Januária Oliveira Ramos

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Januária Oliveira Ramos
REVISTA CAMBIASSU
Publicação Científica do Departamento de Comunicação
Social da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 0102-3853
São Luís - MA, Ano XVIII, Nº 4 - Janeiro a Dezembro de 2008
Januária Oliveira Ramos:
VITRINES DA PERIFERIA: UM BREVE OLHAR SOBRE
O HÍBRIDO E O KITSH EXPOSTOS NA FEIRA DA
CIDADE OPERÁRIA
Graduada em Comunicação Social e Especialista em Jornalismo Cultural pela
Universidade Federal do Maranhão.
RESUMO: Este trabalho tem a intenção de mapear, dentro da periferia da cidade de São Luís,
alguns aspectos do hibridismo cultural do kitsch que podem ser visualizados em pequenos
produtos vendidos em mercados populares. Para esta pesquisa, o corpus escolhido é a feira da
Cidade Operária, que é um dos bairros mais populosos da capital maranhense. Notamos que o
hibridismo está presente neste ambiente por meio de objetos - muitos importados de outros
países como mercadoria pirateada, e das criações que simulam realidades, recriam contextos e
promovem encontros inusitados na concepção visual dos produtos expostos. Vamos examinar
esses aspectos inusitados e verificar o kitsch em diferentes pontos de extravagância.
PALAVRAS-CHAVE: Feira. Hibridismo. Kitsch.
ABSTRACT: This paper aims at mapping out within the periphery of the city of São
Luis, some aspects of cultural hybridism of kitsch that can be viewed in small products
sold in popular markets. For this search, the body chosen is a Cidade Operária’s fair,
one of the most populous neighborhoods of the Maranhão’s capital. We note that the
hybridism is present in this environment through objects, many imported from other
countries such pirated goods, and the creations that simulate reality, recreate contexts
and promote unusual meetings the visual design of products exhibited. We will examine
these unusual aspects and check the kitsch in different points of extravagance.
KEYWORDS: Fair. Hybridism. Kitsch.
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1
INTRODUÇÃO
Observar a feira é um exercício interessante. Situado no espaço do negócio, dos
tipos humanos variados e dos encontros informais, é lá que diferentes relações se
estabelecem – tacitamente, ou não – e delineiam os contornos de uma microesfera de
poder. Nesse microcosmo, não é apenas a relação socioeconômica que subjaz o
processo de troca entre feirante e consumidor. Veremos que o elemento estético é
também um fator importante e, às vezes, decisivo para a escolha de um produto exposto
nas “vitrines” da feira.
A escolha da feira da Cidade Operária para ser o objeto do presente
artigo não foi aleatória. Inaugurada no fim da década de 80, como Hortomercado da
Cidade Operária, a feira abastece o bairro, que é um dos mais populosos da periferia de
São Luís, além de também inúmeras habitações que existem no entorno do bairro.
Como espaço simbólico das relações econômicas, sociais e culturais dessa periferia, a
feira da Cidade Operária apresenta nos seus aspectos visuais as suas próprias estratégias
que dão identidade ao ambiente e que ajudam a visibilizar as mercadorias. Os produtos,
em si, já trazem uma espécie de “alternatividade” para chamar a atenção e caírem no
gosto de quem os leva para casa.
No estudo a seguir, abordaremos o hibridismo cultural existente em acessórios
expostos para a venda na feira citada e os aspectos do kitsch encontrados nesses
produtos. Com base nos teóricos Peter Burke e Néstor García Canclini, vamos analisar
os entrelaçamentos culturais que constituem os fenômenos híbridos e buscaremos,
também, em Abraham Moles sua compreensão teórica sobre o kitsch, fazendo uma
descrição e análise sucinta das categorias de kitsch descritas por ele e suas relações com
os objetos pesquisados. Esses produtos são, na maioria, imitações baratas e trazem
consigo as cores, a ousadia e uma espontaneidade relegadas à categoria brega e de “mau
gosto”.
Na pesquisa em que Fernando Fontanella (2000) trata da estética do
brega, cuja análise são “as manifestações de uma sensibilidade subalterna mediatizada,
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presente nas diversas maneiras como as pessoas experimentam o brega”, mais
especificamente a música brega produzida no Norte e Nordeste do Brasil, encontramos
alguns pontos de interseção com nossa pesquisa, sobretudo no que tange à percepção
dos fruidores dessa “arte de baixo gosto”.
O consumidor, seja do produto musical da pesquisa de Fontanela ou de
outras mercadorias vendidas em outras praças, não é um ser passivo. Ao contrário, faz
parte de um movimento vivo que busca seu próprio espaço de expressão. Ele não se
coloca contrário à plástica aceitável pelos padrões hegemônicos, mas desenvolve formas
de também participar dos sistemas alternativos de consumo que – com características
periféricas – revela semelhanças com o sistema das classes dirigentes.
Para aqueles que não podem freqüentar e aproveitar o comércio dos shoppings
surgem os grandes ‘camelódromos’ e feiras de periferia, que vendem imitações
mais baratas dos bens de consumo da elite: CD’s, roupas e brinquedos piratas.
(FONTANELLA, 2000, p.11).
Nesse contexto, em que direcionamos o hibridismo, veremos que o
estético dentro de uma esfera mix cria os seus próprios padrões e estratégias de
expressão. Isso poderá ser percebido não apenas em pequenos objetos, como intenciona
este artigo, mas nos espaços de venda em que os feirantes demonstram as mercadorias e
também no ambiente da feira que não mantém a “assepsia” artificial dos shoppingscenters e supermercados, embora esses locais também sejam pontos de comercialização
de produtos encontrados em feiras.
