O EXISTENCIALISMO EM BICHOS DE MIGUEL - Assis

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O EXISTENCIALISMO EM BICHOS DE MIGUEL - Assis
X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
[email protected]
O EXISTENCIALISMO EM BICHOS DE MIGUEL TORGA
Arilson Silva de Oliveira (Professor – Doutorando – USP)
Gisele Pereira de Oliveira (Docente – Doutoranda – UNESP/Assis)
RESUMO: Tendo como objeto de análise a antologia de contos intitulada Bichos (1940), do autor
português Adolfo Correia da Rocha (1907-1995), de pseudônimo Miguel Torga, temos o objetivo de
verificar como concepções da linha filosófica existencialista estão presentes em alguns contos através do
comportamento e reflexão das personagens. O livro é constituído de quatorze contos, dentre os quais
apenas quatro têm protagonistas que são “homens bichos”, quais sejam Madalena, Ramiro, Sr. Nicolau e
o menino Jesus, enquanto os outros possuem protagonistas “bichos homens”: o cão Nero, o gato Mago, o
jerico Morgado, o sapo Bambo, o galo Tenório, a cigarra Cega-Rega, o pardal Ladino, o melro Farrusco, o
touro Miúra e o corvo Vicente. São contos que acionam questões existencialistas, das quais algumas
foram selecionadas para comentário neste trabalho: a liberdade, seu correlato, o livre arbítrio, ou a
tomada de decisão, através de uma “conduta interrogante”, e o determinismo. Analisaremos em especial
alguns “bichos homens” a partir da perspectiva de que as personagens “bichos” de Torga existem com
uma dimensão humana que lhes é atribuída pela maneira de se expressarem através da reflexão,
seguida de uma conclusão, seja apaziguadora, seja de resolução e, assim, de mudança de vida, dentro
das limitações impostas por um ambiente natural e um ciclo natural, sujeitos às leis naturais e inevitáveis
(determinadas/deterministas). Estas leis naturais se apresentarão infalíveis, não só sobre o ambiente,
mas interiormente, quando a razão perde para o corpo, para os sentidos.
PALAVRAS-CHAVE: Existencialismo; Miguel Torga; conto.
“Nascemos sós, vivemos sós e morremos sós”.
“Não há uniformidade de critério possível
perante a surpreendente e paradoxal diversidade da vida”.
Miguel Torga
Tendo como objeto de análise a antologia de contos intitulada Bichos (1940), do autor
português Adolfo Correia da Rocha (1907-1995), de pseudônimo Miguel Torga, temos o objetivo
de verificar como concepções da linha filosófica existencialista, cujos idealizadores principais
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seriam Kierkegaard, Heidegger, Sartre e Jaspers, estão presentes em alguns contos através do
comportamento e reflexão das personagens.
O livro é constituído de quatorze contos, dentre os quais quatro têm protagonistas que
são “homens bichos”, quais sejam Madalena, Ramiro, Sr. Nicolau e o menino Jesus, enquanto
os outros possuem protagonistas “bichos homens”: o cão Nero, o gato Mago, o jerico Morgado, o
sapo Bambo, o galo Tenório, a cigarra Cega-Rega, o pardal Ladino, o melro Farrusco, o touro
Miúra e o corvo Vicente.
Essa aproximação (ou confluência) entre homens e “bichos” advém da visão de Torga
de que o homem “civilizado” rompeu com a natureza e, com isso, têm seus valores, frutos do seu
tempo, corrompidos, estando, assim, distanciado de sua origem, a “Mãe Natureza”, e, por isso,
busca-se mostrar, em contraposição à superioridade humana iluminista, que homens e “bichos”
compartilham virtudes (cf. COSTA, 2010, p. 9-10).
É um exercício pedagógico que visa “salvar” o homem, afinal, nos diz Torga que “o
homem continua a ser a minha aposta. Sem acreditar nele, como poderia acreditar em mim?”
(apud COSTA, 2010, p. 8):
Coerente com as ideias iniciadas do Segundo Modernismo português, capitaneado pela
“Presença”, Miguel Torga faz da grandeza do homem o fulcro da sua obra. Perquirir o
trágico, inerente ao ato de viver com autenticidade, tem sido o seu horizonte, a sua linha de
prumo retesada pelo peso específico de uma linguagem, por meio da qual a literatura
portuguesa se apresenta renovada ao mundo de hoje (COSTA, 2010, Ibidem, p. 93).
