mitológico
e racional são complementares, interagem e estão presentes nos nossos
discursos. Descartar o pensamento simbólico “seria esvaziar do nosso intelecto a
existência, a afetividade, a subjetividade para dar lugar apenas a leis, equações,
modelos, formas.” Por outro lado, não podemos abrir mão da objetividade e dos
caminhos da racionalidade para tratar o real.
Aos sujeitos desse processo cabe fundar um meta-ponto-de-vista para uma
observação das emergências provindas das interações entre conhecimentos de
naturezas tão diversas e para alimentar o diálogo ora abalado entre velhas e
novas gerações. Além disso, as reflexões oriundas desse meta-ponto-de-vista
tornam-se importantes para subsidiar as decisões comunitárias que envolvem a
existência da escola.
O impacto do contato intensivo pode estar produzindo uma desaceleração do
ritmo de construção de novos conhecimentos no interior da cultura tradicional.
Aparentemente, o movimento é de incorporar o que vem de fora. Se essa
hipótese tem sentido, a cultura não terá oportunidade de gerar conhecimentos
que a regenerem, e os paradigmas indígenas que ordenam a noção homemnatureza correm o risco de serem esquecidos ou substituídos pela disjunção
homem-natureza que predomina na visão ocidental. Esse fato provavelmente
comprometerá as estratégias culturais relativas às interações com o ambiente
natural, interferindo nas suas formas de manejo e ameaçando a sustentabilidade
das comunidades.
Porém, “as interações cognitivas dos indivíduos regeneram a cultura que
regenera essas interações cognitivas.”(MORIN, 1991:20) Seria impossível
desconhecer que toda cultura tem a tendência de abrir-se ao mundo exterior e
que conhecimentos e idéias transitam de uma cultura para outra. A escola na
aldeia é o espaço promissor que, sendo uma novidade, poderá dialogar com os
novos elementos dessa cultura exterior, refletir sobre eles e perceber seus
sentidos subjacentes, fazer opções e reconstruir a autonomia perdida: “(...) a
77
dialógica é simultaneamente o jogo e a regra do jogo do desenvolvimento da
autonomia do espírito.”(idem:29)
Keri... Kami... As duas palavras são pronunciadas pelo pajé e se referem ao Sol e
a Lua do mito da criação Alto Xinguana.
Bibliografia
MORIN, Edgar. O Método IV. As idéias: a sua natureza, vida, habitat e
organização. Publicações Europa-América, 1991, p.20.
MORIN. Edgar. O método III. O conhecimento do conhecimento. Segunda edição.
Publicações Europa-América. Portugal, 1996, p. 152
ALTO XINGU
QUASE 60 ANOS DE INTERAÇÕES
Lila Rosa Sardinha Ferro
Novembro de 2003
“Você não sabe como era antes quando você chegava numa aldeia. Todo mundo
pintado, tudo muito bonito. Não era assim como hoje. Antigamente, de tardezinha,
o centro da aldeia estava cheio de gente. Velhos, jovens, meninos, todos
reunidos conversando sobre o que tinha feito, o que ia fazer, contando alguma
história, conversando sobre o dia... hoje não, só os velhos vão no centro. Parece
que aquela alegria acabou.”
78
(Ichamã Kamayurá, 56 anos, Alto Xingu, 2003).
As mudanças na cultura do Alto Xingu, de início, foram quase imperceptíveis. A
continuidade do estilo de vida tradicional parecia estar garantida por uma política
isolacionista de preservação ambiental e cultural, a qual fundamentou a criação
do Parque Indígena do Xingu. O discurso carregado de preocupação com
cuidado no trato das comunidades, presentes no projeto de criação do Parque,
contrapondo-se à violência histórica com que foram submetidas as populações
tradicionais brasileiras, mesmo assim, ainda carregava um sentido integracionista
que repercutiu na execução da política governamental para a área.
“A novidade de um parque indígena, cuja representação não existia nas leis, tinha
por objetivos preservar a flora e a fauna e estabelecer um território protegido para
que os grupos indígenas pudessem, aos poucos e espontaneamente,
integrarem-se à sociedade nacional." (Oliveira,1985, pg 295, grifos meus).
O caráter paternalista e assistencialista das políticas dirigidas ao Parque
comprometeu a autonomia das comunidades. Alterando as relações de poder no
seu interior, manteve-as sob controle. Os índios perderam o domínio de suas
fronteiras, no sentido de permitir ou proibir a entrada de novos elementos ao seu
sistema cultural e existencial. Sem controle sobre as suas fronteiras ao longo de
mais de três décadas, as lideranças xinguanas não tiveram oportunidade de, pela
experiência e reflexão, criar os filtros necessários à proteção de suas tradições e,
portanto, dos elementos de sua sustentabilidade.
Realmente, depois da saída de Orlando Villas Bôas, pouco a pouco, as
comunidades xinguanas foram intensificando os seus contatos com a sociedade
envolvente e interações foram ocorrendo entre elementos culturais de ambos os
mundos, produzindo assim novas emergências, reveladas em comportamentos e
determinações individuais que por vezes chocaram-se com os costumes
tradicionais.
Um exemplo de adaptação construído ao longo de séculos que culminou com
uma unidade política, cultural e ecológica, o sistema Alto Xingu, iniciava uma
outra fase de sua história.
Foi difícil, impossível mesmo, mudar o comportamento dos mais velhos. Suas
existências estavam enraizadas num complexo sócio-cultural-ambiental
organizado, cuja seqüência de fenômenos retroagia de forma que, mesmo em
meio a mudanças, o sistema mantinha suas características e suas qualidades.
A alma aberta dos jovens, porém, estava apta a interagir com elementos internos
e externos ao seu mundo. Um chinelo, um calção, uma camiseta colorida, outro
corte de cabelo... depois o rádio, a música, a tv, o futebol. Tudo isso encantou e
seduziu o jovem xinguano. Bens de consumo materiais e culturais de um
79
mercado distante tornaram-se objetos da apreciação e do desejo. Um desejo que
ia além da posse de coisas, mas também o desejo de transitar entre mundos, de
dominar outros códigos, experimentar estilos de vida. Um encantamento inocente
de quem não conhece com profundidade as dificuldades de se movimentar numa
sociedade de classe, na qual o índio sempre esteve marginalizado.
A reação dos mais velhos, a princípio complacente, foi tornando-se contundente
na medida em que a rejeição dos mais novos aos costumes tradicionais também
se exacerbava.
“Eu fiquei na reclusão, arranhei, passei ervas no corpo, tomei remédio. O que eu
ganhei com isso? Nada, eu não ganhei nada...” (K. Waurá, em torno de 32 anos,
vive na cidade)
A observação de K. Waurá incide exatamente no campo sensível da preparação
do corpo-indivíduo para a vida social – a reclusão pubertária, em que os mais
velhos têm um papel fundamental como responsáveis pela condução do processo
de mudança corporal e formação da personalidade, de acordo com o ideal
xinguano de pessoa (Viveiros de Castro, 2002). É este o momento da
aprendizagem dos principais conhecimentos que compõem o saber e o fazer
desses povos em todos os aspectos da vida: nas formas de adaptação ao
ambiente para a produção da sobrevivência, nas formas de organização social,
na cosmologia, gêneses e espiritualidade.
Com o diálogo comprometido entre as gerações, abalava-se a organização
xinguana. Os antagonismos naturais, virtualizados ao longo do tempo, oriundos
das interações entre velhos e moços, emergem e ameaçam desorganizar o
sistema.
“O aumento da entropia, sob o ângulo organizacional é o resultado da passagem
da virtualidade à atualização das potencialidades antiorganizacionais, passagem
essa que, para lá dos limites da tolerância, se torna irreversível”. (Morin, 1977,
pp118).
Por outro lado, no âmago do pensamento xinguano,
“a idéia do devenir histórico é pessimista, implicando que os índios passarão,
deixando lugar aos civilizados, do mesmo modo que outra antiga gente (da qual
descendem) desapareceu. Caraíbas e índios fazem parte da mesma segunda
humanidade. Os caraíbas foram criados depois dos índios, podendo ser
considerados ‘irmãos mais novos’. É natural que os mais novos sobrevivam aos
mais velhos, o que permite explicar de modo satisfatório a desaparição gradual
dos índios.” (Costa, 1988, pg 30).
80
Todo sistema traz consigo o fermento interno de sua degradação (Morin,1977).
Na gênese da humanidade xinguana estão presentes os elementos que
anunciam a sua morte. A imagem do próprio desaparecimento atua como
elemento interno de desordem que, antes apenas potencializado, emerge das
brechas de sua totalidade que está sempre fendida, fissurada e incompleta
(Morin,1977).
Ao incorporar elementos externos, a sociedade alto-xinguana, como todo sistema
aberto, incorpora desordens, as quais geram novas interações. Esse processo
amplia a complexidade do sistema, pois tem de conciliar visões de mundo muito
diversas, mantendo a sua unidade. A organização deve transformar diversidade
em unidade, porém, até certo ponto, pois, a extrema diversidade corre o risco de
fazer explodir a organização e transformar-se em dispersão (Morin, 1977).
A possibilidade de lutar contra a desintegração antagônica e utilizar energias
restauradoras presentes dentro e fora do sistema xinguano esboça-se em meio a
algumas questões.
“As moças não estão acreditando na mãe. O que a mãe está falando, o que o pai
está ensinando. Às vezes o pai fala pra ela , ô filha tira a roupa... ela não acredita.
Acho que tem vergonha de tirar a roupa, mostrar o corpo, andar nua”. (Mulher
Kalapálo, jun 2003)
Como integrar os antagonismos de modo organizacional? Os antagonismos entre
velhos e jovens podem gerar novas interações, na medida em que for possível
relativizar as diferenças e ampliar o diálogo.
“O urucum cozinhou o dia todo. O quintal, sombreado pelas fruteiras, foi tomado
pelo perfume do urucum. Fui com o avô Talhoha para vê-lo recolher o urucum.
Aquela panela grande, toda pintada, o cheiro, a conversa sobre a pintura e a
beleza provocou-me uma irresistível vontade de tocar na massa do urucum. Logo
em seguida apareceu o Arihutuã, que comentou sobre a pintura das mulheres e
perguntou-me se eu queria pintar. Eu concordei e ele pintou minha testa. Em
seguida eu chamei as meninas, suas filhas, para também se pintarem. Então foi
aquela festa: as meninas pintando-se, procurando cinto, colares. Logo veio a mãe
com a resina e o carvão para fazer o sinal xinguano no rosto. Ali, no fundo do
quintal do chefe, estavam reunidas as mulheres da casa. Então eu pedi que as
meninas cantassem um pouco. A princípio envergonhadas, não conseguiam fazêlo sem que um risinho tímido interrompesse a cantoria. Somente quando a mãe
tomou a frente, é que o canto e a dança encorparam-se, arrastando os jovens e
as crianças. Ali estava presente uma autêntica professora de música de
yamurikumã”. (Lila Sardinha, diário de bordo, jun, 2003)
Como renovar a energia para regenerar a organização? Um convite aos mestres
81
da tradição da comunidade ao espaço escolar, espaço este, a princípio alheio à
tradição, porém atualmente inscrito no dia a dia de jovens e crianças, pode
revitalizar as abaladas relações entre as gerações. A extensão da aprendizagem,
da esfera doméstica em direção ao espaço coletivo da escola, oferece novas
possibilidades para reconstrução dos sentidos dos saberes e fazeres tradicionais.
“Entre 1960 e 1970, cada comunidade de cada etnia vivia bem, tinha muita festa
coletivamente dentro das comunidades, sem televisão e gerador. Hoje em dia já
apareceu qualquer tipo de objetos dos brancos no Parque, por exemplo: tv, motor
de popa, motocicleta, bicicleta etc. Nas imagens da tv os jovens e as crianças
ficam observando o movimento do não-índio, então querem imitar o corte de
cabelo, não querem se pintar, não obedecem mais os pais e as pessoas mais
velhas”. (Yunak Yawalapíti, 2003)
Como auto-defender-se contra os agressores externos e corrigir desordens
internas? Amadurecendo as visões a cerca da cultura envolvente, no sentido de
fazer a crítica aos estilos de vida ditos caraíbas, ampliando a percepção de suas
contradições, ao mesmo tempo, refletindo sobre a diversidade cultural como uma
saída contra os processos homogeneizadores do mundo globalizado. Isso
significa transformar a postura ingênua dos jovens em relação à aparente
facilidade da vida nas cidades e valorizar sua tradição como fonte originária de
cultura da humanidade.
“Se a gente, daqui uns dias, perder nossa cultura, aí não tem mais valor, ninguém
dá mais valor para nossa vida”. (Anarrin Waurá, 2003)
Como auto-multiplicar-se de modo que a taxa de reprodução ultrapasse a taxa de
desintegração? Investindo nas crianças, que são abertas aos processos da
aprendizagem, em todos os sentidos, tendo a consciência de que, atualmente, os
processos naturais e coletivos da aprendizagem da vida e a educação familiar
necessitam de serem contextualizados nas relações interculturais que se
estabeleceram depois do contato com a sociedade brasileira.
“É nos sistemas fundados sobre a reorganização permanente que a desordem é
desviada, sem ser excluída, porém tornando-se um elemento da reorganização”
(Morin, 1997, pg 128)
Bibliografia
MORIN, Edgar. O Método IV. As idéias: a sua natureza, vida, habitat e
organização. Publicações Europa-América, 1991.
MORIN. Edgar. O método III. O conhecimento do conhecimento. Segunda edição.
Publicações Europa-América. Portugal, 1996.
82
A EDUCAÇÃO NUTRICIONAL E
A TEORIA DA COMPLEXIDADE
Lívia Penna Firme Rodrigues
Maio 2006
Vi na TV domingo passado que, no interior do Maranhão, as famílias numerosas
têm para comer no café da manhã apenas farinha. Farinha de mandioca pura,
crua.
Esse fato bateu fundo na minha rígida formação cientifica cartesiana e soluções
“nutricionais”, “aulas de educação nutricional” me vêm à cabeça
automaticamente, desafiando meus estudos da teoria da complexidade.
Sou formada há mais de trinta anos, época em que problemas de nutrição em
saúde pública eram a desnutrição e as deficiências de vitaminas e minerais,
estudados exaustivamente do ponto de vista bioquímico, fisiológico e patológico.
Sabíamos que a causa básica disso tudo era a Fome, no entanto nos
colocávamos à margem desse problema.
