Tópicos em Bioética

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Tópicos em Bioética
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Consultoria editorial: Fabiana Paranhos
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Bibliotecária Responsável: Kátia Soares Braga (CRB/DF 1522)
Costa, Sérgio. (Org.)
Tópicos em Bioética. / Sérgio Costa, Malu Fontes, Flávia Squinca. (Organizadores). Brasília : LetrasLivres,
2006.
176p. —
Conteúdo: Interrupção da gestação em caso de anencefalia: opinião de mulheres de classes populares em
Teresina / Gisleno Feitosa; A pesquisa com embriões extra-uterinos: entre ciência e paixão / Samantha Buglione;
Bioética clínica e terceira idade / Sérgio Costa; Quando tratar significa sofrimento / Luiza Ivete Vieira Batista;
Deficiência,cuidado e justiça distributiva / Debora Diniz, Flávia Squinca e Marcelo Medeiros; Benefício de
Prestação Continuada: ferramenta de inclusão ou de exclusão social? / Franck Janes Paula Lira; Perícia médica
em gastro-hepatologia para a concessão de benefícios previdenciários / Thelma Maria do Nascimento;
Experimentação animal: aspectos bioéticos e normativos / Danielle Maria Machado Ribeiro Azevêdo;
Consentimento livre e esclarecido em tratamento odontológico infantil / Wagner Leal de Moura; Pena de
morte: uma abordagem contextual / Ozita Maria Machado Ribeiro Costa.
ISBN
1. Bioética. 2. Ética social. 3. Saúde Coletiva - aspectos éticos e morais. 4. Pesquisa em seres humanos. 5.
Ética em pesquisa. I. Costa, Sérgio (Organizador) II. Fontes, Malu (Organizadora). III. Squinca, Flávia
(Organizadora).
CDD 174.2
CDU 172
A obra será indexada na LILACS
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Impresso no Brasil
Tópicos em Bioética
Organizadores
Sérgio Costa
Malu Fontes
Flávia Squinca
Brasília
2006
In memoriam
Ao bíólogo e educador Hélio Paiva Melo,
amigo de todas as horas, dedicamos este livro,
em homenagem à sua singular contribuição
para a Bioética piauiense.
7
SUMÁRIO
Introdução ................................................................................................ 9
Sérgio Costa, Malu Fontes e Flávia Squinca
Interrupção da gestação em caso de anencefalia: opinião de
mulheres de classes populares em Teresina ...................................... 16
Gisleno Feitosa
A pesquisa com embriões extra-uterinos: entre ciência e paixão...... 33
Samantha Buglione
Bioética clínica e terceira idade ........................................................... 49
Sérgio Costa
Quando tratar significa sofrimento .................................................... 63
Luiza Ivete Vieira Batista
Deficiência, cuidado e justiça distributiva ......................................... 82
Debora Diniz, Flávia Squinca e Marcelo Medeiros
Benefício de Prestação Continuada: ferramenta de inclusão
ou de exclusão social? ........................................................................... 95
Franck Janes Paula Lira
Perícia médica em gastro-hepatologia para a concessão
de benefícios previdenciários ............................................................ 114
Thelma Maria do Nascimento
Experimentação animal: aspectos bioéticos e normativos ........... 129
Danielle Maria Machado Ribeiro Azevêdo
8
Consentimento livre e esclarecido em tratamento
odontológico infantil: estudo de caso na Universidade
Federal do Piauí ................................................................................... 148
Wagner Leal de Moura
Pena de morte: uma abordagem contextual.................................... 158
Osita Maria Machado Ribeiro Costa
Sobre os autores .................................................................................. 171
9
INTRODUÇÃO
A Bioética é objeto de interesse acadêmico nos principais
centros universitários brasileiros. Poucos campos disciplinares
experimentam uma condição tão privilegiada para contemplar as
práticas sociais e científicas contemporâneas e suas especificidades
como a Bioética. Em uma época marcada pelo surgimento de discursos
fundamentalistas, tem cabido à Bioética um lugar de proposição e
elaboração de perspectivas dialógicas que contribuam para a busca
de acordos éticos. No Brasil, a disciplina tem conquistado espaços
privilegiados e avança a passos seguros rumo a iniciativas junto à
sociedade civil, às entidades de defesa dos direitos humanos, às
instituições públicas e privadas voltadas para a pesquisa e a oferta de
serviços de saúde e assistência social. Longe de limitar-se às fronteiras
acadêmicas, a Bioética é parte da vida política da sociedade brasileira.
No Norte e no Nordeste brasileiros, esses desafios são ainda
mais intensos, em razão de outras prioridades relacionadas ao
desenvolvimento regional e às políticas públicas de saúde. O estímulo
à pesquisa é um desafio para essas duas Regiões, uma vez que a
expansão da educação superior nos últimos cinco anos começa a
indicar novas necessidades das instituições universitárias que crescem
em ritmo acelerado. Foi em resposta a esse desafio intelectual e político
posto pela Bioética no Brasil que o Instituto Camillo Filho e a
NOVAFAPI, instituições de ensino superior sólidas em Teresina,
buscaram a parceria acadêmica da Anis: Instituto de Bioética, Direitos
Humanos e Gênero para dar início a uma série de atividades bemsucedidas de ensino e pesquisa sobre Bioética. Esse consórcio de
propósitos produziu seus primeiros frutos com a realização da I
Oficina de Bioética em Teresina, em 2002, durante a qual foi aventada
a hipótese de criação de um curso de pós-graduação nessa área.
10
Naquele período, verificava-se um fenômeno que facilitava
iniciativas acadêmicas em Bioética: começavam a se multiplicar os
Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) nas Instituições de Educação
Superior brasileiras, ampliando o leque de interesse, discussão e
pesquisa em torno do tema. Um ano depois, em 2003, realizou-se um
fórum sobre temas vinculados à pesquisa com seres humanos, do
qual participaram diversos palestrantes de outros estados do país. Esse
evento obteve um nível de receptividade surpreendente entre os
membros dos CEP de Teresina. A partir desse primeiro fórum,
profissionais de diferentes áreas de atuação começaram a buscar
intensamente uma articulação que viabilizasse o primeiro curso de
pós-graduação lato sensu em Bioética.
Em outubro de 2004, teve início o primeiro Curso de
Especialização em Bioética de toda a região Norte-Nordeste do país.
Esta foi uma iniciativa pioneira, corajosa e que os principais resultados
estão aqui representados sob a forma de artigos. Dos 38 participantes,
foram selecionados oito artigos que melhor representaram a
diversidade de perspectivas, de temas e autores. Além dos artigos dos
alunos, que são uma demonstração do caráter inovador de uma nova
geração de pesquisadores da Bioética, há artigos de alguns dos
professores do curso. Este livro é fruto de uma experiência acadêmica
bem sucedida: ex-estudantes e ex-professores são, agora, autores, mas
também representantes de uma geração de pesquisadores ousados e
compromissados com a democratização da Bioética no Brasil.
A etapa mais complexa para a os organizadores desta obra foi
selecionar de 38 artigos os dez que cumprissem com o critério da
diversidade, ousadia e originalidade. Adotou-se, então, a estratégia de
levar em conta elementos como a singularidade do tema, o ineditismo
da abordagem e, naturalmente, a consistência das idéias, de modo a
privilegiar perspectivas pouco exploradas em Bioética no Brasil. Entre
os temas pouco explorados no país, destaca-se o universo da
deficiência, ainda hoje, um assunto pouco abordado pelas Ciências
Biomédicas e praticamente ignorado pelas Ciências Humanas.
Considerou-se esse tema um objeto privilegiado para os bioeticistas
11
brasileiros, sobretudo pelo impacto que o envelhecimento da
população representará em um futuro imediato para as políticas
públicas brasileiras.
Os artigos foram ordenados de acordo com grandes áreas
temáticas. A sistematização foi simples, pois um dos compromissos
dos organizadores era por garantir a leveza da obra. O livro pode ser
lido horizontal e verticalmente: ao mesmo tempo em que é uma
seqüência de idéias, os capítulos são peças independentes. O resultado
submete-se agora à avaliação dos leitores e pretende ser um ponto de
partida para outras iniciativas tanto de novos cursos quanto de
produção teórica.
A primeira parte do livro enfrenta um dos maiores desafios
da Bioética brasileira: o tema do aborto por anencefalia e o da pesquisa
com embriões extra-uterinos. O artigo de Gisleno Feitosa,
“Interrupção da gestação em caso de anencefalia”, traz algo de
absolutamente original ao debate brasileiro: aproxima as reflexões
teóricas da Bioética de pesquisas empíricas. Feitosa, convencido de
que o aborto em caso de anencefalia deve ser um direito individual a
ser protegido pelo Estado, entrevista mulheres de classes populares
de Teresina para conhecer suas opiniões sobre o assunto. Guiado por
uma metodologia experimental, ao mesmo tempo ousada e segura,
os resultados do autor são desafiantes para um país que insiste em
desrespeitar o caráter laico da vida pública. O segundo artigo do bloco
sobre reprodução é de Samantha Buglione, “A pesquisa com embriões
extra-uterinos: entre ciência e paixão”. Buglione foi professora e
orientadora do curso de especialização e sua contribuição não se
resume apenas à docência: grande parte dos artigos deste livro
submeteram-se ao seu olhar crítico aguçado em Bioética. Em harmonia
com os fundamentos éticos de Feitosa ao analisar o desafio da
anencefalia, Buglione enfrenta o tema da pesquisa com embriões sob
a perspectiva da redução de danos e da garantia da laicidade da
legislação.
“Quando tratar significa sofrimento”, de Luiza Ivete Vieira
Batista, faz parte do segundo bloco de temas persistentes à Bioética
12
brasileira: o fim da vida. Batista é médica e o tema da morte é parte
de sua vida cotidiana como pediatra de UTI. Nesse sentido, seu artigo
não é apenas uma reflexão ética sobre os desafios da medicalização
da morte, mas principalmente um descortinamento pessoal dos
conflitos diários de sua prática profissional. O médico é posto em
xeque neste artigo, onde a autora o desafia a aprender que a morte é
uma etapa necessária e inalienável da experiência humana.
O envelhecimento nem sempre significa doença, dependência
de terceiros ou perda irreversível de funções, embora seja normal um
declínio gradual das capacidades sistêmicas e orgânicas. Com essa
conclusão, Sérgio Costa, em “Bioética clínica e terceira idade”, lembra
que não se deve esperar do idoso centenário a exibição de saúde, pois
certamente ele estará muito próximo do fim da sua existência,
acometido por diferentes formas ou manifestações de doenças. O
desafio não é relegar ao silêncio e a solidão o enfrentamento da morte,
mas assumi-la como parte de nossa existência compartilhada e,
exatamente por isso, como um tema a ser abertamente enfrentado
por nossas políticas públicas.
Um dos temas centrais deste livro é a deficiência. Pela primeira
vez em uma obra de Bioética no Brasil, houve o compromisso de
enfrentar o tema da deficiência em sua pluralidade de desafios e
perspectivas: há análises de situações específicas, como é o caso do
artigo “Perícia médica em gastro-hepatologia para a concessão de
benefícios previdenciários” de Thelma Maria do Nascimento, ou
análises políticas mais amplas, como é o caso dos artigos “Deficiência,
cuidado e justiça distributiva”, de Debora Diniz, Flávia Squinca e
Marcelo Medeiros, e “Benefício assistencial de prestação continuada:
ferramenta de inclusão ou de exclusão social?”, de Franck Janes Paula
Lira. O resultado é um bloco temático em harmonia com os principais
debates internacionais em Bioética, mas ainda pouco discutidos no
Brasil. O tema da deficiência estará na agenda de negociações
brasileiras não apenas porque a população deficiente corresponde a
14,5% da população brasileira, mas principalmente por ser este um
tema que toca no cerne de questões bioéticas centrais, tais como
13
igualdade, justiça e dignidade. Esse compromisso temático somente
foi possível por uma harmonia de interesses entre alunos e professores
e, já na fase de organização do livro, pela feliz coincidência de que
duas das organizadores são especialistas no tema da deficiência.
Na esteira de novos temas e desafios reflexivos para a Bioética,
há um bloco de temas pouco explorados na América Latina: a pena
de morte e a experimentação com animais não-humanos. Muito
embora a Bioética internacional tenha na pesquisa com animais nãohumanos um de seus temas centrais, o mesmo fenômeno não ocorre
no Brasil. Uma análise cuidadosa da gênese da Bioética brasileira talvez
fosse capaz de explicar as razões do pouco interesse de filósofos,
veterinários ou representantes de movimentos sociais pela ética na
pesquisa com animais não-humanos. Somente nos últimos dois anos,
em especial pelo impacto do documentário “Não Matarás”, uma peça
incisiva de crítica à tortura da ciência aos animais, é o que tema alçou
o debate midiático nacional. Nesse sentido, o artigo de Danielle Maria
Machado Ribeiro Azevedo, “Experimentação animal: aspectos
bioéticos e normativos”, desbrava um campo ainda pouquíssimo
explorado no país. Assim como o tema da deficiência, esse é ainda
um tema solitário no cenário dos debates em Bioética brasileira. Mas
não menos único é o artigo “Pena de morte: uma abordagem
contextual”, de Osita Maria Machado Ribeiro Costa, ao enfrentar um
tema aparentemente fora da agenda das discussões em bioética clínica.
Na verdade, Costa desafia a separação entre as agendas: temas de
direitos humanos são questões centrais para a bioética e seu artigo
sobre os desafios éticos da pena morte são uma prova dessa
sobreposição entre campos disciplinares e referenciais teóricos.
O artigo “Consentimento livre e esclarecido em tratamento
odontológico infantil: estudo de caso na Universidade Federal do
Piauí”, de Wagner Leal de Moura, traz para o centro dos debates o
movimento que iniciou a composição do curso de especialização em
Bioética e mesmo a formação do grupo de professores e estudantes
em Teresina. O tema da ética na pesquisa com seres humanos tem no
termo de consentimento livre e esclarecido uma de suas peças-chave
14
para o debate público. Como garantir que as pessoas estão informadas
e esclarecidas das vantagens e riscos envolvidos na participação em
uma pesquisa científica? E quais são as particularidades éticas de
pesquisas com crianças? Esses são dois dos desafios enfrentados por
Moura na pesquisa desenvolvida com crianças em tratamento
odontológico de um hospital universitário. Assim como Feitosa, Moura
aproxima metodologias ainda pouco exploradas no cenário da Bioética
brasileira: os autores vão ao mundo real e buscam as percepções,
opiniões e valores das pessoas. O resultado são artigos ricos de
argumentos e realidade, uma combinação que certamente será o futuro
da Bioética brasileira.
O Curso de Especialização em Bioética que culminou nesta
edição trouxe em si um caráter duplamente inaugural. Não foi apenas
o primeiro curso dessa natureza em Teresina, mas também o primeiro
curso de especialização em Bioética do Norte e Nordeste e o quarto
do país, o que ressalta o caráter de ineditismo que ainda norteia o
estágio de divulgação desse campo disciplinar no Brasil. A Bioética é
ao mesmo tempo um campo para especialistas, mas também para
todas as pessoas: o desafio é reconhecer nos seus especialistas uma
fonte permanente de idéias e teses, mas manter aceso o compromisso
de estender suas fronteiras para além das universidades e centros de
pesquisa. Os CEP são um excelente espaço de democratização do
pensamento ético na sociedade científica brasileira. Mas é preciso
avançar ainda mais. Cursos de especialização e publicações como esta
são uma quebra de fronteiras necessária para a garantia de
democratização da Bioética.
Finalmente, cabe manifestar um agradecimento às instituições
patrocinadoras desse projeto, sem as quais não teria sido possível
viabilizá-lo. O nosso agradecimento especial é tributado às
pesquisadoras da Anis, aos professores convidados e aos orientadores
dos trabalhos de término de curso, que não mediram esforços para
levar o projeto até a sua etapa final, coroada com a edição deste livro,
um marco para a Bioética brasileira. O reconhecimento da importante
participação do grupo pertencente à Anis não poderia faltar na
15
elaboração final de um livro com temas que foram exaustivamente
debatidos em sala de aula.
O real propósito dos organizadores é que tanto o primeiro
Curso de Especialização em Bioética quanto a edição deste livro
representem apenas um capítulo da história da consolidação desse
campo de investigação nas regiões Norte e Nordeste do país. A todos
os responsáveis por esta experiência bem sucedida, os agradecimentos
dos organizadores. Aos leitores, nossos votos de que os temas aqui
abordados representem um contato com o universo da Bioética e seu
vasto campo de interesses. Esperamos que a nossa aposta na Bioética
como um instrumento capaz de provocar a ordem moral estabelecida
seja também a de nossos leitores.
Os organizadores
Maio, 2006
16
Interrupção da gestação em caso de
anencefalia: opinião de mulheres de classes
populares em Teresina
Gisleno Feitosa
INTRODUÇÃO
Para a Medicina, abortamento é definido como a interrupção da
gravidez antes da 20a semana ou quando o feto pesar menos de 500
gramas. No âmbito jurídico, é a interrupção da gestação no período
que compreende desde a concepção até o início do parto ou o fim da
vida intra-uterina. Desse modo, pode-se dizer que o aborto ocorre
quando, por algum motivo, o desenvolvimento intra-uterino é
interrompido, não permitindo o término da gestação.
O Código Penal Brasileiro, que data de 1940, permite o aborto em
apenas duas situações: quando houver risco de vida para a gestante
(aborto necessário ou terapêutico) ou se a gravidez for resultante de
estupro (aborto sentimental, ético ou humanitário). Em qualquer outra
situação, o artigo 128 do Código Penal considera aborto um crime
contra a vida e estabelece punição de um a três anos de prisão para a
Interrupção da gestação em caso de anencefalia
17
mulher que abortar e de um a dez anos para o médico ou outra pessoa
que realizar o aborto. As sanções para a prática abortiva voluntária
variam enormemente de país para país, seja nas legislações ou nos
dogmas religiosos (MARTINS, 2005).
Pinotti define a anencefalia como o resultado de falha de fechamento
do tubo neural, decorrente da interação entre fatores genéticos e
ambientais durante o primeiro mês de gestação (PINOTTI, 2004). Hoje,
sabemos que a deficiência de ácido fólico, bem como da vitamina B12,
pode causar espinha bífida ou defeitos no fechamento do tubo neural
(má-formação na coluna vertebral e comprometimento das funções
neurológicas, respectivamente). Pesquisas recentes indicaram que uma
suplementação alimentar tomada no período pré-gestacional e até que
se completem 12 semanas de gravidez diminui o risco de má-formação
do sistema nervoso da criança. Em 1992, o Serviço de Saúde Pública
dos Estados Unidos recomendou que todas as mulheres em vias de
engravidar deveriam consumir 400 mg de ácido fólico por dia. O ácido
fólico pode ser obtido de cereais, do suco de laranja, de vegetais verdes,
de ervilhas, mas a quantidade proposta não pode ser obtida somente
por meio de dieta alimentar, sendo necessário fazer uma
complementação.
A abordagem desse tema é importante porque se trata de um
problema de saúde pública com claro viés de classe no país. Mulheres
com melhor nível de instrução e com renda mais alta conseguem,
com toda a segurança e conforto fora da rede pública de saúde, a
interrupção de gravidez indesejada ou que envolve problema de saúde
na mãe ou no feto. Dispondo de algum recurso financeiro, essas
mulheres recorrem às clínicas bem equipadas espalhadas pelo país. O
aborto clandestino tem-se tornado uma indústria bem sucedida e
rentável. Por outro lado, mulheres pobres, na maioria jovens e
inexperientes, buscam soluções domésticas arriscadas, que podem ir
do chá à introdução de objetos pontiagudos no útero. Muitas morrem
sem atendimento médico-hospitalar.
18
Gisleno Feitosa
Quanto à anencefalia, a conservação do feto anômalo no útero da
mãe pode gerar danos à saúde da gestante e até perigo de vida, em
razão do alto índice de óbitos intra-uterinos desses fetos. Recorrer à
antecipação do parto neste caso constitui indicação terapêutica médica,
tendo em vista que é a único recurso possível e eficaz para o tratamento
da gestante, pois tentar reverter a inviabilidade do feto é impraticável.
CARACTERIZAÇÃO
DA ANENCEFALIA
Anencefalia é uma má-formação congênita que ocorre entre o 20º e o
28º dia após a concepção. Consiste na ausência parcial ou completa da
abóbada craniana, bem como da ausência dos tecidos superiores com
diversos graus de má-formação e destruição dos rudimentos cerebrais.
Em suma, anencefalia significa “sem encéfalo”, sendo encéfalo o conjunto
de órgãos do sistema nervoso central, contidos na caixa craniana. Esta,
na verdade, não é uma definição satisfatória, pois o que falta é o cérebro
com seus hemisférios e o cerebelo. O anencefálico nasce sem o couro
cabeludo, calota craniana, meninges, porém o tronco cerebral é geralmente
preservado. Este, juntamente com a medula espinhal, controla algumas
das funções inconscientes do corpo, como o batimento cardíaco, e
coordena a maior parte dos movimentos voluntários.
O diagnóstico da anencefalia pode ser feito entre a 12ª e 18ª semanas
de gestação, através de exame ultra-sonográfico, quando já é possível a
visualização do segmento cefálico fetal. Na maioria das vezes, os
ecografistas preferem repetir o exame em uma ou duas semanas para a
confirmação diagnóstica. Outras más-formações freqüentemente
associadas à anencefalia são as cardiopatias congênitas e as alterações do
sistema geniturinário fetal. Em que pese a facilidade no diagnóstico por
ultra-sonografia avançada, tem importante papel a elevação dos níveis de
alfafetoproteína no líquido amniótico (ANDALAFT NETO, 2005).
Para Diniz, “o diagnóstico de má-formação fetal, principalmente as
incompatíveis com a vida extra-uterina, não compõe o rol de
expectativas das mulheres grávidas. O diagnóstico de má-formação
Interrupção da gestação em caso de anencefalia
19
fetal é, sem sombra de dúvida, uma das experiências mais angustiantes
que uma mulher grávida pode experimentar” (DINIZ, 2004, p. 53).
Uma vez diagnosticada a anencefalia, não há nada que a ciência médica
possa fazer quanto ao feto inviável. O mesmo, todavia, não ocorre
com relação ao quadro clínico da gestante. A permanência do feto
anômalo no útero da mãe é potencialmente perigosa, podendo gerar
danos à saúde da gestante e até perigo de vida, em razão do alto índice
de óbitos intra-útero desses fetos. De fato, a má-formação fetal empresta
à gravidez um caráter de risco, notadamente maior do que o inerente a
uma gravidez normal. Assim, a antecipação do parto nessa hipótese
constitui indicação terapêutica médica: a única possível e eficaz para o
tratamento da paciente (a gestante), já que para reverter a inviabilidade
do feto não há solução (ADPF 54, 2005).
É freqüente a associação da anencefalia ao polihidrâmnio, que é o
excesso de líquido amniótico causando maior distensão do útero em
50% dos casos e a apresentação fetal anômala (pélvico, transverso, de
face e oblíquos) devido à dificuldade de insinuação do pólo fetal no
estreito inferior da bacia. Justifica-se a alta incidência de polihidrâmnio
ao fato de que parte do líquido amniótico é deglutido pelo concepto.
Nesse caso, a perda da deglutição ocorre por falta de controle pelo
Sistema Nervoso Central. Também pode acontecer a associação com
doença hipertensiva específica de gravidez (DHEG), comprometendo
o bem-estar físico da gestante, assim como possibilidade de atonia
no pós-parto, hemorragia e descolamento prematuro de placenta,
que é um acidente obstétrico de relativa gravidade (GOLLOP, 2004).
A anomalia pode ser constatada com maior freqüência na gravidez
de mulheres com mais de 35 anos de idade. Se entre 40 e 60% dos
anencéfalos sobrevivem logo após o parto, apenas 8% sobrevivem
mais de uma semana, 1% vive entre 1 e 3 meses (OLIVEIRA, 2005).
Em 75% dos casos de anencefalia, há aborto natural nos primeiros
meses de gestação. Nas gestações que conseguem chegar ao seu final,
há parada cardiorrespiratória nos primeiros minutos ou horas depois
da expulsão do útero. Não há vida duradoura possível para o
anencéfalo fora do útero da mãe. Não se trata de vida em potencial,
20
Gisleno Feitosa
mas de morte segura. No Brasil, uma Resolução do Conselho Nacional
de Saúde (CNS) é favorável a que seja assegurado à gestante o direito
de optar, de forma esclarecida e informada, à antecipação terapêutica
ou não do parto, no caso de gravidez de anencéfalos.
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam que o
Brasil é o quarto colocado no ranking de nascimento de fetos com
anencefalia. Para cada 10 mil crianças brasileiras nascidas vivas, há o
registro de 8,6 fetos anencéfalos, o que coloca o país atrás apenas do
Chile, México e Paraguai. O Chile também não permite, por pressão
do clero, a antecipação do parto nesses casos. Na França, Bélgica e
Áustria, onde a interrupção da gravidez é permitida, a taxa é 50 vezes
menor que no Brasil. Cerca de 3.000 alvarás da Justiça e pareceres do
Ministério Público autorizaram, nos últimos 15 anos, a antecipação
do parto (POMPE, 2005).
DEBATE
SOBRE ANENCEFALIA NO
BRASIL
Em março de 2004, pela primeira vez na nossa história, um
processo em busca de autorização para garantir que uma mulher
grávida procedesse à antecipação terapêutica do parto chegou ao
Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta corte de justiça no Brasil.
Tratava-se de uma jovem de 19 anos, do município de Teresópolis,
no Rio de Janeiro, a qual entrara com pedido de autorização judicial
para interromper a gestação, pois os exames complementares
mostravam que o feto era portador de anencefalia.
Alguns ministros do STF se pronunciaram favoravelmente, muito
embora não tenham podido resolver o caso, pois o parto havia
ocorrido quatro dias antes e o feto sobrevivido por sete minutos fora
do útero. O caso chegou ao STF por meio de uma ação conjunta de
duas entidades feministas do campo da bioética e dos direitos
humanos, a Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero,
em parceria com a organização não-governamental feminista Themis
- Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero (BRUM, 2004).
A peregrinação da jovem foi extenuante, vagando a esmo,
enfrentando a tediosa espera por decisões judiciais. No dia 6 de
Interrupção da gestação em caso de anencefalia
21
novembro de 2003, o juiz de direito de Teresópolis havia indeferido
liminarmente o pedido. O Ministério Público do Rio de Janeiro
recorreu da decisão, em apelação que foi dirigida à Segunda Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado. Em 19 de novembro de
2003, uma desembargadora concedeu liminar autorizando a
interrupção da gravidez. Tomando conhecimento da decisão, um
desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
(TJ/RJ) e o presidente da União dos Juristas Católicos do Rio de
Janeiro interpuseram um agravo regimental à Segunda Câmara
Criminal. Em 21 de novembro de 2003, o presidente da Segunda
Câmara Criminal suspendeu a liminar expedida pela desembargadora.
Em 25 de novembro, o colegiado resolveu negar provimento ao agravo
regimental, mantendo a decisão que autorizava a realização do aborto.
Quatro dias antes de o procedimento ser realizado, o presidente
da Associação Pró-Vida de Anápolis impetrou habeas-corpus em favor
do feto junto ao STJ (HC 32159-STJ). O despacho, datado de 25 de
novembro por ministra desse Tribunal, sustou a autorização até a
apreciação final. A diligência foi requerida pelo TJ/RJ às vésperas do
recesso judiciário e o habeas-corpus em favor do feto só foi julgado
e concedido pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
no dia 18 de fevereiro de 2004. Em face disso, foi impetrado um
habeas-corpus com pedido de liminar, junto ao STF, em favor da
jovem. O relator designado para o caso chegou a divulgar seu voto
favorável à interrupção da gestação. Porém não houve tempo de os
ministros do STF fazerem o julgamento final, pois no curso do oitavo
mês de gestação a jovem deu à luz um anencéfalo, que resistiu sete
minutos após o parto.
Em junho de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Saúde (CNTS) e a organização não-governamental Anis
apresentaram um instrumento denominado Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) ao STF.
Demandava-se a autorização para que serviços de saúde pudessem
realizar a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia do feto,
desde que pedida pela mulher e sem necessidade de autorização
judicial. Em julho de 2004, uma liminar autorizando o procedimento
22
Gisleno Feitosa
foi concedida pelo ministro Marco Aurélio de Mello, provocando
reações da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
No dia 20 de outubro do ano passado, o STF cassou liminar que
permitia interromper a gravidez de fetos anencefálicos. A decisão
teve sete votos a favor e quatro contra. Também em 2004, durante a
1ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres surgiu a
recomendação para que fossem revisadas as leis que punem o aborto
no Brasil. A revisão representa um avanço e um reconhecimento da
necessidade de reformular uma legislação vigente desde 1940. No
mesmo ano foram criadas as Jornadas pelo Direito ao Aborto Legal
e Seguro, cujo objetivo é impedir retrocessos no exercício dos direitos
sexuais e reprodutivos.
Entidades diretamente envolvidas na análise da questão
manifestaram publicamente os seus pereceres. O Conselho Federal
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) decidiu no dia 16 de
agosto de 2004, por maioria de votos, considerar que a interrupção
da gravidez de feto anencefálico não é considerada prática abortiva.
A matéria foi examinada pelos 81 advogados que compõem o
Conselho, na sede da OAB, após a decisão do ministro do STF, Marco
Aurélio, que concedeu liminar à CNTS reconhecendo o direito
constitucional de gestantes que decidam realizar operação de parto
de fetos anencefálicos (TOURINHO, 2005). No dia 08 de setembro
de 2004, durante reunião do Plenário do Conselho Federal de Medicina
(CFM), foi discutida a aprovação do uso de órgãos de anencéfalos
para transplante. Ao final da discussão, o CFM aprovou o Parecer Nº
24/2003, com a conclusão de que, após autorização formal dos pais,
o médico poderá proceder ao transplante de órgãos do anencéfalo
após sua expulsão ou retirada do útero materno, dada à
incompatibilidade vital que o ente apresenta e tratando-se de processo
irreversível, mesmo que o tronco cerebral esteja ainda
temporariamente em funcionamento.
Documento assinado por Andalaft Neto, definindo a posição da
Federação Brasileira de Associações de Ginecologia e Obstetrícia
(Febrasgo) - órgão que congrega os ginecologistas e obstetras do Brasil -,
deixa claro que a liberdade de escolha no caso de anencefalia
Interrupção da gestação em caso de anencefalia
23
assemelha-se ao princípio da autonomia reprodutiva (ANDALAFT
NETO, 2005). Para exercê-la nesses casos, a mulher necessita de
autorização judicial; portanto, vê-se aqui clara restrição à liberdade
de escolha de seu tratamento médico. Para Andalaft, “se não
ajudarmos essas mulheres a procurar um advogado que, gratuitamente,
entre com uma ação pedindo a autorização, elas não conseguem
(interromper a gestação). Já passado por um sofrimento muito grande
e ainda precisam lidar com a burocracia, tentar um alvará e procurar
um hospital que aceite atendê-las” (ANDALAFT NETO, 2005). É
necessário que se estabeleçam normas claras para a realização de
aborto em caso de anencefalia, sem necessidade de autorização judicial,
em respeito à autonomia e ao poder de decisão das gestantes.
Pinotti enfatiza que “a manutenção da legislação atual, que precede
em muitas décadas os avanços científicos que garantem o diagnóstico
de certeza da anencefalia, obriga as mulheres a levarem adiante uma
gestação que contém feto com morte cerebral e certeza de
impossibilidade de sobrevida ao nascerem (PINOTTI, 2005). Para
essas mães, a alegria de pensar em berço e enxoval será substituída
pela angústia de preparar vestes mortuárias e sepultamento”. Não
deixa de ser uma forma de tortura obrigar a mãe a manter a gestação
de um feto sem cérebro até o final, contra a sua vontade.
No dia 18 de maio de 2005, a Comissão de Seguridade Social e
Família da Câmara aprovou, em votação simbólica, Projeto de Lei
(PL 4403/2004) que altera o Código Penal e permite o aborto nos
casos de fetos anencéfalos. O projeto é de autoria da deputada Jandira
Feghalli (PC do B-RJ), que classificou esse tipo de interrupção da
gravidez como aborto terapêutico. No dia 27 de setembro, a ministra
Nilcéia Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
(SEPM), entregou, na Câmara Federal, o anteprojeto que prevê a
descriminalização e a legalização do aborto no Brasil. O anteprojeto
foi elaborado por uma comissão tripartite, instituída pela própria
SEPM e integrada por representantes dos poderes Executivo,
Legislativo e da sociedade civil, os quais, após ampla discussão,
propuseram uma profunda revisão na legislação brasileira sobre o
aborto, contida no Código Penal de 1940 e, desde então, jamais
24
Gisleno Feitosa
revisada. A comissão tripartite se instalou no dia 6 de abril de 2005.
O anteprojeto propõe a descriminalização do aborto até a 12ª
semana de gestação e em qualquer idade gestacional quando a gravidez
implicar risco de vida à mulher ou em caso de má-formação fetal
incompatível com a vida. Também propõe revogar os artigos do
Código Penal que tratam o aborto como crime, assegurando que o
Sistema Único de Saúde (SUS) realize a interrupção da gravidez. Além
disso, obriga os planos de saúde a cobrirem os custos com o aborto.
Outro aspecto a ser destacado é a necessidade de autorização do
Ministério Público, além dos responsáveis legais, para que a
interrupção seja realizada em menores de 18 anos (SUGIMOTO,
2005).
O documento da Comissão Tripartite enumera uma série de
justificativas para a descriminalização do aborto voluntário. Segundo
o documento, a OMS estima que mais de 30% das gravidezes no
Brasil terminam em abortamento, significando que, anualmente,
ocorrem perto de 1 milhão de abortamentos inseguros, atingindo
mais as mulheres de baixa renda, particularmente as negras. As
complicações imediatas mais freqüentes são a perfurações do útero,
as hemorragias e as infecções. As estatísticas mundiais indicam que
uma mulher morre a cada três minutos em decorrência do aborto
inseguro – causa de 13% das mortes maternas. Ainda de acordo com
a Comissão, em 2004, cerca de 240 mil internações pelo SUS foram
motivadas por curetagens pós-aborto, a um custo de R$ 35 milhões
(SUGIMOTO, 2005).
O posicionamento da SEPM é claro quando diz que é necessário
que a discussão da interrupção de uma gestação por anencefalia seja
tratada afastando-se princípios religiosos e fundamentalistas, uma vez
que não se trata de posição de fé. É necessário que se faça essa
discussão desprovida de dogmatismos e intolerâncias. O princípio da
laicidade do Estado deve ser obedecido nas políticas públicas para
que seja garantida a igualdade de todas as pessoas e assegurada a
efetivação dos direitos já consagrados na Constituição Federal de 1988
e nos diversos instrumentos internacionais, como medida de proteção
aos direitos humanos das mulheres.
Interrupção da gestação em caso de anencefalia
25
No dia 23 de dezembro de 2005, liminar concedida pelo presidente
do STJ, ministro Edson Vidigal, autorizou a interrupção da gravidez
de Michelly Chistina de Freitas, de 23 anos, porque o feto de 26
semanas sofria de hidranencefalia, que corresponde à ausência quase
completa dos hemisférios cerebrais, substituídos por uma bolsa
meníngea com resquícios de células da glia. Estas células são
responsáveis pela sustentação física e química do tecido nervoso, além
de sua proteção e manutenção.
