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Revista das Faculdades Integradas Claretianas – Nº 4 – janeiro/dezembro de 2011
O Poeta Romano Horácio e a Sátira Latina
Semíramis Corsi Silva
Universidade Estadual Paulista (UNESP/Franca)
Centro Universitário Claretiano de Batatais (CEUCLAR)
[email protected]
Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar aspectos do gênero satírico romano clássico e aspectos
da vida e da obra de Horácio, um dos maiores poetas satíricos dessa época antiga. Para tanto
utilizaremos uma bibliografia sobre o tema e analisaremos trechos de poemas de Horácio.
Acreditamos que para estudar características de um gênero literário, por meio de obras de um
poeta em especial, é extremamente necessário conhecer sobre sua vida e sobre seu contexto
histórico e meio social, o que fizemos apresentando Horácio. Escolhemos a Sátira VIII, poema
do livro Sátiras, como texto especial para demonstrarmos algumas características satíricas,
especialmente no que tange à intenção moralizadora da sátira neste período. Observamos
como neste poema, Horácio mostra os objetivos da sátira romana: tornar risíveis aspectos
sociais e morais considerados ridículos pelo poeta, como a feitiçaria, tema da sátira escolhida.
Palavras-chave: Roma Antiga – Sátira Latina – Horácio. – Sátira VIII.
1 Origens, motivos e autores satíricos
O termo sátira, em latim, satura, provavelmente se originou da expressão satura lanx,
espécie de alimento composto de vários ingredientes i , por isso a palavra equivale na literatura
a um gênero que misturava vários temas e/ou formas literárias (diálogo, fábula, historieta,
preceitos, métrica variada, combinação de verso e prosa). Vem daí a proximidade etimológica
entre a palavra “sátira”, gênero literário e os vocábulos “saturar” e “saturação”, utilizados na
química e na física.
Há ainda estudiosos, como Theodor Mommsen, que acreditam que o termo satura
derive do grego sátyros, referindo-se as máscaras dos Sátiros, espíritos das florestas e das
colinas e que acompanhavam o deus Dionísio (SALVATORE, 1968, p. 33).
Ao estudarmos a sátira latina deparamo-nos com a discussão em torno das origens
desse gênero. Há duas correntes de afirmação sobre a originalidade da sátira: uma que a
coloca como criação dos romanos e outra que não defende sua originalidade em relação à
literatura grega. Nas Sátiras I e II, Horácio define a sátira como criação romana com
influências da comédia grega. Alguns autores acreditam que Horácio, admirador incondicional
da cultura grega, quisera dar um título de nobreza à sátira latina, ligando-a, diretamente, à
comédia grega. Defende o romano Lucílio como criador do gênero satírico, mas vê algumas
semelhanças com o teatro grego:
Eupolis, Aristófanes, Cratino
E os poetas da Comédia Antiga,
Se ninguém lhes merecia ser descrito
Como ladrão, malévolo, assassino,
Adúltero, ou por outra causa, infame,
Com a ampla liberdade o malsinavam.
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Após eles variando o metro apenas,
A mesma propensão Lucílio teve,
Faceto de sagaz e fino olfato (HORÁCIO, Sátiras, I, IV, 1 ao 9).
Nisto apraz, de modelo nisto sirva
O que hão de escrito os cômicos antigos (HORÁCIO, Sátiras, I, X, 21 e 22).
Pois que: quando Lucílio ousou primeiro
Versejar neste gênero de escrita (HORÁCIO, Sátiras II, I, 94 e 95).
Especialistas defendem que a sátira latina teve influências das diatribes gregas,
pregações populares de filosofia em forma de monólogo, nas quais o pregador, em praça
pública, expõe princípios de filosofia moral em uma linguagem familiar e simples. De acordo
com Salvatore (1968, p. 14), as influências da literatura moral, filosófico-moralizante grega
sobre a sátira latina são claras quando evidenciamos que os romanos não tiveram uma
filosofia própria.
Mas não é apenas de elementos filosófico-morais que se constitui o gênero satírico, há
uma verdadeira exposição dos costumes da sociedade de cada escritor. Desta forma, a sátira
já se constitui de uma originalidade peculiar, sendo diferente em cada sociedade e período
em que aparece, pois retrata a vida e vícios de sua época, utilizando temas, motivos e formas
de expressão próprias do período em for escrita.
O motivo da discussão em torno das origens satíricas vem do costume em reconhecer
influências gregas em toda arte literária romana, porém na sátira, em absoluto, não podemos
reconhecer imitações no que se refere ao tema. Como já foi exposto, a sátira tem o cotidiano
de seu autor como inspiração.
Assim, os motivos da sátira são resultado da observação dos vícios e distorções
sociais, com discussões de caráter moralizante. Ao censurar defeitos, a sátira mostrava os
vícios que, segundo seus autores, estariam colocando em risco o patrimônio ético que
estruturava a sociedade, característica também peculiar à comédia grega.
Qualquer obra de caráter satírico apresenta o caráter moralizante impregnado em sua
composição, voltado para a censura de padrões de comportamento que contrariam os valores
aceitos pela sociedade ou por grupos específicos desta, comportamentos que o satírico
considerava marginais e desviantes. O escritor satírico demonstra como deve ser a sociedade
de acordo com a representação dos comportamentos desviantes em situações de ridículo.
Podemos encontrar entre os satíricos, como em Horácio, uma verdadeira apologia aos
costumes ancestrais, pautados na tradição; mas há também, segundo Silva (1995, p. 73), os
autores que contestaram a ordem e os costumes vigentes, formulando novas formas de
decência a serem seguidas.
