Salvador • Memórias, Crônicas e Declarações de Amor
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Salvador • Memórias, Crônicas e Declarações de Amor
“A noite está estrelada e ele não está comigo ... ” (Pablo Neruda) Salvador • Memórias, Crônicas e Declarações de Amor Luiz Vilela, Setembro de 2011 - www.luizvilela.net Dia 1 - quarta feira Meu voo para Salvador saiu dos Confins de Minas numa manhã clara sem uma nuvem no céu. Embaixo, a terra começou a enrugar e a escurecer - terra seca, o nordeste, nordeste de Minas. Mais adiante tudo se acobertou de nuvens. Da próxima vez que olhei através da janela do avião, ví o mar e a cor azul por entre os rasgos do tapete de nuvens brancas. Excitante! O que me espera? ... E fui acompanhando a linha do litoral, o avião abaixando. De repente, o mar da Bahia apareceu bem perto, transparente, uma colcha de retalhos nos mais variados tons de azul e turquesa. Corais. A Cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, a capital da alegria é a terceira maior cidade do Brasil atrás de São Paulo e Rio. Ela fica situada numa península triangular que separa a baía do Oceano Atlântico e sobre a qual o avião agora sobrevoava. Eu estava sentado do lado direito e logo enxerguei uma ponta de pedra que avaçanva sobre o mar e nela, uma torre, um prédio branco: era o hotel onde eu ficaria hospedado, eu imaginei -eu desejei!- porque eu o tinha visto numas fotos antes. Olhando lá de cima, através da pequena janela do avião, eu parecia um menino em frente da vitrine de uma loja de doces. Meus olhos tentavam mapear tudo e não perder um detalhe: nuvens-flocos-de-algodãodoce, a topografia zig-zag insinuante do mar lambendo as praias, a massa paliteiro de edifícios da cidade entrecortada por manchas verdes dos parques misturando com outras manchas caramelo dos amontoados de casas baixas de tijolos, mais singelas e simples, inacabadas. Os montes de açúcar das dunas do Abaeté. Um aperto no coração. É bom! Avião roncando na pista, coqueiros passando depressa. Nossa! © Todas as fotografias foram tiradas com minha máquina Olympus. A amizade é o sal da terra, é uma coisa que nasce e fica. Quando é de verdade, fica para sempre, parece que nunca mudou. Te ví antes, como te vejo agora. O tempo não existe. Meu amigo Flávio estava lá no aeroporto me esperando, imagine - depois de 25 anos sem nos vermos. Mas eu nunca me esquecí dele e das duas semanas que eu fiquei hospedado na sua casa em 1982, acompanhando minha prima Evanise e a amiga Aparecida. Eu era um ‘garoto’ de 17 anos e aquela viagem foi a minha introdução à cidade de Salvador e à Bahia. Guardo lembranças preciosas dos dias que passamos lá, dos lugares que fui e dos novos amigos baianos que eu encontrei. Flavio, seu irmão Reinaldo, os amigos deles João e Rosane, eles nos trataram a pão-de-ló. E Salvador me deu leite do peito. Desta vez, antes de eu sair dos EUA e passar por Minas, eu já sonhava em comer uma muqueca de camarão que para mim é uma das delícias da vida. Pois foi para comer uma muqueca que Flavinho me levou direto do aeroporto. Praia de Itapuã! Quer batismo melhor? Ela veio borbulhante numa panela de barro e a cor amarela em cima da toalha de algodão branco era um deleite para os olhos. Que cheiro bom! Potinhos brancos com pirão laranja, farofa de dendê amarela, arroz branco e pimenta acompanhando ‘a abelha rainha.’ O garçon baiano bonito e gentil, a baiana exótica e agradável posando para o começo da bateria infinita de fotografias (mais de 3000 fotos) que comecei a tirar de imediato. O vento batendo, aquele cheiro de maresia que a gente gosta de fazer encher o pulmão. Na praia de Itapuã toquei o Atlântico pela primeira vez, nesta viagem. Umas pessoas alí, uns cachorros aqui, um amontoado de cocos verdes perto de uma barraca. A tarde. Não existe planta igual ao coqueiro do litoral da Bahia, que veio originalmente da India. O vento bate e as barbatanas parecem cabelos de mulher em cima de um corpo esguio e morgado. Tudo passava devagar na tarde morna na beira da praia, sombra do coqueiral e o farol. Logo adiante, mais praias: Piatã, Boca do Rio, Pituba e Amaralina, Rio Vermelho (onde