Mais tarde, no final da década de 80, veio a transição nutricional e as doenças
por excesso de nutrientes se tornaram também problemas de saúde pública no
Brasil. Sobrepeso e obesidade, diabetis, dislipdemias e hipertensão atingem
grande parte da população, e a fome e suas conseqüências continuam a vigorar
em algumas regiões do país.
Me pergunto: O que a Ciência da Nutrição e a Educação Nutricional têm feito
83
para melhorar essa situação? Várias pesquisas epidemiológicas e bioquímicas
foram feitas nos últimos vinte anos, comprovando que sim, realmente, temos
vários e graves problemas nutricionais. O caso das crianças do Maranhão é
apenas mais um, bem conhecido há décadas. O que o avanço científico,
tecnológico, industrial trouxe de útil para melhorar a qualidade de vida dessas
crianças?
Procuro fazer uma análise dessa situação. Percebo como esse exercício
acadêmico pode ser limitante. As referências bibliográficas, os textos clássicos,
as revistas classificadas em A, B, C... surgem emolduradas pelos limites teóricos
impostos, e me sinto impossibilitada internamente de sair desse modelo gerado
pela Ciência da Nutrição. São como grades de uma prisão que impedem meu
pensamento de voar mais longe.
Dois semestres estudando a teoria da complexidade dão uma boa chacoalhada
nisso tudo. Apesar de ainda não ter conseguido “arrumar” a bagunça toda na
minha cabeça, vou expor algumas reflexões, até onde consegui chegar, ou
melhor, enxergar.
A Perda da Certeza
Percebo que perdi a certeza fundamental que embasou meus fragmentados
conhecimentos científicos, distanciados de uma realidade cultural, social,
econômica, mas que sempre esteve lá, presente, me dando uma falsa impressão
de que conseguiria resolver alguma coisa. A certeza de que poderia resolver, pelo
menos em parte, “a falta de educação alimentar” de um indivíduo ou comunidade,
ruiu completamente. Aquelas soluções técnicas, homogêneas, similares, que
pareciam se encaixar tão bem em diversas situações, perderam seu efeito e
deram lugar à incerteza.
Ainda insegura, percebo que o mistério, inexistente noutros tempos, passou a
freqüentar meus pensamentos. Mistério que em momentos confundo com
ignorância, embotamento. Parece que desaprendi tudo, ou que nunca aprendi
nada. Em outros momentos, vislumbro brechas, luzes. E compreendo que a
desordem faz parte de uma nova ordem que está surgindo, e como diz Morin,
“não exclui nada, incorpora o que existe e vai além...”.
E na transformação de meu olhar, realizo que as crianças do Maranhão não estão
lá longe, como um objeto de minha observação, mas fazem parte de uma grande
espiral, na qual estou incluída. Essa espiral contém vários anéis recorrentes que
englobam todos os aspectos, ao mesmo tempo dependentes e autônomos, que
determinam a vida e seus problemas.
Para resolver os problemas nutricionais, precisarei olhar e englobar todos esses
aspectos, tendo uma visão das partes, sem esquecer o todo, e lembrando que as
soluções serão inacabadas, dinâmicas, não lineares, instáveis, imprevisíveis...
Um Novo Olhar na Educação Nutricional
O Caso das Crianças do Interior do Maranhão
84
Como seres vivos, as crianças do Maranhão comem farinha no desjejum para
obter a energia necessária para continuarem vivas, se auto-organizando a partir
do que o meio lhes oferece. Seus corpos se adaptam a essa limitação para
sobreviver, gastando o mínimo de energia possível. Como o corpo tem outras
necessidades, essa limitação gera doenças nutricionais além da apatia, outro
recurso utilizado para economizar energia.
Resolver essa situação implica em soluções multidisciplinares que englobem
aspectos econômicos, políticos, educacionais, estruturais entre outros.
Como Nutricionista de formação cartesiana, penso que nesse caso não poderei
fazer nada, pois as soluções parecem distantes, não pertencendo ao meu
universo de ações. Sem visão do todo, sem uma prática multidisciplinar, percebo
minha atuação limitada e julgo que solucionar esses problemas é tarefa dos
políticos.
Pelas brechas que a teoria da complexidade tem aberto, pergunto: por que essas
crianças estão comendo farinha de mandioca?
É uma tradição na região plantar mandioca. As famílias das quais dependem
essas crianças têm como hábito alimentar comer pratos à base de mandioca e a
farinha de mandioca é um acompanhamento importante para vários tipos de
comida da região. A fabricação da farinha de mandioca é feita na Casa de
Farinha, organizada pela própria comunidade, comum em locais onde há
plantação de mandioca.
Os outros alimentos, que dão origem às outras comidas, não estão presentes
porque:
1. A terra de plantio está destinada às grandes monoculturas;
2. Não há apoio para a agricultura familiar, gerando êxodo rural, desemprego e
miséria;
3. O clima da região, tipicamente seco, agrava a situação, dificultando o cultivo e
a criação de pequenos animais para alimentação;
4. O desmatamento de regiões próximas como a da Amazônia, gera
desequilíbrio ecológico, agravando a seca que já é típica da região;
5. As monoculturas de cana de açúcar absorvem os trabalhadores que
permaneceram na região, recebendo salário baixo e comprando alimentos
nos comércios das próprias fazendas, a um preço alto.
Como conseqüência, a farinha de mandioca que culturalmente é um alimento
complementar, passa a ser o único. Isso também devido ao fato de ter uma vida
de prateleira mais longa, podendo ser armazenada.
Brasileiras, essas famílias gostariam de ter em seu prato arroz, feijão e carne
além da farinha de mandioca. Ou tapioca com queijo e café no desjejum. Outros
acompanhamentos como abóbora, couve e batata doce também são apreciados
na região. Portanto elas sabem como se alimentar! Não se trata de resolver o
problema com educação nutricional.
85
E qual seria a solução?
É fundamental a garantia de segurança alimentar para essa comunidade. O
Governo federal, estadual e municipal, responsável pela segurança alimentar,
poderia estar engajado no combate à fome e desenvolver ações complementares,
através de uma equipe multiprofissional, da qual o Nutricionista faria parte e que
poderia estar engajado em ações como:
1. Promoção do aleitamento materno;
2. Elaboração de horta comunitária, escolar e domiciliar;
3. Elaboração de cursos para aproveitamento integral de alimentos entre outros
itens;
4. Conscientização sobre o uso adequado da água, destino do lixo e outras
questões ambientais;
5. Diagnóstico do estado nutricional e orientação alimentar para a população;
6. Organização de feiras de trocas e outras atividades de economia solidária.
A Educação Nutricional não pode ser uma ação isolada, nem ter soluções
prontas. Deve estar concebida como parte de outras ações que respeitem o
contexto cultural, social, econômico e ambiental de uma determinada
comunidade, sempre se renovando, se construindo, como uma emergência. E
essas ações devem ser planejadas com a participação da comunidade,
conhecedora de seus interesses e necessidades.
A Educação Nutricional e a Teoria da Complexidade
A Educação Nutricional está mais presente nos setores de saúde e educação,
sendo os centros de saúde e escolas os locais onde poderemos estar fazendo
uma reflexão para exemplificar a rede de conexões que fazem parte de cada um
desses locais, freqüentados regularmente pela população
Centros de Saúde
Tradicionalmente, os centros de saúde são locais para atividades de promoção
de saúde. Atualmente muito desse espaço se perdeu, devido principalmente ao
elevado número de doenças que acompanham a epidemia de sobrepeso e
obesidade que assola o país. Hipertensão arterial, diabetes mellitus, doenças
cardiovasculares, dislipdemias são as patologias predominantes, fazendo com
que a atenção primária de saúde se ocupe principalmente do tratamento e
prevenção dessas doenças, sendo a qualidade de vida e a alimentação os
principais fatores etiológicos.
No Centro de Saúde há atividades de atendimento individual e de grupo, com
participação multidisciplinar dos profissionais. Um caso de obesidade, por
exemplo, para seu tratamento correto, envolve o atendimento da enfermagem, do
médico, psicólogo e do nutricionista em equipe, com sintonia e diálogo entre os
profissionais. Não se trata de cada um fazer apenas a sua parte! Dependendo do
caso é necessária a participação do assistente social e da realização de visitas
domiciliares. Sabe-se que a etiologia da obesidade é complexa, envolve vários
fatores sociais e individuais e seu tratamento não é fácil. Para que tenha sucesso,
a família do paciente deve estar envolvida e reconhecer a necessidade da
86
mudança de hábitos alimentares, estar motivada para aprender a preparar novas
receitas, experimentar sabores desconhecidos, adquirir o que não é habitual. Isso
precisa ser passado para os pacientes de forma individual, durante as consultas
com os profissionais, e em grupo, durante as atividades de educação em saúde.
As palestras educativas, prática comum nos ambulatórios e centros de saúde,
devem estar acompanhadas de atividades práticas e interativas com dinâmicas
de grupos, em que os participantes sejam atuantes e responsáveis pelo seu
aprendizado. Atividades em cozinha experimental e em hortas comunitárias,
apoiadas pelos agentes de saúde e associações de bairro, poderiam estar
complementando o trabalho iniciado no Centro de Saúde, dando oportunidade
para que mudanças consistentes aconteçam.
A obesidade é apenas um exemplo, mesmo em outras deficiências nutricionais
como anemias, desnutrição, deficiência de vitamina A, por exemplo, é importante
que esta conexão de fatores seja considerada. Para a resolução do problema de
forma duradoura, torna-se imprescindível atuar nos fatores determinantes ao
mesmo tempo e de forma integrada, com ações que passam a se multiplicar
espontaneamente nas comunidades envolvidas.
Escolas
O conteúdo de educação nutricional não deve ser apenas mais uma disciplina na
escola, mas estar integrado ao conteúdo de ciências físicas e biológicas,
português, matemática, artes, geografia e história. A alimentação é um ato social,
presente no cotidiano do ser humano, sendo a educação alimentar apenas parte
das “educações” a que estamos todos submetidos. Tratar a educação nutricional
como mais uma matéria, vai apenas contribuir para que a escola se torne ainda
mais desagradável e pouco criativa aos olhos do educando.
Não basta controlar a cantina, oferecer lanches saudáveis, fazer palestras sobre
alimentação saudável. É preciso formar opinião, criar consciência sobre a
importância da alimentação saudável para a vida e a saúde.
A horta escolar é um excelente recurso para propiciar momentos educativos para
as crianças e adolescentes. De forma lúdica e prazerosa, pode-se estar criando
novos hábitos de alimentação, pois ao se observar o milagre do florescimento e
do crescimento proporcionados pela terra, a criança terá uma experiência real
sobre a cenoura, o rabanete, a couve, o tomate. Ela irá semear, colher e preparar
esse alimento. E isso vai muito além de ouvir falar sobre ele.
Outra experiência importante e fortemente recomendável é a cozinha
experimental. Observar a transformação dos alimentos em comida. Testar
técnicas dietéticas. Admirar cenouras, beterrabas e rabanetes lavados e ralados,
dispostos em um prato redondo, em forma de uma mandala de cores,
deliciosamente temperados com azeite, limão e sal, se transforma em uma forte
experiência sensorial para a criança, envolvendo a visão, tato e paladar.
Aspectos negativos de alimentos mal preparados e que são altamente prejudiciais
ao organismo humano, como a alteração do óleo após diversos aquecimentos
pelas frituras, o uso excessivo de agrotóxicos nos legumes, verduras e frutas, o
87
processo de refinação do açúcar, a agressiva produção de animais para corte,
devem ser levados para as crianças. Existem filmes ilustrativos sobre esses
temas que contribuem para a formação de uma opinião própria sobre esses
assuntos.
Ressalta-se com isso o caminhar paralelo da educação ambiental com a
educação nutricional. Sabemos, por exemplo, o quanto a água é importante para
a saúde e a necessidade de ingerir pelo menos oito copos de água por dia. Essa
simples recomendação envolve vários questionamentos. Há água potável
suficiente para a população? A água disponível é tratada? A água de consumo
domiciliar é filtrada? As pessoas estão sendo educadas para ter um consumo
consciente da água? Os habitantes do local estão conscientes que a água pode
acabar? Responder a estas questões na escola e na comunidade, implica em
ações de educação ambiental e nutricional.
Outro ponto importante é relativo ao consumo de agrotóxicos. Como educadores
e nutricionistas, enfatizamos a importância do consumo de, no mínimo, cinco
porções diárias de frutas, legumes e verduras. Outra série de questionamentos
pode ser feita. Qual a procedência desses alimentos? Que tipos de resíduos de
agrotóxicos possuem? Qual a procedência da água de irrigação? Como estão
sendo higienizados no nível doméstico? Como está sendo feita a preparação
desses alimentos? Estão passando por um processo de cozimento além do limite
desejado? Os resíduos estão sendo aproveitados para compostagem utilizada na
adubação de hortas? E que tipos de hortas estamos propondo? O que são hortas
perenes?
E por aí vai... São muitas questões, soluções, sugestões que estão interligadas,
formando uma rede de alternativas, absolutamente dinâmicas, provisórias,
inacabadas, não lineares, instáveis, imprevisíveis que precisam ser olhadas e
incluídas, tendo uma visão das partes e do todo.
Entendo, portanto, que cada centro de saúde, cada escola, cada família, cada
comunidade, é uma célula de uma grande rede, que precisa ser tratada
individualmente e coletivamente por seus participantes, habitantes e dirigentes,
que juntos buscarão as melhores e possíveis soluções para seus problemas de
educação e saúde, sendo a educação nutricional uma parte que compõe isso
tudo.
Inclusive para o interior do Maranhão, onde vivem aquelas crianças que só
comem farinha de mandioca no desjejum.
88
CORPOREIDADE: UMA CONCEPÇÃO DE
SER HUMANO PARA A PRÁTICA PEDAGÓGICA
Renato Bastos João
Dezembro de 2005
Introdução
Professores são seres humanos, os educandos, foco central da educação,
também são seres humanos, mas qual é o conceito de ser humano que orienta a
prática educacional em todos os níveis de ensino?
Com o objetivo de propormos uma reflexão acerca desta questão, o presente
artigo apresentará uma concepção de ser humano que possa servir como uma
referência concreta para a formação de professores e educandos.