Devido à grande variedade existente na feira e, por uma questão de organização
da análise, selecionamos alguns objetos expostos em quatro estabelecimentos
comerciais (boxes) e uma barraca ambulante, que funciona em uma das ruas
transversais da feira. Nesta observação empírica, realizada durante o mês de maio de
2008, traçamos uma breve etnografia do campo estudado. Sobre essa experiência,
lembramos Laplantine (2004) para quem o trabalho etnográfico necessita de uma
imersão do olhar, buscando nos sujeitos as significações que eles mesmos atribuem a
seus espaços de ação e a seus comportamentos.
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2
A FEIRA E O QUE DIZEM SOBRE ELA
Luiz Mott (2000) conta que, diferente de países andinos e de algumas
sociedades africanas, onde ela era integrada à economia tradicional, no Brasil, a feira é
introduzida pelo colonizador português, o qual já estava habituado a freqüentá-las em
seu país desde a Idade Média. Para o historiador e folclorista Câmara Cascudo (apud
SOUSA, 2000), a feira pode ter alguns significados, entre eles, aquele que estaria
próximo da noção da periodicidade. Já segundo uma definição sociológica, Luiz Mott
afirma que a feira é uma instituição que faz parte do sistema econômico. Levando em
consideração as relações trançadas dentro do seu universo, esse sistema econômico se
basearia na produção, distribuição e consumo de bens e mercadorias. Desse modo, diz
ele, a feira seria uma instituição do sistema econômico pertencente à subárea da
distribuição dos bens e mercadorias
Mas é preciso também considerar outros aspectos inerentes à dinâmica
dessa instituição, como as marcas simbólicas que existem tanto sob os fatores
econômicos, quanto os que se relacionam ao caráter social, cultural e etnográfico que
reproduzem essas marcas. Interessante notar que, no Brasil, o sentido da palavra feira
também é usado para se referir a uma atividade doméstica. É o “fazer a feira”, cujo
significado trata das compras para o consumo da casa e confere, segundo Sousa (2000,
p.72), o “caráter de instituição cultural à feira”. Como se houvesse uma ligação tão forte
com a cultura do país, a ponto da expressão designar, e ser facilmente compreendida,
como ato de adquirir produtos de primeira necessidade. Pensando no âmbito mais
amplo, há feiras que extrapolaram a seta da distribuição e consumo e se transformaram
em pontos turísticos, a exemplo das Feiras de Caruaru, em Pernambuco, e a de São
Cristóvão, no Rio de Janeiro. Nelas, a forte presença da cultura nordestina é vista por
meio do artesanato, literatura de cordel, frutas e comidas típicas.
2.1 EM RELAÇÃO AOS MERCADOS, HÁ DIFERENÇAS?
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No estudo que fez sobre feiras nordestinas, Mundicarmo Ferretti (1979)
adverte que, apesar das feiras e mercados terem semelhanças na estrutura e função,
sendo ambas instituições locais de venda de gêneros alimentícios e de outras
mercadorias, elas têm diferenças. Segundo a pesquisadora, as variações existentes nas
feiras e mercados das regiões brasileiras dificultam a configuração de características
gerais. Contudo, buscando uma descrição que possa explicar o diferencial no modus
operandi, por meio de uma breve observação na dinâmica da rotina, Mundicarmo
distingue o funcionamento dos dois espaços:
Feiras são reuniões comerciais periodicamente realizadas em local descoberto
(rua, praça, etc.), frequentemente próximo ao mercado. Tendem a ser
realizadas durante um dia da semana (especialmente sábado, domingo ou
segunda-feira) e a oferecer maior variedade e quantidade de produtos do que
os mercados. (FERRETTI, 2000a, p. 41).
Lançando mão de uma definição contida no dicionário Aurélio Buarque
de Holanda, ela escreve que:
Nas cidades nordestinas o mercado funciona em local coberto,
frequentemente em prédio construído ou administrado pela municipalidade,
abrigando todos os feirantes ou parte deles. Tende a funcionar diariamente,
ficando às vezes aberto durante o dia. São encontrados nos núcleos urbanos
mais populosos tendo como função principal o abastecimento da população
local. (FERRETTI, 2000a, p.40).
Em orientação semelhante, Mott (2000) diz que a feira, para os
portugueses, representaria uma reunião comercial regional de grande porte, realizada
geralmente entre longos intervalos de tempo. Já, o mercado seria destinado ao
abastecimento local e, portanto, feito de maneira mais freqüente. Ele explica que essa
noção de feira não se estende ao Brasil, pois tanto as grandes como pequenas reuniões
comerciais ao ar livre são entendidas como feira pelos brasileiros, sendo que as mesmas
teriam área de dominância pequena, relacionada ao abastecimento local. No caso da
feira da Cidade Operária, o tempo de trabalho assemelha-se ao mercado, visto que o
funcionamento é diurno, com abertura às 6h e fechamento às 18h, de segunda-feira a
sábado, e de 6h às 13h, aos domingos, de acordo com informação de Hamílton Firmo
Pereira, gerente administrativo da Cooperativa dos Feirantes da Cidade Operária
(COOFECO).
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Há, porém, vendedores que fecham os boxes um pouco mais tarde, às
19h ou mesmo às 20h, conforme o movimento, e muitas bancas não funcionam no
período vespertino. Alguns donos de banca vão trabalhar à tarde em feiras livres.
Próximo à feira da Cidade Operária existe uma feira livre, onde são vendidos apenas
alimentos. Mas embora tenha uma rotina que se assemelha à descrição dos mercados, os
moradores do bairro e freqüentadores do Hortomercado sempre se referem a ele como a
feira da Cidade Operária. Podemos apresentar esse universo, ainda que de forma breve,
por meio do histórico e de uma descrição física resumida que indica a sua localização,
organização e os tipos de mercadorias comercializadas naquela feira.