fiquei,) Ondina, e as do Farol e do Porto da Barra. O mar, quando quebra na praia, é bonito. No meio do caminho uma lagoa escura (do Abaeté,) quase que escondida, arrodeada de areia branquinha. Flavinho foi dirigindo pelo caminho do sol que morre todos os dias atrás do Farol da Barra. Em Salvador as pessos também batem palmas quando ele desaparece. Cheguei no hotel à noitinha e foi só o tempo de arrumar o quarto e Flavio já estava passando para me pegar para a gente assistir a um show num bar gostosíssimo, na Varanda do SESI Rio Vermelho, o Jequitibar Café, perto do Largo da Mariquita, mesmo bairro do hotel. No palco e no meio da gente, Lia Chaves, uma blueswoman que fez uma grande performance com sua voz inconfundível. A seleção das músicas foi baseada no canto para os Orixás e o repertório foi montado através de uma pesquisa, já que as raízes do Soul, do Blues e do Candomblé são da mesma matriz africana. “Um canto de louvor aos Deuses, lamentos, crenças e cotidiano.” O amigo João apareceu e foi uma alegria, um reencontro maravilhoso. Cerveja na mesa e escondidinho de camarão, conversa gostosa. O mar batia com força na mureta do bar competindo com a voz e energia de Lia - quem tinha mais força? Pela segunda vez cheguei em Salvador com música - nos anos 80 Flavio e Reynaldo nos levaram direto para um show porrada do Morais Moreira. Não ficou uma cadeira do teatro Vila Velha no lugar. Sinta comigo: “Varre, varre, varre, vassourinha ...” e meus pés não tocavam o chão. Nossa, que loucura! Dia 2 - Quinta feira Manhã gloriosa de sol nesta quinta feira - “sorria, você está na Bahia!” O guia de turismo Luiz (xará) passou para me pegar no hotel um pouco antes das 8 horas da manhã. Contatei Luiz via internet e ele concordou em me acompanhar durante o dia todo e me mostrar tudo o que eu queria e algumas ‘cositas más.’ Sempre que eu chego em algum lugar que eu não conheço eu gosto de fazer isto, pois dá para ter um apanhado geral e depois eu volto sozinho com calma aos lugares de que mais gostei. Com bom conhecimento de fatos gerais e sobre a história de Salvador e região, Luiz foi me mostrando belas paisagens enquanto me contava histórias e estórias. A primeira parada foi na prainha dos pescadores do Rio Vermelho onde acontece a festa de Iemanjá, no dia 2 de fevereiro, quando partem muitos barcos cheios de oferendas homenageando a Rainha do Mar. “Dia dois de fevereiro / dia de festa no mar / eu quero ser o primeiro / a saudar Iemanjá.” Naquele recanto da praia existe uma casa de peso e uma casinha com altar para a deusa das águas. A escultura de Iemanjá retratada como uma sereia fica do lado de fora e lá dentro ela também aparece cercada por mais oferendas. Acredito que ela deve ter abençoado a minha viagem pois foi minha primeira parada e alí dentro eu pedí muita proteção. Tudo deu mais que certo, eu confio! E eu tenho uma coisa com o mar, com água que enfeita a vida. Nasci no interior mas corrí assim como um rio em direção ao mar e sempre morei perto de água. No ‘sertão’ onde nascí não tinha água, mas ela veio na forma de uma represa hidrelétrica. O imenso lago apareceu, banhou a fazenda e depois eu nascí. Me mudei para o Rio de Janeiro, morei na quadra da praia. Mudei para New York City cercada de água e depois que saí de New York eu fui para o interior morar na beira do Rio Delaware. Sempre gostei de ficar perto de água. Fiquei alí olhando os pescadores um pouco, facão fatiando peixe, arraia, vísceras e escamas brilhando no sol da manhã. Tinha um cabra que era a cara do Dorival Caymmi. Olhar manso mas de extrema sabedoria, queixo embutido como se estivesse se preparando para soltar uma gargalhada. Bermudão, sem camisa, e de chapéu - um charme! No stress! Viver do mar, para o mar. Paramar. É bom! ... Seguimos em direção ao centro da cidade, destino: Pelourinho (onde eu estava tão ancioso para chegar) parando brevemente na praia do Porto da Barra. O Pelourinho fica praticamente no centro histórico de Salvador e recebeu esse nome porque se refere à uma coluna de pedras usada para castigar os escravos. Fica na “cidade alta” a parte elevada da cidade, localização estratégica escolhida pelo fundador Tomé de Sousa. Tombado pelo patrimônio histórico mundial a área agrega um conjunto de construções barrocas soberbo. Foi restaurado nos anos 80, os prédios coloridos parecendo os quadros de bandeirinhas do pintor Volpi, e hoje o bairro é um centro de efervecênica cultural. A Casa de Jorge Amado (museu) está lá. O bloco afro Olodum faz ensaio aberto nas terças à noite quando o lugar ‘ferve.’ O Convento do Carmo transformado em hotel também está lá nas imediações e como eu estava hospedado na mesma cadeia de hotéis o porteiro nos deixou entrar e conhecer o prédio que foi construído em 1586 (!!) Galerias de arte, restaurantes e bares tudo faz o Pelourinho parecer uma festa. Os turistas adoram. Eu esperava mais frisson e gostei de achar as ruas pacatas. Quando eu cheguei lá de manhã as ruas estavam praticamente vazias, o que dava destaques às baianas, as negras vestidas à caráter. Lindas, gostosas. Continuamos a caminhar pelo labirinto de ruas sinuosas, sempre uma surpresa ao dobrar de cada esquina. Uma mulher na janela. Um soldado. Uma escadaria de igreja infinita, de pagar promessas. Garotada sentada no rodapé, bater do tambor. Porque nada nessa vida é coincidência-coincidência, acredito na força que as coisas têm quando elas precisam acontecer. Um dos motivos da minha visita à Salvador era fazer contato com o MAC, Museu de Arte Contemporânea da Bahia, organização fundada recetemente por Simone Lobão. Entre trocas de e-mails, Simone me passou o contato de alguém que poderia me ajudar quando em Salvador, a artista plástica Flavia Taiano proprietária do Solar do Carmo no centro histórico. Flavia veio do estado de São Paulo e é a tradução completa desta cidade abençoada. Ela tinha me convidado para um café da manhã no dia seguinte e nessa caminhada com o guia Luiz nós entramos numa rua com várias pousadas e hotéis e, de repente estávamos em frente ao Solar. Resolvi entrar e dar um alô. Construída em 1725, o Solar é uma casa de vários andares, lindíssima e muito charmosa. O fundo do prédio, que fica em cima do platô na cidade alta, contempla uma das vistas mais espetaculares da baía, do cais do porto ao Senhor do Bonfim. Nos levaram ao terraço onde Flavia estava conversando com hóspedes estrangeiros e graciosamente nos serviram café enquanto esperávamos por ela. Suas pinturas, que enfeitam as paredes do Solar, são de uma sensibilidade enorme usando ícones e simbologia para contar a sua estória, e seu estúdio de pintura fica dentro hotel. Flavia tem um passarinho de estimação, o mascote da casa, o azulzinho Piccirillo! Piccirillo voa para todos os lugares e volta, e ele também tem seu escritório próprio perto da sala de recepção com portinha, copo d’água, comidinha, brinquedos e tudo mais que ele precisar. Flavia me apresentou à sua mãe e também ao seu marido Stefano Starita, todos muito agradáveis. Combinei de voltar na manhã seguinte para ela fazer para mim os famosos ‘mapinhas’ com dicas de passeios. Durante a troca de e-mails antes de viajar, Flavia havia me chamado atenção para um lugar essencial em Salvador: a feira de São Joaquim, onde eu poderia encontrar um imaginário fantástico para o meu trabalho de pesquisa. E foi para lá que seguimos depois de passar pela Igreja do Senhor do Bonfim onde eu amarrei várias fitinhas na cerca colorida por milhares de outras fitinhas também. Como explicar a feira de São Joaquim na cidade baixa, perto do porto? É o caos mais perfeito que já ví. Um labirinto escalafobético-pop formado por vários blocos e ruas (que têm nome de coco, farinha, da cerâmica, largo do quiabo,) digo, vielas onde se encontra de tudo, desde os produtos de primeira necessidade até as receitas para tirar mau-olhado: dendê, rapadura, castanha, camarão-seco, tapioca, temperos, artigos religiosos - principalmente de candomblé -, velas de sete dias, artesanato de palha e cerâmica, frutas, verduras, legumes, carne, peixe e até animais vivos, trazidos de diversas partes do Recôncavo Baiano. Aos fundos existe um curral de bode, pode? e também tem galinheiro. As carcaças de animais pingando sangue ainda são expostas ao léu. Língua, tripa, olho de boi e de bode, rabo, orelha, focinho. “Com