Leia um trecho do livro

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Mais que um leão por dia
Egito . Adptação
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Mais que um leão por dia
Missão de reconhecimento
Por volta das 4h30, hora local, chego ao hotel Cataract Pyramids, em Gizé, terceira
maior cidade do Egito, localizada à margem ocidental do Nilo e cerca de 20
quilômetros a sudoeste do centro da capital.
No quarto, ao abrir a mala para pegar as roupas e tomar um banho a primeira surpresa:
os frascos de repelente e filtro solar se abriram durante a viagem e melecaram quase
todas as minhas coisas. Deito na cama por volta das 5h30, mas mal consigo descansar,
tamanha a ansiedade.
Às 7 horas desperto com o almuadem, o som dos alto-falantes das mesquitas
convocando os muçulmanos para a primeira das cinco orações obrigatórias do dia.
O som melancólico da voz do muaddin, a pessoa que faz o chamado à oração, é uma
espécie de ladainha arabesca que repete a frase “Allah hu Akbar” (Alá é grande) e atesta
a fé islâmica: “La ilaha ilia Allah, Muhammad rasul Allah” (Não há outro Deus que
não Alá, e Maomé é o profeta de Alá).
O Cairo é conhecido como a Cidade dos Mil Minaretes – embora existam muito
mais, a ponto de ninguém saber ao certo realmente quantas mesquitas são no total.
O chamamento à fé islâmica dura cerca de três minutos e parte simultaneamente dos
minaretes de cada uma das mesquitas e se propaga pelo ar, ocupando cada polegada
cúbica da atmosfera.
Quando algumas mesquitas, por fim, encerram o chamado, umas e outras ainda
continuam. Chega um ponto em que você já não sabe dizer ao certo se há algum
muaddin com o relógio um pouco atrasado, ou se o som penetrou de forma tão
profunda na sua mente que dá a impressão de continuar ouvindo-o o tempo todo.
Decido dar uma volta de reconhecimento, explorando a pé as ruas próximas ao hotel.
Basta colocar o nariz para fora para ser assediado por um grupo de taxistas, que me
cerca querendo me levar para conhecer os pontos turísticos do Cairo – o passeio, de
100 euros baixa para 75 euros sem que eu diga uma palavra sequer. Agradeço dizendo
que só estou caminhando um pouco. Alguns continuam insistindo e só largam do
meu pé quando um turista incauto sai pela porta do hotel e grita a palavra mágica táxi
atraindo todo o enxame para o seu entorno.
Minha esperança de respirar um pouco de ar puro é logo frustrada. A poluição é um
dos maiores problemas do Grande Cairo. Tanto que o hotel cobra US$ 5 a mais para
quartos “sem vista para a poluição” – o que no final das contas não passa de um grande
engodo, já que é praticamente impossível ver a cor do céu de qualquer ângulo dada
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a espessa camada de poluição. A fonte de boa parte da fumaça cinza que encobre o
Cairo são os escapamentos dos automóveis velhos que circulam pelas ruas.
Em uma das aventuras em que o herói gaulês Asterix foi ao Egito, seu amigo Obelix
não se cansava de repetir: “Esses egípcios são uns doidos”. Provavelmente, se eles
vissem o trânsito das ruas do Cairo hoje em dia, essa percepção se tornaria ainda mais
sólida e cristalina.
O trânsito egípcio é tão maluco quanto se pode imaginar. Com uma frota estimada
em mais de 2 milhões de veículos, os motoristas dirigem com um pé no acelerador e
uma mão na buzina. Além disso, muitas carroças com tração animal dividem espaços
com carros, motos, vans e caminhões caindo aos pedaços, todos apinhados de gente.
Na prática, não existe regra ou código de trânsito. As ultrapassagens podem ser feitas
tanto pela direita quanto pela esquerda. O fluxo do trânsito é apenas uma convenção
ignorada. Não raro, um carro ou moto decide andar pela contramão, buzinando
constantemente para alertar os outros motoristas, que também respondem buzinando
para o infrator.
Motos podem perfeitamente carregar três adultos e duas crianças – todos, é claro, sem
capacete –, e os pedestres perambulam despreocupadamente no meio da rua. Nas ruas
mais congestionadas, eles vão costurando o trânsito ou simplesmente se precipitam
entre os carros, ignorando solenemente as buzinadas.
Em meio a todo esse caos, é possível até mesmo ver pessoas pegando carona na parte
de fora do carro, sentadas no porta-malas de sedãs ou na caçamba de caminhonetes
e caminhões.
Mesmo sendo um país pobre – o que, em tese, poderia estimular o uso da bicicleta
por trabalhadores – é raro ver algum ciclista pelas ruas – e não é difícil entender por
quê. Apenas um ou outro se encoraja a pedalar, geralmente com uma caixa na garupa
usada por trabalhadores para transportar frutas e legumes.
Se o trânsito é de fato o retrato de uma sociedade, a sensação é que o Egito ainda
tem um longo caminho a percorrer. Diante disso, minha pretensão de pedalar pelas
redondezas para explorar as ruas de Gizé é logo descartada por uma questão de
autopreservação.
Ao invés disso, tal qual um espectador, fico observando o frenético movimento das
ruas, com o povo indo e vindo ao som nervoso das buzinas: mulheres de véu sobre
a cabeça caminhando com crianças no colo, jovens montados no lombo de burros,
famílias inteiras sobre carros de boi. Alguns sorriem, acenam e cumprimentam:
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“Salaam Aleikum!” (Que a paz esteja sobre vós – expressão islâmica que equivale a um
simples “olá”). É o Egito me dando as boas-vindas.
Primeiros contatos
Dando uma volta pela área comum do hotel é possível reconhecer facilmente quem
está aqui para participar da expedição. Em meio aos hóspedes comuns – provavelmente
interessados apenas em ver pirâmides e múmias –, alguns têm uma aura diferente, um
sorriso quase dissimulado atuando como um código de autorreconhecimento de uma
irmandade secreta, bastando uma troca de olhares para se perceber que ali está mais
um aventureiro do Tour d´Afrique.
Durante o café da manhã, faço meu primeiro contato com outros membros do grupo.
Como é de se esperar, as primeiras conversas sempre giram em torno da nacionalidade
de cada um, profissões e troca das primeiras impressões sobre o Egito e das expectativas
diante da aventura.
Como sou péssimo para nomes, no início vou usando esses fragmentos de informações
para criar uma espécie de arquivo sobre cada um que vou conhecendo, passando
a identificá-los com apelidos mentais: o aposentado alemão, o fazendeiro da Nova
Zelândia, o operador da bolsa de valores franco-canadense jogador de squash, o
simpático jovem casal de alemães.
A cada conversa, vai se percebendo que cada um tem seus próprios objetivos para estar
aqui: um inglês acima do peso decidiu que pedalar poderia ser uma boa forma de
vencer o sedentarismo e, além de tudo, emagrecer; a bela jovem sul-africana, enfadada
com a futilidade da profissão de hostess em cruzeiros de luxo, achou que era hora
de mudar os rumos da própria vida e decidiu que pedalar na África seria uma boa
forma de arrecadar fundos para uma instituição de caridade; o americano barbudo
que trabalha em uma fábrica de microchips e já cruzou três continentes de bicicleta
ruma agora para sua quarta grande aventura com a meta de pedalar por todos os
continentes do globo.
Ao todo, são mais de 50 ciclistas de 15 diferentes nacionalidades das Américas do
Norte e do Sul, Europa, África e Oceania. Essa Babel, que propicia uma troca de
cultura riquíssima, torna tudo ainda mais fascinante. Diferentes histórias, diferentes
metas, mas todos têm algo em comum: a paixão pela bicicleta e a coragem de encarar
um grande desafio.
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Desbravando “A Poderosa”
Com praticamente três dias de folga antes de colocar as rodas na estrada – sendo um
dia necessariamente reservado para a montagem da bicicleta e última checagem dos
equipamentos –, muitos aproveitam para fazer turismo na capital egípcia.
Alguns grupos se formam naturalmente por nacionalidades, por faixas etárias
ou simplesmente por afinidades. Acabo fazendo amizade com Rob, o canadense
que trabalha na bolsa de valores de Quebec e joga squash. Ele foi o único que me
acompanhou quando pedi uma cerveja na mesa do jantar na noite anterior, o que
acabou transformando nossa conversa em algo muito próximo a um papo de bar,
ajudando a criar uma empatia mútua. Ali mesmo combinamos de irmos juntos
conhecer a cidade.
Tendo pouco tempo para decidir entre as diversas opções de roteiros disponíveis,
ficamos diante do primeiro grande dilema: conhecer o Cairo do passado, com seus
museus, múmias e sarcófagos ou a cidade do presente, viva e pulsante com seu trânsito
caótico, mercados e mesquitas?
Decidimos por bem deixar o turismo fúnebre-histórico para uma outra encarnação, quem
sabe, e vamos desbravar A Poderosa – significado da palavra Cairo, em árabe – do presente.
Com cerca de 9 milhões de habitantes apenas na capital e 24,2 milhões na região
metropolitana, o Cairo é a maior cidade do continente africano, a mais populosa do
mundo árabe e uma das 15 maiores metrópoles do mundo.
A história da cidade se perde nas ruínas de Mênfis, antiga capital do primeiro império
faraônico do Baixo Egito. Ressurge nas fortalezas romanas, na margem oriental do Nilo,
e é refundada no ano 969 d.C. como capital do Egito árabe pelo califado Fatímida.
O Cairo é um mundo fascinante, onde a história não foi para a tumba junto com os
faraós. Uma parte do passado ainda se faz presente no Cairo Islâmico, região histórica
da capital tombada como Patrimônio da Humanidade pela Unesco. O complexo,
formado por mais de 600 monumentos históricos que vão do século XII ao XX,
retrocede ao início da era do Islamismo. O acervo inclui a fortaleza de Saladino
(Citadel), construída em 1183 pelo líder do levante contra os cruzados, e a Mesquita
de Mohamed Ali, feita em alabastro e toda no estilo turco-otomano.
É também no Cairo Islâmico que está localizada a mesquita de Al-Azhar, a mais
antiga do país, que começou a ser construída no ano de 970, apenas um ano após
a refundação do Cairo. O templo também é sede da universidade mais antiga do
mundo em atividade, fundada pelos fatímidas como centro de estudos da lei islâmica
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do Alcorão, além de ciências como lógica, gramática, retórica e cálculos astronômicos.
Embora o campus da Al-Azhar tenha sido transferido neste século para Nasr City,
distrito a oeste do Cairo, a mesquita ainda é a sede simbólica da instituição e detém
o segundo maior acervo bibliotecário de todo o Egito, com cerca de 100 mil volumes
que condensam quase 600 mil manuscritos raros, alguns datados do século VIII.
A construção imponente tem uma beleza arquitetônica ímpar, com seu característico
minarete duplo e um imenso domo ornamentado por mais de mil anos de história.
No portal principal, é preciso descalçar os sapatos para poder entrar. Para um
muçulmano, a sola de um sapato é uma das coisas mais sujas, degradantes e repulsivas
que existem. Tanto que, no Egito, o simples ato de cruzar as pernas deixando à mostra
a sola do sapato – algo comum e corriqueiro no Ocidente – pode ser tomado como
um gesto extremamente grosseiro e ofensivo. Seria impensável, portanto, levar algo
tão imundo para dentro de um dos lugares mais sagrados para o islã.
Por 2 pounds egípcios, é possível deixar os calçados guardados em uma espécie de
guarda-volumes – ou se arriscar deixando-os no chão. Olhando a marca dos tênis, o
guia nos aconselha a desembolsar o equivalente a US$ 0,15.
No interior da mesquita, há um imenso átrio, com o piso todo de mármore branco,
ladeado por colunas e paredes com absides árabes, ornamentadas por milhares de
afrescos esculpidos à mão.
Na nave central, um imenso salão com colunas em mármore. O espaço é iluminado
apenas pela luz natural que transpassa os coloridos vitrais. No chão, o tapete das
orações, de cor vermelha, com centenas de células delimitando o espaço de cada fiel.
Todos apontam para o Mihrab, uma espécie de altar no centro da mesquita, que serve
para indicar a direção da cidade sagrada de Meca.
De cabeça, faço um cálculo: são 15 fileiras, divididas em cinco faixas com três linhas
cada uma. Entre cada coluna, dez células. Ou seja, 150 lugares em cada módulo entre
as colunas. Multiplicando por dez colunas à esquerda e outras dez à direita, mais o
espaço central, são 3.150 lugares, apenas na nave central da mesquita.
