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Revista das Faculdades Integradas Claretianas – N. 5 – janeiro/dezembro de 2012
A Noção de Pessoa Como Fundamento Ético e Aporético Para Uma
Crítica à Sociedade Contemporânea
Regina Claret Kapp dos Santos
Faculdades Integradas Claretianas
[email protected]
Sávio Carlos Desan Scopinho
Faculdades Integradas Claretianas
[email protected]
O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico – Brasil
Resumo
O presente artigo é resultado de um estudo histórico e sistemático sobre a concepção de pessoa, desencadeado
entre as diversas fases de transformações sociais e culturais da humanidade. Essa concepção sofreu várias
inversões de conceitos e valores e atualmente se apresenta desprestigiada pelo ritmo de precarização e
indiferença causada pelo dinamismo do sistema capitalista globalizado. Inicialmente, essas transformações
provieram de conquistas territoriais de poder; porém, no decorrer da história ocidental, ocorreu um processo de
reflexão filosófico-antropológica, em busca do conhecimento do ser humano, propiciando uma consciência ética
e de formação cidadã, para obtenção do bem comum. Acrescentamos neste processo o arcabouço histórico e
religioso do monoteísmo, estabelecendo a busca pelo Sagrado, através de um relacionamento ponderado por
leis de conduta em prol da solidariedade coletiva, visando à justiça e à paz. Porém, essa sensibilidade humana
foi ofuscada pelo ímpeto de alcance de sua inteligência; assim, numa era de descobertas, a ânsia de poder e de
ambição iniciou um processo de produção e de consumo excessivo, desencadeando o sistema capitalista. Esse,
gradativamente inverteu os valores do “ser” para o “ter”, propiciando a formação de uma sociedade excludente,
desigual, descartável e indiferente às necessidades dos seres humanos e do meio ambiente. A sociedade
contemporânea sofre essas consequências históricas e contundentes do capitalismo, esquecendo-se da validade
fenomenológica que envolve o ser humano na sua relação consigo mesmo, com os outros e com o universo.
Infelizmente, tais situações tendem a piorar se não houver um novo olhar e uma nova consciência ética que
visem ao resgate do real valor da pessoa humana. Assim, torna-se necessário articular reflexões que
desencadeiem cuidados, oportunidades e políticas que tragam ao ser humano a dignidade e o direito à
cidadania, para sua realização plena. Essa consciência de cidadão propiciará uma atuação de respeito e de
cuidado pela conservação da natureza, postergando um novo habitat e um novo sentido à vida para as
gerações futuras.
Palavras-chave: pessoa humana, capitalismo, cuidados e cidadania.
1 Introdução
Para início de reflexão, segundo Moreira (1999, p. 134-138), vemos que o mundo atual encontra-se em
meio a um processo acelerado de transformações que afetam todos os povos, indistintamente da cultura ou
classe social a que pertençam. Nossas sociedades estão interligadas com rápidas tecnologias de comunicação e
informação, porém oprimidas por uma cultura de massa, proveniente de conflitos socioeconômicos, culturais e
crises de valores morais, advindas do sistema capitalista. Vemos ainda os conceitos ideológicos da globalização,
mascarando a possível inclusão de todos indistintamente nesse mercado econômico capitalista, potencializando
ainda mais a cultura de mercado ou cultura do consumo, fazendo as pessoas quererem mais do que necessitam
para sua vida, ou então ingressarem num processo de “coisificação” do ser humano. Acrescentamos, segundo
considerações de Brasil (2007), que a sociedade capitalista contemporânea traz em seu contexto um paradoxo
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social onde os excluídos, das mais diversas formas, não participam do sistema de forma compensatória, mas
sustentam a sua ordem econômica e social.
Destacamos também a gravidade dessa situação, constatada por Buarque (1993, p. 38-41), quando diz
que a sociedade capitalista se caracteriza por um processo de apartação social, pelo qual se denomina o outro
como um ser “à parte”; ou seja, um fenômeno de separar, não somente como um desigual, mas como um “não
semelhante”, um ser expulso não somente dos meios, bens ou serviços de consumo, mas do gênero humano,
mostrando-se assim uma forma contundente e questionadora de intolerância social.
Diante dessa realidade de marginalização social, não podemos fechar os olhos para o ser humano, mas
acrescentamos, segundo Gallo (2003, p. 108), a necessidade de atenção e cuidados da individualidade de cada
pessoa, não para atuar com egoísmo, mas sim para preservação de sua singularidade, dignidade e direito à
cidadania, tornando-se sujeito de direitos e escolhas, e tendo oportunidades para construir sua história, sem
ser massificado por um sistema de produção e de consumo.
Assim, é imprescindível repensar o valor da pessoa humana, sua dignidade e suas reais necessidades
de vida, visto que o ser humano se constrói por um determinismo biológico, uma dimensão racional-psicológica
e uma estrutura social, desenvolvidos através de um processo histórico, que forma a pessoa humana em seus
diversos contextos culturais, aportados com valores de formação ética, cidadã e societária, visando à felicidade
e ao bem comum. Porém, infelizmente, ao lado dessa inversão do real valor do ser humano, vale acrescentar a
esse cenário de exclusão e desigualdade social, a situação atual do meio ambiente que, embora ampare e
forneça ao ser humano subsídios para sua sobrevivência, sofre com sua exploração depredatória, proveniente
também da cultura de consumo em excesso, oriundo do capitalismo. Em seu livro, Boff (2004, p.14) destacou a
importância da introdução da Carta da Terra, quando diz que:
As bases da segurança global estão ameaçadas. Essas tendências são perigosas, mas não
inevitáveis. A escolha é nossa: ou formar uma aliança global para cuidar da terra e uns dos
outros, ou arriscar a nossa destruição e da diversidade da vida.
Segundo Boff (2004, p. 30), é preciso desenvolver um novo processo de afeto, emoção e paixão pelo
ser humano e pelo Cosmos; precisamos buscar um sentido profundo para captar os reais valores das pessoas e
das coisas, pois só quando nos apaixonamos, vivemos esses valores e por eles nos movemos, formando um
com todos.