qualquer dez mil réis / E uma nega / Oi / Se faz um vatapá ...” Virei freguês! Outro caos mais em ordem é o Mercado Modelo logo alí na frente. Encontram-se trabalhos de artesanato lindíssimos, como as toalhas de linho bordadas, tudo com mais verniz que a São Joaquim não tem e não precisa. Eles não vendem para turistas. O que se vê em São Joaquim é o povo da Bahia. E eles se bastam. Naquela tarde aconteceu um por-do-sol magnifico, o céu cor de laranja-vermelha e o mar azul-prateado. Nos dias em que fiquei naquele hotel, eu não conseguí sair do elevador e ir direto para o quarto nenhuma vez pois a vista do lobby do décimo primeiro andar era um canto de sereia. Eu ficava muito tempo alí olhando o mar imenso na minha frente, as ondas batendo lá embaixo nas pedras, os coqueiros, o morro dos pescadores, e a silhueta da Ondina e Barra mais adiante. “Shimbalaiê, quando vejo o sol beijando o mar Shimbalaiê, toda vez que ele vai repousar Shimbalaiê, quando vejo o sol beijando o mar Shimbalaiê, toda vez que ele vai repousar Natureza deusa do viver A beleza pura do nascer Uma flor brilhando à luz do sol Pescador entre o mar e o anzol Pensamento tão livre quanto o céu Imagino um barco de papel Indo embora pra não mais voltar Tendo como guia Iemanjá Shimbalaiê, quando vejo o sol beijando o mar Shimbalaiê, toda vez que ele vai repousar Shimbalaiê, quando vejo o sol beijando o mar Shimbalaiê, toda vez que ele vai repousar Quanto tempo leva pra aprender Que uma flor tem vida ao nascer Essa flor brilhando à luz do sol Pescador entre o mar e o anzol “Shimbalaiê, quando vejo o sol beijando o mar Shimbalaiê, toda vez que ele vai repousar Shimbalaiê, quando vejo o sol beijando o mar Shimbalaiê, toda vez que ele vai repousar Ser capitão desse mundo Poder rodar sem fronteiras Viver um ano em segundos Não achar sonhos besteira Me encantar com um livro Que fale sobre vaidade Quando mentir for preciso Poder falar a verdade Shimbalaiê, quando vejo o sol beijando o mar Shimbalaiê, toda vez que ele vai repousar Shimbalaiê, quando vejo o sol beijando o mar Shimbalaiê, toda vez que ele vai repousar Shimbalaiê, quando vejo o sol beijando o mar Shimbalaiê, toda vez que ele vai repousar Shimbalaiê, quando vejo o sol beijando o mar Shimbalaiê, toda vez que ele vai repousar” Letra de Maria Gadú na voz de Caetano Veloso Dia 3 - Sexta feira Na manhã seguinte, como combinado, partí para o Solar do Carmo. Com a baía de todos os santos aos nossos pés, Flavia acrescentou aos mapinhas que ela faz outras dicas valiosas para mim. Dicas sob medida. No mapa centro histórico/Pelourinho, ela marcou os pontos principais que eu deveria conhecer e no decorrer da nossa conversa, ela ia acrescentando o que achava adequado. Museus, ateliers, restaurantes, ruas interessantes e tudo mais. E, de quebra, ganhei outro mapa feito à mão com um roteiro maravilhoso para fazer passeando à pé da Barra até o centro da cidade, pela orla. Uma caminhada de 7 kilometros pontilhada de cultura e dos mais variados astrais. Flavia sabe de todas as coisas e ela é tudo de bom! Cê sabe que quando eu cheguei no hotel mais tarde, eu pedí que eles xerocassem esses dois mapas para eu guardar. Mas, claro! E seu eu os perdesse? Resolví tratá-los como documentos de alta importância. Mais tarde, já de volta em casa eles iriam para a parede, plastificados, para guardar que nem souvenir. Do Solar, eu caminhei pelo centro histórico e fui direto para o ristorante La Figa, recomendado. Uma casa velha, típica, na esquina de uma ruela que descia. Massa fresca e frutos do mar são a especialidade da casa. Conseguí uma mesa emoldurada pela janela que dava para a rua das Laranjeiras. Eu adorei tudo que experimentei lá, você acredita em mim? ... O couvert, e depois o polvo ao vinagrete e o peixe do dia com legumes. Ao meu lado, um casal a negócios conversava numa lígua que eu não conseguia entender ... Suíços? De repente vejo entrar no ristorante um senhor muito elegante, garanto que era parisiense. Jaquetão denim azul de mangas curtas, calça khaki e dockside (detalhe: echarpe vermelha amarrada no pescoço.) Pediu a mesa perto da porta e eu não resistí: peguei meu