Para referirem-se ao ser humano nas reflexões teóricas, as várias perspectivas
teóricas que constroem o conhecimento pertinente à Pedagogia, adotam,
predominantemente, a palavra sujeito. Sujeito é o ser humano presente no
processo educacional, em todos os níveis de ensino. A definição de sujeito
parece ser obvia e trivial para todos aqueles que estão envolvidos nas discussões
89
A DESORDEM CRIADORA:
CRISE AMBIENTAL E EDUCAÇÃO
Lais Mourão Sá
Abril de 2006
(...) é exatamente na articulação da subjetividade em estado nascente, do socius
em estado mutante, do meio ambiente no ponto em que pode ser reinventado,
que estará em jogo a saída das crises maiores de nossa época.
Felix Guattari.
Resumo
Este artigo discute as relações entre o papel da Educação e a necessidade de
superação da insustentabilidade socio-ambiental no atual modelo de civilização.
Existe em nossa sociedade um modo dominante de entendimento da idéia de
Educação que costuma tomá-la como sinônimo de educação formal, escolar e
universitária, realizada pelas instituições legitimamente reconhecidas para estas
funções, chamando de "informal" tudo o que não cabe nesses contextos. Este
90
modo de conceber a Educação reduz a uma categoria residual um vasto campo
de relações sociais, na escala dos processos sócio-políticos locais, comunitários
e cotidianos, onde a prática educativa pode exercer um forte papel transformador.
A presente discussão pretende construir uma noção complexa de educação, com
base em sua importância estratégica num contexto de mudança de paradigmas,
na intenção de gerar uma compreensão que prescinda da necessidade de
distinguir entre educação formal e não-formal, ou entre os vários focos
fragmentados da Educação, como é o caso do qualificativo "ambiental".
Ao mesmo tempo, enfatiza-se a extraordinária força que a questão ambiental vem
trazer para o exercício transformador da educação, colocando a preocupação
com a dimensão pedagógica dos processos de gestão ambiental no cerne da
necessidade de mudança dos paradigmas socio-culturais vigentes.
Como referência para uma compreensão do paradigma que gera a
insustentabilidade e a crise ambiental, colocam-se como referência as relações
de disjunção entre Ecologia e Economia, e entre Economia e Cidadania, no
modelo do capitalismo industrial globalizado.
As premissas para um pensamento complexo, colocadas por Edgar Morin,
apresentam grande utilidade prática para orientar essa compreensão sobre o
lugar da Educação nos sistemas de gestão. O enraizamento dos problemas
antropossociais em suas dimensões biológica e física permite ampliar a visão das
interconexões sistêmicas que devem ser retomadas para refazer os elos perdidos
na crise socio-ambiental atual.
Como instrumento para navegar na dimensão pedagógica da mudança de
paradigmas propõe-se um conceito complexo que articula quatro instâncias
antropossociais (oikos-domus-ethos-polis). O conceito pode ser utilizado como
uma lente microscópica para identificar e interpretar os diversos tipos de relações
complementares, antagônicas e concorrentes que se apresentam nos processos
de gestão ambiental, para uma visão integrada dos processos de transição de
paradigmas.
Outro aspecto importante é a referência à dimensão comunicativa da educação,
que fortalece a capacidade interativa entre os atores sociais envolvidos nos
processos de gestão ambiental. Neste sentido, propõe-se que as ações
educativas atuem no sentido da formação de redes comunicativas entre os atores
sociais envolvidos, garantindo o espaço de mediação de interesses e conflitos, e
a produção de uma ecoética, com base numa consciência ambiental coletiva.
Assim, a Educação surge necessariamente como uma dimensão transformadora
da práxis social, como suporte do processo de transição cultural, indispensável à
sustentabilidade das ações de gestão ambiental.
Palavras-chave:
sustentabilidade.
Gestão
ambiental,
educação,
pensamento
CRISE AMBIENTAL, MUDANÇA DE PARADIGMAS E EDUCAÇÃO
complexo,
91
É inegável que as questões ambientais constituem o eixo aglutinador de todas as
crises vividas por nossa civilização neste início de século e de milênio.
Nos campos científico e político, tem sido bastante discutida a importância de
uma compreensão das questões ambientais enquanto possibilidade de
construção teórico-prática de um novo paradigma que venha responder aos
complexos desafios por elas colocadas (Ardoino & Berger,1998, Leis,1995 e
Levi,1995).
Este desafio exige uma mudança de postura nas mais diversas áreas de
conhecimento e práticas sociais. Ele pede que sejam desenvolvidos os potenciais
de integração e multirreferencialidade do conhecimento humano, de modo a
poder lidar com um campo de convergência entre dimensões e contextos até aqui
vividos de modo fragmentado.
Neste sentido, as questões ambientais exigem, por exemplo, que sejam
transformados nossos padrões de pensar e atuar sobre as relações entre
ecologia e economia, entre o público e o privado, entre a natureza, a comunidade
e a dimensão intersubjetiva. E tudo isso aparece intrinsecamente vinculado a uma
redefinição do papel da Educação em nossas sociedades.
O surgimento, na década de 60, do termo "Educação Ambiental", foi uma primeira
tentativa de resgate da função primordial da educação, diante de tão graves
problemas. No entanto, neste momento inicial, predominou uma concepção
superficial e pouco crítica sobre o complexo papel que a Educação tem a
desempenhar no enfrentamento destes problemas. Sendo a mudança de
paradigmas um lento processo de tentativas, retrocessos e emergências, é de se
esperar que essa concepção esteja ainda em plena construção.
Para que possamos visualizar a densidade socio-cultural da tarefa de uma
Educação transformadora, é preciso, antes de tudo, compreender a natureza
fenomenológica dos paradigmas e as profundas raízes de resistência cultural que
eles criam, alimentam e reforçam.
Os paradigmas formam o núcleo duro de nossas idéias e sentimentos, atuam
como um programa em nosso espírito, como um princípio de coesão e coerência
que confere legitimidade e caráter de verdade às nossas convicções, fazendo-nos
cegos às possibilidades deixadas de lado, ilegitimando-as e excluindo-as do
mundo percebido como real. Assim, repudiamos o divergente e o desconhecido,
os desvios e as possibilidades revolucionárias, por uma incapacidade de integrar
os argumentos de verdade trazidos pelo que negamos (Morin, 1998).
Para uma ação eficaz de transformação das bases paradigmáticas de um modelo
sedimentado, é preciso desconstruir com muito cuidado o muro que limita nossa
92
visão, e, com seus tijolos, construir pontes de comunicação e compreensão
renovadas.
É o que acontece com o desafio trazido pelas questões ambientais, pois elas nos
colocam problemas globais cuja solução exige que mudemos nossas formas
individualistas e fragmentadas de organizar a percepção e as relações humanas,
desde o plano subjetivo e interpessoal, até as grandes decisões da política
internacional.
Desta forma, a tarefa transformadora da Educação implica em gerar um efeito
turbilhonar na consciência coletiva e pessoal, atuando sobre o imprinting cultural
que organiza os princípios inconscientes, propiciando o contexto de novas
interações que permitam reorganizar nossas premissas de compreensão do mundo
e de nossas práticas.
ECOLOGIA HUMANA E EDUCAÇÃO
Uma das mais produtivas contribuições do paradigma ambiental para a concepção
crítica e criativa da Educação veio da área da Ecologia. Ela surge na década de 50,
a partir do campo disciplinar das Ciências Biológicas, numa tentativa de integrar as
ciências naturais e humanas, a partir da noção de ecossistema.
Transportado para o campo interdisciplinar das Ciências da Vida, o conceito de
ecossistema revelou-se de grande valor estratégico para a compreensão questões
socio-ambientais. Com ele tornou-se possível construir a relação entre os processos
culturais e as condições ambientais neles envolvidas, e mostrar a importância dos
processos criativos da cultura nas relações entre os humanos e o ambiente que
habitam, o seu oikos (Neves, 1996 e Viertler, 1988).
Assim, numa construção interdisciplinar, a abordagem ecológica traz para o campo
de estudo das realidades humanas a possibilidade de situar as formas de
comunicação e organização antropossociais, intersubjetivas e intergeracionais, no
contexto complexo da evolução dos biossistemas onde se inserem.
Para a construção de uma visão transformadora da Educação em situações de crise
e mudança de paradigmas, a abordagem ecológica permite compreender os
comportamentos destrutivos dos humanos do ponto de vista das rupturas nas
relações ecossistêmicas entre os seres vivos. Enquanto fundamento para uma ação
educativa, essa compreensão permite identificar os pontos em que os modos
humanos de compartilhar o oikos com os demais seres vivos foram rompidos e se
desligaram da lógica de equilíbrio do todo.
Podemos, então, falar de uma Ecologia Humana, e dizer que toda verdadeira
educação deve ser uma ação ecológica. Segundo David Orr (1992), a crise de
sustentabilidade socioeconômica e ecológica que afeta gravemente a
modernidade pode ser interpretada também como uma crise psíquica e espiritual.
Esta crise de sustentabilidade teria suas raízes na perda dos vínculos éticos que
protegiam e regulavam as relações de domínio sobre a natureza, e que foram
93
parte da experiência de nossa espécie, nas sociedades que antecederam o atual
modelo civilizatório.
Assim, pode-se dizer que a crise atual é fruto de condições patológicas da
consciência humana, que anularam a força instintiva de sobrevivência coletiva da
espécie, levando-a a destruir as próprias condições ecológicas que sustentam a
sua existência no planeta.
Adotar a ênfase da Ecologia Humana em nossa compreensão da função da
Educação no momento presente significa adotar uma visão ética que reconheça o
fato de que cabe à espécie humana a responsabilidade pela preservação ou
destruição da vida no planeta.
Neste sentido, as propostas de Educação para a gestão ambiental devem enfocar
a criação de bases organizativas sustentáveis para as relações humanas,
capazes de promover e preservar valores adequados a uma ecoética e ao
ecodesenvolvimento. Isto tem a ver com a dimensão política das relações
humanas.
Coloca-se também a necessidade de lidar com o global e o local, com a
dimensão global da crise ambiental e a organização de processos locais de
gestão da crise. A visão ampliada da interconexão sistêmica e global dos
fenômenos socio-ambientais contemporâneos deve estar integrada a estratégias
localizadas para a criação de soluções específicas, a partir da preocupação com
as necessidades da sustentabilidade local.
Assim, a perspectiva da Ecologia Humana revela que as ações de Educação para
a gestão ambiental devem estar em sintonia com objetivo de:
“gerar mecanismos de regulação política capazes de induzir mudanças de
percepção, atitudes e comportamento condizentes com o entendimento das
causas humanas da crise ambiental e com a experimentação de estilos de vida
alternativos” (Vieira, 1998:72)
A Educação para a mudança de paradigma exigida pela crise ambiental deve ser
compreendida, portanto, como uma prática voltada não apenas para o contexto
escolar, mas ampliada para incluir todas as questões cognitivas, comunicativas e
socio-políticas colocadas pelas questões ambientais.
CONSTRUINDO UM CONCEITO COMPLEXO PARA ABORDAR A CRISE E A
GESTÃO AMBIENTAL
Para instrumentalizar nosso olhar sobre essas questões, propomos um conceito
complexo que permita uma visão integrada dos processos socio-ambientais.
Utilizaremos quatro construções conceituais, cuja articulação forma o conceito
complexo oikos-domus-ethos-polis.
94
A dimensão do oikos (do grego: casa, abrigo) será entendida aqui com referência
à gestão do saber técnico, à relação instrumental com a Natureza, que define o
modo humano de habitar e inserir-se no mundo da vida. Incluem-se aí as formas
de lidar com o tempo-espaço dos ritmos planetários e ecossistêmicos da vida, as
formas de inserção humana nos processos de auto-eco-organização dos
sistemas vivos. É na sincronização entre o metabolismo biológico e os ritmos e
instrumentalidades produzidos pela cultura humana que se colocam as condições
de sustentabilidade da relação entre ecologia e economia.
A dimensão do domus (do grego: dêmos/dámos) refere-se à unidade relacional
básica de produção, e reprodução congregando pessoas que compartilham um
mesmo território. É entendida aqui com referência à gestão dos recursos e
interesses privados, no interior de unidades sociais mínimas onde se efetuam as
funções de produção, de reprodução e de consumo, tais como famílias e
empresas, entre outras. Nesta dimensão enfoca-se o aspecto particular e íntimo
representado pela articulação corpo/casa/território, que é a base substantiva das
vivências cotidianas locais. Constroem-se aí os vínculos psíquicos que unem as
pessoas em relações intersubjetivas, articulando o pessoal e o coletivo. É nesta
dimensão que se tece o pertencimento grupal, na diversidade de níveis entre a
pessoa e a família, a vizinhança e a rede de relações pessoais da comunidade
local. Definem-se assim os papéis básicos da vida social, a partir dos padrões
culturais que atribuem valor simbólico à condição biológica dos humanos
(infância, adolescência, maturidade, velhice, ancestralidade, relações de gênero).
A dimensão do ethos (do grego: modo de habitar, de ser/estar) é a dimensão
onde se colocam as questões fundamentais para a definição da identidade
coletiva, o Nós que emerge de um modo de ser compartilhado. É a dimensão dos
valores e ideologias que retroagem sobre sentimentos e desejos, guiando os
comportamentos individuais e ajustando-os a um sentido de coletividade.
Nesta dimensão colocam-se os valores que limitam a ação humana em relação à
teia da vida, e nela podemos identificar as ideologias que vão definir a relação de
pertencimento ou separação do mundo humano. Segundo Nancy Mangabeira
Unger,
"na raiz do debate entre humanismo e biocentrismo pergunta-se: quem é o
homem? Qual o seu lugar na arquitetura universal? Existe uma fonte
transcendente ante a qual encontramos nossos limites e nossos deveres, ou é o
ser humano ‘medida de todas as coisas’ ?” (Unger, 1991:73)
Inserem-se aqui questões ligadas aos fundamentos culturais e relacionais dos
papéis sociais construídos no contexto do domus e que legitimam os hábitos e
estilos de vida gerados no processo de socialização, nas unidades de produção,
consumo e reprodução.
Podemos utilizar, aqui, a noção de habitus, criada por Bourdieu (1972) para
referir-se aos fenômenos de imprinting dos padrões culturais na vivência cotidiana
dos indivíduos, e que converge com o conceito de paradigma abordado acima.
Bourdieu fala de um sistema de disposições duráveis que se torna matriz de
95
representações e ações, de acordo com a posição dos sujeitos na estrutura
social. No que se refere à racionalidade do lucro capitalista, esta dimensão
aponta para os efeitos das ideologias do individualismo e do consumismo na
formação da ética pessoal e grupal.