Buscando, assim, resgatar esse afeto e paixão pelo ser humano, apresentamos, a seguir, as dez
dimensões fenomenológicas do ser humano, estudadas por Mondin (1980), mostrando sua interdependência
com o mundo e sua correlação tecida pela teia contextual da vida, através de sua experiência subjetiva e social,
na busca de conhecer as manifestações existenciais presentes em sua condição humana.
2. Fenomenologia do ser humano
A história de cada ser humano se faz através de seu crescimento natural, transcorrida em seu ciclo
vital, desde a concepção, gestação, nascimento, adolescência, maturidade e idade senil, buscando atingir, num
processo contínuo, o objetivo de tornar-se uma pessoa adulta e humana, em toda sua integralidade.
É imprescindível estudar a pessoa humana constantemente, sem preconceitos ou julgamentos, com
uma admiração tal qual uma criança, ao descobrir o mundo e o ser humano, com todos os seus encantos e
segredos. Assim, iremos adentrar nesse fenômeno do ser humano enquanto pessoa, numa reflexão das dez
dimensões, abordando os principais pontos de vista desta fenomenologia, tais como o corpo, a vontade, a
liberdade, o amor, a cultura, a sociabilidade, o trabalho, a religião, entre outros.
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A exposição e reflexão inicial se fazem a partir da somaticidade do ser humano, dimensão que confirma
a sua real e sensível presença corpórea.
2.1 Homo Somaticus – o ser humano e seu corpo
A investigação sobre a dimensão corpórea do ser humano efetua-se em duas formas de estudos
distintos e específicos: a científica e a fenomenológica. Segundo Mondin (1980, p. 29), vemos que no
conhecimento já acumulado pela ciência, o corpo humano apresenta um mecanismo perfeito, integrando
simultaneamente órgãos específicos e estruturais que desenvolvem uma harmonia geral e integral.
Por outro lado, de forma fenomenológica, vemos nesse organismo harmônico a fragilidade do ser
humano, que ao nascer apresenta necessidades a serem atendidas para a sua sobrevivência, mostrando assim
a sua latente falta de autonomia. Porém, essa autonomia será superada de forma gradual e sociativa pelas
relações que desenvolverá com os outros seres humanos. Através do processo de autoconscientização e
socialização, o ser humano torna-se dono de seu próprio corpo e aos poucos se descobre como dono do mundo,
com possibilidade de transformá-lo e dominá-lo para sua sobrevivência e satisfação. Paradoxalmente, embora o
corpo seja essencial ao ser humano, podemos afirmar que ele não é o ser humano em sua totalidade. Há uma
estreita conjuntura entre o corpo e a alma e, dessa unidade, surge uma totalidade única, gerando, porém,
segundo cada contextualidade, uma diversidade de perfis e perspectivas, cada qual em busca de sua afirmação
como ser humano. Nessa unidade, enquanto o corpo se mostra instável em seu lugar no mundo, a alma é
capaz de pensar a imensidão e expandir o seu limite, transcendendo essa somaticidade e superando, assim, a
matéria e seus condicionamentos.
Esta dimensão de transcendência pode ser verificada pelo porte ereto do ser humano, que evidencia
liberdade e autonomia em direção ao universo. Este olhar do espírito supera a vastidão do espaço físico e luta
contra o tempo, denotando uma abertura radical para frente, para o futuro, em busca de realização e
felicidade, fazendo com que o ser humano se revele, manifestando estados passageiros ou definitivos de seus
sentimentos.
Assim, ao conhecer e investigar essa fenomenologia, nós identificamos a bondade, o afeto, a malícia, o
prazer, a serenidade, a preguiça, a luxúria, a avareza de um ser humano.
2.2 Homo Vivens – A vida humana
A unidade e relação recíproca entre o corpo e a alma só serão possíveis e efetivadas, quando o
fator “vida” estiver em expressão real ao ser humano, visto que ele é um ser vivo.
Segundo Mondin (1980,
p. 45), o fenômeno da vida é visto de forma universal e encantadora, em todos os seres viventes, de formas
unicelulares ou multiformes, desde as origens e entre os diversos processos de evolução própria de cada
espécie. Porém, em relação ao ser humano, a vida é propriedade fundamental e não pode ser estudada e
refletida de forma imparcial, fragmentada e desapaixonada. Para abordá-la em plenitude e originalidade é
necessário vivê-la, senti-la e percebê-la. Se conceituarmos a “vida”, segundo o senso comum, veremos que é
amor, luta, dor, esperança; porém, para a ciência é tudo isso e muito mais. Em argumentos científicos, temos a
definição que:
(...) a vida é uma particular organização da matéria, discorridos em associações de átomos
pertencentes a quatro elementos: carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio; e estes são
transformados em constituições orgânicas das células denominadas: carboidratos, gorduras,
proteínas e os ácidos nucléicos, que conservam e transmitem o código genético (DNA), ainda
deduzimos que o menor organismo vivente é a célula. (Mondin, 1980, p. 48).
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Junto a essas definições, podemos ainda completar que a vida é experiência, improvisação, utilização
das circunstâncias; é luta pela sobrevivência em todos os sentidos. Porém, precisamos ressaltar que a validade
real da vida humana se dá pelo conhecimento que se descobre, assimila e acumula no decorrer dos períodos
históricos produzidos mediante as faculdades sensitivas e intelectivas.
2.3 Homo Sapiens – Sensitivo e Intelectivo
Segundo
informações
do
Atlas
Virtual
da
Pré-História
(AVPH),
o
homo
sapiens
surgiu
há
aproximadamente 150 mil anos atrás, como resultado de adaptações do homo erectus em relação ao meio em
que vivia. Desde então, o homo sapiens vem evoluindo e aumentando seu número cada vez mais, extinguindo
todas as espécies que se oponham a ele, tornando-se o "animal" dominante do planeta.
Tal evolução deve-se oportunamente pelas faculdades sensitivas e intelectivas. O conhecimento
sensitivo, segundo Mondin (1980, p. 63), é obtido através dos sentidos: visão, audição, olfato, tato e paladar;
estes, por sua vez, colhem materiais, reais ou aparentes, e os definem com singularidade, em partes ou num
todo, especificando sua qualidade ou característica e reportando para sua finalidade. Ainda, segundo Mondin
(1980, p. 75), o conhecimento acumulado pelo ser humano deve-se ao significado abstrato apresentado aos
fatos, decorrentes do seu poder intelectivo que documenta ideias, através de formulações de juízos e
proposições universais que advém de sua capacidade de raciocinar. Assim, através desta dimensão, o ser
humano toma consciência de sua autonomia e, com intencionalidade, fala, ouve, toca, degusta, imagina, faz
experiência, transforma-se, qualificando-se como ser humano.