Assim, o retorno à natureza, à pureza comum entre o homem e os “bichos” se perfaz
na obra como um verdadeiro eterno retorno necessário, que curará o homem dos males do seu
tempo:
Cabe a cada homem regressar à sua origem e torná-la presente e atuante em sua vida,
ainda que civilizada. Somente voltando à origem, por meio do contato com o outro, ou seja,
com os seres vivos que vivem integrados à natureza e são dotados de simplicidade, pureza
e sensibilidade, o homem “despertará” e “reaprenderá” a usar a sua sensibilidade e passará
a harmonizá-la com a razão. Passará, assim, a guiar-se por valores fundamentais, como a
fraternidade e a solidariedade – valores que lhe permitam ter uma relação mais justa com o
seu semelhante (Idem, p. 10).
Dessa forma, a premissa do “parentesco” entre os homens e os “bichos” alegorizada
aqui por “bichos homens” e “homens bichos” visaria evidenciar e reviver esta aproximação
latente entre esses seres naturais; parentesco este que é renegado na modernidade, sob os
auspícios das luzes, mas que exige uma revisão consciente, pois “Exige consciência de cosmos
antes de consciência de ser” (TORGA, 1970). Essas premissas existencialistas se universalizam
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no mundo torguiano na medida em que suas personagens se dão como “arquétipos da
afirmação ou abdicação humanas, quer quando Torga antropomorfiza os bichos, quer quando
bestializa o homem” (MAIA,1999, p. 159).
Para tanto, ou seja, para resgatar esse parentesco, os contos acionam questões
existencialistas, subtendendo que se perfazem perante os seres por meio de leis inevitáveis e
contínuas (existencialistas).
Três pontos foram selecionados para comentário neste trabalho: a liberdade, seu
correlato, ou seja, o livre arbítrio, por meio da “conduta interrogante”, e o determinismo. Por se
verificar que estas questões abrangem toda a obra, os comentários serão feitos sobre
personagens e situações de forma pontual, na medida em que servirem ao tema, ao invés de se
tratar de apenas um ou outro conto especificamente.
Primeiro, tomemos a ideia existencialista da liberdade. Para Sartre, “o ser do homem é
a liberdade, condição para a nadificação do nada” (ALVES et al., 2003, p. 43), ou seja:
A liberdade humana precede a essência do homem e torna-a possível: a essência do ser
humano acha-se em suspenso na liberdade. Logo, aquilo que chamamos de liberdade não
pode se diferenciar do ser da ‘realidade humana’. O homem não é primeiro para ser livre
depois: não há diferença entre o ser do homem e seu ‘ser-livre’ (SARTRE, 2000, p. 68).
O que vemos, em princípio, em relação às personagens-bichos de Torga, é a
dimensão humana que lhes é atribuída pela maneira de se expressarem através da reflexão,
primeiramente, seguida de uma conclusão, seja apaziguadora, pela proximidade da morte, seja
de resolução e, então, de mudança de vida.
Tomemos a cigarra Cega-Rega: inicialmente, ela se depara com a necessidade de
decidir por e lutar para sublimar sua condição de nascimento, ou seja, tendo nascido no depósito
de material em decomposição no solo da mata, tem que empreender ascender ao topo de uma
árvore; trajeto que mimetiza o caminho de formação e desenvolvimento cognitivo do homem e
seu eterno empreendimento por uma vida melhor: da escuridão à luz; da ignorância à
compreensão.
Dessa forma, ela enfrenta o eterno dilema fabular de ou trabalhar ou cantar, mesmo
que seja difícil (“É difícil!”, frase inaugural do conto) e que se tenha de esperar os mandamentos
da natureza, pois “a lei natural é inexorável” e nas suas fases de “embrião, larva, crisália [...]
Todas as estações do íngreme calvário” (TORGA, 1970): labutar, lutar, ou morrer na letargia – é
a decisão crucial a ser tomada: “É difícil, mas vai. Desde que haja coragem dentro de nós, tudo
se consegue. Até fazer parte do coro universal” (idem).
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A cigarra existencialista implica a todo instante um pensar o homem não como aquele
detentor de uma finalidade definitiva, surgido a partir de um projeto acabado: “Como se trabalhar
fosse um destino!” (TORGA, 1970). Portanto, ele se faz em sua existência; com sua liberdade de
decisão, ou “Ela continuaria ali, preguiçosa, imprevidente, num desafio sonoro à sensatez”
(TORGA, 1970). Seria, aqui, uma provocação quanto ao, ou convocação contra, o salazarismo
(1933-1968), o período mais longo de regime autoritário lusitano? – assunto que mereceria outro
artigo, sem dúvida.