O movimento é intenso. Centenas de fiéis – muitos jovens – ajoelhados rezam para
Alá, enquanto se curvam tocando a fronte no tapete. Não resisto e também me
ajoelho. Em silêncio, faço uma pequena prece para o Deus muçulmano, pedindo
proteção durante o Tour que se aproxima. Não chego a me curvar e tocar minha testa
no chão – até por não saber se isso poderia ser tomado pelos outros ao redor como
algo desrespeitoso. Não há uma placa escrito “turista” pendurada no meu pescoço,
mas a câmera fotográfica acaba cumprindo esse mesmo papel.
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Em volta, enquanto uns rezam, outros leem e estudam os textos sagrados encostados
nas colunas ou conversam sentados em bancos de madeira em tom de voz baixo, para
não atrapalhar a oração dos outros fiéis. Nosso guia-motorista nos explica que, além
de espaço de fé, as mesquitas também cumprem o papel de local de encontro e de
convivência dos muçulmanos.
Quando questiono o guia sobre a corrente religiosa predominante naquela mesquita
– sunita ou xiita –, o sorriso dele desaparece instantaneamente, a cara se fecha e a
resposta vem em tom ríspido:
- Se Alá é um só, os muçulmanos também são um só. Não existem dois Islãs.
A religiosidade é tema sensível aos egípcios e não se conversa sobre religião com a
mesma naturalidade com a qual estamos acostumados no Ocidente.
O grande mercado egípcio
Saindo da mesquita, vamos para a região do souk (mercado) Kahn El Kalili. Encravado
no coração do Cairo Islâmico e embrenhado em meio a ruelas lamacentas e becos sem
saída, o movimentado mercado de rua existe desde 1382 e há mais de seis séculos atrai
comerciantes, negociantes e turistas do mundo todo.
Ali é possível comprar de tudo: temperos, frutas frescas, verduras frescas e podres,
joias, tecidos e tabaco. O cheiro é uma experiência à parte, com notas do perfume
das milhares de especiarias, misturado com couro e aroma de pão fresco; um corpo
delicado e envolvente da fumaça dos incensos com um toque amargo do tabaco
fumado nos narguilés; e, por fim, um fundo fétido de urina de gato, misturado ao
cheiro de cachorro molhado e uma pitada de suor azedo.
A trilha sonora vem dos minaretes, com o chamando para a oração do meio-dia. O
palavrório das conversas é abafado pelo grito dos comerciantes. Não falo nem entendo
árabe, mas o vendedor de tâmaras certamente grita algo como “na minha mão é mais
barato” para atrair os fregueses. Ao fundo, ouve-se o som de um alaúde tocado por um
artista de rua em busca de algumas moedas dos turistas.
O movimento é frenético. Homens, mulheres e crianças vêm e vão, surgem e
desaparecem pelas vielas labirínticas do El Kalili. Uma bicicleta passa apressada. Com
uma mão, o ciclista segura o guidão e com outra equilibra um enorme cesto de pães
sobre a cabeça. Pombos comem os restos e migalhas que vão ficando pelo chão.
Há, aliás, uma rica e abundante fauna local. Os gatos vira-latas predominam na cena
e andam por todos os lados – inclusive em cima de frutas, verduras e especiarias
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expostas em algumas bancas. Como é evidente que os egípcios não alimentam seus
bichanos com ração Wiskas Premiun, não é difícil constatar qual a comida farta que
mantém gorda toda a gataria. Na cadeia alimentar a sujeira atrai os ratos, que por sua
vez atraem os gatos. Como a cambada não tem predador natural – será que aqui eles
viram churrasquinho de rua? – a população felina fica fora de controle.
Além dos animais livres, patos, galinhas e perus vivos ficam presos dentro de gaiolas.
Um comerciante, com o cigarro no canto da boca, corre atrás de um peru que acabara
de escapar. Uma senhora, com véu na cabeça, chega à sua banca, olha e aponta para
uma galinha parda. O dono da tenda encarcera novamente o peru fujão e retira a
galinha do cesto, recebe o dinheiro da senhora e lhe entrega a ave. Sem cerimônia,
ela destronca o pescoço da penosa ali mesmo e sai andando calmamente pelas ruas do
mercado, segurando o defunto penoso pelos pés, provavelmente voltando para casa
com o item que faltava para o almoço.
No açougue ao lado, meio boi fica pendurado em ganchos, com a carne exposta sem
nenhum sistema de refrigeração, fazendo a alegria das moscas e varejeiras egípcias.
Assim como não tem direito a requisitos sanitários mínimos, o cliente também
não tem a opção de escolher entre picanha, contrafilé ou coxão duro. Ele chega e o
açougueiro vai fatiando a carcaça na medida de carne que seu dinheiro pode comprar,
tudo pesado a olho e conferido na mão pelo freguês. Ao lado, outro homem, com uma
faca na mão, vai limpando as tripas do boi em uma bacia com água, também usada
para acomodar a cabeça e as quatro patas do bicho, ainda com os cascos sujos de terra.
Com a fome despertada e o apetite aguçado diante de tantos estímulos, seguimos
para uma banca que, segundo o nosso guia, faz o melhor falahfel do Egito – mas
a intimidade demonstrada entre ele o dono da banca ao se cumprimentarem torna
evidente que ali há algum tipo de acordo do tipo: você traz seus turistas e eu te dou
um falahfel de graça.
Ainda que tudo indique não se tratar de fato do melhor do Egito, o quitute tem lá
seu charme: um bolinho de grão de bico com gergelim frito em uma gordura que só
um arqueólogo seria capaz de dizer a quanto tempo está naquele tacho de cobre, com
temperos e especiarias, tudo envolto em um pão árabe.
A comida é manuseada e preparada pelas mesmas cuidadosas mãos que contam o
dinheiro e vez por outra coçam a cabeça coberta por cabelos negros e engordurados.
Ao invés de guardanapo, o acepipe é servido em papel sulfite comum usado, com
inscrições em árabe impressas como as de uma planilha de contabilidade. O sabor
só não é mais intenso que a adrenalina de provar uma comida tão exótica. Uma
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verdadeira prova de fogo estomacal, na qual acabo sendo aprovado.
Já de barriga cheia, observo as livrarias de livros usados enquanto caminho pelas vielas.
Entro rapidamente em uma delas e olho maravilhado aquelas prateleiras lotadas, tão
desorganizadas quanto só uma livraria egípcia seria capaz de ser.
Minha vontade é ficar ali e garimpar um livro antigo de páginas amareladas. Imagino
o velho livreiro árabe de barba branca soprando a capa de couro empoeirada e
reconhecendo a obra, um alfarrábio que atravessou o Saara no lombo de um camelo,
contrabandeado por um beduíno, e contém um segredo guardado há séculos. Meu
devaneio só é interrompido quando Rob, apressado, me puxa pelo braço dizendo que
temos que ir rápido para podermos aproveitar o restante do dia e visitar os outros
locais que ainda faltam.
Acompanho Rob, mas fico com a nítida sensação de estar deixando para trás um
antigo pergaminho com a formulação original da teoria das equações trigonométricas
ou, quem sabe, um manuscrito original inédito das Mil e Uma Noites, provando que
Xerazade ludibriou Xariar por uma noite a mais do que se tem notícia.
Volto para o mundo do lado de fora ciente de que é preciso continuar. Ainda há uma
história toda a ser escrita.
Praça Tahrir: o jardim da Primavera Árabe
Um manual de viagens que consultei antes de embarcar para o Egito me alertava que
não é recomendável puxar conversas de cunho político ou religioso com a população
local. O livro, claro, foi editado antes da Primavera Árabe, o movimento que em 11
de fevereiro de 2011, após 18 dias de uma onda massiva de protestos, derrubou a
ditadura de Hosni Mubarak, o presidente que, tal qual um faraó tardio, reinava sobre
os egípcios por três longas décadas.
A marca mais visível da Primavera Árabe na sociedade egípcia é justamente a mudança
deste traço cultural. Antes receosos, agora são os egípcios que puxam conversas
políticas com os estrangeiros e falam sem medo sobre a revolução e o futuro do país.
“Somos uma civilização com mais de 5 mil anos de História, enquanto os Estados
Unidos tem pouco mais de 500 anos de descobrimento”, diz Mohamad, dono de
uma loja que vende réplicas de pinturas egípcias feitas em papiros para turistas. “O
Egito tem uma importância estratégica para o mundo, pois fica entre o Oriente e o
Ocidente. Pode-se mudar o peso das nações, mas enquanto o Egito não mudar de
lugar, continuará sendo importante para o mundo”, avalia.
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Enquanto mostra na prática o processo de como os antigos escribas confeccionavam
o papiro, o comerciante se diz frustrado com o novo presidente do país, Mohamed
Mursi, representante do Partido Liberdade e Justiça, braço político do grupo
Irmandade Muçulmana, uma organização de cunho islâmico-fundamentalista. “O
problema dos políticos é que eles querem fazer história para eles mesmos, e não para
o seu país e pelo seu povo. Mursi cometeu o mesmo erro, mas ainda há esperança.
Enquanto houver esperança de que as coisas mudem, a população vai apoiá-lo, senão,
haverá outra revolução”, vaticina.
Já a guia turística Nivin parece mais desconfiada e avalia que o Egito de Mubarak era
melhor que o de hoje. Segundo ela, o desemprego antes da Primavera Árabe no país
girava em torno de 15%; hoje atinge 30% da população.
“A indústria do turismo, segunda principal fonte de emprego e renda do país, caiu
70%. Para ter esperança, é preciso ter salário no bolso e comida na mesa”, garante.
“Não importa quem esteja no poder, contanto que garanta isso para a maioria da
população”, completa.
Said, um motorista de táxi, quando questionado sobre qual governo é melhor, mira
no governo e nos próprios manifestantes. “Acampam agora porque são contra esse
governo, acamparam antes porque eram contra o governo anterior. Sempre tem
alguém contra alguma coisa”, diz.
No caminho, é possível perceber que filas de carros e caminhões parados para abastecer
nos postos de gasolina ultrapassam cinco quarteirões. O movimento é controlado
por soldados do exército, armados com fuzis AK-47. Diante da crise econômica, o
presidente Mursi impôs um racionamento para limitar o consumo de combustível
– tudo isso para fazer sobrar mais petróleo para exportação e, assim, injetar alguns
dólares na combalida economia do país. Mas como o Egito também precisa continuar
rodando, o racionamento acaba criando novos problemas, penaliza a população e
castiga a economia egípcia.
O taxista me explica que por conta da medida é obrigado a pagar dez vezes mais caro
pelo litro da gasolina no mercado negro. No porta-malas do velho táxi, dois galões
cheios vão balançando e colocando em risco a segurança do próprio motorista e de seus
passageiros. “Todos aqui andam agora com tanque extra para se garantir”, revela Said.
A insatisfação geral com o novo presidente fica evidente nos cartazes já desbotados
da época da eleição, que recebem pichações, e Mursi ganha chifres e bigodes do
demônio. Não é difícil perceber que a situação política do Egito ainda vive um
período de alta octanagem.
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Na Praça Tahrir, o epicentro da revolução, manifestantes ainda permanecem
acampados. Ao redor da praça fica o Museu Egípcio do Cairo – que guarda parte
do acervo das pirâmides e das catacumbas que não foi contrabandeado para museus
de Londres e Nova York – e a sede do Partido Democrático Nacional, do ex-ditador
Mubarak, alvo de depredação durante o levante de 2011.
Foi ali na Midan al-Tahrir – a Praça da Libertação – que mais de 2 milhões de egípcios
se reuniram para derrubar Mubarak e, depois, para forçar Mursi a recuar da decisão
de decretar a si mesmo poderes faraônicos e de aumentar impostos sobre produtos
básicos. Também foi na Praça Tahrir que o povo debateu a nova Constituição. Apenas dez
dias antes da minha visita à praça, o país foi às urnas novamente para referendar a Carta
Magna do Egito pós-Mubarak, que colocou em jogo o papel da religião na sociedade.
Houve confrontos entre o governo – que defendeu a sharia, interpretação islâmica das
leis, sob os princípios do Alcorão – e a oposição, defensora de um estado laico. De
acordo com os resultados oficiais, 63% dos eleitores aprovaram a nova Constituição,
mas apenas 32% dos egípcios aptos a votar foram às urnas. A oposição contestou os
resultados alegando fraudes. Milhares de pessoas voltaram às ruas em protesto contra
o governo, alegando que a nova Carta estaria traindo os princípios da revolução que
depôs Mubarak.
Embora não esteja mais tomada por centenas de milhares de manifestantes como
no auge da Primavera Árabe, algumas centenas de pessoas permanecem acampadas
na Praça Tahrir. Em geral, são seculares que resistem em defesa de um Egito laico.