METODOLOGIA
A escolha deste tema teve como objetivo primordial conhecer a
opinião sobre o aborto por anencefalia feito por mulheres de classes
populares em Teresina, capital do Estado do Piauí. Para isso, foram
entrevistadas cinqüenta mulheres. A hipótese que norteou a pesquisa
foi de que a informação médica sobre a inviabilidade fetal tornará as
mulheres mais sensíveis ao direito ao aborto em caso de anencefalia.
O projeto de pesquisa foi encaminhado ao Comitê de Ética em
Pesquisa do Instituto Camillo Filho, tendo sido aprovado e
protocolado com o no 23/05, de acordo com a Resolução 196/96 do
Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde (CNS/MS). Além
do questionário aplicado na pesquisa, foram utilizados gravador de
voz e fotografias de anencéfalos. Como a pesquisa envolvia a
participação de seres humanos, todos os cuidados foram adotados
para a preservação sigilosa das informações. Todas as mulheres
demonstraram interesse em conhecer melhor a anencefalia e em ver
fotos de anencéfalos. Depois de receberem informações sobre a
anencefalia, a maior parte delas se posicionou favorável à interrupção
da gestação em que se constata essa má-formação no feto.
DISCUSSÃO
Uma pesquisa realizada pelo Datafolha, em São Paulo, no dia 15
de outubro de 2004, revelou que a maioria absoluta da população
26
Gisleno Feitosa
paulistana (67%) defende o direito ao aborto no caso de anencefalia.
Segundo a pesquisa, as mulheres são mais favoráveis que os homens
à concessão do direito; entre as mulheres a aprovação do aborto
chegou a 71%. Outra pesquisa realizada pelo Ibope por encomenda
do grupo Católicas pelo Direito de Decidir entrevistou 2.002 mulheres
em 140 municípios do país, entre os dias 24 e 29 de novembro de
2004. A pesquisa confirmou que a esmagadora maioria das mulheres
é a favor do direito de decidir manter ou não a gravidez e que é uma
tortura e uma violação do direito da mulher de decidir sobre o seu
próprio corpo não permitir o aborto neste caso. Porém, o dado mais
interessante confirmado na pesquisa é o de que 70% das mulheres
que se declararam católicas são a favor do direito de escolha no caso
da gestação de fetos anencéfalos e 80% concordaram que é uma
tortura obrigar a mãe a levar a gestação até o final, contrariando a
orientação das instâncias superiores hierárquicas da Igreja.
Na presente pesquisa, a maioria das entrevistadas é formada por
mulheres na faixa de 41 a 45 anos, ou seja, pessoas maduras, aptas a
uma reflexão moral cuidadosa. A grande maioria (80%) também se
autodenomina católica. Quanto à opinião sobre interromper a gestação
em caso de anencefalia, 80% das mulheres consideram que este deve
ser um direito reprodutivo das mulheres, após tomar conhecimento
do diagnóstico e das imagens de fetos com anencefalia.
Num artigo utilizando dados do Estudo Eleitoral Brasileiro
(ESEB), Nishimura estuda as tendências do comportamento social
dos brasileiros com base em posicionamentos sobre diversos temas,
incluindo o aborto. Apesar de verificar a existência de uma posição
de tendência conservadora em relação à descriminalização do aborto
no Brasil, pode-se dizer que os brasileiros estão divididos sobre o
assunto. Nishimura constatou que, para 51% dos entrevistados, a
interrupção da gravidez deve ser permitida somente em situações
particulares, como no caso de uma gravidez provocada por estupro.
Mesmo assim, a alternativa de que o aborto deveria ser proibido em
qualquer situação foi apontada por parte significativa dos entrevistados
(37,4%) e apenas 11,5% concordam em que o aborto deva ser
permitido em qualquer situação. Esse estudo constatou ainda que os
Interrupção da gestação em caso de anencefalia
27
mais conservadores e que defendem a proibição da interrupção da
gravidez em caso de anencefalia em qualquer circunstância
caracterizam-se por ser de mais idade, mais pobres e menos
escolarizados. A opinião de que o aborto deve ser proibido de forma
incondicional concentra-se na faixa dos 60 anos ou mais, entre aqueles
que não têm renda ou com renda de até um salário mínimo e com
muito pouca instrução, que cursaram até a 4ª série de Ensino
Fundamental, ou totalmente analfabetos. Quanto à opinião de que o
aborto deve ser permitido em uma situação específica, apontada pela
maioria dos entrevistados, é predominantemente encontrada tanto
entre aqueles com menor renda e baixa escolaridade como entre os
mais escolarizados e de maior renda. Esta postura também é a
preponderante tanto entre os jovens como entre os adultos
(NISHIMURA, 2004).
Na realidade pouca gente sabe o que seja a anencefalia. Se
procurarmos num dicionário vamos encontrar que é “monstruosidade
em que não há abóbada craniana e os hemisférios cerebrais ou não
existem, ou se apresentam como pequenas formações aderidas à base
do crânio” (FERREIRA, 1999). Nesta pesquisa constatamos que a
grande maioria (76%) das mulheres não tinha a mínima noção do
que fosse anencefalia. Somente 24% disseram saber do que se tratava,
explicando de maneira vaga e imprecisa. Um exemplo disso é a
confusão que se faz entre hidrocefalia e anencefalia. No anencéfalo
não há encéfalo e caixa craniana, enquanto na hidrocefalia o que existe
é o aumento do volume dessa caixa. Essa confusão leva pessoas a
alegar que conhecem mães que tiveram bebês anencéfalos, quando,
na verdade, eram fetos com crânios aumentados de volume, em razão
do aumento da pressão nas cavidades cerebrais por excesso de líquido,
o que caracteriza a hidrocefalia.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Em países tradicionalmente católicos, como o Brasil, as posições
que caracterizam o debate sobre o aborto vão desde o direito à vida
do feto ao direito à autonomia reprodutiva da mulher para deliberar
28
Gisleno Feitosa
sobre o seu próprio corpo. A controvérsia sobre o assunto oporá
sempre os radicalmente contrários e os defensores ferrenhos,
dispostos a se digladiarem. No caso da legislação brasileira sobre o
aborto, a autonomia de decisão da mulher tende a ficar em segundo
plano em relação ao status jurídico do feto, considerado pessoa a ser
protegida pelo Estado (CANTARINO, 2005).
As estatísticas, contaminadas pela clandestinidade da prática que
leva à falsa notificação, escondem números aterrorizantes: no Brasil
são realizados mais de um milhão de abortos por ano e
aproximadamente duzentas e cinqüenta mil internações de mulheres
para tratar seqüelas de abortos clandestinos. A morte por aborto é a
quarta causa de mortalidade materna no Brasil. As complicações por
aborto se constituem na quinta causa de internação das mulheres nos
serviços públicos. Estimativa feita pela Rede Feminista de Saúde revela
que o Brasil gasta por ano cerca de 10 milhões de dólares no
atendimento dessas complicações (MARTINS, 2005).
Ante essa gama variada de aspectos que envolvem não somente
questões de natureza ética, política e religiosa, por um lado, mas
também socioeconômicas, psicológicas e, sobretudo, de saúde pública,
por outro, é que a questão do aborto e da anencefalia coloca-se como
problema cuja existência concreta não pode ser ignorada na atualidade,
exigindo uma ampla discussão pela sociedade brasileira.
O tema da anencefalia deve ser examinado sem subterfúgios e de
modo claro às pessoas para que possam tomar decisões sensatas. A
vontade, os valores morais e as crenças de cada pessoa devem ser
respeitadas, levando-se em consideração os ditames da Bioética, dos
quais destacamos os quatro princípios básicos da teoria principialista
- beneficência, não-maleficência, justiça e respeito à autonomia.
Oprimidas por leis restritivas somadas aos entraves oriundos de
setores religiosos conservadores, estas gestantes se sentem impotentes
para reivindicar seu direito à saúde, à liberdade e à dignidade. Enquanto
a antecipação terapêutica do parto for tratada como crime e como
pecado, muitas mulheres sofrerão conseqüências danosas,
principalmente o comprometimento da saúde física e mental de cada
Interrupção da gestação em caso de anencefalia
29
uma delas. Informações sinceras, baseadas em sólidas ponderações,
com prudência, discernimento e bom senso ajudarão a salvar vidas
ou amenizar sofrimentos.
Não há dúvida de que as mulheres, desde que devidamente
informadas, apóiam a antecipação do parto em caso de anencefalia.
Mesmo aquelas com menor nível de educação são capazes de usar a
razão para compor argumentos morais. Elas são unânimes em afirmar
que cabe sempre à mulher, a partir de suas próprias convicções morais
e religiosas, a liberdade de escolher se quer ou não manter a gestação
com feto anencefálico.
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33
A pesquisa com embriões extra-uterinos:
entre ciência e paixão
Samantha Buglione
“Um afeto só pode ser detido e eliminado por um afeto contrário e mais forte”
(Spinoza)
INTRODUÇÃO
Diferentes crenças e idéias convergem no reconhecimento da vida
como um valor fundamental. Porém divergem em relação ao momento
da concepção, ao significado do que é um organismo vivo eà proteção
à vida. Um exemplo é a discussão acerca da Lei de Biossegurança
(Lei 11.105/05). Para alguns, o artigo 5o e parágrafos da Lei 11.105/
05 reforçam e ampliam o âmbito de proteção constitucional do direito
à vida, ao permitir a pesquisa e a terapia com o uso de células-tronco
embrionárias,1 uma vez que as pesquisas objetivam não apenas aliviar
a dor e o sofrimento de seres humanos portadores de graves
As células-tronco podem ser classificadas como: a) Totipotentes ou embrionárias:
que conseguem se diferenciar em todos os 216 tecidos (inclusive a placenta e anexos
embrionários)que formam o corpo humano; b) Pluripotentes ou multipotentes: que
conseguem se diferenciar em quase todos os tecidos humanos, menos placenta e
anexos embrionários; c) Oligopotentes: que conseguem diferenciar-se em poucos
tecidos e d) Unipotentes: que conseguem diferenciar-se em um único tecido. A tensão
reserva-se, prioritariamente, em relação às células totipotentes e pluripotentes (ou
multipotentes) que só são encontradas nos embriões. As totipotentes são aquelas
presentes nas primeiras fases da divisão, quando o embrião tem até 16 - 32 células
(até três ou quatro dias de desenvolvimento). As pluripotentes ou multipotentes surgem
quando o embrião atinge a fase de blastocisto (a partir de 32 - 64 células,
aproximadamente a partir do 5.o dia de desenvolvimento) - as células internas do
blastocisto são pluripotentes enquanto as células da membrana externa do blastocisto
destinam-se a produzir a placenta e as membranas embrionárias.
1
34
Samantha Buglione
enfermidades como também promover a cura de doenças específicas.
Para outros, porém, a manipulação de embriões humanos não
implantados implica em verdadeira agressão ao principio de proteção
à vida, por violá-la diretamente e por dar permissão tácita a toda e
qualquer prática de manipulação sobre o que se entende como vida
humana.
O curioso é perceber que a divergência de sentido só é possível
porque há uma explícita garantia à liberdade de pensamento. Contudo,
a divergência da ciência, de teorias e teses não pode se confundir
com a liberdade de crenças. As crenças não precisam de justificativa
para suas posições, ao passo que a ciência, sim. Ademais, a ciência
não é dogma e, dessa forma, a contestação é possível e configura um
exercício comum de busca da verdade, de constante verificação e
refutação de teorias. O que é diferente em relação às crenças, porque
uma crença não é passível de ser refutada enquanto crença, pois se
refere à fé ou à subjetividade e se situa no espaço da liberdade do
pensamento. Essa diferença radical e ao mesmo tempo sutil é um
dos elementos que prejudicam o diálogo sobre a questão da pesquisa
com embriões extra-uterinos (extracorporal, excedentários,
extranumerários ou pré-implantado) e sobre qualquer outro tema
limite envolvendo vida, morte e humanidade. A dificuldade surge
quando diferentes tipos de pensamento, por exemplo, o pensamento
crítico da ciência e o pensamento apaixonado e crente da fé (intuições)
são igualados. Isto é, a liberdade de pensamento não implica em um
relativismo cientifico e na ausência de consensos possíveis. O equivoco
é confundir crença e ciência. Não se ignora a importância e relevância
de cada um desses níveis da razão humana, crença e ciência, apenas
defende-se que a fé ou crenças subjetivas, paixões ou intuições, não
podem condicionar a ciência nem tampouco se confundir com ela.
O conflito que se verifica na questão das pesquisas com embriões
extra-uterinos decorre da dinâmica que se instaura em relação à categoria
vida: ao mesmo tempo que promove o consenso enquanto valor
fundamental, promove divergências em relação aos seus sentidos. As
divergências podem ser em relação aos fatos ou sobre a valoração
A pesquisa com embriões extra-uterinos
35
dos fatos. O desafio está em apurar em qual dessas searas as
divergências sobre o tema dos embriões extra-uterinos se localiza.
Considerando que a lei de biossegurança objetiva assegurar a
pesquisa científica, permitindo o avanço da medicina terapêutica, bem
como da medicina diagnóstica - apresenta-se, aqui, um elemento
fundamental para esse debate sobre a liberdade de pesquisa, a saber,
a ciência.2 A questão que se coloca é que a Lei de Biossegurança não
trata da vida, mas da pesquisa. O fato de o debate centrar-se
prioritariamente em questões como eugenia e aborto, ignorando o
debate sobre a ciência, evidencia o quanto é desafiador pensar temas
como a vidae a morte de forma não apaixonada e secular. O risco é
que as deliberações que ocorrerão por conseqüências dessas discussões
percam seu objeto e acabem por ignorar, talvez por muito tempo,
que vida, vida humana e pesquisa são categorias distintas. O objetivo
deste artigo é pontuar como a categoria vida constitui-se como um
argumento central no debate dos embriões extra-uterinos sendo usada
de forma derradeira para a permissão ou não da pesquisa.
TENSÃO
MORAL
A tensão moral sobre a pesquisa com embriões extra-uterinos tem
seu principal aporte argumentativo no debate em torno da categoria
vida e na relação entre embriões e humanidade. O ponto central está
na lógica de que as pesquisas podem ou promover ou violar a vida
humana. Para analisar as implicações do uso da categoria vida como
um elemento capaz de responder ao questionamento sobre a
possibilidade ou não da pesquisa com embriões extra-uterinos propõese, inicialmente, percorrer como um exercício tanto a idéia de embrião
quanto de vida.
Para a ciência biológica e médica, a definição de embrião, bem
como o momento em que ele passa a ser entendido como feto, é
muito variável. Contudo, é possível observar um consenso no sentido
Agradeço a Debora Diniz a observação sobre a questão da liberdade científica
como um ponto central no debate das pesquisas em embriões humanos.
2
36
Samantha Buglione
de que embrião é um estágio de desenvolvimento celular e que se
trata de um organismo imaturo que está nos seus primeiros estágios.
Com o avanço das tecnologias reprodutivas, foi possível desenvolver
células fecundadas extra-utero em período superior ao de oito semanas,
quando, geralmente, são implantadas no útero para fins de reprodução
assistida in vitro. O relevante aqui é destacar que tanto a palavra embrião
quanto feto não informam nada além do fato de que se referem a um
padrão que caracteriza determinado estágio de desenvolvimento ou,
de modo mais preciso, é uma ‘explicação da forma’ (form-explanation)
que corresponde a uma estrutura ou processo em termos de seu
padrão espaço-temporal (BURIAN e RICHARDSON, 1996).
A relação entre vida, vida humana, pessoa humana em potencial e
embriões não é feita no espaço da ciência, mas das paixões. As paixões
são um nível de racionalidade que paradoxalmente pouco explicam
os fundamentos para uma tomada de decisão ou uma simples escolha,
mas promovem certezas e acabam por condicionar não apenas as
práticas humanas, mas a própria ciência. O Estatuto do Embrião,
por exemplo, é um discurso de significação com implicações bastante
contundentes por tornar o embrião um ente com interesses e direitos.
O embrião deixa o mundo da linguagem moral e da ciência para
ocupar também o discurso jurídico. Ao se tornar portador de interesses
e direitos, assume uma materialidade até então não observada. O ponto
que merece destaque é que não se fala do embrião em si, enquanto
uma categoria que está no mundo dos fatos, mas de uma categoria embrião - situada e contextualizada; trata-se de um tema que “... é
expressão de valores sociais de um tempo ...” (SALEM, 1997, p. 88),
e, dessa forma, a definição ‘do que é’ não permite, de forma apartada
destes valores, exprimir as ações possíveis: o ‘dever ser’.
SER
E DEVER SER
Com a criação de um novo sujeito moral e de direitos, somada ao
advento das tecnologias reprodutivas e a possibilidade de manteremse congelados, por tempo indeterminado, os embriões concebidos
A pesquisa com embriões extra-uterinos
37
em laboratório, as perguntas sobre o uso desses embriões saem do
imaginário da ficção e ocupam cenários reais. ‘O poder fazer’ busca
no questionamento sobre ‘o que eles são’ e sobre ‘estarem vivos’ a
tentativa de encontrar uma resposta capaz de acolher as dúvidas sobre
os limites e possibilidades da ação humana. Como se o consenso
sobre o que se tem diante dos olhos viabilizará o consenso sobre o
que se poder fazer com eles.
Infelizmente, a resposta à pergunta sobre o que são parece se
manter na ficção. Além de manter a crença de que a partir da definição
de algo se concebe o seu dever. A idéia do ‘ser’ que define o ‘dever
ser’ viola a clássica lei de Hume, que apregoa que não se pode derivar
o que deve ser daquilo que é (HUME, 2001). Em outras palavras, é a
equivocada idéia de que a ontologia daria conta das preocupações
éticas.
Têm-se, assim, dois problemas. O primeiro trata dos limites das
ações – dever ser -, o segundo refere-se a como definir o que é vida,
como eleger critérios para uma definição válida universalmente – o
ser. E, mais, como lidar com o constante questionamento da ciência
sobre algo (vida) que suplica estabilidade? Gustavo Caponi, na
tentativa de pensar o segundo problema e encontrar um sentido
universal de vida, faz uso de algumas considerações úteis. Ele pergunta
se é possível, por exemplo, considerar um vírus ou, ainda, um vírus
de computador um organismo vivo; e qual seria o parâmetro para
diferenciar um do outro (CAPONI, 2005). Nessa linha, questiona-se
o que faz de um embrião de cinco dias não implantado um ser vivo,
e, igualmente o que faz de um feto de nove meses ou de uma criança
nascida seres vivos? Há diferença entre eles? O que define a vida? O
ciclo natural da reprodução, evolução, crescimento e morte? O vírus
de computador, nessa lógica, estaria vivo, afinal se reproduz, se
multiplica e se modifica.
SENTIDOS
I N C E RT O S E PA I X Õ E S
A incerteza não se reserva às teorias da biologia, a que retornaremos
a seguir, mas também a diferentes perspectivas éticas. Se o sentido de
38
Samantha Buglione
vida humana se basear na ética da intenção de que centra-se na
potencialidade do que está por vir – como a idéia de que a semente
em si já guarda a árvore em potencial - os embriões extra-uterinos seriam
seres humanos vivos, uma vez que, para essa concepção, a vida é algo
extra-humano. Em outras palavras, há uma teleologia da vida; logo, o
que estará finalizado no futuro já está ‘aqui mesmo’, só que ainda não
completo; ou, de forma menos simplista, de que, na fecundação, o
novo ser já está totalmente individualizado em termos genéticos
(DNA). A ética da intenção pode ser chamada, ainda, de ética da
sacralidade da vida ou, no direito civil brasileiro, de teoria da
concepção, segundo a qual a personalidade jurídica que agrega direitos
ao sujeito começa na concepção.3 Outro exemplo é a ética do resultado,
de cunho mais utilitarista. Para esta teoria, a vida humana pressupõe
anima, ou seja, a capacidade de ‘viver a vida’, racionalidade, relação,
interação. A vida humana, nessa perspectiva, não se explica pelo
simples pertencimento à espécie ou por possuir substâncias comuns,
mas pela capacidade de integração, de relação com o outro, de bios..
O Direito, por sua vez, enquanto discurso capaz de representar uma
gramática ou uma linguagem mínima de categorias conciliadas, não
traz uma definição de vida, tampouco de vida humana, ou, ainda, de
pessoa e, igualmente, não afirma que o embrião é pessoa humana ou
que está vivo. Apenas define que ‘os direitos do nascituro devem ser
protegidos desde a concepção’ e que a ‘personalidade jurídica começa
com o nascimento com vida’.4
Ao contrário do homem grego, que possuía duas palavras para
designar vida – zoe e bios –, os modernos possuem apenas uma. Com
Esta não é a teoria vigente no Direito brasileiro, conforme o artigo 2º do Código
Civil.
4
A personalidade civil começa com o nascimento com vida, mas a lei, conforme artigo
2º do Código Civil, põe a salvo, desde a concepção os direitos do nascituro. Ressalta-se,
porém, que esta proteção tem forte caráter patrimonial. Conforme salienta o Ministro
José Carlos Moreira Alves (1986), que participou do anteprojeto do novo Código Civil,
o artigo 2º do novo Código não poderia estar em conflito com os artigos 1.798, 1.799,I
e 1.800 que admitem à sucessão aos filhos ainda não concebidos, reiterando, conforme
o § 3º do artigo 1800, que a sucessão carece do nascimento com vida. Salienta-se, ainda
os artigos 542 e 1.609, do mesmo código, que tratam dos não nascidos. O primeiro
artigo permite doação e o artigo 1.609 admite o reconhecimento da filiação antes mesmo
do seu nascimento, como também após a morte dos filhos.
3
A pesquisa com embriões extra-uterinos
39
isso, o sentido de vida engloba tanto a vida natural - “vida nua” –
quanto a vida política, do ser estar humano, na qual se concentra
questões do “bem viver” (AGAMBEN, 2002). Ao politizar a zoe, os
modernos marcam o modelo de sociabilidade que regem as relações
sociais do nosso tempo (FOUCAULT, 1984). Para Giorgio Agamben,
a “vida nua”, a zoe, na realidade, está esvaziada de conteúdo cultural
(AGAMBEN, 2002). Os modernos inverteram a lógica aristotélica
de que o ser humano é um animal que tem na política o lugar do
‘estar vivo’ para fazer com que o ‘estar vivo biológico’ seja o próprio
político (FERREIRA, 2002). Enquanto que para os gregos era a
política, o estar no mundo, o caráter civilizatório - o que dava sentido
humano ao animal vivo –, para os modernos é no animal vivo, no
pertencimento a determinado código genético, que se reserva o
sentido político de humano. Bastando, assim, essa característica para
consolidar o adjetivo de humano. Adjetivo porque não se trata de
conceitos politicamente ingênuos, mas de uma categoria composta
de significados culturais e valorativos (FERREIRA, 2002). O mesmo
ocorre com as categorias embrião e vida. Com isso, pode-se entender
a razão do debate sobre a pesquisa com embriões extra-uterinos ocupar,
de forma tão fervorosa, o campo das considerações políticas.
Partindo do pressuposto de que o sentido de vida humana dos
modernos integra os sentidos de zoe e bios, é possível, de forma
genérica, pensar o sentido moderno de vida a partir de duas
concepções; ressaltando, porém, que para os modernos o sentido
dessa “vida nua” terá, em si, o sentido político de vida humana. A
primeira concepção considera a vida como algo extra-humano,
pertencente a Deus ou à Natureza. A segunda concepção compreende
a vida como algo decorrente de decisões humanas, da vontade e da
criação (idéias) humana. Nesse ponto, a ética da intenção e a ética do
resultado tornam a fazer sentido.
Na ciência biológica, por sua vez, pode-se destacar, para fins
exemplificativos, duas correntes que se propõem a explicar o estar
vivo de um organismo. A primeira centra-se na capacidade de
independência do organismo, na autopoiése; trata-se da biologia
40
Samantha Buglione
funcional. A segunda corrente, da biologia evolutiva, compreende o
estar vivo de um organismo quando este está submetido a uma seleção
natural (CAPONI, 2005). Enquanto que a biologia funcional centrase na função, na fisiologia, no como algo está vivo e, assim, na vida
como uma propriedade do próprio organismo, a teoria da biologia
evolutiva remete à adaptação, à observação do por que algo é vivo. A
vida, portanto, é o que é produzido pela evolução; logo está no
pertencimento a um coletivo e não no self do organismo. Dessa forma,
a vida humana para a primeira teoria refere-se à capacidade de o
organismo ser independente, ou seja, a capacidade de viver a vida, de
ser auto-suficiente, enquanto que para a segunda teoria a vida está na
capacidade replicante e de evolução do organismo. Para a teoria
funcional, estar vivoé se diferenciar do entorno. Para os funcionalistas,
viver é resistir à morte. Já para a teoria evolutiva, é a subordinação à
seleção natural que apregoa o sentido de estar vivo, ou seja, viver é
modificar-se, é evoluir (CAPONI, 2005). Exemplificando, o vírus,
para a teoria funcional não seria um ser vivo, afinal, não se diferencia
do entorno, tampouco se mantém sozinho, é um parasita. Contudo,
de forma genérica, para os evolucionistas, um vírus pode ser concebido
como um organismo vivo, pela sua capacidade de evoluir e de se
modificar, bons exemplos são o vírus HIV e o H5NL – o da ‘gripe
aviária’. Seguindo esses raciocínios, é possível concluir,
preliminarmente, que: pela incapacidade de autopoiésis, os embriões
extra-uterinos não seriam um ser vivo. E, ainda, considerando que
estariam fora dos riscos da seleção natural, uma vez que para fins
reprodutivos apenas os ‘melhores’ embriões seriam implantados,
também não seriam organismos vivos.5
Cabe destacar o problema do especismo. Infelizmente não é possível analisar esse
tema neste artigo, mas cabe chamar atenção para a questão. O especismo, nas palavras
literais de Richard Ryder é “é uma discriminação praticada pelo homem contra outras
espécies”. Segundo Sonia Felipe, “tanto o racismo, quanto o especismo – e até o
sexismo – não levam em conta ou subestimam as semelhanças entre o discriminador
e aquele contra quem este discrimina. Ambas as formas de preconceito expressam
um desprezo egoísta pelos interesses de outros e por seu sofrimento (FELIPE, 2003).
5
A pesquisa com embriões extra-uterinos
41
De qualquer forma, tanto uma teoria quanto a outra concebe a
vida como algo da alçada da razão humana e não como algo
determinado por um foro extra-humano. Ou seja, trata-se de um
espaço passível de dúvida, questionamento e refutação. Esse é o
pressuposto básico para um exercício que se propõe a pensar
racionalmente a questão das pesquisas com embriões extra-uterinos.
Se a vida for pensada como algo metafísico ou como conseqüência
de um desígnio inteligente, não poderá ter seu sentido questionado. Com
isso, haverá um dogma sobre a vida que inviabiliza a própria ciência.
A ausência de respostas não significa a inexistência de respostas. O
que caracteriza a ciência, contudo, não são respostas certeiras, mas
dúvidas e questionamentos constantes, o que é incompatível com
teorias como a da sacralidade da vida. O único lugar imune ao
questionamentoé o espaço da fé. A pesquisa com embriões, feliz ou
infelizmente, ocupa um outro lugar: o da ciência e, por essa razão, o
da constante superação de incertezas.
De certa forma, há a necessidade de optar ou pela segurança da fé
ou pela angústia da incerteza da ciência; é preciso escolher
constantemente entre a maçã e o paraíso. Por essa razão, não se pode
confundir a prática da ciência e o fazer ciência com crenças subjetivas.
É preciso ter cautela ao pressupor que a necessidade civilizadora de
parâmetros éticos e jurídicos para os usos da tecnologia e das práticas
científicas significa que a liberdade científica é, em si, um risco a valores
fundamentais. É importante ressaltar que o tema da pesquisa com
embriões extra-uterinos não se reduz a uma discussão sobre o que é
vida, mas também acaba por trazer a tona um debate sobre o que é
ciência. Proibir a pesquisa com embriões extra-uterinos não garantirá
uma suposta proteção à vida humana. Apenas promoverá crenças
específicas e, com isso, uma politização subjetiva sobre a “vida-nua”...
O conhecimento científico é concebido por não ser um saber
definitivo, o que não significa que a ciência possua uma objetividade
pura. Mesmo com fatores subjetivos que inspiram, condicionam ou
42
Samantha Buglione
influenciam a objetividade, o que caracteriza a ciência é a possibilidade
de questionamento, de refutação (POPPER, 1982).6
SIGNIFICAÇÃO
E NÍVEIS D E RACION ALIDADE
O problema das controvérsias em torno das pesquisas com
embriões extra-uterinos está em fundamentar os juízos morais exclusiva
ou prioritariamente em crenças ou paixões. Isso não apenas inviabiliza
o saber científico como também o diálogo político.
Considerando a existência de diferentes campos de significação –
ciência, moral, direito, por um lado, e paixões, por outro – é preciso
ter clara a competência de cada um deles. Dos dois primeiros campos
espera-se a universalidade e consenso, a busca da verdade e de valores
comuns. Ao segundo, o das paixões, reserva-se a pluralidade, as
diferentes crenças e vontades sobre o mundo; é o espaço da liberdade
de pensamento. O equívoco em utilizar os argumentos ‘vida’ e
‘embrião’ como parâmetros para a permissão ou não da pesquisa
com embriões extra-uterinos é que esses argumentos acabam por preterir
a própria ciência. O sentido religioso, por exemplo, sobre o que é um
embrião se sobrepõe ao único dado incontestável: o de ser um estágio
de desenvolvimento celular. A valoração está condicionando a prática
e o próprio saber científico, misturando, assim, ciência e liberdade de
pensamento. E, pior, mesmo que se venha a aderir a uma ou outra
crença sobre vida, embrião e humanidade, ainda assim não se terá,
com base no dogma eleito (ou imposto), a resposta sobre o que se
pode ou não fazer.
Popper propôs um critério de comprovação, que denominou falseabilidade, para
determinar a validez científica, e sublinhou o caráter hipotético-dedutivo da ciência.
Independente das críticas possíveis a Popper, a idéia da verificação de uma tese
científica contribui indiscutivelmente para a compreensão de o que é ciência.
(P0PPER, 1982).
6
A pesquisa com embriões extra-uterinos
ESCOLHAS
43
R AC I O N A I S O U O F I M DA PA I X Ã O
O processo de tomada de decisão não se restringe a elementos e
fatores de ordem objetiva; há, além disso, crenças e subjetividades
que condicionam as decisões e os juízos. As paixões, conforme
sugerido por John Rawls na sua teoria da justiça como equidade (justice
as fairness), não se reduzem a expressões ou inclinações do arbítrio
humano, mas ocupam um espaço de importante contribuição nas
escolhas racionais (RAWLS, 1997). Trata-se, conforme denomina
Richard Hare, de um dos níveis do pensamento racional: a intuição.
Hare não exclui a intuição da esfera da racionalidade, mas a integra
em um nível diferente do pensamento crítico e científico (HARE,
1991). Por conta disso, advoga que são possíveis escolhas racionais
mesmo com a influência ou existência de valores de uma ordem pouco
objetiva ou crítica. Ou seja, as intuições (paixões) auxiliam a concepção
de deveres em uma ordem mais ordinária ou comum; porém definições
intuitivas sobre os fatos da vida não são suficientes para estabelecer
um juízo moral (HARE, 2003). Em outras palavras, as convicções
morais comuns, que dão as respostas no nível intuitivo, não são
confiáveis no nível crítico. Isso porque o nível intuitivo não possui
fundamento, trata-se de uma convicção de uma ordem não crítica ou
científica. É, por exemplo, o sentimento de dever em fazer caridade,
de freqüentar o culto religioso, de pagar o dízimo. Como a intuição
integra o processo de tomada de decisão, através do sentimento de
dever, e é parte do raciocínio moral, o problema está em sustentar a
ciência e os juízos morais em paixões, ignorando-se com isso se a
necessidade de fundamentação tanto do processo de construção do
saber quanto de justificativa dos juízos morais.
Quando razões morais concorrem com razões extramorais, como
interesses ou intuições (crenças ou paixões) se está diante de questões
que exigem a eleição de prioridades e de definição de campos de
competência (BEAUCHAMP e CHILDRESS, 2002). É na eleição
racional de prioridades que se insere o nível crítico do raciocínio moral
(HARE, 1981).
44
Samantha Buglione
As controvérsias morais carecem, assim, de definição sobre as
considerações relevantes (WALLACE, 1988). Ou seja, quais os critérios
para determinar o que é mais ou menos relevante no rol dos diferentes
deveres e justificativas possíveis decorrentes da ciência, do raciocínio
crítico e das paixões. Uma boa pista para pensar a tensão que decorre
da necessidade dessas eleições está em Rawls (2002). Para ele, a
epistemologia moral é naturalizada pela especificidade do político, na
medida em que a vida humana deve ser regrada para garantir a sua
própria subsistência e sustentabilidade. A crença razoavelmente
justificada só se concebe politicamente como ponto de partida enquanto
resultado de critérios públicos consensualmente sedimentados (RAWLS,
2002).
Considerando esses ‘critérios públicos consensuados’ para pensar a
proibição ou não das pesquisas em embriões extra-uterinos, cabe organizar
duas ordens de razões que são conseqüência da utilização dos
argumentos ‘vida’ e ‘embrião-humanidade’. A primeira ordem é aquela
que, a partir do princípio da precaução e da ‘ladeira escorregadia’, nega
a permissão das pesquisas justificando que, com isso, toda e qualquer
manipulação sobre a vida humana se tornará possível. Essa razão
fundamenta-se na idéia de que o embrião extra-uterino é um ser humano
vivo. A segunda ordem considera a possibilidade de cura de seres
humanos com biografia e afirma que o dever com essas vidas é mais
relevante que o com a vida em um estágio celular. Segunda essa razão,
a questão do embrião ser ou não um ser humano vivo é secundária
porque a natureza dessas pesquisas tem como finalidade um bem já
consensuado e um dado incontestável: o cuidado com seres humanos
com zoe e bios. Nessa linha, mesmo que os embriões sejam considerados
serem humanos, em um conflito entre os direitos e os supostos interesses
dos embriões e os direitos e interesses de seres humanos com biografia,
o menor dano será a preocupação com os seres humanos com bios. Ou
seja, além de ter que se pressupor que os embriões tenham interesse e
sejam representados para que, assim, se configure um conflito, será
preciso justificar por que esses hipotéticos interesses deverão se sobrepor
A pesquisa com embriões extra-uterinos
45
à hipotética de cura à doenças.7 Observa-se que a incerteza se dá em
dois níveis: o do interesse suposto e a da cura possível.
De qualquer forma, há apenas uma certeza em relação às pesquisas
e trata-se do avanço possível da medicina terapêutica e da medicina
diagnóstica. Talvez esses avanços não possibilitem a cura, o que altera
a dinâmica do conflito exposto, mas é sobre isso que trata a pesquisa
com embriões. A proposta aqui é alterar a pergunta, ou seja, não mais
tratar o debate na lógica de uma arena entre inimigos, mas questionar
sobre a vontade comum de se avançar ou não nas terapias e diagnósticos
disponíveis.