Assim como no gênero da fábula, os animais apresentam aos homens exemplos de
conduta para o aprendizado de uma moral – “a moral da história” –, e a cigarra representaria o
homem cuja liberdade de escolha é uma característica da própria existência e, ao mesmo tempo,
parece lhe indicar haver tal possibilidade, ao invés de se seguir o geral, o comum, ou o prescrito,
não fugindo da característica didática do gênero fabular: toda existência humana é constituída
por possibilidades e é nelas que o projeto da existência humana se fundamenta, ou seja, pela
experiência da subjetividade, da interioridade, sem a qual não se pode haver a consciência
individual:
Vencera todos os obstáculos dum árido caminho, sem a ajuda de ninguém. No fim do
esforço, nem sequer essa vitória via reconhecida. Por isso, nada devia aos outros, e nada
lhes daria, a não ser a beleza daquele hino gratuito. Ainda no rés-do-chão das
metamorfoses, apetecera-lhe contemplar dum alto miradoiro o berço nativo. E começou a
subir, a subir, a subir sempre. Depois, serenamente, olhou. Nesse momento, porém, um
raio quente de sol caiu-lhe amorosamente sobre o dorso. Contraiu-se de volúpia. E, da
plenitude que a empolgou, ergueu-se a voz de triunfo. Não era a vontade que a fazia vibrar.
Era o corpo, possesso de contentamento, que, num espasmo totalmente estridente
glorificava a própria perfeição [natural] atingida (TORGA, 1970).
Se tomarmos o corvo Vicente, como outro exemplo, verificamos semelhante
necessidade de uma tomada de decisão. Primeiramente, assume e reflete sobre sua
inconformidade, ou revolta, contra a imposição divina do dilúvio:
Numa indignação silenciosa, perguntava: - a que propósito estavam os animais metidos na
confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos
homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que
determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível
repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de
Vicente (TORGA, 1970).
Essa introspecção e revolta o faz decidir-se, ou seja, foge da arca e sua individualidade
ou particularidade o difere, o caracteriza, perante os outros animais; ele passa a existir como
indivíduo após esta decisão: “Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da
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própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão do mar [...] O seu gesto foi
naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o
arbítrio que dividia os seres eleitos e condenados” (TORGA, 1970).
O corvo rebelde cujo gesto é “o símbolo da universal libertação” (TORGA, 1970) acaba
por contribuir para vermos outro traço existencialista presente na obra: a “conduta interrogante” e
o lidar com o determinismo.
Prefaciando o livro O drama da existência: Estudos sobre o pensamento de Sartre,
Franklin L. e Silva, afirma que a filosofia se define para Sartre como o desenvolvimento da
interrogação – questão fundamental para o próprio Existencialismo – e, assim, a “conduta
interrogante” é aquela:
[…] a partir da qual os textos [escritos: o ensaio, a crítica literária, a psicanálise, o conto, o
teatro, o romance] são constituídos, substituindo a argumentação demonstrativa pelo
aprofundamento da interrogação, a qual, numa postura existencial, tem um valor
demonstrativo talvez maior, já que configura a própria existência como a verdadeira prova
de sua complexidade e da sua singularidade (ALVES et al., 2003, p. 11).
A “conduta interrogante” é essencial ao existencialismo, pois, para Kierkegaard, nas
palavras de Régis Jolivet:
[...] a natureza do existencialismo só poderá ser definida em função das condições que são
requeridas por um existir autêntico – existir que se deverá iniciar e intensificar
seguidamente, por meio de uma reflexão [grifo nosso] capaz de fazer, de uma existência
vivida, uma existência desejada e pensada. Essas condições podem reduzir-se a três: a
necessidade do compromisso e do risco, o primado da subjectividade e a prova da angústia
e do desespero (JOVILET, 1961, p. 108).
A resolução que decide o indivíduo vai contra as imposições do destino, ou prédeterminadas: “A consciência em protesto ativo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e
condenados” (TORGA, 1970). Na contramão desta atitude decisiva, há personagens que se
resignam ao determinado: “o Senhor paralisara as consciências e o instinto, e reduzia a uma
pura passividade vegetativa o resíduo da matéria palpitante” (TORGA, 1970).
Nessa perspectiva, citemos o cão Nero: apesar de pequenas decisões, como seguir
um ou outro morador da casa, a decisão que o decidiu, ou seja, o fez um cão farejador, não foi
tomada por ele, mas ele foi levado pelas circunstâncias: “[...] entregava a pobre ao dono, tal
como a encontrava caída – viva ou morta. Nunca um gesto sequer de piedade. Disso pesava-lhe
agora a consciência” (TORGA, 1970).