Nas barracas, além da bandeira egípcia, usam como símbolo de luta a lua crescente –
símbolo universal do islã – com uma cruz cristã ao centro.
Os revolucionários da Praça Tahrir não gostam de fotos nem de muita conversa com
estrangeiros. “No photos, no photos!”, foi a única frase que consegui ouvir de um
grupo de acampados. Outro, em tom um pouco mais ameaçador, alerta: “Isso aqui não
é a Disneylândia!”. Temeroso, decido guardar a câmera. Ainda assim, me aproximo de
outro grupo, me identifico como jornalista brasileiro e digo que estou interessado em
saber mais sobre a causa pela qual lutam. Uma menção ao craque de futebol Ronaldo
mostra que minha nacionalidade ajuda a quebrar um pouco a resistência inicial. Três
revolucionários concordam em conversar, mas desde que não sejam feitas fotos de
rosto de nenhum dos acampados. Segundo me explicam, há duas razões para todo
esse receio. O primeiro é o temor de perseguições e represálias. “Mursi tem um viés
ditatorial. Nunca se sabe o que pode nos acontecer se ficarmos expostos como oposição
ao regime”, diz um deles. O segundo motivo é a essência da própria revolução. “Não
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queremos mostrar o rosto porque a revolução não tem um líder ou uma só cara. Ela
foi feita pelo povo que veio e ocupou a Praça Tahrir, que resistiu e derrubou Mubarak.
A revolução tem a cara do povo egípcio”, explica o revolucionário. “Nossa luta é para
derrubar a Constituição, que não representa as legítimas aspirações do povo egípcio”,
afirma o outro. “A revolução não terminou”, completa.
Coitados dos coptas
Se a vida no Egito não está fácil para ninguém, imagine então para os coptas.
Representando menos de 10% da população do país, o grupo é formado pelos egípcios
que abraçaram o cristianismo ainda no século I da era moderna e que hoje seguem a
Igreja Ortodoxa Copta – uma das igrejas orientais mais antigas do mundo, originária
do cisma com a Igreja Ortodoxa tradicional e com a Igreja Católica Apostólica
Romana.
Encravado no chamado Antigo Cairo, o bairro copta é na verdade uma fortificação
murada e vigiada ostensivamente por forças de segurança egípcias. Apesar de a
liberdade religiosa ser garantida por aqui, a minoria copta é vítima constante de
violência sectária.
Para entrar no bairro, é preciso passar por um posto de controle, com revista de
mochilas e detector de metais. Isso porque, frequentemente, o local é alvo de atentados
de muçulmanos radicais, que invadem o bairro e saem atirando a esmo.
São recorrentes os casos de estupros, depredações, incêndios e assassinatos contra
os coptas. Essa marginalização também cria um obstáculo, fazendo com que o
desemprego que atinge em massa os egípcios tenha, historicamente, o dobro da força
sobre a população copta.
No entorno, os alto-falantes das mesquitas do lado de fora são direcionados para
o bairro copta e o volume do almuadem parece ser amplificado, na tentativa de
converter os infiéis.
Há uma perseguição quase oficial à minoria. Durante as manifestações da Primavera
Árabe, um grupo de muçulmanos conservadores investiu contra os cristãos, que
protestavam nas ruas contra o incêndio criminoso de uma igreja, dias antes. A polícia
egípcia interveio, mas tomou posição em um dos lados do conflito, deixando um
saldo de 24 mortos e mais de 300 feridos; todos eles coptas. Oficialmente, a ação foi
“em legítima defesa”, já que os soldados estariam sob o ataque da turba dos coptas
armados com paus e pedras; responderam à bala.
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Os muros do bairro copta também guardam importante parte da história. Lendas
contam que o local foi visitado pela Sagrada Família durante o período descrito pela
Bíblia como Fuga para o Egito, quando José, Maria e Jesus de Nazaré teriam fugido
da perseguição do rei Herodes.
Também foi ali, sob as ruínas de Mênfis, que o império romano erigiu a fortaleza da
Babilônia. Localizado à margem direita do Nilo, o local tinha grande importância
estratégica, dando controle militar e comercial sobre o Canal de Heliópolis – rota que
ligava o Nilo ao Mar Vermelho. As ruínas da torre, construída com imensos blocos de
concreto, permanecem como testemunha de invasões e reconquistas no decorrer dos
séculos, ao lado das dezenas de igrejas.
O “Vaticano” dos coptas é a Catedral de São Marco – no momento, fechada para
visitação por conta de uma ampla restauração. Já o Monastério e Igreja de São Jorge,
construídos no século X, também são de grande importância para os fiéis. Na cripta
úmida, escavada na pedra nua e iluminada apenas pela luz de velas, há uma flâmula
vermelha bordada à mão com fios de ouro e a imagem de São Jorge sobre o cavalo
branco empinado, derrotando o dragão. Ao redor, centenas de papéis e bilhetes,
colocados nas frestas com pedidos e preces de fiéis e peregrinos.
No interior da igreja, altares de madeira entalhados à mão dividem espaço com vitrais.
Tudo isso se mistura com enfeites bregas de Natal e figuras de Papai Noel de plástico e
pisca-piscas made in China, ainda por causa da data comemorada há apenas dois dias.
Os coptas seguem o calendário juliano e celebram o nascimento de Cristo naquele que
equivale ao dia 8 de janeiro para quem segue o calendário gregoriano.
Nas paredes, quadros formam uma galeria com fotos de homens, quase todos de
longas barbas brancas. Mas não se trata de uma exposição de papais-noéis, e sim da
galeria papal copta. A série é encerrada com a foto de Sua Beatitude Teodoro II, novo
líder copta empossado dois meses antes, após o conclave sucessório de Shenouda III,
quando seu nome foi retirado de uma urna por um garoto vendado. Desde então, ele
responde pelo título de Papa de Alexandria e Patriarca da predicação de São Marcos
e de Toda a África.
Ao assumir seu pontificado, Teodoro II prometeu se empenhar pela unidade do povo
egípcio, focada na convivência pacífica entre coptas e muçulmanos para alcançar a
paz. Uma missão nobre, mas nada fácil. Que Deus e Alá o ajudem.
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Egito . Adptação
Mais que um leão por dia
Últimos detalhes
Na véspera da largada do Tour d´Afrique, o dia é dedicado quase que exclusivamente à
montagem das bicicletas, organização e checagem final das bagagens e equipamentos.
Em volta da piscina do hotel, cada um abre sua caixa para montar sua própria bicicleta.
Tirá-la da caixa, conferir item por item, ajustar as peças sabendo que aquele aperto de
parafuso pode ser decisivo para o sucesso de uma aventura de 12 mil quilômetros pela
África – tudo isso dá ao processo um ar cerimonial, quase ritualístico.
Mas, apesar de ciclista experiente, mecânica de bicicletas nunca foi o meu forte. Tento
resolver a situação por conta própria, mas o quebra-cabeça não se encaixa. Tento de
outra forma e nada. Disfarçadamente, dou uma olhadela para ver como o colega do
lado está fazendo com a dele.
Chego a lembrar dos meus tempos de criança quando, com uma chave de fenda
nas mãos, desmontava rádios-relógio, videocassete e outros eletrodomésticos por pura
diversão, e nunca conseguia remontá-los novamente com todas as peças – talvez por
isso tenha desistido de uma promissora carreira na engenharia.
Enquanto me debato para montar a caixa de direção da bicicleta, uma chuva
torrencial despenca do céu cinzento do Cairo. Às pressas, todos pegam suas bikes
semidesmontadas, caixas e ferramentas e correm para debaixo de uma marquise.
Enquanto esperamos a chuva passar para retomar a árdua tarefa, descubro que o colega
com quem estou batendo papo faz parte da equipe do Tour e é um dos dois mecânicos
que vai nos ajudar durante a viagem.
Relato minha dificuldade em encaixar as peças na ordem certa – apesar de meu inglês
não permitir relatar com exatidão o nome correto de cada item: arruela vira “coisa
redonda”, espaçador, “tipo um anel”, e rolamento, “aquela coisa com bolinhas”. Não
sei se para ele faz tanto sentido quanto faz na minha própria cabeça.
Quando a chuva passa, voltamos à beira da piscina e retomamos a montagem das
bikes. Conto agora com a ajuda do canadense Jon Jamieson – o Jay-Jay –, mecânico
do Tour que põe a mão na massa e me ajuda a montar o que falta da Safarini. Para a
minha surpresa – e para a dele próprio também – a peça não se encaixa porque um dos
rolamentos da caixa de direção entortou e amassou durante o voo. Enquanto Jay-Jay
Egito . Adptação
47
Mais que um leão por dia
tenta desamassá-la com a mão, duas ou três bolinhas de aço se soltam e saem pingando
com destino incerto. Passamos vários minutos vasculhando cada palmo do chão; sem
sucesso, desistimos. Quem sabe, um dia, um arqueólogo possa encontrá-las?
Montamos a bicicleta do jeito que dá; além do rolamento capenga, dois espaçadores
– peças usadas para aumentar a distância do encaixe do guidão com o quadro –
acabaram sobrando. “Por enquanto, dá para ir usando assim mesmo, mas, assim que
possível, terei de substituir a peça”, diz Jay-Jay.
Ao redor, fica evidente a ansiedade e a expectativa no rosto de cada um dos participantes
enquanto fitam e contemplam suas próprias bicicletas.
No meio da tarde, em uma reunião com a equipe da organização, nos são passadas as
informações básicas sobre o dia a dia e as regras do Tour d´Afrique.
Cada ciclista se apresenta de forma breve – nome, idade, nacionalidade –, mas
quando o quarto ciclista começa a se apresentar, já nem me lembro sequer do nome
do primeiro, da idade do segundo e da nacionalidade do terceiro.
A mesma coisa acontece com os membros do TDA. A equipe é composta pelo líder do
Tour, uma diretora de corrida, uma assessora de comunicação, dois paramédicos, um
cozinheiro e um cozinheiro-assistente e dois mecânicos de bicicletas.
O líder do Tour é o canadense Ciaran Powers, que está partindo para sua segunda
aventura em terras africanas. Baixinho e marrento, ele fala com convicção e sabe
impor sua autoridade e liderança sem ser grosseiro. Ciaran explica de maneira geral os
procedimentos para a largada do dia seguinte e as regras gerais do TDA, procedimentos
de segurança, navegação, o que fazer ou a quem pedir socorro em caso de necessidade.
Em resumo, são três as leis do Tour d´Afrique, nessa ordem de importância: segurança,
respeito e diversão. Segurança em primeiro lugar, para que todos voltem vivos e
inteiros. “Capacete na cabeça o tempo todo. Não é permitido pedalar um centímetro
sequer sem o capacete. Não tem desculpas, mas, ou porquês”, ele deixa bem claro.
Respeito para com os organizadores, os outros ciclistas e a população local – acessos
de raiva ou xingamentos dirigidos a qualquer um destes resultam em uma advertência
por escrito; na segunda vez, expulsão do Tour. Agressão física é expulsão sumária. E
diversão, já que todos vieram aqui para pedalar e viver uma grande aventura; e se isso
não for divertido, nada mais faz sentido.
No dia seguinte, despertamos às 4h40, antes mesmo de o sol raiar. Cada um coloca
seus pertences nos caminhões. Em uma última reunião, ainda no hotel, nos são
dadas algumas orientações sobre o primeiro dia. Uma chamada confere se nenhum
ciclista ficou dormindo. Depois de cada nome, um dos membros do staff pergunta
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Egito . Adptação
Mais que um leão por dia
se cada participante gostaria de ser chamado por algum apelido. Para descomplicar o
“Alexandre”, na minha vez, acabo sugerindo apenas “Ale”, como sou chamado pela
maioria dos meus amigos.
- Ok, então, Ali; “Ali C.” para diferenciar dos outros – diz ela, enquanto anota meu
novo nome na prancheta.
Pela mesma lógica, Alistair Insall vira apenas “Ali”, Alex Beraskow vira “Alex” e
Alexandre Morrier se torna “Alex Morrier”.
Por volta das 6h30 saímos do hotel em comboio, escoltados por viaturas da polícia
egípcia em direção à Gizé, para a largada oficial do Tour d´Afrique 2013.
O deleite do Faraó
“Ciclistas, do alto dessas pirâmides 40 séculos de história vos contemplam.” Aos pés da
Grande Pirâmide de Quéops, sobre minha bicicleta, essa é a primeira coisa que me vem
à cabeça, em uma adaptação livre da célebre frase de Napoleão Bonaparte exortando
seus soldados, em minoria numérica, a combater o exército do Império Otomano,
apoiado pelos mamelucos, naquela que ficou conhecida como a Batalha das Pirâmides.