Destaca-se que não se trata de permitir o simples ato técnico de
manipular embriões e fazer experimentos, mas permitir a investigação
que visa entender e superar doenças. A manipulação de embriões só
faz sentido ao estar integrada a pesquisas que objetivam a própria
garantia da vida e do bem viver. Por essa razão é que o processo de
construção do conhecimento deve respeitar uma série de normas e
preceitos éticos para se realizar. Exemplos dessas referências são
documentos como o - Código de Nurembergue, Declaração de
Helsinque, Relatório de Belmont, Diretrizes Éticas Internacionais para
Pesquisas Biomédicas em Seres Humanos, ou, ainda, as Recomendações
da Unesco para a garantia da pesquisa científica (Recommendation on the
Status of Scientific Researchers), que foram adotadas na 18ª Conferência
Geral realizada em 1974 em Paris.8 Sobre a realidade brasileira, destacase a aprovação da Resolução 196/96, denominada Diretrizes e Normas
Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos, que
representa um marco para as pesquisas, por representar um consenso
público sobre o processo de construção do conhecimento. Com base
Para autores como Ronald Dworkin não há conflito possível porque os embriões
não são passíveis de interesse. Para Peter Singer (1994), por sua vez, o cuidado com
seres humanos com biografia deve prevalecer.
8
Entre 2006 e 2007 a Unesco estará realizando consultas regionais a fim de pensar a
ética científica e a responsabilidade dos cientistas. Consultas nacionais: Japão e Índia
em abril de 2006, Tailândia em maio de 2006. As consultas regionais: Europa (Suíça,
Genebra) e América Latina (Brasil, Belo Horizonte), em maio de 2006. Na África e
paises Árabes a consulta se realizará em 2007.
7
46
Samantha Buglione
nessas informações, conclui-se que o fazer ciência não é arbitrário,
porém, e aqui reside a sutileza, não pode ser arbitrado por paixões.
Uma escolha crítica em relação às pesquisas com embriões deve
observar, primeiro, se há o respeito às diretrizes e normas que
regulamentam a pesquisa. Posteriormente, deve considerar dois fatores:
a) o da necessidade, que apregoa que se deve priorizar o que seja menos
gravoso ou prejudicial e que seja igualmente eficaz para alcançar a
finalidade pretendida – no caso deste tema – a proteção à vida; e b) a
razoabilidade, ou seja, a ponderação entre os meios eleitos com o
resultado perseguido (ALEXY, 1997). As pesquisas com embriões extrauterinos visam assegurar o avanço da medicina terapêutica, bem como
da medicina diagnóstica. Esses objetivos são fundamentais para pensar
a permissão ou não das pesquisas. Considerando que o questionamento
é o que caracteriza a ciência, sempre haverá riscos. O desafio é mensurar
com compaixão e de forma crítica os menores danos e que as escolhas
respeitem preceitos comuns e não crenças subjetivas.
Rubem Alves, no livro “Filosofia da Ciência”, reflete que “... Ela [a
ciência] poderia, por um pouco, abandonar a obsessão com a verdade,
e se perguntar sobre o seu impacto sobre a vida das pessoas...” (ALVES,
1981, p. 207). Pensando sobre esse impacto, a proposta do artigo foi
ressaltar as diferentes razões para permitir ou não a pesquisa com
embriões extra-uterinos. Observou-se que nem todas as razões disponíveis
são expressão de um consenso público e comum e destacou-se, ainda,
o lugar da ciência nesse debate. Sem ignorar as limitações do processo
de construção do conhecimento, também não se pode ignorar que a
ciência, ainda hoje, é a melhor forma de evitar o ostracismo e a
intolerância, simplesmente por ser o espaço no qual a dúvida é legítima
e bem-vinda. Condenar a dúvida é reitera a crença de que é o
conhecimento que põe em risco a humanidade; e dizer que é esse mesmo
conhecimento o responsável por afastar homens e mulheres do paraíso
é inviabilizar o consenso proporcionado pela ciência.
A pesquisa com embriões extra-uterinos
47
REFERÊNCIAS
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Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.
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Paulo: Brasiliense: 1981.
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FOUCAULT, M. História da sexualidade. Traduzido por Maria Thereza da Costa
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FELIPE, S. Crítica ao especismo na ética contemporânea; a proposta do princípio
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em Ética Global. Florianópolis: UFSC/Doutorado Interdisciplinar Sociedade e Meio
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Humanas, 25 de abril de 2003. Disponível em: <www.vegetarianismo.com.br/artigos/
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HARE, R. Moral thinking: its levels, method and point. Oxford: Clarendon Press,
1981.
48
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Paulo: Martins Fontes, 1996.
HARE, R. Ética: problemas e propostas. Tradução de Mario Mascherper e Cleide
Antônia Rapucci. São Paulo: UNESP, 2003.
HUME, D. Tratado da natureza humana. São Paulo, Ed. Unesp. 2001.
POPPER, K. Ciência: conjecturas e refutações. Tradução de Leônidas Hegenberg.
Brasília: Universidade de Brasília. 1982. p. 22-30.
RAWLS, J. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisseta e Lenita Esteves.
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RYDER, R. Speciesism. In: BAIRD, R. M e ROSENBAUM, S. E. (Eds.) Animal
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SINGER, P. Ética prática. Rio de Janeiro: Ed. Martins Fontes. 1994.
SALEM, T. As novas tecnologias reprodutivas: o estatuto do embrião e a noção
de pessoa. [online]. Apr. 1997, vol.3, no.1 [cited 20 March 2006], p.75-94. Disponível
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WALLACE, J. D. Moral relevance and moral conflict. Ithaca and London: Cornell
University Press, 1988.
49
Bioética clínica e terceira idade1
Sérgio Ibiapina F. Costa
INTRODUÇÃO
A humanidade caminha para ter número igual de jovens e idosos
em 2050. Segundo o coordenador do Programa de Envelhecimento
e Curso de Vida da Organização Mundial da Saúde, “em muitos países,
mesmo na Europa, ainda persiste a mentalidade de que a população
é predominantemente jovem” (KALACHE, 2005, p. 11). A
predominância desse tipo de pressuposto faz com que o sistema de
saúde e a infra-estrutura urbana não levem em consideração o aumento
acelerado de pessoas na terceira idade na população de todo o mundo.
No entanto, o jovem de hoje será, concretamente, o idoso de 2050.
Entenda-se por terceira idade o grupo populacional acima dos 60
anos, segundo estabelece o Estatuto do Idoso de nosso país (BRASIL,
1
Texto publicado na Revista Brasileira de Bioética, v. 1, n. 3, 2005:279-88.
50
Sérgio Ibiapina F. Costa
2003). Convém salientar que esse critério de idade é arbitrário, sendo
destituído de qualquer fundamento científico. Todavia, essa é a idade
limite de corte para separar o adulto do idoso.
A velhice não é um fenômeno etário, social e biológico imediato,
não se consolida de uma só vez. Ela emerge de sintomas e atos sociais,
cavando o seu próprio leito, como um rio. Assim, é possível afirmar
que dois velhos de 80 anos não têm nunca a mesma idade, um em
relação ao outro. Nessa hipótese, convém entender que nem sempre
a idade cronológica de duas pessoas corresponde a uma mesma idade
biológica. Acrescente-se a essa assertiva o fato de que cada ser humano,
independentemente da idade, é detentor de uma biografia que tem
como maior riqueza a diversidade e em seu cerne a íntima relação
com as circunstâncias de vida vivida.
No mundo ocidental, com populações cada vez mais envelhecidas,
fala-se hoje nas terceira e quarta idades. A Organização Mundial de
Saúde, no limiar do século XXI, considera que um dos primeiros
objetivos de investigação das ciências da vida deverá ser conseguir a
expectativa de vida ativa, ao contrário do objetivo anterior, que era o
de apenas aumentar a esperança de vida.
Um dos fatores que contribuiu significativamente para o aumento
da população idosa no Brasil foi a drástica redução da taxa de
fecundidade, cuja média caiu de 5,8 filhos por casa, no início de 1970,
para 2,1 na atualidade. A taxa de pouco mais de dois filhos por casal
é considerada mínima para a reposição populacional. Essa pequena
margem brasileira acima de dois atua como mecanismo de
compensação para cobrir os índices de mortalidade infantil. Na
atualidade, registram-se cerca de 70 países em todo o mundo com
índices de fecundidade abaixo da taxa de reposição e, nos próximos
15 anos, alcançaremos 123 países nessa situação em todos os
continentes, com exceção da África. Ou seja, convivemos em um
contexto no qual a mudança mais importante não é apenas a de morrer
cada vez mais tarde. Trata-se da diminuição quantitativa dos jovens,
fenômeno que provoca o aumento percentual da população idosa.
Bioética clínica e terceira idade
ENVELHECIMENTO
51
E QUALIDADE DE VIDA
Alguns demógrafos estabelecem a diferença do comportamento
populacional que ocorrerá neste século em relação ao século passado.
Enquanto que no século XX houve exagerado crescimento
populacional em quase todos os continentes, o século atual
caracteriza-se pelo expressivo interesse voltado para o
envelhecimento. Sob o título Amanhecer Cinzento, abordando a
economia e a política envolvidas no fenômeno do envelhecimento,
Peter Peterson, citado por James Drane, usa a seguinte metáfora para
descrever o desafio de uma crescente população que envelhece:
O envelhecimento global, diz Peterson: é como um sólido iceberg que pode
perfeitamente destruir as embarcações economicamente mais poderosas do
mundo. A população mundial que envelheceu e ameaça a sobrevivência
humana constitui-se em um dos desafios mais importantes que enfrentaremos
no século XXI (PETERSON apud DRANE, 2001, p. 98).
Não é somente o número de idosos que tem aumentado em todo
o mundo, mas também o tempo de vida da população já idosa. Podese afirmar portanto, que o idoso também está envelhecendo
(CAMARANO, KANSO e MELLO, 2004). Não foi surpresa que o
Censo Demográfico Brasileiro de 2000 encontrasse cerca de 24,5 mil
pessoas com mais de 100 anos, o que demonstra redução nos índices
de mortalidade entre a população idosa.
Qual seria então o limite de sobrevivência das pessoas? Há quem
considere que ultrapassada a primeira etapa da mortalidade entre
jovens, fruto de efeitos endógenos e/ou de agressões do meio, uma
segunda etapa dar-se-á mediante programação genética com a morte
natural devendo ocorrer entre os 85 a 100 anos de idade (DUCHENE
e WUNCCH, 1988). Independentemente da idade limite que se
pretenda alcançar até o final deste século, já foi dito que isto não
ocorrerá sem que se possa intervir no genoma humano e no meio
ambiente.
Além das sucintas considerações demográficas, outro aspecto a
ser abordado diz respeito à qualidade de vida de uma população
52
Sérgio Ibiapina F. Costa
envelhecida. Ao se examinar o percentual de anos de vida sem saúde
em pessoas acima de 60 anos, no Japão e no Brasil, verifica-se que
naquele país 18% dos idosos vivem com a saúde comprometida,
enquanto que, no Brasil, esses índices são de 40%. Tem-se, portanto,
que os idosos brasileiros vivem 40% do tempo de vida com a saúde
comprometida (CAMARANO, KANSO e MELLO, 2004). Esse gap
traduz um desafio a enfrentar, qual seja, a implementação de novas
políticas públicas no campo da saúde, tendo como propósito oferecer
acréscimo de vida aos idosos e assegurar-lhes o mínimo de problemas
relacionados à saúde.
Quando se fala em qualidade de vida, convém frisar que tal
condição é valorativa, dependendo, preferencialmente, do julgamento
que a própria pessoa faz sobre o seu estado, sendo ela, em
determinadas circunstâncias, a única criatura autorizada a opinar sobre
o seu real bem-estar. Não são os familiares, os profissionais da área
biomédica e muito menos os diretores de instituições asilares que
devem valorar o critério de qualidade de vida como uma conquista
exclusiva a ser ofertada. Carlos Maturana, ao se reportar à velhice,
reproduz um dos textos mais antigos de que se tem notícia, no qual
um idoso se auto-analisa. A autoria é atribuída a um escriba egípcio e
é datado de 2450 a. C. Diz o seguinte:
Quão penoso é o fim de um velho! Debilita-se a cada dia; sua visão diminui
e seus ouvidos já não ouvem; sua força declina e seu coração já não
descansa; sua boca torna-se silenciosa e já não fala. Suas faculdades
intelectuais diminuem e o impossibilitam recordar hoje o que aconteceu
ontem. Todos os ossos estão doloridos. As ocupações não são mais
realizadas pelo simples prazer e o sentido do gosto desaparece. A velhice
é a pior das desgraças que pode afligir um ser humano (apud MATURANA,
2001, p. 109).
Tal narrativa não difere muito dos relatos comuns em consultórios,
quando do atendimento de pessoas pertencentes à terceira idade, o
que nos leva a inferir que os idosos têm registrado queixas semelhantes
ao longo de milênios.
Bioética clínica e terceira idade
BIOÉTICA
53
CLÍNICA
Dentre as inúmeras abordagens da Bioética Clínica sobre a terceira
idade, aquelas que têm recebido maior atenção por parte dos interessados
em bioética são as seguintes: 1) a relação entre profissionais de saúde e
idosos; 2) a pesquisa com a participação de idosos; 3) a tomada de decisão
e o envelhecimento; 4) a alocação de recursos na terceira idade e, 5) o
morrer com dignidade.
Na sociedade contemporânea, um dos temas mais comuns, sobretudo
nos meios de comunicação de massa, são os mecanismos hoje à disposição
da população para retardar ao máximo o processo de envelhecimento. O
que dizer, por exemplo, da sucessão de avanços tecnocientíficos a serviço
da Medicina que emergiram nas últimas décadas, como a introdução de
novos fármacos que prometem combater as doenças próprias do
envelhecimento? Sobre esse fenômeno em especial, convém lembrar, no
entanto, que somente nos últimos anos passou-se a realizar pesquisas
com fármacos contando com a participação efetiva dos idosos na
condição de sujeitos da pesquisa. Mas se esqueceu, ao longo do tempo,
que grupos de pessoas idosas portadoras de co-morbidades têm sua
fisiologia comprometida pelo desgaste natural dos anos e que, por isso
mesmo, não dispõem da integridade funcional de todos os órgãos. Para
esses grupos, no entanto, até recentemente, era comum a prescrição de
drogas cujas reais indicações eram conhecidas, embora fossem
desconhecidos os mecanismos de ação no organismo das pessoas mais
frágeis, portadoras que são de pelo menos quatro enfermidades crônicas,
em média (MUELLER, HOOK e FLEMING, 2004). “A transposição
de achados de pesquisas realizadas em adultos nem sempre é válida para
os idosos e os ajustes que são propostos muitas vezes não são adequados.”
(GOLDIM, 2002, p. 85).
Por uma questão de justiça, as pesquisas realizadas em idosos devem
beneficiar diretamente os indivíduos que compõem essa faixa etária. Caso
não preencham esse requisito, não devem sequer ser iniciadas. Convém
chamar a atenção para que os projetos de pesquisas que contam
exclusivamente com a participação de idosos devem ter um representante
qualificado na composição do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) que
analisará o referido projeto, pois tal representante, na condição de membro,
54
Sérgio Ibiapina F. Costa
será capaz de discutir as características específicas do grupo que está
sendo investigado. Aliás, essa tem sido a recomendação das diversas
diretrizes emanadas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
(CONEP) em nosso país.
A condução de pesquisa com população idosa requer uma atenção
especial nas várias fases do processo de obtenção do consentimento livre
e esclarecido. Há que atribuir especial atenção à obtenção do
consentimento, devendo, sempre que possível, recorrer-se à ajuda de
familiares ou amigos para explicação conjunta das características do ensaio.
A história recente tem registrado o relato de inúmeros casos de óbito
quando da utilização da associação de medicamentos e da interação entre
eles, resultando em efeitos deletérios observáveis quando da utilização
em pacientes idosos, por desconhecer-se, em determinadas circunstâncias,
as características farmacodinâmicas, farmacocinéticas e farmacotóxicas
desses grupos etários.
Os desafios da Medicina no século XXI em relação à terceira idade
devem, necessariamente, incluir a missão de reduzir ainda mais as
incidências das doenças cardiovasculares e dos diferentes tipos de câncer.
Contemplar esse aspecto será bem mais difícil do que foi a efetiva
contribuição oferecida pela própria Medicina no século passado, ao
proporcionar uma maior expectativa de vida aos idosos, reduzindo a
incidência de doenças cardiovasculares, em conseqüência da
recomendação da prática de hábitos saudáveis de vida.
Por força da especialidade, Medicina Interna, grande parte da clientela
atendida em nosso consultório pertence a terceira idade. Esse fato tem
proporcionado a solução de desafios dilemas e conflitos éticos e sociais
presentes nessa faixa etária, cotidianamente. Relatar um exemplo dessa
rica convivência parece-nos oportuno. Certa vez, ouvimos o seguinte
relato de uma de nossas pacientes:
“Meu nome é Ana, tenho 96 anos e fiquei viúva aos 93. Meu esposo
faleceu em decorrência de Alzheimer. Moro com a filha de 75 anos. Há
dois anos, a filha manifestou sintomas progressivos de Alzheimer e,
totalmente inválida, é cuidada por mim, salvo quando é hospitalizada, em
razão de complicações pulmonares freqüentes”. Em certo momento do
relato, a senhora Ana disse o seguinte: “não tenho mais nenhum parente,
sou a única sobrevivente local , minha filha vegeta, perdi minha função
social, portanto: quem sou eu?”
Bioética clínica e terceira idade
55
De fato, é difícil admitir que uma pessoa na chamada terceira idade
tenha prazeres e motivações para viver que não sejam única e
exclusivamente aqueles decorrentes do cuidar da própria filha, a
exemplo do caso acima relatado. Certamente, em episódios dessa
natureza, há motivos mais que suficientes para a instalação de quadro
depressivo e para o desejo de antecipação da morte, em substituição
aos dias sofridos que restam. Pessoas como a senhora Ana muitas
vezes se mantêm vivas apenas em função do auto-reconhecimento
de suas obrigações maternas. No entanto, mesmo diante de contextos
como esse, entre algumas especialidades, dificilmente, a depressão
no idoso é reconhecida e tratada adequadamente. Quase sempre o
foco do examinador é condicionado à aparência externa e voltado
para o órgão enfermo, sem que se observem os aspectos existenciais
e psiquiátricos do paciente. Esse tem-se constituído em um dos
problemas éticos da medicina no que se refere ao tratamento da
velhice.
Em nosso meio, a relação do idoso com seus familiares costuma
ser ainda uma relação de respeito e veneração. No entanto, vez ou
outra somos surpreendidos por relatos que poderiam ser considerados
até como fantasiosos, de tão desumanos. As mulheres idosas,
geralmente viúvas, traduzindo uma tendência a feminização da velhice,
costumam dividir-se em vários grupos de queixosas, embora todas
tenham algo em comum em suas queixas: a solidão. Aquelas que são
capazes de gerir seus bens e têm discernimento escapam da interdição,
embora possam sofrer toda sorte de pressão para dividir os seus
proventos ou rendas com membros da família. Por oportuno, convém
conceituar família nesse contexto, de acordo com Amartya Sen, como
sendo “um espaço de conflito cooperativo” (apud, GOLDANI, 2004).
Algumas idosas conseguem morar sozinhas, sob a supervisão a
distância de filhos ou filhas que nem sempre lhes dão a devida atenção.
Por outro lado, existem aquelas de menor poder aquisitivo que
comumente moram com uma das filhas, o que as leva a perder toda a
privacidade. Nesse caso, geralmente são obrigadas a lidar com a
intolerância dos netos, traduzindo os inevitáveis conflitos
intergeracionais. Essas mulheres continuam envelhecendo vítimas de
56
Sérgio Ibiapina F. Costa
traumas sem precedentes, pois não há quem as ouça ou interceda por
elas. É preciso que, no processo de atendimento, os profissionais de
saúde ofereçam a esse universo de mulheres um espaço de privacidade,
sem a presença de acompanhantes, a fim de que seja possível ouvir
suas queixas, garantindo-lhes um formato de atendimento que
extrapole o conteúdo restrito de uma consulta tradicional
circunstancial. É inconcebível a falta de receptividade que muitas vezes
marca o atendimento médico a essas pacientes. Muitas delas ainda
querem ser ouvidas quando sua consulta é “encerrada”, caracterizando
uma conivência perversa e eticamente inaceitável entre médicos e
familiares.
Não há circunstância melhor para abordar a terceira idade do que
quando já se faz parte desse grupo etário ou se convive e acompanha
dilemas e conflitos inerentes à longevidade, seja entre familiares ou
na rotina diária de uma profissão. Não se pode negar que o contato
com a velhice existe em quase todos os ramos da atividade humana.
Esse comprometimento nos torna, de certa forma, cúmplices e
capazes de dizer se o que nos dizem ou escrevem sobre a velhice é
correto. E, nem sempre o é.
Todos nós sabemos quanta impropriedade há no culto ao corpo
que observamos diariamente nos meios de comunicação de massa.
Geralmente, para se apregoar a necessidade de adoção de práticas de
rejuvenescimento ou de adiamento do envelhecimento, a velhice nos
é apresentada como um sinal de equívoco e de descuido. Nesse
discurso antienvelhecimento, o velho nos é apresentado sempre como
o portador de excessos de rugas, aquele que tem o andar claudicante,
as extremidades trêmulas e um comportamento caricato, que vai da
inutilidade à condição de estorvo na vida da família.
Exemplo de desrespeito ao fenômeno do envelhecimento e
conseqüentemente à população idosa é o texto do rótulo de um dos
cosméticos de reconhecida aceitação no mercado e cuja denominação
comercial é “creme antiidade”. Sua função farmacológica, expressa
no rótulo, é combater as rugas das mãos.
Assumir a velhice em nossa sociedade é algo que incomoda
principalmente os artistas e isso é visto à exaustão nas chamada mídia
Bioética clínica e terceira idade
57
de celebridades. Em depoimentos de atrizes é comum ler frases do
tipo: “Tenho 81 anos, mas me cuido para demonstrar que tenho 60”.
Ou então: “Velho é coisa de quem não tem cabeça boa”, como se a
condição da velhice fosse equivalente a alguma modalidade de
deterioração e incapacidade mental.
A
SEXUALIDADE
Talvez, um dos sinais mais contundentes da não aceitação do idoso
e do estigma que a velhice representa seja o silêncio total que a
sociedade mantém a respeito da sexualidade da população idosa. No
campo da geriatria e da gerontologia, a sexualidade ainda é um tabu.
Um balconista de farmácia sabe muito mais sobre os dilemas sexuais
dos septuagenários do que os médicos que os assistem. Isso se dá,
sobretudo, pelo fato de os profissionais de medicina não inquirirem
fatos considerados como pertencentes à esfera da vida privada, como
é o caso da sexualidade. Os pacientes idosos, por sua vez, raramente
sentem-se à vontade para relatar a seus médicos aspectos de sua
intimidade, fechando-se assim um ciclo de silenciamento em torno
de um dos aspectos fundamentais da vida humana.
Assim sendo, age-se como se o interesse sexual nessa fase da vida
fosse desprezível e o idoso não merecesse a esse respeito qualquer
orientação médica, o que, muitas vezes pode estimular, por omissão,
a automedicação e o uso de substâncias farmacológicas voltadas para
o estímulo da libido. Em resumo, trata-se de assunto que também
caducou com o tempo, na visão dos profissionais inabilitados a tratar
os mais velhos. E quando se manifesta algum interesse em se fazer
uma abordagem sobre a esfera sexual do idoso, isso se dará sob
estratégias de inibição e recriminação de qualquer iniciativa nessa área.
Vê-se, portanto, que temas como privacidade, autonomia, fidelidade,
veracidade e vulnerabilidade encontram-se diluídos nas poucas
citações oriundas da experiência pessoal de cada um de nós quando
da convivência com o idoso em toda a sua complexidade.
58
Sérgio Ibiapina F. Costa
ALOCAÇÃO
DE RECURSOS
Existem dois outros conflitos relacionados à bioética clínica e à
terceira idade que merecem destaque. O primeiro deles diz respeito à
destinação de recursos em saúde para a população idosa. É do
conhecimento dos que trabalham com bioética que uma das fronteiras
para impor gastos em saúde é estabelecer limite de idade para
determinados procedimentos de alta complexidade. O Brasil, que
destina recursos escassos do seu orçamento anual para gastos com a
saúde, encontra inúmeras dificuldades para atender a todas as
demandas nessa área, sobretudo no que se refere às necessidades
inerentes à manutenção da saúde da crescente parcela da população
situada na terceira idade. Enquanto isso, os países industrializados
gastam com os idosos uma percentagem de recursos maior do que
com todo o restante da população.
A Bélgica, por exemplo, gasta 1,7 vezes mais com as pessoas acima
de 65 anos do que com o restante da população. “Isto faz com que
muitas sociedades ocidentais sejam receptivas à alocação baseada na
idade” (BEAUCHAMP e CHILDRESS, 2002, p. 402). Por outro lado,
há quem argumente que a sociedade deve garantir uma assistência
básica e digna para todos os indivíduos, mas sem o compromisso de
empreender esforços ilimitados para vencer a enfermidade e a morte,
ou seja, há de se admitir a morte como um fato aceitável e inerente ao
caráter finito da vida (CALLAHAN, 1989).
Na visão de outros autores, no entanto, esse tipo de proposta pode
facilmente servir para perpetuar injustiças e estereotipar os idosos,
caracterizando-os, assim, como bodes expiatórios da causa do
aumento dos custos da assistência à saúde e criando conflitos
desnecessários entre gerações. Em cada geração, as pessoas idosas se
queixarão de que não tiveram acesso às novas tecnologias
desenvolvidas por meio de pesquisas financiadas pelos impostos pagos
por elas. “Agora idosas, essas pessoas se julgam no direito de
reivindicar que tal investimento passado se reverta em acesso justo às
novas tecnologias, jamais em restrições de uso” (BEAUCHAMP e
CHILDRESS, 2002, p. 404).
Bioética clínica e terceira idade
59
No Brasil, essa discussão ainda não foi tornada pública, exceto
pela manifestação de alguns poucos trabalhos acadêmicos produzidos
na última década. A destinação justa de escassos recursos em saúde
constitui-se tema da maior relevância e não há como não constar da
agenda de discussão do governo quanto à formulação de políticas
públicas no campo da saúde. Ao acompanharmos o que determinou
o legislador brasileiro quando da elaboração do Estatuto do Idoso,
éramos praticamente levados a supor que o país pudesse alocar
recursos infinitos para assistir a todas as situações contempladas no
bojo daquela lei. Para confirmar essa assertiva, recomenda-se a leitura
do Capitulo IV do referido Estatuto, que dispõe sobre o direito do
idoso à saúde (BRASIL, 2003).
Não é possível enfrentar as dificuldades de escassez de recursos
em saúde sem limitar o horizonte a ser alcançado (MUELLE, HOOK
e FLEMING, 2004). A literatura é pródiga em apontar exemplos de
países desenvolvidos que detém aproximadamente 10% da população
com mais de 65 anos de idade com um gasto de 1/3 do total do
orçamento destinado à saúde de toda a população. Essa é uma área
temática que deverá merecer prioridade entre os assuntos pautados
para a terceira idade e suas implicações com a bioética clínica.
A
MORTE E O MORRER
A última abordagem relacionando bioética clínica e terceira idade
diz respeito à representação da perspectiva de morrer e da própria
morte para esse grupo populacional, sobretudo o que significa morrer
com dignidade. A possibilidade de intervir no ciclo da vida, acelerando
ou estendendo o momento da morte, é, talvez, uma das questões
mais centrais da ética aplicada à saúde, sendo o Juramento de
Hipócrates uma das referências éticas mais antigas. O avanço
biomédico, em particular as técnicas paliativas, trouxe para a cena do
debate não apenas a discussão sobre a existência ou não de um suposto
direito de escolher o momento da morte, mas também sobre o tema
dos tratamentos desproporcionais que podem estender
60
Sérgio Ibiapina F. Costa
indefinidamente a vida, impedindo que as pessoas efetivamente
morram.
Inúmeras pessoas de projeção na vida pública já mereceram o
enfoque midiático pró e contra quanto às medidas postas em prática
com o propósito de mantê-las “vivas”. É possível recordar nomes de
papas, ditadores, presidentes e outras autoridades que tiveram seus
últimos dias expostos à espera do final de uma longa agonia. Sobre
esse assunto, vale ressaltar os seguintes aspectos:
O reconhecimento de que a decisão sobre o momento da morte não
deveria ser apenas uma questão técnica, mas essencialmente de ordem
ética, portanto, da esfera privada das pessoas, vem sendo considerado um
verdadeiro desafio aos profissionais da saúde. A resistência por parte dos
que trabalham nas áreas biomédica e jurídica é no sentido de recusarem
aceitar a participação do debate formal sobre diferentes modalidades de
eutanásia ou de se posicionarem frontalmente contrários a recusa de
pacientes em receber qualquer modalidade de tratamento para a sua
enfermidade. Os fundamentos éticos do debate sobre o direito de morrer
são vários, muito embora os princípios da autonomia e da dignidade sejam
referências obrigatórias para qualquer processo decisório, inclusive nos
países que regulamentaram em lei o direito a alguma forma de eutanásia”
(DINIZ e COSTA, 2004, p. 121).
Acredita-se que a eutanásia, em suas diferentes tipologias, será uma
área temática que merecerá maior atenção nas primeiras décadas do
século atual, em substituição ao aborto, que proporcionou grandes
embates éticos a partir da segunda metade do século XX. Na mesma
esteira do debate sobre a eutanásia, surge a distanásia como
terminologia de uso corrente quando se aborda a resistência ao
processo de morrer. Definitivamente, não é possível que tenhamos
que conviver com a idéia de que a morte pressupõe flagelo ou acabe
por representar a violação de um dos direitos mais fundamentais do
ser humano, a dignidade.
O sofrimento de Sigmund Freud, aos 83 anos de idade, deve servir
de exemplo para expor a importância da recusa ao tratamento. Após
submeter-se a mais de três dezenas de procedimentos cirúrgicos na
tentativa de extirpar um tumor de mandíbula, Freud rogou aos seus
Bioética clínica e terceira idade
61
colegas que lhe abreviassem o sofrimento, interrompendo a luta contra
o tumor e acolhendo seu desejo de repouso sem sofrimento. Teve o
pedido atendido.
Conclui-se que o envelhecimento natural nem sempre significa
doença, dependência de terceiros ou perda irreversível de funções,
embora seja normal um declínio insidioso e gradual das capacidades
sistêmicas e orgânicas. Não se espere do idoso centenário a exibição
de saúde, pois com certeza ele estará muito mais próximo do fim da
sua existência, acometido por diferentes formas ou manifestações de
doenças. É papel do estudioso em bioética, diante dessa realidade
social inevitável, identificar os dilemas e conflitos que surgem a cada
dia nos modos de vida, hábitos, habilidades e perda de autonomia
das pessoas que migram para a terceira idade. Afinal, “o sonho da
eterna juventude pode parecer mais interessante que a discussão dos
problemas relacionados ao envelhecimento” (GUIMARÃES e
CUNHA, 2005, p. 1).
REFERÊNCIAS
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Paulo: Edições Loyola, 2002.
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63
Quando tratar significa sofrimento
Luiza Ivete Vieira Batista
INTRODUÇÃO
O papel da Medicina é promover a saúde e a vida. Quando um
indivíduo adoece, torna-se um sujeito vulnerável, colocando-se nas
mãos de outro indivíduo (na maioria das vezes o médico), confiando
a este o seu maior bem, isto é, sua saúde, sua vida.
O objetivo de um tratamento é restituir o bem-estar e a saúde,
afastar a dor e o sofrimento. Mas, dependendo do diagnóstico e da
conduta terapêutica a ser instituída, há pelo menos quatro
possibilidades de evolução do quadro clínico: na primeira, o
tratamento a ser instituído é indolor, melhora o indivíduo e restitui
seu bem-estar, sua saúde; este é o resultado que se espera quando se
procura ajuda médica e é o que na maioria das vezes acontece. Uma
segunda possibilidade é a de que o tratamento possa vir a trazer algum
sofrimento; como é, porém, a única forma possível de recuperação
64
Luiza Ivete Vieira Batista
da saúde, explicado o procedimento, é fácil a conduta ser aceita pelo
indivíduo enfermo e por sua família como uma “necessidade de um
sofrimento passageiro” para a recuperação da saúde e garantia da
manutenção da vida; esse é o caso, por exemplo, de uma internação.
A terceira possibilidade é a de que o indivíduo e/ou a família
concordem com a instituição de tratamento que trará algum
sofrimento, mas, diferentemente do que se esperava, não ocorre a
melhora da saúde, não por fatores inerentes à patologia em si mas
por uma não-resposta individual ao tratamento, que foi eficaz em
outros indivíduos com a mesma patologia; este é o caso em que a
ineficácia em restituir a saúde a um indivíduo decorre, por exemplo,
da resistência do organismo a determinada substância. No entanto,
nesses casos, há a aceitação da tentativa de tratamento. A quarta
possibilidade é a de que, pela própria natureza da doença,
determinados tratamentos, além de causarem sofrimento adicional,
são incapazes de reverter o quadro clínico do indivíduo, apenas
prolongam uma vida com sofrimento. Nesse caso, a Medicina mostrase perversa ao administrar procedimentos terapêuticos que
sabidamente não trazem a cura nem a reversão do quadro clínico,
apenas prolongam a vida sem a restituição do pleno bem-estar.
É interessante notar que diante de determinadas patologias há uma
aceitação tanto da comunidade de profissionais de saúde quanto da
sociedade, incluindo os próprios familiares, de que todos os esforços
da Medicina já foram realizados e de que a partir daí as possibilidades
terapêuticas só trarão mais sofrimentos e não mudarão o curso da
doença. Esse é o caso de um paciente com câncer em estágio avançado,
ao qual é consenso não impor tratamentos que prolonguem a vida de
sofrimento.
Porém há outras patologias irreversíveis para as quais são adotadas
medidas terapêuticas com única finalidade de prolongar a vida, apesar
de se saber que causarão sofrimento ao paciente, que muitas vezes
acaba ficando dependente de aparelhos que apenas lhe permitem
sobreviver. Esse é o caso da doença de Werdnig-Hoffman, uma das
formas de Atrofia Muscular Espinhal, doença neurológica, que, por
Quando tratar significa sofrimento
65
causar a perda da capacidade motora, prende o indivíduo dentro de
seu próprio corpo, tira-lhe a capacidade de movimentar-se e
progressivamente paralisa seus músculos respiratórios; tal estado
determina a necessidade do uso permanente de um respirador e de
uma sonda nasogástrica para garantir as funções de respiração e de
alimentação, o que obriga os portadores dessa patologia a residirem
em Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Tudo isso implica
complicações do quadro clínico, como infecções freqüentes,
normalmente causadas por germes cada vez mais resistentes, que
fazem com que o paciente seja submetido a outros tratamentos
também dolorosos, como punção torácica para drenagem de secreções
pulmonares. Essa patologia é até o momento irreversível, e a medicina
está limitada a controlar as complicações do quadro clínico, nada
podendo fazer para reverter a paralisia. Cabe então perguntar: diante
de patologias que sabidamente são irreversíveis, que não têm cura, é
digno instituírem-se tratamentos que venham acrescentar dores físicas
e psicológicas?