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Em outras palavras, fora treinado instintivamente para ser um cão caçador – seu
destino – e a dúvida só surgida tardiamente, ao leito de morte, não lhe deu tomada de decisão
possível, ao estilo de Vicente, e foi o que a situação lhe proporcionara ser.
Assim também se apresenta o galo Tenório: “Mas um homem não se manda fazer.
Natureza desgraçada, a sua!” (TORGA, 1970). Desta forma, vê-se que ele também foi se
tornando galo, seguindo o determinismo da situação:
Galo! Galo e duma maneira tal, que agora no quinteiro, mal franzia a testa, tremia tudo! E
então lindo! A crista caía-lhe dobrada sobre o ouvido. Um rico brinco de cada lado. E em
todo o peito, sobre o papo redondo, um avental de penas que pareciam de pavão! Sem
falar nas asas, um primor de beleza, nos esporões que, de brancos, lembravam marfim, e
naquela rica voz, legítimo orgulho da dona (TORGA, 1970).
Porém, não tinha consciência da lei inexorável do tempo, do envelhecimento e do fim;
vivia, sem temer de fato o porvir trágico que a natureza lhe aguardava, até que já fosse tarde
demais, e viveu à mercê dos sentidos, do imediato, contingente, transitório:
Um futuro bonito, afinal! É certo que não estava nesse momento em condições de apreciar
devidamente a grandeza da sorte que lhe coubera [ao ser escolhido para ser galo, e não
frango]. Muito embora a simples certeza de viver lhe enchesse a alma duma confiança
cega no porvir, só daí a algum tempo é que viu claramente o tamanho do seu destino.
Quando tal compreendeu, cuidou que estalava de orgulho.
[Porém, com o tempo] Andava o homem sabe Deus como, roído por dentro [...] e logo a
sentença sem apelo: - galo velho! (TORGA, 1970).
Há, ainda, o sapo Bambo, cuja constituição fora obra da natureza, não de sua escolha,
assim como sua migração, sobre a qual “não se sabe [o] porquê”:
Criou-se ao deus-dará, como tudo o que é bom. Sem pressas, confiado no tempo e na
fortuna, foi estendendo a língua pelos anos adiante até se fazer o homem que depois era,
largo, grosso atarracado. Trouxe logo do berço os olhos assim saídos e redondos, e
aquelas pernas de trás em dobradiça, no mesmo instante um banco ou uma catapulta. E
também a boca de pasmo, com que pelas noites adiante engolia a imensidade do céu, lhe
veio de nascença aberta e vazia como um poço. Mal gatinhava ainda nas beiradas do
charco onde nascera, já o corpo pedia mundo, terras novas. E devagar, moroso, a suar o
visco que o defendia de tudo, à chuva e ao vento, umas vezes a morrer de fome, outras
entoirido de fartura, tanto andou, que não havia segundo de sua criação que tão
profundamente conhecesse a veiga de Vilarinho. Contudo, e não se sabe porquê, só aos
vinte anos deu entrada na quinta da Castanheira que o tio Arruda trazia de renda (TORGA,
1970).
Esta imposição da natureza condiz mais com a vertente existencialista-filosófica de
Jaspers, que afirma serem as possibilidades humanas ligadas a uma situação de fato e por esta
determinada, projetando uma situação sem que se possa modificá-la: não se pode ser – ou
querer ou agir conforme – aquilo que já não se é de fato. Para Jaspers:
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Quando decido e ajo não sou uma totalidade, mas sim Eu ligado a determinados dados de
fato, que me são oferecidos na objetividade e na situação particular [...]. Não escolhi os
meus genitores, no entanto, estes são meus no sentido absoluto. Mesmo que não os
quisesse, não poderia ignorá-los. Mesmo quando estes me parecessem estranhos, o meu
ser e o deles estão em comunhão intimamente (JASPERS, 1973, p. 23).
O melhor exemplo, neste caso, é o do gato Mago. Pois “os mimos da D. Sância
tinham-no desgraçado”, mesmo que:
A princípio ainda tentou reagir; mas, por fim o corpo, o miserável corpo, acostumou-se ao
ripanço. A parva cuidava que era amor correspondido. Melhor fora! Amizade sincera não é
com gatos. Simplesmente, quem brinca aos afogados, afoga-se. Com o andar do tempo, a
moleza tomara conta dele [...]. Quando reparou, estava perdido. Às vezes apetecia-lhe
atirar com os aparelhos ao ar. Infelizmente, as vidas iam ruins. Virava-se um balde de
restos, e não se aproveitava uma espinha. Que remédio, pois, senão contemporizar [...].