Entre os escritores do período de passagem da República para o Império, não apenas
satíricos, houve uma forte reação contra os costumes helênicos introduzidos no mundo
romano por meio das conquistas. Esses autores viam, nas influências gregas, uma corrupção
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aos costumes que levaria fatalmente à quebra do mos maiorum, os costumes ancestrais,
como podemos perceber nos versos de Horácio abaixo:
Se perguntas porque, sem modo absorve
Dos pais e dos avós a ilustre herança. (Horácio, Sátiras, I, II, 11 e 12).
Lucílio ii , o primeiro poeta propriamente satírico, já percebia esse “perigo” à moral
romana. Lucílio, membro de família abastada, viveu no século II a.C. (108-102 a. C), com ele
fixou-se, definitivamente, a poesia satírica. Adotando em suas primeiras sátiras diferentes
metros poéticos, acabou fixando o hexâmetro, e desde então, este tipo de verso caracteriza
esta modalidade poética. (HARVEY, 1998, p. 314).
Outros autores satíricos romanos de destaque são: Horácio (65-8 a.C.), Marcial (40104 d.C.) e Juvenal (pouco se tem certeza sobre a vida desse poeta, que parece ter nascido
entre 60-70 d.C. e escrito entre 92 e 128 d.C.).
Podemos destacar os seguintes motivos de crítica dos satíricos: crítica literária, crítica
filosófico-moral, crítica religiosa, crítica social e crítica dos costumes.
A sátira literária critica os longos poemas épico-trágicos e as poesias sobre assuntos
mitológicos, pregando uma poesia mais realista, própria do seu momento histórico. No campo
da filosofia há uma busca por equilíbrio, pelo meio termo sem excessos e bom senso (aurea
mediocritas, meio termo dourado aristotélico).
Quem preza a áurea mediana, evita
De um velho teto a sordidez seguro;
Evita sóbrio majestoso paços,
Alvo da inveja (Horácio, Odes, II, VII, 5 ao 8).
Entre Tanais e o sogro do Viselo
Há grão discrime: há certo modo em tudo:
Há certas raias entre as quais consiste,
Nem mais cá, nem mais lá, o justo acerto (Horácio, Sátiras, I, I, 138 ao 141).
Em matéria religiosa, as sátiras desse período banalizam o fanatismo dos ritos
orientais introduzidos em Roma com a expansão territorial. Tais poemas visam ao fim das
superstições, definindo essas práticas sempre como algo estrangeiro, oriental e não romano.
Também as práticas de magia não escapam da observação dos satíricos iii . Criticam as súplicas
religiosas e a adoração de imagens e estátuas, alguns autores consideraram a mitologia pagã
ridícula e fazem dela, também alvo de suas críticas.
Na sátira social, na qual o conservadorismo é mais explícito, vemos a crítica ao luxo e
a nobreza na virtude humana, como mostramos nos versos a seguir:
Marfim, nem atalho teto de ouro
Em minha casa brilham; nem cortadas
De África extrema os arquitraves pesam
Sobre Himecias colunas (Horácio, Odes II, XVI, 1 ao 4).
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Ouse enfrear, famosos entre os vindouros
Já que nós, ó maldade! Aborrecemos
Viva a virtude, e quando a já não temos,
Buscamo-la invejosos (Horacio, Odes, III, XIX, 29 ao 32).
Virtude é fugir dos vícios torpe (Horácio, Epístolas, I, I, 59).
No âmbito da sátira moral, vemos aparecer motivos como o adultério, a avareza, a
inconstância, os costumes exóticos, etc. Os autores procuram, com isto, encontrar os
verdadeiros bons valores na austeridade antiga, na recuperação da tradição.
As formas que se darão essas críticas, mais mordaz, mais severas ou de maneira mais
branda, e seu próprio conteúdo, variaram de acordo com o estilo de cada autor. Sabemos por
meio de uma poesia de Horácio, que houve uma lei, supostamente parte da Lei das Doze
Tábuas, intitulada de Lex mala carmina, que punia aqueles que proferiam carmens (versos)
de ataque aos seus concidadãos:
A ignorância da lei - sabe que há penas
E ação, contra o que ataca em maus poemas,
Os seus concidadãos. (HORÁCIO, Sátiras, II, I, 118 ao 120).
Porém, mesmo sob penalidades estabelecidas por lei, o povo romano nunca deixou de
rir dos defeitos e vícios alheios, e segundo Salvatore (1968, p, 36), esse espírito sarcástico
dos satíricos fora encontrado também em outros estilos literários romanos, perpetuando no
tempo e encontrando espaço em diferentes períodos.
Como pudemos perceber, Horácio foi um dos mais importantes poetas romanos
satíricos, apresentaremos a seguir alguns aspectos sobre sua vida e sua obra. Acreditamos
que ao trabalhar com a documentação literária para compreensão histórica, faz-se
fundamental entender quem é o autor estudado, aspectos de sua biografia e formação
intelectual, além de sua inserção político-social no contexto analisado.
2 A vida de Horácio
Quinto Horácio Flaco (L. Quintus Horatius Flacus) foi um dos poetas romanos mais
conhecidos, classificado como um dos primeiros líricos e notável satírico. Nasceu em oito de
dezembro do ano de 65 a.C., na cidade de Venúsia iv , na Apúlia (sul da Península Itálica),
colônia latina que se juntara à rebelião de 90 a.C. e ganhara, então, o direito de cidadania
para seus habitantes.
Quero segui-lo, incerto se da Apulia
Ou da Lucania sou: pois que o colono
Venusino entre as duas terras lavra; (HORÁCIO, Sátiras, II, I, 53 ao 55).