O presente trabalho tem como objetivo discutir a diversidade de
condutas médicas aplicadas em crianças gravemente enfermas, com
patologias irreversíveis, crianças para as quais tanto a doença em si
como o tratamento são fontes de sofrimento físico e psicológico. A
discussão aqui proposta tenta, à luz dos princípios bioéticos, chegar à
melhor conduta, ou seja, a que venha minimizar ao máximo o
sofrimento do pequeno paciente, levando em conta os deveres do
profissional de saúde, estabelecidos nas leis brasileiras e no Código
de Ética Médica.
Para o desenvolvimento deste trabalho será estabelecido um
paralelo entre dois casos clínicos: um paciente com câncer avançado
e outro com atrofia muscular espinhal (doença de Werdnig-Hoffman)
servirão de suporte para a discussão, por haver possibilidades de
diferentes condutas médicas nos dois casos, aparentemente distintos,
mas semelhantes em termo de prognóstico. Após explicar a conduta
médica em cada caso, seguirá uma discussão quanto aos direitos do
paciente pediátrico e deveres do médico, utilizando-se para isso a
66
Luiza Ivete Vieira Batista
Constituição Federal (CF) de 1988, o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) e o Código de Ética Médica Brasileiro. Em
seguida, as condutas nos dois casos serão discutidas à luz dos
princípios da Bioética.
DIANTE
DE CASOS CONCRETOS
Para auxiliar na discussão do tema, dois casos clínicos são
apresentados a seguir:
Caso 1: criança de 6 anos de idade, portadora de sarcoma de Ewing,
tumor ósseo maligno em fêmur, com metástases para pulmão, costelas
e vértebras, com compressão espinhal. O sarcoma de Ewing é
caracteristicamente um tumor maligno que provoca dores intensas, e
que quando acomete as costelas e os pulmões, além da deformidade
local, leva a quadro de esforço respiratório. O tratamento preconizado
seria a poliquimioterapia pré-operatória, seguida de cirurgia e
quimioterapia ou radioterapia pós-operatória, com sobrevida de 20 a
30% (PETRILLI et al., 2003). Foi sugerido pela equipe médica, em
conversa com a família, que a criança não fosse submetida à cirurgia,
pois, diante do avanço do câncer, haveria pouco benefício em termos
de sobrevida, equiparado com o risco cirúrgico. A família aceitou os
argumentos, e a criança foi submetida a cuidados paliativos.
Caso 2: criança de 4 anos de idade, portadora de doença de
Werdnig-Hoffman. Por volta de 2 meses de vida iniciou quadro de
perda de tônus e diminuição progressiva da capacidade de
movimentação em membros; apresentava também dificuldade de
mamar e de deglutir, acompanhada de engasgos freqüentes. Após
exames clínicos e laboratoriais foi firmado diagnóstico de Atrofia
Muscular Espinhal – doença de Werdnig-Hoffman. Aos poucos,
foram-se paralisando os músculos dos membros, do abdome e do
tórax, impossibilitando a respiração espontânea. Diante do quadro
de insuficiência respiratória, a criança foi internada em uma Unidade
de Terapia Intensiva (UTI) pediátrica, sendo colocada em respirador
artificial. Atualmente tem 4 anos de idade, e há 3 anos mora em uma
Quando tratar significa sofrimento
67
UTI, totalmente dependente do respirador, de um aspirador de saliva
e de uma sonda nasogástrica por onde se alimenta, em razão da
incapacidade de deglutição.
O desenvolvimento cognitivo desta criança é normal, o que quer
dizer que ela é consciente e, além de participar do dia-a-dia de uma
UTI, sofre todas as vezes que existe necessidade de se trocar uma
sonda ou uma cânula de traqueostomia, ou quando é necessário fazerse algum procedimento em decorrência de complicações infecciosas,
como pneumonias com derrame pleural, que exige uma punção
torácica. Até o momento tal doença, considerada fatal e limitando a
sobrevida a no máximo 3 anos (ROSEMBERG, et al., 2003), não
tem tratamento específico, ou seja, nesse caso a Medicina está limitada
ao tratamento dos sintomas e das intercorrências. A família foi
informada de que a criança necessitava de um aparelho para respirar,
e, no decorrer da doença, teve conhecimento de que a criança não
sobreviveria se fosse privada do respirador. Ante tal situação, a família,
após demonstrar sinais de revolta, resolveu mudar-se para perto do
hospital para facilitar o acompanhamento da criança.
Em ambos os casos, têm-se crianças com doenças de prognóstico
e sobrevida ruins, e ambas as patologias levam a sofrimento físico e
psicológico, pois, além da dor física, o paciente fica privada do convívio
familiar no lar e de todo o processo de viver a vida, do convívio com
outras crianças saudáveis, do convívio escolar, do desenvolvimento
social, enfim, a criança é excluída da vida em sociedade, como se
tivesse nascido mas não pudesse viver. Diante do prognóstico destas
doenças, qual o papel da equipe médica nestes casos? Quais as
possibilidades de conduta a ser adotada pela equipe médica?
POSSIBILIDADES
DE CONDUTAS
A primeira conduta a ser observada é dar ao paciente ou responsável
total esclarecimento acerca da doença e de sua evolução, bem como as
possibilidades de tratamento e de suas conseqüências para o enfermo.
Como se trata de doenças graves e irreversíveis em crianças, os pais ou
68
Luiza Ivete Vieira Batista
responsáveis devem assumir seu poder de decisão juntamente com a
equipe médica, após esclarecidos por esta. Isto porque de acordo com
o ECA, no seu capítulo III - Do Direito à Convivência Familiar e
Comunitária, artigo 21, o pátrio poder será exercido, em igualdade de
condições, pelo pai e pela mãe, na forma que dispuser a legislação civil
(BRASIL, 1999); e, no Código de Ética Médica determina-se que o
médico poderá ser punido se infringir um dos seguintes artigos:
- Artigo 56 do capítulo V – relação com pacientes e familiares: “desrespeitar
o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas
diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida”.
- Artigo 48 do capítulo IV – Direitos humanos: “é vetado ao médico exercer
sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente
sobre sua pessoa ou seu bem-estar” (CFM, 2003).
Aqui surge um primeiro conflito: quem decide qual a conduta a ser
adotada diante de uma criança enferma? Assim como os pais, detentores
do pátrio poder, não conseguem cuidar sozinhos da criança enferma,
tampouco a equipe médica poderá conduzir o caso sem discutir com
os responsáveis legais pela criança. Nesses casos, o ideal é que a equipe
médica faça o esclarecimento sobre o que é a doença, sua evolução, as
possibilidades de tratamento atuais na localidade ou em serviços mais
avançados e, por fim, as conseqüências de cada possibilidade de
tratamento. Em vez disso, o que ocorre com certa freqüência é o
paternalismo exercido pela equipe médica, sem a consulta prévia aos
responsáveis de direito pela criança (MUÑOZ e FORTES, 1998). Foi
o que aconteceu no caso da criança com doença de Werdnig-Hoffman,
caso em que a família só foi esclarecida das conseqüências da entubação
após a criança já estar em respirador artificial.
INTERVENÇÕES:
OS
DIREITOS
DAS
CRIANÇAS
E OS DEVERES MÉDICOS
Caso se optasse, no primeiro caso, por intervenções, a equipe
médica faria uma cirurgia para retirada do tumor e descompressão
torácica, melhorando assim temporariamente a insuficiência
Quando tratar significa sofrimento
69
respiratória da criança, sem, no entanto, resolver seu problema. No
segundo caso, a intervenção seria colocar a criança em respirador
artificial, por tempo indeterminado, até que a criança viesse a falecer
de alguma complicação. Agindo dessa forma, a equipe médica estaria
cumprindo seu Código de Ética, o qual define que o médico poderá
ser punido se infringir o seguinte dispositivo:
Cap. 5, art. 57 – relação com pacientes e familiares: “é vetado ao médico
deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnósticos e
tratamento a seu alcance em favor do paciente” (grifo nosso)
(BRASIL, 1990).
Ainda com relação ao direito à vida e à saúde, o artigo 7º do capítulo
I do ECA diz: “A criança e o adolescente têm direito à proteção à
vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que
permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso,
em condições dignas de existência” (grifo nosso) (BRASIL, 1990).
Porém nem o ECA, nem a CF, da qual o primeiro se origina, definem
o que vem a ser condições dignas de existência.
Ainda no ECA - no Título I das disposições preliminares, no seu
artigo 4º, estabelece-se: “É dever da família, da comunidade, da
sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta
prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária” (grifo nosso) (BRASIL, 1988).
E na Constituição de 1988, p148, pode-se ler:
Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança
e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, exploração,
violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).
Os artigos acima deixam claro que é dever da sociedade, da família
e do Estado promover a vida, a saúde e a dignidade das crianças e
adolescentes e protegê-los de sofrimentos. Em outras palavras, define
70
Luiza Ivete Vieira Batista
as bases éticas e as regras programáticas para qualquer ação em relação
a crianças e adolescentes.
A equipe médica, além de se encontrar inserida na sociedade
referida pela CF, tem deveres inerentes à arte de medicar, os quais se
encontram no já referido Código de Ética Médica. Por exemplo,
quanto aos deveres profissionais dos médicos, no artigo 2º do Capítulo
I Dos Princípios Fundamentais do Código de Ética Médica,
estabelece-se que “o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do
ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo zelo e o
melhor de sua capacidade profissional”.
Quando se trata de doenças curáveis, não há dúvida de que esse é
realmente o papel do médico e de que o desenvolvimento de sua
atividade deverá trazer a cura e, portanto, a restituição da saúde para
o ser humano antes doente. O problema é quando se trata de doenças
ainda incuráveis, pelo menos para a nossa realidade, situação em que,
caso se lance mão dos meios disponíveis de tratamento, em vez de
proporcionar saúde, produz-se o prolongamento do sofrimento.
Portanto, segundo as leis brasileiras e o Código de Ética Médica, é
dever do médico primar pela saúde do ser humano utilizando para
isso o melhor de sua capacidade profissional e todos os meios de
diagnósticos e terapêuticos disponíveis.
Voltando aos dois casos das crianças citadas anteriormente, na
com câncer avançado, com insuficiência respiratória por metástase
pulmonar, a cirurgia na tentativa de melhorar o padrão respiratório
leva a uma condição de risco e sofrimento para o paciente e não trará
a sua cura nem modificará o curso da doença em si. Quanto à outra
criança, com doença de Werdnig-Hoffman, encontra-se, como já se
disse, com insuficiência respiratória por paralisia dos músculos
respiratórios; colocá-la em um respirador artificial resolverá o
problema agudo da insuficiência respiratória, porém em nada mudará
o curso da doença, pois essa paralisia não se reverte apenas com a
aplicação dos recursos terapêuticos médicos disponíveis atualmente.
Assim, protela-se o problema, a criança não morre de insuficiência
respiratória agora, porém fica presa a um respirador, sem a menor
Quando tratar significa sofrimento
71
possibilidade de um dia vir a respirar por conta própria e, portanto,
sendo obrigada a residir em uma UTI pediátrica, onde deverá vir a
falecer de alguma complicação infecciosa, até em média, os seus 3
anos de idade.
Considerando, por um lado, o direito da criança de ter saúde, vida
e dignidade, e, por outro, o dever do médico de aplicar todos os
meios terapêuticos disponíveis para a promoção da saúde, o que se
questiona é se é digno estabelecer procedimentos que prolonguem
uma vida acompanhada de doenças irreversíveis, procedimentos que,
portanto, produzem um acréscimo de sofrimento ao paciente. Mas,
feito esse questionamento, apresentam-se outros, tais como: o que é
saúde? O que é uma vida digna para um ser humano enfermo? Qual
é o papel do médico diante de um paciente com doença irreversível?
Ante a impossibilidade de uma resposta abstrata e consensual sobre
o que é saúde e dignidade em sociedades moralmente plurais, fazemse necessárias situações concretas para compreender tais categorias.
E é a partir dessa situações concretas que surge a segunda opção para
pensar estes casos: a não intervenção.
A
NÃO
-INTERVENÇÃO
E
A
UTILIZAÇÃO
DE
T R ATA M E N T O PA L I AT I VO
Segundo Drane e Pessini, paliar significa mitigar, aliviar, reduzir,
diminuir (DRANE e PESSINI, 2005, p.127). A medicina paliativa
surgiu com a criação do hospice, em que “a morte é reconhecida como
inevitável e o foco é torná-la mais humana”. Nesse tipo de conduta,
o objetivo é cuidar e não mais curar, já que a morte é reconhecidamente
inevitável; nele visa-se a três principais objetivos, a saber, aliviar a
dor, aliviar o sofrimento, não só físico mas também o psicológico e o
religioso, e ajudar na tomada de decisão do paciente ou da família, no
caso de aquele já não ter condições de decidir.
Nos casos citados, para a criança com câncer, optou-se pelo
tratamento paliativo, isto é, a sedação da dor e o conforto psicológico
foi ofertado tanto para a criança enferma quanto para a família em
72
Luiza Ivete Vieira Batista
sofrimento. No segundo caso, se se optasse pelo cuidado paliativo, a
criança seria acompanhada mitigando a dor e o sofrimento, sem, no
entanto, ser colocada em respirador artificial, e a família acompanhada
até a morte da criança do mesmo modo como no caso da criança
com câncer. Tal medida aliviaria o sofrimento físico prolongado da
criança ter que sobreviver às custas da dependência de um respirador.
A conduta paliativa estaria amparada também tanto no ECA, como
na CF como no Código de Ética Médica.
No artigo 4º do ECA é dever da família, da comunidade e da
sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta
prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária. Esse último aspecto do tratamento paliativo diante da
morte inevitável garante legalmente a convivência familiar, o que por
si só já traria conforto para o indivíduo enfermo. A CF, no seu artigo
227, relata como dever da família, da sociedade e do Estado não só
assegurar o direito à vida e à saúde, mas também o direito à convivência
familiar e comunitária, além de colocar a criança e o adolescente a
salvo de toda forma de negligência, exploração, violência, crueldade
e opressão. Deixar essas crianças, em uma fase tão difícil de suas
vidas, longe da convivência familiar não seria uma agressão?
CONSENSO?
A OMS define saúde como “o completo bem-estar físico, mental e
social, e não apenas a ausência de doença”. Portanto, ao se tratar com
intervenções a insuficiência respiratória em ambos os casos citados,
não se está promovendo saúde mental nem social, pois não se consegue
restituir, nesses casos, a convivência social na família nem na comunidade
onde as crianças estão inseridas. Pelo contrário, no caso da doença de
Werdnig-Hoffman, ao se instituir terapia respiratória mecânica,
sentencia-se a criança a permanecer o resto dos dias que lhe sobram
dentro de uma UTI pediátrica, com direito a visita dos pais por apenas
Quando tratar significa sofrimento
73
algumas horas por dia. Desse modo, se o tratamento traz consigo o
sofrimento sem perspectiva de cura, tampouco se consegue o bemestar mental. Diante dessa situação, a equipe médica estaria
impossibilitada de promover a saúde para as crianças, e, se não há
possibilidade de restabelecer a saúde de uma forma plena, não é digno
prolongar uma vida com sofrimento.
Por outro lado, deixar que uma criança venha a falecer com
insuficiência respiratória, tendo como colocá-la em ventilação mecânica,
tirando-lhe parte do sofrimento da “fome de ar”, concedendo-lhe uma
forma mais tranqüila de respirar, não seria uma omissão por parte da
equipe médica que acompanha a criança? Ou, no caso da criança com
câncer, se ela ainda suportar um procedimento cirúrgico como a
descompressão do tórax retirando o tumor que dificulta a expansão
pulmonar, com a conseqüente melhora, mesmo que por tempo limitado,
da capacidade de respirar, não aplicar tal procedimento não seria negar
o direito de uma melhora temporária?
O fato é que essas decisões são sempre difíceis diante da variedade
de opções legítimas. Além disso, exigem sempre certa urgência, quando
nem sempre se tem o tempo adequado para decidir com os pais ou
responsáveis. O médico deve ponderar para fazer a escolha a fim de
que ela seja a menos maléfica e a mais benéfica possível, não deixando
de observar que o fato de haver uma escolha legítima não significa que
esta seja a mais adequada para uma situação específica.
À
PROCURA
DE
BASES
PA R A
DISCUTIR
ESSE
D I L E M A A PA RT I R DA B I O É T I C A
Voltando aos dois casos apresentados, no primeiro, foram expostos
à família a gravidade e evolução da doença, as opções de tratamento,
dos riscos e benefícios que cada opção poderia trazer à criança
enferma. Juntas, equipe médica e família conseguiram chegar a um
consenso e decidiram por um tratamento paliativo, cujo objetivo é
aliviar a dor física, dar apoio psicológico, social e espiritual, até que o
processo de morte naturalmente se instale (ortotanásia). Como a
74
Luiza Ivete Vieira Batista
criança não tem autonomia de decidir sobre sua vida e enfermidade,
os pais, exercendo o pátrio poder disposto no artigo 21 do capítulo
III do direito à convivência familiar e comunitária, do ECA, autorizam
à equipe médica a não realização da cirurgia, exercendo assim a
autonomia, decisão respeitada pela equipe médica, que se compromete
a acompanhar a criança enferma até sua morte, aliviando o máximo
possível seu sofrimento. A autonomia, um dos princípios da Bioética
Principialista, consiste, de acordo com Pessini e Barchifontaine, na
“capacidade de atuar com conhecimento de causa sem coação externa”
(PESSINI e BARCHIFONTAINE, 1998, p. 86). Segundo Engelhardt,
a relação médico-paciente ou, no caso, médico-família do paciente,
consiste na aceitação de compromissos e no estabelecimento de limites
(ENGELHARDT, 1998).
Portanto, segundo esse princípio, deve-se respeitar a autonomia
da pessoa, acatando-se a decisão desta depois de fornecidas
informações sobre as conseqüências de consentir ou não com
determinado procedimento ou tratamento. No caso de pessoas não
competentes ou incapazes de decidirem por si, como as crianças e
adolescentes, deve-se respeitar a decisão dos responsáveis pelo pátrio
poder, geralmente, os pais.
No que respeita ao caso de câncer, diante do quadro clínico, há
um certo consenso entre a equipe médica e os familiares de que não
seria falta de bom senso o médico utilizar todos os meios disponíveis
de tratamento ao seu alcance. Nesta situação terminal o non nocere
(não fazer o mal) deve prevalecer, para que não se imponha ao enfermo
sofrimento maior e desnecessário. Este é o princípio da nãomaleficência.
Em se tratando paliativamente ou através de procedimentos, qual
seria a beneficência ou a não-maleficência para a criança enferma?
Entende-se como beneficência fazer o bem tanto para a coletividade
como para si mesmo. Ou, em um conceito mais ampliado, por
beneficência o Relatório Belmont criado pela Comissão Nacional para
a Proteção dos Seres Humanos em Pesquisa Biomédica e
Comportamental entende ser dever, por parte de quem cuida, de não
Quando tratar significa sofrimento
75
só não causar dano como também promover o máximo de benefício
para a pessoa em questão. Com o objetivo de facilitar a aplicação dos
princípios no exercício da Medicina, Beauchamp e Childress
publicaram uma obra clássica: Principles of Biomedical Ethics, onde
desmembraram o princípio da beneficência em beneficência e nãomaleficência (apud, KIPPER e CLOTET, 1998), entendendo como
beneficência impedir o mal ou dano aos outros e fazer ou promover
o bem, e a não-maleficência, não infligir ou não provocar mal aos
outros (JUNGES, 1999).
Decidir por não fazer a cirurgia na criança com câncer poderia,
por uma lado, ser interpretado como não-maleficência, por não se
promover mais uma dor, no caso do pós-operatório. Mas não se estaria
deixando de promover a beneficência da criança permitindo que ela
fique mais alguns dias com insuficiência respiratória causada pela
compressão tumoral nos pulmões? Não poderia ser considerada
maleficência não utilizar os meios disponíveis para minorar a
insuficiência respiratória da criança, ainda que temporariamente?
Um quarto princípio, o da justiça, também foi respeitado, no
sentido de que se colocou à disposição da criança enferma todos os
recursos terapêuticos disponíveis. Por Justiça, a partir e em relação
aos casos discutidos, pode-se compreender como sendo a
imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios. Segundo esse
princípio, as pessoas são iguais e devem ser tratadas com eqüidade na
distribuição de recursos e quanto ao direito à vida e à saúde (PESSINI
e BARCHIFONTAINE, 1998; JUNGES, 1999). Todos devem ter a
mesma oportunidade de tratamento e liberdade de optar (SIQUEIRA,
1998). Segundo Felipe, o “princípio básico da igualdade não requer
tratamento igual ou idêntico, requer igual consideração” – porque os
indivíduos são diferentes entre si (FELIPE, 2006). Portanto, o que se
deve é ter igual consideração de interesses com relação às partes
implicadas.
No primeiro caso, a equipe médica, utilizando-se da prudência,
mostrou aos pais quais opções terapêuticas estavam disponíveis,
mostrando riscos e benefícios que cada uma traria ao paciente. Se os
76
Luiza Ivete Vieira Batista
pais optassem pela cirurgia, esta estaria disponível, bem como o
acompanhamento durante o tratamento paliativo.
Já no segundo caso, a criança entrou numa UTI já com insuficiência
respiratória e em casos como esse, quando a criança não vem entubada
de uma enfermaria ou de um serviço de urgência, geralmente ao dar
entrada na UTI, todas as manobras de tentativas de reversão do quadro
de insuficiência respiratória e de suporte ventilatório necessários são
realizados, para depois de estabilizada a criança e investigar mais
minuciosamente a causa. Existem aí duas situações com relação ao
exercício da autonomia na decisão de entubação e ventilação mecânica:
a primeira é a de que o médico da UTI não tinha conhecimento prévio
do quadro clínico inicial do paciente, e pela urgência de uma decisão
exigida pela insuficiência respiratória, tomou as medidas cabíveis para
garantir o direito maior da criança, que é o direito à vida; a segunda é
que o profissional foi avisado do diagnóstico da atrofia muscular
espinhal (doença de Werdnig-Hofmann) e, mesmo sabendo da
evolução e do prognóstico da doença, tomou a decisão sozinho, sem
consultar os pais, de colocar a criança em suporte ventilatório
(paternalismo não-autorizado) (SEGRE, 2005).
Nessa segunda situação, o princípio da autonomia foi violado,
apesar de o profissional de saúde poder ter agido com boas intenções.
Ao tomar tal conduta, por um lado beneficiou o paciente e a família
por ter diminuído a angústia de uma morte iminente por parada
respiratória, porém, por outro lado, sentenciou a criança a viver na
dependência de um respirador, a residir em uma UTI, e, portanto a
não participar da vida em família, pela impossibilidade irreversível de
conseguir respirar novamente sem a ajuda de um respirador artificial.
Diante disso, o médico usou de beneficência, não deixando o paciente
morrer por parada respiratória e, portanto, não omitindo socorro e
utilizando os recursos terapêuticos disponíveis em favor do paciente?
Ou deixou de exercer a não-maleficência, já que teria conhecimento
da evolução do quadro e saberia das conseqüências irreversíveis desse
procedimento? Eis aí um conflito do médico diante de sua consciência
e diante das conseqüências de seu ato na vida da criança e de sua
Quando tratar significa sofrimento
77
família. Se o médico decidisse por conta própria de não fornecer
suporte ventilatório para a criança, não estaria proporcionando uma
cacotanásia? E pelo princípio de justiça, não estaria negando um
tratamento igual à todas as crianças que entram na UTI com
insuficiência respiratória?
A criança foi entubada e agora depende de um aparelho para
sobreviver. Se os pais se negarem a concordar com a manutenção do
tratamento, estariam agindo com beneficência para com sua criança?
Retirá-la do respirador significa tirá-la a vida, ou seja, eutanásia. Porém
mantê-la refém de um aparelho sem a menor possibilidade de um dia
vir a respirar por conta própria, se estaria promovendo saúde para
esta criança? O que se procura é uma forma de promover o menor
sofrimento possível, causando o menor malefício possível.
Dentro desse contexto, surgem questões que necessitariam ser
melhor definidos, como: o que é vida? O que é viver com dignidade?
Como manter a dignidade da pessoa diante da doença e na iminência
da morte? Em ambos os casos citados conclui-se que, tanto a
Constituição, o ECA e o Código de Ética Médica, quanto os princípios
da Teoria Principialista da Bioética são limitados, ou seja, não resolvem
por si só os conflitos gerados quanto à tomada de decisões diante de
indivíduos gravemente enfermos.
Poder-se-ia nesse momento lançar mão de outros princípios da
bioética, como o Princípio da Adequação, que preconiza que se
restrinja um direito em detrimento da otimização de outro para
alcançar um objetivo mais abrangente (BUGLIONE, 2005), no caso
dos exemplos citados a manutenção da vida das crianças. Ou o
princípio da necessidade, tomando a medida que seja a que menos
traga agravos à pessoa, atingindo a mesma finalidade. No caso da
criança com atrofia muscular espinhal, a equipe médica poderia ter
optado por respiração artificial, porque não teve tempo de discutir
com a família sobre as conseqüências do tratamento, em razão da
emergência de uma insuficiência respiratória. Ou o princípio da
proporcionalidade, que recomenda que se deve ponderar as
possibilidades de tratamento visando ao objetivo a ser alcançado, e
78
Luiza Ivete Vieira Batista
escolher dentre tais possibilidades a que melhor se adeque ao caso. O
fato é que diante de tantas condutas possíveis e plausíveis, deve-se ter
em mente que cada caso é um caso específico, e que não existem
regras ou receitas a serem seguidas diante de patologias semelhantes
ou até iguais.
Pessini chama atenção para os objetivos da Medicina e refere em
seu texto quatro principais objetivos, a saber: 1. Prevenção da doença
e do sofrimento, promoção e manutenção da saúde; 2. Alívio da dor
e do sofrimento; 3. Curar as pessoas com doenças curáveis e cuidar
daquelas cujas doenças não são curáveis; e 4. Evitar a morte prematura
e buscar a morte em paz (PESSINI, 2001).
Diante de patologias incuráveis é primordial que o paciente ou a
família, após ser esclarecido sobre a evolução da doença, deva decidir
junto com a equipe médica o que ele considera melhor para si. Pode
acontecer que a idéia de sofrimento da equipe médica diante de
procedimentos que não mudarão o curso da doença não seja a mesma
idéia de sofrimento da família. Ou seja, mesmo após explicado que a
retirada da metástase pulmonar não mudará o processo da doença,
a família pode considerar que o sofrimento de passar por um
procedimento cirúrgico é menor que o sofrimento da angústia
respiratória por que está passando a criança. Do mesmo modo, no
caso da criança com doença de Werdnig-Hoffman, os pais podem
considerar sofrimento menor a criança ficar mantida por um aparelho
que ter a sensação de que nada foi feito. O conceito de sofrimento na
verdade tem um cunho subjetivo e depende das circunstâncias nas
quais estão inseridos o paciente, a família e a equipe médica.
Dado o primeiro passo para definir com o paciente e/ou a família
o que se considera maior sofrimento, a equipe médica traça os
objetivos do tratamento, tendo sempre em mente, diante de um
paciente terminal, a possibilidade do “cuidar”, se o “curar” já não é
mais possível. Assim, diante dos casos citados e tendo em vista os
objetivos mencionados, sempre se poderá prevenir sofrimentos, aliviar
a dor, dar conforto psicológico, tanto para o paciente quanto para a
sua família e promover uma morte em paz, definida por Pessini (2001a)
Quando tratar significa sofrimento
79
como aquela em que a dor e o sofrimento são minimizados, utilizandose do paradigma da benignidade humanitária e solidária, traduzindose na imagem do médico humano (PESSINI, 2001b; PESSINI,
2001a).
Talvez o não-entubar a criança com doença de Werdnig-Hoffman,
assim como não submeter a criança com câncer terminal a
procedimento cirúrgico, referindo-se aos exemplos citados fosse a
opção que menos danos traria para essas crianças. Tanto na decisão
do tratar com procedimentos como tratar com paliativos, a equipe
médica está sob a proteção das leis brasileiras e do seu código de
ética. A única alternativa em que o médico brasileiro não está em
cumprimento da lei, diante de um paciente terminal, é no caso da
eutanásia.
Portanto, diante da iminência de morte, nem eutanásia nem
distanásia, mas ortotanásia. Talvez o médico contemporâneo precise
reaprender que não se pode vencer a morte, pois esta é apenas uma
das etapas da existência humana. Talvez precise reaprender a respeitar
o paciente como indivíduo que, ainda que na fase terminal de sua
vida, e, sobretudo por isso, tem o direito de optar por uma morte
sem dor e próximo a seus familiares. Talvez o médico contemporâneo
precise reaprender, ou aprender, a “cuidar” de seu paciente, ato esse
que vai além da limitada arte de curar.
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1990. Brasília, 1990.
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Brasil, Brasília, DF: 1988.
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Bioética reprodução e gênero na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro/
Brasília, ABEP: LetrasLivres, 2005. p. 93-114.
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82
Deficiência, Cuidado e Justiça Distributiva
Debora Diniz, Flávia Squinca e Marcelo Medeiros
INTRODUÇÃO
O último censo brasileiro modificou o sistema de recuperação e
identificação da deficiência (BRASIL, 2005). De um discurso
estritamente biomédico centrado na lesão e no indivíduo, as novas
perguntas do censo incorporaram premissas importantes do modelo
social da deficiência, permitindo mensurar a relação entre um corpo
com restrições de funcionalidade e contextos sociais pouco sensíveis
à diversidade física ou mental das pessoas (MEDEIROS e DINIZ,
2004; DINIZ, 2003). Esta mudança de perspectiva – da deficiência
como uma tragédia individual para uma questão de justiça social –
representou uma transformação drástica na configuração censitária
da população deficiente no Brasil: de 1,14% nos anos 1990, a
população deficiente é, hoje, de 14,5% (BRASIL, 2005a; BRASIL,
2005b).
Isso não significa que houve um crescimento desproporcional da
população deficiente no país – um fato que poderia ser ocasionado
Deficiência, Cuidado e Justica Distributiva
83
pelo envelhecimento populacional e, portanto, por um aumento no
número de pessoas com lesões ou com diferentes habilidades. A
principal razão para esse fenômeno está na mudança no sistema de
recuperação da deficiência adotado pelo novo censo que, por um
lado, identificou diversas intensidades das lesões e não mais apenas
as lesões graves e, por outro, permitiu que diferentes restrições de
funcionalidade experimentadas pela velhice fossem consideradas
expressões de deficiência. O resultado foi que essa mudança de
perspectiva sobre a deficiência provocou um intenso debate acerca
das políticas sociais voltadas para os deficientes, uma vez que o
contingente de deficientes é mais expressivo que o da população preta
(6,2 %), outro grupo considerado prioritário para as políticas sociais
no país (BRASIL, 2005a).
A população deficiente brasileira protegida pelas políticas de
assistência compõe o contingente de pessoas muito pobres. E a
principal política social voltada para esse grupo adota como critério
de inclusão, além da comprovação biomédica das incapacidades, a
renda, que somente permite a inclusão dos deficientes muito pobres.
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) é uma transferência
incondicional de renda para idosos ou deficientes extremamente
pobres, realizado no Brasil desde 1993. As transferências são
concedidas a pessoas idosas ou a pessoas com graves restrições de
habilidades cuja renda familiar per capita seja inferior a um quarto de
salário mínimo (R$75,00, março de 2006). O valor da transferência é
equivalente a um salário mínimo mensal (R$300,00, março de 2006).
As transferências são independentes de contribuições prévias para o
sistema de seguridade social e não são condicionadas a qualquer
contrapartida. Todas as pessoas extremamente pobres acima de 65
anos, deficientes ou não, são elegíveis ao benefício.
No caso dos deficientes não-idosos, apenas aqueles extremamente
pobres classificados como possuindo deficiência grave que incapacita
para a vida independente e para o trabalho podem receber o BPC
(BRASIL, 2003). Médico-peritos do BPC realizam testes para avaliar
tanto a situação social quanto a condição de deficiência (BRASIL,
84
Debora Diniz, Flávia Squinca e Marcelo Medeiros
1998). O sistema de transferências prevê reavaliações sistemáticas a
cada dois anos para verificar a persistência dessas condições. Essa
revisão é realizada por assistentes sociais vinculadas às secretarias de
assistência social estaduais ou municipais, assistentes essas que realizam
visitas domiciliares para obter informações sobre o impacto do BPC
na vida dos deficientes. As informações levantadas no processo de
revisão permitem traçar um perfil limitado dos beneficiários do
benefício. Em 2002, durante a revisão dos benefícios concedidos, foi
realizado um estudo por amostragem. A partir dessa amostra foram
investigados os tipos de deficiências que acessaram o BPC. De acordo
com as categorias utilizadas para a amostra, entre as deficiências
estavam: Visual, 5%; Auditiva, 5%; Física, 17%; Deficiência Mental,
30%; Doença Crônica, 10%; Deficiências Múltiplas, 21%; Doença
Mental, 12% (BRASIL, 2002).
O conjunto de critérios biomédicos e de renda para a inclusão em
uma política distributiva da magnitude do BPC parte de uma série de
pressupostos morais sobre o significado da deficiência e do bemestar de uma pessoa com deficiência. Neste artigo, discutiremos a
definição de deficiência que está por trás da política social brasileira,
em especial a tensão entre o discurso biomédico da perícia – que
entende deficiência como lesão grave e incapacitante, mas também
como um tema de responsabilidade individual e familiar – e o projeto
de justiça distributiva que sustenta um programa social que movimenta
US$ 3,4 bilhões, o que corresponde a aproximadamente 50% do
orçamento destinado à assistência social no Brasil (BRASIL, 2005;
MEDEIROS et al., 2006). O artigo discute como o recorte de renda
de um quarto de salário mínimo per capita associado à exigência de
comprovação da renda familiar pode ter implicações para as mulheres
cuidadoras de pessoas deficientes. O objetivo dessa aproximação das
questões de gênero é trazer para o centro do debate político sobre
deficiência o tema do cuidado.
Deficiência, Cuidado e Justica Distributiva
85
DEFICIÊNCIA
Como no caso da saúde, da educação ou até mesmo da pobreza,
há diferentes definições para a deficiência. Regra geral, deficiência
pressupõe a existência de variações de algumas habilidades que sejam
qualificadas como restrições ou lesões. O que inexiste, no entanto, é
um consenso sobre quais variações de habilidades e funcionalidades
caracterizariam deficiências. Há pessoas com lesões que não
experimentam a deficiência, assim como existem pessoas com
expectativa de lesões que se consideram deficientes. Traçar a fronteira
conceitual entre essas diversas expressões da diversidade humana é
um exercício intelectual na fronteira de diferentes saberes, em especial
entre o conhecimento médico e as ciências sociais (DINIZ, 2003). A
variedade de interpretações e experiências em torno do corpo e da
relação deste com o ambiente social perpassa grande parte das
discussões contemporâneas sobre deficiência e justiça social.