Porém, quase 215 anos depois, ao invés de dois regimentos de exércitos inimigos
combatendo com suas cavalarias, um esquadrão multinacional de ciclistas aliados,
montados em suas bicicletas. O objetivo desta vez, no entanto, não é apenas o de
dominar o Cairo e o Egito, e sim o de conquistar toda a África – o que faz com que
Napoleão fique se parecendo mais com um maluco de hospício.
Contemplar a única maravilha remanescente do Mundo Antigo desencadeia uma série
de sensações e emoções indescritíveis. Tocar com a ponta dos dedos as pedras desses
monumentos com mais de 4,5 mil anos de história é quase como uma experiência de
viagem no tempo.
Dependendo do ângulo que se observa, a face da pirâmide parece uma imensa
escadaria para o céu – uma passagem para o infinito e a vida eterna, exatamente como
planejavam os faraós.
A tentação de escalar os imensos blocos de pedra é irresistível. Ainda que a vontade seja
a de galgar até o topo, subir os primeiros degraus já acaba sendo uma experiência tão
marcante que você se dá conta que vai carregá-la consigo para a vida eterna.
Pagando alguns pounds egípcios, é possível adentrar em uma pequena câmara
mortuária – um túnel estreito com uma galeria de não mais de 15 metros. No interior,
nada de pinturas, múmias ou tesouros – ao menos aparentemente, já que a vontade
Egito . Adptação
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Mais que um leão por dia
é sair tocando as paredes em busca uma pedra-alavanca capaz de acionar a abertura
de uma passagem secreta. De qualquer forma, a sensação de penetrar no coração da
pirâmide já é intensa o suficiente para que você se sinta um verdadeiro Indiana Jones.
A mística, o poder simbólico, a maravilha arquitetônica e a história da pirâmide. Tudo isso
está permeado em cada átomo dos 2,3 milhões de blocos de pedra usados para edificá-la.
Mais adiante, guardando a Necrópole de Gizé e o Templo do Vale, a Grande Esfinge,
esculpida em uma única peça de rocha calcária com a cara de um homem e o corpo
de um leão.
Diante da magia de algo tão grandioso, o enigma da esfinge – Decifra-me ou te devoro! –
e o segredo da pirâmide passam a fazer algum sentido. Acabo recordando aquela história
do pastor de ovelhas da Andaluzia que chegou às pirâmides para realizar um sonho.
Fico com a sensação de que, se virar a esquina com a minha bicicleta, pedalar até o
aeroporto e voltar para casa no Brasil, nada terá sido em vão. O primeiro tesouro
acaba de ser encontrado.
Uma dimensão paralela
Antes de qualquer coisa, a foto oficial. É preciso guardar e eternizar essa imagem
histórica para não correr o risco de tê-la danificada pela ação do tempo sobre a memória.
De um mirante no platô do deserto, as três pirâmides alinhadas no horizonte. As
bicicletas encostadas na mureta compõem o cenário. E os ciclistas – com suas roupas
coloridas, em meio a cliques, flashes e sorrisos exultantes – parecem nem se importar
com o frio da manhã, capaz de fazer congelar os ossos.
Um farto café da manhã é servido, com sucos, biscoitos, pães, doces e salgados.
Enquanto comemos, tiramos fotos e conversamos, alguns turistas “civis” se aproximam
e perguntam o que é tudo aquilo. Ficam impressionados quando ouvem que o grupo
vai atravessar a África de bicicleta e aproveitam para tirar fotos com membros do
grupo, como se fôssemos celebridades do mundo dos esportes.
Ao redor, alguns camelôs egípcios vendem réplicas da esfinge em gesso, pintadas
de dourado. Dizem que os egípcios são exímios comerciantes. Faz certo sentido.
Simplesmente olhar para as bugigangas de gosto duvidoso é o mesmo que perguntar
“quanto custa” e perguntar “quanto custa” é o mesmo que dizer “vou comprar”.
Vejo um dromedário (camelo-árabe) parado e me aproximo com a intenção de tirar
uma foto. Enquanto me preparo para tirar a capa da lente, o dono do animal avisa:
- Se clicar, é 5 pounds! – ou seja, tirar foto de um camelo perto das pirâmides equivale
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Egito . Adptação
Mais que um leão por dia
a perguntar “quanto custa” no idioma comercial egípcio.
Enquanto caminho de volta em direção ao grupo, um vendedor de turbantes, ao
reconhecer a bandeira brasileira na manga esquerda do meu uniforme, grita:
- Brissil! Brissil! Ronaldo! Ronaldinho!!!
Quando se aproxima, me chamando de “my friend”, percebo que seus dentes são
marrons, manchados por uma crosta de tártaro e tabaco. Vestido como um beduíno,
ele diz que adora o Brasil, que trabalhou como estivador e que esteve em um navio
ancorado no porto de Santos em 2012.
Com seu inglês egípcio, fala que, por eu ser brasileiro, vai me dar um turbante de
presente. Agradeço e recuso a oferta, mas ele insiste:
- Você é “my friend”! É um presente para meu amigo brasileiro!!!
Rejeito novamente, explicando que vamos viajar por muito tempo de bicicleta e que
não há espaço suficiente para acomodar coisas acumuladas durante o caminho. Além
do mais, não preciso de um turbante.
Mesmo assim, ele pega um dos turbantes, coloca sobre o meu ombro e sentencia:
- É um presente! Leve com você, “my friend”!
Agradeço meio sem jeito, viro as costas e quando dou apenas dois passos o beduíno se
materializa na minha frente, tal qual um espectro e sugere:
-Me dá um dinheirinho pelo turbante! Pode ser dólar, pound ou até mesmo real do
Brissil! – perco a paciência, jogo de volta na sua mão o presente de egípcio e deixo meu
ex-my-friend falando sozinho.
Tomo um último gole de café. Dou uma última olhada nas pirâmides. Respiro fundo,
faço uma pequena meditação e oro em silêncio, pedindo aos deuses do Egito proteção
durante toda a jornada.
O coração pulsa mais forte e a adrenalina corre solta pelas veias. Logo à frente, o portal
de largada. Sobre ele, a marca oficial do Tour d´Afrique e um selo do departamento
de turismo do governo egípcio com o slogan “Onde tudo começa”. “Nada mais
apropriado”, penso comigo.
Empurro a Safarini até o limite da linha de largada. Subo na bicicleta. O momento
tem um ar solene. A partir dali, serão quase 12 mil quilômetros, através de dez países,
até a Cidade do Cabo, no extremo Sul do continente.
Vem à minha cabeça uma frase tida quase como o lema do TDA: “Uma vez que você
vai, você nunca mais será o mesmo”. Dou a primeira pedalada atravessando o portal
que me leva por um caminho sem volta a outra dimensão. A dimensão de um sonho
chamado Tour d´Afrique.
Egito . Adptação
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Mais que um leão por dia
Pedalando no Saara
Saindo do pé das pirâmides do Egito seguimos em comboio, atravessando o Cairo
escoltados por viaturas da polícia e acompanhados por carros de reportagem de redes
locais de tevê. A cada metro percorrido, vamos recebendo acenos e o carinho da
população egípcia nas ruas, além de buzinadas frenéticas dos motoristas.
Já na estrada, o pelotão se desforma e pedalamos pelo acostamento, cada um por si. A
estrada tem pista dupla, asfalto novo, liso e em boas condições. Mas há muito pouco
movimento – tanto de carros, quanto de caminhões de carga.
Em meio ao deserto, um tanque de guerra de fabricação soviética jaz enferrujado. É
um espólio da Guerra do Yom Kipur, quando uma coalizão árabe liderada pelo Egito
atacou Israel para tentar se vingar da humilhante derrota na Guerra dos Seis Dias, seis
anos antes.
O ciclista egípcio Ahmed Nayer me conta a história do conflito, que custou a vida
de até 15 mil soldados árabes. Israel abateu aquele tanque egípcio. Também venceu
taticamente aquela guerra. Mas o Egito atingiu seu objetivo no conflito e forçou as
duas nações a firmarem um acordo. Pelo Tratado de Paz Israelo-Egípcio, assinado
em 1979 em Washington, a nação árabe reconheceu o direito de existência do
estado judeu tendo como contrapartida a completa retirada das tropas israelenses da
Península do Sinai.
Ahmed diz que tem uma foto de quando ainda era criança, tirada sobre o tanque. Não
resisto e também faço meu registro naquele pedaço da história.
Beirando a rodovia desértica, obras faraônicas com réplicas de pirâmides, esfinges e
obeliscos. Algumas edificações com o que deveriam ser postos de serviços ou praças
de pedágio seguem inconclusas há anos. Erguidos, mas sem acabamento, portas ou
janelas, permanecem desocupados, como verdadeiros monumentos ao desperdício.
Dá até para ter uma ideia de quanto dinheiro público foi gasto ali, o superfaturamento
da obra e os milhões que foram parar em paraísos fiscais, na conta de políticos e
burocratas – inexplicavelmente isso tudo acaba soando de uma maneira familiar para
quem vive ao Sul do Equador.
No primeiro dia, pedalamos cerca de 130 quilômetros a Sudeste, em direção à cidade
de Ain Sokhna. Uma bandeira alaranjada na beira da estrada indica que chegamos ao
fim da primeira das 94 etapas do TDA. Faço o trecho em 7h15 sobre a bicicleta, com
velocidade média de 18 quilômetros por hora – um ritmo razoável.
Nosso primeiro acampamento é no meio do deserto – o que significa noites frias.
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Egito . Adptação
Mais que um leão por dia
O termômetro chega a marcar a mínima de 5°C. Dá para sobreviver com um bom
agasalho, mas, ainda assim, é bastante frio.
Nesta primeira etapa do Tour pelo Egito, a logística ainda é meio confusa. Os carros
de apoio da organização não tiveram autorização de trafegar pelas estradas do país, já
que os veículos têm o volante no lado direito da cabine, projetados para a mão-inglesa.
Dois caminhões-baú levam nossas tralhas – um com a bagagem diária (roupas, itens
de higiene e acampamento) e outro com peças e equipamentos de reposição, que não
são necessários no dia a dia.
Monto minha barraca com certa dificuldade – mas acabo me tranquilizando ao ouvir
o líder do Tour dizer que, dentro de alguns dias, estaremos aptos a fazer isso até de
olhos vendados.
Com o inverno no Hemisfério Norte, a luz do dia acaba mais cedo, por volta das
17 horas. Termino tudo a tempo de contemplar e fotografar o primeiro pôr do sol
no deserto. É magnífico ver a imensa bola de fogo de Rá se escondendo no amplo
horizonte do deserto e pintando o céu de amarelo, laranja e tons de violeta.
Uma cozinha de campanha é montada e nos é servida uma sopa de lentilhas logo
na chegada. Em seguida, a reunião dos ciclistas é convocada aos gritos de “riders
meeting” pelos membros do staff. Nela somos informados dos detalhes do estágio
seguinte. Logo em seguida, é a hora do jantar. Como com uma fome digna de quem
pedalou o dia todo no meio do deserto.
Antes mesmo das 19 horas, todos já estão recolhidos em suas respectivas barracas. O
silêncio reina absoluto no deserto. É hora de recarregar as baterias e se preparar para
mais um dia.
Energia, cansaço e um despertador maldito
Após pedalar apenas dez quilômetros no segundo dia, alcançamos a costa do Mar
Vermelho, a oeste da Península do Sinai e ao sul do Canal de Suez.
A área concentra centenas de condomínios e resorts de luxo – e outros tantos estão
sendo construídos –, mas todos permanecem vazios e sem movimento nessa época do
ano por causa do frio.
Por sua importância estratégica, a área é extremamente vigiada pelo exército e pela
polícia egípcia. Suez é peça importante no tabuleiro da geopolítica mundial por ser
uma rota de ligação entre o Mar Mediterrâneo e o Mar Vermelho e rota marítima de
ligação da Europa com o Oceano Índico, Ásia e Oriente Médio.
Egito . Adptação
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Mais que um leão por dia
Para acessar a rodovia, é preciso passar por três postos de controle da polícia, e mais
ou menos a cada cinco quilômetros da costa há um posto de vigilância do exército.
Quando paro para tirar algumas fotos do Mar Vermelho, uma viatura da polícia
egípcia que faz patrulha no local encosta, liga a sirene e ordena que eu desligue a
câmera e continue pedalando. Sem saber argumentar em árabe, é o que acabo fazendo.
A região também é uma importante zona de produção petrolífera – com plataformas
no mar, refinarias e oleodutos que abastecem a área industrial de Hurghada. No
entanto, o Egito dá sinais de que também está abrindo os olhos para novas fontes de
energia. Enquanto no mar é possível ver plataformas de petróleo, no meio do deserto
brotam turbinas de geração eólica.