2.4. Homo Volens – Vontade, Liberdade e Amor
Vimos, no tópico anterior, que o ser humano está em contínuo movimento; porém, segundo Mondin
(1980, p. 107), esse dinamismo é consequência de suas escolhas e decisões, decorrentes de sua vontade e
liberdade, que determinam sua afetividade e seu amor pelas coisas, pelas pessoas, pelas suas demandas e
realizações. Esses sentimentos são insaciáveis, pois vemos que o ser humano nunca está satisfeito com o que
realizou ou com o que adquiriu; e, num impulso constante e potente, continua a escolher e descartar; a fazer e
a abandonar; isto de forma soberana e ilimitada.
2.5 Homo Loquens – A Linguagem
Para Mondin (1980, p. 134), a linguagem verbal é uma dimensão própria do ser humano, que se
caracteriza por meio de pesquisas históricas e científicas, devido à sua importância e decorrente problemática
junto à questão da comunicabilidade para com os outros seres humanos. O estudo do tema por parte dos
filósofos, desde o período pré-socrático até os nossos dias, propiciou a construção da antropologia e o abordar
do assunto em vários ângulos e perspectivas. Assim, podemos estudar a linguagem a partir da seguinte
fragmentação: linguagem semântica, onde se busca o critério geral de significação; linguagem gnosiológica,
como fonte primária do conhecimento; linguagem ontológica, que envolve a revelação do ser; linguagem social,
que estrutura, sustenta e esclarece as demais estruturas da sociedade; e linguagem psicanalítica, que flui do
subconsciente.
Valorizando a comunicabilidade do ser humano, veremos que ela potencializa e desemboca em outra
dimensão, imprescindível ao desenvolvimento e relacionamento do ser humano, que é a sua dimensão política
e social.
2.6 Homo Socialis – Dimensão social e política do ser humano
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Constata-se, ainda, baseado em Mondin (1980, p. 155), que o ser humano possui instintos altruístas,
que possibilitam a colaboração mútua com seus semelhantes. Confirma-o assim como um ser social que,
através de um processo associativo e contínuo, elevou o nível cultural da humanidade e hoje já alcança
proporções planetárias. Porém, o ser humano, limitado e inconstante, devido a sua vulnerabilidade e ânsia pelo
poder, fez surgir a necessidade de uma atuação política positiva, como forma correlacional, entre os grupos
sociais. Assim, através de associações legislativas, os grupos adquirem e delegam direitos e deveres, comuns a
todos. Esta correlação - social e política - propicia o desenvolvimento cultural que estaremos refletindo no
próximo tópico.
2.7 Homo Culturalis – A cultura e o ser humano
A cultura é resultado de um conjunto de significados e valores produzidos pela sociedade humana, que
estabelecem um modo comum de vida em determinados segmentos sociais. Em decorrência da sociabilidade
humana, construímos uma cultura diversificada, segundo o contexto genealógico de costumes e atitudes
próprios de cada etnia ou povo.
Segundo Mondin (1980, p. 171), a cultura é dinâmica, múltipla, sensível, criativa e está em constante
modificação. Porém, as complexidades desse fenômeno cultural estão agrupadas em três tipos de aspectos:
quanto à sua origem, sua forma e sua finalidade. Quanto à sua finalidade, apresentamos três suposições: a
finalidade religiosa, que busca elevar a espiritualidade do ser humano, levando-o ao relacionamento com o
Transcendente; a finalidade humanista que tem como alvo principal o próprio ser humano, seu bem estar e
progresso; e a finalidade naturalista, que busca a harmonia e o desenvolvimento da natureza, assim como a
preservação do meio ambiente. Devido a sua importância no processo de desenvolvimento e relacionamento
humano, precisamos reconhecer que a cultura é uma forma cumulativa não só das manifestações sociais, mas
também do trabalho humano. Este, por sua vez, se insere na fenomenologia humana, atribuindo grandes
mudanças mundiais.
2.8 Homo Faber – O trabalho e a técnica
O trabalho humano, articulado processualmente, propiciou a transformação da natureza com a
criação de coisas, em prol de suas necessidades e, consequentemente, de seu desenvolvimento e conforto.
Segundo Mondin (1980, p. 192), a descoberta do fogo foi a maior conquista do ser humano, marcando
o início primitivo da atividade humana e que, posteriormente, num processo contínuo e gradual de invenções,
desembocou na forma de produção como conhecemos atualmente. Inicialmente, as invenções ocorreram de
forma manual, em função da produção de coisas para a sobrevivência humana; porém, após a implantação
industrial e tecnológica, surgiram novas invenções que trouxeram prazer, conforto e segurança ao ser humano,
ainda que com contradições e equívocos.
A partir do Século XIX, evidenciou-se que o ser humano não mais se autocompreendia sem a referência
ao trabalho, pois este passa a ser fator de humanização, de integração social, de autoestima e de utilidade
social. Porém, precisamos lembrar que o desenvolvimento do capitalismo tem se pautado no lucro e na
exploração da mão de obra, gerando um trabalho excessivo e injusto em remuneração, que descaracteriza o
real valor do ser humano.
O ser humano que trabalha necessita de descanso e distração para relaxar e desempenhar bem suas
atividades; assim, através de sua criatividade, ele articula atividades lúdicas para diversão; é o que
refletiremos na sequência.
2.9 Homo Ludens – O jogo e a distração
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A dimensão lúdica do ser humano provém da atividade típica e diversificada do jogo, visando distração,
divertimento, satisfação, promoção e realização de si mesmo. Nas reflexões de Mondin (1980, p. 209),
constatamos que a esfera lúdica é complexa, pois, para ser efetivada pelo ser humano, necessita de
inteligência, vontade, habilidade e ação para adquirir um envolvimento que determine uma satisfação em
jogar; e, ainda, possivelmente, com todas as forças, técnicas e artimanhas, vencer. Na opção de querer jogar e
na ânsia de vencer o jogo, o ser humano se autotranscende em busca da realização de seus sonhos; suas
buscas e lutas, por sua vez, ocorrem em função de sua liberdade e escolhas.