bloco de desenhos e comecei a desenhar. A cena era boa demais para desperdiçar. Mas a comida do lugar é tão boa que depois que os pratos começam a chegar pouco importa quem está sentado ao seu lado ou na sua frente. Fui tomar a sobremesa no terraço, uma xícara cappuccina coberta com creme de leite e chocolate em pó amargo, farinha de cacau. Alí, debaixo da sombrinha colorida eu fumei cigarros sossegadamente enquanto observava dois crioulos bonitos almoçando ao sol. Um conjunto de policiais entrou logo depois. E como tem policial no centro histórico, e em Salvador em geral! É o que mais se vê: fardas e saias rendadas. Saciado e energizado, fui enfrentar o sobe e desce ladeiras para visitar o ponto alto do meu programa: a igreja (e o convento) de São Francisco de Assis que deveriam entrar para a lista de maravilhas do mundo. A igreja, toda banhada em ouro, é uma coisa! Como é que conseguiram fazer aquilo? É como se você entrasse em um papel celofane dourado monumental, onde tudo o que reluz é ouro. Nos detalhes! Todas as superfícies do interior - paredes, colunas, teto, capelas - são revestidas de intrincados entalhes e douraduras, com florões, frisos, arcos, volutas e inúmeras figuras de anjos e pássaros espalhadas em vários pontos. A elegância da sacristia, dos aposentos ao redor e do claustro revestido de panéis de azulejos azul e branco - é de um arrebatamento glorioso e nos leva a pensar no lapso entre tempo de riqueza da cidade e a realidade atual. O convento abriga um pequeno museu museu com exposição de peças sacras, incluindo paramentos litúrgicos, imagens e também mobiliário. Além da quantidade do ouro, o que mais me impressionou foi a frontaria de pedra da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco e seu portal verde. Minha próxima parada deveria ser o Solar do Ferrão, descendo a ladeira em direção ao Largo do Pelourinho, mas ouví um barulho de tambores. Através de uma janela fiquei olhando por muito tempo um grupo de garotos do Centro Projeto Axé, ensaiando percussão. Continuando a descer a rua, notei uma galeria que Flavia havia me indicado. Um espaço bonito, trabalhos expressivos e abstratos pelas paredes. Na sala aos fundos percebi uma silhueta de alguém, deveria ser o artista. Me aproximei e comecei a conversar com o pintor Enock que se revelou um personagem impressionante! Ele me mostrou outros trabalhos e pinturas, vídeos e conversamos sobre arte. Troquei idéias com ele sobre o projeto que eu estava para começar a desenvolver e então ele fechou sua galeria para me acompanhar ao Solar do Ferrão. Um prédio maravilhoso com uma exposição espetacular de arte africana: Sete Áfricas Coleção Claudio Masella que apresenta uma montagem excelente das principais obras reunidas ao longo de 35 anos pelo industrial italiano. As obras revelam a variedade da produção artístíca africana, através de 90 peças escolhidas entre as mais de mil obras doadas pelo colecionador ao Governo do Estado da Bahia, em 2004. Logo adiante vimos a coleção de artefatos populares de Lina Bo Bardi. No Solar, fui apresentado à Justino um dos diretores e batemos um papo. Enock me convidou para encontrá-lo à noite no Palacete das Artes para ouvir uma palestra do escultor Israel Kislansky sobre técnicas de escultura. O Palacete abriga atualmente 62 peças vindas do Museu Rodin de Paris. Artista Enock foi outra surpresa agradável durante a minha passagem por Salvador. Mas antes de voltar para o hotel e seguir mais tarde para a palestra, eu encontrei uma roda de capoeira praticando no Terreiro de Jesus. A capoeira é uma expressão cultural afro-brasileira que mistura luta, dança, cultura popular e música. Depois de contribuir com dinheiro eu sentei debaixo de uma árvore e fiquei observando e tirando fotos. Um grupo de rapazes, sem camisa, descalços, gingavam e demonstravam seus dotes de habilidade física realizando verdadeias proezas naquela roda onde o instrumento musical berimbau é o mestre do jogo. Um show! Dia 4 - Sábado Flávio me buscou no hotel para dar uma volta pela cidade. Háviamos combinado antes de fazer um passeio de escuna pela baía e depois ir mergulhar mas o programa de sábado à noite