O Ministério de Energia do Egito criou um departamento especializado em energias
renováveis. O plano é ter o Mar Vermelho como fonte de energia fóssil, e toda a costa
produzindo energia com o vento – que é forte, extremamente forte nessa região.
Há projetos sendo financiados pelos governos do Japão, Alemanha, Dinamarca e
Itália, somando atualmente a produção de 500 MW de energia limpa. A intenção
do governo é transformar, nos próximos anos, toda a costa em uma imensa fazenda
de vento, com a meta de alcançar 7,2 mil MW até 2020, o que representará 12% da
capacidade instalada do país. O número equivale à metade da capacidade de geração
de Itaipu, a maior hidrelétrica do mundo.
Chego ao acampamento após pedalar 166 quilômetros – o que, até então, certamente
é a maior distância já percorrida de bicicleta por mim em um único dia. A musculatura
dos ombros dói, as pernas doem e os joelhos também doem.
Depois de tanto esforço, até mesmo uma tarefa banal como montar a barraca no
acampamento acaba se tornando uma das tarefas mais difíceis e estressantes do mundo.
Imagine sentir-se como se tivesse acabado de tomar uma surra do Anderson Silva.
Agora, imagine que está frio, tão frio que você é incapaz de sentir as pontas dos próprios
dedos. Some a isso um vento forte o suficiente para empurrar as pás de turbinas geradoras
de energia. Neste cenário, o desafio é montar a barraca no solo duro e pedregoso do
deserto, em que é virtualmente impossível fincar uma estaca no chão.
Não sei se pelo cansaço ou se pela conjuntura toda, aproveito que ninguém sabe uma
palavra em português e gasto todo o meu repertório de palavrões.
Levo mais de uma hora para montar uma barraca que o fabricante diz que demora
apenas dez minutos. Depois de quase surtar de estafa física e mental, finalmente
termino a tarefa, prendendo a barraca com pedras grandes no lugar das estacas.
Logo ao meu lado, uma ciclista alemã loira de olhos azuis enfrenta o mesmo problema.
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Egito . Adptação
Mais que um leão por dia
Mas basta ela fazer cara de “não consigo” que, prontamente, aparecem três marmanjos
solidários para socorrê-la. Ela só aponta o local em que quer sua barraca montada e
tudo é resolvido, como em um passe de mágica.
- Filhos da puta! – deixo escapar entredentes, quase sem querer.
Jantado e sem banho tomado, vou direto para a barraca descansar. Dormir bem,
definitivamente, é um dos meus talentos. Como sou bom de cama, o medo de não
acordar no horário pela manhã – principalmente nesses primeiros dias do Tour – tornase quase uma paranoia. Meu maior pesadelo é continuar dormindo enquanto todos
vão saindo com suas bicicletas. E, como me conheço bem, sei que a probabilidade de
que isso ocorra existe e as chances são bem reais.
Para tentar evitar uma tragédia de grandes proporções, tento contornar o problema
com uma estratégia ousada: coloco no meu celular um despertador com o volume
no máximo e instalo um aplicativo para amplificar ainda mais os alto-falantes. Ao
invés de um toque de alarme, sirene ou melodia qualquer, escolho a canção tema
de “Comichão e Coçadinha” – o gato e o rato que são personagens de um desenho
animado sangrento dentro do seriado Os Simpsons. Com a melodia irritante de um
xilofone e vozes estridentes e repetitivas, o artifício surte efeito e é capaz de me remover
da cama, mesmo que a contragosto, ainda nas primeiras horas do dia.
Mas desta vez, nem foi preciso tanto. Acordo com a buzina do caminhão de apoio,
que dá o toque da alvorada no acampamento pouco antes das 6 horas da manhã.
Desmonto o acampamento e coloco meus equipamentos dentro do caminhão.
Quando vou deixar o capacete e as luvas junto à bicicleta – que passou a noite longe
da barraca –, um ciclista mais velho, da Inglaterra, se aproxima e pergunta se eu dormi
bem. Respondo que sim, obrigado.
Ele comenta algo, mas sua pronúncia britânica é complicada e difícil de ser
compreendida. Peço educadamente para ele repetir a frase pausadamente e o que ouço
não faz o menor sentido. Parece que tem algo a ver com o Woody Woodpecker (nome
em inglês do personagem Pica-Pau) e bicicletas. Deduzo que ele esteja se referindo à
tatuagem da minha perna:
- Não, não é o Pica-pau, é o Tintim! – explico, mostrando a panturrilha.
De forma irritada, ele sinaliza negativamente com a cabeça e diz pausadamente:
- Você esqueceu o Pica-Pau cantando na sua bicicleta!
- Desculpe, continuo sem entender... – lamento.
Um neozelandês, que percebe a dificuldade de comunicação enquanto desmonta sua
barraca ao nosso lado se aproxima e, educadamente, me põe a par da situação:
Egito . Adptação
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Mais que um leão por dia
- Ele está tentando dizer que você deixou seu despertador irritante ligado a madrugada
inteira e não deixou ninguém aqui por perto dormir direito...
Olho rapidamente para o alforje do guidão, e lá está o meu celular, esquecido em um
bolso externo. Em um lampejo, me lembro de que no dia anterior, finalmente havia
ajustado o relógio para o fuso-horário do Egito, mas não o despertador, que estava
programado com base na diferença de quatro horas a menos. Isso significa que o show
do Comichão e Coçadinha começou às 3 horas da madrugada e só parou quando a
bateria do celular se esgotou por completo, assim como o sono e a paciência de todos
aqueles que passaram a noite ao redor.
Com vontade de cavar um buraco no meio do deserto e me esconder de vergonha,
peço desculpas pelo episódio, sentindo que a vontade deles também é a de me enterrar
vivo.
Na fila do café da manhã o assunto não é outro:
- Que porra de barulho foi esse durante a madrugada toda? – pergunta um.
- É coisa daquele brasileiro do caralho – responde outro, sem perceber que estou logo atrás.
Na rotina, nada é sempre igual
Nos primeiros dias na estrada é possível perceber que há uma certa rotina no TDA
– ainda que um dia nunca seja exatamente igual ao outro. Acordamos cedo com a
buzina do caminhão, antes mesmo de o sol raiar. Temos pouco tempo para desarmar
as barracas e arrumar os equipamentos. Depois de um café da manhã, pegamos a
estrada.
Apesar de o grupo ser formado por mais de 50 ciclistas, cada um vai pedalando no
seu ritmo. Há alguns casais no grupo, que obviamente pedalam juntos, e um grupo
de amigos canadenses. De resto, o mais comum, pelo menos por enquanto, é que
cada um pedale sozinho, no seu próprio ritmo. Geralmente há um rápido diálogo ou
cumprimento quando se é ultrapassado ou vai se ultrapassar algum ciclista na estrada.
Pelo caminho, nas vilas, é possível parar durante o dia, por conta própria, para os
chamados “Coke-Stops”, uma pausa estratégica para descansar, esticar as pernas e
tomar um refrigerante.
A navegação é feita através das instruções que são passadas pelo líder do Tour na
reunião de ciclistas do dia anterior: um quadro branco, com as referências geográficas,
coordenadas, direções, distâncias e pontos de referência. No meio do caminho há uma
parada para o almoço – onde é feita uma conferência de todos os ciclistas. Quando o
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Egito . Adptação
Mais que um leão por dia
trecho é muito longo, há a definição de um ponto extra para reabastecer as garrafas
com água e comer frutas.
Nos acampamentos a comida é boa e farta, preparada pelo chefe Jon e seu assistente
Yanes. No café da manhã o cardápio é composto por uma espécie de mingau de aveia,
granola, leite, pão árabe com nutella, creme de amendoim, geleias e mel. Para beber:
café solúvel, leite e chá.
Na parada do almoço, apenas um sanduíche rápido. O recheio pode ser atum, maionese
com ovo, tomate ou guacamole. Há também frutas frescas – banana, laranja, maçã ou
manga. Para beber, água e bebida isotônica à vontade.
A janta é a refeição com comida de verdade: macarrão com molho, arroz com
picadinho, frango e salada. O cardápio é tão farto e variado que até há, entre alguns,
o temor de ganhar peso durante o Tour.
Para alimentar toda a tropa em uma única refeição são necessários 20 frangos, 20
quilos de arroz, 10 quilos de batatas, 4 quilos de cebola, 7 quilos de tomate, além de
temperos e outros itens como sal, óleo, pimenta, vinagre etc.
Todos os ingredientes são comprados pessoalmente pelos próprios cozinheiros
nos mercados das comunidades locais. Isso acaba tendo um importante aspecto
socioeconômico ao injetar dinheiro de fora na frágil economia de pequenas vilas no
interior, que estão fora das rotas turísticas tradicionais. Essa contribuição também
vem dos próprios ciclistas na compra diária de refrigerantes, comida e itens de
higiene pessoal.
Nos três primeiros dias, nada de civilização – o que significa que não temos acesso
a “mordomias” como banho ou sanitários. A primeira questão se resolve com a
cumplicidade: se um fede, todos fedem juntos e ninguém tem condições de se
importar muito com isso. No máximo, um lencinho umedecido garante um pouco
de higiene e dignidade.
Já para a segunda questão, no meio do deserto, cava-se um buraco e depois tapa-se,
para não deixar vestígios, como fazem os gatos. O próprio caminhão do Tour tem
disponíveis algumas pás, que facilitam esse trabalho.
No começo é meio embaraçoso – até porque no deserto, ao redor do acampamento,
não há muitos lugares que ofereçam certa privacidade. Não raro, quando se caminha
em direção a uma duna ou uma moita perfeita, ouve-se o grito constrangido de
“ocupado!!!”. Além disso, quando se vê alguém caminhando a esmo no deserto com
uma pá em uma mão e um rolo de papel higiênico na outra é difícil não pensar: “lá
vai mais um cagão”.
Egito . Adptação
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Mais que um leão por dia
Com um teto de barraca para dormir, comida, água e um banheiro a céu aberto, o
TDA garante praticamente todas as necessidades básicas da chamada pirâmide de
Maslow. No entanto, a experiência do Tour, com uma rotina repleta de novidades a
cada dia, é um verdadeiro atalho para se chegar ao nível máximo, definido como a
realização pessoal.
Para onde o vento me levar
No terceiro dia chegamos ao acampamento pouco depois do meio-dia. A distância de
136 quilômetros é vencida com facilidade com a ajuda do vento empurrando forte às
nossas costas – é o chamado “tailwind”, tão venerado pelos ciclistas hoje quanto Seth,
o deus do vento, era pelos antigos egípcios.
Sobre a bicicleta, tenho a nítida sensação de ter atingido o ápice da forma física.
“Nunca pedalei tão bem”, penso comigo mesmo. Mas caio na real e percebo que não
me tornei um ás do ciclismo, capaz de vencer até mesmo Lance Armstrong dopado,
quando paro para almoçar e mal posso ficar em pé ao lado da bicicleta, tamanha a
força do vento.
As rajadas na região chegam a quase 15 metros por segundo – mais de 50 km/h.
Partindo de um ponto, sem fazer força no pedal, apenas com a inércia, o vento empurra
a bicicleta a quase 20 km/h. Em um trecho em declive, a velocidade ultrapassa fácil a
marca dos 60km/h e a velocidade média do dia passa dos 30 km/h!
Depois de quatro dias de pedaladas por estradas e três noites acampando no deserto,
chegamos a Safaga, balneário egípcio no Mar Vermelho, distante 530 quilômetros
do Cairo. É o nosso primeiro contato com a civilização e com um chuveiro desde a
largada. Chuveiro gelado, diga-se de passagem, mas, ainda assim, um chuveiro.
O cenário é paradisíaco, com um mar azul-turquesa. Na praia, ao invés de areia fina,
pedregulhos grossos que fazem doer a sola dos pés. O líder do Tour nos alerta: “Aproveitem
o mar, pois será a última vez que vocês verão a praia. A próxima oportunidade será só na
África do Sul”. Tomo coragem para um banho de mar. A água, porém, é gélida, capaz
de fazer até mesmo um pinguim bater o bico de frio. Mesmo assim, um grupo formado
por ciclistas da Alemanha, Holanda, Suíça e Noruega se diverte na água, como crianças,
curtindo o calorzinho do inverno no balneário egípcio.