Por fim, a polis (do grego: espaço social urbano, locus de reunião dos cidadãos) é
entendida aqui quanto à gestão dos bens e interesses públicos, à definição
coletiva das regras de troca socio-econômica, à regulamentação jurídica das
relações entre o público e o privado.
Esta
dimensão
pode
ser
vista
em
espiral
desde
a
intersubjetividade/interpessoalidade das relações de vizinhança e do bairro, até a
instância da comunidade e da cidade, e assim sucessivamente, até as relações
globais de gestão planetária.
Inserem-se aqui questões referentes às possibilidades de articulação complexa
entre o poder público e a sociedade civil, no sentido de uma micro-física da
cidadania e de uma discussão sobre as relações entre democracia direta e
representativa.
A articulação epistemológica entre essas quatro categorias nos permite construir
um conceito complexo capaz de instrumentalizar nosso olhar sobre as questões
da educação para a gestão ambiental. A partir de uma observação interpretativa
nas situações concretas, podemos identificar o tipo de relação complexa existente
entre oikos-domus-ethos-polis, em cada contexto e momento.
É importante compreender a lógica do pensamento complexo quanto à
concepção das relações possíveis entre os elementos considerados. Assim, a
complementaridade se refere à possibilidade de harmonia entre os contrários; o
antagonismo é a mútua anulação, destruição ou oposição; e a concorrência, a
simultaneidade ou paralelismo entre processos que ocorrem ao mesmo tempo.
Entre as quatro dimensões consideradas, há uma diversidade de possibilidades
de relações, segundo os contextos, sendo que a qualidade complexa do conceito
permite a percepção e avaliação dos efeitos práticos dessas variações.
BUSCANDO
AMBIENTAL
AS
RAÍZES
DA
INSUSTENTABILIDADE
E
DA
CRISE
A lógica do paradigma que gera a insustentabilidade e a crise ambiental pode ser
abordada a partir de uma interpretação das relações entre Ecologia e Economia,
e entre Economia e Cidadania, tal como se apresentam no modelo do capitalismo
industrial globalizado.
Do ponto de vista da relação Economia-Ecologia, ocorre uma disjunção entre o
metabolismo biológico e o industrial.
O metabolismo biológico é controlado pelos ritmos de auto-eco-organização dos
ecossistemas, que realizam sem cessar as transformações entre energia e
matéria em todo o planeta. Porém o metabolismo industrial da economia
capitalista alcançou atualmente ritmos e intensidades que entram em franco
descompasso com o metabolismo biológico. O nível de desenvolvimento
96
tecnológico contemporâneo produz uma grande pegada ecológica (resíduos,
poluição) e o envenenamento da biosfera (Tiezzi, 1988).
A apropriação privada dos recursos naturais, guiada pela lógica capitalista do
lucro, com seus ritmos produtivos artificiais lineares e em aceleração crescente, é
a raiz da crise ambiental e da grande quantidade de lixo e poluição gerada na
produção e no consumo. Os ritmos cíclicos do metabolismo ecológico não
conseguem mais integrar esse excesso: ecologia e economia estão em total
dissociação, no atual padrão civilizatório.
A ética que confere sentido a essa racionalidade pode ser compreendida a partir
dos valores e ideologias que dão suporte às práticas interpessoais na cultura
capitalista e reproduzem as estratégias socioeconômicas, tais como a
competição, o individualismo, a degradação da cooperação, a concentração da
riqueza e a exclusão social.
Do ponto de vista da produção, esta ética está presente nas tensões entre capital
e trabalho, entre o público e o privado, aparece sob a forma da obsolescência
planejada dos produtos-mercadorias, e, no caso do capitalismo globalizado,
tensiona as relações entre as necessidades coletivas de preservação do bem
comum, e os interesses privados das empresas multinacionais.
No processo de consumo, manifesta-se sob a forma da descartabilidade, do
desperdício, da geração de necessidades artificiais e dos resíduos não reciclados
que contaminam o meio ambiente e degradam a qualidade de vida.
Buscando entender microfisicamente os efeitos destes fenômenos nas dimensões
pessoal e coletiva dos comportamentos e estilos de vida, Guattari afirma que:
"O lucro capitalista é, fundamentalmente, produção de poder subjetivo. Isso não
implica uma visão idealista da realidade social: a subjetividade não se situa no
campo individual, seu campo é o de todos os processos de produção social e
material" (Guattari, 1986: 24)
"Assim como o capital é um modo de semiotização que permite ter um
equivalente geral para as produções econômicas e sociais, a cultura capitalística
é o equivalente geral para as produções de poder. As classes dominantes
sempre buscam essa dupla mais-valia: a mais-valia econômica, através do
dinheiro, e a mais-valia de poder, através da cultura-valor. Considero essas duas
funções inteiramente complementares. Elas constituem, juntamente com o poder
sobre a energia - a capacidade de conversão das energias umas nas outras - os
três pilares do capitalismo mundial integrado" (Guattari, 1986:24)
A perda cultural de conexão humana com os processos biológicos cíclicos
repercute na dimensão pessoal e intersubjetiva sob a forma de um
desenraizamento físico, emocional e mental que faz dos indivíduos peças
atreladas à máquina de produzir necessidades artificiais, representada pela mídia
mercadológica.
A perda das raízes ecológicas se traduz na insatisfação consumista, na
identificação ideológica da felicidade com o ter, e contamina os padrões de
97
sentimentos e percepções intersubjetivas, nas relações com a família, com o
território, com a comunidade, com a história, no nível do domus.
Do ponto de vista da relação entre Economia e Cidadania, a crise ambiental
aparece na interface entre o nível intersubjetivo e a dimensão micro-política. A
racionalidade econômica capitalista gera uma tensão antagônica entre o interesse
comum e o privado, pois valoriza o interesse particular enquanto isolado e
concorrente com o coletivo (ideologia individualista).
Por outro lado, com a globalização neoliberal da economia, o capital financeiro
transnacional pressiona politicamente para a supressão das mediações do
Estado nas relações de mercado, ao mesmo tempo em que gera a redução
progressiva do trabalho assalariado, o crescimento da terceirização e da
economia informal. A conseqüência desses fenômenos no nível micropolítico é a
perda do enraizamento da cidadania nos espaços de contratualização entre
empresas e empregados, nos grupos corporativos profissionais, nos sindicatos.
Outros espaços de organização política devem emergir a partir daí, onde as
relações entre o poder público e a sociedade civil possam ser reconstruídas com
foco na capacidade de auto-eco-organização das comunidades locais.
Este aspecto está cada vez mais presente nas propostas e debates, no campo
das políticas públicas e das organizações da sociedade civil, tematizados como
poder local, e descentralização, entre outros.
"A modernidade implica numa visão política de que participar na construção
desse espaço de vida, mais do que receber presentes das 'autoridades', constitui
uma condição essencial da cidadania. Implica numa visão institucional menos
centrada nas 'pirâmides' de autoridade, e mais aberta para a colaboração, as
redes, os espaços de elaboração de consensos e os processos horizontais de
interação" (cf. Dowbor, 1999:126).
"O poder local, como sistema de organização de consensos da sociedade civil
num espaço limitado, implica alterações no sistema de organização da
informação, reforço da capacidade administrativa e um amplo trabalho de
formação tanto da comunidade como na própria máquina administrativa"
(Dowbor, 1999:72).
Para isso, é preciso também superar a dicotomia entre indivíduo e coletividade, a
partir da dimensão da intersubjetividade, que remete à rede de significados
culturais, e à sua função de suporte comunicativo, para uma percepção dos
interesses comuns compartilhados, que são a essência da cidadania.
Ao identificar essas disjunções entre Economia e Cidadania, e entre Ecologia e
Economia no padrão civilizatório que gera a insustentabilidade e a crise
ambiental, podemos perceber que esse processo vem desvendar um novo
espaço de reconstrução da polis, a partir de uma busca de autonomia
organizativa dos grupos sociais, com base nas necessidades compartilhadas de
sobrevivência, de saúde psicofísica e socio-ambiental.
98
SUBJETIVIDADE, EDUCAÇÃO E CIDADANIA
Como reforço para uma compreensão ampliada do papel da Educação no
processo de gestão, a abordagem pedagógica deve enfocar o locus cultural onde
se produzem e se transformam as bases éticas das relações cotidianas,
penetrando progressivamente nas dimensões mais invisíveis da vida social.
Encontramos aí a tematização da questão da subjetividade e sua relação com as
práticas políticas e o exercício da cidadania.
A questão da subjetividade não deve ser reduzida a uma individualidade isolada
do sujeito. Guattari (1986) aborda as causas dessa ideologia reducionista,
situando-as no contexto da crise da subjetividade no padrão cultural capitalista.
Este sistema de valores unidimensional que controla e manipula a subjetividade
pessoal e coletiva, produz um efeito psico-social de perda do valor da alteridade,
nas relações intersubjetivas e coletivas, dando margem a uma percepção do
sujeito enquanto entidade separada da trama social. Guattari alerta sobre a
necessidade de se “conjurar o crescimento entrópico da subjetividade dominante”
e de se restabelecer a dinâmica entre o singular e o coletivo, o público e o
privado.
Para que novos modos de produção da subjetividade sejam experimentados é
preciso estimular a vivência de experiências moleculares de emancipação, onde
as práticas intersubjetivas possam se recompor. Encontramos em Santos (1996)
uma reflexão sobre a subjetividade enquanto um modo de ser profundamente
enraizado nas diversas instâncias sociais, colocando a relação entre
emancipação social, subjetividade e cidadania.
Segundo ele, a questão da subjetividade, enquanto fundamento para a prática da
cidadania, envolve a auto-reflexividade e a capacidade do sujeito de articular-se
de modo diferenciado no contexto das diferenças que constituem as suas
relações na sociedade civil.
Embora a cidadania tenha sido tematizada pelo pensamento liberal como
equalização e mecanismo regulador da relação Estado-sociedade, aponta-se
agora a necessidade de articular diferenças pessoais e coletivas, numa
integração complexa entre cidadania e subjetividade.
A COMUNICAÇÃO E A DESORDEM CRIADORA
Tudo isso remete necessariamente para a importância dos espaços micropolíticos
de reconhecimento e negociação das diferenças e dos interesses comuns. Uma
pedagogia da comunicação pode vir a ser instrumento grande valor e eficácia, na
99
prática dos processos de gestão ambiental onde a Educação seja considerada
e integrada como dimensão de sustentabilidade.
Um aspecto pouco percebido sobre a ineficácia dos modelos dominantes de
gestão ambiental é a própria crise de comunicação de que sofrem, devido à
inadequação socio-política e cultural dos contextos de negociação, que não
mobilizam a capacidade interativa dos atores sociais. A pedagogia da
comunicação é um instrumento importante para o estabelecimento dessas
interações, no sentido de apoiar a tessitura das redes de relações, com base no
cotidiano vivido pelos atores locais, tendo como referência princípios de
democracia participativa.
Este aspecto de restauração da tessitura dos laços passa, sem dúvida, por
situações de desordem ou de extremo ruído nas comunicações entre os grupos
sociais em confronto na gestão ambiental, porém trrata-se mesmo de uma
condição essencial para que os atores encontrem novas possibilidades de
debates e embates. Trata-se de um trabalho artesanal de tecelagem social,
extremamente adequado ao presente contexto cultural de transição
paradigmática, onde é preciso resgatar o RE perdido no padrão vigente.
Edgard Morin, ao trabalhar sobre a construção do método da complexidade,
coloca a idéia do RE como um prefixo referente à forma básica do anel que liga
os processos vivos, no sentido de um ciclo aberto, que evolui em espiral, e que se
estabelece entre dois ou mais elementos inicialmente separados, tornando-os
complementares, antagônicos ou concorrentes, porém nunca dissociados, e
permitindo a articulação entre desordem, interações, ordem e organização, de
modo retroativo e recorrente.
O anel é o resultado do encontro entre dois fluxos antes desconectados entre si,
que passam a interagir um sobre o outro, criando uma ação retroativa, recorrente
e aberta à nova organização.
A partir de um efeito de re-troação, o anel assimila a desordem colocando-a a
serviço do todo que se forma; a partir de um efeito de re-corrência, o anel exerce
sua capacidade criativa, fazendo com que o fim alimente o começo, e que os
estados ou efeitos finais produzam os estados iniciais.
Neste sentido, o anel se torna capaz de produção de si, pela contínua atividade
retroativa e recorrente de regeneração, gerando resistência às forças
desintegradoras (entropia), além de comportar a reorganização e a mudança. A
desordem adquire uma conotação de abertura a possibilidades imprevisíveis,
tornando-se criativa e revolucionária.
Morin destaca que o anelamento não é uma forma estática, mas um processo de
organização que torna circulares fenômenos que, de outra forma, seriam
irreversíveis (entropia). Desordem e ordem atuam numa mútua co-produção,
estando uma enraizada na outra, relativas e relacionais entre si.
No caso que estamos analisando, a Educação, ou a pedagogia da comunicação
é o movimento do anel, que garante a conexão entre os sujeitos e mantém o fluxo
das negociações. O momento da desordem refere-se ao estado de
100
insustentabilidade socio-ambiental, que, na lógica da complexidade, pode ser
pensada como ponto de partida para uma evolução no sentido de uma nova
ordem. A desordem, portanto, deve ser reconhecida e aproveitada em seu
potencial, pois é ativa, e sua presença complexa alimenta o desvio com desvio,
desperta forças genésicas adormecidas pela regulação, ressuscita os turbilhões.
Novas formas só podem surgir a partir do desequilíbrio e da ruptura.
As interações podem ser consideradas como o próprio resultado do movimento, a
partir do desencadear de ações recíprocas, associações, oposições,
comunicações, voltadas para construção de espaços de conexão entre os
sujeitos e entre sociedade e natureza, onde os elementos que se encontram
isolados possam ser integrados a partir de uma visão complexa de oikos-domusethos-polis.
A organização corresponde à implementação de sistemas integrados de gestão
ambiental, a partir de políticas públicas que assumam seu papel regulador do
processo dinâmico de uma unidade complexa.
O sistema implementado deve ser dotado de um modo de ser e de existência
capaz de gerar combinações entre elementos heterogêneos num todo. É o que
vai ligar e transformar os elementos, produzindo e retroalimentando o sistema. As
políticas públicas devem atuar a partir de princípios ordenadores que garantam a
permanência do todo, mantendo sua forma, existência e identidade, no
movimento da transformação. Devem produzir a ordem, transformar e virtualizar a
desordem (entropia, antiorganização, antagonismos latentes), aproveitando ativa
ou potencialmente estas situações como bases para a re-organização.