E não é por acaso que essa é também uma das questões mais
controversas para a garantia do acesso ao BPC. Uma das saídas para
solucionar tal controvérsia seria listar quais variações de habilidades
deveriam caracterizar-se como deficiência para a identificação de
beneficiários. Esse é um argumento intensamente discutido nos
circuitos de especialistas do BPC, seja entre representantes
governamentais, parlamentares, movimentos sociais e médicos peritos.
Caso fosse possível classificar e qualificar as habilidades, essa seria
uma saída normativa que facilitaria o processo de seleção e inclusão
no benefício, mas que ignoraria a complexidade da relação entre as
habilidades, as funcionalidades e o contexto social em que vive cada
pessoa.
A idéia de deficiência é freqüentemente relacionada a limitações
naquilo que se considera como habilidades básicas para a vida social.
Não é fácil determinar quais são tais habilidades, muito embora grande
parte do debate as relacione à mobilidade, ao uso dos sentidos, à
comunicação, à interação social e à cognição. Outra condição para
caracterizar uma variação de habilidade como deficiência é que esta
86
Debora Diniz, Flávia Squinca e Marcelo Medeiros
se expresse no corpo como um estado permanente ou de longa
duração. Dificilmente pessoas que encontram dificuldades de leitura
porque são analfabetas e não tiveram acesso à escola serão
consideradas deficientes, mas uma pessoa cega, privada de
conhecimento de braile e exposta à escrita gráfica seria considerada
deficiente.
As habilidades para executar diferentes tarefas não são distribuídas
igualmente na população. Se a distribuição de habilidades básicas para
a caracterização da deficiência for vista em um continuum, é possível
reconhecer a existência de desigualdades com respeito à intensidade
das variações de deficiência em uma determinada população. Definir
a variação da habilidade a ser considerada como uma lesão ou como
uma restrição é, fundamentalmente, um julgamento de valor. Isso
não significa que, ao afastar o debate sobre a deficiência de um campo
essencialmente médico-normativo e aproximá-lo de um debate sobre
quais diferenças de habilidades justificariam ações de reparação de
desigualdade, perderemos os critérios objetivos da perícia médica para
a inclusão de uma pessoa no BPC. O fato é que apesar de a maioria
das definições de deficiência basear-se em variações corporais
qualificadas como lesões, os dois conceitos (lesões e deficiência) não
são sinônimos (OLIVER e BARTON, 2002).
Deficiência é resultado de uma interação complexa das pessoas
com a sociedade. Em um ambiente hostil à diversidade corporal, é
possível imaginar uma pessoa com restrições leves de habilidades
que experimente a deficiência de forma severa. A mesma restrição de
habilidade em um ambiente receptivo à diversidade pode não levar à
experiência da deficiência. Essa relação complexa entre corpo,
habilidades e sociedade aponta para o fato de somente ser possível
avaliar adequadamente o nível de deficiência elegível ao BPC se
informações sobre o ambiente forem seriamente incorporadas ao
protocolo de perícia. Não seria equivocado, portanto, considerar
diferentes definições de deficiência para os benefícios sociais. As
definições partiriam das variáveis de habilidades básicas, lesões e
determinantes sociais, mas não pressuporiam um caráter absoluto,
antes uma interação complexa entre elas.
Deficiência, Cuidado e Justica Distributiva
CUIDADO
87
E J U S T I Ç A D I S T R I B U T I VA
O BPC parte de duas perspectivas sobre a deficiência que estão
em contínua tensão. A primeira perspectiva confunde-se com o
chamado “modelo médico da deficiência”, em que lesão e deficiência
entrelaçam-se de uma maneira muito particular para o discurso
biomédico. Parte-se de uma construção discursiva sobre o normal e
se catalogam os corpos deficientes (OLIVER e BARTON, 2002;
DINIZ, 2003). Mas não é qualquer corpo com lesão que ascende à
categoria de corpo deficiente. O esforço descritivo dessa perspectiva
está na catalogação das diferentes lesões que serão consideradas como
deficiência, dada a impossibilidade de definir e descrever um corpo
não-deficiente senão em termos comparativos com uma expectativa
de normalidade. O corpo deficiente é definido caso a caso, mas sempre
amparado em um discurso medicalizante da perícia, que pressupõe
conhecer a variação da norma.
Assim como em outras políticas sociais brasileiras, o acesso ao
benefício não é garantido por um processo de autodeclaração, ou
seja, não basta a pessoa se considerar deficiente para ser elegível à
política. O acesso ao benefício somente é possível por uma avaliação
pericial biomédica que define o corpo deficiente: o deficiente não é
aquele que considera sua “lesão grave ou incapacitante para a vida
independente e o trabalho”, mas sim aquele que o discurso médico
reconhece como tal. É somente após a perícia biomédica que um
corpo com lesões ascende à categoria de corpo deficiente para as
políticas sociais do Estado. E nesse processo de transformação de
um corpo com lesões em um corpo deficiente é que o discurso
biomédico da perícia adquire poder normativo sobre a deficiência. A
soberania discursiva da perícia biomédica, que se pretende um ato
neutro e objetivo de catalogação de corpos, é tão intensa que a perícia
médica é soberana à perícia social.
Para essa catalogação, a perícia biomédica exigida para o acesso ao
BPC adota uma série de critérios e atividades que acreditam traçar a
fronteira entre um corpo deficiente e um corpo não-deficiente. Nos
termos da lei, um corpo deficiente é aquele “incapacitado para a vida
88
Debora Diniz, Flávia Squinca e Marcelo Medeiros
independente e para o trabalho em razão de anomalias ou lesões
irreversíveis de natureza hereditária, congênitas ou adquiridas, que
impeçam o desempenho de atividades de vida diária e do trabalho”
(BRASIL, 1995). Mas há sutilezas discursivas na classificação de qual
lesão será legitimamente considerada uma deficiência. Se, por um
lado, lesões medulares ou retardos mentais são consensualmente
consideradas deficiências para efeitos da lei, por outro, doenças
genéticas de alta prevalência no país, como é o caso da anemia
falciforme, ou a epidemia do HIV/AIDS estão no centro dos debates
periciais (MEDEIROS et. al., 2006). Há peritos que concedem o BPC
para crianças com anemia falciforme por entendê-la como deficiência
para efeitos da lei, muito embora a grande maioria dos peritos recuse
essa classificação. A mesma controvérsia ocorre no caso de pessoas
em estágio avançado de infecção pelo vírus HIV.
Ou seja, não é toda lesão que ascende à categoria de deficiência
para efeitos da concessão do BPC, mesmo se tratando de lesões graves,
congênitas ou incapacitantes. Há, por trás do sistema classificatório
do BPC, uma extensa controvérsia sobre as fronteiras políticas e
biomédicas de representantes de movimentos sociais de doenças
crônicas em não serem classificados como deficientes e de
representantes de movimentos sociais de deficientes em não serem
chamados de doentes. No caso dos movimentos sociais de deficientes,
por exemplo, há uma resistência em classificar doenças crônicas como
deficiências uma vez que os universos simbólicos da doença e da
deficiência são bastante diferentes (WENDELL, 1996). E, regra geral,
os movimentos sociais de deficientes no Brasil são liderados por uma
elite intelectual e econômica não-beneficiária do BPC e para quem
resistir classificar como deficiência a doença crônica é uma meta
política mais importante que alargar o universo de beneficiários.
Abaixo de uma determinada pontuação, a pessoa é considerada
deficiente para a perícia, mas não automaticamente beneficiária do
BPC. A incapacidade para o trabalho e para a vida independente é
determinada por meio de um formulário que mensura as restrições
de funcionalidade física ou mental da pessoa: escolaridade, como
Deficiência, Cuidado e Justica Distributiva
89
surgiu a lesão, se a pessoa está em idade apta ao trabalho ou não são
alguns dos quesitos analisados. A segunda perícia é a de renda: além
de ser deficiente, a família do futuro beneficiário deve atestar extrema
pobreza.
A exigência da comprovação da pobreza familiar – e não apenas
da limitação da autonomia econômica individual ocasionada pela
incapacidade física ou mental para a vida independente e para o
trabalho já atestado pela perícia médica – desloca o benefício do campo
dos direitos individuais e o aproxima de uma política de transferência
de renda familiar, com imediatas conseqüências para as mulheres
adultas, principais cuidadoras de crianças muito dependentes, ainda
hoje principal público-alvo do BPC: 42% dos beneficiários do BPC
são crianças e adolescentes com até 24 anos. Uma hipótese explicativa
para esse fenômeno é que a passagem de uma política de reparação
de desigualdade de renda voltada para o deficiente para uma política
de proteção à família do deficiente se ampare em dois pressupostos
sobre a vida com deficiência bastante difundidos na sociedade
brasileira.
O primeiro pressuposto é que o deficiente em situação de
vulnerabilidade é uma pessoa permanentemente dependente dos
cuidados familiares e que a necessidade dos cuidados empobrece a
família, por isso o cálculo da compensação é familiar e não individual.
Um deficiente não dependente financeiramente de sua família não
seria, portanto, alguém a ser protegido pelo BPC. Este argumento
ignora que a grande maioria dos deficientes inserida no mercado de
trabalho está em piores postos de trabalho e com menores salários
que os não-deficientes com mesmo nível educacional, por exemplo.
Ignora ainda que, apesar de haver política afirmativa de cotas para
emprego nos serviços públicos, instituída na Constituição Federal de
1988 e regulamentada pela Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, os
deficientes beneficiários do BPC ao longo da infância não raro
encontram obstáculos para progredir no sistema educacional e,
portanto, dificilmente são capazes de experimentar a mobilidade social
por meio das cotas de emprego legais. Ou seja, para grande parte dos
90
Debora Diniz, Flávia Squinca e Marcelo Medeiros
beneficiários do BPC, esta é sua única possibilidade de renda estável
ao longo do ciclo de vida.
O segundo pressuposto é que a atenção à deficiência deve ser
dada pela família, e o Estado deve entrar apenas quando a família
não for capaz de suprir as necessidades básicas do deficiente. A tese
de que a deficiência é uma tragédia individual dificulta incluir o tema
da opressão pela deficiência nas negociações sobre políticas de
reparação da desigualdade (OLIVER e BARTON, 2002). O Estado
brasileiro incorporou a transversalidade de gênero e raça em grande
parte das políticas sociais, mas é ainda rara à referência à deficiência.
Muito embora o beneficiário do BPC seja o deficiente, o critério de
renda, ao exigir os rendimentos da família, pressupõe que o Estado
somente deva reconhecer o direito ao benefício no caso de a família
não ser capaz de garantir a sobrevivência do deficiente. Ou seja, não
é suficiente que o deficiente seja uma pessoa incapacitada para a vida
independente e para o trabalho e extremamente dependente dos
cuidados familiares – principais critérios da avaliação pericial –, pois
o recorte de renda não considera apenas a ausência de renda do
deficiente, mas sim a pobreza familiar.
O fato de o deficiente ser pobre não é considerado suficiente para
garantir o acesso ao BPC. A pobreza individual é conseqüência lógica
dos critérios que avaliam as restrições de funcionalidade pela perícia
biomédica, o que acarreta uma sobreposição entre as duas perícias: a
perícia social reforça a perícia biomédica que, por sua vez, apenas
permite a inclusão dos deficientes mais graves. Mas essa sobreposição
entre os dois critérios, se, por um lado, restringe o acesso à política,
por outro desloca o alvo da proteção do deficiente pobre para a família
pobre do deficiente. O resultado é que não é o deficiente pobre e
afastado do mercado de trabalho que preferencialmente a política
protege, mas essencialmente o deficiente dependente dos cuidados
de uma família pobre ou o deficiente que vive isolado da família em
um asilo.
Mas há ainda um efeito inesperado para as mulheres cuidadoras
nessa passagem de uma política de assistência individual para uma
Deficiência, Cuidado e Justica Distributiva
91
política de transferência de renda para famílias: a exigência de um
recorte miserável de renda cria um incentivo para que as cuidadoras,
também pobres, saiam do mercado de trabalho formal para a não
remuneração, de modo a garantir o recorte de renda de R$ 75,00 per
capita para a avaliação pericial, ou permaneçam na informalidade como
modo de omitir rendimentos na avaliação sócio-econômica. O tema
do cuidado é uma das questões centrais ao debate sobre deficiência,
não apenas porque diz respeito a um fenômeno emergente para as
políticas sociais com o envelhecimento populacional, mas porque
provoca o próprio conceito de deficiência que fundamentou a
elaboração da política (KITTAY, 2000).
A combinação de uma estrutura social pouco sensível à deficiência
com um quadro de extrema desigualdade, em que o salário formal ou
informal das cuidadoras é igual ou inferior ao benefício, facilita a
saída das mulheres do mercado de trabalho para o cuidado permanente
dos filhos deficientes. Em um contexto social pouco sensível à inclusão
do deficiente, de pouca valorização do cuidado como um princípio
coletivo de bem-estar e de quase total ausência de escolas ou
instituições preparadas para os deficientes, a exigência do recorte de
renda converte-se em um incentivo pernicioso à saída das mulheres
do mercado de trabalho formal. Basta um cálculo simples para que
as mulheres cuidadoras de crianças deficientes decidam sair do
mercado de trabalho ou manter-se na informalidade a fim de não
perder o benefício, cujo valor, muitas vezes, é igual ou superior ao
resultado de sua permanência no mercado de trabalho.
Mas essa ambigüidade da política acarreta efeitos inesperados nas
mulheres cuidadoras. Por um lado, o benefício é individual, ou seja,
ele somente é concedido para a pessoa pobre e profundamente
incapacitada, de acordo com os critérios periciais. Por outro lado, o
fato de o benefício exigir a comprovação da pobreza familiar e de o
cuidado dos deficientes ser um atributo feminino e doméstico na
sociedade brasileira vulnerabiliza as mulheres cuidadoras, pois muitas
delas acabam por sair do mercado de trabalho formal para não perder
o benefício para a família. Esse cálculo racional de vantagens – um
92
Debora Diniz, Flávia Squinca e Marcelo Medeiros
salário incerto de trabalhos de baixa qualificação versus a certeza da
renda auferida pelo benefício – ignora que, ao optar pela renda do
benefício em detrimento do mercado de trabalho formal, outros
benefícios sociais de médio e longo prazo são deixados de lado, como
é o caso da previdência social. Uma mulher que sai do mercado de
trabalho para garantir o recorte de renda familiar para o benefício
não está protegida pela previdência social, ou seja, se por acaso seu
filho deficiente vier a falecer, ela inexiste para o Estado como uma
contribuinte da previdência.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A compreensão de que a deficiência é um importante fator de
desigualdade é ainda um desafio para as políticas sociais, em especial
de assistência, na sociedade brasileira. O BPC é uma das políticas
mais importantes de transferência de renda no país e em toda América
Latina. É uma política de vanguarda ao reconhecer que o tema do
bem-estar para os deficientes é uma questão de justiça social e de
políticas distributivas de renda. O reconhecimento da política como
um benefício individual exigirá uma revisão dos critérios periciais de
forma a: 1.Permitir a inclusão de uma maior variedade de expressões
e intensidades da deficiência e não apenas as deficiências
extremamente graves. A perícia biomédica deve antes mensurar o
impacto das lesões ou expectativas de lesões no bem-estar individual
do que mesmo a gravidade da lesão; 2. Enfrentar a deficiência como
um fenômeno político e sociológico, o que significa uma redefinição
do conceito de deficiência à luz de outras variáveis que não apenas os
critérios biomédicos. Fatores como discriminação, preconceito e
exclusão são variáveis a serem consideradas pela política; 3.
Reconhecer o BPC como uma política de assistência para transferência
de renda do Estado para o indivíduo, o que significa que o recorte de
pobreza familiar ou será extinto ou suficientemente alto para permitir
apenas coibir abusos de requerimento por famílias ricas e 4. Retirado
o recorte de renda familiar, compreender o BPC essencialmente como
Deficiência, Cuidado e Justica Distributiva
93
uma política de assistência à criança com qualquer restrição ou
expectativa de restrição de funcionalidade, de forma a se converter
em um mecanismo de incentivo à mobilidade social do deficiente ao
longo da vida.
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Benefício de Prestação Continuada:
ferramenta de inclusão ou de exclusão
social?
Franck Janes Paula Lira
INTRODUÇÃO
A promulgação da Constituição Federal (CF) em 1988 desencadeou
um processo de luta pelo desenvolvimento inclusivo, principalmente
no que diz respeito aos direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência
(PPD), pressionando e favorecendo a criação de leis e decretos que
regulamentassem instrumentos legais de acessibilidade e assistência
social. Por outro lado, nem todas as leis oferecem ampla garantia de
igualdade social e de acessibilidade, como a Lei Orgânica da Assistência
Social (LOAS), que na opinião de alguns juristas, como o Juiz Federal
Daniel Machado da Rocha – RS (Ação Civil Pública, Processo nº
2003.71.07.009187-5./Sentença n. 156, de 29 abr. 2004), fere alguns
princípios e direitos garantidos constitucionalmente.
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) é um direito
constitucional regulamentado pela LOAS e pelo Decreto nº 1.744/
1995, destinado a idosos com 65 anos ou mais e a PPD incapacitadas
96
Franck Janes Paula Lira
para a vida independente e para o trabalho, com renda familiar per
capita inferior a ¼ do salário mínimo. Implantado somente em janeiro
de 1996, o BPC é concebido na esfera da assistência social, não
exigindo contribuição para a Previdência Social, sendo integralmente
financiado pelo Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS). Está
sob a coordenação do Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS), cabendo ao Instituto Nacional do Seguro
Social (INSS) a sua operacionalização através da atividade médica
pericial.
As divergências quanto ao conceito de incapacidade para a vida
independente e para o trabalho têm trazido muitos conflitos nas
avaliações de PPD pela Perícia Médica do INSS, uma vez que os
exames médico-periciais devem enquadrar as pessoas com deficiências
dentro de um acróstico (AVALIEMOS), com critérios que definem
graus de deficiência física e mental, além de outros que caracterizam
o grau de vulnerabilidade social, com acentuado caráter de
subjetividade. Outra grande polêmica tem sido a discussão quanto
ao teto de ¼ do salário mínimo como renda per capita, condição atrelada
ao deferimento do BPC. O dimensionamento da necessidade de quem
não possui condições mínimas de sobrevivência não é algo fácil de se
fazer. As Orientações Internas (OI) INSS/DIRBEN nº 58/2001 (em
seu Anexo III) e nº 81/2003 (em seu Anexo X) estabelecem
parâmetros para a avaliação de vulnerabilidade social também
questionados, na medida em que a gravidade ou associação de
deficiências envolve ou requer maior recurso financeiro.
A condição de pobreza extrema de grande parte da população
brasileira leva a uma grande demanda de requerentes do BPC nas
Agências da Previdência Social (APS). Um considerável número de
idosos e PPD ainda está à margem desse processo por falta de acesso
à informação, sem sequer chegar a se habilitar para a realização da
perícia médica e/ou avaliação social. Uma grande parcela dessas
pessoas que buscam o benefício não atende aos critérios de
enquadramento da LOAS, mesmo com renda familiar per capita abaixo
de ¼ do salário mínimo.
Benefício de Prestação Continuada
97
Para o pagamento desses benefícios em 2004, foram utilizados
recursos da ordem R$ 5.900.000.000,00 (5 bilhões e 900 milhões de
reais). A aprovação do Projeto de Lei nº 3.055/1997, pela Comissão
de Constituição e Justiça da Câmara, no mês de abril/2005, causou
perplexidade a alguns segmentos do governo. Esse PL, no seu formato
original, proveniente do Senado, amplia o direito ao BPC a idosos
com 65 anos ou mais, a portadores de doenças crônicas graves e a
PPD que vivam em família com renda per capita mensal de um salário
mínimo, com estimativa de incorporação de aproximadamente 6
milhões de pessoas, com um custo total/ano em torno de 26 bilhões
de reais.
Neste artigo, diante da relevância social e da magnitude dos recursos
que envolvem a concessão dos BPC, optou-se por traçar um perfil
das concessões desses benefícios, utilizando-se o método descritivo,
após estudo da evolução dos conceitos de deficiência e de incapacidade
para vida independente, análise dos bancos de dados estatísticos dessas
concessões, junto ao Ministério da Previdência Social (MPS/
DATAPREV), MDS e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), bem como o perfil das patologias mais comumente
envolvidas. Por meio de uma análise crítica desses dados e dos critérios
de inclusão de PPD contidos no Protocolo de Avaliação MédicoPericial do INSS, à luz dos princípios bioéticos, como o da justiça e
da beneficência, sob a ótica social, procurou-se obter resposta para a
seguinte pergunta: em que medida os critérios para concessão do
BPC ferem o princípio de justiça social, funcionando mais como
instrumento de exclusão do que inclusão social?
ASPECTOS
HISTÓRICOS
E
CONCEITOS
DE
DEFICIÊNCIA E ACESSIBILIDADE
Sabe-se que pelo menos 10% de qualquer sociedade apresenta
algum tipo de deficiência, congênita ou adquirida, e que cerca de uma
em cada quatro famílias tem uma PPD (SASSAKI, 2004). Até o início
da década de 60, nos Estados Unidos o tratamento dispensado aos
98
Franck Janes Paula Lira
deficientes era o de caridade. Tinham uma postura passiva e limitada
às decisões de especialistas e de familiares. A partir de meados dos
anos 60, esse cenário começou a mudar devido à iniciativa de um
grupo de sete pessoas portadora de deficiências graves, como a
tetraplegia, liderados por Edward V. Roberts (SASSAKI, 2004). Ed
Roberts, como era conhecido, chegou a ser Diretor do Departamento
de Reabilitação do Estado da Califórnia, catorze anos depois de ser
considerado inelegível para trabalhar. Foi o grande responsável pela
disseminação da idéia de vida Independente, levada a todo o mundo
pelos Centros de Vida Independente (CVI), iniciado pelo movimento
americano de vida independente, em 1972 (SASSAKI, 2004).
A Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, aprovada pela
Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em 9 de
dezembro de 1975, define que pessoa deficiente refere-se a “qualquer
pessoa incapaz de assumir por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de
uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita
ou não, em suas capacidades físicas ou mentais” (BRASÍLIA, 2005). Em
1981, com o Ano Internacional das Pessoas Deficientes e com o
Programa Mundial de Ação Relativo à PPD, adotado pela Assembléia
Geral das Nações Unidas, em 3 de dezembro de 1982, definiu-se,
pela primeira vez, a incapacidade (handicap) como uma função da
relação entre pessoas com deficiência e seu ambiente. Até então, os
termos deficiência e incapacidade expressavam apenas a visão médica,
sem considerar os aspectos e limitações do entorno social, a ignorância,
superstição, negligência e o medo, dentre outros fatores sociais.
Passou-se a ter mais clareza sobre esses termos, sendo a deficiência
(disability) vista como limitação funcional possível de ocorrer em
qualquer pessoa, por impedimento físico, intelectual ou sensorial,
condições médicas ou doença mental. A perda ou a anormalidade de
uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica,
temporária ou permanente, representa a exteriorização de um estado
patológico, refletindo um distúrbio orgânico, uma perturbação de
um órgão ou função. Já a incapacidade (handicap) passou a ser entendida
como perda ou limitação de oportunidades para a participação na
Benefício de Prestação Continuada
99
vida social, em nível de igualdade com outras pessoas. É uma restrição
resultante de uma deficiência, da habilidade para desempenhar uma
atividade considerada normal para o ser humano.
Acrescenta-se aqui o termo desvantagem, que é o prejuízo para o
indivíduo, resultante de uma deficiência ou incapacidade, que limita
ou impede o desempenho de atividades de acordo como a idade,
sexo, fatores sociais e culturais. Representa a socialização da deficiência
e relaciona-se às dificuldades nas habilidades de sobrevivência. Com
o envelhecimento acentuado e acelerado da população, o número de
idosos em desvantagem, com limitações físicas e psíquicas
importantes, ficou mais evidente, promovendo uma mudança de
paradigmas dos modelos tradicionais e o entendimento da deficiência
sob a ótica da responsabilidade social (MEDEIROS e DINIZ, 2004).
É no conceito de desvantagem que se fundamenta o modelo social
da deficiência, estando na sociedade os problemas causadores de
incapacidade, impedindo o desempenho de papéis sociais em virtude
de ambientes restritivos, políticas discriminatórias e desinformação
sobre necessidades especiais e sobre os direitos das pessoas que têm
essas necessidades. Numa sociedade produtiva, a capacidade para a
vida independente significa o exercício da cidadania de forma plena,
de tal modo que se possa decidir quando, como, para que e para
quem pedir ajuda.
Foi nesse sentido que a Assembléia Geral das Nações Unidas, em
sua 48ª sessão, realizada em 20 de dezembro de 1993, adotou as
normas sobre equiparação de oportunidades para pessoas com
deficiência. Dentre as 22 normas ali definidas, destacam-se algumas
de caráter mais emergencial e programático: reabilitação,
acessibilidade, emprego, manutenção de renda, seguro social,
implementação de legislação e políticas econômicas específicas. Criar
bases legais para a plena participação e reconhecimento de igualdade
para PPD exige a incorporação de direitos e obrigações dessas pessoas
na legislação nacional, geral e específica, bem como a definição da
responsabilidade financeira por programas e medidas que criem
oportunidades iguais.
100
Franck Janes Paula Lira
A efetiva implementação de políticas para o atendimento a PPD,
no Brasil, teve início com a fundação da primeira escola para cegos,
na cidade do Rio de Janeiro, por D. Pedro II, em 12 de setembro de
1854, com o nome de Imperial Instituto dos Meninos Cegos,
conhecido atualmente como Instituto Benjamim Constant. Em 1946,
com a instalação da Imprensa Braile na Fundação Para o Livro do
Cego, atualmente Fundação Dorina Nowill Para Cegos, e o aumento
da impressão de livros em braile em 1950, verifica-se o início de
políticas que tiram o deficiente da incapacidade social. Em 1986, criouse a Coordenadoria Nacional Para Integração da PPD (CORDE),
que tem como atribuições, dentre outras, elaborar, coordenar,
acompanhar e orientar a execução de programas e projetos a seu
cargo (SILVA, 2005).
Em 1988, a partir da promulgação da CF, um grande leque de
instrumentos legais surgiu para dar garantia aos direitos das PPD e
implementar a acessibilidade, destacando-se alguns artigos como:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios:
II – cuidar da saúde e assistência pública , da proteção e da garantia das
Pessoas Portadoras de Deficiências.
X – combater as causas de pobreza e os fatores de marginalização
promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.
Art. 203.
I – proteção à família, maternidade, à infância, à adolescência e à velhice.
IV – habilitação e reabilitação das Pessoas Portadoras de Deficiência e a
promoção de sua integração à vida comunitária.
V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à Pessoa
Portadora de Deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios
de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família
conforme dispuser a Lei.
Em 1989, um importante passo foi dado com a Lei nº 7.853, de
24 de outubro de 1989, que
dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiências, na sua
integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da
Pessoa Portadora de Deficiência – CORDE, institui a tutela jurisdicional
de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do
Ministério Público, define normas e dá outras providências.
Benefício de Prestação Continuada
101
A partir de 7 de dezembro de 1993, com a LOAS (Lei nº 8.742/
1993), que “dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras
providências”, passou-se a estabelecer critérios para a concessão de
benefícios, acesso a serviços, programas e projetos de assistência social,
entre os quais destacam-se:
Art. 20. O Benefício de Prestação Continuada é a garantia de um salário
mínimo mensal à Pessoa Portadora de Deficiência e ao idoso com 65 anos
ou mais e que comprove não possuir meios de prover sua própria
manutenção e nem de tê-la provida por sua família.
§ 2º. Para efeito de concessão deste benefício, a Pessoa Portadora de
Deficiência é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho.
§ 3º. Considera-se incapaz de prover a manutenção da Pessoa Portadora de
Deficiência ou idoso a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼
do salário mínimo.
§ 6º A deficiência será comprovada através de avaliação e laudo expedido
por serviço que conte com equipe multiprofissional do Sistema Único de
Saúde (SUS) ou do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), credenciado
para este fim pelo Conselho Municipal de Assistência Social.
Essa lei somente foi regulamentada em 8 de dezembro de 1995,
pelo Decreto nº 1.744, que define como PPD
aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho, em razão de
anomalias ou lesões irreversíveis de natureza hereditária, congênita ou adquirida,
que impeçam o desempenho das atividades da vida diária e do trabalho; e como
família incapacitada de prover a manutenção da PPD ou idosa, aquela cuja
renda mensal de seus integrantes, dividida pelo número destes, seja inferior ao
valor do previsto no § 3º do Art. 20 da Lei Nº 8.742/1993.
Diante da subjetividade da caracterização da incapacidade para o
trabalho e para a vida independente das PPD, bem como do grande
número de concessões, logo após a implantação do benefício
assistencial, o INSS estabeleceu um instrumento de avaliação e
enquadramento (acróstico AVALIEMOS) das pessoas deficientes, ao
definir parâmetros que restringiam as concessões, através da Resolução
INSS/PR Nº 435, de 18 de março de 1997. Esse instrumento foi
incorporado ao Manual de Procedimentos adotado para a
operacionalização do BPC, devido aos idosos e PPD, aprovado pela
102
Franck Janes Paula Lira
Ordem de Serviço INSS/DSS nº 577, de 5 de agosto de 1997, em
seu anexo III. Desde então, o que vem sendo observado, nos processos
de concessões, é a utilização desse acróstico como critério exclusivo
e suficiente para a constatação da incapacidade e acesso do deficiente
ao benefício.
A avaliação dos aspectos sociais da incapacidade, que deveria ser
feita preferencialmente pela esfera de governo municipal, pelas
Secretarias Municipais de Assistência Social (SMAS), ficou restrita a
poucos itens do acróstico, quando o médico perito avalia a aptidão
ou não para o trabalho, grau de instrução e necessidade de
acompanhamento de terceiros. Os demais parâmetros referem-se à
incapacidade física/funcional, dependente de exame médico-pericial.
Nem mesmo a pontuação do risco social, a ser determinada pela
avaliação do Serviço Social, vem sendo realizada conforme o Acróstico
Social, nos processos concessórios.
Mesmo dentro do modelo médico, com ênfase na deficiência (perda
ou anormalidade de estrutura ou função de órgãos ou segmentos do
corpo), na incapacidade (restrição resultante de uma deficiência, da
habilidade para desempenho de atividades normais para o ser humano)
e na desvantagem (prejuízo para o indivíduo, resultante de uma
deficiência ou incapacidade), o acesso ao BPC pode ser ampliado
com uma maior abrangência do conceito de incapacidade e do leque
de patologias no instrumento de avaliação, considerando-se o fato de
que muitas doenças crônicas e degenerativas, em fase avançada,
também levam a acentuadas restrições físicas, mentais e sociais. Citamse como exemplo a Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica – DPOC
(dependente de oxigênio), Artrite Reumatóide (avançada), Doença
de Parkinson, Doença de Alzheimer, Hanseníase (com seqüelas
osteoarticulares graves), Síndrome da Imunodeficiência Adquirida e
neoplasias em fases avançadas, terminais, dentre outras.
A partir de agosto de 1997, o INSS passou a editar,
sistematicamente, OI que estabeleciam procedimentos a serem
adotados pela área de benefícios nos processos de revisão, na
concessão e manutenção do direito ao BPC. Com a aprovação do
Roteiro de Procedimentos estabelecidos nessas OI, disciplinados em
Benefício de Prestação Continuada
103
seus anexos, muitos requerentes contemplados nos primeiros anos,
após a implantação do BPC, tiveram seus benefícios cessados em
processos de revisão médica pericial, ao mesmo tempo que outros
passaram a ter suas solicitações de benefícios indeferidas, pois muitas
PPD, embora incapazes para o trabalho, não eram consideradas
incapazes para a vida independente, segundo os parâmetros do
acróstico AVALIEMOS.
Reconhecendo a vulnerabilidade social de grande parcela dos
requerentes, o Ministério Público Federal (MPF) tem-se manifestado
em defesa desses segmentos da população de elevado risco social,
determinando que o INSS não proceda à análise da incapacidade
para a vida independente e para o trabalho em crianças e adolescentes,
já que é presumida em razão da tenra idade, bastando apenas que se
verifique se a deficiência se encaixa nas definições já existentes. Outra
tentativa de intervenção do MPF deu-se através do deferimento da
tutela antecipada nos autos da Ação Civil Pública nº
2002.61.00.024.335-6 (23a Vara Federal da Subseção Judiciária de São
Paulo-SP), que determinou ao INSS afastar a exigência da incapacidade
do beneficiário para a vida independente e para o trabalho, bem como
pagar o valor previsto de um salário mínimo, a título do benefício
previsto no Art. 203 (inciso V), da CF, a todas as PPD e idosos, em
todo o território nacional, que requeressem e demonstrassem não
dispor de meios de ter suprido, por si ou por seus familiares, o valor
mensal de um salário mínimo, observando os critérios de verificação
de ausência de meios de subsistência e de cálculo de renda per capita.
A Orientação Interna Conjunta (OIC)/INSS nº 92, de 9 de
setembro de 2004, fez cumprir essa determinação, gerando um grande
fluxo de requerentes do benefício nas APS. Com sucesso em sua
ação recursal, o INSS suspendeu a OI n º 92, em 29 de setembro de
2004, fazendo valer a prática de avaliação anterior, através do acróstico
AVALIEMOS. Já no Rio Grande do Sul, em 29 de abril de 2004, o
juiz da 1ª Vara Federal de Caxias do Sul, através da Ação Civil Pública
nº 2003.71.07.009.187-5, reconhecendo a inconstitucionalidade do
§ 2º do artigo 20 da Lei nº 8.742/1993, intimou o INSS a cumprir
mandado, deixando de exigir a comprovação da incapacidade do
104
Franck Janes Paula Lira
beneficiário para a vida independente, quando não fosse capaz de
trabalhar, desde que fosse demonstrada a deficiência física, nos termos
do artigo 4º do Decreto nº 3.298/1999, e que comprovasse não ter
meios de prover, por si e por seus familiares, a sua subsistência.
De acordo com a Sentença nº 156 /2004 dessa Ação Civil Pública,
o direito à assistência social tem sua fundamentalidade acolhida, de maneira
irrefutável, pela Constituição Federal no seu artigo 6º, sendo que a
concretização legislativa e administrativa do inciso V do artigo 203 da
CF/88, imposta pelo § 2º do artigo 20 da LOAS e depois agravada pela
Resolução Nº 435/1997, destoa do espírito da Lei Fundamental.
Ainda de acordo com a mesma sentença, deve-se considerar a
natureza e a evolução histórica do benefício assistencial, pois a
exigência da incapacidade laborativa dos assistidos, também para a
vida independente, contraria a lógica das prestações previdenciárias
ou assistenciais, pois, para a prestação assistencial devida aos idosos,
não há sequer a comprovação da efetiva incapacidade para o trabalho,
exigida para os portadores de deficiência.