3 FEIRA DA CIDADE OPERARIA: VAMOS CONHECÊ-LA
O Hortomercado da Cidade Operária foi fundado em julho de 1989, na
gestão do governador Epitácio Cafeteira. Era administrado pela CEASA (atual
COHORTIFRUT), passando, a partir de 19 de maio de 1996 para o comando da
COOFECO. O governo estadual fez o contrato de concessão gratuita de uso por dez
anos, sendo que a cada quatro anos é realizada eleição para escolher os novos diretores
da Cooperativa. O contrato de concessão terminou em 2006. O gerente administrativo
da COOFECO, Hamilton Firmo Pereira, disse que Estado não renovou o documento e
que a feira está funcionando normalmente. Há, contudo, um projeto de gestão integrada
entre o governo, a prefeitura e a COOFECO.
A feira da Cidade Operária está situada entre as Avenidas Este e Oeste (anexo 1)
e tem 508 boxes e 204 bancas – sem contar as dezenas de barracas ambulantes que a
administração disse não ter controle, a não ser algumas em que é cobrada taxa de R$ 10
reais mensais para uso do espaço. Esse valor é o mesmo para as bancas, enquanto para
os que ocupam os Boxes, a cobrança mensal é de R$ 15 reais. De um modo geral, as
mercadorias comercializadas nas bancas são hortaliças, frutas, verduras, legumes, CD’s
e DVD’s pirateados, pequenos artigos eletrônicos portáteis, peças do vestuário adulto e
infantil (como calcinhas, sutiãs e cuecas) e acessórios femininos variados (prendedores
de cabelos, pulseiras, brincos, colares, óculos, relógios), etc.
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Há, ainda, os produtos vendidos como remédios da medicina popular.
Melo (2000) destaca alguns deles e as suas respectivas promessas de cura:
[...] casca de chapada, considerada boa para gastrite e prisão de ventre;
muxúria e cabacinha, para inflamações em geral; leite de janaúba, para
inflamação no ovário e hemorróidas; banha de cobras (como jibóia), para
inflamações e muitas outras ervas que são compradas para fazer chá, sendo
cada uma delas indicada pelo próprio vendedor para certas enfermidades.
(MELO, 2000, p. 103)
Com uma freqüência diferente das ervas usadas pela medicina do povo,
Melo afirma que os brinquedos populares e o artesanato são raros na feira, sendo a
maioria importada de países como o Paraguai. Mas não só os brinquedos são
importados, pois percorrendo os estabelecimentos e coletando o depoimento dos
feirantes, verificamos que boa parte dos produtos, sobretudo os que foram analisados
para este artigo, vêm do exterior ou de outros Estados. Quase todos, imitações de
marcas nacionais ou importadas. Existem, contudo, algumas mercadorias produzidas no
Maranhão.
4 HIBRIDISMO
Na constatação de muitas mercadorias que são repassadas e, diga-se, infiltradas
na realidade do consumidor, tendo seu processo de idealização, planejamento e
concepção em um lugar distante daquele ao qual o objeto será destinado, vamos anotar
o que algumas correntes acadêmicas falam sobre o hibridismo, já que entendemos que o
termo apresenta conexões com esta pesquisa realizada na feira. Muitos teóricos têm
direcionado a atenção para estudos sobre o “processo de encontro, interação, troca e
hibridização cultural” (BURKE, 2003, p. 6). Entre esses estudiosos do hibridismo estão
Homi Bhabha, Stuart Hall, Edward Said e Néstor García Canclini.
Em seu ensaio sobre a hibridização, Peter Burke (2003) aborda o referido
processo sob o aspecto das tendências culturais, definindo “cultura” como algo que
inclui mentalidades, atitudes, valores e os símbolos representados em artefatos e
práticas. Burke fala que o comércio a longa distância, no início do período moderno,
apresenta exemplos de interação e de hibridização cultural. Analisando sob a óptica da
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atualidade, os produtos vendidos na feira, que são imitações de marcas estrangeiras,
trazem marcas do hibridismo na medida em que promovem um encontro e adaptam, ao
gosto do consumidor que, neste caso, pertence à classe popular, o modelo externo
inserido localmente como resposta a uma demanda criada.
Ao constatarmos a presença cada vez mais intensa de produtos de outras culturas
nos locais que fazem partem da nossa rotina, verificamos a lógica do argumento de
Canclini de que a distribuição acelerada e global dos produtos materiais, assim como da
informação, torna o tipo de consumo dos países centrais e periféricos muito próximos.
Na obra Consumidores e Cidadãos, o autor busca compreender como as mudanças no
modo de consumir alteram as possibilidade de se realizar a cidadania. Para ele, ao
selecionarmos determinados bens, estamos definindo aquilo que consideramos valioso e
que nos distingue e nos integra socialmente, da forma que combinamos o prático e o
aprazível.
Nesse âmbito, a cidadania é um indicativo do “estado de luta pelo
reconhecimento dos outros como sujeitos de interesses válidos, valores pertinentes e
demandas legítimas”. (CANCLINI, 1997, p.23) Com o encontro de culturas e as
possibilidades de multiplicidade, falemos das mudanças que ocorrem para o novo
cenário sociocultural. Canclini divide em cinco processos, sendo eles:
- o ganho de força pelos conglomerados empresariais de alcance
transnacional, em detrimento dos órgãos locais e nacionais;
- reformulação dos padrões de convivência urbana. O tempo para exercer
atividades básicas para o cidadão passa a exigir que se fique mais longe
de casa, ou longe da sua cidade;
- é feita uma reelaboração do sentido de próprio, já que há o predomínio
de produtos e mensagens vindos de outros pontos globalizados sobre
aqueles bens que são produzidos no local ao qual se pertence;
- a constante redefinição da identidade e da idéia de pertencimento, visto
que as organizações estão se dando mais por interesses comuns em
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comunidades desterritorializadas do que por lealdades com as raízes
locais ou nacionais;
- por fim, a mudança de postura do cidadão como participante crítico dos
problemas para a de espectador dos acontecimentos, que ganham a
forma de espetáculo que o diverte e não o faz analisar a estrutura das
questões postas;
Néstor Canclini alerta para o fato de que é preciso, no encontro de culturas, notar
a apropriação dos elementos de diferentes sociedades, de modo a combiná-los e a
transformá-los. Esse contato deve ser pensado a partir não somente da diferença, mas do
fator resultante, do movimento de hibridização que passa a ser operado com os
elementos que foram apropriados. Nesse sentido, ele reitera que as nações se convertem
em espaços multi, em que muitos sistemas culturais se cruzam, se inter-relacionam e
criam vários códigos simbólicos. “Hoje, a identidade, mesmo em amplos setores
populares, é poliglota, multi-étnica, migrante, feita com elementos mesclados de várias
culturas” (CANCLINI, 1997, p.142).