Mas cara aposentadoria! Considerando bem, melhor fora que o estafermo da solteirona
nunca lhe tivesse aparecido. Mais valia andar pelado e a cair de fome, a ser capaz de
responder ao pé da letra aos sarcasmos que agora lhe atiravam (TORGA, 1970).
“Ah, mas a coisa vai mudar de figura!”, já que “estava agora disposto a ressuscitar
daquela vida perdida em que o destino o metera” (TORGA, 1970). Porém, a situação decidiu o
gato: após o ato de ostracismo dos colegas, ele não teve saída, já que o corpo pensou por ele e
o decidiu: decidiu não ser e voltar e deixar-se “condenado para sempre ao bafio da maldita sala
de visitas da D. Sância” (TORGA, 1970).
Ainda em relação a esse conto, é interessante citar Costa:
[...] procuramos mostrar que as personagens dona Sância (vista como símbolo da figura do
homem moderno) e o felino Mago vivem num espaço citadino (“paisagem modificada pela
cultura”) distanciados de modo exagerado da “Mãe Natureza”. O comportamento da velhota
solteirona diante do felino vai de encontro à cosmovisão do autor, pois não houve uma
união fraterna e equilibrada entre eles. Desse modo, dona Sância simboliza um modelo de
existência negativo. Já Mago, na medida em que passou a conviver com a sua dona,
perdeu a sua identidade por abdicação sobre as dificuldades que a vida lhe apresentou. A
opção pelo mais agradável foi a sua degradação e a sua não perpetuação (COSTA, 2010,
p. 93).
Assim, podemos dizer que esta característica do existir verificada pelo Existencialismo
está presente para todos os bichos de Torga: eles questionarão sua existência, mesmo que seja
apenas no momento da morte (como o jerico Morgado, ou o touro Miúra, o cão Nero, entre
outros), mas o farão. Eles questionam a natureza à qual estão sujeitos – seja o nascer de forma
indeterminada, viver, envelhecer e morrer – mesmo que não possam mudar esta realidade, esta
existência. Aliás, a compreensão que estas personagens têm, ou adquirem no decorrer da
narrativa, é a de que estão inseridas num ambiente natural e num ciclo natural, sujeitas às leis
naturais e inevitáveis (determinadas) e apresentam, na maioria dos casos, uma aceitação
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apaziguada desta. Estas leis naturais se apresentarão infalíveis, não só no ambiente, mas
interiormente, quando a razão perde para o corpo, para os sentidos, como o touro Miúra que na
ira incontrolável não consegue refletir.
Para Maia, os contos em Bichos são norteados rumo à “grande lição da vida [...] [e]
obriga a agir e a reagir dentro de certos limites e com interiorizada lição” (MAIA, 1999, p. 241).
Em suma, Torga apresenta diferentes facetas do existencialismo. Seja a liberdade autêntica ou
limitada pelo determinismo, seja o embate entre o questionamento, a reflexão e a natureza física,
o corpo e os sentidos, seja, ainda, a compreensão da lei irreversível em relação ao nascimento,
à ocupação, ao envelhecimento e à morte. Repito a frase de Torga: “Não há uniformidade de
critério possível perante a surpreendente e paradoxal diversidade da vida”. Ele, assim, toca
vários aspectos do Existencialismo para nos dar um vislumbre da multiplicidade da aventura de
existir.
Referências bibliográficas
ALVES, Igor S. et al. O drama da existência: Estudos sobre o pensamento de Sartre. São Paulo:
Humanitas, 2003 [ Coleção Primeiros Estudos].
COSTA, Alexandre Emídio. Os Bichos de Miguel Torga: o retorno do elo perdido. 2010. 107 f.
Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, 2010.
JASPERS, Karl. Filosofia de existência. Rio de Janeiro, Imago, 1973.
JOLIVET,
1961.
Régis.
As
Doutrinas
Existencialistas.
Porto:
Livraria
Tavares
Martins,
MAIA, Carlos Fernandes. A dimensão ética e educativa na obra de Miguel Torga. Um poeta do
dever. 1999. 513 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de Trás-os-Montes e Alto
Douro, 1999.
SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica, 8ª ed. Petrópolis:
Vozes, 2000.
TORGA, Miguel. Bichos. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1970.
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