Diante de toda essa discussão e da necessidade de qualificação da
gestão do BPC, realizou-se um amplo debate no Encontro Nacional
Sobre Gestão do Benefício Assistencial de Prestação Continuada,
nos dias 7 e 8 de julho de 2004, em Brasília – DF, sendo elaborado
um relatório final e um Protocolo de Intenções assinado pelo MDS,
por meio da Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS) e o
MPS, por meio do INSS. Nele, inclui-se a apresentação do novo
instrumento de avaliação médico-pericial, com o objetivo de ampliar
os critérios de avaliação, acrescentando a avaliação social nos atos da
concessão e revisão do BPC-LOAS, bem como a operacionalização
do benefício de forma mais rápida, à população de direito, ampliando
os efeitos positivos desse programa social de transferência de renda.
Outro ponto fundamental do relatório final é a proposta de divulgação
nacional do benefício, promovendo, por meio de campanhas
educativas, a socialização das informações sobre BPC e esclarecendo
a população sobre seus direitos.
Quanto à realização da avaliação médico-pericial da incapacidade
para a vida independente e para o trabalho das PPD, o relatório
recomenda o embasamento
Benefício de Prestação Continuada
105
na história clínica, no exame físico, no diagnóstico e prognóstico da
patologia, em pareceres especializados e na avaliação social emitida por
assistente social, quando houver. Na ausência de avaliação social o
médico perito deverá levar em conta as informações prestadas pelo
requerente sobre suas condições sociais, pessoas do entorno onde vive,
nível de pobreza, vulnerabilidade e o impacto destas situações no
agravamento da condição de incapacidade e no prejuízo dos direitos
sociais do requerente, fundamentando por escrito a decisão final sobre
o reconhecimento do direito.
Essa nova proposta para a avaliação médico-pericial e social
aproxima do modelo social a idéia de deficiência, de incapacidade e
desvantagem, com conceitos focados nos ambientes e barreiras
incapacitantes da sociedade e não na lesão ou pessoa deficiente, com
ênfase nos direitos humanos e na equiparação de oportunidades. O
Programa Nacional de Acessibilidade, promovido pela Secretaria
Especial dos Direitos Humanos e CORDE, ganha força com a
assinatura do decreto de regulamentação das leis de acessibilidade,
Decreto nº 5.296, de 2 de dezembro de 2004.
Medidas como essa, de acessibilidade programática, possibilitam
a redução da vulnerabilidade social, demolindo algumas barreiras
invisíveis embutidas em políticas públicas (leis, decretos, portarias,
resoluções, etc.), em regulamentos institucionais e em normas de um
modo geral.
PERFIL
DA CONCESSÃO DO
BPC
E REALIDADE
BRASILEIRA
Conforme foi evidenciado nos dados dos Censos Demográficos
de 1991 e 2000, a população de idosos no Brasil, com 65 anos ou
mais, cresceu significativamente neste intervalo, com um aumento de
44% nos registros para o sexo feminino e 36% para o sexo masculino,
sendo registrado um aumento de 40% para a população geral nessa
faixa etária.
Nesse mesmo período, o número de registros de famílias residentes
em domicílios particulares, no Brasil, aumentou em 28,69%, o número
106
Franck Janes Paula Lira
de registros de famílias com rendimento médio nominal mensal de até 1
salário mínimo aumentou em 1,94 vez, e o número de registros de famílias
com rendimento nominal mensal per capita de até ¼ de salário mínimo
aumentou em 10,05 vezes.
Com relação ao número de registros para PPD, verificou-se que, de
acordo com as categorias de deficiências do Censo Demográfico de 1991,
apenas 1,14% dos brasileiros eram classificados como deficientes, sendo
a categoria de deficiência mental (0,45%) a mais expressiva naquele
momento (Gráfico 1).
Gráfico 1: População residente*, por grupo de deficiência, no Brasil,
em 1991.
Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 1991.
* População residente no Brasil: 146.815.795
Com as redefinições das categorias de deficiências implementadas
no Censo Demográfico de 2000, revelou-se que 14,45% da população
brasileira apresentava pelo menos uma das deficiências listadas, sendo
a deficiência visual a mais representativa, com 9,76% dos brasileiros,
passando a deficiência mental para o quarto lugar no número de
registros, com 1,68% (Gráfico 2). Constatou-se um aumento
considerável no número de registros de PPD, sendo o aumento para
deficiência visual de 97,6 vezes e para deficiência mental de 3,7 vezes,
por exemplo. Outra categoria importante de deficiência (tetraplegia,
Benefício de Prestação Continuada
107
hemiplegia e paraplegia), teve um aumento de 0,31% para 0,56%,
quase duas vezes, entre o ano de 1991 e 2000.
Gráfico 2: Percentual de deficientes, segundo o grupo de
deficiência, no Brasil, em 2000*.
Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2000.
*População Brasil: 169.799.170
Analisando-se o cenário de concessões de BPC para as PPD (B
87), desde a sua implementação, em 1996, até 2003, segundo os dados
do INSS, verificou-se que no Brasil as concessões diminuíram
significativamente ao longo dos anos, com um pico de aumento atípico
em 2002. Com relação às concessões do BPC para os idosos com 65
anos ou mais (B 88), constatou-se uma curva de aumento mais
irregular nas concessões, com grande pico de aumento em 1998 e
2002, reduzindo-se drasticamente o número de concessões nos demais
anos desse intervalo (Gráfico 3).
108
Franck Janes Paula Lira
Gráfico 3: Benefícios de Prestação Continuada concedidos no
Brasil, de 1996 a 2003.
Fonte: INSS / MPAS.
Diante do aumento significativo do número de famílias pobres,
do número de idosos com 65 anos e mais, bem como dos registros
de PPD, de 1991 a 2000, como explicar a drástica redução na concessão
de BPC para PPD e o modesto aumento na concessão desse benefício
para os idosos, considerando-se a proporção de crescimento
populacional nessa faixa etária? Observa-se uma coincidência do início
dessa redução com o período em que foram implementados novos
instrumentos de avaliação para concessão, manutenção e revisão
desses benefícios.
Analisando-se a distribuição do número de deficientes por estado
da Federação, verificou-se que, dentre os 10 estados com maiores
percentuais de PPD, 7 eram da região nordeste brasileira, encabeçados
pelo Rio Grande do Norte, Paraíba e Piauí, com 19,47%, 18,96% e
17,90% de pessoas deficientes, respectivamente (Gráfico 4).
Benefício de Prestação Continuada
109
Gráfico 4: Estados Brasileiros com os maiores percentuais de PPD
em 2000.
Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2000.
Ainda com relação ao Piauí, tido como estado periférico, observouse que das oito espécies de benefícios por incapacidade concedidos
pelo INSS, de 1994 a 2004, o BPC ocupava o segundo lugar em
número de concessões (31.231), perdendo apenas para o auxílio
doença previdenciário (96.000), mostrando-se como um importante
instrumento de distribuição de renda. Considerando-se os dados
referentes ao número de concessões para as doze patologias mais
frequentemete registradas pela Classificação Internacional de Doenças
da Organização Mundial da Saúde (CID/OMS), nesse caso, referente
à CID 10, no estado do Piauí, verificou-se que, de um total de 7.305
concessões de BPC, 72% (5.250) foram concedidas para patologias
neuropsiquiátricas (CID F 71, F 72, F 73, F 20 e G 80), destacandose o retardo mental, com 47% desse total (Gráfico 5).
110
Franck Janes Paula Lira
Gráfico 5: Patologias mais frequentes, pela CID 10, na concessão
de benefícios para PPD, no Estado do Piaui, de 1994 a 2004.
Fonte: Cadastro Resumido de Benefícios – DATAPREV – ESPIP
* Total de benéficos para PPD no Estado do Piauí, de 1994 a 2004: 31.231
Com relação aos recursos gastos com os BPC, procedeu-se a análise
de tendências para o ano corrente e mostrou-se um panorama dos
recursos gastos ao longo dos anos, desde a implementaçãodo BPC.
Obser va-se que de janeiro a abril de 2005 foram gastos
R$2.197.288.124, aproximadamente a metade do que foi gasto durante
o ano de 2004, isto é, R$5.814.283.018. Mantendo-se a média dos
rescursos gastos nos quatro primeiros meses de 2005 (R$549.322.031/
mês), poderíamos chegar, ao final de 2005, com gastos em torno de
R$6.591.864.572.
Dados registrados pelo MDS revelam que de 1996 a 2004 foram
gastos com concessões de BPC um total de R$22.080.431.823, sendo
R$14.237.717.427 destinados a PPD e R$7.842.714.396 destinados a
idosos.
Benefício de Prestação Continuada
111
CONCLUSÃO
Mostrou-se, fundamentado em princípios constitucionais e da
bioética social, que se faz necessária uma redefinição dos critérios de
conceção do BPC, uma vez que se trata de uma questão lógica e
matemática diante da realidade dos dados demográficos, dos dados
institucionais (MPS e MDS) e dos indicadores sócio-econômicos do
nosso país. Sabendo-se que na região nordeste, por exemplo,
concentram-se os estados mais periféricos e registram-se os piores
índices de desenvolvimento humano, com grande número de famílias
chefiadas por mulheres, que não tiveram assistência pré-natal nem
acompanhamento de trabalho de parto adequado, além de serem
estados com a maior proporção de PPD, torna-se imprescindível uma
reflexão a partir do ponto de vista da bioética social e feminista,
trazendo para o foco da discussão a vulnerabilidade de alguns
segmentos da população, com vista à implementação de políticas
públicas de intervenção mais justas no âmbito da Previdência e
Assistência Social.
Os dados sumariamente apresentados mostraram que o princípio
de justiça social não vem sendo considerado no processo de concessão
do BPC, tanto pela não observância de princípios constitucionais,
como pela não observância de princípios técnicos que são utilizados
para a avaliação de um grupo de patologias (deficiências) e não
aplicados para outros grupos (doenças crônicas/degenerativas), que
podem levar igualmente à incapacidade para a vida independente e
para o trabalho.
Considerando-se que o valor projetado para gastos com BPC em
2005 foi de cerca de 9 bilhões de reais, com os atuais critérios do
processo de concessão, bem como a possibilidade de se chegar a 26
bilhões de reias/ano, elevando-se apenas o parâmetro renda mínima
para famílias com renda mensal per capita de um salário mínimo,
percebe-se que alguns setores da administração pública e alguns
parlamentares não se manifestam para garantir os princípios
constitucionais aquí discutidos.
112
Franck Janes Paula Lira
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado, 1988.
BRASIL. Decreto nº 1.744, de 5 de dezembro de 1995. Regulamenta o Benefício
de Prestação Continuada devido à Pessoa Portadora de Deficiência e ao idoso. Diário
Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 6 dez.1995.
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114
Perícia médica em gastro-hepatologia para
a concessão de benefícios previdenciários
Thelma Maria do Nascimento
INTRODUÇÃO
A atividade médico-pericial previdenciária tem como objetivo
essencial a elaboração de parecer técnico conclusivo na avaliação da
incapacidade laborativa, parecer embasado em lei, além da análise do
requerimento de benefícios previdenciários. A emissão do parecer
exige o conhecimento das normas técnicas, dos atos normativos e da
legislação previdenciária referentes à concessão dos benefícios. A
incapacidade laborativa é amplamente aceita como sendo a situação
da pessoa que, ao ser submetida ao exame pericial, demonstra
impossibilidade de desempenhar funções em razão de alteração
morfopsicofisiológica decorrente de doença ou de acidente
(NASCENTES, 2004).
A inexistência de norma técnica para orientar a realização de perícia
médica e avaliação de incapacidade nas especialidades de
Perícia médica em gastro-hepatologia para a concessão de benefícios previdenciários
115
Gastroenterologia e Hepatologia, norma técnica que certamente seria
o documento norteador para o desempenho do médico perito, a
exemplo do que ocorre em algumas áreas biomédicas, pode ser
considerada como justificativa para as dificuldades encontradas no
momento de concluir pela concessão ou indeferimento do beneficio
requerido. Nesse sentido, analisar o quadro da concessão dos
benefícios à população piauiense portadora de enfermidades gastrohepatológicas no período de 1999 a 2003 pode ser um caminho para
a elaboração de ferramentas institucionais que normatizem a atividade
pericial.
Esta análise inicia com discussão a respeito da relação entre o
perito-médico e a pessoa a ser periciada. Não é permitido escolher
previamente o profissional a quem se deve conceder a guarda da
privacidade e da confidencialidade das informações obtidas durante
a perícia. Nesta atividade de modo geral não se considera o direito de
escolha da pessoa a ser ouvida como é vivenciado na relação entre
paciente e médico assistente.
O atendimento pericial permite identificar duas questões. A
primeira delas, já referida, é a impossibilidade de a pessoa a ser
submetida à perícia médica não ter o direito de deliberar sobre a
escolha do perito, e a segunda diz respeito a uma das questões centrais
da ética aplicada aos serviços de assistência à saúde – o estado de
vulnerabilidade, experiência da maioria dos indivíduos que procuram
o serviço previdenciário. Além da vulnerabilidade intrínseca à
existência humana, algumas pessoas tornam-se vulneráveis pela
pobreza, falta de escolaridade e enfermidade. Vale ressaltar que essas
peculiaridades do atendimento prestado à pessoa a ser periciada
podem reforçar a situação de vulnerabilidade social na qual se
encontram os requerentes dos benefícios previdenciários.
A VA L I A Ç Ã O
DA I N C A PAC I DA D E L A B O R AT I VA
Para fins previdenciários, entende-se a incapacidade laborativa ou
incapacidade para o trabalho como a impossibilidade de desempenhar
116
Thelma Maria do Nascimento
funções específicas de uma atividade ou ocupação para as quais a
pessoa estava habilitada e em exercício. É importante mencionar que
a existência de doenças não significa incapacidade. Pessoas portadoras
de enfermidades bem definidas (diabetes, hipertensão arterial, hepatite
C) ou lesões como, por exemplo, a ausência da visão ou de um
membro, podem ser consideradas aptas para o trabalho. Na maioria
das situações, a previdência identifica o trabalhador como incapacitado
quando este, ao desempenhar a sua função, não consegue atingir a
média de rendimento alcançada por pessoas que pertencem à categoria
do trabalhador em avaliação e que trabalham em ambiente semelhante.
Após a anamnese e o exame médico-pericial, é possível graduar a
ausência da capacidade laborativa em parcial, quando permite o
desempenho da atividade sem risco de vida ou agravamento, e total,
diante da impossibilidade de permanecer no ambiente de trabalho. O
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) classifica a incapacidade
considerando a(s) profissão(ões) e denomina de omniprofissional a
condição na qual a pessoa é considerada inapta para desenvolver toda
e qualquer atividade laborativa, conceito essencialmente teórico
porque se refere a uma constatação não do indivíduo que sofre ou
supostamente sofre a ausência da capacidade laborativa, mas do
profissional que o pericia (MARQUES, 2005).
PROTEÇÃO
SOCIAL
E
BENEFÍCIOS
PREVIDENCIÁRIOS
A proteção estatal justifica a sua existência por meio de políticas
públicas coerentes com as necessidades da população. A Previdência
e a Assistência Social têm responsabilidades pela proteção de uma
grande parcela da população concedendo benefícios ou prestando
serviços, por exemplo, o de reabilitação profissional. No âmbito da
política social, os benefícios deveriam ser considerados instrumentos
de proteção social e justiça, ambas aceitas como exercício de
imparcialidade favorecendo desse modo a população.
Perícia médica em gastro-hepatologia para a concessão de benefícios previdenciários
117
A discussão sobre a alocação de recursos na prestação de serviços
públicos em saúde considera que, em uma sociedade moralmente
pluralista, estabelecer o princípio da justiça significa reconhecer dois
princípios comumente presentes no debate sobre recursos públicos:
o princípio da igualdade e o da eqüidade. “Ao contrário do que possa
parecer à primeira vista, não se trata de distinguir direitos entre
indivíduos sob a perspectiva de ambos os princípios, indivíduos têm
igualdade de direitos” (MEDEIROS, 1999, p. 2). Contudo, em uma
sociedade na qual as necessidades dos indivíduos diferem entre si,
advoga-se que o atendimento dos direitos individuais seja expressão
de uma relação de eqüidade priorizando as carências dos grupos
populacionais menos favorecidos.
A escolha de uma justa distribuição de recursos em saúde tem
fundamento em teorias que defendem o respeito à autonomia
individual, expresso pela garantia da pessoa optar por aquilo que
considera a sua vontade própria, a discussão sobre a responsabilidade
do Estado na implementação de políticas e a definição das prioridades
para a distribuição dos recursos destinados à saúde (FORTES e
ZOBOLI, 2003).
AUXÍLIO-DOENÇA
PREVIDENCIÁRIO
Auxílio-doença previdenciário é o benefício devido ao segurado
que demonstrar incapacidade temporária para o trabalho por período
superior a quinze dias consecutivos, após cumprida a carência, quando
exigida. Um argumento contrário à concessão do auxílio-doença é a
confirmação de que o trabalhador já era portador de doença ou lesão
quando filiou-se ao Regime Geral da Previdência Social (RGPS),
exceto se a ausência da capacidade decorreu da evolução ou
agravamento dessa doença ou lesão (IBRAHIM, 2003). Representam
ameaças à manutenção do benefício o não comparecimento ao local
da perícia na data preestabelecida para novo exame e a recusa ao
processo de reabilitação profissional custeado pela previdência.
118
Thelma Maria do Nascimento
A suspensão do auxílio-doença previdenciário ocorre como
conseqüência de uma das três condições: retorno ao trabalho,
transformação em aposentadoria por invalidez ou em auxílio acidente
diante de circunstâncias diversas e que tenham como resultado
seqüelas que impeçam a realização da atividade laborativa.
APOSENTADORIA
P O R I N VA L I D E Z
A lei 8.213/91 no seu artigo 42 advoga que “a aposentadoria por
invalidez, uma vez cumprida, quando for o caso, a carência exigida,
será devida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença,
for considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício
de atividade que lhe garanta a subsistência, e ser-lhe-á paga enquanto
permanecer nesta condição”. O perito-médico fundamentando-se no
parágrafo 2º da lei acima mencionada deverá indeferir a solicitação da
aposentadoria, quando a doença ou lesão em análise antecederem a
filiação do requerente ao Regime Geral da Previdência Social, salvo,
quando a incapacidade sobrevier por motivo de progressão ou
agravamento dessa doença ou lesão.
O período de carência para a obtenção da aposentadoria por invalidez
corresponda a doze contribuições mensais, no Regime Geral da
Previdência Social, número mínimo para que o beneficiário faça jus ao
benefício, salvo, nos casos de invalidez decorrentes de acidente ou diante
de algumas patologias especificadas no Decreto Lei nº 3048/99.
ASSISTÊNCIA
SOCIAL
À
PESSOA
PORTADORA
DE DEFICIÊNCIA
A assistência social deve ser prestada a quem dela necessitar. Esse
é o teor do artigo 203, inciso V, da Constituição Federal de 1988
(CF). Regida por lei própria, a 8.742, de 07 de dezembro de 1993, a
chamada Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), a assistência
social, segmento da seguridade social, deve ser promovida pelo sistema
público e pela sociedade, ambos implementando ações e medidas
Perícia médica em gastro-hepatologia para a concessão de benefícios previdenciários
119
que visem ao atendimento das necessidades básicas da criança e do
idoso.
A teoria dos princípios que regem a assistência social inclui o
respeito à autonomia, à igualdade de direitos no acesso ao atendimento
e à convivência na sociedade. Valorizar tais princípios levando-os da
teoria para o contexto social é fundamental para suprir a deficiência
nos modelos médico e social que serão mencionados posteriormente
(IBRAHIM, 2003). O Benefício de Prestação Continuada (BPC) é
prestação pecuniária de caráter assistencial e não exige contribuição
do segurado, sendo suficiente a comprovação da condição de
necessidade. Instituído pela LOAS, no seu artigo 20, o BPC representa
“...a garantia de 1(um) salário mínimo à pessoa portadora de deficiência
e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e que comprovem não
possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida
por sua família”.
A operacionalização do benefício assistencial foi regulamentada
com a publicação da ordem de serviço INSS/DSS/562 em 04 de
abril de 1997, a qual define os procedimentos para a concessão do
BPC, de que trata a lei 8.742 de 07/09/93. Consta nesse documento
que, a partir de 01 de janeiro de 2000, a idade mínima exigida pelo
solicitante do BPC é de 65 (sessenta e cinco) anos. A Lei seleciona
para conceder o benefício a pessoa portadora de deficiência, ou seja,
aquela considerada pela perícia médica incapacitada para a vida
independente (alimentação, cuidados de higienização, necessidade de
outra pessoa) e para o trabalho. A pessoa incapacitada, o deficiente,
em conformidade com o conceito institucional, é a pessoa portadora
de anomalias ou lesões hereditárias, congênitas ou adquiridas, rotuladas
como irreversíveis ou proibitivas para o desempenho do labor e da
vida cotidiana. Outro critério que é analisado durante a concessão do
benefício assistencial é a renda familiar, que deverá ser uma renda
mensal per capta inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo, renda
entendida como insuficiente para a manutenção da pessoa portadora
de deficiência ou idosa (IBRAHIM, 2003).
120
Thelma Maria do Nascimento
Por fim, o BPC será devido ao brasileiro, inclusive ao indígena
não protegido por sistema de previdência social e ao estrangeiro
naturalizado ou domiciliado no Brasil, não amparado por previdência
do país de origem (IBRAHIM, 2003).
DEFICIÊNCIA:
MODELO MÉDICO
A ordem de serviço INSS/DSS 562, de 1997, considera o laudo
médico-pericial/ benefício assistencial o comprovante documental
da deficiência. A elaboração do laudo era permitida aos profissionais
do Sistema Único de Saúde (SUS), Centros e Núcleos de Reabilitação
Profissional, Perícia Médica e Serviço Social do INSS. Na atualidade,
somente ao médico-perito é dada a função de emitir o laudo,
obedecendo aos critérios estabelecidos e divulgados na Tabela de
Dados para Avaliação de Deficiência, devendo-se considerar, entre
outras coisas, a capacidade para o trabalho, as alterações na visão,
audição ou fala, a dependência de terceiros para o desempenho das
atividades cotidianas e o “nível da vulnerabilidade”, sem, entretanto,
mencionar fatores selecionados para estratificar a vulnerabilidade em
níveis baixo, médio e alto. Aos critérios analisados é atribuída uma
pontuação que varia de 09 a 23 pontos, e o periciado que obtiver
número de pontos igual ou superior a 17 será rotulado como portador
de “incapacidade severa ou extrema”.
A análise da OI/INSS/DIRBEN N.º 81/2003 permite identificar
os critérios para a concessão do BPC e conduz à percepção de que o
conceito biomédico da deficiência tem como base atos normativos,
leis vigentes no país, acrósticos, podendo tudo isso suscitar
questionamentos a respeito de possíveis restrições de patologias
diversas, sem contar essencialmente que, nesse conjunto de normas,
não se considera a real incapacidade do indivíduo. Faz-se necessário
destacar que a concessão criteriosa do BPC pode atribuir a esse
benefício outro papel: o de possível indicador de exclusão social.
Perícia médica em gastro-hepatologia para a concessão de benefícios previdenciários
DEFICIÊNCIA:
121
MODELO SOCIAL
A deficiência é uma temática que tem sido motivo de discussões
freqüentes nos eventos sobre políticas públicas brasileiras. A
compreensão desse despertar é possível por duas razões: o
envelhecimento populacional, que permite registrar um maior número
de pessoas vivendo a deficiência, e o resultado do debate acerca dos
diferentes conceitos de deficiência, alguns considerando a sociedade
como responsável pela condição de deficiente experimentada por cada
indivíduo.
A abordagem histórico-social da deficiência foi iniciada na década
de 1960, no Reino Unido, como uma crítica ao conceito biomédico
(MEDEIROS e DINIZ, 2004). Analistas sociais defendem a idéia de
que a deficiência não deve ser problema somente do portador, mas
essencialmente da coletividade, que não demonstra disponibilidade
para adequar-se às diversidades.
O debate social argumenta que a deficiência é “uma experiência
resultante da interação entre características corporais do indivíduo e
as condições da sociedade em que ele vive, isto é, uma combinação
de limitações impostas pelo corpo com algum tipo de perda ou
redução da funcionalidade ‘(lesão)’ e uma organização social pouco
sensível à diversidade corporal” (MEDEIROS e DINIZ, 2004). A
primeira proposta de se entender a deficiência e a lesão como
condições não necessariamente convergentes foi feita pela Upias –
Union of The Phisically Impaired Against Segregation, na década de
1970, instituição que ressaltou o papel excludente da sociedade na
medida em que oferece desvantagens e restrições no âmbito social e
profissional àqueles portadores de lesões físicas.
A sociedade contemporânea, até pouco tempo atrás, entendia a
deficiência adotando como base o modelo médico, no qual a
deficiência era considerada uma doença crônica degenerativa, um
defeito ou déficit presente no indivíduo, avaliado em conformidade
com normas biomédicas vigentes. A constatação das limitações
impostas por essa abordagem médica permitiu o surgimento de outras
122
Thelma Maria do Nascimento
correntes de pensamentos teórico-políticos que priorizam a visão
humanística de se analisar os múltiplos fatores que contribuem para
a condição de deficiente: fatores social, político e econômico, com
importância similar à das alterações biológicas, físicas ou psicológicas
(SCULLY, 2005).
A discussão, como é conduzida na atualidade, deveria sinalizar
para a execução de políticas públicas na saúde brasileira capazes de
reconhecer não somente a anormalidade corporal para identificar o
deficiente, mas fundamentalmente a experiência da exclusão,
característica que une as diversas comunidades de deficientes.
METODOLOGIA
O levantamento dos dados foi obtido a partir dos cadastros dos
beneficiários da previdência, no estado do Piauí, armazenados no
Banco de Dados da Empresa de Tecnologia e Informações da
Previdência Social (DATAPREV), durante o período de 1999 a 2003.
Esse período foi selecionado por admitir-se o acesso com maior
segurança ao cadastro das pessoas a serem periciadas, e teve como
último ano o de 2003 porque permitiu a obtenção dos dados de forma
satisfatória até a oportunidade do desenvolvimento da pesquisa.
Construíram-se tabelas e figuras representando as concessões
realizadas no estado do Piauí referentes a três benefícios: auxíliodoença previdenciário (B31), aposentadoria por invalidez (B32) e
amparo social à pessoa portadora de deficiência (B87), distribuídas
anualmente durante o período estabelecido. Do total de 36.679
concessões do B31, foram analisadas 652 na área de gastrohepatologia. O benefício B32 foi deferido a 6.493 piauienses, dos
quais 45 eram portadores de enfermidades gastro-hepatológicas, e o
B87 foi concedido a 5 pessoas no universo de 8.462 concessões. A
metodologia inclui também a realização de entrevistas abertas, escritas
e anônimas com cinco peritos da Previdência, as quais conduziram a
uma aproximação inicial dos especialistas em Medicina Legal com os
conceitos de deficiência, lesão e vulnerabilidade.
Perícia médica em gastro-hepatologia para a concessão de benefícios previdenciários
DISCUSSÃO
123
DOS RESULTADOS
Gráfico 1: Benefícios Concedidos nas Especialidades de
Gastroenterologia e Hepatologia no Estado do Piauí, período de 1999
a 2003
Fonte: BCO D3/Prisma DATAPREV - ESPIP
Verifica-se número crescente da concessão do auxílio-doença
previdenciário no período de 1999 a 2002. A constatação do maior
número de beneficiados no ano de 2002 permite admitir como
provável fator contributivo o período eleitoral, em que os políticos
habitualmente ficam mais receptivos às manifestações expressivas do
estado de carência da coletividade.
A aposentadoria por invalidez foi concedida a 6,41% das pessoas
periciadas com enfermidades gastro-hepatológicas, e o B87, cujo
deferimento é embasado em critérios pré-determinados, esteve
presente em apenas cinco laudos conclusivos.
124
Thelma Maria do Nascimento
Gráfico 2: Distribuição do auxílio-doença previdenciário segundo
as enfermidades gastro-hepatológicas, no período de 1999 a 2003
Fonte: BCO D3/Prisma DATAPREV - ESPIP
O benefício auxílio-doença previdenciário foi distribuído em cinco
grupos de enfermidades, correspondendo ao maior grupo os
portadores de úlcera duodenal. Foram analisados 165 casos, isto é,
36,34% do total de 454 concessões.
Gráfico 3: Distribuição das concessões da aposentadoria por
invalidez segundo as enfermidades gastro-hepatológicas, no período
de 1999 a 2003
Fonte: BCO D3/Prisma DATAPREV - ESPIP
Perícia médica em gastro-hepatologia para a concessão de benefícios previdenciários
125
Observa-se que a aposentadoria por invalidez foi deferida às
pessoas cujas enfermidades consideram-se de maior gravidade,
destacando-se a Cirrose Hepática Alcoólica e a Neoplasia Maligna
do estômago, diagnosticadas respectivamente em 35,48% e 22,58%
dos aposentados. Vale ressaltar que o periciado acometido dessas
patologias torna-se desobrigado de cumprir o período de carência,
em obediência à Portaria Interministerial n.º 2.998 de 23 de agosto
de 2001.
Gráfico 4: Distribuição das concessões do Benefício Assistencial
(BPC) segundo as enfermidades gastro-hepatológicas, no período de
1999 a 2003.
Fonte: BCO D3/Prisma DATAPREV - ESPIP
A análise do quadro das concessões revelou que somente em cinco
processos periciais, do total de setecentos e dois na área da gastrohepatologia, houve deferimento do BPC. No grupo de cinco
concessões, três foram deferidas para os portadores de neoplasias
malignas.
A amostra obtida foi satisfatória para revelar que três do total dos
entrevistados não vêem a pessoa a ser periciada como integrante da
categoria dos vulneráveis. O médico, segundo esse grupo, é o
126
Thelma Maria do Nascimento
vulnerável diante da possibilidade da manifestação do beneficiário
ao ter o seu beneficio negado. Dois dos entrevistados manifestaram
opinião favorável perante a vulnerabilidade, que certamente é
constante no dia-a-dia daqueles que procuram os serviços que
oferecem assistência à saúde.
CONCLUSÃO
A pesquisa, do modo como foi conduzida, mostrou inicialmente
os aspectos profissionais da atividade previdenciária e, em seguida, a
participação das especialidades de Gastroenterologia e Hepatologia
no quadro dos benefícios concedidos à população do estado do Piauí,
no período de 1999 a 2003. Como foi gradualmente percebido, a
concessão foi realizada na forma de três benefícios. O auxílio-doença
previdenciário foi predominantemente contemplando, tendo sido
concedido a 92,88% dos beneficiários no universo de 702 concessões;
a aposentadoria por invalidez foi o segundo benefício mais concedido,
6,41% do total, e o amparo social à pessoa portadora de deficiência
foi considerado em apenas cinco prontuários analisados (0,71% do
total de 702).
A análise do quadro de patologias que motivaram a concessão do
auxílio-doença previdenciário permitiu observar que os portadores
de úlcera duodenal e gástrica, correspondendo respectivamente a
36,34% e 31,50%, constituíram o maior grupo entre os periciados
que receberam o referido benefício. A aposentadoria por invalidez
foi devida a 0,69% do total dos aposentados no estado do Piauí, das
6.493 pessoas submetidas à perícia previdenciária.
As pessoas cujas enfermidades eram neoplasias malignas, úlcera
gástrica e cirrose hepática alcoólica foram consideradas como
deficientes e/ou dependentes para o desempenho das atividades
diárias (alimentação, higienização, etc), atendendo-se, portanto, aos
critérios legítimos conforme a LOAS, que regulamenta a concessão
do BPC. Face à inexistência de normas técnicas específicas para
orientação da perícia previdenciária na gastro-hepatologia, a despeito
Perícia médica em gastro-hepatologia para a concessão de benefícios previdenciários
127
da atividade previdenciária ser pautada em normas e leis, as concessões
ora analisadas suscitam algumas discussões direcionadas para a
legitimidade e a pertinência dos deferimentos: a aquisição do benefício
poderia amenizar prováveis conseqüências advindas da condição de
enfermo da pessoa periciada? Facilitaria a obtenção da terapia
medicamentosa conhecidamente de elevado custo? Sendo a concessão
do BPC fundamentada em acrósticos e tabelas, seria esse benefício
supostamente um fator de exclusão social?
Baseando-se nessas considerações, admite-se que, apesar do
princípio constitucional segundo o qual a saúde é “um direito de
todos e um dever do Estado”, as estratégias sócio-políticas da
sociedade contemporânea não se aplicam ao ideal de justiça como
eqüidade, que defende que, em situações de conflitos, se devem
privilegiar as exigências dos menos favorecidos. O estado de
vulnerabilidade das pessoas que solicitam benefícios previdenciários
não é reconhecido de modo significativo pela maioria dos profissionais
que desenvolvem a atividade pericial. A oportunidade de aproximação
dos médicos peritos com os conceitos de vulnerabilidade, lesão e
incapacidade permitiu observar que esses profissionais se consideram
vulneráveis nessa relação de trabalho.
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da Assistência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder
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DSS/562, de 04 de abril de 1997. Define os procedimentos para a concessão do
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129
Experimentação animal: aspectos bioéticos
e normativos
Danielle Maria Machado Ribeiro Azevêdo
INTRODUÇÃO
A utilização de animais em pesquisas científicas tem sido bastante
contestada nos últimos anos. Poucas pessoas envolvidas em pesquisa
com animais desconhecem os termos Bioética e bem-estar animal.
No entanto também poucas têm-se interessado em aprofundar seus
conhecimentos nessas áreas, modificar seus protocolos de pesquisa
ou, mesmo aqueles seguidores de René Descartes, acreditar que tais
áreas sejam reais.
Para Potter, o criador do neologismo Bioética, o termo deve definir
uma nova ciência ética que combina humildade, responsabilidade e
uma competência interdisciplinar, intercultural e que potencializa o
senso de humanidade. Nesse conceito original, a Bioética seria uma
ponte para o futuro ou, como sugere o próprio autor, uma ponte
entre as ciências biológicas e os valores morais, democratizando o
conhecimento científico e trabalhando em prol da sobrevivência
ecológica do Planeta Terra (POTTER, 1971).
130
Danielle Maria Machado Ribeiro Azevêdo
Diferentemente, para André Hellengers, responsável pela primeira
utilização institucionalmente acadêmica do termo, a Bioética é uma
nova área de atuação interdisciplinar da filosofia moral, que une
conceitos ético-filosóficos e a prática médica, ou seja, está mais voltada
para os dilemas biomédicos (PESSINI e BARCHIFONTAINE,
1995). Esse é o conceito mais difundido atualmente, apesar de
notarmos uma acentuada modificação e retorno à definição inicial de
Potter nos últimos anos, em decorrência da ecologização do
pensamento.
O crescimento da Bioética pode ser observado através do aumento
do número de textos especializados sobre o tema, fóruns de debate e
congressos na área, da implantação da Bioética como disciplina em
diversos cursos de graduação e pós-graduação e da constituição de
Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) em diversas instituições de
pesquisa e em hospitais. No entanto, no que diz respeito à Bioética e
ao bem-estar animal ou à utilização de conceitos éticos no
relacionamento homem-animal, pouco se tem evoluído. Um exemplo
relativamente recente e bastante visível é o caso Dolly. Depois de
cientistas anunciarem a clonagem de uma ovelha adulta (WILMUT
et al., 1997), a opinião pública ficou assustada e preocupada com
apenas um ponto: a possibilidade de clonagem de seres humanos.