4.1 A QUESTÃO DO REGIONAL
Diante da aceleração dos processos de hibridização, torna-se imprescindível a
valorização do local. Se as tendências de eliminar os aspectos nacionais e regionais,
como o fez o cinema-mudo, ao criar um clima de espetáculo democrático, como as
grandes narrativas em que todos podem assistir da poltrona do cinema, é preciso dizer
que as culturas regionais também se mostram presentes por meio da reterritorialização
que engrendra e reafirma formas locais de enraizamento. A globalização empresarial
tem necessidades homogeneizantes para aumentar os lucros. No entanto, as demandas
práticas exigem adaptações, concessões, em que a homogeneização às vezes não vai ao
encontro das necessidades locais.
Renato Ortiz (apud CANCLINI, 1997, p.147) fala que não se trata de ser
“homogêneo ou heterogêneo”. Para ele, é importante compreender os segmentos
mundializados e, assim, promover o consumo desses grupos segmentados, entendendo
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como eles partilham costumes e gostos convergentes. Para isso, Ortiz recomenda a
expressão “nivelamento cultural” (apud CANCLINI, 1997, p.148), para apreender essa
convergência de hábitos culturais, porém, mantendo as diferenças entre os níveis de
vida.
Sobre a reação à “importação, ou invasão cultural” Burke (2003) escreve que
haveria quatro estratégias possíveis. Ela pode ser aceita, rejeitada, segregada ou
adaptada. Na contemporaneidade, vemos que as sociedades têm uma postura mais
aberta para receber o que vem de fora e, mesmo não aceitando alguns elementos
externos, isso não significa a sua total exclusão. Os produtos importados da Ásia ou do
Paraguai que são vendidos nas feiras ou mercados de preço popular, como as Casas de 1
Real, são rejeitados pela classe hegemônica por alguns motivos que consideram, desde a
qualidade do produto, até mesmo a distinção social que não relaciona o uso desses
artigos com o status de classe do poder. Por outro lado, podemos verificar que os
produtos populares são encontrados em shopppings centers e nas lojas classe A. Os
mesmos objetos, porém, são ‘valorizados’ por meio de ‘valores’ mais altos.
Na estratégia de adaptação como reação, Burke afirma que, no encontro com
itens de outra cultura, há um empréstimo que incorpora partes dessa cultura em uma
estrutura tradicional. A adaptação pode ser verificada, segundo ele, como duplo
movimento que opera a des-contextualização e a re-contextualização. Como a ação que
retira algo de seu local de origem e o altere de modo que ele seja encaixado em seu
novo ambiente. Existe, atualmente, no centro comercial de São Luís uma “invasão” de
lojas e de vendas ambulantes de orientais, a maioria chineses, que emigraram de seus
países e encontraram na cidade um terreno fértil para desenvolver o comércio de
produtos de baixa qualidade e de preços acessíveis que vêm como importação da Ásia.
É dessa fonte que feirantes e vendedores do comércio popular extraem algumas de suas
mercadorias.
Os feirantes da Cidade Operária que foram entrevistados dizem que compram e
as revendem a preço mais alto. Nos boxes visitados, vimos que a maioria dos objetos
tem caráter funcional ou, então, são dispositivos capazes de mexer com a emotividade
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dos consumidores. Um dado notável é que os artigos do mesmo gênero vendidos nos
boxes e bancas não diferem do modelo, cor ou design. São iguais e a homogeneidade na
oferta ocorre devido à busca na mesma fonte distribuidora que, ao “criar a necessidade”
da época, oferece um vasto mercado de poucas opções, tornando, assim, os
consumidores os divulgadores daquilo que parece virar moda, devido à repercussão e
repetição entre os usuários.
Os produtos externos postos à recepção abrangem não apenas as mercadorias
que chegam de outros países, mas também as que são trazidas de outros Estados. Nas
lojas de variedades pesquisadas na feira da Cidade Operária fomos informados de que
as mercadorias são compradas, sobretudo, dos Estados do Ceará e de São Paulo.
Contudo, não somente os bens duráveis chegam de outros centros. O gerente
administrativo da COOFECO, Hamilton Firmo Pereira, diz que a maioria dos gêneros
alimentícios (frutas, verduras, cereais e carnes) vem de fora, sobretudo dos estados
Bahia, Pará e Rio Grande do Sul. Nesse movimento, em que os bens dos grandes
centros chegam à periferia, ocorre um processo que aglutina as marcas simbólicas do
local da origem produtora como, por exemplo, o tipo de corte, os detalhes de estilo,
material aplicado e cores usadas na modelagem. Notemos o caso das confecções
exportadas do Ceará para o Maranhão.
Nas mercadorias importadas de outros países, as marcas simbólicas podem ser
sutis, mas nem por isso imperceptíveis, podendo apresentar desde motivos de
personagens famosos, como boneca japonesa Hello Kitty que estampa variados
produtos, até o formato de máquinas portáteis que imitam aparelhos eletrônicos, mas
com uma função diferente do aparelho copiado. Recordemos as estratégias alternativas
criadas. Quem não pode ter um mp3114, tocador digital que pode armazenar mais 200
músicas, pode comprar uma lembrança do aparelho que tem sua forma imitada em minirádios com freqüência apenas em FM.