O primeiro dia após deixarmos Safaga acaba sendo o mais difícil do Tour nesta
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Egito . Adptação
Mais que um leão por dia
primeira fase. Nos primeiros 50 quilômetros, encaramos um trecho com 900 metros
de elevação e vento forte soprando contra. Nestas condições, não há marcha capaz de
proporcionar um bom rendimento e parece que, apesar de pedalar com tanto esforço,
é impossível sair do lugar – tanto que a velocidade média cai mais da metade, para 10
km/h neste trecho.
Exausto, paro em uma venda de beira de estrada para esticar um pouco as pernas e
descansar. Infelizmente, não há como reproduzir em palavras o que é uma venda de
estrada no interior do Egito, mas, para tentar ter uma ideia, basta elevar à décima
potência o posto de beira de estrada mais xexelento visto até hoje. Enquanto tomo
um refrigerante para repor o açúcar no sangue, um jovem se aproxima. Tento iniciar
uma conversa com algumas palavras em inglês, sem sucesso. Partimos então para
a linguagem dos gestos e sinais: aponto para mim, dizendo meu nome e ele faz o
mesmo, identificando-se como Mahmud.
Aponto para a estrada, indicando que venho do Cairo. Ele aponta para a bicicleta,
fascinado, e diz alguma coisa em árabe – que obviamente não entendo. Arrisco então
uma das três palavras que sei no seu idioma: darraja (bicicleta). Ele sorri surpreso e
exclama: darraja!
Ofereço então a “darraja” para ele dar uma volta, e ele aceita. Antes de voltar para a
estrada e seguir viagem, o saúdo com um “shokran” (obrigado), seguido do “Salaam
aleikum” (que a paz esteja convosco), gastando assim, de uma só vez, todo o meu
parco vocabulário arábico.
À noite, acampamos ao lado de uma estação de água no meio do deserto, responsável
pela captação no lençol freático, tratamento e distribuição para as cidades da província
de Qena. A área é vigiada por um posto policial e guardas armados com AKs-47.
Os guardas são solícitos e liberam o banheiro e o chuveiro do posto. Neste momento,
é possível perceber como o valor de conforto pode ser relativo: uma fossa turca fétida
e um chuveiro gelado são celebrados como um verdadeiro oásis no deserto.
Os guardas também nos oferecem uma frutinha local chamada Nabak – tem
tamanho de uma acerola, é amarela, cítrica e amarra a boca como banana verde.
Descubro depois que a fruta é usada para produzir uma bebida narcótica. Junto
com os guardas, também fumamos a chicha (narguilé) com um tabaco melado e de
cheiro fortíssimo. Mesmo não sendo fumante, acabo degustando a fumaça em meio
a uma boa roda de prosa.
Egito . Adptação
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Mais que um leão por dia
Um Egito verdejante
Nesse primeiro momento, o grande desafio tem sido essencialmente físico. E, para piorar,
uma inflamação em um tendão da perna direita começa a me incomodar horrores. A
região está inchada e, a cada pedalada, é como se uma agulha grossa estivesse entrando e
saindo da minha carne até atingir o osso. Apesar de a dor ser intensa, sobre a bicicleta ela
ainda é suportável. Mas caminhar se torna difícil, o que me obriga a mancar. Tento tratar
o problema com pomada anti-inflamatória no local e tomo comprimidos de Nimesulida
como se fossem M&Ms para aliviar um pouco a dor.
E como se isso não bastasse, um resfriado – certamente adquirido por causa do frio
das manhãs no deserto e de todo o estresse enfrentado pelo corpo nesses primeiros
dias – ajuda a drenar ainda mais minhas energias. Não é nada muito forte, a ponto de
me obrigar a ficar de cama, mas o nariz escorre o tempo todo, os olhos lacrimejam e
o corpo fica ainda mais fraco. Para completar, uma herpes labial oportunista eclode,
deixando meu lábio como uma couve-flor.
Nos dois dias seguintes, percorremos o deserto Arábico, que faz parte do Saara
Oriental. A paisagem do deserto se resume praticamente à estrada, ao horizonte,
areia e pedras. Mesmo assim, pedalar sozinho neste cenário torna-se uma experiência
intensa em todos os sentidos. Observar os finos grãos de areia desenhando a paisagem,
moldada há milênios pelo mesmo vento que sopra em seu rosto, é fascinante. O
silêncio e a monotonia da paisagem ampliam os horizontes ao me colocar em contato
com meus pensamentos e sentimentos mais profundos: medos, incertezas, sonhos e
virtudes; tudo aflora e estimula um verdadeiro estado de meditação sobre duas rodas.
A epifania só é interrompida quando o deserto cobra o seu tributo em forma de sede,
suor e dor física.
Após dias pedalando em um deserto interminável, de repente, após uma ligeira curva
à esquerda, atingimos um verdadeiro oásis. As cores entediantes e áridas das areias do
Saara dão lugar a um verde vivo, com palmeiras e plantações.
A vida volta a existir. No leito de um rio quase seco, duas mulheres usando véus pretos
pastoreiam um rebanho de carneiros. Sentadas sobre pedras, observam a criação
pastando tranquilamente enquanto conversam.
Com mais de 70% do território do país tomado pelo deserto, a população egípcia se
concentra no Vale e no Delta do Nilo, áreas agricultáveis ao longo do leito do rio e
que concentram 98% da população do país.
A estrada é margeada por casas simples – muitas feitas de tijolos de barro e adobe –
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Egito . Adptação
Mais que um leão por dia
e plantações irrigadas por canais com a água bombeada do velho Nilo. Ali, desde os
tempos dos faraós, em se plantando, tudo dá: – tomate, milho, arroz, trigo, cana-deaçúcar, produção esta que alimenta o país e é toda transportada em carroças ou no lombo
de jumentos. A tecnologia agrícola na região é praticamente a mesma há milênios.
Como a área é densamente povoada, as vilas são coladas umas nas outras e apenas
placas sinalizam quando um distrito acaba e começa o outro. Na beira da estrada,
ao lado das plantações, estruturas simples com cobertura de palha e tapetes no chão,
são usadas pelos trabalhadores muçulmanos, que param o trabalho nas lavouras para
cumprir duas das preces obrigatórias do dia: uma quando o sol atinge seu ponto
máximo ao meio-dia e outra ao pôr do sol.
Na reunião do dia anterior, fomos alertados sobre o risco que correríamos ao passar
por essa área povoada. As crianças locais, ao verem seres tão “diferentes”, costumam
tacar pedras e até mesmo tentam derrubar os ciclistas.
E eu dou azar: logo na entrada da cidade de Qena, um grupo de meia dúzia de
garotos, um deles puxando um jumento, tenta fechar minha passagem em uma rua
empoeirada. O maior deles – que deve ter por volta de 15 anos – coça o indicador com
o polegar e pede meu “money”.
Faço cara feia e parto para cima, como se fosse jogar a bicicleta neles, e eles acabam
recuando – não sem depois tentarem me acertar com algumas pedras. Felizmente,
nenhuma me acerta.
Logo adiante, crianças mais pacíficas. Muitas saúdam e acenam da outra margem ao
verem os ciclistas passando, gritando saudações em árabe e coros de “hello-hello-hello”.
Em um trecho, levo três chibatadas nas costas com uma varinha de outro grupo de
meninos. Mas, pela ausência de força nos golpes, fica evidente que tudo não passa de
uma brincadeira dos moleques.
O verdadeiro apuro passo alguns metros após o posto policial da divisa com a província
de Luxor. Um trator carregado de cana-de-açúcar – cultura que está em plena safra
– passa no sentido contrário com dez pessoas penduradas no alto da carroceria e um
garoto com espírito de porco resolve jogar um pedaço de cana em minha direção. Por
puro reflexo, consigo desviar do objeto que vem de encontro ao meu rosto, mas ao
entrar na pista quase sou atropelado por uma van, que passa a poucos metros em alta
velocidade.
Xingo em português todas as gerações passadas e futuras do menino egípcio, mas,
para ter certeza de que ele entendeu pelo menos alguma coisa, faço para ele o gesto
universal com o dedo médio levantado e sigo pedalando, apesar do susto.
Egito . Adptação
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Mais que um leão por dia
A parte fácil: chupar cana e assobiar
Depois de seis dias atravessando de bicicleta o deserto e áreas povoadas à beira do
Nilo, chegamos a Luxor para o primeiro dia de descanso desde o início da expedição.
Descanso mais que merecido: foram 770 quilômetros percorridos em apenas seis dias
de pedal – uma média diária de aproximadamente 130 quilômetros.
No hotel em que armamos nosso acampamento, somos recebidos por uma comitiva
do governador da província de Luxor, Ezzat Saad El-Saad El Buraey, acompanhado
de uma equipe de assessores e puxa-sacos de toda sorte. Para cada um de nós, uma
assessora entrega uma rosa de plástico com um cartão cafona escrito em inglês: “O
governador saúda e dá as boas-vindas aos ciclistas do Tour d´Afrique 2013”.
O governador troca algumas palavras com os estrangeiros, tira fotos e dá tapinhas
nas costas dos ciclistas. Mas todo o ar de felicidade digno de político em campanha
evapora quando um grupo de ciclistas egípcios – que nos acompanha desde o Cairo
– cobra do político governista mais investimentos do país no esporte. Ele, de forma
genérica, diz que vai fazer o possível para encaminhar a demanda dos atletas, provando
que, afinal, político é igual em qualquer lugar do mundo.
Como chegamos cedo, ainda no início da tarde, todos aproveitam o dia para as tarefas
domésticas: lavar as bicicletas, fazer a manutenção dos equipamentos e lavar as roupas
sujas. Alguns, cansados, não armam suas barracas e decidem recorrer a um quarto de
hotel em busca de um pouco de conforto e comodidade.
Após cumprir com todos os afazeres, sento em uma mesa um pouco afastada, ligo
meu computador e aproveito a conexão com a internet – ainda que em banda lenta
– para escrever algumas atualizações para o meu blog e mandar notícias para Andreza
enquanto relaxo tomando uma cerveja.
Até agora, nos acampamentos, ainda permaneço um pouco isolado do restante
do grupo. A adaptação à linguagem acaba sendo um enorme desafio – maior até
mesmo do que pedalar resfriado e com o tendão inflamado. Muito embora meu
inglês seja funcional, garantindo minha sobrevivência e permitindo que eu entenda
as informações fundamentais relacionadas ao Tour, sinto as limitações do idioma que
não me permitem ultrapassar a barreira dos diálogos rápidos, das conversas do dia a
dia ou de perceber algumas nuances, como piadas e ironias. E é justamente através
das brincadeiras da linguagem que se consegue solidificar relações, fazer amizades e
ganhar a intimidade das pessoas.
Apesar de conversar e me dar bem com praticamente todo mundo do grupo, sinto
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Egito . Adptação
Mais que um leão por dia
que todas as minhas relações ainda são muito superficiais. Reconheço que ainda estou
meio deslocado. Provavelmente por isso, sou visto como “o cara brasileiro que pedala
sozinho, tira fotos a todo instante e fica na frente do computador escrevendo no
tempo livre”.
Enquanto reconheço minhas limitações e penso em maneiras de superá-las, uma
colega se aproxima e pergunta se está tudo bem comigo. Respondo positivamente.
- Então por que você não vem sentar-se à mesa com a gente? – ela sugere.
Sem pensar duas vezes, fecho o computador e me levanto, aceitando o convite. A
autora da proposta é Sybille, a alemã que foi ajudada quando não conseguia montar
sua barraca com o vento no acampamento à beira do Mar Vermelho.
A mesa multinacional mais parece uma reunião de trabalho das Nações Unidas,
reunindo representantes de seis diferentes nações: Holanda, Estados Unidos, Canadá,
Bélgica, Alemanha e Brasil.
A conversa corre fluida pelos mais diversos tópicos. De repente, o holandês Freek se
junta ao grupo. Ele chega com um pedaço de cana-de-açúcar na mão, contando com
certa surpresa ter ouvido falar que além de comer, dá para fazer “suco de cana”.
Depois de quase se cortar tentando descascar a cana e de uma tentativa frustrada de
mascá-la com casca e tudo, peço para ele o canivete e a cana. Enquanto uso minhas
habilidades adquiridas desde a infância no interior, onde chupar cana é algo tão
corriqueiro quanto beber água; conto para eles que, no Brasil, é comum ir com a
namorada passear no parque e tomar caldo de cana nos fins de semana.
Explico que o Brasil é o maior produtor mundial de cana-de-açúcar e que o insumo,
além do açúcar, também é usado para produzir a cachaça – bebida típica, com a
qual se faz a internacionalmente famosa “caipirinha” – e o álcool combustível, usado
como substituto da gasolina. Todos ouvem e demonstram interesse, especialmente em
relação à questão energética.
- Mas isso ainda é uma experiência? Quanto tempo vai levar para ser usado em larga
escala? – questiona um.