Considerando a análise de 300 matérias impressas na mídia brasileira
sobre o tema nos 18 meses subseqüentes à publicação da notícia da
clonagem da ovelha na revista Nature, “do ponto de vista ético ou
antiético, falou-se apenas da possibilidade do uso da técnica em
humanos” (COSTA e DINIZ, 2000).
A partir da década de 1970, o debate sobre as considerações éticas
envolvendo a utilização de animais cresceu de forma acentuada, sendo
marcado por publicações polêmicas como o livro Animal Liberation,
de Peter Singer, em 1975, considerado pelos ativistas em direitos dos
animais uma bíblia. Apesar do radicalismo de Singer, este autor
desempenhou e ainda desempenha com seus artigos e livros mais
recentes papel de grande importância ao chamar a atenção para o
especismo praticado pelos humanos em detrimento dos animais nãohumanos.
Experimentação animal
131
De fato, apesar das diferentes visões acerca da conceituação de
bem-estar animal (animal welfare), não se pode negar que o
compromisso com o bem-estar dos animais vem crescendo em nível
mundial, entre os diversos profissionais que atuam diretamente com
esses seres e também entre a população de uma forma geral.
Acompanhando essa tendência, a mentalidade da sociedade temse modificado bastante no que concerne à utilização de animais em
experimentação científica. Apesar de ter-se consciência da necessidade
de utilização de animais em pesquisa para o bem maior dos humanos
e também dos próprios animais não-humanos, muitos ícones da
filosofia e mesmo da experimentação têm-se posicionado contra a
pesquisa científica com animais. Porém mesmo a opinião dos filósofos
tem tido pouco em comum.
Apesar das muitas contribuições e avanços proporcionados pela
experimentação à ciência, pouco pode ser comemorado no que tange
às questões de natureza ética relativas aos animais. Felizmente, ainda
na década de 1970, sob a influência do movimento que determinou o
surgimento da Bioética como ciência, os debates sobre o bem-estar
animal e Bioética na relação entre humanos e animais tiveram início
e, em 1981, foram criadas ou revisadas leis de regulamentação da
utilização de animais em pesquisa em muitos países. Nos Estados
Unidos, por exemplo, tornou-se obrigatória a revisão dos protocolos
de pesquisa em animais, uma vitória das Comissões Institucionais –
Institucional Animal Care and Use Commitee (IACUC). No Brasil, no
entanto, muitos pesquisadores ainda desconhecem a existência de
CEPs com uso de animais, que realmente ainda são em número
incipiente, apesar da exigência por parte de alguns periódicos
científicos de avaliação de projetos de pesquisa nessa área, periódicos
que condicionam a publicação de artigo à existência do Comitê.
Acresce que pouco se conhece das leis que regem a utilização de
animais em pesquisa ou mesmo das leis que protegem o bem-estar
animal, de forma geral. Além disso, não resta dúvida de que a ausência
de regulação acarreta a utilização abusiva pela ciência de animais nãohumanos, o que reforçaria o especismo antropocêntrico. Nesse
sentido, este trabalho tem como objetivo principal realizar uma revisão
132
Danielle Maria Machado Ribeiro Azevêdo
da literatura sobre a utilização de animais não-humanos em pesquisas
científicas e os princípios normativos associados à experimentação
animal, a fim de identificar e analisar os limites e possibilidades da
experimentação animal.
EXPERIMENTAÇÃO
ANIMAL
A experimentação animal é definida como toda e qualquer prática
que utiliza animais para fins didáticos ou de pesquisa (LEVAI, 2004),
excluindo-se os animais humanos. O termo “experimentação animal”
vem sendo utilizado genericamente, abrangendo desde a mais simples
e inofensiva observação visual até procedimentos complexos, com
intervenção cirúrgica. Assim, a experimentação animal também abrange
a vivissecção, palavra de origem latina (vivus = vivo e sectio = corte), que
no sentido literal e restrito significa “cortar um corpo vivo”.
A experimentação animal tem sido utilizada em duas vertentes
básicas: para um maior conhecimento dos animais e aplicação desse
conhecimento em sua própria saúde e bem-estar e, a forma mais
freqüente, a utilização de animais como modelos e posterior aplicação
dos conhecimentos gerados para a espécie humana. Esse último tipo
de pesquisa é o principal foco de críticas, tanto em seus aspectos morais
quanto científicos.
A experimentação animal apresentou crescimento até atingir seu
pico em 1976 (PATON, 1993), o que se deveu aos benefícios da
utilização de animais principalmente pela indústria farmacêutica, que
apresentou um grande incremento nessa época, associado à aplicação
dos chamados “testes de segurança” (DL 50 e teste Draize)
(FORSMAN, 1993).
Algumas hipóteses têm sido sugeridas visando à redução do
número de animais utilizados em experimentação, entre as quais
destacam-se (SMITH e BOYD, 1991): 1. Substituição de alguns
experimentos por métodos in vitro, em decorrência principalmente
do advento da biologia molecular; 2. Maior intercâmbio e aceitação
de resultados experimentais por diferentes pesquisadores; 3.
Experimentação animal
133
Desenvolvimento do bioterismo; 4. Elevação nos custos de
experimentos com animais; 5. Protestos contra a experimentação
animal.
Um dos reflexos do debate moral sobre a questão do sofrimento
animal foi o conceito dos 3R. Os 3R (replacement, reduction e refinement,
isto é, substituição, redução e refinamento), foram estabelecidos por
Russel e Burch, em seu livro The Principles of Humane Experimental
Techique, publicado em 1959. A substituição indica que se deve procurar
substituir a utilização de vertebrados por seres não sencientes. A
redução refere-se à diminuição ao mínimo possível de animais no
experimento. O refinamento indica que o desconforto provocado ao
animal durante o experimento deve ser minimizado ao máximo.
Segundo Paixão, a idéia dos 3R foi o impulso inicial na utilização de
alternativas à experimentação animal (PAIXÃO, 2001). Para Goodwin,
no entanto, adotar os 3R significa admitir que o uso de animais em
experimentação é moralmente errado (GOODWIN, 1991).
Alguns cientistas justificam a utilização de animais em experimentos
pela similaridade biológica entre o ser humano e os animais nãohumanos, sendo estes últimos modelos adequados para
desenvolvimento de procedimentos e drogas a serem utilizados nos
primeiros. Essa justificativa é amplamente rebatida por aqueles que
fazem uma crítica absoluta ao método da experimentação animal,
porém aceita, com restrições, por aqueles que fazem uma crítica
seletiva à experimentação.
Recentemente, princípios orientadores para a utilização de animais
em pesquisas científicas têm sido sugeridos, entre os quais destacamse: 1. Os seres humanos são mais importantes que os animais, mas os
animais também têm importância, diferenciada de acordo com a
espécie considerada; 2. Nem tudo que é tecnicamente possível de ser
realizado deve ser permitido; 3. Nem todo o conhecimento gerado
em pesquisas com animais é plenamente transponível ao ser humano
e, 4. O conflito entre o bem dos seres humanos e o bem dos animais
deve ser evitado sempre que possível (GOLDIM e RAYMUNDO,
2005).
134
Danielle Maria Machado Ribeiro Azevêdo
Nas duas últimas décadas, a preocupação com os aspectos éticos
da utilização de animais em experimentação tem sido destacada com
a publicação de artigos em periódicos conceituados (MARIANO,
2003; PIMENTA e SILVA, 2005; AGUILLAR-NASCIMENTO,
2005). Percebe-se que, apesar do status moral dos animais ter sido
sempre muito debatido ao longo do desenvolvimento das sociedades,
a controvérsia permanece, não havendo consenso quanto à posição
que os animais ocupam em relação aos seres humanos. A permanência
da controvérsia influi diretamente sobre a ação daqueles que trabalham
com a experimentação animal, principalmente nos limites impostos
a essa prática e nas possibilidades de utilização desses seres. Nesse
sentido, o homem procurou normalizar, através de declarações, leis
ou decretos a utilização de animais em pesquisas, o que será discutido
a seguir.
ASPECTOS
NORMATIVOS DA EXPERIMENTAÇÃO
ANIMAL
Os movimentos de proteção animal ganharam visibilidade
especialmente a partir da década de 1970, quando ocorreu um
significativo debate sobre a utilização de animais em experimentação.
A partir de tal debate, algumas tentativas de controle da utilização de
animais em pesquisas científicas foram delineadas, como o surgimento
de leis mais rigorosas em diversos países, de comitês institucionais de
ética na utilização de animais, controle por parte das agências de fomento
e de políticas editoriais.
Nesse sentido, a etapa de aquisição de fundos para financiamento
de pesquisas deve ser vista também como um momento de avaliação
dos aspectos éticos das propostas (SMITH e BOYD, 1991) e não apenas
dos aspectos científicos e de custos do projeto.
Uma das formas de controle da experimentação com animais que
pode ter grande alcance e vir a refletir em diversos países é a política
editorial. A partir da década de 1980, algumas modificações vêm
ocorrendo lentamente e têm a intenção de fazer com que os
Experimentação animal
135
pesquisadores se preocupem com critérios humanitários ou terão
dificuldade em publicar seus trabalhos. Essas modificações ganharam
força em 1988, quando o Comitê Internacional dos Editores de Revistas
Médicas, que representava à época cerca de 300 revistas científicas,
publicou instruções aos autores sobre a necessidade de indicação de
qual a norma/diretriz institucional ou lei referente aos cuidados e à
utilização de animais de laboratório havia sido seguida na condução da
pesquisa.
As políticas editoriais variam entre periódicos, considerando que
não existe, ainda, uma política internacional formal. No Brasil, em 2000,
o Comitê Editorial da revista Clínica Veterinária informou aos
pesquisadores que estes devem seguir os Princípios Éticos da
Experimentação Animal, estabelecidos pelo Colégio Brasileiro de
Experimentação Animal (COBEA, 2005), condição necessária para
publicação de seus artigos no periódico.
Um dos instrumentos de controle que mais têm crescido em diversos
países são as Comissões de Ética no Uso de Animais, geralmente
estabelecidas em instituições científicas. A atuação dos comitês foi
estabelecida nos Estados Unidos a partir da década de 1980, em
decorrência da crescente pressão social sobre o uso de animais e,
simultaneamente, do surgimento da obrigatoriedade legal em 1985. A
partir daí, as universidades, instituições de pesquisa e aquelas relacionadas
à produção comercial estabeleceram o que ficou conhecido como
IACUC. Esses Comitês passaram a ter a missão de adequar a proposta
de procedimentos a serem efetuados em um protocolo experimental e,
também, de aprovar ou não qualquer propósito de utilização de animais
(LUKAS e PODOLSKY, 1999).
No Brasil, as Comissões de Ética no Uso de Animais (CEUAS)
surgiram na década de 1990, tendo sido citada no trabalho de Chaves a
existência de 14 instituições, embora não tenha sido detectado pelo
autor o cadastro nacional ou a forma de regulamentação de tais comitês
(CHAVES, 2000). De modo geral, os comitês têm suscitado discussões
acerca da sua pertinência. Uma das discussões gira em torno de que,
para os Comitês, toda pesquisa animal é justificada, desde que conduzida
136
Danielle Maria Machado Ribeiro Azevêdo
da melhor forma possível, considerando-se os objetivos da pesquisa.
Para os movimentos de proteção dos animais, os Comitês seriam, então,
apenas uma forma de legitimar o uso de animais (GREIF e TRÉZ,
2000).
As novas preocupações sociais surgidas a partir da utilização de
animas em experimentos ocasionaram o surgimento de novas leis, na
tentativa de regulamentar esse uso. A primeira lei americana sobre o
assunto, o Laboratory Animal Welfare Act (LABORATORY ANIMAL
WELFARE ACT e WELFARE ACT, 2005), de 24/08/1966, surgiu a
partir de um episódio ocorrido em julho de 1965 – o desaparecimento
do cão dálmata Pepper. Os proprietários de Pepper, logo depois do
seu desaparecimento, descobriram que ele havia sido utilizado em um
laboratório de pesquisa e já estava morto. Como não havia leis que
regulamentassem o ocorrido, não havia crime. Logo, nada pôde ser
feito. Uma onda de protestos surgida a partir e por causa desse fato
levou à elaboração da nova legislação de 1966, que posteriormente
sofreu modificações e passou a ser denominada Animal Welfare Act.
Um dos aspectos mais importantes dessa nova legislação foi a
obrigatoriedade do estabelecimento dos IACUC e, além disso, a
proibição de que um dos membros desses comitês não pertença à
instituição responsável pelo comitê, a fim de representar os interesses
da comunidade no tratamento de animais (ORLANS, 1994). Outras
exigências foram: 1. Treinamento adequado do pessoal de laboratório;
2. Ambientação para primatas não-humanos que garanta seu bem-estar
psicológico; 3. A possibilidade de realização de exercício pelos cães.
A resposta a essa nova legislação ocorreu tanto da parte dos cientistas,
que reagiram às exigências previstas na lei e criticaram a pressão exercida
pelas organizações de direitos dos animais (OJEDA, 1990), quanto, de
maneira mais enfática, das organizações que se opõem a utilização de
animais em pesquisas, pois o Animal Welfare Act, de 1985, exclui ratos,
camundongos, aves e animais agropecuários.
Em vários outros países, o processo legislativo também sofreu
alterações a partir das pressões sociais sobre as questões envolvendo
a utilização de animais em experimentos. Merecem destaque a
Experimentação animal
137
Inglaterra, Suíça, Suécia, Alemanha, Austrália e Canadá (PAIXÃO,
2001).
Em 1978, na cidade de Bruxelas, foi proclamada pela Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)
a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, da qual diversos
países são signatários, inclusive o Brasil (embora não a tenha ratificado
até o presente momento). Para Rodrigues, essa Declaração adota uma
nova filosofia de pensamento sobre o direito dos animais,
reconhecendo o valor da vida de todos os seres vivos e propondo um
estilo de conduta humana condizente com a dignidade dos e o respeito
aos animais (RODRIGUES, 2005).
A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, ao ser declarada
publicamente teria recebido aceitação dos países participantes da
Assembléia da UNESCO, sem que fosse estabelecido mecanismo
para seu funcionamento prático. Apesar de ter considerado o animal
como sujeito de direitos (Artigo 1º.), o texto peca ao fazer concessões
acerca de hábitos humanos em relação aos animais, a exemplo da
morte necessária (Artigo 3º.), do trabalho (Artigo 7º..), da vivissecção
(Artigo 8º.) e do abate (Artigo 9º.), compactuando com a perspectiva
utilitária que se insere no tradicional discurso ecológico (LEVAI, 2004).
Em 1985, o Conselho das Organizações Internacionais de Ciências
Médicas – Council for International Organizations of Medical Sciences
(CIOMS), publicou os princípios Internacionais para a Pesquisa
Biomédica Envolvendo Animais (CIOMS, 1985). O objetivo do
CIOMS é fornecer, principalmente aos países que não possuem uma
legislação específica sobre a experimentação animal, uma base mínima
para que os países ou as instituições possam desenvolver seus
mecanismos de controle.
NORMALIZAÇÃO
ANIMAL NO BRASIL
DA
EXPERIMENTAÇÃO
O cuidado com o bem-estar animal no Brasil, em termos
legislativos, iniciou-se em 1934, com o Decreto no. 24.645 (BRASIL,
138
Danielle Maria Machado Ribeiro Azevêdo
1934), de 10 de julho de 1934, que estabelece medidas de proteção
dos animais e por meio do qual, em seu Artigo 1º, o Estado reconhece,
pela primeira vez, todos os animais existentes no país como tutelados.
Apesar de na maioria de seus artigos predominar a preocupação
com os grandes animais domésticos (bovinos e eqüinos), os mais
utilizados para trabalho à época, a lei busca ser abrangente e, em seu
Artigo 3º., várias alíneas especificam como maus-tratos condutas
comuns em pesquisa, tais como: I – praticar ato de abuso ou crueldade
em qualquer animal; II – manter animais em lugares anti-higiênicos
ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso ou os
privem de ar ou luz; ... IV – Golpear, ferir ou mutilar, voluntariamente,
qualquer órgão ou tecido de economia, exceto a castração, só para
animais domésticos, ou operações outras praticadas em benefício
exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem ou no
interesse da ciência; V – abandonar animal doente, ferido, extenuado
ou mutilado, bem como deixar de ministrar-lhe tudo o que
humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência médicoveterinária; VI – não dar morte rápida, livre de sofrimentos
prolongados, a todo animal cujo extermínio seja necessário para
consumo ou não; ... XX – encerrar em curral ou outros lugares animais
em número tal que não lhes seja possível mover-se livremente, ou
deixa-los sem água e alimento por mais de 12 horas; ... XXVI –
despelar ou depenar animais vivos ou entregá-los vivos à alimentação
de outros; XXVII – ministrar ensino a animais com maus-tratos físicos.
Em 1941, o Decreto-Lei no. 3.688 (BRASIL, 1941) reforçou as
medidas da lei de 1934, ao tratar da omissão de cautela na guarda ou
condução de animais (Artigo 31) e prever pena para a prática de
crueldade, estendendo-a para aquele que, embora para fins didáticos
ou científicos, realiza, em lugar público ou exposto ao público,
experiência dolorosa ou cruel em animal vivo (Artigo 64, § 1º).
A Lei no 5.517, de 23 de outubro de 1968 (BRASIL, 1968), criou
os Conselhos Federal e Regionais de Medicina Veterinária, dispondo
sobre o exercício da profissão de médico-veterinário. Nessa lei, fica
explícita a regulação da profissão e, em seu Artigo 5º, a competência
Experimentação animal
139
privativa do médico-veterinário para a prática da clínica em todas as
suas modalidades e assistência técnica e sanitária dos animais sob
qualquer forma. O Decreto Lei no. 64.704 (BRASIL, 1969), de 17 de
junho de 1969, em seu Capítulo II, Artigo 2º., itens c e d, estipula ser
o exercício da medicina de animais de laboratório uma atividade
profissional privativa do médico-veterinário, o que significa, na prática,
que todo Biotério deve ter um médico-veterinário especializado em
animais de laboratório.
Percebe-se que todas as legislações até então criadas tratavam de
questões abrangentes, pouco específicas quanto ao uso de animais
em pesquisa ou ensino. Em 8 de maio de 1979, foi então sancionada
a Lei no 6.638 (BRASIL, 1979), conhecida como Lei da Vivissecção,
que estabelece as normas para a prática didática e científica da
vivissecção de animais no Brasil. Essa lei, que ainda não expressa os
aspectos relacionados aos 3R e nem se refere à Comissões de Ética
no Uso de Animais, logo em seu primeiro parágrafo legitima a
vivissecção: “Fica permitida, em todo o território nacional, a vivisseção
de animais, nos termos desta lei”. De acordo com o artigo 30 da Lei
no 6.638, o emprego da vivissecção é vedado apenas nas seguintes
situações: 1. Emprego sem anestesia; 2. Em centros de pesquisa e
estudos não registrados em órgão competente; 3. Sem a supervisão
de técnico especializado ou com animais que não tenham permanecido
mais de 15 dias em biotérios legalmente autorizados; 4. Em
estabelecimentos de ensino de primeiro e segundo graus e em
quaisquer locais freqüentados por menores de idade. Esta última
situação tem deixado de ser atendida em casos freqüentes de
estudantes universitários que ingressam cada vez mais cedo nas
universidades. Essa lei exige, ainda, cuidados especiais e outras
providências, como se pode verificar em seus dispositivos, sujeitando
os infratores a sanções penais.
A Lei no 6.638, ainda que esboce uma preocupação em estabelecer
limites éticos à atividade experimental com animais – demonstrada
pela proibição de práticas experimentais na presença de menores de
idade – fornece o aval aos vivissectores para que estes continuem a
exercer, livremente, sua atividade. Com o passar dos anos, a Lei
140
Danielle Maria Machado Ribeiro Azevêdo
mostrou-se ineficaz, não se tendo notícia de jurisprudência relacionada
à sua aplicação. Não se pode deixar de reconhecer, entretanto, o mérito
da Lei 6.638 por ter representado um avanço para a área do ensino e
pesquisa no Brasil, refletindo a tendência, já então verificada, dos
profissionais envolvidos em preservar a ética no que se refere ao uso
de animais e a necessidade de regulamentação da atividade.
A promulgação da atual Constituição Federal do Brasil (CF), em 5
de outubro de 1988, renovou as esperanças voltadas à proteção dos
animais, visto que um de seus dispositivos principais – o que se propõe
a proteger a fauna, evitar a extinção das espécies e proibir a crueldade
(artigo 225, parágrafo 1º., inciso VII) – foi incorporado ao texto da
maioria das Constituições Estaduais (BRASIL, 1988). O artigo 225,
parágrafo 1º, inciso VII, traz a seguinte redação: “Incumbe ao Poder
Público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas
que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção
das espécies ou submetam os animais à crueldade”.
Considerando que a questão ética na experimentação animal
continuava a ser um tema pouco confortável para o meio didáticocientífico, visto que não se dispunha de nenhum preceito legal que
regulamentasse essa atividade e resguardasse os seus profissionais, e
tendo em vista que o movimento das sociedades protetoras dos
animais estava crescendo e ameaçando a prática da experimentação
animal, o COBEA, em 1991, criou os Princípios Éticos na
Experimentação Animal (COBEA, 2005), postulando 12 artigos que
passaram a nortear a conduta dos professores e pesquisadores na
prática do uso de animais.
Dos 12 artigos, todos condizentes com o bem-estar animal, o
último sem dúvida é o mais importante: desenvolver trabalhos de
capacitação específica de pesquisadores e funcionários envolvidos
nos procedimentos com animais de experimentação, salientando
aspectos de trato e uso humanitário com animais de laboratório
(CARDOSO, 2005). Deve ser também considerado de extrema
importância o artigo 3º, que imputa ao experimentador a
responsabilidade moral pela escolha de métodos e ações de
experimentação.
Experimentação animal
141
Bastante importante também foi a Resolução no 592 (CFMV, 1992)
de 26 de junho de 1992, do Conselho Federal de Medicina Veterinária
(CFMV), que estabelece em seu artigo 1º que estão obrigados a registro
no Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) e Conselho
Regional de Medicina Veterinária (CRMV) respectivo, pela alínea XVII
– jardins zoológicos e biotérios. Isso gerou outros preceitos legais
que estimularam o controle e fiscalização dos biotérios nacionais.
Em 1993, a Ordem dos Advogados do Brasil iniciou um debate
sobre a regulamentação do uso de animais em experimentação e criou
uma Comissão Mista para elaborar um projeto de lei que, finalmente,
regulamentasse a criação e o uso de animais para atividades de ensino
e pesquisa. Essa Comissão Mista era formada por representantes de
cinco instituições científicas renomadas no Brasil: Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC), Fundação Oswaldo Cruz
(FIOCRUZ), Federação das Sociedades Brasileiras de Biologia
Experimental (FESBE), Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e COBEA. As sociedades protetoras dos animais foram
representadas pela Sociedade Mundial para Proteção dos Animais
(WSPA) e pela Sociedade Zoófila Educativa (SOZED).
O anteprojeto de lei resultante do debate na Comissão Mista foi
conciliado com o Projeto de Lei de autoria do Deputado Federal
Sérgio Arouca (PPS/RJ), que tramitava na Câmara dos Deputados
(Projeto de Lei no 1.153/1995) (BRASIL, 1995), sendo criado o
Projeto de Lei no 3.964 de 1997 (BRASIL, 1997), apensado ao Projeto
de Lei de 1995. Os principais aspectos do Projeto de Lei no 3.964/
1997 são: aderência ao princípio dos 3R, obrigatoriedade de comissões
de ética em instituições que utilizam animais, incluindo nessas
comissões representantes da sociedade civil, e a criação do Conselho
Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA), como
órgão normativo, credenciador, supervisor e controlador das
atividades de ensino e pesquisa com animais. Nesse projeto, são
atribuições das CEUA: 1. cumprir e fazer cumprir as resoluções do
CONCEA; 2. examinar os procedimentos de ensino e pesquisa com
animais a serem realizados na instituição à qual esteja vinculada, a
142
Danielle Maria Machado Ribeiro Azevêdo
fim de determinar sua compatibilidade com a legislação aplicável; 3.
manter cadastro dos citados procedimentos e dos pesquisadores e, 4.
notificar o CONCEA acerca de eventuais acidentes e ocorrências
com os animais em questão.
O Projeto de Lei no 3.964/97 continua em tramitação na Câmara
dos Deputados. Alguns pontos do Projeto são bastante questionados
pela comunidade científica, sendo destacado pelo COBEA (2005) a
vinculação do Projeto de Lei ao Ministério do Meio Ambiente, tendo
como órgão executor e fiscalizador das atividades o Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).
Para a comunidade científica, a vinculação primária deve ser ao
Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), tendo como órgão
executor, supervisor e avaliador sua Secretaria de Desenvolvimento
Científico. Isso decorre de que o CONCEA será responsável pela
elaboração de normas e procedimentos para uso de animais utilizados
para pesquisa e ensino, que, por sua essência, tem vinculação primária
ao MCT. O COBEA (2005) ressalta ainda que a maior parte dos
animais (99% são camundongos, ratos, hamsters, cobaias e coelhos)
utilizados em pesquisa não são autóctones ou de origem silvestre.
Outro problema levantado é a emenda da Deputada Federal Iara
Bernardi (PT/SP), de julho de 2003 (que criou o Projeto de Lei no
1.691/2003) (BRASIL, 2003), que dispõe sobre o uso de animais
para fins científicos e didáticos e estabelece a escusa de consciência à
experimentação animal. Esse Projeto de Lei, bastante polêmico,
também foi apensado ao Projeto de Lei no 1.153/1995. O atual relator
do Projeto de Lei no 3.964/1997 é o deputado Federal Sérgio Miranda
(PC do B/MG), e a revisão de pontos considerados essenciais pela
comunidade científica para tornar a lei exeqüível ainda estão em curso.
A CF foi o embrião da redação da Lei no 9.605, de 12 de fevereiro
de 1998 (Lei dos Crimes Ambientais) (BRASIL, 1998), que foi
regulamentada pelo Decreto no 3.179, de 21 de setembro de 1999
(BRASIL, 1999), e que considera infração penal da conduta de
crueldade para com os animais. O artigo 32 dessa Lei prevê pena de
detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa para quem “praticar
Experimentação animal
143
ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres,
domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. Em seu parágrafo
1º. “incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou
cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos,
quando existirem recursos alternativos”. Em seu parágrafo 2º, “a pena
é aumentada em 1/6 a 1/3 se ocorre morte do animal”.
Atualmente, na realidade, a única lei vigente no país que pode ser
considerada aplicável, ainda que de forma bastante inadequada, à
prática de experimentação animal é a Lei dos Crimes Ambientais
(Lei no 9.605/1998). Em decorrência das ameaças de punição nela
inseridas, a grande maioria das instituições de ensino e de pesquisa
no Brasil estão criando suas próprias CEUA, baseadas na estrutura
operacional já prevista no Projeto de Lei em tramitação, visando
prevenir o uso inadequado de animais, além de implantar uma política
de adoção dos princípios éticos estabelecidos pelo COBEA e de
educação dos profissionais envolvidos nos protocolos experimentais.
Em âmbito estadual, o Decreto Municipal (RJ) 19.432, de 1º de
janeiro de 2001 (RIO DE JANEIRO, 2001), tendo como fundamento
a Lei no 9.605, de 1998, proibiu a prática de vivissecção e de
experiências com animais em instituições veterinárias públicas
municipais, na existência de tecnologia alternativa para a
experimentação. Essa norma, que adota parcialmente os 3Rs,
equiparou a conduta de quem realiza experiência dolorosa ou cruel
em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando
existirem recursos alternativos, àquela de quem pratica ato de abuso
ou de maus-tratos, ou que fere ou mutila animais, o que deve ser
punido com pena de detenção de três meses a um ano e multa.
CONCLUSÃO
Percebe-se que, apesar dos estudos em animais continuarem a ser
vitais para o desenvolvimento da ciência, a crueldade implícita na
atividade experimental sobre animais é reconhecida, visto que a
legislação vigente no Brasil, bem como os projetos de lei em
144
Danielle Maria Machado Ribeiro Azevêdo
tramitação, sugere a utilização de métodos alternativos que evitem o
sofrimento animal. No entanto, na realidade, continua patente a
necessidade de leis mais específicas sobre a utilização de animais em
experimentação e a urgência de a sociedade ser estimulada ao debate
sobre a utilização de animais em pesquisa e ensino, devendo inclusive
manifestar sua opinião sobre a experimentação animal. Associada à
comunidade científica e às instituições protetoras dos animais, a
sociedade tem o poder e a responsabilidade de pressionar os
legisladores no sentido de mostrar a eles a importância do tema
experimentação animal e, portanto, da necessidade de leis que
regulamentem tal prática.
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148
Consentimento livre e esclarecido em
tratamento odontológico infantil: estudo de
caso na Universidade Federal do Piauí
Wagner Leal de Moura
INTRODUÇÃO
O relacionamento entre profissionais de saúde e pacientes, assim
como as pesquisas científicas envolvendo seres humanos, foram
marcados historicamente por posturas autoritárias, em que a dignidade
da pessoa humana e sua autonomia eram desconsideradas. O
consentimento não se caracterizava por uma prerrogativa individual,
mas, via de regra, estava regulamentado pelos costumes ou tradições
relacionados a determinadas comunidades ou épocas específicas. Não
havia, portanto, a necessidade de serem consideradas as peculiaridades
inerentes a cada indivíduo, ficando a autonomia dos pacientes atrelada
às regras sociais em vigor, resultando no chamado consentimento
tácito, não necessariamente formalizado (NEVES, 2003). Os abusos
referidos ainda são fatos observados, principalmente quando estão
envolvidas pessoas em situações de vulnerabilidade, cujas condições
Consentimento livre e esclarecido em tratamento odontológico infantil
149
de saúde, pobreza e escolaridade limitam a capacidade de
autodeterminação.
O primeiro documento que estabeleceu princípios éticos que
contemplassem a autonomia dos sujeitos envolvidos em pesquisa foi
o código de Nuremberg em1947 (SGRECCIA, 2002). O documento
faz menção ao Consentimento Informado e foi escrito após a
constatação de abusos cometidos em seres humanos durante a II
Guerra Mundial . A partir desse escrito, as normas regulamentadoras
de pesquisas científicas envolvendo seres humanos têm sido
implementadas, como ocorreu em 1964, quando a Associação Médica
Mundial adotou a Declaração de Helsinque (ASSOCIAÇÃO
MÉDICA MUNDIAL, 1989), que foi submetida a atualizações
periódicas até o ano de 2000 (DINIZ e CORRÊA, 2001) . Essa
declaração preconiza que o pesquisador deve obter o consentimento
informado e voluntário assinado por cada sujeito envolvido na
pesquisa.
Entretanto, apesar dos tratados humanitários em defesa dos direitos
humanos, até os anos 70 o mundo científico continuava indiferente
ao estabelecimento de normas regulamentadoras das pesquisas. O
governo norte-americano, em 1974, instituiu a Comissão Nacional
para a Proteção dos Sujeitos Humanos, na Pesquisa Biomédica e
Comportamental, resultando no Relatório Belmont (BEAUCHAMP
e CHILDRESS, 1994). O documento enfatizou o princípio do respeito
pelas pessoas, chamando atenção para a necessidade de que os
indivíduos sejam tratados como sujeitos autônomos e para o fato de
que aqueles cuja autonomia é reduzida devem ser protegidos de
qualquer forma de abuso. O relatório consolidou a necessidade de
utilização do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE),
no qual não só a vontade deve ser respeitada, mas deve haver a certeza
da total compreensão sobre todos os aspectos da pesquisa.
No Brasil, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) publicou a
Resolução 01/88, definindo aspectos éticos a serem obedecidos nas
pesquisas com seres humanos. Após ampla consulta à comunidade
150
Wagner Leal de Moura
científica e outros setores da sociedade, o conselho concluiu que a
norma deveria ser aprimorada, resultando na Resolução 196/96, até
hoje reguladora das pesquisas realizadas no país (BRASIL, 1988;
BRASIL, 1996; HOSSNE e FREITAS, 1996).
A Resolução 196/96 refere-se ao TCLE, que trata da “anuência
do sujeito e/ou de seu representante legal, autorizando sua
participação voluntária na pesquisa”. O esclarecimento deve ser feito
em linguagem acessível e deve-se considerar, na sua obtenção, o nível
educacional, a maturidade e a cultura dos envolvidos, com perfeito
entendimento da informação que recebem. Após o pesquisador
repassar todas as informações pertinentes à pesquisa, dirimir as
dúvidas dos participantes, e assegurar-se de que os sujeitos
entenderam cada procedimento a que serão submetidos, estará
respeitando a dignidade dos mesmos e garantindo-lhes a autonomia
(MARSHALL, 2000).
O presente artigo tem como objetivo avaliar, após a determinação
do perfil sócio-econômico e educacional dos pacientes atendidos no
curso de Odontologia da Universidade Federal do Piauí, em que
sentido sua manifestação de vontade é realmente livre e esclarecida
quando assinam o termo de consentimento.
A
PESQUISA
Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Federal do Piauí (UFPI), foi iniciado o estudo objeto deste texto. Os
sujeitos da pesquisa assinaram um termo de consentimento livre e
esclarecido, obedecendo o que preceitua a Resolução 196/96 do CNS.
A amostra foi constituída por 50 adultos responsáveis por
crianças atendidas na Clínica Infantil do curso de Odontologia da
UFPI. O número de sujeitos correspondeu a 50% do total de crianças
atendidas no primeiro período letivo de 2005.
Foi entregue a cada responsável um TCLE para ser lido e entendido;
após isso, foi explicado, pelo autor do trabalho, o termo de
consentimento proposto para utilização naquela clínica. Mais uma
Consentimento livre e esclarecido em tratamento odontológico infantil
151
vez, o documento foi lido em voz alta e os sujeitos do estudo
acompanharam a leitura. Caso surgisse alguma dúvida, esta seria
respondida pelo pesquisador.
Em seguida, foi aplicado um questionário aos participantes
contendo questões pertinentes ao entendimento do termo proposto,
questionário cuja elaboração teve como base pesquisa na literatura
relativa aos objetivos do estudo. Foram realizados pré-testes dos
questionários com 10 sujeitos, objetivando proceder aos ajustes
necessários para uma melhor compreensão do tema abordado e
validação dos dados.
Considerou-se que o entrevistado entendeu o real significado do
TCLE quando respondeu que ele tem por finalidade principal proteger
o paciente contra abusos, resguardando sua autonomia. Essa
alternativa constava na última questão.
Os questionários foram aplicadas no período de abril a junho de
2005. Os resultados obtidos foram registrados em fichas individuais
para posterior digitação e análises. Foram utilizados os recursos da
planilha de cálculo do Programa Excel 2000.
RESULTADO
Tabela 1: Perfil da clientela atendida. UFPI, 2005
Nenhum dos pacientes entrevistados tinha assinado ou conhecimento de documento
semelhante.
152
Wagner Leal de Moura
Tabela 2: Entendimento do TCLE* (autopercepção) e
comprovação do entendimento. UFPI, 2005
* TCLE: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Foi comprovado o entendimento do TCLE quando o paciente
respondia que o documento referia-se à proteção do sujeito com
relação a possíveis abusos.