mudou e a gente teve que alterar os planos. Dirigimos em direção à Barra e ele foi me mostrando o que havia de interessante durante o percusrso: “Aquela é a casa de Gal Costa, que fica no mesmo morro da de Caetano ... Este é o circuito circuito do carnaval Barra-Ondina. Os blocos se concentram em frente ao Farol da Barra, onde começam o desfile seguindo pela orla marítima de Salvador até o bairro de Ondina ... A praia do Farol da Barra está situada no bairro da Barra, sendo a segunda praia deste bairro, seguindo a praia do Porto da Barra.” As praias estavam cheias de gente, sábado de sol! Havia um rapaz fazendo esculturas de areia na praia. Duas mulheres de biquini e um rapaz nú, todos de bruços, preguiçosamente contemplando as ondas quebrando. De quebra, ele esculpiu um sofá com mesinhas ao lado com jarros de flor e tudo mais. Fomos visitar o farol da Barra. O farol está construído no interior do Forte de Santo Antônio da Barra. Lá de cima, avista-se toda e extensão que vai do Rio Vermelho até o centro da cidade e a ilha de Itaparica do outro lado da baía. Depois de uma água de coco e uma boa caminhada pelo calçadão, vale esperar o famoso por do sol de Salvador à tardinha. É simplesmente deslumbrante! Depois de vistar a loja de artesanato do Instituto Mauá, fomos almoçar na casa de Flavio, onde fiquei conhcendo sua mulher Cássia e sua mãe. Outra vez me deliciei com a comida baiana: bóbo de camarão com arroz branco, batata palha e banana frita! Uma experiência gastronômica gostosossímma! “Enquanto houver Brasil Na hora da comidas Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu” Outro quitute que adorei foi o acarajé da Dira, que tem uma barraca no Rio Vermelho, onde eu estava. Foi minha primeira e última refeição em Salvador. Tarde na piscina do hotel - a noite prometia! Um dos meus desejos nesta viagem a Salvador era assistir a um ritual de Candomblé. Me indicaram um guia que tinha experiência e conhecimento. Como combinado, à noitinha um carro veio ao hotel me buscar e meu amigo Flávio se interessou a ir junto comigo. Formamos um grupo cosmopolita: uma família de Paris, jovens ingleses e mulheres argentinas. Seguimos para o que disseram ser a região mais negra de Salvador, portanto, do Brasil. A viagem foi mesmo uma aventura, deixamos a orla e seguimos em direção à periferia da cidade, os prédios modernos viraram prediozinhos antigos que viraram sobrados, que viraram casas mais simples. As ruas encolheram, se transformaram em vielas. De repente, entramos num beco sem saída, e o carro teve que ir de marcha à ré, pois não conseguiria virar se entrasse de frente - e era uma descida! No escuro, encherguei uma casa com uma varanda alta e iluminada. Algumas pessoas na porta. Era lá. Candomblé é uma religião de origem iorubá, trazida da África para o Brasil pelos escravos. Nela, cada aspecto da natureza e da vida dos homens tem o seu orixá (deus/entidade). Os rituais acontecem em lugares chamados de “Terreiro” ou a “Casa.” Considerada feitiçaria pelos colonizadores do Brasil, proibida pela religião católica e crimilnalizada por alguns governos ela se transformou, pouco mais de um século depois da abolição da escravatura, numa das religiões mais populares do país. Na cultura brasileira as religiões não são vistas como exclusivas e muitos povos de outras crenças religiosas participam em rituais do candomblé, regularmente ou ocasionalmente. Os orixás e os seus rituais são agora parte integrante da cultura e do folclore brasileiro. O Candomblé não deve ser confundido com Umbanda, Macumba e/ou Omoloko, outras religiões afro-brasileiras com similar origem; e com religiões afro-americanas similares em outros países do Novo Mundo, como o Vodou haitiano, e a Santeria cubana, por exemplo, os quais foram desenvolvidos independentemente do Candomblé e são praticamente desconhecidos no Brasil. d n a C omblé O barracão está pronto: a festa vai começar. São nove horas da noite. Os tocadores de atabaque, chamados alabês, estão a postos em seus lugares. O público aguarda em silêncio, acomodado em bancos de alvenaria. Os homens ficam do lado esquerdo da porta e as mulheres do lado direito. O