2.10 Homo Religiosus – O ser humano e a religião
Podemos acrescentar que existem outras formas de satisfação e segurança para o ser humano. Assim,
o fenômeno religioso, também deliberado por escolha própria, implica numa adesão e comprometimento com o
Transcendente e consequentemente com seus semelhantes. O fundamento pelo qual se evidencia o fenômeno
religioso é a experiência com o Sagrado, que denota ao ser humano uma atitude de fé, trazendo sentido de
vida e esperança, e levando-o a amar a Deus, a si mesmo e ao próximo. Segundo Mondin (1980, p. 226),
podemos dizer que a religião é uma plataforma natural, decorrente de histórias e experiências primitivas,
confirmando que o ser humano é realmente um ser religioso, de fato e de direito. Através do encontro com o
Sagrado, transcende a sua naturalidade, desmistifica mitos e busca encontrar a verdade de sua existência.
Assim, através da breve exposição destas dez dimensões, deduzimos, com Mondin (1980, p. 245), que
o ser humano é um fenômeno em constante movimento, aberto para novas transformações e não pode ser
estudado apenas em uma ciência particular. Desta forma, o ser humano necessita de sensibilidade interior e da
relação com o meio social para alcançar sua autocompreensão e, assim, atingir sua realização plena como
pessoa, dentro do processo histórico e social em que está inserido.
3 Evolução conceitual e histórica do ser humano
Na história da humanidade, segundo Mondin (2002, p. 147), o ser humano é o centro e o autor dos
conjuntos eventuais de acontecimentos, pelos quais se foram descobrindo e confirmando o seu real valor como
pessoa. Adentrando, assim, o significado do vocábulo “pessoa”, denotado num sentido histórico, vemos que
significava a máscara, ou carcaça, que os atores em Roma usavam para esconder sua real identidade ou
camuflar a voz nas representações teatrais. Porém, segundo Santos (2001), essa palavra, posteriormente,
passou a designar o próprio ser humano identificado no vocábulo grego ”prósopon”, ou “face oculta”,
determinando a essa máscara um papel, uma função. Assim, ao denotarmos o termo “pessoa” ao ser humano,
destacamo-lo como alguém escondido e envolvido, não numa peça teatral, mas sim, numa obra inacabada,
como um projeto em realização, lutando, através de uma epifania, para atingir sua plenitude.
Podemos ainda acrescentar à singularidade de cada pessoa, uma missão exclusiva, na qual compete a
ela, uma adesão consciente e responsável para realizá-la, no contexto e processo histórico em que está
inserida. Vejamos, a seguir, a concepção de pessoa humana em alguns períodos históricos e em diversos
contextos culturais.
3.1 Período Pré-Histórico até a História Antiga
Segundo Comparato (2006, p. 409), no período de 8.000 a.C. a 5.000 a.C., ocorreu a formação dos
primeiros grupos humanos, que surgiram da junção de pequenos grupos regionais, alojados em suas tradições
e costumes próprios, que ignoravam as demais sociedades vizinhas, mas demonstravam-se hostis aos inimigos
e dominadores que invadiam seus territórios em busca de conquistas. Começou-se a estabelecer a questão de
trocas entre víveres e frutos da terra, surgindo assim a atividade comercial e a posse de propriedade. Nesse
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processo dual de choque e aproximação, entre perdas e ganhos - acertos e erros -, foi possível a construção
societária, em meio à diversidade cultural. Porém, destacamos duas culturas que colaboraram para a formação
de nossos conceitos e padrões sociais: a cultura grega e a cultura romana. Elas, descritas em detalhes por
Comparato (2006, p. 108), têm especificações de caráter cultural em relação à forma como o ser humano era
visto ou formado nesses respectivos contextos.
3.1.2 A Sociedade Grega Antiga
Em Comparato (2006, p. 50-55), consta que no contexto grego existia um holismo ético que envolvia
toda vida social, sem exceções ou reservas; o indivíduo contava com a ajuda de dois polos formadores: a
família e a cidade (polis). Através de uma regulação global da polis, o poder pater era desenvolvido em nível
familiar pelo pai e em nível religioso pelo sacerdote; as mulheres, filhos e escravos eram sujeitos subordinados.
Os jovens alcançavam a cidadania aos 16 ou 18 anos, sob juramento de defender a Pátria e respeitar a religião
da cidade. Sabemos que havia a existência de leis escritas que regulavam os costumes e eventos da vida
cotidiana e social, como o casamento, a educação das crianças, os modos musicais, os penteados das
mulheres, o tipo da barba e bigode dos homens, a obrigatoriedade do voto e a conduta dos cidadãos em
tempos de guerra. Constatamos, assim, a falta de autonomia por grande parte dos indivíduos e a sua absorção
por parte da sociedade.
3.1.3 Correntes filosóficas gregas
Segundo Valls (1994), o conceito de pessoa começa a ser despertado e esboçado sutilmente no tempo
áureo do pensamento grego, que vai de 500 a.C. a 300 a.C, isto a partir de reflexões filosóficas surgidas no
contexto do Santuário de Delfos, do Deus Apolo. Destacamos frases de filósofos contemporâneos à época, que
se refletia sobre a natureza moral, a busca de um princípio absoluto da conduta, proveniente do contexto
religioso e que tinha a felicidade como finalidade do indivíduo e da coletividade. Podemos apresentar os
seguintes exemplos:
- “Conhece-te a ti mesmo”: lema em que Sócrates cifra toda a sua vida de sábio e, sobre este,
interroga de forma instigante os gregos, seus contemporâneos, a fim de encontrar um conhecimento centrado
no ser humano, em reflexões especulativas de sua existência e atitudes morais, visando ao bem do próprio ser
humano; ocorre, nesse contexto, uma valorização da sua subjetividade e personalidade, em benefício da
coletividade (VALLS, 1994, p. 18).
- “O sábio que tudo sabe é aquele que sabe que nada sabe”: afirmação de Platão, discípulo de Sócrates,
que enobrece o pensamento e a reflexão do ser humano sobre o próprio ser humano, primeiramente de forma
subjetiva, isto é, olhar-se para si mesmo, e depois de forma universal e relacional.