114
MP3 é a abreviação MPEG 1 Audio Layer (camadas) 3. É um tipo de arquivo de áudio compacto que
possui alta capacidade de armazenamento. Ao diminuir o tamanho dos dados do arquivo, o áudio passa a
consumir 10% do espaço que ocuparia em um CD. O formato MP3 é responsável pelo surgimento de
aparelhos portáteis de música, como o iPod.
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Sobre a hibridização e os contatos que tornam cada vez mais distante a idéia de
isolamento cultural, Peter Burke fala que, no mundo, nenhuma cultura pode ser vista
como ilha. “Na verdade, já há muito que a maioria das culturas deixaram de ser ilhas.
Com o passar dos séculos, tem ficado cada vez mais difícil se manter o que poderia ser
chamado de ‘insulação’ de culturas com o objetivo de defender essa insularidade”
(BURKE, 2003, p 101)
5 HÁ KITSCH NOS BENS DA FEIRA?
Poderíamos dizer que, na visualidade híbrida e multicolorida da feira, existe um
kitsch que emoldura os produtos disponíveis? Abraham Moles diz que o kitsch está
ligado à arte de modo inseparável. Seu sentido moderno surge por volta de 1860, na
cidade de Munique, kitschen, significa atravancar, fazer móveis novos com velhos;
verkitschen = trapacear, vender algo em lugar do que havia sido combinado. Neste
sentido, há uma negação do autêntico, um pensamento ético pejorativo.
Interpretado como sendo mais do que um fenômeno denotativo, configurado-se
como um fator estético latente, um estado de espírito, o kitsch revela sua pujança
durante a ascensão da burguesia, no século XIX, no momento em que adota o caráter de
classe afluente. Moles lembra que o período de prosperidade do kitsch está ligado a um
período social de opulência e que, neste caso, o mau gosto é a etapa que antecede o bom
gosto que se faz por uma tentativa de parecer igual aos modelos bem-sucedidos e, ainda,
por uma realização estética que não se completa realmente. Seria, segundo ele, uma
“imitação das celebridades em meio a um desejo de promoção estética que fica pela
metade” (MOLES, 1975, p.10).
Dessa forma, o kitsch é usado para categorizar objetos de valor estético
duvidoso, distorcidos ou exagerados, considerado inferiores à sua cópia. São
freqüentemente associados à predileção do gosto mediano, sendo também chamados de
brega, no Brasil. O fenômeno do kitsch se baseia em uma civilização em que a noção
fundamental é a da aceleração, visto que esta é uma civilização consumidora que produz
para consumir e que cria pra produzir. É o homem ligado aos elementos materiais de seu
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ambiente e o valor das coisas que se alteram em função desta sujeição. Ao contrário do
belo platônico ou do feio, o kitsch traz o aspecto dominante da vida estética cotidiana.
Entre suas características, estão os princípios que traduzem a sua dinâmica. “É a
aceitação social do prazer pela comunhão secreta com um ‘mau gosto’ repousante e
moderado” (MOLES, 1975, p. 28).
Dentro do kitsch, o autor diz que há o Princípio de Inadequação, isto é, um
desvio em relação à finalidade, em que as funções secundárias acabam suplantando a
função principal, com funções múltiplas em um único objeto. Ocorre um desvio em
relação ao tamanho dos objetos (exemplo, abridores de garrafas gigantes); falsificação
de materiais (flores ou frutas de plástico); estilos contextos (arranjos barrocos de gesso
pra estantes); e figurações em objetos utilitários (pêra de cristal como porta bombons).
No Princípio de Acumulação, objetos diversos, com valor emocional de baixo
custo, são empilhados sem uma unidade. Citamos como exemplo os enfeites de
geladeiras, cerâmicas e bibelôs. Com o Princípio do Conforto, há uma tentativa de levar
à vida sensações, emoções e pequenos prazeres em objetos cotidianos. Já no Princípio
da Mediocridade, o autor diz que a inadequação, a acumulação e outros artifícios
aproximam o kitsch do vulgar. Essa mediocridade, porém, facilitaria a absorção dos
produtos pelo consumidor. Não haveria extremos, nem no que tange à beleza e nem à
feiúra. No uso da Percepção Sinestésica, os objetos kitsches fazem uso dos sentidos
para impressionar o espectador. São imagens, sons e aromas, como os cartões
perfumados vendidos para tornar ainda mais marcante a emoção dos apaixonados.
O kitsch opera no sentido de oferecer prazer aos membros da sociedade de
massa, permitindo-lhes o acesso às exigências suplementares e a passagem da
sentimentalidade para a sensação. Proporciona ainda, segundo Abraham Moles, uma
função de “espontaneidade no prazer” (1975, p.76) e permanece essencialmente “um
sistema estético de comunicação de massa” (p.77). Nesse processo de prazer
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espontâneo, o indivíduo tem a oportunidade de participação limitada, num acesso à
extravagância em que fica sempre no meio, no conforto do Gemütlichkeit115.
Haveria nas imitações dos bens vendidos na feira da Cidade Operária a
kitschnização de uma extravagância que opera em direção ao prazer espontâneo da
massa, com o sentido também de oferecer estratégias para a participação popular nos
sistemas que se assemelham ao sistema de atuação hegemônica? Nos produtos copiados,
as vendas apontam para as possibilidades de imitação das celebridades, com o uso dos
bens que chegam de fora do país com a promessa de status e glamour, ou com a
reprodução no corpo e nos artigos do cotidiano que referenciam os modismos e
emoções propagadas pelos meios de comunicação de massa?