Por fim, a ordem é o padrão e a forma do sistema de gestão que se estabiliza
temporariamente, pela atuação da força de coesão das regras e limites surgidos
das interações. Esta precariedade da forma resultante também aponta para a
necessidade de um apoio pedagógico permanente, capaz de sinalizar as
transformações em curso e prover os momentos reflexivos, avaliativos e reorientadores necessários à manutenção do anel.
Podemos, assim, aplicar esta proposta do método da complexidade para pensar
o lugar da Educação nos sistemas de gestão, definindo-a como um processo de
re-ligação micro-ativa, atuando a partir de uma situação de desordem,
promovendo a dinâmica das interações e a regulação da ordem, mantendo-a
ligada à desordem criadora.
A EDUCAÇÃO COMO DIMENSÃO DA PRAXIS SOCIAL TRANSFORMADORA
Como vimos, a insustentabilidade é fruto de perdas culturais, ou seja, desordem,
perda das raízes ecológicas, perda da conexão entre o público e o privado, perda
da conexão complexa entre oikos-domus-ethos-polis. Todas essas perdas
suscitam a necessidade do RE, enquanto enraizamento, conexão, comunicação,
ou seja, o sentido mais profundo da gestão.
Podemos dizer que a cura da crise ambiental passa pelo restabelecimento do
anel socioambiental numa nova volta da espiral evolutiva, onde a desordem do
101
desequilíbrio ecológico possa ser reorganizada através de políticas públicas que
assumam a dimensão educativa como instrumento de reposição das condições
de reprodução e sustentabilidade dos recursos naturais, garantindo a re-troação e
re-corrência do anel socio-ambiental.
Neste sentido, cabe à dimensão pedagógica trabalhar com o modelo de
sustentabilidade dos ecossistemas, ou seja, a auto-eco-organização, trazendo
para o sistema proposto como ordem, suas condições de re-generação (gerar
suas próprias condições de produção), multiplicação e renovação. A Educação
torna-se aí um instrumento de apoio ao processo de transição cultural, para que
se alcance o restabelecimento da lógica do RE, mediante um sistema integrado
de gestão.
As ações educativas devem apoiar a formação de redes comunicativas que se
alimentem na receptividade e na capacidade de escuta entre os atores sociais
envolvidos no sistema de gestão, pois é a formação e sustentação da
comunicação entre os grupos que garante o espaço de produção de uma ética
construída a partir de práticas relacionais (disciplinas, conflitos, rotinas, contratos,
padrões de comportamento). É neste espaço que se tornam possíveis as
negociações entre interesses divergentes, e a criação de uma consciência
organizativa coletiva.
A partir do enraizamento nas quatro dimensões colocadas pelo conceito
complexo oikos-ethos-domus-polis, o processo pedagógico da comunicação
permite trabalhar a gestão em diversas conexões.
No sentido do oikos, trata-se de criar uma rede comunicativa que viabilize a
construção de um conhecimento integrado entre a visão técnica e os saberes que
são fruto das experiências dos sujeitos que vivenciam as situações e os ritmos
locais, buscando-se rever os padrões que definem a qualidade de vida, no
sentido da auto-eco-organização e da adequação entre o metabolismo biológico e
o industrial.
No sentido do domus, trata-se de uma ação educativa voltada para a dimensão
comunicativa entre as unidades de produção (empresas), consumo (famílias) e
reprodução (mídia) participantes do sistema de gestão, de modo que sejam resignificadas as relações pessoa/grupo e a intersubjetividade, nas experiências
cotidianas de corpo/casa/território, tempo/espaço; assim poder-se-á conferir
sustentabilidade cultural à gestão dos conflitos locais e à recriação de hábitos e
valores.
No sentido do ethos, busca-se encontrar valores que possam funcionar como liga
da rede comunicativa baseada no domus, gerando uma lógica do pertencimento e
solidariedade, o que não exclui o conflito e o antagonismo, a partir da
identificação de interesses comuns e particulares; a meta é diagnosticar,
identificar e reverter gradativamente o habitus constituído através das ideologias
capitalísticas (Guattari, 1989), ilegitimando perante a consciência individual e
grupal os valores individualistas, competitivos e consumistas insustentáveis.
Esta dinâmica ocorre essencialmente na construção dos papéis sociais que
compõem o contexto do domus (feminino, masculino, criança, adolescente,
102
adultos, velhos, ancestrais) e mobiliza seus potenciais criativos arquetípicos, no
sentido da cooperação e do pertencimento.
Por fim, no sentido da polis, trata-se de fazer com que o poder público atue como
verdadeiro educador/gestor de todo o sistema, provendo a sustentação dos
recursos humanos/técnicos necessários à manutenção da rede comunicativa
interinstitucional e entre as dimensões bairro/comunidade/cidade; cuidando para
que não se perca o sentido de um processo em espiral, na articulação complexa
entre o poder público e a sociedade civil.
Todas essas questões remetem à necessidade de compreender a Educação como
uma relação humana voltada para promover simultaneamente a autotransformação
do sujeito e a cidadania entre aqueles que compartilham de uma mesma situação
socio-ambiental. Torna-se, assim, cada vez mais desnecessário qualificar a
educação de "ambiental", a não ser nas situações onde ela precisa se diferenciar de
concepções pedagógicas não-comprometidas com a mudança de paradigma.
Esta visão transformadora exige também um educador de novo tipo. Na verdade, a
partir desta concepção, torna-se imprescindível integrar o papel de educador na
práxis de todos os atores sociais envolvidos com e na questão ambiental.
Todos aqueles que atuam em situações de formulação e implementação de
políticas públicas, bem como em situações de pesquisa, intervenção e mediação
técnico-política na sociedade civil, necessitam incorporar em sua práxis a dimensão
educativa, como referência metodológica e instrumental. A qualidade e a
capacidade de educador é uma dimensão que se coloca, assim, com fundamento
de todos os papéis sociais ligados à mediação de conflitos e à construção coletiva
de novos valores e comportamentos.
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104
ATITUDE TRANSDISCIPLINAR
PERTENCIMENTO
LAIS MOURÃO SÁ
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Resumo
O artigo discute a construção conceitual da noção de pertencimento tendo como
referência o pensamento da complexidade e os fundamentos da Educação
Ambiental. Referencia o enraizamento físico e biológico do sujeito humano e
destaca a qualidade própria de todo sujeito vivo que se inclui em relações de
pertencimento sem perder sua identidade particular, realizando simultaneamente
a distinção individual e o pertencimento societário. Coloca também a necessidade
105
de evitar o reducionismo biológico, quando se trata de distinguir a natureza
humana na dimensão da vida, mostrando que a noção de pertencimento humano
exige inscrever a lógica da vida nas condições específicas do modo de
organização cultural da sociedade humana. Conclui que o princípio do
pertencimento traz em seu bojo a questão da subjetividade como uma dimensão
intrínseca do conhecimento vivo e humano, e que integrá-la é condição de
possibilidade para um conhecimento que se sabe pertencente e se quer
compatível com a complexidade do vivido.
Palavras-Chave: Complexidade, Educação Ambiental.
Os humanos perderam a capacidade de pertencimento?
Uma das noções mais relevantes para a compreensão da crise socioambiental
que vivemos hoje é a noção pessoa humana.
A ideologia individualista da cultura industrial capitalista moderna construiu uma
representação da pessoa humana como um ser mecânico, desenraizado e
desligado de seu contexto, que desconhece as relações que o tornam humano e
ignora tudo que não esteja direta e imediatamente vinculado ao seu próprio
interesse e bem-estar.
Esta visão particularista e fragmentada do ser humano tem sido amplamente
apontada não somente como uma das causas, mas como o principal obstáculo
para a superação da incapacidade política de reverter os riscos ambientais e a
exclusão social.
A história das formas pelas quais a espécie humana tem construído a sua
inserção ecológica mostra que a capacidade de inscrição congruente (cfe.
Maturama, 2000) da organização social na eco-organização (cfe. Morin, 1997),
principalmente a partir da domesticação das espécies vivas e das revoluções
tecnológicas, apresenta uma variedade de momentos críticos de diversas ordens,
onde se romperam os limites dentro dos quais a vida pode se manter de modo
sustentável.
O rompimento desses limites não é, portanto uma novidade da sociedade
contemporânea, mas o atual patamar de intervenção antropossocial na biomassa
parece representar um limiar entre subjugação e sujeição que nunca antes foi
ultrapassado de modo tão radical.
A degradação socioambiental se traduz na perda dos saberes práxicos que
sustentavam as relações de mútuo pertencimento entre o humano e o seu meio.
O pescador perde o conhecimento rico e profundo do mar e a sua perícia; o
caçador perde a arte estratégica e sutil de ler os indícios e vestígios, o agricultor
perde a ligação com o planeta, o cosmos, o ecossistema.
Dessa forma, forjam-se pessoas dependentes de relações artificiais de vida
(principalmente no meio urbano, mas não apenas aí), comandadas por
mecanismos centralizadores cujo modo de operação desconhecem.
Diz-se, então que os humanos perderam a capacidade de pertencimento. As
ideologias contemporâneas sobre o desenvolvimento econômico ancoram-se
106
numa crença irracional que inverte radicalmente a afirmação do sábio chefe
indígena Seattle, ou seja, elas parecem acreditar que “nada que acontecer à
Terra afetará os filhos da Terra”.
Trata-se, realmente de uma representação idealizada sobre os poderes
milagrosos da tecno-ciência, como se esta fosse um instrumento neutro,
desvinculado das intenções emanadas do projeto de sociedade dominante, e
como se fosse possível deter o avassalador processo de globalização da pobreza
sem reverter o não menos avassalador processo de concentração da riqueza.
Esta crença cultural na eficácia milagrosa de um conhecimento puramente
instrumental é produzida e reproduz o desenraizamento dos humanos de seu solo
biológico e planetário, oculta a complexidade da vida e desliga o humano de seus
vínculos intrínsecos com a ordem cósmica.
A transformação deste padrão é obviamente um problema educacional, no seu
sentido mais amplo e intrínseco, psico-cultural e socio-político, pois se trata de
fazer emergir do inconsciente coletivo da humanidade suas experiências de
pertencimento, trazer para a luz da consciência os conteúdos ocultos na sombra
de nossa solidão como partes desgarradas de um mundo partido.
Porém as estratégias apontadas para o enfrentamento desta situação dentro do
campo ambiental e, mais especificamente, da educação, ainda se encontram
aquém de uma compreensão deste tipo.
A noção de pertencimento que aparece nos discursos e práticas de EA não é um
conceito que já se encontre formal e racionalmente definido, do qual seja possível
identificar uma nítida trajetória. Pelo contrário, trata-se de uma noção fluida e
escorregadia, utilizada quase sempre de modo superficial e ingênuo.
A intenção de qualificar o modo de relação entre os humanos e a natureza passa
por uma diversidade de sentidos que vai desde a suposição de uma identidade
imediata do humano com o biológico até as mais sofisticadas posições
humanistas sobre a autonomia e o poder de construção de uma nova natureza
por parte da vontade humana.
A noção de pertencimento aparece também nas discussões sobre a relação entre
ética e sustentabilidade, referindo-se a uma possibilidade de transformação de
comportamentos, atitudes e valores para formação de pessoas e relações
capazes de protagonizar um novo paradigma (Jara, 2001).
No sentido do pertencimento social, desde o início do século passado Tönnies e
Weber teorizaram sobre o fundamento da comunidade em laços pessoais de
reconhecimento mútuo e no sentimento de adesão a princípios e visões de
mundo comuns, que fazem com que as pessoas se sintam participantes de um
espaço-tempo (origem e território) comum.
Vale destacar também o sentido trazido pela vertente da Ecologia Profunda, a
partir de Arne Naess, que traz uma abertura epistemológica para a inclusão da
subjetividade como fonte de conhecimento. Nesta vertente, o sentido de
pertencimento é sublinhado como uma capacidade humana de empatia entre
107
subjetividades, desde que o humano reconheça a subjetividade como uma
qualidade do mundo vivo e entre em comunicação intersubjetiva com ele. No
entanto, a questão ainda fica incompleta, na medida em que não se incorpora o
conhecimento lógico objetivo nessa visão de pertencimento.
As reflexões que se seguem visam apontar algumas diretrizes para a
incorporação crítica da noção de pertencimento nas propostas de EA, de modo
que os educadores possam alcançar um sentido operacional para a sua prática.
Vamos considerar aqui dois pontos importantes para essa construção: o
enraizamento físico e biológico do sujeito humano, e a sua condição cultural
propriamente humana.
A SOLIDARIEDADE ENTRE OS FILHOS DO SOL
O enraizamento físico e biológico do sujeito humano é uma referência necessária
na construção da idéia de pertencimento do sujeito vivo às suas pré-condições de
vida, ou seja, a nossa auto-compreensão humana como co-existentes em um
cosmos e em um oikos.
Todas as culturas humanas têm produzido explicações a respeito de nossa
condição de filhos do universo, quer seja na linguagem mítica, ou na linguagem
científica da sociedade atual. E isto acontece porque precisamos destas
respostas para construir a plenitude de nossa identidade humana e do nosso
morar no mundo.
Seja qual for a resposta que adotemos para explicar o modo de existência do
universo, ela sempre nos remete à nossa própria existência como seres desse
universo, a cujo destino estamos inexoravelmente presos. Por outro lado, as
representações do pertencimento ao mundo vivo enfocam a constituição
existencial subjetiva que partilhamos com as demais espécies planetárias, em
meio à sua enorme diversidade.
A visão do pensamento complexo, no quadro inter e transdisciplinar (cfe.
Nicolescu, 2000) da ciência contemporânea (Edgar Morin, Humberto Maturana,
Henri Atlan, entre outros), por exemplo, propõe ao pensamento científico uma
habilidade de lidar com os aparentes paradoxos, reconsiderado a dicotomia entre
autonomia e dependência entre os seres vivos nos ecossistemas, e, portanto,
entre o humano e o meio onde ele existe.
Dessa forma, os organismos individuais podem ser vistos ao mesmo tempo a
partir da sua dependência do código genético da espécie, e a partir da sua
condição de seres autônomos, cujas interações espontâneas são co-formadoras
da eco-organização.
Solidários e competidores, na diversidade reprodutiva das espécies e na
solidariedade competitiva das cadeias alimentares, os seres interdependentes
sustentam os pequenos e médios ciclos da vida no planeta. Trabalhando nas
associações e nos antagonismos para si e para os seus, sustentam a estabilidade
dinâmica do todo.