- “Nada em excesso”, de Aristóteles, na qual é formulada a ética da virtude, baseada na busca pela
felicidade humana, através da posse sem exagero de bens materiais e riquezas, ajudando o ser humano a se
desenvolver, sem mesquinhez, bem como a cultivar bens espirituais, como a ação (na vida política) e a
contemplação (através da filosofia e da metafísica).
Ainda, na contemporaneidade desses filósofos, não podemos esquecer a atuação dos sofistas e suas
reflexões, que propiciaram uma revolução espiritual, deslocando o olhar do Cosmos para a vida e a relação do
ser humano em sociedade.
Assim, concluímos que o legado grego apresenta o ser humano como um aspirante da felicidade, que só
se torna possível através da conduta virtuosa, advinda da consciência e opção pelo Bem, numa relação social e
cósmica. Mas, também, no decorrer desse ciclo cultural e histórico, temos a luta pela dominação de terras e de
poder, através de guerras, derrotas e vitórias, irrompendo um novo período, denominado de helenístico.
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Segundo trabalho de Néri (2011), o helenismo introduz novos conceitos sobre o mundo e o modo de viver da
sociedade na cultura grega.
3.1.4 O Helenismo
O Helenismo marcou a transição da cultura grega, dominada pelas conquistas de Alexandre Magno, da
Macedônia, para a completa dominação romana. A partir desse período, surgiram novas correntes filosóficas,
colocando a vida do ser humano como centro de reflexão. Podemos destacar o Ceticismo, iniciado por Pirro
(360-272 a.C.), segundo o ser humano, para ser feliz, deveria agir com indiferença aos costumes e
acontecimentos da vida, ser uma pessoa inerte, absorvida em si mesma e ausente do mundo.
Surgiu também o Estoicismo, criado por Zenão de Cítio (320-250 a.C.), apresentando a felicidade
almejada pelo ser humano como um estado pleno de tranquilidade, adquirido pela prática da virtude, sem
preocupação com a morte e o acúmulo de bens materiais. Porém, ressaltava o cultivo da sabedoria pelo
pensamento, pois pensar é a única atividade que vale a pena se empenhar.
Segundo Comparato (2006, p. 115), convém ressaltar que Panécio, como seguidor de Zenão e
divulgador do estoicismo tradicional, foi um dos primeiros a elaborar o conceito de “pessoa”. Posteriormente,
surgiu o Epicurismo ou Hedonismo, fundado por Epicuro (341-270 a.C.), que afirmava que as pessoas, assim
como as demais coisas, são formadas por átomos que se dissipam e desaparecem com a morte; assim, nada é
duradouro. O Epicurismo tinha como finalidade a busca da vida através do prazer, proveniente não das paixões
e instintos, mas sim daquele proveniente da razão e da superação de seus medos.
3.1.5 Sociedade Romana
Segundo Carneiro (2011), com a decadência da cultura grega, a expansão do helenismo viabilizou o
surgimento da cultura romana, como uma nova potência e com novos valores e conceitos. A militância romana
originou-se no século VIII a.C., através da anexação de novos territórios provenientes de suas lutas e
conquistas. Esse fato favoreceu o estabelecimento e incorporação de seus costumes e valores junto aos povos
vencidos e dominados. Os romanos, diferentemente dos gregos, reformularam o foco da sociedade na família e
no Estado. As mulheres, dentro da família, desenvolviam o papel de educadoras dos filhos e conselheiras de
seus esposos e não assumiam cargos de governo.
Essa extensão do poderio romano propiciou a formação de leis que trouxeram ordem para as famílias,
para a vida pública e para a política, de forma ética, como normas morais e preventivas. Esse período
postergou
a
criação
de
uma
cultura
eclética,
que
influenciou
fortemente
o
processo
histórico
e
consequentemente a sociedade atual. Porém, no decorrer dos anos seguintes, uma série de crises começava a
assolar Roma, isto por volta do século II a.C até meados do século II d.C.
O fato é que todo esse contexto histórico e cultural greco-romano propiciou o desenvolvimento de uma
antropologia que entendia o ser humano como situado no espaço e no tempo, contribuindo para a gestação do
conceito de pessoa, com matizes e características próprias. Tal contexto foi assimilado pelo Cristianismo que,
com o evento Jesus Cristo, despontou e adquiriu expressividade histórica e social, gerando uma nova
concepção de pessoa, com forte influência do monoteísmo de tradição judaica.
4 O Monoteísmo
Ao lado desses períodos de conquista, ascensão e decadência de culturas, faz-se necessário ressaltar a
questão religiosa como uma transformação das imanências mundanas e mitológicas, pela busca de uma
transcendência divina - num único Deus -, propiciando um critério absoluto e inflexível para o condicionamento
das ações humanas.
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A hermenêutica da doutrina monoteísta discorre de uma interpretação dos textos sagrados e da
formação de normas éticas e morais, que exerceram influência sobre três grandes religiões da humanidade: o
Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo.
4.1 O Judaísmo
Segundo Comparato (2006, p. 68-69), a crença judaica se firmava na condição de fonte de justiça e de
direito, por meio de um ensinamento normativo, no caso a Torah; esta devia ser vivida pelo povo judeu, tido
como escolhido, obediente à vontade do Senhor e eleito para revelar a salvação aos demais povos.
Para consolidar essa convenção entre Iahweh e o povo judeu e firmar a fidelidade ao Deus único, selase um acordo de vontades e adesão mútua, com um pacto sob a forma de ritual, neste caso a circuncisão.
Abraão (Gn 17, 9-14), fiel a Deus e à frente do povo escolhido, se faz circuncidar, como sinal constante de uma
promessa e aliança divina. Dentre os diversos conflitos com outras nações, o povo judeu viveu seu maior
período de cativeiro, na Babilônia, entre os anos 586 a.C. e 538 a.C. Porém, após a derrota da última investida
da invasão territorial pelos romanos, em 135 e 136 d.C., passou-se a viver em permanente diáspora, como
minoria em diversas partes do mundo.
4.1.2 O Cristianismo
Segundo estudos de Comparato (2006, p. 71), a ponte de relação entre o Judaísmo e o Cristianismo
está implícita no Antigo Testamento (Lv. 19,18) e descreve a crença e a fidelidade num único Deus e a real
responsabilidade fraterna de cada indivíduo pelo seu semelhante. No Cristianismo, outorgado por Jesus Cristo,
o caráter jurídico do monoteísmo hebraico foi afastado desde o início de suas pregações.