Na divisão que busca definir os tipos de objetos da ordem do kitsch, colocam-se
os primeiros como sendo aqueles concebidos conscientemente como tais, incluindo-se
neles todos os tipos de souvenirs, objetos de devoção, assim como outros talismãs e os
artigos para presentes. Os de segundo tipo não seriam exatamente de caráter kitsch, mas
ostentaria um sintoma, podendo ser encontrado pricipalmente nos gadgets – pequenos
objetos ou acessórios de um objeto maior que têm uma concepção técnica e funcional
que o separa do objeto decorativo, embora muitas vezes o gadget seja também usado
para decoração. A maioria dos objetos que estão ao nosso redor pertence ao segundo
tipo de objeto kitsch.
Tomemos, pois, a afirmação de Moles de que o kitsch envolveria, ao mesmo
tempo, atitudes funcionais, aquisitivas e estéticas. Os produtos comercializados nos
boxes e barracas da feira da Cidade Operária estariam, então, enquadrados na condição
de gadgets kitsches constituintes de um hibridismo visual específico das feiras e
mercados populares? O gosto que influencia o tipo de mercadoria, ou a mercadoria que
inclina o gosto da massa consumidora desse microcosmo que absorve produtos
nacionais e transnacionais? Com base na descrição e análise dos produtos pesquisados
115
Gemütlichkeit, palavra composta que envolve os sentidos de comodidade, conforto, abastança e
pachorra. É considerado um dos valores do Kitsch, aquilo que está ligado à alma e ao coração, intimidade
agradável e afetuosa, virtude de sentir-se à vontade
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vamos abordar, a seguir, os aspectos híbridos verificados e tentar apontar as respostas
para esses e outros questionamentos que possam surgir.
6 A ANÁLISE
Para a realização desta pesquisa foi necessário conversar com os feirantes e tirar
fotos das mercadorias e dos locais onde elas são comercializadas. O trabalho de
observação em campo foi desenvolvido em maio de 2008. Os vendedores foram bem
receptivos e, apesar do rapaz da banca ambulante mostrar um pouco de introspecção e
desconfiança no início, ele ficou à vontade e bastante solícito depois que lhe expliquei
que o propósito das perguntas que fazia era para um trabalho acadêmico. O tratamento
que recebi foi amigável e acolhedor. Todos os entrevistados disseram que eu poderia
voltar se precisasse de mais informações. Essa forma de tratamento acolhedora é uma
extensão do modo dispensado aos consumidores, o qual gera um pacto tácito de
relacionamento que aproxima feirantes e fregueses. Jacyara Melo (2000) indica alguns
dos fatores que subjazem as trocas operadas nesse meio:
As relações que permeiam esta feira são marcadas por aspectos que refletem
as macro-instituições de nossa socedade; suas representações simbólicas;
seus valores; suas crenças; suas regras – por exemplo, a pessoalidade, a
informalidade, que caracteriza as nossas relações com os outros. A
experiência social do feirante, a sua percepção de mundo é, portanto,
ordenada pela apropriação dos símbolos da sociedade a qual está inserido.
(MELO, 2000, p. 98).
6.1 OS PRODUTOS
Quando entramos na parte interna da feira, logo encontramos o colorido
dos produtos que são expostos nas áreas de cada banca ou ponto comercial. Na primeira
banca visitada, o improviso dá o toque à organização e à estética do local. Embaixo de
uma lona que cobre uma estrutura armada, são dispostos CD’s e DVD’S pirateados,
além de bonés, bolsas, cintos e óculos esportivos. Os CD’s são gravações de músicas de
muitos gêneros (romântico, pagode, trilhas sonoras de novelas, religioso, brega,
technobrega, entre outros). Nessa mistura, percebemos que a profusão influencia e é
influenciada pelo gosto do consumidor. O som internacional disputa a atenção com a
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música regional sem choque de culturas ou obstáculos de recepção. Na banca ambulante
soubemos que o hip-hop norte-americano compartilha espaço com o forró eletrônico
produzido no Nordeste e com o Calipso do Norte do Brasil e que esses estilos têm
vendido bastante. Contudo, os mais procurados, segundo o vendedor, são os CD’s de
forró e de reggae.
O público que compra é formado principalmente por jovens, sendo que as
mulheres levam mais os discos compactos de forró de grupos que estão com algum hit,
cuja temática aborda, geralmente, os relacionamentos amorosos e a postura masculina e
feminina diante do amor e do sexo. Os CD’s de reggae são comprados, sobretudo, por
homens que apreciam as canções antigas e as novas gravações que são lançadas em
programas de reggae no rádio ou por DJ’s que comandam as radiolas em clubes
próprios para o gênero. A Cidade Operária tem um dos clubes de reggae mais
tradicionais de São Luís, a Barraca de Pau, que fica localizada na entrada do bairro.
Os DVD’s vendidos na barraca que pesquisamos na feira são reproduções de
filmes nacionais e, principalmente, de filmes estrangeiros, blockbusters116, que fazem
sucesso no cinema comercial. Os gêneros são variados e oferecem, desde filmes de ação
e comédias românticas, a animações, dramas e produções eróticas – estes com cenas
explícitas de nudez e do ato sexual na capa dos DVD’s. Nesse suporte também tem os
shows musicais que fazem sucesso entre os diferentes segmentos. No entanto, os DVD’s
que têm melhor vendagem são os de artistas populares, sobretudo, nos gêneros brega,
calipso e, mais uma vez, o forró eletrônico.
Nos demais produtos, outros sinais da presença estrangeira, como os bonés e
bolsas estampados com a marca alemã de produtos esportivos Puma. Embora
falsificados, os produtos aglutinam o valor da marca, representando e concretizando as
116
A palavra Blockbuster teve origem na Segunda Guerra, quando deu nome a uma bomba de grande poder, que em
português significa "arrasa quarteirão". Nos Estados Unidos a expressão é usada pra dizer que um filme foi sucesso
de bilheteria e rendeu lucro ao estúdio. Ou seja, uma produção de grande sucesso que “consegue arrastar quarteirões",
batendo recorde de público e de venda. Os filmes Blockbusters têm grande apelo popular e, devido, ao sucesso que
fazem é comum que eles tenham continuações.