Sendo eu menino no Apulhez Volturo
Fora das raias da natal Apulia,
Lasso sono, e brincos me cobriram
As fabulosas pombas (HORÁCIO, Odes, III, IV, 9 ao 12).
Segundo conjeturas, o nome de Horácio foi tirado por seu pai da tribo horaciana, que
incluía a Venúsia. Seu pai, um antigo escravo liberto, era coator exactium, coletor de
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pagamentos em leilões, e adquirira uma pequena propriedade, tendo proporcionado ao filho a
melhor educação da época. O poeta estudou primeiro em Roma, com um mestre chamado
Obílio; depois em Atenas, como era de costume entre os jovens de famílias nobres. Horácio
tratou com grande orgulho do pai, em seus poemas, cita sempre a educação que este lhe deu,
não mostrando nenhuma vergonha de ser filho de um liberto. Nunca fala da mãe, que
provavelmente não conheceu.
Costume tal a um pai óptimo o devo;
Os vícios com exemplo me afeava
Por que deles fugisse horrorizado
Se me enxortava a ser frugal esparco,
Satisfeito com os bens que dele herdasse (HORÁCIO, Sátiras I, IV, 146-150).
E a meus amigos, caro, a um pai o devo,
Que não quis, com seu pobre estéril campo,
De Flávio professor mandar-me à escola,
Onde iam filhos de centúrios altos (...)
Mas antes, desde minha tenra idade,
Ousou levar-me a Roma, onde aprendesse
As artes, em que instrui seus próprios filhos
O Cavaleiro, o Senador. Quem visse. (HORÁCIO, Sátiras, I, VI, 92 ao 95 e 98
ao 101).
Nem por isso, Mecenas, que em nobreza...
Olhava para os somenos, como eu, filho
De um pai que escravo fora: e quando afirmas
Que nada importa o nascimento o probo (HORÁCIO, Sátiras, I, VI, 1, 8, 9,
10).
Da senatoria lista me riscara
Porque de livres pais não fui nascido. (HORÁCIO, Sátiras, I, VI, 27 e 28).
Passou sua infância na pequena propriedade agrícola do pai, não muito distante de
sua cidade natal. Esse período que viveu no campo lhe rendeu uma grande paixão pela vida
em meio à natureza e cantou com saudade estes tempos felizes em seus poemas
Com o início da guerra civil, após o assassinato de Júlio César, nos idos de março de
44 a.C., Horácio, que estava na Grécia, foi comissionado para um alto cargo de tribuno militar
no exército de Bruto e Cássio v . Mas como o poeta não era envolvido com assuntos de guerra,
fugiu ao pressentir uma derrota durante a batalha decisiva em Filipos, na Macedônia, em 42
a.C.
Em 40 a.C., voltou para Roma beneficiando-se da anistia concedida aos vencidos,
porém perdeu seus bens confiscados pelos vencedores da guerra. Neste momento seu pai já
havia morrido. Para sobreviver trabalhou como escritor de um questor e escritor de poemas. É
nessa fase que se encantada pela poesia, a reconhecendo-a como irreversível em sua vida.
No ano de 39 a.C., é apresentado a Mecenas vi pelos amigos, e também poetas, Virgílio
e Vário. Horácio descreveu o primeiro contato entre os dois como insensível e rápido e cita
que insistiu em mostrar sua origem humilde de filho de um liberto. Nove meses depois do
primeiro encontro, Horácio foi convidado para fazer parte do círculo de poetas de Augusto vii .
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Como é de costume teu; e enfim me ausento
Chama-me findo nono mês, e ordenas
Que na lista dos teus meu nome inscreva.
Tive em muito agradar-te, pois que estremas
Do torpe honesto, não alta origem,
Mas sim por inculpável peito e vida (HORÁCIO, Sátiras, I, VI, 80 ao 85).
A partir de então, Horácio começou a relacionar-se com Mecenas em uma grande
amizade que durou trinta anos, até a morte de ambos. Horácio, que tanto estimava o amigo,
lhe dedica grande parte de seus poemas, deixando para a posteridade traços da amizade e da
personalidade do ministro das artes romanas.
Nem dizer posso, que de um fausto acaso
Hei sorteado tão distinto amigo;
Não, não te devo a sorte! O bom Virgílio;
E depois Vário me abonou contigo (HORÁCIO, Sátiras, I, VI, 71 ao 74).
Eu que devo fazer, que só contigo
Posso prezar a vida
(Sem ti me é grave a vida, e doce a morte) (HORÁCIO, Épodos, I, 7 ao 9).
Por intermédio de Mecenas, conheceu Augusto, que lhe ofereceu o cargo de seu
secretário pessoal, sendo este, porém, recusado pelo poeta. Para oferecer liberdade e
independência a Horácio, em 33 a.C., Mecenas e Augusto lhe presentearam com a
propriedade agrícola na Sabina, região próxima de Roma, proporcionando-lhe o retorno a suas
origens campestres. Essa chácara foi a grande fonte de inspiração do poeta, onde ele se
retirava em descanso para compor seus versos, como testemunha a seguir:
Assaz feliz só com a Sabina herdade (Horácio, Odes, II, XV, 13).
Horácio
também
dedicou
grande
amizade
aos
demais
poetas
augustanos,
característica desse círculo, que, além de trabalharem juntos eram grandes amigos. Foi amigo
de Virgílio, a quem já havia conhecido antes mesmo de fazer parte dos poetas da corte.
Alguns de seus poemas são dedicados ao amigo poeta, em outros tantos cita Virgílio.