Jesus de Nazaré, judeu e autoapresentado como o Salvador esperado, é posto em prova pelos judeus
sobre a questão da Torah. Ele sabiamente reconhece o valor e a posição da Lei Mosaica na história, dizendo não
suprimir ou modificar, sequer uma vírgula da Lei (Mt. 5,17-19), mas sim instigava seus seguidores a uma
evolução positiva para plenificar o amor fraterno, num convívio comum em prol da construção de um reino de
justiça e paz.
Assim, no Cristianismo, o ser humano vive para conhecer, amar e servir a Deus e estender essas
virtudes aos seus semelhantes, incluindo também os inimigos. Essas ideias, segundo Pereira (2004), foram
oportunas para inserir o campo da subjetividade do ser humano, onde o mesmo passa a ser visto como pessoa
e não como objeto, redescobrindo, assim, seu valor fundamental.
4.1.3 O Islamismo
A doutrina islâmica se estabelece como religião de Estado e, segundo Comparato (2006, p. 78), foi
proclamada pelo Profeta Mohammad, chamado pelos ocidentais de Maomé, ela através da revelação divina,
Allah é visto como único Mediador, descrito no Corão ou Alcorão, livro sagrado do Islamismo.
A palavra islã significa “submeter-se à” e exprime a obediência à lei e à vontade de Allah. Seus
seguidores são os muçulmanos, “aquele que se subordina a Deus”, e seus principais ensinamentos são a
onipotência de Deus e a necessidade de bondade, generosidade e justiça nas relações entre os seres humanos.
A lei islâmica abrange todos os aspectos da vida humana, assim como as relações dos seres humanos entre si,
do ser humano com Allah e do ser humano com sua própria consciência. Trata-se de uma religião
rigorosamente missionária, exigindo que seus fiéis propaguem a fé à terra inteira.
Segundo Pinela (2006), nestas três religiões monoteístas - Judaísmo, Cristianismo e Islamismo -,
acredita-se na existência de um só Deus, distinto do mundo, transcendente e absoluto em toda sua realidade.
Nessa relação com Deus surge o conceito de pessoa, onde o ser humano é entendido mais do que um simples
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A Noção de Pessoa Como Fundamento Ético e
Aporético Para Uma Crítica à Sociedade Contemporânea
fenômeno orgânico; por um princípio ético, ele deve aderir a um processo de aperfeiçoamento pessoal, em
busca da santidade de vida, através de preceitos e regras de conduta que estabelecem uma prática moral de
atitudes e a vivência da caridade fraterna.
As religiões monoteístas visaram, assim, dar respostas ao ser humano sobre sua origem e seu destino,
intervindo nas diversas práxis que se estabelecem nos níveis político, econômico, cultural e social, dentro de
uma formação integral da pessoa humana.
4.2 O Cristianismo e a Idade Média
Segundo estudos de Hirschberger (2007), no período da Idade Média, podemos observar a crescente
influência do Cristianismo, apresentando-se como caminho que leva a uma concepção absoluta de verdade e
que se pautava na ideia de vida eterna, sustentada e legitimada pela filosofia grega, inicialmente de tradição
platônica e, posteriormente, aristotélica. Nesse contexto, destacamos a pessoa de Santo Agostinho,
considerado como “o último dos antigos” e o “primeiro dos modernos” que se apropriou do conhecimento
filosófico grego, considerando-o útil para fecundar os princípios da fé e os ensinamentos da Igreja.
Valls (1994, p. 44) destaca que o pensamento de Santo Agostinho (354-430) aprofunda o sentimento
religioso em relação ao ser humano e ao mesmo tempo resgata o lema socrático: ”Conhece-te a ti mesmo”.
Também, segundo Pereira (2004), podemos enriquecer sua ideologia filosófico-teológica com o Mistério da
Encarnação de Jesus Cristo e o Mistério da Santíssima Trindade. Cada pessoa trinitária ressalta sua
individualidade e sua substância naturalmente divina, porém numa relação perfeita entre ações autônomas.
Assim, com esse fundamento, Boécio, contemporâneo de Agostinho, define o ser “pessoa” como ser único, de
substância natural, humano e racional, que desenvolve um relacionamento autônomo com seu semelhante.
Pereira (2004) acrescenta que tivemos a resignificação do conceito de “pessoa” através de estudos e
conclusões de São Tomás de Aquino; este correlacionou o mistério trinitário como individual e coletivo,
mostrando ao mesmo tempo a distinção e a autonomia das três pessoas divinas e a relação e integração
perfeita entre elas.
Em Comparato (2006, p. 139), encontramos como São Tomás descreve a pessoa humana, numa
natureza própria de carne e alma, destacando, porém, que o seu lado racional - de memória e de vontade deve-se a sua imagem e semelhança em Deus, Uno e Trino. Porém, Comparato destaca ainda que São Tomás
desenvolveu este raciocínio com espírito inovador e que, influenciado pelo pensamento aristotélico, superou o
tradicionalismo vigente no seu tempo, assumindo posturas investigativas filosófico-teológicas que contribuíram
para a evolução do conceito de “pessoa”.
Suas resoluções foram compendiadas em sua Suma Teológica, declarada como doutrina oficial da Igreja
Católica no Concílio de Trento (1545-1563), pelo Papa Paulo III, como medida de evitar abusos provenientes da
Contra-Reforma Protestante. Podemos destacar desta Suma que há três espécies de Leis: a Lei Eterna ou
Divina, a Lei Natural e a Lei Humana; todas têm como intenção tornar o ser humano um ser de bem, em sua
relação com Deus, com a natureza e seu semelhante, acordando, assim, leis que dizem respeito à interação e
harmonia entre todos.