Tabela 3: Entendimento do TCLE, escolaridade e renda familiar.
UFPI, 2005
DISCUSSÃO
A clientela estudada apresentou fortes características de
vulnerabilidade, ou seja, ausência de autonomia, situação
freqüentemente observada em usuários de serviço público (DINIZ,
2001; BARROS e FORTES, 2003). Apesar de a maioria dos
entrevistados ter concluído o ensino médio, a maior parte tem renda
Consentimento livre e esclarecido em tratamento odontológico infantil
153
familiar de até dois salários mínimos, fator limitador do acesso a
serviços odontológicos em clínicas particulares.. Mesmo considerando
que a metade dos entrevistados declarou que busca o serviço da UFPI
pela qualidade e a outra metade, pela gratuidade, dificilmente aqueles
que declararam que buscam o serviço pela qualidade teriam outra
opção de tratamento, o que reforça a vulnerabilidade dos pesquisados.
A utilização do TCLE deveria fazer parte dos protocolos de todos
os serviços da área da saúde oferecidos à comunidade (COHEN,
2002), mas é ainda um processo em implantação que enfrenta a
resistência e acomodação de muitas instituições. O consentimento é,
sem dúvida, a forma encontrada para que se possa proceder ao
desenvolvimento de pesquisas, de ensino e de serviços de saúde em
geral, respeitando a autonomia. Questiona-se, porém, se, na prática,
os sujeitos envolvidos estão se manifestando de maneira livre e
esclarecida, sobretudo quando se trata de sujeitos vulneráveis, como
é o caso daqueles atendidos nos estabelecimentos de ensino na área
da saúde.
Os sujeitos envolvidos na pesquisa assinaram passivamente o
documento proposto, sem questionamentos nem dúvidas. Esse fato
talvez possa ser atribuído à condição de vulnerabilidade no tocante à
assistência em saúde, tornando o sujeito fragilizado e dependente da
instituição que o assiste (HOSSNE, 2003a; HOSSNE, 2003b;
AZEVEDO, 2003).
A linguagem e a estrutura do texto utilizadas no TCLE são aspectos
que devem ser avaliados com critério, pois mesmo quando o
documento é apresentado de forma acessível os sujeitos de pesquisas
que o assinam têm demonstrado desconhecimento dos termos que
lhes são propostos (HOSSNE, 2003a; CLOTET, GOLDIM e
FRANCISCONE, 2000).
Os profissionais da área de saúde executam pesquisas constantes.
Portanto, devem atuar como pessoas morais, não apenas como técnicos,
tendo em vista que o campo de atuação é diretamente relacionado a
seres humanos, e a relação profissional-paciente deve priorizar as normas
éticas e não as técnico/científicas (SERRÃO, 1999).
154
Wagner Leal de Moura
Quando inquiridos sobre o entendimento do TCLE (tabela 2), a
maioria (60%) afirmou positivamente, apesar de o fato não ter sido
comprovado quando foram questionados sobre a quem o termo
deveria proteger – o paciente (tabela 2).Essa proteção constituiu a
razão principal da instituição do documento desde o Código de
Nuremberg, passando pela Declaração de Helsinque, até a Resolução
196/96. Tais resultados corroboram os dados encontrados na
literatura pesquisada, que comprovam a passividade dos usuários de
serviços públicos que geralmente se colocam na posição de
recebedores de serviços gratuitos, sem se preocuparem com o
exercício da autonomia, aceitando regras e assinando quaisquer
documentos que lhe são apresentados (HOSSNE, 2003a).
A comprovação do fato leva a uma reflexão sobre a importância
da conscientização e educação da comunidade para situações
referentes ao exercício da prática da cidadania, devendo-se esclarecer
as pessoas sobre a necessidade de interagirem como atores do processo
de escolha nas práticas relativas à saúde. Agindo-se dessa forma, é
certo que novos conceitos passam a ser assimilados e utilizados nas
práticas diárias e, somados a outros precedentes, vão aos poucos
modificando as mentalidades, de modo que seja elevada a capacidade
de autodeterminação.
A fim de contemplar a autonomia e preservação da dignidade,
para participar ou não da pesquisa é fundamental, de acordo com a
Resolução 196/96, que o sujeito envolvido não sofra coerção e/ou
manipulação. Para tanto, faz-se necessária a prática dialógica entre o
sujeito e o pesquisador, devendo este responder a perguntas e
esclarecer todas as possíveis dúvidas do primeiro. Dessa forma,
possibilita-se ao paciente entender os procedimentos, riscos e
benefícios do tratamento, bem como o significado da assinatura do
documento.
A redução da autonomia e a vulnerabilidade são fenômenos
estreitamente relacionados e observados entre indivíduos ou grupos
minoritários em relação a outros envolventes, caracterizando situação
de desigualdade. Essa dicotomia é estabelecida por razões sócio-
Consentimento livre e esclarecido em tratamento odontológico infantil
155
econômicas, culturais e políticas, bem como por fragilidades étnicas
e relativas à saúde (GUIMARÃES e NOVAES, 1999). Os fatores
econômico e educacional são os que mais deveriam contribuir para a
visão demonstrada pelos pesquisados sobre o termo de
consentimento. Porém provavelmente este último não exerceu
influência sobre o nível de entendimento do termo proposto (tabela
3), levando-se em conta a homogeneidade no grau de escolaridade –
80% freqüentaram escola por um período de oito anos.
Independentemente das causas, as relações profissional/paciente e
pesquisador/sujeito devem ser permeadas pela ética, e tanto
pesquisadores quanto profissionais de saúde devem reconhecer essas
causas, privilegiando sempre o respeito pela dignidade da pessoa
humana.
CONCLUSÃO
Os resultados da pesquisa indicam claramente que os responsáveis
pelos pacientes da clínica infantil do curso de Odontologia da UFPI
assinam o TCLE sem entendê-lo, o que provavelmente resulta de sua
condição de vulnerabilidade, caracterizada pela condição sócioeconômica e conseqüente dependência do serviço, assim como pelo
nível educacional demonstrado.
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Pena de morte: uma abordagem contextual
Osita Maria Machado Ribeiro Costa
INTRODUÇÃO
A pena de morte consiste na privação da vida do réu, condenado
pela autoridade judiciária competente, uma vez considerado culpado
por ter cometido determinada modalidade de delito. Trata-se da mais
grave pena corporal. A vida é, do ponto de vista técnico, o bem jurídico
mais importante de que dispõe uma pessoa física, e o Direito deve
garantir sua proteção frente a qualquer ação que a ponha em perigo.
O fato de a pena de morte constar do ordenamento jurídico, seja de
qual for o país, legitimando-a, ainda que em casos extremos, suscita
amplo debate quanto à sua aplicação, cujas implicações extrapolam
os argumentos meramente jurídicos e incidem em campos como o
da moral, da política e da sociologia.
Recentemente, o mundo ficou dividido ao saber que um ex-líder
Pena de morte
159
de gangue na Califórnia (EUA), Stanley Williams, fora executado, 24
anos depois de ter sido condenado pela morte de quatro pessoas,
tendo o Governador daquele Estado ignorado o pedido de clemência
solicitado por várias organizações contrárias à pena de morte, atuantes
dentro e fora daquele país. Para uns, fez-se justiça, para outros, acirrouse ainda mais a criminalidade. O caso em si tomou contorno
emblemático, principalmente ao ser divulgado que o prisioneiro, em
mais de duas décadas de espera pela condenação, passou a escrever
livros censurando a violência entre os jovens, recebendo até indicações
para o Prêmio Nobel da Paz (BRITISH, 2005).
Iniciamos o presente texto com a descrição de um caso concreto
e recente, pois isso facilita o entendimento dos extremos, ao tempo
que possibilita demonstrar as duas faces de uma mesma moeda. O
Estado estaria punindo exemplarmente o criminoso ao assassiná-lo?
Existiriam outras medidas capazes de retribuir uma punição exemplar
que não fosse a morte do condenado? É isso que pretendemos
responder, sem a necessidade de se tomar partido pró ou contra, mas
tão-somente ir ao encontro das forças argumentativas que procuram,
por um lado, justificar medidas coercitivas do Estado em grau extremo,
e, por outro, oferecer a oportunidade ao condenado de obter as
condições de regenerar-se, evitando assim a utilização da pena capital.
Um dos argumentos mais usados pelos oponentes da pena de morte
consiste em que, em inúmeros casos de pessoas já executadas ou
condenadas e à espera da execução, surgem fatos novos que
demonstram tratar-se de condenação equivocada. Recorre-se na
atualidade, com maior rigor, a provas que, de forma inequívoca, podem
dirimir qualquer dúvida, a exemplo das baseadas em exames de DNA,
estrelas dos últimos episódios envolvendo a Medicina Forense, provas
que têm inocentado prisioneiros que se encontravam no chamado
“corredor da morte” e que, por outro lado, também permitem a
incriminação de quem era considerado inocente. Assim, à medida
que cresce o número de países que aboliram a pena de morte, tendo
como motivação maior o fato de não se cometer injustiças, propiciase a chance de manter vivo o condenado, ainda que privado de
160
Osita Maria Machado Ribeiro Costa
liberdade. Contudo, quantos não fariam a opção pela morte, ao invés
de permanecer vivos e serem condenados à prisão perpétua? A mídia,
ao retratar o tema, tem entrevistado inúmeros prisioneiros que se
declaram favorável à morte em vez de permanecer em celas pelo
resto de suas vidas.
Isto posto, torna-se oportuno resgatar dados históricos que
envolveram países e personagens que se manifestaram seja na condição
de proponentes, seja na de oponentes da pena de morte. Ao final do
texto, nos propomos analisar a situação atual em todo o planeta,
principalmente nos reportando aos dados divulgados pela Anistia
Internacional, sob a forma de denúncia, uma vez que essa entidade
posiciona-se frontalmente contrária a pena de morte.
DADOS
HISTÓRICOS
A pena de morte sempre foi admitida na maior parte das antigas
civilizações, por ser considerada o meio mais eficaz de se manter a
paz e excluir do convívio social os delinqüentes sociais. A pena capital
tinha um caráter aterrorizador, pois as execuções eram públicas e a
finalidade não se cingia tão-somente à morte do condenado, mas
consistia também em infligir-lhe suplício que determinasse
sofrimentos tais que amedrontassem os delinqüentes em potencial,
ali postados para assistir ao flagelo do semelhante. Na China, o Código
Penal da Dinastia detalhava os motivos que levavam os cidadãos à
pena de morte, a exemplo do homicídio, sedução, falsificação de
moedas, simulação de patentes militares etc. Na Índia, o Código de
Manú dedicava 24 artigos e parágrafos que explicitavam as condições
que enquadravam o condenado à pena de morte. Já a civilização grega
reservava a pena de morte aos cidadãos que desviavam suas condutas
dos padrões admitidos pela sociedade como sendo de bem-estar
público. Platão defendia a pena de morte, considerando que aquele
que cometeu um ato bárbaro contra seu semelhante deveria ser
considerado irrecuperável, justificando assim que a pena a ser aplicada
deveria ser a morte. Desse modo, séculos antes de Cristo, a pena de
Pena de morte
161
morte era entendida como necessária e indispensável como punição
e ao mesmo tempo convertida em medida exemplar, na tentativa de
se coibir a proliferação do crime. Assim, além de “perfeitamente
legítima, mas até mesmo como natural, desde as origens de nossa
civilização, bem como do fato de que aceitá-la como pena jamais
constituiu um problema” (BOBBIO, 2004, p.168).
A postura do cristianismo sobre a pena de morte pode ser
considerada a primeira reação ética sobre o tema. O ideário cristão,
tendo por base a caridade e o perdão aos inimigos, condenava a
subtração da vida de uma pessoa por parte do Estado, oferecendolhe a oportunidade de redimir-se e ganhar a vida eterna, merecendo
obter o perdão independentemente do crime cometido. Isso não quer
dizer que houve o banimento por completo da pena de morte a partir
do cristianismo, persistindo controvérsias entre juristas e a Igreja,
que era contrária a sua aplicação. Na Idade Média, muitos se
manifestavam favoravelmente à pena de morte por motivos os mais
diversos, dentre os quais o aumento da criminalidade nas proximidades
das cidades, já que constantemente ocorriam roubos de cargas. O
conflito se manteve até o século XII, quando do surgimento dos
primeiros teólogos juristas, partidários da legitimidade da pena de
morte. Santo Tomás de Aquino justificou a pena de morte como
castigo aplicado por autoridade civil para certas ações que atentavam
contra o bem-estar social. Acompanharam a tese tomista muitos
outros teólogos e juristas que mantiveram essa posição, especialmente
nos séculos XVI e XVII, extrapolando-se, a partir das dissidências
do clã cristão, as condenações em fogueiras por motivos religiosos,
as quais caracterizaram a Santa Inquisição. Com o advento das idéias
de Montesquieu, Voltaire e de juristas como Hommels e Sonnenfels,
passaram a ser acolhidas situações singulares nas legislações de
inúmeros países europeus circunscrevendo-se aos diplomas penais
raras indicações quanto à utilização da pena de morte. Somente no
período do Iluminismo, em pleno século XVIII, é possível encontrarse algum debate sobre a pena de morte, sua legitimidade e as formas
de implantação de acordo com a modalidade de cada delito praticado.
Encontramos na obra de Beccaria, intitulada “Dos Delitos e das
162
Osita Maria Machado Ribeiro Costa
Penas”, questionamentos no plano ético e legal às reais motivações
de uma atitude tão dura e avessa ao papel do Estado, que é, ao invés
de promover a eliminação física, o de recuperar aqueles que cometeram
algum delito, independentemente da sua gravidade (BECCARIA,
1999). Esse texto, principal referência do Direito Penal moderno,
publicado pela primeira vez em 1764, contrapõe-se à teoria tomista.
O autor acrescenta que não há necessidade de que as penas sejam
cruéis para serem dissuasórias, bastando que sejam justas. Beccaria
defendia o princípio de que jamais se deveria tirar o direito de
arrependimento e de recuperação, sendo papel do Estado oferecer a
estrutura penal que proporcionasse essa manifestação restauradora
da personalidade delituosa. Exclamava ele, com desdém: “o Estado
jamais poderia oferecer a mesma moeda em troca de um ato criminoso,
ou seja, institucionalizar o assassinato com o propósito de minimizar
futuros crimes” (BECCARIA, 1999, p. 86). Suprimir a vida de alguém
que detém uma biografia não exemplar não deve ser o papel do Estado.
Que mecanismos levaram a legitimar a idéia de usar a morte como
pena? Pode-se pensar em matar para fazer justiça? E como se pode
infligir a mais cruel das torturas, a que adia a execução da pena, à
espera de uma improvável suspensão? Tudo nasce com uma orientação
bem precisa - não tanto reconstruir a história da pena de morte quanto
ver a morte como pena. Não se trata de simples jogo de palavras.
Assumir o primeiro pressuposto significa considerar indiscutível a
ferocidade humana e aceitar o assassinato judicial de uma pessoa como
um fato natural e óbvio, que sempre existiu. Pelo segundo ponto de
vista, o problema já não consiste em constatar a ferocidade humana,
e sim em tentar compreender por que o instinto homicida foi
sublimado em instituto jurídico, e como e quando um momento
impulsivo e incontrolável do agir humano se transformou em ação
legal, racionalmente calculada e predeterminada, regulada por normas
precisas e sancionada com uma sentença.
Foi, portanto, a partir do livro de Beccaria que surgiram
manifestações de diversos países abolindo em caráter definitivo a pena
de morte, a exemplo do clamoroso eco que obteve na Rússia de
Catarina II, em cuja célebre Instrução, proposta já em 1765, ou seja,
Pena de morte
163
imediatamente após aquela publicação, é possível ler-se o seguinte:
“a experiência de todos os séculos prova que a pena de morte jamais
tornou uma nação melhor” (BOBBIO, 2004, p. 170).
Os precursores de Beccaria mais citados na literatura e que
abordaram o tema pena de morte foram Montesquieu e Rousseau.
No clássico O espírito das leis, Montesquieu, embora sem ter sido um
penalista, exerceu forte influência entre os filósofos e juristas de sua
época. Montesquieu condenava a severidade dos castigos como “mas
propia del gobierno despótico, cuyo principio es el terror, que de la
monarquía o de la república, las cuales tienen por resorte,
respectivamente, el honor y la virtud” (apud LEVAGGI, 1972, p. 18).
Também Rousseau, não sendo penalista, tratou do direito de vida e
morte em um dos capítulos de sua obra O contrato social, em 1762,
considerando que “quien quiere conservar su vida a expensas de otros,
debe darla también por ellos cuando es necesario” (ROUSSEAU apud
LEVAGGI, 1972, p. 18).
MODALIDADES
DE EXECUÇÃO
Na atualidade, cada país que adota a pena de morte em seu
ordenamento jurídico o faz de acordo com a peculiaridade do delito
e na dependência das circunstâncias políticas. Cite-se o caso dos
Estados Unidos, país que adota diferentes formas de ceifar vidas
legalmente, ressalvando-se, porém, que cada estado da federação tem
liberdade e autonomia para adotar ou não em seu arcabouço jurídico
a pena capital. Os que defendem a pena de morte, falam de
“humanismo” quando da execução, procurando minimizar o impacto
do resultado obtido sob a alegação de que o executado nada sofreu
ao alcançar uma morte instantânea. Assim, achamos oportuno citar
as principais modalidades de execuções ainda em prática em todo o
planeta. Algumas, citadas somente pelo seu valor simbólico, outras,
pela tentativa de medicalizá-la nos dias de hoje:
a) A forca, método utilizado na antiguidade entre os hebreus, gregos
e romanos, difundiu-se por toda a Europa durante a Idade Média. Foi
utilizada no Reino Unido até a abolição da pena de morte em 1969. Na
164
Osita Maria Machado Ribeiro Costa
atualidade, ainda é aplicada em alguns estados norte-americanos e em
vários países asiáticos, africanos e do Oriente Médio.
b) A decapitação, um dos procedimentos de execução mais antigos.
Substituído pela guilhotina durante a Revolução francesa, permaneceu
vigente na França de 1791 até 1981, ano da abolição formal da pena de
morte entre os franceses. Atualmente, mantém-se como método de
execução em Mandagascar, Laos e Guiana.
c) O garrote, método de execução utilizado quase exclusivamente na
Espanha. Adotado em 1832 em substituição à forca. Também foi utilizado
em Portugal, Cuba, Bolívia, Porto Rico e Filipinas.
d) O fuzilamento constitui-se, na atualidade, no método mais
difundido independentemente de se tratar de crime militar ou de delitos
comuns. A execução mediante arma de fogo tem sido utilizada desde o
século XV. Os países que mais empregam o fuzil como instrumento de
pena de morte são: China, Argélia, Cuba, Rússia, Tailândia e grande
número de países africanos.
e) A cadeira elétrica é o método típico de pena de morte adotado
pelos Estados Unidos, em grande número de Estados daquele país,
utilizada pela primeira vez em 1890. Surgiu com o propósito de substituir
a forca e “humanizar” o momento da morte, tornando-a rápida e indolor.
Somente 38% dos condenados à morte nos Estados Unidos no ano de
1996 foram submetidos à cadeira elétrica.
f) A câmara de gás foi usada pela primeira vez em 1924, no estado
norte-americano de Nevada, ao considerarem mais segura que a forca e
a cadeira elétrica. Encontra-se em desuso, em favor da injeção letal.
g) A injeção letal foi utilizada como método moderno de execução
nos Estados Unidos a partir de 1977. Consiste na injeção de altas doses
de barbitúricos e substâncias curarizantes, drogas cujo efeito consiste em
promover a paralisia da musculatura. A Associação Médica Mundial, desde
1981, tem condenado a participação de médicos na condição de verdugos,
ressaltando que o mandamento básico da profissão é preservar a vida.
CONSIDERAÇÕES
ÉTICAS E JURÍDICAS
Pena de morte
165
Vários autores, ao tratar do tema, mencionam os diversos
inconvenientes de se infligir a morte aos semelhantes delituosos. Foi
sob essa ótica que Bentham quis demonstrar que “com a morte do
criminoso acabam as provas, que podem servir em juízo para esclarecer
a verdade”, acrescentando que “os arquivos do crime estão em parte
na memória dos malfeitores” (BENTHAM, 2002, p. 156). Os
proponentes da pena de morte defendem o princípio do ordenamento
jurídico poder contar com um recurso intimidatório, face aos crimes
de extraordinária gravidade ou suscetíveis de pôr em risco a própria
comunidade. Aduzem em prol da argumentação o caráter exemplar
de dissuasão para qualquer membro da mesma sociedade cometer
delitos de qualquer natureza. Aludem que a aplicação da pena extrema
somente seria utilizada quando não restasse dúvida quanto à autoria
do crime. Por fim, argumentam que essa modalidade de extermínio
do criminoso é a única certeza de assegurar que o delinqüente que
ofereça grande risco à sociedade não volte a cometer as mesmas ações.
Os oponentes à pena de morte defendem ser papel do Estado
procurar reabilitar o criminoso independentemente da modalidade
de crime que pratique. As estatísticas demonstram que, mesmo em
países onde a pena capital é exercida com mão de ferro, ela não
minimiza a ocorrência de crimes das mais diversas gravidades. Em
uma perspectiva sociológica, afirma-se que a pena de morte é injusta
em sua aplicação, ao se identificar que grande número de pessoas
executadas são desprovidas de condições capaz de contratar
advogados de renome, que possam interferir diretamente no
julgamento, favorecendo o réu. Afinal, quem não lembra da
participação dos advogados de OJ Simpson, ex-jogador de futebol
americano, acusado do assassinato de sua ex-esposa e do homem que
a acompanhava, conseguindo a absolvição do atleta, mesmo após as
investigações constatarem fortes indícios da autoria do assassinato..
Segundo os jornais e periódicos da época, as manobras e artifícios
advocatícios foram os responsáveis por livrar o atleta de uma punição
exemplar, ao apresentar o caso como uma conspiração de policiais
brancos contra uma vítima negra. Certamente, o caráter irremediável
166
Osita Maria Machado Ribeiro Costa
da pena de morte é injusto em sua aplicação por impossibilitar rever
qualquer erro material ou processual. Por fim, os valores éticos da
atualidade clamam pelo respeito à vida como direito subjetivo básico
e como primazia de todos os outros valores fundamentais.
Quanto à finalidade da pena, três grandes correntes de interessados
no tema e respectivas classificações são: a) os absolutistas – conceituam
pena como retribuição; em outras palavras, consideram a pena como
a retribuição justa do fato injusto, dentre figurando grandes pensadores
como Kant, Platão e Santo Tomás de Aquino; b) os que conceituam
pena como prevenção – a pena evita novas infrações, aí se
enquadrando Bentham e Beccaria, pertencentes a uma corrente
utilitarista; c) os conciliadores ecléticos – procuram conciliar as duas
correntes anteriores (pune-se porque pecou e para que não peque).
De acordo com Barreto (1984, p. 27), os principais argumentos
contrários à pena de morte seriam:
a) a pena de morte é inútil porque não intimida e desnecessária
porque pode ser substituída por penas detentivas de longa duração;
b) referindo-se ao “Contrato Social”, diz Beccaria: “a pessoa cede
mínima parte de sua liberdade, não ficando privado de todos os
direitos. Não poderia conferir à sociedade o poder de mata-la”;
c) o erro judiciário não possibilita recuperação;
d) o ser humano sempre foi avesso à pena de morte;
e) nos países que adotam a pena de morte, a criminalidade não
tem diminuído;
f) a Lei de Talião, que autoriza pena de morte, não seria aceitável
para a época atual;
g) a vida de qualquer ser humano é intangível. A pena de morte
infringe os Direitos Humanos;
h) a criminalidade tem como gênese os problemas sociais. A pena
de morte não elimina essas causas.
Senão todos, pelo menos alguns dos argumentos mais sólidos
contrários à pena de morte estão aí expostos. Procuramos não incluir
no rol argumentativo qualquer citação bíblica ou mesmo segmentos
de textos religiosos contemporâneos. Talvez o mais simbólico de todos
Pena de morte
167
venha a ser “o não matarás”.
Na mesma obra, de autoria do último autor citado, vamos encontrar
os argumentos da utilidade da pena de morte, começando por:
a) tem maior poder de intimidação que as outras penas;
b) oferece grande vantagem econômica em relação às prisões;
c) evita o contato dos presos recuperáveis com outros mais
perversos, facilitando o trabalho de reeducação;
d) fortalece o ordenamento jurídico, evitando a “justiça pelas
próprias mãos”;
e) permite melhor defesa dos Direitos Humanos;
f) possibilita a total extinção das prisões (BARRETO, 1984, p. 27).
A julgar por esses argumentos, poderemos admitir que estaríamos
defendendo a barbárie cometida pelo Estado, ou a defesa de um
Estado totalitário, distante portanto, de preceitos democráticos.
Teríamos que nos contrapor sem o propósito de vulgarizar os
argumentos de pensadores já citados, a exemplo de considerar os
fundamentos de Beccaria como inválidos para a nossa época, ou ainda,
pelo Contrato Social, de Rousseau, quando afirma que a sociedade
não tem apenas o direito, mas a obrigação de defender-se, matando
os seus inimigos. Por fim, vários autores invocam os altos índices da
opinião pública favoráveis a implantação da pena de morte em nosso
país. Convém lembrar as palavras de Barbosa, citando Vincenzo
Manzini, ao afirmar que:
a questão da pena de morte, apesar de ter dado lugar a intermináveis e
tediosíssimas diatribes por parte de filósofos e de pseudo-juristas, não é
nem questão filosófica, nem jurídica. Os argumentos que se aduzem a
favor ou contra a pena de morte não são sequer racionalmente decisivos,
quer num sentido, quer no outro, e ainda menos o podem ser juridicamente,
visto não haver outro direito além do constituído pelo Estado. A questão
de pena de morte é meramente política, porque somente pode ser decidida
seguindo critérios políticos (MANZINI apud BARBOSA, 1984, p. 41).
Quem sabe, talvez alguns proponentes da pena de morte tenham
esquecido que a valoração da vida e da morte somente é possível
mediante conceituações filosóficas. Assim, a pena de morte é questão
filosófica porque a sua apreciação envolve necessariamente a filosofia
168
Osita Maria Machado Ribeiro Costa
de valores.
Com efeito, a obtenção de um fim bom não justifica a utilização
de qualquer meio. Enquanto se puder demonstrar que o meio da
pena de morte não é o único possível para obter o fim bom da
segurança da comunidade política, dever-se-á renunciar a todos os
casos e optar por meio menos cruentos do que destruir uma vida
humana. (SALVINO e SALVATORE, 2001, p. 833).
NÚMEROS
E FATOS DA PEN A DE MORTE
Considerando que poucos crimes são puníveis com a pena de
morte, mesmo em países cujo ordenamento jurídico é extremamente
severo, muitos criminosos que cometeram crimes considerados
bárbaros terminam por permanecer vivos, nas prisões, ao invés de
serem executados. Entre 1967 e 1977, não há relato de execuções nos
Estados Unidos, embora 36 estados adotassem, então, a pena de morte
naquele país. De 1977 até 1992 foram executados 190 condenados e
2.500 permaneciam no corredor da morte (REICH, 1995).
Segundo dados da Anistia Internacional, mais da metade dos países
em todo o mundo aboliram a pena de morte, oficialmente ou na
prática. 86 países e territórios aboliram as execuções para todos os
crimes, 11 permaneceram com a pena de morte somente como
exceção, como os crimes de guerra, e 24 podem ser considerados
abolicionistas na prática, isto é, embora esteja prevista a pena de morte
em seus códigos, não executam nenhum sentenciado há mais de 10
anos, perfazendo 121 países que aboliram a pena de morte na prática.
Por outro lado, 75 outros países ainda usam a pena de morte, mas o
número decresce a cada ano.
No ano de 2004, pelo menos 3.797 prisioneiros foram executados
em 25 países e pelo menos 7.395 foram sentenciados à morte em 64
países. Das execuções levadas e efeito em 2004, 97% tiveram lugar
na China, Irã, Vietnã e Estados Unidos. Um fato adicional que viola
direitos e tratados internacionais de direitos humanos diz respeito à
execução de menores que cometeram crimes compatíveis com a
Pena de morte
169
tipificação da pena de morte em seus países. Entidades de direitos
humanos denunciam que desde 1990 oito países executaram
prisioneiros com idade inferior a 18 anos na época em que cometeram
o delito. O país que mais desrespeitou esse princípio, isto é, responsável
pelo maior número de execuções de menores, foram os Estados
Unidos, com registro de 19 execuções entre 1990 e 2003. Outros
países também foram citados: China, Congo, Irã, Nigéria, Paquistão,
Arábia Saudita e Iêmen (ANISTIA INTERNACIONAL, 2005).
CONCLUSÃO
Não obstante as argumentações seculares contrárias à implantação
ou manutenção da pena de morte, essa modalidade de castigo ao
sentenciado ainda irá perdurar por muito tempo. É possível que os
países signatários das declarações que defendem os direitos humanos
a excluam, em caráter definitivo. Na visão de Hood, “não é prudente
aceitar a hipótese de que a pena capital dissuada o crime mais
eficazmente do que a ameaça e aplicação do castigo, supostamente
mais brando, da prisão perpétua”(HOOD, 2002, p. 230). É bastante
temerário prever quanto tempo decorrerá até que se dissipe a
diversidade de concepções acolhem a morte como pena.. Os que
defendem uma posição radical, contrária à sua aplicação, terão que
aguardar mais tempo para bani-la. No mundo de hoje, caracterizado
pelos conflitos, inúmeros são os crimes perpetrados por terroristas,
que não escolhem vítimas e dizimam parcelas inocentes da população,
passando a constituir um motivo a mais para perpetuar e endurecer
os códigos penais dos países alvos de atentados, quando, em alguns
deles, já não havia registro da morte do condenado por homicídio.
As atuais questões religiosas, a luta de fronteiras entre países ou ainda
a tentativa de conquista de independência de minorias deverão levar
a humanidade a retardar a abolição, em caráter definitivo, da pena de
morte.
170
Osita Maria Machado Ribeiro Costa
REFERÊNCIAS
ANISTIA Internacional. Disponível em: <www.amnistia-internacional.pt>. Acesso
em: 8 dez. 2005.
BARBOSA, B. A. O direito de viver e a pena de morte. Campinas: Jlex Livros,
1985.
BARRETO, A. D. Pena de morte: um remédio social urgente. São Paulo:
Universitária de Direito, 1984.
BECCARIA, C. Dos delitos e das penas. Tradução Paulo M. Oliveira. São Paulo:
Tecnoprint, 1999.
BENTHAM, J. Teoria das penas legais e tratado dos sofismas políticos. Rio
de Janeiro: Edijur, 2002.
BOBBIO, N. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004.
BRITISH Broadcasting Corporation. Disponível em: <www.bbc.com.uk/
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HOOD, R. The death penalty: a world perspective. 3. ed. Oxford: Oxford
University Press, 2002.
LEVAGGI, A. Pena de muerte en el derecho argentino precodificado. Buenos
Aires: La Universidad, 1972.
REICH, W. (Org.). Encyclopedia of bioethics. 2ª. Ed. New York: Macmillan
Free Press, 1995.
SALVINO, L.; SALVATORE, P. (Orgs.). Dicionário de bioética. Aparecida:
Santuário, 2001.
171
Sobre os autores
Danielle Maria Machado Ribeiro Azevêdo
Veterinária, doutora em Zootecnia, pesquisadora da Embrapa MeioNorte.
Debora Diniz
Antropóloga, mestre e doutora em Antropologia, pós-doutora em
Bioética, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis:
Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
Flávia Squinca
Assistente Social, mestranda em Ciências da Saúde pela Universidade
de Brasília, pesquisadora da Anis: Instituto de Bioética, Direitos
Humanos e Gênero.
Franck Janes Paula Lira
Médico, supervisor pericial do Instituto Nacional do Seguro Social (PI).
Gisleno Feitosa
Médico, especialista em Ginecologia, Chefe do Serviço de Ginecologia
do Hospital Santa Maria (PI).
Luiza Ivete Vieira Batista
Médica, especialista em Pediatria e Nefrologia Pediátrica, mestre em
Saúde Coletiva.
Malu Fontes
Jornalista, mestre e doutora em Comunicação e Cultura
Contemporâneas, professora da Universidade Federal da Bahia.
Marcelo Medeiros
Economista, mestre e doutor em Sociologia, pesquisador do
International Poverty Center.
172
Osita Maria Machado Ribeiro Costa
Advogada, defensora pública do Estado do Piauí.
Samantha Buglione
Graduada e mestre em Direito pela PUCRS, doutoranda em Ciências
Humanas pela UFSC, professora de Introdução ao Direito e Bioética
da UNIVALI/SJ-SC.
Sérgio Costa
Médico, especialista em Bioética, professor de Bioética do curso de
Direito do Instituto Camillo Filho (PI).
Thelma Maria do Nascimento
Médica, especialista em Gastroenterologia e Endoscopia, auditora
da Unimed-Teresina (PI).
Wagner Leal de Moura
Cirurgião-Dentista, mestre em Ortodontia pela Unicamp, professor
do Departamento de Patologia e Clínica Odontológica da Universidade
Federal do Piauí.
Alunos do Curso de
Especialização de Bioética
Albino Veloso de Oliveira
Anneth Cardoso Basílio da Silva
Arquimedes Cavalcante Cardoso
Cláudia Maria de Sousa Lima
Cyntya Tereza Sousa Santos
Dagoberto Barros da Silveira
Daniel Mourão Guimarães de Morais Meneses
Danielle Maria Machado Ribeiro Azevedo
Francisca Sandra Cardoso Barreto
Francisca Tereza Coelho Matos
Franck Janes Paula Lira
Gisleno Feitosa
Hélio Paiva Melo (in Memoriam)
Ivoneide Ferreira de Sousa Barros
Jannete Araújo Pereira
João Luiz Viera Ribeiro
Joaquim Carvalho Neto
Joceli Oliveira dos Santos
Luciana Saraiva e Silva
Luiz Ayrton Santos Júnior
Luiza Ivete Vieira Batista
Marcelo Martins Eulálio
Maria Alzira Carvalho
Maria do Socorro Carvalho Cardoso
Mary Nadja Lelis Coutinho
Marylane Viana da Silva
Natércia Ferreira Damasceno Rangel
Noé de Cerqueira Fortes
Osita Maria Machado Ribeiro Costa
Ronaldo Costa
Sérgio Ibiapina Ferreira Costa
Silvana Machado Neiva Leite
Stanley Brandão de Oliveira
Thelma Maria do Nascimento
Verônica Mendes Soares
Wagner Leal de Moura
Professores e Orientadores do Curso de
Especialização em Bioética
PROFESSORES
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Debora Diniz
Dirce Guilhem
José Eduardo Siqueira
Kátia Soares Braga
Malu Fontes
Marcelo Medeiros
Roger Raupp Rios
Samantha Buglione
ORIENTADORES
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Cristiano Guedes
Debora Diniz
Dirce Guilhem
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Kátia Soares Braga
Malu Fontes
Marcelo Medeiros
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Sérgio Costa
ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
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Fone/Fax: 55 (61) 3343-1731
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