Na saudade de tão querido amigo
Que pejo ou termo pode haver? Ordena
Tristes cantos, Melpomene, que o Padre
Deu-te a voz doce e lira (HORÁCIO, Odes, I, XXII, 1 ao 4).
A última fase de sua vida decorreu tranquilamente, consagrando-se à elaboração de
sua obra e aos amigos que o visitavam em seu retiro campestre. Horácio morreu em 8 a.C.,
aos cinqüenta e sete anos, poucos meses depois de Mecenas, sem nunca ter se casado. O
biógrafo Suetônio o descreveu como baixo e gordo, alguns autores o pintaram como tímido,
austero e generoso. Horácio se retratou como um homem precoce (HARVEY, 1998, p. 281).
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3 A obra de Horácio
O poeta lírico-satírico Horácio voltou suas preocupações para questões morais,
políticas e nacionais, recusando-se a escrever poemas épicos, que celebrassem os feitos
militares dos grandes homens. Horácio não aceitou escrever épicos alegando não sentir prazer
em cantar a guerra, porém cantou os feitos de Augusto em frequentes homenagens por toda
sua obra, sempre à sua maneira viii .
Horácio encontrou nos líricos gregos modelos métricos para sua poesia lírica,
buscando inspiração nos eólicos Safo, Alceu, Arquíloco e Anacreonte. Mas seu lirismo era
bastante individual. Seus temas mais comuns foram o amor, a amizade, o vinho e a festa.
Esses temas não estão de acordo com o que procurava o Imperador, mas, conforme nos
indica Pierre Grimal (1992, p. 67), são variações da alegria de viver, que só tornou possível
com o estabelecimento da paz romana proporcionada pelo fim das guerras civis. Assim,
Horácio reconhecia Augusto como um salvador, um verdadeiro representante do mundo divino
na terra, com ele a festa podia ser uma constante no cotidiano dos romanos.
Declarando-se apaixonado pela vida campestre, Horácio colocou a natureza como o
lugar de refúgio para a alma humana, louvou o campo de tal maneira que acabou se
constituindo uma das fontes para o bucolismo ocidental.
Um espaço de campo, não tão vasto”,
Com seu vergel, perene e pura fonte
Junto de casa um pequeno bosque [...]
Eis o que anelei sempre (HORÁCIO, Sátiras, II, VI, 1 ao 4).
E só ditoso aquele, que afastado
Do entrépido do mundo
Frugal, com seus próprios bois cultiva o campo
Que de seus pais herdara,
Livre de torpe lucro: assim viveram
Os primeiros humanos
O som medonho da guerreira tuba,
Jamais o sobressalta (HORÁCIO, Épodo II, 1 ao 8).
Horácio se consagrou como poeta da festa e da busca da felicidade. Para ele, o prazer
de estar com os amigos é celebrado na festa e sendo o vinho um elemento fundamental da
festa, Horácio o honrava em seus versos. É no momento do festim que se cultivam, pelo
poder do vinho, todos os valores humanos que integram a visão de mundo do poeta: o amor,
a amizade, a conversa, a dança, a música. (TRIGALI, 1995, p. 20).
Tenho de albano vinho um tonel cheio,
Que nove anos excede; tenho, ó Filis,
No jardim aipo, com que teça c’roas;
Tenho grã cópia de era (HORÁCIO, Odes, IV, X, 1 ao 4).
E, quando poderei feliz Mecenas
(Assim aprouve Jove)
Sob altos tetos celebrar contigo
Os triunfos de César,
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Bebendo do bom cécubo guardado
Para festivos dias? (HORÁCIO, Épodo IX, 1 ao 6).
No trecho abaixo Horácio descreve o movimento de empregadas domésticas ao
arrumar sua casa em um dia de festa:
Toda a turba se apressa; moços e moças,
Juntos daqui e dali andam correndo;
E tremulam as chamas ondendo
Sórdido fumo ao teto (HORÁCIO, Odes, IV, X, 9 ao 12).
É de Horácio, também, o ideal do carpe diem, aproveite o dia, que era para o poeta a
essência da felicidade de viver: aproveitar cada dia como se fosse o dia supremo e assim,
aproveitar toda a vida, já que a morte é certa e não podemos prever o seu momento.
Caros, doces amigos
Aproveite o dia enquanto a idade
É forte, e vigorosa (HORÁCIO, Épodos, XII, 6 ao 8).
Em relação à filosofia, o poeta não se comprometeu com nenhuma corrente de
pensamentoix. Os princípios morais que nortearam sua obra seguiam duas linhas específicas:
a primeira, de origem estoicista, levava o poeta agir sempre de modo a não se arrepender,
privando-se de tudo que lhe pudesse causar mal à saúde. A segunda linha procurava
encontrar uma medida em todas as coisas, o meio termo dourado, de origem aristotélica, que
o levava a viver uma vida sem excessos.
Para o epicurista, a felicidade está no prazer, para o estoicista nas virtudes. Horácio
vê na virtude um meio para se atingir a felicidade, o prazer para ele é proporcionado pelo
festim com os amigos ao redor do vinho. (TRIGALI, 1995, p. 37).
No âmbito religioso, o poeta citou Júpiter como o deus supremo que regia o mundo
por meio de divindades menores. Mostrou-se crente no poder da oração e da liturgia, porém
ridicularizou os excessos. Recordava passagens de sua vida em que foi auxiliado por forças
sobrenaturais, como na batalha de Filipos, e um prodígio que aconteceu quando era garoto.
Desce do céu, Calíope, rainha,
Eia com a flauta um longo canto entoa;
Ou se ora apraz, com a voz aguda, ou a lira,
Ou cítara de Apolo
Ouvis? Me ilude acaso amável estro?