barracão foi decorado, o teto de telha-vã foi escondido por bandeirolas amarelas. Nas paredes imagens pintadas e o rapaz ao meu lado disse que sua amiga é quem fez. O chão está coberto de ervas e, com poucas abertura para ventilação, eu sinto o ar pesado, o cheiro me embriaga. Os três atabaques que fazem soar o toque durante o ritual também são responsáveis pela convocação dos deuses. Os filhos de santo começam a entrar e a girar num círculo no meio do barracão. Ao som do canto e da batida dos atabaques, alguns integrantes da roda entram em transe. Alguns se dobram para frente, outros rolam no chão. Agora, os filhos incorporam os orixás e dançam até serem arrumados pelas camareiras e saem de cena. Logo depois, eles voltam ao barracão, vestindo roupas, colares e enfeites típicos de seu santo. O ritual que assistí era para Oxum, Deusa das águas doces (rios, fontes e lagos) É também deusa do ouro, da fecundidade, do jogo de búzios e do amor • Elemento: água • Personalidade: maternal e tranqüila Símbolo: abebê (leque espelhado) • Dia da semana: sábado • Colar: amarelo ouro • Roupa: amarelo ouro Sacrifício: cabra, galinha, pomba • Oferendas: milho branco, xinxim de galinha, ovos, peixes de água doce Nós saímos assim que a entidade Oxum estava entrando no barracão. Ela passou por mim, ajudada pelas camareiras. Já eram mais de 11 horas da noite, e a cerimônia continuaria por mais algumas horas. Me deram permissão para tirar fotos e filmar, o que fiz discretamente. Por respeito aos filhos de santo eu apaguei seus rostos na única foto que estou mostrando aqui. Para mim, a experiência foi fantástica. Não tinha visto nada igual antes como aquelas pessoas que têm algo a expressar através do inconsciente. O sincretismo religioso que justapõe o candomblé e o catolicismo é o traço cultural que permite, com compreensão, aceitar diferenças entre as mais diversas crenças. A história do candomblé reflete a formação étnica e cultural brasileira e se confunde com a luta do povo baiano (portanto, a do povo brasileiro) para preservar suas tradições populares e a valorizar a raça negra na formação da sociedade brasileira. Dia 5 - Domingo, dia de pernas de fora! A programação do domingo era passar o dia no litoral norte de Salvador, praia do Forte. Cassia, Flavio e eu seguimos pela Estrada do Coco. Eu já tinha ido uma vez à Arembepe, uma aldeia hippie nesta região chamada costa dos Coqueiros. Nós acampamos lá por uma noite nos anos 80. Antes de chegar à praia do Forte, também passamos num vilarejo de pescador - Barra do Jacuípe, o encontro do rio com o mar, uma das paisagens mais lindas que eu já ví na minha vida. Na barraca da baiana, provamos abará que tem a mesma massa que o acarajé: a única diferença é que o abará é cozido, enquanto o acarajé é frito. Não é por acaso que alguns chamam a Praia do Forte de “Polinésia brasileira” com sua área formada por praias belíssimas, lagoas naturais e riachos. Caminhando na areia em direção à vila, conhecí a artista Di, seus colares de pedra e palha são lindos, e batemos um papo ‘cabeça” ... he-he! Eu pedí para ela que posasse para umas fotos, e ela sentou num braço de árvore sobre a praia, levantou os braços e abanou a juba. Ela disse que tinha acordado de bode, mas que eu tinha cruzado o caminho dela para levantar seu astral ... Bem, eu comprei um colar e depois, outras pessoas também compraram. O centro da cidade, com lojinhas, bares e restaurantes, foi fechado ao tráfego de carro e você pode alugar os quadriciclos (taxi bicileta). Na praia que dá nome à vila está a base do Projeto Tamar, com tanques áreas cercadas para proteger os ovos de tartarugas marinhas que, de dezembro a fevereiro, são soltas no mar. O Projeto Tamar foi criado na década de 80 para estudar e proteger as tartarugas marinhas no litoral brasileiro. Antes de voltar para Salvador á tardinha, passamos pelas ruínas do Castelo Garcia d´Ávila, a primeira fortificação portuguesa em terras brasileiras. A construção fica em cima de um morro e tem belíssima vista. Dia 6 - Segunda feira Acordei com o barulho das ondas do mar batendo nas rochas embaixo do hotel. O tempo e o mar estavam virados - chuva no