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alternativas de aproximação com a valorização social que o simbolismo da marca traz
implicitamente. No caso dos acessórios vistos, tanto lá como nos demais pontos de
venda, a informação é de que alguns são comprados na cidade de São Paulo e são
revendidos nas feiras – e também em grandes lojas – de São Luís. A barraca visitada
expõe exemplares de bolsas, cintos e óculos que apresentam texturas e cores
chamativas, como é o caso dos cintos prateados e dourados. Esses tons e outras cores se
repetem nas grandes bolsas, em estilo saco, que trazem no tamanho, forma e coloração a
tendência da moda feminina adotada em muitos centros do País.
No box de variedades, encontramos produtos para públicos diversos. Tem
antenas artesanais para televisão, potes e jarros de cerâmica, arranjos florais de plástico,
cofres de gesso, carteiras de couro, cintos, bjuterias, bichos e bolsas de pelúcia, além de
material escolar e artigos para presente. A vendedora Marta Betânia Sousa informa que
algumas mercadorias, sobretudo aquelas para o público feminino, são trazidas de São
Paulo e outras são produzidas no Estado do Maranhão. Ela diz que, apesar das vendas
dependerem da época do ano, sendo mais lucrativos os períodos de festas, como as de
fim de ano, Carnaval e as datas comemorativas, como o Dia das Mães e o Dia dos Pais,
os fregueses apreciam e não questionam a origem ou o padrão dos artigos vendidos.
Produzidos no Estado ou carregando a estampa de marcas internacionais, a recepção dos
usuários é boa. Segundo a vendedora, o que mais vende são os bonés de lã da marca
Puma (comprados em São Paulo) e as antenas para televisão, feitas de cano de PVC e de
arame.
A feirante diz que “faz qualquer negócio” e que pode oferecer bons descontos só
para satisfazer o seu prazer em vender. Os bonés falsificados da marca internacional
Puma custam R$ 12 reais e podem ser negociados até por R$ 10 reais, bolsas Karga
(que falsificadas viram Carga) custam R$ 13 reais, mas podem ser vendidas por R$ 12
reais e 50 centavos. “Feira é povão!”, diz a vendedora, que mantém, espontaneamente,
uma relação amistosa com os clientes. No convívio com os demais feirantes há
integração e espírito de comunidade. A família de Marta é dona do box em que ela
trabalha. A religião evangélica, dela e da família, não traz choque de relacionamento
com o comerciante da frente da sua loja, que vende artigos da religião umbanda.
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Na pequena loja de bijuterias e artigos femininos que visitamos o que
chama a atenção é a quantidade de objetos que se concentram em todas as paredes. Há
brincos, colares, pulseiras e anéis para muitos gostos. O vendedor José Luís Bastos diz
que os produtos vêm de São Paulo. Dessa cidade as mercadorias chegam talhadas com
uma inspiração que ultrapassa o continente. Vimos que um dos pares de brinco expostos
tinha o design semelhante a uma grande moeda, cujo desenho em alto relevo traz a
cabeça laureada de um homem que, pelo momento histórico pode ser o imperador
francês Napoleão I, já que a data mostrada na peça (1808) trata do período em que as
moedas de franco eram cunhadas com a imagem do imperador de um lado e com a
inscrição República Francesa no verso. Havia também um outro acessório, uma corrente
cujo detalhe apresentava reproduções, em miniatura, de uma moeda com o rosto da
rainha da Inglaterra, Elizabeth II. A inspiração nos elementos estrangeiros demonstra a
desterritorialização do consumo e a formação multcriativa dos produtos ofertados.
Além do design, os diferentes materiais apontam uma das estratégias para atingir
os diferentes tipos de fregueses. Há jóias banhadas a ouro e a prata. A imitação dos
metais nobres trazidos de São Paulo se junta à reprodução do bronze e da prata das
peças com motivo na realidade internacional, as quais dividem espaço também com os
acessórios artesanais produzidos localmente. Na feira podemos afirmar que o território é
democrático e que o comércio em múltiplos setores confere uma estrutura social
própria. Onde poderia estar, então, o kitsch dentro desse microcosmo distribuído entre a
sua rica etnografia e as cores vivas de seus produtos?
Na barraca e nos boxes visitados podemos notar, levando em consideração as
classificações vistas no capítulo anterior, que existem elementos e situações que se
configuram como aspectos do kitsch. Nas duas últimas lojas pesquisadas, destacamos
peças íntimas do vestuário feminino e pequenos artigos para presentes. As calcinhas, na
maioria, são estampadas com inscrições românticas, frases de cunho sexual ou, ainda,
motivos de novelas. Exemplos dessa inspiração, as quais buscam acompanhar as
atualizações veiculadas pela TV, estão nas inscrições “O Profeta”, “Duas Caras” e ”Sete
Pecados”, todas com títulos de novelas brasileiras.
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O uso das produções de sucesso na televisão para nomear as peças íntimas e a
estampa de frases maliciosas são combinações de um kitsch que pode ser verificado na
própria modelagem das calcinhas. Inspirada na raça de cachorro Dálmata, que se tornou
bastante conhecida com o desenho animado “101 Dálmatas”, uma das calcinhas é feita
com a cara e as orelhas do animal, em tecido pelúcia, na parte da frente e uma estreita
faixa transparente na parte de trás. A visualização da peça pode despertar afetividade
por meio de um sentido infantil e de brincadeira – a partir dos detalhes da textura do
tecido e das orelhas costuradas no desenho da face, que remontam à lembrança dos
Dálmatas – mas pode trazer também um “Gemütlichkeit” fetichizado. Essa expressão da
sensualidade de um fetiche kitsch é favorecida pelo uso do tecido de pelúcia (conotando
implicitamente o sentido de toque macio) e da transparência (tornando explícita uma
região do corpo que, segundo os padrões sociais, deveria estar coberta).