Parece-me que eu ouço, e que divago
Pelos sagrados lucos, que as amenas
Águas e as auras cursam.
Sendo eu menino no Apulhez Volturo
Fora das raias da natal Apulia,
Lasso de sono, e brincos e cobriam
As fabulosas pombas (HORÁCIO, Odes, III, IV, 1 ao 12).
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Horácio escreveu suas poesias em dois gêneros propriamente: um satírico, outro
lírico. Porém, em suas poesias de cunho satírico, vemos aparecer muito de seu lirismo
individual e subjetivo. Dessa forma, geralmente divide-se sua obra em dois momentos: um
lírico-satírico, outro lírico propriamente. No primeiro momento, ele escreveu o Livro dos
Épodos, compostos entre 41 e 35 a.C., e as Sátiras, compostas entre 35 e 30 a.C. No segundo
momento, Horácio penetrou mais profundamente na sensibilidade humana, demonstra todo
seu amor à natureza e escreve as Odes, escritas entre 30 e 26 a.C., com exceção do quarto
livro que é composto em 13 a.C. O Carmem Saeculare é composto no ano de 17 a.C. e as
Epístolas, entre 20 e 15 a.C.
O livro dos Épodos, constituído de 17 poemas lírico-satíricos, apresenta versos longos
seguidos de outros mais curtos, inspirados no poeta grego Arquíloco, criador do verso
iâmbico. Esses poemas refletem de um lado Horácio crítico, agressivo e até mesmo violento,
desiludido com as perdas da guerra civil, de outro lado, refletem um poeta que ama o campo
e a amizade.
Nas Sátiras, Horácio mostrou sua preocupação moral, um amadurecimento literário e,
talvez por já estar sob proteção de Augusto na época que escreveu poemas no gênero
satírico, não demonstrou nenhuma preocupação financeira. Toda sua perspicaz crítica foi
desenvolvida em dezoito sátiras, escritas em hexâmetros e divididas em dois livros, contendo
o primeiro dez poemas e o segundo os oito restantes.
Nas Odes, expressou seu lirismo em uma métrica variada. Segundo o próprio poeta,
são seus principais versos e os que o firmaram como poeta romano. Esses poemas tratam de
eventos de sua própria vida, a tranqüilidade advinda da pax augustana, as alegrias do campo
e das festividades.
O Carmem Saeculare se constitui de uma ode em que o poeta canta a grandeza de
Roma, oferecendo homenagens aos deuses e lembrando a descendência heróica e divina de
Augusto, através do herói Enéas, filho de Vênus e Anquises. O poema escrito para celebrar os
Jogos Seculares pode ser comparado a uma oração, sendo escrito em tom da invocação
habitual entre os romanos (GRIMAL, 1992, p. 68).
Nas epístolas, Horácio voltou a trabalhar a questão moral que norteia seu
pensamento. Essa obra consiste em cartas que procuram transmitir ensinamentos filosóficos e
literários em geral, mostrando o auge da maturidade intelectual do poeta. O primeiro livro é
composto de vinte Epístolas, o segundo de duas, sendo a Epístola endereçada aos Pisões - A
Arte Poética (Ars Poética), a mais famosa delas. Esta poesia busca mostrar aos Pisões a
dificuldade do verdadeiro poeta em vencer, exercendo grande influência em todos os tempos,
sendo a obra mais impressa na Antiguidade e Idade média depois da Bíblia (SOUZA, s.d., p.
208).
A importância de Horácio para os romanos, entre outras questões, está na invenção
da Epístola como gênero literário, na introdução do Épodo e da Ode em Roma e na renovação
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do gênero satírico, mostrando sua versatilidade e originalidade em todos os gêneros que
escreveu. Para cada espécie de sentimento, que buscou passar, usou uma métrica diferente,
dando provas de toda sua autenticidade e criatividade.
A influência horaciana pode ser sentida por quase toda poesia inglesa. Além disso,
Horácio deixou vários motivos literários conhecidos da poesia ocidental como o carpe diem e o
bucolismo (HARVEY, 1998, p. 281). Sua poesia serviu de inspiração para os poetas árcades
brasileiros, como Tomás Antônio Gonzaga, Silva Alvarenga e Cláudio Manuel da Costa, estes
procuraram escrever sobre a natureza bucólica e fuga da cidade (fugere urbem), o carpe
diem, e a aurea mediocritas, temas celebrados na poesia de Horácio.
Neste momento, analisaremos um poema de Horácio mais especificamente e perceber
seus sentimentos e gostos.
4 A Sátira Horaciana: uma análise da Sátira VIII
O poema escolhido para análise é a Sátira VIII, conhecida como Refere-se Priapo às
feiticeiras Canídia e Sagana ou O Deus Priapo contra as feiticeiras Canídia e Sagana. A escolha
de tal poema advém do fato de ele ser considerado pelos críticos da obra de Horácio como a
sátira de caráter mais agressivo escrita pelo poeta. Por esse motivo voltaremos nossa atenção
agora para a compreensão do tema e do tom desse poema.
No poema, Horácio descreve um tronco de figueira no qual foi esculpida a figura do
Deus Priapo, assistindo à cena que a conhecida Canídia, feiticeira que já havia aparecido
também nos Épodos, e sua companheira Sagana procedem de encantamentos e de magias.
Diferente do Épodo V, poema em que Canídia protagoniza outro ritual mágico, a Sátira
VIII não apresenta um tom trágico e sim um humor satírico. O local do ritual é o Esquilino,
antigo cemitério de escravos e pobres que Mecenas transformou em um grande jardim x .