108
Nessa, como em tantas outras cosmologias ancestrais, a solidariedade precisa
ser mais forte que a competição, para a sustentabilidade da organização viva.
Seja uma ameba, seja um humano, o indivíduo vivo é visto simultaneamente
como um ser de carências e de liberdades, em sua dupla identidade: egoísta e
ecológica.
Pelo ângulo da identidade egoísta, Maturana denominou os sistemas vivos de
autopoiéticos, por sua capacidade circular e autônoma de construir seus próprios
componentes, definir seus limites e sua organização. Ao mesmo tempo em que
se transmite geneticamente, a auto-organização do ser vivo forma um organismo
capaz de computar informação sobre si e sobre o mundo externo, acumulando
experiência, memória, criando estratégias de vida, e uma existencialidade própria
(história).
Por seu egocentrismo, o ser individual vive uma solidão existencial, ou seja, uma
nítida fronteira que o separa do seu meio externo, onde estão os outros seres.
Porém, esta mesma condição de solidão, incerteza e separação engendra
também um princípio de inclusão, ou seja, impele à busca da comunicação
informacional e cognitiva com esse meio externo e com esses outros. A
necessidade de associar-se a outros seria, então um aspecto indissociável da
organização viva do indivíduo-sujeito. As relações inter-subjetivas formam
circuitos trans-subjetivos que geram organizações de segundo grau, como os
organismos complexos dos mamíferos, e de terceiro grau, como as sociedades
animais e humanas.
Nessa visão, os indivíduos-sujeitos se incluem em relações de pertencimento
sem perder sua identidade particular, realizando simultaneamente a distinção
individual e o pertencimento societário, a inclusão identitária e a exclusão
egocêntrica.
Quanto mais complexos na sua constituição biológica, mais autônomos e
dependentes são os indivíduos, e maiores as suas chances de enfrentar desafios
e riscos, assim como maiores são as suas necessidades de afeição, nutrição e
proteção.
Se aceitarmos essas premissas, podemos então dizer que esta capacidade e
necessidade própria dos indivíduos-sujeitos vivos se desenvolve em seu mais alto
grau nos humanos, e se constitui no fundamento do pertencimento e da
compreensão humana do sujeito vivo.
NATUREZA E SOCIEDADE
Por outro lado, ao indagarmos sobre o que distingue a natureza humana na
dimensão da vida, encontramos uma nova premissa. A construção da noção de
pertencimento humano exige um passo além, que permita inscrever a lógica da
vida nas condições específicas do modo de organização da sociedade humana.
Para não cair no reducionismo biológico, temos que pensar o pertencimento
humano ao oikos e ao socius naquilo que lhe é inerentemente específico, ou seja,
na condição propriamente humana de nossa identidade cultural.
109
O que acontece em termos de complexificação da vida, quando se trata da
espécie humana? Se a autonomia do indivíduo vivo se sustenta em sua
capacidade de aprendizagem, pela qual ele é capaz de enfrentar a incertezas
ecológicas elaborando estratégias de cognição e comportamento próprias e
únicas, no caso da espécie homo emerge uma revolução mental, na qual o
crescimento e reorganização do cérebro mamífero permite novas competências e
autonomias, até a criatividade e inventividade humanas, engendrando a
consciência e o pensamento.
Morin (1999) propõe que a cultura seja considerada como um capital genético de
segundo grau, que provê uma nova base de informações e programas de
saberes, normas, comportamentos que organizam a relação sociedade-natureza.
Trata-se de uma outra e mais complexa dimensão de pertencimento.
A nova base organizacional trazida pela cultura se inscreve e se veicula por meio
da linguagem e da comunicação. Maturana diz que o humano vive imerso na
linguagem, como o meio comunicacional onde se formam e se transformam as
aptidões mentais, psicológicas e afetivas. É nela que a cultura reproduz em cada
sujeito a complexidade social, ao mesmo tempo em que neles se transforma.
Pelo processo comunicativo da socialização internaliza-se um padrão cultural
externo ao indivíduo, formado da acumulação de aquisições coletivas,
transformando-o em sujeito construído dentro dos limites de um determinado
universo cultural.
As mitologias e ritualísticas antigas costumam expandir essa capacidade
hipercomplexa de criação e recriação atribuindo-a ao mundo vivo em geral, um
modo de representação que é chamado de animismo. Dessa forma, o
pensamento mítico ancestral afirma o que, de resto, é também uma conclusão do
pensamento complexo contemporâneo: para o humano, não há como ver o
mundo senão pela dinâmica da criação cultural.
Se é verdade que toda visão humana de mundo é estritamente uma visão
cultural, de cujos limites jamais poderemos escapar (seja ela mítica, ideológica,
filosófica ou científica), também é certo que o padrão cultural é aberto e se
transforma, exatamente na práxis dos indivíduos-sujeitos interconectados, na
relação de pertencimento entre os ecossistemas e as sociedades humanas.
O que temos chamado de consciência ecológica seria o resgate dessa condição
de pertencimento na práxis humana, recolocando a produção do conhecimento
no anel recorrente que liga sociedade e natureza.
É nesse sentido que podemos afirmar: os humanos somos pertencentes ao
mundo físico, parentes de todos os seres vivos, mas ao mesmo tempo
distanciados e estranhos a eles; somos profundamente enraizados em nossos
universos culturais que ao mesmo tempo nos abrem e nos fecham as portas de
outros possíveis conhecimentos.
O princípio do pertencimento parece, assim, traduzir-se como uma dialógica entre
semelhança e estranhamento.
110
Na visão ancestral das sociedades antigas, onde mito, filosofia, ética e ciência
estavam profundamente entrelaçados e indissociados, semelhança e
identificação são aquilo que nos torna capazes de compreensão da e na
subjetividade, estabelecendo uma comunicação com base na afetividade, isto é,
na possibilidade de sermos diretamente afetados pelo outro. Por outro lado, é no
estranhamento, na radicalidade da diferença, que mora a possibilidade de um
conhecimento objetivo, distanciado o suficiente para permitir uma compreensão
complexa da diferença do outro.
Parece, então que o princípio do pertencimento traz em seu bojo a questão da
subjetividade como uma dimensão intrínseca do conhecimento vivo e humano, e
que integrá-la é condição de acesso à objetividade, isto é, à possibilidade de um
conhecimento que se sabe pertencente e se quer compatível com a
complexidade do vivido.
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Escola Nacional de Saúde Pública, 2002.
ARTIGO
APRESENTADO
NO
II
CONGRESSO
MUNDIAL
DA
TRANSDISCIPLINARIDADE – VITÓRIA – ES, JULHO, 2005. APOIO
FUNDAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS CIENTÍFICOS E TECNOLÓGICOS –
FINATEC – BRASÍLIA / DF
112
A COMPLEXIDADE DA ADOLESCÊNCIA
Vai-se o tempo... tudo passa...
O mundo velho está findo.
Que o ser humano renasça
No mundo que está surgindo.
Newton Rossi
Juliana Borges dos Santos
Julho 2004
Podemos iniciar a discussão acerca da complexidade do processo da
adolescência por vários caminhos... escolhemos então o conceito de imprinting
cultural de Edgar Morin1 como via de acesso ao processo de introjeção de
interdições, normas, prescrições... incorporados por cada indivíduo, como ser
social que se caracteriza.
Morin (1991) aponta que a cultura age e retroage sobre o espirito/ cérebro,
modelando as estruturas cognitivas, organizando o conhecimento em função de
paradigmas e sendo, portanto, co-produtora da realidade observada e concebida
por cada um. Sendo assim, ao discutirmos a complexidade da adolescência, fazse de fundamental importância uma contextualização acerca do processo de
113
aculturação humana desde seu nascimento, sob o ponto de vista das relações
familiares (primarias).
A criança, por ser completamente dependente, percebe a mãe ou a figura de
referencia parental como uma extensão de si mesma, como um prolongamento
de seu corpo, que age em busca da satisfação de seus desejos e necessidades
básicas. A presença materna e paterna, na medida em que satisfazem os
investimentos da criança, causam a esta a sensação de saciedade e prazer.
Porém, ao sentir-se privada, a criança experimenta o sofrimento e o projeta
nessas mesmas figuras de referência. Sendo assim, é nesse confronto com a dor
da perda constante que a diferenciação entre o eu e o outro se dá, constituindose a noção do mim e do tu.
Junto com esses cuidados básicos próprios da infância, são passadas regras e
normas, valores e conceitos, sendo a família (com seu paradigma inconsciente e
representante de uma cultura e sociedade) a via de acesso que irá impor ao
indivíduo uma visão de mundo e das coisas, verdades estabelecidas, crenças não
contestadas, as quais irão funcionar como principio organizador do pensamento
individual. Esse paradigma e tudo que decorre dele, tem para a criança valor
estruturante e é tomado como referencia.
A idéia de Paradigma, Morin (1986) compreende como sendo "constituído por
uma relação especifica e imperativa entre as categorias ou noções-chave no seio
de uma esfera de pensamento, e comanda essa esfera de pensamento
determinando a utilização da lógica, o sentido do discurso, e finalmente a visão
de mundo" (p. 150). Pelo Principio Hologramático (Morin, 1991), a cultura está
nos espíritos individuais e estes estão na cultura.
Ao longo do processo de desenvolvimento humano, por mudanças corporais e
psicossociais, essa criança ascende rumo ao universo adulto e sente a
necessidade de constituir identidade própria. Pela contestação dos grupos aos
quais se sente pertencendo e dos valores passados por eles, busca outros
grupos e outras relações significativas para se identificar e pertencer. Diante de
tantos e novos papéis a desempenhar na sociedade, o adolescente inicia uma
busca de identidade que se ajuste à sua escala de conceitos, modelos e valores
primários (Paradigma). O conceito de autonomia, pode então ser concebido como
intimamente ligado à noção de dependência do outro, que se constitui referencia,
até então idealizada e não confrontada.
O sistema familiar ocupa importante papel na aquisição de autonomia do
adolescente, pois pela sua continência e proteção psicossocial, permite que
esses filhos vivenciem esse processo de individuação, sem que os pais separemse de seus filhos. Ou seja, há uma possibilidade desse adolescente se individuar,
confrontar, sem perder o amor e o pertencimento, contexto em que os membros
familiares também estão mudando. Sendo assim, é no pertencimento ao sistema
familiar, na dependência emocional e relacional que existem condições para a
conquista da autonomia relativa a esse referencial.
Quando o adolescente é visto trazendo em si: o biológico de sua espécie, o
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familiar, o social e o cultural, que recebe como imprinting, podemos ter alguma
dimensão da complexidade desse Todo que se insere na Parte e dessa Parte que
representa e participa do Todo, de acordo com o Principio Hologramático. Resta
ao indivíduo, no momento da adolescência, a tarefa de caminhar em direção a
"elaborar um pensamento complexo, único que pode reforçar e desenvolver a
autonomia pensante e a reflexão consciente dos indivíduos... edificar os mirantes
dos metapontos de vista... identificar seus próprios buracos negros..." (Morin,
1991, p.90).
Alberti, S. (2004) se refere à dificuldade dos pais em sustentar a adolescência de
seus filhos pela impossibilidade de reconhecerem a necessidade de individuação
dos mesmos, já que estes, muitas vezes, tentam afastar os pais pela critica e
pelos confrontos, na tentativa de enfraquecê-los. O adolescente já não mais
idealiza seus pais (referenciais parentais) como na infância e esse desejo
idealizado, que antes era direcionado para as figuras de referencia, passa agora
a ser direcionado para ele mesmo, desejando tornar-se sujeito autônomo e
desejante. Nesse processo, "as referencias identificatórias começarão a vacilar,
dando ao adolescente a possibilidade para encontrar seu próprio jeito" (Alberti,
2004. Pp.23).
A identidade, portanto, passa a ser vista como o resultado de valores, crenças e
atitudes bem digeridos pelo homem, que facultam a percepção do eu como
entidade separada e diferente de todos os demais, mas que continua em
equilíbrio e permanece integrado no todo ao qual se sente pertencendo. Esse
processo de busca de identidade e autonomia trabalha em favor da seleção de
valores e de conteúdos do adolescente, que adquire maior consistência em
relação aos sistemas que os integram.
Edgar Morin (1991) trabalha a idéia de sistema de idéias como
"unidades informacionais / simbólicas que se juntam umas às outras em função
de afinidades próprias ou de princípios organizacionais (lógicos, paradigmáticos).
Sendo assim, um sistema de idéias comporta um núcleo duro com os critérios
que legitimam a verdade do sistema e selecionam os dados fundamentais nos
quais se apoia" (p. 116).
Alem disso,
“esse sistema de idéias comporta dispositivos imunológicos que repelem ou
destroem todo o dado ou idéia perigosa para a sua integridade, sendo
autocêntrico e autoritário" (p. 117).
Dessa forma o adolescente se individua domesticando a sociedade e
reciprocamente, sendo domesticado por ela, em um jogo complexo de sujeição,
parasitismo, exploração mútuos entre indivíduo-sociedade-noosfera (no sentido
de meio condutor do conhecimento humano), em uma procura simbióticoemancipadora (Morin, 1991).
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Sob esse ponto de vista fica impossível ver a adolescência somente como um
processo individual, ainda que em suas esferas biopsicossocioculturais, ficaria
limitado não incluir os sistemas que são pelo adolescente afetados, modificados,
reorganizados... recursivamente.
Nessa linha de pensamento, podemos observar, por exemplo, a tentativa de
normalização da sociedade, que exerce uma prevenção contra o desvio,
eliminando-o quando ele se manifesta e reduzindo ao silencio, à intenção ou ao
ridículo os desvios e os desviacionistas (Morin, 1991, pp. 26). Esse conformismo,
tendência adaptacionista humana, é questionado pelo adolescente ao longo
desse processo de busca de autonomia e individuação. Sendo assim, ele
contesta, grita com "passagens ao ato", rebela-se e muitas vezes, sem ter
consciência de si mesmo no mundo em que está inserido, acaba reproduzindo
aquilo do que tenta se diferenciar. O imprinting e a normalização acabam
impondo a certeza e a norma ao sentimento de verdade do adolescente, que
acaba reproduzindo essas verdades como se fossem suas próprias.