No tocante às inscrições, tomamos nota de frases como “Pode vir quente que eu
estou fervendo”, “Exigente – Duvido que encontre melhor” e “Convencida – prepare-se
para momentos de muito prazer”, todas inscritas na parte do tecido que veste a região
pubiana das mulheres. Além da ousadia afetiva, que não distingue o público do privado,
e da referência em produtos reconhecidos e de consumo massivo, como é o caso das
novelas, encontramos características do kitsch nos gadgets que, a propósito, têm grande
oferta na feira. Dos chaveiros vermelhos em formato de coração com a frase “I love
you”, aos ursos e corações de pelúcia com braços abertos, vimos que a sentimentalidade
contida nas mercadorias deixa o comércio do Gemütlichkeit sempre vigoroso. Porém,
outros objetos de classificação kitsch podem ser localizados no universo da Feira da
Cidade Operária.
No Box de Marta Betânia, o sortimento dá lugar a muitos gadgets. Entre os
pequenos utilitários kitschinizados estão cofres em formato de porco, urso e botijão de
gás. Os objetos feitos em tamanho reduzido – comparando-se aos modelos reais – têm a
função de porta-dinheiro, mas são também decorativos. Estão classificados dentro do
Princípio de Inadequação do kitsch. Os porta-CD’s, vistos na mesma loja, são revestidos
com o símbolo e a bandeira de times de futebol brasileiros. Mais uma vez, o apelo à
afetividade, cujo alvo, neste caso, são os apaixonados ou simpatizantes de futebol,
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potencialmente atraídos pela insígnia dos times. Na loja de bijuterias e acessórios
femininos e também na barraca de CD’s e DVD’s a kitschinização pode ser
caracterizada pelo Princípio de Acumulação. Usando todo o espaço disponível dos
estabelecimentos, os vendedores dispõem os objetos nas paredes, transformando-as em
cortinas divertidas e coloridas.
Na primeira loja, as mercadorias são diversificadas e os exemplares expostos
quase não se reptem. Embora organizados aleatoriamente e de modo acumulado, não
sobrando espaço livre na parede, percebemos em alguns objetos outros aspectos do
kitsch, como os prendedores de cabelos feitos com fio sintético, nas cores preta, amarela
e marrom. Para eles identificamos o Princípio de Inadequação, pelo uso de materiais
falsificados, já que os fios produzidos artificialmente são comercializados com a
aparência de naturais, na tentativa de se parecer com o cabelo humano. O desvio em
relação à finalidade pode ser pontuado, ainda, nos objetos semelhantes a moedas e que
tiveram suas criações inspiradas nos símbolos francês e inglês, mas cujo verdadeiro
valor comercial não é o de serem moedas, mas sim adornos corporais femininos.
Desse modo, a estética observada nos pequenos objetos e gadgets, bem como o
ambiente que ficam expostos na feira da feira da Cidade Operária, leva-nos a interpretar
que a assimilação e o comércio perene dos artigos visualmente extravagantes em relação
aos padrões enquadrados socialmente como gosto sofisticado, relacionam-se, entre
outros fatores, com a busca por uma manifestação própria dentro de um conjunto de
possibilidades. Uma espécie de paralelismo em relação aos cânones que nos remete a
Fontanella que, embora, aborde especificamente a estética do corpo e a sensibilidade
grotesca da população subalterna teorizada por Bakhtin, coloca a questão do destaque
que modelos realizados no âmbito da periferia passam a adquirir. “Essa estética, embora
fruto de uma exclusão, é a expressão de um tipo de criatividade popular que se permitiu
desenvolver apesar de todo o esforço para sua repressão” (FONTANELLA, 2005, p.10).
Alguns dos objetos e acessórios aqui pesquisados estão no anexo 2.
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7 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em toda a extensão da feira da Cidade Operária há demonstrações da variedade
e de combinações que podem ser categorizadas como kitsch. Essa classificação, no
entanto, parece não ter grande relevância para os feirantes e seus fregueses. Afinal, o
sentimentalismo sintético e a estética confusa dos pequenos objetos analisados não
intimidam o consumo. Na rotina desse microcosmo tão multifacetado quanto
interessante, as relações sociais e econômicas têm uma dinâmica própria. Muitos
feirantes já têm uma freguesia cativa. O tom amistoso e de coletividade são percebidos
no tratamento dispensado aos fregueses e na própria relação estabelecida entre os
feirantes que, ali, ocupam o mesmo território e disputam, em muitos casos, os mesmo
clientes.
Nas mercadorias, as marcas das diferentes influências culturais são verificadas
como a representação simbólica da liberdade criativa que agrega inspirações locais a
elementos estrangeiros e consegue adaptar produtos e marcas de realidades externas ao
contexto local. A mescla de inspirações demonstra que as vitrines populares expõem ao
consumidor mercadorias extravagantes e de gosto controverso, que podem ser
classificadas em categorias do kitsch, mas que têm no apelo visual ou afetivo um ponto
importante capaz de despertar o interesse, ou mesmo a emoção dos potenciais
compradores. A oferta de tais produtos no comércio popular se organiza de modo
paralelo ao sistema dominante. Por esse circuito da alternatividade barata e
criativamente diversificada, os bens são produzidos, divulgados e negociados com
estratégias próprias que se destacam não pela possibilidade de negação, mas por
poderem se assumir como produtos kitschinizados e serem, ainda, um contraponto aos
modelos do organograma social hegemônico.
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ANEXOS
Anexo 1 – Mapa da Feira da Cidade Operária
Anexo 2 – Alguns objetos e acessórios analisados
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ANEXO 1 – Mapa da Feira da Cidade Operária
ANEXO 2 – Alguns objetos e acessórios analisados
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