horizonte. No dia anterior, enquanto esperava meus amigos para ir para a praia, notei um rapaz que trabalhava no hotel como segurança. Ele tinha o porte perfeito. Depois de cumprimentá-lo, expliquei que eu era artista e perguntei se eu poderia fazer umas fotos dele para o meu projeto e durante a conversa ele disse que teria tempo para sentar para uma sessão de pintura. Eu viajei preparado, eu tinha levado na mala pequenas telas, tintas e pincéis pois achei que teria mais tempo de sobra para pintar também paisagens, in loco. Pintei este rapaz durante a tarde, e levei menos de 3 horas para fazer este estudo “Retrato de um jovem baiano” Ele ficou muito entusiasmado e falando com sua mãe no celular: “Mãinha, tem um artista me pintando!” Acho que ele nunca pensou que este tipo de coisa poderia acontecer. Com essa pintura iniciei meu trabalho de pesquisa para um projeto que quero desenvolver retratando o povo brasileiro. À noite fui ao Pelourinho ver um show de dança “Balé folclórico da Bahia” um espetáculo com puxada de rede, maculelê, capoeira e samba de roda entre outros. Eu tava encostad’ali minha guitarra / No quadrado branco vídeo papelão / Eu era o enigma, uma interrogação / Olha que coisa mais que coisa à toa, boa boa boa boa boa / Eu tava com graça... / Tava por acaso ali, não era nada / Bunda de mulata, muque de peão / Tava em Madureira, tava na Bahia / No Beaubourg no Bronx, no Brás e eu e eu e eu e eu e eu e eu e eu e eu e eu / A me perguntar: Eu sou neguinha? Dia 7 - Terça feira - Noites do norte. Hoje encontrei Simone Lobão que é a diretora do MAC (Museu de Arte Contemporânea da Bahia) para onde estou desenvolvendo uma pintura para seu acervo permanente. O MAC é um museu ONG sem fins lucrativos de cunho internacional, cujo projeto consiste na arte educação, educação patrimonial e educação ecológica para a população socialmente excluída do universo das artes visuais, está representado por artistas de mais de 28 países, como: Brasil, Alemanha, Rússia, Japão, Índia, Israel, Arábia Saudita, Tunísia, Turquia, Kosovo, Itália, França, Inglaterra, Espanha, Servia, Portugal, Estados Unidos, México, Peru, Chile, Guiné, Angola e outros países que estão se incorporando e abraçando o nosso projeto, com uma rica diversidade de estilos e formas que compreendem a arte surrealista, arte impressionista, arte naif, arte abstrata, figurativa, realista, hiper realista, das mais variadas técnicas e formas. Encontrei os amigos Rosane e Reinaldo, junto de Flavio, no restaurante Barravento onde almoçamos. Depois de muito tempo sem os ver, foi uma alegria e eu disse que se Flavio e João abriram a minha estadia em Salvador na primeira noite, Rosane e Reinaldo fecharam o ciclo. Amei a cidade, a comida, sua gente, seus prédios, suas praias e sua Arte. Salvador respira arte por todos poros e creio que no Brasil não há lugar igual. Por onde se olha vê-se esculturas como o belíssimo trabalho de esculturas dos Orixás do artista Tati Moreno no dique do Tororó. “A Noite é uma apavorada, tem horror às trevas. Com um beijo, a Manhã apaga cada estrela enquanto prossegue a caminhada em direção ao horizonte.” Então é preciso desenhar e pintar! Você já foi à Bahia, nêga? Não? Então vá! Dá licença, dá licença, meu senhô / Dá licença, dá licença, pra yôyô. Eu sou amante da gostosa Bahia, porém Pra saber seu segredo serei baiano também. Dá licença, de gostar um pouquinho só A Bahia eu não vou roubar, tem dó! Ah! Já disse um poeta que terra mais linda não há Isso é velho e do tempo que a gente escrevia Bahia com H! Deixa ver Com meus olhos de amante saudoso A Bahia do meu coração Deixa ver Baixa do Sapateiro Charriou, Barroquinha, Calçada, Tabuão! Sou um amigo que volta feliz pra teus braços abertos, Bahia! Sou poeta e não quero ficar assim longe da tua magia! Deixa ver Teus sobrados, igrejas, teus santos, ladeiras e montes tal qual um postal. Dá licença de rezar pro Senhor do Bonfim Salve! A Santa Bahia imortal, Bahia dos sonhos mil! Eu fico contente da vida em saber que Bahia é Brasil Axé = Força, energia sagrada de cada orixá. Energia vital de cada ser, entre os iorubas. Expressão usada para desejar felicidade.