Quem descreve toda cena é o indignado espantalho de madeira, imagem do Deus Priapo.
Fui tronco de figueira, inútil cepo!
E esteve o carpinteiro quase a ponto
De fabricar de mim pobre escabelo:
Enfim quis-me antes Deus: e feito Nume,
Eis-me aqui de aves e ladrões espanto:
Coa destra, e com meu símbolo potente,
Estes atemorizo, e no topete
Pregada cana os pássaros enxota,
E dos novos jardins lhes tolhe o pouso.
Aqui o escravo outrora, em vil esquife,
Dos companheiros seus trazia os corpos,
Dos estreitos beliches arrojados:
Da triste plebe era o comum jazigo. (HORÁCIO, Sátiras, I, VIII, 1 ao 13).
Horácio descreve o que elas vão buscar no cemitério: ossos e plantas maléficas.
Priapo também descreve o horário: a noite, quando a lua mostra sua argêntea face.
Não são ladrões ou feras avessadas
A vexar estes sítios, mas aquelas
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O Poeta Romano Horácio e a Sátira Latina
Que com seus versos e peçonhas turvam
Os humanos espíritos – Não posso
Dar cabo delas,
Ou fazer que deixem
Daqui vir recolher mirrados ossos
E maléficas plantas, mal que a Lua
Vaga descobre a sua argêntea face. (HORÁCIO, Sátiras I, VIII, 25 ao 32).
As feiticeiras encontram em um grande estado de agitação, elas escavam a terra com
as unhas e rasgam um cordeiro com os dentes, um gesto sem dúvida ritual, mas que implica
em uma profunda agitação. Segundo Tupet (1976, p. 293), as feiticeiras da Antiguidade
Clássica conheciam as propriedades de drogas tóxicas de origem vegetal, o uso destas drogas
poderia ser a causa desse estado de transe e da movimentação rápida durante os rituais
mostrado nos poemas.
Tal representação, mais do que uma fantasia do poeta, poderia reproduzir uma
realidade da feitiçaria antiga. Também na Écloga VIII, de Virgílio, pode ser notado este estado
de agitação da feiticeira. Tupet (1976, p. 301) acrescenta que este é um gesto ritual comum,
praticado pelas bacantes que usavam vinho para entrar em êxtase. As drogas, o haxixe em
especial, eram absorvidas como poções, fumo ou ungüentos.
Horácio mostra Canídia com os cabelos soltos e em desordem, o que talvez fosse uma
forma usada pelo poeta para lhe conferir um aspecto engraçado e passível de riso e desdém,
característica ímpar do gênero satírico. Seus trajes são reconstruídos pelas indicações do
poeta: Canídia usa uma longa toga preta e tem os pés descalços, o que nos leva já em
Horácio, a notar um estereótipo comum às representações de feiticeiras que dura até os dias
atuais.
Eu mesmo vi Canídia - solta a grenha,
Nus os pés, sobraçada a negra toga. (HORÁCIO, Sátiras, I, VIII, 33 e 34).
Horácio demonstra a palidez das feiticeiras e o uivo que elas emitem, o que poderia
denotar uma identificação dessas feiticeiras com os cães que acompanham as representações
de Hécate, deusa romana da magia. Elas rasgam o cordeiro com os próprios dentes e usam o
sangue, jogado nas antigas fossas, para atrais os manes. Nesse momento, Horácio se refere à
verdadeira intenção do ritual: interrogar a alma dos mortos, um rito de necromancia. Mas,
mais do que apenas interrogar os mortos, elas querem seu auxílio em um ritual. O cordeiro
sacrificado poderia ser uma forma de atrair os manes ou de agradecer a eles pela ajuda.
Com a velha Sagana errar uivando:
Dava-lhe palidez hediondo aspecto:
Entram a esgravatar o chão coas unhas;
Rasgam c’os dentes negra cordeirinha;
Derramam sobre a cova o quente sangue,
Para ali os Manes atraídos,
Aos nefandos conjuros lhes respondam. (HORÁCIO, Sátiras, I, VIII, 35 ao 41).
Em seguida, vemos um rito consagrado na magia de todos os tempos que é o uso de
figuras com a finalidade de representar o que se quer atingir. As feiticeiras trazem duas
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O Poeta Romano Horácio e a Sátira Latina
estátuas, uma de cera e outra de lã, objetos que nos remetem à Lei da Similaridade
estabelecida pelo antropólogo inglês James Frazer – imagem e objeto semelhante que serve
para sua representação. A cera tem uma maior recorrência nesse tipo de operação, vemos
mais referências a esse material nas descrições mágicas em diversas obras, mas a lã é um
elemento novo, pouco conhecido.
De acordo com J. Pley (apud, TUPET, 1976, p. 303), a lã seria usada em práticas
mágicas com valores medicinais, religiosos e mágicos por fornecer o material para as
bandagens empregadas em curativos, estando associada ao desatar de magias. Esta
representação nos faria supor que o rito descrito nessa Sátira seria um ritual que busca
desfazer uma magia. Horácio não descreve, como faz no Épodo V, a vítima da magia, nos
permitindo levantar várias suposições, podendo este rito ser de magia amorosa ou vingativa.
O fato é que a figura de lã se mostra superior podendo representar Canídia ou a pessoa que
quer desatar uma magia e a de cera, amedrontada, a pessoa que se quer atingir, o feitor do
outro ritual. Mas a feitiçaria também poderia ser para Sagana ou para alguém que contratou o
serviço das feiticeiras. Ao evocar a fúria Tisífone, a magia pode demonstrar ter um valor de
vingança, assim o boneco de cera representa o suplicante temeroso, vítima da feiticeira
representada no boneco de lã. Tanto a magia vingativa quanto a amorosa foram comuns em
Roma, como demonstram os defixios, plaquetas de chumbo com imprecações mágicas
encontradas em antigas encruzilhadas e santuários pelos arqueólogos.