Explico que o programa brasileiro do etanol já existe há mais de três décadas, desde a
primeira crise do petróleo da década de 1970, e que hoje mais de 30% da frota do país
roda exclusivamente com o combustível da cana-de-açúcar, e que a gasolina recebe um
aditivo de 25% de álcool combustível para se tornar mais econômica.
O norte-americano Mike Lantz reconhece que o etanol de milho, produzido nos
EUA, não é capaz de competir em termos de eficiência com o combustível verde
brasileiro.
Egito . Adptação
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Mais que um leão por dia
Quando termino de descascar a cana, todos provam e aprovam o gosto do doce vegetal
cultivado à beira do Nilo. Tento explicar o significado da expressão brasileira “chupar
cana e assobiar”. Freek se arrisca a fazê-lo, obviamente, sem sucesso. Quando todos
riem, sinto um alívio e uma grande satisfação, como se eu, de fato, tivesse acabado de
conseguir a façanha de fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
Descanso no Vale dos Reis
A cidade de Luxor, no Alto Vale do Rio Nilo, foi erguida sobre os escombros da antiga
Tebas, capital do Império Novo (1550-1069 a.C.). A cidade é uma imensa galeria,
com grande número de ruínas e riquezas arquitetônicas por toda parte. A parte
moderna fica na margem Oriental do Nilo, enquanto a margem Ocidental concentra
a Necrópole de Tebas, com suas antigas ruínas e templos.
No dia de descanso, acordamos cedo e saímos de ônibus em um grupo para conhecer
os sítios arqueológicos da região. A primeira parada é no Templo de Hatshepsut. O
local é extremamente movimentado, com grande fluxo de turistas do mundo todo e
de vendedores ambulantes, com seu artesanato e quinquilharias.
Para descer do ônibus e chegar à bilheteria é preciso passar por um verdadeiro “corredor
egípcio”. Um vendedor me oferece uma estátua de gesso de um faraó:
- 300 pounds, my friend!
Não respondo e sigo caminhando.
- Ok, para você, então, 200 pounds!
Não demonstro o menor interesse.
- 100 pounds, para você levar...
Não me comove.
- 50 pounds, que tal?
Continuo ignorando
- 30 pounds e é seu...
Nada.
- 10 pounds, para me ajudar, my friend!
Chego à bilheteria com a sensação de que, se caminhasse mais dez metros, ele acabaria
me oferecendo de graça ou mesmo me dando algum dinheiro para ficar com a
bugiganga.
A visão do chamado Templo de Milhões de Anos é incrível. Uma construção colossal
entalhada na rocha, encravada em meio a um imenso paredão de pedra calcária.
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Egito . Adptação
Mais que um leão por dia
O local sagrado foi construído em homenagem à rainha Hatshepsut, da 18.ª Dinastia
do Império Novo, que governou o Egito em um período de paz e prosperidade, sendo
considerada a primeira mulher chefe de governo de toda a história – representada pela
figura de uma mulher barbada, para simbolizar seu poder.
Uma imensa escada, ladeada pela figura de dois falcões, leva à parte superior do
templo. Nas paredes externas, imensas estátuas dos faraós e detalhes com hieróglifos.
De lá, seguimos para o Vale dos Reis, complexo mortuário que concentra 62 tumbas
dos faraós do Império Novo, incluindo os famosos Tutancâmon, Aquenáton e toda a
dinastia dos Ramsés.
Aqui, ao contrário da necrópole de Gizé – onde ficam as pirâmides –, as tumbas são
subterrâneas e foram construídas assim para evitar a ação de invasores e saqueadores.
O local sagrado só era acessível para a alta dinastia dos faraós.
As entradas das tumbas ficam escondidas, encravadas na rocha. Túneis levam para
dentro das galerias e câmaras mortuárias. Algumas delas possuem mais de cem galerias
– muitas repletas de tesouros que seguem sendo descobertos ainda nos dias de hoje.
Das três tumbas que visito, a de Ramsés IX é a mais interessante. As paredes são repletas
de desenhos e hieróglifos que mantêm sua cor original mesmo após séculos e séculos.
Uma pintura representa uma espécie de juízo final, onde o faraó é julgado pelos seus atos
bons e maus, pesados sobre uma balança. Outra pintura mostra a travessia do faraó pelo
Vale dos Mortos rumo à vida eterna. Impossível não imaginar um artesão pintando com
esmero cada detalhe. A sensação fica entre estar em um dos filmes do Indiana Jones e a
de estar vivendo dentro de um documentário da National Geografic.
As câmaras mortuárias – incluindo a do próprio faraó – estão vazias. Os tesouros, as
múmias e sarcófagos estão no Museu do Cairo, em outros museus espalhados pelo
mundo ou em coleções privadas, contrabandeadas por saqueadores de tumbas ao
longo dos séculos.
Ao sul do Vale dos Reis fica o Vale das Rainhas, necrópole das esposas reais e princesas
do período do Novo Império. A necrópole concentra mais de 80 túmulos, sendo o
mais famoso o da rainha Nefertari, uma das esposas de Ramsés II – que, infelizmente,
está fechado para visitação.
Outra tumba preserva o sarcófago da rainha, em um gigantesco bloco de pedra
ornamentado, e mantém uma “múmia bebê” de uma criança de apenas 7 meses, que
foi encontrada por uma equipe de arqueólogos italianos por volta do ano de 1900.
À noite, já de volta ao acampamento, somos recebidos por uma apresentação com
música e danças tradicionais do Egito. Uma dançarina do ventre, feia como uma
Egito . Adptação
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Mais que um leão por dia
múmia, convida alguns dos membros do grupo para reproduzir o movimento que ela
faz com sua pança flácida. Em seguida, um dançarino sufi, com saia rodada e colorida,
rodopia alucinadamente, enquanto faz alguns malabarismos com um pandeiro. Um
encantador de cobras dança e provoca os bichos com um pedaço longo de bambu.
Depois, olha fixamente nos olhos das serpentes, que ficam dóceis. Ele oferece os répteis
aos ciclistas, que hesitam em tocar nos bichos. Quando o primeiro se encoraja, sem ser
picado, a brincadeira começa. Todos vão ao centro dançar com as cobras e tirar fotos
segurando os bichos. O encantador coloca uma das serpentes dentro da bermuda de
Freek. Ela sai pela abertura de uma perna e entra por outra. Quando o bicho tenta
explorar algum buraco que encontrou pelo caminho, o ciclista dá um grito de susto,
dizendo em holandês algo como “aí não!”. Todos riem e se divertem juntos.
Edfu vs Kom Ombo
Deixamos Luxor rumo ao Sul, com destino à cidade de Aswan, última cidade no
Egito antes de cruzarmos a fronteira com o Sudão. Pedalamos 116 quilômetros em
um trajeto magnífico, margeado pela linha de trem da Egyptian National Railways de
um lado e pelas águas do Nilo do outro.
Em uma pequena vila, logo pela manhã, um furo no pneu do italiano Marco se torna
um evento, atraindo centenas de curiosos. Mais à frente, em um Coke-Stop, faço uma
troca: enquanto um garoto local pedala minha bicicleta, cavalgo por alguns metros no
lombo de seu jumento.
Chegamos então a Edfu, cidade de 160 mil habitantes. Nosso acampamento é no
Estádio Municipal – que apesar do nome não passa de um grande campo de várzea
de terra batida. Para nossa sorte, chegamos numa sexta-feira, bem no dia de rodada
do campeonato.
O futebol é uma paixão nacional no Egito. A seleção do país é uma das mais tradicionais
do continente, conquistou sete vezes a Copa Africana de Nações, e foi tricampeã entre
as edições de 2006 e 2010.
Apesar disso, sua última participação em uma Copa do Mundo foi em 1990, na Itália,
quando a equipe dos faraós sagrou-se a primeira seleção africana a marcar um gol na
competição mais importante do mundo da bola. Na ocasião, o time encerrou sua
campanha ainda na primeira fase, após dois empates e uma derrota.
Mas isso não impede que o esporte seja acompanhado com fervor e praticado em
todos os cantos do país, em campinhos de terra e traves improvisadas com pedaços de
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Egito . Adptação
Mais que um leão por dia
tijolos. Em cada vila do interior, é possível ver torcedores usando camisas de clubes
europeus – Barcelona e Manchester United são os preferidos – ou mesmo da seleção
brasileira, muito cultuada por aqui.
Descubro que a partida contra o time de Kom Ombo é o clássico local, uma espécie
de Fla-Flu do Alto Vale do Rio Nilo. O time local entra em campo vestindo uniforme
verde e amarelo, o suficiente para ganhar minha torcida e simpatia logo de cara.
- Bem amigos do Tour d´Afrique!
Quando a bola começa a rolar, fica mais do que evidente por que os times estão na
terceira divisão do campeonato: três jogadores do mesmo time correm atrás da bola ao
mesmo tempo e disputam, na base do carrinho, uma bola lateral no meio de campo.
A qualidade do jogo faz uma virtual partida entre o Ibis e o Asa de Arapiraca parecer
uma final de Copa do Mundo em termos técnicos.
Apesar do campo de terra, que levanta uma cortina de poeira enquanto os jogadores
correm e castigam a bola, esta não se trata de uma simples pelada. A partida é válida
pela 3.ª Divisão da Liga Nacional Egípcia e conta até mesmo com árbitro e assistentes
devidamente uniformizados, exibindo na manga direita o brasão da Federação Egípcia
de Futebol.
Empurrado pela numerosa torcida local – não mais de que 50 espectadores, além dos
ciclistas do TDA –, o time da casa faz bonito. Logo no início da partida, um lançamento
longo deixa o camisa 9 Mohamad cara a cara com o goleiro do Kom Ombo – aí foi só
chutar no cantinho para abrir o placar e correr para o abraço. Na comemoração, um
beijo no solo sagrado. A boca suja de terra, emoldurada por um sorriso com os dentes
manchados de tabaco prova que aquele não foi apenas um beijo cenográfico, como
fazem os astros da Champions League apenas para aparecer diante das câmeras.
Menos de dez minutos depois, após cruzamento da esquerda na cabeça do camisa 11
Ahmad, o time de Edfu amplia o placar para a delírio da torcida.
A equipe visitante esboça uma reação antes do fim da primeira etapa: numa arrancada
extraordinária, o atacante da equipe alviverde komombense diminui o marcador.
Quando volta do intervalo, a equipe visitante ainda pressiona o time verde-amarelo
em busca do empate, mas, aos 25 minutos, o artilheiro camisa 9 Mohamad – de novo
ele! – marca mais um golaço: um chute cruzado da intermediária que pega de surpresa
o goleiro da equipe adversária, fechando o placar em 3 a 1 para o Edfu.
Quando o juiz ergue o braço, a torcida aplaude efusivamente. Até mesmo a torcedora
sul-africana – que confessa não entender as regras desse jogo confuso, dizendo preferir
mil vezes o rugby – aplaude o espetáculo.
Egito . Adptação
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Mais que um leão por dia
Após o jogo, o mesmo campo empoeirado é dividido por dois grupos de meninos
egípcios, que entram para bater uma bolinha, cada um usando um dos gols.
Ao ver a bandeira do Brasil na manga do meu uniforme, um menino que veste a
camisa da seleção brasileira com o nome do jogador Kaká me convida para entrar em
seu time. Recuso o convite, alegando que estou com a perna machucada. Apesar de
brasileiro, minha habilidade futebolística não me qualifica nem mesmo para ficar no
banco de reserva da equipe de Kom Ombo. Assim, evito fazer feio diante das crianças
egípcias e de manchar para sempre a reputação internacional do futebol brasileiro.
Na terra dos Núbios
Em Aswan, temos mais um dia de descanso. A cidade é um importante polo turístico
do Sul do Egito e conhecida por suas palmeiras e jangadas de madeira com imensas
velas brancas que velejam pelas ilhas do Nilo.
A região é habitada pelos núbios – povo que tem como principal característica a
pele negra escura, os traços marcantes dessa etnia e um idioma próprio. Os locais se
gabam se serem os “verdadeiros egípcios” e afirmam categoricamente que foram seus
antepassados os primeiros a construir pirâmides como templos mortuários, ideia mais
tarde plagiada pelos faraós em Gizé.
Em Aswan, a principal atração, sem sombra de dúvida, é o mercado público (bazaar),
localizado em vielas no centro da cidade, onde se pode encontrar desde as quinquilharias
made in China até as mais raras especiarias do Oriente. Não à toa, o próprio nome
“Aswan” significa “mercado”, o que explica a história de povoamento do local.