Observamos isso claramente nos comportamentos massificados dos jovens, que
identificados a estereótipos/modelos apresentados pela mídia, agem sob
verdades que acreditam serem suas, em contestação às verdades introjetadas
em suas relações primarias. Muito complexo esse jogo de conhecimentos que se
coloca em relação, estando de um lado o imprinting, a reprodução, e de outro, as
brechas, o aparecimento de desvios, a evolução dos conhecimentos, as
modificações nas estruturas de reprodução.
Uma problemática de grande repercussão social e que traz toda essa
complexidade é a da violência, dos atos infracionais, dos delitos cometidos por
adolescentes. Podemos olhar com um olhar reducionista, simplificador: colocando
de um lado o menor-marginal e de outro, a vitima inocente. Essa visão
simplificadora e redutora traz para o indivíduo toda a culpa pois não o olha
sistemicamente, como aquele que transgride em relação a ... que desvia em
relação a ... e não sozinho.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, que entre outras disposições, legisla
sobre a inimputabilidade penal dos adolescentes, representa uma normalização
de um desvio surgido de uma brecha no paradigma do Código de Menores,
tornando-se norma, regra, lei. Essa mudança de paradigma ocorreu e continua
incessante... por meio de brechas em diferentes momentos históricos. Aliás, o
que constituía o novo torna-se velho e ultrapassado, por meio de novas brechas...
O Brasil Colônia ao séc. XIX, com a passagem da Monarquia para a República,
sofre uma explosão demográfica e a população abaixo de 19 anos passa a
representar mais da metade da população brasileira. Sucedem-se diversas
iniciativas de criação de abrigos permanentes para as crianças em situação de
rua. Ao mesmo tempo, vinha da Europa um discurso em torno da transformação
social por meio do investimento na criança, o que passou a ser aceito e
amplamente difundido no séc. XX, colocando a criança como peça chave para a
116
transformação do Brasil... a sociedade civil cobra do Estado uma assistência
pública para as crianças abandonadas e delinqüentes... brechas...
Surge o Código de Menores (1927), trazendo uma concepção da criança em risco
como "menor abandonado" e do adolescente autor de ato infracional como
"delinqüente", inaugurando uma prática de assistência asilar e de segregação dos
seus meios familiares e comunitários, vistos como promíscuos. Neste momento
relembremos a Chacina da Candelária... brechas...
O que era brecha no paradigma de exclusão e segregação do Brasil Monarquia
legitima-se como o Código de Menores e, como novo paradigma, é ultrapassado
a partir de outras brechas... culminando com o Estatuto da Criança e do
Adolescente, que no final do sec. XX surge com objetivo de promover a
cidadania, trazendo para o Estado, a sociedade e a família, o dever de resgatar e
saldar a enorme dívida social, garantindo direitos e cidadania a todos...
Porém, o sistema perverso, excludente e violento ainda se reproduz por meio de
fenômenos como meninos e meninas em situação de rua, violência sexual de
crianças e adolescentes, alto consumo de drogas, envolvimento com o
Narcotráfico e ato infracional na adolescência... cujos autores/vitimas participam
lutando pela sobrevivência dentro um mundo onde encontram-se à margem.
Ainda hoje, muitas culturas e alguns discursos consideram o jovem como um
rebelde, egoísta e agressivo. Alguns autores pioneiros no estudo da adolescência
colocam essa fase como sendo um momento critico, de confusão e crises,
enfatizando a natureza difícil e rebelde do adolescente. No entanto, dentro dos
estudos em Psicologia, sob uma perspectiva sistêmica e psicossocial, o conceito
de adolescência passa a ser discutido e contextualizado relacionalmente. Ou
seja, a adolescência ocorre dentro de um sistema familiar, social e cultural que
precedem esse adolescente, influem sobre ele e ao mesmo tempo se modificam
na interação com ele. Ainda inclui-se a dimensão do olhar e do significado que
esses sistemas de pertencimento atribuem ao adolescente, ao processo pelo qual
ele esta passando e às expectativas que se dirigem a ele em seu momento atual
e suas possibilidades futuras.
Ampliando o foco, podemos ver a adolescência como um processo em que todas
as pessoas estão implicadas. O choque entre o velho e o novo constitui desafio
para ambos se afinarem, adaptando-se o novo ao contexto social, a fim de que
conquiste neste, espaço reconhecido para seus valores e que estes sejam
considerados como proposta de mudanças paradigmáticas. Ao velho, por sua
vez, cabe a aceitação de que a vida é uma constante renovação e ininterrupta
mudança, rica de transformação de conceitos que podem avançar para o sentido
ético elevado e libertador.
Sendo assim, a adolescência se caracteriza como aquele período de início de
117
viagem, onde não se sabe muito bem onde se vai chegar e mesmo, em alguns
casos, tendo claro o destino que se almeja, há pela frente um longo processo de
conhecimento, autoconhecimento e reconhecimento diante das mudanças
temporais e históricas.
Finalizando, citamos Morin (1986)
"... uma convicção se pode fortalecer em nós ao longo da viagem, é que, para
menos desconhecer e melhor conhecer, o conhecimento deve conhecer-se."
(p.216). "A arte da inteligência é também saber escolher inteligentemente os
meios inteligentes para tratar especificamente uma dada situação." (p. 169).
Será esta a finalidade da adolescência? ... o conhecimento, o movimento em
direção ao autoconhecimento... o inicio do processo de conhecimento do
conhecimento?
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
ALBERTI, S. (2004). O Adolescente e o Outro. Coleção Passo - A- Passo. Jorge
Zahar Editor. Rio de Janeiro.
MORIN, E. (1986). O Método III. O Conhecimento do Conhecimento. Tradução
Portuguesa . Publicação Europa- América. Portugal.
MORIN, E. (1991). O Método IV. As Idéias: a sua natureza, vida, habitat e
organização. Tradução Portuguesa . Publicação Europa- América. Portugal.
118
O ADOLESCENTE AUTOR DE ATO INFRACIONAL NA
ABORDAGEM DO PENSAMENTO COMPLEXO
Fábio Tomasello
Junho 2004
A racionalidade verdadeira é sempre capaz de ir além dos sistemas
ideais que ela constitui. Ela reconhece a presença do eu, do tu, da sociedade, da
cultura.
A racionalidade verdadeira é capaz de nos levar aos limites do
entendimento e às fronteiras da enormidade do real. Pode então dialogar com a
poesia.
Edgar Morin
Seguindo a tradição do paradigma cartesiano, que de forma indubitável guia o
pensamento científico ocidental, o tratamento dado aos adolescentes autores de
ato infraciona (cfe. ECA, art.103) colocam estes em uma condição de nãosujeitos, a partir de um “rótulo” de desviantes da norma, que permite assim à
sociedade, senhora de todos os direitos, segregá-los em instituições corretivas,
privando-os de sua liberdade.
Essas instituições, derivadas dos antigos abrigos religiosos do Brasil colônia que
atendiam às crianças abandonadas ou delinqüentes (Conceição, Tomasello e
Pereira, 2003), hoje aplicam o que o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA
- em seu artigo 121 descreve como Medida Socioeducativa de Internação. Essa
medida é aplicada quando o ato cometido pelo adolescente é feito através de
119
grave ameaça, por reiteração no cometimento de outras infrações graves, ou por
descumprimento reiterado e injustificável de uma medida anteriormente imposta
(Art. 122).
Terra (1999), afirma que
a privação de liberdade, com duração determinada, prevista por Lei e através de
sentença judicial, é a forma específica pela qual o Direito Penal objetivo
concretiza o princípio da reparação equivalente, no âmbito da noção de castigo.
Ou seja, a privação de liberdade está associada à idéia de reparação de dano
causado, ou ainda, de expiação da culpa através do castigo. Tal idéia, conforme
colocado acima, carrega em suas bases o que Morin (1991) chama de “o grande
paradigma do Ocidente” ou o paradigma cartesiano. Esse paradigma
fundamenta-se na disjunção que coloca de um lado o “cidadão de bem”, aquele
que cumpre no espaço público todas as normas e os valores sociais vigentes e,
portanto, é merecedor de gozar do seu direito à liberdade, e do outro lado o
“delinqüente”, aquele que infringiu tais normas e, portanto, perde seus direitos até
que sua culpa esteja expiada.
Mas o ECA, concebido a partir do entendimento do homem como um ser de
direitos, dispõe em se artigo 3°, que:
A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei,
assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e
facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral
espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Ou seja, é o adolescente uma pessoa em desenvolvimento, como o próprio artigo
121 atesta, e sendo assim, talvez não possua a exata noção dos seus seu atos
(Tomasello, Conceição e Pereira, 2003).
Dessa forma, o ECA deriva do eixo cartesiano e passa a entender o adolescente
não como o “errado”, em oposição ao “cidadão modelo”, mas a partir de um
meta-ponto-de-vista que inclui o próprio meio social como responsável pela
conduta deste adolescente e pela forma de ele estar no mundo. Ele se norteia por
uma perspectiva de reeducação do jovem, adotando uma postura conceitual
dentro do entendimento da necessidade de trabalhar as dificuldades deste,
contribuindo para a mudança de seu comportamento (Terra, 1999).
Entretanto, as ações destinadas a fazer cumprir o ECA, conforme bem colocou o
Ministro José Celso de Mello Filho, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal,
dependem, para serem efetivas, da fidelidade do Estado (e da sociedade,
acrescento eu) na implementação dos compromissos assumidos e na orientação
das políticas públicas.
Infelizmente, dentro do jogo político, a fidelidade de seus membros tende a ser,
quase que exclusivamente, a seus próprios interesses, ou à classe que
representam, e assim, como o jovem, infrator ou não, não elege representantes
de sua classe, suas necessidades e interesses ficam dependentes da boa-
120
vontade alheia.
As medidas socioeducativas, até o presente momento, pouco têm sido vistas na
pauta de discussão e elaboração das políticas públicas, apesar de sua
necessidade se manifestar de forma violenta, como pode ser observado nas
rebeliões que ocorrem freqüentemente nas instituições de internação como
CAJE, CESAMI e FEBEM, entre outros.
A execução das mesmas fica na maioria das vezes a cargo de instituições de
origem religiosa que concebem o adolescente como uma alma perdida e
pecadora “necessitada de salvação” (Marques 2000), ou ainda, o ranço da
ditadura militar, que prende e castiga em nome de uma ordem social ou da
segurança nacional. Tais instituições apesar de se proporem fazer cumprir o
ECA, trabalham sob a égide do paradigma disjuntivo, que não engloba o desvio,
discriminando o desviante, culpabilizando-o por seu comportamento e objetivando
transformar o delinqüente no bom cidadão, através de uma pedagogia opressora
que coloca o jovem como objeto de suas ações e não como sujeito ativo em sua
transformação.
Neste contexto, a medida que deveria ser socioeducativa não atinge os seus
objetivos, e os jovens que por elas passam acabam por reiterar, cometer
novamente atos infracionais, muitas vezes, mais graves que o primeiro. Entre os
fatores que levam a isso pode-se destacar a ineficiência dos programas
implementados que desconsideram os próprios jovens, não ouvindo o que eles
têm a dizer, quer seja por palavras, ou através do próprio ato delituoso
(Tomasello, Conceição e Pereira, 2003). Portanto, posicionar o adolescente como
sujeito de seu desenvolvimento é de fundamental importância para que as ações
voltadas a auxiliá-lo neste processo alcancem o êxito desejado.
Mas as ações realizadas pelas instituições de atendimento aos adolescentes não
refletem unicamente o paradigma de causa-efeito que norteia seu funcionamento.
Elas refletem o conhecimento que coordena todo o processo de funcionamento
da sociedade ocidental-tecnicista-capitalista-cristã.
Ultrapassar o pensamento disjuntivo é condição sine-qua-non para que se realize
uma sociedade mais igualitária, não num sentido de homogeneidade, mas sim de
aceitação da heterogeneidade. Para tanto, Morin propõe uma revolução
paradigmática. Em seu
O Método IV ele afirma:
Uma revolução que afeta um grande paradigma modifica os núcleos
organizadores da sociedade, da civilização, da cultura e da noosfera. É uma
transformação do modo de pensamento, do mundo do pensamento e do mundo
pensado. Mudar de paradigma é, ao mesmo tempo, mudar de crença, de ser e
de universo.
Assim, catorze anos após a publicação da Lei n° 8.069 que colocou em vigor o
ECA, pode-se entender que, não basta aprovar um código de leis para que todo o
resto mude. Mesmo que esse código represente a vanguarda de um pensamento
que é inclusivo, que responsabiliza a sociedade e seus dirigentes pelo que
121
acontece a cada um de seus cidadãos. É necessário que a própria sociedade
absorva esse pensamento. Mas essa absorção não ocorre de modo simples,
“uma revolução paradigmática ataca enormes evidências, lesa enormes
interesses, suscita enormes resistências” (Morin, 1991).
Uma possibilidade de se dar início a essa revolução pode ser, então, o próprio
motivador desta discussão: o trabalho com os adolescentes autores de atos
infracionais. Conforme sugerido anteriormente, é necessário posicioná-los como
sujeito de seu desenvolvimento, entendendo-os como seres individuais que estão
inseridos em uma sociedade, em uma cultura. Se esse desenvolvimento pessoal
ocorre guiado por um pensamento complexo, inclusivo, a sociedade formada por
esses indivíduos virá a ser, em principio, inclusiva. E a cultura que permeia a
ambos será a da complexidade, retornando assim ao pensamento complexo.
Mas como deve ser então esse atendimento oferecido aos adolescentes? Qual a
metodologia a ser utilizada? Como fazer deles sujeitos, para que possam sair da
condição de excluídos, de marginais; para que possam re-significar o seu papel
no mundo?
Antes de tudo, é necessário ouvir esses jovens, permitir a eles expressarem-se,
exporem a sua compreensão acerca do meio no qual estão inseridos, pois a
compreensão do meio acerca destes adolescentes já se sabe, é a de desviantes
da norma.