Traziam dois bonecos, um de cera
E outro e lã, que, mais avantajado,
Castigar o inf’rior ameaçava.
Estava humilde e súplice o de cera,
Como que com servis e duros tratos,
Mui brevemente parecer temia:
Por Hécate uma brada; a outra invoca
A feroce Tisífone: do Averno
As cadelas, e horríficas serpentes
Viras então vagar: vermelha a Lua,
Por tal não ver, cós túmulos se esconde. (HORÁCIO, Sátiras I, VIII, 42 ao 52).
Canídia chama por Hécate, Sagana invoca Tisífone. O nome de Tisífone, de criação
alexandrina, estaria relacionado a um “castigo mortífero”. As feiticeiras soltam um grito e se
preparam para enterrar a barba de um lobo e dentes de víbora. Esse rito parece neutralizar os
efeitos dos encantamentos adversos preparados por feiticeiras mais poderosas contra
possíveis ataques dos mortos.
Soltam agudo, lúgubre alarido:
Como a furto no chão de loba a barba,
E o dente de manchada cobra escondem:
De que sorte pegou na Cérea imagem
Mais vivo lume; e de horror me encheram,
Não sem vingança, os brados e feitiços
Daquelas bruxas: pois que, abrindo as nalgas (HORÁCIO, Sátiras, I, VIII, 60 ao 66).
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O Poeta Romano Horácio e a Sátira Latina
Nesse momento o espantalho do Deus Priapo não agüenta mais ver a cena e emite
terríveis sonidos com os quais coloca em fuga as duas feiticeiras.
O tronco me estalou, bem como estala
Disparada bexiga. Ei-las em fuga
Para a cidade; e não sem grande riso
E grande zombaria, cair viras
Os dentes a Canídia, e à vil Sagana
A levantada cabeleira, as ervas,
E dos braços os vínculos do encanto. (HORÁCIO, Sátiras, I, VIII, 67 ao 73).
Nos versos acima vemos uma descrição cômica e satírica das feiticeiras, o que lhes
expõe ao ridículo. Canídia perde os dentes e Sagana, de cabelos arrepiados, deixa as ervas
que recolheu no cemitério cair dos braços.
Portanto, a intenção dessa sátira parece ser a grande intenção que motivava a sátira
romana antiga, como percebemos no começo deste artigo, criticar um costume que para o
poeta não era aceito (a prática de magia) de forma risível e cômica. Nessa perspectiva,
Horácio por ser um poeta satírico, apresenta a feiticeira como uma figura pitoresca, sua
clareza de detalhes reflete um aspecto engraçado e, ao mesmo tempo doloroso da feitiçaria,
sendo este poema uma sátira religiosa.
Entendemos ainda que as sátiras, como esta, eram formas de Horácio demonstrar
preocupações comuns da transição República-Império, preocupações com a moral do romano
atingida pelas influências estrangeiras, manutenção das tradições e do mos maiorum
(costumes dos ancestrais) e reconhecimento de uma identidade do romano, colocando sempre
a magia como algo estrangeiro e ruim. Assim, a magia estaria como a cobiça, a avareza, o
adultério, temas também criticados por Horácio, difundida no período e colocando em risco o
patrimônio ético sobre o qual se estrutura a sociedade romana e que se precisava manter.
5 Considerações Finais
Em síntese, a sátira latina usava o cotidiano de seus autores como temática, além
disso, esteve intimamente relacionada com o contexto histórico de sua produção e com as
preocupações morais, passíveis de riso e repúdio, do mesmo. Para compreender melhor essa
afirmação tomamos o poeta Horácio, importante satírico do início do Império Romano, como
exemplo. Foi fundamental que analisássemos o contexto em que Horácio viveu, sua formação,
meio social e, assim, temas de seu interesse.
Notamos que, na época de Horácio, muitas foram as preocupações da elite, sua
camada social, em relação à moralização de Roma, o que fica claramente refletido em suas
sátiras. Além disso, Horácio esteve diretamente ligado ao círculo de poetas em torno do
Imperador Augusto, primeiro imperador romano e político de grandes preocupações com
aspectos da moral romana, já que os mesmos passavam por mudanças devido aos contatos
com outras culturas. Assim, esse imperador buscou meios de defender os costumes ancestrais
por meio da divulgação de poemas, criação de jogos, obras arquitetônicas e especialmente
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O Poeta Romano Horácio e a Sátira Latina
leis, tendo ao seu lado estiveram artistas e intelectuais da elite romana que compactuavam
com seu pensamento e medidas.
É nesse sentido que vemos na Sátira VIII, objeto especial de nossa análise para
compreensão da ligação da sátira latina na obra de Horácio e a moralização do período, já que
a ela trata de um tema repudiado pelos romanos, a feitiçaria, demonstrada como prática
feminina em tom risível, ou seja, digna de riso e fora do universo masculino dos leitores de
poemas no período de Horácio.
i
Prato cheio de produtos da colheita que os antigos itálicos ofereciam aos deuses em ação de graças. Este
ritual era realizado em clima festivo, onde o sagrado se misturava com o profano. (SALVATORE, 1968, p.