Nas ruas do “bazaar”, também é possível tomar um bom chá ou café turco no fim da tarde
– bebidas estimulantes muito consumidas pelos muçulmanos, que não ingerem álcool.
Já a culinária local é uma verdadeira roleta egípcia – os pratos parecem apetitosos, mas
para poder comer é preciso flexibilizar e muito as exigências em termos de higiene e
assepsia. A lanchonete em que como um quebab e um guisado de carneiro no almoço
faz qualquer pastelaria chinesa parecer a UTI de um hospital em termos de limpeza e
cuidados com a manipulação dos alimentos.
Em uma viela, o movimento do lado de fora de uma padaria é intenso. Dezenas de
pessoas fazem fila e se aglomeram para comprar pão árabe quentinho. Pergunto se
posso conhecer a linha de produção e tirar algumas fotos. O atendente diz que só se
eu lhe pagar 10 pounds (US$ 1,50). Outro, que ouve a conversa, se intromete e diz
que se eu comprar alguns pães fica tudo certo e me convida para entrar.
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Egito . Adptação
Mais que um leão por dia
Na parte interna, iluminados apenas pela luz natural que vem de fora, cerca de dez
trabalhadores circulam em um espaço diminuto. O ar é quente e abafado por causa
do calor do forno, o que faz com que todos estejam com gotas de suor brotando em
suas frontes. Em um canto, um gato gordo e preguiçoso dorme sobre sacos de farinha.
Em cima de um balcão, há uma imensa caixa de madeira cheia de uma pasta viscosa
feita de água e farinha. Um padeiro, vestido de turbante e pitando um cigarro no
canto da boca, pega o grude com as mãos nuas e faz alguns discos, que são colocados
sobre uma esteira. Em dado momento, uma cinza se desprende do cigarro, passa a
alguns centímetros da borda da caixa, mas, por sorte, acaba caindo no chão. Fico com
a certeza de que, vez ou outra, aqueles pães acabam ganhando um tempero especial de
cinza de cigarro, gotas de suor e pelos de gato.
A massa é assada na temperatura altíssima do forno e em menos de um minuto sai
do outro lado da máquina, já na boca do balcão. Lá, o mesmo atendente que recebe
o dinheiro dos fregueses coloca os pães em sacos plásticos ou passa pilhas de até 20
pães para as mãos dos fregueses. Pago 5 pounds (US$ 0,70) por dez pães fresquinhos.
Mais tarde, meu jantar é em uma peixaria de rua, em que os peixes ficam em bacias
ao ar livre, resfriados apenas por blocos de gelo. Um cozinheiro limpa, eviscera e corta
os pescados ali mesmo. Depois, os frita em uma chapa. Pergunto, curioso, antes de
escolher, que tipo de peixe é aquele.
- É peixe do Nilo.
A resposta é suficientemente convincente para mim, que me arrisco e aprovo a
apetitosa iguaria. E, graças a Alá – e ao meu estômago que dá conta do recado –
sobrevivo à experiência.
Também aproveito o tempo livre para resolver algumas pendências. Para atravessar
a fronteira com o Sudão preciso providenciar uma foto 3x4. E, a partir dali, o risco
de contaminação por malária começa a aumentar, o que dá início à ingestão diária
obrigatória de comprimidos de doxyciclina. Mas, no Egito, até mesmo duas tarefas
aparentemente simples e descomplicadas se tornam um calvário.
A foto “na hora”, que o atendente garante que leva só dez minutos, acaba levando
mais de uma hora, revelando que o senso de pontualidade é extremamente flexível
por aqui.
Entro em uma farmácia e encontro um senhor barrigudo, com um jaleco encardido,
debruçado sobre o balcão enquanto fuma um cigarro. Ele conversa animadamente
com o que parece ser um velho amigo pelo som das risadas. Ele nota minha presença,
mas continua sua prosa sem me dar atenção.
Egito . Adptação
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Mais que um leão por dia
Vejo a grossa camada de poeira acumulada sobre as prateleiras, prova inequívoca de
que um espanador não passa por ali há algumas eras.
Sem que o farmacêutico demonstre qualquer interesse em me atender, interrompo a
conversa pedindo licença. Pergunto se ele tem comprimidos de doxyciclina. Enquanto
traga profundamente seu cigarro, responde em inglês, soltando as palavras junto com
a fumaça densa, que não tem o remédio que eu procuro sem sequer olhar em minha
direção para então retomar a conversa em árabe.
Quem viaja como turista e quer ser bem tratado dentro do chamado padrão de
excelência de atendimento deve riscar o Egito do mapa. Os egípcios, em geral, são
confusos e tornam complexas até mesmo as coisas mais simples.
É mais fácil atravessar o deserto do Saara pedalando do que conseguir pedir um item
adicional ao prato, como um ovo frito, por exemplo, em um restaurante. Não adianta
explicar que você vai pagar a mais e que é só colocar um ovo frito no prato junto com
a comida. “Não dá senhor, isso não está no cardápio.” E ponto. Não há argumento
capaz de convencê-los.
Pagar separadamente os itens da conta de um restaurante então, pode se tornar
uma tarefa estressante e durar mais de meia hora. Isso, é claro, no padrão egípcio de
contagem de tempo.
Êxodo: navegando rumo à fronteira
Chega o dia de cruzarmos a primeira fronteira na África. Para irmos de Aswan, no
Egito, para Wadi Halfa, no Sudão, temos de fazer uma viagem de aproximadamente 20
horas de barco pelo Lago Nasser, uma vez que não há uma estrada que ligue por terra
os dois países. Assim, acabamos ganhando mais um dia sem pedal, o que acaba sendo
importante para finalizar o processo de recuperação do meu tendão inflamado.
Para chegarmos ao posto de fronteira egípcio, pedalamos sobre a barragem baixa e a
barragem alta de Aswan. Com 3,8 quilômetros de extensão, a usina é responsável por
cerca de 20% da energia gerada no Egito e controla a vazão do rio, formando o lago
Nasser. A visão do dique sobre o Nilo é incrível, mas como se trata de uma área estratégica
de controle militar, somos proibidos de tirar fotos ou fazer qualquer filmagem no local.
No caminho até a aduana, a suíça Irin se enrosca com outro ciclista e sofre um queda,
registrando o primeiro acidente sério envolvendo os ciclistas do grupo. Às vésperas de
seu aniversário de 30 anos, ela fica com o rosto todo ralado, as pálpebras negras por
hematomas e raladuras nos braços e pernas.
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Egito . Adptação
Mais que um leão por dia
No porto em que embarcarmos, a cena mais se parece com a passagem bíblica do
Êxodo. Tudo é caótico. Centenas de pessoas vão se apinhando como podem na
embarcação que recebe o nome de Sinai. Estivadores também carregam toneladas
de carga que seguem com destino ao Sudão: farinha, arroz, enlatados, fertilizantes,
pneus, caixas de televisores 14 polegadas, máquinas de lavar roupa. Aparentemente, a
regra de segurança para o limite de carga ou de pessoas é apenas a de quanto couber.
Não há inspeção de segurança ou algo do gênero.
No fim, tudo se mistura e pessoas se acomodam sobre as caixas e se espalham sobre
o deque do navio, em um microuniverso vibrante. Cambistas trocam os pounds
egípcios pelo pound sudanês. Pessoas das mais variadas origens falando diferentes
línguas. De repente, ouço um “Porra, Paulo! Sobe as motos, caralho!”. Olho em volta
à procura de onde veio aquela frase em bom e sonoro português no meio de todo
aquele burburinho babilônico. Na proa do navio, debruçado, um cara grita e gesticula
para alguém lá embaixo.
Vou até lá apenas para confirmar o óbvio: não sou mais o único brasileiro perdido na
fronteira entre o Egito e o Sudão.
Lorenzo, o Leco, é brasileiro, mas mora em Londres e se vira do jeito que dá. Trabalhou
em restaurantes, onde conheceu o português Paulo Alexandre. Juntos, economizaram
dinheiro instalando pisos em obras e, juntos, saíram da Turquia para atravessar o
continente africano sobre duas rodas, mas auxiliados por um motor. Eles também
usam a aventura de moto para arrecadar doações para o Fundo das Nações Unidas
para a Infância (Unicef ).
Bastam três minutos de conversa em idioma nativo para selarmos uma relação de
profunda camaradagem entre nós três. Paulo é calmo e tranquilo, o oposto de Leco,
que fala rápido, atropelando um assunto no outro e é extremamente agitado. Mas,
com esse jeitão, ele consegue ainda ajudar um motoqueiro grego que é impedido de
embarcar por causa de problemas com a documentação de sua moto. Lorenzo troca
uma ideia com o comandante, que fala com o fiscal, que providencia o carimbo que
faltava e libera o embarque do grego.
Lorenzo revela que já havia enfrentado o mesmo problema:
- Ia demorar dois ou três dias para sair o papel das motos. Nem fodendo que eu ia
ficar aqui esperando!
Ele conta que ficou amigo de um garimpeiro sudanês, que também está no barco
para cuidar do transporte de um equipamento de mineração. O garimpeiro não só
conseguiu desembaraçar o trâmite aduaneiro das motos, como também descolou
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Mais que um leão por dia
almoço de graça para os lusófonos. É o tal do “jeitinho”, que só um brasileiro sabe
bem o que é.
O silvo estridente da buzina do navio e o comandante dando as instruções em árabe
no alto-falante com som rachado anunciam que é chegada a hora de zarpar. O
comandante tem todos os dentes superiores revestidos em ouro – sem estudo, ele conta
que aprendeu a pilotar “na experiência” e comanda o Sinai há mais de duas décadas.
A embarcação, fabricada por uma empresa alemã na década de 1970, segue firme
cruzando o lago Nasser apesar da ferrugem e do desgaste das milhares de travessias ao
longo de décadas.
Enquanto conversamos, o comandante me avisa para não colocar a mão na água sob
hipótese alguma. “O rio está cheio de crocodilos do Nilo. Eles te puxam pelo braço
e te levam para o fundo sem você perceber”, alerta. Pergunto se isso já aconteceu
alguma vez.
- Várias vezes – responde, e depois dá uma gargalhada, sem deixar claro se é uma
brincadeira ou não. Na dúvida, fica o recado: nada de tentar molhar as mãozinhas
na água.
A experiência da travessia na embarcação se torna, sem dúvida, uma das mais intensas
e marcantes da viagem. Os ciclistas do TDA ficam acomodados na “primeira classe”
– que, apesar do nome, não passa de um cubículo com uma pequena janela para o
lado de fora e um beliche infestado de percevejos. Divido a cabine de número 19 com
dois italianos – Ítalo e Marco – com quem acabo estreitando a amizade, já que ambos
também falam espanhol, tornando a comunicação mais fluida. Como só cabem dois
no beliche, fico com o chão e o saco de dormir.
Já na classe econômica, as pessoas armam redes ou dormem sobre as caixas e bagagens.
O cheiro de suor azedo é nauseabundo. As mulheres e crianças ficam em uma área
isolada – algumas, com até quatro crianças, se espremem em um espaço onde caberia
apenas um adulto.
Na proa, acompanho o pôr do sol, um dos mais espetaculares que já testemunhei
em toda a minha vida. Enquanto o astro rei vai descendo lentamente, tinge o céu de
alaranjado e doura as águas do Nilo. Quando ele voltar a surgir na margem oriental,
o Egito já terá ficado para trás.
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Mais que um leão por dia
Perfil | Sybille Zehringer - Força e delicadeza
Alexandre Costa Nascimento
A primeira vez que me lembro de tê-la visto foi no acampamento à beira do Mar
Vermelho, quando a força do vento zombava daqueles que tentavam armar suas
barracas no deserto. Perdida em meio a estacas, varetas e uma lona verde esvoaçante,
ela só conseguiu garantir seu teto para dormir naquela noite após ser ajudada por
outros colegas do Tour.
Depois disso, além do protocolar “bom dia” na fila do café da manhã e os eventuais
“olás” quando passávamos um pelo outro na estrada, foi apenas em Luxor que tivemos
nosso primeiro diálogo mais consistente, quando ela me convidou para dividir a mesa
com outros membros do grupo, me tirando de um auto-ostracismo involuntário.
Alemã de Stuttgart, Sybille, 33 anos, mora na Irlanda, onde trabalha na área contábil
de uma empresa. Cansada da desgastante rotina de escritório, comprou uma bicicleta
e resolveu explorar o mundo sobre duas rodas. Isso sem nunca antes ter pedalado mais
do que meia dúzia de quarteirões, conforme relata.
A África é só o começo de sua aventura, que não tem data para terminar. Depois do
TDA, ela pensa em seguir para pedalar pela China e de lá, nem mesmo ela sabe ao
certo dizer.
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