A reflexão filosófico-teológica de São Tomás ocorreu num momento específico da Idade Média que,
segundo Comparato (2006, p. 124-133), refletiu uma grande crise de passagem no mundo medieval da então
denominada Alta para a Baixa Idade Média. Tal crise foi se consolidando devido a três movimentos de
transformação social: a Reforma Protestante, a Revolução Comercial, marcando o início do capitalismo, e o
ressurgimento da vida intelectual no ocidente, com a criação das primeiras universidades. Merece destaque,
nesse contexto medieval, a pessoa de São Francisco de Assis e sua “práxis” de Fraternidade Universal,
demonstrando uma empatia e sensibilidade incondicional, principalmente em relação aos mais pobres. Essa
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A Noção de Pessoa Como Fundamento Ético e
Aporético Para Uma Crítica à Sociedade Contemporânea
fraternidade de Francisco estendeu-se a todos os elementos da natureza, denominados como irmão Sol, irmã
Lua, irmã Água, irmã Morte, entre outros. Nessa perspectiva, São Francisco levava a mensagem do Evangelho
de Jesus Cristo até as últimas consequências, fazendo com que seu modelo de vida servisse de guia para a
sociedade, inclusive nos dias atuais.
4.3 Sentimento religioso, ética, moral e a reforma protestante
De acordo com as considerações de Valls (1994, p. 37), a religiosidade trouxe uma grande colaboração
na forma de entender a pessoa humana, sua relação com o mundo, com Deus e seus semelhantes, denotando
uma tendência moderna de unir a ética religiosa com a reflexão filosófica. Porém, com o surgimento da
modernidade, acontece um período de contradições, choques de civilizações e novas ideologias, delineados por
fatores renascentistas, que influenciaram significativamente uma nova percepção do mundo. Assim, do período
renascentista, podemos destacar, segundo Comparato (2006, p. 155-162), a figura de Maquiavel (1469-1527)
como promotor da primeira ruptura no sistema ético tradicional, que englobava harmonicamente religião, moral
e direito. O pensador italiano escreveu a obra O príncipe, onde apresentou uma profissão de fé e uma
concepção política realísticas, em que não há lugar para juízos de valor, mas, sim, juízos de fatos.
Em meio a esta sequência de transformações, surge a reforma protestante outorgada por Martinho
Lutero (1483-1546), em que Comparato (2006, p. 167) classifica como a primeira revolução social do mundo
moderno, que consistiu em romper com toda a tradição plurissecular de instituições, bem como as práticas e
arcabouços, da Cristandade Medieval, instaurando um culto à Palavra de Deus, porém sem interferência
histórica. Lutero, ex-monge agostiniano, era possuidor de uma obsessão revolucionária, atuando no combate
ao tráfico de indulgências praticado pela Igreja Católica e refletindo sobre conceitos como a liberdade humana e
o livre arbítrio.
Comparato (2006, p. 175-183) destaca ainda a figura de João Calvino (1509-1564), como articulador
da segunda grande reforma da religião cristã. Sua doutrina defendeu o valor do livre arbítrio do ser humano em
decorrência do pecado, pois este é motivo de maldição para o ser humano, tornando-o, assim, escravo do
mesmo. Calvino ressalta o trabalho como primeiro dever do fiel, como vocação, através do qual o ser humano
glorifica a Deus. Ainda desmistifica a vida contemplativa, vendo-a como um pecado de omissão ao trabalho; e,
em relação aos bens materiais, Calvino diz serem pertencentes a Deus, e os seres humanos como seus
administradores. Constatamos assim que as reformas religiosas foram fatores de profundas divisões e
contendas sociais. Porém, segundo Max Weber, citado por Gallo (2004, p. 104), o Renascimento e toda a
evolução da ciência moderna ocasionou um processo de desencantamento do mundo, em relação ao
sentimento religioso, visto que, embora Deus tivesse criado tudo, Ele não o habitava; assim, o mesmo deixava
de ser sagrado. Então o ser humano passa a ter a ânsia pelo conhecimento e pela criação de novas coisas,
surgindo consequentemente o método científico e a tecnologia.
4.4 A burguesia e o sistema capitalista
Comparato (2006, p. 409-415) apresenta, na sequência histórica da modernidade, uma passagem
conceitual na sociedade, ocasionada pelo desenvolvimento econômico, através da construção de máquinas e
equipamentos, produção, aquisição e consumo de bens materiais, isso em decorrência da formação e ascensão
da burguesia. Esta classe burguesa articulou um ideário de consumo, iniciando um processo inescrupuloso e
estabelecendo assim o sistema capitalista. Para manter o seu equilíbrio econômico estável, esse sistema gerou
exclusão e desigualdade social, por meio do trabalho exploratório e injusto, principalmente por parte dos mais
fracos e pobres. Em meio a este contexto, constatamos o surgimento da Revolução Industrial, num
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A Noção de Pessoa Como Fundamento Ético e
Aporético Para Uma Crítica à Sociedade Contemporânea
desenvolvimento crescente em produção, que propiciou o estabelecimento do livre comércio mundial,
potencializando as vias de transportes aéreos, marítimos, ferroviários e rodoviários.
A Revolução Industrial possibilitou também a expansão nas áreas da informação e comunicação,
surgindo a telefonia, os sistemas de computação eletrônica e viabilizando o acesso rápido de respostas às
demandas dos consumidores. Segundo Gallo (2004, p. 105), com essa automatização do trabalho humano, a
velocidade do tempo não é mais controlada pelo ser humano, mas, sim pela máquina de produção,
descaracterizando o ser “pessoa” em seu real valor, como gente, invertendo o valor vital, do “ser” pelo “ter”.
Infelizmente, ao lado desse crescente desenvolvimento, surge o preocupante distanciamento entre os mais
ricos e os mais pobres, onde estes vivenciam uma desigualdade gritante e injusta quanto ao seu poder
aquisitivo, agravando-se ainda mais quando se trata de recursos para sobrevivência, também ocasionados pelo
crescimento populacional que, segundo estimativa destacada por Comparato (2006, p. 429), em estudos
estatísticos, chegará ao século XXI na faixa de 9 bilhões de habitantes no planeta. Assim, diante de um
contexto de exclusão e desigualdades sociais, constatamos que o sistema capitalista, com seu ímpeto de
produção e consumo, e com medidas inescrupulosas, leva à precarização do ser humano, enquanto pessoa,
afetando sua dignidade, cidadania, harmonia social e interferindo na sua relação com o meio ambiente.
4.5 Em busca de soluções no cenário atual
Uma solução viável a esta situação poderá ocorrer, segundo Gallo (2004, p. 109), se formos capazes de
recolocar o valor do ser humano como fundamento da ciência e da tecnologia, viabilizando, através de sua
singularidade, anseios, desejos e necessidades, a instalação de uma cidadania efetiva que possibilite uma
sociedade aberta e co-participativa em decisões, que minimizem os problemas de ordem material,
comportamental e espiritual, que infelizmente assolam nosso contexto atual.