30).
ii
As primeiras sátiras latinas que temos notícia são atribuídas a Ênio e a Pacúvio, mas estas possuem um
conteúdo, considerados pelos latinistas especialistas no assunto, moral insignificante, cabendo a Lucílio o
título de primeiro satírico na definição exata do termo.
iii
Cumpre ressaltar que havia dois tipos de magia em Roma: uma negativa e charlatã e uma incorporada
no ritual dos deuses e positiva. A magia romana considerada nefasta era punida por leis e, em geral, as
representações literárias sempre as trazem como prática feminina e errada. Mais informações sobre o
assunto ver SILVA, Semíramis Corsi. A imagem da mulher feiticeira como expressão da diferença de
gênero em Roma: os poemas de Horácio e Ovídio, Klepsidra, n. 27, 2006. Disponível em:
http://www.klepsidra.net/klepsidra27/feiticaria.htm. Acesso em: 28/06/2010.
iv
A atual Venúsia (Venosa), que recebeu este nome por ser dedicada à Deusa Vênus, é uma pequena
cidade situada na província de Potenza. Suas ruínas mostram traços de sua antiga grandeza, onde se
encontra lápides com inscrições dos tempos romanos, as quais foram transcritas pelo célebre historiador
Mommsen. Uma das antigas casas é conhecida como a casa de Horácio, estando em estado relativamente
bem conservado. (GRANATO, 1935, p. 10, 11).
v
Os generais Bruto e Cássio lutaram contra Otávio, o futuro Augusto. Mais tarde Horácio, do lado de
Augusto, se arrependerá desse momento em sua vida, reconhecendo a superioridade de Otávio. Na
Epístola II, II, o poeta faz uma autocrítica dessa sua antiga posição.
vi
Ministro das letras e das artes do governo do Imperador Augusto, amigo desse imperador e futuro
amigo e patrocinador de Horácio.
vii
Augusto foi o primeiro imperador romano, governou de (27 a.C. até 14 d.C.). A admissão de Horácio
entre os poetas de Augusto reflete a colocação de Géza Alföldy (1989, p. 130) de que a ascensão social
em Roma não se dava por questões econômicas especificamente, mas por uma relação direta, a amicitia,
com o Imperador. Horácio guardava consigo a mácula de um filho de liberto, porém sua capacidade
pessoal despertou o interesse do Imperador e o levou a ser admitido entre as altas ordens dos romanos.
Alföldy cita o exemplo de Trimalquio, personagem da obra Satiricon de Petrônio, um liberto que, apesar
de enriquecido, não ascendeu socialmente devido seu passado escravo.
viii
Alguns autores apontam o fato de Horácio recusar escrever épicos e assumir o cargo de secretário de
Augusto, oferecido a Horácio por Augusto, como característica da liberdade que os poetas do círculo
augustano tinham.
ix
Segundo G. Perrota (Apud SALVATORE, 1968, p. 84), o carpe diem de Horácio não pode ser filiado ao
Epicurismo por ser uma rápida expressão de prazer, de presença constante em sua poesia, antes de ser
uma proposta filosófica.
x
Essa informação acerca do Esquilino nos foi fornecida através do Prefácio da obra Sátiras de Horácio
(1952, p. X), escrito por João Batista Melo e Souza. De acordo com o Prefácio da edição das Obras
Completas de Horácio (1941, p. 15), escrito por José Pérez, o Esquilino ainda existia e não havia sido
demolido por Mecenas, é neste cemitério que o próprio Mecenas será enterrado, mais tarde Horácio se
juntou ao amigo sendo enterrado no mesmo túmulo.
6 Referências bibliográficas
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O Poeta Romano Horácio e a Sátira Latina
ALFÖLDY, Géza. A História Social de Roma. Tradução de Maria do Carmo Cary. Lisboa: Editora
presença, 1989.
FRAZER, James. O ramo de ouro. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Círculo do
Livro: 1978.
GRANATO. Lourenzo. Os dulcíssimos gozos da vida campesina de Quintus Horatius Flacus. (65
a.C. – 1935 d.C.) São Paulo: Typographia Rossolillo, 1935.
GRIMAL, Pierre. O século de Augusto. Lisboa: Edições 70. Lugar da História, 1992.
HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura Clássica grega e latina. Tradução de Mario da
Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1998.
HORÁCIO. Obras Completas. Tradução de Elpino Duriense, José Agostinho de Macedo Antonio
Luís de Seabra e Francisco Antonio Picot. São Paulo: Edições Cultura, 1941.
__________. Sátiras. Tradução de Antônio Luís Seabra. São Paulo: Jackson Editores –
Clássicos Jackson, vol. IV. 1952.
PETRÔNIO. Satiricon. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Abril Cultural, 1981
(Grandes Sucessos).
SALVATORE, Onofrio. Os motivos da Sátira Latina. Marília: Coleção Teses n. 07. 1968.
SILVA, Gilvan Ventura da. A representação da mulher na sátira romana: Amor e adultério em
Horácio e Juvenal. Revista de História,Vitória. 04, 1995.
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gênero em Roma: os poemas de Horácio e Ovídio, Klepsidra, n. 27, 2006. Disponível em:
http://www.klepsidra.net/klepsidra27/feiticaria.htm. Aceso em: 28/06/2010.
SOUZA, Rômulo Augusto de. Manual de História da Literatura Latina. Pará: Editora Serviço da
Imprensa Universitária, s.d.
TRINGALI, Dante. Horácio poeta da festa: Navegar não é preciso: 28 Odes latim/português.
São Paulo: Editora Musa, 1995 (Ler os clássicos; v.03).
TUPET, Anne-Marie. La magie dans la poesie latine. Des origines à la fin du régne d’Auguste.
Vol. 01. Paris: Les Belles Lettres, 1976.
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