Se for para falarem, então a linguagem se apresenta como instrumento indicado
para ser usado neste processo. Em O Método III – O conhecimento do
CONHECIMENTO - Morin aborda no capítulo 5, Computar e Cogitar, questões
relativas ao pensamento e à linguagem. Ele afirma que:
a linguagem permite e garante a intercomunicação, e que, ao mesmo tempo em
que garante o funcionamento do maquinismo social, permite a transmissão, a
correção, a verificação dos saberes e informações, assim como a expressão, a
transmissão e a troca de sentimentos individuais.(pp.114)
Dentro da Psicologia Clínica, esse poder da linguagem de permitir a comunicação
e a troca de sentimentos individuais é o instrumento imprecindível do processo
terapêutico. No decurso do desenvolvimento de sua metodologia psicanalítica,
por exemplo, Freud percebeu que para seus pacientes alcançarem melhoras em
suas patologias, bastava proporcioná-los a possibilidade de falarem livremente. A
construção verbal atuaria, talvez, como promotora de um concatenamento de
idéias, o que levaria o sujeito a melhor compreender os fatos. Mas concomitante
a este processo racional existiria outro mais ligado ao campo do sentimento, ou
dos afetos, como preferiria Freud. Isso se deve ao fato de serem, as palavras,
símbolos (significantes) que descreveriam fenômenos, eventos, objetos... e como
tais, carregariam em si significados. Ao “manipularem” verbalmente esses
significantes (a fala livre) os pacientes estariam simultaneamente manipulando os
significados. Assim, ao expressarem seus sentimentos através dos símbolos
verbais, os sujeitos externalizam seus afetos, revivendo-os, e abrindo
possibilidades de novas resoluções. Isso parece estar consoante com o
pensamento de Morin, quando este diz:
122
A linguagem permite igualmente traduzir o vivido, isto é, os sentimentos, as
emoções e paixões. A dialética dispõe da aptidão para desenvolver não só uma
complexidade do abstrato, não só uma complexidade do concreto, não só uma
complexidade do vivido, mas uma lógica do abstrato  concreto  vivido, Em
que o pensamento pode ir e vir do mais concreto, singular, vivido ao mais
abstrato, universal, racional, e assim uma complexidade propriamente pensante
que, embora saída da complexidade da máquina cerebral, não lhe é redutível. A
partir daí, o ser humano pode tentar pensar o seu próprio vivido e a sua
singularidade, ao mesmo tempo em que se põe problemas gerais quanto à sua
situação na sociedade, na vida e no mundo.(pp. 116)
Esta possibilidade de re-significação dos fenômenos e da situação do ser na
sociedade, na vida, no mundo, é possível graças à capacidade que a linguagem
possui de ser, ao mesmo tempo, individual, comunicacional e comunitária, pois é
esse trânsito entre o pessoal e o coletivo que permite a junção, disjunção,
revalorização e/ou a interpretação diferenciada dos significados carregados pelas
palavras. Esse pensamento condiz com o de Fairclough (1992), que afirma ser a
linguagem um processo social. Para ele existe um relacionamento dialético entre
linguagem e sociedade, sendo que ambas se interagem e se determinam
mutuamente. O discurso é entendido por ele como sendo composto por três
dimensões: a prática social, que representa a ação do sujeito no mundo; a prática
discursiva, que envolve a produção, a distribuição e o consumo do texto; e o
texto, que é o produto final, escrito ou falado, da prática social. Os efeitos desse
discurso seriam os de construção da identidade e das relações sociais. As
palavras seriam assim o que Winnicott chama de objeto transicional. Esse objeto
pertenceria, segundo Hoffman (1998), à “uma terceira parte na vida de um
indivíduo (entre o interno e o externo), uma região intermediária da
experimentação, para qual contribui tanto a realidade interna quanto a vida
externa.”
Assim, por pertencerem ao interno esses objetos correspondem ao próprio
indivíduo mas, por também pertencerem ao externo, eles possuem a
possibilidade de serem compartilhados, compreendidos por outros.
E é por este prisma que linguagem pode ser utilizada no trabalho com
adolescentes infratores. Pois quando o jovem passa a narrar sua história de vida,
dialogando com um terapeuta que escuta essa história e compreende a mesma
não só pelo ângulo da sociedade vítima dos atos do adolescente, mas, também,
pelo ângulo do adolescente vítima dos maus tratos dessa sociedade, é que é
possível o afloramento de um terceiro ângulo que não o do adolescente, não o da
sociedade, mas o da relação: adolescente – violência – sociedade.
Esse terceiro ângulo de visão é o terceiro excluído (Morin, 1991) da lógica
analítico/sintética, mas incluído no pensamento complexo. A partir dessa
metavisão da relação adolescente infrator/sociedade é que será possível uma resignificação do papel de cada um desses elementos na determinação do outro, e
a re-orientação das ações necessárias ao estabelecimento de uma sociedade
menos excludente, ou de uma forma alternativa de inclusão do adolescente que
123
não seja a violação das normas.
Mas cabe ressaltar que, dentro da medida socioeducativa, essa metavisão da
relação adolescente infrator/sociedade não pode ser buscada exclusivamente
para com o jovem. É necessário alcançar-se essa metavisão junto aos técnicos e
demais profissionais executores das medidas. Afinal, eles são os representantes
do aparelho social presentes nessa relação e, como elemento dela, também
precisam sair da lógica cartesiana.
Sendo assim, o trabalho do psicólogo clínico que tenha por objetivo alcançar o
êxito na aplicação da medida socioeducativa de internação, prevista no Estatuto
da Criança e do Adolescente, pode utilizar-se da linguagem e do pensamento
complexo para a co-construção de um conhecimento compartilhado entre os
elementos envolvidos nesse processo, permitindo para todos uma metavisão do
mesmo, e a partir daí, uma transformação na relação estabelecida.
BIBLIOGRAFIA
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Justiça, 2002.
Conceição, M. I. G., Tomasello, F. e Pereira, S. E. F. N., Prender ou proteger?
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(Org.), Brasília-DF: Plano Editora, 2003.
Fairclough, N., Critical Language Awareness, Londres: Ed. Longman, 1992.
Filho, J. C. M., Da severidade da reação penal do Estado à proteção integral
de crianças e adolescentes. Em: Adolescência, Ato Infracional & Cidadania,
publicação conjunta entre ABONG e Fórum DCA Nacional, Brasil, 1999.
Hoffmann, L., Uma postura reflexiva para a terapia de família, em: A Terapia
Como
construção Social, McNamee & Gergen (Orgs), Porto Alegre: Ed. Artes Médicas,
1998.
Marques, W. E. U., Infâncias (pré) ocupadas: trabalho infantil, família e
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Morin, E., O Método III – O Conhecimento do Conhecimento, Portugal: Ed.
Biblioteca Universitária, 1986.
Morin, E., O Método IV – As Idéias: a sua natureza, vida, habitat e
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Portugal: Ed. Biblioteca Universitária, 1991.
Terra, S. H., Sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e a
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Tomasello, F., Conceição, M. I. G e Pereira, S. E. F. N., Oficina R.A.P.
(Resgatando a Autoestima e a Proteção): A linguagem do Rap como
instrumento de comunicação dos adolescentes envolvidos com as drogas,
em: Adolescentes e Drogas no Contexto da Justiça/ Maria Fátima Sudbrack
(Org.), Brasília-DF: Plano Editora, 2003.
124
125
QUEBRA DE PARADIGMAS:
DO PONTO DE VISTA LINEAR (NEOCLÁSSICO) A UM
META-PONTO-DE-VISTA DA ECONOMIA.
Carlos Roberto da Silva
Dezembro de 2005
A publicação da obra “Das Revoluções dos Mundos Celestes”, em que Nicolau
Copérnico contestava o modelo vigente sobre a teoria Geocêntrica (A Terra era o
centro do universo), onde ele afirmava exatamente o inverso, ou seja, a Terra e
os outros planetas é que giravam em torno do Sol (teoria Heliocêntrica), levou a
uma revolução do pensamento, a uma nova visão de mundo. Hoje, necessitamos
de semelhante mudança em nossa visão mundial, principalmente, na forma de
como vemos o relacionamento entre a Terra e a economia.
Devido à relação entre a economia e os ecossistemas naturais (o planeta Terra),
estes, ultimamente, vêm sofrendo uma dilapidação sem precedentes, colocando
em risco a sobrevivência dos sistemas naturais mais importantes para a própria
vida do homem. Isso se deve ao modelo econômico vigente, ou seja, uma
conseqüência de como os economistas vêem os ecossistemas naturais (meio
ambiente), incluindo o próprio homem. E como é esta visão, como se dá esse
pensamento segundo a ideologia vigente na economia mundial?
Uma grande parte dos economistas considera os ecossistemas como
subconjunto da economia, como se os ecossistemas naturais é que
dependessem da economia. Isto criou uma economia fora de sincronia, uma vez
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que não leva em conta a verdadeira realidade dos sistemas naturais dos quais ela
é totalmente dependente, não considera a relação entre taxa de utilização dos
recursos naturais e sua capacidade de regeneração. O modelo vigente está
voltado a atender o mercado, que traz como verdade a lógica da acumulação e
da concentração de capital, gerando cada vez mais distorções e proporcionando
o agravamento da desigualdade social. Esta lógica tem como principal objetivo a
produção em escala, a maximização do lucro e a minimização dos custos
privados, gerando assim sérias externalidades aos ecossistemas naturais.
Os economistas, principalmente, os que defendem a ideologia vigente, pensam
de forma linear e não em ciclos, ou seja, recursos–produção–consumo–
acumulação, em uma escala cada vez crescente, reforçando a linearidade, na
medida em que o inicio do processo só é retomado com objetivo de aumentar o
tamanho da escala. Este pensamento linear (neoclássico) se preocupa com
crescimento econômico, indefinidamente , como se os recursos não fossem
finitos ou limitados. Isto tem levado a uma economia que não pode sustentar o
progresso econômico, uma economia que não pode nos conduzir ao destino
desejado.
Da mesma forma que Copérnico teve que formular uma nova cosmologia
astronômica após várias décadas de observações e cálculos matemáticos, nós
também devemos formular uma nova cosmologia econômica, baseada em várias
décadas de observações e análises ambientais. (BROWN, 2003).
Embora o conceito de que a economia deva estar integrada à ecologia possa
parecer radical para muitos, provas se acumulam indicando que esta é a
abordagem que mais se aproxima da realidade complexa.
Para que a economia esteja integrada à ecologia há que romper com essa idéia
equivocada de imaginar a prática econômica desvinculada da realidade dos
sistemas de apoio (sistemas naturais). A ideologia do modelo econômico vigente,
mesmo que defenda o contrário, tem na sua práxis um pensamento linear, onde
não existe espaço para uma relação dialógica entre sistema natural
(ecossistemas) e economia , uma vez que as práticas econômicas são
desenvolvidas como se elas não dependessem dos sistemas naturais, como se,
num passe de mágica, os bens de consumo surgissem do nada, ou seja, os
ativos ambientais não são contabilizados nos custos de produção e daí decorre
toda causa da depleção, degradação dos sistemas naturais.
A linearidade deste modelo não permite uma relação recorrente e hologramática
entre sistema econômico e sistemas naturais, uma vez que não há
interdependência em decorrência do não reconhecimento das interações
existentes dentro de cada sistema natural e com o sistema econômico e social.
Em um pensamento que considera as complexidades das interações existentes
dentro e entre os sistemas naturais e econômicos há possibilidade de que um
seja sustentado e ao mesmo tempo sustentar o outro, já que o econômico está
dentro do natural que se insere no econômico.
O esquema ilustra muito bem a relação de circularidade, o que nos permite
entender porque os sistemas naturais em ultima instância constituem o fosso de
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regeneração dos resíduos provenientes da atividade econômica, e isto faz com
que sempre esbarraremos na impossibilidade natural de reciclar em cem por
cento tais resíduos. Isto nos remete às leis da Termodinâmica, ou mais
especificamente à lei da Entropia e ao Teorema da Impossibilidade, segundo o
qual é impossível sair da pobreza e da degradação ambiental através do
crescimento econômico indefinido, rotulado às vezes de crescimento sustentável.
Para muitos, crescimento tornou-se sinônimo de aumento de riqueza. Argumentase que precisamos ter crescimento para sermos ricos o bastante para arcar com
o custo de limpar e aliviar a pobreza. O problema é se o crescimento da margem
atual realmente nos torna mais ricos. Há evidências de que nos Estados Unidos o
crescimento tem tornado as pessoas mais pobres, aumentando os custos mais
rapidamente do que aumenta os benefícios (DALY, 2004).
Uma economia em desenvolvimento sustentável adapta-se e aperfeiçoa-se em
conhecimento, organização, eficiência técnica, e sabedoria; ela faz isso sem
assimilar ou acrescentar uma percentagem cada vez maior de matéria-energia do
ecossistema para si, mas antes, se estabiliza numa escala onde a taxa de
utilização dos recursos naturais seja equivalente à capacidade de regeneração,
ou seja, num ritmo em que a neguentropia alcance um novo equilíbrio, evitando
que muitos ecossistemas sejam irreversivelmente degenerados.
Portanto, o grande desafio da sociedade hoje é a quebra do paradigma atual,
fundamentado na ideologia do mercado como o grande propulsor da economia
mundial. Porém, o mercado só conhece uma verdade que é a acumulação de
capital à custa da depleção do capital natural, o mercado não conhece a
verdadeira complexidade que permeia as relações entre ecossistemas e as
atividades econômicas. Portanto, vale observar que quando observações e
experiências não mais apóiam a teoria, é chegada a hora de mudar a teoria – o
que o historiador científico Thomas Kuhn chama de mudança de paradigma. A
mudança de paradigma requer muito mais que mudança de teorias e discursos,
uma vez que todo paradigma é não falsificável, enquanto as teorias o são. O
paradigma dispõe do princípio da autoridade axiomática, do princípio da exclusão,
é invisível e invulnerável, está recursivamente ligado aos sistemas de idéias que
ele gera. Um grande paradigma, determina via teorias e ideologias, uma
mentalidade, uma visão de mundo, e é por isso que uma revolução paradigmática
modifica nosso mundo (MORIN, 1991).
É nesse sentido que, se quisermos uma mudança de paradigma nas relações da
economia corrente com os sistemas naturais, precisamos não apenas de novas
teorias, mas atacar o paradigma vigente em seus núcleos geradores de
ideologias e culturas, ou será que teremos de esperar por outro Copérnico? Se
não formos capazes de operar estas mudanças corremos um sério risco. A visão
Copernicana se deu contra uma visão que impedia o avanço da ciência, porém, o
que hoje está em jogo é a luta por mudanças que permitam a continuidade da
vida.
Referências Bibliográficas
BROWN, L. R., Construindo uma Economia para a Terra. UMA- Salvador,2003.
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DALY, H. E. Ambiente & Sociedade- Vol. II No 2, 2004.
MORIN, Edgar , O Método Vol. I I e IV
PEARCE , D. W. e Turner, R. K. , Economía de los recursos Naturales y del
Medio Ambiente, Madrid, 1995.