Boff (2004) assegura-nos que são muitos os desafios em prol do resgate valorativo do ser humano e o
seu futuro, na relação com o ecossistema mundial; assim, é necessária a conscientização para sensibilizar e
fazer algo para restabelecer a harmonia social e a sustentabilidade ambiental. Atitudes de acolhimento,
cuidado, proteção, promoção e respeito são meios indispensáveis para essa reversão de valores. Ainda,
acrescenta Boff (2004 p. 15):
A raiz da questão, a causa derradeira é a quebra da re-ligação do ser humano consigo mesmo,
com os outros, com a natureza e com o sentido transcendental da vida.
Boff (2004, p. 26) afirma ainda que a recuperação dessa rede de relações necessita de duas forças que
agem mutuamente: a autoafirmação do ser humano, como pessoa, e a sua integração universal. Essa religação é a base da civilização planetária e deveria ser o sonho da sociedade mundial: re-ligação de tudo com
tudo, que possibilitará, num olhar antropológico, religar todas as coisas entre si, o ser humano com seu
fraterno e todo o Cosmos em relação com o Ser Supremo.
Para isso, são necessárias algumas atitudes que possibilitem a impressão de um novo perfil humano e
ético, que procura as transformações necessárias para efetivação de uma cidadania ativa (BOFF, 2004, p. 37101). Assim, o indivíduo deve amar, cuidar, responsabilizar, solidarizar, compadecer e integrar as virtudes
cardeais ao bem comum e a toda comunidade de vida, demolindo, gradualmente, as consequências
desastrosas, principalmente aquelas que geram a exclusão social, do capitalismo globalizado.
Em outro aporte de leitura, Boff (2003, p. 11) reflete sobre a necessidade de um consenso mínimo
entre os seres humanos, devido às urgências de âmbito planetário, identificado atualmente nas relações sociais
em sua precarização de valores, baixos níveis de solidariedade, fosso social das desigualdades, tudo isso
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A Noção de Pessoa Como Fundamento Ético e
Aporético Para Uma Crítica à Sociedade Contemporânea
oriundo de um sistema de trabalho vinculado ao capitalismo globalizado; e, ainda, as consequências deste
sobre o meio ambiente, trazendo uma atividade humana irresponsável e depredadora, que causa danos
irreparáveis à biosfera e aos seres vivos em geral. Como solução, Boff (2003, p. 14) sugere uma revolução
global de paradigmas civilizatórios que reinventem relações benevolentes e sinergéticas com a natureza e com
os povos em suas diferentes culturas e perfis religiosos.
Uma revolução de paradigmas éticos e morais que denotem respeito, cuidado e responsabilidade mútua
por parte da sociedade em geral, surge num processo educacional que prepare o indivíduo para assumir seus
direitos, deveres e, consequentemente, sua autonomia e cidadania.
Por sua vez, as Instituições de Ensino, sejam de cunho público ou privado, devem reconhecer o seu
papel e envolver-se nesse processo educativo, executando sua tarefa de conscientização e formação contínua
do cidadão. Podemos destacar, como exemplo, a atuação e os princípios fundamentais que regem a prática
educativa do Projeto Educativo Claretiano (PEC - 2012), da Ação Educacional Claretiana, como Entidade
Mantenedora na área educacional dos Missionários Claretianos no Brasil, que visa um contínuo processo de
formação do indivíduo, levando-o ao amadurecimento e ao envolvimento social.
Consta no PEC (2012, p. 32-33) que a formação de futuros cidadãos e profissionais depende de uma
educação humanizadora, que respeite a singularidade de cada pessoa, atenda com atenção e alteridade suas
necessidades e propicie relações mútuas de colaboração no contexto socioeducacional em meio à diversidade
cultural, religiosa e política, visando à construção de uma sociedade mais justa e equitativa. O PEC visa, assim,
desenvolver também a conscientização sobre o cuidado e a responsabilidade social pelo meio ambiente, visando
à sustentabilidade e ao equilíbrio do ecossistema.
São iniciativas desse tipo que devem ser reconhecidas e incentivadas, caso tenhamos interesse e
acreditemos numa sociedade em que o ser humano seja entendido como pessoa, sendo efetivamente
valorizado e respeitado.
5 Considerações finais
Assim, vemos o grande desafio que nos remete esta crítica à sociedade atual, ao denotarmos o
paradoxo entre o colossal conhecimento adquirido sobre o ser humano e a indiferença e precarização do seu
real valor como pessoa humana, ocorrido no processo histórico, a partir do desenvolvimento do capitalismo. O
ser humano, como gente e como “pessoa”, foi se coisificando e se descartando gradualmente, individual e
socialmente, devido a este ímpeto de ter, manipulado por uma cultura consumista, injusta e desigual. Tal
contexto reflete também na situação agonizante do meio ambiente devido a sua exploração pelo ser humano,
fruto da ganância e consumo desenfreado, necessitando de atitudes emergenciais para evitarmos catástrofes
ambientais, que se apresentam como resposta da natureza e como forma de sobrevivência.
Diante desse quadro, vemos a importância da conscientização ética e do envolvimento social, no
sentido de desenvolver o cuidado pelo meio ambiente, viabilizando uma consequente sustentabilidade e
qualidade de vida às futuras gerações.
Para isso é necessário que aconteça um processo de mudança, que valorize e reconheça a importância
da cidadania e de uma ascensão social sustentável, para que juntos sobrevivamos aos angustiantes desafios
oriundos das diversas revoluções históricas que delinearam a construção desse contexto contemporâneo de
indiferença em relação ao ser humano e suas reais necessidades. A reflexão crítica e contínua, assim como o
reconhecimento da alteridade, deve sensibilizar e propiciar relações de amor fraterno e gratuito do ser humano
pelo ser humano, redescobrindo um novo olhar de compaixão e encantamento por este ser único, irrepetível e
frágil, para reconstrução de uma sociedade mais acolhedora, justa e equitativa, postergando a todos
indistintamente a busca da realização e da felicidade.
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Aporético Para Uma Crítica à Sociedade Contemporânea
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